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FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELA

BIBLIOTECA DO IFCH - UNICAMP


Bibliotecária: Cecília Maria Jorge Nicolau CRB nº 3387

Brusantin, Beatriz de Miranda


B838c Capitães e Mateus: relações sociais e as culturas festivas e de
luta dos trabalhadores dos engenhos da mata norte de
Pernambuco (comarca de Nazareth – 1870-1888) / Beatriz de
Miranda Brusantin. - - Campinas, SP : [s. n.], 2011.

Orientador: Robert Wayne Andrew Slenes.


Tese (doutorado) - Universidade Estadual de Campinas,
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas.

1. Escravidão - Pernambuco. 2. Escravos – Alforrias.


3. Engenhos – Brasil, Nordeste. 4. Abolicionismo – Brasil.
5. Cavalo Marinho. 6. Teatro. 7. Cultura popular. I. Slenes,
Robert Wayne Andrew. II. Universidade Estadual de Campinas.
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. III.Título.

Título em inglês: Captains and Matthey: social relations and cultural festivals
and struggle of workers to the mills of the north woods of
Pernambuco (the district of Nazareth – 1870 to 1888)

Palavras chaves em inglês (keywords) : Slavery – Pernambuco


Slavery – Manumission
Enginery – Brazil, Northeast
Abolitionism – Brazil
Cavalo Marinho
Theatre
Popular culture

Área de Concentração: História Social

Titulação: Doutor em História

Banca examinadora: Robert Wayne Andrew Slenes, Izabel A. Marson, Martha


C. Abreu, Sidney Chalhoub, Marcus J. M. de Carvalho

Data da defesa: 10-05-2011

Programa de Pós-Graduação: História

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Para os trabalhadores rurais, brincadores e músicos populares da zona da mata
pernambucana

Para meus pais,


Edie Brusantin e Maria Izabel de Miranda Brusantin (in memoriam)

Para Cláudio, por sua música, seu amor e companheirismo

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Agradecimentos

Aprendi muito realizando esta Tese. Nas matas de Pernambuco, nos livros das
bibliotecas, nos documentos dos arquivos, nos congressos, nas conversas com muitas
pessoas que passaram na minha vida nestes últimos anos. Este trabalho, portanto, foi o fruto
de uma aprendizagem acadêmica, mas não exclusivamente. Foi também o resultado de uma
vivência pessoal enquanto brincante, artista, historiadora e pessoa. Seria, desse modo,
impossível resumir em palavras ou em uma lista de nomes a imensa gratidão que sinto por
aqueles que de muitas maneiras contribuíram nessa experiência. Não serei totalmente justa
nestes agradecimentos, até mesmo porque muitos que me ajudaram, acabaram ficando
anônimos. Porém, trarei aqui algumas pessoas, jóias raras, almas surpreendentes, amigos e
profissionais aos quais sou imensamente grata.
Desde o início e até o fim deste trabalho ―quase sem fim‖, sou grata ao Prof. Dr.
Robert Slenes, que confiou em mim e me ensinou um mundo de conhecimento. Para ele,
um grande mestre, dedico um imenso: muito obrigada!
Agradeço também aos mestres trabalhadores da cana e brincadores de Cavalo
Marinho (em especial, Estrela de Ouro e Estrela Brilhante de Condado) e Maracatu de
Baque Solto da mata norte pernambucana os quais me ensinaram sobre história, arte e vida.
Em especial: Mestre Biu Alexandre, Seu Martelo, Aguinaldo, Pino, Fabinho, Mestre
Antônio Telles, Mestre Biu Roque e Mestre Inácio Lucindo. Agradeço a família destes
mestres, principalmente, Ivanice, Jaclécia, Jaline, Totó, Natan, Dona Moça, Nicinha, Dona
Bia, Dona Preta e crianças. Agradeço aos músicos, particularmente, Bebe Água, Bó,
Cláudio Rabeca e Luis Paixão, e também a todos os folgazões e mestres que me
concederam entrevistas e conversas sem fim.
Sou muito grata à banca examinadora da qualificação: Prof. Dr. Sidney Chalhoub e
Profa. Dra. Izabel Marson que foram precisos e contribuíram para melhorar minha Tese.
Sidney por ter aberto caminhos interpretativos em aulas e reuniões da linha e Izabel Marson
pelo diálogo acadêmico exposto em parte deste trabalho. Agradeço também aos dois pelo
aceite para participar da banca de Defesa. Aproveito também para agradecer aos outros
membros da banca, o Prof. Dr. Marcus Carvalho, que também foi o primeiro a me abrir as
trilhas dos arquivos e contatos em Recife, e a Profa. Dra. Martha Abreu.

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Na Unicamp, no CECULT, sou grata à Profa Dra. Sílvia Lara e ao Prof. Dr.
Fernando Teixeira por sugestões no projeto, e, em especial, à Flávia Peral por tantos
―quebra-galhos‖.
Em Recife, entre poeiras e fungos, sou muito grata a Bruno Câmara por ter sido um
guia qualificadíssimo dos arquivos de Recife, ao pessoal do Memorial da Justiça, em
especial, Adilson e Emanuel, aos funcionários do Arquivo Público Jordão Emereciano,
Fundação Joaquim Nabuco, Instituto Histórico Geográfico pernambucano, neste agradeço
ao Prof. Galvão e Vergolino. Agradeço também aos funcionários das bibliotecas de
Campinas, Recife, Goiana e Nazaré da Mata.
Agradeço aos organizadores do XXIX Conferência Anual da ILASSA (Teresa
Lozano Long Institute of Latin American Studies- University of Texas at Austin) pela
participação no evento e ajuda oferecida. Em Austin (EUA), agradeço Lucia Duncan pelo
aconchego do lar, também ao Lula Marcondes pela conexão Austin-Olinda e pelo incentivo
a esse intercâmbio de conhecimentos.
Agradeço ao Grupo Peleja por ter feito parte da minha vida e ter me trazido o
mundo da arte. Sou grata ao Daniel Campos e à Alice Vilela, pelos primeiros passos de
dança, ao Lineu Guaraldo, Tainá Barreto, Carolina Laranjeira por ter compartilhado comigo
grandes momentos da vida, da arte e da pesquisa, a Ana Caldas e Eduardo Albergaria, pela
amizade. A todos que fizeram parte deste grupo e a atriz Ana Cristina Colla (LUME) pela
direção do espetáculo ―Gaiola de Moscas‖. Agradeço também aos artistas Alício Amaral e
Juliana Pardo por terem me apresentado aos mestres de Cavalo Marinho.
Aos amigos para toda vida que desde assuntos acadêmicos, artísticos e sentimentais
foram imprescindíveis no caminhar desta Tese. Amigos também de vários lugares: Rio de
Janeiro, Campinas, Piracicaba, Recife, Olinda, Porto Alegre, Austin, Florianópolis, São
Paulo. Muito obrigada à Carolina Laranjeira, Lineu Guaraldo, Tainá Barreto e pequena
Elisa, por sempre estarem ao meu lado nesta estrada; Pedro Silveira, Alice Rubini, pequena
Olívia, pela amizade sincera; Ana Caldas, companheira de papos e arte; Joana Medrado e
Rafaela Leuchtenberger, pela amizade sem fronteiras e pelas trocas acadêmicas; Thiago
Araújo, pelas dicas e papos sobre escravos e seus bois; Alinnie Silveira e Erika Arantes,
pela amizade e pelo incentivo ao mundo da História Social da Cultura; Angêla Meireles e
Ana Rita Uhle, amigas desde quando tudo começou na USP; Lucia Duncan e Lula

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Marcondes, pelas dicas e acolhidas; Marina Piatto, pela amizade de mais de 20 anos; Alan
Monteiro e Mariana Portella, companheiros paulistas em terra pernambucana; Alan
Oliveira, pela amizade e projetos na mata norte pernambucana; Fabi Assad, companheira de
casa e amiga, Rafael Murakami, pelo carinho e força em momentos difíceis; Janine Primo,
por suas dicas sobre quilombos, quilombolas e História Oral; Gustavo Vilar, pela
oportunidade de pesquisar o Mamulengo pernambucano; Helder Vasconcellos e Laura
Tamiana, pelo carinho e ensinamentos sobre a arte de tocar e dançar; Paulo Fontes, pelas
conversas e pelo convite para participar do projeto Memória dos Trabalhadores do Brasil;
Karina Legrand, pelas muitas e muitas conversas, amizade e apoio; Andrea e Katarina, pelo
profissionalismo e força. Obrigada a todos os colegas de Olinda, Recife e Campinas que me
alegraram e tornaram meus dias menos dolorosos entre escritas e pesquisas.
Agradeço ao Prof. Dr. Luiz Carlos Marques, coordenador do curso de História da
Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP), pela oportunidade e confiança. E
também ao Prof. Dr. Sergio Abranches da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE),
pela correção gramatical e ortográfica.
Serei sempre grata a minha família, meus irmãos, Marcelo, Fernando, Edinho e
Alexandre, minhas irmãs, Patrícia, Cláudia e Daniela. Aos meus sobrinhos, sobrinhas,
cunhadas e cunhados. Sou grata a minha prima Ana Thereza Dürmaier pelo carinho e
acolhida. Agradeço aos meus pais por tudo, Edie Brusantin, e minha mãe, Maria Izabel,
que, infelizmente, partiu sem ver o resultado deste trabalho. Ao Claúdio, pelo
companheirismo e carinho. Agradeço também a sua família pela afetuosa acolhida.
Sou grata ao CNPQ pela bolsa de doutorado que foi essencial para a realização de
parte desta pesquisa, ao Ministério da Cultura (Brasil) pelo financiamento da viagem à
Austin (EUA), pelo auxílio da FAEPEX - UNICAMP e pelo Programa Memória do
Trabalho, CPDOC/Fundação Getúlio Vargas (FGV), Petrobrás e MTE pelo prêmio
concedido no início dessa pesquisa.

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-Por que o doutor não escreve um livro sobre essa gente? Em vez de exaltar a vida dos
donos, o doutor podia se interessar pelos pequenos.
Achei uma boa idéia.
José Lins do Rego, Banguê

A vida é uma teia tecendo a aranha. Que o bicho se acredite caçador em casa legítima
pouco importa. No inverso instante, ele se torna cativo em alheia armadilha. Confirma-se
nesta estória sucedida em virtuais e miúdas paragens.
Mia Couto

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Resumo

Neste trabalho almejamos reconstruir as culturas festivas e de luta dos trabalhadores


dos engenhos de açúcar da zona da mata norte de Pernambuco entre 1870 e 1888. Tendo
como foco analítico a comarca de Nazareth, buscamos compreender as relações sociais do
período e suas diversas redes de poder. Numa visão dialética dos processos sociais,
refletimos sobre as relações de conflito, negociação e acomodação entre os vários setores
sociais, objetivando, sobretudo, alcançar as complexidades sócio-econômicas, políticas e
culturais de uma comunidade escravocrata e, nesta conjuntura, analisar as possibilidades
escravas de melhores condições de vida e de liberdade. O objetivo de compreender as ações
dos escravos e livres levou-nos também a entender as atitudes harmônicas ou não da classe
dos senhores e proprietários. A identificação das redes de conflitos fez-nos identificar as
brechas e, através destas frestas, visualizamos as estratégias sociais e culturais dos
trabalhadores. Em suma, este trabalho objetivou investigar a história dos trabalhadores,
escravos e livres, sob a perspectiva analítica da História Social, valorizando analiticamente
a cultura popular e a conjuntura específica da zona da mata norte Pernambucana nas
últimas décadas da escravidão. Objetivamos, sobretudo, apostar na hipótese de que a micro-
análise nos proporciona uma visão ampla das questões, trazendo sua complexidade e sua
dinâmica multifacetada, isto é, uma interpretação da realidade com suas variáveis sócio-
econômicas, políticas e culturais peculiares e conjunturais. Corroboramos com a análise dos
processos sociais que envolvem proprietários e escravos sem generalizações. A proposta,
assim, foi produzir uma versão peculiar sobre as relações de classe na sociedade escravista
a qual abrangesse de forma dialógica, as ações de cima e as de baixo, não necessariamente,
nesta ordem e de forma diacrônica.

Palavras-chaves: - Pernambuco – Escravidão – Alforrias - Engenhos de açúcar – Cavalo


Marinho – Maracatu de Baque Solto - Abolicionismo

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Abstract

In this work we aim to reconstruct the festive culture and struggle of workers to the sugar
mills of the north of the forest zone of Pernambuco between 1870 and 1888. Focusing on
analytical county of Nazareth, we crave to understand the social relations of the period and
its various networks of power. In a dialectical view of social processes, we reflect about the
relations of conflict, negotiation and accommodation between the various social sectors,
aiming to grasp, mainly, the complexities of socio-economic, political and cultural
community and slavery and at this juncture to consider the possibilities slaves of a better
life and freedom. In order to understand the actions of the slaves and free, also led us to
comprise the attitudes harmonic or not, the class of masters and owners.
The identification of networks of conflict moved us to identify gaps, and through
these cracks to observe the social and cultural strategies of the workers. In summary, this
study aimed to investigate the history of workers, slave and free, from the analytical
perspective of Social History, valuing analytically popular culture and specific conjuncture
of the forest area north of Pernambuco in the last decades of slavery. We aim, above all,
betting on the assumption that the micro-analysis gives us a broad overview of the issues,
bringing its complexity and dynamic multifaceted, ie, an interpretation of reality with their
conjucturais and peculiar variables socio-economic, political and cultural. We corroborate
the analysis of social processes involving owners and slaves without generalizations. The
proposal, therefore, was to produce a peculiar version of the class relations in the slave
society which encompass, of dialogical form, the actions, from above and from below, not
necessarily in this order and diachronic form.

Keywords: Pernambuco (Brazil) - Slavery – Manumission - Sugar mills - Abolitionism


Seahorse – Maracatu de Baque Loose

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Lista de Mapas

Mapa: Localização da Comarca de Nazareth em Pernambuco........................... p. 40

Lista de Gráficos

Gráfico 1 - População escrava das regiões de Pernambuco entre 1858 e 1887.... p. 71


Gráfico 2 - Variação da população escrava nas Zonas da Mata Norte e Sul entre
os anos de 1858 e 1887.......................................................................................... p. 73
Gráfico 3 - Evolução da população escrava nos municípios de Goiana,
Nazareth, Pau d‘Alho, Itambé, Cabo, Santo Antão (Vitória), Rio Formoso,
Escada e Palmares entre 1858 e 1887................................................................... p. 81
Gráfico 4 - Distribuição das escravarias entre 1867 e 1888 na comarca
de Nazareth (PE).................................................................................................... p. 255

Lista de Tabelas

A) Paróquia de Nossa Senhora da Conceição de Nazareth


Tabela A1 - Escravos ............................................................................................ p. 88
Tabela A2 - Livres ................................................................................................ p. 88

B)Paróquia de Santo Antônio de Tracunhaém


Tabela B1 - Escravos ............................................................................................ p. 88
Tabela B2 - Livres ................................................................................................ p. 88

C) Total para a Comarca de Nazareth (Nazareth e Tracunhaém)


Tabela C1 - Escravos ........................................................................................... p. 89
Tabela C2 - Livres ............................................................................................... p. 89

Lista de Quadros

Quadro 1 - Eleição do 5º Distrito 1885 – Resultado........................................... p. 61


Quadro 2 - População escrava em Pernambuco entre 1872 e 1888.................... p. 66
Quadro 3 - Relação de escravos da matrícula de 1873....................................... p. 69
Quadro 4 - Relações de escravos da matrícula de 1887...................................... p. 70
Quadro 5 - População escrava das regiões de Pernambuco entre 1859 e 1887... p. 71
Quadro 6 - Evolução da população escrava das Zonas Norte e Sul de Pernambuco
e suas variações porcentuais entre 1858 e 1887.................................................... p. 72
Quadro 7- Crescimento da população livre nas Zonas da Mata Norte
e Sul de Pernambuco entre 1858 e 1872............................................................... p. 73
Quadro 8 - Alforrias e mortes na população escrava no ano de 1876................. p. 77
Quadro 9 - Alforrias, mortes e população escrava média dos municípios das Zonas

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da Mata e Norte de 1 de abril de 1872 a 31 de dezembro de 1876.................... p. 78
Quadro 10 - Relação de escravos da Comarca de Recife e das comarcas da
Zona da Mata Pernambucana e suas divisões entre 1858 e 1887....................... p. 80
Quadro 11- Movimentação dos escravos na Província
de Pernambuco 1877-1881................................................................................... p. 85
Quadro 12- Mapa da população da Comarca de Nazareth realizado pela
Delegacia local em 1870...................................................................................... p. 90
Quadro 13 - Relação da população escrava por sexo e estado civil
entre 1859 e 1887 em 7 municípios da zona da mata de Pernambuco.................. p. 92
Quadro 14 - Porcentagem de solteiros, casados e viúvos com relação
à população total dos municípios da zona da mata entre 1858 e 1887.................. p. 93
Quadro 15 - Porcentagem de solteiros, casados e viúvos com relação
à população acima de 15 anos dos municípios da zona da mata em
1873...................................................................................................................... p. 93
Quadro 16 - Porcentagem da população escrava por faixa etária
no ano de 1873...................................................................................................... p. 94
Quadro 17 – Profissões dos escravos registradas nas matrículas
de 1873 e 1887...................................................................................................... p. 96
Quadro 18 - Escravos em Campina Grande (PB) e Nazareth (PE)
entre 1851 e 1887................................................................................................. p. 165
Quadro 19 - Porcentagem de propriedades e quantidade de escravos na comarca
de Nazareth (1867-1888)...................................................................................... p. 253
Quadro 20 - Tamanho das escravarias e quantidade de proprietários
por período (1867-1888)....................................................................................... p. 254
Quadro 21- Produção de açúcar em Pernambuco entre 1867 e 1888.................. p. 256
Quadro 22 - Valores dos escravos registrados nos inventários Post-Mortem
da comarca de Nazareth entre 1867 e 1888......................................................... p. 258
Grupo A - Alforrias registradas em cartório na comarca de Nazareth
entre 1867 e 1887
Quadro 23 - Alforrias quanto à cor do escravo........................................ p. 267
Quadro 24 - Alforrias quanto ao sexo do escravo.................................... p. 267
Quadro 25 - Alforrias quanto à data......................................................... p. 270
Quadro 26 - Alforrias quanto à faixa etária.............................................. p. 270
Quadro 27 - Formas de alforrias na comarca de Nazareth entre 1867 e 1887...... p. 273
Grupo B - Alforrias nos testamentos da comarca de Nazareth
entre 1867 e 1887
Quadro 28 - Alforrias quanto à cor do escravo........................................ p. 287
Quadro 29 - Alforrias quanto ao sexo do escravo.................................... p. 287
Quadro 30 - Alforrias quanto à data......................................................... p. 287
Quadro 31 - Alforrias quanto à faixa etária.............................................. p. 288
Quadro 32 - Perfil dos testadores que libertaram e não libertaram escravos
na comarca de Nazareth entre 1867 e 1887........................................................... p. 291
Quadro 33 - Relação de proprietários, escravarias, liberdades
em testamentos e formas de liberdade................................................................... p. 299
Quadro 34 - Escravaria do Engenho Babilônia de José Antônio da
Costa Azevedo e Felícia Joaquina da Costa Azevedo (1864-1881)..................... p. 325

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Sumário

Introdução – Os caminhos que levam às questões ............................................. P. 19

Capítulo 1 – Localizando-nos no espaço social pernambucano: a comarca de Nazareth


e o universo da cana de açúcar na segunda metade do século .......................... P. 39

1.1) A cultura da cana de açúcar na Zona da Mata pernambucana ................... P. 39


1.2) A comarca de Nazareth: o lugar de engenhos bangüês, festas populares, liberais e
abolicionistas ............................................................................................... P. 57
1.3) Os números de escravos e livres em Pernambuco e suas regiões na segunda
metade do século XIX ................................................................................ P. 64
1.4) A composição social da comarca de Nazareth na segunda metade do século XIX
..................................................................................................................... P. 87
1.5) Parece, mas não é: o futuro da agricultura pernambucana em discussão e
os trabalhadores em pauta ......................................................................... P. 101

Capítulo 2 – Redes de conflitos: relações sociais na sociedade nazarena na década


de 70 e 80 do século XIX ........................................................................................ P. 139

2.1) De tantos criminosos, quais eram os reais inimigos da ordem escravocrata na Zona
da Mata Norte de Pernambuco na década de 70 do XIX?
..................................................................................................................... P. 139
2. 2) Quebrando os quilos: os ―de baixo‖ se revoltam ........................ ............... P. 148
2.3) Quebrando as composturas: que moral é essa? ........................................... P. 168
2.4) Aumentando a rede de conflitos: conservadores X liberais e
os ―bandidos sociais........................................... ..................................................... P. 191
2.5) Acessos à Justiça nos anos 70 do XIX: a Lei para aqueles que ―governam no mato‖
.................................................................................................................................. P. 222

Capítulo 3 – A busca pela carta de liberdade nos engenhos de açúcar: os livres,


libertos e escravos na comarca de Nazareth entre
1865 e 1888 .......................... ................................................................................... P. 245

3.1) As propriedades e escravarias na comarca de Nazareth .............................. P. 250


3. 2) Ações de liberdade e cartas de alforria: caminhos para se libertar pelas cartasde
liberdade entre 1867 e 1887 ........................................................................ P. 259
3.3) E próximo à minha morte eu deixo livre meus escravos: as cartas de liberdade pro
testamentos ............................................................................................................ P. 284
3.4) Escravos que se libertam: de onde vem, para onde vão, por que ficam? P. 315
3.5) Outros caminhos de liberdade na escravidão............................................ P. 344

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Capítulo 4 – Viva a liberdade! As festas dos trabalhadores rurais na Zona da Mata
Norte de Pernambuco
................................................................................................................................ P. 351

4.1) A historiador-brincante: objetivos, fontes e escolhas metodológicas ......... P. 351


4. 2) As produções bibliográficas sobre o Cavalo-Marinho e o Maracatu de Baque Solto:
reflexões sobre o presente .......................................................................... P. 363
4.3) As memórias dos brincadores e trabalhadores rurais da Zona da Mata Norte de
Pernambuco: um diálogo com o presente ................................................... P. 385
4. 4) Sobre as ―origens‖, os significados e as representações: relatos e interpretações
sobre os folguedos da mata pernambucana ................................................ P. 404
4.5) Liberdade de sambar, caminhos para se libertar: culturas de luta e a prática do
Cavalo-Marinho e do Maracatu pelos escravos da comarca de Nazareth na década
de 70 do XIX................................................................................................. P. 452

Conclusão – Entre folgas e folguedos, entre foices, façanhas e artimanhas: construindo


culturas .................................................................................................................... P. 487

Arquivos e Bibliotecas ............................................................................................ P. 498

Bibliografia ............................................................................................................. P. 499

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Abreviaturas

APEJE – Arquivo Público de Pernambuco Jordão Emereciano


CECULT – Centro de Pesquisa em História Social da Cultura
CNPQ – Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico
FAEPEX - Fundo de Apoio ao Ensino, à Pesquisa e Extensão
FGV – Fundação Getúlio Vargas
FUNDAJ – Fundação Joaquim Nabuco
IHGPE – Instituto Arqueológico Histórico e Geográfico pernambucano – Recife (PE)
ILASSA – Institute of Latin American Studies Student Association (University of Texas)
LUME – Núcleo Interdisciplinar de Estudos Teatrais da UNICAMP
MINC – Ministério da Cultura
MTE– Ministério do Trabalho e do Emprego
SSP – Fundo da Secretaria de Segurança Pública
UFPE – Universidade Federal de Pernambuco
UNICAMP – Universidade Estadual de Campinas

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Introdução

Os caminhos que levaram às questões

Se eu fosse antiquário, só teria olhos para as coisas velhas. Mas sou historiador. É
por isso que amo a vida. Essa faculdade de apreensão do que é vivo, eis justamente, com
efeito, a qualidade mestra do historiador.
Marc Bloch

Cena do Mateus (Seu Martelo) e Capitão (Mestre Biu Alexandre), Cavalo Marinho Estrela de Ouro
(Condado, PE). Foto Beatriz Brusantin, janeiro de 2011, Pernambuco.

“Em 2007, Sebastião, conhecido como Martelo, aposentado da cana, 70 anos,


antigo brincante como nego Mateus no Cavalo Marinho e Maracatu, contou-nos que
quando era pequeno durante as sambadas em Nazaré da Mata (PE), fugindo do Juiz de

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Direito, ele se escondia embaixo do banco dos músicos e passava a madrugada toda
assistindo o brinquedo. Nos engenhos começou a trabalhar com 7 anos, ficava esperando
na porteira para os gados não escaparem. Perdeu a mãe com 10 anos. Ficou com as irmãs
e o pai. Ele não alcançou muitos senhores de engenho bravos, mas seu pai alcançou. O pai
tomava muita “pisa”. Aos 13 anos começou a carrear. E lá já tinha Bombo, aprendeu a
tocar e a participar do Côco de Roda. Depois o pai casou no engenho e teve 8 filhos, mas
só viveu 3, o resto morreu de comer barro. Seu Martelo também comia muito barro, era um
chapéu por dia. O pai dele também brincava de Mateus no Cavalo Marinho e de Catirina
no Maracatu, assim seu Sebastião não só herdou o apelido, Martelo, mas a brincadeira
também. Na época do seu pai era a “época da ignorância”. Era uma “cruzada”, ninguém
dava mão e tinha caboclo que queria furar a bandeira. Tinha Maracatu que vinha de
Goiana só para brigar. Em 70, ele era fichado na Usina São José em Nazaré. Em 57, ele
veio para Condado e começou a brincar de Mateus no Cavalo Marinho, era no Engenho
de Baixo. Errava um monte. Batia a bexiga1 errada. E no começo brincava em troca de
dinheiro para comprar o sabão para lavar a roupa que sujava.
Para Seu Martelo, o Nego Mateus é quem faz a brincadeira acontecer e é aquele
que conhece tudo do folguedo. É ele que mata o Boi e depois chama o doutor. E Mateus
tem o seu pareia, seu irmão, que é o Nego Bastião. E tem a Catita que é a negra, mulher
dos dois. Para seu Martelo quem inventou o Cavalo Marinho foram os “negros da senzala,
do cativeiro”. “Chegou o patrão dele e disse: Nego inventa uma brincadeira”. “Os negros
viviam tudo no chão, com 30 ou 40 famílias”. “Daí chegou o nego e falou: bora fazer um
Cavalo Marinho”. Arrumaram uma mola de arame e fizeram um “reco”. A “rebeca” era
uma garrafa e o pandeiro era de couro, tinha que esquentar pra afinar. Os arcos eram
cipós com folhas de côco amarrada. E quando tinha ensaio geral, os “capangas”
apareciam para espiar. Não tinham dinheiro para comprar roupa, mas o patrão dava
dinheiro. Para ele o Cavalo Marinho “era da África, e daí foi para França, para Portugal
e depois veio para o Brasil”. Contou ele que, um dia, no Engenho Bonito “morreu um nego
e deixou cinco neguinhos, e o filho do engenho queria matar os neguinhos, daí mataram o
filho”. Acharam o homem no meio da cana enterrado com os pés para fora. Daí chegaram
no engenho e levaram “os pretos” tudo a pé para cadeia em Goiana. Tinha mulher
“buchuda”, com criança pequena, de resguardo. No dia seguinte, não tinha ninguém para
trabalhar no Engenho, e daí foram “os capangas”, “uns negros grandes”, buscar “os
negros” de volta. Martelo lembrou que os capangas no Cavalo Marinho são os Bodes
“véios” e que em Nazaré tinha uma forca no meio da cidade.2
Narrativa sobre a entrevista de Sebastião Pereira de Lima (Martelo) concedida para Beatriz Brusantin,
2/01/2007.

1
Bexiga é um artefato do Mateus e do Bastião. Trata-se de uma bexiga de boi que depois de seca é cheia de
ar e serve para que os personagens negros marquem o ritmo da música batendo na perna ou também serve
para que eles batam agressivamente em outras personagens como o Soldado ou alguém do público que
atrapalhe a brincadeira.
2
Entrevista concedida à autora por Sebastião Pereira de Lima (Martelo), 2/01/2007. Pesquisa financiada pelo
projeto Memória do Trabalho, Prêmio Ministério do Trabalho e Emprego, CPDOC/Petrobrás.

20
Esta imagem foi o ponto de partida desta pesquisa. Durante uma visita na Zona da
Mata Norte de Pernambuco no ano de 2004, na cidade de Condado (PE), vivenciei esta
representação praticada pelos trabalhadores rurais. Nesta região, historicamente de
engenhos e usinas de açúcar, os trabalhadores da cana realizam há séculos o folguedo
denominado Cavalo-Marinho3. Na cena, Mateus e o Capitão negociam um serviço: tomar
conta da festa e do terreno do Capitão. As ordens são claras, o preço do serviço nem tanto,
mas, de qualquer forma, o negro Mateus numa subordinação/insurbordinação ―toma conta e
não dá conta do recado‖ citando suas próprias palavras.
Como historiadora, vislumbrei que, ali, na representação praticada pelos
trabalhadores no século XXI, existia uma História a ser investigada. Um processo histórico
de relações de trabalho espacialmente situado na região canavieira pernambucana, mais
especificamente na Zona da Mata Norte, que ainda precisava ser compreendido. Um mundo
de relações sociais que dizia respeito aos negros escravos e também aos seus senhores.
Portanto, a proposta que surgiu foi de fazer uma história social dos reais e representados
Mateus e Capitães pernambucanos, isto é, realizar uma reconstrução dos processos
históricos sociais, econômicos e culturais que envolveram os sujeitos das relações de
trabalho dos engenhos da cana nos tempos da escravidão, especificamente nas últimas
décadas.
Durante minha de pesquisa em campo realizando entrevistas com os trabalhadores
rurais participantes dos brinquedos da região, bem como de alguns sindicalistas que não
atuavam nos folguedos, constatei uma dinâmica social do trabalho repleta de injustiça,
carência econômica, exploração, subordinação, mas, também, de lutas, negociação,
clientelismo, mediação, inversões hierárquicas e de (re)significação da dura realidade
através dos folguedos. O Cavalo Marinho não só expressava uma arte popular riquíssima
em elementos estéticos, poéticos, performáticos e musicais, mas também narrava uma
história do cotidiano, atual e passado, vivido pelas gerações de trabalhadores que
costumeiramente praticam e praticaram a diversão. Aquela manifestação cultural, de
3
Trata-se de uma festa que o Capitão Marinho vai dar em homenagem ao Santos Reis do Oriente. Para tanto,
contrata dois negros, Mateus e Bastião, e a negra Catirina para tomarem conta da festa. Os negros não tomam
conta e bagunçam o lugar, apenas se comportando com a chegada do Soldado. O teatro começa então a se
desenrolar com entradas de figuras com máscaras de couro, e tem seu ápice na Dança do São Gonçalo do
Amarante, a dança dos Arcos. Existem cerca de 70 figuras que compõem o folguedo que termina com a
aparição do Boi. O teatro que mescla dança e personagens se mantém, atualmente, ao som do banco dos
músicos (rabeca, pandeiro, Baje e Ganzá).

21
interesse dos artistas, etnólogos, antropólogos e turistas, também nos contava algo sobre
processos históricos, sobre a história dos trabalhadores da cana da Zona da Mata Norte. Do
mesmo modo, as relações sociais vividas pelos trabalhadores da cana esclareciam muito
sobre o que os mesmos representavam nas festividades. Era um diálogo entre realidade e
arte que reconstruía a vida concreta dos envolvidos e a vida (re)significada, imaginada,
criada pelos trabalhadores. O contato com este presente trouxe-me uma série de problemas
a serem revolvidos. Ao mesmo tempo, me instigou a levantar questões sobre o século XIX,
afinal, eu queria alcançar os trabalhadores escravos, o negro escravo tão bem representado
pela figura do negro Mateus.
Diante das pesquisas bibliográficas e documentais sobre o tema e a região, inclusive
diante da constatação de que existiam muitas lacunas analíticas sobre a escravidão nos
engenhos da zona da mata pernambucana na segunda metade do XIX, bem como, de
estudos na área da História sobre as culturas festivas, as perguntas surgiram ―que nem caldo
de cana‖, utilizando uma expressão pernambucana: quem praticava estas festas durante o
século XIX? O que significava estes folguedos para os escravos e os livres trabalhadores
dos engenhos? Como os escravos e livres (re)significavam sua realidade através deste
brinquedo? Como se davam as relações de trabalho no século XIX? Como era a formação
social da região da zona da mata pernambucana? Quais eram as formas de luta, resistência
ou acomodação dos escravos? Quais foram os caminhos propostos e alcançados em busca
da liberdade? Como eram as relações de poder? Os folguedos do Cavalo Marinho e do
Maracatu de Baque Solto eram meios utilizados pelos escravos para contestarem a ordem
vigente? Na conjuntura pós 1870, e mais ainda após a lei de 1871, como eram as relações
escravistas e de trabalho nos engenhos de açúcar? Às vésperas da abolição, qual era o perfil
dos trabalhadores dos engenhos? Quem eram os senhores de engenhos? Quais os tamanhos
de suas propriedades e escravarias? Como e quais foram os possíveis caminhos para a
construção da identidade da classe dos trabalhadores rurais dos engenhos durante o fim do
século XIX?
O contato com a realidade atual da Zona da Mata Norte pernambucana despertou
muitas perguntas para o tempo presente e, assim, permitiu a construção de novos problemas
para o passado. Como salientou Marc Bloch, a solidariedade das épocas tem tanta força que
entre elas os vínculos de inteligibilidade são verdadeiramente de sentido duplo. ―A

22
incompreensão do presente nasce fatalmente da ignorância do passado. Mas talvez não seja
menos vão esgotar-se em compreender o passado se nada se sabe do presente‖ 4. Esse
diálogo se deu, sobretudo, com relação às festas, que defino como um costume e, portanto,
não como uma tradição intocável e estanque, mas sim que vislumbram aspectos tradicionais
e que se expressam como manifestações culturais dinâmicas e historicamente
(re)apropriadas por seus sujeitos.5 Ao mesmo tempo, também percebi neste diálogo, através
da memória dos trabalhadores e da bibliografia sobre o tema, aspectos das relações entre
patrão e empregado, entre feitor, cabo e trabalhador que me chamaram a atenção para
questões que envolvem os processos históricos de mediação, negociação, subordinação no
mundo do trabalho.
Assim, estudando a bibliografia disponível sobre o tema, dando grande destaque e
contribuição das obras de Peter Eisenberg e Marcus Carvalho, me deparei com alguns
vazios com relação ao período que desejava estudar, a região da Zona da Mata Norte, o
mundo do trabalho nos engenhos e o tema da escravidão através de uma análise sobre as
culturas festivas e de luta. A documentação sobre a região existia, mas com relação às
festas também trazia lacunas. Era necessário um grande levantamento social sobre o meu
foco de pesquisa. Contudo, algo que surgiu como um problema para o desenvolvimento da
tese, na verdade, tornou-se o meu problema analítico.
Diante de alguns vazios de informação, comecei a questionar algumas afirmações:
será que de fato existiam poucos escravos na região da mata pernambucana? E quais eram
as diferenças entre zona da mata sul e norte? Será que, além dos quilombos, havia outras
formas de luta e resistência nesta região? E quanto às relações paternalistas, devemos
reproduzir a análise de Gilberto Freyre? Devemos reafirmar a visão analítica de cima para
baixo, com noções idealizadas de valor humano e valorização das relações pessoais
apoiadas numa visão antagônica da sociedade patriarcal? Buscando responder todas estas
questões, pretendi construir e/ou (des)construir algumas conclusões estabelecidas por
estudos que não tiveram como instrumento a microanálise advinda da escola italiana. Na
verdade, almejei propor uma versão diferente.

4
BLOCH, Marc. Apologia da história ou o ofício do historiador. Rio de Janeiro, Zahar, 2001, p. 65.
5
Estou me referindo ao conceito de E. P. Thompson que discuto com mais detalhes no capítulo 4.

23
Na estratégia da microanálise, a aposta é que a experiência mais elementar, a do
grupo restrito, e até mesmo do indivíduo, é a mais esclarecedora porque é a mais complexa
e se inscreve no maior número de contextos diferentes. Isto é, o recurso a sistemas
classificatórios baseados em critérios explícitos (gerais ou locais) é substituído na
microanálise pela decisão de levar em consideração os comportamentos por meio dos quais
as identidades coletivas se constituem e se deformam. Trata-se, portanto, na recusa da ideia
de que existiria um contexto universal e homogêneo, de construir a pluralidade dos
contextos que são necessários à compreensão dos comportamentos observados. 6 E aí me
aproximo muito da visão de micro história de Giovanni Levi que propõe a busca de uma
descrição mais realista do comportamento do homem no mundo no qual reconhece sua –
relativa – liberdade, além, mas não fora, das limitações dos sistemas normativos
prescritivos e opressivos. Nesse sentido, a ação social é vista como o resultado de uma
constante ―negociação, manipulação, escolhas e decisões do indivíduo diante de uma
realidade normativa, que embora possivelmente possa ser difusa, oferece possibilidades de
interpretação e liberdades pessoais‖7.

A questão é, portanto, como definir as margens – por mais estreitas que


possam ser – da liberdade garantida a um indivíduo pelas brechas e contradições
dos sistemas normativos que o governam. Em outras palavras, uma investigação
da extensão e da natureza da vontade livre dentro da estrutura geral da sociedade
humana. 8

Segundo Levi, neste tipo de investigação, o historiador não está simplesmente


preocupado com a interpretação dos significados, mas antes em definir as ambiguidades do
mundo simbólico, a pluralidade das possíveis interpretações desse mundo e a luta que
ocorre em torno dos recursos simbólicos e também dos recursos materiais. E, neste ponto,
meu diálogo com o autor é mais do que apenas um referencial teórico, mas, completamente
aplicativo, parte integrante da minha experiência analítica de compreensão, argumentação e
pesquisa. Como ressaltou Revel, a escolha de uma escala particular de observação produz

6
REVEL, J. Jogos de escalas. A experiência da microanálise. Rio de Janeiro, FGV, 1998, p. 10-13.
7
LEVI, Giovanni. ―Sobre a micro-história‖. In: BURKE, Peter. A escrita da história. Novas perspectivas. São
Paulo, Ed. Unesp, 1992, p. 134.
8
LEVI, Giovanni. ―Sobre a micro-história‖. In: BURKE, Peter. A escrita da história. Novas perspectivas. São
Paulo, Ed. Unesp, 1992, p. 135 e 136.

24
efeitos de conhecimento e pode ser posta a serviço de estratégias de conhecimento 9; de,
sobretudo, primeiro conhecer e depois tornar explícitos, através da descrição densa, os
prováveis significados das ações – e aqui a aproximação com a antropologia; não
questionar as limitações, as possibilidades e a mensurabilidade da própria racionalidade,
tornar o particular como ponto de partida e prosseguir identificando seu significado à luz de
seu próprio contexto específico.10 Vale ressaltar que se propõe também redefinir a noção de
contexto, contrapondo a ideia de que existiria um contexto unificado, homogêneo, dentro
do qual e em função do qual os atores determinariam suas escolhas. A ideia é justamente a
observação da multiplicidade das experiências e das representações sociais.11 A proposta é
inverter o procedimento habitual para o historiador de partir de um contexto global para
situar e interpretar o texto, e buscarmos construir a pluralidade dos contextos que são
necessários à compreensão dos comportamentos observados. Para a microanálise, cada ator
histórico participa de maneira próxima ou distante de processos – e, portanto, se inscreve
em contextos – de dimensões e de níveis variáveis, do mais local ao mais global. Trata-se
da ideia de que o indivíduo de um grupo, de um espaço permite uma modulação particular
da história global; uma dimensão particular e original, uma versão diferente.12
A experiência singular dos trabalhadores da cana da Zona da Mata Norte de
Pernambuco através do Cavalo Marinho e do Maracatu de Baque solto13, manifestações
apenas observadas ao norte do Recife (PE) e sul de João Pessoa (PB), uma região, portanto,
bem específica, fez-me dar o ponto de partida para a construção de uma versão diferente e
original da história dos trabalhadores rurais e dos escravos em Pernambuco. Ao mesmo
tempo, não apenas essas representações culturais eram significativas, mas também as
condições sociais, econômicas e políticas presentes na mesma região, vale dizer, o perfil
social de engenhos banguês, a presença de senhores com suas escravarias de médios e
pequenos portes, as evidências documentais de que, especificamente, a comarca de

9
REVEL, J. ―A história ao rés-do-chão‖. Prefácio. In: LEVI, Giovanni. A herança imaterial. Trajetória um
exorcista no Piemonte do século XVII. Rio de Janeiro, 2000, p. 7-37.
10
LEVI, op cit, 1998.
11
REVEL, op cit, 2000.
12
Idem, op. cit.
13
Festa que ocorre tipicamente na época do carnaval e é composta pelo desfile de uma corte real, baianas,
arreia-más ou tuxaus (caboclo com um cocar de penas de pavão), rodeados pelos caboclos de lança e
complementados por personagens como o Mateus, a Catirina e a Burra. Personagens dançam ao som de uma
orquestra de percussão e metais (cuíca, caixa, surdo, gonguê e trombone) que toca entre os desafios de versos
improvisados pelo mestre do grupo.

25
Nazareth se caracterizava diante da imprensa do XIX como um ―reduto abolicionista‖, que
fazia parte do 5º Distrito que elegeu Joaquim Nabuco em 1885, que foi palco de dezenas de
ações de liberdade e alforrias e da constatação (capítulo 1) de que até o ano de 1888 a
comarca possuía um número significativo de escravos. Existia, portanto, um conjunto de
sinais e indícios que me levou a reduzir a escala de observação, não para tentar aplicar
algum padrão interpretativo, mas, justamente, a fim de criar espaços de análises relacional,
peculiar e múltipla. Nesta escolha, o presente também gritava, afinal, o motivo da minha
primeira visita à cidade de Nazaré da Mata em 2006 foi o seu atual símbolo turístico de
cidade do Maracatu. Porém, se a visita foi pelo símbolo, a escolha propriamente se deu por
dois motivos atemporais: um atual, pela verificação de que o último Cavalo Marinho da
cidade localiza-se na periferia, longe dos olhos dos estrangeiros e nas mãos de um negro,
seu Irineu, cortador de cana. E mais surpreendente ainda, pela constatação de que na
comarca de Nazareth, em 1871, nas matas entre os engenhos, longe das vistas dos senhores,
os escravos praticavam o brinquedo do Maracatu e do Cavalo Marinho dando gritas de
Viva à Liberdade.
A escolha do representável, todavia, não viria para confirmar uma suposta
evidência, mas justamente para transformar o conteúdo da possível representação.
Procurava, portanto, complexidades e ambiguidades. A imagem do Capitão e do Mateus me
revelava um antagonismo que poderia não ser real. Eu queria investigar o entre, as brechas
dessa relação aparentemente bipolar. Quem me dizia isso era a própria figura do Mateus
que nas falas atuais, como nos relatos do passado, sempre trazia ambiguidades e uma
peculiar ―astúcia‖ no ato de negociar, falar, se subordinar ou insubordinar. Atrelado a isso,
as evidências do século XIX de que, principalmente depois da Revolta Praieira, os conflitos
entre senhores de tendências políticas diferentes eram constantes e que os escravos e
populares percebiam isso e aproveitavam para buscar melhores caminhos de vida
corroboraram a ideia de que aquela conjuntura específica criava a necessidade de uma
cultura popular que mediasse com a lógica e a dinâmica do poder, e nem sempre, se fizesse
resistente. No mais, a evidência sócio-econômica que na Zona da Mata Norte as relações de
trabalho se fizeram, por um maior prazo, em estruturas de produção de açúcar tradicionais
(engenhos banguês), trouxe-me sinais de que nessa conjuntura histórico-geográfica os
escravos e livres tiveram que vivenciar por mais tempo relações de trabalho ―tradicionais‖,

26
o que, portanto, possivelmente, a mesma proporcionou aos escravos mais experiência – e,
portanto, mais conhecimento estratégico - para agenciar suas ações, políticas, sociais e
culturais diante dessa estrutura de poder.
A dinâmica das últimas décadas do XIX, todavia, se deu para os dois lados: para
senhores (e estes não constituíram uma classe homogênea como veremos nos capítulos 1 e
2) e para os escravos, que com o passar do tempo foram se tornando libertos, livres sob
condições ou ex-escravos depois da abolição. Do mesmo modo, as relações entre estes
também modificaram. No entanto, o corte temporal de 1870 a 1888, momento de grandes
decisões no campo legislativo, no trabalho e na indústria do açúcar, faz-nos compreender a
fundo como os escravos vivenciaram este processo e reafirmaram suas culturas festivas, de
luta e de acomodação antes do Brasil se tornar um país sem escravidão. Como eles
construíram meios de melhorar suas vidas e a dos seus, na iminência do fim da escravidão?
Ao mesmo tempo, e em constante diálogo com este movimento, como os senhores de
vários níveis sócio-econômicos enfrentaram o decorrer das ações políticas locais regionais
e nacionais? Como os senhores lidaram com as ocorrências das alforrias, das rebeldias e da
―subordinação‖ por parte dos escravos? Em suma, como se constituíram as relações sociais
no mundo do trabalho dos engenhos de açúcar? Como, principalmente, dinamizou-se a
cultura popular e senhorial numa conjuntura de escravidão em vias de extinção?
Assim, a busca principal desta tese foi justamente reconstruir o conjunto destas
relações de dominação e exploração de forma relacional e dialética e não só pela ótica de
cima, mas também de baixo, e daí a escolha das manifestações culturais populares como
uma das – não a única como veremos – formas de agenciamento dos escravos. Nas palavras
de Sílvia Lara, ao invés de tentarmos descobrir se os escravos agiam ou não segundo leis
específicas de um bem estruturado conceito de modo de produção, podemos aprender a
ouvir os escravos, os fugitivos e os libertos.14 Pautando nos estudos de E. P. Thompson,
almejei reconstruir historicamente as relações sociais da Zona da Mata Norte, em especial,
a comarca de Nazareth nas últimas décadas do século XIX, longe da descrição estática do
modo de produção em termos econômicos, pondo de lado, como secundárias (menos reais),
as normas, a cultura, os decisivos conceitos sobre os quais se organiza um modo de

14
LARA, Sílvia. ―Blowin in the wind. E. P. Thompson e a experiência negra no Brasil‖. In: Projeto de
História, São Paulo, vol 12, outubro de 1995, p. 55.

27
produção; nas palavras de Thompson, uma divisão arbitrária de base econômica e
superestrutura cultural.15 Uma visão que não procederia para o exame de uma sociedade
real.
Nesta perspectiva teórica, partimos da hipótese de que as relações sociais no mundo
do trabalho dos engenhos de açúcar da Zona da Mata Norte pernambucana - onde
prevaleceram as estruturas de produção menos avançadas tecnologicamente, com a
presença da área de cultivo atrelado à fábrica, e, portanto, com relações de trabalho
―tradicionalmente‖ marcadas pela relação senhor-escravo - em tempos da escravidão foram
constantemente redefinidas por disputas políticas, desigualdades sócio-econômicas ―intra-
classe‖ dos proprietários, pelas discussões nacionais e regionais sobre leis
emancipacionistas e pela abolição. Ao mesmo tempo, estas relações sociais, vale lembrar,
―intra-classes‖ e ―entre-classes‖, também foram se (re)configurando em diálogo com as
ações escravas em busca da liberdade, do pecúlio, da solidariedade familiar, das opções de
revolta, das decisões pela deferência, das (re)significações culturais. Em última análise, o
pressuposto é que a dinâmica sócio-econômica da sociedade oitocentista, em foco, foi
constituída por um conjunto de relações de poder e dominação, com seus jogos e disputas,
o qual, por sua vez, teve intrínseco em seu processo a influência das culturas festivas e de
luta construídas pelos escravos, pelas quais estes (re)significaram a realidade vivida,
abriram caminhos para a liberdade e para melhores condições de vida e, também, por outro
lado, pelas quais proporcionaram a manutenção de determinadas formas de autoridade e
poder. A hipótese, enfim, é de que as sociedades ditas ―tradicionalmente‖ patriarcais e
―paternalistas‖ dos engenhos pernambucanos não se constituíram enquanto tais apenas
pelas mãos ativas dos senhores, mas também por agência dos escravos e suas apropriações
da realidade. No mesmo sentido, os caminhos da liberdade, as melhores condições de vida
para os escravos, os prazeres e as expressões culturais, não se fizeram apenas pelas mãos
dos grandes abolicionistas ou pela vontade e bondade da elite branca pernambucana, e sim,
pelas ações dos negros escravos ou libertos de forma coletiva em família ou não, pelas
memórias de seus colegas ou parentes, pelas referências aos ancestrais, pelas relações mais
próximas com os ―grandes‖ ou com os ―pequenos‖, pela experiência compartilhada entre os

15
THOMPSON, E. P. ―Folclore, antropologia e história social‖. In: NEGRO, Antônio Luigi e SILVA, Sérgio
(orgs.). As Peculiaridades dos ingleses e outros artigos. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2001, p. 254.

28
seus que possibilitaram a constituição de um costume comum de mediar, resistir e recuar
conforme necessidades próprias.
E, neste ponto, a respeito do conceito de paternalismo e de liberdade, o diálogo
acadêmico é estreitamente estabelecido com os estudos de E. P. Thompson e as produções
de Genovese, Sílvia Lara, Sidney Chalhoub, Robert Slenes, Pedro Carvalho e outros16.
Como salienta Lara, não conseguimos entender o conceito de paternalismo sem entender o
conceito de luta de classes. Através do paternalismo, os senhores tentavam superar a
contradição da impossibilidade de os escravos tornarem-se coisas e ―ao definir o trabalho
compulsório dos escravos como uma legítima retribuição à proteção e à direção senhoriais
concebiam a escravidão como uma relação de ‗direitos‘ e ‗deveres‘ recíprocos‖. 17 No mais,
corroboro com as ideias de Sidney Chalhoub sobre os diferentes significados que podemos
atribuir às ações dos escravos e libertos. Às vezes, ser livre significou poder viver longe da
tutela e do teto senhorial ou poder ir e vir sem controle ou restrições; outras vezes,
significou poder reconstruir laços familiares e mantê-los sem o perigo de ver um membro
da família ser comercializado pelo senhor ou, muitas vezes, a liberdade significou a
possibilidade de não servir a mais ninguém, e, neste caso, como destaca Lara, atribuímos ao
conceito de liberdade uma dimensão econômica, conectando-se à luta pelo acesso à terra.18
Em suma, busquei desenvolver uma análise das ações sociais escravas como um
―conjunto de práticas culturais‖ que, se aos olhos públicos parecem dizer apenas sobre a
subordinação, está, na verdade, ensinando-nos sobre os modos possíveis de
―insurbodinação‖ escrava na conjuntura de exploração das propriedades dos engenhos de
açúcar do Oitocentos. Neste ponto, a grande referência analítica foi James Scott, justamente
porque propõe uma visão dialética dos processos sociais e das relações de dominação.19
Assim, pretendi demonstrar que este ―conjunto cultural‖ conversava com a dinâmica das
relações de poder, até mesmo porque estamos tratando de uma sociedade de Mateus e

16
GENOVESE, E. D. Roll, Jordan, roll. The world the slaves made. New York, Ventage Books, 1972.
LARA, op cit, 1995. SLENES, R. & MELLO, P. ―Paternalism and social control in a slave society: the coffee
regions of Brazil 1850-1888‖. In: IX Congresso Mundial de sociologia, Uppsala, agosto de 1978, mimeo.
CHALHOUB, S. Visões da liberdade. São Paulo, Cia das Letras, 1990.
17
LARA, op cit, 1995, p. 47.
18
LARA, S. ―Escravidão, cidadania e História do Trabalho no Brasil‖. In: Projeto História. São Paulo, vol
16, fevereiro de 1998, p. 28 e 29.
19
SCOTT, Domination and the Arts of Resistance: Hidden Transcripts. New Haven: YaleUniversity Press,
1990.

29
Capitães e também de outros setores sociais envolvidos no processo. Portanto, vislumbro
uma história dos trabalhadores rurais numa perspectiva local com o intuito de construir uma
versão diferente do global – mas em conversa com este - ao menos, mais múltiplo e
peculiar.
Por último, cabe dizer que esta pesquisa me fez reafirmar os pés na História Social.
Apesar da antropologia e da história cultural me chamarem em muitos momentos, e
confesso que a influência foi grande, principalmente no capítulo 4, ainda assim pude dar
grandes passos em busca de um trabalho na dita linha História Social da Cultura. Acredito
que o caminho ainda é longo, mas creio que depois de receber meu título de Mestre na linha
da História Social do Trabalho, fato que nesta tese me influenciou muito, consegui ampliar
meus estudos e me aprofundar um pouco mais no universo acadêmico de fazer História
Social pensando cultura e trabalho, principalmente, com influência de E. P. Thompson e
James Scott.
Aqui vale trazer um artigo de Sílvia Lara que discorre sobre a História Social e
Cultural problematizando que, diante do último ―boom‖ historiográfico (artigo escrito na
década de 90 do XX), vozes simultâneas falam de cultura querendo dizer coisas bem
diferentes, referindo-se a pesquisas de natureza bastante diversa. Lá pelas tantas da sua
exposição, a autora cita Thompson quando este coloca que a experiência não pertence à
história social ou à história cultural, mas interliga necessariamente as duas abordagens.
Assim, salienta Lara que na visão de Thompson há ―sensibilidades‖ ou ―mentalidades‖
diversas – mas é preciso não esquecer que ao teatro da gentry se opõe o contra-teatro da
plebe: mais que um idioma, talvez o que tenhamos aqui seja uma gramática cultural
comum. E completa Lara dizendo que, para além da questão da terminologia, há a ideia de
que pessoas diferentes podem atribuir significados diversos a práticas culturais comuns, ou
expressar sentidos contrários no interior de uma mesma ―linguagem‖ cultural.20 A autora
neste sentido destaca que um dos grandes problemas que atravessam e enfrentam
atualmente a história cultural e a social seja o de ―lidar com as relações contraditórias de
consenso e dissenso, unidade e diversidade, união e conflito entre grupos sociais e no
interior dos grupos de uma sociedade.‖21 Como proposta, e aí retoma as discussões sobre

20
LARA, Sílvia. ―História cultural e história social‖. In: Diálogos, UEM, vol 1, p. 25-32, 1997.
21
Idem, p. 28

30
História Social de Hobsbawm, a autora afirma que não podemos trabalhar com oposições
simplistas que separam radicalmente economia e cultura, cultura e sociedade, e assim por
diante. Citando Hobsbawm, ―o historiador das ideias pode (por conta e risco) não dar a
mínima para a economia, e o historiador econômico não dar a mínima para Shakespeare,
mas o historiador social que negligencia um dos dois lados não irá muito longe‖22. Aqui
associo a esta afirmação a noção global do social, e, neste ponto, alcanço a minha
explicação ―teórica‖ sobre a pretensão desta tese de compreender o universo político,
moral, cultural, social dos senhores (e estes se dividiam como veremos nos capítulos 1 e 2 )
e também buscar alcançar as ações sociais e culturais dos escravos, libertos e livres.
Novamente, citando Hobsbawm, acredito que com este caminho interpretativo
amenizaremos as dificuldades que os historiadores sociais enfrentam, de que classe não
define um grupo de pessoas em isolamento, mas um sistema de relações, tanto verticais
quanto horizontais. Assim, é uma relação de diferença (ou semelhança) e de distância, mas
também uma relação qualitativamente de função social, de exploração, de
dominação/sujeição. ―A pesquisa sobre classe deve, portanto, envolver o resto da sociedade
da qual ela é parte‖.23 Como coloca o autor, ―os aspectos sociais ou societais da essência do
homem não podem ser separados dos outros aspectos do seu ser, exceto à custa da
tautologia ou da extrema banalização.‖24
Por fim, como conclui Silvia Lara, talvez a principal questão que tenhamos que
enfrentar seja a da necessidade de retomar a lição deixada pela primeira geração da Escola
dos Annales: “precisamos de bons problemas para fazermos uma boa história. Hoje eles
não podem ser formulados sem levar em conta as dimensões culturais e sociais e vice-
versa.‖25 E aproveito para completar, novamente citando os fundadores dos Annales, Marc
Bloch e Lucien Febvre, ao se referirem ao ―método regressivo‖, de que devemos interrogar
o passado fincados no presente. Como coloca Febvre, a História é uma resposta às

22
Sílvia Lara cita esta frase retirando-a do artigo de Hobsbawm, ―From social history to the history of
society‖. In: Daedalus, 100, 1971. Minha citação vem do livro do mesmo autor, Sobre História. São
Paulo, Cia das Letras, 1998, p. 87.
23
HOBSBAWM, E. Sobre História. São Paulo, Cia das Letras, 1998, p. 99.
24
HOBSBAWM, E. Sobre História. São Paulo, Cia das Letras, 1998, p. 99.
25
LARA, op. cit., 1997, p. 30.

31
perguntas que o homem de hoje necessariamente se põe.26 E novamente citando Marc
Bloch, o qual leva mais longe o valor heurístico do presente do conhecimento do passado, o
historiador deve partir do presente para remontar o fio do tempo até as sociedades do
passado. Com esta afirmação, Bloch nos indica que ―o percurso natural de qualquer
pesquisa se faz do melhor ou menos mal conhecido para o mais obscuro‖.27 Em minha
opinião, talvez, não cheguemos a tanto, mas certamente, para formular os problemas desta
tese sobre o século XIX, muitas luzes vieram do presente e muitas vozes dos trabalhadores
rurais brincadores dos folguedos de hoje foram ouvidas, até mesmo porque gostaria
imensamente que eles compreendessem e tivessem acesso a outras versões sobre a história
de sua classe. E almejaria muito, agora emprestando os termos usados por Sílvia Lara, que
os atuais e futuros estudiosos da cultura popular não caíssem no diletantismo ou na
despolitização ao refletirem sobre a arte e as culturas destes trabalhadores.

**************

Esta tese ficou dividida em quatro ―médios longos‖ capítulos que possuem ligações
entre si, mas, principalmente, estão conectados pela proposta de interpretação do social e do
cultural que explicitei acima. Assumo que para realizar tal empreitada tive que ―saber de
tudo um pouco, mas com certa profundidade‖, a própria opção pela micro-história, na
verdade, requer isso. Traçando rapidamente a linha de raciocínio dos procedimentos de
análise e pesquisa desta tese, na minha visão analítica, tinha que entender o que estava
acontecendo politicamente com os senhores de Pernambuco nos anos 70 e 80 do XIX (e
neste caso, constatar a presença de uma ―classe média‖ de senhores), para poder
compreender as relações de poder, consequentemente, visualizar a realidade sócio-
econômica e política que os escravos estavam vivendo, e assim, conseguir aferir possíveis
brechas dentro das redes de poder e controle estabelecidas, e daí, ter alicerces para alcançar
interpretações sobre os processos de alforrias, as opções de luta e/ou as não opções, e, neste
caso, as dinâmicas de ―acomodação‖. Por fim, diante de todas estas informações,
conseguiria refletir sobre as culturas festivas tendo como referência a conjuntura social;

26
DOSSE, François. A história em migalhas. Dos annales à nova história. São Paulo, Ensaio, Campinas,
Unicamp, 1992, p. 67
27
DOSSE, op. cit., 1992, p. 68.

32
desse modo, um caminho árduo, mas necessário, porque trazia, por si só, aspectos societais
reais e concretos e não apenas estruturais.
Assim, a fim de reconstruir as relações sociais e as culturas festivas e de luta dos
trabalhadores rurais dos engenhos da cana da mata norte de Pernambuco nas vésperas da
abolição, tive que empiricamente mergulhar na documentação do final do século XIX e
reconstruir um quadro social da comarca de Nazareth ainda não registrado na historiografia.
Almejando compreender a conjuntura sócio-econômica local, busquei verificar dados
básicos sobre a comarca (população livre e escrava, engenhos, safras), as informações que
eu encontrava nos inventários post-mortem sobre o perfil sócio-econômico dos engenhos e
também nos relatórios provinciais das câmaras municipais e dos engenhos. Para tanto,
pesquisei os dados das duas matrículas de escravos de 1872-1873 e 1886-1887, materiais
gentilmente concedidos por Robert Slenes, os dados do censo de 1872 e dos Relatórios
Provinciais de 1858-1859. Com relação aos inventários post-mortem, consultei o conjunto
documental arquivado no Memorial da Justiça de Recife e o restante no Arquivo Público do
Estado de Pernambuco Jordão Emerenciano. No acervo do Memorial também foram
consultados alguns processos crimes do período de recorte desta pesquisa com a intenção
de encontrar indícios sobre as relações de trabalho as quais envolveram os trabalhadores
escravos durante os processos de transformações legais e em uma conjuntura regional de
início da decadência dos engenhos de açúcar.
Ainda no Capítulo 1, analisei alguns aspectos das discussões que ocorreram no
Congresso Agrícola de Recife em 1878, e, nestas reflexões, os estudos de Izabel Marson
foram essenciais, buscando compreender o processo de eleição de Joaquim Nabuco e a
relação com o 5º Distrito de Pernambuco, e também analisar as divergências dos discursos
sobre a questão da mão de obra, e, por conseguinte, a questão da abolição. Na parte
documental, utilizei, principalmente, as atas do Congresso publicadas e guardadas no
acervo da Biblioteca do Arquivo Público do Estado de Pernambuco Jordão Emerenciano. A
intenção era justamente acessar as discussões políticas num âmbito nacional, regional e
local, fazendo um preâmbulo com a conjuntura sócio-política da Zona da Mata Norte
pernambucana e as ações sociais dos senhores e proprietários, principalmente, com relação
aos trabalhadores.

33
Firmadas algumas vigas, o segundo passo foi perceber como acontecia a dinâmica
social da Comarca de Nazareth nos fins do Oitocentos e tentar reconstruir sua lógica de
funcionamento e sobrevivência. Diante das informações, constatei que para perceber a
lógica da sociedade rural escravista era preciso identificar os significados que estavam
embutidos nas relações sociais e ações humanas de conflito e/ou solidariedade. Nesse
sentido, no Capítulo 2 busquei refletir sobre negociações e conflitos ―entre classes‖ e ―intra
classes‖. Sem aprofundar sobre os significados teóricos do conceito de poder, busquei
reconstruir através, principalmente, da documentação policial arquivada no Arquivo
Público do Estado de Pernambuco, o que significava ―poder‖ naquela conjuntura local.
Nesse sentido, considerei importante saber os sujeitos que participavam da cena para
entender de onde vinham as forças que provocavam a contra-força, e/ou a resistência, e/ou
a reação. Nessa ideia, optei por incluir a polícia e os trabalhadores inativos28 e ―marginais‖
(para não usar o termo da época e falar bandidos) na rede que já incluíam senhores de
engenho, livres e escravos. Nesta investida pude desvendar mais ingredientes sócio-
econômicos, políticos e culturais (morais) que contribuíam para o funcionamento da
engrenagem da sociedade escravista produtora de açúcar da mata norte de Pernambuco.
Desse emaranhado surgiram novas questões como, por exemplo: quem eram os
trabalhadores que, institucionalmente, faziam frente à classe hegemônica? Qual era a classe
hegemônica? E quais eram os elementos sociais que constituíam uma cultura de luta e
resistência contra o poder senhorial ou os poderes senhoriais?
Dentro da discussão sobre redes de solidariedade, poder e representação
institucional do controle sócio-político, foi imprescindível situar a conjuntura local no
processo histórico nacional de discussão e aprovação da Lei do Ventre Livre, da Lei do
Sexagenário e, portanto, no processo legislativo e jurídico que o Brasil estava passando nas
décadas de 70 e 80 do XIX. Desse modo, além de pensar o controle através da instituição
policial, também busquei refletir sobre a Justiça. Neste caso, não só como meio de
fortalecimento do poder senhorial, mas também, como um campo de conflitos, como um
instrumento de mediação entre senhores e escravos e/ou entre grandes e pequenos. Para esta
investigação, foram pesquisadas as Ações de Liberdade, os processos cíveis localizados no

28
Apesar desta classificação ter referências contemporâneas, considerei coerente usá-la uma vez que expressa
bem a dinâmica sócio-econômica que visualizo e que será explicitada nos próximos capítulos.

34
Memorial da Justiça (Recife) e na Fundação Joaquim Nabuco e a documentação policial e
da Justiça do APEJE.
No Capítulo 3, centramos esforços analíticos nos processos de conquista da carta de
liberdade, relacionando-as, principalmente, com o perfil sócio-econômico dos senhores,
isto é, tamanho das escravarias. Trabalhei com as alforrias registradas em cartório e em
testamentos que foram divididas em alforrias com pecúlio (pagas), por vontade do senhor
(incondicional) e com condições. A discussão, todavia, sob os sentidos da liberdade foi
acessada com intuito de compreender, na sua complexidade, as condições colocadas pelos
senhores para os escravos alcançarem sua liberdade, bem como as conquistas, por exemplo,
através do pecúlio, por parte dos escravos. Aqui o objetivo foi, sobretudo, alcançar uma
visão multifacetada desses processos sociais, algo que escapasse à possível interpretação
dicotômica dos processos de alforria. A intenção foi tanto traçar o perfil dos caminhos para
a liberdade, mas também, buscar entender o lado do escravo diante da situação de plena
liberdade ou diante de uma liberdade condicional. Aqui, a reflexão sobre a constituição da
família e dos laços de solidariedade horizontal tornou-se um viés interessante. Por fim,
também esbocei outros caminhos traçados pelos escravos em busca da liberdade. Mapear as
opções dos escravos de se livrarem do cativeiro e analisá-las proporcionou, dentro da tese,
um ponto de convergência para a compreensão das redes de conflitos e solidariedades
expostas nos capítulos 1 e 2, e também para o entendimento sobre as culturas festivas dos
escravos, interpretadas no capítulo 4. Quanto à parte documental, os principais documentos
utilizados foram os referentes ao Cartório de Nazareth do acervo do Museu do Açúcar na
Fundação Joaquim Nabuco, os testamentos e inventários post-mortem localizados no
Memorial da Justiça e a documentação policial do APEJE.
Finalmente, depois de algumas leves aparições durante todo o texto, as culturas
festivas, principalmente o Cavalo Marinho e o Maracatu de Baque Solto, tiveram seu
espaço de análise. No capítulo 4, a busca foi por uma interpretação social sobre as
manifestações culturais (e também algumas tímidas interpretações culturais sobre o social),
à luz da conjuntura sócio-econômica e política da Comarca de Nazareth e região. Neste
capítulo, inevitavelmente, foi proposto um diálogo com o presente, tanto pela memória dos
trabalhadores, como pela bibliografia a qual abrange, sobretudo, as áreas da antropologia,
etnomusicologia, sociologia e artes. Esta investida analítica foi resultado das minhas

35
pesquisas de campo, da minha reflexão sobre o presente, e, consequentemente, da minha
justificativa, principalmente, para os estudiosos da cultura popular da zona da mata
pernambucana, sobre a importância da História Social para a compreensão desta temática.
Nesta parte, utilizamos como fonte os relatos dos trabalhadores (a partir da década de 90) e
os registros de folcloristas do século XIX e XX.
Ao mesmo tempo, o grande foco do capítulo é a análise sobre o registro de que em
1871 os escravos tinham se reunido para fins ―sinistros‖ durante a realização dos
brinquedos do Cavalo Marinho e do Maracatu em terras da comarca de Nazareth. Através,
principalmente, de um inquérito policial (APEJE) instaurado sobre esta possível
―insurreição‖, no qual cerca de 30 escravos prestaram declarações, constatamos algumas
evidências sobre as intenções de luta e busca pela liberdade. O cruzamento de fontes e de
informações possibilitou à nossa análise algumas sugestões sobre possíveis elos identitários
conquistados pelos escravos por meio de suas relações sociais, horizontais e verticais, e de
suas manifestações culturais as quais traziam (e trazem) aspectos do cotidiano social dos
escravos nos engenhos da cana e de alguns materiais culturais africanos. Em suma, neste
capítulo sugerimos um olhar histórico sobre a cultura popular, e, dentro da conjuntura da
Comarca de Nazareth do século XIX, verificamos como as festividades do Cavalo Marinho
e do Maracatu eram também espaços sociais e culturais de (re)significação de uma
realidade escravista e de articulação social em busca da liberdade. Diante destas
constatações, vislumbrei que os escravos dos engenhos pernambucanos construíram
variados sentidos, coexistentes, para a liberdade: tanto no mundo da arte como no mundo
real.
Por último, na conclusão desta tese, entre aberturas e fechamentos, sua explicação
se dará por seu próprio conteúdo.
Prefiro, então, finalizar esta Introdução com mais uma imagem da cena entre
Mateus e Capitão no presente. Dessa vez, o registro fotográfico congelou outro momento
da realidade encenada. Uma outra representação dos trabalhadores da atualidade sobre a
relação senhor-escravo.

36
Cena do Mateus (Seu Martelo) e Capitão (Mestre Biu Alexandre), Cavalo Marinho Estrela de Ouro
(Condado, PE). Foto Beatriz Brusantin, janeiro de 2011, Pernambuco.

37
38
Capítulo 1

Localizando-nos no espaço social pernambucano: a comarca de Nazareth


e o universo da cana de açúcar na segunda metade do século XIX

1.1) A cultura da cana de açúcar na Zona da Mata pernambucana

Corto cana, amarro cana,


Dou três nós de amarradia
Foi você quem em ensinou
a namorar que eu não sabia.
Corto cana, amarro cana
Dou três nós de amarrá
Foi você que me ensinou
Meu benzinho a namorar.
Toada pra cortar cana - Despedida Cavalo Marinho

A comarca de Nazareth, foco desta pesquisa, localiza-se na mata seca da Zona da


Mata Norte de Pernambuco. Geograficamente, a mata seca estende-se a oeste de São
Lourenço da Mata e Glória do Goitá para norte até São Vicente Férrer. Nessa região, o alto
do platô, ou chã, é constituído por solos cristalinos que são irrigados apenas pelos rios
Goiana e Capibaribe cuja corrente fica muito reduzida na estação seca, isto é, entre outubro
e dezembro. De área total, a Zona canavieira ou Zona da Mata (originalmente assim
denominadas em função das grandes florestas que a recobriam) compreende toda a
extensão dos 170 km da linha costeira da província, penetrando 60 km para interior ao norte
e 130 km ao sul.29
Nesta região, o grande ―boom‖ da produção de açúcar ocorreu entre o começo e o
fim do século XIX quando o número de plantations de cana cresceu de 500 para mais de 2
mil. Entre a década de 1850 e o fim do decênio de 1880, o número de engenhos cresceu de
1.300 para 1.650, um aumento de 27% que contribuiu indiscutivelmente – junto com

29
DE CARLI, Gileno. Aspectos açucareiros de Pernambuco. Rio de Janeiro, s.n., 1940.

39
modificações tecnológicas que melhoraram a produtividade - para mais que de dobrar a
produção de açúcar entre tais datas.30

Mapa: Localização da Comarca de Nazareth em Pernambuco

Fonte: Mapa Rodoviário – 7ª edição. L. Gonzaga de Oliveira. In: EISENBERG, P. Modernização sem
mudança: a indústria açucareira em Pernambuco, 1840 -1910. Rio de Janeiro, Paz e Terra; Campinas,
Unicamp, 1977.

Foi, principalmente, a partir da década de 1870, momento de grande transformação


social e econômica no parque açucareiro nacional como um todo, que, particularmente
Pernambuco, então principal produtor de açúcar do país, e mais especificamente a Zona da
Mata, recebeu grande parte dos investimentos do governo imperial avançando
tecnologicamente. O objetivo do governo era que a indústria açucareira nacional se

30
Por outro lado, dos anos 1890 à primeira década do século XX, houve decréscimo em vez de aumento da
produção – 8%.

40
mantivesse no mercado internacional do açúcar o qual, naquele momento, contava com o
crescimento da produção europeia de açúcar de beterraba. Como coloca Eisenberg, foi
nessa década, por exemplo, que surgiram as primeiras ferrovias privadas, instaladas entre
canaviais e engenhos para transportar a cana com mais agilidade e em maiores quantidades.
31
Já Pedro Ramos ressalta que a principal inovação introduzida antes de 1870 foi a moenda
de cilindros de ferro já conhecida nas Antilhas. Outras modificações de menor importância
ocorreram nas fornalhas. O processo de difusão, alternativo à moenda, chegou a ser
introduzido em dois engenhos, tendo sido posteriormente abandonado. A maior inovação,
contudo, consistiu na adoção do vapor como força motriz, cujas primeiras experiências
ocorreram já na primeira metade do século XIX.32 No entanto, até 1870 não houve
modificações significativas no setor canavieiro pernambucano, fato que se deve, segundo
Eisenberg, à combinação de terra barata com trabalho barato e não educado 33 (e que)
produziu uma atitude conservadora, rotineira em relação à inovação tecnológica. No mais,
isso caberia também aos altos custos do capital e à instabilidade do mercado: ―os riscos e
dificuldades da modernização eram tais que os engenhos mais modernos do século XIX
eram subsidiados pelo governo.‖34
Segundo a autora Maria Wanderley, o caráter extensivo da produção açucareira e as
relações de produção existentes, particularmente o sistema da escravidão, constituíam, de
certa maneira, limites para as transformações tecnológicas. Com efeito, tendo em vista que
um crescimento extensivo era sempre possível, o impacto das modificações tecnológicas
teria que ser reduzido, sobretudo numa época em que o capital era escasso e os preços dos
equipamentos, elevados. Para Wanderley, este fato explica a resistência dos senhores de
engenho ao emprego da máquina a vapor, conhecida em Pernambuco desde 1817.
Utilizando uma força motriz superior às tradicionalmente empregadas (hidráulica e tração

31
EISENBERG, P. Modernização sem mudanças. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1977, p. 60.
32
RAMOS, P. Agroindústria canavieira e propriedade fundiária no Brasil. Tese de Doutorado/IE –
Unicamp, Campinas, 1991, p. 43.
33
Segundo Ramos, o trabalho barato a que se refere Eisenberg encontra explicação no fato de que, quando o
preço do escravo dificultou sua importação, os senhores ampliaram o recurso a relação de ―morada‖, através
de cessão de trechos de terras (sempre mais distantes e de acesso difícil) aos trabalhadores livres que, assim,
constituíam-se em força de trabalho à disposição da empresa agro-mercantil. Aproveitava-se, assim, ―toda a
organização político-social (que) se orientava no sentido de garantir ao senhor-de-engenho o exercício pleno
do seu poder sobre suas terras, agregados e dependentes‖ – citação de ANDRADE, Manuel Correia de. A
terra e o homem do nordeste. 4ª edição, São Paulo, Livraria Editora Ciências Humanas, 1980, p 89.
(RAMOS, 1991, p. 43)
34
EISENBERG, op. cit., 1977, p. 70.

41
animal), a máquina a vapor assegurava a elevação da produtividade do trabalho, a
economia de animais – e consequentemente, a redução de áreas de pastagens – e a
possibilidade de extensão da cultura em áreas mais distantes dos cursos fluviais. Contudo,
considerando a abundância de terras, os preços relativamente acessíveis dos animais e a
existência de numerosos rios na zona canavieira, a aquisição da máquina a vapor não teria
nenhuma justificativa econômica imediata, tanto mais quanto seu emprego não deveria
alterar o rendimento açúcar/cana, principal preocupação dos senhores de engenho. Por
outro lado, desde que a terra fosse abundante, sua utilização para a cultura da cana
determinava-se, essencialmente, pela disponibilidade de força de trabalho. Enquanto o
preço dos escravos permaneceu acessível, pelo menos a uma grande parte dos proprietários,
e sua importação assegurada com regularidade, os senhores de engenho mantiveram pouco
interesse por mudanças tecnológicas mais amplas, tanto no setor agrícola como na
fabricação do açúcar. 35
Assim, muitos fatores podiam incentivar ou retardar o desenvolvimento técnico e
produtivo de certas localidades pernambucanas, e, dentre os fatores já citados que foram
decisivos para o desenvolvimento e a construção dos engenhos, estava a presença das
ferrovias. O número de engenhos, por exemplo, em Igarassu, Itambé e Goiana ocidental,
onde a ferrovia Great Western passou a operar após 1881, cresceu pelo menos em 50% na
década de 1880. Tracunhaém e Nazareth tiveram acrescido o número de seus engenhos,
mas proporcionalmente menos porque a topografia e clima contrabalançavam a vantagem
da Great Western. Por outro lado, as áreas dependentes de navios costeiros que levassem o
açúcar para Recife (Ipojuca, Barreiros e leste de Goiana) não cresceram de forma
significativa.36
A posse e o uso da terra também eram fatores que caracterizavam o perfil da
produção açucareira na região da Mata. Segundo Eisenberg, embora os plantadores de cana
possuíssem a maioria da Zona da Mata, bem pouco a utilizavam produtivamente. Na
década de 1850, provavelmente, eles não empregavam mais de 1/5 das terras disponíveis.
Calcula-se que os agricultores de meados do século XIX utilizavam entre 33, 4%, e 45, 2%,
das terras cultiváveis da Zona da Mata. A concentração de terra – em 1857 – em Sirinhaém,

35
WANDERLEY, Maria de Nazareth. Capital e propriedade fundiária: suas articulações na economia
açucareira de Pernambuco. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1979, p.35-36
36
EISENBERG, P. Modernização sem mudanças. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1977, pp. 148-150.

42
a sudeste de Escada, estava com 4 famílias que produziam 37% do açúcar de um grupo de
73 engenhos, e em Nazareth, na mata seca do noroeste da província, com 6 famílias que
controlavam 57,7% de toda a produção açucareira.37
Já na década de 80 do XIX, a indústria açucareira pernambucana participou do
programa de implantação de Engenhos Centrais subsidiados pelo governo. Segundo
Wanderley, a ideia dos Engenhos Centrais se inspirava na experiência bem sucedida
realizada nas Antilhas e se baseava em dois princípios fundamentais: a atração de capitais
para o setor da fabricação do açúcar e a separação entre as atividades agrícola e industrial, o
que havia permitido às centrais antilhanas intensificar a acumulação de capital no setor da
fabricação do açúcar, garantindo a regularidade do fornecimento da matéria prima agrícola,
através da produção de numerosos pequenos plantadores locais.38 Para Lima Sobrinho, esse
processo faria com que os banguezeiros desistissem da produção industrial, desmontassem
os seus bangues e passassem a ser produtores das canas a serem industrializadas pelos
Engenhos Centrais,39 já que estes não poderiam desenvolver atividades agrícolas nem
utilizar a força de trabalho escrava. Em Pernambuco, foram organizadas companhias como
a North Brazilian Sugar Factories, The Central Sugar Factories of Brasil, Companhia de
Engenhos Centrais da Paraíba e Sergipe, etc., que recebiam do governo a autorização para
implantar seus engenhos em determinados municípios, conhecidos pela sua aptidão
canavieira.40
A fundação dos Engenhos Centrais e Usinas também não se deu de forma
homogênea pela Zona da Mata. Em Pernambuco, em 1884, foram fundados 4 engenhos
centrais. Porém, ao mesmo tempo em que o governo financiava as companhias para a
implantação dos engenhos centrais, alguns senhores de engenho e comerciantes, que
possuíam várias propriedades e capitais, passaram a implantar fábricas idênticas do ponto
de vista técnico, mas nas quais havia o controle, por uma pessoa física ou por uma empresa,
de toda a atividade econômica, desde o plantio da cana até a produção do açúcar ou do
álcool e da aguardente. Essas unidades eram chamadas de Usinas e deram início a uma

37
Idem, op. cit., p. 151.
38
WANDERLEY, op. cit., 1979, p.40.
39
LIMA SOBRINHO, op. cit., 1941.
40
Ver BOSMA, U. & KNIGHT, R. Global Factory and local Field: Convergence and divergence in the
Internacional Cane-Sugar Industry, 1850-1940. In: Internacional Review of social history. Vol 49, april 2004,
p.1-25.

43
disputa de áreas de influências com os Engenhos Centrais. Muitos Engenhos Centrais
tiveram curta duração ou se transformaram em Usinas.41
Como coloca Bonifácio Andrade, em Do bangue a Usina:

O processo de instalação de usinas em Pernambuco durante os anos 90 do


século XIX, modificou a paisagem econômica social e física do estado. Para o
autor, a usina foi uma síntese moderna das duas etapas precedentes da revolução
açucareira e identificada com outros aspectos desse processo geral de
modernização, como supremacia das cidades sobre as áreas rurais, a mudança do
trabalho escravo para o assalariado e a concentração de capital. 42

Para Andrade, as duas últimas décadas do século XIX foram os períodos em que a
Usina sofreu o seu impulso inicial em Pernambuco, estado líder da produção açucareira no
Nordeste, tendo surgido, entre 1885 e 1900, cerca de 50 usinas. A instalação, porém, era
feita sem o estudo prévio das condições existentes, sem a análise das áreas de influência
que caberiam a cada usina e, muitas vezes, frequentemente, eram instaladas por pessoas ou
firmas que não dispunham de capital necessário à movimentação de uma grande indústria,
tanto que muitas dessas usinas então instaladas, no século XX se tornaram de ―fogo morto‖,
tendo encerrado as suas atividades industriais poucos anos após a instalação. Também raros
foram os fundadores de usinas que se mantiveram como proprietários das mesmas. A
maioria, sem dispor de capital, endividou-se e teve de se desfazer da usina passando a
indústria a terceiros. Muitas delas fundadas nesse período – cerca de 25 – na segunda
metade do século XX não existiam mais.43
Segundo Eisenberg, por volta de 1871, 6% dos 440 engenhos que transportavam
açúcar através da ―Recife and San Francisco Raiway‖ empregavam energia a vapor; por
volta de 1881, a cifra comparável era de 21,5% dos 609 engenhos e por volta de 1914 dos

41
Como diferencia De Carli, usina era a fábrica instalada em terras do seu proprietário, sem as obrigações de
fornecimento de cana de antigo senhores de engenho. Engenho Central era uma entidade semi oficial que
tinha de agir de acordo com as prescrições contratuais, pois havia uma concessão por parte do Estado. Era,
portanto, um veículo de transformação das canas antigamente moídas nos velhos engenhos bangues. Era em
suma uma fábrica. Usina era uma entidade particular, livre atiradora! Receberia canas de fora, se quisesse.
Não era uma fábrica unicamente, era um todo, uma unidade agrícola-industrial. Não vivia dos fornecedores de
cana e sim de terra que possuía. DE CARLI, 1942.
42
ANDRADE, J. BONIFÁCIO, op. cit.,1975, p.54.
43
ANDRADE, Manuel Correia de. A terra e o homem do nordeste. 4ª edição, São Paulo, Livraria Editora
Ciências Humanas, 1980, p. 94.

44
2.288 engenhos do estado 34% usavam vapor, assim como todas as 62 usinas modernas.44
O ritmo de progresso, desse modo, teve um considerável atraso por dois motivos, como
aponta Eisenberg. Primeiro, o sistema de trabalho escravo proporcionava oferta de trabalho
relativamente abundante e barato, assim estimulando a tecnologia de trabalho intensivo,
tanto no campo como nos engenhos. Em segundo, os senhores de engenho relutavam em
ensinar ao escravo tecnologias mais adiantadas, em parte porque, para o autor, eles próprios
eram ignorantes e, em parte, porque temiam colocar em mãos indiferentes ou hostis
maquinaria valiosa. Já o trabalhador livre, por conta de algumas oportunidades
educacionais ou a falta delas, era um pouco mais apto a operar e a manter maquinaria
moderna.
Economicamente, salientamos que o não investimento dos agricultores
possivelmente ocorreu primeiro por causa da instabilidade do mercado mundial do açúcar,
sobre cujos preços os produtores brasileiros não tinham controle, o que aumentava o risco
do investimento. Em segundo, muitos agricultores não fizeram investimentos
modernizadores por falta do crédito correspondente. Para Eisenberg, os riscos e as
dificuldades da modernização eram tais que os engenhos mais modernos do século XIX,
como já ressaltamos, eram subsidiados pelo governo. Após 1870, os principais esforços,
tanto do governo nacional quanto do local, no sentido de promover a modernização,
assumiam a forma de subsídios e construtores de engenhos centrais e usinas. 45
Contudo, entre os Engenhos Centrais e Usinas fundados até 1910 em Pernambuco,
dos 71 listados por Eisenberg,46 apenas 7 estavam localizados na Zona da Mata Norte,
sendo que na mata úmida sul, com concentração em Escada e Ipojuca, existiam 42 fábricas
desse porte. Vale ainda ressaltar que dentre as 7 fábricas da Mata Norte, nenhuma estava
localizada na comarca de Nazareth ou Goiana. Sugerimos, portanto, que a Zona da Mata
Norte, e mais especificamente a comarca de Nazareth, foco desta pesquisa, possuía um
perfil de Engenhos Banguês que, apesar da concorrência dos engenhos centrais e usinas, se

44
EISENBERG, P. Modernização sem mudanças. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1977, pp. 60-65. Segundo o
autor, o processo manufatureiro rústico de início do século XIX possibilitava ao engenho médio a produção
no máximo de 1 a 1 1/2 toneladas diárias de açúcar predominantemente mascavado cerca de 150 toneladas
por safra. Em contraposição, as usinas plenamente equipadas do início do século XX produziam acima de 10
toneladas diárias, sendo o açúcar branco predominante.
45
Idem, op. cit., p. 66.
46
EISENBERG, P. Modernização sem mudanças. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1977, pp. 126-129.

45
manteve em funcionamento, provavelmente com dificuldades, durante a segunda metade do
século XIX e até as primeiras décadas do XX.
De fato, como salienta Andrade, é interessante observar a capacidade de resistência
do banguê. Com menores capitais, técnicas mais atrasadas, baixa produtividade e pondo no
comércio um produto de qualidade inferior, o banguê resistiu como pôde ao surto usineiro,
voltado que estava para o mercado consumidor regional. A reação do banguê fez-se com tal
energia que, apesar de sua fraqueza econômica e das vantagens conseguidas pelos usineiros
perante as instituições governamentais, só no fim da década de 1951-60 veio praticamente a
extinguir-se. Assim, o banguê reagiu por mais de 70 anos à investida das usinas.47
A configuração desse processo fracassado dos Engenhos Centrais
concomitantemente com a resistência dos Engenhos Banguês, aspectos constatados,
principalmente, na região da Comarca de Nazareth, carrega discussões mais profundas
sobre a própria classe dos senhores de engenho. Os aspectos econômicos de crédito ou de
qualificação da mão de obra utilizada são reveladores, no entanto, não são suficientes para
acessarmos os possíveis aspectos sociais e culturais que também influenciaram os rumos do
processo de modernização dos engenhos. Como ressalta Wanderley, apesar da legislação
brasileira na época ter protegido os produtores de cana, uma vez que os engenhos foram
proibidos de possuir suas próprias plantações de cana deixadas sob a responsabilidade
exclusiva dos produtores locais. Esta proteção, no entanto, desconsiderou a questão
essencial: entre os plantadores de cana encontravam-se os senhores de engenho, para quem
o princípio da separação adotado representaria, na prática, a separação entre a propriedade
fundiária e a propriedade dos meios de produção industriais, o que, em última instância,
significaria a perda do monopólio do conjunto da atividade produtiva, fundamento histórico
de sua dominação. Diante disso, a hipótese da autora é que a realidade é mais complexa e
não se tem evidências da passividade dos senhores de engenho nesse processo. Assim, não
é absurdo supor que o fracasso dos engenhos centrais se deva, em grande parte, a uma
reação organizada da aristocracia rural.48 A própria SAAP – Sociedade Auxiliadora da
Agricultura de Pernambuco - se propunha a facilitar aos proprietários rurais o acesso ao
crédito estimulando os senhores a promoverem a modernização de suas fábricas. Nesse

47
ANDRADE, Manuel Correia de. A terra e o homem do nordeste. 4ª edição, São Paulo, Livraria Editora
Ciências Humanas, 1980, p. 98.
48
WANDERLEY, op. cit., 1979, p. 42.

46
sentido, os engenhos centrais podiam resolver a situação daqueles proprietários sem
nenhuma perspectiva, porém jamais como resposta definitiva à industrialização da
produção, que não deveria escapar ao controle da classe dominante local. Para Wanderley,

Se por um lado, pode-se afirmar que os senhores de engenho subestimaram


a concorrência que as centrais fariam às suas próprias fábricas, por outro lado, a
natureza do conflito que se instaurava parece ser bastante consciente à
aristocracia de Pernambuco. Ela lutará pela direção do conjunto da atividade
produtiva que lhe é assegurada pelo monopólio da propriedade em sua
totalidade. Nesse sentido, não poderia tratar-se de uma oposição ao capitalismo
estrangeiro, com o qual os produtores nordestinos sempre foram associados ao
nível das relações comerciais, mas da defesa dos mecanismos de sua própria
dominação.49

Como conclusão, portanto, a autora coloca que o fracasso dos Engenhos Centrais
deveu-se ao fato dos proprietários, que não se modernizaram, e que, portanto, deveriam
cumprir a função de fornecedores das centrais, terem se recusado a abandonar a fabricação
do açúcar em suas próprias fábricas. Por outro lado, a modernização das antigas fábricas,
que se processou paralelamente à tentativa de implantação dos engenhos centrais - sob a
influência, entre outras, da Sociedade Auxiliadora da Agricultura de Pernambuco - resultou
na necessidade de um maior volume de cana, a fim de atender à elevação da capacidade
produtiva daqueles engenhos. Por conta disso, a produção dos pequenos senhores de
engenho e dos plantadores livres foi alvo de uma competição entre dois tipos de fábricas.
No mais, segundo a autora Maria Wanderley, a fração dos senhores de engenho que
progressivamente assumiu o processo de industrialização foi beneficiada, daí por diante,
pela substituição da política de garantia de juros por subvenções diretas. Além disso, ainda
no final do período imperial, duas leis provinciais estabeleceram que as concessões para a
fundação e a exploração de engenhos só poderiam ser feitas a agricultores que residissem
nas zonas onde tivessem de se estabelecer as respectivas fábricas. Ainda como facilitador,
estas fábricas passariam a gozar de isenção dos impostos de exportação durante um prazo
de 10 anos.50
Para Pedro Ramos, havia uma forte razão de caráter sócio-econômico que acabaria
levando ao malogro dos engenhos centrais em Pernambuco. Na visão do autor, os senhores

49
WANDERLEY, op. cit., 1979, p. 43.
50
Idem, op. cit., p. 45-47.

47
de engenho logo perceberam que a ideia tinha um problema sério, se olhada do alto de seus
poderes enquanto classe dominante no Nordeste açucareiro: significava abrir mão do
controle completo que tinham até então sobre o processo produtivo, controle esse que era a
mesma base daqueles seus poderes. Na concepção do engenho central, a relação de
subordinação era clara e estava de acordo com a concepção da moderna produção fabril
capitalista: a etapa fundamental passaria a ser o processamento industrial e a matéria prima
deveria subordinar-se às exigências e aos requisitos desse processamento. Para o autor,
pode-se afirmar que a percepção dessa realidade foi imediata por parte dos senhores de
engenho que preferiram continuar moendo suas canas nos seus velhos engenhos banguês.
De acordo com os senhores de engenho, era necessário modernizar, mas sem mudar o que
estava dando certo há séculos. Nas palavras de Ramos, ―a infra estrutura teria que se
adequar à super-estrutura‖.51 Nessa perspectiva, como coloca Pedro Ramos, o fracasso do
engenho central no nordeste simboliza o fracasso do novo na luta contra o velho, contra o
arcaico, porque aponta para uma transição sem rupturas, para uma modernização que
assegura o poder preestabelecido. E isto estava acontecendo no mesmo momento em que
ocorria uma mudança legal de forte apelo social: o fim da escravidão.52
Esse processo de transformação social possivelmente se deu de forma diversificada
na zona canavieira, justamente porque o tipo de mão de obra utilizada na produção do
açúcar nas regiões da mata pernambucana variava conforme a época e o espaço geográfico.
Segundo Correia de Andrade, na primeira metade do século XIX, quando ainda dominava o
trabalho escravo e o tráfico com a costa africana, as regiões como Sul de Pernambuco e o
Recôncavo da Bahia, apesar da existência de muitas terras improdutivas, comportavam os
engenhos mais ricos e as áreas com grande potencial à cultura canavieira, nas quais, em sua
maioria, acomodavam entre 100 a 200 escravos. Já ao norte do Recife, eram raros os
senhores de engenho ricos que possuíam numerosa escravaria e sólidos sobrados. Por este
motivo, ao lado de algumas dezenas de escravos, estes senhores costumavam contratar
trabalhadores assalariados – índios, mulatos e negros livres. O próprio Henry Koster, como
senhor de engenho em Jaguaribe, na época de maior trabalho, geralmente de plantio ou de

51
RAMOS, op. cit., 1991, p. 56-57.
52
Idem, op. cit., p. 60.

48
colheita da cana, fez longas viagens a Goiana e Paraíba com o fito de assalariar indígenas
para as suas plantações.53
Entre os motivos, o autor destaca que nesta região, frequentemente, os senhores de
engenho, por não poderem adquirir escravos devido a seu alto custo54, supriam a
necessidade de braços facilitando o estabelecimento de moradores em suas terras, com a
obrigação de trabalharem para a fazenda. Esses trabalhadores tinham permissão para
derrubar trechos de matas, levantar choupanas de barro ou de palha, fazer pequeno roçado e
dar dois ou três dias de trabalho semanal por baixo preço, ou gratuito, ao senhor de
engenho. Surgiu, assim, aquilo que se chamou ―moradores de condição‖, constituindo
grande parcela dos trabalhadores do campo na segunda metade do século XIX e até o XX.

Os moradores viviam em choupanas e na maior pobreza, dispondo apenas


de esteiras e panelas de barro, mas andavam sempre armados de uma faca
chamada localmente de ―peixeira‖ e de uso proibido pelas autoridades. A
povoação de Pasmado, localizada entre Igaraçu e Goiana, era famosa pela
fabricação deste tipo de arma. Geralmente eles vigiavam as Matas,
―almocrevavam‖, isto é, transportavam o açúcar em cavalos para os portos ou
para as estações de estrada de ferro e também participavam com os escravos do
trabalho no eito. 55

Na segunda metade do século XIX, o número de trabalhadores livres tendeu a


aumentar, sendo que certos ofícios como os de pedreiro, carpina, oleiro, tanoeiro, etc, ao
norte de Recife, eram exercidos por homens livres que muitas vezes residiam em vilas,
cidades e povoações. Neste período, em Pernambuco, sobretudo, ao norte, na mata seca, o
trabalho assalariado era de uso generalizado. Henri Milet afirmou que a supressão do
tráfico não trouxera prejuízo uma vez que a produção aumentou depois de 1855. Salientou
ainda que as lavouras de algodão eram feitas quase inteiramente por assalariados, assim
como ―mais da metade da lavoura da cana de açúcar, pela proporção cada vez mais
importante que representava, na safra dos engenhos, o quinhão devido aos plantadores
livres, isto é, ao sistema de parceria‖56. Só certos trabalhos mais pesados, como o corte,

53
ANDRADE, op. cit., 1980, p. 87- 90.
54
Segundo Andrade, o preço de um escravo era bastante elevado, pois custava cerca de 900 francos, enquanto
um boi custava, geralmente, 200 francos e um cavalo, 70 francos. Assim, em média um escravo valia cerca de
4 bois ou 13 cavalos. ANDRADE, Manuel Correia de. A terra e o homem do nordeste. 4ª edição, São Paulo,
Livraria Editora Ciências Humanas, 1980, p. 88.
55
ANDRADE, op. cit., 1980, p. 90.
56
MILET, Henri apud ANDRADE, op cit. 1980, p. 92.

49
transporte e manipulação das canas, continuavam a ser feitos quase unicamente por
escravos.
Concomitantemente com o processo de industrialização e modernização dos
engenhos no decênio dos 80 do século XIX, a decadência o sistema escravista abriu
questões sobre a mão de obra as quais, desde os fins da década de 60 do século XIX até
1888, ocuparam progressivamente as mentes de parlamentares, senhores e comerciantes no
Brasil. Começaram a surgir novas formas de relações cotidianas dentro dos engenhos.
Como coloca Fraga, analisando o caso do Recôncavo Baiano, a abolição do cativeiro
recolocou o problema da mão de obra no centro da discussão sobre o processo de
"transição" para o trabalho livre no setor açucareiro.57 Ao longo da segunda metade do
século XIX, não se incorporou um contingente significativo de mão de obra à força de
trabalho empregada nos engenhos dos distritos canavieiros mais tradicionais do Recôncavo
e, por isso mesmo, a produção de açúcar continuou a se basear no braço escravo até as
vésperas da Abolição.58
Segundo Eisenberg, em Pernambuco foi diferente. Para o autor, os fazendeiros não
resistiram energicamente à abolição gradual da escravatura porque a mão de obra livre e
barata era francamente disponível. Substituíram o trabalho escravo por mão de obra livre
sem fazer qualquer concessão material aos trabalhadores livres que, antes ou depois de
1888, poucos chegaram a viver melhor do que os próprios escravos. Os trabalhadores livres
brasileiros satisfaziam a demanda de mão de obra dos fazendeiros.59 Assim, se em meados
do século XIX o número de escravos era superior em 3:1 aos trabalhadores livres, na
década de 70 estes superaram os escravos em 5:1. Muitos escravos foram substituídos pelos
trabalhadores livres do agreste e do sertão.
Todavia, a meu ver, vale ressaltar que o uso, o desuso e as escolhas do tipo da mão
de obra da cana e da terra pelos proprietários estavam relacionados com a crise do açúcar,
com sua recuperação e com as medidas políticas contra a escravidão, fatores, por sua vez,
que eram também construídos conforme as características locais de cada sociedade
canavieira. Assim, também é importante pensar como as flutuações econômicas e/ou

57
FRAGA FILHO, W. Encruzilhadas da liberdade. Campinas, Ed. Unicamp, 2004.
58
BARICKMAN, B. ―Até a véspera: o trabalho escravo e a produção de açúcar nos engenhos do Recôncavo
baiano (1850-1881)‖. Afro-Ásia, 1998-99, p.21-22
59
EISENBERG, 1977, p. 201.

50
políticas e/ou sociais influenciaram o cotidiano do trabalhador da cana, principalmente o
escravo que podia se sentir mais ou menos seguro quanto à sua estabilidade junto à sua
família, companheiros e/ou à moradia; e/ou com mais ou menos oportunidades para buscar
novos caminhos. Pensar, portanto, o trabalhador rural nesse período, suas escolhas e suas
―apropriações‖ pela classe proprietária, é refletir sobre as dinâmicas fora e dentro do seu
próprio setor social. Desse modo, se buscamos refletir sobre os ―conflitos de classes‖,
teremos que analisar estes processos na classe dos trabalhadores e na classe dos
proprietários e suas particularidades locais.
Ao observar a dinâmica sócio-econômica da década de 70 em Pernambucano,
constatamos que muitas transformações ocorridas nos anos 80 tiveram seu berço em 70.
Neste período, verificamos a aprovação da lei de 1871, várias crises na economia
açucareira, o início da instalação dos Engenhos Centrais e Usinas, as secas de 77 e 78, o
Congresso Agrícola de Recife, a Lei de Locação de Serviços de 1879 e a queda do mercado
de escravos (1880-1883).
Esses acontecimentos influenciaram os rumos dos trabalhadores rurais, fossem eles
imigrantes, escravos ou nacionais, nas terras pernambucanas. Assim, por um lado,
presenciamos a elite política e intelectual discutindo a crise do açúcar e suas soluções; e, ao
mesmo tempo, constatamos na Zona da Mata Norte pernambucana revoltas populares como
o Quebra Quilos; uma série de processos de liberdade, grupos de sediciosos sendo
perseguidos pela polícia, novos grupos religiosos buscando espaços ao lado dos católicos
na cena social, conservadores e liberais em disputas praticamente cotidianas que envolviam
escravos, trabalhadores livres e ―criminosos‖, entre outras manifestações sociais locais,
reflexos da dinâmica política e sócio-econômica do período. Ao fundo desse quadro, no
entanto, estava a crise da lavoura que oficialmente era tema constante de discussão entre
parlamentares e proprietários da época.
Em 1870, por exemplo, o Presidente da Província encaminhou para as câmaras
municipais de Pernambuco um questionário que deveria ser respondido por cada município
elaborando uma espécie de parecer sobre as condições sociais e econômicas,
principalmente relativo à produção da agricultura, indústria e produtos coloniais, como
também sobre as condições de terras ocupadas, da população de escravos e livres e as

51
formas de seu desenvolvimento, como também da agricultura local.60Analisando algumas
respostas, podemos perceber que Ipojuca (pertencente à comarca de Cabo), na Zona da
Mata Sul, Itambé, no extremo norte, e a comarca de Nazareth, na Zona da Mata Norte,
retrataram diferenças importantes.
Na Mata Sul, a câmara de Ipojuca foi otimista e deu indícios de uma mentalidade
que buscava ser eficientemente lucrativa para uma economia canavieira em
desenvolvimento:

A lavoura em Ipojuca não tem sofrido, por quanto os terrenos continuam


ubérrimos e os senhores de Engenho desenvolvem a actividade com força de
vontade para que suas safras de açúcar não sofram quebras. Uns fabricam de 9 a
12 arrobas de assucar, cultivam mandioca suficiente para o consumo de suas
fabricas, a maioria dos engenhos destilam aguardente tanto de mel como de
cachaça. Apesar de não haver terrenos para a criação, quase todos levam gados
empregados na agricultura, vacas e carneiros.
(...) A cerca de 3 mil homens livres nos engenhos, são moradores, que ou
trabalham para si ou para os senhores que se achão menos fabricados e os
alugam durante o plantio das canas limpas das mesmas e no fabrico de assucar
mediante o jornal de 1 mil diários.61

O número de escravos nos 72 engenhos chegava a 2.200, e, segundo o presidente da


Câmara, a decadência que ameaçava a lavoura era a falta de braços os quais, se mais
existissem, mais seriam empregados e maiores safras produziriam. Uma sugestão para o
desenvolvimento seria a Lei do Recrutamento.
Na agricultura, as condições climáticas influenciavam de certa forma a
produtividade. No entanto, não estamos tratando de regiões tão distantes passíveis de uma
diferença marcante do clima. Considero como maior diferencial a forma mais
empreendedora como os dirigentes de Ipojuca trataram a questão da agricultura e seu
desenvolvimento, e como, abaixo veremos, Itambé e Nazareth relataram suas condições à

60
O questionário continha as seguintes perguntas: Qual o estado atual da lavoura e indústria de criação? Qual
a produção de gêneros denominados coloniais e de consumo e seu valor nos mercados desta Província? Que
números de braços livres e escravos são empregados na mesma lavoura? Quais as causas da sua decadência?
Quais as medidas para adotar para seu desenvolvimento? Quais as ramas de cultura que ali provêm introduzir
e as providências a tomar para a sua introdução? Quais as terras ocupadas pela comarca, sua qualidade,
localidade, títulos? Por que as possui: venda por aforamento e aforamentos em comercio? Questionário do
Presidente da Província, 20/01/1870, Câmara Municipal de Itambé. CM 59, APEJE/Recife.
61
Ofício do presidente da Câmara Antônio Juvêncio Pires Talles para o Senador Frederico de Almeida
Albuquerque. Câmara municipal de Ipojuca, 16/02/1870. CM 59. AEPEJE/Recife.

52
espera de uma atitude governamental para desenvolver sua lavoura. Assim, o conselho da
câmara de Nazareth respondeu:

Esta comarca ressente-se igualmente do triste estado em que se acha a


lavoura no pais actuão sobre elle as mesmas causas geraes, falta de braços, de
suprimento de dinheiro aos agricultores. Juro, a enorme carestia dos transportes
e a inconstância das estações nestes últimos tempos. Essencialmente agrícola a
Comarca, pode-se dizer que nenhuma indústria aqui há, existem algumas
machinas de discaroçar algodão e fazer aseite de mamona.
Produz a mesma em tempos regulares, milho, feijão, arroz e mandioca
em grande quantidade abastecendo desses gêneros as Comarcas vizinhas e
muitas vezes aos sertanejos, que os vem comprar a feira que se faz aos sábados;
os preços vacillão segundo a maior ou menor abundancia. Não é possível
calcular o número de braços, livres e escravos empregados na lavoura da cana e
desses gêneros pela falta de estatísticas mesmo imperfeitas. Calculando-se a
população da Comarca em 35 mil almas havendo um pequeno número de artistas
e nenhuma fábrica, pede-se que somente poucos indivíduos não são empregados
da lavoura. Parece-nos que o terreno desta comarca não se presta a outro qual
ramo de cultura. Mencionando com fisemos acima as causas de atraso da
lavoura, causas que não são desconhecidas suppomos que das mesmas se deduz
quaes os meios indispensáveis para fase-las desaparecer. O grande mal da
caristia do transporte cessará com a estrada de ferro. Custa a crer, porem é uma
verdade que possuindo a Comarca 200 e tantos engenhos de fazer assucar, os
seus proprietários muitas vezes dão o assucar de meias aos cargueiros para
conduzir aos mercados. Esta camara espera pois, que por fasimento da estrada de
ferro chame a attenção do Governo e não deixe esperar por mais tempo.
Esta comarca não possue terreno algum.62

A relação das dificuldades de cada comarca, os níveis de seu conhecimento e de


possíveis medidas para a solução dos problemas diferenciaram as posturas dos proprietários
em cada localidade. Ao mesmo tempo, estas diferentes posturas também influenciaram nas
relações políticas, econômicas e sociais entre o governo provincial e os dirigentes locais,
que na maioria eram senhores de engenho, e nas relações destes com seus trabalhadores. A
comarca de Itambé, na Zona da Mata Norte, nos traz também outras informações:

O estado actual da Comarca neste Termo, como em geral, é decadente


considerada as produções dos engenhos e outras grandes propriedades rurais
cujo os trabalhos são feitos por braços escravos, que cada um escassão mais.

62
Parecer da Câmara Municipal de Nazareth em Sessão Extraordinária, assinado por José Francisco Lopes
Lima, Antonio Tavares de Araújo Junior, Francisco Rufino Correia, José Pedro de Oliveira Mello, Manoel
José Pinto de Souza Nunes, para o senador Frederico de Almeida e Albuquerque, presidente da Província.
Câmara Municipal de Nazareth, 3/03/1870. CM 59. APEJE/Recife.

53
Todas as propriedades se acham mais ou menos honeradas de dívidas, já
porque a produção não tem correspondido aos cálculos e necessidades dos
proprietários em consequência das irregularidades das estações e baixo de preço
e já porque o agricultor está sempre sujeito as (...) dos correspondentes das
praças na falta de estabelicimentos de créditos apropriados a possibilidade que a
lavoura oferece para juros e oucartização da dívida. Se abstração feita dos
engenhos e grandes propriedades consideramos a massa geral da produção, é
para crer, pode-se quase afirmar que este vai em augmento porque a população
cresce e com ela o trabalho. 63

O presidente da Câmara de Itambé ainda relatou que não podia afirmar o número de
escravos e livres que se empregavam na lavoura, mas em uma conta de 76 engenhos,
moentes e correntes existentes na comarca e tendo cada uma média de 12 escravos,
calculando cerca de 710 escravos. Quanto aos livres estimou cerca de 40.000 almas, sendo
8.000 válidas. A grande lavoura em Itambé ficava por conta do algodão com introdução de
máquinas de diversos sistemas movidos a vapor, por animais e também manual.
Em apenas três exemplos podemos perceber que existiam diferenças entre as Zonas
e dentro de uma mesma Zona da Mata em Pernambuco, diferenças que iam desde a postura
econômica dos dirigentes e proprietários, quanto à produção de algodão e açúcar, à
quantidade de livres e escravos, ao clima, à maquinaria, ao transporte e à produção dos
gêneros de consumo. Muitas possibilidades de análise podem ser exploradas destas
diferenças; uma delas é refletir como diante do processo histórico de desenvolvimento e
decadência da produção açucareira e de fim da escravidão, as relações de trabalho e as
ações dos trabalhadores, escravos e livres, se construíram de forma peculiarmente local.
Essa reflexão remete-nos às considerações de alguns autores sobre a mentalidade
dos fazendeiros no Congresso Agrícola de 1878. Entre alguns estudiosos, Emília Viotti,
Genovese e Octávio Ianni expõem que os fazendeiros do Oeste Paulista tinham ideias mais
avançadas do que os do Vale do Paraíba, ou parafraseando Genovese: o vale permanecia o
baluarte dos obstinados e São Paulo surgiu na base dos homens novos. Ou nas palavras de
Viotti: ―os fazendeiros do Oeste paulista tinham ideias mais avançadas do que os do Vale
do Paraíba. Representaram duas fases da economia brasileira, dois estilos de vida, duas
mentalidades.‖64

63
Ofício do Presidente da Câmara, Joaquim Francisco Cavalcanti Lins, para o senador Frederico de Almeida
e Albuquerque, presidente da Província. Câmara Municipal de Itambé, 21/01/1870. CM 59. APEJE/Recife.
64
COSTA, Emília Viotti. Da senzala à colônia. São Paulo: Difel, 1966.

54
Warren Dean, por sua vez, demonstrou que em São Paulo havia fazendeiros os
quais não conseguiam manter suas fortunas e no Vale do Paraíba havia fazendeiros que
eram empresários bem sucedidos, e que ambas as regiões tinham seus Barões e Condes.65
Dentro desse raciocínio de Dean, Eisenberg cita o trabalho de José de Souza Martins:

Não só no Oeste, mas também no Vale era possível encontrar capitalistas


ativos, cuja orientação de modo algum se baseava numa vinculação emocional à
terra. Por outro lado, tanto no Oeste quanto no Vale era possível encontrar na
mesma época escravistas emperdernidos.66

Assim, para Eisenberg, existem pelo menos duas maneiras de compreender as


diferenças entre as mentalidades dos fazendeiros de café: uma que vê um contraste marcado
entre as mentalidades nas duas regiões e outra que não vê. Assim, para ele, o pressuposto
básico é que:

(...) para comprovar a existência de uma mentalidade antiquada, atrasada, ou


menos racional no Vale do Paraíba, será preciso constatar, naquela região, uma
relutância em abandonar a mão de obra escrava ou preferência pela sujeição de
trabalhadores livres a regimes menos livres do que o de simples assalariado,
enquanto entre os fazendeiros do Oeste Paulista prevalecia outra mentalidade,
menos interessada em manter a escravidão e mais aberta para o trabalho livre
sem grandes restrições.67

Propondo uma nova forma de análise sobre o assunto, Robert Slenes em seu artigo
sobre o mercado de escravos e a economia cafeeira da província do Rio de Janeiro entre
1850-1888 argumentou que a economia escravista do Vale do Paraíba fluminense estava
em processo de expansão entre 1850-1881, exibindo sinais de maior vigor (na demanda por
escravos e no aumento da exportação de café) nos últimos nove anos desse período. Para o
autor, o ritmo das mudanças nessas décadas – o aumento das taxas de crescimento nos anos
1870 – retira praticamente qualquer verossimilhança das hipóteses de que o apego dos

65
COSTA, Emília Viotti. Da senzala à colônia. São Paulo: Difel, 1966. GENOVESE, Eugene. The world the
slaveholders made: two essays in interpretation. New York, Random House, 1969. DEAN, Warren. A
industrialização de São Paulo (1880-1945). São Paulo: Difel, 1971. Apud EISENBERG, Peter. Homens
esquecidos: Escravos e Trabalhadores livres no Brasil, séculos XVIII e XIX. Campinas, Ed. da Unicamp,
1989, p. 131-159.
66
MARTINS, José de Souza. O cativeiro da terra. São Paulo: Ciências Humanas, 1979, pp. 30. Apud
EISENBERG, op. cit., 1989, p. 131-159.
67
EISENBERG, Ibidem, p. 140.

55
fazendeiros fluminenses à escravidão se devia à prevalência entre eles de uma mentalidade
―pré-capitalista‖ ou de uma relação de subordinação ao capital comercial:

Para os fazendeiros fluminenses na década de 1870 (como aliás, para os


cafeicultores no oeste paulista no mesmo período) a escravidão ainda ia durar
bastante tempo; também, não havia nem sombra da grande imigração que
acabaria se dirigindo para São Paulo, ou de enorme expansão do café nessa
região nas décadas de 1880 – 1890. Dentro dessa perspectiva, a escravidão na
cafeicultura fluminense parecia muito lucrativa nos anos de 1870, mais do que
na década anterior. (...) E a existência da fronteira agrícola e a mobilidade dos
capitais investidos em escravos praticamente garantiam ao fazendeiro a
possibilidade de mudar-se para terras novas quando ele avaliasse que isso fosse
interessante. Por outro lado, no entanto, a ―imobilidade‖ dos capitais investidos
em ―benfeitorias‖ (incluindo nesse termo os cafezais), e o custo relativamente
alto da abertura de plantações novas, desencorajavam uma mudança precipitada.
Em vista desse complexo de condições e percepções, muitos fazendeiros do Vale
– que entre si detinham a grande maioria dos escravos de sua região – preferiram
ficar nas suas terras, fossem velhas ou não da década de 1870: ficar e aumentar
sua compra de escravos para produzir mais café. Com esse propósito, contraíram
empréstimos para se aproveitar de uma conjuntura muito favorável ao lucro –
não para esticar artificialmente a vida de propriedades caducas e pagar dívidas
anteriores aos comissários. Suas decisões, tomadas de forma racional e
independente, acabaram no entanto se mostrando infelizes. Alguns anos depois,
esses senhores de escravos iriam colher os frutos amargos do erro.68

Slenes chama atenção para que não neguemos o ―jogo político‖ que é o que medeia
as forças econômicas e determina quais decisões que posteriormente denominamos de
―certas‖ ou ―erradas‖. Para ele, postular de antemão diferenças de mentalidade entre grupos
de fazendeiros ou a dominação do comercial pelo produtivo é negar a capacidade dos
homens de tomar decisões ―ponderadas e cuidadosamente calculadas‖ que sejam erradas.
As causas econômicas da abolição – sem dúvida de importância fundamental – eram bem
mais complexas e operavam de forma muito mais indireta do que alguns modelos podem
sugerir. Para Slenes, o erro dos fazendeiros fluminenses foi político: não previram que a
instituição da escravidão iria acabar em 1888.
Como será que esse processo se deu para a Zona da Mata pernambucana, mais
especificamente para a Zona da Mata Norte? Como podemos analisar, à luz dessas

68
SLENES, Robert W. Grandeza ou decadência? O mercado de escravos e a economia cafeeira da província
do Rio de Janeiro 1850-1888. In: COSTA, Iraci del Nero (org.). Brasil: História Econômica e demográfica.
São Paulo, Instituto de Pesquisas Econômicas, 1986, p. 103-155.

56
reflexões, as posturas dos senhores das diversas localidades da Zona da Mata canavieira
pernambucana?
Por fim, concentrando a análise na comarca de Nazareth, busquemos refletir sobre
as condições que essa localidade tinha que podiam caracterizar ou não a Zona da Mata
Norte como uma região de produtores banguês, com perfil mais tradicional ou não, com
maior ou menor presença e utilização da mão de obra escrava e com posturas políticas que
se aproximavam, ou não, com as ideias do fim da escravidão, as quais pululavam cada vez
mais nas falas de políticos, senhores e intelectuais a partir da década de 80 do XIX.

1.2) A comarca de Nazareth: lugar de engenhos banguês, festas populares, liberais e


abolicionistas

A onda cresce, cresce volumosamente. Nesse mar de peitos brasileiros revoltados e


alterosos, cava-se o abismo que vai deglutir o barco podre da escravidão.
Jornal O Thermômetro, Nazareth, 1884.

Historicamente, o povoamento de Nazareth começou no século XVIII resultante da


penetração dos homens vindos do litoral, mormente da vila de Igarassu. Atraídos pela
exuberância do solo e pelas doações de terras por parte dos poderes de então, construíram
moradias, fazendas agrícolas e engenhos banguês. Nessa época já não havia mais os
aldeamentos de índios, em virtude mesmo da ação catequética, principalmente, dos
missionários italianos e de colonos estrangeiros e nacionais, que se apossavam das terras
conquistadas por sesmarias.1 Lagoa Dantas foi o primeiro nome de Nazareth, em razão do
engenho do mesmo nome. No limiar do século XIX, em 1808, Nazareth era uma pequena
povoação, onde uma capelinha devotada ao culto da Imaculada Conceição de Nazareth
passou a ser a atração das populações vizinhas. Em 1812, as feiras de Lagoa Dantas eram
bastante concorridas e começaram a criar fama pelo consequente desdobramento do seu
comércio, aumentando o número de moradias simples. Em 1821, a resolução dos poderes
da época criou a 1ª Freguesia do território nazareno que teve como matriz a capela de São
Joaquim, na povoação de Laranjeiras (em terras do engenho de mesmo nome) localizado no
vizinho município de Vicência.69 Somente em 1824, se instalou a freguesia. Em 1833,
Nazareth foi elevada à categoria de vila e sede da comarca, instalou-se assim a sua Câmara

69
Vicência veio a se emancipar de Nazareth em 1928, por força da Lei estadual número 1931.

57
Municipal.70 Em 1839, a capela de Nazareth foi elevada à Paróquia, dando-lhe por sede a
capela Nossa Senhora da Conceição.
A partir de 1878, período que estamos estudando, portanto, os distritos da comarca
de Nazareth estavam divididos administrativamente71 com duas paróquias: Nossa Senhora
da Conceição de Nazareth (sede) e Santo Antônio de Tracunhaém. A primeira continha 4
subdelegacias (Nazareth, Vicência, Alagoa Seca e Aliança) e a segunda continha duas:
Alagoa do Carro e Tracunhaém (sede).72
Politicamente, há indícios na imprensa de que Nazareth possuía um histórico
político liberal que vem desde o movimento constitucional de 1821. Segundo estudos, este
movimento foi irrompido em Goiana, e vitorioso com a capitulação do general Luiz do
Rêgo, governador da Província, e teve como lugar para as combinações do seu plano o
engenho Cangaú de Nazareth, de onde partiu a primeira força auxiliar do movimento,
oriunda de um corpo de milicianos sob o comando do tenente-coronel Manuel Inácio
Bezerra de Melo, senhor do engenho Tamataúpe de Baixo, o qual na segunda eleição, em
1836, conseguiu extraordinária maioria, elegendo os 7 vereadores.
Como possível fruto dessa ideologia liberal, em princípios de 1843, Antônio Borges
da Fonseca, advogado, jornalista e um dos proeminentes da Revolução Praieira, fundou
(após o surgimento da sociedade secreta com o nome de Vigilante, que se tinha os estatutos
moldados pela maçonaria, na verdade possuía um caráter nitidamente político e com
finalidade a mais liberal possível) o Jornal O Nazareno, com sede no Pátio da Matriz na
tipografia Social Nazarena.

70
Executando as disposições do Código do Processo Criminal (até então era povoado de Igarassu). No
Código ficaram estabelecidos 14 distritos sob jurisdição da comarca de Nazareth: Jacu (atual Buenos Aires),
Marotos, Cotunguba, Lagoa do Carro, Angélicas, Angústias, Poço Comprido, Laranjeiras, São Vicente,
Trigueiro, Monte Alegre, Pindoba, Tracunhaém e a sede da comarca.
71
Para um melhor entendimento das divisões da comarca de Nazareth, vale explicitar o esquema de
composição e sobreposição de hierarquias na administração da província de Pernambuco. Como
esquematizou Heitor Moura Filho, uma Diocese englobava diversas Províncias, que se dividem em diversas
Comarcas. Estas eram divididas em diversos Termos que quase sempre compunham um Município. Um
Município é composto por uma Cidade ou Vila e quase sempre correspondia a uma Delegacia. Esta engloba
várias Freguesias correspondendo a paróquias e se dividem em Distritos de Paz. Delegacia corresponde a uma
ou várias Paróquias e se dividem em subdelegacias. FILHO MOURA, Heitor Pinto de. Um século de
Pernambuco mal contado: Estatísticas demográficas nos oitocentos. Rio de Janeiro, Dissertação de
Mestrado/UFRJ, 2005, p. 33.
72
Ofício do delegado de Nazareth para o chefe de Polícia de Pernambuco. Delegacia de Nazareth,
20/04/1878. SSP Nazareth 249 vol 650. APEJE /Recife.

58
Como observou Petronilo Pedrosa, o teor de quase todos os artigos do jornal
clamava contra a corrupção dos homens públicos. Logo abaixo do título O Nazareno vinha
a frase: ―quando a prepotência cresce e a murmuração cessa, ai dos tiranos‖ 73. E assim
seguiam as matérias ―quando os déspostas da terra estão vacilantes, quando seus tronos estão
cambaleantes, fora extrema loucura crer-se que os homens do futuro concebam outros fins em seus
desmandamentos, além do enchimento de suas algibeiras‖.74
Como coloca Pedrosa, a luta do jornal e do grupo que o produzia não era atacar o
Imperador Pedro II, a quem aconselhava a convocação de uma Assembleia Constituinte. O
objetivo era assinalar os erros da Constituição vigente. Requeriam, assim, uma assembleia:
―vigorando e fortificando o elemento democrático, estabelecendo, em bases seguras, o
direito do povo, garantindo a realeza sempre na vantagem da sociedade e não de áulicos
bolorentos, criando o poder eleitoral e o poder municipal‖.75
E assim, a partir do número 25, publicavam as dez sentenças para uma nação mais
livre e democrática. Entre elas:

1ª – toda lei, que viola os direitos humanos, é essencialmente injusta e


tirânica; não é lei.
2ª - o povo pode, quando quiser, mudar seu governo e demitir seus
mandatários
3ª – quando o governo oprime o povo, a insurreição do povo inteiro e de
cada porção do povo, é o mais santo dos deveres.
4ª – a resistência à opressão é a consequência dos outros direitos do
homem e do cidadão. 76

O jornal O Nazareno foi editado em Nazareth até o número 54, transferindo-se a


tipografia para o Recife, onde o jornal continuou ainda a ser publicado, segundo Pedrosa,
com o mesmo espírito de combatividade, até pouco antes da Revolução Praieira, em 1848.
Na década de 70 do XIX, novos jornais dão indícios de que na comarca de Nazareth
existiam seguidores dos ideais liberais e até abolicionistas. Assim, foi, por exemplo, O
Jornal O Thermômetro, nascido em 1879 após o fim do Correio de Nazareth, ambos com o
mesmo editor e redator Luiz José Cavalcanti da Silva, e que durou até 1885. Durante sua
73
Jornal O Nazareno, no 2, 1843. In: PEDROSA, Petrolino. Vozes do Passado. História da Imprensa de
Nazareth. Recife, UPE, 1999, p.13.
74
Jornal O Nazareno, no 2, 1843. In: PEDROSA, Petrolino. Vozes do Passado. História da Imprensa de
Nazareth. Recife, UPE, 1999, p.13.
75
Jornal O Nazareno, no 10, 1843. Idem, op. cit., p. 14.
76
Jornal O Nazareno, no 25, 1843. Idem, op. cit., p. 14.

59
circulação era clara sua classificação: um órgão democrático. Assumiu caráter nitidamente
político, combatendo a oligarquia da família Souza Leão e pondo-se ao lado da campanha
em favor da abolição da escravatura e participando da luta política que reconduziu Joaquim
Nabuco ao Parlamento. Assim, em 1886, fundava-se a Sociedade Humanitária e
Emancipadora Nazarena, nos moldes da que já existia no Recife e com a finalidade de
defender a causa dos escravos e fazer propaganda dos ideais abolicionistas.
Sua repercussão chegava até Recife através do jornal O Recife que publicava notas
sobre as notícias do O Thermômetro, jornal considerado o porta voz de todos os
movimentos sociais e particularmente dos que visavam à defesa dos escravos. Entre as
notícias publicadas no jornal da capital O Recife, verificamos em julho de 1881:

Consta-nos que em dias da semana passada, D. Cândida Maria de


Sant‘Anna, por ocassião de proceder-se ao inventário dos bens deixados por meu
marido o fallecido Manuel João Rodrigues Mariz, senhor do engenho Penedo,
libertou um escravo.
Factos destes, é sempre com jubilo que o registramos. É nobre e generosa a
acção que acaba de praticar a Exma. Sra D. Cândida Maria de Sant‘ Anna
resgatando uma victima dos grilhões do captiveiro. 77

Sinais desses ideais abolicionistas vieram ecoar também nas eleições de 1885. Em
junho de 1885, Joaquim Nabuco concorreu à candidatura pelo 5º distrito de Pernambuco
que era composto pelas freguesias de Nazareth, Tracunhaém, Bom Jardim e Limoeiro.
Nabuco, numa campanha de ―extrema moderação‖, venceu por 366 votos contra 258 do
adversário Francisco do Rego Barros de Lacerda.78 O Jornal da Tarde em Recife divulgava
a ―homenagem ao eleitorado independente do 5º Distrito aos abolicionistas sinceros e ao
país.‖79
Segundo Izabel Marson, o 5º distrito era composto por engenhos no geral medianos,
―sendo tradicionalmente um território liberal (inclusive praieiro no passado), contudo,
refratário ao discurso abolicionista‖.80 Essa caracterização ―refratário‖ ao discurso

77
Jornal do Recife, 28/07/1881, XXIV, no 169, p.1. APEJE/Recife.
78
MARSON, Izabel. Política, história e método em Joaquim Nabuco: tessituras da revolução e da escravidão.
Uberlância, EDFU, 2008, p. 266.
79
Jornal da Tarde, Recife, 8/06/1885. A Imprensa Pernambucana e a Abolição. Arq.8 gaveta 3.
FUNDAJ/Recife. O grupo abolicionista nazareno incentivou também os movimentos sócio-culturais da
comunidade, como, por exemplo, o Clube Familiar Dramático ou o Centro Literário e Recreativo.
80
Idem.

60
abolicionista merece um olhar minucioso para percebermos as nuances das relações entre a
classe dos proprietários do 5º distrito, a política liberal e Joaquim Nabuco. O quadro das
eleições se fez da seguinte maneira:

Quadro 1: Eleição do 5º Distrito 1885 – Resultado

Freguesia Votos para Joaquim Votos para Francisco


Nabuco de Lacerda
Nazareth 51 33
Tracunhaém 43 41
Vicência 57 50
Lagoa Seca 30 13
Bom Jardim 185 119
Final 366 256
Fonte: ―Homenagem ao eleitorado independente do 5º Distrito aos abolicionistas sinceros e ao paiz‖. In:
Jornal da Tarde, Recife, 08/06/1885. A Imprensa Pernambucana e a Abolição arq. 8 gav. 3 FUNDAJ

O município de Nazareth era composto por Tracunhaém, Vicência e Lagoa Seca,


quatro dos cinco locais que elegeram Nabuco. Apesar de Nazareth ter colaborado com 181
votos para o abolicionista, 49,4% dos votos recebidos por Joaquim Nabuco, também foi
responsável por 53,5% dos votos que Lacerda recebeu. No geral, os votos para Nabuco
provindos da comarca de Nazareth representaram 29,1% do total de votos (366+256),
enquanto os votos para Lacerda representaram 22,0 % do total. Por outro ângulo, dos 318
votantes da comarca de Nazaré, 181 (56,9%) votaram em Nabuco, enquanto 137 (43,1%)
votaram em Lacerda. Observamos, portanto, que Nabuco recebeu 13,2% (42) de votos a
mais do que seu adversário, quantidade de certa forma expressiva se pensar que cerca de 50
votantes escolheram Joaquim Nabuco politicamente. Por um lado, de fato nesta comarca
existiram pessoas que foram ligadas ao movimento liberal praieiro, jornais que nos anos 80
publicaram matérias com claras tendências abolicionistas e um eleitorado que
majoritariamente votou em Nabuco; por outro lado, Lacerda recebeu um número expressivo
de votos da Comarca de Nazareth, realizando uma campanha que acusou Nabuco de
abolicionista intransigente e inimigo da propriedade. Diante desse quadro, vale ressaltar
que nas eleições de 1885, Joaquim Nabuco, historicamente um abolicionista ardoroso,
propôs uma campanha mais moderada, o que, certamente, teve um grande peso para que ele
conseguisse a maioria dos votos do eleitorado nazareno e vencesse a eleição. Temos
indícios, portanto, de que os proprietários da comarca de Nazareth optaram em sua maioria

61
pelo candidato que se fez ―moderamente‖ liberal, mas cuja campanha não tocou em
propostas polêmicas com referência à abolição imediata sem indenização, à lei agrária, ao
incentivo ao capital estrangeiro e à crítica aos redutos eleitorais no interior.81Ao mesmo
tempo, percentualmente, constatamos que no município de Nazareth nos anos 80 do XIX
existia uma dupla tendência política, obviamente, assim como veremos mais para frente,
causadora de vários conflitos sócio-políticos no período.
Nos estudos de Marson e Tasinafo, podemos constatar que a trajetória de Joaquim
Nabuco para chegar a esse pleito em 1885 foi longa e repleta de debates que, algumas
vezes, fizeram o abolicionista recuar ou avançar em suas ideias sobre as possíveis soluções
para os problemas da lavoura e da mão de obra no Nordeste. Para entender melhor esse
caminho, Marson cruzou as ideias de Nabuco e do engenheiro Henrique Milet trazendo à
tona profundas questões que preocupavam econômica, social e politicamente a classe dos
senhores proprietários e sinalizando algumas razões da resistência dos eleitores
pernambucanos à candidatura abolicionista no pleito de 1878 e nos seguintes de 1884, 85 e
86. Para Marson, apesar de Nabuco e Milet se empenharem na consolidação de uma ―classe
média‖, sustentáculo de uma monarquia forte e moralizada, seus projetos se excluíam.
Enquanto o abolicionista a compreendia como uma categoria social a se constituir com o
fim do monopólio da escravidão, da propriedade territorial e da casta dos senhores
―inexpugnável com seus feudos‖, ―verdadeiros ergástulos agrários‖, Milet pensava em uma
classe média ali presente, porém, em vias de extinção se não fosse amparada pelo Estado e
se as expectativas abolicionistas vingassem. 82
Antes de entrarmos nessas reflexões propriamente, o que nos levará às discussões
realizadas no Congresso Agrícola do Recife em 1878, vale aqui observar que a região em
foco, Zona da Mata Norte, mais especificamente o município de Nazareth, possuía
evidências históricas de uma sociedade canavieira que predominantemente se manteve
atrelada a um universo sócio-econômico marcado por sistemas de trabalho e produção de
engenhos banguês, e que com tendências liberais no pleito de 1885 elegeu Joaquim
Nabuco, um abolicionista, ainda que na cena política existisse uma forte adesão ao
candidato oposicionista. No mais, temos evidências segundo autores como Eisenberg e

81
MARSON, op. cit., 2008, p. 266.
82
MARSON, op. cit., 2008, p. 194.

62
Manuel de Andrade que Pernambuco, e principalmente a Zona da Mata Norte, desde o fim
do tráfico transatlântico de escravos teve como mão de obra predominante a livre, sendo a
utilização da mão de obra escrava reduzida cada vez mais, o que indicou um fim da
escravidão sem grandes problemas para proprietários uma vez que a mão de obra livre era
disponível e utilizada há décadas antes de 1888. Essa gama de informações, no entanto,
leva-nos a questionar como de fato, e especificamente, foi a presença de escravos e livres
na região da Zona da Mata a partir da segunda metade do XIX. Será realmente que a mão
de obra escrava era tão sub-utilizada nas últimas décadas da escravidão nessa região? Qual
era o perfil sócio-político da sociedade canavieira pernambucana que elegeu Joaquim
Nabuco em 1885? O que de fato significou um fim de escravidão sem grandes problemas
para os proprietários?
Junto destas questões ainda vale adicionar reflexões sobre os aspectos culturais que
marcaram o universo das zonas canavieiras. Registros orais, relatos e memórias de filhos de
senhores de engenho, relatos de viajantes e estudos de folcloristas descrevem a existência
de folguedos ligados a rituais festivos que eram brincados pelos trabalhadores da cana tanto
na Mata Sul como na Norte. No entanto, as narrativas, inclusive atuais, revelam que na
Zona da Mata Norte, e mais especificamente na região que compreendia as Comarcas de
Nazareth e Goiana, do século XIX até hoje, os trabalhadores da cana mantiveram
manifestações culturais ligadas ao Boi, mais especificamente o Cavalo Marinho, e ao culto
da Jurema, como o Maracatu de Baque Solto ou Rural. Ainda que em algumas localidades
como Ipojuca e Cabo, no passado, ouvia-se falar na brincadeira do Boi pernambucano, é na
Zona da Mata Norte, nas terras de Nazareth e Goiana, que se registrou o costume de se
realizar os folguedos do Cavalo Marinho e do Maracatu Rural, entre outros típicos também
dessa região.
Através dos relatos de alguns ex-moradores de engenhos de Nazareth, dos relatos
orais colhidos em pesquisas de campo, da bibliografia sobre o tema e dos registros
documentais policiais da década de 70 do XIX, podemos constatar que, durante os séculos
XIX e XX, os escravos e libertos cotidianamente se reuniam e realizavam festas e rituais
(re)significando a realidade. O interessante é notar que, como coloca Petronilo, em ―alguns
engenhos‖ se celebrava festivamente o início da moagem. Era a botada, festa mais
aristocrática para a qual eram convidados: o vigário da freguesia que oficiava a missa e a

63
benção do engenho; o juiz de direito, o delegado de polícia e outras pessoas de destaque da
cidade próxima, além de parentes e correligionários políticos. Depois da cerimônia
religiosa, dava-se início à moagem, cabendo a cada autoridade presente jogar uma cana na
moenda. No fim da moagem celebrava-se a pejada, festa mais popular, porque se destinava
mais aos trabalhadores. Realizava-se durante a noite na moita do engenho.83

Terminada a moagem, limpava-se o engenho, retirando-se todo olho de


cana que ficasse, varrendo-se e às vezes aguando-se para diminuir a poeira.
Durante toda a noite os trabalhadores se divertiam, brincando de Cavalo
Marinho, Cocô e Bumba meu Boi. Havia a distribuição de bolacha e aguardente.
O feitor e o vigia estavam presentes para evitar qualquer excesso de bebida e
briga. O senhor de engenho comparecia com a família por algumas horas,
prestigiando a festa. 84

Nesses relatos percebemos não só a existência da cultura festiva em terras de


Nazareth, mas também a realização desta dentro do processo produtivo e de fabrico da cana
de açúcar, em outras palavras, como parte também das posturas de proprietários e
trabalhadores diante do processo de produção de açúcar e suas relações sociais. A cultura
viva do Maracatu (hoje a cidade de Nazaré da Mata tem o título de cidade do Maracatu),
mais a comprovação do Cavalo Marinho nos engenhos fizeram-me eleger também a
comarca de Nazareth como ponto de ramificação para entender culturalmente o mundo do
trabalho e suas conexões com os significados criados e recriados pelos trabalhadores da
cana da mata norte. Certamente são aspectos do cotidiano deste universo que colaboram,
mais ainda, para compreendermos quem eram esses senhores e proprietários que festejavam
e permitiam festas e quem eram esses escravos, livres e libertos, que cansavam seus braços,
pernas e mentes no ardor do trabalho e dos folguedos ao longo dos dias e das noites.

1.3) Os números de escravos e livres em Pernambuco e suas regiões na segunda


metade do século XIX

Os estudos de Andrade e Eisenberg retratam que na Zona da Mata de Pernambuco,


principalmente a parte norte, desde meados do século XIX, progressivamente aumentou o
83
Edifício de grande proporção consistia numa área coberta, onde se depositava a cana vinda do campo,
enquanto aguardava a hora de ser levada à moenda para ser esmagada (PEDROSA, 1977, p. 47).
84 PEDROSA, Petronilo. Engenho Banguê: termos relativos a instrumentos de trabalho, atividades e fatos da
vida social. Faculdade de Formação de professores de Nazaré da Mata, Nazaré da Mata, 1977, p. 76.

64
uso da mão de obra livre, motivo entre outros que deixa claro para Eisenberg que a abolição
significou bem pouco para Pernambuco. Para este autor, os senhores podiam substituir o
prestígio e o poder social baseados na propriedade de escravos por aqueles baseados na
dependência dos livres. Assim, depois de 1850, o valor social da escravidão retrocedeu para
o fundo da cena e os senhores de engenhos substituíram os escravos por uma população
quase tão subserviente, de moradores, diaristas e parceiros.85 No entanto, se analisarmos de
forma sistemática os números de escravos e livres de Pernambuco e, principalmente,
observarmos as variações regionais e locais, constatamos outras evidências quanto ao
pouco uso da mão de obra escrava às vésperas da abolição, uma visão que suscita novas
abordagens sobre as relações que senhores e escravos mantinham social, cultural e
economicamente na segunda metade do século XIX.
Construir um quadro numérico de escravos em Pernambuco, na Zona da Mata
Norte, e, especificamente, na comarca de Nazareth entre 1870 e 1888, demanda certos
cuidados para tentar errar pouco. Do mesmo modo, o exercício de investigação sobre a
quantidade de escravos, quando associado a outras fontes documentais, pode nos trazer
importantes subsídios sobre a dinâmica social da região no período.86
Para o levantamento destes dados, as principais fontes documentais utilizadas são:
dados da Secretaria do Governo de Pernambuco de 1859, as duas matrículas de escravos
(1872-73 e 1886-87), os Censos de 1872 e 1890 e os Relatórios de Trabalhos Estatísticos
de 1878 e 1883. Alguns autores trabalharam com essas fontes cada um a sua maneira;
assim, vale rever essas interpretações e propor alguns caminhos sobre a demografia
pernambucana.
O trabalho de Heitor Filho Moura sobre as estatísticas demográficas em
Pernambuco no Oitocentos traz algumas reflexões interessantes para repensarmos os
números dos escravos na Província. Comparando os dados fornecidos pelo censo e
estudiosos da escravidão, como Mello, Eisenberg, Vieira Souto, Conrad e dados dos
relatórios do Presidente da Província e Ministério da Agricultura, o autor elabora uma
tabela entre 1872 e 1887 das variações dos números de escravos em Pernambuco.

85
EISENBERG, op. cit., p. 244-246.
86
Sobre esse assunto ver SLENES, Robert W. ―O que Rui Barbosa não queimou: novas fontes para o estudo
da Escravidão no século XIX.‖ Revista Estudo Econômicos. 13(1), 117-149, jan./abr. 1983.

65
Quadro 2: População escrava em Pernambuco entre 1872 e 1888

1872 - 89 028 – 1883 – 83 835 – Eisenberg


Recenseamento de 1872 1884 – 72 709 – J C Melo cita
1872 – 91. 992 – Conrad
Levantamento que serviu de 1885 – 72 370 – Ministério da
base para a distribuição Agricultura
municipal das quotas do 1886 – 80 338 - Eisenberg
Fundo de Emancipação 1886 – 80 872 – Eisenberg
1873 - 106 236 – Eisenberg, 1886 – 79 803 - Eisenberg
cita Vieira Souto citado por 1886 – 80. 374 – Melo
Ruy Barbosa, apud Pádua 1887 – 41 122 – Relatório
1874 - 106. 236 - J. C. Melo Presidente Pernambuco outubro
cita Conrad de 1887
1876 – 84. 370 – Ministério 1887 – 40 642 – JC Melo
do Império 1882 citando Conrad
1877 – 85 530 – Ministério
do Império 1882
1878 – 83. 864 - Idem
1879 – 82. 178 – Idem
1880 – 82 510 – Idem
1881 – 81 146 – Idem
1882 – 84 700 – Eisenberg

Fonte: FILHO MOURA, H. op. cit., 2005, p. 59. Fontes: (Eisenberg, 1977:170); Relatório
com que o Sr. Francisco Augusto Pereira da Costa dá conta ao Exm. Sr. Presidente da Provincia
da Commissão de que fora encarregado em 2 de março de 1886, p.50, apud (Galloway, 1968);
(Melo, 1978:133-4, 152-3); Conrad, R. Os Últimos anos da escravatura no Brasil, Trad.de F.de
Castro Ferro, Rio de Janeiro:Civilização Brasileira/MEC, 1975, p.394, citado por J.C.Melo.
Tabelas ao final do relatório ―Estatistica da população escrava e sua descendencia‖, por José
Carlos Mariani em (Brasil. Ministério do Império, 1882). Os totais referem-se nestas tabelas a
31/12 de cada ano. (Brasil. Ministério da Agricultura, 1885:34) Os dados se referem a
30/06/1885).

Os dados referentes aos anos de 1872 e 1873 para Pernambuco podem ser
analisados através de duas fontes: a do recenseamento e a das matrículas de 1872 e 1873. Ao
analisar de forma comparativa as matrículas e o censo de 1872, Robert Slenes sugere que, de
um modo geral, ambas as contagens são bastante confiáveis; vale ressaltar que, quanto aos
dados sobre a população total, a matrícula é mais completa, isto é, omite menos pessoas,
sobretudo, mulheres e crianças. Quanto à distribuição etária, o censo (quando ajustado para
compensar pelo sub-registro de crianças) é mais confiável, pois muitos escravos idosos ou de
meia-idade eram registrados, na matrícula, em grupos etários mais jovens. Quanto ao estado
civil e à profissão, as informações reforçam a impressão de que, na maioria das províncias,

66
os dois recenseamentos são bastante confiáveis. No geral, no entanto, excetuando os dados
sobre faixa etária, os da matrícula são, para Slenes, melhores que os do censo.87
Nos seus cálculos, Slenes observa que, na maioria das províncias, os dois totais
(censo e matrícula) não são muito diferentes; mas quando o são, o da matrícula quase sempre
leva a vantagem. Para Pernambuco, verifica-se um diferencial percentual de 5 positivos
(89.028 censo e 93.496 matrícula). Para o autor, na maioria das províncias ambas as
contagens são relativamente confiáveis, já que dificilmente estariam de acordo se uma, ou
ambas, tivessem grandes deficiências; no mais, como um sub-registro num recenseamento é
mais comum do que um erro para mais, é provável que a matrícula seja, em geral, a mais
completa. Ainda que a matrícula visasse a fiscalização da propriedade de escravos, enquanto
o censo tinha como objetivo somente o levantamento de dados estatísticos, havia, portanto,
razões para que os senhores fossem menos honestos na matrícula do que no censo. Contudo,
como coloca Slenes, havia também fortes considerações que operavam no sentido contrário:
a lei que regulava a matrícula considerava livre qualquer escravo não registrado no prazo
estipulado. No mais, a lei exigia a prova da matrícula para legitimar qualquer contrato que
envolvesse a transferência de propriedade em escravos. Em suma, a pessoa que não
matriculava seus escravos arriscava-se a perder o título e a negociabilidade de uma das
partes mais importantes de sua propriedade. Na maioria dos casos, portanto, os dados da
matrícula são mais confiáveis que os do censo, ainda que muitos senhores reduzissem as
idades de seus escravos mais velhos, por conta do fim do tráfico.88
Vale ressaltar que para Slenes chegar ao número de 93.496, ele teve que reunir
diversas fontes uma vez que o Relatório de 1875, que traria dados da matrícula de 1873,
não estava completo para algumas províncias, entre elas Pernambuco, faltando nesta os
dados de dois municípios: Flores e Boa Vista. Dados mais completos vieram com o
Relatório de 1878. Por conta disso, o número da matrícula, publicado em 1875, de 92.855
ainda estaria subestimado.89
Para Moura, o censo não registrou pelo menos 17.200 escravos sonegados no
recenseamento por seus proprietários, mas foram registrados no ano seguinte para obter os

87
SLENES, op. cit. 1983, p. 133.
88
Idem, op. cit., p. 125 - 127.
89
SLENES, R. W. Demography and economics of brazilian slavery: 1850-1888. Doutorado, Stanford
University, 1975, apêndice B.

67
benefícios do Fundo de Emancipação. No entanto, segundo Slenes, como as listas do Fundo
de Emancipação foram elaboradas a partir das listas de matrícula, a diferença notada nesse
período dificilmente se explica por essa razão. Nesse caso, temos que repensar essa
diferença que Moura está propondo assim como suas âncoras para a população cativa a
partir de 1872.90 Como âncoras para a população cativa, pós -1872, Moura propõe os
fatores de correção de 21,5% para 1872 (89.002 – 108.131); 9% para 1885 (81.400 –
88.697), 8% para 1886 (80.300-86.724) e 4,5% para 1887 (41.000-42845).91 O autor supõe
que o fator de correção (isto é, a discrepância entre dados censitários/registros de matrícula
e os ―reais‖) tenha necessariamente decrescido até anular-se, em 1886 (8%), e daí até 1888.
Contudo, Robert Slenes ressalta que entre 1885 e 1886 houve um sub-registro de
falecimentos, vendas e alforrias; desse modo, é necessária a correção dos números relativos
aos anos de 1885 e 1886 para baixo.
Slenes ao analisar a confiabilidade dos dados da segunda matrícula, isto é, de 1887,
coloca que alguns autores argumentam que os dados não são confiáveis, pois muitos
senhores fugiam da obrigação de registrar seus escravos. Porém, para Slenes, a evidência
que citam é a discrepância entre os totais da primeira matrícula, atualizados até 1885, e os
de 1887. Para o autor, Topin aceita os dois totais como verídicos, e vê neles evidência de
um súbito desmoronamento do regime escravista. Já Robert Conrad, entre outros, contesta a
confiabilidade da segunda matrícula, o que diminui a importância da crise dos anos 1880 e
confere um caráter mais gradual ao declínio da escravidão. Para Slenes, nenhum destes
autores teria razão, pois, como notou, as estatísticas para 1885 são muito inflacionadas. Em
contraste, uma análise da lei que regulava a segunda matrícula, e da coerência interna dos
dados, sugere que o registro de 1887 era bastante completo.92
Primeiramente, Slenes aponta que era interessante para os senhores realizarem as
matrículas de 1887 pelo fato que em lei para cada escravo matriculado o senhor havia de
declarar um valor específico. Esse valor não podia exceder certos limites (dependendo da
idade e do sexo do escravo), estabelecidos por lei. Slenes verificou que os escravos de
Campinas e Vassouras registrados em 1887 tendiam a ser supervalorizados por seus
senhores, isto é, eram declarados os valores máximos permitidos por lei. ―Portanto, a

90
FILHO MOURA, op. cit., 2005, p. 120-129.
91
FILHO MOURA, op. cit., 2005, p. 129.
92
CONRAD, R. apud SLENES, op. cit., 1983, p. 137.

68
matrícula de 1887 representava uma oportunidade para os senhores adquirirem um
documento legal que conferia um valor inflacionado para sua propriedade escrava, e que
implicava o reconhecimento desse valor pelo governo‖.93Por essa razão, é possível que
muitos senhores tenham visto a matrícula como uma defesa parcial contra a possibilidade
de que o governo decretasse a abolição sem indenização.
No mais, Slenes esclarece que apesar de verificar que não é possível confiar no
registro de óbitos de escravos entre as matrículas, as pesquisas realizadas em Vassouras e
Campinas e por Pedro Carvalho de Melo apontaram projeções numéricas para população
cativa em 1887 maiores do que as registradas pela matrícula. Vale ressaltar, no entanto, que
a diferença não é grande, considerando que as projeções não incluem os escravos os quais
fugiram entre as duas matrículas, nem os alforriados que escaparam ao registro oficial. Para
Slenes, portanto, o total da matrícula de 1887 é coerente com o que seria de se esperar
nesse ano.94
Pautando-nos nas considerações de Slenes, consideramos os dados da matrícula de
1873 e 1887 para Pernambuco e outras províncias do Nordeste como os seguintes:

Quadro 3 - Relação de escravos da matrícula de 1873

Província Sexo Idade

M F Total 14-20 21-39 40-49 50-59 + 60

Piauí 12. 601 12.932 25. 533 4.155 7.466 1.869 905 14
Ceará 15.757 18.203 33. 960 6.132 9.349 2.019 740 296
Rio Grande do
Norte 6.397 7.087 13. 484 2.220 4.052 774 339 121
Paraíba 12.887 14.358 27. 245 4.510 8.205 1.841 797 268
Pernambuco 46.670 46.826 93. 496 14.252 31.437 9.165 4.841 1.279
Alagoas 16.547 16.695 33. 242 - - - - -
Sergipe 16.444 16.530 32.974 4.961 10.817 3.582 1.474 593
Bahia 86.993 86.646 173.639 36.230 71.326 19.250 7.622 1.978
Fonte: SLENES, Robert. Demography and economics of brazilian slavery: 1850-1888. Doutorado, Stanford
University, 1975, apêndice B, p. 691 e 693.

93
SLENES, op. cit., 1983, p. 138.
94
Idem, op. cit., p. 138.

69
Quadro 4 - Relações de escravos da matrícula de 1887
Província Sexo Idade

M F Total 15-29 30-39 40-49 50-54 55-59

Piauí 4.317 4.653 8.970 5.287 2.014 1.172 359 138


Ceará 54 54 108 70 23 6 9 0
Rio Grande do 1.584 1.583 3. 167 1. 827 771 409 126 34
Norte
Paraíba 4.210 5.238 9.448 5.084 2.174 1.486 455 249
Pernambuco 20.531 20.591 41. 122 20.112 10.533 7.114 2.107 1.256
Alagoas 7.449 7.820 15.269 7. 437 3.889 2.640 867 436
Sergipe 8.147 8.728 16.875 8. 168 4. 198 2. 927 1.083 499
Bahia 37. 966 38. 872 76.838 40. 051 18. 511 11. 489 4.022 2.765
Fonte: SLENES, R. W. Demography and economics of brazilian slavery: 1850-1888. Doutorado, Stanford
University, 1975, apêndice B, p. 697.

Analisando os números, observamos que Pernambuco entre 73 e 87 teve uma queda


de 56% dos escravos. Para analisar essa queda do número de escravos ocorrida entre 1873 e
1887, Slenes ressalta que não apenas os números de mortes e os números oficiais de
manumissões devem ser observados, mas também outros fatores como fugas e o número de
liberdades de fato obtidas. Como Slenes analisou no âmbito provincial, em Pernambuco a
diferença que existe entre o número de escravos que obtiveram sua liberdade entre 1873 e
1887 e o número do registro de manumissões oficiais é entre 7.2 e 10.4 percentual da
população original de 1873; isto equivale a cerca de 109.000 para 157.000 pessoas. 95 Desse
modo, verificamos que muitas manumissões eram desconhecidas pelo registro oficial e isso
pode ter influenciado nas curvas populacionais. Ciente desses fatores, como podemos
avaliar essa dinâmica dentro da comarca de Pernambuco, e mais especificamente, dentro da
Zona da Mata pernambucana?

95
SLENES, R. W. Demography and economics of brazilian slavery: 1850-1888. Doutorado, Stanford
University, 1975, p. 349-351.

70
Quadro 5 - População escrava das regiões de Pernambuco entre 1859 e 1887

Região Secretaria do Matrícula 1872 População Matrícula 1887


96
Governo 1859 escrava 1876
(DGE 1878)
Recife 12.127 19.487 16.931 5.081
Zona da Mata 28.671 47.097 39.533 24.260
Agreste 12.748 20.095 17.932 8.182
Sertão 6.896 6.84297 10.830 3.599
Pernambuco 60.442 92.885 85.226 41.122
Fontes: Mapa da População escrava da província. Secretaria do Governo de Pernambuco, 28 de fevereiro de
1858. Diretoria Geral de Estatística. Relatório e Trabalhos Estatísticos apresentados ao Ministro e Secretário
de Estado dos Negócios do Império. Rio de Janeiro, 30/04/1875. Relatório e Trabalhos estatísticos
apresentados ao Ilm e Exm. Sr. Conselheiro Dr. Carlos Leôncio de Carvalho, Ministro e Secretário dos
Negócios do Império pelo Director Geral Conselheiros Manuel Francisco Correia em 20/11/1878. Diário de
Pernambuco, 24/11/1887. In: MELLO, José Antônio Gonçalves de. O diário de Pernambuco e a História
Social do Nordeste. Recife, Diário de Pernambuco, 1975, PP. 648 e 649.

Gráfico 1 - População escrava das regiões de Pernambuco entre 1858 e 1887

100.000
90.000
80.000
70.000 Recife
60.000 Zona da Mata
50.000 Agreste
40.000 Sertão
30.000 Pernambuco
20.000
10.000
0
1858 1873 1876 1887

96
O mapa populacional de 1858 publicado pelo Governo de Pernambuco no mesmo ano não estava
totalmente completo faltando dados para algumas freguesias. No total foram 3 freguesias da zona da mata, 2
freguesias do agreste e 3 freguesias do sertão.
97
No Relatório de 1875, referente às matrículas de 1872 e 1873, que foi publicado pela Diretoria Geral de
Estatísticas, faltavam na relação os municípios de Flores e Boa Vista, ambos localizados no sertão
pernambucano. Para amenizar a falta, utilizamos os dados referentes a esses municípios publicados no
Relatório de 1878/DGE que trazia dados dos matriculados e averbados até 1876.

71
Conforme o Quadro 3 e o Gráfico 1, verificamos que a maior concentração de
escravos em Pernambuco estava na Zona da Mata e o nível se manteve de 1858 até 1887.
Entre 1873 e 1887, as porcentagens de perdas foram as seguintes: Recife perdeu mais
escravo com um índice de -74%, em segundo vem o Agreste com -59,3%, depois vem a
Zona da Mata com -48,5% e em seguida o Sertão, com -47,4%. Vale ressaltar que entre
1858 e 1873 a população escrava que mais cresceu foi a localizada na Zona da Mata, em
cerca 64%, em segundo o Agreste com 57,7%. O importante aqui é identificarmos os
processos que levaram principalmente a Zona da Mata às variações desses índices nos
respectivos períodos. No entanto, como citamos anteriormente, a Zona da Mata possuía um
perfil heterogêneo quanto às formas de fabricação de açúcar empregadas, o nível
econômico da classe dos proprietários, variações climáticas, opções políticas. Sabemos, até
mesmo pela bibliografia sobre a região, que a Zona da Mata Sul acumulava mais escravos
do que a Norte. De fato, observamos que as comarcas do Sul possuíam mais escravos que
as do Norte. Todavia, é pertinente que pensemos como ocorreram as evoluções
especificamente de cada região e posteriormente em cada município.

Quadro 6 - Evolução da população escrava das Zonas Norte e Sul de Pernambuco e


suas variações porcentuais entre 1858 e 1887

Região 1858 Variação 1873 Variação 1876 Variação 1887


em % em % em %
Zona da 9.973 +82.1% 18.163 -14.2% 15.575 -44.8% 8.605
Mata Norte
Zona da 18.698 +54.9% 28.937 -17.2% 23.958 -29,1% 17.008
Mata Sul

72
Gráfico 2 - Variação da população escrava nas Zonas da Mata Norte e Sul entre os
anos de 1858 e 1887

35000

30000

25000

20000 Zona da mata norte

15000 Zona da mata Sul

10000

5000

0
1855 1860 1865 1870 1875 1880 1885 1890

A Zona da Mata Sul sempre manteve seu número de escravos acima da Zona Norte,
no entanto, percebemos que o crescimento do número de escravos entre 1858 e 1873 se deu
proporcionalmente com maior intensidade na Zona da Mata Norte do que na Sul. No mais,
a partir de 1875 ocorreu uma queda mais acentuada na Zona da Mata Norte do que na Sul.
Entre 1876 e 1887, a Zona Norte perdeu quase 44,8% dos seus escravos enquanto a Sul
perdeu 29,1% dos seus cativos. Essa queda acentuada provavelmente teve como principais
causas três fatores: alforrias, mortes e o comércio para o Sudeste, além de fugas e
liberdades não registradas. No mais, a intenção aqui também é investigar os processos
sócio-econômicos e sócio-políticos que colaboraram para que esses fatores ocorressem com
maior ou menor intensidade.
Observando o número de livres entre 1858 e 1872 nas duas regiões, percebemos o
seguinte quadro:

Quadro 7: Crescimento da população livre nas Zonas da Mata Norte e Sul de


Pernambuco entre 1858 e 1872

Municípios 1858 Crescimento % 1872


Zona da Mata Norte 51.637 162.9 % 135.714
Zona da Mata Sul 56.989 142.7 % 138.299
Total 108.626 152.3 % 274.013
Fontes: Mapa da População escrava da província. Secretaria do Governo de Pernambuco, 28 de
fevereiro de 1859. Recenseamento da Província de Pernambuco de 1872.

73
Infelizmente, sem os dados de livres para o ano de 1887 não foi possível realizar
uma curva completa, porém, analisando os anos de 1858 e 1872 podemos perceber que a
Zona da Mata Norte não apenas cresceu mais em números de escravos (+82,2%) como
também em livres (+162.9%). Vale ressaltar que a população escrava aumentou 82,2% e a
livre 162,9% na região Norte, enquanto na Sul a população livre aumentou 142,7% e a
escrava 54,7%. Pelos números, nesse período, a Zona da Mata Norte canavieira estava em
maior expansão que a Sul. Ainda que em números absolutos a região Sul possuísse mais
escravos e mais livres do que a Norte, o número absoluto de livres era bem próximo nas
duas regiões, uma diferença de cerca de 10%. Já a diferença no número absoluto de
escravos em 1858 que era de 87%, em 1873 cai para 59%. Se apostarmos na veracidade dos
números, podemos sugerir diante desta amostragem que entre 1858 e 1873 as comarcas da
Zona da Mata Norte estavam de fato se desenvolvendo economicamente mais que as do
Sul, ou pelo menos, estava investindo mais em mão de obra escrava entre 1858 e 1873. Por
outro, é necessário considerar que muitas vezes os dados eram subestimados. Comparando
com os dados de 1837 referentes à comarca de Nazareth, observamos que existiam 22.067
habitantes livres e 6.688 escravos neste ano, e em 1858, foram registrados 16.209 livres e
4.487 escravos. Por estes parâmetros constatamos que entre 1837 e 1858 ocorre na comarca
de Nazareth uma redução tanto no número de escravos como de livres. A população,
portanto, estava caindo na região, ao contrário do que constatamos entre 1858 e 1873.
Nesta situação, na comarca de Nazareth, a população escrava era, em 1858, de 4.487 e, em
1873, de 6.545 cativos. Verificamos, portanto, tanto uma curva crescente para a população
local e quanto para a região norte.
Ainda assim, vale ressaltar que os dados de 1858 podem ter sido subestimados, um
dos indícios é uma tabela de dados referente aos dados contidos nos livros de registro de
óbitos da Freguesia de Tracunhaém, pertencente à comarca de Nazareth, feita pelo Vigário
de Basílio Gonçalves da Luz em 1857. No mapa de óbitos referente à freguesia, o vigário
registrou que ocorreram 4 mortes de escravos pretos e 128 de ingênuos (brancos, pardos e
pretos) durante o ano de 1857. Todavia, nas observações, o Vigário Basílio Luz explicou
que

74
Parece um escandalo o total dos óbitos que se vê no mappa presente, mas é
o que consta de meus livros, e a razão deste deminuto numero de óbitos é ter
esta freguesia 21 capellas de engenhos dos quaes os senhores, com poucas
excepções fazem o que muito querem em relação aos enterros dos de sua
familha, foreiros e visinhos, sem a menor satisfação do vigario, que impossível é
forçado a calar para não desafiar as iras de polestadez fidalgas da freguesia, (...)
visto como não teêm elles vigários a força precisa, por falta de garantias (...) tal
abuso. Não é desleixo meu, é sim impossibilidade, que bem pode avalia-la que
infelismente tem necessidade de morar entre gente orgulhosa que julga ter por
lei sua vontade.98

A reclamação do Vigário pela falta de informação e registro de mortes pelos


senhores dos muitos engenhos da freguesia, fato o qual claramente parece ir mais longe do
que apenas uma questão de cadastro eclesiástico, deixa óbvio que se era diminuto o número
de mortes, consequentemente, o registro de vivos era maior do que o real. Ao mesmo
tempo, o número de nascimentos, possivelmente, também era subestimado. Assim, apesar
dos números para 1858 merecerem certa desconfiança, ainda assim são possíveis de análise.
Como consideramos acima uma curva crescente acentuada entre 1858 e 1872 ou 1873, se
pensarmos nas falhas dos dados, e os números em 1858 forem maiores do que verificamos
(pensando em um número subestimado), a curva entre 1858 e 1873 continuaria crescente,
mas seria menos acentuada. Assim, supondo que o grau de sub-registro não variava
enormemente entre as sub-regiões, o maior aumento percentual na população escrava na
Zona da Mata norte (comparando com a Zona Sul) indica, de fato, um maior dinamismo do
escravismo naquela região. Por outro lado, não devemos desconsiderar a possibilidade de
que em 1858 o sub-registro populacional na Zona Norte tenha sido maior do que na Sul.
Isso nos levaria a outras considerações.
Por outro lado, ainda sobre a conjuntura da década de 50, constatamos através dos
relatórios das delegacias dos Termos para o Presidente da Província exigidos segundo um
ofício circular expedido em 23 de janeiro de 1857, que já existia certa quantidade de
pessoas livres trabalhando nos engenhos tanto em localidades da Zona da Mata Sul quanto
da Norte. Sobre Nazareth, por exemplo, o delegado informou que no termo existiam 173
engenhos de açúcar todos movidos por animais, apenas um movido com água e um a vapor.
Nestes eram produzidos 169.500 pães de açúcar, e os animais, entre bois, vacas e cavalos,
totalizavam 6.167 animais. Quanto à mão de obra escrava, o delegado registrou que entre

98
Mapa de óbitos havidos na Freguesia de Tracunhaém durante o ano de 1857. Tracunhaém, 20 de fevereiro
de 1858, Vigário Basílio Gonçalvez da Luz. Arquivos Eclesiásticos vol 9, ff 195, APEJE/PE.

75
um ou outro forro, existiam nos engenhos cerca de 2.600 escravos: ―os quais vão de dia
para dia se diminuindo‖.99 Através de um relatório mais minucioso elaborado pelo delegado
de Pau d‘Alho também da zona norte, contatamos que nesse termo 29,3% dos trabalhadores
dos engenhos eram livres, variando a contratação entre 6 e 10 pessoas livres por engenho.
Já os escravos compunham 70,7% da mão de obra nos engenhos variando sua quantidade
por engenho entre 40 e 4 cativos por engenho, notando que estes com menos escravos não
significava que estavam utilizando mais livres, mas sim porque o engenho era de pequeno
porte. A maioria dos engenhos assim como em Nazareth também era de força animal.100
Já na freguesia de Ipojuca, localizada no Termo de Cabo na Zona da Mata Sul,
existia metade dos engenhos funcionando com força animal e outra metade com água ou a
vapor; existia, portanto, tecnicamente um avanço maior do que os Termos da Zona Norte
acima citados. Porém, não conseguimos identificar quantos escravos e livres trabalhavam
em cada engenho uma vez que a relação foi realizada em uma categoria apenas: pessoas
empregadas. Podemos avaliar que a quantidade de pessoas que trabalhavam nos engenhos
de Ipojuca era bem maior do que em Pau d‘Alho, por exemplo. Em Ipojuca, a quantidade
de empregados por engenho variava de 20 para 80.
Em Igarassu, pertencente à comarca de Recife, segundo o delegado do Termo
devido ao surto epidêmico de cólera que ocorrera na região, reduzira ―extraordinariamente‖
o número de escravos que trabalhavam na cultura da cana, e por essa razão, os agricultores
estavam ―na dura necessidade‖ de servirem-se para o trabalho dos homens livres, que
―infelizmente não são constantes no trabalho‖.101
Diante desses poucos exemplos, podemos perceber que desde 1857 cada localidade
construía conforme conjunturas específicas um quadro de utilização de mão de obra para a
produção do açúcar. Constatamos que a mão de obra livre era utilizada nos engenhos, cada
um conforme sua necessidade. Fábricas de melhores condições técnicas eram mais
presentes na Zona da Mata Sul, assim como uma mão de obra maior empregada nos
engenhos. As causas para o uso e o desuso da mão de obra livre podiam variar; em

99
Relatório do delegado suplente de Nazareth para o presidente da Província de Pernambuco. Nazareth.
13/02/1857. Relatórios para o Presidente da Província de Pernambuco. APEJE/Recife.
100
Relatório do delegado de Pau d‘alho para o presidente da Província de Pernambuco. Pau d‘Alho.
17/02/1857. Relatórios para o Presidente da Província de Pernambuco. APEJE/Recife.
101
Relatório do subdelegado de Igarassú para o presidente da Província de Pernambuco. Igarassú. 12/02/1857.
Relatórios para o Presidente da Província de Pernambuco. APEJE/Recife.

76
Igarassu, por exemplo, o subdelegado deixou claro que a morte pela cólera havia
prejudicado muito a sobrevivência dos escravos, e por isso, o uso da mão de obra livre foi
intensificado, ―a contra gosto".
Montando uma análise comparativa de dados das mortes e das alforrias oficialmente
registradas durante o ano de 1876 nas duas Zonas, observamos que na Zona Norte
ocorreram 977 mortes de escravos e na Sul, 2.131. Por outro lado, as alforrias na Zona
Norte chegaram a 400 e na Sul a 470 no mesmo ano. Realizando uma tabela de valores por
1000/hab em cima da média populacional da região Norte e Sul para o ano de 1876,
obtemos os seguintes números:

Quadro 8 - Alforrias e mortes na população escrava no ano de 1876102

Região Alforrias por Mortes por 1000/cativos


1000/cativos
Zona da Mata Norte 5,57 13,60
Zona da Mata Sul 4,04 18,32
Total (média da Zona Norte 9,7 31,92103
e Sul)

Verificamos que as taxas de alforrias como de mortes são próximas nas duas zonas.
Vale perceber que na Zona Norte a taxa de alforrias e de mortes são menores do que a
média total. Para a Zona da Mata Sul temos o mesmo quadro. Já a taxa de mortes/1000
cativos (13,60) para Zona da Mata Norte é significativamente menor do que a taxa média
de mortes/1000 cativos (31,92) e menor do que a taxa da Zona Sul (18,32). Concluímos,
portanto, em uma análise comparativa levando em conta a média populacional para o ano
de 1876, e observando a quantidade/1000 cativos, as alforrias influenciaram a queda de
escravos mais na Zona da Mata Norte do que na Sul, e as mortes, significativamente,
influenciaram mais a queda na Zona da Mata Sul do que na Norte, ainda que ambos os

102
O cálculo foi realizado em cima da média populacional dos municípios da Zona da Mata Norte e Sul e do
total das alforrias e mortes das duas áreas entre 28 de setembro de 1872 até o final de 1876, por exemplo,
(alforrias total / população média = taxa alforrias).
103
Percebemos um sub-registro de mortes.

77
fatores se colocassem como importantes para a queda da população escrava neste período e
que observemos uma taxa sub-estimada de mortes.
Observando separadamente os 4 municípios que compõem a Zona da Mata Norte e
os 5 municípios com maior taxa de alforrias e mortes da Zona Sul em 1876, temos o
seguinte quadro:

Quadro 9 - Alforrias, mortes e população escrava média dos municípios das Zonas da
Mata e Norte de 1 de abril de 1872 a 31 de dezembro de 1876

Região/Município Alforrias Mortes Média Taxa Taxa


população Alforrias/ Mortes/
escrava em 1876 1000 1000
cativos cativos
Zona da Mata Norte
Nazareth 143 324 6.112,5 23,4 53,0
Goiana 134 238 3.398,5 39,4 70,0
Pau d‘alho 91 217 3.697,5 24,6 58,6
Itambé 32 198 3.809,5 8,4 51,9
Zona da Mata Sul
Cabo 87 346 3.926 22,1 88,1
Rio Formoso 81 199 3.619 22,3 54,9
Escada 65 394 5.456,5 11,9 72,2
Victória 67 233 3.299,5 20,3 70,6
Palmares 53 362 4.337,5 12,2 83,4
Fonte: Relatório e Trabalhos estatísticos apresentados ao Ilm e Exm. Sr. Conselheiro Dr. Carlos Leôncio
de Carvalho, Ministro e Secretário dos Negócios do Império pelo Director Geral Conselheiros Manuel
Francisco Correia em 20/11/1878.

Verificamos que os números absolutos registrados de alforrias na Zona da Mata


Norte são maiores que na Zona Sul. Nesta região, em números absolutos, Nazareth lidera,
no entanto, como possuía a maior população escrava da região, proporcionalmente,
alforriava 23,4 escravos/mil. Assim, proporcionalmente, Goiana alforriou mais com uma
taxa de 39,4/mil. No entanto, em Nazareth morriam 53 escravos/mil, já em Goiana
70,0/mil. Desse modo, comparando essas duas comarcas, percebemos que apesar de Goiana
alforriar mais do que Nazareth, mais escravos morriam; assim, provavelmente, o grande
fator de contribuição para a queda do número de escravos em Goiana foram os falecimentos
dos escravos, e não as alforrias. Já para Nazareth, o raciocínio é o contrário, com uma taxa
de mortes menor do que em Goiana; esta, proporcionalmente, colaborou menos para a
queda de mão de obra escrava. Vale ressaltar que Nazareth possuía uma maior quantidade
de engenhos, a probabilidade então desses escravos serem advindos dos engenhos é maior

78
nesta comarca do que em Goiana. No mais, devemos lembrar que os registros das mortes e
das alforrias podem estar subestimados, o que pode distorcer os resultados, do mesmo
modo que vale colocar que outros fatores contribuíam para a queda da mão de obra escrava;
assim, é de bom tamanho salientar que esta avaliação advém dos dados registrados e esses
nos revelam um quadro específico.
Para a Zona da Mata Sul, percebemos que as taxas de morte até o ano de 1876
foram bem mais altas do que as taxas verificadas para a Zona da Mata Norte, e por outro
lado, as diferenças (entre a Zona Norte e Sul) nas taxas de alforrias são menores. Com altas
taxas de mortes/mil, a Zona Sul provavelmente teve sua queda da população escrava
significativamente causada pelas mortes, ainda que as alforrias tivessem colaborado
bastante. Vale ressaltar as maiores taxas de alforrias: para Rio Formoso, 22,3/mil, e Cabo,
22,1/mil, e as maiores taxas de mortes para e Cabo, 88,1/mil e Palmares, 83,4/mil.
Para entendermos melhor essa dinâmica da população escrava nas Matas Norte e
Sul e suas respectivas localidades é interessante visualizarmos a curva da população entre
os anos de 1858 e 1887. No entanto, como as comarcas foram administrativamente se
dividindo neste intervalo do tempo, propomos uma tabela mostrando essas divisões, e
depois elaboramos um gráfico examinando cada município (freguesia) desde 1858.

79
Quadro 10 - Relação de escravos da Comarca de Recife e das comarcas da Zona da
Mata Pernambucana e suas divisões entre 1858 e 1887

Comarcas Termos Secretaria (divisões Matrícula (divisões Matrícula


Governo antes de 1873 depois de 1887
1859 1873) 1873)
Recife 9.490 16.026 104
2.036
Recife Olinda 1.019 912 240
Iguarassu 1.598 2.549 1.018

Zona da Mata Norte

Nazareth Nazareth 4.487 6.543 3.196


105
Pau d´Alho Pau d´Alho 952 3.915 Pau d´Alho 1.422
Glória de 449
Goitá
Goiana 106 2.168 Goiana Goiana 1.624
Goiana
3.627
Itambé 2.366 Itambé 4.076 Itambé 817
1.097
Timbaúba
Zona da Mata Sul

(Vitória de)
Santo Antão Santo Antão 1363 3.478 1.759
Escada - 2.894 3.330

Cabo Cabo 5203 Cabo 4.291 1.898


Ipojuca 3.398 1.651

Rio Formoso 3034 Rio Formoso 1.124


Rio Serinhaém 7260 5.047 Serinhaém 1.061
Formoso
Gameleira 896
Barreiros 107 2.078 Barreiros 1.106
1838

104
Esse número é pequeno em comparação com o ano de 1873, porém vale ressaltar que a freguesia de
Jaboatão se emancipou de Recife e em 1887 entrava em contagem separada do município de Recife. Em
1887, Jaboatão possuía 1.353 escravos.
105
Como dito anteriormente, o Mapa Populacional de 1858 publicado pela Secretaria do Governo de
Pernambuco não estava completo. Nesse caso, os dados do Termo de Pau d‘Alho ficaram prejudicados, e por
isso verificamos o número baixo de escravos. Faltaram as informações de duas freguesias das três que o
compunham: Divino Espírito Santo de Pau d‘Alho e Nossa Senhora da Luz.
106
Nessa época, o Termo de Goiana era composto por Nossa Senhora do Rosário de Goiana, São Lourenço de
Tejucopapo e Nossa Senhora do Desterro de Itambé. Como Itambé se desvinculou de Goiana depois de 1873,
para realizar uma melhor comparação numérica entre os anos, coloquei, em 1858, os dados do Termo de
Goiana referentes à N. S. do Rosário de Goiana e S. Lourenço de Tejucopapo, e destaquei em separado os
dados de N. S. de Desterro de Itambé.
107
Ficaram faltando para o Termo de Barreiros pertencente à Comarca de Rio Formoso, os dados referentes à
Freguesia de São Miguel de Barreiros.

80
Fontes: Mapa da População escrava da província. Secretaria do Governo de Pernambuco, 28 de fevereiro de
1859. Diretoria Geral de Estatística. Relatório e Trabalhos Estatísticos apresentados ao Ministro e Secretário
de Estado dos Negócios do Império. Rio de Janeiro, 30/04/1875. Diário de Pernambuco, 24/11/1887. In:
MELLO, José Antônio Gonçalves de. O diário de Pernambuco e a História Social do Nordeste. Recife,
Diário de Pernambuco, 1975, PP. 648 e 649.

Gráfico 3 - Evolução da população escrava nos municípios de Goiana, Nazareth, Pau


d’Alho, Itambé, Cabo, Santo Antão (Vitória), Rio Formoso, Escada e Palmares entre
1858 e 1887 108

7000

6000
Goiana

5000 Nazareth
Pau d'Alho
4000 Itambé
Cabo
3000 Vitória
Rio Formoso
2000 Escada
Palmares
1000

0
1859 1873 1876 1887

Constatamos através desses dados que, em 1858, Nazareth era o município


(comarca) que mais possuía escravos da região Norte, perdendo apenas para Serinhaém da
Zona Sul que possuía 7.260 escravos, mas que não está neste quadro, pois desaparece em
1873 dos relatórios voltando a aparecer apenas em 1887 com a quantidade de 1.061 cativos.
De qualquer forma, observamos que Nazareth (6.545 escravos) lidera na região Norte entre

108
Gráfico baseado na tabela abaixo.
Municípios 1858 1873 1876 1887
Goiana 2168 3627 3170 1624
Nazareth 4487 6545 5682 3196
Pau d'Alho 952 3915 3180 1422
Itambé 2366 4076 3543 817
Cabo 2488 4294 3561 1898
Vitória 1363 3478 3121 1759
Rio Formoso 3034 5047 2191 1124
Escada - 6450 4485 3330
Palmares 1838 4192 3361 1083

81
1859 e 1887, e sem os dados de Serinhaém, também lidera em 1873 na Zona da Mata,
sendo seguida por Escada (Zona Sul) com 6.450 cativos. Já em 1887, Nazareth com 3.196
perdeu apenas para Escada (3.330) em número de escravos. Além da queda acentuada
depois de 1873 de Rio Formoso que pode ter ocorrido pelas divisões administrativas,
Escada, que não passou por esse processo de divisão, teve uma queda significativa entre
1873 e 1876. Vale ressaltar que como analisamos no Quadro 6, proporcionalmente, a
maior queda de escravos entre 1876 e 1887 ocorreu na Zona da Mata Norte. Já a Zona da
Mata Sul, proporcionalmente, perdeu mais escravos do que a Zona Norte entre 1873 e
1876. E, de fato, podemos comprovar essas variações entre os municípios das duas Zonas.
Vale notar que alguns municípios da Zona da Mata Norte caíram mais, como Itambé (-
77%), Pau d‘Alho (-55,2%) e Goiana (- 48,7%), e Nazareth caiu menos (-43,8%). Já para
Escada, localizada na Mata Sul, sua queda foi de apenas -25,8%, mas Cabo já teve -46,7%
de perda. No período anterior, entre 1873 e 1876, Escada teve uma perda de -30,5%,
enquanto Nazareth teve apenas de -13,2% e Goiana -12, 6%.
Essas variações trazem à tona que as experiências de escravidão entre as Zonas da
Mata, e entre municípios e comarcas das duas regiões e numa mesma região passaram por
processos econômicos, sociais e políticos diferentes. Vários fatores podem ter influenciado
nesse percurso. As taxas de alforrias e mortes registradas oficialmente nos dizem parte das
informações que podem ser encontradas numa microanálise. Diante dessa série de quadros
e gráficos expostos, podemos alcançar algumas conclusões.
Na esfera nacional e na regional, nesse período, o maior fator variante foi o tráfico
interprovincial. A partir de 1850, com o fim do tráfico internacional, aumentaram a compra
e a venda dos escravos dentro do país. O caminho mais utilizado era do Nordeste para o
Sudeste. Dentro do Nordeste, no entanto, as fontes e os números variaram. Para Slenes,
entre 1872 e 1881, por exemplo, as províncias que perderam significativamente seus
escravos foram as que possuíam fazendas algodoeiras, em outras palavras, não açucareiras,
e, portanto, proporcionalmente, saíram menos escravos da Zona da Mata do que do Sertão e
do Agreste.
Assim, como coloca Slenes, em Pernambuco, a transição para o trabalho livre foi
provavelmente, o resultado não da maior venda de escravos das plantações, mas da
absorção dos trabalhadores livres dentro de uma economia que estava rapidamente se

82
expandindo nas décadas de 60 e 70 (com a valorização do preço, a exportação de açúcar
aumentou mais que o dobro entre 1860-1880).109 Desse modo, a produção industrial não
teve, ―virtualmente‖, problemas com o fim da escravidão.110 No mais, vale ressaltar os
dados referentes às mortes e às alforrias que em esfera local podem ter contribuído para
uma mudança no sistema de mão de obra menos drástica em Pernambuco. Por outro lado,
na Bahia, não se incorporou um contingente significativo de mão de obra livre à força de
trabalho e, por isso, a produção de açúcar continuou a se basear no braço escravo até as
vésperas da abolição.111
Nos anos 80, com o início do processo de mudanças no sistema escravista, um novo
quadro de trabalhadores do açúcar começou a se construir. A partir de 1880, a utilização da
mão de obra escrava no Brasil cai, pois ocorreu também um aumento por parte dos grandes
fazendeiros na aquisição da mão de obra livre. Segundo a análise do historiador Robert
Slenes, a demanda do setor açucareiro determinava o preço do escravo. Quando o lucro do
açúcar caía, os plantadores compravam menos escravos. No entanto, os senhores de
escravos não puderam prever o declínio do preço do açúcar nesta década e por conta disso,
entre outros motivos, a queda do mercado de escravos entre 1881 e 1883.112
A década de 80 foi um período em que o mercado de escravos entrou em queda
livre por causa da queda do preço do açúcar e da crise política da escravidão. Isto gerou a
quebra de complacência definitiva com relação à sobrevida da escravidão e levou a uma
maior aquisição de mão de obra livre. Ao mesmo tempo, ao observar a queda do trabalho
escravo em menor escala nas regiões açucareiras (e aqui observamos que nas zonas
canavieiras pernambucanas houve variações quanto a essa queda), Slenes observa a década
de 80 como um quadro híbrido de mão de obra livre e escrava nos engenhos e no campo
pernambucano. Um cenário que se construiu por dois motivos que se aglutinaram: por um
lado, pelo aumento de contratos de trabalhadores livres em Pernambuco nas décadas de 60
e 70, e, por outro, pela queda da aquisição de escravos da década de 80. Assim, o perfil dos
trabalhadores dos engenhos após 1880 era tanto de escravos, de libertos e de mão de obra

109
SLENES, op. cit., 2004, p. 338.
110
SLENES, Robert. The Brazilian internal slave trade, 1850 –1888. Regional Economies, slave, experience,
and the politics of a peculiar market. IN: JOHNSON, W. The chattel Principle. Internal slave trades in the
Americas. Yale Universiy Press, London, 2004.
111
BARICKMAN. ―Até a véspera: o trabalho escravo e a produção de açúcar nos engenhos do Recôncavo
baiano (1850-1881)‖. Afro-Ásia, 21-22 (1998-99).
112
Idem, op. cit.

83
livre, salvo o fato, como verificamos, que as porcentagens de livres, escravos e libertos
variaram de município para município.
Segundo os estudos de Slenes, Versiani e Vergolino, o ano de 1878 representou um
alto índice de exportação de escravos a partir de Pernambuco,113 indicando uma saída de
2.212 cativos. Para os autores, esse auge pode ser relacionado com a baixa nos preços de
escravos na província, no período, especialmente no Agreste e no Sertão, o que foi
certamente influenciado não só pela seca de 1877-78, como pela queda dos preços do
açúcar e, sobretudo, do algodão, em relação à década anterior. Como mostram os dados
colhidos por Versiani e Vergolino, a queda de preços em 1878-79, proporcionalmente ao
final da década anterior, foi de 20 a 25% no Recife e na região do açúcar (Zona da Mata), e
de 40 a 50% no Agreste (zona predominantemente algodoeira) e no Sertão (área de gado e
mais atingida pela seca). Vale ressaltar que nos anos 1876 a 1878 houve alguma melhora
relativa nos negócios do açúcar, devido a uma alta conjuntural de preços. Para os autores,
essa alta de preços pode ter provocado um aumento na demanda por escravos na Zona da
Mata, e, como verificaram, na segunda metade dos anos 70, houve certa alta nos preços dos
cativos.114
Aqui é interessante destacar os dados publicados no Relatório de 1883 sobre a
movimentação da população escrava entre 1877 e 1881 na Província de Pernambuco:

113
SLENES, R. W. Demography and economics of brazilian slavery: 1850-1888. Doutorado, Stanford
University, 1975, apêndice A. VERSIANI, Flávio Rabelo & VERGOLINO, José R. Oliveira. ―Tráfico e
Traficantes: comércio de escravos no recife, 1878‖. Revista do Instituto Arqueológico e Geográfico de
Pernambuco. Recife, no 61, 2005, p. 288.
114
Ver SLENES, R. W. Demography and economics of brazilian slavery: 1850-1888. Dissertação de
doutorado, Stanford University, 1975, apêndice A. VERSIANI & VERGOLINO, op. Cit, 2005, p. 288 e 289.

84
Quadro 11: Movimentação dos escravos na Província de Pernambuco 1877-1881

Existiam Vieram de Faleceram Conseguiram Mudaram Total


em outros a liberdade para outros em dezembro
dezembro de municípios municípios de

1876 ..........................................................................................................................................1877

84.370 5.648 1.058 460 2.970 85.530


1877 ..........................................................................................................................................1878
85.530 3.064 1.379 428 2.634 83.864
1878 ...........................................................................................................................................1879
83.864 2.685 1.490 544 2.337 82.178
1879........................................................................................................................................... 1880
82.178 5.013 1.201 718 2.672 82.540
1880 ...........................................................................................................................................1881
82.540 1.794 1.053 696 1.409 81.146
Fonte: Relatório e trabalhos estatísticos. Secção de Estatística. Annexa à 3ª Directoria da Secretaria de Estado
dos Negócios do Império ano de 1883.

Ressalto a diminuição de entrada de escravos no ano de 1879 (2.685), seguida do


aumento no ano de 1880 (5.013) e novamente uma diminuição, dessa vez mais expressiva
(1.794) no ano de 1881, variação que não aconteceu nas mesmas proporções na saída de
escravos.115 Acredito que essa relação tem a ver com as crises, principalmente, no setor
açucareiro que influenciavam na compra de escravos pelos proprietários pernambucanos, e
assim, na entrada de outros municípios. Vale colocar que o número de saídas registradas é
bastante subestimado, assim, provavelmente na prática, temos um resultado de
entradas/saídas maior do que os números reais. De qualquer modo, podemos considerar que
o número de escravos não variava expressivamente no final do ano, devido ao número de
escravos que saíam para outros municípios se manter estável. A diminuição maior do saldo
de escravos ocorreu entre 1880 e 1881. Quanto ao número de óbitos, os anos de 1878 e
1879 marcados pela seca e pela varíola registraram o maior índice, sendo que a grande
entrada de escravos em 1880 pode ter sido influenciada pelas secas nos anos anteriores.
Vale acrescentar que, na década de 80, ocorreu uma queda no mercado de escravos,
115
Vale ressaltar as possíveis imprecisões dos dados.

85
portanto, na sua aquisição, acompanhando a queda do preço do açúcar, e levando a uma
maior aquisição de mão de obra livre. Ao mesmo tempo, entre a década de 1850 e o fim do
decênio de 1880, na Zona da Mata pernambucana, o número de engenhos cresceu de 1.300
para 1.650, um aumento de 27% que contribuiu indiscutivelmente – junto com a
modificação tecnológica que melhorou a produtividade – para dobrar a produção de açúcar
entre tais datas.116 O ano de 1880 também teve o maior número de alforrias num total de
718. Esse fator certamente viria contribuir para que o perfil da população escrava
pernambucana, a partir de 1880, se caracterizasse cada vez mais por um quadro
populacional hibridamente formado por livres, libertos e escravos
Analisando as divisões regionais de Pernambuco e os municípios especificamente,
concluímos que os municípios da Zona da Mata Sul perderam mais escravos entre 1873-
1876 do que entre 1876 e 1887. Na Mata Norte, Nazareth, foco dessa pesquisa, possuía
registrada até o ano de 1876 uma taxa proporcional de alforrias menor do que Goiana e Pau
d‘Alho, no entanto, possuía uma taxa de mortes menor do que ambas. Assim,
possivelmente as alforrias influenciaram mais na queda populacional do que os
falecimentos. A queda populacional escrava, por sua vez, foi menor do que a de outros
municípios localizados na Zona Norte entre 1876 e 1887. Assim se no período anterior,
1873 e 1876, os municípios da Zona da Mata Sul perderam, proporcionalmente, mais
escravos do que os municípios da Norte, estes inverteram esse quadro no período posterior.
O interessante é que Escada (mata sul) e Nazareth (mata norte) em 1887 eram os
municípios que mais possuíam escravos da Zona da Mata, respectivamente, 3.330 e 3.196.
O fato, no entanto, é que Escada perdeu a maioria dos seus escravos entre 1873 e 1876 e
Nazareth entre 1876 e 1887, em concordância com o índice de perdas para a Zona da Mata
Norte, o qual foi maior do que a Sul. Essas variações nos interessam muito uma vez que
deixam claro que existiram fatores minuciosos que definiram os perfis dessas sociedades
canavieiras escravistas a partir da segunda metade do século XIX. Nazareth chama-nos
atenção ainda pelo fato de que entre os municípios de maior população escrava da Zona da
Mata pernambucana, digo Norte e Sul, foi a que apresentou um maior investimento na
economia escravista alcançando em 1873 a maior população cativa da Zona canavieira
(ressaltando a ausência de Serinhaém), e menor queda até 1887 da Zona da Mata Norte.

116
SLENES, op. cit., 2004.

86
Será que este é um bom exemplo de uma abolição gradual? O município de Escada,
localizado na Mata Sul, teve resultados, em números, semelhantes aos de Nazareth em
1887; no entanto, os processos de baixa desses escravos foram diferentes.
No mais, pelo lado dos investimentos econômicos, como já assinalamos, a partir de
1874 em Escada, como na Mata Sul em geral, ocorreu a maior concentração de instalações
de usinas e engenhos centrais, ao contrário da Zona da Mata Norte, e nela, Nazareth, que
não teve nenhuma fábrica desse porte até as primeiras décadas do século XX. Temos,
portanto, dois perfis diferentes de produção e fabricação de açúcar que certamente
influenciaram nos resultados para as curvas da população escrava. De fato, Nazareth se
manteve no mercado do açúcar com sua produção em engenhos banguês e a utilização da
mão de obra escrava durante toda a metade do século XIX (até 1888). Concomitantemente,
existiram fatores relacionados às relações de trabalho, de propriedade e de classe nesses
municípios açucareiros que também têm muito a nos revelar. Nazareth, uma comarca com
um número alto de escravos e uma classe de proprietários banguês nos anos 80 do XIX, e
que ainda assim elegeu o abolicionista Joaquim Nabuco no pleito de 1885, certamente tem
muito para nos contar sobre a classe dos proprietários da zona canavieira pernambucana e
suas decisões e relações políticas. Ao mesmo tempo, Nazareth também possui em seu
passado detalhes das histórias dos trabalhadores escravos e livres que fogem dos números,
afinal, ―tradicionalmente‖, desde meados do XIX, nessa localidade, trabalhadores rurais da
cana cotidianamente produzem e reproduzem culturas festivas, envoltas de maracatus e
cavalos marinhos sobreviventes até hoje somente na região da Zona da Mata Norte
pernambucana.

1.4) A composição social da comarca de Nazareth na segunda metade do XIX

Através do recenseamento de 1872, recolhemos as seguintes tabelas de dados para a


população escrava e livre da Comarca de Nazareth que era dividida em duas Paróquias:
Nossa Senhora da Conceição de Nazareth e Santo Antônio de Tracunhaém, vale ressaltar
que os números dos censos são subestimados, no entanto, o recenseamento de 1872 é a
única fonte disponível que traz detalhes das duas paróquias que compõem o município de
Nazareth, contendo informações sobre raça, estado civil e nacionalidade:

87
A) Paróquia de Nossa Senhora da Conceição de Nazareth

 Tabela A1: Escravos

Ano de 1872
Sexo Almas Raças Estado Civil Nacionalidade
branco pardo preto caboclo s c v Brasileiro estrangeiro
Homens 1672 0 467 1206 0 1450 201 21 1622 50
Mulheres 1636 0 464 1172 0 1375 196 65 1584 52
Total 3308 0 931 2378 0 2825 397 86 3206 102
Fonte: Recenseamento de 1872.

 Tabela A2: Livres

Ano de 1872
Sexo Almas Raças Estado Civil Nacionalidade
branco pardo preto caboclo s c v brasileiro estrangeiro
Homens 8131 2907 4468 706 51 5607 2310 214 8099 32
Mulheres 9453 3180 5360 870 43 6340 2547 566 9427 26
Total 17584 6087 9828 1576 93 11947 4857 780 17526 58
Fonte: Recenseamento de 1872.

B)Paróquia de Santo Antônio de Tracunhaém

 Tabela B1: Escravos

Ano de 1872
Sexo Almas Raças Estado Civil Nacionalidade
brancos pardos pretos caboclos solt cas viúvo Brasileiro estrang
Homens 1263 0 423 840 0 1021 205 37 1180 83
Mulheres 1045 0 389 656 0 825 151 69 970 75
Total 2318 0 812 1496 0 1846 356 106 2150 158
Fonte: Recenseamento de 1872.

 Tabela B2: Livres

Ano de 1872
Sexo Almas Raças Estado Civil Nacionalidade
brancos pardos pretos caboclos solt cas viúvo brasileiro estrang
Homens 8090 2352 4334 1373 26 5720 2209 164 8069 21
Mulheres 9957 2856 5413 1669 19 5631 3910 413 9953 4
Total 18047 5208 9752 3042 45 11351 6119 577 18022 25
Fonte: Recenseamento de 1872.

88
C) Total para a Comarca de Nazareth (Nazareth e Tracunhaém)

 Tabela C1: Escravos

Ano de 1872
Sexo Almas Raças Estado Civil Nacionalidade

brancos pardos pretos caboclos solt cas viúvo brasileiro estrang

Homens 2940 0 890 2046 0 2471 406 58 2802 133

Mulheres 2681 0 853 2539 0 2200 347 134 2554 127

Total 5621 0 1743 4585 0 4671 753 192 5356 260

Fonte: Recenseamento de 1872.

 Tabela C2: Livres

Ano de 1872
Sexo Almas Raças Estado Civil Nacionalidade

brancos pardos pretos caboclos solt cas viúvo brasileiro estrang

Homens 16221 5259 8802 2079 77 11327 4519 378 16168 53

Mulheres 19410 6036 10773 2539 62 11971 6457 979 19380 30

Total 35631 11295 19575 4618 139 23298 10976 1357 35548 83

Fonte: Recenseamento de 1872.

Através dos dados do censo, alguns aspectos interessantes podem ser pensados. É
importante perceber, por exemplo, os dados (Tabelas A1 e B1) de Nazareth e Tracunhaém,
e observar que, se em 1872 Nazareth possuía mais escravos do que Tracunhaém, em 1859 o
quadro era o inverso: Tracunhaém tinha 3.478 escravos e a paróquia de N. S. da Conceição
de Nazareth tinha 1.009, evolução que certamente tem relação com o desenvolvimento dos
engenhos localizados nas duas paróquias.
Por outro lado, em 1872, a proporção de pardos e pretos difere. Em Tracunhaém,
35% eram pardos e 64,6% eram pretos; e em Nazareth, 28% eram pardos e 71,8% eram
pretos, diferenças sutis na nomenclatura das cores, mas que podem nos revelar aspectos
sociais das relações nos engenhos dessas duas paróquias dentro da mesma comarca. Onde
por exemplo ocorreu o maior número de alforrias? Fato também curioso, na medida em que
observamos Tracunhaém com uma porcentagem maior de pardos e também de escravos
estrangeiros, 6%, e em Nazareth, 3% do total. Uma sugestão para essas porcentagens seria

89
o sub-registro dos escravos africanos por receio de que um dia os africanos importados
ilegalmente depois de 1831 viessem a ser libertados.
Ainda sobre os estrangeiros, observando as Tabelas C1 e C2, identificamos em
números brutos que mais do que o dobro dos estrangeiros na comarca de Nazareth na
década de 70 era escravo, perfil também interessante para pensarmos, por exemplo, nas
possibilidades de disseminação de influências culturais na comarca nesse período, como
também no perfil da sua mão de obra.
Tentando amenizar os valores sub-registro do censo, vale ressaltar que, no mapa
populacional do delegado de Nazareth realizado em maio de 1870 117, o delegado informou
que na comarca existiam 5.374 escravos, homens e mulheres.118 Dois anos depois,
verificamos no censo 5.621. Assim, de certa forma, é viável trabalharmos com os dados do
censo, considerando para Pernambuco, como explicitou Slenes, um diferencial de 5%
positivos, isto é, para cima. Segundo o mapa do delegado, temos o seguinte quadro:

Quadro 12: Mapa da população da Comarca de Nazareth realizado pela


Delegacia local em 1870

Ano de 1870
Nacionalidade Estado civil Sexo

Condição Brasil Estrang. Solteiro Casado Viúvo M F Total

Livres 30.400 1.052 20.968 6.988 3.495 14.827 16.625 31.452

Escravos 5.205 169 3.583 1.090 701 2.570 2.804 5.374

Totalidades 35.605 1.221 24.551 8.078 4.197 17.397 19.499 36.826

Fonte: Mapa da população da Comarca de Nazareth. Delegacia de Nazareth, 1/05/1870

Quanto aos números de livres, observamos que ou os cálculos da Delegacia de


Nazareth foram subestimados, ou em dois anos a população livre na comarca cresceu em
cerca de 5.500 indivíduos. Ainda que possamos considerar algum tipo de êxodo do sertão

117
Não temos informações de como o delegado conseguiu realizar o recolhimento dos dados para a
construção do mapa populacional de 1870, no entanto, em contato com outras documentações constatamos
que normalmente, ainda mais com relação aos dados de estado civil, os delegados pediam as informações para
os vigários das duas paróquias que compunham a comarca.
118
Mapa da população da Comarca de Nazareth. Delegacia de Nazareth, 1/05/1870. SSP Nazareth, 247 vol
652. APEJE/Recife.

90
devido à seca ou um grande número de alforrias, ainda assim, percebemos um certo
exagero nos números, mesmo porque a quantidade de escravos também aumentou nestes
dois anos. Outro dado discrepante é a quantidade de estrangeiros livres. Se pelo censo em
1872 havia apenas 83 livres estrangeiros, em 1870 segundo o delegado existiam 1.052. Do
mesmo modo, mesmo que consideremos ou a migração desses estrangeiros para Recife ou
outras localidades, ou algum processo em massa de naturalização, algo bem improvável, a
diferença é anormal.
Por outro lado, se na quantidade de livres temos esses dados pouco confiáveis,
quanto aos escravos o controle parece ser maior, salvo o fato de haver um número maior de
escravos casados, 1.090, registrado pela Delegacia para 753, pelo censo. Assim em 1872,
verificamos a diminuição do número de casados e também de viúvos que variou de 701, em
1870, para 192, em 1872 pelo censo. De fato, a família escrava não estava sendo bem
registrada, a discrepância nos traz desconfianças e, diante da pesquisa realizada nos
inventários post- mortem, acredito que os dados da Delegacia de Nazareth sejam mais
próximos da realidade uma vez que a quantidade de famílias verificadas naqueles é
considerável. Se formos levar à risca os números do censo, teríamos apenas 16,8% dos
escravos casados e viúvos; já nos dados policiais, estes alcançam a porcentagem de 33,3%
do total. Poderíamos considerar os óbitos, mas, nesse sentido, pela lógica, o número de
viúvos deveria aumentar, e o que acontece é o contrário, sendo que o número total de
escravos também aumenta.
Infelizmente, quanto ao número dos livres, não temos outras fontes de comparação,
já quanto aos números dos escravos é possível visualizar um quadro mais específico da
comarca de Nazareth. Para tanto, os dados da matrícula vêm nos auxiliar sobre algumas
dúvidas a respeito do ano de 1872 e 1873, e os dados referentes ao ano de 1859 e 1887, este
também referente à matrícula, auxiliam na análise. Assim, a fim de uma visão comparativa,
analisaremos os dados de estados civis e sexo dos municípios de Goiana, Pau d‘Alho e
Itambé da Zona da Mata Norte, e de Escada, Cabo e Rio Formoso, na Zona Sul.

91
Quadro 13 - Relação da população escrava por sexo e estado civil entre 1859 e 1887
em 7 municípios da zona da mata de Pernambuco

Municípios Sexo Estado Civil Total


M F S C V

1858

Nazareth 2.189 2.298 3.422 1.075 - 4.487


Itambé 1.088 1.278 1.948 418 - 2.366
Pau d’Alho 440 512 724 228 - 952
Goiana 957 1.214 1.504 575 - 2.079
Cabo 1.837 651 2.066 458 - 2.488
Escada - - - - - -
Rio Formoso 1.767 1.297 2.100 561 - 2.661
1873

Nazareth 3.160 3.385 5.257 1.041 247 6.545


Itambé 1.985 2.111 3.292 695 89 4.076
Pau d’Alho 1.944 2.001 3.266 503 156 3.915
Goiana 1.754 1.873 3.120 372 135 3.627
Cabo 1.958 2.338 3.847 328 108 4.294
Escada 3.556 2.894 5.391 846 213 6.450
Rio Formoso 2.749 2.298 4.343 533 171 5.047
1887

Nazareth 1.541 1.655 2.742 330 124 3.196


Itambé 397 420 691 97 29 817
Pau d’Alho 698 724 1.238 116 68 1.422
Goiana 764 860 1.440 121 63 1.624
Cabo 1.090 808 1.745 116 37 1.898
Escada 1.877 1.453 2.854 403 73 3.330
Rio Formoso 612 512 1.025 72 27 1.124

Fontes: Mapa da População escrava da província. Secretaria do Governo de


Pernambuco, 28 de fevereiro de 1859. Diretoria Geral de Estatística.
Relatório e Trabalhos Estatísticos apresentados ao Ministro e Secretário de
Estado dos Negócios do Império. Rio de Janeiro, 30/04/1875. Diário de
Pernambuco, 24/11/1887. In: MELLO, José Antônio Gonçalves de. O
diário de Pernambuco e a História Social do Nordeste. Recife, Diário de
Pernambuco, 1975, pp. 648 e 649.

Os números absolutos de escravos casados indicam que tanto em 1858 e em 1873,


Nazareth possuía a maior quantidade de cativos casado e/ou viúvos da Zona da Mata. Já em
1887, Escada, da Zona Sul, supera em número absoluto de casados, mas não de viúvos,
sendo que com a soma de ambos, Nazareth volta a liderar. No entanto, é interessante avaliar

92
as porcentagens de casados com relação à população total de cada município e com relação
à população acima de 15 anos. Neste caso, temos os seguintes quadros:

Quadro 14 - Porcentagem de solteiros, casados e viúvos com relação à população total


dos municípios da zona da mata entre 1858 e 1887

Municípios 1858 1873 1887


Porcentagem (%) Porcentagem (%) Porcentagem (%)
S C V S C V S C V

Nazareth 76,3 24 - 80,4 16 3,8 85,8 10,4 3,9


Itambé 82,4 17,7 - 80,8 17 2,2 84,6 11,9 3,6
Pau d’Alho 76 24 - 83,4 12,9 4 87 8,2 4,8
Goiana 72,4 27,7 - 86 10,3 3,8 88,7 7,5 3,9
Cabo 83 18,4 - 90,3 7,7 2,6 92 6,2 2
Escada - - - 83,6 13,2 3,3 85,8 12,2 2,2
Rio Formoso 79 21 - 86 8,6 3,4 91,2 6,5 2,5

Fontes: Diretoria Geral de Estatística. Relatório e Trabalhos Estatísticos apresentados ao Ministro e


Secretário de Estado dos Negócios do Império. Rio de Janeiro, 30/04/1875. Diário de Pernambuco,
24/11/1887. In: MELLO, José Antônio Gonçalves de. O diário de Pernambuco e a História Social do
Nordeste. Recife, Diário de Pernambuco, 1975, PP. 648 e 649.

Quadro 15 - Porcentagem de solteiros, casados e viúvos com relação à população


acima de 15 anos dos municípios da zona da mata em 1873

Ano de 1873
Municípios Casados e População acima Porcentagem de
viúvos de 15 anos casados e viúvos
(%)
Nazareth 1.288 4.044 31,9
Itambé 784 2.427 32,3
Pau d‘Alho 659 2.458 26,9
Goiana 507 2.410 21,0
Cabo 436 3.045 14,4
Escada 1.056 4.566 23,2
Rio Formoso 704 3.648 19,3

Fontes: Diretoria Geral de Estatística. Relatório e Trabalhos Estatísticos apresentados


ao Ministro e Secretário de Estado dos Negócios do Império. Rio de Janeiro, 30/04/1875.

Com relação ao quadro 14, é interessante observar a evolução de cada município


com relação ao aumento ou à diminuição de casados e viúvos durante o tempo, e como
essas porcentagens são maiores nos municípios da Zona da Mata Norte, Nazareth, Itambé,

93
Pau d‘Alho e Goiana, e menores nos da Zona Sul. A partir de 1887, Itambé continua com
uma alta porcentagem, mas em seguida vem Escada, da mata sul, com 14,4% de casados e
viúvos.
No entanto, o quadro 15, que foi possível ser construído apenas com os dados de
1873, nos revela a porcentagem dentro da população que de fato se encaixaria entre os
casados e os viúvos, isto é, dentre os escravos acima de 15 anos. Mais próximos de uma
porcentagem real, verificamos o quanto era alta a taxa de casados e de viúvos em Nazareth,
Itambé e Pau d‘Alho, regiões de engenhos primordialmente banguês da Mata Norte, e
quanto eram menores as taxas da mata sul, ressaltando Escada com uma porcentagem de
23,2 que também é alta e nos deixam mais curiosos quanto às suas proximidades numéricas
com o município de Nazareth. No mais, é importante perceber que essas altas taxas de
casados e viúvos têm relação com o alto número de escravos entre 1 e 14 anos. E ao
analisar ambos, isto é, taxa de crianças e de casados e viúvos, e se verificarmos índices
altos, estamos na verdade nos referindo diretamente à existência da família escrava nessas
localidades.
Quadro 16 - Porcentagem da população escrava por faixa etária no ano de 1873

1873
Idade Porcentagem do total da população escrava (%)
(anos)
Nazareth Itambé Cabo Escada

até 1 1,87 2,2 0,8 0,8

2a7 19,6 19,4 12,6 12,7

8 a 14 16,73 18,7 15,5 15,6

15 a 21 15,1 16,2 15,7 16,1

22 a 40 34,1 35,1 33,5 37,5

41 a 50 anos 7,2 5,5 13,6 11,3

51 a 60 4,40 2,0 6,9 4,4

mais de 61 0,80 0,5 1,1 1,2

94
Fonte: Diretoria Geral de Estatística. Relatório e Trabalhos Estatísticos apresentados
ao Ministro e Secretário de Estado dos Negócios do Império. Rio de Janeiro,
30/04/1875.

Nazareth e Itambé, ambas da zona norte, têm um perfil bem parecido quanto à
distribuição da faixa etária dos escravos, ressaltando apenas que em números absolutos
Nazareth possuía uma população escrava maior em 1873. A população escrava até 15 anos
de idade em Nazareth e Itambé alcançava as maiores taxas da Zona da Mata Norte:
respectivamente, de 38,2% e 40,3%. Na Mata Sul, Cabo com um número absoluto de
população próximo ao de Itambé, e Escada com um número próximo de Nazareth,
respectivamente atingiam a porcentagem de 28,9% e 29,1%. De fato, entre os índices de
casados e viúvos, Escada é o município que possuía o maior índice da Mata Sul, 23,2%, e
Cabo o menor, 14,4%. Provavelmente neste município a concentração de crianças por
casal, ou a quantidade de mães solteiras, era maior que em Escada, onde a porcentagem de
casados e viúvos revela a presença da família escrava. Para a Zona da Mata Norte, Itambé e
Nazareth tinham altos índices de casados e viúvos e também de escravos até 15 anos de
idade. O interessante é perceber que nos 4 municípios, proporcionalmente, a porcentagem
de escravos entre 15 e 41 anos são semelhantes. A diferença de fato se faz entre os índices
das crianças, principalmente, entre escravos até 7 anos e entre os escravos acima de 41 anos
de idade. Neste último caso, os municípios de Escada e Cabo possuíam os maiores índices,
respectivamente, de 16,9% e 21,6% do que Nazareth com 12,4% e Itambé com apenas 8%.
De fato, nestes dois municípios da Mata Sul a concentração de escravos em idade produtiva
acima de 41 anos e idosos era bem maior que nos municípios do norte que possuíam
significativas taxas de crianças em suas propriedades. Vale ressaltar que nos 4 municípios a
taxa de escravos entre 15 e 41 anos, faixa etária de pleno auge na produtividade no trabalho
e na fertilidade, é semelhante, variando entre 15 e 16% para a idade de 15 a 21 anos, e 34 e
37% para as idades de 22 a 40 anos. A grande diferença, portanto, é que, em 1873, nos
municípios de Itambé e Nazareth na Mata Norte os escravos na faixa etária adulta tiveram
mais filhos nos últimos 14 anos. No mais, vale colocar que entre a população adulta, isto é,
acima de 15 anos, em Nazareth e Itambé, respectivamente, 68,1% e 67,7 % eram solteiros,
enquanto em Escada e Cabo, respectivamente, 76,8% e 85,6% de cativos foram registrados
como solteiros. De fato, os escravos dos municípios do Norte estavam construindo mais
famílias e tendo mais filhos, se encontrando, portanto, em pleno crescimento interno.
95
Calculando, através dos dados registrados pelo censo de 1872, a proporção de
crianças cativas entre 0-10 anos e as mulheres entre 16-40 anos, observamos os seguintes
números absolutos: De 0-10 anos – Nazareth: 857 - Itambé: 161 – Cabo: 246 – Escada:
495. Mulheres entre 16 e 40 anos – Nazareth: 1312 – Itambé: 554 – Cabo: 1094 – Escada:
843. Calculando as proporções, aproximadas, entre crianças e mulheres obtemos para
Nazareth: 0,65 crianças/mulher; Itambé: 0,29 crianças/mulher; Cabo: 0,22 crianças/mulher;
Escada: 0,58 crianças/mulher. A partir das proporções, percebemos que Nazareth possuía
uma maior taxa de fecundidade do que as outras. Vale ressaltar que Cabo possuía um
número alto de mulheres em idade reprodutiva e poucas crianças, já Nazareth possuía um
alto número de mulheres em idade reprodutiva e muitas crianças. A taxa de Escada também
é alta por conta do alto número de crianças em proporção com o número de mulheres.
Diante destes dados, sugerimos que Nazareth e Escada eram duas localidades onde as
comunidades escravas possuíam altos índices de fecundidade e que, portanto, no início da
década de 70 do século XIX, estavam em crescimento ou em decréscimo mais lento.
Em outra perspectiva analítica, as considerações sobre a faixa etária e os altos
índices de crianças existentes na Zona da Mata Norte leva-nos a refletir sobre as
repercussões que este perfil poderia causar na divisão do trabalho e na quantidade de
escravos economicamente ativos:
Quadro 17 – Profissões dos escravos registradas nas matrículas de 1873 e 1887

Municípios Profissão dos escravos


Lavradores ou Artista Jornaleiro Serviços Sem
agricultores Domésticos Profissão
1873
Nazareth 4.309 104 117 409 1.606
pop. total 6.545
Itambé 2.525 94 3 185 1.269
pop. total 4.076
Cabo 2.751 72 1 716 751
pop. total 4.294
Escada 5.167 73 16 918 216
pop. total 6.450
1887
Nazareth 3.160 1 35* -
pop. total 3.196
Itambé 755 1 61 -
pop. total 817
Cabo 1.527 21 350 -
pop. total 1.898
Escada 3.170 9 151* -
pop. total 3.330

96
*Classificação Jornaleiro ou serviço doméstico.
Fontes: Diretoria Geral de Estatística. Relatório e Trabalhos Estatísticos apresentados ao
Ministro e Secretário de Estado dos Negócios do Império. Rio de Janeiro, 30/04/1875. Diário de
Pernambuco, 24/11/1887. In: MELLO, José Antônio Gonçalves de. O diário de Pernambuco e a
História Social do Nordeste. Recife, Diário de Pernambuco, 1975, PP. 648 e 649.

Comparando proporcionalmente a porcentagem de escravos que trabalhavam na


agricultura em 1873 e 1887, verificamos que, em 1873, Itambé possuía 89,9%, depois
Nazareth com 87,2%, Escada com 82,8% e por último Cabo com 77,6% dos escravos. Em
1887, as porcentagens mudam um pouco: em primeiro lugar aparece Nazareth com 98,8%,
em segundo, Escada com 95,1%, logo em seguida, Itambé com 92,4% e, por último, Cabo
com 80,4% de escravos na agricultura. De fato, grande parte da população escrava que
trabalhava, isto é, sem contar os ―sem profissão‖, agia na agricultura, e este percentual
quase alcançou 100% nas vésperas da Abolição, principalmente, nas comarcas de Nazareth
e Escada.
Em 1873, quanto às porcentagens dos ―sem profissão‖, verificamos,
proporcionalmente: Itambé com 31,1% da população total, Nazareth com 24,5%, Cabo com
17,4%, e, por último, Escada com 3,3%. Obviamente, Escada que possuía 80,1% do total
dos escravos trabalhando na agricultura em 1873, é o que menos possuía escravos ―sem
profissão‖ no mesmo ano. Já Itambé, que possuía 61,9% do total dos escravos na
agricultura, aparece com 31% de seus escravos inativos economicamente. A comarca de
Nazareth tinha 65,8% de escravos na agricultura e 24,5% do total como inativos.
Certamente essas porcentagens estão relacionadas com o quadro anterior de escravos com a
faixa etária abaixo de 15 anos. Porém, vamos visualizar em números absolutos os perfis.
Nazareth, foco de nossa pesquisa, em 1873 possuía 1.606 escravos classificados
como ―sem profissão‖. Ao somarmos os escravos com idade abaixo de 15 anos e mais de
60 anos, prováveis escravos inativos na economia, temos o número de 2.554, quantidade,
portanto, maior que a indicada para os ―sem profissão‖. Como diferença, obtemos 948
escravos que trabalhavam e tinham idade até 15 anos (provavelmente os que tinham idade
acima de 7 anos) e/ou acima de 60 anos. Em outras palavras, 18,4% da população acima de
7 anos, eram crianças entre 8 e 15 anos ou idosos acima de 60 anos que trabalhavam
ativamente na economia nazarena. Ainda assim, 24,5% da população total de escravos eram
considerados ―sem profissão‖. De fato, em Nazareth no ano de 1873 existia um grande

97
reduto de crianças e ―inválidos‖ para o trabalho, e, por conta disso, todos os escravos
possíveis para o trabalho eram utilizados na economia, mesmo aqueles que fossem acima
de 60 anos ou uma criança entre 8 e 15 anos.
Se fizermos um cálculo hipotético dividindo essas 2.624 crianças (de 0 a 14 anos)
nos 200 engenhos de açúcar119, teríamos o número de 13 escravos crianças por engenho.
Todavia, sabemos através dos inventários que a distribuição não era igual, existiam
senhores com 1 ou 2 escravos e outros com 45 escravos; de qualquer forma, o número de
crianças escravas por engenho nesse período era significativo. A maioria dos escravos
morava na área rural como indica a matrícula de 1873, 6.461 escravos com residência rural
e 84 com residência urbana120. Com uma porcentagem de 31,9% de casados e/ou viúvos da
população adulta (acima de 15 anos) e com 38,2% de crianças até 14 anos, de fato a família
escrava nessa localidade estava estável, vivendo nos engenhos e sítios, e crescendo. Pelos
dados, na comarca de Nazareth esta possibilidade de estabilidade existia para os escravos,
que, nesse sentido, se fortificaram, formando famílias e se enraizando cada vez mais em
terras nazarenas.
Alta taxa de natalidade entre os escravos também podia agradar proprietários. Em
1874, por exemplo, a viúva D. Josefa Maria Marques Bacalhau, alforriou a escrava
Genoveva pelos bons serviços prestados e por ter dado 15 ―crias já criadas‖.121 Para os
senhores e senhoras, era interessante escravas que tivessem filhos, pois ajudava a aumentar
sua população cativa, e crescidos (criados), assim, prontos para o trabalho, era motivo até
mesmo para endossar uma liberdade ―concedida‖. Vale ressaltar que crias criadas eram
diferentes de crias ainda não criadas, em outras palavras, não prontas para trabalhar. No
mais, o estado de casado, isto é, os significados do núcleo familiar, podem ter sentidos mais
profundos para os escravos e, por outro lado, certas vantagens para os senhores. No entanto,
vale perceber como tal situação foi sendo construída cotidianamente. Sugiro que, nesse
período, nas terras dos engenhos, nas roças e nos sítios, os cativos se firmaram e criaram
seus núcleos, fato que nos traz o indício de que este esquema, de alguma maneira, era uma
boa opção de vida para os escravos.

119
Número estimado pela Câmara de Nazareth em 1870.
120
Diretoria Geral de Estatística. Relatório e Trabalhos Estatísticos apresentados ao Ministro e Secretário de
Estado dos Negócios do Império. Rio de Janeiro, 30/04/1875.
121
Notas cartoriais. Cartório de Nazareth. FUNDAJ/Recife.

98
Para Itambé, a soma de crianças até 15 anos mais idosos acima de 60 anos é de
1.670 e o número de sem profissão é de 1.269. Provavelmente, 401 escravos abaixo de 15
anos e acima de 60 anos agiam na economia local. Percentualmente, 31,1% da população
total de escravos eram ―inativos‖, na verdade eram crianças ainda novas para o trabalho, e
possivelmente, alguns idosos sem condições. De forma semelhante com Nazareth, Itambé
também possuía uma alta taxa de casados e viúvos, 32,3%, e uma grande quantidade de
crianças até 15 anos, 40,3%. No entanto, entre 1873 e 1887, Itambé perdeu 80% dos seus
escravos, enquanto Nazareth perdeu apenas 51,2%, prova de que a população escrava da
Zona da Mata pernambucana estava mais estável em Nazareth, e junto com ela a economia
canavieira, e que estes fatores, e mais um conjunto de outros, proporcionaram a
sobrevivência da comunidade escrava por mais tempo, até a véspera da abolição.122
Escada na Zona da Mata Sul possuía um perfil populacional semelhante ao de
Nazareth, isto é, perdeu 48,3% de seus cativos entre 1873 e 1887, mas possuía uma
porcentagem menor de crianças até 15 anos, 29%, para 38,2% de Nazareth, e também de
casados e viúvos, 23,2% da população acima de 15 anos, para 31,9% de Nazareth. Todavia,
se por um lado, ao calcular a porcentagem dos escravos atuantes no trabalho em cima do
número total da população escrava, verificamos uma grande diferença em 1873: Escada
com 80,1% dos escravos trabalhando na agricultura e Nazareth com 65,8%, e nos serviços
domésticos, Escada com 14,2% e Nazareth com 6,2%. Por outro lado, ao retirar os escravos
ditos ―sem profissão‖, alcançamos outro resultado: Nazareth com 87,2% e Escada com
82,8% dos escravos na agricultura, e no setor doméstico, Nazareth possuía 8,2% dos
escravos e Escada, 14,7%. Diante disso, percebemos que se retiramos do cálculo os
registrados como inativos na economia, a concentração de escravos na agricultura em
Nazareth aumenta ficando bem próxima à taxa de Escada. Já no setor de trabalho
doméstico, as posições se invertem. Assim, sugerimos que, no ano de 1873, Escada tinha
uma escravaria ativa economicamente maior do que Nazareth, por outro lado, a
concentração de escravos ativos na agricultura é maior em Nazareth do que Escada,
possíveis evidências de que o trabalho escravo era mais variado neste município
representante da Zona da Mata Sul, e na comarca de Nazareth localizada na Zona da Mata

122
Vale ressaltar que o município de Itambé foi escolhido para essa análise e realizamos a partir da
comparação com ele uma conclusão para a Zona da Mata Norte, pois este município e o de Nazareth eram os
dois que possuíam a maior taxa de casados e viúvos e de escravos até 15 anos.

99
Norte, os escravos em idade ativa de trabalho eram utilizados, em quase sua totalidade, no
trabalho da agricultura.
Quanto aos sem profissão, Nazareth, com sua alta taxa de 24,5%, passava longe da
taxa de Escada que era de 3,3% da população total.123 De fato, em 1873, Escada, com maior
porcentagem de população escrava adulta entre 41 e 50 anos (13,6%) do que Nazareth com
7,2%, caracterizava-se como uma sociedade escravista adulta, imensamente aproveitada na
economia local e ativamente trabalhando na agricultura ou nos afazeres domésticos.
Nazareth tinha outro perfil, possuía mais de 60% dos seus escravos na agricultura, mas com
cerca de 38% de seus escravos em idade inferior a 15 anos. Ambos chegaram com números
absolutos de escravos altos para 1887, perderam relativamente pouco entre 1873 e 1887,
porém, seus caminhos foram diferentes: econômica, social, política e culturalmente.
A minha investigação vem justamente aprofundar a análise do perfil de uma
sociedade canavieira que se manteve economicamente com engenhos banguês e com uma
comunidade escrava enriquecida por laços familiares. Nazareth, portanto, carrega um perfil
interessante para pensarmos permanências de possíveis estruturas paternalistas entre
classes, e dentro delas, suas negociações, e refletirmos sobre tradições escravas sócio-
culturais que sobrevivem apenas quando existem laços fortes, como os laços de parentesco.
Certamente por aí temos um bom caminho para entendermos a trajetória da classe
proprietária da sociedade escravista canavieira e também as histórias dos trabalhadores da
cana brincantes de Cavalo Marinhos e Maracatus.
Ao mesmo tempo, as evidências de que na Comarca de Nazareth na década de 70
havia uma grande quantidade de famílias escravas, crescendo e se fixando, e alta
porcentagem de alforrias, talvez nos indiquem algumas possibilidades de como se
construíram as culturas de luta escrava da Zona da Mata Norte de Pernambuco. Como
verificou Slenes, nas zonas do café no Centro Sul e Nordeste, a família monogâmica estável
desenvolveu uma viável instituição entre os escravos e jogou uma importante regra na
socialização da proporção substancial dos cativos. Assim, foram capazes de manter um
forte sentido de identidade como indivíduos e como comunidade do que no caso das áreas
de não-plantation.124

123
Ainda que estes valores possam conter falhas, ao verificar os dados da matrícula de 1873 e do censo de
1872, constatamos que a população escrava infantil de Nazareth é maior do que em Escada.
124
SLENES, op. cit., 1975, pp. 574 a 578.

100
1.5 ) Parece, mas não é: o futuro da agricultura pernambucana em discussão e os
trabalhadores em pauta

―Parece, mas não é‖ é uma figura (personagem) do folguedo do Cavalo Marinho,


manifestação cultural típica da Zona da Mata Norte de Pernambuco e realizada,
―tradicionalmente‖, pelos trabalhadores rurais da cana. A grande peculiaridade deste
personagem é que o brincante ao vesti-lo coloca duas máscaras na cabeça, uma no rosto, na
frente, e outra atrás da cabeça. A imagem, portanto, que se estabelece é de um ser que
possui duas faces: parece que é uma coisa, mas ao virar é outra. Em outras palavras, duas
faces da mesma moeda. No teatro popular do Mamulengo, outra manifestação típica na
mesma região e realizada pelos mesmos trabalhadores, também podemos observar um
boneco com duas faces, no entanto, neste caso, este se chama Político. Provavelmente, são
figuras e bonecos produzidos pelos trabalhadores da cana que foram inspirados em
―figuras‖ reais próprias da Zona da Mata pernambucana.
Assim, o trocadilho expressado no título se encaixa aqui duplamente.
Primeiramente, porque a manifestação trata-se de uma construção cultural inserida no
contexto social foco desta pesquisa. Conjunturas locais de uma realidade açucareira
histórica de proprietários, capitães, senhores, usineiros, vereadores e prefeitos de muitos
tipos, características estas que foram costumeiramente reconstruídas na cultura popular e
reproduzidas na arte.
O segundo encaixe ocorre quando observamos a dinâmica sócio-política do final da
década de 70 e início da de 80 do século XIX na Mata Norte Pernambucana,
especificamente, na comarca de Nazareth. As discussões no Congresso Agrícola de 1878,
principalmente, liderada por Henri Milet, depois a rejeição eleitoral de Joaquim Nabuco e
em seguida sua vitória pelo 5º distrito, em 1885, leva-nos a pensar qual a face da cultura
política pernambucana nas vésperas da abolição, ou talvez, as faces?
Diante disso, não estaria completa a análise da sociedade da Zona da Mata
Pernambucana do final do Oitocentos, se não incluíssemos uma investigação a respeito dos
pensamentos, das discussões e das propostas que os proprietários, principalmente de
Pernambuco, desenvolveram diante da circunstância sócio-econômica deste período,
momento em que a cultura canavieira sofria as consequências da queda do preço do açúcar

101
ocorrido na década de 1860, que levou a um baixo rendimento na década seguinte, em
1870, acrescido também pela crise da Europa e EUA. Episódios delicados, que tiveram seus
respiros em 1880, porém, com nova crise em 1890.125 Fase de crise do açúcar, portanto, que
gerou uma série de discussões entre proprietários, políticos e intelectuais das províncias
brasileiras que buscaram analisar suas causas e suas soluções. O grande evento nesse
sentido foi o Congresso Agrícola do Recife que ocorreu em outubro de 1878. O ano de
1878 representou uma grande encruzilhada de encontros marcados ora pelo acaso, ora pela
necessidade; todos eles desfavoráveis ao ―Norte‖126 que começou, principalmente, com o
levante do Quebra-Quilos (rebeliões sociais aparentemente motivadas pela aplicação, em
1872, da Lei de 26 de junho de 1862 que impõe no Brasil o sistema métrico decimal), em
1874 – um dos inúmeros movimentos locais de protesto social face ao descaso do Governo
Imperial frente aos problemas regionais.
Acrescido a esses fatores, em 1877-1878, ocorreu uma das mais devastadoras secas
nordestinas que agravou sensivelmente as condições da produção, atingindo igualmente os
negócios comerciais, as secas de 1877 -1878 e de 1888-1889. Há estimativas que somente a
seca de 1877-1878 teria sido responsável pelo desaparecimento de 300 a 500 mil pessoas,
das quais 150 mil, pelo menos, teriam morrido de fome. Década, portanto, alvo de uma
série de problemas sócio-econômicos que justificaria a realização de um congresso
contestador dos agricultores e de movimentos de secessão como observamos nas falas
registradas do mesmo.
A Sociedade Auxiliadora da Agricultura de Pernambuco (SAAP) e a Associação
Comercial Beneficente de Pernambuco (ACBP) foram autoras do congresso. Pretendiam
reunir os grandes proprietários agrícolas da região e, por sugestão de Henri-Milet127, os
pequenos produtores a fim de analisarem a crise da lavoura e de conhecerem a matéria

125
EISENBERG, op. cit., 1977, p. 50-54.
126
Vale colocar que no final do século XIX ainda não se utilizava o termo Nordeste para designar a área do
Maranhão à Bahia. Segundo Mello, ainda durante a República Velha, tendia-se a pensar no norte como um
vasto bloco e, em 1937, por exemplo, Gilberto Freyre referia-se ao ―norte maciço e único de que se fala tanto
no sul com exagero e simplificação‖, aludindo a um sul tão pouco monolítico quanto ao norte. O próprio autor
Evaldo Mello, em seu estudo, utiliza o termo norte agrário para designar as áreas de grande lavoura de
exportação, do Maranhão ao Recôncavo baiano, especializadas no fabrico do açúcar e no cultivo do algodão
(Mello, Evaldo Cabral de Mello. O norte agrário e o império – 1871-1889. Rio de Janeiro, Topbooks Editora,
1999, p. 14-16).
127
MARSON, Izabel. O império da conciliação: política e método em Joaquim Nabuco – a tessitura da
revolução e da escravidão. Campinas, Tese de Livre Docência UNICAMP/IFCH, 1999, p. 294.

102
contida no questionário que acompanhou o ato do Governo Imperial (convocando o
Congresso Agrícola do Rio de Janeiro)128, e também abranger questões relacionadas aos
braços nacionais e de interesses da agricultura de Pernambuco.
A ideia inicial desse encontro foi uma resposta-contestatória ao Congresso do Rio
de Janeiro, o Congresso de Sinimbu, convocado pelo Ministro da Agricultura, Comércio e
Obras Públicas, João Lins Vieira Cansansão de Sinimbu, nordestino de nascimento, em 12
de junho de 1878. O decreto imperial, no entanto, restringiu o Sinimbu apenas às províncias
do ―Sul‖, sinais de que os objetivos do encontro eram centrados, principalmente, nas
questões ligadas à lavoura do café, produto agrícola que tomou proporções hegemônicas
nas décadas de 1870 -1880.
Contendo ricos indícios sobre que atmosfera político-ideológica as ações repressivas
das autoridades e as ações de revolta, ou de passividade, dos trabalhadores, as falas do
Congresso de Recife sugerem-nos caminhos ideológicos e propostas de ação dos
proprietários que produziam açúcar e precisavam continuar produzindo, no entanto,
estavam sentindo na pele a nova frente de trabalhadores que iriam tomar a cena. Indica-nos,
sobretudo, medos e problemas implícitos nas ideias de superação de uma crise que não era
apenas econômica, mas também uma crise na estrutura sócio-política escravista e na grande
lavoura exportadora.
Segundo os estudos de Izabel Marson, as atas das reuniões registraram uma
competição interna no Congresso, que antagonizou pequenos e médios produtores e
financistas associados a senhores de engenho de maiores recursos. Para a autora,
representando estes últimos se colocou Antonio Coelho Rodrigues. Do outro lado, a figura
que representou os pequenos e médios agricultores foi Henrique Milet. Os depoimentos do
engenheiro foram contundentes: a renovação das práticas agrícolas, em grande escala, não
fazia parte das possibilidades e dos anseios imediatos da maior parte dos proprietários da
região, até porque, ―para suas pequenas empresas, era desnecessária naquele momento‖.
128
A matéria constituía nas seguintes questões: 1º Quais as necessidades mais urgentes e imediatas da grande
lavoura?; 2º É muito sensível a falta de braços para manter ou melhorar e desenvolver os atuais
estabelecimentos da grande lavoura? 3º Qual o modo mais eficaz e conveniente de suprir esta falta? 4º Poder-
se-á esperar que os ingênuos, filhos de escravos, constituam um elemento de trabalho livre permanente na
grande propriedade? No caso contrário, quais os meios para reorganizar o trabalho agrícola? 5º A grande
lavoura sente carências de capitais? No caso afirmativo, é devido à falta absoluta deles no país ou à depressão
do crédito agrícola? 6º Qual o meio de levantar o crédito agrícola? Convém criar estabelecimentos especiais?
Como fundá-los? 7º Na lavoura tem-se introduzido melhoramentos? Quais? Há urgência de outros? Como
realizá-los? MARSON, op. cit., 1999, p. 295.

103
Revelou também que a argumentação fundada no laissez-faire, na ciência, na transferência
dos conhecimentos praticados na Europa e na condenação da rotina e da falta de instrução
emergia como proposição política identificada com grandes financistas e proprietários,
signatários, no Império, de uma orientação econômica liberal. No entanto, em sua
exteriorização, nos Pareceres e Relatórios oficiais, aparecia generalizada a toda sociedade,
desqualificando e impondo-se sobre as solicitações de uma já existente pequena
propriedade.129
Dentro desse campo de discussões gerado nesse período, Izabel Marson,
contrapondo as falas de Joaquim Nabuco e Milet, buscou encontrar as razões pelas quais o
eleitorado pernambucano tivesse resistindo à candidatura abolicionista nos pleitos de 1878
e nos seguintes de 1884, 85 e 86. Segundo a autora, enquanto Nabuco, enredado na
vivência parlamentar, pensou um projeto de reforma da política da sociedade monárquica a
partir do argumento ―feudalismo/latifúndio/servidão/escravidão‖, Milet definiu origens e
soluções para a ―crise‖ da lavoura das províncias do norte especialmente envolvidas em
questões práticas da produção do açúcar. Embora reiterando a especificidade da situação
brasileira e os problemas da herança da escravidão, ele recusou imagens inscritas em O
Abolicionismo e nas Conferências proferidas por Nabuco nas campanhas abolicionistas.
Conforme Marson demonstra em seu livro, os escritos de Milet sintonizam reivindicações
de agricultores e senhores de engenho de modestos recursos, em nome dos quais debateu
em emissários da Câmara, com financistas, com outros proprietários e com o projeto de
Nabuco.130
Para Marson, o diálogo entre eles se restringia a alguns pontos, como a defesa do
direito de associação, a recusa aos trabalhadores asiáticos e o emprego de subsídio à
imigração europeia, além da condenação aos impostos. Discordavam em todas as outras
proposições: nas expectativas sobre a monarquia e a ―classe média‖, nas formas de
incentivo do Estado, no perfil adequado para os engenhos centrais, na concepção da política
monetária, da escravidão, do trabalho livre e dos direitos dos proprietários de escravos.131
Milet, por exemplo, contrapôs a preservação de alguns protecionismos à intervenção do

129
MARSON, op. cit., 1999, p. 303-304.
130
MARSON, Izabel. Política, história e método em Joaquim Nabuco: tessituras da revolução e da
escravidão. Uberlância, EDFU, 2008, p. 194.
131
MARSON, op. cit., 2008, p. 254

104
Estado na área financeira, à emissão de títulos, à criação de uma circulação fiduciária
controlada e à redução dos impostos e dos juros. Condenou à exaustão os defensores do
laissez-faire ou os ―aclimatores‖ das instituições estrangeiras.132
No calor dessas condenações, o projeto abolicionista de Nabuco ressoava muitas
sugestões dos críticos dos monopólios, dos adeptos do laissez-faire e da importação de
ortodoxias econômicas liberais. Por outro lado, como afirma Izabel Marson, ―não
poderíamos reconhecer Milet, e em muitos outros proprietários de escravos, o perfil
apresentado em O Abolicionismo, onde aparecem como obstáculos ao progresso (pela
recusa a qualquer inovação), membros de uma casta de senhores, aliados dos
Correspondentes, usufrutuários do monopólio da escravidão e da grande propriedade
territorial e responsáveis pelos trabalhadores enclausurados, pelos servos da gleba, pela
riqueza estéril e efêmera, porque reaplicada em escravos e no luxo; rotineiros,
imprevidentes desinteressados.‖133
Assim, para a autora, no confronto entre os cultuadores do laissez-faire e inovadores
da agricultura e da indústria do açúcar de um lado, e os rotineiros, atrasados e partidários
das soluções nacionais de outro, o programa de Nabuco estava mais próximo das
expectativas dos grandes agricultores com recursos para implantar os maquinismos
aperfeiçoados e recorrer aos trabalhadores livres do que das carências dos pequenos e
médios proprietários. Como Milet bem defendeu em seus discursos, a sobrevivência destes
proprietários dependia da preservação da rotina, da proteção do Estado e da manutenção da
propriedade dos escravos ―entendida como condição sine qua non das fábricas no presente
e, no futuro, dos engenhos centrais montados com associações de pequenos produtores.‖134
Nesse sentido, Milet divergia de Nabuco especialmente na maneira de conceber a
escravidão. Enquanto o abolicionismo tornara a propriedade escrava ―crime e monopólio‖,
o engenheiro e senhor de engenho a compreendia como direito inalienável do proprietário
no presente, passível de indenização, e forma de trabalho em gradativa extinção. A
afinidade com essa ideia o tornou um combativo emancipacionista, defensor do fim gradual
do cativeiro pela morte dos trabalhadores existentes ou mediante a alforria indenizada com

132
MARSON, op. cit., 2008, p. 255
133
MARSON, op. cit., 2008, p.255.
134
MARSON, op. cit., 2008, p. 256.

105
135
o consentimento dos proprietários. Para Marson, as dificuldades de Nabuco eleger-se
deputado por Pernambuco no pleito de 1878 e nos seguintes (1884, 1885 e 1886) denotam
o quanto as ideias de Milet tinham ressonância junto aos eleitores.136
A preservarem-se tais cobranças – a abolição gradual, a remodelação lenta e
generalizada dos banguês e os engenhos centrais para o final do século – assim como as
proposições de Nabuco na legislatura 1878-81 e no O Abolicionismo, o jovem deputado não
representaria a Província no Parlamento. Porém, em 1884, para concorrer pelo 1º Distrito
da cidade de Recife, significativas alterações haviam ocorrido em seu discurso, nos partidos
políticos e nos negócios do Império. Nas conferências e nos meetings, ele apresentou
argumentos emancipacionistas partilhados por deputados liberais, conservadores e
republicanos, aos quais acrescentou ideias do engenheiro André Rebouças sobre a pequena
propriedade e outras solicitações como a lei agrária e a formação da classe média.137
Nabuco aproximou-se das sociedades abolicionistas, de setores republicanos e dos
remanescentes dos cinco mil – artistas, pequenos comerciantes e funcionários públicos –
parceiros essenciais na campanha contra o cativeiro. Por outro lado, o abolicionista
moderado – prevendo a liberdade imediata dos escravos com indenização – ganhou apoio
de comerciantes e financistas expressivamente representados no Congresso Agrícola de
1878, e esperançosos nos negócios propiciados pela instalação dos maquinismos
aperfeiçoados, tanto na remodelação dos banguês quanto na montagem de engenhos
centrais como sociedade de grupos restritos: ―Ou seja, a abolição (com ressarcimento)
ganhava adeptos incondicionais e simpatizantes nas duas extremidades do colégio eleitoral
do Recife, entre os eleitores urbanos, negociantes e entre os senhores de engenho‖138.
Joaquim Nabuco, no entanto, não assumiu o cargo e concorreu novamente em 1885
e dessa vez elegeu-se pelo 5º distrito. Nesse resultado, certamente influíram duas
orientações específicas: ―a decisão das lideranças da Corte de reunificar o partido numa
Câmara que decidia, naquele momento, sobre a lei hipotecária e dos sexagenários; e a
intervenção da chefia liberal na Província em favor de Nabuco‖.139 No mais, influiu ainda a
extrema moderação da campanha: anunciou-se um programa a contento dos senhores de

135
Idem, op. cit.
136
MARSON, 2008, p. 261.
137
Idem, op. cit.
138
MARSON, op. cit., 2008, p. 261.
139
MARSON, op. cit., 2008, p. 266.

106
engenho e produtores de algodão, pois excluía os temas polêmicos apresentados no pleito
do Recife (o incentivo ao capital estrangeiro, a abolição imediata sem indenização, a lei
agrária e ―a crítica aos redutos eleitorais no interior, na qual Nabuco, imitando os liberais
ingleses, os denominara por burgos podres‖).140
Aqui vale citar na íntegra os escritos de Nabuco para o 5º Distrito que o elegeu em
1885:

(...) se lerdes tudo o que tenho dito e escrito sobre o movimento, vereis que
nunca fui o homem dos escravos contra os senhores, mas somente da liberdade
contra a escravidão, e que para mim foram sempre os interesses supremos do
país: o desenvolvimento contínuo e ininterrupto da produção da segurança e
influências sociais dos proprietários condição preliminar no presente da
harmonia entre as duas raças que foram e continuam a ser grandes fontes da
população brasileira (...) moralizar não é demolir, é consolidar e desenvolver a
única riqueza que entre nós é principalmente nacional e não estrangeira – a da
terra. A emancipação sem desorganização do trabalho, como pedimos sempre,
nós abolicionistas, alguns até propondo um estado intermediário de servidão da
gleba, que eu rejeito, é o maior presente que um estadista brasileiro possa fazer
em nossos dias à classe agrícola.141.

Esse discurso moderado de Nabuco foi dirigido aos eleitores da comarca de


Nazareth, representantes do 5º distrito, isto é, aos proprietários de terras, de escravos e
donos de engenhos banguês que, nesse período, como observamos, possuíam os maiores
números de escravos da região da mata canavieira, e que, portanto, certamente, não
estavam tão dispostos a aderir ao discurso abolicionista de Nabuco. Donos de engenhos
banguês, esses proprietários pretendiam empregar o fim da escravidão com pagamento de
indenização. ―Conforme bem expressara Milet, a emancipação esperada pelos médios e
pequenos proprietários recusava o fim imediato do cativeiro, pois eles não podiam
prescindir nem do trabalho de seus escravos nem da propriedade abundante da terra‖. Sem
concessões especiais de crédito do Estado intermediadas pelos correspondentes, não
levantariam empréstimos nos bancos hipotecários, não melhorariam seus engenhos e a
produção de açúcar, não poderiam pagar trabalhadores livres nem aguardar a fundação de
engenhos centrais como associação de produtores. Nesse quadro, a depender das bases
agrárias do partido liberal em Pernambuco, o abolicionismo não teria sucesso na Província.
Assim, como coloca Marson, as efetivas necessidades do eleitorado liberal do interior da

140
Idem, op. cit., p. 267.
141
―Aos senhores do 5º distrito‖. Jornal do Recife, Recife, 26 de maio de 1885. Apud MARSON, op. cit.,
2008, p. 268.

107
Província, para quem foi fabricada a moderação desse discurso, eram incompatíveis com os
princípios básicos do abolicionismo propostos por Nabuco: a supressão da escravidão e o
confisco da propriedade escrava. Por conta dessa não aceitação, Nabuco, decepcionando
uma vez mais aqueles eleitores, voltou a pugnar fazendo oposição ao gabinete
Saraiva/Cotegipe nos três meses em que atuou no Parlamento.142
Através das conclusões de Izabel Marson podemos compreender os motivos
políticos que levaram o 5º Distrito de Pernambuco que abrangia Nazareth a eleger Joaquim
Nabuco no pleito de 1885 e começar a entender o perfil sócio-econômico dos senhores que
votaram contra e a favor de Nabuco às vésperas da abolição. No mais, o contraponto dos
discursos de Milet e das falas no Congresso de Recife de 1878 dos representantes da classe
dos grandes proprietários, traz-nos mais detalhes de uma atmosfera política que tem
ligações diretas com as atitudes e as decisões dos senhores de engenhos da região
canavieira, e especificamente, sobre as decisões políticas dos proprietários na região de
Nazareth, foco dessa pesquisa. Adeptos de um discurso abolicionista moderado, esses
donos de escravos e proprietários de engenhos banguês alimentavam uma estrutura social
que condizia com seus discursos políticos ou às vezes se faziam ambíguos, num jogo sócio-
político que nos revela suas atitudes na macropolítica, como na micro, isto é, na política
cotidiana, nas relações entre eles e seus cativos, libertos e livres, e com outros proprietários.
À luz das reflexões de Marson, podemos compreender também a campanha abolicionista na
imprensa nazarena e nas falas de muitos proprietários a partir de 1883, bem como as
intenções sócio-econômicas destes. A questão da crise do açúcar tão discutida pela
Comissão Parlamentar em 1875 e no Congresso de 1878 traz-nos mais detalhes desse
universo político.
Segundo Izabel Marson, o Parecer sobre a crise da lavoura elaborado pela
Comissão Parlamentar em 1875 citava a falta de conhecimentos profissionais como a razão
mais importante do ―atraso‖ e ―decadência‖ da lavoura. Baseando-se em argumentos
escolhidos a dedo dos Relatórios Provinciais, a Comissão Especial da Câmara concluiu
que os agricultores do Império atuavam de forma ―rotineira‖ devido à falta de instrução e
de conhecimentos agrícolas: não praticavam rotatividade das culturas (insistiam num
mesmo produto, provocando a baixa de seu preço e o esgotamento do solo); não tratavam

142
MARSON, op. cit., 2008, p. 269.

108
o solo com adubos e afolhamento; não recorriam a máquinas aperfeiçoadas. Em suma, a
questão essencial era de origem técnica e comportamental – faltavam aos lavradores
conhecimentos e disposição para mudar. 143
Discorrendo pelas outras causas da crise da lavoura, a Comissão elencou os
seguintes fatores: em segundo, a falta de estradas de ferro que auxiliaria no transporte e
escoamento da cana; em terceiro, os elevados impostos e exportação, e por fim, a carência
de braços.
Quanto à questão da carência de braços, segundo Marson, o Parecer relacionou sua
origem a três circunstâncias específicas:

A primeira em uma decorrência da Lei de 28 de setembro de 1871,


responsável pelo desencadeamento de um processo de emancipação gradual da
escravatura que dentro de pouco tempo estaria completa; a segunda, as
dificuldades que aborígines, ingênuos e trabalhadores nacionais colocavam para
substituir os escravos nos trabalhos da lavoura; e, a terceira, a inadequação de se
recorrer as imigrantes chins e coolies, assim como precárias condições que o
Brasil oferecia para atrair colonos europeus. Comentando os prováveis
substitutos dos escravos, o Parecer descarta a possibilidade de se recorrer, de
imediato, aos aborígines já que habitados à vida nômade e possuídos de um
profundo horror e instintiva repugnância ao homem civilizado, não se poderia
esperar muito deles que passassem pro um programa de reeducação. Também
não se poderia contar significativamente com os escravos alforriados e com os
ingênuos porque impacientes de gozar da liberdade, abandonarão os engenhos,
fazendas e fábricas para tornarem-se proprietários por sua conta (quando tiverem
pecúlio) ou para internarem-se nas Matas, vivendo na indolência, da caça e da
pesca, suficientes para sua subsistência.144

Segundo o Parecer, a garantia de mão de obra estava realmente em risco.


Diferente das falas de Milet e de alguns proprietários no Congresso de Recife, para a
comissão parlamentar realmente existia a carência de mão de obra e esta situação
estava intrinsecamente relacionada com o processo legal de libertação dos escravos e
com o comportamento destes em liberdade. Não havia, na visão dos pareceristas, uma
garantia de que ex-escravos continuariam em seus trabalhos antigos.
No entanto, um grande ponto de divergência entre a visão do governo e a de
alguns congressistas era de que o trabalhador nacional não poderia resolver a carência
de braços no país, por ter horror ao trabalho manual que o escravo ―desairou‖ sendo,

143
MARSON, op. cit, p. 257.
144
MARSON, op. cit, p. 266. Marson retirou os trechos do texto de Milet Auxílio à Lavoura e Crédito Real.
Pernambuco, Typ. Do Jornal do Recife, 1876.

109
portanto, difícil aproveitá-lo como ―cooperador da cultura e da produção‖. Ao mesmo
tempo, seus proprietários eram:

(...) despreparados porque apegados às práticas tradicionais e à rotina, não


contribuíram em nada para a superação desta aversão, pois monopolizavam mais
terras do que podiam cultivar e se recusavam a vendê-las ou aforá-las de forma a
reeducar os trabalhadores, criando vínculos entre eles e a propriedade. Estes
proprietários enxergavam o agregado como um antagonista e, quando o
aproveitavam, faziam-no mal; recorriam a métodos rotineiros que não
melhoravam a produção, sendo que eles mesmos não conheciam as melhores
técnicas agrícolas. Os pequenos proprietários, por sua vez, também seguiam a
tradição e a rotina, produziam muito pouco e viviam pobremente em choupanas.
145

Como coloca Izabel Marson, a Comissão reconheceu como a melhor solução para a
escassez da mão de obra o incentivo à imigração europeia. No entanto, ressaltava o
problemático relacionamento entre os imigrantes e a escravidão, uma vez que dele também
resultava a desvalorização do trabalho manual. A lógica da necessidade da ―domesticação‖
do trabalhador é nítida. Para os congressistas, no entanto, introduzir o estrangeiro não era
necessário; era preciso criar códigos legais para controlar os trabalhadores nacionais. Por
outro lado, a presença do escravo e do ingênuo no trabalho trazia um hibridismo
preocupante para os parlamentares: sem escravos, ruim; com eles pior ainda.
Ao mesmo tempo, o fato unânime no Congresso de Recife de que era necessária a
implementação de maquinaria agrícolas enfatiza como os representantes dos pequenos,
médios e grandes idealizavam já em meados da década de 70 do XIX uma nova estrutura
rural açucareira; outra estrutura social também: sem escravos. Um novo mundo do trabalho
estava por vir, e os proprietários planejavam amenizar seus impactos.
Como descreveu Eisenberg, a produção da cana e, assim, a sobrevivência da
sociedade canavieira pernambucana por décadas foi sustentada manualmente e com o
conhecimento do escravo:

A lavoura da cana era altamente trabalho-intensiva. Os agricultores


mandavam grupos de escravos, com enxadas – em julho, agosto e início de
setembro para as terras montanhosas e entre setembro e novembro às ricas
várzeas ou terras ribeirinhas, para que plantassem curtos pedaços de canas em
sulcos. Em duas semanas os nós da cana deitavam raízes e germinavam. Os

145
Idem, op. cit., p. 167.

110
escravos, com suas enxadas e foices, afofavam o solo após cinco semanas,
erradicando o enço e as folhas baixas das hastes da cana, umas duas ou três
vezes. O arado, a capinadeira e a grade não eram usados, de modo geral, embora
os plantadores de cana da Louisiana e Cuba já o empregavam na década de 40.
Em Pernambuco, os agricultores utilizavam nas várzeas, toscos arados franceses,
alemães e norte-americanos, mas ainda confiavam nas enxadas para cavar os
sulcos nas encostas das colinas – alegavam que troncos de árvores e raízes
impediam o emprego do arado. 146

A maior mecanização nos engenhos era no transporte (cavalos, mulas e carros de


boi) e após 1870 chegaram as ferrovias que permitiam a locomoção de grandes quantidades
de cana dos canaviais aos engenhos. Também nesse período, os donos de engenho
introduziram as moendas a vapor.147 Foi neste momento que, para Eisenberg, o atraso da
modernização foi influenciado diretamente pelo tipo de mão de obra utilizado:

A escravidão proporcionava oferta de trabalho relativamente abundante e


barato, assim estimulando a tecnologia trabalho-intensiva, tanto no campo
quanto nos engenhos. Segundo, os senhores de engenho relutavam em ensinar ao
escravo tecnologias mais adiantadas, em parte, porque eles próprios eram
ignorantes e em parte porque temiam colocar em mãos indiferentes, ou hostis,
maquinaria valiosa. O trabalhador livre, por sua vez, dadas as limitadas
oportunidades educacionais ou a falta delas, era um pouco mais apto a operar e a
manter maquinaria moderna.148

Podemos esclarecer que para congressistas e pareceristas de modo geral, existia


uma crise no setor açucareiro de caráter econômico e também social, uma vez que estavam
sendo propostas novas formas de relações de trabalho com novos trabalhadores. Porém,
também devemos ressaltar que novas relações entre proprietários igualmente precisavam
nascer. As divergências eram claras e constantes; os ataques, muitas vezes, eram frontais.
Parte da crise deste setor advinha justamente porque ali não existia uma classe social e
econômica homogênea, e sim, uma grande classe de proprietários heterogênea que estava
prestes a rachar, e ainda que isso fosse explícito, não necessariamente fora proposto o
contrário, isto é, relações mais harmoniosas ou de fortalecimento. Não era de preocupação
por parte dos senhores proprietários as diversas disputas e rivalidades dentro da classe. Na

146
EISENBERG, op. cit., 1977, p. 60.
147
Por volta de 1871, 6% dos 440 engenhos que transportavam açúcar através da Recife and San Francisco
Raway empregavam energia a vapor; por 1881 a cifra comparável era de 21,5% dos 609 engenhos e por 1914
dos 2.288 engenhos dos estado 34% usavam vapor, assim com todas as 62 usinas modernas. Idem, p. 62.
148
EISENBERG, op. cit., 1977, p. 64-65.

111
verdade, nas falas dos oradores, ocorria justamente o inverso: a constante afirmação de que
dentro da classe senhorial existia mais de um perfil sócio-econômico.
No âmago dessas discussões a respeito da mão de obra destacamos dois oradores do
Congresso de 1878: Henrique Augusto Milet e Dr. Antônio Coelho Rodrigues. Ambos
desenvolveram discursos sobre o imigrante, o índio, o escravo, o ingênuo e o trabalhador
nacional que nos indicam, respectivamente, visões dos defensores dos pequenos produtores
e dos grandes proprietários de terra da época.149
O orador da grande lavoura, o professor da Faculdade de Direito do Recife, Dr.
Antônio Coelho Rodrigues, piauiense de nascimento, trouxe um discurso sobre a mão de
obra livre pautado, sobretudo, na sua legalização, isto é, no seu controle social através da
regulamentação e de contratos sociais. A preocupação era, portanto, como controlar os
livres, mais do que uma preocupação de uma possível falta de mão de obra decorrente do
fim gradual da escravidão. Rodrigues taxava os livres como manipuladores:

Eles tem consciência, portanto, do seu valor de ocasião e fazem-no pagar


bem caro, às vezes mesmo regateado. Haveis de dar-lhe casa e sítio para
morarem quase sempre de graça, terras para cultivar e, de quando em quando
algumas festas, e uma vez por outra alguma inspetoria de quarteirão, ou qualquer
outro emprego, embora mesquinho e gratuito, ou mal retribuído.
E, se o senhorio desgosta-o, o vizinho está sempre pronto a acolhê-lo de
braços abertos, não tanto por aumentar o número das suas cifras, quanto por
acinte ao outro vizinho. 150

As falas de Coelho Rodrigues, possivelmente, expõem uma situação em que o


trabalhador livre aparenta ser um impasse, um problema para os proprietários e, ao mesmo
tempo, a única opção uma vez que estes dependiam daqueles para o sucesso político. O
discurso de Rodrigues sugere uma possível encruzilhada vivida pelos proprietários. Poucas
saídas para um escravismo com dias contados atrelado a uma disputa cotidiana da classe de
agricultores, que ao invés de se unirem, nas palavras do orador, alimentavam-se de rachas.
Pequenas disputas, todavia, que, segundo Rodrigues, teriam como grande estopim o ―mal
comportamento do trabalhador livre‖ e não diferenças intrínsecas à sua classe.
O orador ainda acusa os livres de imorais, incapazes de seguir regras e criar raízes:

149
Para mais informações sobre a mão de obra e o Congresso Agrícola de 1878, ver: EISENBERG, op. cit.,
1989 e MARSON, op. cit., 2008.
150
Trabalhos do Congresso Agrícola do Recife. Outubro de 1878. Recife, Fundação Estadual de Planejamento
Agrícola de Pernambuco – CEPA –PE, 1978, p.91. Biblioteca/AEJE/Recife.

112
Esses indivíduos, que não são para desprezar-se, nem adquirem raízes no
solo nem espírito de família, e levam uma vida quase nômade, contraindo
hábitos de ociosidade, dissipação, imoralidade e anarquia, que os levam
facilmente ao crime, donde não raro saem impunes, graças à intercessão do novo
senhorio. Um terço da população válida dos nossos sertões e a massa recrutável
das povoações do litoral está em condições semelhantes; porque nossas leis e
mais do que elas nossas autoridades, e mais ainda do que estas nossos
depravados costumes políticos sancionam até certo ponto a profissão de vadio e
o direito de ser preguiçoso. As coisas têm chegado a tal ponto que para muitos
homens pobres a única linha divisória entre o livre e o escravo é que este é
obrigado a trabalhar e aquele não. 151

Onde estariam as regras para esse povo? Como controlá-los se não podiam obrigá-
los a trabalhar? Certamente, seriam essas as grandes perguntas de Coelho Rodrigues. O
temor do fim da escravidão e o que fazer com ―tanta liberdade‖ está óbvio nas palavras do
autor. É interessante perceber que, através das palavras do orador, observamos a existência
de um temor na situação em que um agricultor ao rejeitar os serviços de um trabalhador,
por considerar ele preguiçoso ou desobediente, o vizinho dele o aceitaria. O temor advinha
então não da baixa oferta de empregados, e sim, na forma moral de selecioná-los como
eficazes ou não, isto é, nos ―depravados costumes políticos‖. E aí levantamos a questão:
faltava mão de obra em Pernambuco nos últimos anos da década de 70 do século XIX, ou
faltava um discurso e uma prática comum entre os proprietários sobre e de como lidar com
a mão de obra disponível?
Para Rodrigues, não obrigação de trabalho e ação preguiçosa eram características
dos trabalhadores livres, dos lavradores e dos proprietários dos banguês. Assim, contestou
Henrique Milet:

(...) o Sr. dr. Coelho Rodrigues, de envolta com suas verdades, duras mas
salutares, que dispensou ontem às diversas classes da nossa sociedade e as quais
não deixei de aplaudir quando falou do luxo e da preguiça, irrogou aos nossos
agricultores uma pecha que não merecem, pelo menos não é aplicável ao maior
número deles. A maioria dos agricultores levantam-se antes do dia amanhecer e
trabalham sem descanso até alta noite.152

151
Idem, p. 91.
152
Trabalhos do Congresso Agrícola de Recife, op. cit., p. 130.

113
Tratava-se de classes diferentes, sendo que muitas vezes eram julgadas de forma
semelhante pelos grandes proprietários. Criava-se socialmente um triângulo social. Resta-
nos observar como eram seus canais de ligações e de rupturas na sociedade canavieira
pernambucana nos finais do século XIX.
Assim, Coelho Rodrigues insistia: ―depravados costumes políticos sancionam até
certo ponto a profissão de vadio e o direito de ser preguiçoso‖. Pregava a necessidade de
uma lei que obrigasse aos trabalhadores terem uma residência fixa e profissão honesta e
lançasse sobre os proprietários um imposto proporcional ao número de adultos nessas
condições residentes em suas terras - com o direito de haver, mediante serviços, a
importância que pagassem, e com ação subsidiária contra o outro proprietário que
arranchasse os agregados do primeiro, sem terem quitação deste. Para ele seria uma
excelente medida de transição para pôr-se ―um termo breve a este triste status quo”. 153
Para o orador, a crise da mão de obra afetava o âmago da classe dos proprietários,
que estariam sem condições de cristalizar um status quo favorável a eles. A meu ver, status
que estaria estreitamente ligado às formas de relações de trabalho definidas ou ainda por se
definir. Status também que dependia das relações entre os próprios agricultores que
também precisavam de leis para manter-se meramente agindo na mesma direção e em
benefício comum. Assim, a repulsa e o temor implícitos nas falas de Coelho Rodrigues
sugerem-nos diversos indícios de como os trabalhadores livres e escravos desestabilizariam
a classe proprietária, como também parte da sociedade em processo de transformação.
Segundo Gadiel Perruci, Coelho Rodrigues não chegou a solicitar a instituição de
uma Polícia Rural contra os ―homens livres‖, como em futuras reuniões de agricultores
nordestinos se faria. No entanto, no Congresso de 1878 várias vezes os oradores se
referiram às leis repressoras não somente contra o homem-pobre-livre, mas também contra
os futuros ex-escravos, quando viesse a abolição que os congressistas pressentiam para
breve.154 Igualmente se pregou a tutela estatal sobre os ―ingênuos‖, isto é, os filhos de
escravos nascidos depois da Lei do Ventre livre. Coelho Rodrigues, em outro discurso, que
se levantou contra os ―ociosos‖, os ―escravos‖ libertados‖ e os ‗ingênuos‖, solicitou
medidas que os obrigassem a trabalhar.

153
Idem, p. 91.
154
Trabalhos do Congresso Agrícola do Recife. Outubro de 1878. Recife, Fundação Estadual de Planejamento
Agrícola de Pernambuco – CEPA –PE, 1978, Prefácio, p. XXIX.

114
Para Coelho Rodrigues, no entanto, a solução não estava, por exemplo, na
intervenção de um Estado forte:

Dispensamos a intervenção diretora do governo nas relações econômicas,


os seus capitais e os seus braços, tão raros quanto inúteis; basta que ele evite a
injustiça, garantindo a liberdade de todas as indústrias, sem proteger qualquer
delas à custa de qualquer outra; que abstenha-se de concorrer para a alteração
artificial dos valores e de consumir com a colonização estrangeira o que antes
podia aplicar à viação pública, empregando a multidão considerável de nacionais
desocupados em consequência da seca.155

Acrescentava dizendo que Pernambuco tinha braços e capitais, porém, não tinha
braços, como uma grande nação, e capitais, como um povo industrioso e econômico
poderia ter acumulado durante séculos, sinais, possivelmente, de uma postura de
fortalecimento da identidade do Norte frente ao Sul e de uma emergência do
desenvolvimento econômico e da construção de uma nação melhor, e que as duas
transformações se dessem também pelos olhos e mãos pernambucanas. Nesse sentido
continua a oratória:

E por outro lado, há mais ou menos trinta anos começou a espalhar-se


nesta nossa terra a idéia de ser sua população de raça degenerada e incapaz de
grandes cometimentos. Daí a necessidade de influir-lhe sangue novo, e
introduzir-lhe o elemento estrangeiro dos cabelos louros e dos olhos azuis; daí
ainda a necessidade da colonização oficial, que (não sei se feliz ou infelizmente)
tem afluído e vai afluindo toda para o Sul. Apesar disso, a lavoura do Sul há uns
10 anos importa a flor da escravatura do Norte, e nem por isso este diminuiu sua
produção, nem o Sul progrediu com o braço europeu.
E note-se de passagem que a lavoura do Sul emprega muito menos
braços livres do que a do Norte e, nada obstante, após 30 anos de longa e custosa
experiência, ainda faz-se contratos para a introdução de colonos estrangeiros por
conta do Tesouro. Quem não vê que a razão disso não é a falta de braços, mas
pelo contrário um excesso de inércia ou de improbidade, ou de ambas as cousas
em proporção, especulando com a passividade do parlamento e com a
indiferença dos contribuintes à custa dos cofres públicos. Quem não sabe que a
colonização é desde muito o negócio mais lucrativo e talvez o mais criminoso
que há na corte, onde à sua sombra tem tomado proporções colossais algumas
fortunas particulares em quanto vão definhando as arcas do Tesouro.156

155
Idem, p. 92.
156
Trabalhos do Congresso Agrícola do Recife. Outubro de 1878. Recife, Fundação Estadual de Planejamento
Agrícola de Pernambuco – CEPA –PE, 1978, p. 94.

115
Com o pretexto de negar a escassez de mão de obra no país, o autor afirmou em
outro discurso que num país onde cada um ocioso não tem dois homens ocupados a vigiá-
lo, estaria ameaçada a segurança e a vida dos cidadãos úteis: ―A aglomeração de ociosos
nos grandes centros de população é um perigo iminente, é uma revolução adiada, é uma
revolução brutal; porque é a convulsão da fome e das más paixões das massas incitadas
pelos cortesãos da praça pública‖.157
E nesse ponto voltamos à questão de um controle social da população dita
―perigosa‖. Em outras palavras, a repressão e a vigilância policial estavam sendo solicitadas
em nome da manutenção de uma dinâmica social que estava dando sinais de uma possível
ruína, que, no entanto, tinha suas causas dentro da própria classe hegemônica que não era
nem um pouco homogênea.
Dentro desta lógica, o discurso de Coelho Rodrigues também carregava a intenção
de construir-se uma identidade nortista versus uma sulina. A atenção estava, sobretudo, na
superação da crise açucareira e em forma de superar isso buscando também o espírito
nacional nos moldes dos ideais liberais. Não à toa, a problemática da mão de obra estava no
cerne da discussão. O autor também almejava um trabalhador nacional como parte
integrante desse processo. Um trabalhador, todavia, que fosse ―domesticado‖. A questão,
assim, não era a falta de trabalhadores, mas a ausência de planos e regras para o novo
mundo do trabalho, ou melhor, para os novos mundos de trabalhadores e novos
proprietários: sem ou com poucos escravos e donos de pequenos e médios pedaços de terra.
A questão era, nesse sentido, expressamente política, ou melhor, de divergências políticas e
sócio-econômicas. Nesse ponto, quem teve a voz no congresso é o outro orador, Henrique
Augusto Milet, engenheiro de profissão e senhor de engenho, Secretário Geral da
Sociedade Auxiliadora da Agricultura de Pernambuco e grande defensor dos interesses
agrícolas.
As reflexões do engenheiro Milet têm seu histórico desde o parecer realizado pelos
parlamentares em 1875 frente aos quais realizou uma série de escritos contra alguns pontos
aprovados pelos parlamentares como causas e soluções da crise do açúcar. Vale ressaltar
que existiram pontos comuns e divergentes nas discussões entre os parlamentares antes do
Congresso Agrícola.

157
Idem, p. 450.

116
Para Milet, um grande contestador das ideias dos parlamentares e de grandes
proprietários, a superação dos obstáculos que dificultavam o aproveitamento do trabalho de
nacionais e europeus passava, necessariamente, por quatro medidas: desmembrar a grande
propriedade territorial, para facilitar os arrendamentos e mudar o comportamento rotineiro
de seus proprietários, alterando a legislação que regulamentava os direitos de heranças;
regulamentar os contratos de trabalho; oferecer instrução agrícola profissional aos
proprietários e aos trabalhadores; e introduzir máquinas agrícolas aperfeiçoadas.
Podemos considerar que Milet, em seus discursos no Congresso, chegou a defender
o pequeno e o médio agricultor, principalmente, como parte da proposta da criação de uma
camada de pequenos proprietários rurais como tentativa de abordagem do problema da mão
de obra:
Desde o momento em que não existir mais escravos, com as dificuldades
que há no nosso país para a obtenção de braços livres a tempo e a hora, há de se
estabelecer fatalmente a divisão do trabalho do plantio e colheita da cana e do
fabrico do açúcar; a grande propriedade deixará de ser indispensável. 158

Para Milet quem tem dinheiro, tem braços. Para ele, ao se tratar da mão de obra
escrava e dos senhores de engenho que têm dinheiro para comprá-los, o problema não seria
tanto. Porém, para o engenheiro, a grande questão eram os braços livres. Só teria facilidade
para conseguir estes os senhores de engenho poderosos, para cujas terras afluem os
moradores, ao passo que deles não precisavam, porque teriam escravos suficientes para o
manejo do engenho ou os que se achavam nas vizinhanças de algum povoado.
Assim, para Milet, existia a construção do vício nos trabalhadores livres em serem
moradores, e ainda não assalariados. Constatamos, dessa maneira, que era um tormento
para os proprietários pequenos a prática exercida pelos senhores de engenho (e que veio da
tradição escravocrata) de dar morada para seus trabalhadores constituindo a máxima: onde
se trabalha também se mora. Essa dinâmica começou a gerar problemas para a sociedade
açucareira pernambucana nas últimas décadas do XIX uma vez que nem todos os senhores
eram grandes e abastados proprietários e tinham condições de ―proteger seus
trabalhadores‖:

158
Trabalhos do Congresso Agrícola do Recife. Outubro de 1878. Recife, Fundação Estadual de Planejamento
Agrícola de Pernambuco – CEPA –PE, 1978, p. 129-130.

117
(...) senhor de engenho pobre e mal fabricado custa a ter moradores; já porque
não os pode proteger eficazmente contra os possíveis desmandos das autoridades
policiais, já porque não costuma fazer bom açúcar: a sua moenda não espreme
bem; as taxas furam-se; os dentes dos rodetes quebram-se e daí prejuízo para
quem está moendo: por isto, quem mais precisa de braços não os tem. 159

Existia, portanto, já na década de 70 uma divisão da classe dos proprietários, pode-


se dizer, uma classe média proprietária. Por parte de Milet, ocorria certo incentivo para os
pequenos proprietários combatendo, por exemplo, as ideias de Coelho Rodrigues de que os
trabalhadores teriam que ter residência fixa:

Não posso concordar que se queira obrigar a esta ou outra classe da


sociedade a ter residência fixa; isto é, até certo ponto odioso; e a tanto não
chegam as atribuições do poder social‖. (....) Acresce que a fixidade de
domicílio não remedia a causa principal da falta de braços, a qual reside antes de
tudo nas distâncias. Não se daria ela, se, por exemplo, na Zona das Matas, onde
se acha concentrada a cultura da cana, se encontrasse de duas em duas léguas um
povoado, onde residissem pequenos proprietários, que precisassem pedir ao
salário algum suplemento a sua produção agrícola ou fabril.
Ofereço, portanto a seguinte ementa substitutiva: Compra de terrenos, para
criação de núcleos de pequenos proprietários; estrita execução das prescrições
legais, que obrigam cada cidadão a justificar meio honestos de vida.
É medida que teria de sofrer grande oposição por parte de nossos senhores de
engenho; e com efeito apresenta muitos inconvenientes no dia de hoje, mas é
indispensável, com vistas no dia de amanhã, como mostrei na memória que li
neste Congresso.160

Constatamos duas categorias sociais que estavam entrelaçadas nos finais dos
oitocentos. Primeiro, os pequenos proprietários de terra, que podemos denominar também
de lavradores. E os trabalhadores livres, em vias de substituição completa dos escravos,
que historicamente já exerciam a prática de serem moradores e que a partir de meados do
século XIX enfrentavam também o problema da falta de recursos da maioria dos senhores
médios e pequenos proprietários.
Para esclarecer um pouco mais as visões senhoriais sobre essa dinâmica,
observamos o discurso do também participante do Congresso de Recife, Victor de Sá
Barreto:

159
Idem, p. 431.
160
Trabalhos do Congresso Agrícola do Recife. Outubro de 1878. Recife, Fundação Estadual de Planejamento
Agrícola de Pernambuco – CEPA –PE, 1978, p. 432.

118
E se o primeiro ministro do Imperador, presidindo o Congresso Agrícola do
Rio de Janeiro disse aos lavradores dali – que por muitos anos ainda conviviria
só curar da grande propriedade, nós, que não estamos nas condições dos
lavradores do Sul, que lutamos com dificuldades de outra ordem, que temos
outros hábitos, outra economia de trabalho, que estamos em plena crise de
braços, que aumenta de dia para dia com a exportação dos últimos escravos para
o Sul do império, onde os favores do governo fazem prosperar a agricultura.
As nossas safras de açúcar são o produto do trabalho de duas classes bem
distintas entre os agricultores da cana; o proprietário ou rendeiro, que planta e
fabrica, e o que em suas terras habitam, sob condição de com ele partirem o
açúcar produzido pelas canas que plantarem.
Este sistema é geral na província; ele estabelece uma parceria sui generis,
que (falo entre os homens bem formados) não trepido em dizer – nulifica o
trabalho do plantador meieiro, diminuindo a produção.
O plantador não fabricante leva vida precária; seu trabalho não é
remunerado; seus brios não são respeitados; seus interesses ficam à mercê dos
caprichos do fabricante em cujas terras habita. Não há ao menos um contrato
escrito, que obrigue as partes interessadas; tudo tem base – na vontade absoluta
do fabricante. Em troca de habitação, muitas vezes péssima, e de algum terreno,
que lhe é dado para plantações de mandioca, que devem ser limitadas, e feitas
em terreno sempre o menos produtivo; em troca disto, parte o parceiro todo o
açúcar de suas canas em partes iguais. 161

Para Sá Barreto, a dinâmica da economia açucareira era fruto de uma desigualdade


entre classes produtoras. É nítida a descrição da situação difícil em que a tecnologia do
açúcar deixou os antigos donos e cultivadores da terra pernambucana. Os tais plantadores
meeiros estavam em condições precárias e injustas na nova constituição do mundo do
açúcar. Sem contrato, sem lei, sem terra suficiente e sem o melhor da produção da cana,
pois segundo Barreto, ficaria com o fabricante todo o mel do açúcar produzido, toda a
cachaça dela resultante, todo o bagaço que era excelente combustível para o fabrico do
açúcar e todos os olhos das canas, suculento alimento para o gado:

É uma partilha leonina, senhores, tanto mais injusta, quanto todas as


despesas da plantação, trato da lavoura, corte, arranjo das canas e seu transporte
à fabrica são feitas exclusivamente pelo plantador meeiro.
O plantador de canas da classe à que me refiro nem habitação segura têm;
de momento pode ser caprichosamente despejado, ficando sujeito a ver
estranhos até a porta da cozinha de sua triste habitação, ou a precipitar a sua
saída, levando a família o último infortúnio.162

161
Idem, p. 322-323.
162
Trabalhos do Congresso Agrícola do Recife. Outubro de 1878. Recife, Fundação Estadual de Planejamento
Agrícola de Pernambuco – CEPA –PE, 1978, p. 324.

119
De volta, portanto, ao problema da habitação, a partir do discurso de Victor de Sá
Barreto, a questão da moradia também estava vinculada ao caráter justo do processo de
produção do açúcar implantado em Pernambuco. A desigualdade dessa organização gerava
a vida nômade e com difíceis possibilidades de criarem raízes fixas para os lavradores
plantadores de cana. Assim, para ele, as soluções para esse sistema injusto e exploratório
estariam em fazer:

Uma partilha equitativa, um contrato legal, que precise os deveres como


que garanta os direitos; o respeito mútuo, a consulta aos interesses recíprocos
entre as duas classes dos plantadores da cana de açúcar; o trabalho remunerado
para a classe não fabricante, aumentará a produção, trazendo o sossego e bem
estar relativo a essa infeliz que, vivendo da lavoura, leva vida quase nômade,
errando de engenho em engenho.
Uma reforma desde já no sistema pelo qual formamos as nossas safras
de açúcar é indispensável. A remuneração do trabalho para os lavradores
aumentará, não há dúvida, a nossa exportação em açúcar.
Dividi o trabalho; fabricai o açúcar, ou plantai a cana. Arranjai os vossos
negócios, de modo que desapareçam os que chamais lavradores, para serem
substituídos por plantadores de canas, cujo lucro estará na venda delas a vós
próprios.
(...) pedirei permissão ao Congresso Agrícola do Rio de Janeiro para
lembrar-lhe alguma medida, no sentido de propor ao governo a venda dos
terrenos devolutos existente na Zona agrícola, da província, por pequenos lotes,
e em condições animadores para os infelizes da lavoura.
Não compreendo, senhores, que se possa esquecer a pequena
propriedade, em que um país regido por instituições liberais, em um país vasto,
ubérrimo, de população limitada e pobre, onde a grande propriedade rural, por
herança fatal, cheira ainda a poder feudal .163

Era, portanto, um caminho legal, contratual que deixaria a situação sob regras.
Regras que claramente deveriam partir de um conceito ainda em formação: a formação da
classe dos pequenos proprietários, garantidos em lei e com expectativa de ascensão social
ao invés de uma submissão social e econômica ao grande proprietário e fabricante. A partir
do discurso de Sá Barreto, sugerimos que o orador acreditava em uma ascensão dos ditos
lavradores para proprietários, visão que se complementa quando Barreto colocou mais
adiante que os hábitos dos senhores de escravos nordestinos, a natureza de sua lavoura, a
deficiência das leis, tudo se opõe à colonização europeia como meio substitutivo do braço
escravo. Para ele, a colonização nacional deveria ser lembrada, e deveria se investir em

163
Idem, p. 324 e 325.

120
núcleos coloniais agrícolas em condições de prenderem ao solo o filho do povo, que levava
vida ―errante‖, vida de ―beduíno‖. E assim, ele frisou a necessidade ―indeclinável‖ e
―instante‖ da decretação de um código rural no qual fossem reconhecidos e garantidos os
direitos daqueles que não teriam direitos reconhecidos: de um código especial, que
regularizasse a condição dos lavradores, cuja lavoura estaria em plena crise de
transformação.
Diante da crise da mão de obra, o fato de Sá Barreto pontuar a necessidade de
adaptação ao trabalho livre (um ―mal necessário‖ para os senhores de escravos e engenhos)
e de refletir sobre a função social do ex-escravo nos indicam a nova lógica que estava sendo
germinada nas mentes dos proprietários sobre as relações de trabalho. Henri Milet, por
exemplo, ironizou a denominação de ―ingênuos‖ para ―libertos saídos da Lei do Ventre
Livre‖, o que seria, para ele, expressão ―contra todas as regras da etimologia‖, mas
concordou que o Estado deveria ocupar-se de sua educação, fundando colônias agrícolas
para esse fim, pois,

(...)1879 nos bate a porta de 28 de setembro de 1879 em diante hão de afluir os


tais ingênuos, sem o Governo estar pronto para acomodá-los, sem contar que
este é o único meio de utilizar para a produção agrícola parte daquela geração.
Como muito acertadamente disse o Sr. Barão de Muribeca, é preciso não
conhecer a natureza humana para crer, que os criados até 21 anos pelos senhores
de suas mães ficarão no lugar onde elas forem cativas e ocupando-se na lavoura
da cana, que lhes recordaria a meia escravidão em que permaneceram até então.
164

Segundo os estudos de Izabel Marson, os efeitos da lei do Ventre Livre começaram


a ocorrer em 1875. Não pelo fato dela ter libertado os filhos das escravas a partir de 1871,
mas porque outros dispositivos facilitaram a alforria dos trabalhadores ativos na fábrica
que, mesmo à revelia dos senhores, haviam obtido o direito à manumissão por pecúlio
próprio ou por recursos da caixa do Fundo de Emancipação. Assim, a Lei tencionou
fortemente as relações entre senhor e escravo e desorganizou o funcionamento dos

164
Trabalhos do Congresso Agrícola do Recife. Outubro de 1878. Recife, Fundação Estadual de Planejamento
Agrícola de Pernambuco – CEPA –PE, 1978, p. 150. No entanto admitiu que ―o Estado obrigue-me a
justificar de meio de vida honestos; mas não posso conceder-lhe o direito de determinar e impor-me a
natureza de trabalho a que hei de recorrer, logo que vivendo a meu jeito não ofendo os direitos dos demais‖
(p. 149).

121
pequenos engenhos, pois neles, os alforriados não podiam ser facilmente substituídos por
homens livres em virtude de seu custo elevado e recusa dos encargos exigidos pela
produção de açúcar no período da safra. Por isso, a Lei de 28 de setembro atingira
duramente a pequena fábrica e atrelaria sua sobrevivência à criação dos engenhos
centrais.165
Nesse sentido, para Milet, os homens livres pobres não estavam disponíveis para as
tarefas do engenho, por cobrarem salários altos ou não cumprirem tempo e hora das
exigências do fabrico de açúcar. Assim, na época, o engenheiro fez severas recriminações
ao Governo Imperial pela promulgação da Lei de 1871, não por ela conceder liberdade aos
nascituros, mas pelas cláusulas que restringiram o prazo dos agricultores adaptaram-se ao
trabalho livre, e pela morosidade do Estado em providenciar alternativas:

A lei de 28. 9. 1871 não criou a situação contristadora de que trata o


Parecer, pois esta datava da supressão do tráfico; só fez, pela adoção do Ventre
livre, marcar um prazo, dentro do qual deve completar-se a transformação já
principiada; e pela criação do Fundo de Emancipação e mais medidas tendentes
à libertação da atual geração escrava, encurtar aquele prazo, que os nossos
legisladores, no filantrópico arroubo que os arrastava, acharam, ao que parece,
por demais extenso. Dar-se-á que nisto errassem, e o prazo pouco excedente ao
fim do andante século, marcado pela primeira parte da Lei para uma
transformação que custou séculos às nações do velho mundo, já fosse escasso.
Esta foi e ainda é minha opinião. Contudo, quanto menor o tempo concedido
para a metamorfose é mais urgente a necessidade de facilitá-la; e já decorreram
4 anos sem que tomasse providência alguma nesse sentido. Entretanto, a
diminuição do número de braços, que no dizer a Comissão vão faltando em
progressiva escala, deixando a cultura, os engenhos e as fazendas em abandono é
que apenas devida á segunda da lei de 28 de setembro de 1871.166

Entre as perguntas do questionário enviadas pelo Governo e que foram respondidas


e discutidas pelos senhores de engenho no Congresso Agrícola de 1878, uma questionava
se podia se esperar que os ―ingênuos‖ filhos de escravas constituíssem um elemento de
trabalho livre e permanente na grande lavoura. Respondeu o senhor M. Pontual, por
exemplo, que:

Pode-se, e é a única gente de que podemos esperar algum trabalho por


hábito, o número, porém será reduzido e a educação má. Aos senhores das

165
Mais para frente discutiremos com mais detalhes esta Lei. MARSON, 2008, p. 216-217.
166
MILET, Henrique Augusto. Auxílio à lavoura e crédito real. Pernambuco: Typ. do Jornal do Recife, 1876.
Apud MARSON, op. cit., 2008, p. 217-218.

122
escravas cabe ainda remediar aos inconvenientes que muito se agravarão para o
futuro. 167

Já quanto à falta de braços para manter, melhorar e desenvolver os atuais


estabelecimentos da ―grande lavoura‖, Pontual diz que para mantê-los, não, porém,
melhorá-los, careciam de homens livres e práticos, e para desenvolvê-los era preciso
maquinismos aperfeiçoados e vias de fácil comunicação. O modo eficaz e conveniente para
suprir esta falta seria dinheiro a prêmio favorável e prazos longos para a obtenção de
máquinas que trouxessem a economia de braços, dinheiro para pagar bom salário aos
homens aptos; atividade da polícia sobre o ―enxame de vagabundos‖ da onde sairiam os
autores dos crimes e os consumidores, pela ―ladroice‖, do fruto do trabalho dos ―poucos
laboriosos‖.168
Sobre o assunto, o ponto de vista de Henri Milet era que diante do sistema de
trabalho que vigorava, a falta de braços era muito sensível em vários pontos da região dos
engenhos em circunstâncias normais:

Durante 12 anos que fui, não direi senhor, porém mais propriamente escravo
de engenho na freguesia de Uma, sofri muitos prejuízos por não achar a quem
alugar, quer em épocas de plantação, quer para limpas, quer para corte,
amarração e transporte de canas.
Com a realização da desejada separação do trabalho fabril e do trabalho
agrícola, semelhante falta será menos sensível; e talvez desapareça, pois os
braços aqui existem; só se trata de aproveitá-los, colocando-os à disposição da
Lavoura. 169

E Milet reafirmava que a população livre nacional oferecia a ele fonte suficiente,
amplo viveiro de trabalho braçal. O segredo estaria em fazê-la convergir para a ―grande
lavoura‖, ou na qualidade de parceira ou na qualidade de assalariada. Assim, acreditava
que obrigar diretamente não era admissível, e devia recorrer-se a medidas indiretas como:

1º Uma boa lei de locação de serviços, que regule também os direitos e


obrigações recíprocas do senhor de engenho e do lavrador ou morador.

167
Idem, op. cit., p. 219.
168
MILET, Henrique Augusto. Auxílio à lavoura e crédito real. Pernambuco: Typ. do Jornal do Recife, 1876.
Apud MARSON, op. cit., 2008, p. 218-219.
169
Idem, op. cit., p. 314 e 315.

123
2º A reforma da nossa legislação pátria, na parte que diz respeito aos
crimes particulares, e em virtude da qual o furto e o roubo ficam quase sempre
gozando de impunidade.
3º Estreita execução das prescrições legais e policiais, que obrigam cada
cidadão a justificar de meios de vida honestos, (pois quem não trabalha vive a
custa do trabalho dos mais) e criação de uma polícia rural para a proteção dos
lavradores.
4º Colocação de núcleos de pequenos proprietários, ou colônias de
nacionais, em propriedades encravadas na região dos engenhos, desapropriando
para esse fim as que estiverem melhormente colocadas, a fim de proporcionar
aos mesmos engenhos, nas ocasiões próprias, o suprimento de braços de que
precisará sempre a Lavoura de exportação em certas épocas do ano. 170

Para Henri Milet, nem todos iriam aderir a essas medidas. Segundo ele, os
proprietários que não precisassem de braços se oporiam, pois a proximidade de um
povoado teria graves inconvenientes para o agricultor e os teriam enquanto existisse a
escravidão. Ficariam, entretanto, minorados pela adoção das providências legislativas e
policiais que ele sugeriu.
As vozes que tomavam conta do Congresso Agrícola em muitos aspectos se
chocavam, no entanto, havia alguns pontos que ecoavam certo consenso. Por exemplo:
para suprir a ―relativa‖ carência de braços, eram precisas leis, polícia e colônias; ou
melhor, a solução estava na legalidade, na moralidade, no controle, na ―domesticação‖ e na
educação dos trabalhadores. É interessante notar que, neste discurso de Milet, a sugestão
de se adotar uma colônia de nacionais difere um pouco da ideia defendida em outro
momento de permitir terras para trabalhadores. Nessas sugestões de Henrique Milet, a
ideia de colônia está muito mais atrelada a um ―bolsão‖ de trabalhadores, uma reserva de
mão de obra, bem instalada, sob vigilância e pronta para atender a demanda necessária.
Nesse sentido, Milet ao responder quanto ao destino dos ―ingênuos‖ filhos das
escravas, ele colocou que a experiência de todos os países, ―onde se teria realizado a
emancipação da raça africana‖, provou que não se podia contar com os ―ingênuos‖ para os
trabalhos permanentes da ―Grande Lavoura‖, exceto, talvez os quais o Estado educasse nas
colônias agrícolas. Os que ficassem nos engenhos, para pagarem com os seus serviços até
21 anos o ―dispêndio‖ de sua criação, os abandonariam logo que chegassem à maioridade
legal e se tornassem senhores de suas ações.

170
MILET, Henrique Augusto. Auxílio à lavoura e crédito real. Pernambuco: Typ. do Jornal do Recife, 1876.
Apud MARSON, op. cit., 2008, p. 315.

124
Assim, para ele, ao tomarem as medidas que indicou, principalmente, as
prescrições legais e policiais responsáveis por vigiar os meios honestos de vida dos
―livres‖, não ficaria o trabalho agrícola desorganizado, e os núcleos de livres forneceriam o
contingente de braços necessários à ―Grande Lavoura‖. Com tanta facilidade que mais
adiantaria o processo de separação do fabrico do açúcar e do cultivo da cana? E afinal,
como esses homens pensavam uma colônia para os trabalhadores livres brasileiros?
O projeto da Colônia Agrícola Industrial – Auxílio mútuo, denominada pelo
idealizador Joaquim Álvares dos Santos Souza, engenheiro geômetra e membro da
Sociedade Auxiliadora da agricultura de Pernambuco, propunha no capítulo 1 – Da
Colônia e seus fins uma colônia com a:

1º Missão especial de aproveitar e tornar produtores, todos os indivíduos


proletários, ociosos e os filhos de mulher escrava, desta província, empregando-
os em trabalhos agrícolas, industriais, d‘arte e de ofícios.
2º Nessa realização de tais fins, receberá e inscreverá em seus registros,
todos os indivíduos que voluntariamente se apresentarem ou forem remetidos
pelo governo.171

É interessante notar que o discurso do projeto era de ascender os colonos para


produtores, e não apenas assalariados. E mais, incluía um curso profissionalizante, tanto na
área agrícola como industrial. Nas propostas, sugeria-se, realmente, uma investida vertical
no perfil do trabalhador livre, fosse ex-escravo ou não. Para tanto, a disciplina e uma série
de condições, implicitamente, faziam o preço. Quanto ao perfil do colono, as normas
seriam:

1ª Certidão e certificação de que é maior de 18 anos, onde residente e de


que família.
2ª Ser cidadão brasileiro, proletário.
3ª Apresentar folha corrida em que prove achar-se livre de pena e culpa.
4ª A qualidade de ser cego, aleijado, mudo ou surdo, não inhabilitará o
indivíduo de fazer parte da colônia. 172

Segundo o projeto, os pretendentes a colonos deveriam ser registrados em cartório,


ter residência fixa, procedência familiar documentada, não ser estrangeiro e nem sem

171
Idem, op. cit., p. 294.
172
MILET, Henrique Augusto. Auxílio à lavoura e crédito real. Pernambuco: Typ. do Jornal do Recife, 1876.
Apud MARSON, op. cit., 2008, p. 294.

125
profissão; sem antecedentes criminais ou processos judiciais. Estavam fora, portanto:
estrangeiros; ex-escravos e/ou trabalhadores livres e/ou homens e mulheres sem
naturalização brasileira e com família no exterior ou sem comprovante; mulheres e homens
que tiveram algum envolvimento com a justiça ou polícia. Por outro lado, a exclusão não
era tanta, pois as mulheres e/ou os homens com deficiência eram aceitos. No caso, a moral,
as condições sociais e jurídicas eram mais importantes do que a aptidão ou habilidade
profissional.
Após as condições da pessoa física, foram numeradas regras que claramente
sugerem-nos como cláusulas de um contrato de parceria entre colonos e o Diretor da
colônia. Basicamente, as condições seriam com relação à terra, à produção da terra, ao
destino do capital gerado na colônia e ao tempo de ―auxílio mútuo‖. Quanto ao tempo,
dizia-se que o colono seria obrigado ao serviço mútuo durante cinco anos contando a partir
da data do seu registro. O território da colônia não seria menor de 62,562,500 bq, sendo
62,500,000 para mil prazos e 62,500 para o centro do núcleo colonial. Já a importância,
proveniente de todos os produtos da colônia, seria recolhida à tesouraria, para a
indenização das quantias que a mesma houvesse ao colono adiantado para sua formação e
custeio. Porém, logo que o débito estivesse sido extinto seriam as quantias recolhidas a um
dos estabelecimentos de mais crédito de Recife, em conta corrente dos juros recíprocos da
colônia.
Segundo o projeto, as quantias acumuladas formariam o capital da colônia, o qual
custearia as despesas de alimentação, conservação, melhoramentos, caminhos e lotações
aos colonos. Vale dizer que apenas seriam repassados os valores conforme os colonos
fossem findando seus prazos e seus ―engajamentos‖. Findos os compromissos, os colonos
sobreviventes às regras receberiam:

Um Prazo de terras de 62,500 bq, medindo e extremado, com uma casa


igual ao plano que for aprovado pelo governo.
Um roçado com duas mil covas de mandiocas maduras e um cercado ou
pasto para animais, de 900hq
Cinquenta litros de milho
Cinquenta ditos de feijão
Dez ditos de arroz
Trinta kilogramas de carne
Um cavalo novo
Uma vaca nova

126
Seis galinhas
Uma enxada, uma foice, um machado
Uma muda completa e nova roupa para si e sua família e cinquenta mil
réis em dinheiro.173

A proposta da Colônia, no entanto, não disponibilizaria ao colono sua liberdade


enquanto proprietário. O colono, pelo fato do término de seu engajamento, não ficava
emancipado do regime administrativo, senão depois de declarada pelo governo a
emancipação da colônia, pelo que não poderia vender ou trocar ou negociar seu prazo. Se a
propaganda anunciava auxílio mútuo, isso de fato não ocorria. Ou melhor, um lado sim era
favorecido. O governo resolvia o problema da ―falta de mão de obra‖, mantinha sua
produção agrícola, especializava profissionais, então, também garantia a mão de obra
fabril e ainda assegurava um capital para pagar as despesas e gerar juros.
O controle sobre o trabalhador era claramente defendido na proposta cotidiana da
colônia. Haveria no fim de todos os meses uma sessão composta de diretor, médico e
pároco-professor para julgamento e aprovação das contas do almoxarifado e relatório do
diretor. Vale ressaltar que também se reuniria todas as vezes que o diretor julgasse
conveniente, quer para propor medidas necessárias ao bom andamento dos trabalhos, quer
fosse por ocorrências extraordinárias, sendo sempre levada ao conhecimento do governo,
qualquer deliberação que não fosse executada, salvo circunstâncias extraordinárias, sem
aprovação do mesmo. A última palavra era, portanto, a ordem governamental. Não se
tratava, portanto, de uma organização ou uma renovação da estrutura dos engenhos
tradicionais. Era a proposta de uma nova estrutura, ligada diretamente com o governo,
consequentemente atrelada com o processo da separação da produção agrícola e
fabricação, proposta na área da cana vinculada pela implantação dos engenhos centrais
subsidiada pelo Estado.
Apesar, no entanto, do distanciamento da ideia da estrutura tradicional dos
engenhos banguês, a administração da colônia manteria a figura do feitor. Assim seria
composta por: um diretor, um médico, um escriturário, um professor-pároco, um feitor
geral, um agente, negociante matriculado e residente da capital, mais os feitores conforme

173
Idem, op. cit., p. 295.

127
as quantias de turmas de trabalhos diversos. Haveria também um regimento interno escrito
pelo diretor com aprovação do governo.
Muitas eram as ideias que os participantes do Congresso levantaram para tentar
organizar um novo conjunto de relações de trabalho, um novo sistema sem escravos, mas
com ex-excravos e livres, com a desarticulação da produção agrícola e a fabricação do
açúcar, uma nova adaptação para o crescente número de pequenos proprietários que
precisavam de melhorias para se manter na dinâmica econômica produtiva e comercial.
É interessante perceber que, se a qualidade das propostas discutidas no Congresso
variava nos conceitos, havia certos consensos formais que se mantinham como, por
exemplo, a regularização do trabalho, a relativização da falta de mão de obra, a
conscientização da existência dos pequenos proprietários, e, portanto, de uma ―classe
média‖ na sociedade do açúcar nos fins do século XIX, a aceitação da proposta de colônias
de nacionais e não de estrangeiros, a urgência de regularização das relações entre
moradores, parceiros e proprietários, a falta de ―capital realizado‖ para os proprietários.
Voltando para os pareceres que foram elaborados pelas Câmaras Municipais em
1870, constatamos que os relatos municipais de alguma forma concordam com as
discussões do Congresso e com o próprio parecer do Governo. Vale ressaltar que, em cada
comarca, havia uma peculiaridade. Em Ipojuca, não observamos uma preocupação focada
na mão de obra como em Nazareth ou Itambé, assim como a questão de créditos e
disponibilidade de dinheiro. Quanto à mão de obra, é interessante perceber que em Ipojuca
era clara a utilização de homens livres, cerca de 3.000, por senhores menos abastados tanto
na fabricação de açúcar quanto na lavoura da cana. Os pareceres de Itambé como de
Nazareth declararam, genericamente, uma grande quantidade de livres trabalhando na
lavoura, com a diferença de que, pelo cálculo geral do presidente da Câmara de Itambé,
nesta comarca existiam cerca de 710 escravos, enquanto em Nazareth, como verificamos
pela documentação policial do mesmo ano, os escravos chegavam a 5.374 entre homens e
mulheres.174 O que dizer sobre Nazareth, entre as três, possuir mais escravos e ter uma
corrente abolicionista no final da década de 70? Como constatamos anteriormente,
Nazareth juntamente com Escada eram os dois municípios com mais escravos nas vésperas

174
Quadro 12: Mapa da população da comarca de Nazareth. Delegacia de Nazareth, 1/05/1870. SSP Nazareth,
247 vol 652. APEJE/Recife.

128
da abolição. Escada por sua vez possuía um perfil econômico mais avançado tecnicamente
com a presença de usinas e engenhos centrais; já em Nazareth ocorria a predominância dos
engenhos banguês. No mais, foi o 5º distrito que elegeu Nabuco no pleito de 1885; vale
lembrar que nesta ocasião o candidato realizou um discurso moderadamente abolicionista,
afinal, como bem deixou claro Henri Milet em seus discursos nos anos 70, os pequenos e
médios proprietários não tinham condições nem de investir em técnicas agrícolas, nem de
suportar o fim da escravidão sem indenização, era necessário um processo gradual.
Ao mesmo tempo, junto da questão da mão de obra e seus processos de
transformação, observamos que a classe dos proprietários se compunha de forma
heterogênea, com objetivos políticos e econômicos divergentes; como colocou Eisenberg, a
ameaça aos senhores eram eles próprios.175 Os senhores de engenho eram tanto do Partido
Liberal, quanto do Conservador durante o Império. As diferenças políticas eram tanto sobre
questões como as eleições, o processo eleitoral, o mandato vitalício dos senadores, o poder
imperial de demitir ministérios e dissolver o congresso, o controle governamental sobre a
imprensa e a divisão de poderes entre o governo central e as províncias além de questões
pessoais, que levaram a lutas sangrentas.
Como verificamos, economicamente, a escassez de mão de obra nos aparece como
algo relativo na época. Assim, portanto, a situação desse trabalhador também se relativizava
com o andar da carruagem. Como colocou Eisenberg, a era da modernização dos engenhos
começou no início do decênio de 1870 pouco antes de os custos dos escravos e dos
trabalhadores livres terem alcançado seu mais alto nível do século e, indiscutivelmente,
deve-se atribuir a cronologia da modernização a tais custos elevados. Porém, só o custo da
mão de obra não causou a modernização, pois os maiores investimentos de capital
ocorreram nos decênios de 1880 e 1890 quando os custos do trabalho estavam em queda.
Um fator importante para a dificuldade de crédito era que comumente os
agricultores tinham precária situação financeira. Seus testamentos, ao fim do século XIX,
raramente legavam dinheiro aos herdeiros. De um modo geral, os agricultores tinham
fortuna em terras e em fatores de produção correlatos; mesmo bens de luxo representavam
parcela muito pequena do universo de seus bens. Vendas diretas de gado ou de escravos
produziam dinheiro, mas uma cabeça de gado valia tão pouco que um senhor de engenho

175
EISENBERG, op. cit., 1977, p. 154.

129
teria de virtualmente esvaziar seus currais e estábulos para levantar mesmo um pequeno
capital de investimentos. 176
Escravos, por sua vez, constituíam uma fonte de capital de giro dos proprietários –
eles podiam ser penhorados para conseguir empréstimos, ou vendidos177, e, sobretudo,
servir como garantia do agricultor de acesso ao crédito. No entanto, vale colocar que,
segundo Mello, desde a abolição do tráfico africano em 1850, principalmente depois da lei
de 1871, generaliza-se a convicção de que a escravidão estava condenada. A garantia
representada pela propriedade escrava parecia demasiado precária para permitir fundar
sobre o sistema hipotecário o crédito barato e de longo prazo à ―grande lavoura‖. Como
descreve Mello, o episódio de 1885 é suficientemente revelador: o declínio brutal do preço
dos escravos com consequência da propaganda abolicionista e do projeto Dantas criou um
verdadeiro pânico na praça do Rio, ao reduzir a garantia dos empréstimos feitos pelos
comissários e bancos à lavoura cafeeira.178 Como ressalta Eulália Lobo, o crédito à
produção agrícola era realizado tradicionalmente pelos comissários do café, açúcar,
algodão, escravos e o aviador dos seringais. Os juros eram muito elevados em função dos
riscos, pois a garantia consistia na cabeça de escravo ou de gado ou na colheita ou coleta. A
partir do final da década de sessenta, os prestamistas já não queriam emprestar sobre a
cabeça de escravo devido ao ―processo de gradual abolição da escravatura‖.179
Por outro lado, na opinião de Robert Slenes, ao estudar as fazendas de café do Rio
de Janeiro e suas escravarias, existiu uma diferenciação da postura dos fazendeiros frente
ao fim da escravidão na década de 70 e na de 80. Para o autor, os fazendeiros fluminenses
de fato acreditaram no início da década de 70 que a Lei do Ventre livre era a última palavra
sobre o assunto e que a escravidão ainda iria perdurar por certo tempo. Embora já houvesse
sinais no final da década de 1870 de uma crescente preocupação entre os fazendeiros com o
futuro político da escravidão, foi somente por volta de 1881 que os investidores em

176
Idem, op. cit., p. 90-93.
177
Constatamos que durante as décadas de 70 e 80 do século XIX, na comarca de Nazareth, era altíssimo o
número de escravos que eram vendidos localmente de proprietário para proprietário, ocorrendo alguns casos
em que era comprado um dia e, alguns dias depois, o mesmo escravo era vendido por um preço maior.
178
MELLO, Evaldo Cabral. O norte agrário e o império: 1871-1889. Rio de Janeiro, Topebooks, 1984, p.
108-109.
179
LOBO, Eulália. ―O estado e a política agrícola no Brasil no século XIX.‖ Revista brasileira História, São
Paulo, vol 2, no 3, p. 19-33, março de 1982.

130
escravos reduziram drasticamente suas estimativas da vida política da escravidão. Os
fatores que indicam esta conclusão são:

1) Queda precipitada, já mencionada, dos preços nominais da mão de obra


forçada e do volume do mercado de escravos a partir de 1881; 2) a estabilidade
do preço do aluguel de escravos não refletia uma reavaliação do valor do
trabalho forçado a curto prazo, mas justamente a percepção de que o período de
amortização para investimentos em cativos provavelmente já era menor do que a
estimativa de vida do escravo; 3) o fato de que os bancos que concediam
empréstimos hipotecários de longo prazo a fazendeiros mostravam receios sobre
o futuro da escravidão somente nos anos de 1880, não na década de 1870.180

Assim, podemos sugerir que até a década de 80 é bem possível que os proprietários
de escravos pernambucanos se utilizassem dos recursos do sistema hipotecário para
angariar créditos e manterem suas lavouras. Após este período, no entanto, possivelmente
outros fatores econômicos e sociais foram importantes para os senhores manterem suas
escravarias.
Para Peter Eisenberg, todavia, nem o gado nem a escravaria alcançavam os
montantes necessários para a modernização dos engenhos tradicionais. A terra era o ativo
mais valioso do agricultor; como ele trabalhava somente uma parte da sua terra, podia,
presumivelmente, levantar dinheiro vendendo, arrendando ou hipotecando ao menos a
propriedade extra ou em desuso. Engenho médio valia 25:000 $000 no início do século e
até 200 contos pelo fim. Os arrendamentos lá pelos anos 70 e 80 variavam entre 1 e 3
contos por ano por plantação simples e 1$000 por pão de açúcar.
Assim, no Congresso Agrícola de Recife colocava-se que:

(...) tendo de suprir a falta dos braços escravos, que teem diminuído
sensivelmente, pelo emprego de braços livres, os nossos senhores de engenho
sentem grande falta de capitais. Obviar esta falta seria de grande utilidade aos
senhores de engenho, especialmente: 1º para poderem empreender
melhoramentos mecânicos indispensáveis para que seus produtos possam
suportar a competência dos similares nos mercados consumidores; 2º para
prevenir os inconvenientes resultantes da morte do cabeça de casal e da divisão
da propriedade entre herdeiros. Morto o cabeça de casal, fraccionada a
propriedade entre os herdeiros, e não sendo fácil a exploração em comum, não é
possível, nas circunstâncias atuais e com a elevada taxa de juros à que se acha
sujeito o agricultor, que um dos herdeiros possa chamar a si toda a propriedade,

180
SLENES, op cit, 1986, p. 133-134.

131
indenizando aos co-proprietários o valor das respectivas partes, como seria
conveniente para a conservação da grande lavoura. 181

Vale dizer que a falta de capitais comentada acima se refere à carência de dinheiro,
moeda corrente, pois como deixam claro os discursos do Congresso, têm-se capitais em
abundância, porque as propriedades territoriais, os edifícios, os engenhos e as fábricas, os
produtos e todos os demais bens, móveis, imóveis eram capitais acumulados. Porém,
semelhante capital não era facilmente convertido em dinheiro.
Quem teria menos condições de atrair os trabalhadores livres, no caso, os médios e
pequenos proprietários, contudo, como vimos, eram os mesmos que também possuíam
menos condições de implementar maquinaria. Desse modo, ter escravos significaria possuir
mão de obra e possuir capital disponível para livrá-los de dívidas ou trazer-lhes algum
dinheiro.
Em Nazareth, esse tipo de problema era claro, uma vez que a análise dos dados
cartoriais dos inventários trouxe-me um quadro de que na sociedade açucareira
pernambucana existiam dois tipos de fragmentação: uma com relação à propriedade dos
engenhos e outra referente à propriedade dos escravos,182 isto é, existiam proprietários com
1 ou 2 escravos e outros com cerca de 50 escravos. No mais, normalmente os engenhos e
suas terras pertenciam a vários donos, na verdade, herdeiros do mesmo dote. É frequente,
portanto, encontrarmos nos inventários o termo ―co-proprietário‖.
De qualquer forma, como constatamos, Nazareth possuía uma escravaria
considerável entre 1873 e 1887, uma das maiores da zona da mata canavieira. Para
proprietários medianos em sua maioria, a posse de escravo valia muito, fosse como capital
ou como mão de obra, afinal, mão de obra livre apesar de utilizada desde a década de 50
como verificamos, em tempos de crise e em condições financeiras difíceis, era
problemático propor algum tipo de remuneração. Por esse lado, a condição escrava era uma
necessária opção, ou ainda a condição liberta sob condições, afinal, Nazareth também tinha
um percentual de alforrias alta (e veremos mais detalhes sobre manumissões no capítulo 3).
Vale ressaltar que o Fundo de Emancipação, a indenização tão desejada pelos seguidores de
Milet, também contava na lista dessas alforrias, portanto, muitas dessas liberdades vieram

181
Trabalhos do Congresso Agrícola do Recife. Outubro de 1878. Recife, Fundação Estadual de Planejamento
Agrícola de Pernambuco – CEPA –PE, 1978, p.151.
182
Documentos do Museu do Açúcar. Cartório de Nazareth, 1867-1880. FUNFAJ/Recife.

132
pelo Fundo. A taxa alta de alforrias, portanto, não necessariamente revela um caráter
abolicionista de Nazareth. Ainda que ali existisse uma corrente com um perfil abolicionista
veiculada pelo jornal O Thermômetro, depois O Recife, grupo que provavelmente votou em
Nabuco em 1885, acredito que as condições para o fim da escravidão estavam ligadas ao
Fundo de Emancipação e a indenização, isto é, a um fim lento do sistema de cativeiro ou
sob pagamento. Afinal, em 1887, ainda existiam muitos escravos na comarca, e muitos
senhores por seu perfil econômico precisavam deles. Por outro lado, a sociedade nazarena
era dividida politicamente, e assim, não fugiu ao perfil exposto no Congresso de 1878, onde
se mostraram claramente os rachas na classe dos proprietários canavieiros. Nazareth,
portanto, parece-nos um bom exemplo para discutirmos as questões relativas ao fim do
cativeiro, à crise do açúcar, e assim, portanto, à crise política que envolveu todo esse
cenário.
Assim, é interessante refletir como eram, diante desses problemas, as posturas
desses senhores, proprietários, dirigentes, intelectuais em âmbito regional e local. Na minha
hipótese, as relações entre senhores e escravos e entre patrões e empregados estavam
atreladas à própria constituição das classes dos proprietários e às relações entre si e às
formas com que os escravos buscavam cotidianamente respirarem liberdade no Oitocentos.
Em outras palavras, ao perceber que a classe dos proprietários não era tão homogênea, e
que este fato criava um cenário de opções e práticas diversas referentes às questões
políticas ou de transformação do sistema de trabalho açucareiro, acredito que as relações
construídas entre proprietários e entre estes e seus subordinados se constituíram de acordo
com os perfis específicos e necessidades singulares. O mesmo vale para os caminhos de
liberdade alcançados pelos escravos, estes também eram criados conforme situações
sociais, econômicas e culturais peculiares, especificidades, peculiaridades e singularidades
que almejamos investigar. No mais, como estas relações combinadas construíam caminhos
alternativos para a crise do açúcar e do trabalho na zona da mata pernambucana? Dinâmicas
certamente caracterizadas de forma local que sugerem um perfil para a sociedade brasileira
como um conjunto de tipos de sociedades escravistas.
Em suma, observar as discussões e os temores dos proprietários diante da crise do
açúcar dos anos 70 leva-nos a refletir sobre quais eram os conflitos entre as ―classes‖
sociais que desestruturavam a dinâmica escravista e catalisavam as transformações

133
políticas, sociais, econômicas e culturais nas últimas décadas do século XIX. Ressalto nos
discursos três pontos: primeiro, o fator disciplina e controle policial. De quem e do que
realmente a classe dos proprietários estava tentando se proteger? Segundo, a questão das
relações de posse da terra. Como eram as relações entre os proprietários e entre
proprietários e lavradores? E terceiro, o que significava de fato em cada contexto rural a
―falta‖ de mão de obra ou a mão de obra disponível? Como agiam diante do proprietário o
escravo e o trabalhador livre no contexto sócio-político, econômico e cultural no final dos
oitocentos na Zona da Mata Norte de Pernambuco?
No mais, vale colocar que o processo das modificações nos engenhos e na política
em Pernambuco no final do século XIX não contempla inteiramente nem as expectativas de
Milet nem as de Nabuco, pois, segundo Izabel Marson, não vingaram nem os engenhos
centrais de proprietários cooperados, nem as empresas estrangeiras e seu batalhão de
fornecedores de cana.

Enquanto das propostas do engenheiro pouco se (re) aproveitou – as


emissões de papel moeda, por exemplo – vários objetivos abolicionistas se
concretizaram: a desamortização da terra e do trabalho, a expansão das fábricas
de açúcar – especialmente como iniciativa individual -, a abolição da
escravidão.183

E dentre as relegadas inesperadamente para Joaquim Nabuco, estava a


desestruturação da monarquia.
E aqui cabe um detalhe interessante. Em dezembro de 1889, saiu da cidade de
Nazareth um abaixo assinado com 116 assinaturas de homens da sociedade nazarena, entre
comerciantes, proprietários, vigários e advogados, dirigido a Joaquim Nabuco, que ―faziam
suas as palavras que Nabuco dirigiu em sua mensagem ao povo da Capital‖. Assim,

Ante a completa transformação que se operou no governo do paiz, surge a


necessidade de muitas medidas de ordem pública, e, principalmente, as de ser
convertida em realidade a Ideia suprema para onde convergião ultimamente
todos os esforços do nosso talento – ‗a federação‖. Pernambuco não pode querer
senão a República Federativa, vós sois pernambucano, não regateareis sem
dúvida no momento em que elle mais precisa de vós, os vossos esforços e a
vossa energia em prol da causa que elle abraça. É a vossa causa de hontem no

183
MARSON, op. cit., 2008, p. 275-276.

134
regime mesmo da monarchia. Tendes um logar no seio do povo pernambucano,
vinde acompanha-lo no que elle vos pede.184

A resposta veio num texto de trinta páginas intitulado ―Resposta às Mensagens do


Recife e de Nazareth‖ datado de 1890. E Nabuco logo inicia o texto:

Agradeço-vos com o mais profundo reconhecimento este novo testemunho


de confiança, o qual mostra mais uma vez que a vossa generosidade para
commigo cresce sempre na razão das difficuldades em que nos achamos
reciprocamente collocados.
Tenho a mais imperiosa consciência dos direitos que por ella adquiristes sobre
mim. Conservo intacta, e hoje mais viva do que nunca, a minha aspiração
autonomista. Aos dois compromissos de minha carreira publica – a emancipação
do povo e a emancipação das províncias – guardo a fidelidade das obrigações
moraes espontâneas. Sou entretanto forçado a pedir-vos que me dispenseis de
associar-me à fundação da república, porque me considero para isso política e
moralmente impróprio.185

Em seguida, Nabuco discorre longamente sobre as 4 razões que o levaram a aderir à


monarquia, e acaba em certa parte escrevendo que nada podia ser mais doloroso do que sua
racional resistência opondo-se à ―corrente que arrastava a nova geração para a república‖,
mas admitia que tinha ―a mais absoluta certeza de que era preciso um largo período de
governo ―para o povo‖ e de governo ―com o povo‖ antes de ser possível ―o puro governo
do povo.‖186

O caminho para o ideal republicano só pode ser a republica. De accordo, de


certo ponto da estrada em deante, do ponto em que entram na marcha as raças
consideradas até então inferiores, e em que os escravos e os senhores da véspera
começam a formar uma só fileira democrática. D‘ahi em deante o caminho para
o ideal republicano é a república, mas somente d‘ahi.187

Respondendo a questão se havia abandonado a Federação, e daí, provavelmente, se


referindo também aos pedidos dos cidadãos nazarenos, responde que não desconhecia a

184
Abaixo assinado dos cidadãos de Nazareth, 10 de dezembro de 1889. Joaquim Nabuco, série Miscelâneas.
FUNDAJ/Recife.
185
―Resposta às Mensagens do Recife e Nazareth‖ Joaquim Nabuco, Rio de Janeiro, Typ. de G. Leuzinger &
Filhos, 1890, p. 1 e 2. Acervo Sérgio Buarque de Holanda, Biblioteca Central/UNICAMP.
186
Idem, p. 11.
187
Idem, p. 11.

135
obrigação que lhe incumbia de trabalhar pela autonomia da província, hoje chamada
Estado, pertencente a ele e a seus eleitores.

O programma que o anno passado sustentei perante vós não era um modus-
vivendi para uma forma de governo, era o espírito da pátria Pernambucana que
deveria animar a nova e as futuras gerações de nossa terra. A federação não
exprime senão o lado nacional do problema autonomista, e sou tão autonomista,
isto é tão Pernambucano, e tão federalista, isto é, tão Brazileiro, hoje como era
hontem. Não é a mudança de forma de governo que podia alterar sentimentos
sem os quais restaria de nossa identidade pessoal.188

Nabuco coloca que, do ponto de vista da autonomia, a primeira questão para os


Estados era a do caráter do poder central, isto é, de organizar um poder central capaz de
respeitar lealmente o princípio autonômico em quaisquer limites que o restrinjam.
Entretanto, o abolicionista fez questão de explicitar que a neutralidade e o prestígio
nacional da monarquia, como governo central, tornavam possível a federação com um
sistema de garantias e defesas das províncias muito menos desenvolvido do que lhe parecia
ser indispensável para a proteção da autonomia na República. Porém, esclarece que não
pretendia desinteressar-se de nenhum dever de brasileiro ou de pernambucano. Sempre
considerou ―a mais singular obliteração do patriotismo a declaração do partido republicano
de que nada tinha com a abolição, proclamando-a um problema só da monarquia‖. Para ele,
o patrimônio, o prestígio e o crédito do Brasil, a integridade do território, a liberdade dos
cidadãos, a autoridade da magistratura, a disciplina militar, a moralidade administrativa,
não eram interesses exclusivos de nenhuma forma de governo. Não seria preciso ser
republicano sob a república, como não era preciso sob a monarquia ser monarquista para
cumprir os deveres de um bom brasileiro. ―Basta ter clara a noção de que nunca se tem o
direito de prejudicar a pátria para prejudicar o governo‖.189
E por fim finalizou, de certa forma em uma justificativa, afirmando que os eleitores
de Nazareth o tinham eleito por impulso próprio dentro do mês em que a Câmara anulara o
seu diploma de deputado do Recife, e os eleitores da capital, em 14 de setembro de 1887, o
tinham escolhido contra o ministro do Império, numa eleição que influiu na sorte dos
escravos. Já em 1888, a sua vitória veio por uma ―verdadeira unanimidade moral‖.

188
Idem, p. 26.
189
Idem, p. 27 e 28.

136
Foram grandes n‘essas e em outras eleições os sacrifício que fizestes para
mandar-me ao Parlamento. Somente para ter uma posição eu não teria tido a
coragem de ser candidato depois de ter visto, de casa em casa de eleitor, de que
soffrimentos e privações no presente e no futuro das famílias pobre são feitas as
victorias e as derrotas dos partidos. (...)Era preciso porém, que eu representasse
uma d‘essas causas que cegam inteiramente os homens para os sacrifícios que
fazem ou que pedem, para ter disputado tantas eleições sem sentir-me culpado
do mesmo criminoso egoismo. Procurei corresponder a anta abnegação do único
modo que me era dado, praticando a política, sem uma excepção durante os dez
annos em que exerci ou aspirei exercer o vosso mandato, como uma carreira de
completa renuncia pessoal. Posso dizer que considerei a posição a que me
elevaste como um fidei-commisso do povo, e não tirei d‘elle o mínimo proveito
individual para mim, nem para outrem. A incompatibilidade que me impuz
dentro e fora do Parlamento, no paiz e no estrangeiro, para com tudo de que a
admiração pudesse dispor directa ou indirectamente, foi tão absoluta como a dos
republicanos mais intransigentes. Posso portanto prestar-vos sem medo as
minhas contas de representante. Se a gratidão está em dívida, a consciência está
quite.190

De fato, como expôs Marson, Nabuco apenas encontrou justificativa bem


fundamentada para uma adesão ao novo regime nas palavras do último capítulo de Minha
Formação em 1899: a essência do liberalismo não prendia necessariamente seus adeptos ao
regime monárquico, mas, ao dever de zelar pela pátria. Optando pela ―pátria, pela nação e
pela humanidade‖, o autor aderiu ―discretamente‖ à república aceitando um cargo
diplomático oferecido pelo governo Campos Sales.191
Nos anos seguintes à proclamação da república, no entanto, Nabuco não pôde
atender aos pedidos de seus eleitores nazarenos. Ficou certa dívida entre estes e o
abolicionista que se elegeu em 1885 pelo 5º distrito, dívida que Nabuco em uma longa
resposta tentou se livrar, pelo menos deixando explícito que seus ideais o limitavam na
nova circunstância política. Pelo lado dos cidadãos de Nazareth, certamente, alguns ficaram
preocupados, outros podem ter apoiado mais ainda o abolicionista sincero e fiel a seus
ideais e convicções políticas. A contra resposta não temos, porém o que sugerimos é o que
podemos constatar através de um olhar minucioso do que se passou em Nazareth durante as
décadas de 70 e 80 do XIX. De um fato temos certeza, existia uma forte camada social com
ideais liberais e federalistas em Nazareth, e que, em tempos de monarquia, parece ter

190
Idem, p. 30 e 31.
191
MARSON, op. cit., 2008, p. 282 e 283.

137
travado certo ―acordo‖ indireto com o abolicionista, ou pelo menos uma gratidão eles
esperaram.

138
Capítulo 2

Redes de conflitos: relações sociais na sociedade nazarena na década de


70 e 80 do século XIX

(...) a definição do poder não pode ser separada da organização de um campo onde agem
forças instáveis e que estão sempre sendo reclassificadas. Novamente, o poder (ou certas
formas de poder) é a recompensa daqueles que sabem explorar os recursos de uma
situação, tirar partido das ambiguidades e das tensões que caracterizam o jogo social.
Alguém questionará que se trata de ruínas derrisórias, de uma espuma da história?
(Jacques Revel)

2.1) De tantos criminosos, quais eram os reais inimigos da ordem escravocrata na


Zona da Mata Norte de Pernambuco na década de 70 do XIX?

A figura do Capitão contrata três negros para tomar conta do seu terreno e da festa.
Os negros Mateus, Bastião e Catirina não dão conta do recado e acabam usando e abusando
do espaço do Capitão. Na volta, dando conta da bagunça e da falta de obediência dos
negros, o Capitão manda chamar o Soldado para dar uma boa lição aos ditos desordeiros.
―Amarra o nego soldado, eu quero nego amarrado. Amarra o nego soldado, por ‗orde‘ do
delegado‖.192
Esta narrativa faz parte do enredo atual do Cavalo Marinho. Tradicionalmente, se
brinca dessa maneira. A oralidade não traz datas quando exatamente assim começou a se
fazer. Todavia, os relatos de Pereira da Costa datados de 1906 trazem a dinâmica que os
personagens criaram em torno das figuras do Negro e do Capitão do Mato, inexistindo a
figura do Soldado.193 Observando o folguedo do Cavalo Marinho, como um teatro popular
que narra a vida cotidiana de seus participantes, os trabalhadores da cana, examinemos,
desse modo, o processo de transformação das hierarquias sociais na zona canavieira a partir
da década de 70 do XIX. Onde estavam o soldado, ou o delegado, o capitão do mato, e o
senhor capitão?

192
Toada do soldado no folguedo do Cavalo Marinho pernambucano. 2006.
193
Relato sobre o Bumba meu Boi de Goiana (PE) datado de 1907. In: PEREIRA, Francisco Augusto da
Costa. Folk-lore Pernambucano. Recife, Arquivo Público Estadual, 1974. IAHGPE/Recife.

139
Retomando as reflexões sobre o Congresso Agrícola e suas discussões sobre a crise
da agricultura e adicionando a ela a observação de Eisenberg de que os senhores eram seus
próprios inimigos, uma vez que, constantemente, se envolviam em conflitos e disputas,
reformulo a minha questão: onde estavam enraizadas as pontas da crise social do sistema
produtivo (forças produtivas e relações de produção) açucareiro? Se no próprio Congresso
de 1878 os rachas eram claros, o que podemos pensar sobre a realidade e o cotidiano desse
meio social?
Atreladas a essa discussão, repenso algumas afirmativas do etnólogo John Murphy
que ao analisar a manifestação do Cavalo Marinho e das relações nelas desenvolvidas
durante a cena entre o Capitão, que no caso seria o senhor de engenho, e os negros Mateus
e Sebastião, considera o folguedo como uma janela para a visão moral dos seus
participantes sendo um espaço de protestos, mas também de reforços implícitos das
relações de poder hierárquicas da região. Para ele, as brincadeiras devem ser entendidas
mais como respeito do que como crítica. A visão moral implica julgamento e punição de
más-condutas, de relações irresponsáveis. O ‗complexo do patrão‘ é base da ideologia
hierárquica das relações rurais brasileiras. Por isso, para o autor, a crítica faz parte da
brincadeira, mas não é dirigida ao patrão, e sim, ao mau patrão.194
Longe de criticar essa posição de Murphy, até mesmo porque cometeria certo
anacronismo, uma vez que essas conclusões pautaram-se em uma pesquisa datada da
década de 90 do XX, sugiro historicizar essa análise e refletirmos sobre como se deu esse
processo de construção moral, e o que poderiam significar as mudanças das figuras que os
brincantes - escravos, libertos e livres trabalhadores da cana - utilizavam e utilizam.
No contexto dos anos 70 do XIX, ainda sob a escravidão, o sistema de poderes e
controle estava se remontando. O folguedo no XX deixa claro para onde foram as
hierarquias sociais, e sugere as interpretações significativas para os trabalhadores. Anterior
a isso, no entanto, houve um processo histórico que produziu significados sociais para
quem era o bom ou mau patrão ou senhor; como também, para quem eram os responsáveis
pela opressão: delegados, senhores e/ou capitães do mato? Acreditamos, portanto, que

194
MURPHY, John Patrick. Cavalo marinho pernambucano. Trad. André de Paulo Bueno. Belo Horizonte,
Editora UFMG, 2008, p.132.

140
perceber esses personagens reais em detalhe na comarca de Nazareth talvez nos traga
alguma evidência de como se davam as relações de poder na sociedade da cana no XIX.
Ao reconstruir os acontecimentos na comarca de Nazareth na década de 1870
através da documentação policial, constatamos que entre 1870 e 1875, as relações entre
delegados, subdelegados e senhores de engenho remontam um processo histórico advindo
dos anos 30 do mesmo século, e se, por um lado, os atores se modificam, os conflitos e
disputas continuam. No mais, sobressaía o fato de que, a partir da década de 70, o acesso ao
poder judiciário começa a ser ativado como tentativa de controlar a ação autoritária, quase
―fora de moda‖, dos senhores de engenho e suas ocupações na estrutura policial.
Vale ressaltar que no conjunto dos relatos policiais, os discursos variavam sobre as
prisões de escravos fugidos, dos criminosos apreendidos, a falta de homens e a falta de
respeito dos senhores que precisavam também de controle e medidas urgentes do chefe de
polícia da Província. Novos códigos sociais pediam novos códigos legais, ou vice-versa?
Como parte do conflito, as disputas conservadoras e liberais também estavam inclusas nos
rachas e cisões entre delegados e senhores, entre senhores e senhores, e por que não, entre
senhores e seus trabalhadores (livres e escravos).
Encontramos, por exemplo, em 1871, um ofício do delegado João Cavalcanti
Wanderley para o chefe de Polícia de Pernambuco, no qual dizia que era necessário um
olhar atento para a:

(...) resistência praticada pelo proprietário do Engenho Baraúna do 3º Districto


da Freguesia desta cidade, José Antônio de Albuquerque armando a moradores
do mesmo Engenho, e seus escravos por occasião de satisfazer o respectivo
subdelegado de ordem desta Delegacia a requisição do subdelegado da Freguesia
de Bom Jardim, opondo-se a captura de Bernardo de Tal, tutor do menor filha de
Manoel Leandro que azilando-se Bernardo com a raptada no mesmo Engenho
Baraúna opôs-se a exigência do Delegado o dito Albuquerque e já efeito da
resistência em presença do subdelegado chegando elle ao extremo de ser
necessário requisitar o mesmo subdelegado o destacamento desta cidade.195

Segundo o delegado, além de não ter sido possível a captura do raptor que fugiu
com a raptada, pois o auxílio policial não chegou a tempo, a ação proporcionou uma
medida preventiva por parte do mesmo que ordenou imediatamente ao subdelegado para

195
Delegacia de Nazareth, 10 de novembro de 1871, ao Chefe de Polícia da Província, do delegado João
Cavalcanti Maurício Wanderlei. SSP 247 vol 652. APEJE /Recife.

141
que ele procedesse às diligências do ato de resistência. Para o delegado Wanderley, este
tipo de ocorrência estava se espalhando pelo Termo, e isso, certamente, poderia incitar
outras pessoas a cometerem o mesmo ato. Assim, por semelhantes maneiras, ―tornarem-se
impróprias as diligências policiais‖.
Não apenas o senhor do engenho Baraúna incomodava a autoridade policial de
Nazareth, mas também o senhor do engenho Marimbondo, José Bezerra de Medeiro que,

(...)sem poder algum, senão força bruta, evadio este districto, com oito homens
armados, cercando a caza de Antonio de Castro de Oliveira, suppondo que para
assassinal-o, e não o podendo fazer, por este ter evadido e vendo que não
satisfazia seo brutal entento com o Castro, levou amarrado um filho deste de
nome Manoel Irias de Castro com dezoito anos de idade, sendo testemunho de
facto occorrido Antonio Joaquim Pereira, que se achava pernoitado na casa de
Castro.196

É interessante notar o uso pela polícia da expressão sem poder algum, o que nos
leva a interpretar que a ―ordem dos poderes‖ estava se (re)definindo. A sede da comarca, a
cidade de Nazareth, pedia novas condutas para ―pobres criminosos‖ e ―senhores
resistentes‖. O fato, no entanto, era que dentro das terras do engenho, a dinâmica era outra.
Além da contraposição de uma vida urbana-rural que tentava manter a ordem e estabelecer
os poderes, a força dos proprietários de terra, que alimentava a cidade, movia-se em outra
frequência. Isto é, as relações de dominação nos engenhos e nas fazendas ocorriam dentro
de outra dinâmica social, numa dinâmica de trabalho, moradia e lazer de homens e
mulheres livres, escravos e libertos. No entanto, o que podemos aferir a respeito das
relações de poder levando em conta a junção entre o poder da terra e o poder policial?
Reconstruir essa dinâmica social durante o império proporciona um diálogo com os
estudos sobre a estrutura policial do período e no momento de composição do Estado
Moderno. Os estudos sobre a polícia imperial criam subsídios para compreendermos a
fortificação do Estado moderno no Brasil, num período em que as forças policiais são
usadas para o controle de grupos e interesses dominados, possibilitando ao Estado o

196
Subdelegacia de Polícia da Freguesia de Nossa Senhora do Ó, 7/07/1872. Ao delegado do Termo de
Goiana, do subdelegado João da Costa Ribeiro Canto. SSP Nazareth 247 vol 652 APEJE

142
estabelecimento de territórios pacificados subordinados à lei e sua formulação impessoal,
subtraindo as relações interpessoais do arbítrio e da instabilidade dos poderes privados.197
Como coloca Vellasco, a polícia é a instituição decisiva na ação do Estado Moderno
e sua capacidade de regular as relações sociais e intermediar conflitos interpessoais, o que
se liga ao tema dos direitos e suas garantias.198 No mais, vale ressaltar também as análises
que vêem na polícia um instrumento de dominação de classe.
No entanto, principalmente no período seguinte à Independência, a polícia não
chegou a formar um corpo profissionalizante, organizado, com força policial suficiente,
com diretrizes bem definidas, munido apenas de uma autoridade frágil e vacilante e com
muitas dificuldades para impor a ordem e a lei. Os exemplos regionais e locais elucidam
bem essa atmosfera como podemos observar no estudo de Ivan Vellasco sobre a província
de Minas Gerais, entre outros. À análise local cabe justamente revelar que durante o
Império não se tinha um corpo policial nacional, caracterizado pela descentralização,
possivelmente cada província e localidade possuía suas especificidades burocráticas e
profissionalizantes.199 Como destaca o autor, não houve um debate a respeito da criação do
corpo de polícia: ―Garantir a ordem significava tanto resistir e debelar qualquer ameaça
coletiva e séria quanto, entre um motim e outro, fazer preceitos legais no cotidiano das
ruas.‖200
Muitas vezes, a lógica da polícia se prendeu mais aos fatores ambientes do que à
instrumentalização do controle social pelos dominantes. Ou, nas palavras de Bretas: ―seu
exercício de dominação cotidiana da sociedade girava em torno da distribuição do arbítrio

197
Sobre o período imperial, entre outros, ver: VELLASCO, Ivan de Andrade. Policiais, pedestres e
inspetores de quarteirão: algumas questões sobre as vissitudes do policiamento na província de Minas
Gerais (1831-50). In: CARVALHO, José Murilo de. Nação e cidadania no império: novos horizontes. Rio e
Janeiro, Civilização Brasileira, 2007, p. 236. ____A Sedução da Ordem: violência, criminalidade e
administração da justiça. Minas Gerais, século XIX. Bauru, Edusc/Anpocs, 2004. BRETAS, Marcos Luiz.
Ordem na cidade: o exercício cotidiano da autoridade policial no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Rocco,
1997. HOLLOWAY, Thomas. Polícia no Rio de Janeiro: repressão e resistência numa cidade do século XIX.
Rio de Janeiro, Ed. FGV, 1997. MAIA, Clarissa Nunes. Policiados: controle e disciplina das classes
populares na cidade do Recife, 1865-1915. Recife, Tese de doutoramento, UFPE, 2001.
198
VELLASCO, op. cit, p. 241.
199
Ver BRETAS, Marcos Luiz. A guerra das ruas. Rio de Janeiro, Arquivo Nacional, 1977.
200
Idem, op. cit., 1977, p. 243.

143
pelos desprotegidos, provavelmente muito mais em nome de agendas próprias dos policiais
do que de diretrizes efetivas.‖201
A questão da precariedade do corpo policial, no entanto, como coloca Vellasco,
comporta uma reflexão sobre como se mantinha a sociedade ―pacífica‖. Logicamente as
revoltas eram várias e muitos estudos revelam a agitação das ruas no Império; por sua vez,
o que Ivan Vellasco questiona - e talvez aqui busquemos outras respostas - é que diante de
uma força policial precária, que neste momento exclui as capitais e a Corte, ―quem ou o que
garantia a manutenção de uma ordem mínima nas ruas e regulava as condutas e obediência
à lei?‖202
Para o autor, a resposta estaria nas formas de reprodução da ordem imersa nos
mecanismos cotidianos de regulagem das condutas, e aí fundamentalmente a rígida
hierarquia que ordenava o mundo social. As posições distintas na ordem hierárquica
implicavam diferentes ―espaços de autonomia‖ – espaços físicos e simbólicos – que
definiam os limites das condutas nos seus interiores. Para ele, ―a ordem era regulada menos
pelos mecanismos coativos de Estado do que por ―regras‖ tácitas as que governavam os
grupos sociais nas relações internas e com outros grupos, regras que funcionavam como
freio das condutas cotidianas e como legitimadoras da violência privada quando
quebradas‖.203 E a partir dessa conclusão, como sugestão, ele indica a necessidade de
olharmos para os mecanismos patriarcais que garantiam a cooptação vertical para o campo
da ordem; através do pertencimento às redes de clientela e compadrio que retiravam o
indivíduo do anonimato e o vinculavam a normas partilhadas pelos vínculos de aliança, dos
mecanismos paternalistas que permeavam as relações senhor-escravo, para as concepções
ordenadoras advindas da esfera religiosa e o papel que as estruturas judiciárias jogaram no
sentido de, respaldadas pela autoridade que a tradição lhes conferia e ampliando sua
presença e manifestação na vida cotidiana, atuarem como um mecanismo capaz de suprir e
reproduzir o arranjo em torno da ordem.
O questionamento de Vellasco sugere uma análise verticalizada da sociedade do
Império cuja força policial constantemente precisava de auxílio do Chefe de Polícia e

201
Apud VELLASCO, 2007. BRETAS, Marcos Luiz. ―A polícia carioca no Império‖. Estudos Históricos,
Rio de Janeiro, v. 12, p. 231, 1998.
202
VELLASCO, op. cit, p. 260.
203
Idem, p. 261.

144
Presidente da Província, como era o caso da comarca de Nazareth entre 1870 e 1889.
Assim, a pergunta já soa como uma resposta para algumas indagações que surgem durante
a pesquisa nos documentos policiais pernambucanos do XIX. Ao mesmo tempo, surge, aos
meus olhos, uma indisposição quando não visualizo nas considerações do autor a
possibilidade de que no cotidiano, se indivíduos minimamente ficavam dentro da ordem,
também escapavam da ―hierarquia rígida‖ criada pelas classes dominantes, construindo
outras ordens, e até mesmo outras escalas de ―hierarquias‖ longe da ordem dominante. Essa
suposta ―outra ordem‖, digamos, uma ordem subalterna, existente concomitantemente com
a ordem socialmente estabelecida, não necessariamente era colocada abaixo desta do ponto
de vista dos grupos subalternos, seus criadores. Em outras palavras, aos olhos de quem a
ordenação mínima das coisas se mantinha? E afinal de contas, ordenação mínima
significava o quê exatamente? Estar na ordem não necessariamente significaria sua eficácia
enquanto mecanismo de controle. Talvez, pudesse apontar até mesmo a existência de
ocultas e eficientes formas de desordem. Como ressaltam Chalhoub, Abreu e Ribeiro, pode-
se concluir que a perspectiva de construção do que é ―ordem‖ e ―desordem‖ se dá de acordo
com o lugar social dos agentes em questão e que ambas encontram-se intrinsecamente
ligadas e desta ligação depende a sua manutenção e reprodução. Portanto, o que existe, na
realidade, são diferentes lógicas ou racionalidades na construção da ―ordem‖ e estes
conceitos são elaborados na luta de pessoas que se movem em sentidos diferentes. ―Como
se vê, a ‗desordem‘ é bastante organizada....‖204
Isto nos remete novamente aos folguedos da região. Por exemplo, se o pesquisador
Murphy, nos anos 90 do XX, confere ao Cavalo Marinho um espaço de visão moral do mau
e bom patrão e que ali se encenam atos de respeito e não de crítica à hierarquia patrão-
empregado, pergunto: onde os brincantes aprenderam isso? Ou melhor, parafraseando
Vellasco, ―quem ou o que garantia a manutenção de uma ordem mínima dentro dos
folguedos, e assim, dentro do imaginário e das ações simbólicas dos trabalhadores (grifos
meus), regulando suas condutas e obediência à lei?‖. Obviamente, ao tratarmos sobre o
século XX, outras circunstâncias históricas estão envolvidas, mas se pensarmos na tradição
e/ou nos costumes, e no longo processo histórico, os Maracatus e Cavalos Marinhos

204
CHALHOUB, S. & RIBEIRO, G. & ESTEVES, M. de Abreu. ―Trabalho escravo e trabalho livre na cidade
do Rio: vivência de libertos, ―galegos‖ e mulheres pobres.‖ Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 55,
no 8/9, set 1984/abril 1985, p. 104.

145
brincados nos engenhos desde o século XIX sobreviveram até hoje, por quê? Porque
sempre foram obedientes e ajudavam as autoridades a frear as condutas de seus
participantes? Se sim, então talvez aí, temos, no mínimo, uma negociação.
As considerações sobre a estrutura policial no século XIX, especificamente do
Império, apontam aspectos imprescindíveis para a compreensão de como foi o ―andar da
carruagem‖ até a proclamação da República, principalmente quando visualizamos de perto
quem eram os envolvidos. Lembrar das manifestações culturais dos trabalhadores rurais,
escravos e livres, é necessário aqui para lembrarmos que dentro da realidade imperial,
existiam outras realidades. Não paralelas, porque se entrelaçavam, mas enraizadas
historicamente em costumes populares, negros e brancos. Costumes, vale ressaltar, que
sobreviveram pelo Império, pela República, pelas Ditaduras e pela Era Digital.
Aqui também vale ressaltar, como coloca Hebe Mattos em seus estudos sobre livres
e escravos no Sudeste do XIX, que a família nuclear e a rede de relações pessoais e
familiares a ela ligada permanecem essenciais na experiência dos homens livres pelo
Oitocentos. Também para os escravos, a obtenção de maiores níveis de autonomia dentro
do cativeiro parece ter dependido, em grande parte, das relações familiares e comunitárias
que estabeleciam com os outros escravos e homens livres da região em que viviam. Tanto
como os laços de solidariedade vertical que os ligavam, é imprescindível também revelar a
complexidade das relações comunitárias e familiares que envolviam todos os sujeitos.
Nesse ponto, ressalta Mattos que a solidez dos laços horizontais que estabeleciam tornava
os deveres de fidelidade entre as pessoas uma questão de princípio de sobrevivência
coletiva, tanto para aquele que é protegido por alguém como para aquele que protege o
outro em alguma situação delicada como, por exemplo, um crime. Ao mesmo tempo,
escravos e livres, por conta das suas complexas relações familiares e comunitárias,
acabavam por determinar também suas relações de solidariedade vertical com os ―grandes‖
da localidade. ―A maneira culturalmente esperada de um imigrante integrar-se numa nova
área não era pedindo emprego ou acolhida a um potentado local, mas travando relações
duradouras com os que ali viviam, baseados em relações costumeiras.‖205Assim, do ponto
de vista do homem livre, a solidariedade vertical era herdada de relações horizontais

205
MATTOS, Hebe Maria. Das cores do silêncio: os significados da liberdade no Sudeste escravista, Brasil
século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998, p. 65-69.

146
anteriores, antes que escolhida. De forma paralela, do ponto de vista de um escravo recém-
comprado para o serviço de roça, os caminhos para conseguir no cativeiro um espaço
mínimo de sociabilidade passavam por integrar-se à comunidade já existente de cativos,
antes de buscar uma aproximação com seu senhor.
Em Pernambuco, em especial na zona da mata seca região abordada, em meados do
século XIX, como constata Marcus Carvalho, os roubos de escravos passaram a ser assunto
quase diário da imprensa panfletária local. Sobre esse período, Freyre comentou que os
ladrões de escravos havia então perdido toda a cerimônia, tornando-se o problema uma
calamidade em escândalo nas ruas e cidades do norte.206 Essa dinâmica, como vamos
observar mais adiante, continuou a ocorrer na década de 60 e 70 do século XIX. Por conta
dessa situação de roubos e acoitamentos de escravos, sugerimos que muitas vezes os
pequenos proprietários tinham que se aliar aos grandes para se proteger de outros grandes
proprietários que roubavam ou acoitavam seus escravos. Ao mesmo tempo, os cativos,
diante da situação de roubo (e aqui estamos excluindo a situação de acoitamento, isto é, o
ato de procurar outro patrão, tal como fazem os trabalhadores livres quando insatisfeitos207)
numa disputa familiar e/ou política entre os proprietários, perdiam a conexão com seus
laços horizontais construídos no cativeiro que pertenciam antes de serem roubados. Ao
mesmo tempo, na situação em que ocorresse o acoitamento, o escravo, às vezes, até mesmo
buscasse outro senhor ―se deixando roubar‖, as relações verticais estabelecidas ecoam
novamente o sentido de que ―pequenos se aliavam aos grandes para se defenderem de
outros grandes‖. Assim, observar essas complexas relações horizontais e verticais nos traz
novos subsídios para pensar a sociedade canavieira da zona da mata pernambucana, e nela a
comunidade escrava e seus caminhos para a liberdade e para burlar a ordem hierárquica
existente e/ou criar laços que possibilitassem certos espaços de autonomia.
As relações entre escravos e livres também abriam possibilidades para aqueles
buscarem suas cartas de liberdade via Justiça através das ações de liberdade.
Estruturalmente, a Justiça brasileira também passou por várias transformações entre 1840 e
1870. A legislação modificou e auxiliou os escravos na busca pela liberdade. A lei de

206
FREYRE, G. apud Carvalho, Marcus. Liberdade. Rotinas e rupturas do escravismo no Recife, 1822 -1850.
Recife, 1998, p. 299.
207
CARVALHO, Marcus. Rumores e rebeliões: estratégias de resistência escrava no Recife, 1817-1848.
Revista Tempo, vol. 3, nº 6, dezembro de 1998, p. 10-11.

147
setembro de 1871 foi um grande avanço neste sentido, guardando as devidas ressalvas
como analisaremos mais para frente. Nesse contexto, portanto, temos a Justiça e a Lei como
possíveis mediadores de conflitos num momento onde a legitimidade senhorial e policial
estava se (re)configurando de cima para baixo, e talvez, de baixo para cima. Cientes dessa
dinâmica conjuntural, que trataremos com mais detalhes em breve, consideramos de suma
importância também analisar neste capítulo as ações de liberdade. Não exclusivamente pelo
prisma da alforria como luta escrava (tema que também trataremos nos capítulos 3 e 4),
mas, sobretudo, a ação civil como um espaço de mediação classista dentro de uma
sociedade pernambucana escravista em transformação. Obviamente, para tanto, nossos
grandes interlocutores serão E. P. Thompson e Sidney Chalhoub.
Por fim, voltando-nos para os instrumentos de manutenção da ordem imperial, a
intenção desse capítulo é verificar como o poder senhorial se mantinha ou era ameaçado
pelas relações entre as camadas sociais, e compreender, sobretudo, como eram as relações
de poder e conflito na sociedade de Nazareth na década de 70 e 80 do XIX, investigação
que também nos traz pistas empíricas e locais da série de discussões proporcionadas pelo
Governo e pelo Congresso Agrícola de 1878, assim como para os rumos políticos de
Joaquim Nabuco no pleito de 1885 e 1886.

2.2) Quebrando os quilos: os “de baixo” se revoltam

Rogando por aqui notícias aterradoras de que um grupo de


sediciosos pretendia invadir esta cidade para impedir a cobrança dos
impostos municipais e distribuir os pesos e medidas do novo padrão a viva
força; resolvi reunir um certo número de cidadãos, armá-los e municia-los
para repellir a força desses sediciosos, garantir a ordem e tranquilizando as
famílias. 208

No dia 29 de novembro de 1874, porém, alguns dos ―sediciosos‖, ostentando grande


poder, disseram que possuíam um grande auxílio e entraram pela Povoação de Angélicas
inutilizando os metros, os quilogramas estabelecendo que não se pagassem os impostos.
Eram os sinais da revolta do Quebra Quilos que teve seus manifestantes também na
comarca de Nazareth.

208
Ofício do subdelegado de Polícia do termo de Nazareth, C. de Hollanda Cavalcante Albuquerque para o
Chefe de Polícia da capital. 30/11/1874. (SSS 248 vol 651). APEJE/Recife.

148
Diante da situação, o subdelegado Cavalcanti Albuquerque decidiu, com a ajuda de
outros civis dispostos e aliados, fazer ordem com as próprias mãos e controlar as revoltas
contra as novas medidas implantadas e os impostos. Na volta do delegado, dia 3 de
dezembro, o proprietário e grande senhor Barão de Tracunhaém, a preocupação aumentou,
pois não havia forças policiais arregimentadas para controlar uma revolta que tomava
proporções inesperadas. De volta de Recife, o delegado supôs que encontraria em Pau
d‘Alho alguma força reunida pelo Comendador Superior Luis de Albuquerque Maranhão;
entretanto, não se deparou com força alguma. Não obstante, visto que o povo havia se
pronunciado a favor dos sediciosos, medidas de segurança precisavam ser tomadas. Diante
da situação, o delegado Barão de Tracunhaém emitiu ofício e insistentemente pediu ao
Chefe de Polícia que providenciasse auxílio, de maneira que ―como Delegado deste
Município possa sem quebra de minha dignidade repelir qualquer agressão que por ventura
possa ser teatro esta cidade.‖ 209

O movimento sedicioso é popular e pouco a que esperar do povo, que quase


todo adere a este movimento. O que pode inspirar confiança é a força regular
com cujo auxílio conto que Vossa Senhoria não me faltará e que me será
enviado com a máxima possível brevidade, devendo seu número ser nunca
menos de cem praças sendo neste número incluindo os que vem em caminho,
assim prevenido não recuarei ante qualquer emergência, e tudo enviarei para que
esta cidade um dos pontos sobre que recaem as maiores ameaças, sejão seus
habitantes garantidos.
Os grupos dos sediciosos segundo sou informado, são numerosos por onde
passam vão cometendo devastações, queimando carterios, coletorias e arquivos
de Câmaras Municipais e inutilizando médias e pesos (...) métrico.
Há chefes conhecidos que guiam os sediciosos, entre os quais se distingue
um advogado conhecido por Doutor Leliz o qual a frente de um grupo já foi a
Timbaúba e outros lugares. 210

Para tanto, a força chegou até a cidade de Nazareth dois dias depois, o Barão
comunicou ao chefe da polícia de Pernambuco que os boatos da visita dos ―sediciosos‖ à
cidade até a hora em que tinha escrito o ofício (6 horas da tarde) não tinha ocorrido em
face das providências que foram preventivamente tomadas.211 Assim, além da força de

209
Ofício do delegado de polícia de Nazareth, Barão de Tracunhaém para o chefe de Polícia da província de
Pernambuco, Doutor Antonio Francisco Correa. Nazareth, 3/12/1874. SSS 248 vol 651. APEJE/Recife.
210
Idem.
211
Ofício do delegado de polícia da comarca de Nazareth, Barão de Tracunhaém, para o chefe de polícia da
Província de Pernambuco, Nazareth, 5/12/1874. SSS 248 vol 651. APEJE/Recife. (Apeje 20 nov 22, 23, 24)

149
linha em número de 53 praças sob o Comando do Capitão Policarpio Jorge de Campos,
existia a guarda local em número de 20 praças as quais o delegado fizera juntar uma força
de paisanos que em número de 100, em um primeiro momento, reuniu ainda mais de
acordo com o Marechal Domingos José da Costa Braga, uns vinte e tantos guardas
municipais cujo número poderia ser elevado a 50 sem grande dificuldade. Mesmo assim, o
delegado ainda achava muito conveniente pedir autorização ao Excelentíssimo Senhor
Presidente da Província para que auxiliasse a força de linha, pois acreditava que mesmo a
população nazarena se achando entregue aos seus serviços domésticos, ainda existia o
perigo dos sediciosos encontrarem dentro da Comarca muitos aderentes e muitas
simpatias.
Desse modo, o senhor de engenho não teve dúvidas e mesmo com força armada a
seu dispor durante o dia 5 de dezembro fez

(...) conservar a força em evoluções e passeatas para que ficassem bem cientes
de que o Governo estava atento, e disposto a repelir qualquer atentando.
Da má vontade em que o povo se presta em geral a coadjuvar o Governo
por dizer não quererem pegar em armas contra seus concidadãos, não duvido
acreditar ser um elemento de desordem e que somente na força arregimentada se
pode confiar para por a respeito a essas hordas barbarescas; e a não ser a sorte
que tenho de que o Governo não pode dispor de força, ou poderia o aumento
dela.212

Diante de uma força policial ainda precária, o apoio da população era essencial, no
entanto, em Nazareth ainda não existia tanta simpatia e adesão da população aos
instrumentos de controle do governo imperial. Além do mais, visto a não ajuda da
autoridade governamental, o delegado não teve receios, reafirmou seu poder enquanto
senhor, proprietário e autoridade e aumentou a força policial com auxílio de seus adeptos
mantendo a ordem contra os ―sediciosos‖.
No mais, era preciso gerar o medo social, pois, pelo conteúdo das narrativas
policiais, a população nazarena não se aliava ao governo facilmente e muito menos lutaria
em sua causa. Para o Barão, não existia confiança suficiente para com os cidadãos, fossem
eles pobres, trabalhadores, artesãos. A força arregimentada era mais confiável. É obvio,
portanto, que não se tratava apenas de um grupo de criminosos e sim de uma disseminação
de atitudes e ações populares - e não apenas com a presença de um advogado - as quais
212
Idem.

150
deveriam ser cortadas pelas raízes, antes que florescessem, uma vez que a terra era fértil.
Existia, portanto, um conjunto de causas advindas de um conjunto de medidas
governamentais, mas que frutificava de forma local sugerindo outros embates sociais. De
fato, o Barão não apenas como delegado, mas também como o proprietário-senhor
lamentava-se com o chefe da polícia provincial:

De semelhante verdade Vossa Senhoria certamente está compenetrado.


Quando deixo o meu engenho para vir a esta cidade por-me a gente dos
movimentos, sou informado que os sediciosos pretendem aproveitarem de minha
ausência e assaltarem-me a casa no intuito de tomarem algumas armas; sem que
despreze semelhantes boatos não posso com certeza dizer a Vossa Senhoria o
peso que devo dar.
Peço a Vossa Senhoria que me remeta 1000 capissubas embaladas, por isso
que os mil cartuchos que me foram fornecidos as não trouxeram, e sim da mais a
remessa de cem armas para poder armar a gente de confiança.
Das comunicações, que tenho recebido não consta desacatos cometidos nos
diferentes pontos desta Comarca, além dos que se deram nas povoações de
Angélicas, Aliança e Vicência de que Vossa Senhoria já tem ciência. 213

Quem, afinal de contas, o Barão queria defender? A população ou ele mesmo? De


qualquer modo, nas palavras do Barão parece-nos que se instituía um sentimento de
desconfiança geral. Poucos eram de confiança. E o ataque à sua propriedade sim estava
relacionado com a ―sedição‖ que estava se implantando na região. Os ―sediciosos‖ de toda
forma estavam atormentando os poderes públicos, fosse na forma de roubo ou na forma de
ataques simbólicos contra os pesos e medidas. De um modo ou de outro, o movimento
arregimentou adeptos e construiu um temor para os donos da ordem, da lei e da terra. A
revolta atacou o poder da hierarquia social através do roubo e expôs a fraqueza das
autoridades em praça pública.
O que, de fato, para aquela localidade significava uma rebelião que se colocou na
trilha dos Quebra-Quilos? Será que teria uma possível conexão com as relações sociais que
ali se estabeleciam?
Aqui vale retomar o processo de implantação do Sistema Métrico Francês que
ocorreu no Brasil imperial. Símbolo de modernidade para o país, este novo sistema acabou
representando aos homens livres e pobres uma imposição do governo. Como coloca
Viviane Lima, a interferência direta do Império em suas vidas foi a gota d‘água para essa

213
Idem.

151
população se manifestar contra o governo e suas leis impostas de ―cima para baixo‖ na
chamada Revolta do Quebra-Quilos. 214
Em meados do século XIX, os países europeus e americanos começaram a se
preocupar com a consolidação institucional e com a centralização administrativa, o que
tornou possível a internacionalização do sistema métrico francês, que surgiu neste bojo
como um sistema confiável por seu teor científico, além de um aliado nas transações
comerciais entre os países. Portugal adotou o novo sistema em 1852, e decretou seu uso
compulsório em 1872. No Brasil, as discussões começaram em meados do século XIX, e
entre as dificuldades práticas de se organizar o sistema de pesos e medidas estavam a falta
de instrumentos de medição, de fiscalização, de pessoas habilitadas para fazerem as
aferições ou do próprio regimento de medição.215 As discussões da câmara dos deputados
da década de 60 do XIX nos revelam como os deputados acreditavam que a implantação do
novo sistema enfrentaria dificuldades por parte da população que com todo o histórico de
revolta certamente não aceitaria novos pesos e medidas. Na visão dos ―homens do
governo‖, sendo as camadas inferiores menos civilizadas, era necessário alcançar o
―progresso‖ e a ―civilização‖ através de projetos de modernização contra as tradições e os
costumes da população.216
As mudanças nos pesos e medidas, no entanto, preocuparam setores do comércio
brasileiro. No relatório da Associação Comercial do Rio de Janeiro do ano de 1872, por
exemplo, há a preocupação com os possíveis inconvenientes que esta poderia trazer ao
comércio e, principalmente, ao seu ramo mais importante, o comércio de exportação. Como
coloca Lima, em 1873, houve um pedido da Associação, em nome do seu presidente o
Visconde de Tocantins, ao Ministro e Secretário de Estado, o Visconde de Rio Branco,
solicitando a prorrogação do prazo para a substituição do sistema de pesos e medidas, sob a
alegação de que o comércio ainda não estava preparado para atender tais disposições.217
Chegou-se até a criar uma comissão dentro da própria Associação Comercial para avaliar as
vantagens e desvantagens da nova proposta de medição. Todavia, os pequenos

214
LIMA, Viviane de Oliveira. ―A adoção do Sistema Métrico Francês no Brasil – Modernização ou
Imposição?‖. In: Sociedade brasileira de pesquisa histórica. 26ª reunião, julho de 2006, p. 17.
215
Idem.
216
Discurso de Gomes de Souza na Câmara dos Deputados, em 16 de maio de 1862. Arquivo Nacional. Anais
da Câmara dos Deputados. Tomo I. Ano de 1862, p. 25. Apud LIMA,op. cit., 2006.
217
Relatório da Associação Comercial do Rio de Janeiro. Typographia do Apostolo. Anno de 1873.
Documento 1. Apud LIMA, op. cit., 2006.

152
comerciantes e feirantes de outras regiões do país não tiveram tanto acesso a essas
discussões e foram obrigados a se adaptarem do dia para a noite a um novo sistema de
medidas e pesos, que, aos olhos destes, tratava-se de mais uma medida da elite brasileira.
Como o prazo de dez anos de adaptação não foi respeitado, em 1874, quando o sistema
passou a ser efetuado no Nordeste, a população reagiu mal à implantação dessa lei.
Deflagrou-se a onda de revoltas denominada Quebra-Quilos nas quais se atacavam as
câmaras municipais, coletorias e cartórios para queimar e rasgar documentos públicos
relativos a registros de propriedades, hipotecas e listas de impostos, e assaltavam cadeias
para soltar os presos.218
Conjunturalmente, o movimento do Quebra-Quilos leva-nos também a refletir sobre
o desenvolvimento da cidadania no século XIX. José Murilo de Carvalho, ao analisar os
tipos e percursos da cidadania no Brasil, adota a hipótese de que nossa tradição oitocentista
está mais próxima de um estilo de cidadania construída de cima para baixo; na sua visão,
predominaria a cultura política súdita, quando não a paroquial. 219 Para o autor, o tema da
centralidade do Estado aparece com frequência nas análises sobre o período, tanto nas
contemporâneas como nas mais recentes. A insistência no tema indica, sem dúvida, a
percepção da importância do esforço de construção do Estado nacional no período pós-
independência, assim como a consciência da tradição que herdamos.220 Na visão de
Carvalho, no entanto, por alguma razão, os poucos estudos sobre o desenvolvimento da
cidadania no século XIX têm-se concentrado na participação eleitoral, que corresponde ao
modelo de construção de baixo para cima. Para ele, seria essencial que avançássemos em
reflexões que abarcam, por exemplo, o impacto da expansão do Estado sobre a vida dos
cidadãos, sobre a formação da cultura política, exceção feita, por exemplo, para as reações
negativas da população à ação estatal. O autor inclui nessa perspectiva as revoltas do
Quebra-Quilos, do Vintém, de Canudos e da Vacina Obrigatória, esta no século XX. O

218
BASILE, Marcelo O. N. de C. Consolidação e Crise do Império. In: LINHARES, M. Y. (org.) História
Geral do Brasil. 9a ed. Rio de Janeiro: Campus, 2000, p. 275.
219
José Murilo define cultura política como súdita e paroquial a partir dos conceitos de Gabriel Almond e
Sydney Verba. A cultura súdita seria aquela em que existe um sistema político diferenciado com o qual as
pessoas se relacionam. Mas o relacionamento limita-se a uma percepção dos produtos de decisões político-
administrativas. A cultura paroquial é definida como completa alienação em relação ao sistema político, como
redução das pessoas ao mundo privado da família ou da tribo. Não haveria neste caso nem mesmo um sistema
diferenciado de outras esferas da vida social. CARVALHO, J. M. ―Cidadania: tipos e percursos‖. Estudos
Históricos, Rio de Janeiro, n. 18, 1996.
220
CARVALHO, J. M. ―Cidadania: tipos e percursos‖. In: Estudos Históricos, Rio de Janeiro, n. 18, 1996.

153
caminho analítico de Carvalho é justamente tentar decifrar a natureza desta cultura política
popular.
Assim, para o autor, outras intervenções estatais típicas do século XIX, sobretudo
aquelas que visavam aumentar o controle sobre a vida dos cidadãos, como o registro civil
de nascimento, casamento e óbito e o recenseamento, constituem também momentos ricos
para a análise da natureza da cidadania. A Guerra dos Marimbondos é um bom exemplo de
manifestações populares contra decisões do Estado deste período e que ocorreu justamente
na Zona da Mata de Pernambuco em 1852. E aqui vale fazer um parênteses a fim de
ampliar a compreensão do próprio movimento do Quebra-Quilos e perceber como este fez
parte de um processo histórico de construção e apropriação dos significados da cidadania e
dos novos direitos inscritos na Constituição de 1824 além das pressões econômicas sobre as
populações camponesas.
A guerra dos Maribondos ocorreu por conta do decreto imperial nº 798 de 18 de
junho de 1851, o qual tornava o registro obrigatório nas paróquias de nascimentos e óbitos.
O centro nevrálgico da revolta contra o registro ocorreu nas comarcas de Pau d‘Alho,
Nazareth e Limoeiro, um triângulo de agricultores livres e pobres de origem colonial,
região de produtores de algodão e gêneros alimentícios e, em menor medida, a partir da
primeira metade do século XIX (Pau d‘Alho e Limoeiro), de cana e produtos pecuários.
Segundo Palácios, a eclosão da revolta precisamente nessa área, e a dimensão e a gravidade
incomparáveis que ali atingiram, foi hipoteticamente atribuída à crise do algodão, à
concentração de livres e pobres nessas comarcas por causa da prévia difusão do seu cultivo
e, finalmente, à pressão exercida sobre homens e terras pelo crescimento da plantation.
Uma segunda onda de intensidade da revolta, menor que nos três casos mencionados,
afetou as comarcas da chamada Mata Seca, sobretudo Goiana e os municípios ao norte do
Recife, tradicionais empórios produtores de açúcar, embora consideravelmente menos
férteis e ricos do que os seus congêneres da Mata Sul. Sintomaticamente, para o autor, foi
nessas áreas do norte da região açucareira onde, por causa da menor afluência dos grandes
proprietários de terras, a transição do escravismo ao chamado trabalho livre se daria mais
depressa, a partir de finais da própria década de 1850. 221

221
OLIVARES, Guillerme de Jesus Palácios. ―Revoltas camponesas no Brasil escravista: a Guerra dos
Maribondos (Pernambuco, 1851 -1852)‖. In: Fórum Almanack braziliense no 03. maio 2006, p. 9-39.

154
Assim, segundo Guillermo Palácio y Olivares, esta guerra tratou-se de uma revolta
contra o fim do escravismo, pois esta coincidiu com o processo de aparelhamento do
Estado para enfrentar tarefas tão importantes na construção de uma economia que se
adaptasse às mudanças do capitalismo no âmbito mundial como a estruturação de um
mercado de trabalho livre. Nesse contexto, o movimento significou um ato notável de
resistência por parte dos livres e pobres contra o que aparentemente era uma manobra
envolvente do sistema nascente que dava os seus primeiros passos com o registro e
contabilidade dos recursos humanos disponíveis para a produção da nova fase. Na visão do
autor, a população pobre temia que a mudança do sistema levasse à igualdade pela pobreza.
O registro foi rapidamente apelidado de ―Lei do Cativeiro‖ pela crença popular, pois
coincidindo com a Lei de proibição do tráfico de 1851, esta parecia, na verdade, destinar-se
a recuperar para o escravismo uma ampla camada da população que não tinha, até então,
sido objeto da atenção por parte do Estado ou dos proprietários das plantations açucareiras
da zona mata nordestina.222
Para Palacios, o clima gerou conflitos e tensões também por causa da Lei de Terras,
legislação agrária que vedava as possibilidades de acesso à terra por outras vias que não a
herança e a compra, e dificultava – e condicionava politicamente – a posse sem intervenção
do mercado, na medida em que a fazia explicitamente ilegal, esmagando a classe dos
pequenos produtores não-proprietários de terra, a qual representava a maioria da população
livre e pobre.
No município de Pau d‘Alho (este localizado na mesma região que a comarca de
Nazareth), um dos centros da revolta, Palacios verificou na documentação que apesar da
desconfiança policial de que a revolta advinha de um descontentamento de grupos políticos
da oposição, os próprios pretos, pardos e cabras que tinham visitado o Delegado não
manifestaram, na ocasião, nenhum sentido político nas suas reivindicações, mostrando, pelo
contrário, uma clara e direta preocupação social, quase doméstica, como a condutora do seu
movimento.
Palacios verifica que uma boa parte da documentação, e dentro dela todas as fontes
consultadas no nível ministerial, refere-se à revolta como um movimento que foi
protagonizado pelos homens de cor, pobres e livres, contra quais, supostamente, dirigiam-

222
Idem, op. cit.

155
se as instruções do Regulamento do Registro de nascimentos e óbitos. Outras fontes, mais
generalizantes, caracterizam a insurreição como um conflito, provocado pelos ―homens
pobres e livres‖, ―a maioria do povo‖, ―os povos da comarca‖, ―a gente baixa‖, o ―povo
miúdo‖, ―as classes mais baixas‖, etc. Por último, uma terceira vertente documental
informa sobre um movimento de camponeses ou matutos. Para o autor, portanto, através
das fontes podemos sugerir algumas definições quanto à cor, à classe e à função social e
produtiva dos participantes da revolta.
Como coloca Hebe Mattos, para além de uma base camponesa, a revolta dos
marimbondos parece combinar elementos modernos, com direitos e cidadania, que cada vez
mais ampliavam sua circulação em função das revoltas liberais, com elementos
constitutivos da ordem estamental escravista, especialmente a possibilidade de trânsito
entre a escravidão e a liberdade (e vice-versa), configurando situações de ilegalidade da
condição de escravidão. A manutenção da escravidão pela Constituição de 1824, mesmo
que com base apenas no direito de propriedade, e a restrição legal ao gozo pleno dos
direitos políticos aos libertos acabaram por tornar o que hoje chamamos de discriminação
racial uma questão crucial na vida de amplas camadas das populações urbanas e rurais do
período. Apesar da igualdade dos direitos civis entre cidadãos, reconhecida pela
Constituição, os brasileiros não-brancos continuavam a ter mesmo o seu direito de ir e vir
dramaticamente dependente do reconhecimento costumeiro de sua condição de liberdade.
Se confundidos com cativos e libertos, estariam automaticamente sob suspeita de serem
escravos fugidos – sujeitos, então, a todo tipo de arbitrariedade, se não pudessem apresentar
sua carta de alforria.223
Para Izabel Marson, referindo-se principalmente ao período da Revolução Praieira,
os homens livres e pobres ou de poucas posses do Recife eram iguais aos proprietários
enquanto atores disciplinados nos espetáculos políticos. Se ousassem ganhar autonomia,
travestiam-se em criminosos, ou seja, eram ambígua e contraditoriamente, cidadão-
criminosos, tanto quantos os escravos testemunhas. Assim, o prestar-se ao jogo dos partidos
provinciais em disputa foi até o ponto em que essa participação abriu espaço para o
encaminhamento e reivindicações próprias, das quais tinham plena consciência. Nesta

223
MATTOS, Hebe Maria. ―Identidade camponesa, racialização e cidadania no Brasil monárquico: o caso da
―Guerra dos Marimbondos‖ em Pernambuco a partir da leitura de Guillermo Palácios.‖ In: Fórum Alamanack
braziliens, no 03, maio de 2006, p. 44.

156
perspectiva, essa igualdade representada traz em seu bojo um desdobramento ambíguo e
perverso porque impele para o interior da lei os homens livres pobres e os escravos apenas
como criminosos. Para Marson, ―a igualdade na cidadania proprietária é mera
representação – nos espetáculos públicos ou nos testemunhos – enquanto a igualdade real,
aquela aberta pelo direito à sombra da lei, é a do crime, da repressão‖.224 Em outras
palavras, trata-se do processo histórico de banir a figura do escravo e impor a do cidadão
criminoso, que adentra o universo da lei compulsoriamente, e por via do crime.
Voltando-nos para a revolta do Quebra-Quilos, que, a meu ver, também faz parte
desse processo histórico pernambucano de manifestações populares que buscaram meios de
comunicar e expressar o descontentamento diante das redefinições e representações do
Estado, verificamos o artigo de Roderick Barman que coloca esta revolta como símbolo da
existência de ―camponeses‖ no nordeste brasileiro, os quais mantinham um caminho de
vida bem estabelecido com o qual eles foram capazes de defender de forma conjunta, em
efetiva ação contra os desejos daqueles que usualmente costumavam impor certos
elementos dominantes na sociedade rural. Na visão do autor, praticamente esses grupos de
revoltosos agiram contra o pagamento das taxas (sobre toda carga de grãos e vegetais
vendidos no mercado do dia), pela destruição de pesos e medidas e a queima dos registros
oficiais, principalmente de terras, fato que nos leva a supor o quanto este movimento
possuía ligações com a questão da posse de terra. Segundo o autor, no agreste
pernambucano, de onde saiu a insurreição, o direito da terra através de registros ocorria
desde os tempos das divisões por sesmarias, e assim, muitas famílias ainda possuíam posses
por títulos no século XIX. No entanto, fora aqueles grandes proprietários que estavam em
suas terras, muitos terrenos foram ocupados por ―camponeses‖ que os utilizavam para o
cultivo de produtos vendidos no mercado ou de subsistência. O fato, portanto, de parte
desses lavradores levantarem fogo contra os registros cartoriais intimava diretamente o
governo para olhar o direito de posse para aqueles que estavam usufruindo a terra por
efetiva ocupação. A destruição dos cartórios, portanto, tinha grande significado uma vez

224
MARSON, Isabel Andrade. ―O cidadão-criminoso: o engendramento da igualdade entre homens livres e
escravos no Brasil durante o segundo reinado.‖ Estudos Afro-Asiáticos, Rio de Janeiro, nº 16, p. 141-156,
março de 1989.

157
que tocava o genuíno ponto de discórdia entre os proprietários e os ―camponeses‖ como um
todo – a questão da legalidade dos títulos para a terra.225
Como colocou Marson, o próprio Henri Milet visualizou o Quebra-Quilos como
sintoma de uma profunda crise da agricultura, cujas consequências atingiam toda a
população da região. Para ele, esta se confundia com o ―profundo mal estar de nossas
populações do interior‖ frente ao rebaixamento dos preços dos principais gêneros de
exportação (o açúcar e o algodão), que não cobriam mais os custos de produção. De acordo
com o engenheiro, toda a nação estava ameaçada, pois as suas classes laboriosas e dentre
elas a principal – a dos agricultores, fonte de recursos da sociedade e do Estado e garantia
de ordem pública – corriam o risco de desaparecer juntamente com o capital que acumulara
durante gerações. A demonstração clara deste trágico desfecho fazia-se notar, visto que a
crise já atingia a propriedade mais expressiva desta classe: seus ―instrumentos de trabalho‖,
os escravos. 226
Para a autora Izabel Marson, o motivo que teria levado o engenheiro Milet a
escrever os artigos e a apresentar esta interpretação do Quebra-Quilos seria simplesmente
contribuir para o esclarecimento das verdadeiras origens do movimento sedicioso:

Todavia, sua iniciativa tinha razões mais graves, entre elas, a defesa da
sobrevivência desta classe laboriosa alertando sobre a significação do
movimento, assim como a cobrança de uma atuação mais empenhada e
consequente do governo imperial, que não se restringisse à restauração da ordem
mediante a costumeira repressão física. Era preciso indagar sobre as verdadeiras
motivações da sedição porque era o indício de uma ameaçadora ―revolução
social‖ cujo ponto de partida estava na crise da lavoura.227

Grande parte dos pontos de insurreição do Quebra-quilos ocorreu na Zona da Mata


Norte e Agreste pernambucano. Muito mais revoltas, portanto, aconteceram no norte
canavieiro do que na mata sul.228Salve a informação que na região da mata norte
verificamos a presença maior de pequenos e médios proprietários, rendeiros e homens
livres, a região, desse modo, fugia da dicotomia social: grande propriedade e escravos, e se

225
BARMAN, Roderick J. ―The Brazilian Peasantry Reexamined: the implications of the Quebra-Quilo
revolt, 1874-1875‖. HAHR, Vol 57, no 3, august 1977.
226
MARSON, Isabel. Política, história e método em Joaquim Nabuco: tessituras da revolução e da
escravidão. Uberlância, EDFU, 2008, p. 245.
227
MARSON, op. cit., 2008, p. 246.
228
Ver Mapa em BARMAN, op. cit., 1977, p. 406.

158
aproximava muito do perfil do agreste pernambucano à época. Diante desse cenário sócio-
econômico, Barman e Armando Souto Maior, entre outros estudiosos, classificam o
Quebra–Quilos como um movimento que também teve a presença de pequenos
proprietários e rendeiros, assim como constatamos em Nazareth. Souto Maior, por
exemplo, coloca que em Pernambuco a rebelião ocorreu de várias formas envolvendo
diversas camadas sociais. No caso de Nazareth, tanto através dos registros policiais como
dos estudos de Souto Maior, verificamos a participação no movimento de José Teophilo
Montiro Farias, Manoel Batista Ferraz e Manoel Joaquim de Andrade Lima, filhos e o
genro da ―Senhora do Engenho Cangaú‖. 229
Não exagerando nas conclusões, mas também não perdendo de vista as evidências
locais, em Nazareth acredito que a revolta do Quebra-Quilos pode ter tido repercussões
profundas nas questões relativas à posse de terra e à posse de poderes. A revolta foi contra
as medidas tomadas pelo governo, mas, ao mesmo tempo, também sugere ter sido
localmente contra a classe dos grandes proprietários. De fato, o delegado e senhor Barão de
Tracunhaém deixava bem claro em seus ofícios que aquela revolta pontual parecia lhe
atacar pessoalmente. Mesmo diante dessas considerações, no entanto, não podemos
extrapolar a interpretação de que o movimento dos sediciosos em Nazareth foi uma ação
organizada de um grupo social contra outro; por outro lado, vale sugerir que, em meio aos
atos de revoltas e em momentos de reivindicações, os conflitos intra e entre classes vieram
à tona. Para Barman, o Quebra-Quilos pode ser classificado como um extraordinário
sucesso e sofisticado exemplo de uma forma de ação-revolta comumente empregada em
sociedades pré-industriais e pré-modernas por grupos subalternos contra atitudes oficiais a
fim de chamar a atenção para as suas visões e necessidades e, assim, tentar bloquear
medidas governamentais as quais fossem consideradas desvantajosas para seus
interesses.230 Nesse sentido, vale perceber Nazareth com um perfil sócio-econômico
propício para proporcionar ligações entre feirantes que precisavam se proteger das altas
taxas sobre suas mercadorias impostas pelo governo e os pequenos proprietários e rendeiros
que também queriam proteger seus interesses contra outras vontades reinantes no local. Em
nível nacional, como analisamos anteriormente, a revolta do Quebra-Quilos trazia em seu

229
MAIOR, Armando de A. Souto. Os quebra quilos. Tese de docência livre em História do Brasil, Recife –
UFPE/CFCH, 1976.
230
BARMAN, 1977, p. 423.

159
bojo também uma tentativa de propor novos moldes para a cidadania nascente, ao menos,
uma ação de baixo para cima eles ousaram organizar contra o governo imperial.
Desse modo, no dia 7 de dezembro, na ausência do delegado, o subdelegado
Antonio Joaquim de Barros Lima encaminhou ofício para o Barão de Tracunhaém, pois
chegara a seu conhecimento que um grupo de revoltosos armados de espingardas se
preparava para lhe desmoralizar em vista de que, pedia ao Delegado, alguma força a fim de
ele tentar capturar algum revoltoso.231
Depois de dias de buscas, Barão de Tracunhaém teve a honra de comunicar ao chefe
da polícia que sua reputação de homem da força e da lei estava salva e ele havia realizado a
captura dos 11 indivíduos responsáveis pelos distúrbios no povoado de Angélicas, e contou
que no Engenho Tabatinga, da comarca de Nazareth, havia grande número de ―sediciosos‖
à espera de outros grupos que deviam descer para de novo tocarem fogo nas povoações já
assaltadas. Segundo o delegado, o grupo ainda viria à cidade para praticar os mesmos fatos.
Assim, o Barão não perdeu tempo, reuniu uma força, a ela juntou mais 50 homens a cavalo
e se dirigiu para o Engenho a fim de debelá-los.
Já no dia 12, o delegado Barão de Tracunhaém foi assistir à feira da Povoação de
Alagoa Seca para constatar se de novo os sediciosos pretendiam assaltá-la. Levando com
ele uma força composta da Guarda Nacional, destacados guardas locais e cerca de 50
proprietários a cavalo que lhe acompanharam, prendeu 12 indivíduos participantes da
sedição e recolheu-os à cadeia. Entre os presos, havia os três filhos e o genro da rendeira do
Engenho Cangaú. 232
A força do delegado Barão de Tracunhaém consistia de homens da polícia e de
homens da terra, proprietários que temerosos também queriam ―caçar as bruxas‖.
Ressaltemos o envolvimento de dois Engenhos, Tabatinga e Cangaú, e não como aliados,
mas como espaços que de forma suspeita passaram ou saíram os ditos ―sediciosos‖. Se dias
atrás em Nazareth os perseguidos agremiaram populares, no avançar dos ataques juntaram
ao grupo a família da rendeira do Engenho Cangaú. Aos poucos as informações nos

231
Ofício do subdelegado de Polícia 2º distrito da freguesia de Nazareth, Antonio Joaquim de Barros Lima
para o delegado de Polícia do Termo de Nazareth, Barão de Tracunhaém, 7/12/ 1874. SSS 248 vol 651.
APEJE/Recife.
232
Ofício do delegado de Polícia de Nazareth, Barão de Tracunhaém para o delegado de Polícia da Província,
Doutor Coronel Antonio Francisco Cavalcante de Albuquerque, Delegacia de Polícia de Nazareth, 15/12/
1874. SSS 248 vol 651. APEJE/Recife.

160
sugerem que o Quebra-Quilos da comarca abrangia mais camadas sociais, mais espaços de
ação e causava mais preocupações para os proprietários e dirigentes.
Em janeiro do ano seguinte, o delegado notificou que

Entre os indivíduos que prendi na povoação de Angélicas como


sedeciosos e quebrador de kilos e medidas foi Manoel Antonio Galdino de
Oliveira, o qual o que se acha recolhido a Cadêa desta Cidade e esta denunciado
para ser processado.
Esse indivíduo veio para esta Comarca do lugar de Alagoa Grande de Pau
d´Alho da Parahiba, onde é criminoso de morte segundo me foi informado por
pessoas fededignas que a elle ali conhecido por Antônio Mussú donde veio para
esta Comarca para evitar-se a ser ali prezo, a vista de que venho participar a V.
Sa para que mande sindicar se com effeito ouve n‘aquelle lugar, este no anno de
1853 para cá e aguardo a resposta de V. Sa. 233

É interessante perceber como as ideias de revolta contra o governo migraram da


província da Paraíba para Pernambuco. Vale dizer que a polícia de Nazareth insistia em
figurar Manoel Antônio Galdino de Oliveira como criminoso de morte também justificando
mais a sua prisão e condenação. No Engenho Posso Comprido, Thomas de Aquino Ferreira
foi preso como suspeito de criminoso e, tendo sido recolhido na cadeia no dia 23 de janeiro
de 1875, respondeu que sendo morador em Itambé (PE), assistiu ao Quebra-Quilos e o tal
Belo Cordeiro, morador em Amangi (PE), foi o mandante da revolta. E assim, Aquino
Ferreira foi encaminhado para o exército e se caso fosse ele casado, voltaria para Itambé e
seria processado por ―sedição‖.234
A polícia de Nazareth não registrou mais sinais do movimento dos ―sediciosos‖,
revolta que se foi duramente reprimida pela polícia nos anos de 1874 e 1875, não
necessariamente exterminou outras formas de contestação ali existentes. Assim, entender a
lógica do silêncio policial não nos indica que os trabalhadores ficassem calados diante de
situações de repressão e exploração. Por outro lado, não vejo indícios, como verificou
Luciano Mendonça de Lima em Campina Grande (PB), da ação de escravos que durante
uma revolta do Quebra-Quilos em 1874 resolveram se insurgir e impor sua liberdade aos

233
Ofício do delegado de Polícia de Nazareth, Barão de Tracunhaém para o Chefe de Polícia de Pernambuco.
Delegacia de Nazareth, 10/01/ 1975. APEJE/ Recife. Apeje 20 nov 040.
234
Ofício do delegado de Polícia de Nazareth, Barão de Tracunhaém para o Chefe de Polícia de Pernambuco,
Antônio Francisco Cavalcanti de Albuquerque. Delegacia de Nazareth. 23/01/1975. APEJE/Recife. Apeje 20
nov 041.

161
senhores.235 E é justamente esse misterioso indício que nos intriga. Em Nazareth, quem
resolveu se juntar aos Quebra-Quilos foram os trabalhadores feirantes, moradores de
engenhos e rendeiros.
Luciano de Lima, em sua tese de doutoramento, realizou uma pesquisa que
investigou a dinâmica da escravidão no município de Campina Grande, agreste paraibano,
priorizando o processo de formação de uma cultura de resistência escrava ao longo do
século XIX. Analisou nessa vertente, entre outros assuntos, a importância do parentesco
consanguíneo e espiritual no processo de formação de uma comunidade escrava de
interesses e as variadas estratégias de lutas da escravaria local por dignidade e liberdade,
expressas na criminalidade, no movimento de fugas e nos embates jurídicos com seus
senhores.
Na análise conjuntural do autor, a preocupação com a ordem foi um dos aspectos
centrais da formação do Estado-nação no Brasil ao longo do século XIX, a ponto da
temática se transformar numa verdadeira obsessão presente nas falas e atitudes das
autoridades envolvidas com a questão. Para Lima, esses objetivos, porém, nem sempre
eram alcançados. Mesmo com a montagem do aparelho de Estado e seu paulatino
enraizamento em âmbito local, as coisas não caminharam conforme as expectativas das
autoridades e das elites em formação, pois ―o povo‖ muitas vezes se recusava a aderir ―às
instituições livres‖, que, afinal, vistas de outro ângulo, não eram tão livres assim, gerando
disputas e informando conflitos.

Em diferentes conjunturas do século XIX, a província da Paraíba foi palco


de diversos eventos que ora convergiam ora destoavam dos rumos dos
acontecimentos nacionais. Os seus diferentes grupos oram apoiavam, ora
negociavam, ora contestavam as decisões emanadas do Rio de Janeiro. No
processo de descolonização, certos setores aderiram ao projeto recolonizador das
cortes de Lisboa, outros abraçaram o projeto de um Império luso-brasileiro,
alguns poucos defenderam projetos alternativos que redimensionasse a relação
entre Estado e sociedade. Durante o tumultuado período das regências esse
quadro se repetiu, com diferentes projetos em disputa. Todavia, foi na segunda
metade do século XIX (coincidindo, portanto, com a consolidação do projeto de
nação vencedora, o dos saquaremas) que explodiram dois importantes
movimentos sociais na região, colocando em cena não só setores das elites, mas
também segmentos das camadas populares, evidenciando as contradições de

235
LIMA, Luciano Mendonça de. ―Sombras em movimento: os escravos e o quebra-quilos em Campina
Grande‖. Afro-Asia, 31(2004), p.163-196.

162
uma suposta tranquilidade pública, com a eclosão de revoltas como o Ronco da
Abelha (1851/1852) e o Quebra-Quilos (1874/1875).236

Dentro dessa conjuntura, Luciano de Lima discorre sobre como os escravos


campinenses construíram ao longo do tempo o seu ―campo negro‖, um substrato político e
cultural que informava a resistência cotidiana. Em determinadas circunstâncias, os
interesses destes negros fujões com a escravaria que permanecia resistindo com outras
armas nas senzalas (ou ranchos) poderiam resultar em alianças políticas bastante perigosas
para a elite escravista. É o que parece ter acontecido na conjuntura que cercou a revolta do
Quebra-Quilos na Paraíba, que teve em Campina Grande o seu epicentro. Naquele contexto
de desordem social, a escravaria, em aliança com libertos, aproveitou a ocasião para fazer
avançar a sua luta, protagonizando talvez a única insurreição de escravos locais da qual se
tem conhecimento.237
Assim, Lima questiona: quem eram estes escravos? Quais as suas expectativas e
visões de mundo? Que falas e gestos eles acrescentaram ao conturbado cenário do Quebra-
Quilos? Por que resolveram se insurgir ‗querendo impor a sua liberdade a seus
senhores?‘238 Entre as conclusões, Lima coloca que os escravos que aproveitaram da
movimentação do Quebra-Quilos e organizaram uma insurreição lutaram contra os efeitos
perversos advindos do rearranjo das atividades econômicas locais, em particular o cultivo
do algodão. Também protestaram contra o tráfico interprovincial, danoso para suas vidas,
as de familiares e parceiros. ―Acima de tudo, lutaram para preservar, alargar e conquistar a
liberdade, em particular através das possibilidades abertas pela chamada Lei do Vente
Livre.‖239 Para o autor, parafraseando E. P. Thompson, as ações escravas no interior do
Quebra-Quilos podem ser lidas como uma ―resposta mental e emocional (...) de um grupo
social a muitos acontecimentos inter-relacionados‖. 240

236
LIMA, Luciano Mendonça de. Cativos da „Rainha da Borborema‟: uma história social da escravidão em
Campina Grande – século XIX. Recife, UFPE, Tese de Doutorado, 2008, p. 85-87.
237
LIMA, 2008, p. 291. Outras informações ver LIMA, Luciano Mendonça de. Derramando susto: os
escravos e o Quebra-Quilos em Campina Grande. Campina Grande, EDUFCG, 2006, especialmente pp.
157/227.
238
LIMA, Luciano Mendonça de. ―Sombras em movimento: os escravos e o quebra-quilos em Campina
Grande‖. Afro-Asia, 31(2004), p.163-196.
239
LIMA, op. cit., 2004, p. 196.
240
LIMA, op. cit., 2001, p. 196. THOMPSON, E. P. A miséria da teoria ou um planetário de erros. Rio de
Janeiro, Zahar, 1981, p. 15.

163
Pensando uma comparação entre o movimento do Quebra-Quilos de Nazareth e de
Campina Grande, bem como a participação os escravos, vale colocar que neste município,
Lima esclareceu que, assim como nas outras localidades do norte do Império, tratou-se de
uma revolta popular que contou com a adesão das mais variadas camadas sociais pobres e
livres: pequenos comerciantes, agricultores, feirantes, moradores, agregados, vaqueiros,
rendeiros, artesãos, desocupados. Porém, no caso dos escravos de Campina Grande, estes,
embora estabelecessem formas de solidariedade no dia a dia e partilhassem muitos aspectos
da vida cotidiana, isso por si só não seria suficiente para que escravos e pobres livres
atuassem em conjunto contra adversários comuns, quais sejam, os grandes proprietários e
as autoridades responsáveis pela manutenção da ordem imperial ameaçada. Como expõe
Lima:

Uma possível razão talvez fosse a circunstância de que os interesses


escravistas ainda eram fortes o suficiente para juntar numa mesma frente
grandes, pequenos e médios proprietários. Sabemos que, a exemplo de outros
municípios do Brasil escravista, a estrutura de posse escrava em Campina
Grande era ‗elástica‘ o suficiente, sendo o proprietário típico local aquele que
possuía entre um e quatro escravos. Esses pequenos escravistas muitas vezes
dependiam para sobreviver diretamente do trabalho de seus poucos cativos,
situação que se acentuava em momentos de crise econômica e social, caso da
década de setenta, com os problemas que atingiam o algodão, a produção e
comércio de alimentos e o próprio declínio e perda de legitimidade da instituição
escravista.241

Conclui o autor que muitos dos que inicialmente aderiram ao movimento viram com
preocupação e espanto a entrada em cena dos escravos, após cerca de um mês do início das
manifestações populares. Para Lima, em uma situação-limite de comoção social, prevaleceu
entre ―grandes‖ e ―pequenos‖ o instinto de sobrevivência e de preservação de certo modo
de vida ameaçado. Assim, avalia o autor que ―os escravos entraram na festa sem serem
convidados, à revelia de tudo e de todos. Tiveram que trilhar um caminho próprio, com
palavras de ordem e estratégias de luta específicas.‖242
Comparando a demografia escrava de Campina Grande, na Paraíba, e Nazareth, em
Pernambuco, observamos que Nazareth possuía um número maior de escravos do que
Campina na década de 70 e 80 do XIX. Assim comparando os dados recolhidos por Lima

241
LIMA, op. cit., 2004, p. 195.
242
LIMA, op. cit., 2004, p. 195.

164
sobre Campina Grande e os dados sobre Nazareth, analisados no primeiro capítulo desta
tese, observamos o seguinte quadro:

Quadro 18 : Escravos em Campina Grande (PB) e Nazareth (PE) entre 1851 e 1887

Município Escravos
1851 e 1859 1872 e 1873 1887
Campina Grande (PB) 3.443 (1851) 1.105 (1872) 543
Nazareth (PE) 4.487 (1859) 6.543 (1873) 3.196
Fonte: LIMA, Luciano Mendonça de. ―Cativos da ‗Rainha da Borborema‘: uma história social da escravidão
em Campina Grande – século XIX‖. Recife, UFPE, Tese de Doutorado em História, 2008. Mapa da
População escrava da província. Secretaria do Governo de Pernambuco, 28 de fevereiro de 1859. Diretoria
Geral de Estatística. Relatório e Trabalhos Estatísticos apresentados ao Ministro e Secretário de Estado dos
Negócios do Império. Rio de Janeiro, 30/04/1875. Diário de Pernambuco, 24/11/1887. In: MELLO, José
Antônio Gonçalves de. O diário de Pernambuco e a História Social do Nordeste. Recife, Diário de
Pernambuco, 1975, PP. 648 e 649.

Existiam muito mais escravos em Nazareth do que em Campina Grande. O mesmo


vale para a população livre: Nazareth com 35.631 e Campina Grande com 13.999 em 1872.
Aquele, portanto, era um município bem maior que este. O pesquisador Luciano de Lima
ainda ressalta que em Campina Grande havia uma alta concentração de riqueza. Segundo o
autor, apesar da maioria dos inventários pesquisados apresentarem uma grande quantidade
de proprietários com riquezas médias, existia uma profunda desigualdade da distribuição da
riqueza entre as maiores e as menores fortunas, ou seja, entre a base e o topo da escala
social. Nesse sentido, para o autor, estes dados vêm corroborar as tendências observadas
para várias regiões do Brasil Império, onde havia uma alta taxa de concentração de riqueza
nas mãos de uns poucos.243 Em Nazareth, observamos que também existia uma
concentração de renda, e de forma semelhante, a predominância era de médios
proprietários.244 No entanto, acredito que a pergunta é: como os escravos e livres não
pertencentes à classe de proprietários abastados se comportaram diante da conjuntura da
segunda metade do XIX, principalmente diante da revolta do Quebra-Quilos? Quais eram
as possibilidades de articulação e resistência entre livres, libertos e escravos e
proprietários?

243
LIMA, op. cit., 2008, p. 78.
244
Mais informações detalhadas sobre este assunto no capítulo 3 desta Tese.

165
No caso de Campina Grande, Lima verificou que os escravos vinham construindo
cotidianamente um ―campo negro‖ de resistência e que traziam em seu bojo alianças com
libertos e livres, fato que possibilitou a oportunidade de organizar um susto à elite
escravista durante a manifestação do Quebra-Quilos. No ano de 1871, por exemplo,
momento em que ocorreu a revolta, o pesquisador encontrou diversas evidências de
escravos que entre uma bebedeira e outra acabavam aos gritos de viva a liberdade e viva a
República (detalhe que estes escravos em sua maioria eram pernambucanos). Ao mesmo
tempo, Lima também verificou que no ano de 1871 ocorreu um aumento significativo das
ações de liberdade movidas por escravos contra seus senhores. Assim, para o historiador,
em 1874 os escravos campinenses tinham experiência adquirida. O ato dos escravos no
Quebra-Quilos em Campina Grande procedeu, sobretudo, por conta de redes de contato
entre escravos e os líderes da rebelião, bem como vínculos de parentesco e amizade.245
Voltando-nos a Nazareth, o que podemos pensar sobre esta sociedade e as ações dos
escravos nela? Em outras palavras, quais eram as possibilidades escravas na sociedade de
Nazareth nas últimas décadas do século XIX? Primeiramente, acredito que entre Campina
Grande e Nazareth há uma grande diferença econômica e social no que diz respeito à
presença dos engenhos de açúcar, estes muito maiores na comarca pernambucana. A
comunidade escrava era residente em sua maioria na área rural da cidade, dificilmente
frequentava tavernas como os negros fugidos das fazendas que Lima aponta em seu
trabalho. Existia, portanto, uma diferença social e cultural quanto ao cotidiano vivido pelos
escravos das duas localidades. No caso de Nazareth, as revoltas se deram aos sábados nas
feiras das paróquias. Ao mesmo tempo, em Nazareth também verificamos (e nos próximos
capítulos analisaremos com detalhe) escravos participando de ações de liberdade, processos
de alforrias, juntando pecúlio e, mais ainda, realizando festas e gritando vivas à liberdade.
Que explicações, portanto, podemos aferir para o silêncio dos escravos diante dessa revolta
popular? Muitas, certamente. Todavia, por hora, sugiro que Nazareth, além de abrigar seus
escravos em grande maioria nos engenhos, que nem sempre eram tão próximos da sede da
comarca, também era palco de uma disputa política entre conservadores e liberais, bem
como de uma classe proprietária que se vestia do discurso abolicionista e que, portanto,

245
Vale ressaltar que o autor elenca uma série de possíveis causas para a ação dos escravos na revolta. Ver
mais LIMA, Luciano Mendonça de. Sombras em movimento: os escravos e o quebra-quilos em Campina
Grande. Afro-Asia, 31(2004), pgs.163-196.

166
aparentemente e publicamente dominava a cena social e política local. Aos escravos,
engendrar nesta malha relacional estabelecida demandaria ações mais ardilosas, camufladas
ou que contivessem pitadas de acomodação.
O Quebra-Quilos de Nazareth trouxe à tona outros conflitos presentes na sociedade
local. Conflitos e desequilíbrios que nos interessam justamente para compreendermos a
complexidade social, econômica e política da sociedade foco deste estudo. Quando
propomos uma comparação demográfica, observamos que fisicamente a presença escrava
em Nazareth era bem maior que Campina Grande, e que até a véspera de 1887, esta se fazia
viva. A causa, portanto, de uma não participação escrava na revolta do Quebra-Quilos não
tange fatores quantitativos. Pensar que em Campina Grande havia uma comunidade cativa
mais organizada e culturalmente mais resistente também não se aplica, uma vez que
também verificamos ações de luta em Nazareth. Obviamente, é necessário analisar os
pormenores, contudo, neste exercício comparativo, o que me salta aos olhos não é o
silêncio de um e os gritos dos outros, mas como um movimento que podemos considerar
como uma revolta de baixo para cima, com buscas até mesmo por uma reavaliação da
cidadania que estava se propondo no império brasileiro, excluía ou incluía os escravos
publicamente. Aposto que o primeiro passo é mergulharmos mais um pouco nesta
sociedade nazarena quebradora de quilos e, principalmente, aprofundarmos a pesquisa no
outro lado da moeda, isto é, nos livres e proprietários, estes sim participantes da revolta. De
antemão, contudo, vale sugerir que Henri Milet apontou o Quebra-Quilos como uma crise
na lavoura. Uma crise que atingia também a mão de obra. As análises de Hebe Mattos, José
Murilo e Izabel Marson nos fazem compreender que existia uma conjuntura política
imperial que propunha uma cidadania apoiada numa visão do cidadão-criminoso, na qual,
obviamente, escravos, libertos e livres pobres sob qualquer tentativa de autonomia se
encaixariam. Cabe-nos perguntar: seria sábio, por parte dos escravos, aderir a um
movimento que sinalizava um racha na classe dos proprietários e correr o risco de ser preso
ou castigado como criminoso perante a sociedade e seus senhores? Talvez existissem outras
formas de ação, menos revoltosas, mas mais eficazes, ou não. Na verdade, acredito que
existiam outras alianças sociais plausíveis na sociedade nazarena, alianças horizontais e
também verticais.

167
Desse modo, considero que esses conflitos sociais nos trazem pistas dos espaços
reais que os escravos tinham para criar embates e resistir contra seus senhores.
Provavelmente, estes se encontravam no cotidiano das fazendas e engenhos e, por outro
lado, nos conflitos mais urbanos, a arena se formava entre ―populares‖ e também parte da
―classe dos médios e pequenos proprietários e/ou rendeiros‖. Esses conflitos, por sua vez,
revelam-nos uma rede de poderes e embates que certamente influenciava as outras formas
de resistências. Vale dizer que abastados proprietários, que se tornaram delegados
assumindo uma autoridade vigilante e controladora em nome do Estado, foram alvos da
insatisfação de classes senhoriais menos abastadas. De que forma esses conflitos teriam
ameaçado a força senhorial e criado rachas na estrutura escravista nazarena?
Henrique Milet de certa forma vivenciou esse drama no texto Quebra-Quilos em
1876. Como salienta Izabel Marson

(...) o engenheiro confundiu o descontentamento das ‗massas ignorantes‘


rebeladas contra o governo imperial com os personagens do ‗drama‘ vivido por
sua classe. Sem recursos materiais e humanos para (re)produzir o feito da Praia
no passado – então confiscados pela política liberal conservadora -, pugnou da
única maneira possível. Associou sua tragédia à dos quebradores de pesos e
medidas e registrou na imprensa protesto contra a política que ―conciliou‖ os
grandes proprietários da Província e do Império de ambos os partidos e
―debelou‖ a maioria dos senhores. Isso porque, o mesmo encaminhamento que
colocou os banguês de ‗fogo morto‘ fez falir produtores de café de variadas
posses no vale do Paraíba, em Minas, no Rio de Janeiro.246

Parece-nos que, na realidade pernambucana da década de 70 do XIX, outros atores


sociais decidiram pegar o barco da revolta do Quebra-Quilos: a classe dos pequenos e
médios proprietários.

2.3) Quebrando as composturas: que moral é essa?

Possivelmente, esses tipos de intrigas e conflitos entre senhores e proprietários de


diferentes rendas, tamanho de escravarias e de propriedade existiam com certa frequência
pelas comarcas de Pernambuco e outras Províncias. Do mesmo modo, os confrontos
políticos entre Liberais e Conservadores pululavam de diversas formas nas vilas e

246
MARSON, op. cit., 2008, p. 273-274.

168
municípios. Mais ainda, vale lembrar que o momento que estamos tratando é logo após a
Lei do Ventre Livre, a qual pôs em cheque alguns aspectos da sociedade escravista, outros,
talvez não. No mais, o intuito aqui é compreender a dinâmica local diante de um processo
de centralização do Estado monárquico no Oitocentos.
Nacionalmente, o Brasil estava passando por mudanças sócio-políticas que atingiam
a população de modo geral, ainda que não de forma homogênea. Como coloca Wellington
da Silva, o início da década de 1850 representou um divisor de águas na história política e
institucional do então recente império brasileiro. Em 1850, iniciou-se a ―pax brasilis‖, um
período em que os graves e sangrentos conflitos entre as elites provinciais e o governo
central foram suprimidos e instaurou-se a política de ‗conciliação nacional‘.247
De modo geral, podemos considerar que o segundo Reinado do Brasil consistiu na
elaboração de mecanismos políticos capazes de resolver suas diferenças internas, sem que a
ordem vigente fosse ameaçada. Mantida a Constituição e o sistema parlamentar, sem abrir
mão do sistema escravista, a dificuldade residia em conciliar o Estado Imperial de forma
centralizada (na visão dos dirigentes, indispensável para conservar a ordem) com a
necessidade de cultivar os interesses e de atender às demandas das oligarquias locais, onde
se situava o poder econômico. Segundo Neves e Machado, o governo central não podia
prescindir de assumir compromissos com os proprietários locais, responsáveis por 70% de
suas rendas. E estes tampouco podiam dispensar o crescente aparato administrativo e
burocrático de que aquele dispunha para manter a ordem. Gerava-se, dessa forma – nas
palavras de José Murilo de Carvalho – uma dialética da ambiguidade nas relações entre a
capital e as províncias, entre os centros e as periferias, que viabilizava a elite imperial tanto
no papel de mantenedora das tradições quanto de introdutora das inovações. ―No país ideal
das elites, o Estado e a sociedade alcançariam, assim, a correspondência, a afinidade, que
faltava ao país real.‖248
Assim, como ressaltam Neves e Machado, a unidade nacional só pôde assegurar-se
pela construção de estruturas e redes de poder locais, voltadas para a manutenção do
prestígio e dos interesses oligárquicos. Construiu-se uma política monárquica em que se

247
SILVA, Wellington Barbosa da. Entre a liturgia e o salário: a formação dos aparatos policiais no Recife
do século XIX (1830-1850). Recife, UFPE, Tese de doutorado em História, 2003, p. 199.
248
NEVES, Lúcia Maria Bastos & MACHADO, Humberto F. O império do Brasil. Rio de Janeiro, Nova
Fronteira, 1999, p. 275 e 276.

169
buscava permitir que os poderes locais funcionassem em sintonia com os gabinetes
ministeriais, superando as fronteiras regionais e firmando certo consenso sobre as
diferenças entre facções diversas. Contudo, como colocam os autores, ―o sistema não
poderia funcionar sem um mecanismo que aglutinasse a base ao topo e que desse espaço, ao
mesmo tempo, às manifestações de incompatibilidade, ainda presentes, no dia-a-dia das
elites locais‖.249
Aqui retomo a visão de Richard Graham de que o Estado é um artefato cultural,
construído precisamente para legitimar o que poderia ser visto como ilegítimo – o domínio
de uns sobre os outros. Nessa perspectiva, não era apenas necessária a força que tentaria
monopolizar, mas também, instrumentos culturais que criassem uma visão de mundo, de
atitudes e noções através das quais seu domínio viria a ser tido como conveniente e certo.
Dessa forma, salienta Graham, o Estado imperial combinaria a ameaça da força com o
consentimento. Não à toa, proprietários e escravocratas espalhados por todo o Brasil, em
fazendas e estâncias de gado, de onde eles dominavam a política local, tomaram a iniciativa
de construir um Estado para controlar os pobres e os escravos, tornando-se, portanto, os
mais importantes atores políticos nessa sociedade predominantemente agrícola. 250
No mais, além das eleições que desempenharam um papel fundamental para a
construção dessa rede de poder ao longo dos Oitocentos,251 o governo também propôs uma
reestruturação do sistema judicial e policial do Império. Segundo Wellington da Silva, nos
últimos anos da década de 1830, um gabinete ministerial composto por ―conservadores
convictos‖ assumiu as rédeas de controle do Estado e se empenhou numa campanha pela
restauração da ordem. No campo legislativo, preocupou-se em desfazer as reformas liberais
que tinham sido estabelecidas nos primeiros tempos da Regência. Esta intervenção em duas
frentes acabou produzindo excelentes resultados, pois tanto o sucesso das armas contra os
rebeldes quanto as leis que foram elaboradas, neste momento, acabaram criando as bases

249
Idem, op. cit., p. 276.
250
GRAHAM, R. ―Construindo uma nação no Brasil do século XIX: visões novas e antigas sobre classe,
cultura e estado‖. Diálogos, vol. 5, no 1(2001), p. 11-47.
251
Graças à regularidade, a cada quatro anos, elas ofereciam a possibilidade de uma alternância de partidos no
poder, entre conservadores e liberais. De 1885 até 1881, as eleições realizavam-se em dois turnos: primeiro,
os votantes definiam os eleitores, entre as figuras mais proeminentes do local; formados, assim, esses colégios
eleitorais, um para cada distrito, eram eles, em seguida, que selecionavam os deputados para a Assembleia
Legislativa. Quando da morte de um senador, também indicavam três nomes para a escolha do imperador.
NEVES, Lúcia Maria Bastos & MACHADO, Humberto F. O império do Brasil. Rio de Janeiro, Nova
Fronteira, 1999, p. 277.

170
para a reconstituição da autoridade no país – sendo responsáveis pela consolidação do
Império e pela manutenção da segurança interna nos quarenta anos seguintes.252 Segundo o
autor, o programa reformista do Gabinete conservador pretendia retirar das assembleias
provinciais e devolver ao governo central o controle do sistema judicial e policial do
Império. Seus objetivos básicos, para isso, eram a reforma do Código do Processo Criminal
de 1832 e a ―interpretação‖ do Ato Adicional de 1834. Assim, a lei de Interpretação,
aprovada em 1840, pôs um fim à autonomia que as assembleias provinciais vinham
desfrutando desde 1834. A lei distinguiu a polícia administrativa da polícia judiciária e
subordinou esta última ao governo central. E para fechar o ciclo reformista, a aprovação da
Lei n.˚ 261, de 1841, complementada pelo Regulamento nº 120, de 1842, acabou com a
descentralização da Justiça que, quase uma década antes, havia sido estabelecida pelo
Código do Processo. Segundo Silva, uma das consequências diretas desta última lei foi a
retirada das atribuições policiais que tinham sido da alçada dos juízes de paz (e depois, no
caso de Pernambuco, dos prefeitos de comarca) e a transferência destas mesmas atribuições
para as mãos dos delegados e subdelegados de polícia (agentes que, diferentemente dos
juízes de paz, seriam escolhidos pelos representantes do imperador na Província). Como
conclui o autor, em tese, com estas reformas, o controle da justiça e da polícia saía do
âmbito da autoridade municipal e passava para as mãos do governo central transformando a
nova estrutura judiciária e policial em uma máquina centralizadora que descia do Imperador
ao inspetor de quarteirão.253Vale, contudo, constatar que com a reforma do código criminal
em 1871, mudaram-se as regras, separou-se o exercício de cargos policiais e judiciais ao
mesmo tempo, o chefe de polícia perdeu o poder de julgar e sentenciar as contravenções e
os crimes menores. Na década de 70 do XIX, a cultura de controle institucional vai se
modificar abrindo brechas dentro da lei para que certos impasses se resolvam apenas no
âmbito jurídico, um possível campo de conflito.
No caso das eleições, como descreve Marcus Carvalho e Bruno Câmara, depois das
chamadas ―leis reacionárias‖ de 1841-1842, as eleições provinciais não colocariam mais em
risco os planos do jovem imperador e dos sucessivos gabinetes ministeriais, que teriam
também um presidente, depois de 1847, protegendo a figura do monarca de ser apontada

252
SILVA, op. cit., 2003, p. 199.
253
SILVA, op. cit., 2003, p. 200.

171
como responsável pelos fracassos dos ministérios. Nas localidades, a chave da vitória
eleitoral era a mesa de qualificação, que decidia quem era votante, quem era eleitor.
Presidindo a mesa, estava o juiz de paz, cargo eletivo bastante disputado, mas dependente
de arranjos políticos muito acima dos interesses restritos das paróquias do interior. Os
presidentes de província e o ministro da Justiça, indicados no Rio de Janeiro, garantiam a
vigilância final sobre as urnas e o controle sobre os votantes e eleitores, ao designarem os
delegados e subdelegados de polícia e os comandantes das guardas nacionais, que também
influíam decisivamente nas eleições dos juízes de paz.254
Se antes de 1841 eram os juízes que assumiam responsabilidades policiais, depois
da Lei nº 261 do mesmo ano, os empregados da polícia assumiriam responsabilidades
judiciais. Como ressalta Richard Graham, esta lei controversa deu responsabilidades
judiciais consideráveis aos delegados de polícia e fez deles o foco da tomada de decisão
sobre os cidadãos comuns. Segundo o autor,

Eles não apenas acusavam, mas também reuniam provas, ouviam


testemunhas e apresentavam ao juiz municipal um relatório escrito do inquérito,
no qual o juiz baseava seu veredicto. Além de expedir mandados de prisão e
estipular fianças, delegados julgavam casos menores, como a violação de
posturas municipais. Eles podiam confiar em poderosos instrumentos legais para
cumprirem seus desejos, por exemplo, o direito de prisão preventiva para quase
qualquer crime e o direito de requererem termos de bem viver, que, caso fossem
violados, levariam à prisão e, quase que automaticamente, à condenação.
Delegados podiam temperar a severidade com a clemência paternalista,
especialmente para quem estavam politicamente comprometidos, mas, sem
dúvida, permanecia na mente de qualquer um que a benevolência poderia
facilmente tornar-se castigo. A primeira tarefa deles era manter a paz.255

Para Graham, ainda mais importante para fazer cumprir as leis eram os delegados de
polícia em cada município, e subdelegados em cada distrito. Esses oficiais, assim como os
oficiais da Guarda Nacional, não recebiam salários e obtinham seus rendimentos de suas
atividades particulares comuns. Eles, normalmente, viviam na localidade e
preferencialmente indicavam para os postos de sub e delegado os cidadãos mais
―abastados‖. No campo, muitos possuíam terras e procuravam tais posições oficiais a fim de

254
CARVALHO, M. & CÂMARA, B. ―A insurreição Praieira‖. Almanack braziliense. Nº 08, novembro
2008, p. 8.
255
GRAHAM, R. ―Construindo uma nação no Brasil do século XIX: visões novas e antigas sobre classe,
cultura e estado‖. Diálogos, vol. 5, no 1(2001), p. 11-47.

172
exercer uma autoridade complementar e estender os seus favores, isenções e proteção
à sua clientela.256 E ainda sobre esta discussão, Holloway comenta que de fato, no Brasil, a
legitimidade e a estabilidade fornecidas por uma monarquia teoricamente forte, finalmente,
confirmaram-se, na prática, no seu processo de conduta com as revoltas regionais e
ameaças de grande transformação durante o segundo quarto do século XIX, e serviram
como incentivo poderoso para a unidade nacional entre elites regionais. Ao mesmo tempo,
na opinião do autor, aquelas elites agrárias e comerciais foram capazes de recorrer à
autoridade e aos recursos do Estado, operando através de redes patronais, para reforçar seu
domínio sobre os sub-sistemas regionais e locais – interesse próprio local funcionava em
simbiose com as instituições de um aparato de estado centralizado teoricamente.257 E como
exemplo disso, veremos a seguir alguns casos em Nazareth.
De qualquer forma, é relevante salientar, como coloca José Murilo de Carvalho, que
da elite política imperial, vinda de uma tradição lusitana ou com formação em Portugal,
derivou uma homogeneização e um sistema político voltado para a Monarquia, zeloso pela
unidade, cioso da centralização político-administrativa e contando com baixa
258
representatividade e sentimento de cidadania. No entanto, as relações entre governo
imperial e as elites regionais em diferentes aspectos sócio-econômicos e políticos como a
questão das terras, as eleições e a concessão de títulos nobiliárquicos, exigiram a montagem
de um aparato institucional que pudesse conferir legitimidade ao funcionamento do
Estado.259
A partir de 1850, a questão da escravidão (e na verdade desde 1831) com a Lei
Euzébio de Queiroz também começa a ser colocada em novos termos. Na província
Pernambucana, segundo Sylvana Vasconcellos, repercutiu como um fator decisivo para o
aumento do declínio de sua população escrava (apesar de verificarmos que esse processo se
deu de forma heterogênea em todo o estado) pois, até meados do XIX, os escravos em
Pernambuco ainda constituíam de um quinto a um quarto da população total da Província e
sua proveniência continuava sendo africana. Certamente, houve muitos desembarques
clandestinos, mas segundo constata Vasconcellos, o policiamento interno e externo influiu

256
GRAHAM, op. cit. 2001, p. 15.
257
HOLLOWAY, Thomas. ―Comentário a ‗Construindo uma nação no Brasil do século XIX: visões antigas e
modernas sobre a classe, a cultura e o Estado‘. Diálogos. v.5, n.1, p.49-51, 2001.
258
CARVALHO, José Murilo. A construção da ordem. A elite política imperial. Rio de Janeiro, 1980, p. 34.
259
CARVALHO, José Murilo. Teatro das sombras. A política imperial. São Paulo, Vértice, 1988, p. 65.

173
na redução quantitativa até que em 1855 temos a última notícia de contrabando aprisionado
em Serinhaém.260 Neste período, ocupa a pasta de Ministro da Justiça Nabuco de Araújo
que tomou atitudes severas e rápidas. Segundo José Murilo de Carvalho, Araújo substituiu
o presidente da província por outro mais decidido e ordenou que os traficantes e
compradores fossem punidos. Vários poderosos senhores de engenho estavam envolvidos.
Mandou revistar suas terras e processá-los, demitindo e aposentando três desembargadores
quando a Relação do Recife absolveu alguns deles. Por isso, incorreu no ódio dos líderes
políticos da província, entre os quais se achavam os Cavalcanti, parentes de sua mulher.261
Acredito, todavia, que como bem expõe Jaime Rodrigues, a interpretação de
causalidade entre o fim do tráfico e o fim da escravidão tem suas peculiaridades e necessita
ser historicizada. O autor discute, por exemplo, que muitas vezes as propostas de ações
graduais – contra o tráfico ou contra a escravidão, mas não necessariamente mantendo uma
relação de causalidade entre as duas – eram instrumentos para evitar uma solução imediata,
remetendo para o futuro a questão do fim da escravidão. Citando Seymond Drescher, no
caso americano o fim legal do tráfico em 1850 representava uma derrota dos segmentos
sociais mais aferrados à escravidão. Estes, porém, por meio de uma racionalidade peculiar,
procuraram retirar da derrota um meio de protelar a decisão de acabar com a escravidão.
―Encarando a abolição como fato inevitável, grande parte da classe senhorial brasileira
havia se apegado a essa inevitabilidade ‗natural‘ para manter, pelo maior tempo possível, a
escravidão, tal qual ela se apresentava em 1850.262
Rodrigues, fazendo uma leitura atenta das memórias e obras políticas da primeira
metade do século XIX, constatou que apenas em José Bonifácio e Frederico Burlamaqui
(em diferentes tempos e contextos diversos) podemos verificar um projeto fechado e
explícito de iniciar uma abolição gradual da escravidão, começando pelo fim do tráfico. Ao
longo da primeira metade do século XIX, vemos diversas propostas em relação à liberdade
dos escravos e à modificação no abastecimento de mão de obra. Segundo o autor, o fim do
260
VASCONCELOS, Sylvana Maria Brandão de. Ventre Livre, mãe escrava: a reforma social de 1871 em
Pernambuco. Recife, Ed. Universitária da UFPE, 1996, p. 33.
261
CARVALHO, José Murilo de. Teatro de Sombras – a política imperial. São Paulo, Ed. Vértices, 1988, p.
59. Ver também VENÂNCIO, Anderson Luis. A força do centro: a influência conservadora na província de
Minas Gerais (1844-1853). Dissertação de mestrado em História, Franca, Universidade Estadual Júlio
Mesquita, 2005.
262
DRESCHER, S. ―Brazilian abolition in comparative perspective‖. Hahr, 68(3), ago. 1988, p. 444. Apud
RODRIGUES, Jaime. O infame comércio: Propostas e experiências no final do tráfico de africanos para o
Brasil (1800-1850). Campinas, Ed. Unicamp/CECULT, 2000, p. 70-71.

174
tráfico era apenas uma dessas propostas, e não necessariamente vinculada ao fim da
escravidão. O deputado Cunha Matos, em 1831, era um dos que defendia este discurso.
Para Matos, entre os argumentos, o tratado prejudicava o já limitado comércio brasileiro
justamente numa área onde ele ainda podia competir com outras nações: a África. Entre os
outros, e o mais recorrente no debate, era a argumentação de que o fim do tráfico traria a
ruína da agricultura.263
Apesar da defesa de alguns, como Burlamaqui para o fim gradual da escravidão,
colocando inclusive as vantagens do trabalhador livre como, por exemplo, a vantagem de
não gerar uma raça inimiga, no geral, segundo Rodrigues, em relação aos projetos de
transformação das relações escravistas na primeira metade do século XIX, podemos
observar propostas de acabar gradualmente com a escravidão, sem mencionar a necessidade
de se iniciar o processo com o término do tráfico de africanos. Para ele,

Com o substrato comum, tais propostas mantinham a rígida distinção social


entre os proprietários, em geral brancos e cidadãos plenos, e os negros livres ou
libertos, que só deveriam tornar-se proprietários de sua força de trabalho. Os
dois não deveriam ser igualados no processo de abolição gradual e criação lenta
de um povo melhorado.264

Entre as estratégias de assegurar esta diferença e o domínio senhorial, a manumissão


controlada como mecanismo de regulamentação social foi uma estratégia mais utilizada no
Brasil do que em colônias inglesas ou francesas. No Brasil, segundo Rodrigues, se pensava
na alforria como uma forma de integrar o negro à sociedade, mesmo que com restrições no
campo da cidadania, como meio de neutralizar um perigo proveniente do descontentamento
da imensa massa escravizada.265 Quanto ao tráfico, se em 1831 não existia uma unidade
necessária para propor e fazer cumprir uma solução concreta a respeito do problema do
tráfico, em 1850, segundo Rodrigues, o quadro parecia ser diferente. O interessante aqui é
expor este processo histórico e perceber como mesmo após 1850 ou até mesmo 1870, ainda
podemos encontrar resquícios dessa mentalidade entre os proprietários rurais.
Legalmente, todavia, em 1859, o Presidente da Província, José Antônio Saraiva,
assegurava em seu relatório dirigido à Assembleia Legislativa que o Governo Imperial

263
RODRIGUES, op. cit., 2000, p. 77-83.
264
RODRIGUES, op. cit., 2000, p. 85.
265
RODRIGUES, op. cit., 2000, p. 85.

175
podia felicitar-se por haver aniquilado completamente todas as esperanças dos negreiros e
somente a ele cabia a glória do empenho que se estendia pelo país inteiro para extinguir ―o
comércio imoral que envergonhava nossa civilização‖.266 Na década de 70 ocorre um
aumento do tráfico interprovincial que também acirra o declínio da mão de obra escrava,
ressaltando, como verificamos nos estudos de Robert Slenes, que as áreas que menos
perderam mão de obra escrava foram as que possuíam plantações de cana de açúcar. No
mais, como salienta Vasconcelos, para o declínio incessante da população escrava de
Pernambuco em oposição ao crescimento populacional das camadas livres, outros fatores
de ordem interna ainda podem ser indicados. Segundo o autor, ao longo do século
dezenove, rupturas entre as elites proprietárias provocaram insurreições e revoltas
facilitando fugas coletivas e individuais dos escravizados, como exemplifica o Movimento
de 1817, a Confederação do Equador de 1823, a prolongada Guerra dos Cabanos e a
Revolução de 1848, e não menos importante, a existência dos quilombos como o de Catucá
e o Quilombo de Pau d‘Alho.267
Já 20 anos depois, como bem expõe Evaldo Melo, na década de 70 do XIX:

(...) completara-se a inversão das posições regionais. Ao passo que o norte,


atingindo pela crise econômica do decênio de 1870, tem no tráfico um recurso
com que financiar suas perdas, o sul, preocupado com o crescimento do
comércio em decorrência daquela crise, começa a temer os efeitos da
desproporção da escravaria existente numa e noutra região sobre a estabilidade
do regime escravocrata. Os resultados do primeiro censo regional, o de 1872,
vieram confirmar as suspeitas e as apreensões em torno de um desequilíbrio que
tornava a escravidão ainda mais vulnerável às pressões do poder enfraquecendo
o compromisso da grande lavoura nortista com a instituição servil ao concentrar
nas províncias cafeeiras 2/3 de toda a população escrava do país. Era a
sobrevivência do sistema escravista que estava em jogo e os mais pessimistas,
até mesmo o imperador, temiam inclusive a repetição no Brasil do conflito
regional que, no EUA levara a guerra de secessão. 268

O problema da mão de obra neste contexto indica-nos o quanto também era


necessária a garantia do trabalho escravo (e do livre) em terras pernambucanas,
principalmente nas pequenas e médias propriedades. Como analisamos no capítulo 1, na

266
Relatórios dos Presidentes de Província. Março de 1859. Op. cit. VASCONCELOS, 1996, p. 34.
267
Relatórios dos Presidentes de Província. 15 de abril de 1867. Op. cit. VASCONCELOS, 1996, p. 38.
268
MELO, Evaldo Cabral de. O norte agrário e o império. 1871 – 1886. Rio de Janeiro, Topbooks, 1984. p.
30 -31.

176
comarca de Nazareth na segunda metade do XIX, ainda existia uma quantidade expressiva
de escravos que permaneceu até o ano de 1887. A evidência, portanto, dessa conjuntura
leva-nos a refletir sobre as relações sociais que também se mantiveram diante desse cenário
sócio-econômico estruturalmente dependente da escravidão. A ausência de informações
documentais sobre a participação de escravos na revolta do Quebra-Quilos e mais a
evidência – como veremos adiante – de uma resistência por parte dos proprietários locais de
aceitarem as novas mudanças nas estruturas judiciais e policiais, alimentando a
descentralização do poder, isto é, a dominação local frente à central, sugere-nos o quanto
era complexa a construção de culturas de resistência por parte dos escravos, justamente por
conta dos fortes laços paternalistas e clientelistas e da necessidade real dos livres, pequenos
e médios proprietários de disputarem espaços na arena social ainda dominada pelos
proprietários mais abastados detentores dos cargos policiais e judiciais.
Assim, enquanto isso, em Nazareth, na mata norte pernambucana...
Era dia 25 de julho de 1875 e o vigário e senhor de engenho Basílio de Gonsalves
da Luz escreveu um informe para o Presidente da Província de Pernambuco no qual alegou
uma história de violência e ilegalidade praticada pelo Barão de Tracunhaém contra Thomé
de Araújo, morador e trabalhador da agricultura, do engenho Floresta de sua propriedade.
No informe, o senhor Basílio da Luz queria justiça contra um fato ―insólito‖ e
escandaloso que fora praticado pelo então delegado Barão de Tracunhaém o qual não
pensara duas vezes e afrontou descaradamente as leis constituindo como criminoso
unicamente por querer satisfazer seus ―violentos caprichos‖ e ostentar seus ―poderes de
mandão‖ que a ―civilização atual não pode mais comportar.‖269
Segundo o vigário, Thomé Pereira de Araújo, cidadão pacífico, bom pai de família,
bem quisto por todos, morador e lavrador desde muitos anos no dito engenho Floresta, foi
intimado pelo subdelegado do 1º Distrito para fazer o alistamento dos habitantes do
quarteirão Limeira onde não era morador. Thomé Pereira, não sendo inspetor de Quarteirão
e nem podendo abandonar seu trabalho de agricultura para realizar serviços policiais aos
quais não era obrigado, mandou suas desculpas e tranquilo continuou em seus trabalhos.

269
Informe do advogado do vigário Basílio da Luz para o Presidente da Província de Pernambuco. Recife,
28/07/1875. APEJE/Recife.

177
Contudo, não foram aceitas suas desculpas e, no dia 11 de julho, por ordem do
delegado, a casa de Thomé Pereira foi cercada por José Feliz, inspetor de quarteirão de
Lagoa de Carro. Tendo sido antes, procurado pelo Inspetor de Floresta, João Maurício, para
ser preso, o cidadão Thomé, sentindo-se ameaçado em sua liberdade, requereu uma ação de
habeas-corpus ao Dr. Juiz de Direito a qual lhe foi concedida. O Delegado Barão de
Tracunhaém não negou o fato, mas procurou justificá-lo em ―razões inadmissíveis‖. Após
ouvir as justificativas, o íntegro magistrado não as aceitou e concedeu o alvará justo, onde
ordenou que ―fosse o paciente mantido em pleno gozo da liberdade‖.
O alvará foi concedido no dia 19 de julho corrente, mas quatro dias depois, o
delegado, para ―ostentar desprezo às autoridades superiores e provar que em Tracunhaém
sua vontade era acima da lei‖, fez, durante a noite, por intermédio do Inspetor José Feliz,
um novo cerco à casa do paciente, o qual ―descontente‖ foi preso, amarrado e conduzido ao
engenho Cavalcante de propriedade do delegado. Lá chegando foi logo algemado e ligado
entre dois paus com as mãos para trás conservando-se durante todo o dia 24 de julho nesse
doloroso e pungente estado. Só à noite foram-lhe tiradas as algemas por ter lhe inchado o
braço, mas continuou amarrado até 7 horas do dia 25, quando, segundo as vozes da
população, foi solto depois de ter o delegado recebido dois oficiais do Dr. Juiz de Direito,
uma vez que o fato foi de notoriedade pública e não poderia deixar de alcançar os ouvidos
do Magistrado.
Diante de tais circunstâncias, o vigário sentindo-se no dever de prestar auxílio e
proteção aos seus paroquianos e, como senhor de engenho, aos seus moradores, não foi
indiferente aos crimes praticados pelo delegado contra um só indivíduo que ―continuara
dentro de uma terrível prisão e com receio de receber mais violência‖. Desse modo, levou
ao conhecimento do Presidente da Província toda a ocorrência para que, ouvidos o Juiz de
Direito e o Delegado, fossem dadas as providências necessárias em ordem da lei e em nome
da ofensa ao dito infeliz Thomé Pereira de Araújo. No mais, para ―a manutenção da força
moral‖, da qual devia ser cercado o Juiz de Direito, cujo alvará foi desrespeitado pelo dito
delegado Barão – o qual pelo ato tornou-se incompatível com o cargo – o Presidente
deveria denunciar o delegado para a Promotoria Pública. Feito isso, o senhor-vigário
confiaria que ante a lei e as necessidades do serviço público cessaria a proteção com que
contava o Barão de Tracunhaém, cuja filosofia era ―impor em tudo sua vontade‖.

178
As falas do vigário Gonçalves da Luz não escondem um possível duplo
paternalismo: senhorial e católico. Por outro lado, possivelmente faziam parte dessa relação
as conquistas de Thomé que se manteve no posto de morador, ousou desafiar o destemido
Barão de Tracunhaém e manteve-se fiel ao seu ―patrão‖. Não sabemos a história de Thomé,
se era livre ou liberto, de qualquer maneira, era um trabalhador que, ao lado de outros
trabalhadores, vivia e deixava às claras suas escolhas e suas atitudes frente às autoridades
locais, decisões que caminharam junto com a interlocução do vigário com o poder
judiciário e suas aspirações anti-autoritárias e ilegais.
Esse caso elucida bem como a população reagia diante das mudanças da Lei com
relação às estruturas policiais. Primeiramente, como esclarecemos anteriormente, depois da
reforma de 1841, os Inspetores de Quarteirão deviam ser escolhidos pelos subdelegados
entre um dos moradores do quarteirão, que ficaria responsável pela vigilância de no mínimo
vinte e cinco fogos, informando qualquer irregularidade ao subdelegado de seu distrito, e
podendo pedir auxílio de praças da polícia para efetuar prisões em flagrante.270 Segundo a
Lei, portanto, o trabalhador da agricultura Thomé Pereira não poderia ter sido recrutado
pelo delegado para exercer a função de inspetor uma vez que não residia na área
determinada para o cargo. Estava certo legalmente o Vigário Gonçalvez da Luz que o
defendeu.
Em segundo, até a Lei de 1871, o chefe de polícia e os delegados acumulavam
poderes judiciais às suas atribuições de autoridade policial, podendo inclusive exercer outra
função no âmbito do governo, como era o caso do chefe de polícia que continuava a exercer
a magistratura. Com a reforma, em 1871, ficou vedado o exercício de cargos policiais e
judiciais ao mesmo tempo. Como coloca Holloway, o chefe de polícia tinha ainda a tarefa
de reunir provas para a formação de culpa, mas já não possuía mais o poder de julgar e
sentenciar as contravenções e os crimes menores.271 Novamente, o delegado Barão de
Tracunhaém agiu ilegalmente ao julgar a recusa de Thomé e condená-lo aos castigos como
se ele estivesse na condição de escravo. Na verdade, o Barão ainda continuava a agir
conforme a mentalidade construída por anos no governo imperial. Anteriormente, como
analisamos, a polícia agregava o poder judicial, estratégia governamental para centralizar o

270
MAIA, op. cit., p. 74 e 75.
271
HOLLOWAY, op. cit., p. 227-228.

179
poder nas mãos do governo central e não mais local. No entanto, além da atribuição de
delegado, o Barão de Tracunhaém também exercia a função social de senhor,
consequentemente, motivo que o levou a agir no campo da polícia como ―autoridade
senhorial‖, isto é, como delegado agiu enquanto senhor de escravo, e vice e versa.
Todavia, a partir da década de 70 do XIX, a conjuntura era outra, e o vigário estava
ciente que estas ações do Barão agora entrariam no campo da ilegalidade. Portanto, o
vigário não teve dúvidas e acionou a Justiça, evidenciando claramente que a ordem dos
poderes estava em transformação. Nesse caso, a Justiça foi colocada não como um
instrumento de manutenção da ordem, ou abuso da autoridade, mas como um meio
utilizado também por setores sociais menos abastados para garantir a lei. Assim, se por um
lado, a precariedade policial colocava em cheque a autoridade dos senhores abastados e
delegados, e, num momento de reação dos dominantes, reafirma sua moralidade perante a
população, por outro, o descuido do cumprimento da lei, nos anos seguintes de 1871,
significava ilegalidade e ato inaceitável e, portanto, digno de apelo judicial. Porém, por
anos, nas décadas de 40 do XIX, os vínculos clientelistas eram cotidianamente utilizados
para resolver questões. Nessa época, como destaca Carvalho e Câmara, ocupar essas
posições na guarda nacional, na justiça de paz e na polícia civil era imensamente
importante, primeiro pelo capital simbólico adicionado ao poder de fato do chefe político
local, que assim se tornava um agente do império em sua localidade. Agora sua
comunicação com o núcleo do poder, o governo provincial, mudava substancialmente, na
medida em que ele se tornava um aliado político direto do presidente e, indiretamente, do
próprio imperador que o designara. ―Ele agora tinha poder não apenas sobre seus próprios
dependentes, mas também sobre a mão-de-obra livre de sua jurisdição, inclusive a clientela
alheia que ele podia perseguir prender ou soltar, e, finalmente, enviar para a capital como
possível recruta para as tropas de primeira linha. Era praticamente impossível ascender a
qualquer dessas posições sem alicerces políticos prévios. Mas a investidura nesses cargos
consolidava e aprofundava esses alicerces.‖272 No mais, na época, como ressaltam os
autores, as prerrogativas, atribuições e jurisdição das várias posições no aparato repressivo
eram claramente distintas na letra da lei. Todavia, nas práticas cotidianas da política

272
CARVALHO, M. & CÂMARA, B. ―A insurreição Praieira‖. Almanack braziliense. Nº 08, novembro
2008, p. 9.

180
imperial, essas prerrogativas eram frequentemente confundidas. Muitas vezes equivaliam-
se, de tal forma que aquilo que um juiz de paz fazia, um subdelegado ou coronel da guarda
nacional podia desfazer e assim sucessivamente. Desse modo, é provável que o delegado
Barão de Tracunhaém estivesse agindo conforme o costume legal anterior, pois as
mudanças ocorridas no início dos anos 70 ainda não tinham se efetivado, de fato, na
realidade da Zona da Mata Norte pernambucana.
No mais, como constata Andrei Koerner em sua pesquisa sobre o habeas-corpus e
prática judicial no Brasil entre 1841 e 1920, o aumento do número de pedidos de habeas-
corpus, a partir da metade da década de 1870, resultava dos processos de mudança social,
em virtude aos quais aumentou a atividade policial de controle pela detenção a-legal dos
indivíduos pobres, associada às mudanças no estatuto jurídico dos indivíduos pobres e no
funcionamento do Poder judiciário. Para autora, na medida em que a sociedade brasileira
deixava gradualmente de ser escravista, aumentava a atividade de controle social, que se
buscava adaptar às novas condições. Do mesmo modo, crescia a importância do habeas-
corpus enquanto instrumento de garantia judicial do direito à liberdade dos indivíduos
tornados formalmente cidadãos.273Vale ressaltar, contudo, que a utilização do habeas-
corpus também foi um processo crescente, e certamente, como observamos no caso
anterior, teve que ir se consolidando frente à cultura policial e jurídica anteriormente
implantada e costumeiramente praticada.
Mas quem eram os sujeitos das ações judiciais dentro dessa dinâmica social que
estamos abordando?
Basílio Gonçalves da Luz, presbítero secular e vigário da Freguesia de Tracunhaém,
não estava em boas condições financeiras no início dos anos 70. No dia 5 de junho de 1874,
por exemplo, foi processado pelo Juízo do Comércio, por João Fernandes Lopes, em nome
de Joaquim Alves Barbosa, por uma dívida que deveria ter sido paga em 24 horas, caso
contrário, seus bens iriam à penhora. Como não foi paga a dívida de 1:376:510 (valor na
273
KOERNER, Andrei. Habeas-Corpus: prática judicial e controle social no Brasil (1841-1920). São Paulo,
IBCRIM, 1999, p. 139. Segundo a autora, as decisões em favor da liberdade individual utilizavam uma
interpretação jusnaturalista-liberal da lei, com a qual os dispositivos legais eram abordados a partir do
princípio do direito natural absoluto à liberdade individual. As situações legalmente previstas para a coação
da liberdade individual deveriam ser utilizadas pelas autoridades e pelos particulares apenas nas hipóteses
previstas, interpretadas em sentido restrito. A função do judiciário seria garantir a liberdade natural contra
atos arbitrários que ultrapassavam ilegalmente esses limites. A liberdade natural tornava-se pois, o princípio
de interpretação da lei e de sistematização dos dispositivos jurídicos. Assim, o habeas-corpus foi um dos
meios utilizados para a garantia judicial de liberdade individual. p. 140.

181
época de um escravo em idade ativa), o Engenho Floresta, terras da propriedade e casa de
vivenda, foram penhorados. O vigário recorreu à execução da penhora por intermédio do
advogado Manoel Macedo, conhecido como defensor dos pobres, o qual verificou erros no
processo, como por exemplo, a penhora de um valor bem acima do devido.274 Basílio
Gonçalves da Luz era, portanto, um proprietário de engenho, com poucas condições
financeiras e sem escravos. O morador Thomé, desse modo, certamente lhe era muito útil
naquele início dos anos 70.
Por outro lado, em 1873, o Barão de Tracunhaém, João Cavalcante Maurício
Wanderley, era vereador da Câmara e Delegado de Nazareth e proprietário do Engenho
Sacco de Nazareth e Cavalcante na freguesia de Tracunhaém. Faleceu em 1891, deixando
uma herança considerável para o período de crise na produção açucareira. Relatando alguns
valores, cerca de 900:000 réis em ouro e prata; 1:730:00 réis em animais; 46:700:000 réis
em terras e casas, sendo avaliado o Engenho Cavalcanti - com casa de engenho, caldeiras
de purgar, senzala e casa de vivenda, destilação a vapor - em 33:000:000 réis. Era um
engenho moente e corrente, produzindo uma safra de 505 pães de açúcar no valor de
2:000:000.275 Sendo o inventário feito no período pós-abolição não conseguimos observar
quantos escravos trabalharam no seu engenho, no entanto, constatamos que, no início dos
anos 70, o Barão de Tracunhaém se encaixava ativamente no mercado local de escravos
adquirindo em uma transação somente quatro escravas: Bárbara, mulata, 25; Cecília,
mulata, 30; Lourença, angola, 65 e Mariana, crioula, 60, todas pelo valor de 2:050$000.276
Uma soma em dinheiro acima do valor da dívida do Vigário, dívida esta que estava
dificultando a vida deste e quase levando ao fim sua condição de produtor.
O histórico de contestação do Vigário Basílio ocorria de longa data. Em 1866, por
exemplo, durante a reunião da feira na freguesia de Tracunhaém - momento em que o
delegado, Francisco de Paula Barreto Cavalcanti, costumava ler as Posturas Municipais, em
específico o artigo 57 -, as inquietações do Vigário incomodaram a autoridade policial.
Durante o início da feira, num sábado de maio, o delegado fazia o controle das licenças dos

274
Processo do Juízo do Comercio de Nazareth, Execução de Sentença. Executante, João Fernandes Lopes,
executado, Vigário Bazílio Gonçalves da Luz. Nazareth, 5/06/1874. Processos Cíveis de Nazareth, caixa 107.
Memorial da Justiça/Recife.
275
Inventário de Barão de Tracunhaém. Juízo de Órfãos de Nazareth, 27/07/1891. Série Inventários de
Nazareth, caixa 138. Memorial da Justiça, Recife.
276
Escritura de compra e venda, 19.8.1871, Cartório de Nazareth. Documentos do Cartório de Nazareth vol
VIII, fl 193, Museu do Açúcar. FUNDAJ/Recife.

182
feirantes quando percebeu que o ―povo se achava insuflado‖ por três indivíduos da
povoação: o Vigário Basílio Gonçalvez da Luz e os taberneiros Antonio José Lopes de
Albuquerque e Diogo Carneiro de Albuquerque. Antes que a reunião ocorresse com os
agitadores, o delegado energicamente aprisionou os indivíduos que logo foram soltos.
Na semana seguinte, novamente o delegado fazendo as prisões de indivíduos que
estavam com cargas nas feiras, e levando-os para o recrutamento, assim procedendo como
manda as posturas da Câmara, chegou à conclusão e afirmou ―firmemente‖ que as reuniões
que o Vigário e os taberneiros estavam pretendendo realizar aos sábados na povoação de
Tracunhaém tinham o intuito apenas de desmoralizar o despacho da Câmara e as principais
autoridades. Segundo o delegado,

(...) o fim daquele vigário não é outro senão o fim político porque achando-se
despeitado com a actualidade, diz que vai alistar –se nas bancadas do partido
saquaremal para com mais força competir com a actualidade. 277

Para o delegado, o vigário por meio de pasquins e cartas anônimas vinha afrontando
autoridades da cidade de Nazareth. Em um dos pasquins recolhidos estava escrito:

Laque, Laque, Gonsalinho


Todo o circo de cavalinhos
A rosca nananha, e seu presidente
Em toda esfarrapada gente
Cacheiros ladrões, vis mascates
Alferes, capitães, tenentes, coronéis
(...) de botica faladores
Policia de mil ventas
Doutores, cirurgião de uma só receita.
E todos os zangões de uma tal seita
Vão se bem cagado e borrados
Desta vez, e pra sempre archivados.
De um ferreiro de Tracunhaém.278

O delegado, ao decifrar as metáforas do pasquim, afirmou que quando diziam:


―nananha‖ era com analogia a uma Senhora distinta, esposa do Secretário da Câmara
277
Ofício do delegado suplente de Nazareth, Francisco de Paula Barreto Cavalcanti, para o delegado
encarregado do expediente da repartição de Polícia de Pernambuco, Luis de Albuquerque Martins. Delegacia
de Polícia do Termo de Nazareth, 8/05/1866. SSP Nazareth 245 vol 654. APEJE/Recife.
278
Pasquim anexado no Ofício do delegado suplente de Nazareth, Francisco de Paula Barreto Cavalcanti,
para o delegado encarregado do expediente da repartição de Polícia de Pernambuco, Luis de Albuquerque
Martins. Delegacia de Polícia do Termo de Nazareth, 8/05/1866. SSP Nazareth 245 vol 654. APEJE/Recife.

183
Municipal, João de Araújo Cesar. Escandalizado com os atos do ―Pastor‖, o delegado
ameaçou que, se por ventura o Vigário conseguisse a revogação do artigo 57 das Posturas
que estariam em vigor, deixaria não só de ser Camarista, como abandonaria o cargo de
Delegado Suplente que exercia há 10 anos. Assim pediu que o presidente da Província
tomasse providências, não consentindo que as autoridades fossem desrespeitadas e as Leis
menosprezadas.
O artigo 57 que o Delegado se referiu tratava do título VIII, Da feira e sua polícia,
cujo conteúdo era:

A câmara designará em que dia, querendo os povos fazer reunião de feira


em algum lugar do termo, possam concorrer afim de não tirarem a influencia de
outras feiras, e possam os negociantes assistir a todas ellas, sendo feitas em
differentes dias mesmo para melhor regularidade e arrecadação dos direitos
públicos e municipaes; ficando desde já prohibida qualquer reunião de
semelhante natureza, que só fizer nos domingos e dias santos por serem dias
consagrados a Deos; os infratores soffrerão de 4$000 e quatro dias de prisão.279

No mesmo ano, em 1857, a lei número 1.614 declarou as posturas adicionais da


Câmara Municipal de Nazareth, afirmando no artigo 3º que era ―proibido fazer feiras nesta
comarca aos domingos; os infratores sofreriam a pena de 8 dias de prisão‖280, visto que o
delegado de Nazareth, em 1866, estava justamente se referindo ao artigo 57 e também à
adicional. Curiosamente, vale lembrar que o fato de a lei proibir a feira aos domingos
atingia justamente os trabalhadores rurais, escravos e livres, que tinham apenas os
domingos e dias santos para folgarem e juntarem sua poupança vendendo o pouco que
produziam. No caso dos escravos, como conseguir, por exemplo, juntar um pecúlio sem
poder comercializar sem licença e aos domingos na feira?
A câmara municipal e o governo provincial criavam as dificuldades para o livre
comércio de produtos agrícolas; alguns setores da sociedade nazarena contestavam esse
tipo de atitude, que provavelmente atingia menos os feirantes e mais os trabalhadores que
também queriam negociar parte de sua produção. O vigário e os produtores dos pasquins

279
Posturas Municipais de Nazareth, Lei número 434, 1857. In: Coleção de Leis, Decretos e Resoluções da
Província de Pernambuco, tomo XX, junho de 1857, Pernambuco. Estante 29, Pratileira 02, número 42.
APEJE/Recife.
280
Idem.

184
visualizavam essa ―injustiça‖, fruto da classe dominante que administravam a cidade de
Nazareth. E como ponta de lance do conflito, lá estava a polícia, instrumentalizando a Lei e
a vontade do poder central.
Diante dos casos acima destacados de conflito entre polícia, ―delegados-senhores‖
contra outros senhores de engenho e rendeiros, podemos visualizar na comarca de Nazareth
certa rede de alianças entre ―classes‖ populares e ―classes pequenas e médias‖. Graças à
―boa‖ relação entre o Vigário e o lavrador Thomé de Araújo, este se livrou do recrutamento
forçado, fugiu das amarras autoritárias do senhor Barão de Tracunhaém e continuou perto
de sua família mantendo seu trabalho junto à agricultura. De semelhante forma, a rendeira
do Engenho Cangaú e o senhor do Engenho Tabatinga auxiliaram a revolta do Quebra-
Quilos de caráter também popular, ou ainda, no caso do senhor do Engenho Baraúna que
armava seus escravos e moradores para proteger Bernardo de Tal, provavelmente, morador
do mesmo engenho, contra a apreensão do Delegado.
Aos meus olhos, e como ficou bem claro nas palavras dos oradores do Congresso de
1878, na comarca de Nazareth existia uma diferença social e econômica marcante entre
proprietários de engenho, ou melhor, havia certa discrepância social dentro da categoria de
senhor/patrão. Discrepância que nos salta aos olhos mais ainda quando presenciamos
senhores/rendeiros agindo no movimento popular dos Quebra-Quilos, ou agindo contra as
autoridades locais e acessando a Justiça para defender seus trabalhadores. Exemplo,
portanto, de como a sociedade se dividia socialmente e as camadas menos favorecidas
buscavam desconstruir os poderes costumeira e legalmente constituídos desde a primeira
metade do XIX. O fato, no entanto, chama-nos a atenção a fim de que identifiquemos as
classes sociais que se envolviam nos conflitos e como, por exemplo, os escravos nem
sempre estavam presentes na confusão. Ao mesmo tempo, essa situação sugere-nos o
panorama social que os escravos estavam inseridos, e a partir dessas noções, podemos
tentar desvendar quais eram as alternativas de resistir e lutar dos trabalhadores livres e
escravos na comarca de Nazareth neste momento histórico.
Como última narrativa, relato aqui um caso bem curioso de conflito entre religiosos
e que pode nos indicar mais um pouco do universo moral vigente na cidade de Nazareth na
segunda metade do XIX. Trata-se de uma história interessante ocorrida nos anos de 1878 e

185
1879 e que incluiu as manifestações dos cultos evangélicos, católicos, ex-presidiários,
ferreiros, marceneiros, soldados e manifestações culturais como o Maracatu.
Tudo começou em 11 de Dezembro de 1878 quando alguns proprietários do termo
disseram que era muito de se recear que a cidade de Nazareth até na noite de Natal fosse
invadida pelo povo ―ignorante‖ e ‗fanático‖ que se tem manifestado ―irritado‖ por conta da
prática do culto evangélico sob a direção de um ferreiro de nome Alexandre Ferreira de
Gama. Segundo o delegado de Nazareth, o povo estava ―delirando‖ por causa das leis do
censo e do sistema métrico e isto estava causando vítimas e grandes despesas ao
governo.281 Por conta dos ataques, no dia 14 de dezembro de 1878, o diretor da Associação
Evangélica, o dito Alexandre, dirigiu uma petição de queixa ao delegado pedindo
providências contra um grupo de pessoas que estavam apedrejamento sua casa de reuniões.
O delegado antes de tomar as devidas ações, de antemão, aconselhou o dito diretor que não
tratasse no momento de meios que pudessem aumentar a exacerbação dos espíritos e que,
portanto, prejudicassem a ―ordem da paz‖. Segundo o delegado, a expectativa para a missa
de Natal em Nazareth naquele ano era de mais de mil indivíduos católicos uma vez que 5
capelas da região não celebrariam missa. Assim, se caso os evangélicos não deixassem de
se reunir, certamente um conflito entre fiéis aconteceria e seria incontrolável. Sem
alternativas, o delegado, como meio de conter os ânimos, não teve outra saída a não ser
intimidar os associados evangélicos para não se reunirem até o dia de Reis (6 de janeiro).
Diante das precavidas tomadas pelo delegado, a ―paz‖ parece ter reinado no fim do
ano de 1878 em Nazareth. Porém, em fevereiro de 1879, novas preocupações e
investigações incomodaram as autoridades policiais. Segundo o delegado suplente, José
Tavares de Araújo, o ferreiro Alexandre Florêncio era um homem ambicioso. Casou-se
com uma prostituta velha, por esta ter uma herança de origem desconhecida, medicou-lhe
remédios fortes por conta de uma simples moléstia e depois a expulsou de casa ficando com
todos os seus bens. Logo depois desse fato, Alexandre fundou uma associação evangélica
que funcionou mais de um ano em um casebre distante desta cidade despercebidamente e
depois passou a se organizar na casa de sua mulher, no centro da cidade em frente da Igreja
Bom Jesus.

281
Ofício do delegado de polícia de Nazareth, José Jerônimo de Albuquerque para o chefe de polícia de
Pernambuco, Sigismundo Gonçalves. Delegacia de Polícia de Nazareth, 11/12/1878. SSS Nazaré, 249 vol
650. APEJE/Recife. Idem. 20/12/1878. SSS Nazaré, 249 vol 650. APEJE/Recife.

186
Conta o delegado que alguns meninos e mais alguns indivíduos ignorantes,
escandalizados pela reunião do dito ferreiro a quem lhe chamavam de Padre Alexandre,
durante uma reunião dos evangélicos, se posicionaram em frente da Igreja e começaram a
apedrejar os congregados. O delegado constata que, de fato, existiam muitas queixas do
diretor Alexandre contra alguns indivíduos da sociedade por agressões e roubos cometidos
contra os associados. Entre elas, vale destacar, o conflito entre o ―padre Alexandre‖ e
Manoel Rufino. Este era conhecido como marceneiro e atendia em sua própria casa,
localizada ao lado da casa onde os congregados se reuniam. Como vizinhos, Alexandre
procurou a polícia e se queixou de Rufino dizendo que ao tentar realizar seu culto, muitas
vezes, este ficava prejudicado por conta do barulho advindo dos amolamentos de serras,
serrotes, trabalhos e cantorias em momentos que os congregados estavam reunidos em
orações.282
Apesar das queixas de Alexandre serem procedentes, o delegado não avaliou como
reais, pois, na sua opinião, os evangélicos nunca teriam espaço naquela cidade uma vez que
a sociedade local era inteiramente católica e devota à padroeira N. S. da Conceição. Por
conta disso, ficava difícil conter os conflitos uma vez que a ―moralidade dos associados era
pouco simpática‖ e, por conseguinte, logo que a congregação começou a existir, muitas
hostilidades apareceram e o próprio Manuel Rufino, ex-preso de Fernando de Noronha,
prometeu abertamente acabar com a congregação, matando à facada o diretor do culto: ―é
tal o temor que já domina alguns ânimos‖.283
As reclamações, os inquéritos e os autos se desenrolaram de fevereiro até julho de
1879 quando o delegado de Nazareth, José Jerônimo de Albuquerque Maranhão, enviou sua
conclusão para o chefe de polícia de Pernambuco afirmando que na verdade os evangélicos
não estavam sendo perturbados pela população, pois,

Os habitantes d‘esta Comarca venerão muito sua padroeira – N. S. da


Conceição, pelo que são essencialmente católico apostólico romanos; assim, não
pode ter aqui o culto evangélicos muitos adeptos, accrescendo ser o diretor
d‘elle – Alexandre Florencio da Gama - homem que vivia e vive amaziado que
casando-se com uma mulher de má conducta a quem deixarão cinco contos de
reis em dinheiro, uma caza, o que tudo esbanjou em um expelio a mulher da

282
Oficio do delegado suplente, José Tavares de Araújo para o chefe de polícia Joaquim da Costa Ribeiro.
Delegacia de Nazareth, 27/02/1878. SSS Nazaré, 249 vol 650. APEJE/Recife.
283
Idem.

187
própria caza em que hoje se congregão para o culto por serem sócios indivíduos
que causão suspeita a polícia, pois da casa d‘um d‘elles o proprietário do
engenho Babilônia já tem tirado objectos que lhe forão furtados. 284

No novo discurso do delegado, as manifestações não se tratavam de uma


perseguição, mas sim, de uma rejeição coletiva da sociedade nazarena que claramente era
devota à padroeira e à moral católica. Inverteu-se a trama de conflitos, inclusive incluindo o
discurso do crime, da promiscuidade e do ataque à propriedade. Além da ordem, era preciso
instaurar e consolidar a moral católica. Não obstante, o mais interessante veio no fim. O
delegado de polícia também precisava atenuar as acusações sobre o ex-preso Manoel
Rufino e suas barulhentas reuniões e festanças. Assim, deixou bem claro ao chefe de polícia
que este pedira e obtivera do delegado suplente, quando em exercício, licença para ensaiar
um Maracatu durante o tempo de carnaval e ainda que essa licença tivesse sido caçada
depois, o delegado chegou a ir à casa de Manoel Rufino, porém constatou que

(...) lá estavão alguns pacíficos indivíduos que se divertião ao domingo em tocar


viola, violão, pandeiros e cantar: não impedi, por ser licito o divertimento e ser
essa a distração do pobre, entretanto, a tudo isso se obstará se Vossa Senhoria o
determinar. 285

Já nas declarações de Alexandre, 46 anos, casado, natural de Goiana, profissão de


ferreiro, este afirmou que fazia seis meses que era perseguido por Manoel Rufino de
Carvalho, residente ao lado da sua casa de culto e onde tem sua oficina de marceneiro, e
pelos soldados da polícia, Francelino, Manoel Pereira e João Batista também vizinhos.
Perguntado a ele de que forma e a que horas são feitas as perseguições, respondeu que nos
dias e horas designados para o culto o referido Manoel Rufino reunia em sua casa diversas
pessoas com o fim de perturbar as orações através de toques de flandres (caixa de gás),
ferros velhos, ―gritos confusos‖, toque de viola, cantarolas, pancadas em tábuas. Quanto

284
Oficio do delegado de Nazareth, José Jerônimo Albuquerque Maranhão, para o chefe de polícia Joaquim
José Oliveira Andrade, Delegacia de Polícia de Nazareth, 25/07/1879. SSS Nazaré, 249 vol 650.
APEJE/Recife.
285
Oficio do delegado de Nazareth, José Jerônimo Albuquerque Maranhão, para o chefe de polícia Joaquim
José Oliveira Andrade, Delegacia de Polícia de Nazareth, 25/07/1879. SSS Nazaré, 249 vol 650.
APEJE/Recife.

188
aos soldados, conta Alexandre que normalmente quando os devotos congregados se
retiravam da casa do culto, aqueles incomodavam os associados com assovios. 286
A polícia de fato não queria esconder que os evangélicos não eram bem aceitos na
localidade, porém, não queria incriminar aqueles que agiam contra os congregados, apesar
de num primeiro momento, classificá-los como povo ―ignorante‖ e ‗fanático‖. Inclusive, a
participação de um ―pobre‖ que tinha um Maracatu, que era um ex-preso, não influenciou
nas decisões da autoridade, que, pelo contrário, defendeu as manifestações culturais –
divertimentos – ainda que a concessão para tanto tivesse sido caçada. Em outras palavras,
no final da década de 70 do XIX, o delegado de polícia da cidade de Nazareth, diante de
uma situação de conflito entre evangélicos e donos de maracatus, acabou por ficar ao lado
destes. A ―cultura popular‖, em certas ocasiões, servia de divertimento e tratava-se de algo
bem mais aceito do que uma manifestação religiosa não católica. Certamente, estes fatos
também trazem indícios da moral que as autoridades locais pretendiam firmar dez anos
antes da abolição. E diante dessa história, levantamos a questão: seria a manifestação
cultural um caminho para a aceitação? Seria, para os ―pobres‖, livres, libertos e escravos,
uma boa opção de expressão moralmente permitida? Se sim ou se não, seus sujeitos sabiam
a resposta, afinal esta era a moral que pretendia ser hegemônica, pelo menos para as
autoridades naquele momento.
Fazendo uma ponte com o próximo tópico que é sobre a histórica luta entre
conservadores x liberais em Pernambuco, trazemos o estudo de Izabel Marson sobre o
momento anterior à Revolta Praieira, mais especificamente, as eleições de 1844, e notamos
o discurso religioso que o Partido da Praia utilizou durante a campanha. Segundo a autora,
o clima eleitoral fez o Diário Novo introduzir em sua campanha sistemáticos apelos à
religiosidade para fundi-la à política num ato de independência, disciplina e razão.
Exaltavam-se as virtudes da religião no disciplinamento das paixões sedimentando atos
racionalizados essenciais para a política. No dia da eleição, o jornal não teve meias palavras
e lançou uma convocação a seus eleitores, cobrando-lhes fidelidade partidária, numa
verdadeira apoteose de fé e política, pátria e Igreja, ―revolvendo um arsenal de ritos e

286
Autos de Perguntas proferidas pelo delegado de polícia de Nazareth, José Jerônimo de Albuquerque
Maranhão. 24/07/1879. SSS Nazaré, 249 vol 650. APEJE/Recife.

189
símbolos católicos metaforicamente adaptados à disputa partidária‖.287 Segundo Izabel
Marson,

O respeito à ordem e o horror a anarquia, apanágio de homens racionais,


conviviam lado a lado com os preceitos moralistas, acentuados pela tradição
católica, e provavelmente por isso puderam arregimentar à Pátria militantes fiéis
e disciplinados (...). Frente às investidas conservadoras, muito mais laicizadas, a
religião dava pano de fundo ao perfil dos praieiros, fazendo aparecer seu lado
arcaico.288

Assim, para a autora, se no lado dos praieiros se conferia certa popularidade, o


apego moralista imobilizava o partido praieiro em determinados pontos da luta política.
Seus adversários, em contraposição, ostentavam atitudes de irreverência moral,
subordinando a ordem e a lei aos fins superiores de um projeto laico de construção de uma
nação rígida e da ilustração.

Na perseguição desse objetivo, nenhum obstáculo devia ser poupado,


mesmo que em detrimento de tradicionais princípios da moral cristã, do direito
de propriedade ou ainda outros atributos da cidadania. Fosse a ‗consciência
pura‘, a ‗livre escolha‘, os bens das ordens religiosas, ou a expropriação de terras
e direitos dos artesãos, tudo seria sacrificado em prol do grande ideal de
modernização, preservador do poder para a elite preparada. 289

Não acredito que a história acima possa ser um profundo exemplo do conflito que se
estendeu por anos entre conservadores e progressistas no que tange à questão da laicização
da moral e material, porém, a história remete-nos ao universo de disputa existente: o
universo moral e religioso. E, na verdade, traz-nos subsídios para entender a sociedade e as
autoridades nazarenas diante da questão religiosa nos fins da década de 70. E mais ainda,
como religião, moral e política se relacionavam criando e recriando conflitos e
acomodações conforme a conjuntura político-partidária. Vale destacar, como bem ressalta
Marc Hoffnagel, que Pernambuco em 1878 vivenciou a luta conhecida como a guerra entre
Leões e Democratas com a ascensão ao poder do Partido Liberal após mais de dez anos de
ostracismo político. O motivo? A disputa pelo controle dos empregos e de outros favores

287
MARSON, Izabel. O império do progresso: a Revolução Praieira em Pernambuco (1842-1855). São
Paulo, Ed. Brasiliense, 1987, p. 239 e 240.
288
Idem, op. cit.
289
MARSON, op. cit., 1987, p. 241 e 242.

190
oriundos do Governo Central.290 Pelo visto, 34 anos depois das eleições de 1844, os liberais
e a estrutura policial ainda utilizavam um discurso moral por trás do caráter laico de suas
leis.

2.4 ) Aumentando a rede de conflitos: conservadores X liberais e os “bandidos sociais”

A primeira metade do século XIX em Pernambuco foi marcada por vários embates
políticos que acompanharam a formação do Estado Nacional. Para Marson, a Revolução
praieira foi a última e a mais polêmica, ―tanto pela complexidade de suas origens, percurso
e motivações quanto por ter suscitado discrepantes leituras, no geral marcadas por sensível
conotação política‖291. Como descreve a autora, esta revolução fez parte de um momento
histórico brasileiro de revoltas liberais contra o governo do Rio de Janeiro que ocorreram
entre 1824 e 1848 em várias províncias, envolvendo amplos setores da sociedade imperial.
Apesar de apresentarem traços singulares – em relação à duração, à composição social e às
metas políticas –, todos reivindicavam a garantia de direitos dos cidadãos (à liberdade, à
propriedade e à participação política) e maior autonomia político-administrativa, eleitoral e
financeira para as províncias, em especial, a escolha dos presidentes e de outras autoridades
(estes direitos eram prejudicados por dispositivos da Constituição de 1824: poder de veto
conferido aos governantes, as atribuições e os privilégios do Senado vitalício, regulamentos
que subordinavam o processo eleitoral ao governo central).292
A compreensão do conflito entre conservadores e liberais se faz, sobretudo, a partir
de uma análise do processo histórico de fundação do Partido da Praia e da Revolução
Praieira. Não almejamos fazer um estudo aprofundado sobre este movimento, porém, é
importante destacar alguns pontos deste processo que nos tragam subsídios para entender o
cenário de embates do período posterior.
Entre 1837 a 1842, o cenário político pernambucano estava dominado por uma
coalizão que reunia liberais e conservadores, cidadãos de diferentes posições na sociedade
(bacharéis, senhores de engenho, produtores de algodão e comerciantes, encabeçados os
290
HOFFNAGEL, Marc Jay. O partido liberal de Pernambuco e a Questão abolicionista, 1880/1888. In:
Atualidade & Abolição. Manuel Correia de Andrade e Eliane Moury Fernandes (org.) Série Abolição. Vol
XX, Recife, Editora Massangana, 1991, p. 142.
291
MARSON, Izabel. Revolução praieira: resistência liberal à hegemonia conservadora em Pernambuco e
no Império (1842-1850). São Paulo, Ed. Fundação Perseu Abramo, 2009, p. 7 e 8.
292
MARSON, op. cit., 2009, p. 7 e 8.

191
primeiros por Antônio Francisco de Paula Holanda Cavalcanti e os segundos pelos Rego-
Barros) que resolveram sua posição em ―conchavos familiares‖ e se engajaram na ―política
de reorganização e do futuro‖. Tal política previa remodelações estruturais e morais na
sociedade pernambucana. Como coloca Marson, dentro desse parâmetro, mãos competentes
(particularmente engenheiros e bacharéis) dariam continuidade à ‗revolução da
independência‘ na direção do aperfeiçoamento ‗material‘ – promovendo as mudanças
técnicas requisitadas pelo progresso – e moral da província, encarando a reeducação dos
cidadãos dados àquela ‗vertigem revolucionária‘, isto é, de procedimentos políticos
ameaçadores da ordem e da propriedade.293
Nas décadas de 30 e 40, ocorreu uma onda de ―progresso‖ em Pernambuco. A
produção açucareira crescia, as exportações também, e o comércio esboçou uma primeira
forma de organização para aglutinar as reivindicações do setor. O projeto progressista, por
sua vez, tomou um sentido autoritário e centralizador. Acabou atingindo direitos e
privilégios de parte significativa dos proprietários, já que o círculo de ―competentes‖, ou
―notabilidades‖, como foram chamados, era restrito a um grupo de pessoas próximas ao
presidente da província.294
Segundo Marson, o progresso inscrito no projeto civilizador premiaria poucos, e a
remodelação nele contida favoreceria os grandes senhores em condições de bancar
mudanças nas técnicas de produção de açúcar, ou os grandes investidores, com capitais
suficientes para financiar o Estado:

Em seus resultados mais imediatos, a política de ‗reorganização e do futuro‘


marginalizou senhores de engenho, comerciantes e plantadores de algodão de
posses mais modestas – a quem foi questionado o direito de propriedade sobre
terras devolutas ocupadas nas últimas décadas e de participação na concorrência
e execução das obras públicas. Discriminou, também, bacharéis recém-
integrados na política pelos próprios conservadores.295

Marson coloca que ocorreu nesse processo um rompimento de grupos dissidentes


com acusações claras contra o barão da Boa Vista de exercer um ―monopólio de partido‖
293
MARSON, op. cit., 2009, p. 17.
294
MARSON, op. cit., 2009, p. 18. Como coloca a autora, parentes e correligionários mais chegados de Boa
Vista dominaram delegacias, cargos na magistratura e na tropa; a equipe de engenheiros franceses
monopolizou a Repartição de Obras Públicas, e negociantes de grosso trato – muitos de origem portuguesa e
grandes senhores de engenho abocanharam os negócios mais rentáveis, particularmente as obras públicas.
295
MARSON, op. cit., 2009, p. 19.

192
ou exclusivismo partidário, por ter legado os melhores cargos da administração provincial e
os melhores contratos oferecidos pelo governo à ―oligarquia Rego-Barros-Cavalcanti‖, ou
seja, aos conservadores ou à chefia oficial do Partido Liberal na província, no caso
proprietários relacionados aos Cavalcantis.296 Este descontentamento com a administração
de Rego-Barros cindiu a coalizão entre liberais e conservadores na província, e deu origem,
em fins de 1842, ao Partido Nacional de Pernambuco que se constituiu como uma
dissidência do Partido Liberal, principalmente por suas principais lideranças terem vínculos
políticos e programáticos essenciais com os conservadores. Entre estes vínculos, Izabel
Marson destaca o apoio à subordinação da polícia e da magistratura ao governo central, a
finalização da interferência do poder local – pelos juízes de paz eleitos nas localidades –
nas atividades da justiça, polícia e no processo eleitoral, bem como o apoio em 1840 e 1841
aos termos da Lei de Interpretação do Ato Adicional de 1834, a Reforma do Código do
Processo Criminal de 1832 e a defesa incondicional de uma monarquia ancorada no Poder
Moderador. A cisão, portanto, se fez, sobretudo, contra medidas centralizadoras, e a
fundação do Partido Nacional representou um grande marco nos conflitos adensando a
disputa política na província, questionando com contundência a até então consolidada
aliança liberal-conservadora.297
Os anos de 1842 a 1855 foram decisivos para estabelecer a configuração política
predominante ao longo do Segundo Império. Foi nesse período que as instituições
conservadoras ganharam proeminência e hegemonia dentro da política e da própria
burocracia imperial. O fim da Revolução da Praieira marcou bem isso, principalmente em
1849, nas falas do então presidente da província de Pernambuco, Honório Hermeto
Carneiro Leão, quando se recusou a negociar com os líderes rebeldes. Descreve Izabel
Marson:
Por questão de ética política, Honório deixou de ouvir os conselhos (...)
querendo assim dar a entender que a nova configuração do Estado Imperial,
assentada sob a insígnia do progresso material e moral, não mais negociava
oficialmente com caudilhos incivilizados (...). Contra a intransigência de
matutos rebeldes (fosse um grande proprietário ou um sitiante mestiço), o Estado
passaria a responder com a autoridade e força necessária, pois afinal o que a
política mais avançada do seu tempo se propunha era exatamente o domínio da
ciência, pelos recursos técnicos, sobre os múltiplos chefes locais, fortalecendo o

296
MARSON, op. cit., 2009, p. 19.
297
MARSON, op. cit., 2009, p. 21.

193
poder do Estado. Se Pedro Ivo possuía seus triunfos, um dos quais o controle da
mata, em contrapartida o Estado dispunha de armas eficientes. 298

Para Marcus Carvalho e Bruno Câmara, a desastrosa tentativa de tomar o Recife e


derrubar o presidente da província não marcou apenas a derrocada do movimento armado,
mas, sobretudo, esmagou o partido praieiro em Pernambuco. Para os autores, a rebelião
também selou o futuro dos liberais no parlamento, condenados dali em diante ao ostracismo
político durante mais ou menos uma década. No retorno, em 1864, o partido estava
transfigurado, inclusive, alguns dos seus líderes eram justamente os adversários em 1848. A
Praieira encerra o ciclo das insurreições liberais do Nordeste com uma retumbante derrota
da oposição à oligarquia que vencera a disputa pelo poder na província durante a
Independência.299
Carvalho e Câmara destacam que entre as causas políticas que encaminharam a
Revolução, podemos constatar a legitimidade do Estado imperial e seus mecanismos
centralizadores através da ocupação dos cargos como oficiais da guarda nacional, delegados
e subdelegados da polícia civil e juízes de paz, que eram geralmente exercidos por
proprietários. Para os autores, este mecanismo de ocupação também servia para assimilar
novas elites ao corpo do Estado. Cada vez que alguém alcançava alguma dessas posições
em alguma localidade tornava-se um agente do império em sua área de influência, por
menor que esta fosse. Dessa forma, o Estado garantia sua centralidade e controle, e,
portanto, sua legitimação sem grandes custos diretos. Os custos indiretos fluíam pelas
malhas patrimoniais, ligando o centro do poder na Corte aos agentes do Estado nas
províncias e localidades. A distribuição de favores, títulos, benesses e inúmeras pequenas
vantagens econômicas, que somadas eram muitas, seguiam o caminho dessas malhas cheias
de capitães-mores, coronéis da guarda nacional, juízes de paz, delegados e subdelegados da
polícia civil. Para Carvalho e Câmara, era ―essa a planície política, avistada das alturas das
câmaras municipais, das assembleias provinciais, e do topo da câmara e do senado. É nessa

298
MARSON, op. cit., 1987, p. 116-117.
299
CARVALHO, M. & CÂMARA, B. ―A insurreição Praieira‖. Almanack braziliense. Nº 08, novembro 2008,
p. 6.

194
questão da legitimidade do Estado imperial que repousa um dos problemas que levou à
eclosão da Praieira.‖300
Ainda sobre a Praieira, vale ressaltar as novas tendências historiográficas que
buscam ampliar a análise da revolta não apenas focando na reverberação do discurso da
imprensa panfletária liberal radical, mas almejam dimensionar a participação das camadas
subordinadas no movimento praieiro e entender as motivações dos diferentes grupos
envolvidos. Para Carvalho e Câmara, a praieira teve de fato outras facetas, indo além da
mera disputa oligárquica. ―Ela catalisou inúmeras insatisfações da população pobre e livre,
301
imprensada entre a escravidão e o desemprego‖. Foi, portanto, um movimento vinculado
às disputas partidárias na Câmara, mas enraizado em conflitos políticos localizados no
interior de Pernambuco:

Uma disputa entre famílias de grossa fortuna, das quais saíram, e sairiam,
presidentes de províncias, deputados e senadores do império, mas sem descartar
a luta dos inúmeros homens livres pobres, a ‗gente comum‘ (...). Uma rápida
leitura nos Autos do Inquérito confirma a heterogeneidade dos participantes. Até
os líderes partidários que frequentavam as tribunas do parlamento pegaram em
armas. Da mesma forma, participaram do movimento pessoas da cidade
envolvidas com as campanhas eleitorais dos praieiros e gente do campo
mobilizada nos conflitos locais entre proprietários rurais. 302

A perspectiva historiográfica abordada por Carvalho traz-nos informações sobre os


caminhos de autonomia que os subalternos urbanos podiam construir entre as malhas
patronais. Em seu trabalho, o autor identifica as lideranças advindas das camadas
subalternas, escondidas atrás dos grandes líderes partidários, perscrutando assim as
motivações que levaram uma parte da população livre urbana a participar da insurreição e
da mobilização dos anos anteriores. Retoma a interpretação do clientelismo definindo-o
como algo que não é um dado autoevidente, muito menos um sistema com funcionamento
regular e uniforme através dos tempos:

Ao contrário, trata-se de uma conflituosa relação social e, como tal,


dinâmica e em permanente interação com as relações de classe e raça, também
condicionadas entre si e inseridas no tempo e no espaço. O clientelismo não é

300
CARVALHO & CÂMARA, op. cit., 2008, p. 10.
301
Idem, op. cit., p. 7.
302
CARVALHO & CÂMARA, op. cit., 2008, p. 7 e 8.

195
um dado estático e sim o produto de um longo conflito, mesmo que sua essência
seja a busca de uma conciliação, tendo no patrão o principal beneficiário. Trata-
se, então, de uma malha de relações entre partes desiguais. Tanto o dependente
como o patrão tem suas próprias interpretações do tenso contexto relacional em
que estão imersos. É preciso, portanto, abordar o problema de forma dialética.303

Sua análise amplia nossa visão sobre a Revolução Praieira e faz-nos indagar quais
eram as ações dos escravos, libertos e livres pobres dentro das relações de poder na Zona da
Mata pernambucana na década de 70 do XIX e diante a política e conflitos dos grandes.
Além disso, retomar este passado praieiro leva-nos a compreender que o conflito entre
conservadores e liberais fez parte de um processo histórico dinâmico e complexo desde a
primeira metade do século e que teve seu adensamento no período anterior à revolução
praieira e seu grande clímax na revolução e no seu desfecho. A história começada lá na
década de 30 ainda tinha seus traços de continuidade, em novas conjunturas, na década de
70 do XIX em terras dos engenhos da comarca de Nazareth. Uma questão social que
continuou a ocorrer nas décadas seguintes à revolta praieira e que ainda ressoava os
conflitos políticos existentes por anos foi o caso de roubo de escravos.
Como coloca Marcus Carvalho em seus estudos sobre as estratégias de resistência
dos escravos de Recife entre 1813 e 1848, a partir da segunda metade dos anos 40, passou a
ser uma ofensa comum no discurso político-partidário chamar os adversários de traficantes
ou ladrões de escravos. Era também opinião corrente nos meios urbanos mais letrados de
que o escravismo, embora inevitável, era moralmente condenável e, em longo prazo,
inviável. Proprietários eram vítimas de ladrões de escravos. A propriedade escrava em si
ainda não era seriamente questionada, embora já se vislumbrasse o seu desaparecimento,
num futuro não muito longínquo, na medida em que a população livre fosse sendo
―civilizada‖, ―um eufemismo da época para a incorporação ao mercado de trabalho de
forma disciplinada e ordeira‖.304
Para o autor, devido às incertezas legais trazidas pela lei de 1831, os escravos se
aproveitaram para ocupar espaços que lhes eram normalmente vedados. A conjuntura
permitiu que muitos deles, mais do que o normal quando insatisfeitos, procurassem outros

303
CARVALHO, Marcus de, ―Os Nomes da Revolução. Lideranças Populares na Insurreição Praieira, Recife,
1848-1849‖. Revista Brasileira de História, no 45, 2003.
304
CARVALHO, Marcus. Liberdade. Rotinas e rupturas do escravismo no Recife, 1822 -1850. Recife, 1998,
p. 299.

196
patrões. Ao mesmo tempo, o autor sugere que se tornou uma prática comum dos engenhos
maiores roubarem cativos das propriedades menores, vizinhos roubarem vizinhos. Segundo
Carvalho, familiares da mais alta aristocracia local e até parentes do Barão da Boa Vista e
dos Cavalcanti se envolveram nesses ilícitos penais. Nessa trama, os conservadores e os
liberais se acusavam mutuamente.

Os praieiros controlavam a polícia, e dela fizeram pleno uso para debilitar o


poder local dos proprietários rurais ligados ao partido adversário. Entre as
estratégias empregadas pela polícia praieira estava o varejamento dos engenhos
sob o pretexto de coibir vários tipos de crimes, assassinatos, tráfico ilegal e, é
305
claro, roubo de escravos.

Para Carvalho, os varejamentos dos engenhos continuaram pelo ano de 1847, até a
queda dos praieiros, em abril de 1848. Em 1850, ao discutir a violenta repressão imposta
aos que participaram da Insurreição Praieira, foi dito em defesa dos rebeldes que durante o
governo praieiro foram apreendidos mais de trezentos escravos roubados. ―E olhe que as
autoridades praieiras só varejavam os engenhos dos conservadores que, segundo Nabuco de
Araújo, eram na realidade as maiores vítimas desse tipo de crime‖. 306 Nos debates políticos
da segunda metade da década de 1848, a ―pecha de ladrão‖ de escravos tornou-se comum.
Liberais e conservadores acusavam-se mutuamente do mesmo crime e ―tinham toda a razão
de fazer isso.‖307 A hipótese do autor é que os cativos percebiam que os brancos também
brigavam entre si e que muitas das fissuras do sistema foram escancaradas nos momentos
de crise política dos brancos.308
Desse modo, Marcus Carvalho verificou em Pernambuco também a presença do
acoitamento. Para o autor, em regra geral os acoitamentos aconteciam por interesse do
acoitador que ganhava um trabalhador sem ter que pagar por ele o preço de mercado. E a
legislação brasileira a partir de 1837 não se empregava a expressão ―furto‖, mas somente
―roubo‖ de escravos. Considerava assim a legislação que só era possível tomar um escravo
alheio através da violência ou então através da persuasão do cativo. Segundo Carvalho,

305
Idem, op. cit., p. 300.
306
CARVALHO, Marcus. Liberdade. Rotinas e rupturas do escravismo no Recife, 1822 -1850. Recife, 1998,
p. 300.
307
Idem, op. cit., p. 12.
308
Sobre o roubo de escravos ver também SILVA, Wellington Barbosa. A cidade que escraviza, é a mesma
que liberta...estratégias de resistência escrava no Recife do século XIX (1840-1850). Dissertação de Mestrado
em História, Recife, UFPE, 1996, p. 80-97.

197
Através de um artifício de lógica jurídica, portanto, o direito considerava
que essa persuasão equivalia à coação direta uma vez que impossibilitava o
legítimo proprietário de defender a sua posse. A legislação admitia claramente
que, para um ser humano ser ―roubado‖, era preciso que o ―objeto‖ do crime, o
cativo, consentisse o roubo.309

O interessante aqui é que ao pesquisar a documentação policial de Nazareth,


verificamos alguns acontecimentos que nos revelam como a briga entre conservadores e
liberais, e dentro desta o ―roubo‖ de escravos, continuou influenciando a vida dos
trabalhadores rurais, as ações na Justiça e a dinâmica do meio social nos anos 70 do XIX.
Assim, o Tenente Coronel José Cabral de Lima Mello, consenhor do Engenho
Canavieira, filho de Josefa Maria de Jesus, senhora do Engenho Vertente, esteve na mira da
polícia de 1868 a 1878. O que aparentemente começou de uma briga de família, entre o
Tenente Cabral e seu padrasto, o Bacharel João Dias Coutinho de Araújo Pereira, o qual
deixou Josefa Maria de Jesus na miséria, acabou virando um caso de sedução de escravos e
posteriormente de proteção de criminosos.
Em 1869, João Dias Coutinho foi até a polícia denunciar que no dia 22 de julho
tinham se ausentado de seu poder os seus escravos de nomes Luis de França, Manoela e
José Raimundo, os quais estavam no engenho Vertente, pertencente a José Cabral de
Oliveira Mello que os conservava em seu poder. Segundo Coutinho, os escravos ―foram
para ali levados, os dois primeiros por sedução, e o último à força‖. 310 Por ordem do chefe
de Polícia, o procedimento era apreender os referidos escravos e entregá-los a seu senhor.
No entanto, o delegado, Barão de Tracunhaém, esclareceu que não era tão fácil capturar os
escravos, uma vez que eles tinham ido lá por companhia da mãe de Cabral, Josefa Maria, e
sem dúvida eles não transitavam para fora do mencionado Engenho:

Logo se lá existem só no engenho podem ser apreendidos para o que seria


preciso o varejo do mesmo engenho casa de moradores e a serviços e ainda
assim mesmo poderia serem impróprias as diligências para a apreensão dos
escravos.311

309
CARVALHO, Marcus. ―Rumores e rebeliões: estratégias de resistência escrava no Recife, 1817-1848‖.
Revista Tempo, vol. 3, nº 6, dezembro de 1998, p. 10-11
310
Ofício ao Chefe de Polícia de Pernambuco, Francisco de Assis Oliveira Maciel, do delegado de Nazareth,
João Cavalcanti Maurício Wanderley. Delegacia de Polícia de Nazareth, 9/08/1869. SSP Nazareth 246 vol
653.APEJE/Recife.
311
Idem.

198
No evoluir dos acontecimentos, Tenente Cabral foi acusado de além de aprisionar os
escravos, também estava homiziando criminosos no Engenho Vertente, fatos que o
delegado Barão de Tracunhaém tentou desmentir, esclarecendo para o Chefe de Polícia:

(...) procurei obter informações de pessoas insuspeitas; e assim habilitado tenho


a declará: Não consta que no engenho Vertente, existão criminosos; e se
houvessem terião sido capturados; pois as autoridades policiais neste Termo, não
recuão em prevencia de considerações; ou força em fazer como lhes cumprem
Imperial a Lei. Como politicamente affirma e sua petição o Baxarel Coutinho.
Coronel José Cabral, não me consta que tenha escravos, nem objetos
pertencentes a seu padrasto Coutinho. Sou informada que existem três escravos
deste em poder de sua mulher D. Josepha de quem esta separado a tempos e que
são empregados no serviço della; de cujo producto se mantêm e mais quatro que
forão escravos e que a mesma Josepha alforriou três deste quatro escravos.
Como pretende o Baxarel Coutinho haver estes libertos? Como escravos antes
de anullar as cartas? A questão da liberdade destes escravos já foi presente aos
antecessores de VSa com a copia (...).O subdelegado do Districto de Vicência
Tenente de Polícia Joaquim da Motta e Silva, têm prestado muitos bons serviços
e incapaz de praticar acções em (...) e não estar na dependência do Tenente
Coronel José Cabral. Não consta distúrbios factos criminozos praticados pelo
Tenente Coronel Cabral. Se os juízes jurarão suspeição por parentesco ou outros
motivos expressos na Lei não sabe Coutinho que esta se da frequentemente?
Então o remédio é representar contra a polícia. Enfim o Baxarel Coutinho mal
aconselhado por seus amigos e correllegionários quer fazer jogo político com a
lamentável divergência que existe entre elle, sua mulher e parentes. Concluo
minha informação informando a Vsa que a força pública nesta Comarca sempre
esteve e está a disposição das requizições do Juiz Municipal quando ella faz uso
sempre que lhe é mister.312

A disputa política aumentava os fatos, criava crimes e jogava com a autoridade


policial frente à judicial. No meio do tiroteio, os destinos de escravos e trabalhadores eram
determinados. A acusação de que o tenente Cabral houvesse seduzido os escravos volta à
questão de que atrás de uma sedução existe certo consentimento por parte do escravo.
Nesse caso, a disputa política envolveu o conflito entre os proprietários, e, provavelmente,
como também verificou Carvalho, na metade do século XIX, influenciou nos destinos dos
escravos e dos libertos, os quais, conscientes das divergências, podem ter aproveitado a
situação e optado pelo senhor que eles gostariam de ficar.

312
Ofício ao chefe de Polícia de Pernambuco, do delegado de Nazareth, João Cavalcanti Maurício Wanderley.
Delegacia do Termo da cidade de Nazareth, 21/03/1871. SSP Nazareth 247 vol 652. APEJE/Recife.

199
Em 1875, novas acusações são feitas ao Tenente Coronel Cabral. Dessa vez, ele era
acusado de patrocinar os criminosos de morte Antonio Carreiro e Manoel Pereira. 313 E a
partir de então, alguns proprietários pressionaram a polícia, alegando não poder se defender
com armas porque, desse modo, ficariam entre os ―bacamortes‖ dos ladrões e seriam
processados pelos juízes adversários que de tudo eram capazes, como por exemplo, o Juiz
Municipal de Órfãos que instaurou um processo contra o Tenente Coronel Joaquim
Gonçalves Guerra uma vez que tentou se defender de uma emboscada.314
Os roubos foram aumentando e as prisões e as investigações pelo delegado de
Nazareth também. E no meio de muitos assaltos aos negociantes, a polícia verificou que os
criminosos não roubavam casas de negócios dos conservadores e sim apenas dos liberais,
gritando morte aos liberais.315 Era, portanto, evidências de que os criminosos, sob proteção
do Tenente José Cabral, exerciam suas ações em nome de uma tendência política.
Em 1878, o Tenente Coronel Cabral passou a ser rendeiro e consenhor do Engenho
Canavieira, onde, segundo a polícia, era o espaço de reunião e proteção de criminosos.

É facto notório, não só nesta Comarca, como nesta Província que uma
quadrilha de ladrões homisiado no Engenho Cannavieira desta Comarca do qual
é rendeiro e consenhor o Tenente Coronel José Cabral de Oliveira Mello, em
dias de Fevereiro do corrente anno incetou suas correrias por diversos Engenhos
como sejão Cipó, Engenhos de Mathias Gonsalves Gaião e outros dos quais
perseguidos pelo clamor público refugiou se no engenho canavieira onde foi
preso Cândido de Tal um dos quadrilheiros que se achão recolhidos a Cadeia
desta Cidade. É de lastimar que dito Tenente Coronel houvesse declarado
n‘aquella occasião que a arma que Cândido traria e lhe foi tomada, pertencia a
elle Tenente Coronel que a tinha fornecido a Cândido, pelo que disputava a
intrega de sua propriedade (dita arma) que hoje está em poder do Dr Juiz
Municipal Sá Barreto.316

313
Ofício do subdelegado de polícia do districto da cidade de Nazareth, para o delegado de polícia de
Nazareth, Barão de Tracunhaém. Delegacia de Nazareth, 19/04/1875. SSS 248 vol 651. APEJE/Recife.
314
Ofício do delegado de Nazareth, José Jerônimo Pacheco de Albuquerque Maranhão, para o Chefe de
Polícia de Pernambuco, Sigismundo Antonio Gonçalvez. Delegacia de Polícia de Nazareth, 5/05/ 1878. SSS
Nazareth 249 vol 650.
315
Ofício do delegado de Nazareth, José Jerônimo de Albuquerque Maranhão, para o chefe de polícia da
província de Pernambuco, Sigismundo Antonio Gonçalves. Delegacia de Nazareth, 10/05/1878. SSS Nazare
249 vol 650.
316
Ofício para João Hyraceno Alves Maciel, Juiz de Direito da comarca de Nazareth, do delegado de Polícia
José J. Pacheco de Albuquerque. Delegacia de Polícia da Comarca de Nazareth, 6/05/1878. SSS Nazareth 249
vol 650. APEJE/Recife.

200
Para o delegado, José J. Pacheco de Albuquerque, os atos do Tenente Coronel eram
uma provocação aos pacíficos habitantes da comarca e um afronte à lei. Fato foi que o
Presidente da Província mandou uma força sob o comando do Capitão Melo ao dito
Engenho Canavieira, não prendendo um só bandido porque eles ―avisados ou pressentindo‖
se refugiaram nas matas. Para o delegado,

(...) é corrente constando o dito Tenente Coronel e seus inocentes protegidos,


que ao Engenho Canavieira não mais teria força com o que acobertados
protestos e protegidos com insólita audácia outra vês investirão não só contra
quem lhes constava ter dinheiro, como também quem lhes não aplaudia tão
reprovado procedimento. O fato de terem ditos bandido postado piquetes nos
lugares Tenda e Canavieira onde n‘aquela cassa Sabino Gaião que reprovava ou
reparava tão resque me paresse provão não só o que exponho como o valor e
audácia com que investirão e ferirão os seguintes roubos. 317

Segundo o delegado de Nazareth, foram vítimas das depredações os seguintes


cidadãos: Mathias Gonçalves Guerra, proprietário do engenho Sêpo; João de Oliveira e
Silva, proprietário do engenho Pombal; João Joaquim de Mello e Felinto Elisio de
Albuquerque negociantes estabelecidos na povoação de Aliança; João Reinaldo, morador
no engenho Pagy, e Simão Velho de Mello, proprietário do engenho Paqueviva, ―sendo de
notar que todos pertencentes somente do Partido Liberal‖.318
Este último proprietário, Simão Velho, ainda no mês de junho, solicitou uma
publicação para o Jornal do Recife, artigo no qual narrou suas visões dos acontecimentos
que estavam ocorrendo na região de Nazareth. Simão contou que foi roubado pela quadrilha
de salteadores de Zezé de Vertente:

(...) por ser delle protector ou chefe o proprietário daquele engenho, este homem
fatal, pior que os 2 anos de sêcca que estamos sofrendo, pior de que os
assassinos elle protege, e que é comandante pelos subalternos daquele Sr.
conhecido com os nomes de José Maria, José Talhado, Manoel Telles, etc., os
quaes em número de 24, na noite de 15 para 16 do corrente occultaram-se nas
imediações de minha casa (...) penetraram achando tão somente na sala a minha
senhora occupada no serviço de agulha (...).319

317
Idem.
318
Ofício para Sigismundo Antônio Gonçalves, chefe de polícia da província, de José Jerônimo Pacheco de
Albuquerque , delegado e polícia. Delegacia de Policia do Termo de Nazareth, junho de 1878. SSS Nazareth
249 vol 650. APEJE/Recife.
319
Artigos e correspondências do Arquivo pessoal Simão Velho Pereira Borba. Fundaj/Recife.

201
Conta Simão que quando retornou para casa encontrou no meio da sala 24
assassinos que roubaram dinheiro, jóias, roupas, cobertas, toalhas e, entre outros bens,
todos os papéis e documentos, como escrituras de terras e escravos, registros, averbações,
recibos da coletoria de imposto pessoal, letras de pessoas que lhes deviam no valor de 15
contos e tantos mil réis. Simão se lastimou revoltosamente ao redator declarando a que
sorte o agricultor que já estava sofrendo dois anos de seca com numerosa família para
sustentar, segundo ele, cerca de 40 pessoas, e de repente lhe eram arrancados todos os
recursos. ―É a sorte a que estão sujeitas todas as famílias do interior das 3 comarcas:
Nazareth, Goyanna e Itambé‖, pois, para Simão, enquanto o governo da província não
quisesse pôr um fim naquela situação, ele que fora imprevidente, e continuaria a ser, seria
roubado tantas vezes os salteadores aproveitassem, porque,

(...) tenho a crença de que quem deve garantir a minha propriedade é o governo
de meu pais, que para isto se apossa de parte não pequena do meu trabalho,
segundo porque eu mal posso sustentar a minha família, e não posso sustentar a
pagar um guarda, que faça sentinella noite e dia, capaz de repellir salteadores
que teem atacado povoações grandes, e que dispõem do número de ladrões que
quizerem, o que equivalia a ser roubado sempre mudando apenas de forma,
terceiro, finalmente porque tenho por hábito assistir ao meu serviço diário,
recolher-me à tardinha para a minha casa, mudar a minha roupa, accender uma
luz, ler um capítulo do D. Quixote com o seu escudeiro Sancho Pancha e dormir
tranquilo. E este habito de 55 anos de idade eu não posso mudar, ninguém me
falle em bacamarte, em pistola, em faca de ponta, etc.320

Simão Velho participou ativamente da Revolução de 48 em Pernambuco e a partir


da segunda metade dos anos 70 e nos anos 80 foi um ardoroso liberal e em defesa da
Abolição. O jornal de Recife, em 1884, sob o título de ―Um exemplo edificante‖ anunciou
que Simão Velho, havia tomado um ato não apenas de generosidade humana, mas de
grande importância econômica, de um elevado e ―criterioso testemunho em favor da
conveniência industrial da abolição‖.

(...) agricultor de rara aptidão profissional e espírito enérgico e uma inteligência


claríssima, compreendeu facilmente que na atual situação econômica do Brasil,
o trabalho escravo já não é remunerador e ao contrário, já não sendo bastante
para os vários serviços das propriedades Agrícolas, tornou-se incompatível com
o trabalho livre que delas afugenta. 321
320
Artigos e correspondências do Arquivo pessoal Simão Velho Pereira Borba. Fundaj/Recife.
321
Artigo Um exemplo edificante. Jornal do Recife, 17/12/1884. Arquivo pessoal Simão Velho Pereira Borba.
Fundaj/Recife.

202
E, diante disso, tomou enérgica resolução de romper com a rotina e acabar com a
―propriedade escrava‖ (grifo do jornal), segundo o artigo, no intuito de conciliar os seus
interesses com o direito daqueles que lhe serviam. E daí vem a reveladora parte:

Não foi sem condição a liberdade concedida. Mas a condição imposta é


certamente, além de aceitável, salutar, porque estabelece um regime transitório
de trabalho obrigatório por cinco anos em semanas alternadas. Acabou com a
sensala e converteu os moradores delas em moradores avulsos, que vão levantar
suas cabanas à parte, constituindo de novo o lar da família liberta com economia
separada e responsabilidade própria.
Cada liberto se utilizará do milho, da mandioca e do feijão da última safra,
que será (como seria) o sustento de todos até que possam fundar e colher a nova
safra. Agricultor eminentemente prático, pensa o Capitão Simão Velho, que ser-
lhe-á realmente vantajosa a phase nova de trabalho, que assim instituiu em sua
propriedade 322

Segundo informou o artigo, foram libertos 21 escravos, quatro dos quais sem ―ônus
de serviço‖. Três ingênuos da Lei de 28 de setembro e maiores de 8 anos foram também
dispensados da obrigação de servir em semanas alternadas até cinco anos, ficando depois
disso completamente livres. Fazia-se o contrato por um termo, com a assistência do juiz e
do curador Geral de Órfãos, assinado por uma pessoa a rogo dos libertos e por duas
testemunhas. Os libertos teriam sido matriculados como tais em livro preparado e escrito
como determina o artigo 72 do Regulamento por Decreto nº 5135 de 13 de novembro de
1872. No contrato se consignariam que no caso da infração por parte dos libertos se fariam
efetivas as penas estabelecidas nos artigos 82 do mesmo Regulamento e 69 da Lei nº 2827
de 15 de março de 1879. No mais, a exemplo do Capitão Simão Velho, o Sr. Urbano da
Silva Pereira de Lira, os libertos estavam sob condição de lhe servirem quatro dias cada
semana, durante o mesmo prazo de 5 anos.
A grande parte reclamante dos assaltos e da falta de atitude das autoridades
competentes era composta por proprietários liberais da comarca de Nazareth. Através de
Simão Velho, reconhecido por alguns conterrâneos como liberal e abolicionista, podemos
constatar a mentalidade e as atitudes desses ditos liberais abolicionistas com relação a uma
abolição de fato, e perceber o quanto o econômico estava falando alto nas decisões de

322
Idem.

203
libertar ou não seus escravos. Se num momento Simão reclamou afirmando que não tinha
condições de sustentar cerca das 40 famílias que viviam em seu engenho, quatro anos
depois, nada mais coerente do que passar as contas do sustento para os escravos, tendo-os
ainda sob condição de prestação de serviço. De fato, a liberdade vinha em boa hora para
dividir os gastos. A visão liberal desses proprietários, por sua vez, influenciava diretamente
na dinâmica do trabalho nos engenhos, uma vez que propunha continuar o uso do trabalho
escravo sob novas condições. Será que trabalhadores livres queriam participar desse
esquema? Será que todos os proprietários apostavam nessa dinâmica? Além das visões
político-partidárias que geraram conflitos, acredito que algo na prática do trabalho dos
engenhos e plantações, assim como as relações sociais estabelecidas nessa dinâmica,
desagradava proprietários e trabalhadores e/ou ―criminosos‖. Afinal, juntamente com essa
visão política e essa estratégia econômica, estava a moral senhorial que não podia entrar em
jogo. O poder e o domínio de alguma forma teriam que se manter.
Curioso aqui é notar que nem Simão Velho nem os outros proprietários liberais
citados pela polícia assinaram em 1890 o abaixo assinado de apoio a Nabuco para a
constituição de uma nação federalista. O abaixo assinado continha 116 nomes, quantidade
expressiva se pensarmos no número de votos que Nabuco recebeu em 1885 (181 votos da
comarca de Nazareth), porém ainda faltaram alguns que votaram nele em 1885, mas não
participaram da carta enviada. Os citados acima, apesar de não estarem na lista de apoio a
Nabuco, podem ter votado nele em 1885. O discurso de Simão Velho parece condizer com
ideais abolicionistas de Nabuco se não fosse a forma de alforria por ele adotada,
explicitamente gradual, e com certa indenização por anos de serviço. Assim, a hipótese
mais provável é que Simão e seu grupo de liberais atacados pelos ―bandidos‖ a mando dos
conservadores de Nazareth votaram em Nabuco por conta de seu discurso moderado nas
eleições de 1885, no entanto, após o 13 de maio de 1888 o novo cenário mudou os rumos
dessa classe liberal e com o advento da República seus caminhos foram outros. De qualquer
maneira, o fato foi que às vésperas da abolição, os liberais, proprietários medianos
perseguidos pelos conservadores de Nazareth, apostavam num fim da escravidão gradual,
com indenização e sem garantia de moradia, posturas, portanto, muito próximas das
defendidas por Henrique Milet anos antes. Seria esse o perfil dos liberais abolicionistas de
Nazareth?

204
Para Marc Hoffnagel, qualquer avaliação do comportamento do Partido Liberal em
Pernambuco precisa levar em conta as sérias dificuldades internas que afetaram o partido
nos anos imediatamente anteriores à eclosão do movimento abolicionista. Por conta da luta
em 1878 – guerra entre Leões e Democratas –, dissentes organizaram o partido liberal
democrata contra o Barão de Vila Bela (Domingos Sousa Leão) e seu primo, tenente Luiz
Felipe de Sousa Leão. Esta cisão permitiu que na eleição geral de 1881 os conservadores
ganhassem em seis dos treze distritos eleitorais da província. Oito gabinetes liberais
organizados entre 1878 e 1899 incluíram apenas 6 pernambucanos. Situação de pouco
expressividade nacional, mais o fato de que com a crise a elite pernambucana necessitava
de apoio do governo, levou o partido liberal no início dos anos 80 a uma tática de
estabilidade interna – sinais falsos de indiferença quanto às questões escravistas. Na década
de 80, de 60 a 70% dos seus militantes eram donos de terra, a maioria destes oriundos da
zona de produção açucareira. Hoffnagel, questionando o declínio da mão de obra escrava
em Pernambuco, sugere que, ―é de supor, por exemplo, que os engenhos de grande porte de
Pernambuco, menos vulneráveis à crise da economia açucareira, tendiam a reter uma maior
parte do seu plantel de escravos do que pequenas e médias propriedades‖. 323
Assim, na visão do autor, ocorre uma oposição ao movimento abolicionista em
Pernambuco, através, por exemplo, do Clube da Lavoura, que por volta de 1883, poderia
ser encontrado em quase todos os municípios da Zona da Mata. Protestos junto ao governo
central contra os excessos dos abolicionistas defendiam que qualquer medida referente à
libertação dos escravos deveria se conformar às linhas mestras estabelecidas pela lei do
Ventre Livre de 1871, especialmente do que diz respeito à indenização. Vale ressaltar que a
posição do Partido liberal contra a escravidão, no entanto, era ambígua.
Diante do contexto de aprovação do projeto Dantas de 1884, desencadeou-se uma
crise com a queda do governo Dantas em 1885. Deputados do centro-sul cafeeiro votaram
contra Dantas enquanto representantes do norte e nordeste, aparentemente menos hostis à
medida do governo, votaram para manter Dantas no poder. Os votos vindos dos liberais
pernambucanos não revelam, todavia, se estes tinham um real desinteresse pela preservação
da escravatura. Para Hoffnagel, a votação se deve a questões políticas partidárias, sobretudo

323
HOFFNAGEL, Marc Jay. O partido liberal de Pernambuco e a Questão abolicionista, 1880/1888. In:
Atualidade & Abolição. Manuel Correia de Andrade e Eliane Moury Fernandes (org.) Série Abolição. Vol
XX, Recife, Editora Massangana, 1991, p. 143.

205
por conta do medo dos liberais de Dantas ser substituído por um conservador e das novas
eleições serem motivo de novas facções dentro do Partido Liberal. Segundo o autor, Luis
Felipe de Sousa Leão, latifundiário e proprietário, instruiu a bancada para votar contra as
moções de não confiança submetidas pelos representantes do centro-sul, para preservar a
unidade do partido. Pernambucanos liberais também declaram esta atitude, e
principalmente, os proprietários da Zona da Mata Sul almejavam sim o emancipacionismo
gradual.324
É importante ressaltar que nesse momento o partido liberal era dependente do poder
central para a garantia de empregos públicos e favores. Ocorrem, portanto, certas divisões
da minoria de liberais abolicionistas e a ala rural do partido. Como bem exemplifica
Hoffnagel, ilustrativo dessa situação foi a decisão de Luiz Felipe Sousa Leão em aceitar a
candidatura do líder abolicionista, Joaquim Nabuco, durante as eleições de 1884. Este
sofreu pressão de Sancho de Barros Pimentel, presidente de Pernambuco, responsável pelas
eleições, e não concordar significaria romper com o governo, culminando, certamente, em
perda de patronagem. O apoio, no entanto, foi explicado por Luis Felipe: ―a combinação
dos candidatos liberais não atende com a questão servil e atende somente às conveniências
do partido‖.325
Como sabemos, Nabuco é expulso e no seu lugar é nomeado um conservador; os
liberais, por sua vez, colocaram suas preocupações políticas acima dos seus receios em
torno da campanha antiescravista e Nabuco volta depois de um mês de sua expulsão. Volta
como deputado eleito pela morte de Epaminondas de Melo, do 5º distrito eleitoral. Para
Hoffnagel, os motivos advêm de uma recrudescência de conflitos entre Democratas e Leões
no 5º distrito que ameaçava resultar em mais uma vitória para o partido conservador, vitória
essa que reduziria o número de liberais na bancada Pernambucana a uma minoria de cinco.
Por conta disso, alguns chefes locais resolveram apoiar o nome de Nabuco. ―Garantiam a
eleição de um liberal, vingariam do Partido conservador pela expulsão de Nabuco da
Câmara dos Deputados e, o que é mais importante, fortaleceria Luis Felipe como
ministro.‖326

324
HOFFNAGEL, op. cit., 1991, p. 143 e 144.
325
Idem, op. cit., p. 146 e 147
326
HOFFNAGEL, op. cit., 1991, p. 147 e 148.

206
A partir de 1886 fica cada vez mais difícil o Partido Liberal relegar a questão da
escravidão para um segundo plano. Luis Felipe rejeita sugestões de José Mariano Carneiro
da Cunha: queria que facções liberais se unissem em uma bandeira de combate
antiescravista, aprovação do projeto de Souza Dantas estabelecendo um prazo máximo de
cinco anos para a extinção da escravidão, e mudanças na estrutura fundiária. Com a
radicalização do movimento abolicionista, por volta de 1887 (Clube Cupim), Luiz Felipe
através do Jornal do Recife, veículo do Partido Liberal, anunciou que o partido só aceitaria
o emancipacionismo gradual e legal. Em 1887 quando estes indicaram Joaquim Nabuco
como candidato liberal numa eleição realizada no Recife, o Barão de Araripe e outros
senhores de engenho, falando em nome de grande parte da classe agrícola de Ipojuca e
Escada, chegou a ameaçar de abandonar o partido caso o partido e o jornal prestassem
apoio à Nabuco. Os partidários liberais ressentidos fundam o Partido Republicano o qual
deu um grande avanço com o ingresso de plantadores. Entre o final de 1887 e 15 de
novembro de 1889, mais ou menos 100 senhores de engenho alistaram-se à causa
republicana.
Diante dessa complexidade política, na opinião de Hoffnagel, os partidos políticos
que atuaram no império nem sempre funcionaram como os representantes diretos dos
interesses da grande lavoura aos quais eram intimamente ligados. Para ele, estas evidências
revelam que, para as elites políticas da província, a preocupação com a conservação do
poder político - poder este que garantia seus empregos, comissões, promoções e nomeações
oriundas do governo central - podia em determinados momentos ofuscar a defesa dos
interesses econômicos da classe dominante açucareira, para quem a conservação de
propriedade escrava constituiu um importante mecanismo de sobrevivência econômica.
―Quando o seu acesso ao poder era ameaçado, os liberais tendiam a dar prioridade aos seus
interesses políticos, mesmo quando isso implicava ‗concessões ao abolicionismo‘. Em
outras condições, lutavam abertamente em favor da sobrevivência do regime escravista‖.
Em suma, o autor defende que esta ambiguidade, antes de constituir uma espécie de
―abolicionismo precoce‖, é reveladora do crescente distanciamento entre os interesses
econômicos do império e a classe política, um distanciamento que resultará na queda do
próprio regime político poucos meses após a abolição da escravatura.327

327
HOFFNAGEL, op. cit., 1991, p. 148 e 149.

207
Essas reflexões denotam o quanto é complexo buscar entender a relação entre
liberais, conservadores, liberdade e escravidão.328 Vale lembrar que é importante assinalar o
perfil sócio-econômico dos personagens que estamos estudando: grandes, médios ou
pequenos proprietários. No mais, ainda é importante pensar o outro lado da esfera social, os
livres pobres, libertos e escravos diante desse jogo político. Há evidências, como bem
observamos nos estudos de Carvalho sobre a Revolta Praieira, que os subalternos tinham
consciência das estratégias políticas das elites. Ainda que em outro momento histórico e na
área urbana, acredito que nas matas dos engenhos certamente podemos encontrar
semelhantes correlações. No caso que estamos tratando, parece que os ditos ―bandidos‖
escolhiam politicamente suas vítimas. Se verdade ou manipulação dos próprios
personagens da elite política, é melhor retratarmos as evidências encontradas sobre os
próprios.
Quanto aos suspeitos pelas invasões, a polícia identificou Manuel Felix, Francisco
Sobral, João Carreiro, Benedicto, João Cabral, Galdino Manuel Freire, José Maria e
Mathias, sendo o primeiro o chefe do bando.329 No entanto, para o inquérito foram os
moradores do Engenho Canavieira que, contando seus caminhos de vida de retirante, de
desertor do exército e de ex-presidiário, esclareceram como fizeram para chegar até o
engenho onde trabalhavam na agricultura. Eram eles, Lauriano de Sousa Barbosa, que

328
Como salienta Silvana Vasconcellos, para analisarmos a desagregação do sistema escravista em
Pernambuco, entre 1850 1870, é necessário pensar: o desequilíbrio populacional entre o crescimento das
camadas livres em oposição ao declínio da população escrava, provocado principalmente pela interrupção do
tráfico negreiro internacional, o dreno constante dos escravos para as regiões cafeeiras através do tráfico
interprovincial, a baixa capacidade vegetativa dos escravos, as fugas constantes, o impacto da Guerra do
Paraguai, a divulgação pelos periódicos do Recife dos graves acontecimentos da Guerra Civil Americana,
além dos baixos custos financeiros em empregar a população livre e pobre na atividade açucareira. Para ela,
essa conjuntura favorecerá um clima propício, a partir de 1866, para que os proprietários escravistas da
província pernambucana não reajam negativamente à política emancipacionista encetada pelo governo
imperial, cuja consolidação será em 1871 com o sancionamento da Lei dos Nascituros. Os parlamentares
pernambucanos, independente da filiação partidária, em sua grande maioria, seguiram a mesma tendência,
haja vista terem nas elites locais seus eleitores e alguns deles, como Teodoro Machado Freire e João Alfredo
Correia de Oliveira, serem burocratas e ocuparem em 1871 cargos majoritários. Dessa maneira, suas
investigações sugerem que no período que antecede a década de 1870, não existiram em Pernambuco nenhum
movimento ou campanhas emancipacionistas oriundos de qualquer setor, em especial, de grupos médios
urbanos desvinculados dos interesses escravistas. Segundo a autora, apenas observou que existiram homens
corajosos que pregaram ideais emancipacionistas, mas era distante da mentalidade que os cercava. A partir de
1872, esse quadro muda de figura. VASCONCELOS, Sylvana Maria Brandão de. Ventre Livre, mãe escrava:
a reforma social de 1871 em Pernambuco. Recife, Ed. Universitária da UFPE, 1996, p. 32-48.
329
Inquérito policial e ofício contra o Tenente Coronel José Cabral d‘ Oliveira Mello, do subdelegado de
polícia de Vicência, João Barbosa de Mello, para o chefe de polícia de Pernambuco, Sigismundo Antonio
Gonçalves. Delegacia de Nazareth, 23/05/1878. SSS Nazareth 249 vol 650.

208
sendo desertor foi para o Recife, Manoel Serafim Rodrigues dos Santos, José Tertuliano de
Sousa Carneiro, José da Rocha Bezerra, Trajano José Luis e Manoel João do Carmo,
conhecido por Manoel Luis.330
Segundo a polícia, os fatos estavam confirmados, pois ―todos os moradores e
escravos falavam abertamente‖. No entanto, verificamos a partir do Auto de Perguntas que
ao questionarem se o rendeiro José Cabral tinha o envolvimento com a quadrilha, dos 10
entrevistados, os 6 lavradores e moradores do Engenho Canavieira disseram que não
sabiam. Apenas o jornaleiro Manuel João do Carmo e mais 3 moradores circunvizinhos
disseram que Cabral era sim envolvido com os ladrões e assassinos e com eles dividia o
lucro e fornecia armas.
Da série de depoimentos colhidos pela polícia a fim de comprometer o Tenente
Cabral, o de Galdino Pereira Barboza, quarenta anos, que vivia da agricultura e que havia
pouco se mudou do Engenho Canavieira, trouxe uma intrigante declaração que serviu para
a polícia como prova da culpa de José Cabral.
Depois de assumir que imputou Felipe Rodrigues, o respondente disse que foi a

(...) razão porque procurou a proteção do Tenente Coronel José Cabral por lhe
ter indicado João de tal, parente dele respondente, morador no lugar João
Gomes, província da Parahyba que me dito, digo que no Engenho Cannavieira
estava elle respondente garantido pela proteção do Tenente Coronel José Cabral,
e de facto contando elle respondente ao Tenente Coronel José Cabral o motivo
porque procurava sua proteção, este lhe disse que mora-se e trabalha-se.331

O Tenente Cabral, no entanto, não foi preso, pois por conta do mandato de prisão do
Capitão João Barbosa de Mello, subdelegado do distrito de Vicência, o Alferes de linha
Eráclito de Sousa, comandante do destacamento, desobedeceu às ordens, porque, segundo o
delegado,

Esse Alferes é inteiramente dedicado a política conservadora e durante o


tempo em que esteve aqui commandando o destacamento, sempre nas melhores
relações com os amigos políticos do Tenente Coronel José Cabral, afastando-se

330
Ofício para João Hyraceno Alves Maciel, Juiz de Direito da comarca de Nazareth, do delegado de Polícia
José J. Pacheco de Albuquerque. Delegacia de Polícia da Comarca de Nazareth, 6/05/1878. SSS Nazareth 249
vol 650. APEJE/Recife.
331
Auto de perguntas feitas a Galdino Pereira Barboza pelo delegado de polícia José Jerônimo Pacheco de
Albuquerque Maranhão. Nazareth da Mata, 18/06/1878. SSS Nazareth 249 vol 650. APEJE/Recife.

209
o mesmo possível das authoridades policiais ultimamente nomeadas e portando-
se sempre mal nas diligências que faria pelo que não é injustiça negar-se crédito
ao que elle escreve em favor de um seo correligionário que precisa apresentar-se
como victima de perseguição injustas.332

O caso do Tenente Coronel José Cabral nos sugere pistas de como se davam as
relações entre as autoridades policiais, seus setores internos, estes com o Presidente da
Província e com os diversos setores dos senhores de engenho de Nazareth, e destes com as
camadas populares, digo escravos, ―bandidos‖ e trabalhadores rurais livres. As redes de
conflito se definiam claramente pela disputa político-partidária (e também sócio-
econômica) dos anos 70: conservadores x liberais. Ao mesmo tempo, trabalhadores rurais,
brancos, cativos, negros, mulatos, pardos, ―bandidos‖ ou não, compunham a realidade da
zona da mata canavieira, optando ou não, conforme possibilidades, por seus destinos, por
sua moradia, seu trabalho.
No mais, os criminosos perseguidos pela polícia nazarena durante a década de 70
trazem-nos um quadro social que podem nos esclarecer os caminhos mais plausíveis para
os escravos conquistarem nas últimas décadas da escravidão na comarca de Nazareth.
Considerando esses criminosos como raízes do ―banditismo‖ pernambucano,333 é
interessante fazer uma analogia desses movimentos de roubos, ataques e busca de proteção
dos criminosos de Nazareth, com os estudos sobre o banditismo social.
Na visão de Hobsbawm, o significado histórico do banditismo nas sociedades com
divisões de classes e estados é desafiar os que têm ou reivindicam o poder, a lei e o controle
dos recursos, gerando embates, portanto, simultaneamente, à ordem econômica, social e
política. A conclusão, portanto, é que o banditismo como fenômeno específico não pode
existir fora da ordem sócio-econômica e política. Assim, do ponto de vista social, a história
do banditismo se divide em 3 partes: seu nascimento, nas sociedades de classe e de estado,

332
Ofício para Sigismundo Antônio Gonçalves, chefe de polícia da província, de José Jerônimo Pacheco de
Albuquerque , delegado e polícia. Delegacia de Policia do Termo de Nazareth, junho de 1878. SSS Nazareth
249 vol 650. APEJE/Recife.
333
Não entrarei na discussão sobre a construção do mito do banditismo social, propriamente, mas perpassarei
por suas conclusões. Ver: FERRARAS, Norberto. ―Bandoleiros, cangaceiros e matreiros: revisão da
historiografia sobre o Banditismo Social na América Latina‖. História, São Paulo, 22(2): 211-226, 2003.
HOBSBAWM, Eric. Bandidos, Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1976. BLOCK, A. ―The peasant and
the brigand: Social Banditry reconsidered‖. In: Comparative studies in Society an History. Cambrigde,
Cambrigde University Press, v. 14, n.4, September, 1972. SINGERLMANN, P. ―Political structure and Social
Banditry in Northeast Brazil‖. In: Journal of Latin American Studies. Cambrigde: Cambrigde University
Press, v. 7, part 1, May 1975, p. 59-83.

210
sua transformação desde o auge do capitalismo, local e mundial, e sua larga trajetória sob
estado e regimes sociais intermediários. Vale colocar que, segundo o autor, o banditismo
como fenômeno de massas pode aparecer não somente quando sociedades sem classe
opõem resistência à ascensão ou à imposição de sociedades de classes, senão quando as
tradicionais sociedades de classes rurais resistem aos avanços de outras sociedades de
classes, outros estados ou outros regimes rurais, urbanos ou estrangeiros. Para Hobsbawm,
este tipo de banditismo como expressão desta resistência coletiva tem sido muito comum na
história, sobretudo porque, nestas circunstâncias, desfruta de consideráveis apoios por parte
de todos os elementos de sua sociedade tradicional, inclusive de quem tem o poder.334
Como segundo momento da história do banditismo, o historiador relaciona este
fenômeno social à classe, à riqueza e ao poder nas sociedades campesinas. Para Hobsbawm,
parafraseando Antônio Gramsci, o banditismo aproxima-se até mesmo da luta de classes.
Na medida em que continua existindo no campo em uma era do capitalismo plenamente
desenvolvido e, mais que qualquer outra coisa, o ódio é dirigido contra o que emprestam
dinheiro e vinculam aos agricultores e ao mercado geral. A grande diferença, portanto,
entre o banditismo da primeira parte e a terceira é a fome. Hobsbawm afirma que durante
os séculos XIX e XX nas regiões da agricultura capitalista onde existia banditismo (cita
Estados Unidos, Argentina e Austrália) a gente do campo já não se encontrava sob a
ameaça de morrer de fome. Como exemplos, ele cita o banditismo nas regiões clássicas na
Idade Média e na Moderna, ao redor do Mediterrâneo, onde as pessoas viviam
constantemente à beira da fome e esta condição de sobrevivência determinava a estrutura
básica do banditismo. Outro exemplo dado pelo autor é justamente a época do cangaço
brasileiro que começaria com a mortífera seca de 1877-1878 e alcançaria seu apogeu em
1919. Hobsbawm parafraseando um provérbio chinês diz que ―é melhor infringir a lei que
morrer de fome‖.335 Assim, é comum encontrar o banditismo nas regiões mais pobres, bem
como ação de roubos nos meses do ano agrícola em que a comida escasseava e não havia
muito trabalho no campo.
Para Hobsbawm, o processo histórico das sociedades agrícolas, e que aqui podemos
fazer um paralelo com a comarca de Nazareth no XIX, o poder político sob o qual viviam

334
HOBSBAWM, Eric. Bandidos. Barcelona, Crítica, 2001, p. 20- 24.
335
HOBSBAWM, op. cit., 2001, p. 22.

211
as comunidades de ―campesinato‖ era local ou regional. Viviam sob senhores com ou sem a
lealdade de parentesco ou o respaldo ―sobrenatural‖, que podia mobilizar os homens a
construírem sistemas de força e patronato. A força dos senhores e dos estados era grande,
mas intermitente. Sua debilidade residia na carência dos meios materiais, inclusive das
forças de coação e da lei para exercer um controle constante sobre suas populações –
incluindo a parte desarmada das mesmas – ou algum controle real sobre as partes mais
inacessíveis de seus territórios.336 Assim, para ele, a concentração do poder no estado
moderno territorial foi o grande passo para a eliminação do banditismo rural endêmico ou
epidêmico.
Para Frederico de Mello, que estudou o banditismo no nordeste, a seca de 1877-
1879, segundo ele talvez a maior de todos os tempos, representa ―um momento bem
eloquente no demonstrar o jogo de substituição momentânea do banditismo endêmico pelo
epidêmico mais desabrido, a suscitar empenhos de governo igualmente especiais, em
consequência do alarido do povo, multiplicado pela imprensa‖. O autor ressalta que, nas
falas do imperador e dos parlamentares na Assembleia Geral do Brasil de 1879, estes
lamentavam a quebra em alguns lugares da segurança individual e da propriedade. Como
causas, os parlamentares traziam o estado de calamidade pública advinda da seca e a
consequente mudança da condição e hábitos da população. A solução para a segurança
individual e da propriedade estava, obviamente, na enérgica repressão do crime. Assim,
como coloca Mello, na superposição das causas extraordinárias oriundas da seca, e como
tal transitórias àquelas de caráter ordinário e crônico, contém-se toda a estrutura da
criminalidade rural tornada epidêmica:

A história nos mostra que esse beijo trágico une condições socioculturais
básicas a uma causalidade episódica deflagadora. À fixidez das primeiras,
opondo-se a mutalidade da segunda, que tanto pode ser uma seca como uma
agitação política ou qualquer outra convulsão socialmente traumática
responsável pelo afrouxamento das estruturas sociais e consequente inibição do
aparelho repressor.337

336
Idem, op. cit., p. 27.
337
MELLO, Frederico Pernambucano de. Guerreiros do sol: violência e banditismo no Nordeste do Brasil.
São Paulo, A Girafa editora, 2004, p. 99-100.

212
E de fato em 1878, ano que ocorreu o auge do movimento dos ―criminosos‖ em
Nazareth, foi também o momento em que a comarca ainda sofria com as secas de 1877,
como narrou o delegado local:

Com a cessação das chuvas que houverão nesta Comarca, cessou o trabalho
e por conseguinte o jornal que ganharão os retirantes, que avultado número para
aqui afluirão com suas famílias, por lhes constar que nesta Comarca havia
trabalho para todos e com effeito houve, porque a maior parte dos proprietários
empregão braços livres e alguns assim o fazem exclusivamente. Esses pobres
esqueletos nus e ambulantes estão em estado de morrer de fome; e não são elles
só; os homens jornaleiros que aqui morão também o estão e bem assim todas as
pessoas que se empregão em trabalhos agrícolas.338

Define Eric Hobsbawm que é preciso diferenciar o ―bandido comum‖ do ―bandido


social‖, em outras palavras, aquele que a opinião pública não considera como simples
criminoso. Para o autor, Banditismo Social é um fenômeno universal que se dá nas
sociedades baseadas na agricultura e que se compõem fundamentalmente de camponeses e
trabalhadores sem terra oprimidos e explorados por algum outro: senhores, cidades,
governos, legisladores. Para ele, o momento em que começa o Banditismo Social pode não
estar bem definido, mas está associado à desintegração da sociedade tribal ou à ruptura da
sociedade familiar. Para o autor, o que faz com que estes movimentos de camponeses
continuem a ser mais uma das formas de expressão de descontentamento, ou se
transformem em movimentos revolucionários, depende de fatores externos, como por
exemplo, catástrofes naturais ou fenômenos irreversíveis, como a emergência do
capitalismo.339
Norberto Ferraras, ao destacar a capacidade que o modelo de Hobsbawm tem para
definir quem estava apto a integrar-se aos grupos de bandidos, coloca que não era qualquer
um que podia tornar-se um bandido. O bandido não podia ter relações familiares que o
apressassem a poder ingressar nessa nova vida, e ao mesmo tempo a sua ligação familiar

338
Ofício para o Chefe de Polícia de Pernambuco, Sigysmundo Antônio Gonçalves, do delegado de polícia de
Nazareth, José Jerônimo de Albuquerque Moraes. Delegacia de polícia da Comarca de Nazareth, 2/04/1878.
SSP Nazareth 249 vol. 650. APEJE, Recife.
339
HOBSBAWN, op. cit., 2001, p. 32-35.

213
tinha que ser suficientemente forte para que, uma vez empreendida essa nova atividade,
servisse para proteger ou favorecer seu grupo familiar.340
Seguindo o modelo de Hobsbawm, parece que Nazareth compunha o cenário de um
banditismo de descontentamento. Por outro lado, Anton Blok, ao criticar o lado positivo
que Hobsbawm daria ao banditismo social, colocou que muitas vezes o banditismo foi anti-
social, dado que os camponeses foram muitas vezes vítimas dos bandidos, preocupados
primeiro em atender a seus vínculos com os poderosos locais do que com os camponeses. A
sugestão é que analisar o mundo rural como um todo, compreender as relações sociais
existentes, tornaria mais compreensível a opção pelo banditismo.341 Como ressaltou
Ferraras, o livro de Slatta coloca que o banditismo não seria um movimento pré-político, e
sim um grupo com objetivos complexos, podendo ou não estar prontos a transformar a
sociedade. Podiam estar lutando contra a opressão ou por benefícios pessoais. Os rasgos
próprios do Banditismo Social, como a distribuição dos roubos entre os camponeses,
seriam funcionais às necessidades dos bandidos, antes que um ato de reparação.342
Assim, para Joseph, nem todo roubo é um ato de resistência, e ainda a resistência
pode estar fora dos grupos de bandidos e em elementos do cotidiano, como pequenos furtos
ou apropriações de elementos das classes proprietárias. Estas formas de luta contra os
senhores locais mostram que os camponeses tiveram uma tendência ao compromisso maior
do que a prevista, e que a baixa intensidade dos conflitos de classe permite uma
convivência relativamente pacífica.343 Segundo Ferraras, apoiando-se em Saint Cassia, há
vários elementos que estão na base do banditismo: a estrutura social e a ecologia política da
região; a distribuição de propriedades; a acumulação de capital e as formas em que a
mesma se legitima; a presença ou ausência da sociedade civil; a existência de um sistema
eleitoral confiável unido ao uso da força para impor os resultados; e a insegurança
constante, maior que a miséria em que vivem os camponeses.344
No caso de Nazareth, trata-se de um período anterior ao grande surto do banditismo
social em Pernambuco; assim a ideia não é discorrer propriamente sobre este movimento,

340
FERRARAS, op. cit., 2003, p. 216.
341
BLOK, op cit, 1972. FERRARAS, op. cit., 2003, p. 217.
342
SLATTA, R. Bandidos. The varietes of Latin American Banditry. New York, Greenwood Press, 1987.
FERRARAS, op. cit., 2003, p. 220.
343
JOSEPH, G. On the trail of Latin American Bandits: a reexamination of Peasant Resistance. In Latin
American Research Review. New Mexico, v. XXVI, n. 1, 1991. FERRARAS, op. Cit., 2003, p. 220.
344
FERRARAS, op. cit., 2003, p. 221-22.

214
mas suas possíveis raízes e como estas se relacionavam com o resto da sociedade. Acredito
que podemos sugerir algumas interpretações. Primeiro, a questão de como a ação dos
criminosos foi abordada pelas autoridades policiais, os liberais, os conservadores da cidade
e o governo Provincial. Segundo, como os criminosos se inseriam no meio da produção
rural dos engenhos de açúcar. E terceiro o que eles mesmos diziam.
Como nos casos citados anteriormente, na visão das autoridades policiais local e
provincial, os ―bandidos‖ faziam parte do conflito político de desmoralização tendo como
líder o conservador Tenente Cabral de Mello. Até que provassem o contrário, o Tenente
Coronel protegia os criminosos que atacavam apenas os liberais. Nessa ótica, eram,
portanto, descontentes, desordeiros e ―perigosos‖ para a manutenção da ordem política
vigente. Neste sentido, podemos relacionar com a constatação de Hobsbawm que
destacamos acima, de que o banditismo como fenômeno de massas pode surgir não
somente quando sociedades sem classe opõem resistência à ascensão ou à imposição de
sociedades de classes, ―senão quando as tradicionais sociedades de classes rurais resistem
aos avanços de outras sociedades de classes‖. Parece-nos que este perfil cai bem para a
dinâmica política conflituosa de Nazareth nos fins da década de 70. Por trás da briga entre
conservadores e liberais estava toda uma concepção de sociedade e de estado, misturando
elementos culturais, morais, políticos, sociais e econômicos peculiarmente locais.
Por outro lado, Nazareth também enfrentava um cenário em crise, com ―flagelados
nus em busca de trabalho‖ e jornaleiros sem emprego aos montes. Dentro desta situação, os
―criminosos‖ tinham seu lugar garantido nos Engenhos Canavieira e Vertente morando e
participando da produção. Assim, do ponto de vista dos ―bandidos‖, estes eram criminosos,
porém, ao mesmo tempo, estavam dentro do sistema de trabalho. Como coloca Hobsbawm,
a essência dos bandidos sociais é que são ―camponeses‖ fora da lei, aos que o senhor e o
estado consideram criminosos, mas que permanecem dentro da sociedade campesina e são
considerados por sua gente como heróis, paladinos, vingadores, lutadores por justiça, às
vezes, incluídos como líderes da libertação e, de qualquer modo, como pessoas para se
admirar, ajudar e apoiar. E é justamente na diferença entre campesinato corrente e rebelde
que se instaura a noção de banditismo social. É também o que diferencia de outros tipos de
―deliquência rural‖. Nestes últimos casos, as vítimas e os atacantes são estranhos e inimigos
entre si. No caso do bandido social é impensável roubar os camponeses em seu próprio

215
território e, possivelmente, em outros lugares também. Hobsbawm ainda afirma que
banditismo equivale à liberdade, mas que na sociedade campesina são poucos os que
podem ser livres, pois a maior parte estão amarrados pela ―falsa corrente‖ dos senhores e
pelo trabalho, um reforçando o outro. Vale destacar que ao analisar os trabalhadores rurais
vítimas da autoridade e da coação, devemos salientar, como expõe Hobsbawm, que esse
caráter vulnerável não é tanto pelo econômico – de fato podemos constatar que alguns
camponeses são autossuficientes e outros não – mas sim pela sua imobilidade.345 Nesse
sentido, voltando-nos ao nosso caso, diante da constatação de que os ―bandidos‖ de
Nazareth eram trabalhadores nos engenhos, portanto, inseridos no sistema de trabalho da
agricultura, se considerarmos a afirmação do autor, podemos ampliar nossa visão sobre os
―bandidos‖ da comarca. Se eles se configuravam como bandidos inseridos no sistema de
poder e trabalho da região, eles não se encaixam nas considerações de Hobsbawm sobre a
liberdade. Todavia, se pegarmos a informação de que estes bandidos não assaltavam ou
roubavam qualquer pessoa, ou melhor, trabalhadores rurais como eles, e as autoridades não
o consideraram como criminosos comuns, por estas características, talvez podemos
considerá-los, segundo a classificação de Hobsbawm, como dentro do perfil dos ―bandidos
sociais‖. De qualquer forma, sem a pretensão de categorizar a ação dos bandidos ou eles
próprios, talvez aqui seja cabível apenas apostar que estas séries de ataques no final da
década de 70 na zona da mata pernambucana significaram indícios do nascimento do
banditismo social pernambucano, afinal, eles roubavam, mas não roubavam qualquer um e
nem qualquer coisa.
Analisando conjunturalmente a ação dos bandidos com a dinâmica sócio-política do
governo imperial neste período, é importante lembrar que em 1879, um ano depois da ação
dos bandidos em Nazareth, é promulgada a Lei de Locação de Serviços, justamente porque
o governo e as elites consideravam central elaborar um conjunto de instrumentos legais que
garantisse a permanência dos trabalhadores livres em seus postos nas fazendas. Ou seja, a
locação de serviços era pensada no marco do sistema escravista, pautando seus
instrumentos pelo objetivo geral da imobilização da população. Segundo Andrei Koerner,
as relações sociais escravistas e paternalistas seriam alteradas apenas na medida necessária
da introdução dos novos trabalhadores com estatuto de livres, porém, a lei não foi muito

345
HOBSBAWM, op. cit., 2001, p. 46.

216
utilizada, sendo adotadas soluções regionais diferenciadas para o problema de mão de obra
na região açucareira de Pernambuco. Aponta o autor que o trabalho escravo foi limitado a
algumas das etapas de produção combinado com a produção de cana por lavradores,
trabalhadores nacionais assalariados, que eram vinculados aos patrões pela posse da terra e
por laços de proteção e obediência, além das inovações tecnológicas que reduziam a
necessidade do uso de mão de obra.346 Estamos diante, portanto, de um processo de
nascimento do banditismo social, da sua repressão e também de regulamentação de novas
formas de trabalho, seja sob nova roupagem ou não. É impossível, assim, pensarmos temas
como crime/criminosos e trabalho/trabalhadores distante um do outro, bem como
impensável analisar tais circunstâncias, refletindo separadamente as ações das classes
sociais envolvidas.
De volta aos acontecimentos de Nazareth, em novembro de 1878 foi preso Antônio
José do Nascimento, conhecido como Joaquim Cardozo, um dos criminosos moradores do
Engenho Canavieira. Casado, 40 anos, natural de Limoeiro, filho de Manoel Correia, vivia
da agricultura e do ofício de carreiro. Mudou-se do Engenho Veludo para o Canavieira
porque havia cometido um crime, e ―por saber que os criminosos que para ali iam, ficavam
garantidos pelo Tenente Coronel José Cabral, que lhe mudavam os nomes, como fez com
ele respondente, que de então passou a chamar Joaquim Cardozo‖.347 No engenho do
Tenente Cabral, entre os moradores ditos ―criminosos‖ estavam: João Carreiro, mulato,
mais de 40 anos; Benedito, irmão deste, mulato, mais velho; Cosme, preto; Francisco,
semi-branco, mais de 40 anos; Francisco Grande, mulato; Francisco Sobral, mulato, 40
anos para baixo; Manoel Felix; Ismael de Britto, branco, velho; Manoel Herculano, preto,
35 anos; ―e muitos outros que se empregaram em trabalhar alugado, como ele respondente,
ao Tenente Coronel José Cabral (os mais pobres) e os outros de mais recursos trabalhavam
para si‖.348
De quem estamos falando afinal? Esses eram os ―bandidos‖ de Nazareth, mulatos
em sua maioria, e, ainda sim, não eram todos iguais. Também se dividiam em ―classes‖,

346
KOERNER, Andrei. Habeas-Corpus: prática judicial e controle social no Brasil (1841-1920). São Paulo,
IBCRIM, 1999, p. 125 e 126.
347
Auto de Perguntas feito ao preso Antonio José do Nascimento, vulgo Joaquim Cardozo. Delegacia de
Polícia de Nazareth, 9/11/1878. SSP Nazareth 249, vol 650. APEJE/Recife.
348
Auto de Perguntas feito ao preso Antonio José do Nascimento, vulgo Joaquim Cardozo. Delegacia de
Polícia de Nazareth, 9/11/1878. SSP Nazareth 249, vol 650. APEJE/Recife.

217
uns mais pobres outros menos. Sobre a política, Joaquim Cardozo, ou melhor, Antônio
Nascimento, nem sabia de quem eram as casas que roubavam, muito menos de que partido
faziam parte. O mesmo vale para a contradição de que, segundo ele, não sabia dizer se o
Tenente Coronel era consciente dos roubos que faziam. Mas, por que então ele mudara seu
nome? Enfim, apesar das contradições, o importante é destacar que estes moradores eram
trabalhadores rurais que, de alguma forma, incomodavam a ordem vigente e parte da classe
proprietária através dos roubos e alianças com outras classes de proprietários, digo, não
liberais. Obviamente, a violência estava intrínseca a todo esse processo. Como coloca
Ferraras, conhecendo a sociedade e a sua cultura, pode-se descobrir se a violência é
necessária ou não, se a extrema crueldade de certos bandidos está relacionada com a sua
escassa inserção no meio em que atuam, ou se é intrínseca às formas locais da apropriação
das riquezas?349 Portanto, a violência também é cultural e historicamente constituída, bem
como a representação daqueles que cometem atos de violência.
Se nos voltarmos para o mundo literal produzido sobre a região da cana, estou me
referindo especificamente sobre a literatura de José Lins do Rego, conseguimos reconhecer
em alguns personagens pessoas reais da história acima retratada. A literatura vem aqui nos
servir como um bom aporte sobre o real e a representação deste, ainda que em épocas
distintas.
Na literatura de José Lins do Rego, na obra Fogo Morto no capítulo que trata do
personagem Mestre José Amaro, ―homem de perna torta, que nunca recebia ordem de
ninguém e nenhum senhor de engenho botara canga‖, narra o autor que Amaro era morador
no engenho fazia mais de 30 anos, pois viera com seu pai o qual ―chegara corrido‖ de
Goiana. Contou Zé Amaro para seu parceiro Laurentino que foi ―coisa de um crime que ele
(o pai) nunca me contou. O velho não contava nada. Foi coisa de morte, esteve no júri. Era
mestre de verdade. Só queria que o senhor visse como aquele homem trabalhava na sola.
Uma peça dele foi doada pelo Barão de Goiana ao Imperador‖.350 Em outras palavras,
Amaro era filho de um foragido, de um trabalhador que foi homiziado no Engenho.
Certo dia, Zé Amaro fazendo rédea para um desconhecido, ao contrário de seu pai
que fizera sela para o Imperador, parou na sua porta um negro a cavalo que levava recado

349
FERRARAS, op. cit., 2003, p. 225.
350
REGO, José Lins do. Fogo Morto. 22ª edição. Rio de Janeiro, José Olympio Editora, 1982, p. 7-8.

218
para o delegado do Pilar que o tal de Seu Augusto do Oiteiro mandara. Era caso de duas
mortes. Contou o negro:

- O negócio é que havia uma dança na casa de Chico de Naninha, e apareceu um


sujeito da Lapa, lá das bandas de Goiana, e fechou o tempo. Mataram o homem
e um companheiro dele. Vou dar notícia ao Major Ambrósio do assucedido.‖351
Foi o bastante para Amaro continuar o diálogo com o negro:
―- Este Ambrósio é um banana. Queria ser delegado nesta terra, um dia só.
Mostrava como se metia gente na cadeia. Senhor de engenho, na minha unha,
não falava de cima pra baixo.
- Seu Augusto não é homem pra isto, mestre Zé.
- Homem, não estou falando de seu Augusto. Estou falando é da laia toda. Não
está vendo que, comigo delegado, a coisa não corria assim? Aonde já se viu
autoridade ser como criado, recebendo ordem dos ricos? Estou aqui no meu
canto, mas estou vendo tudo. Nesta terra só não tem razão quem é pobre.
- É verdade, mestre Zé, mas o senhor deve dar razão a quem tem. Seu Augusto
não vive se metendo nos negócios da vila. Ele não deixa é que cabra dele sofra
desfeita. Homem assim vale a pena. O Doutor Quinca do Engenho era assim. E
assim é que deve ser.
- Não estou caducando. O que eu digo, para quem quiser ouvir, é que em mim
ninguém manda. Não falo mal de ninguém, não me meto com a vida de
ninguém. Sou da minha casa, da minha família, trabalho para quem quiser, não
sou cabra de bagaceira de ninguém.
- Não precisa ofender, mestre Zé.
- Não estou ofendendo. Eu digo aqui todos os dias para quem quiser ouvir:
mestre José Amaro não é pau-mandado. Agora mesmo me passou por aqui um
carreiro do Coronel José Paulino. Pergunte a ele o que foi que lhe disse. Não
aceito encomenda daquele velho gritador. Não sou cabra de bagaceira, faço o
que quero. O velho meu pai tinha o mesmo calibre. Não precisava andar
cheirando o rabo de ninguém. 352

José Lins do Rego, criador do ―ciclo da cana de açúcar‖, remonta em seus romances
muito de suas raízes no Engenho Corredor, município de Pilar, estado da Paraíba. Em Fogo
Morto, escrito em 1943, Lins do Rego volta a tratar de temas sobre o regionalismo
nordestino, suas pessoas, suas relações de trabalho, seu cotidiano. Os detalhes do diálogo
acima transcrito, mais do que ilustram as relações entre delegados, senhores, trabalhadores,
criminosos, negros no universo dos engenhos de cana de açúcar na Mata Norte
pernambucana. A figura de Amaro, filho de criminoso corrido, mas também trabalhador,
parece ser o motivo para que trabalhar por conta, sem ser na bagaceira, fosse sinal de não

351
Idem, op. cit., p. 11.
352
Idem, op. cit.

219
submissão, seja dos ricos ou de autoridades mandadas dos ricos. Modo de ser e de se
relacionar com o trabalho que no caso de Amaro fora aprendido de seu pai, um fugitivo da
polícia e trabalhador insubordinado. A figura do negro já levanta outra questão: senhor que
vale a pena é aquele que protege seus ―cabras‖. Não se tratava nem de subordinação ou
insubordinação, mas de proteção, segurança e troca. As reflexões desses personagens de
Lins do Rego remetem-nos aos casos na comarca de Nazareth que anteriormente
analisamos. Como uma ficção, o diálogo do negro com Amaro, possivelmente, tem suas
influências numa realidade própria daquele universo rural. Uma realidade, que como
mostramos anteriormente, em Nazareth, fazia parte de uma rede de conflitos na qual não
necessariamente senhores e delegados estavam de um lado, e escravos, trabalhadores e
―criminosos‖, de outro.
No mais, para analisar esses sujeitos sociais, digo escravos, ―criminosos‖, libertos,
pobres, refugiados na comarca de Nazareth no final dos 70 e início dos 80, é preciso refletir
suas ações em sua totalidade, investigar eles dentro da esfera do trabalho, e a partir daí
refletir as possíveis relações com a categoria ―classe‖ de trabalhadores rurais da cana, ou
em possíveis ―identidades‖ classistas. É necessário constatar como se davam as relações
entre: trabalhadores e trabalho, e entre quais trabalhadores e quais trabalhos, além de, para
quem trabalhavam. Pensar todas essas variantes, e aí analisar comportamentos cotidianos
que levariam atitudes de luta ou não dentro de cada dinâmica.
Atrelado a isso, na segunda metade do século XIX, as autoridades policiais,
jurídicas e senhoriais estavam se definindo, ou melhor, pedindo novas definições. Nessa
dinâmica, um dos aspectos que também estava em transformação era a escravidão. Nesse
processo social, as relações entre trabalhadores, senhores, delegados, juízes, justiça, lei,
escravos, libertos vão se (re)construindo e caracterizando as últimas décadas do XIX na
zona canavieira pernambucana, circunstâncias históricas específicas que nos fazem
compreender melhor o que escravos, libertos, Amaros, negros, pobres, caboclos, mulheres e
homens buscavam para resistir, lutar ou sobreviver cotidianamente.
Como última análise, é importante compreender que por trás das malhas de conflitos
existentes entre liberais e conservadores, na década de 70 e 80 do XIX o tema da mão de
obra estava no centro das discussões do Congresso Agrícola de 1878, nas reuniões
parlamentares, nos discursos dos deputados. A discussão sobre o trabalho perpassava, na

220
verdade, a questão da manutenção da produção agrícola e, portanto, da riqueza dos
proprietários. Como salienta Martha Huggins, em seus estudos sobre o crime e o controle
social nas áreas de plantation do Nordeste, no discurso criminologista as pessoas são
definidas como depravadas ou criminosas quando põem em risco as relações sociais de
produção no sistema social particular, em outras palavras, quando a pessoa torna-se um
impedimento para o acúmulo de riquezas. Assim, em Pernambuco neste período, iniciando-
se o processo de redução da mão de obra escrava, os proprietários começaram a intensificar
a utilização da mão de obra livre e ao mesmo tempo aperfeiçoar o sistema de punição e
controle. Como destaca a autora, a maioria dos plantadores nos anos 80 ainda preferia
escravos (e constatamos isso em Nazareth através dos números) ainda que existisse um
crescimento na necessidade do trabalho livre e assalariado. No Diário de Pernambuco em
1882, por exemplo, poderiam ser encontrados artigos dizendo que os escravos eram a
primeira escolha porque o trabalho livre é ―sem disciplina‖ trazendo somente trabalhadores
com todos os vícios e defeitos de uma população perigosa dedicada ao roubo, que trabalha
apenas para obter necessidades básicas.353
Assim, com a queda dos preços do açúcar os custos tinham que reduzir e a produção
aumentar para reparar o lucro de costume. Todavia, sem a importação de mão de obra
escrava, precisariam mais do que nunca do trabalhador livre que, obviamente, não queria
entrar no sistema de trabalho nos moldes escravistas. Diante desta situação, os barões de
açúcar não gostaram muito disso e começaram a apontar a culpa em cima dos próprios pelo
problema do trabalho. Os oficiais públicos e a polícia responderam criminalizando os
trabalhadores na marginalidade. Como constata Huggins, entre 1860 e 1870 existiu um
aumento de 50% no número de pessoas livres enviadas para a Casa de Detenção por
violação da ordem pública. Em 1880, o aumento se deu em 80%. Curiosamente, em outras
proporções, a autora constatou que o número de escravos presos por ordem pública ficou
constante entre 1860 e 1870 e somente cresceu 30% no período crítico entre 1870 e
1880.354
Certamente, como parte desta rede de conflitos entre e intra-classes, uma lógica
criminal ligada estreitamente com o mundo trabalho estava se formando nos fins da década

353
HUGGINS, Martha K. Crime and social control in the third world. New Jersey, Rutgens University Press,
1985, p. 55-67.
354
HUGGINS, op. cit., 1985, p. 98.

221
de 70. Na comarca de Nazareth, era clara a tendência por uma abolição com indenização e
de forma branda. Nada mais coerente, portanto, que as autoridades e os proprietários locais
exaltassem a necessidade da punição e do controle em cima de ―bandidos‖ trabalhadores
livres da agricultura. Além de buscarem uma afirmação política, também almejavam uma
construção ideológica do trabalhador disciplinado. Certamente, os escravos estavam bem
cotados nesta sociedade pernambucana. Acredito nisso não porque eram mais omissos e
menos rebeldes, mas porque sabiam e precisavam jogar melhor na realidade escravista.
Como complemento dessa realidade, os homens ―na‖ Justiça têm muito a nos dizer.

2.5) Acessos à Justiça nos anos 70 do XIX: a Lei para aqueles que “governam no
mato”

Com intuito de aprofundar um pouco mais o estudo sobre a dinâmica sócio-política


nazarena nos anos 70 do XIX, é necessária uma análise da Justiça como instrumento da lei
e dos homens. Na verdade, o objetivo é alcançar as ações dos homens na Justiça, isto é,
tanto seus representantes como a ―arraia-miúda‖, parafraseando Thompson. Aliás, não por
menos citando este autor, a ideia aqui é justamente analisar a Justiça como um possível
campo de conflitos. Thompson ao pesquisar os modos de dominação e revoluções na
Inglaterra no século XVIII inglês, identificou que as características particulares da
dominação da gentry e de sua relação com a plebe impedem a concepção dos aparelhos
jurídicos e do Estado como simples instrumentos, flexíveis em todos os sentidos, das
vontades da burguesia. Segundo o autor, o modo particular de dominação da burguesia
implicava um Estado frágil e, por consequência, um grande poder da plebe, da arraia-
miúda.

Dizer que o direito pode ser compreendido como autoridade do Estado


repressivo pouco ajuda a compreender o contexto particular observado na
Inglaterra do século XVIII. O direito era também uma retórica: definia a imagem
que certos elementos da classe dominante faziam de si mesmos, uma imagem
profundamente interiorizada.355

355
THOMPSON, E. P. In: NEGRO, A. & SILVA, S. (org.). Peculiaridades dos ingleses e outros artigos.
Campinas, Ed. Unicamp, 2001, p. 209.

222
Para o autor sem dúvida, o exercício da lei era iníquo e obedecia aos interesses de
classe, e no livro Senhores e Caçadores, o historiador demonstrou que na verdade o direito
é uma mediação específica e um terreno de oposição a serviço da dominação da classe
dominante. Segundo Thompson, depois de 1750, para manter seu poder sobre os pobres, os
juízes devem demonstrar que não são papistas nem puritanos. Eles devem, ao menos em
aparência, oferecerem-se como mediadores. A dominação da gentry repousa em parte na
encenação da hegemonia cultural. Há um estilo retórico afirmado no ritual da Justiça. As
instituições jurídicas e a lei exercem um papel essencial. A classe dominante encontrava
uma legitimação, exercendo um poder ―constitucional‖ e dominando por intermédio de um
processo verdadeiramente legal; as classes dominadas afirmavam a imagem de si mesmas
como ingleses nascidos livres, com direito igual perante a lei. Assim, para Thompson, a
dialética repressão-protesto-concessão move-se no interior dessa retórica e dessas formas.
―A lei não é um simples instrumento de dominação, mas também uma ideologia, a qual
legitima a dominação da gentry”.356
Retomo estas discussões de Thompson sobre a Inglaterra porque gostaria de
contemplar a ação dos homens na e da Justiça, bem como a instrumentalização da lei à luz
dessas reflexões. Afinal, é o direito um campo de conflitos e mediações de classes? Até que
ponto, podemos observar esse tipo de mediação e/ou dominação nos anos 70 do XIX no
Brasil e em Nazareth?
Vale destacar que no período que estamos estudando, ocorreram algumas
modificações no Código de Processo Criminal. De 1841 a 1871, vigorou apenas o Código
de Processo Criminal revisado pelo decreto que pretendia neutralizar os poderes locais,
com a finalidade de recrudescer o poder do Estado. Salienta Celeste Zenha que, em 1841,
ocorreu a vitória do Partido Conservador que conseguiu, através da lei de 3 de dezembro,
impor uma orientação que visava limitar os ‗famigerados‘ poderes locais, numa tentativa de
estender o poder do Estado para além das fronteiras dos grandes centros. Segundo a autora,
os limites impostos aos Juízes de Paz e a nova contribuição da polícia na formação da culpa
comprometiam, segundo os componentes do Partido Liberal, a autonomia
357
constitucionalmente legítima do Poder Judiciário. Como aponta José Murilo de

356
THOMPSON, op. cit., 2001, p. 223 -225.
357
ZENHA, Celeste. ―As práticas da Justiça no cotidiano da pobreza‖. In: Revista Brasileira de História. São
Paulo, v. 5 no 10, março/agosto, 1985, p. 125.

223
Carvalho, neste momento, o Império antagoniza-se com os poderes locais, a nós
pesquisadores, portanto, fica mais fácil verificar com que intensidade as decisões tomadas
na Corte afetavam a prática da Justiça na comunidade e quais as demais forças que
contribuíram para a produção social do crime nos municípios. Em contrapartida, o decreto
de 1871, última reforma do Judiciário, cujo principal objetivo foi separar as funções
policiais e judiciárias, misturadas em 1841, nas atribuições dos delegados e subdelegados
de polícia, nos dá a oportunidade de verificar se, de fato, uma mudança na legislação veio
alterar as práticas da Justiça, a nível local.358
No estudo de Celeste Zenha sobre as práticas da Justiça no cotidiano da pobreza em
uma sociedade rural carioca, N. Sra. da Lapa de Capivary, no século XIX, a autora
verificou que apesar de constatar que a Justiça não se trata de um poder isento ou neutro, as
práticas da Justiça são acionadas pela população em conformidade com as demais atitudes e
exercícios de poder por ela praticados. Segundo a autora, não devemos atribuir às
autoridades policiais (ou judiciais) a gerência completa do Poder Judiciário afinal existiam
brechas nas quais os demais setores da população podiam se expressar, e mais do que isso,
imprimir sua força nos resultados finais do processo penal. Para Zenha, é preciso atentar
para a maneira como os lugares indicados para a população vêm sendo preenchidos,
percebendo quais os recursos utilizados por determinados grupos sociais - com a finalidade
de imprimir a sua força e direcionar este poder - no sentido de alcançar os seus objetivos.359
Desse modo, a ideia aqui é ir contra a interpretação da Lei de forma estruturalista,
isto é, de um lado, estaria ela concebida como um elemento da ―superestrutura‖ e, do outro,
na ―infra-estrutura‖, se encontrariam as realidades das forças produtivas e relações de
produção. Nossa inspiração analítica pauta-se nas proposições de Thompson de pensar
como a lei estava profundamente imbricada na própria base das relações de produção, e
como era endossada por normas tenazmente transmitidas pela comunidade.360 Nesse
sentido, a ideia desse tópico é também trazer para os conflitos na Justiça algumas ações dos
escravos, mais precisamente, as ações de liberdade. No capítulo seguinte analisaremos
propriamente as alforrias, porém, seria incoerente com nossa lógica analítica se não

358
CARVALHO, José M. de. A construção da ordem. A Elite Política Imperial. Rio de Janeiro, Ed. Campus,
1980, p. 120.
359
ZENHA, 1985, p. 141 e 142.
360
THOMPSON, E. P. Senhores e Caçadores. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1997, p. 348 – 351.

224
abordássemos nas considerações sobre a Justiça as ações dos cativos no campo da lei, uma
vez que eles eram tão presentes e importantes nas forças produtivas e relações de produção
da comarca de Nazareth no final dos anos 70 do século XIX.
Na dinâmica social dos anos 70, alguns poderes tentavam se definir em uma
hierarquia social em transformação, uma transformação que atingia também o trabalhador
que mantinha outras relações com seus senhores, relações que naquele momento também
estavam se (re)definindo, salve a ação cada vez mais presente da Justiça. Assim, na
formação das novas regras do jogo, como era a participação do poder judiciário e seus
juízes?
Ainda sobre o caso do Engenho Vertente (que estávamos analisando no tópico
anterior), em 1870, a possível ação da Justiça foi impedida pela própria ―ação
protecionista‖ do Promotor Público. Como de praxe, o Juiz Municipal João Baptista e
Mello oficiou para o Presidente da Província acusando:

O promotor Público Dr. Manoel Barata de Oliveira Mello que reside


distante da cidade com grave prejuízo para os interesses da Justiça, muitas veses
accusado na imprensa de applaudir os criminosos que tem asylo no engenho
Vertentes, onde se reproduzem os crimes e que é propriedade do tenente Coronel
José Cabral de Oliveira Mello seu primo e amigo me vota ódio por attribuir-me a
autoria das publicações e tudo empentando para vingar-se achou na pessoa do
Alferes José Pinto de Souza Neves (vulgo Frade) que reside na comarca do
Piancó e que é 4º supplente de subdelegado do districto desta cidade um auxiliar
com força para bem satisfasê-lo.
Hontem fez o Dr. Promotor Público o seu primeiro e ensaio promovendo
um conflicto que bondamente evitei. E o conflicto foi deixado ser continuada a
inquisição de testemunhas era um sumário de culpa perante o subdelegado que
ordenou o comparecimento das testemunhas e partes em casa de sua residência
como se vê mandado assumir o exercício esse 4º supplente Frade a poucos dias
chegado do sertão, sem morada nesta cidade, arranchão em casa de um irmão o
tenente Manoel José Pinto de Souza Neves, e guiado pelo Dr, Promotor Público,
dirigio-se para a casa da Comarca Municipal e occupou a única sala
decentemente preparada para as audiências dos juizes de Direito e Municipal,
anunciando-se na cidade que não haveria audiência, porque o Dr. Promotor
Público havia mandado tomar a sala pelo subdelegado 4 suplente em
exercício.361

O Juiz Municipal, João Batista, chegou na hora marcada na sala das audiências
acompanhado pelo escrivão, oficiais e Porteiro do Juízo e fez o subdelegado perceber que a

361
Ofício para o Presidente da Província, Frederico de Almeida e Albuquerque; do Juiz Municipal, João
Baptista e Mello, 12 de março de 1870. Juízes Municipais 38. APEJE/Recife.

225
sua audiência era pública em hora e dia certo e que incertos trabalhos não permitiam
transferi-la, visto que, sendo do costume dos subdelegados realizarem a inquisição em casa
de sua residência, não poderia convir em ceder o lugar, pelo que o Juiz Batista mandou
colocar um assento ao lado do subdelegado e ordenou a abertura da audiência, o que foi
anunciado pelo toque da campanhia. O subdelegado suspendeu a inquisição, mas continuou
a ocupar a cadeira, até o fim da audiência do Juiz Municipal que protestou por ter impedido
os trabalhos e anunciou uma interrupção temporária.
O decorrer desagradável e inconveniente da audiência do Juiz Municipal levou à
acusação contra o Dr. Manoel Barata de Oliveira, Promotor Público, que, segundo o Juiz
Municipal, estava longe de conhecer a importante missão do órgão da Justiça, uma vez que
em jogo, para fazer o prestígio dos parentes protetores, no caso do subdelegado, insultou-
lhe obrigando a repreendê-lo:

Não uzei de toda minha attribuição para impor silêncio e conter o Dr.
Promotor Público que apaixonado exprimia-se em linguagem imprópria de um
empregado da justiça em occasião que a Lei reveste o Juiz de tanto respeito.
O Dr Promotor Público arrogante pela influencia de sua família nesta
comarca quer tudo fazer e dizer publicamente que váe mandar o subdelegado
correr-me para dizarmar-me; elle que não seria condenado por mim se fosse
accusado no meu juízo, bem pode ( ...) para que me seja feito o insulto, que hei
de reppellir com a vantagem que me garantir os recursos de que disponho nesta
comarca.
Entretanto conheço perfeitamente que esse procedimento trará as
consequências para a procurada prova da minha incompatiblidade com os
homens que servirão a situação decahidas e que hoje seguindo o mesmo
caminho com a mesma obrigação, procurão porta diversa.362

As acusações feitas contra o Promotor Público pelo Juiz Municipal, João Batista,
foram endereçadas ao Presidente da Província, uma vez que entre o Juiz Batista e o Juiz de
Direito, Dr. João Paulo Monteiro de Andrade, também existia uma separação. Segundo
Batista, ao pedir a soltura de um paciente pelo habeas-corpus, o Juiz de Direito não quis
conceder o recurso para não desmoralizar a autoridade policial. Desde então, o Juiz
Municipal considerou que devia existir uma distância entre eles ―que pensam de maneira
tão diversa acerca da primeira garantia para a liberdade individual‖. Para o Juiz Municipal,
o Juiz de Direito, de proverbial bondade, ―gosta de harmonizar com os que governam no
mato‖, e, por isso, estaria apto para em menos de três anos merecer a honra de eleitor e

362
Idem.

226
votar na chapa inteira dos dois partidos que se bateriam no país. Disse, no entanto, que não
queria afirmar que estava ouvindo:

(...) o Dr. Juiz de Direito, hoje da confiança dos conservadores applaudir o


procedimento do Dr. Promotor Público, prometendo-lhe boa informação contra
o Juiz Municipal.
Só me foi possível provar quanto mal vem aos interesses sociais dessa
harmonia que a authoridade superior quer manter com as authoridades inferiores
que muitas vez devem ser corrigidas, offereceria a consideração de VExca antes
que mostrão como a comarca de Nazareth está um tanto distante das condições
que a Lei prescreve necessárias pela garantia do Direito.363

O Juiz Municipal, imbuído de uma atitude legalista, expôs ao Presidente da


Província uma conjuntura social ―do mato‖, que influenciava diretamente os andares do
Direito. Através de suas palavras conseguimos perceber de fato como a máquina sócio-
jurídica funcionava em Nazareth nos 70 do século XIX.
Numa hipotética imagem da dinâmica social da Comarca, o centro, de onde, de fato,
o ―poder‖ residiria, se reveza entre a Justiça, a Polícia e o Senhor de Engenho. A definição
dessa dinâmica se pautaria, por sua vez, nas relações pessoais estabelecidas em
determinadas circunstâncias históricas. Esse relato do Juiz Municipal, por exemplo, data de
1870; em 1875, verificamos o caso do vigário que se apoiou na Justiça para condenar o
delegado-senhor, e em 1878, o senhor Cabral de Mello foi investigado pela polícia e foi réu
de um inquérito policial que trouxe afirmativas com relação à sua proteção aos criminosos.
Não obstante, em maio de 1878, o delegado de polícia de Nazareth enviou um oficio
para João Alves Maciel, então Juiz de Direito, colocando que

É facto notório, não só nesta Comarca, como nesta Província que uma
quadrilha de ladrões homisiado no Engenho Cannavieira desta Comarca do qual
é rendeiro e consenhor o Tenente Coronel José Cabral de Oliveira Mello (...). É
de lamentar que dito Tenente Coronel, não tivesse entregado a ação pública da
justiça pública os selébres chefes quadrilheiros Manuel Félix e Raymundo
feridos em dita correrias e com seu acto confundiu como fornecedor d‘armas
para roubos ou convivência com salteadores.
Essa provocação aos pacíficos habitantes d‘esta comarca e affronte a lei que
vos garante deu lugar a que o Exmo Presidente mandasse uma força sob o

363
Ofício para o Presidente da Província, Frederico de Almeida e Albuquerque; do Juiz Municipal, João
Baptista e Mello, 12 de março de 1870. Juízes Municipais 38. APEJE/Recife.

227
Commnado do Cap. Mello o dito Engenho Canavieira o qual não prendeu um só
bandido porque elles avisados ou precentindo se refugiarão nas mattas (...).
Congratulo-me com VSa com os distintos e honrados conservadores e com
a laburiosa e pacífica população d‘esta e outras Comarcas não só pela prisão dos
quadrilheiros que se achão na Cadeia desta Cidade como também pela dispersão
dos outros do Engenho Canavieira onde se homisiarão com o que já se vai
obtendo profícuo resultado como sucedeu com a prisão de um delles feita (...)
sendo porém de lastimar que se tivesse evadido o chefe da quadrilha Manoel
Félix e seus chefes companheiros e outros da mesma e já fallada quadrilha
homisiado no Engenho Canavieira.
Finalisando o presente e muito mal alinhavada informação rogo a VSa
proveito em julgar e fazer justiça peze e decida por seu conhecimento se os
detentos assima fallados estão em caso de merecer uma das melhores garantias
do cidadão – o Hábeas Corpus – ou se a elles devem ser applicados a disposição
do art. 13 S 2º da lei no 2033 e 29 do Decreto no 4824 pra cujas disposições
representa a VSa a conviniência de continuarem presos Manoel Serafim
Rodrigues dos Santos, José Tertuliano Souza Carneiro, José da Roxa Bezerra,
Trajano José Luis e Manoel João do Carmo.364

Neste discurso, o delegado de polícia investe em nome da Lei a favor, portanto, da


Justiça, e assim, com as medidas do destinatário Juiz de Direito, com detalhe para a honra
aos ―distintos e honrados conservadores‖. De qualquer modo, se posicionou contra o tal
Tenente Coronel Cabral, e sugeriu eliminar a garantia do habeas-corpus aos criminosos que
estava se dando por conveniência política.
Um mês depois, o mesmo delegado encaminhou um ofício para o Chefe de Polícia
informando que todos sabiam publicamente que, na propriedade do Tenente Coronel José
Cabral de Oliveira Mello, estavam homiziados os assassinos, desertores e ladrões, os quais
―garantidos em tão pacífico asilo‖ prestavam da proteção que recebiam ao trabalho de
agricultura. Segundo o delegado, durante dez anos essa estrutura se manteve. Apenas
quando entrou o ano de 1878, e a ―situação política dominante‖ (no caso, os liberais
tomaram o governo provincial), ―compreenderam os asilados do engenho Canavieira,
advertidos sem dúvida por aquele que os protegeu que‖

(...) semelhante affronta de leis do pais a moralidade pública não podia


continuar por mesmo tempo e resolverão constituir-se em quadrilha que do dito
engenho sahia em correrias por esta comarca e pela de Itambé a praticar quantas
depredações podia, resultando depois com os despojos colhidos pelo mesmo

364
Ofício para João Hyraceno Alves Maciel, Juiz de Direito da comarca de Nazareth, do delegado de Polícia
José Joaquim Pacheco de Albuquerque. Delegacia de Polícia da Comarca de Nazareth, 6 de maio de 1878.
SSS Nazareth 249 vol 650.

228
engenho do que tudo tinha perfeita sciencia e consciencia o seo proprietário que
fez a representação ao Excmo Presidente da Província.
O que não soffre duvida é que o Tenente Coronel José Cabral, inimigo
rancoroso e que se deixa arrastar cegamente pelas suggestões de ódio, é muito
capas de ter conseguido por semelhante meio essas declarações por algum dia
procurar prejudicar com ellas a reputação do Capitão João Barbosa, como está
fasendo agora que se sente ferido em seos interesses por não poder mais usufruir
pacificamente no seo engenho como estaria habituado há longos annos os
serviços de quantos assassinos, desertores e ladrões podia arreliar em troca da
guarda e proteção que não duvidaria dar a elles.
Não há exageração na pintura que faço de caráter do Tenente Coronel José
Cabral e se a esse respeito VSa quisesse ouvir opinião de conservadores
incapazes de sacrificar a verdade a interesses de partido, veria o mesmo perfeito
accôrdo entre o que acabo de diser e a opinião desses conservadores.365

É interessante perceber que o delegado incute a formação da quadrilha como uma


atitude consciente dos ―criminosos‖ que, cientes das mudanças na macro-política,
decidiriam mudar suas estratégias de ataque à sociedade, desestabilizando o Tenente
Coronel. Isto é, deixando-o sem trabalhadores, e assim, prejudicando-o economicamente
também. Era o conflito ―intra-classes‖, ligado diretamente ao processo político e às
transformações na estrutura do governo, digo, Polícia e Justiça. Os anos 70 do século XIX
trouxeram inovações legislativas e atrelados a essas estavam os embates entre
conservadores e liberais, que desestabilizavam a força senhorial e, assim, seu poder social
local. Analisando na perspectiva desta dinâmica, a Lei, na prática, favorecia o lado que,
circunstancialmente, estivesse no poder.
Visualizando os laços e conflitos sociais na comarca de Nazareth, conseguimos
também entender um pouco mais sobre o processo de inserção da Lei, por exemplo, do
Ventre Livre, na mediação das relações sociais nazarenas, e como esse caminho foi se
dando à custa das ações e relações humanas. Sobretudo, devido à vontade política humana.
Analisando os embates em torno da Lei, da escravidão e da liberdade neste período, Sidney
Chalhoub afirma que o eixo principal do debate a respeito do encaminhamento político que
se devia dar a ―questão servil‖ na segunda metade do XIX, se dava no conflito entre os
princípios da primazia da liberdade e da defesa do direito de propriedade privada. Segundo
o autor, discutir a liberdade de escravos significava interferir no pacto liberal de defesa da

365
Ofício para Sigismundo Antônio Gonçalves, chefe de polícia da província, de José Jerônimo Pacheco de
Albuquerque , delegado e polícia. Delegacia de Policia do Termo de Nazareth, junho de 1878. SSS Nazareth
249 vol 650.

229
propriedade privada e, além disso, era a própria organização das relações de trabalho que
pareciam estar em jogo. Na verdade, como salienta Chalhoub, o assunto cintilava o perigo
de desavenças ou rachas mais sérios no interior da própria classe dos proprietários e
governantes. Para ele, ―as classes proprietárias ficaram de certa maneira a reboque dos
acontecimentos, apesar de insistirem na sua auto-imagem de sujeitos históricos onipotentes
e arrogantes‖.366
Um dos aspectos que o historiador ressalta ao analisar as ações de liberdade dos
escravos na Corte é a ideia de que a liberdade do escravo só poder ter origem na vontade do
senhor particular. Para Chalhoub, é essa a ideia que fundamenta a maioria das ações de
liberdade que ele pesquisou para o período anterior à chamada Lei do Ventre Livre, pois na
sua visão os escravos defendem seu direito à alforria como exigência de cumprimento de
determinações expressas do senhor.367 Afinal, como afirma Chalhoub ao analisar os
discursos dos proprietários, assim como não ―adquiriu‖ a escravidão, o escravo não
―adquire‖ a liberdade: ele sempre conserva a liberdade ―pela natureza‖, de forma ―latente‖,
e o cativeiro significa apenas que ele foi vítima de um fato, de arbítrio da lei positiva.368
Porém, como se dava esse processo no pós-lei de 1871? Seguindo o mesmo o autor, é
verdade que, não só em relação ao pecúlio e à indenização forçada, como também no que
diz respeito à ideia mestra do projeto, isto é, a liberdade do ventre, o texto final da lei de 28
de setembro foi reconhecimento legal de uma série de direitos que os escravos haviam
adquirido pelo costume e a aceitação de alguns objetivos de lutas dos negros. Por outro
lado, a lei também pode ser interpretada como exemplo do ―instinto de sobrevivência da
classe senhorial‖, ou por fazer parte de um momento de afirmação ou de consolidação de
um projeto de transição para o trabalho livre e de formação de todo um contingente de
trabalhadores disciplinados e higienizados, visão que Chalhoub considera uma ―ideia
estapafúrdia‖ e anacrônica, e que eu concordo. De outra forma, mais ―coerente, mas
também estapafúrdia‖, pode-se vislumbrar a Lei como parte de um projeto de implantação
de um novo tipo de escravidão no país: os escravos agora só dependiam da obtenção do
dinheiro da indenização do senhor para terem direito à liberdade – se tornaram servos de

366
CHALHOUB, S. Visões de liberdade. Uma história das últimas décadas da escravidão na corte. São
Paulo, Cia das Letras, 1990, p. 99.
367
CHALHOUB, op. cit., 1990, p. 115.
368
CHALHOUB, op. cit., 1990, p. 129.

230
uma dívida cujo valor era o seu próprio preço no mercado, ou no arbitramento judicial.369
Nesta perspectiva analítica, apesar de Chalhoub admitir ser estapafúrdia a ideia da servidão
por dívida, ainda que coerente com uma classe dominante da época que imaginou o
endividamento como forma de manter o imigrante atrelado ao processo de produção nas
fazendas, acredito que, de fato, precisamos ampliar a análise até mesmo de forma
geográfica. E que se olharmos para nossos proprietários da pequena comarca de Nazareth
no norte pernambucano, talvez constatemos outra visão para a Lei do Ventre Livre. De um
fato temos certeza, os proprietários queriam e precisavam da mão de obra escrava nas suas
produções nos últimos anos da escravidão. Assim, para encarar a liberdade destes, era
preciso trabalhar com cautela, com lentidão, e com certeza, com indenização. A
propriedade era um bem valioso moralmente, e em alguns casos, financeiramente. Porém,
no próximo capítulo analisaremos com mais cuidado e complexidade estas questões, por
hora, o foco é a Justiça e a Lei como mediação de classes.
Thompson acredita que a lei pode ser vista instrumentalmente como mediação e
reforço das relações de classe existentes e, ideologicamente, como sua legitimadora. Mas,
segundo ele, devemos avançar um pouco mais em nossas definições, pois se dizemos que as
relações de classe existentes eram mediadas pela lei, não é o mesmo que dizer que a lei não
passava da tradução dessas mesmas relações, em termos que mascaravam ou mistificavam
a realidade. Mas isso não é toda a verdade, pois, para o autor, as relações de classe eram
expressas não de qualquer maneira que se quisesse, mas através das formas da lei; ―e a lei,
como outras instituições que, de tempos em tempos, podem ser vistas como mediação (e
mascaradamente) das relações de classe existentes, tem suas características próprias, sua
história e lógica de desenvolvimento independentes‖.370
Vale dizer, no entanto, que Thompson alerta para que nossas considerações sobre
Direito indiquem-nos que este é um instrumento de afirmação da dominação de uma classe,
mas que isto, se for o caso, seja o fechamento da análise, e não seu pressuposto. Desse
modo, devemos sim pensar o Direito como instrumento de mediação entre classes ou
campo de lutas, contudo, essa atuação pode ter resultados imprevistos. Nesse sentido, ao
nos voltarmos para as análises sobre a dinâmica social nazarena, podemos sugerir ter sido

369
CHALHOUB, op. cit., 1990, p. 160.
370
THOMPSON, E. P. Senhores e Caçadores: a origem da Lei Negra. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987, p.
353.

231
um processo difícil o alcance do Direito como uma força ativa, dotado de certo grau de
autonomia e mediadora dos conflitos entre as classes sociais, mesmo no período pós Lei do
Ventre Livre. Por outro lado, no nosso caso, será que se encaixam as ideias de Manoela
Carneiro da Cunha de que o silêncio da lei deixava aos proprietários o poder de resolução
dos problemas relativos às suas propriedades, dos seus escravos, ou possibilitaria a
construção de laços morais de gratidão e lealdade. Será que, em Nazareth, os escravos
podiam conseguir a sua liberdade pelo costume e não pelo direito?371 No capítulo 3
alcançaremos de forma mais completa uma sugestão para essa questão, porém, por hora, o
que pretendemos esboçar não é o silêncio da Lei, mas, justamente, o contrário, como os
grupos sociais a usavam.
Segundo considerações de Keila Grinberg, para um escravo conseguir curador era
preciso que, antes de tudo, ele conhecesse homens livres que se dispusessem a redigir um
requerimento em seu nome, a requerer de fato o curador e, possivelmente, a protegê-lo em
caso de retaliações do senhor. Não era qualquer um que podia fazer isso. Ele precisava para
tal ter relações pessoais bem consolidadas. Para a autora, só um escravo bem estabelecido
em um plantel dispondo provavelmente de privilégios concedidos pelo senhor (como moral
em casa própria, ou ter uma roça) poderia estabelecer esse contato. Era necessário também
mais que a Lei:

Mostrar-se mais perto do mundo dos livres, por ter posses ou conhecer
pessoas influentes, parecia também ser fundamental para o prosseguimento da
ação. Sem essas prerrogativas, um escravo de uma vila do interior,
provavelmente, nunca conseguiria voz na Justiça. Segundo este raciocínio,
chegamos à idéia de que o acesso a estrutura jurídica e ao judiciário dependia, e
muito, das relações pessoais, que o escravo mantivesse com os livres e
poderosos locais.372

Segundo essas conclusões, no caso de Nazareth, os escravos para buscarem sua


liberdade juridicamente teriam que entrar na teia de relações acima explicitada. Como se
deu esse processo? Primeiramente, vejamos os números referentes às ações de liberdade na
comarca de Nazareth (vale lembrar que trataremos algumas ações com mais detalhes no

371
CUNHA, Manoela Carneiro da. ―Sobre os silêncios da lei: lei costumeira e positiva nas alforrias de
escravos no Brasil do século XIX.‖ In: Antropologia do Brasil: mito, história, etnicidade. São Paulo:
Brasiliense/EDUSP, 1986, p.123-144.
372
GRINBERG, Keila. Liberata: a lei da ambiguidade: as ações de liberdade da Corte de Apelação do Rio
de Janeiro, século XIX . Rio de Janeiro, Relume-Dumará, 1994, p. 64-85.

232
capítulo 3). No total entre 1867 e 1887 encontramos 25 ações de liberdade em Nazareth.
Deste total, 52% foram escravas solicitando a liberdade e 48% homens. Eram idosos acima
de 40 anos, 8% dos escravos. Com relação ao período, entre 1867 e 1871, nenhuma ação foi
registrada. Entre 1872-1876: 24% (6), entre 1877-1881: 36% (9) e 1882 e 1887: 40%
(10).373 Verificamos, portanto, que tanto homens como mulheres acessaram a Justiça em
busca da liberdade, e que esse procedimento foi aumentando com o passar dos anos. Não
necessariamente com o advento da Lei de setembro de 1872 ocorreu um aumento
expressivo, mas sim a partir de 1876. Os argumentos legais variaram, mas em sua maioria,
72%, os escravos possuíam pecúlio. Algumas vezes eram bem inferiores, por isso alguns
escravos não alcançaram a liberdade. Parte das ações justifica legalmente a falta de
matrícula e outra374, os escravos declararam terem chegado depois da proibição do tráfico.
Do total de alforrias constatadas em cartórios, ações e testamentos (tema do capítulo 3), as
ações de liberdade representaram 19,54% do total. Não é uma porcentagem alta, mas
também não é uma quantidade desprezível, pelo contrário, considerando que estamos
tratando de um período curto de 15 anos, isto é, entre 1872 e 1887. Se calculássemos por
ano daria em torno de 1,6 ações de escravos na Justiça por ano. Se olharmos os dados reais,
no entanto, veremos que as ações se deram de forma esparsa ou, às vezes, acumulada,
como, em 1879, ano em que ocorreram 5 ações de liberdade. De qualquer forma, numa
comarca na zona da mata pernambucana, diferente de um grande centro urbano, os escravos
e seus curadores marcarem presença na Justiça em defesa da liberdade certamente são
indícios socialmente importantes do processo de construção de uma cultura de resistência
escrava, ou ao menos, são sinais de que escravos desenvolviam redes de solidariedade com
livres e tinham consciência dos caminhos para se libertar.
Nem sempre esses caminhos e essas redes ocorriam de forma rápida e simples;
muitas vezes, o escravo acabava passando pela mão de dois ou mais curadores. Esse foi o
caso das escravas Bernardina e Francisca em 1876. Nessa história a ação não foi pela
primeira liberdade, mas pela segunda, isso mesmo, elas foram à Justiça lutar pela carta de
liberdade que já tinham recebido. A ação começou com o curador João Baptista do Amaral

373
Dados colhidos em pesquisa no acervo do cartório de Nazaré, FUNDAJ/Recife e processos cíveis de
Nazaré, Memorial da Justiça/Recife.
374
Um trabalho que aborda a questão a falta de matrícula e ouras ações de liberdade em Pernambuco é de:
COSTA, Lenira Lima da. A lei do ventre livre e os caminhos da liberdade em Pernambuco 1871-1888.
Dissertação de Mestrado em História, UFPE/Recife, 2007.

233
e Mello em fevereiro de 1876, na qual a escrava Francisca, pertencente ao falecido senhor
Capitão Antônio da Motta Silveira Cavalcanti do Engenho Jacaré, veio declarar, por si e
por sua filha Bernardina, que seu referido benfeitor tinha lhe dado a carta de liberdade em 9
de agosto de 1869, servindo como testemunha o Tenente Coronel Severino Alves Villarim.
Assim, já com o ventre livre, um ano pouco ou mais, teve sua filha Bernardina. Em 1875,
no entanto, um pedido mudou a vida das cativas. Conta Francisca que seu benfeitor, em
maio daquele ano, pediu-lhe a carta de liberdade em confiança ao senhor do engenho Bom-
Viver de nome Luiz Ignácio de Andrade Lima o qual reteve o documento sob sua guarda.
Sucedeu que depois da entrega da carta, o dito benfeitor inutilizou esta, passando outra
carta de liberdade com data muito posterior. Para piorar as coisas, o senhor matriculou-as
de forma indevida, uma vez que as mesmas já eram libertas. Por conta da ilegalidade do
senhor, Francisca e Bernardina foram avaliadas e inventariadas como bens, portanto, como
escravas do proprietário Silveira Cavalcanti. Diante dos fatos, a escrava requereu um
curador para tratar da ditas liberdades, chamando, principalmente, Andrade Lima para lhe
entregar a referida carta. O processo, no entanto, não foi tão simples e, em setembro de
1876, um novo curador foi nomeado para tratar da ação, desta vez foi o Dr. Liberato Villar
Barretto Coutinho. Passaram-se dois anos e o dito curador não fez nada, e por conta disso,
em janeiro de 1878, mais um novo curador foi nomeado: o advogado Manoel Macedo.
Desta vez, o processo andou e um mês depois Francisca estava chegando ao fim do caso.
Porém, atentemos para a ressalva, como bem expôs o advogado Macedo, que a escrava teve
que pagar a liberdade da filha Bernardina no valor estimulado no inventário. O pecúlio
salvou a angústia e afogou a injustiça, e naquele mesmo mês, pelas mãos do último curador,
Francisca conseguiu a carta de liberdade, conquistada, ou melhor, reconquistada, com seu
próprio suor e por meio da Justiça.375
O direito nesse caso foi um grande mediador de classes. Porém, a justiça se fez pela
injustiça, afinal, Francisca teve que pagar a liberdade da filha que já era livre por causa de
um grande ―cambalacho‖ feito por seu senhor. Passaram um, dois, três curadores para
resolver o caso, e, no final, depois de um processo de 2 anos, a suplicante – para usarmos os
termos jurídicos – teve que abrir mão da briga pelo legal e justo, e utilizou-se de outras
chances dadas pela Lei: o pecúlio. Comprou a carta de liberdade certamente porque cansou

375
Ação de Liberdade de Francisca. Caixa 109. Memorial da Justiça/Recife.

234
de esperar a Justiça, o troca-troca dos curadores, e talvez, até mesmo por sugestão do
último advogado, Manoel Macedo, que conhecia bem onde estava pisando. Esta era a
Justiça mediadora, tinha espaços para o conflito, no entanto, as brechas que davam vitória
aos escravos e pobres eram bem estreitas, demandava um grande esforço por parte dos
interessados. Em outras palavras, era uma grande luta que se travava não apenas na Justiça,
mas também no cotidiano, em outras palavras, na inserção dos cativos e libertos no próprio
processo de produção local. De toda forma, os grandes sujeitos eram eles: os escravos.
Contudo, vale lembrar, como exposto anteriormente, que durante a década de 70 o
espaço de conquista na Justiça nazarena fazia-se, sobretudo, no deslocar da rede de poderes
estabelecidos na sociedade, a qual se mantinha em um jogo político e de interesses
pessoais. O jogo do poder, portanto, era um fator intrínseco à dinâmica sócio-política local
e, ainda, fortemente expressivo dentro dos processos jurídicos. Um bom exemplo disso foi
o caso citado do Juiz Municipal de Nazareth em 1870, bem como a ação de liberdade da
escrava Edwirges, pertencente ao senhor Manoel Pedro de Oliveira e Melo.
Em maio de 1879, o processo de ação da escrava Edwirges teve resultado negativo
uma vez que seu pecúlio era inferior ao valor de 260$000 réis determinado pelo ato de
avaliação. O curador e advogado Manoel Macedo, que requeria o reconhecimento de
Edwirges como uma escrava de idade avançada e incapaz de servir aos trabalhos de campo,
ficou indignado com o resultado da avaliação. Assim, fez sua defesa à cativa ressaltando
que:
O sábio e humano legislador de 1871, prevendo as injustiças e iniquidades a
quão ficando sujeito o mísero, que pretendendo sua alforria por meio de
arbitramento, se o deixasse exposto ao arbítrio dos avaliadores cercou-a de
garantias, prescrevendo regras que deveria ser observadas na taxação do preço
da indenização Reg. Nº 5, 135 de 13/11/art. 58. Tais regras, porém, não forão
aqui observadas, e este é o fundamento da apelação interposta. Com efeito,
verificou-se pelo documento que sendo a libertanda Edwirges maior de 50 anos
de idade, e por tanto, para bem dizer, imprestável para o pesado serviço da
agricultura como foi avaliada em 260$000! 376

Para o advogado de Edwirges, essa avaliação foi aceita pela razão ilegal e sem
critério dado pelo avaliador do apelado. Para Macedo, não era natural que uma escrava de
50 anos, sem forças, fosse capaz de todo serviço de campo, como afirmou o avaliador, o

376
Auto do advogado Manoel Macedo, 08/08/1879. Ação de Liberdade, caixa 229. Memorial da
Justiça/Recife.

235
qual, segundo o advogado, era amigo do apelado. Na visão de Macedo precisava ser revista
a noção de capacidade física para o trabalho da escrava Edwirges:

Queira servir algum conhecido da vida nossos agricultores pobres, pode


sem receio afirmar que bem pouco aos 50 anos sentiu-se ainda com forças para o
trabalho do campo. Se é isso é de uma verdade incontestável em relação ao
homem livre, que não vê, atoar de si o lábaro do senhor, só ainda é certo que as
forças da mulher são inferiores as do homem.377

As justificativas do advogado entraram em um campo argumentativo que não era


estritamente determinado pela lei, atingia uma vala que existia na legislação: o fato de que
os homens avaliadores, possivelmente, eram pessoas conhecidas e de interesses do senhor
envolvido. De todo modo, não adiantaram os esforços de Macedo, aquele mesmo advogado
do Vigário Gonçalves da Luz, conhecido como o defensor dos pobres. Na réplica, o
advogado do apelado, João Batista e Mello, declarou em seus autos:

Por mais que a razão reconheça e proclame os direitos contestados, é


preciso curvar perante a lei. O sábio e humano legislador de 28 de setembro de
1871 não fez tanto quanto devia satisfazer o apelante, ferindo de morte a
escravidão, não rasgou a página triste da nossa legislação respeitou interesses da
ordem que reclama prudência. O escravo ficou ainda escravo. O sol, que ilumina
a raça infeliz na América do Norte refletiu no Brasil.
Mas temos escravos e senhores e a Lei, que protege o captivo, não
sacrifica o direito da propriedade. Decreto no 5135 de 13 de novembro de 1872
art. 40 não desconhece as causas que determinam a nova avaliação e são
imperícia demonstrada má fé, ou suspeição dos avaliadores.378

De fato, como colocou o advogado de defesa, o processo para arbitramento do


preço, valor de Edwirges, ocorreu conforme indicava o artigo 39 do decreto nº 5135. Para
João Batista e Mello, não houve a menor dúvida sobre a nomeação e aprovação dos
louvados. O árbitro desempatador teria sido ―de lembrança‖ do curador e aceita pelo
proprietário, procedimento, desse modo, que ―o abonou entre os que cultivavam suas
relações‖. Teria sido, portanto, de comum acordo. Vale ressaltar que para o advogado a lei

377
Idem.
378
Auto do advogado do apelado, João Batista e Mello, 16/08/1879. Ação de Liberdade, caixa 229. Memorial
da Justiça/Recife.

236
protegia o cativo, mas não sacrificava o direito da propriedade. Estava exposta a
ambiguidade da Lei do Ventre Livre, e em cima dela, a defesa judicial.379
No mais, para o advogado do apelado, não haveria prova de uma idade incapaz de
trabalho.

Edwirges é maior de 50 anos! Mas a nossa lei criminal só dispensa da pena


do trabalho a maior de 60 anos quando o trabalho é nas galés, para onde vão as
mulheres.
Havendo saúde, não havendo velhice, pode haver trabalho, e o escravo da
agricultura nem sempre é escravo do trabalho dos campos, e muito do trabalho
agrícola não são capazes de todo trabalho; e atendendo a essas diferenças foi o
preço para a indenização taxado.380

Má sorte, se assim podemos dizer, também teve, em 1881, o preto Teodósio de 50


anos, doente, aleijado e de propriedade do senhor Francisco Gonçalves Carneiro, morador
do engenho Macaco. Com um pecúlio de 53$000, o escravo alegou não ter mais condições
de servir ao campo e nem ao trabalho do engenho, porém, seu senhor afirmou diante do
Juiz Municipal José de Castro Sá Barreto, que o escravo tinha na verdade 45 anos, era
robusto, com condições plenas para o trabalho apesar do defeito das pernas. No mais, disse
ser muito baixo o valor do pecúlio oferecido pelo cativo uma vez que ele (o proprietário)
tinha recebido uma proposta de compra pelo mesmo escravo no valor de 200$000 mil réis
do Esmeraldo Pereira Cavalcanti e de José Bellarmino Pereira do Engenho Limeirinha, a
oferta de 300$000 mil réis sendo, portanto, na sua visão, era insignificante a quantia
proposta pelo cativo para se fazer forro. Os avaliadores não consideraram o defeito físico
de Theodósio um obstáculo ao trabalho e o avaliaram por 200$000 mil réis. O curador, Dr.
João Batista do Amaral e Mello, no entanto, decidiu apelar para o Juiz de Direito da
comarca, João Hercano Duarte. Mais detalhes desta história veremos no capítulo seguinte,
por hora, desejo salientar aqui que apesar de uma mentalidade comum de que escravos
idosos, aleijados e doentes ainda tinham condições de trabalhar, pelo menos nos engenhos,
ainda sim, existiam homens da justiça como Manoel Macedo e Amaral e Mello que
utilizavam recursos da lei para auxiliar os escravos. Na verdade, a lei e a justiça permitiam

379
Sidney Chalhoub trata desse tema e veremos mais adiante suas considerações.
380
Auto do advogado do apelado, João Batista e Mello, 16/08/1879. Ação de Liberdade, caixa 229. Memorial
da Justiça/Recife.

237
isso naquele momento histórico, ainda que cotidianamente, senhores e proprietários
supervalorizassem o escravo até nas suas últimas condições ativas. Novamente podemos
sugerir que, nas décadas de 70 e 80 do XIX, em terras de Nazaré, existia sim um espaço
jurídico de mediação de classes, contudo, neste caso, se a vitória se consumou para o lado
do cativo ou do proprietário com mais detalhes veremos no próximo capítulo, por hora,
adianto que as ações de liberdade com resultados positivos para os escravos se fizeram,
sobretudo, quando estes tinham um pecúlio bem próximo do seu valor de mercado, em
outras palavras, quando conseguiam juntar o ―valor justo‖ determinado e construído social
e culturalmente pelos avaliadores e senhores.
Em 1879 e 1881 (anos dos processos de Edwirges e Theodósio), anos, portanto,
anterior à promulgação da Lei do Sexagenário em 1885 (e mesmo depois desta, como bem
expõe Joseli Mendonça381), usavam-se as brechas na legislação possibilitando aos senhores
condições legais de não conceder a liberdade para o escravo idoso. A questão, todavia, não
foi apenas uma situação da legislação, mas também imbricou outros aspectos, digo,
aspectos humanos e ideológicos. Lembremos aqui os atores sociais envolvidos nesses
processos. O advogado do senhor de Edwirges, dito João Batista e Mello, era o mesmo Juiz
Municipal que, em 1870, se indignou diante da falta de postura jurídica do Juiz de Direito e
comprometeu-o frente ao Presidente da Província taxando-o de ―usar atitudes muito
harmônicas com aqueles que governavam no mato‖, uma vez que possuía uma noção
diferente sobre a primeira condição da liberdade individual, no caso, o habeas-corpus. Não
sendo nem um pouco incoerente com sua atitude e suas palavras, o homem do Direito, João
Batista e Melo, manteve sua postura legalista. Em 1870, ficou indignado pela negação do
habeas-corpus para um cidadão e acusou um Juiz de Direito e um Promotor de serem pouco
condizentes com o Direito; por outro lado, em 1879, defendeu o cativeiro para uma escrava
idosa. Sempre com uso do Direito e da Lei, afinal, como bem apontou E. P. Thompson, se a
lei é manifestamente parcial e injusta não vai mascarar nada, legitimar nada, contribuir em
nada para a hegemonia de classe alguma. Para ele, a condição prévia essencial para a
eficácia da lei, em sua função ideológica, é a de que mostre uma independência frente às
manipulações flagrantes e pareça ser justa.382 A ideia em não conceder a liberdade para

381
MENDONÇA, Joseli. Entre a mão e os anéis. A Lei dos sexagenários e os caminhos da abolição no
Brasil. Campinas, Ed. Unicamp, 1999.
382
THOMPSON, op. cit., 1997, p. 353-354.

238
Theodósio e Edwirges era provar que a justiça seria seguir a lei, obviamente, na melhor
interpretação possível, na que retoricamente ficasse a favor da lógica da propriedade.
Porém, de qualquer modo, aos olhos públicos, a lei era clara e justa.
Ao mesmo tempo, é importante destacar que Thompson defende que a lei mediava
as relações de classe através de formas legais, as quais também podiam impor condições e
restrições às ações dos dominantes. Assim, Edwirges não conseguiu a liberdade, mas sem
saída pediu o auxílio do advogado Macedo o qual entrou com um Termo de Segurança em
prol da escrava. Este documento deveria ser assinado pelo senhor como forma legal de
garantia para que a escrava não sofresse castigos ao voltar sob o poder de seu proprietário.
Obviamente, tratava-se de uma relação conflituosa entre senhor e escrava. Relação da qual
Edwirges, escrava de mais de 50 anos, não conseguiu se livrar pelo recurso do arbitramento
no final dos anos 70. Como coloca Chalhoub, sua leitura sobre as ações de liberdade do
período posterior a 1871 indica que as trapaças dos herdeiros deixaram de ser os principais
obstáculos dos escravos nos processos de liberdade e a dificuldade obrigou o senhor a
abaixar o preço exigido para a obtenção da alforria.383 Mesmo assim, o autor destaca que se
a partir de 1871 o pecúlio ficava formalmente dependente do consentimento do senhor, e,
portanto, aparentemente, o negro ou a negra ficariam presos à vontade senhorial, para os
escravos o que de fato importava na Lei do Ventre Livre é que, caso as negociações com os
senhores falhassem, bastava apresentar o pecúlio em juízo e esperar pelo resultado do
arbitramento judicial.384 No caso de Edwirges, o arbitramento não deu certo, porém, sua
história não termina aqui, continuaremos no próximo capítulo. Por hora, vale ressaltar que
no universo de uma sociedade rural, diferente, obviamente, de espaços urbanos como a
Corte, as relações pessoais e seus interesses ainda falavam mais alto do que as conquistas
legais em favor do escravo.
No mais, vale salientar que o senhor de Edwirges, Manoel Pedro de Oliveira e
Melo, curiosamente, em 1890 fez parte do abaixo assinado em apoio a Nabuco e ao ideal
federalista. Cerca de 10 anos antes, a defesa era pela propriedade escrava ou um preço justo
por sua liberdade, em outras palavras, liberdade só sob justa indenização. Ao mesmo
tempo, mais curioso ainda é o fato de que Manoel Macedo, o advogado dos pobres, o

383
CHALHOUB, op. cit., 1990, p. 159.
384
CHALHOUB, op. cit., 1990, p. 161.

239
mesmo que tentou libertar Edwirges do cativeiro, também fez parte da lista dos cidadãos
nazarenos que contavam com o apoio de Joaquim Nabuco no pós 15 de novembro.
Pergunto: afinal de contas, quem eram os liberais que elegeram Nabuco em 1885?
Realmente, Joaquim Nabuco pode ter conseguido votos de ―gregos e troianos‖ em
Nazareth, ou, talvez, ser liberal e abolicionista nos anos 80 nessa região canavieira possuía
significados mais complexos, isto é, significados sobre a propriedade escrava e a
manutenção da riqueza e do sistema produtivo vigente. Certamente, os escravos e suas
alforrias possam nos dizer algo a mais. Por enquanto, diante desses fatos, verificamos como
as relações sociais, econômicas e políticas eram complexas e dinâmicas nas últimas
décadas do XIX e de fato trabalhadores escravos e livres estavam vivendo numa teia de
aranha que também se desenvolvia dentro dos espaços da Justiça. Os escravos, por sua vez,
buscaram aprender, de diversas formas, como desfiar os fios da hegemonia dominante.
Diante dessa sequência de fatos e atos que envolveram senhores, juízes, advogados,
curadores, delegados, escravos e trabalhadores livres na sociedade da cana pernambucana
na década de 70 e 80, sugiro uma interpretação empírica do processo legislativo, da ação da
Justiça, das conquistas e dos fracassos dos escravos nas ações de liberdade, ressaltando,
sobretudo, as características circunstanciais e locais. Como expõe Thompson, as regras e as
categorias jurídicas penetram em todos os níveis da sociedade, efetuam definições verticais
e horizontais dos direitos e status dos homens e contribuem para a autodefinição ou senso
de identidade. A lei, enquanto uma lógica da igualdade, sempre deve tentar transcender as
desigualdades do poder de classe, ao qual é instrumentalmente atrelada para servi-lo. Para o
autor, a lei enquanto ideologia, a qual pretende reconciliar os interesses de todos os graus
de homens, sempre deve entrar em conflito com o sectarismo ideológico de classe. Trata-se,
sobretudo, da retórica da legitimidade.385 Então, pergunto: e para além do Direito, o que de
fato podia deslegitimar e/ou legitimar o poder senhorial na comarca de Nazareth? Na
prática cotidiana, o que alimentava ou desestabilizava o poder do senhor?
Observamos que a autoridade policial muitas vezes era usada para legitimar ou
deslegitimar o poder senhorial, dependia muito do embate político. Os homens da justiça,
juízes, promotores, advogados, no campo de forças, agiam conforme seus interesses
pessoais e políticos. Alguns eram legalistas, mas, escravocratas; em outros casos, existiam

385
THOMPSON, op. cit., 1997, p. 360.

240
aqueles que eram socialmente classificados como ―advogados dos pobres‖. Os pobres, por
sua vez, de certa forma tinham suas opções de trabalho nos engenhos que, às vezes,
―exclusivamente‖, empregavam livres. Outros protegiam até ―criminosos‖ que
desestabilizavam também a ordem vigente. No entanto, muitos ficavam de fora do sistema
de trabalho, mesmo porque a crise também atingia a produção de açúcar.
Muitas vezes os conflitos ou alianças entre proprietários, autoridades policiais e
jurídicas interferiam ou utilizavam as ações dos escravos, como as fugas e roubos, para se
acusarem. No mais, diante dessas situações constatamos como as pessoas de certas
tendências políticas pensavam a questão da propriedade e da escravidão nas décadas de 70
e 80 do XIX. A ideologia de classe sempre estava presente buscando espaços para se
afirmar, porém, ela sempre se fazia em embates, consensos e negociações entre classes e
intra-classes.
Em 1871, o delegado de polícia de Nazareth, Barão de Tracunhaém, exigiu que se
fizessem com urgência a prisão e a devolução do cativo Benedito. Este, pertencente a
Christovão Guilherme Brenkefeld, havia fugido para o Engenho Pedregulho em busca de
um comprador para si, em outras palavras, em busca de um novo senhor. A história de
apreensão, todavia, não aconteceu como o delegado queria. Segundo ele,

O excessivo coidado e moderação com que procedem as autoridades


policiais deste termo, quando tem de effectuarem alguma prizão e indivíduos
moradores em propriedades de pessoas pertencentes a opozição concorre para
que se tornem impróprias as deligências da polícia, como se deu no presente que
o subdelegado em lugar de promover a prizão de Benedicto procedeu a Torres
para lhe entregar exemindo-se de entrar com força no Engenho Pedregulho do
qual é rendeiro o dito Jozé Belarmino Pereira Torrez e lavrador o Juiz Municipal
deste Termo Dr. João Baptista do Amaral e Mello, plantando canas com
trabalhadores livres e segundo se dis sem partilha pelo que faz corte ao fallado
rendeiro Torrez..386

Para o delegado, parecia que o subdelegado queria poupar certas calúnias contra a
polícia que o Juiz Amaral teria escrito no periódico O Liberal. Assim, o rendeiro Torrez iria
entregar o escravo Benedicto ao subdelegado, mas o Juiz João Batista Amaral empenhado
em inutilizar as diligências policiais pedira a Torrez para que não entregasse o cativo
386
Ofício ao chefe de Polícia de Pernambuco, Dr. Luis Antônio Fernandes Pinheiro, do delegado de Polícia de
Nazareth, Barão de Tracunhaém. Delegacia de Nazareth, 24/01/1871. SSP Nazareth 247 vol. 652.
APEJE/Recife.

241
fugido. Por sua vez, o delegado não cessaria seus esforços para prender o escravo que havia
fugido.
Em Nazareth, parecia ser costume este tipo de complicação envolvendo fugas de
escravos. Três anos antes, em 1868, outro caso envolveu o delegado de Nazareth, o Juiz
Municipal João Batista Amaral, e escravos fugitivos foi o assassinato ou suicídio do cativo
Jacintho. Segundo o lavrador do Engenho Cavalcanti, José Felippe Correia de Castro, seu
escravo de nome Jacintho foi levado para a propriedade do referido Engenho para ser
recolhido ao tronco por haver chegado de uma fugida, porém, no dia seguinte, teve a
surpresa de encontrar Jacintho enforcado.387 Esse fato aconteceu em outubro de 1868, mas,
em 1871, novamente veio à tona o acontecimento, no entanto, dessa vez, o delegado teve
que se explicar para o Chefe de Polícia, por conta de uma acusação feita pelo Juiz João
Batista Amaral, de forma anônima no periódico O Liberal. Segundo o delegado, a intenção
de Amaral era desmoralizar as autoridades, laqueando a conduta dos Agentes Policiais
locais, desmoralizando-os e atrapalhando-os no trabalho regular. Quanto à história de
Jacintho, escravo do Capitão José Felippe Correia de Castro enforcado no tronco do
Engenho Cavalcanti, contou o delegado que

Castro era lavrador e rezidia na propriedade do Engenho Pedregulho,


possuía entre outros escravos Jacintho crioulo de má índole que vivia
continuamente fugido no dia 20 de setembro de 1868, dous indivíduos me vierão
entregar Jacintho actado com cordas e huma carta de propriedade do Engenho
Baraúna deste Termo dirigida ao Capitão José Felippe, disse aos portadores que
o escravo não me pertencia e que o levassem a seu Senhor dirigiao-se com
Jacintho e em caminho encontrarão a José Felippe de Castro Junior, filho de
Castro que voltou com Jacintho e veio pedir-me por não estar em caza seu Pai,
para consentir segurá Jacintho em um tronco de madeira onde seguro os meus
escravos, fujões e não pessoas livres isto por não estar seu pai em caza, e que
Jacintho se poria logo outra fuga, este mesmo segurou Jacintho no tronco e
chegando seu Pai o Capitão José Felippe no dia seguinte não só approvou a
rezolução de seu filho como pediu-me que demorasse Jacintho prezo por mais
huns dias, e no amanhecer do quarto dia appareceu Jacintho enforcado pro suas
próprias mãos tendo prova a conseguir tirado as cordas de hera alhada de
cangalha que lhe estava próxima o que foi bem sabido e visto por todos os
moradores do Engenho, compareceu logo o respectivo Juiz de Paz o Capitão
Francisco Rufino Correia de Castro, Irmão de José Fellipe Correia de Castro,
senhor de Jacintho e procedeu no cadáver deste a vistoria com peritos e
testemunhas e pelas averiguações feitas na projeção e lugar em estava enforcado

387
Ofício do delegado de Nazareth, João Cavalcanti Maurício Wanderley. Delegacia de Polícia de Nazareth,
16/10/1868. SSP Nazareth 245 vol 654. APEJE/Recife.

242
Jacintho conheceu-se que se enforcou por suas próprias mãos e de sua
expontânea vontade.388

A preocupação do delegado Wanderley, vulgo Barão de Tracunhaém, era com a


acusação de que ele fizera parte da morte do escravo. Diante da sua narrativa, indagava:
que parte teve o Delegado de Nazareth no enforcamento de Jacintho que não sofreu
castigos? E para Wanderley, se os ―escritos‖ do Juiz Municipal acusando-o, eram
verdadeiros, porque então o mesmo não realizou uma ação judicial contra ele? Para este,
isto não ocorrera justamente pelo motivo de que o Juiz sabia que o Delegado de Nazareth
nenhuma parte tivera no enforcamento de Jacintho. Em outras palavras, para o delegado
Wanderley, caso o seu envolvimento na morte fosse verdade, eles resolveriam o caso na
Justiça. E aqui a ação na Justiça aparece de novo como um campo possível de disputas,
neste caso, de embates intra-classes, ainda que os homens da Justiça tentassem neutralizá-lo
a favor de seus interesses pessoais e ideológicos. Por outro lado, a ameaça do delegado
Wanderley pode ter sido irônica, no sentido de que ele sabia que a Justiça naquele momento
iria absolvê-lo, afinal, nas entrelinhas, os homens da Justiça eram escravocratas, e não
acusaria um delegado pela morte de um escravo de ―má índole‖. Nisso o Barão de
Tracunháem tinha experiência, pois, como vimos anteriormente, fora acusado pelo
espancamento de um livre, morador do engenho do vigário Basílio Gonlçalvez, o qual teve
que acessar o Presidente da Província para que o Barão fosse julgado.
É interessante perceber, ao analisarmos o discurso de defesa do delegado João
Wanderley, que este acusou o Juiz, no mesmo patamar de importância e como parte da
argumentação de que era inocente no caso da morte de Jacintho, de não julgar
pertinentemente um ladrão de cavalos suspeito também de assassinato. Segundo o
delegado, no periódico O Liberal a polícia foi acusada pelo processo de Chistovão Jozé de
Almeida que era publicamente reconhecido naquele Termo como ladrão de cavalos. O
processo iniciou quando o Alferes Manoel de Holanda Cavalcante de Albuquerque
descobriu que em poder de Christovão havia um cavalo furtado. Como este não queria
entregar o que havia roubado, o alferes Manoel de Holanda promoveu legalmente para que
isso ocorresse. O acusado, por sua vez, ameaçou matar o alferes Holanda, e de fato no ano

388
Ofício do delegado de Nazareth, João Cavalcanti Maurício Wanderley, para o chefe de polícia Luis
Antônio Fernandes Pinheiro. Delegacia de Nazareth. 23/01/1871. SSP Nazareth 247 vol 652 APEJE

243
seguinte o emboscou no lugar denominado Campina de Vassouras. Disparou apenas um
tiro contra o alferes e seu cavalo deixando-os feridos. Segundo o delegado, narrador da
epopeia, esse fato criminoso foi bem provado, com a busca e apreensão da arma do autor.
No entanto, Christovão foi pronunciado e absolvido no Juízo por falta de testemunhas de
vista. A sentença na opinião do delegado de Nazareth, João Wanderley, tratou-se, na
verdade, de uma falsidade ―a toda a prova‖. As testemunhas não foram inquiridas para irem
ao Engenho Goitá, pois o proprietário deste engenho era subdelegado do 1º Distrito da
freguesia de Tracunhaém que naquela ocasião não estava no exercício policial. Em seu
lugar, estava o 1º Suplente, o Capitão Ignácio Francisco Cavalcante Wanderely,
proprietário do engenho Serraria, Juiz do sumário de Christovão. No mais, o cavalo de
Christovão desapareceu, foi retirado sem a autorização do subdelegado e não foi requerido
pelo Juiz Amaral, segundo o delegado, ―amigo do réu‖, para que se devolvesse o animal.
Assim, para o delegado, esse conjunto de fatos e atitudes insinuava claramente a
participação destes na recuperação do cavalo e na absorção do atirador. Estavam, portanto,
todos envolvidos e agindo conjuntamente: juízes, suplentes, criminosos e senhores.
No fundo da argumentação e do conflito estava a discussão sobre a propriedade.
Segundo o delegado, que Juiz era Batista para acusá-lo de tortura e morte de um escravo
fugitivo, se o mesmo protegia ladrões de cavalos e assassinos de proprietários? A
manipulação do uso da Justiça era fato na comarca de Nazareth. E a manipulação em nome
da propriedade e da moralidade era o costume. Nessa situação, era necessária a construção
de estratégias por parte dos trabalhadores livres e escravos, para burlarem o poderio
opressor que contaminava polícia, justiça e relações sociais.
Diante desse quadro circunstancial da comarca de Nazareth, com seu grau de
instabilidade e suas redes de conflitos ―intra-classes‖ e entre classes cada vez mais
acirradas, o que de fato significaria liberdade para os escravos que viviam nos engenhos
desta parte da Zona da Mata pernambucana? O que significaria para os cativos uma boa
opção de vida? Quais eram, para os escravos, os melhores caminhos para o embate, a luta
e/ou a negociação? Ou será que a acomodação era, em alguns casos, a saída mais sábia?
A verdade é que, enquanto as disputas políticas ocorriam e o discurso de
manutenção da propriedade reinava, Benedito escravo fugiu e foi procurar outro comprador
em terras de proprietários da oposição; de outra forma, o escravo Jacintho também fugiu do

244
Engenho Pedregulho, da oposição, mas foi preso e morreu, misteriosamente, em terras de
um barão conservador. De uma terceira forma ainda, Edwirges, Theodósio e Francisca
foram buscar a liberdade na Justiça, ainda que soubessem que ao fazer essa escolha
poderiam sofrer duros castigos de seus senhores. Senhores estes, muitas vezes, eleitores de
Joaquim Nabuco. Assim, sob outro olhar, no meio da teia sócio-política nazarena, lá
estavam os escravos: vivos, pensantes e buscando variadas formas de se libertar ou, ao
menos, vivenciar a liberdade.
As histórias de Edwirges, Theodósio, Francisca e outros escravos continuam mais
adiante. No mais, é necessário analisar mais detalhadamente as informações sobre as
alforrias da Comarca de Nazareth. Certamente, as fontes locais podem nos dar novos
caminhos de interpretação sobre as possibilidades de liberdade que os cativos possuíam e
sobre as decisões políticas da classe dos proprietários nas últimas décadas da escravidão.

Capítulo 3

A busca pela carta de liberdade nos engenhos de açúcar: os livres, libertos


e escravos na comarca de Nazareth entre 1865 e 1888

O fato de que liberdade e igualdade sejam metades desejáveis em geral e simultaneamente


não significa que os indivíduos não desejem também metas diametralmente opostas. Os
homens desejam mais ser livres do que escravos, mas também preferem mandar a
obedecer. O homem ama a igualdade, mas ama também a hierarquia quando está situado
sem seus graus mais elevados. Contudo, existe uma diferença entre os valores da liberdade
e da igualdade e aqueles do poder e da hierarquia.
Norberto Bobbio

Reconstruir a sociedade da Zona da Mata Norte de Pernambuco da segunda metade


do Oitocentos, buscando, sobretudo, a compreensão das relações sociais e culturais entre
proprietários e trabalhadores rurais, digo escravos e livres, demanda uma análise mais
detalhada sobre as formas de buscar a liberdade na comarca de Nazareth nas últimas

245
décadas da escravidão. Para tanto, buscaremos dialogar com autores como Sidney
Chalhoub, Joseli Mendonça e Keila Grinberg que produziram trabalhos vislumbrando
aspectos relacionados aos processos de liberdade, e também autores como Robert Slenes,
Roberto Guedes, Lizandra Ferraz que buscaram refletir sobre as cartas de liberdade
advindas de alforrias via testamento e/ou através de pecúlio relacionando-as com o perfil
dos senhores envolvidos e o tamanho de suas propriedades. 389
O intento de construir este capítulo também perpassa questões levantadas pelo
pesquisador Galloway a respeito da importância do trabalho escravo nas plantações e da
sua constituição como forma de riqueza na região do Nordeste. Seu trabalho demonstra que
a abolição da escravidão foi meramente o fim de um longo processo de transição do
escravo para o trabalho livre, uma vez que apenas uma pequena porção da população desta
região teve qualquer aposta financeira importante na escravidão. Assim, para o autor, tanto
as razões para a longa retenção da escravidão, como a mais importante das consequências
advindas do fim do cativeiro foram de cunho social mais do que econômico.390 Para autor,
como não ocorreram grandes impactos na sociedade pernambucana, por exemplo, com o
fim da escravidão por causa da mão de obra abundante e barata, este fato dificulta a
investigação sobre os impactos do fim da escravidão. Segundo as tabelas propostas por
Galloway, a produção de açúcar continuou a crescer enquanto a escravidão declinava.
Desse modo, defende o autor que a mudança do tipo de trabalho não afetou a indústria de
açúcar nas províncias de Pernambuco e Alagoas. Já na Bahia foi mais complexo; a
produção de açúcar não cresceu durante a segunda metade do XIX e o açúcar veio
representar cada vez menor proporção de exportação.
As pesquisas de Galloway registraram que no Estado da Paraíba, em 1860, os 37
engenhos no município de Mamanguape empregavam um total de 900 homens, dos quais

389
CHALHOUB, Visões da Liberdade. Uma História das últimas décadas da escravidão na Corte. São Paulo,
Cia das Letras, 1990. _________ Machado de Assis Historiador. São Paulo, Cia das Letras, 2003.
MENDONÇA, Joseli. Cenas da Abolição: escravos e senhores no parlamento e na justice. 1ª edição. São
Paulo, Editora Fundação Perseu Abramo, 2001. GRINBERG, Keila. Liberata: a lei da ambiguidade. As ações
de liberdade da corte de apelação do Rio de Janeiro no século XIX. Rio de Janeiro, Relume – Dumará, 1994.
SLENES, R. The demography and economics of brazilian slavery: 1850-1888. Dissertação de doutorado,
Stanford University, 1975. GUEDES, Roberto Guedes. ―Egressos do cativeiro. Trabalho, família, aliança e
mobilidade social‖. (Porto Feliz, São Paulo, c. 1798 – c. 1850). Rio de Janeiro, Maudad X: FAPERJ, 2008.
FERRAZ, Lizandra. ―Testamentos, alforrias e liberdade: Campinas século XIX. Campinas, Monografia,
IFCH/UNICAMP, 2008.
390
GALLOWAY, J. H. ―The Last Years of Slavery on the sugar plantations of northeastern Brazil‖. The
Hispanic American historical review, vol. 51, no 4 (nov. 1971), pp. 586-605.

246
400 eram escravos e 500 livres, em torno de 11 escravos e 14 livres por plantation. Em
Pedra de Fogo (PB), cidade localizada na divisa entre Paraíba e Pernambuco, existia em
torno de 13 escravos para cada plantation. Segundo anotações do pesquisador, na Zona da
Mata Norte pernambucana chegava a cerca de 40 escravos sendo que índios da vila da
Paraíba também foram contratados para o trabalho no estado de Pernambuco. Segundo
Galloway, a importância relativa da escravidão variou enormemente de uma parte para
outra da zona da mata do nordeste brasileiro. A maioria era de modestos proprietários,
assim foram raras as grandes plantations e grandes senhores de escravos fora do recôncavo
e do sul de Pernambuco. O autor acredita que apenas no recôncavo baiano, no sul
pernambucano e em distritos da zona da mata com larga quantidade de trabalhadores
escravos nas plantations, os cativos representaram grande parte da fortuna da família. Para
o autor, na segunda metade do século XIX somente uma proporção pequena da sociedade
da zona da mata tinha alguma importância financeira na escravidão. Isto é, apenas uma
pequena elite de proprietários concentrados no recôncavo e sudeste de Pernambuco possuía
uma fortuna representativa em escravos. Ao mesmo tempo, existiam também, em menor
quantidade, os plantadores ricos que possuíam escravos e empregavam também
trabalhadores livres. 391
Quanto às alforrias, o autor constata que poucos escravos foram libertados no
nordeste, tanto pela Lei do Ventre Livre (proprietários preferiam empregar as crianças),
como na lei do Sexagenário, assim como pelo Fundo de Emancipação. Para Pernambuco,
Galloway considera que apenas 150 escravos foram libertados pelo fundo enquanto na
Bahia foram 3.533 libertos até 1887, levando em conta que as cotas eram distribuídas
conforme a população escrava das províncias. De qualquer modo, para o autor a
emancipação pelo fundo foi um pouco mais do que um sinal, um gesto indicando a intenção
do que viria posteriormente.392 Nesta perspectiva, Galloway indaga sobre as previsões
feitas pelos proprietários para abolição e quais foram as consequências advindas destas para
as plantações. Na sua visão, parte da resposta dos proprietários para o fim do cativeiro veio
através da continuação da tradição existente na região da classe dos ―rendeiros‖,
―inquilinos‖, nas plantations ou nomeados moradores. Na opinião de Galloway, a

391
Idem, op cit, p. 594 -598.
392
Idem, op cit, p. 588.

247
persistência e o crescimento do sistema de moradia, este apoiado pela tradicional sociedade
patriarcal na qual uma classe social conta com a deferência e serviço de outra, e na qual os
horizontes da ambição do pobre são muito limitados, foram a grande solução social, mas
econômica também, para os proprietários que não previram o fim do cativeiro e que até
mesmo chegaram a perder dinheiro ao comprar escravos alguns anos antes de 1888,
investimento este que poderia ter sido aplicado em equipamentos para a melhoria da
produção do açúcar, por exemplo. Neste sentido, para o autor, o fim do cativeiro teve um
profundo impacto na estrutura da sociedade de plantation, principalmente entre os
lavradores que sofreram e os moradores que tiveram que assumir o trabalho para retornar
ao uso da terra.393
A discussão, portanto, sobre o fim da escravidão e seus impactos, como também a
questão da liberdade dos escravos, suas formas de conquista e negociação e a ―política‖
senhorial de ―concessão‖ da carta de alforria na zona da mata pernambucana, pede-nos o
cruzamento de informações sobre os tamanhos das propriedades e escravarias e sobre o
perfil destes senhores que conviveram com o fim do cativeiro, seja por estarem envolvidos
nas ações de liberdade e/ou nas liberdades condicionais, seja pelo evento da abolição. Em
outras palavras: o que significou para o senhor a liberdade cativa e, ao mesmo tempo, o que
significou para o escravo a sua liberdade em terras dos engenhos de açúcar na comarca de
Nazareth? Essas são algumas questões que podem nos levar a outras indagações, e
conforme suas respostas abrir possibilidades para enxergarmos com outros olhos ações
culturais recorrentemente abordadas pela bibliografia especializada como irrelevantes para
as ações políticas dos trabalhadores da cana.
Aqui vale ressaltar os estudos de Robert Slenes que indicaram os índices de alforrias
ocorridas no Brasil entre a primeira matrícula em 1872-73 e a segunda em 1886-87.
Segundo registrou o autor, em Pernambuco, 12,7% da população escrava consignada na
matrícula de 1872-73 havia sido libertada por ocasião da matrícula de 1886-87, um total de
11.874. Comparando com as outras províncias do nordeste, Bahia teve 11,2% da sua
população escrava liberta entre 183-1887, Rio Grande do Norte, 15,1%, Piauí, 14,9%
Paraíba, 6,9%, Alagoas, 9,8%, Sergipe, 9,9%. As províncias cafeicultoras alcançaram as
seguintes taxas: a província do Rio de Janeiro, 7,8%, a cidade do Rio de Janeiro, 36,1%,

393
Idem, op cit, p. 601-605.

248
Espírito Santo, 10,8%, Minas Gerais, 5,6%, São Paulo, 11,0%.394 Ao realizar um quadro
comparativo, verificamos que Pernambuco proporcionalmente alforriou uma porcentagem
significativa se comparada com a Bahia, a província do Rio de Janeiro e São Paulo. Como
coloca Chalhoub, no caso brasileiro, ―a obtenção da alforria também era difícil aos
escravos, porém não houve iniciativas do poder público para proibir os senhores de utilizar
a prerrogativa de libertar seus cativos quando lhes aprouvesse‖, talvez, por isso,
encontremos porcentagens significativas em algumas províncias brasileiras. Ainda ao
observar estes números, Sidney Chalhoub analisa que

(...) no Brasil, mais do que em outras sociedades escravistas das Américas, o


processo de libertação de escravos ocorria concomitantemente à continuidade da
própria instituição da escravidão, resultando na cifra significativa, já
mencionada, de que 73,75% da população negra do país era livre em 1872.
Nessas circunstâncias, a ênfase historiográfica tradicional nos modos e
oportunidades de obter alforria na sociedade brasileira do século XIX precisa ser
equilibrada com maior atenção à experiência da liberdade, em especial no que
tange aos mecanismos que a tornavam freqüentemente precária, arriscada, no
período. Além do problema da escravização ilegal, havia as diversas situações
intermediárias entre a escravidão e a liberdade que eram legalmente
reconhecidas e que ainda não foram muito estudadas quanto à experiência dos
sujeitos –refiro-me às alforrias condicionais em suas diversas formas e à
possibilidade de revogação de alforrias. Em suma, a fronteira relativamente
incerta entre escravidão e liberdade parecia condição estrutural da sociedade
brasileira oitocentista, constituindo-se nexo indispensável à reprodução das
relações de dependência pessoal e da ideologia paternalista, pertinente tanto a
trabalhadores escravos quanto livres.395

Como analisei no capítulo 1, os dados sobre as alforrias na comarca de Nazareth,


entre 1872 e 1876, revelam uma taxa de 23,4% alforrias/mil cativos. Calculando a taxa
anual, temos para Nazareth 32 alforrias por ano entre 1872 e 1876. Vale ressaltar, no
entanto, que das 143 alforrias registradas neste intervalo de tempo, 46 foram pelo Fundo de
Emancipação, e o restante, 97, por pecúlio ou ―concedida‖ pelo senhor. Refazendo os
cálculos, temos aproximadamente 11 alforrias/ano pelo Fundo e 22 alforrias/ano em
condições que envolveram necessariamente outras ―negociações‖ entre senhor e escravo,

394
SLENES, op. cit, 1976, p. 495.
395
CHALHOUB, Sidney. ―Precariedade estrutural: o problema da liberdade no Brasil escravista (século
XIX)‖. Texto mimeografado apresentado no Departamento de História aos alunos da Pós-graduação em
História Social , agosto de 2010.

249
alforrias que com cruzamentos de dados abordaremos com mais profundidade neste
capítulo.
Por hora, é interessante voltarmos às reflexões suscitadas por Sidney Chalhoub a
respeito da sociedade brasileira do Oitocentos que libertava, mas também continuava com a
estrutura escravista. Assim como ressaltou o autor, a porcentagem de negros livres
existentes em 1872 no Brasil era 73,75% da população negra do país. Ao observar essas
taxas na comarca de Nazareth, segundo dados do Censo do mesmo ano, verificamos que
51% da população de negros eram livres e 49% em condição escrava (cativos e livres
somavam 23% da população total). Em proporções maiores, verificamos que 92% dos
pardos de Nazareth eram livres, sendo apenas, 8% escravos. Em outras bases, 59% da
população total de Nazareth era composta de pardos e negros livres, 16% de cativos negros
e pardos e 28% de brancos e caboclos livres. Estamos pesquisando, portanto, uma
sociedade da zona da mata pernambucana que na década de 70 do XIX - mesmo período
que alforriava 32 escravos por ano - se configurava socialmente com metade de seus negros
como cativos e a outra metade em condição de livre e cerca de 65% da população total
composta por negros e pardos em condição escrava ou livre. Em outras palavras, a comarca
foco deste estudo tinha um perfil majoritariamente de pessoas classificadas como pardas e
negras, sendo sua maioria livre. Assim, diante dessa conjuntura social, é necessário apostar
nos caminhos investigativos que Chalhoub propõem a fim de compreendermos esta
sociedade escravista da zona da mata pernambucana, bem como as formas e os significados
da liberdade. Talvez, as peculiaridades desta localidade nos tragam evidências, como
coloca o autor, ―de que a fronteira relativamente incerta entre escravidão e liberdade
parecia condição estrutural da sociedade brasileira oitocentista, constituindo-se nexo
indispensável à reprodução das relações de dependência pessoal e da ideologia paternalista,
pertinente tanto a trabalhadores escravos quanto livres‖.

3.1 – As propriedades e escravarias na comarca de Nazareth

Na década de 60 do XX, o pesquisador Galloway, em seus estudos sobre a indústria


açucareira de Pernambuco e a propriedade escrava no século XIX, verificou, baseando-se
nos relatos de Koster e Tollenare, que o tamanho da força de trabalho variou grandemente

250
de plantação para plantação nas regiões pernambucanas. Na região sul, podia-se encontrar
propriedades com cerca de 100 escravos, já ao Norte de Recife (PE), as escravarias eram
pequenas ou com um pouco mais de 40 cativos.396 Segundo o autor, a partir de 1870, o uso
do trabalho escravo declinou nas zonas canavieiras de Pernambuco. Através de estatísticas
do censo de 1872, o autor destacou que existiam, por exemplo, muitos livres sendo
empregados nas propriedades rurais em Ipojuca, mata sul pernambucana. A maioria era
morador que trabalhava em troca de uma pequena parte da safra de açúcar, constituindo,
portanto, a nova classe de trabalhadores rurais que viria compor o cenário social canavieiro.
Vale ressaltar que muitos destes ―lavradores‖ também possuíam cerca de 6 a 10 escravos.
Reafirmando, desse modo, as considerações que Correia de Andrade e Peter Eisenberg
fazem com relação à mão de obra das zonas da mata de Pernambuco, Galloway acrescenta
à sua análise a questão de que nos engenhos da mata sul também se empregavam livres na
década de 70, fato que demonstramos anteriormente e que abre caminhos de reflexão sobre
a estrutura de trabalho na área canavieira, principalmente no que se refere à mata norte,
antes considerada pela bibliografia como área em que o trabalho nos engenhos era realizado
em sua maioria por livres. Talvez aqui o interessante fosse a investigação do perfil desses
trabalhadores livres, e, sobretudo, o levantamento do tamanho das propriedades. O fato de
numericamente conferirmos que a mata norte possuía menos escravos não define que a
produção açucareira fosse mantida pelo trabalhador livre. O fato da zona norte possuir
escravarias menores e também propriedades menores e verificarmos uma grande
fragmentação da posse de engenhos e cativos pode nos levar à conclusão de que a produção
açucareira era sim mantida por mãos escravas até fins da estrutura escravista. A análise dos
inventários trará mais informações em detalhes.
Nesse sentido, ao analisar os inventários da comarca de Nazareth entre 1867 e 1888,
verificamos, assim como Galloway, que existiam dois tipos de fragmentação: um com
relação à propriedade dos engenhos e outra com relação à propriedade dos escravos. Isto é,
a posse dos engenhos em sua maioria era dividida entre dois ou mais co-senhores ou co-
proprietários, e, ao mesmo tempo, a posse de escravos era extremamente variada, havia
senhores de um ou 40 escravos, como também existiam senhores que dividiam a escravaria

396
GALLOWAY, J. H. “The industry of Pernambuco during the Nineteenth Century‖. Annals of the
Association of American Geographers, vol. 58, no 2 (Jun, 1968), pp. 285-303.

251
do mesmo engenho. Era comum, portanto, escravos de um mesmo engenho ou de uma
mesma propriedade pertencerem a dois senhores diferentes. Segundo os inventários
analisados, notamos que este tipo de estrutura social de posse se manteve entre 1866 e
1888.
Observemos alguns exemplos. Em 1870, Ana Moreira Wanderlei, casada com Paulo
Cavalcanti Marinho Falcão, era proprietária em uma parte de terras na propriedade do
Engenho Terra Vermelha e obras, e uma parte de terra de todo Engenho Serraria e obras.
Possuía dois escravos: Ponciano, crioulo de 19 anos, valor de 339$110 e Leocárdio, angola,
de 62 anos, valor de 30$000.397 Ou o senhor Antonio Marolino Bandeira de Melo, falecido
em 1880, co-senhor do Engenho Boa Fé, casado com Maria Melitina Bandeira de Melo,
moradora do mesmo Engenho, moente e corrente, com casa de vivenda, ainda por acabar,
casa de engenho com 4 vasos de ferro, bicas, cocho de madeira, bacias de desafogo, casa de
fornalha com forno de cozinhar tijolo, casa de purgar com formas, furos e correntes, casa de
moradores, cercado fechado. Possuía os escravos Vicente, crioulo, de 40 anos, valor de
400$000, Mateus, de 13 anos, em 400$000 e Otaviano, pardo, 22 anos, 406$700. João
Barbosa da Silva, falecido em 1869, proprietário do Engenho Braúna e obras, casado com
Maria de Lucena Barbosa, possuía 3:905$000 contos de réis em lavouras de cana e um
plantel de 58 escravos avaliados entre 150$000 e 1:500$000 réis.398 Dez anos depois,
Alexandrina de Oliveira Souza, senhora do Engenho Pavão e co-senhora dos Engenhos
Morojó e Santa Ana, falecida em 1879, casada pela terceira vez, com o Capitão Antônio
José de Oliveira Melo, morador do Engenho Pavão, além de possuir o engenho Morojó
moente e corrente e obras, a senhora Alexandrina tinha parte das terras no todo do mesmo e
obras por herança paterna, parte do Engenho Santa Ana e a propriedade Monte Alegre, na
Paraíba. Era proprietária de 43 escravos, com valores entre 25$000 e 600$000 réis.399 Um
ano depois, a falecida Felícia Joaquina da Costa Azevedo, que era casada com o finado José

397
Inventário de Ana Moreira Wanderlei. 1870. Cartório de Nazaré. Museu do Homem do
Nordeste/Fundaj/Recife.
398
Inventário de João Barbosa da Silva. Caixa 97. Memorial da Justiça/Recife.
399
Inventário de Alexandrina de Oliveira Souza. 1879. Cartório de Nazaré. Museu do Homem do
Nordeste/Fundaj/Recife.

252
Antonio da Costa Azevedo, e era co-proprietária do Engenho Babilônia, deixou para seus
cinco herdeiros 12 escravos nos valores de 200$000 a 1:100$000 réis.400
Tendo como base uma amostra (90% do total) de 122 inventários, conseguimos
montar o seguinte quadro de divisão quanto ao tamanho das escravarias referentes à
comarca de Nazareth:

Quadro 19: Porcentagem de propriedades e quantidade de escravos na comarca de


Nazareth (1867-1888)

Tamanho da escravaria Número de Porcentagem do


proprietários total (%)
Pequena (1 a 20) 86 70,50
Média (21 a 50) 30 24,60
Grande (51 a 100) 3 2,45
Muito grande (101 para mais) 0 0
Sem identificação 3 2,45

Fonte: Inventários post-mortem do município de Nazaré da Mata. Memorial da Justiça/Recife. Notas


cartoriais do cartório de Nazaré. FUNDAJ/Recife.

Com referência aos 122 inventários de senhores ou senhoras de engenho datados no


período entre 1867 e 1888, verificamos que a grande parte dos proprietários possuía uma
escravaria de até 20 escravos: 70,50% eram pequenas posses; 24,60% médias posses e
2,45% grandes posses. Dentre os pequenos proprietários, 44,18% eram mulheres e 55,81%
homens. Entre os medianos, 50% eram mulheres e 50% eram homens. Nas grandes posses,
66,66% mulheres e 33,33% homens. Do total, 45,08% eram mulheres proprietárias e
55,45% eram homens; em números absolutos, verificamos 55 senhoras de escravos e 64
senhores (o restante está sem quantidade de escravos). A classificação vem para responder
a seguinte pergunta: quem possuía mais escravos e quais senhores libertavam mais?
Homens ou mulheres proprietários? E libertava mais homens cativos ou mulheres cativas?
A ideia aqui é justamente relacionar as liberdades com o perfil dos senhores e suas
propriedades uma vez que acredito que este perfil variado de posse de engenhos e escravos
influenciou, certamente, nas relações de trabalho como também nas conquistas de
liberdade. Aqui, é interessante retomar as discussões do capítulo 1 com referência às

400
Inventário de Felícia Joaquina da Costa Azevedo. 1881. Cartório de Nazaré. Museu do Homem do
Nordeste/Fundaj/Recife.

253
convicções e às necessidades da ―classe média‖ de proprietários que como bem analisou
Izabel Marson eram muito próximas das ideias defendidas por Henri Milet no final da
década de 70 do XIX, e nem sempre afinadas com as de Joaquim Nabuco.401
Na tentativa de avaliar o tamanho das escravarias e as circunstâncias políticas e
econômicas da segunda metade do Oitocentos, elaboramos o quadro das escravarias ao
longo do tempo.

Quadro 20- Tamanho das escravarias e quantidade de proprietários por período


(1867-1888)

Tamanho 1867 a 1870 1871 a 1874 1875 a 1878 1879 a 1883 1884 a 1888
de (No de (No de (No de (No de (No de
escravaria proprietários) proprietários) proprietários) proprietários) proprietários)

Pequena 18 19 17 21 11
Média 6 9 8 5 1
Grande 1 1 1 0 0
Pequena: 1 a 20 escravos; Média: 21 a 50 escravos; Grande: 51 a 100 escravos.
Fonte: Inventários post-mortem do município de Nazaré da Mata. Memorial da Justiça/Recife. Notas
cartoriais do cartório de Nazaré. FUNDAJ/Recife.

Durante o período de 1867 e 1888 as propriedades de escravos se mantiveram


numericamente em equilíbrio. Vale dizer que nos últimos quatro anos a diferença entre
médios e pequenos proprietários aumentou e estes últimos somaram uma quantidade 10
vezes maior que os primeiros.
O perfil predominantemente das escravarias pequenas e medianas na comarca de
Nazareth e sua distribuição parcialmente homogênea nos últimos anos da escravidão
brasileira ainda assim guardam certa heterogeneidade no que tange às quantidades de
escravos dentro das categorias pequenas ou médias. Escalonando como escravarias
pequenas aquelas com 1 a 20 escravos, ainda temos variações entre aqueles senhores que
tinham 1 ou 2 e aqueles que tinham 20. Do mesmo modo, também este perfil carrega
diferenças se pensarmos em uma proprietária (o) com 21 escravos e outra (o) com 49
escravos. Buscaremos, desse modo, ressaltar essas especificidades ao analisarmos as
alforrias. Por hora, vale observarmos o gráfico:

401
Discussões contidas no capítulo 1.

254
Gráfico 4 - Distribuição das escravarias entre 1867 e 1888 na comarca de Nazareth
(PE)

Escravos

100

80

60

40 Escravos

20

0
1865 1870 1875 1880 1885 1890
-20

Fonte: Inventários post-mortem do município de Nazaré da Mata. Memorial da Justiça/Recife. Notas


cartoriais do cartório de Nazaré. FUNDAJ/Recife.

A partir do gráfico acima, aferimos o quanto era heterogênea a distribuição de


propriedades de escravos nos engenhos da comarca. Salvo o período a partir de 1880 com
propriedades menores, nos outros anos predominaram pequenas e médias propriedades com
algumas grandes escravarias esparsas. Vale ressaltar, ainda, uma quantidade maior de
escravos nos anos de 1873 a 1876. Curiosamente, ao notar o nível de produção de açúcar
em Pernambuco entre 1872-1877, verificamos que houve uma queda brusca entre 1873-
1874 e 1875-1876. Segundo dados de David Denslow,402 temos a seguinte tabela para o
período entre 1872 e 1877:

402
DENSLOW, David Albert Jr. Sugar production in northeastern Brazil and Cuba, 1858-1908. Yale
University, Ph. D., 1974.

255
Quadro 21- Produção de açúcar em Pernambuco entre 1867 e 1888
Período Produção de açúcar Período Produção de açúcar
(toneladas) (toneladas)
1866-1867 42,240 1878-1879 87,120
1867-1868 74,690 1879-1880 141,900
1868-1869 70,730 1880-1881 183,700
1869-1870 54,450 1881-1882 167,200
1870-1871 45,540 1882-1883 101,310
1871-1872 84,920 1883-1884 177,100
1872-1873 107,140 1884-1885 137,500
1873-1874 88,770 1885-1886 107,030
1874-1875 92,180 1886-1887 162,800
1875-1876 59,840 1887-1888 205,700
1876-1877 99,660 1888-1889 141,900

Fonte: DENSLOW, David Albert Jr. ―Sugar production in northeastern Brazil and Cuba, 1858-1908‖.
Yale University, Ph. D., 1974.

Possivelmente o aumento de produção de 1872 e 1873 proporcionou um


aquecimento na compra de escravos - crescimento que observamos no gráfico 4 nos anos de
1874, 1875 e 1876 - uma vez que estamos tratando de escravarias advindas de engenhos de
açúcar da Zona da Mata Norte de Pernambuco. Por outro lado, em outros momentos a
produção de açúcar da Província aumentou enquanto a escravaria diminuiu, como é o caso,
por exemplo, do período a partir de 1880. Este crescimento certamente ocorreu em
concordância com o desenvolvimento tecnológico dos engenhos, da implementação das
usinas e fatores econômicos como o crescimento populacional da Europa, da América do
Norte e da elasticidade – preço de demanda –, isto é, os produtores não podiam elevar os
preços contendo a oferta. A estratégia era produzir tanto açúcar quanto fosse possível a
dado preço, para atrair novos mercados e assegurar os lucros do açúcar pernambucano que
eram superiores aos obtidos por qualquer outro uso da terra na Província. No mais, o acesso
ao mercado dos Estados Unidos em 1880 também estimulou o crescimento da
exportação.403 No entanto, é interessante ressaltar a fragilidade analítica em construir nexos,
a partir de dados da produção de açúcar pernambucano, entre escravaria e produção de

403
EISENBERG, 1977, p. 41.

256
açúcar de Pernambuco levando em conta a comarca de Nazareth, localidade de engenhos
banguês. Nesse sentido, sugiro duas constatações: uma que Nazareth produzia açúcar para
um consumo local, regional ou nacional utilizando mão de obra escrava e livre, sendo este
uso variável no decorrer dos anos 70 e 80; e a outra seria a suposição de que a produção de
açúcar na comarca de Nazareth não dependia da mão de obra escrava. Por outro lado,
sabemos que nesta os números absolutos de escravos se mantiveram altos até os últimos
anos da escravidão (ver capítulo 1) e que, sendo uma comarca, predominantemente de
médios e pequenos proprietários de escravos, provavelmente, escravos eram importantes
sim para a produção de açúcar, porém, esta não servia ao mercado externo e, portanto,
significava uma parcela pequena da produção total da Província, sendo as comarcas do sul
de Pernambuco responsáveis pela maior produção. Considerando estes fatores, podemos
sugerir que possuir escravos na comarca de Nazareth, da mata norte pernambucana, era sim
de suma importância econômica para os proprietários das tradicionais fábricas banguês que
produziam açúcar a um mercado local ou regional e não possuíam capital para investir em
melhores tecnologias e vislumbravam no escravo um capital de investimento. No mais,
socialmente, a relação senhor-escravo era fortemente enraizada na formação da classe dos
proprietários que precisavam da posse humana para legitimar seu prestígio, sua moral e sua
influência política, assim como utilizavam, para o mesmo fim, a prática de alforriar
escravos.
Apenas como última consideração referente ao valor em capital do escravo em
Nazareth, vale observar as variações dos preços dos cativos registrados nos Inventários
Post-Mortem entre 1867 e 1888:

257
Quadro 22 - Valores dos escravos registrados nos inventários Post-Mortem da
comarca de Nazareth entre 1867 e 1888

Ano Valor escravo Valor escravo Média do valor


mínimo máximo do escravo (réis)
(réis) (réis)
1867 40$000 1:400$000 720$000
1868 100$000 1:200$000 650$000
1869 50$000 1:400$000 725$000
1870 30$000 1:500$000 1:125$000
1871 100$000 1:200$000 650$000
1872 50$000 1:200$000 625$000
1873 50$000 1:100$000 575$000
1874 50$000 1:300$000 675$000
1875 30$000 1:200$000 615$000
1876 100$000 1:200$000 650$000
1877 200$000 1:000$000 600$000
1878 200$000 1:000$000 600$000
1879 100$000 1:200$000 600$000
1880 100$000 1:400$000 750$000
1881 100$000 1:100$000 600$000
1882 25$000 800$000 412$000
1884 50$000 600$000 325$000
1885 200$000 600$000 400$000
1887 50$000 800$000 425$000
1888 60$000 600$000 330$000
Fonte: Inventários post-mortem do município de Nazaré da Mata. Memorial da Justiça/Recife. Notas
cartoriais do cartório de Nazaré. FUNDAJ/Recife.

Segundo as informações obtidas nos inventários, observamos que entre 1867 e 1881
não ocorreram significativas mudanças nos maiores valores fixados aos escravos
pertencentes a um proprietário falecido. Já a partir de 1882 houve uma queda brusca.
Quanto aos menores valores, também as variações não foram radicais, salvo o fato de que
entre 1876 e 1881 os valores mínimos parecem ter aumentado. A média entre o valor
máximo e mínimo também se manteve entre 1867 e 1881, tendo uma queda a partir de
1882. Financeiramente, os preços dos escravos na comarca de Nazareth sempre se
mantiveram relativamente altos, todavia, ao mesmo tempo, existiam muitos escravos que
valiam muito pouco, valores que, também, permaneceram ao longo do tempo. Vale
ressaltar que entre estes escravos que eram avaliados por valores baixos, entre 30$000 a
200$000, estavam as crianças, mulheres ou homens entre 0 e 10 anos e escravos idosos
homens ou mulheres. Como verificamos no capítulo 1 e também junto às listas de matrícula
anexadas aos inventários do ano de 1872, a grande maioria dos cativos dos engenhos de

258
Nazareth era composta por crianças e mulheres, talvez não possamos, de fato, afirmar que
os escravos em valor constituíam uma grande fortuna para seu senhor, ainda mais porque
não existiam grandes escravarias nesta comarca. No entanto, ainda que pouco, o
investimento era real, e é nítido que, possivelmente, estes senhores, proprietários de
crianças cativas, em 1872, encaravam suas posses como um bom investimento futuro, isto
é, futuramente crianças se tornariam adultos.
Aqui, portanto, a compreensão do escravo sob a ótica do senhor se fazia em três
frentes: como capital/investimento do proprietário, mão de obra e como símbolo de status.
Estas frentes levam-nos a abrir também diversas possibilidades de interpretação sobre as
alforrias na comarca de Nazareth, possibilidades que buscaremos investigar acessando
diversos tipos de documentação e informações de diversas naturezas. Por último, e não
menos importante, vale ressaltar que se os senhores vislumbravam os escravos sob estas
três óticas (ou mais), estes também tinham que possuir três ou mais estratégias para
alcançar a liberdade, burlando, escamoteando e jogando com as necessidades senhoriais.

3.2 Ações de liberdade e cartas de alforria: caminhos para se libertar pelas cartas de
liberdade entre 1867 e 1887

A pesquisa nos processos de ações de liberdade, nos registros de notas cartoriais e


nos testamentos do município de Nazareth, datados entre 1867 e 1888, possibilitou um
levantamento qualitativo de alforrias ocorridas nesse período. Obviamente, não esgotamos
as liberdades ocorridas neste intervalo, vale comparar com os números de manumissões
indicadas nos relatórios e trabalhos estatísticos de 1878 para a comarca de Nazareth. Nestes
dados, notamos que entre 1872 e 1876 ocorreram 143 alforrias e um total de 1.884
alforriados na Província. Vale dizer que, em Nazareth, 46 liberdades foram pelo Fundo de
Emancipação e 97 através de pecúlio, perfil que nos interessa mais. A amostra que
alcançamos foi de 128 alforrias entre ações de liberdade, registros de cartas de liberdade do
cartório de Nazareth e liberdades registradas nos testamentos entre 1867 e 1887. Dentro
dessas 128, verificamos raros casos advindos do Fundo de Emancipação, fato que limita
nossa análise por um lado, mas nos faz concentrar em outras questões, como as conquistas
por pecúlio, por testamento e por ação de liberdade. Vale ressaltar que, no caso das notas
cartoriais e testamentos, trabalhamos com registros públicos de alforrias (ou não em alguns

259
testamentos). Desse modo, como coloca Slenes, é importante perceber que o registro da
liberdade faz-nos refletir que havia laços pessoais que levariam muitos senhores a
assegurarem a seus ex-escravos a posse do título legal de sua liberdade; e que a frequência
de alforrias em combinação com outros incentivos podia funcionar como um poderoso
instrumento de controle social; contudo, podia ter esse efeito só se os escravos ficassem
convencidos de que alforria representava a plena liberdade ―legal‖, e não um estado
jurídico intermediário e ambíguo, entre livre e cativo,404 fatores que já nos trazem um ponto
de partida analítico. Partimos do pressuposto de que as alforrias registradas em cartórios,
em sua maioria, com exceção das ações de liberdade, possuíam um significado público
perante a sociedade e diante das relações estabelecidas com seus escravos. No século XIX,
como coloca Slenes, a escravidão brasileira foi uma complexa e contraditória instituição
que permitiu uma larga variedade de comportamentos com respeito à manumissão. O autor
propõe analisar que tipo de ação representa essa norma, reflexões que iremos nos apoiar,
com a intenção de buscar as peculiaridades de uma comarca pernambucana, seus
trabalhadores escravos e livres.405
Dialogando com a pesquisa de Roberto Guedes sobre Porto Feliz (SP) entre 1798 –
1850, publicada no livro ―Egressos do Cativeiro‖ (2008), constatamos que o autor
encontrou entre 1806-1878 cerca de 130 cartas de alforria, que libertaram 147 cativos. No
exercício de comparação proposto pelo pesquisador, verificamos que em outros lugares
como em Salvador (BA), por exemplo, em 71 anos, entre 1779 – 1850, localizaram-se 6.
593 cartas alforrias.406 A conclusão de Guedes é que, em Porto Feliz, os papéis da liberdade
eram escassos em toda a primeira metade do século XIX, nunca ultrapassando a média de
2,4 por ano. Entre 1841 e 1850, a média foi de 3,4, a qual baixou para 1,1 e 2,1 nas décadas
de 1850 e 1860. Das 137 alforrias registradas em cartório, em 66 (48,1%), a iniciativa do

404
SLENES, R. W. ―O que Rui Barbosa não queimou: Novas Fontes para o Estudo da escravidão no século
XIX. In: Estudos Econômicos. 13(1):117-149, Jan./abr. 1983, p. 135.
405
Aqui vale ressaltar a interessante pesquisa de Lizandra Ferraz sobre a prática do registro realizada por
libertos nos anos de 1860 a 1871 na cidade de Campinas (SP). Segundo a autora, o não registro não
necessariamente indica que os libertos não o fizeram, mas sim, que podem ter feito em outra localidade.
Assim, a ausência da informação não nos indica o não feito, mas apenas o não registrado, talvez, ali na
localidade estudada. FERRAZ, Lizandra. ―Testamentos, alforrias e liberdade: Campinas século XIX.
Campinas, Monografia IFCH/UNICAMP, 2008, p. 43.
406
GUEDES, Roberto Guedes. ―Egressos do cativeiro. Trabalho, família, aliança e mobilidade social‖. (Porto
Feliz, São Paulo, c. 1798 – c. 1850). Rio de Janeiro, Maudad X: FAPERJ, 2008, p. 185. MATTOSO, K. A
propósito das cartas de alforrias. Bahia, (1779-1850). In: Anais de História. Assis: São Paulo, n. 4, 1872, p.
31-34.

260
registro coube ao escravo, em 49 (35,7%), aos senhores, e em 22 (16%), a terceiros. Mais
da metade não partiu dos escravos. Sendo a maioria dos pardos-negros naturais da vila, as
pessoas deviam saber quem era ou não alforriado.407 Como coloca o autor, tudo indica que
o reconhecimento social das alforrias engendrasse o sub-registro das cartas de liberdade,
contribuindo para a tão baixa frequência na vila, comparativamente a outras áreas, como a
cidade de São Paulo, por exemplo, sobretudo nos livros de notas. Destaca o autor que,
diferente desses lugares, Porto Feliz é rural. Em áreas urbanas – ainda que fossem cidades-
esconderijo –, lavrar as alforrias seria mais necessário por causa do relativo anonimato na
comunidade, principalmente para forros forasteiros.408
Para Guedes, as alforrias são do período anterior a 1860. Assim, poder-se-ia
argumentar que pressões legais e a perda de consenso da legitimidade da escravidão, a
partir dos anos 1860, intensificadas nas décadas de 1870 e 1880, comprometeriam a ideia
de acordo moral entre senhores e escravos como o de se chegar à alforria. O pesquisador
verificou que, para os anos pós-1860, havia 25 senhores de escravos, 18 entre 1861 e 1870,
e 7 entre 1871 e 1879. Porém, 11 em 18 senhores libertaram 33 escravos entre 1861 e 1870,
e 4 em 7 senhores alforriam 14 escravos a partir de 1871. Estes parcos números para o pós-
1860 não lhe permitiu, com este tipo de fonte, afirmar que houve uma mudança qualitativa
no processo de alforria, isto é, que deixou de ser concessão senhorial. Mais ainda,
significam que, dos 144 libertadores, 129 (89,6%) alforriaram antes de 1860, e que 448
(90,5%) escravos foram libertos até este ano. Além disso, Guedes não crê que a legislação
e/ou a interferência do Estado, por si sós, pudessem minar o poder moral dos senhores na
concessão da alforria. Seria supor a passividade senhorial. Apesar de ser importante, a
perda de legitimidade da escravidão, a partir dos anos de 1860, não era consenso, bem
como não foi um processo linear. 409
No nosso caso, o período abordado é a partir de 1869 até vésperas da abolição em
1887; analisaremos, portanto, um momento histórico de transformações na ordem
escravista partindo do governo imperial. Certamente, o fim do tráfico, a Lei do Ventre
Livre e a do Sexagenário, mais as campanhas abolicionistas do período, influenciaram na

407
Idem, op. cit. ,p. 188.
408
CHALHOUB, ―Visões da Liberdade. Uma História das últimas décadas da escravidão na Corte. São
Paulo, Cia das Letras, 1990, p. 212-248. Apud GUEDES, op cit, 2008, p. 188.
409
GUEDES, op cit, p. 189-192.

261
dinâmica do ato de alforriar e de conquistar a liberdade, e são, justamente, esses processos
históricos que pretendemos investigar na comarca de Nazareth.
Tendo como referência 128 cartas de liberdade encontradas em três fontes
documentais diferentes, dividimos em 3 grupos de análise: as ações de liberdade (19,54% -
25), as cartas registradas no cartório de Nazareth (57,82% - 74) e as liberdades registradas
nos testamentos (24,22% - 31). Esta divisão pressupôs as peculiaridades analíticas que cada
processo de liberdade requisita. As ações de liberdade envolvem questões de envolvimento
de escravos com livres (curadores, advogados), as ações na Justiça, portanto, os homens da
Justiça na dinâmica da escravidão na segunda metade do XIX. As cartas registradas em
cartório evidenciam as ações de caráter público e como todas as cartas foram registradas
por senhores, observaremos, sobretudo, as intenções destes diante do ato de alforriar, e no
sentido, contrário, as estratégias possíveis dos escravos para atingir sua liberdade, e, por
último, o grupo dos testadores que libertaram seus escravos. Vale dizer que nenhuma carta
de liberdade noticiada nos testamentos (apenas encontramos duas nos registros do cartório
advindas dos testamentos) foi registrada em cartório, fato que, no entanto, isoladamente,
não nos indica que a liberdade não foi alcançada.
Lizandra Ferraz em seus estudos sobre as alforrias testamentais em Campinas no
século XIX constatou, a partir do cruzamento das liberdades nos processos de herança (94
casos) com as 236 cartas de alforria registradas nos cartórios de Campinas para o período
de 1860 a 1871, que 26 (27,7%) destes alforriados formalizaram o registro de suas
liberdades em cartório. A autora reduziu esta repetição (26) daquele total de alforriados no
testamento/inventário (94) e acabou verificando que o número de libertos nestes processos
de herança que não registraram suas alforrias em cartório foi de 68 casos.410 Somando este
resultado com as 236 cartas registradas, Ferraz obteve o número total de 304 escravos
alforriados para o período, resultado que, segundo a autora, traz um aumento de 30% do
total obtido pelo pesquisador Eisenberg na análise das cartas de alforria lavradas em
cartórios deste município. Esta investigação nos indica que a análise dos testamentos tem só
o que colaborar para os estudos sobre alforrias. No mais, nossa amostra de manumissões
com registro e sem registro vem justamente permitir uma visão mais próxima do real, em

410
FERRAZ, Lizandra. Testamentos, alforrias e liberdade: Campinas século XIX. Campinas, Monografia
IFCH/UNICAMP, 2008, p. 40.

262
busca de uma reconstrução do perfil social da comarca de Nazareth e os possíveis campos
de conflito e negociação entre senhor e escravo.
É interessante ressaltar aqui o caso da alforria da preta Generoza, alforriada pelo
testamento do Coronel João Barbosa da Silva. Generoza, segundo o filho do Coronel João
Barbosa da Silva, Dagoberto Barbosa, foi libertada no auto do inventário, porém a viúva do
finado ―por despeito ao suplicante (Dagoberto) e rixa com a escrava, vendera, ou fizera
vendida, ainda que esta já estivesse livre por vontade de seu senhor‖. Segundo relatos de
Dagoberto, a inventariante chegou a tratá-la com demasiado rigor, mesmo ele vivendo sob
o mesmo teto. Generoza certamente continuaria a ser maltratada se continuasse na
escravidão. Para ele, a venda certamente era um simulacro, uma vez que o casal de seu pai
possuía uma fábrica superior a 50 escravos, assim, outros semoventes poderiam ser
vendidos para obter recursos sem que se precisasse vender Generoza que era ocupada nos
―misteres de dentro da casa‖ e tinha promessa de liberdade. O ato fictício da venda ainda se
confirmou nos relatos dos primos do suplicante que ao visitarem a inventariante lhe
aferiram que a referida escrava se achava em casa e em poder da esposa do finado.
No mais, Dagoberto estava por certo de que ao chegar ao conhecimento da viúva de
que ele estava insistindo em promover a liberdade da escrava, ela não só continuaria a tratar
Generoza com excessivo rigor como seria capaz de retirá-la da casa e mandá-la para a casa
do suposto comprador, o qual, morando na comarca de Goiana, dificultaria a apresentação
de Generoza à Justiça. Assim, o suplicante pedia para que Generoza fosse depositada ao
poder do Tenente Joaquim Nunes Machado na cidade e Nazareth mantendo-a em liberdade
até que de fato lhe fosse entregue o indispensável título.
Ao correr do processo, o Juiz de Órfãos pediu que fosse feita as seguintes perguntas
para Generoza a fim de confirmar ou não os fatos narrados por Dagoberto. O juiz queria
saber se: depois da morte do pai do suplicante, ela conheceu outro senhor ou mesmo se já
esteve algum dia fora da companhia da inventariante. Se depois que o suplicante lhe
prometeu liberdade tem sofrido castigos da inventariante. E se era casada e se seu marido
foi também vendido pela mesma inventariante. Infelizmente não tivemos acesso às
respostas de Generoza; felizmente, dia 11 de julho de 1870, o juiz concedeu a carta de
liberdade a ela.411

411
Inventário de João Barbosa da Silva. Caixa 97. Memorial da Justiça/Recife.

263
Os dizeres contidos nesse processo trazem-nos algumas questões sobre as liberdades
dos escravos das grandes escravarias. Algumas vezes, as relações pessoais impediam até
mesmo liberdades com concessão do senhor em testamento. Mas, nas palavras de
Dagoberto, era coerente que diante de tantos escravos, não fosse necessário vender uma
escrava que já estava com a liberdade prometida. O contrário era algo incoerente, para não
chamarmos de injusto ou imoral, afinal, além de realizar um ato ilegal de compra e venda
de escravos, a viúva estava impedindo a liberdade legal de uma escrava. Não sabemos as
intrigas, as relações pessoais que continha essa história. Contudo, as perguntas do juiz para
Generoza nos indicam o que era permitido ou não naquele momento. De fato, Generoza não
poderia ter sido vendida e ter conhecido outro senhor, nem mesmo ter sofrido ―excessos‖
por parte da viúva, e do mesmo modo, seu estado civil poderia auxiliá-la: se casada não
poderia ter sido separada de seu marido. Por este motivo, Pedro e Francisca, escravos
casados também pertencentes ao falecido Tenente Coronel João Barbosa da Silva, não
foram para seus respectivos donos ―aquinhados‖ no ato da partilha, porque, como marido e
mulher, não podiam ser separados. Assim, ambos permaneceram juntos e pertencentes a um
único senhor, no caso, Rogoberto Barbosa da Silva.412
Manolo Florentino e José Goes, analisando o grau de permanência das famílias
escravas nucleares (com ou sem filhos) no ato da partilha entre os herdeiros no período de
1790 a 1830, indicaram que era praticamente invariável o nível de permanência das
famílias que possuíam prole. Por outro lado, para as que eram formadas apenas pelos
cônjuges, a situação é distinta, revelando-se serem estas mais sensíveis à destruição nos
momentos em que o mercado mais exigia braços. Diante disso, os pesquisadores concluem
que, de fato, a presença de filhos se constituía em fator agregador das famílias escravas,
com a consaguinidade dando maior estabilidade aos grupos parentais. Ainda assim, para os
autores, é curioso notar não ter sido o peso da consanguinidade um fator determinante para
as formas de separação das poucas famílias nucleares com prole que conheceram o destino.
Segundo Manolo e Goés, poder-se-ia esperar, por exemplo, que mães e filhos fossem
preservados, com a separação dos pais. Contudo, observaram dois casos em que houve um
esfacelamento geral, com todos os membros do núcleo familiar sendo redistribuídos entre

412
Ofício ao senhor Juiz de Órfãos. Maio de 1870. Inventário de João Barbosa da Silva. Caixa 97. Memorial
da Justiça/Recife.

264
diferentes herdeiros, sem que qualquer laço de parentesco fosse preservado. Já em três
outros casos, somente as proles foram herdadas por distintos senhores, permanecendo os
três casais unidos nas mãos de novos proprietários.413
O que significava ser um escravo de uma grande escravaria? Quais eram as chances
de uma negociação ou a participação no sistema de estímulos e recompensas? Que
caminhos os escravos escolhiam para se protegerem? No inventário acima citado, notamos
que o escravo Pedro e sua esposa a escrava Francisca, em meio à ação de partilha,
conseguiram ao menos permanecerem juntos; nesse caso, o estado civil de casado serviu
como defesa ao desumano ato de partilha e de compra e venda, fator que em uma grande
escravaria poderia servir como arma de defesa e resistência amenizando sofrimentos.
Pedro, crioulo, 40 anos, avaliado em 600$000, e sua esposa Francisca, crioula, 35 anos,
avaliada em 300$000, possuíam um filho, Luis, crioulo de 8 anos de idade e avaliado em
500$000. Não tivemos acesso às informações se todos permaneceram juntos, mas sabemos
que trabalhavam na agricultura e que, ainda que não conseguissem a liberdade, parte do
núcleo familiar construído ainda podia viver unido cotidianamente no cativeiro.
Em uma escravaria grande, com mais de 50 escravos, ser um escravo ou escrava que
trabalhe dentro da casa podia ter suas vantagens, como ser conhecida e protegida, como
também desvantagens na medida em que a pessoa podia ser alvo de rixas, ciúmes e
disputas. No caso citado, Dagoberto, filho do finado, levou o caso à Justiça e, assim,
Generoza conseguiu alcançar de fato a sua liberdade. Dagoberto defendeu a escrava
demonstrando uma boa e íntima relação com ela, no entanto, o mesmo considerou os outros
como uma ―fábrica‖ de escravos de mais de 50 semoventes disponíveis para a venda,
desumanizando-os completamente. Segundo Slenes, mulheres com trabalho doméstico
tinham mais chances de receber manumissões sem pagamento. Para o autor, manumissões
condicionais, como presente, foram estendidas primeiramente aos escravos para quem o
dono e sua família foram parciais. Dessa forma, fatores econômicos não influenciaram
diretamente esses processos, mas certamente não se oporiam.414

413
FLORENTINO, Manolo & GOÉS, José Roberto. A Paz das senzalas. Famílias escravas e tráfico
Atlântico, Rio de Janeiro, c. 1790 – c. 1850. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1997, p. 119-120
414
SLENES, R. The demography and economics of brazilian slavery: 1850-1888. Dissertação de doutorado,
Stanford University, 1975, pp. 508-512.

265
Generoza parece ser um exemplo desse perfil citado por Slenes. Por outro lado,
Pedro, Francisca e Luis não entram nessas condições e, possivelmente, teriam que jogar
com outras armas para conseguir suas manumissões. Naquele momento, diante da morte do
seu senhor, a garantia desta família escrava foi manter-se unida com os seus, conquista que
as escravas Fellipa, mãe de Maria, de 4 anos, ou Fermínia, mãe de Maria, de 5 anos,
pertencentes à mesma escravaria, talvez não tenham alcançado no ato da partilha, ou se
sim, assim, torcermos.
Essas são algumas análises que podemos fazer a partir das relações entre alforrias e
tamanho das escravarias, assim como as formas de alforria e as relações com os senhores
dentro de um pequeno, médio ou grande plantel, reflexões que analisaremos com mais
detalhes realizando intersecções entre algumas liberdades identificadas e os inventários de
seus proprietários. Por hora, vale refletir: como a maioria das concessões de liberdade via
testamentos não foi registrada em cartório, será um indício de que muitas liberdades não se
consumiam de fato? O caso de Generoza nos indica que existiam redes de solidariedade
entre livres e escravos que levaram os casos de descumprimento de alforrias concedidas via
testamento à Justiça. Assim, o não registro no cartório das cartas de liberdade concedidas
nos testamentos pode nos indicar diversos motivos e consequências relativas aos processos
de alforrias: do seu descumprimento até indícios de uma realidade social na qual o registro
público da liberdade era dispensável. Ainda neste capítulo retomaremos algumas discussões
sobre este assunto.
Então, para a análise das manumissões na comarca de Nazareth, dividimos os três
grupos de alforrias - registradas em cartório, em testamentos e em ações de liberdade - nas
seguintes categorias: quanto às classificações de cor; quanto às formas de liberdade; quanto
à faixa etária; quanto ao sexo e quanto ao ano de liberdade. A respeito das formas de
liberdade, aderimos aos critérios de classificação que Lizandra Ferraz adotou em seu
trabalho. A pesquisadora trabalhou com as seguintes categorias: alforrias incondicionais,
condicionais e pagas. Na categoria incondicional entram, obviamente, as liberdades obtidas
livres de condições de serviços ou pagamento, mas entram também as liberdades descritas
em testamentos uma vez que estas, apesar de dependerem da morte do testamenteiro para se
consumirem de fato, se caso nenhuma mudança de opinião do testador em vida ocorresse,
após sua morte o escravo estaria livre incondicionalmente. Por outro lado, as promessas de

266
liberdade de fato vinculadas pelos testadores à morte de terceiros ou da esposa ou dos filhos
classificamos, assim como Ferraz, como condicionais. Quanto às alforrias pagas, são
aquelas que foram compradas pelos escravos, ou por herdeiros ou por uma terceira
pessoa.415
Observando o grupo A – alforrias registradas em cartórios – tem-se os seguintes
quadros:
Grupo A - Alforrias registradas em cartório na comarca de Nazareth entre 1867 e
1887

Quadro 23: Alforrias quanto à cor do escravo


Cor Percentual (%)
Cabras 1, 36 (1) Quadro 24: Alforrias quanto ao sexo do
Crioulo/preto 2,70 (2) escravo
Angola 4,05 (3) Sexo Percentual (%)

Pardo 8,10 (6) Masculino 39,19 (29)

Mulato 10,81 (8) Feminino 60,82 (45)

Preto 9,46 (7) Total 100,00 (74)

Crioulo 24,32 (18)


Africano 2,71 (2)
Mulatinho 5,40 (4)
Sem identificação 28,37 (21)
Total 100,00 (74)

Fontes: Notas Cartoriais de Nazaré da Mata, Museu do Açúcar -FUNDAJ/Recife.

Quando observamos a classificação do escravo alforriado como preto, verificamos


que este estava mais próximo do escravo africano e que a classificação do escravo como
crioulo ligava-o à nacionalidade brasileira. Assim, ao somarmos a porcentagem de angolas,
africanos e pretos libertos, temos 16,22% de escravos africanos ou descendentes diretos
alforriados com registros no cartório. Considero, por ligação com outros dados, que

415
FERRAZ, op. cit., 2008, p. 70-72.

267
crioulos seriam os escravos nascidos no Brasil e preto poderia ser ou não, mas com relação
mais forte com africanos. Ao analisar os processos de ação de liberdade, observei, por
exemplo, José Africano e Benedito Africano, idade mais de 60 anos, que foram
identificados como pretos e obtiveram sua carta de liberdade através de ação na Justiça com
pagamento de pecúlio em 1879. A possibilidade de estes terem nascido na África e vindo
ao Brasil com pouca idade é válida se tomarmos a data limite de tráfico 1831. Em
intersecção com as datas das alforrias, observamos que houve maior incidência de alforrias
de angolas no ano de 1867, de pretos a partir de 1874, e de africanos a partir de 1877. A
classificação de crioulo, por sua vez, ocorreu espalhada pelos anos, evidência, portanto, que
de fato as classificações preto, angola e africano tinham conotações mais próximas aos
escravos africanos do que brasileiros. Há ainda um terceiro caso que é a classificação
crioulo/preto. Nesta definição encontrei apenas dois casos referindo-se à cor da forra
Bernarda em 1871 e de Josefa em 1872. Com informações restritas não podemos arriscar
tantas conclusões, mas apenas indicar que os casos envolveram duas mulheres escravas, da
mesma faixa etária, respectivamente 40 e 35 anos; a primeira, no entanto, pagou por sua
liberdade e a segunda foi libertada pela vontade dos herdeiros do seu senhor. Sem indícios
mais concretos, vale acentuar que ao registrar a carta, os próprios responsáveis por tal
legalidade confundiam-se nas classificações. Este fato pode nos evidenciar que a
classificação da cor dos escravos forros e/ou libertos possuía um sentido social mais
significativo na relação entre senhor-escravo do que, apenas e estritamente, no ato dos
responsáveis realizarem os registros públicos. Porém, de qualquer forma, ambos produziam
significados na realidade como um todo e, por este motivo, devemos refletir sobre as
porcentagens das alforrias quanto à classificação da cor.
Comparando com os dados colhidos por Lígia Bellini e Schwartz para a Bahia, no
caso de Nazareth, em Pernambuco, não tivemos a confirmação da frase citada por Bellini
de que ―o Brasil é o inferno dos negros, purgatório dos brancos e paraíso dos mulatos‖. A
autora corrobora esta expressão apontando que no conjunto de 116 escravos cujas cartas
indicam relações de afeto e cumplicidade com seus senhores, ou o escravo procurando
simplesmente tirar proveito de sua proximidade com o proprietário, 64% eram mulatos,

268
21% crioulos, 15% africanos e apenas um caboclo.416 Os dados de Schwartz também
apontam proporções parecidas; entre 1684 e 1745, encontrou-se a proporção de 42% de
mulatos, 27% de crioulos e 31% de africanos.417 Como observamos, no caso da comarca
açucareira pernambucana, escravos crioulos e pretos eram mais alforriados do que mulatos
e pardos. No mais, apontamos anteriormente que, em 1872, 59% da população total de
Nazareth era composta de pardos e negros livres. Assim, surge uma questão: nesta
sociedade quem mais necessitava comprovar seu registro de livre, mulatos, pardos, pretos
ou crioulos? Como estamos trabalhando com dados cartoriais, necessariamente precisamos
pensar as representatividades legais da liberdade e suas relações com o perfil social local.
Numa sociedade em que a maioria é composta por negros e pardos livres, talvez os cativos
crioulos precisassem mais do registro oficial de sua liberdade do que pardos e mulatos. Ao
contrário, numa sociedade cheia de pardos e negros livres, os senhores também precisavam
legitimar publicamente suas posses humanas. E por que não também tornar público e oficial
a sua generosidade para com seus escravos? Ou, talvez, em outras palavras, tornar pública a
generosidade para também publicamente condicionar seus forros à gratidão, afinal de
contas, havia tantos negros e pardos livres. No mais, também vislumbramos a necessidade
de uma reflexão sobre escravidão e etnia.
O autor Eisenberg, em seus estudos sobre alforrias e a cor dos alforriados, destaca
que a população escrava foi maciçamente negra até 1874, enquanto que a população
alforriada foi maciçamente parda até 1850, e uma maioria parda continuou até 1874. A
proporção de pardos, no entanto, começa a cair entre os alforriados e também entre a
população livre de cor. Citando Schwartz, na época colonial, todo escravo, até o ameríndio
escravizado, foi chamado ―negro‖, e este vocábulo permaneceu como sinônimo de
escravizado. Assim, Eisenberg considera que os termos ―pardo‖, ―mulato‖ e outras palavras
indicando uma cor mais clara ou um fisiotipo mais parecido com o dos portugueses tendiam
a significar também uma condição legal de livre. ―Por estar livre, uma pessoa de cor
‗parecia‘ mais clara, da mesma forma que se diz no século XX que o dinheiro embranquece

416
BELLINI, Lígia. Por amor e por interesse: a relação senhor-escravo em cartas de alforria. In: REIS, João
Reis (org). Escravidão e invenção da liberdade. Estudos sobre o negro no Brasil. Rio de Janeiro, Ed.
Brasiliense, 1988, p. 82.
417
SCHWARTZ, Stuart. ―A manumissão dos escravos no Brasil Colonial: Bahia, 1684-1745‖. Anais de
História, VI, 1974, p. 85-87.

269
uma pessoa de cor‖.418 Essas classificações, no entanto, tenderam a se modificar a partir de
meados do século XIX. Já no censo de 1872 as classificações de cor passaram a se
desvincular na classificação legal e passaram a designar exclusivamente a cor do indivíduo.
Porém, não é de todo improvável que consideremos estas discussões referentes ao período
anterior a 1850 e questionemos a grande quantidade de pardos livres na comarca de
Nazareth em 1872, e a pouca quantidade entre os escravos e alforriados. No mais, a própria
classificação de crioulo, se até um certo momento tinha uma designação da naturalidade,
com o decorrer do tempo também se tornou um valor descritivo da cor.419
Com relação aos anos das alforrias, 41,90% ocorreram entre 1867 e 1871; 35,13%
entre 1872 e 1876; 13,51% entre 1877 e 1881 e 9,45% entre 1882 e 1887. Numa proporção
altíssima, a maioria das manumissões registradas aconteceu entre 1867 e 1876. Vale
ressaltar, no entanto, que as ações de liberdade ocorreram em maior quantidade justamente
a partir de 1876. Acredito que as mudanças na política, na legislação, e a perda na crença da
instituição escravista influenciaram este quadro cronológico. Ao mesmo tempo, aposto que
os escravos também buscaram outras formas de conquistar a liberdade, ou ainda, os
escravos, não contemplados pelas ―concessões‖ senhoriais, vislumbraram outros caminhos
para conquistarem sua carta de alforria, caminhos que não passariam por negociações
cotidianas com seus senhores, e sim, pela Justiça.
Quadro 25: Alforrias quanto à data
Quadro 26: Alforrias quanto à faixa
Ano Percentual (%)
etária
1867 a 1871 41,90 (31) Faixa Etária Percentual (%)
1872 a 1876 35,13 (26) De 0 a 12 anos 14,86 (11)
1877 a 1881 13,51 (10) De 13 a 21 8,10 (6)
1882 a 1887 9,45 (7) De 22 a 29 9,46 (7)
Total 100,00 (74) De 30 a 40 18,92 (14)
De 41 a 60 21,62 (16)
De 61 pra cima 0
Sem identificação 18, 92 (14)
Total 100,00 (74)

418
EISENBERG, P. Homens esquecidos. Escravos e trabalhadores livres no Brasil séculos XVIII e XIX.
Campinas, Ed. da Unicamp, 1989, p. 269-270.
419
Idem, op. cit., p. 273 e 274.

270
Fontes: Notas Cartoriais de Nazaré da Mata, Museu do Açúcar -FUNDAJ/Recife.

Num intervalo de cinco anos, alforriou-se mais entre 1867 e 1872. É o mesmo
intervalo em que também verificamos mais alforrias entre angolas e escravos entre 48 e 60
anos. A maioria das alforrias foi de mulheres, e muitos homens libertados eram crianças.
As liberdades ocorridas foram através do pecúlio e gratuitamente por bons serviços
prestados ou livre vontade do senhor. Desse modo, para este período, não constatamos
ações de liberdade as quais vieram acontecer massivamente a partir de 1877. Assim, talvez
não possamos usar as mesmas hipóteses utilizadas por Slenes para a Corte. Segundo o
autor, houve um crescimento de manumissões na Corte durante 1867 e 1868, aumento que
se deu, provavelmente, do resultado da boa vontade governamental de comprar a liberdade
dos escravos que serviram na guerra do Paraguai e para cidadãos que foram chamados nos
serviços militares, para escravos livres e recrutas como substitutos.420 Constatamos a
quantidade de 22,2% de liberdades incondicionais. Na grande maioria, ambos os casos
aconteceram com escravas maiores de 40 anos ou crianças até 1875. Não atingiam,
portanto, a grande mão de obra da produção açucareira ou escravos aptos ao serviço militar.
Com relação às outras formas de alforrias, as liberdades pagas chegaram a 31,08%
(23), as incondicionais alcançaram 63,51% (47) e as condicionais 2,70% (2). A soma das
alforrias incondicionais e pagas, em outras palavras, liberdades de forma não onerosa para
os escravos, constituiu mais de 94,00% das alforrias registradas. Este dado nos leva a
pensar nas reflexões de Robert Slenes de que a manumissão foi altamente paternalista, mas
também foi realizada com um sentindo econômico.421 Para Slenes, a liberdade
incondicional como um presente deveria prevalecer benefícios econômicos indiretos para o
dono por encorajar aqueles que continuavam escravos para trabalhar duramente, mais e
benevolentes. De outra maneira, manumissões que eram condicionais na complementação
de um período específico de serviço provavelmente induziriam maior cooperação e alta
produtividade dos escravos que foram beneficiados. As manumissões que requeriam um
pagamento dariam maior compensação para o proprietário. Para Slenes, os dois tipos, ainda
assim, demonstrariam o valor do comportamento submisso para os indivíduos que

420
SLENES, op. cit., 1875, p. 504.
421
SLENES, op. cit., 1875, p. 506.

271
continuavam escravos. Já a manumissão incondicional conseguida no retorno de um
imediato pagamento representaria a mais segura e provavelmente a mais atrativa forma de
compensação ao proprietário por sua ―generosidade‖; ao mesmo tempo, isto deveria ajudar
a encorajar hábitos de poupança, duro trabalho e complacência entre os membros da
comunidade escrava. Esta dependeria das oportunidades de acumular pecúlio aos escravos e
sobre o preço do escravo no mercado.422
Vale colocar que considero relevante a discussão feita pelo historiador E. P.
Thompson sobre paternalismo, como colocou Antonio Negro, aquele ―afunde e acode o
conceito de paternalismo‖.423 Para Negro, Thompson trata de um conceito impreciso, que
recai sobre fenômenos díspares, no tempo e no espaço. Seu uso, por causa disso, registra
destratada amplitude. Depois, sua própria perspectiva – estabelecida a partir de cima – não
comporta uma relação, mas implica o oposto: uma via de mão única, sugerindo
manipulação.424 Segundo, E. P. Thompson, o termo pouco nos diz sobre a ideologia e a
cultura, e é mesmo por demais ineficiente para distinguir entre modos de exploração, entre
trabalho escravo e o livre. Além disso, é uma descrição de relações sociais vistas de cima.
Isso não o invalida, mas devemos ter consciência de que uma descrição desse tipo pode ser
demasiado persuasiva. Se nos é apresentada apenas a primeira de nossas descrições, torna-
se excessivamente fácil passar desse quadro para a visão de uma ―sociedade de uma classe
só‖ 425:
Em suma, o paternalismo é um termo descritivo frouxo. Tem uma
especificidade histórica consideravelmente menor do que termos como
feudalismo ou capitalismo. Tende a apresentar um modelo da ordem social visto
de cima. Tem valor. Confunde o real e o ideal. Isso não significa que o termo
deva ser abandonado por ser totalmente inútil. Tem tanto ou tão pouco valor
quanto outros termos generalizantes – autoritário, democrático, igualitário – que,
em si e sem adições substanciais, não podem ser empregados para caracterizar
um sistema de relações sociais. (...) Mas o paternalismo pode ser, como em
certas sociedades escravocratas, um componente profundamente importante, não
só da ideologia, mas da real mediação institucional das relações sociais. 426

422
Idem, op. cit, p. 507.
423
NEGRO, Antonio Luigi. ―Paternalismo, populismo e história social.‖Artigo apresentado no X Encontro
Estadual de História da ANPUH/SC, Florianópolis, 2004, p. 16.
424
Idem, op. cit., p. 16.
425
THOMPSON, E. P. Costumes em comum: estudos sobre a cultura popular tradicional. São Paulo, Cia das
Letras, 2002, p. 29-30.
426
Idem, op. cit., p. 32.

272
A intenção aqui, portanto, é investigar as peculiaridades das relações paternalistas
na comarca de Nazareth. Observá-las, sobretudo, nas formas de alforrias concedidas,
conquistadas, julgadas, negociadas, pagas. No mais, se estamos pensando em refletir sobre
perfis sociais, torna-se indispensável analisar os proprietários e o tamanho de suas
escravarias, assim como de seus engenhos e terras.

Quadro 27: Formas de alforrias na comarca de Nazareth entre 1867 e 1887

Das formas de liberdade Porcentual (%) Porcentual (%) Total


Alforrias registradas de alforrias em Percentual (%)
em cartório Testamentos
Incondicional ou 63,51 (47) 62,07 (18) 67,00 (69)
por livre vontade
Condicionais 2, 70 (2) 6, 89 (2) 6,80 (7)
Pagas 31,08 (23) 24,13 (1 + 6*) 22,33 (23)
Total 100,00 (74) 100,00 (29) 100,00 (103)
Fontes: Notas Cartoriais de Nazaré da Mata, Museu do Açúcar - FUNDAJ/Recife. Série Inventários,
Memorial da Justiça/Recife.
* Metade das alforrias pagas.

Ainda quanto às formas de alforrias, entre 1867 e 1877, na comarca de Nazareth a


maior percentagem de alforrias se deu por pecúlio sem condição, ou como coloca Slenes,
manumissão incondicional com imediato pagamento. No entanto, mesmo a partir de 1877,
as liberdades incondicionais (13 casos) continuaram a acontecer, porém, as cartas de
liberdade advindas dos testamentos (20 casos) tiveram um número maior. Neste contexto
também aumentou, de forma significativa, as ocorrências das ações de liberdade: entre
1867 e 1876, verificamos 7 casos, entre 1877 e 1887, 14 processos de liberdade foram
julgados em Nazareth. Diante deste quadro de alforrias, temos fortes indícios de que os
escravos da comarca de Nazareth tinham formas permanentes de acumular um pecúlio e
alcançar a liberdade e, ao mesmo tempo, senhores cultivavam a cultura da ―generosidade‖,
isto é, relações paternalistas, no sentido thompsoniano do termo. A meu ver, como parte
desta cultura senhorial, existia um jogo tático por parte dos escravos, os quais diante de um
conjunto de circunstâncias locais agiam, conscientemente, em busca das suas cartas de
liberdade. Doravante, as transformações também no âmbito legislativo do pecúlio,

273
certamente, influenciaram os modos de uso e desuso desse recurso por parte dos
proprietários e escravos.
Segundo as reflexões de Sidney Chalhoub, entre 1867 e 1871, em volta do debate
sobre o projeto dos cativos de conseguirem pecúlio e utilizá-lo para obter alforria por
indenização de preço ao senhor, a comissão do Conselho de Estado em 1867 redigiu um
artigo que justificava o direito do escravo à liberdade por indenização de preço
independentemente da vontade do senhor. Os conselheiros recorriam, como de hábito, ao
direito natural; a escravidão era um fato social, condição legal, mas não legítima que devia,
portanto, cessar com a indenização do senhor:

As disposições do artigo pareciam desmanchar um dos principais pilares da


política de domínio senhorial; tiravam do senhor a prerrogativa exclusiva de
conceder alforria; ao contrário, garantiam ao escravo o direito de obtê-la,
conferindo-lhe inclusive meios de constituir e proteger o seu pecúlio recorrendo
à autoridade pública. Em suma, como não deixaram de notar os deputados, da
oposição, o artigo visava consagrar a intervenção do poder público nas relações
domésticas entre senhores e escravos. 427

Para o historiador, em 1871 mudam-se as palavras quanto ao pecúlio. Original era: o


escravo tem direito ao pecúlio proveniente de seu trabalho, economias, doações, legados e
heranças que lhe aconteçam. A comissão parlamentar emendou assim; é permitido ao
escravo a formação de um pecúlio com o que lhe provier de doações, legados e heranças, e
com o que, por consentimento do senhor, obtiver de seu trabalho e economias. ―Na
proposta original, o pecúlio é direito do escravo; na emendada, torna-se algo permitido,
concedido a ele. Mas concedido por iniciativa de quem?‖ 428.
A nova proposta visava dois tipos de pecúlio: num deles, proveniente de doações,
legados e heranças, o proprietário do escravo continua sem possibilidade de intervir, isto é,
não lhe é permitido barrar a chegada de tais cabedais a seus cativos. Esse tipo de pecúlio é,
de fato, garantido pelo poder público e independente da vontade senhorial. O outro meio
seria o que o cativo obtiver de seu trabalho e economias. A realização dessa possibilidade
passava a depender expressamente do consentimento do senhor. De qualquer forma:

427
CHALHOUB, op. cit., 2003, p. 183.
428
CHALHOUB, op. cit., 2003, p. 184.

274
(...) uma vez obtido o pecúlio o escravo continuava sempre com direito à
alforria., expressão constante em todas as versões de projeto cotejadas – isto é, a
da comissão parlamentar, e o próprio texto final da lei. Isso bastava para
caracterizar o fato de que os escravos passavam a ter meios institucionais de
obter a alforria à revelia da vontade senhorial. 429

Segundo Chalhoub, para Perdigão Malheiros, Visconde de Rio Branco e deputados


oposicionistas, o que estava em jogo era uma lógica de dominação de classe, um modo de
produzir subordinação social – de escravos, de mulheres, filhos e dependentes. Assim, a
proposta do governo, ao instituir a alforria forçada, destruía a força moral do senhor sobre o
escravo. Para eles, os negros deveriam transitar da escravidão para a liberdade em situação
de dependência.430
Essas discussões no calor da aprovação da Lei de 1871 e dos projetos de lei
revelam-nos o quanto é precioso verificar uma quantidade expressiva de cartas de liberdade
―concedidas‖ sem pecúlio, de forma incondicional, pelos senhores e senhoras entre 1867 e
1876, e o quanto isso cai, a partir de 1877. No entanto, no mesmo período, também
verificamos maior quantidade de alforrias pagas com pecúlio. Esse quadro muda a partir
principalmente de 1877, quando mais escravos foram à Justiça com seu pecúlio ou com
argumentos, como a idade avançada ou falta de matrícula, para conseguir sua liberdade.
Assim se, por um lado, constatamos sinais de que, na prática, essa lógica da
dominação senhorial era mantida e reafirmada na comarca de Nazareth até alguns anos
depois da aprovação da Lei de 1871, através das alforrias pagas ou por livre vontade, por
outro, ainda que se tentasse impor essa dominação, os escravos conquistaram, diariamente,
o pecúlio que possibilitou a sua liberdade fora ou na Justiça. Pelos processos de liberdade,
possivelmente, as mudanças no sistema judiciário, isto é, atitudes de juízes, por exemplo,
podem ter influenciado o aumento das taxas de alforrias por ação a partir de 1878, ou,
provavelmente, o fato do preço do escravo ter caído vertiginosamente a partir de 1880 no
Pernambuco açucareiro, possível causa também para o fato de que em 1880 foram raros os
casos de liberdade.
No entanto, antes das conquistas escravas pelas ações de liberdade, outros casos de
manumissões podem nos trazer indícios de uma realidade não revelada de resistência

429
CHALHOUB, op. cit., 2003, p. 186.
430
Idem, op. cit., pp. 187-190.

275
cotidiana. Assim foram as cartas de liberdade: da escrava Luzia, mulher de Martinho,
―concedida‖ por Henrique Marques Bacalhao, ao receber desta a quantia de 500$000, no
Engenho Alagoa Seca, em 1872; do escravo José, gentio de Angola, casado com Josefa,
escrava do mesmo senhor, ―concedido‖ por João Gonçalves da Silva, em vista de ter
recebido 150$000, em 1867, Engenho Alagoa do Ramo de Baixo; a do bebê escravo, José,
filho dos escravos Antônio e da escrava Simôa, ―concedida‖ por João de Andrade Lima,
pois recebeu de Antônio, o pai do pequeno, a quantia de 100$000; a do escravo José,
mulato, 25 anos, filho da escrava Francelina, ―concedida‖ por D. Josefa Maria da
Conceição, viúva do finado Felipe Coelho da Silveira, alforriado por 800$000 no Engenho
Camarazal em 1873; a do pequeno Francisco, filho dos escravos José e Josefa, ―concedida‖
por João de Andrade Lima senhor, pelo fato de ter recebido a quantia de 100$000 do pai do
mencionado escravinho, no Engenho Cumbe em 1870, entre outros e outros casos.431
Dentre estes casos citados, e não por acaso, há uma característica marcante em
todos: a presença da família escrava. Essa presença se faz tanto nos escritos expostos na
descrição do escravo ou escrava ao ser alforriado pela carta de liberdade e na conquista da
alforria através do pecúlio por indenização aos senhores e senhoras. Exemplos como no
Engenho Cumbe, no qual, no mesmo ano, duas crianças foram alforriadas por pagamento
de pecúlio pelos pais: José e Francisco, ambos com 5 meses. Podemos sugerir que a
organização das famílias escravas para comprarem a alforria de seus filhos era um projeto
familiar também compartilhado com seus companheiros em situação semelhante.
Novamente, verificamos em nossos dados o aparecimento da família cativa. Também
podemos sugerir, como ressalta Slenes, que pessoas que ocupavam altos cargos na divisão
hierárquica do trabalho tinham mais chances de conseguir a alforria, e que pessoas nascidas
na família ocupavam estes cargos mais cedo, assim como escravos nascidos no Brasil, mais
condições de mobilidade nas ocupações.432
Não sempre, no entanto, os esforços paternais ou maternais para libertarem seus
filhos obtiveram sucesso. Assim, foi o caso da liberta Izidora Maira da Conceição, que de
1872 a 1879 lutou na Justiça pela liberdade da filha Prisciliana. Em um extenso processo de
ação de liberdade, a autora Izidora tentou provar que o Dr. Antônio de Holanda Cavalcanti

431
Documentos do Museu do Açúcar. Cartório de Nazaré, 1867-1880. Vol. VIII e XIX. FUNDAJ/Recife.
432
SLENES, op. cit., 1975, pp.530-536.

276
da Rocha Wanderley, senhor do Engenho Terra Vermelha, não tivesse dado a matrícula
para a escrava, e como constava na Lei 2040 de 28/09/1871, o escravo não sendo
devidamente matriculado, seria considerado livre. Não conseguindo tal prova, a escrava
permaneceu como propriedade do senhor Wanderley. Vale ressaltar que suas irmãs
Joviniana e Christiana haviam sido libertadas pelo mesmo senhor em 1866:

Eu Bacharel Antonio de Holanda Cavalcanti da Rocha Wanderley declaro


que sou senhor e possuidor das duas mulatinhas Christiana com 4 anos pouco
mais ou menos e Josiana com 2 pouco mais ou menos, filhas ambas da minha
escrava Izidora, trazida por herança da minha finada mãe as cujas mulatinhas
usando eu do direito que me confere o meu domínio exclusivo hei por bem dar-
lhe pela presente carta, plena e inteira liberdade como se nascidas fossem de
ventre livre, com a única cláusula de viverem comigo enquanto me convir e elas
merecerem e assim passo pelo amor e dedicação que lhes tenho de minha livre e
expontânea vontade. 433

Moradoras todas do Engenho Terra Vermelha, e como libertas ainda servindo ao


senhor Wanderley, a luta de Izidora era por uma condição comum entre todas. Sabia que
Christiana e Joviniana, mesmo livre, ainda teriam que continuar a servir o concessor de sua
liberdade. Izidora, como mãe, em 1879, já livre, vivendo em Recife, ao buscar libertar
―totalmente‖ Presciliana seria, talvez, a forma de não se conformar com a ―pseudo
liberdade‖ das outras filhas. Pelo lado senhorial, observamos nas notas cartoriais, um
intenso comércio de compra e venda de escravos na comarca de Nazareth na década de 70,
principalmente de 1873 e 1876. No mercado, estando o preço do açúcar em alta, assim
também estava o valor do escravo. Portanto, possivelmente, isso pesava muito nas
concessões de liberdade, nas avaliações do preço desses escravos, e assim, nas chances
escravas de se conquistar a liberdade através do pecúlio.
Em maio de 1879, a escrava Edwirges começou um processo de liberdade contra o
seu senhor Manuel Pedro de Oliveira e Melo. Depois de uma série de apelações acionadas
tanto por João Batista e Melo, advogado do senhor, como por Manuel Macedo, por parte de
Edwirges, para chegarem a um veredicto sobre a avaliação da escrava que girou em torno,
sobretudo, das suas condições de trabalhar no campo sendo uma mulher com idade acima
de 50 anos, as justificativas foram inválidas. Considerada como apta ao trabalho e com
saúde, foi avaliada por 250$000, e não por 350$000, por conta da idade avançada. De
433
Carta de Liberdade, folha 14, Processo de Ação de Liberdade, caixa 230. Memorial da Justiça/Recife.

277
qualquer forma, seu depósito era apenas no valor de 50$000 o que não possibilitou a sua
liberdade.434
Tendo assim que retornar para o poder servil do seu senhor, o curador de Edwirges
requereu que o senhor Oliveira e Melo assinasse um Termo de Segurança, a fim de criar
alguma garantia jurídica de que a escrava, por ter buscado a liberdade, ao voltar para o
cativeiro, não sofresse castigos por parte de seu senhor. O fato, no entanto, é que o senhor
Oliveira e Melo, além de ficar furioso com a ação de liberdade em favor da sua escrava,
ainda teve que assinar o Termo de Segurança o qual foi parar sob juízo da polícia, uma vez
que foi considerada uma ação de processo policial, e não mais cível. Antes, porém, que a
escrava tivesse sido devolvida para seu senhor, estando sob guarda da polícia, respondeu a
um inquérito que nos revela que a mesma, logo após ter realizado depósito e dado entrada
na ação de liberdade, foi vendida pelo seu senhor para um comerciante.
Edwirges, sob os olhos da polícia, declarou ter mais de 40 anos, ser casada, de
serviço de campo, moradora do engenho Teitauduba e natural de Terra Nova da comarca de
Nazareth. Perguntado se seu marido era livre ou escravo e onde residia, respondeu que seu
marido era escravo, mas que, há um mês, teria sido alforriado por seu senhor Manoel Pedro
de Oliveira Mello. No entanto, seu marido ainda teria ficado em companhia do mesmo
senhor morando no Engenho Teitauduba. Segundo Edwirges, ela soube desse fato pelo
próprio senhor Oliveira Mello que lhe disse na ocasião da sua venda. Disse também que seu
marido estaria forro, e que ―marido forro não se importava com mulher cativa‖435.
Por fim, o chefe de polícia perguntou à escrava se ela possuía algum pecúlio. Esta
respondeu que cerca de dois anos atrás havia depositado no Juízo Municipal de Nazareth a
quantia de 50 mil réis como pecúlio para facilitar a sua liberdade pelo fundo de
emancipação do governo, e que foi justamente por esse motivo que seu senhor a vendera.
Assim, por esse motivo, há um mês Edwirges chegara à cidade de Recife e se acha em casa
de Luis de Tal que a comprara de seu senhor, e que, segundo ela, também gostaria de
vendê-la.
Seu novo dono estava presente também e respondeu chamar-se Luis Pereira de
Almeida, ser casado, comerciante, natural de Lagoa de Rhemo de Portugal e senhor da dita

434
Processo de Ação de Liberdade, caixa 229; Recurso Crime, caixa 151. Memorial da Justiça/Recife.
435
Idem.

278
escrava por haver comprado de José Patrício de Meira Cazé. Portando apenas um recibo de
compra, visto não poder ser lavrada nesse dia a escritura, nem pagar-se, pois sendo mais de
5 horas da tarde quando fechou o negócio, Luis não pôde documentar o ato porque seu
Cazé partiu logo cedo no dia seguinte. Perguntado a ele se o vendedor José Patrício
apresentou-lhe os competentes tributos ao seu legítimo domínio sobre a preta Edwirges,
Almeida respondeu que o vendedor apresentou-lhe algum tributo, porém, ele não pode
examinar no momento do negócio, contudo confiou na sua veracidade, pois na ocasião o
proprietário da Loja de Miudezas, Dionísio Guimarães, local onde aconteceu o negócio,
disse-lhe que era de confiança a negociação.436
Nesse conjunto de autos contidos no processo de liberdade e do recurso crime
acionado pelo advogado de Edwirges, fica uma imensa lacuna que não explica como
Edwirges foi parar nas mãos de outro proprietário. Há um espaço de dias entre o fim do
processo do Termo de Segurança e a liberação para o senhor pegar a escrava (26 de maio
de 1880) e a data do auto de perguntas que foi em novembro de 1880. Assim, não sabemos
se o senhor pegou a escrava e em seguida vendeu ela ao novo proprietário, ou se ela foi
vendida no meio do processo de forma ilegal, como bem nos sugerem as declarações do seu
novo proprietário. E, neste caso, ela pode ter sido vendida por outra pessoa ou pelo seu
próprio senhor.
Todo esse emaranhado, primeiro pela avaliação de Edwirges, depois por sua
segurança, traz-nos indícios de como era ferrenha a disputa judicial na comarca de Nazareth
pela liberdade e, na impossibilidade desta, pela integridade física de uma escrava ameaçada
por um senhor rigoroso. O quanto também, por outro lado, as relações entre senhor e
escrava podiam pesar dentro de um processo e na resolução dele. As palavras de Edwiges
trazem isso vivo. O fato da colocação de que seu antigo senhor, acusado de rigoroso e
obrigado a assinar um termo de segurança, teria se vingado pelo pecúlio por ela depositado,
e ter acentuado sua condição de escrava como diferente e repugnante para seu marido
alforriado pelo próprio senhor, nos sugere significações para a liberdade, significações
dadas para os escravos e significações que os senhores queriam incutir para os escravos. A
não liberdade, a impossibilidade de ser livre e, assim, se tornar igual ao seu marido, traria
que tipos de angústias e desamparo para Edwirges? Que sentido agora teria a liberdade para

436
Processo de Ação de Liberdade, fl 79, caixa 229. Memorial da Justiça/Recife.

279
ela? Um sentido de não identidade com seus semelhantes? Para seu senhor, a divisão
parecia ser óbvia e fatídica entre libertos e escravos. Ainda que fosse um discurso repleto
de maldade para violentar psicologicamente sua escrava que lutava por direito, ainda assim,
para Edwirges, esse fato poderia ser pior que uma negativa na Justiça pela liberdade.
Coincidentemente, em contato com outro processo de ação de liberdade na comarca
de Nazareth, constatamos que, antes de meados de 1881, Edwirges conseguira alcançar sua
liberdade pelo Fundo de Emancipação,437 conquista que nos trazem indícios de que a saga
de Edwirges encontrou caminhos para sua glória na Lei do Ventre Livre, a qual, em alguns
casos, deixava brechas para que o Estado interviesse na relação de dominação entre
escravos e senhores. Segundo o artigo 3º da Lei:

Serão anualmente libertados em cada província do Império tantos escravos


quantos corresponderem à quota anualmente disponível do fundo destinado para
a emancipação.
§ lº — O fundo de emancipação compõe-se de: 1. Da taxa de escravos. 2. Dos
impostos gerais sobre transmissão propriedade dos escravos. 3. Do produto de
seis loterias anuais, isento de impostos e da décima parte das que forem
concedidas de ora em diante para correrem na capital do Império. 4. Das multas
impostas em virtude desta lei. 5. Das quotas que sejam marcadas no Orçamento
Geral e nos provinciais e municipais. 6. De subscrições, doações e lega dos com
esse destino. 438

O regulamento de 13 de novembro de 1872 estabeleceu os critérios para a


classificação dos escravos a alforriar. ―Mandava priorizar famílias a indivíduos, cônjuges
que fossem escravos de diferentes senhores, os que tivessem filhos nascidos livres em
virtude da lei, e assim por diante‖.439 Ainda para facilitar os procedimentos de classificação
dos escravos que podiam ser alforriados pelo Fundo de Emancipação, em 20 de setembro
de 1876, o governo determinou mudanças no regulamento da lei em decreto, a partir do
qual ―a alforria passava a compreender apenas aqueles escravos que poderiam ser libertados
com a quota disponível em seu município de residência. Adotava-se maior flexibilidade

437
Ação de liberdade de Teodósio. Nazaré Caixa 230. Memorial da Justiça/Recife.
438
Secretaria de Estado de Negócios da Agricultura, Comércio e Obras Públicas, Palácio do Rio de Janeiro,
aos 28 de setembro de 1871, 50º da Independência e do Império – Princesa Imperial Regente – Teodoro
Machado Freire Pereira da Silva.
439
Decreto no 5135 – de 13 de novembro de 1872 e Regulamento a que se refere o Decreto nº 5135 de 13 de
novembro de 1872, artigo 27, em Coleção das leis do império do Brasil. Apud. CHALHOUB, S. Machado de
Assis, historiador.São Paulo, Cia das Letras, 2003, p. 227 nota.150.

280
quanto às datas de reuniões das juntas classificadoras e mudavam-se os procedimentos nos
casos de letígio quanto ao arbitramento do valor da indenização‖.440
Segundo Chalhoub, apesar da simplificação dos procedimentos, continuaram os
problemas na aplicação do fundo. ―Autoridades locais e proprietários uniam-se às vezes
para fraudar o processo‖.441 No caso de Edwirges, como não sabemos nas mãos de qual
senhor estava de fato, e como não tivemos acesso ao processo de liberdade pelo Fundo, não
podemos checar o que ocorreu. No entanto, sabemos que os interessados pela emancipação
tinham um mês para apresentar recursos ao juiz de órfãos e os ―competentes‖ para fazer a
reclamação deveria ser o dono do escravo ou o próprio escravo, este representado por um
curador.442 Diante disso, estando Edwirges já com um curador tratando de sua liberdade e
de seu termo de segurança, e sendo ela uma escrava que estava separada de seu cônjuge e
possuía família, possivelmente, ela própria e seu curador tenham entrado com a reclamação
pela emancipação. Se isso de fato ocorreu, possivelmente, Edwirges estava sob domínio de
Luis Pereira de Almeida para quem possivelmente foi vendida. Outra hipótese é que a
escrava tivesse voltado para seu antigo senhor, Manuel Pedro de Oliveira e Melo, o mesmo
de seu marido, e este tenha através de suas influências com autoridades locais, conseguido a
emancipação de Edwirges, que já possuía uma idade avançada. No entanto, essa hipótese
não nos parece tão viável, afinal, como analisamos no processo, Manuel Melo era um
senhor rigoroso, castigou psicologicamente Edwirges e, provavelmente, não ia querer ver
ela liberta ao lado de seu marido já forro, ainda que o valor de indenização pelo Fundo
fosse mais interessante que o valor da escrava no mercado. De qualquer forma, como
Edwirges conseguiu a liberdade pelo Fundo antes de julho de 1881 e, alguns meses antes,
estava na Justiça brigando com seu senhor pela alforria, a conquista para ela se fez de fato.
Os detalhes dos caminhos que levaram até aí ficam no mistério, mas, por outro lado,
claramente podemos constatar que a escrava se utilizou de diversas formas das garantias
que a Lei poderia dar ao escravo no final da década de 70.
Em todos os casos acima, as filhas de Izidora, assim como o marido de Edwirges,
mesmo sob a condição de livres, continuaram sob o domínio senhorial. Os escravos que
conseguiram ou tentaram a liberdade para seus filhos (fosse condicional ou não) ou

440
CHALHOUB, S. Machado de Assis, historiador.São Paulo, Cia das Letras, 2003, p. 230.
441
Idem, op. cit., p. 231.
442
Idem, op. cit., p. 231.

281
presenciaram a liberdade de seus esposos ainda continuaram escravos ou sob o domínio
senhorial. Em outras palavras, na prática, vivenciaram a experiência da liberdade como
uma forma de incentivo para continuar seu trabalho, manter sua fidelidade ao senhor, e
continuar sonhando com a liberdade de fato. Izidora, no entanto, fugiu à regra, morava em
Recife e, assim, vivia em outro sistema de trabalho, que não era a fazenda, o engenho, a
casa grande.
Ao mesmo tempo, a dinâmica dos acontecimentos na Justiça e extrajudiciais revela-
nos que além do fator macro econômico, isto é, a alta e a baixa do preço do escravo, a
negativa de uma alforria ou a venda de um escravo tem suas causas nas próprias relações
entre senhor e escravo. E que se a legislação auxiliava o escravo, ao mesmo tempo, quem e
o que, realmente, abriam as portas para a liberdade eram o próprio cativo e suas convicções
de ser livre, convicções certamente criadas e construídas entre os seus. Portanto, estabelecer
um cruzamento analítico entre ações de liberdade, alforrias e as ações de membros de uma
família escrava na busca pelo fim do cativeiro parece ser um exercício analítico eficiente
para pensarmos nas possibilidades da existência de uma cultura de resistência dos escravos.
A própria busca por uma união familiar simboliza a vontade por uma construção comum
entre os seus.
Como coloca Joseli Mendonça se referindo às grandes escravarias, afinal, o que
representariam algumas dezenas de escravos libertos por meio de ações judiciais, dentre os
milhares que permaneciam em cativeiro? ―Estaríamos, provavelmente, enredados na
questão da relação entre atitudes escravas e o abalo da estrutura do sistema escravista. E
possivelmente seríamos compelidos a concluir sobre a inocuidade de tais atitudes.‖ 443
Para a autora, a escravidão pode não ter sido vivida pelos escravos como uma
estrutura. A busca da liberdade pode ter sido vivida pelos escravos como uma luta pessoal e
uma experiência individual. Queriam ser livres, mas não era a redenção geral dos cativos
que pretendiam quando, de posse de suas economias, dirigiam-se até os tribunais para
brigar pela liberdade. Eram em si próprios que pensavam. Mas, possivelmente, pensando
em si próprios, pensavam também em outros próximos de si. Entretanto,

(...) ainda que objetivando negar somente sua própria escravidão, esses escravos
não fizeram apenas isso. Ao manipularem os elementos inscritos na lei, ao

443
MENDONÇA, op. cit., 1999, p. 263.

282
utilizarem-se dos favorecimentos que a lei lhes oferecia, tornavam essa
estratégia de liberdade uma possibilidade concreta no universo das relações
sociais da escravidão. Até porque a escravidão e a liberdade eram experiências
também compartilhadas. 444

De pleno acordo com Joseli Mendonça e dando um passo adiante e para perto de
nosso objeto, primeiramente ressalto o quadro de posse dos senhores. Como percebemos,
através dos inventários post-mortem, a quantidade de grandes escravarias na economia da
comarca de Nazareth era pequena. Desse modo, se diante de uma pequena quantidade de
escravos, dois conseguiam a liberdade, parece ser mais contagiante do que dentro de uma
imensa escravaria. Em segundo, também verificamos que a quantidade de livres nos
engenhos só tendeu a aumentar no fim dos anos 70 e início dos 80, portanto, se no mundo
do trabalho rural, a maioria ainda era escrava, mas os livres estavam a crescer, é bem
possível que, como coloca Sidney Chalhoub, ―as questões políticas minúsculas‖ dos
escravos em busca da liberdade não só alcançavam os outros escravos, mas também os
livres. Afinal de contas agir pela liberdade demandava um caminho projetado muitas vezes
pela família, ou, arriscar ficar longe de seu companheiro ou ser castigado para tentar ser
livre, ações humanas que diziam sobre direitos, que sinalizavam coragem por condições
justas e felizes. Os libertos, que ainda continuavam a conviver com os brancos livres e os
escravos no cotidiano de trabalho no engenho ou no campo, sinalizavam também para os
outros que a concessão dos senhores nem sempre eram suficientes, pois ser livre tinha um
significado mais profundo. Portanto, a construção de uma ―cultura de resistência‖ na zona
da mata de Pernambuco talvez tenha se edificado para além da condição de liberdade
jurídica.
Será que olhar para o outro lado da rua, ou melhor, para o que acontecia nas várzeas
das fazendas, ou nas ruas das cidades não nos diria algo a mais sobre o que estamos
acostumados a escutar? Acredito que além das ações humanas de conquistas na Justiça e
nos espaços do trabalho, estas, por si só, não trazem uma visão integral sobre a história dos
trabalhadores da cana de Pernambuco. É desse modo inevitável incluir as informações do
presente nesta interpretação. Hoje, ao andarmos nas cidades de Vicência, Nazaré da Mata,
Tracunhaém, Aliança e outras da Zona da Mata Norte, percebemos que ainda estão vivos

444
MENDONÇA, op. cit., 1999, p. 264.

283
por ali os sinais de um passado de conflitos, de controle, de hegemonia, de contra ação, de
lutas e conquistas, sinais, viventes e sobreviventes que revelam um costume próprio e
apropriado pela classe dos trabalhadores rurais pernambucanos à luz do processo histórico.
Antes, todavia, de nos embrearmos pelas culturas que cercam a história destes
trabalhadores, vale, novamente, voltarmos às manumissões, e refletirmos sobre a
―bondade‖ senhorial no berço da morte. O que nos dizem os testamentos dos senhores da
comarca de Nazareth? Em condições, muitas vezes moribundas dos proprietários, os
escravos alcançavam sua liberdade, e como acima verificamos, em sua maioria, de forma
incondicional, isto é, apenas sob a condição do tempo de vida de seus senhores. Vamos a
eles.

3.3) E próximo à minha morte eu deixo livre meus escravos: as cartas de liberdade
por testamentos

Roberto Guedes em seus estudos também abordou as alforrias registradas em


testamentos. No capítulo das alforrias, o autor analisa o perfil dos testadores e dos escravos
alforriados, as condições senhoriais para dar liberdade e o cumprimento, ou não, das
últimas vontades expressas em testamentos em Porto Feliz (SP). Esta perspectiva analítica
de alforrias vem ampliar os estudos sobre a temática, diferindo das pesquisas sobre alforria,
que, em geral, mediante registros cartoriais, ressaltam os condicionamentos sociais,
econômicos e demográficos das manumissões, suas modalidades (onerosa ou gratuita) e o
perfil demográfico dos ex-cativos.445 Na sua perspectiva, no que tange à alforria, oscilar a
interpretação entre conquista-resistência, por um lado, e engodo-contradição, por outro, é
permanecer no terreno do pensamento dicotômico. Para ele, é difícil entender esta simbiose
em que alforria é ao mesmo tempo engodo senhorial e conquista escrava. Para ele,
implicaria afirmar que os escravos conquistaram um engodo e caíram na armadilha
senhorial, contribuindo para a manutenção e a estabilidade do sistema.446 Na visão do autor,
a estabilidade, que não elimina tensões, se dá pela troca equitativa entre os escravos e os

445
GUEDES, op cit, 2008, p. 182. Guedes se refere aos trabalhos como Mattoso, 1972, p. 23-52; Schwartz,
1974, p. 203-635; Eisenberg, 1989; Gonçalvez, 1999; Florentino, 2002, p. 9-40, 2005, p. 331 – 336, Sampaio,
2005, p. 287 – 329, Faria, 2005.
446
GUEDES, op. cit., 2008, p. 182.

284
senhores, expressa na alforria. Para afirmar isso, ele considera que a alforria é, basicamente,
uma concessão senhorial.

(...) com certeza foi estimulada pela pressão dos escravos, mas não se trata de
resistência dentro do sistema. No limite, é um acordo desigual, em que uma
parte dá e a outra aceita. É concessão predominantemente. É assim porque a
relação vertical entre os escravos e os senhores era, é óbvio, calcada na
desigualdade, na assimetria, mas sem deixar de ser uma relação de troca,
assentada na reciprocidade447

Guedes defende a ideia de que, para quem estava no cativeiro, aceitar uma
concessão de forma submissa é um primeiro passo da reinserção social pela via legal. Se os
forros não ascendem a instituições de socialmente brancos, pouco importa. Numa sociedade
onde a escravidão era a norma, e a desigualdade era o princípio básico, a alforria era o
início da diferenciação social para os escravos. Ainda que nem sempre a desejassem, a
ascensão social de escravos forros deve ser entendida, prioritariamente, no interior do grupo
social de referência. Por isso, ele considera a aceitação da concessão uma atitude submissa
intencional, uma maneira de ascender na hierarquia social. Nada guardava de engodo ou
contradição. Guedes concorda com os autores, como Robert Slenes, que afirma que a
alforria é um código de dominação paternalista que reforçava o poder senhorial. No
entanto, era também fruto de uma negociação. Podia ser complementar. Neste sentido, o
consenso entre uma parte que dá e outra que recebe pressupõe um acordo moral entre
senhores e escravos, forjado no cativeiro.448
Ao mesmo tempo, vale refletir como Slenes destacou em suas pesquisas com
testamentos e alforrias em Sorocaba (SP) entre 1844-46 e 1876-87. Segundo o autor, se as
promessas de premiar escravos de forma graduada, conforme seus comportamentos, fossem
confinadas aos testamentos, implementando-se, portanto, apenas depois da morte do
senhor, elas não teriam grande significância para a maioria dos senhores e muito menos
para os escravos. Para Slenes, baseando-se na baixa quantidade de escravos que recebiam
benefícios em testamentos em Sorocaba (SP):

447
Idem, op. cit., 2008, p. 183-184.
448
Idem, op. cit, 2008, p. 184-185.

285
Uma disposição em testamento, entretanto, é apenas uma promessa que, ao
ser formalizada em documento legal, permite ao senhor impor a vontade depois
da morte. Dificilmente um senhor disposto a fazer tal tipo de promessa não faria
outras, informais (explícitas ou implícitas), para serem implementadas durante
sua vida. Por outro lado, as práticas contrastantes de incluir, ou não, promessas
de recompensas futuras nos testamentos parecem depender principalmente das
circunstâncias em que se encontram os senhores: especificamente, se têm ou não
herdeiros ‗forçados‘. Isto é, essas práticas não refletiriam opções diferenciadas,
em princípio, a favor ou contra um sistema de incentivos.449

Para Slenes, portanto, tudo indica que aqueles senhores formalizam promessas nos
testamentos, fazendo finas discriminações entre seus cativos, traduzem uma política de
domínio bastante generalizada entre seus pares. E completa: ―as vontades finais,
formalizadas, de alguns, permitem entrever as disposições cotidianas e informais de uma
classe.‖450 Acredito, portanto, que estas considerações, expostas tanto por Guedes como por
Slenes, ajudam-nos a pensar e rediscutir o universo de alforrias testamentais que a comarca
de Nazareth possa nos fornecer. Em outras palavras, acredito que a lógica da negociação é
parte constituinte das relações entre senhor e escravo. No caso dos testamentos, os detalhes
sobre o perfil dos libertadores e dos libertados podem no dizer sobre estes tipos de sistemas
de incentivos, bem como as disposições cotidianas e informais de uma classe, ou de mais
de uma classe.
Entre 1869 e 1887, encontramos 29 testamentos anexados ou não aos inventários
que alforriaram 29 escravos. Destes 29 testadores, 17 não libertaram seus escravos, o
restante (12), libertaram 29 cativos. Entre estes cativos libertados por seus senhores nos
testamentos, como mostramos no quadro 27, 62,07% (18) foram libertos de forma
incondicional (com a morte do senhor), 6,89% (2) foram libertos de forma condicional, isto
é, pela morte do cônjuge ou herdeiros e 24,13% foram alforrias pagas ou pelo senhor, ou
por herdeiros (7), sendo que, em três casos, o senhor pagou apenas metade da liberdade dos
escravos.
Quanto ao perfil dos testadores, dos 17 que não alforriaram, 10 eram mulheres e 7
homens, dos 12 que libertaram, 7 eram mulheres e 5 homens. No total, registramos 12
testadores e 17 testadoras. Como encontramos mais testamentos escritos por mulheres,

449
SLENES, Robert &VOGT, Carlos & FRY, Peter. Histórias do cafundó. In: VOGT, Carlos & FRY, Peter.
―Cafundó: a África no Brasil: linguagem e sociedade. São Paulo, Cia das Letras, 1996, p. 89.
450
Idem, op. cit., p. 89.

286
consequentemente, também verificamos uma porcentagem maior de mulheres nos dois
casos. Quanto ao perfil dos libertos, observemos os quadros abaixo:

Grupo B - Alforrias nos testamentos da comarca de Nazareth entre 1867 e 1887

Quadro 28: Alforrias quanto à cor do escravo

Cor Percentual (%)


Pardo 7,40 ( 2)
Preto 11, 11 (3)
Crioulo 3,70 (1)
Sem identificação 66, 67 (18)
Total 100,00 (27)

Quadro 29: Alforrias quanto ao sexo do escravo

Sexo Percentual (%)


Masculino 40, 74 (11)
Feminino 59,26 (16)
Total 100,00 (27)

Quadro 30: Alforrias quanto à data

Do ano da liberdade Percentual (%)


1867 a 1871 18,52 (5)
1872 a 1876 14,82 (4)
1877 a 1881 51,85 (14)
1882 a 1887 18,52 (5)
Total 100,00 (27)

287
Quadro 31: Alforrias quanto à faixa etária

Faixa Etária Percentual (%)


De 0 a 12 anos 3,70 (1)
De 13 a 21 0
De 22 a 29 11,11 (3)
De 30 a 40 11,11 (3)
De 41 a 60 7,40 (2)
De 61 pra cima 0
Sem identificação 66,67 (18)
Total 100,00 (27)

Fontes: Testamentos da cidade de Nazareth. Memorial da Justiça – Recife (PE).

Mais mulheres foram alforriadas pelos testamentos, perfil que condiz em parte com
os estudos de Lizandra Ferraz, a qual verificou que entre 1836 e 1845 os testadores
alforriaram 46,5% de homens e 53,5% de mulheres, mas que, curiosamente, entre 1860 e
1871, período que estamos abordando, em Campinas (SP) alforriaram mais escravos
homens, 61,7% e menos mulheres, 38,3%451. Em Porto Feliz (SP), Guedes também
verificou o contrário do que constatamos na comarca de Nazareth (PE). Neste caso, os
testadores libertaram 53,1% escravos homens e 46,9% mulheres entre 1788 e 1878. Vale
ressaltar que o autor encontrou apenas 14 alforrias de escravos a partir de 1871 (entre estes
4 eram crianças),452 ao contrário desta pesquisa que verificou um aumento das alforrias via
testamento a partir de 1877.
Analisando com mais detalhes os perfis dos testadores, verificamos que dos 12 que
alforriaram seus escravos, 66,67% eram casados e possuíam herdeiros. No entanto, 88,23%
dos que não libertaram possuíam herdeiros. Em outra perspectiva, entre os testadores que
libertaram escravos com ou sem herdeiros, existia uma diferença a mais de 33,30% dos

451
FERRAZ, op cit, 2008, p. 63 e 64.
452
GUEDES, op. cit. 2008, p. 192-197.

288
senhores que libertaram e possuíam herdeiros sobre os quais não possuíam herdeiros. Entre
os testadores que não alforriaram com ou sem herdeiros, constatamos a diferença a mais de
76,47% dos senhores que não libertaram e possuíam herdeiros sobre os que não possuíam
herdeiros. Isto nos leva à reflexão de que, possivelmente, a existência de herdeiros levou os
testadores (as) a libertarem menos seus cativos. No mais, houve alguns casos em que
testadores com dinheiro, além de libertaram alguns de seus escravos, também deixaram
herança em dinheiro para os escravos.
Robert Slenes em seus estudos com testamentos no município de Sorocaba (SP)
constatou que muitos senhores deixavam bens imóveis para ex-escravos normalmente
porque não tinham para quem deixar. O autor coloca que a concessão de alforria tende a ser
mais generosa entre os testadores sem cônjuge do que entre os que têm esses herdeiros.
Aqueles, quando conferem a liberdade, beneficiam mais escravos, em média, do que estes.
Os testadores sem cônjuge e filhos também são mais dispostos do que os outros a dar a
liberdade (depois de sua morte) sem condições, isto é, sem exigências de serviços e
pagamentos posteriores a herdeiros ou legatários, ou de outras restrições sobre o
comportamento futuro do liberto. Para Slenes, a conclusão vale para todos os tipos de
liberdade, seja alforria simples, alforria com apenas dinheiro ou alforria com propriedade
imóvel. Porém, de um lado, quando os testadores sem família próxima estabelecem
condições, estas geralmente são brandas. Prevalece a exigência de serviço durante tempo
limitado ou a estipulação de que o alforriado, geralmente um menor de idade, ‗acompanhe‘,
ou que fique ‗acostado em‘ um legatário (até o liberto chegar à maioridade, casar-se etc). E
por outro, para o autor, os testadores com cônjuge ou filhos, quando concedem liberdade
condicional, muito frequentemente exigem que o alforriado continue trabalhando para um
herdeiro ou legatário até a morte deste.453
No caso da comarca de Nazareth, observamos esta situação descrita por Slenes e
destacamos algumas peculiaridades. Verificamos, principalmente, através das
porcentagens, certo peso com a questão da existência de herdeiros ou não, quanto às
condições serem brandas para os testadores sem herdeiros e mais exigentes para os
testadores com herdeiros, também constatamos outras correlações. Observamos que os
testadores sem filhos herdeiros, mas com cônjuge, costumavam libertar mais, mas eram

453
SLENES, op cit, 1996, p. 81-82.

289
mais exigentes em suas condições. Por exemplo, Maria Joaquina de Bezerra Albuquerque
fez seu testamento em 1875, não possuía herdeiros, morava no Engenho Dependência, era
casada com Manuel Francisco de Albuquerque, e libertou dois escravos: Dezmezia, 37 anos
e Elizes, 36 anos. Declarou, no entanto, que estes poderiam ser libertos apenas após a morte
do marido.454 O mesmo ocorreu com José Carmello Pessoa da Veiga, sem herdeiros, em
1877. Deixou declarado em seu testamento a liberdade de Pedro, Ignácio, Pedro pardo,
José, Luiz, Florinda, Alexandrina e Maria, com a condição de que estes servissem sua
esposa até a morte.455 E como último exemplo, fugindo um pouco à regra, em 1887,
Antonio Diniz Albuquerque, casado com Josepha Florinda de Lyra, moradores do Engenho
Nova Vida, libertou uma família de escravos, sendo o pai, Francisco, preto, 45 anos, o
filho, Pedro, preto, 27 anos, e a filha, Maria, preta, 26 anos, sob a condição apenas de serem
cativos até a sua morte. Todavia, o testador ressalva que os ditos escravos estariam livres
caso:

(...) ele testador morra, e, não morrendo ficarão livres em janeiro de 1890 a
propiciar os dois anos em janeiro do ano vindouro. E que sendo que sua mulher
D. Josepha Florinda de Lyra queira alforriar algum escravo, só poderá fazer de
monte, ficando a terça livre. 456

A projeção que Antônio Diniz fez para estipular o fim do cativeiro aos escravos em
―condicional‖, independente de sua morte, remete-nos às discussões em torno do preço dos
escravos, a Lei do Sexagenário e as projeções do fim da escravidão que ocorreram no final
dos anos 80. Em torno da Lei do Sexagenário ocorreu um discurso por parte dos
proprietários de que era necessário fixar uma tabela de preço dos escravos (Projeto Dantas)
para que aqueles não corressem o risco de num processo de arbitramento lhes fossem
apresentado um pecúlio abaixo do valor do escravo. Obviamente, por trás dessa
reivindicação estava a intenção de manutenção das relações servis e da dominação
senhorial.457 Junto a este processo, Robert Slenes, analisando o mercado de escravos,
coloca que a fixação dos valores da propriedade escrava tinha como projeção o fim do

454
Testamento de José Carmello Pessoa da Veiga. Comarca de Nazareth. Caixa 127. Memorial da
Justiça/Recife.
455
Testamento de Maria Joaquina de Bezerra Albuquerque. Comarca de Nazareth. Caixa 108. Memorial da
Justiça/Recife
456
Testamento de Antonio Diniz Albuquerque. Comarca de Nazareth. Caixa 127. Memorial da Justiça/Recife.
457
MENDONÇA, op cit, 2008, p. 224 a 242.

290
cativeiro em 1900. Para que este processo ocorresse de forma lenta sem prejudicar os
proprietários, os preços estipulados na tabela, a qual entraria em vigor em 1887, seguiriam
em uma curva de valores decrescente até 1900, ano que supostamente se daria então o fim
do cativeiro.458 Diante dessas considerações, quando verificamos as declarações
testamentais do senhor Antonio Diniz sugerimos que, em 1887, ano do testamento, o fim do
cativeiro pairava nas mentes dos proprietários; no entanto, o que, talvez, não estivesse claro
era que isto iria ocorrer logo no ano seguinte em 1888. Possivelmente, na cabeça do senhor
Antonio, sua morte ainda demoraria um pouco, e mesmo assim, se não falecesse, até 1890
ele garantiria o domínio senhorial sobre seus escravos, com a vantagem que declarando a
liberdade em testamento em 1887, ele e sua esposa teriam uma família escrava (pai, filho e
filha) lhe devendo gratidão por mais 3 anos. Se isto de fato ocorreu não sabemos, mas,
obviamente, em 1888 eles ficaram livres.

Quadro 32: Perfil dos testadores que libertaram e não libertaram escravos na
comarca de Nazareth entre 1867 e 1887
Testadores Sexo Cônjuge Herdeiros
F M Solteiro Casado Viúvo Com Sem
Testadores que (7 ) (5) 0 (8) (4) (8) (4)

libertaram (12) 58,34% 41,67% 66,67% 33,37% 66,67% 33,37%

Testadores que (10) (7) (1) (10) (6) (15) (2)

não libertaram (17) 58,82% 41,17% 5,88% 58,82% 35,29% 88,23% 11,76%

Fonte: Testamentos do município de Nazareth 1867-1887. Memorial da Justiça/Recife.

Nos casos dos testadores com herdeiros, observamos algumas peculiaridades. Por
exemplo, o Alferes Manoel José de Oliveira Melo, proprietário e morador do Engenho
Morojó, viúvo de Ana Maria José de Nascimento, com 7 filhos sendo 5 vivos, natural de
Portugal, Ilha de São Miguel, em 1875 escreveu seu testamento como cristão católico
apostólico romano e entre algumas capelas de missa que pediu para serem rezadas após sua
morte, declarou como sendo sua vontade a reza de meia capela para sua esposa falecida,

458
SLENES, R. ―The Brazilian Internal Slave Trade, 1850-1888. Regional Economies, Slave experience, and
the politics of a Peculiar Market‖. IN: The Chattel Principle. Internal salve trades in the Americas. London,
Yale University Press, 2004, p. 359.

291
meia para seus finados filhos e mais meia para seus escravos falecidos. No mais, mandou
que:

(...) se distribua, logo depois de minha morte (...) cincoenta mil réis com viúvas
reconhecidamente pobres e honestas: igual quantia será dividida com orphãos
(preferindo-se as de sexo feminino) pobres.
Deixo a minha filha Maria José de Oliveira Mello um conto de reis, a cada
um dos seus filhos do sexo feminino quinhentos mil réis; e a sua nora mulher do
meu neto – José Pedro de Oliveira Junior quinhentos mil réis.
Deixo a meu filho Manuel José de Oliveira Junior um conto e quinhentos
mil réis: esta quantia será dividida entre elle e suas filhas legítimas, partes
iguais.
Deixo a Anna Quitéria de Araújo e as suas filhas – Francisca e Cordula, um
conto e quinhentos mil réis, sendo quinhentos mil réis a cada uma. Deixo aos
mulatinhos David, Adelaide, Belizia e Josefa, filhos de Galdina já falecida,
quatro contos quinhentos e cincoenta mil réis, sendo dous contos ao David,
quinhentos a Adelaide, dous contos a Belizia, e cincoenta mil reis a Josefa.
Deixo aos mulatinhos José e Francisca dous contos de réis, repartidos
igualmente. 459

As doações em dinheiro que o Alferes deixou para seus herdeiros foram


praticamente iguais aos valores deixados para os ―mulatinhos‖. Nessa época, como colocou
Eisenberg, era escasso o dinheiro em espécie, por isso, eram raras as doações em dinheiro
nos processos de heranças ou testamentos.460 De fato, observamos isso nos inventários
analisados, os quinhões normalmente continham partes do engenho, escravos, terras e
lavouras, e, raramente, dinheiro. Quando ocorria a distribuição de dinheiro, normalmente,
tratava-se de abastados proprietários. No caso acima, sabemos que o Alferes Manoel era
proprietário do Engenho Morojó, possuía escravos, mas não sabemos quantos, e,
provavelmente, possuía boa riqueza em dinheiro. Vale ressaltar que ele não deixou escravos
para seus herdeiros, apenas dinheiro em espécie.
Não localizamos seu inventário, mas verificamos o inventário de Vicente Paula de
Mello Oliveira, falecido em 1877, também morador do Engenho Morojó, marido da filha
do Alferes, Maria José de Oliveira de Mello. Em seu inventário registramos uma escravaria
de 12 escravos (sendo 5 adultos acima de 15 anos, e o restante, 7 abaixo de 13 anos), e não
constatamos a propriedade de lavouras ou plantações. Temos evidências, portanto, que

459
Testamento de Manoel José de Oliveira Melo. Comarca de Nazareth. Caixa 108. Memorial da
Justiça/Recife.
460
EISENBERG, op. cit., 1977.

292
existia uma escravaria, ao menos pequena, trabalhando no engenho Morojó entre 1872 e
1877. Os escravos eram de propriedade de vários donos: pai, filhos, genros. No mais, os
escravos residentes do Engenho Morojó também tinham laços de parentescos, pertenciam a
núcleos matriarcais. No caso do testamento, os filhos da escrava ou liberta Galdina
receberam parte da herança do testador Alferes Manoel. No inventário de Vicente de
Oliveira, a escrava Delfina, preta, 37 anos, possuía 5 filhos também escravos. Cordulina,
parda, 26 anos, possuía 3 filhos escravos, e Luíza, preta, 40 anos, um filho, João, 25 anos,
solteiro. Vale ressaltar que tanto Delfina como Cordulina foram consideradas como
solteiras. Luiza era casada, mas seu marido pertencia a outro senhor.461
A existência da família escrava, e como núcleo matriarcal, poderia trazer benefícios
para estas mulheres cativas e seus filhos. Ainda mais, quando o proprietário deixa em seu
testamento claras evidências que de certa forma beneficiavam o sexo feminino com suas
heranças e generosidades, porém, obviamente, sob condições. De fato, ao longo do
testamento, o Alferes Manoel de Oliveira declarou que:

(...) a minha escrava Rosalina, mãe dos dois legatários supra – José e Francisca,
ficará livre depois de minha morte, dando-lhe a meus Testamenteiros carta de
liberdade e mais cincoenta mil réis. A liberdade e legado aqui determinado
encerra a condição seguintes que a dita escrava durante a minha vida, me servirá
com zelo, pronptidão e cuidado. A fidelidade de sua parte, no bem cumprimento
dos seus deveres, será comprovada pelo meu silêncio.462

O Alferes Manoel, provavelmente, um abastado proprietário, viúvo, com


herdeiros, e com escravaria, não nos deixa dúvidas das suas artimanhas por trás desta lista
de generosidades. Que fique bem claro que ele não concedeu liberdade a todos os escravos
beneficiados. A herança em dinheiro poderia servir para a compra da liberdade, até seria
bom, retornaria para si mesmo, porém, a carta de liberdade apenas se dirigiu a uma escrava.
Rosalina, por sua vez, para conquistá-la teria que cumprir com certas condições. A
prontidão, o zelo e o cuidado, no entanto, não eram condições exclusivas para a liberdade
desta escrava. Os filhos da futura liberta, José e Francisca, eram legatários do senhor,
porém se caso Rosalina, a mãe, não fosse uma escrava ―dócil‖, eles perderiam o legado, o

461
Inventário de Vicente de Paula de Oliveira Mello. Nazaré, caixa 111. Memorial da Justiça/Recife.
462
Testamento de Manoel José de Oliveira Melo. Comarca de Nazareth, 1875. Caixa 108. Memorial da
Justiça/Recife.

293
qual poderia servir como pecúlio para se libertarem. Portanto, neste caso, o que estava em
jogo, era uma liberdade em família, e não apenas individual. E o senhor Manoel sabia
disso, e seus escravos também. Assim, pergunto: que vantagens tinham os escravos que
faziam parte de uma família? Por um lado, como constatamos, eles alcançavam a liberdade
com mais frequência, no entanto, a que condições? Outro caso pode nos trazer novas pistas.
Felícia Joaquina da Costa Azevedo, moradora e proprietária do Engenho
Babilônia, em 1880, casada com João da Costa Ribeiro de Souza, também pediu que se
rezasse uma capela de missa para seus escravos falecidos. No mais, Felícia Joaquina passou
a carta de liberdade aos escravos João Pedro, Estevão, ao ―mulequinho‖ Gabriel, filho de
Ângela. Deixou também 300$000 (para cada) em benefício da alforria do escravo João
Carreiro, filho de Marcelina, de Severino, mulato, filho de Delfina e de Maria Antônia. No
mais, declarou que:

Deixo livre a minha escrava de nome Silvana, em attenção aos bons


serviços, que me há prestado, e o meu testamenteiro lhe passará carta de
liberdade e mais cem mil reis em dinheiro e pesso a meu marido que olhem
sempre por ella, enquanto se portar bem. Igualmente quero que passe carta de
liberdade a escrava Firmina Simoua. Declaro, que já tendo alforriado a minhas
duas crias de nomes Lucrecia e Roza, e tendo mandado ensignar aquella deixo
agora a cada uma dellas duzentos mil réis, e posso a minha sobrinha Maria e
Felícia, casadas com João Bezerra Chaves e com Vicente Ferreira Lima, que na
falta de meu marido, dellas tomem conta e de ambas fasendo por casa-las, e a
mesma recomendação faço em favor da escrava Silvana que agora liberto.463

No total, até a data de 1880, Felícia alforriou 7 escravos, 3 homens e 4 mulheres. As


liberdades de Lucrecia e Roza foram registradas em cartório de Nazareth em 1872, quando
elas ainda tinham 5 anos de idade. Ambas eram filhas de Firmina que, ainda escrava,
recebera a liberdade no testamento da senhora em 1880. Como verificamos, Lucrecia e
Roza, libertas enquanto eram crianças, continuaram a viver junto da mãe Firmina que até
1880 ainda não havia se libertado. A senhora Felícia e seu esposo João da Costa libertaram
as meninas – destacando na verdade que as liberdades foram pagas - mas mantiveram todas
sob cativeiro, afinal elas precisavam ficar ao lado da mãe, a qual não havia sido libertada.
Neste caso, a relação senhor-escravo mostrou claros detalhes de um universo paternalista.
Como coloca Slenes, provavelmente traduz mais uma preocupação ―paternalista‖ com a

463
Testamento de Felícia Joaquina da Costa Azevedo. Nazaré, caixa 119. Memorial da Justiça/Recife.

294
sorte do liberto – é significativo que a palavra ‗servir‘ não seja usada nesses casos - do que
o desejo, não necessariamente ausente, de extrair renda dele no futuro para seus ‗tutores‘.464
De qualquer modo, libertas, Roza e Lucrecia estavam sob cuidado de Felícia, e depois da
sua morte passariam aos cuidados do marido, e depois para responsabilidade das sobrinhas.
Detalhe importante, a senhora Felícia libertava, mas suas escravas, Roza, Lucrecia e
Silvana, continuariam na família, e com a condição de serem cuidadas e também de serem
casadas. E uma vez casadas, formariam uma família.
A meu ver, este testamento traz algumas evidências do que seria a família escrava
para escravos e senhores. No caso de Felícia, formar família era praticamente uma condição
imposta aos herdeiros e libertas. Não estão claras outras condições, como por exemplo,
servir à senhora por mais alguns anos. Felícia passou cartas de liberdade sem condições,
pelo menos aos olhos públicos. As linhas entre liberdade e escravidão eram tênues e
possuíam recompensas de estabilidade para os escravos, os libertos e para os senhores. No
entanto, manter filhas livres e mães escravas parecia ser uma tática costumeira entre os
senhores e senhoras de engenho abastados e católicos, uma tática de controle e manutenção
da servidão (no tópico seguinte as histórias de Felícia e seus escravos continuam....).
No mais, vale ressaltar que tanto no caso do Alferes Manoel como na testadora
Felícia, ambos deixaram apenas dinheiro para seus herdeiros, não deixaram, por exemplo,
escravos. Também, nos dois casos, os escravos receberam legados em dinheiro, detalhe
importante, escravos que eram filhos de alguma escrava de propriedade do senhor ou da
senhora. Novamente, a regra da mãe escrava que por seu ―status‖ conseguia melhorias aos
seus filhos, mas não, necessariamente, para si.
Diante destas informações, questionamos: se no momento em que mãe e filhos
estivessem livres de fato, será que ainda continuariam a servir seus antigos senhores? Até
que ponto era importante e válido para os libertos os cuidados que a família do proprietário
lhes proporcionava? Guardemos estas respostas para outro momento.
Por hora, é interessante observar nestes exemplos como, em seus testamentos, as
famílias ricas concediam ou não liberdade aos seus escravos, o perfil dos senhores que
doavam legados em dinheiro para seus escravos e como manipulavam a condição familiar
dos cativos e, principalmente, das mães escravas. Ao mesmo tempo, era um jogo

464
SLENES, op cit, 1996, p. 82.

295
interessante para os senhores manterem as famílias escravas, tanto pela possibilidade de
jogar com esta condição, conseguindo, desta forma, a ―docilidade‖, e, por outro lado, como
o escravo conseguia conquistas para sua família, ainda que fosse uma liberdade assistida.
Eisenberg analisando as alforrias das mulheres em Campinas no século XIX
elaborou algumas hipóteses para a grande incidência de manumissões concedidas às
escravas. Vale lembrar que na comarca de Nazareth encontramos entre as notas cartoriais a
porcentagem de 60,82% alforrias para mulheres e 39,19% homens, e nos testamentos,
59,26% mulheres e 40,74% homens. Entre as hipóteses destacadas, o autor coloca que a
mulher escrava teve mais oportunidades para estabelecer laços afetivos com seus donos, e
esses laços teriam sido importantes na concessão de alforria. Citando Karasch, as escravas
da cidade do Rio de Janeiro na primeira metade do século XIX, frequentemente, serviam
como empregadas domésticas, prostitutas e amantes, por causa da escassez de mulheres
brancas no período. Em outro sentido, Eisenberg considera que a relação senhor e escrava
favorecia a alforria desta. No mais, dentro da própria sociedade brasileira, o homem
considerava a mulher inferior, exercendo, portanto, um domínio sobre ela sem a
necessidade de que a mesma fosse escravizada. Em outras palavras, ―mesmo alforriada esta
podia continuar sujeita a trabalhar ‗como escrava‘, sem que tamanha exploração fosse
condenada‖.465 Neste caso, aferimos estas considerações para as declarações do testamento
do Alferes Manoel de Oliveira Mello quando ele fez questão de assinalar suas
―generosidades‖ ao sexo feminino (fossem escravas, noras, filhas, órfãs ou viúvas), todavia,
impondo condições de prontidão, zelo e cuidado, caso contrário toda a família da escrava
Rosalina seria prejudicada.
Ainda como outra hipótese, Eisenberg privilegia as circunstâncias especiais da
família escrava. Para o autor, a escrava constituía um agente da reprodução da própria
escravidão (condição legal do filho derivava da condição legal da mãe), por este motivo, a
família escrava deveria ponderar sobre a importância de salvar da escravidão os futuros
irmãos, filhos e netos, através da alforria das escravas. Portanto, segundo Eisenberg, as
alforrias privilegiaram as escravas. E por outro lado, se a família escrava se caracterizasse
pelo pai ausente devido às pressões do cativeiro, seria exatamente por essa situação que o

465
EISENBERG, P. Homens esquecidos. Escravos e trabalhadores livres no Brasil séculos XVIII e XIX.
Campinas, Ed. da Unicamp, 1989, p. 264. KARASCH, Mary. A vida dos escravos no Rio de Janeiro (1808-
1850). São Paulo, Cia das Letras, 2000.

296
escravo teria melhores chances de conhecer sua mãe do que seu pai e pensaria nela, antes
do que nele, para efeito de alforria. Assim, ressalta o autor, fosse a família escrava
solidária, fosse ela fragmentada, de qualquer maneira a mulher escrava seria preferida para
alforria. Com vista nos testamentos acima analisados, é clara a presença da família escrava
e das alforrias concedidas às mulheres filhas. Por outro lado, as mães ainda mantinham-se
escravas, com chances de liberdade. As filhas escravas, no entanto, eram legalmente livres
e totalmente presas à mãe escrava; entre os vários possíveis motivos, estava a questão da
idade e/ou a existência de uma relação paternalista estabelecida, incluindo negociações e
recompensas aos escravos. De qualquer forma, por parte dos escravos, o pagamento de
pecúlio para livrar seus filhos ocorria e com certa frequência privilegiando as mulheres.
Vale destacar que Marcus Carvalho, observando um estudo sobre a escravidão
feminina africana, traz evidências que o maior volume de manumissões de mulheres não se
devia apenas pela sua capacidade reprodutora, pelos seus papéis sexuais, ou à proximidade
da sinhá, mas também ao fato da sua socialização ter sido sempre feita de uma forma
submissa. Para o autor, podemos aplicar estas considerações para o caso brasileiro, afinal,
da perspectiva da classe dominante, numa sociedade patriarcal escravista, uma mulher
liberta era considerada uma ameaça, e um mal, menor do que um homem liberto. A
expectativa da sua sujeição após a alforria era ainda maior. As mulheres, seja de que
conciliação fossem, eram ensinadas a obedecer aos homens. Segundo Carvalho, no mundo
dos livres, a posição social dela dependia inclusive do status dos varões da família, salvo, é
claro, algumas exceções. Na percepção do homem branco, a escrava ao ser alforriada, ela
ingressava no mundo dos libertos num degrau abaixo de todos os homens da mesma
condição. Na ideologia patriarcal dominante, a liberta era mais facilmente aceita pelos
donos do poder, já que vários dos degraus para a liberdade plena eram-lhe de antemão
vedados devido ao simples fato dela ser uma mulher.466

Ainda buscando compreender quais eram as chances de liberdade e de melhoras de


vida dos escravos, assim como, do outro lado, almejando investigar qual era o perfil dos
proprietários que libertaram seus escravos, vale analisar as escravarias dos testadores. No
entanto, infelizmente pela amostragem que acessamos, cerca de 90% dos inventários, não

466
CARVALHO, Marcus. Liberdade. Rotinas e rupturas do escravismo no Recife, 1822 -1850. Recife, Ed.
Universitária da UFPE, 1998, p. 224.

297
conseguimos elaborar uma curva porcentual significativa sobre os testadores e suas
propriedades, e sim realizamos uma análise pontual de alguns exemplos. Um dos motivos é
o fator da grande fragmentação das propriedades. Isto é, às vezes um engenho possuía
muitos senhores. Diferentemente, Lizandra Ferraz e Roberto Guedes fizeram um
levantamento considerável e atingiram conclusões sobre a concessão de alforrias de acordo
com o tamanho das propriedades. Ferraz analisando dois períodos (1836-1845 e 1860-
1871) verificou que entre todos os escravos (1957+1760=3717) aqueles que compunham as
pequenas propriedades tinham mais chances de obter a liberdade (12,2%) se comparado aos
escravos de médios (4,9%) e grandes plantéis (2,2%). Segundo a autora, estes dados vêm
corroborar os apontamentos de Roberto Guedes sobre Porto Feliz (SP).467 A autora ainda
ressalta que ocorreram mudanças na prática de alforria entre os períodos em enfoque. Em
suas pesquisas, Ferraz observou que na década de 1860 as chances dos cativos de obterem a
alforria aumentaram (de 3,6% em 1836-1845 para 5,4% em 1860-1871) e esta mudança foi
diferente em relação a cada faixa de posse. Nas pequenas propriedades, as chances dos
cativos de obterem alforria aumentaram cerca de 60% (9,2% para 16,7%). Já nas grandes
escravarias, este aumento foi ainda maior: a porcentagem quintuplicou (de 0,7% para
3,6%).468

Roberto Guedes, em suas pesquisas sobre Porto Feliz (SP) entre 1798 e 1850,
constatou que em 332 testamentos, 61 (18%) não tiveram qualquer indício de posse de
escravos e entre os 272 escravistas, 144 (53%) alforriaram. Desses últimos, 97 (67,4%)
fizeram testamento entre 1788 e 1850, libertando 332 cativos, e 47 (32,6%) testaram entre
1851 e 1878, alforriando 163 escravos. Assim, segundo o autor, ao testarem, mais da
metade de pequenos, médios e grandes escravistas praticaram o ato da alforria, com uma
intensidade um pouco maior entre os grandes senhores, mas sem variações percentuais
significativas. Para o autor, o ato de alforriar não se relaciona ao tamanho da propriedade.
Por outro lado, entre os libertadores, os pequenos senhores, proporcionalmente, foram os
que mais contribuíram para o primeiro passo de mobilidade social, alforriando 30,4% dos
seus escravos, representando 34,2% do total, o que supera até os de senhores de média

467
FERRAZ, L., op cit, 2008, p. 74.
468
Idem, op. cit., p. 74-81.

298
escravaria. Por sua vez, os grandes proprietários só alforriaram 6,4% de seus cativos, mas
os seus libertos formavam a maioria dos alforriados.469

Em nossa análise, não podemos afirmar percentualmente como se deu a prática da


alforria na comarca de Nazareth entre 1867 e 1887, porém, nos poucos exemplos
observados, e dialogando com os estudos acima, podemos sugerir algumas interpretações.
Conseguimos apenas cruzar alguns testamentos e os inventários respectivos. No restante, os
testamentos não traziam a quantidade de escravos pertencentes aos senhores. Assim,
destacamos:

Quadro 33: Relação de proprietários, escravarias, liberdades em testamentos e formas


de liberdade

Proprietário/Engenho Tamanho da Liberdades realizadas Quantidade/


Escravaria em Testamento/Ano Formas de
liberdade

1. Antônio Barrozo de Moraes/Engenho Santo 4 1/1881 1 paga


Antônio ( a metade)

2. D. Umbelina Roza de Jesus/Engenho Aliados 7 3/1871 3 pagas


(a metade)

3. D. Ignácia Francelina de Lima/Engenho Macaíba 7 Não/1865 -


7 2 condicionais
4. D. Maria Joaquina de Bezerra Albuquerque/ 2/1875
Engenho Dependência
14
5. D. Ana Maria de Jesus/Engenho Tamataúpe 1/1859 1
incondicional

6. D. Manuela Maria de Moraes/Engenho Morojó e 16 1/1869 1 paga


Conceição

7. D. Maria José de Moraes 18 Não/1867 -

8. D. Joaquina Maria de Queiroz/Engenho Pagy 19 Não/1877 -

9. João Roiz Mariz/Engenho Pagy de Canabrava 26 Não/1879 -

10. Antonio da Mota Silveira Cavalcanti/ 43 Não/1874 -


Engenho Jacaré

469
GUEDES, R., op cit, 2008, p. 192.

299
Fontes: Testamentos e Inventários dos respectivos. Memorial da Justiça/Recife (PE)

Antônio Barrozo de Moraes, proprietário e morador do Engenho Santo Antônio,


doente de cama, testou em 28 de maio de 1881, e declarou ser casado em segundas núpcias
com Dona Senhorinha Bezerra de Menezes com quem teve 6 filhos. Em seu primeiro
casamento teve 1 filha e 5 netas. Pelos bons serviços prestados, Barrozo deixou a escrava
Benta, avaliada em 200$000 réis, liberta em sua metade. No inventário de Antônio Barrozo
datado do mesmo ano de 1881, verificamos que seu engenho Santo Antônio estava moente
e corrente, com casa de vivenda, casa de fazer farinha, casa de engenho, moenda de ferro,
casa de caldeira com vasos de ferro, casa de fornalha, foro de cozinhar tijolo, casa de
purgar com formas, furos e correntes e tanques, estrebaria, ―casa de pretos‖, tudo avaliado
por 8:000$000. Na partilha, os filhos e netos ficaram com as partes em valor do Engenho, e
a viúva ficou com todo o resto, incluindo os 4 escravos: Benta, crioula, 41 anos, avaliada
em 100$000; Maria, crioula, 19 anos, 400$000, Manoel, crioulo, 300$000, Joaquim,
crioulo, 700$000. Dona Senhorinha ainda herdou safras de canas no valor de 2:000$000 e
mais safra de canas novas no valor de 400$000. No total, Dona Senhorinha herdou
9:418$644 réis.470

Umbelina Rosa de Jesus, moradora do Engenho Aliados, desejando ser sepultada de


hábito preto, na Igreja de São Thomé de Terra Nova, escreveu seu testamento em 1871 e
declarou ser viúva de João Cabral de Vasconcellos, cujo matrimônio teve 6 filhos. Ela
deixou forras, na sua terça, a metade do valor de cada uma das suas escravas, Rita,
Bertholeza e Luiza, e o excedente da terça deixou para 4 de seus filhos. Umbelina faleceu
em 22 de abril de 1871, e tinha apenas como bens o valor do Engenho Aliados, com obras e
feitorias, na quantia de 2:166$747 réis. Possuía também 7 escravos: Tomé, crioulo, 14
anos, valor 400$000, Vicente, crioulo, 12, 800$000; Amaro, cabra, 29, 1:200$000,
Concórdia, 5, 250$000, Honório, crioulo, 18, 1:000$000, Benedito, crioulo, 26,
1:2000$000. Bertholeza apareceu no quinhão da filha D. Maria da Purificação, na metade

470
Testamento de Antônio Barrozo de Moraes. Caixa 119. Memorial da Justiça/Recife-PE. Inventário de
Antônio Barrozo de Moraes. Documentação Cartório de Nazareth. FUNDAJ/Recife-PE.

300
de seu valor. Rita e Luiza não apareceram na distribuição dos bens no inventário. Todos os
cativos citados no inventário foram partilhados entre os herdeiros.471

Ignácia Francelina de Lima, do engenho Macaíba, fez seu testamento em 1865,


casada com Francisco Camello de Farias, com o qual não teve nenhum filho, tendo apenas
um herdeiro do seu primeiro casamento. Em seu testamento, Ignácia não alforriou nenhum
escravo. Todavia, no ano de 1871, em seu inventário foram declarados 7 escravos: Jaú,
crioulo, idade de 30 anos, 1:200$000, Joaquina, mulata, 37 anos, 1:000$000, Jaú, filho de
Joaquina, pardo, 8 anos, 700$000; Marcolina, angola, 50 anos, doente, avaliada em
300$000; Tomazia, 50 anos, 300$000; Bernarda, mulata, 20 anos, 1:000$000 réis e
Constância, mulata, 21 anos, avaliada em 900$000. No mais, foi declarado que o Engenho
Macaíba era de sua propriedade, com casa de vivenda, cada de farinha, casa de purgar,
estribaria, casa de maquina, casa caldeira, com 7 casas de moradores, todos de telha,
achando-se o engenho ―preparado e montado para moer‖472. Pertencia a Ignácia não apenas
a parte edificada do engenho, valendo 5:000$000, como também as partes anexas
compradas no valor de 4:000$000 réis, mas que naquele momento não podem ser
inventariadas e determinadas pelos limites porque estariam ainda por dividir com outros
consenhores. No mais, Ignácia ainda possuía uma safra de canas avaliada em 200$000,
mais 6 mil covas de roças novas valendo 60$000, cem arrobas de algodão avaliadas, cada
arroba a mil e seiscentos, num total de 160$000. O inventariante, esposo da falecida, ainda
declarou que tinha sido moído 120 pães açúcar pertencentes à família e que o consumiu
com as despesas de alimentos da família.473

Maria Joaquina de Bezerra Albuquerque, em 1875, já estando muito doente e de


cama, declarou ser casada com Manoel Francisco de Albuquerque, sem filhos e ser
moradora do Engenho Dependência, freguesia de Santo Antonio de Tracunhaém comarca
de Nazaré da Mata. Declarou que existindo em seu casal os escravos Dismizia e Elizes,
aquela com 37 anos e este com 36 anos, disse que ditos escravos fossem declarados libertos
por morte de seu marido, herdeiro instituído, e para quem os ditos escravos deveriam

471
Testamento de Umbelina Rosa de Jesus. Caixa 119. Memorial da Justiça/Recife –PE. Inventário de
Umbelina Rosa de Jesus. Documentação Cartório de Nazareth. FUNDAJ/Recife-PE.
472
Testamento de Ignácia Francelina de Lima. Caixa 119. Memorial da Justiça/Recife – PE. Inventário
Ignácia Francelina de Lima. Caixa 101. Memorial da Justiça/Recife – PE.
473
Testamento de Ignácia Francelina de Lima. Caixa 119. Memorial da Justiça/Recife – PE. Inventário
Ignácia Francelina de Lima. Caixa 101. Memorial da Justiça/Recife – PE.

301
prestar serviço até a morte. Em seu inventário, ficou declarado que Maria Joaquina possuía,
em 1875, 7 escravos: Pedro (filho de Maria), crioulo, 30, 750$000; Victorino (filho de
Maria), preto-crioulo, 25, 550$000; Antonio (filho de Caetana), 18, 700$000; Felícia (filha
de Francisca), parda, 37, 300$000; Ambrósio, pardo, filho de Felícia, idade de 5 anos,
300$000; Filomena, parda, 9 anos, 400$000; João, crioulo, 5 anos, 350$000. Além de
cavalos e gados, Maria Joaquina possuía lavouras de cana em meação com lavradores, no
valor de 1:000$000, mais 3 mil covas novas, no valor de 70$000. No mais, o inventariante
de Maria declarou que ela possuía o Engenho Dependência, moente e corrente, casa de
vivenda, casa de fazer farinha, senzala, estribaria, casa de engenho, moenda de ferro, casa
de caldeira, 4 casas de forno, casa da fornalha, casa de queimar tijolos, casa de purgar, casa
de lavradores, tudo avaliado em 10:000$000. Ainda tinha parte de terras do todo do
Engenho Papicu na quantia de 11:000$000 réis.474 É interessante perceber que a lista de
matrícula de 1872, anexada no inventário, contém os nomes de Dismezia e Elize (que
inclusive eram irmãos, ambos filho de Ana) que foram libertados no testamento de Maria
Joaquina, sob condição de prestarem serviço ao marido, porém no inventário de 1875 não
aparecem na relação. José, 32 anos (filho de Maria), Emiliano, 30 anos, filho de Maria, e
Sebastiana, 34 anos, irmã destes, também não constam no inventário. Ao contrário,
Filomena de 9 anos e João de 5 anos constam na relação de 1875, mas não na lista de 1872.
Verificamos anotações que o escravo Emiliano morrera, os outros não sabemos.

Antes de avançar e relatarmos algumas informações sobre a testadora Ana Maria de


Jesus, que possuía o dobro de escravos destes últimos testadores, analisemos alguns pontos
observáveis nas informações dos testamentos e inventários de Antonio Barrozo, Umbelina
Roza, Ignácia Francisca e Maria Joaquina de Albuquerque. Sem contar o testamento de
Antônio Barrozo, que se trata de um processo de 1881, ano em que os valores dos escravos
começaram a cair (ver Quadro 22: valores dos escravos nos inventários), nos processos
testamentais e inventariais que ocorreram entre 1871 e 1875, podemos realizar uma análise
comparativa quanto ao perfil social e econômico destes senhores. Entre estes, observamos
que as alforrias testamentais aconteciam de forma inversamente proporcional com o poder
aquisitivo das proprietárias. Maria Joaquina, a senhora mais abastada deste grupo, alforriou
dois escravos da sua escravaria, dois irmãos, uma mulher e um homem. Ambos, no entanto,

474
Testamento de Maria Joaquina de Bezerra Albuquerque. Caixa 108. Memorial da Justiça/Recife-PE.

302
foram libertados sob condições de servir ao marido até a morte, diferentemente dos
testadores que libertaram pagando apenas a metade da liberdade de seus escravos. Das
informações colhidas sobre lavouras, engenho e feitorias e terras, verificamos que o
Engenho Dependência de Maria Joaquina estava em franca atividade no ano de 1875.
Também a senhora possuía uma herança de alto valor, incluindo inclusive terras e partes de
outro engenho da comarca, o engenho Papicu. Quanto à escravaria, é interessante ressaltar
que a maioria dos escravos eram homens (5 homens e 2 mulheres) e que os escravos
declarados como livres no testamento, ainda que sob a condição de servir ao senhor, não
aparecem na relação do inventário. Entre as obras do engenho, é importante colocar que no
inventário de Maria Joaquina cita-se senzala e casa de lavradores, com os quais, inclusive,
ela possuía meação na lavoura. Assim, tratava-se de um engenho com ampla atividade
açucareira, provavelmente, com algumas roças de produtos pra subsistência dos moradores,
e que proporcionava um cotidiano social de livres e escravos. Pergunto: o que para esta
proprietária significaria no mundo do trabalho os escravos Dizmizia e Elizes? Diante de um
perfil produtivo com a presença marcante dos lavradores, com 4 escravos em idade
produtiva e mais 3 crianças, a relação senhor-escravo pode ter menos traços de um
paternalismo pautado nos estímulos de recompensas e conquistas. Por outro lado, os
escravos, neste contexto específico, teriam mais dificuldade em alcançar a liberdade através
das boas relações, porém teriam maiores chances através do pecúlio, uma vez que,
possivelmente, neste quadro social, era bem possível a produção de alguns produtos, como
mandioca e outros, passíveis de venda na localidade.

Em todos os casos, as liberdades não se deram de forma completa. Todavia, ainda


que em pequenas escravarias, outros aspectos, como a presença de lavradores, o valor dos
engenhos e feitorias, a posse de dinheiro, o perfil dos senhores e o perfil dos escravos
podem ter influenciado na prática de alforria, como na forma. De todo modo, acredito que
outros aspectos podem ser abordados para a compreensão da incidência desta prática, é
necessário outros fatores circunstanciais, até mesmo para respondermos as perguntas: o que
significava ―meia liberdade‖ para Benta, que ficou com Dona Senhorinha e mais os outros
4 escravos, em um engenho moente e corrente? O que significava ser liberta pela metade
para Bertholeza, que, separada dos outros escravos, foi para as mãos dos herdeiros de sua
falecida senhora? Em outros termos, o que significaria a liberdade para Tomazia, de 50

303
anos, ou Marcolina, angola, 50 anos, escravas de Ignácia, abastada senhora, com 7
escravos, que não alforriou nenhum dos seus cativos, mas que possuía um engenho que
ainda não estava moendo e no qual existiam 7 casas de moradores e nenhuma senzala? E o
que significava para Desmizia e Elizes, pertencentes a uma escravaria também com 7
escravos, mas que, via testamento, alcançaram a carta de liberdade sob condição de servir
ao marido da senhora falecida até a morte num espaço onde existiam lavradores, e,
portanto, casas de lavradores e senzala? Qual destas opções acima narradas seriam as piores
ou as melhores condições de se viver? Nenhuma das anteriores? Uma escolha era certa,
estar com sua família seria uma boa opção.

Analisando os proprietários, verificamos que Ignácia Francelina possuía, em


valores, uma escravaria bem maior do que Maria Joaquina. Também com 7 escravos, mas
quanto ao sexo o inverso da anterior, dois homens e cinco mulheres, Ignácia tinha um rico
dinheiro investido em propriedade escrava. Comparando com Maria Joaquina que possuía
3:350$000 réis em escravos, aquela tinha 5:400$000 réis em cativos. Por outro lado, em
bens de raiz, engenho, terras e feitorias, Ignácia Francelina possuía uma riqueza bem menor
do que Maria Joaquina, que já estava com seu engenho moente e corrente, com grandes
lavouras, parcerias com lavradores e outras partes em engenhos da região. Ignácia também
possuía engenho, obras e feitorias, lavouras, e algumas partes em outros engenhos da
região, no entanto, no total da herança deixada, a grande soma advinha dos escravos. Nesta,
os escravos compunham quase 1/3 do total da herança, já no caso de Maria Joaquina, a
escravaria compunha 1/7 do total da herança, fator, portanto, bem possível para que Ignácia
não alforriasse nenhum escravo no ato do testamento. No mais, através das informações
obtidas, constatamos que o engenho da proprietária estava pronto para começar a moer, e,
portanto, ela iria precisar de seus braços cativos para assegurar o trabalho do campo e da
fábrica. Vale, no entanto, ressaltar que Ignácia possuía mais escravas do que escravos, e
apenas um, Jaú, 30 anos, com idade produtiva no trabalho. E mesmo possuindo 2 escravas
com idade avançada e doente e não constando herdeiros, mesmo assim, a senhora não
alforriou nenhum de seus cativos. Entre várias hipóteses para a não prática da alforria, além
da sua escravaria constituir sua grande riqueza em valor monetário, sugerimos que diante
de iniciar o funcionamento do seu engenho, a proprietária precisava de mão de obra escrava

304
disponível. Uma vez que existiam livres (lavradores) na sua terra, ela precisava garantir a
servidão sem estímulos, barganhas ou ―pseudo concessões‖.

De forma parecida, Maria José de Moraes proprietária do Engenho Papicú


(coincidentemente o mesmo onde Maria Joaquina Albuquerque possuía uma parte), em
1870, também não alforriou seus escravos, apesar de possuir 18 cativos de sua propriedade.
Em seu testamento, no entanto, explicitou que o Engenho Papicú estava moendo safras
tanto que a testadora declarou que: ―Deixa encabeçado no Engenho e bens existentes a
colheita da safra de cannas próxima a moer o seu filho Luis de Albuquerque Maranhão,
para depois da colheita de safra fazer-se as partilhas com seus herdeiros‖. 475

Diante deste contexto específico, talvez não fosse ―racional‖ e conveniente para
Maria José alforriar algum escravo. Maria José de Moraes, casada com Francisco Xavier
Carneiro e Albuquerque, possuía 4 filhos e alguns netos, para os quais ela fez questão de
deixar alguns escravos. Assim, deixou a seu filho, Luis de Albuquerque Maranhão, o
crioulo Serrafim de 20 anos de idade; a seu neto Diogo, filho de sua filha Ana Cândida de
Albuquerque Maranhão, o ―cabrinha‖ Firmino de 3 anos de idade; o ―criolinho‖ Antônio de
5 anos de idade, à neta Anna, filha de sua filha América Brazilica de Albuquerque
Maranhão; à neta Francisca filha da mesma, o ―crioulinho‖ André de 3 anos de idade; e
também deixou a escravinha Maria crioula de 2 meses de idade, filha da escrava Brígida, à
neta Adelaide, filha de seu filho Jerônimo de Albuquerque Maranhão. No inventário, foram
declarados os escravos Luiz, crioulo, 60 anos, 100$000; Antônio, angola, 64 anos,
100$000; Claudino, crioulo, 50 anos, 500$000; Severino, crioulo, 50 anos, 500$000;
Caetano, crioulo, 50 anos, 800$000; Brígida, crioula, 25 anos, 1: 200$000; Isabel, crioula, 1
ano (filha de Brígida), 150$00; André, crioulo, 5 anos (filho de Brígida), 400$000;
Joaquina, crioula, 44 anos, 800$000; Antônio, mulato, 8 anos (filha de Josefa), 600$000;
Fermíno, mulato, 5 anos (filho de Josefa), 400$000; Manoel da Costa, angola, 50,
1:000$000; Malaquias, cabra, 35 anos, 1:200$000; Serafim, crioulo, 22 anos, 1:500$000.
No total, a inventariada tinha 8:100$000 réis em escravos. No mais, Maria José também era
proprietária de uma parte no todo do Engenho Papicú, suas obras e benfeitorias no valor de
15:389$212. Além de bois e cavalos, inventariou também uma safra de canas avaliada em

475
Testamento de Maria José de Moraes. Caixa 119. Memorial da Justiça/Recife – PE.

305
2:500$000 réis.476O interessante, todavia, é que 72,23% dos seus escravos tratavam-se de
crianças e idosos acima de 50 anos. Ainda assim, nenhum foi alforriado, e provavelmente,
participavam nas suas lavouras (batem com os dados colocados no Capítulo 1). Em suma,
agir ―racionalmente‖ não abria concessões para atos generosos como um instrumento
político de controle, novamente a produção estava acima de qualquer garantia de docilidade
ou gratidão. E os escravos sabiam disso e viviam na pele esta situação, talvez, entre outros
motivos, por isso, festejavam no fim da moagem, com permissão dos senhores, mas com
formas próprias de significar a realidade.

A situação financeira da proprietária Ana Maria de Jesus, que era casada com
Ignácio de Farias Ribeiro, possuía 6 filhos e faleceu em 1859 no Engenho Tamataúpe de
Baixo, era um pouco diferente. A senhora testou que por conta do seu segundo casamento,
com João Nunes Xavier, devia a José Baptista Ribeiro de Farias, da cidade do Recife, a
quantia de 4:306$176, referente à dívida do finado marido. Para cumprir com o pagamento
em data devida, arrendou seu engenho mais 9 escravos e 6 bois pelo período de 6 anos,
contrato que iria ser cumprido pelos herdeiros depois da sua morte. A testadora declarou
que possuía 14 escravos, a saber, 9 se achavam arrendados, mais Izabel, mulata, Rufino,
Juliana, Luzia e Guilherme. Ainda diante da situação financeira, de certa forma instável,
passou em seu testamento a carta de liberdade à sua escrava Izabel, mulata, 25 anos, no
valor de 500$000 réis, com a condição de servir-lhe durante a sua vida, e só depois da sua
morte, gozaria de sua plena liberdade. Também deu à filha Cosma Francisca Xavier de
Mello, casada com João Nunes de Souza, a escravinha Mereciana; à sua filha Anna Maria
de Jesus, a mulatinha Francelina de 11 anos, doente, 400$000. Não possuía lavouras,
porém, possuía casas de lavradores, engenho moente e corrente, capela, casas de vivenda,
casa de farinha, casa de purgar, senzala. Como analisarmos esta relação entre instabilidade
financeira e a prática de alforria numa pequena escravaria? Olhando os dados poderíamos
incluir Ana Maria em um perfil de proprietária que não alforriaria por motivos claramente
econômicos. Com dívida, com parte de sua escravaria arrendada, com poucos escravos,
com engenho moente e corrente, qual explicação podemos considerar para esta
circunstância? Talvez o mesmo considerado nos outros casos: a presença de lavradores.

476
Testamento de Maria José de Moraes. Caixa 119. Memorial da Justiça/Recife – PE. Inventário de Maria
José de Moraes. Caixa 119. Memorial da Justiça/Recife – PE.

306
Obviamente, devemos considerar que a escrava foi liberta de forma incondicional, e que
existe a possibilidade do fato se tratar de uma conquista pessoal da escrava, por sua
proximidade à senhora. O fato da incondicionalidade contradiz também aquela hipótese de
que senhores com herdeiros não alforriavam seus escravos, ou faziam de forma
condicional. Ana Maria não apenas alforriou uma cativa, como mesmo diante de uma
situação de endividamento, deixou para seus herdeiros algumas escravas.

Manoela Maria de Moraes, viúva de Antônio de Moraes, proprietária do Engenho


Conceição, em 1869, querendo dar uma prova de caridade à escrava Maria, crioula, de 24
anos pouco mais ou menos, que esteve sempre ao seu lado no longo decurso de sua doença
tratando com zelo, cuidado e amor, ―concedeu-lhe‖ a liberdade, no entanto, teve que pagar
por ela, pois a escrava depois da morte de seu marido passou a pertencer à sua filha, e
assim:

(...) temendo falecer sem que tenha tempo de requerer ao Doutor Juiz de
Orphãos permuta da mesma escrava por outra de sua meação queira e a sua
vontade que apenas fallecesse, procedido o inventário de seus bens o mesmo
Doutor Juiz de Orphão deduzisse de sua terça a quantia necessária para dar
liberdade a supra dita escrava passando em seguida o competente documento
que facultasse o gozo de sua liberdade como se de ventre livre nascesse.477

No inventário de Manoela em 1870, foi declarada uma escravaria de 16 escravos,


sendo 11 homens, 4 mulheres e 2 crianças. Entre estes, existiam dois escravos angolas de
60 anos. Em valor, ela possuía 11:550$000 em propriedade escrava. Quanto aos bens de
raízes, engenhos e feitorias, ela tinha 6:855$000 réis e 200$000 em safras de cana. Diante
deste quadro, a liberdade de Maria, que nem mesmo por direito era sua escrava, a meu ver
apresenta-se como um fato individual, isto é, ―uma generosidade‖ pessoal de Manoela com
Maria, e uma conquista a partir da boa relação entre escrava e senhora. Acredito, portanto,
que, neste caso, diante de uma escravaria valiosa, a presença de duas crianças e dois velhos,
possíveis alvos para uma alforria num raciocínio de estímulo e recompensa, não levou por
parte da viúva à prática da alforria. Em outras palavras, a situação também não permitiu a
abertura para a liberdade por meio de negociação na relação senhor-escravo. Interessante é
477
Testamento de Manoela Maria de Moraes. Caixa 117. Memorial da Justiça. Recife – PE. Inventário de
Manoela Maria de Moraes. Caixa 99. Memorial da Justiça. Recife – PE.

307
que Manoela possuía 4 filhos pequenos (entre 8 e 3 anos), de alguma forma precisava
guardar o futuro destes, que ficaram sob tutela de Henrique de Moraes Campello Castro,
seu irmão. Talvez aí esteja o motivo para Manoela não ter alforriado seus cativos. De outro
lado, o perfil de sua escravaria era composto em sua maioria por homens em idade ativa.
Não havia famílias escravas, apenas duas mães, das 3 mulheres cativas, características que
também considero relevante para o baixo índice de alforria, principalmente, para pensar a
questão da negociação por parte dos escravos. Vale ainda ressaltar que, na descrição de
seus bens, existiam casas de lavradores e casas de foreiros, fatores importantes para
pensarmos na estrutura de produção presente neste engenho, e no perfil da mão de obra
sustentado, assim como nas possíveis chances para os escravos juntarem algum pecúlio. Ao
mesmo tempo, se existiam lavradores em sua propriedade, precisar dos escravos,
principalmente homens em idade ativa, talvez nos mostre que funções estes prestavam
dentro da produção de açúcar. Ao mesmo tempo, ainda assim, acredito que Manoela pensou
em seus filhos que ficariam órfãos. A atitude de pagar pela alforria da escrava Maria indica
que entre senhor e escravo existiam relações de proximidades possíveis de atos ―generosos‖
e que levassem à liberdade. Se Manoela pagava a alforria de escrava, obviamente também
pensaria no futuro de seus próprios filhos pequenos.

Joaquina Maria de Queiroz, da nossa relação, a última do grupo de pequenos


proprietários, foi casada com o Capitão Henrique Pereira de Moraes Campello, possuía 6
filhos e 3 netos, e em 1877 declarou em seu inventário, entre outros, os seguintes bens:
declarou que possuía metade do valor do Engenho Oratório em 5:000$000, declarou que
possuía uma parte do valor da propriedade Pedra Furada, no valor de 2:600$000 mil réis,
declarou mais uma parte de 5:500$000 em valor no engenho Mathary, e que possuía 19
escravos, entre estes 8 homens e 11 mulheres.478 Nestes processos testamentais e de
herança, observamos que a senhora Joaquina não alforriou escravos em seu testamento, mas
repartiu eles com seus herdeiros. Vale ressaltar que a proprietária declarou não ter dinheiro
em mãos, situação diferente dos testamentos anteriores nos quais os proprietários tinham
poucos escravos, mas dinheiro em mãos, então partilhavam com seus herdeiros o dinheiro e
não escravos. Nestes casos, os cativos, muitas vezes, eram libertados pelos testamentos, e

478
Testamento de Maria de Queiroz. Caixa 114. Memorial da Justiça. Recife – PE. Inventário Maria de
Queiroz. Caixa

308
quase sempre de forma condicional. Assim, é interessante apreendermos estas ligações
entre alforrias, tamanho da escravaria, riqueza em dinheiro e bens de raízes, estado civil do
proprietário, se possuía herdeiros ou não, momento em que o engenho se encontrava no
processo produtivo e presença da família escrava. Observemos como procederam nos casos
de testadores que tinham entre 30 e 45 escravos, médios proprietários.

Os dois testadores que conseguimos fazer o cruzamento entre tamanho de escravaria


e processos testamentais foram João Roiz Mariz e Antônio da Mota Silveira que possuíam,
respectivamente, 30 e 43 escravos, e ambos não alforriaram em seus testamentos. Há, no
entanto, uma questão: Mariz não libertou, mas, em 1879, em seu testamento, deixou
1:000$000 para Guilhermina, a mulatinha, filha da escrava Luiza. João Mariz era
proprietário do Engenho Pagy de Cannabrava, casado com Luiza Maria das Neves, possuía
apenas 1 filho, como alguns testadores anteriores que deixaram dinheiro para algum cativo,
deixou também a quantia de 1:000$000 para ser dividida entre órfãos e viúvas, para rezar
algumas capelas de missas para as pessoas com quem negociou e por sua própria alma. Em
seu inventário foi declarado que João Mariz possuía 26 escravos, 12 homens, 13 mulheres e
1 criança. No total, a escravaria foi avaliada em 15:150$000. Entre as mulheres cativas,
Luiza, crioula, 28 anos, declarou no ato de avaliação que a inventariante Luiza Maria das
Neves, esposa do finado, tinha feito menção que ela escrava deveria ser liberta. Diante
disso, a escrava Luiza pede ao juiz que lhe desse a carta de liberdade. Não temos registros
deste ato, no entanto, Luiza era a mãe da mulatinha Guilhermina que recebeu a generosa
quantia de 1 conto de réis. Vale ressaltar que nesta época um escravo homem entre 20 e 30
anos custava em média 800$000 réis, portanto, o senhor João Mariz não ―concedeu‖
liberdade à sua escravinha, mas lhe deu em dinheiro mais do que valia a sua própria
liberdade, ou pelo menos a liberdade de sua mãe que foi avaliada em 400$000 mil réis. A
esposa de João Mariz já foi direto ao assunto, pelo menos, no que declarou sua escrava no
momento da sua avaliação. Há mais uma informação interessante presente no inventário de
João Mariz que diz respeito à venda de escravos. Este senhor, conforme as diversas cópias
de escrituras de venda de escravos anexadas em seu inventário, costumava participar do
comércio local de escravos, inclusive vendendo escravos para o próprio irmão que meiava o
Engenho Pagy com ele. Diante disso, podemos retomar aquelas conclusões de que o
escravo também era um bem que poderia angariar dinheiro para seu proprietário. Porém,

309
até mesmo para um senhor abastado? A meu ver, para estes proprietários, isto é, aqueles
que estavam ativos no comércio de cativos, ainda que num mercado local, e até mesmo
dentro do próprio engenho, o ato de alforriar seus escravos não se constituía como um ato
―empresarial‖, isto é, era melhor vendê-los, ainda por cima se fosse a benefício da
produtividade do próprio engenho. No caso, João Mariz possuía o Engenho Pagy de
Canabrava moente e corrente, mas não tinha lavouras, assim, provavelmente, o
fornecimento de cana era de responsabilidade do irmão que vivia no mesmo engenho e para
quem Mariz vendeu seus escravos. Nestas circunstâncias, o escravo além da função mão de
obra também funcionava como capital de giro. Vale lembrar que mesmo num momento de
baixa nos valores dos escravos, como o ano de 1879 (data do testamento e do inventário),
alforriar não era um bom negócio, nem mesmo como subsídio da possível relação
paternalista, valia mais vendê-lo, afinal, para Mariz, negociar era algo bem ―sagrado‖, valia
algumas capelas de missa. 479

Antônio da Mota Silveira Cavalcanti deixou seu testamento em 1874. Declarou que
era casado com D. Antônia Joaquina da Mota Silveira com quem teve 6 filhos, mas apenas
4 estavam vivos. O testador ainda declarou que possuía um filho fora do casamento com a
parda Inácia Maria. Para ela, deixou 3 escravos e mais o valor de 1:000$000 nas terras do
Engenho Jacaré, do qual era proprietário. Deixou também dinheiro para os outros filhos e
nomeou como tutor do seu filho Amando (com a parda Inácia) seu filho primogênito. Em
testamento, Antônio Silveira não alforriou nenhum dos seus 43 escravos (12 homens e 31
mulheres – valor total 16:000$000 contos de réis). Em seu inventário, datado de 1876, foi
declarado que Antônio Silveira possuía parte de terras no todo do Engenho Jacaré, moente
e corrente, com casas de vivenda, casa de engenho, casa de caldeira, casa de purgar,
senzala, estrebaria, casa de farinha, destilação grande de cobre, moenda de ferro, furo e
tanque, etc, tudo na quantia de 12:452$900. Além desta estrutura de produção de açúcar, o
proprietário também possuía lavouras e animais, demonstrando que existia um sistema de
produção açucareira em atividade. Vale ressaltar que, entre as obras do engenho, não
verificamos casas de lavradores ou casas de foreiros, mas, sim, senzala. Isso também nos
indica que, possivelmente, a mão de obra predominante nesta propriedade era a mão de

479
Testamento de João Roiz Mariz. Caixa 116. Memorial da Justiça. Recife (PE). Inventário de João Roiz
Mariz. Caixa 116. Memorial da Justiça. Recife (PE).

310
obra escrava, motivos, entre outros, que levaram Antônio Silveira a não alforriar seus
escravos. Ainda é interessante perceber que em testamento Silveira apenas doou escravos
para a parda Inácia com quem teve um filho. Os outros filhos não receberam este tipo de
doação. Que mistérios envolvem estas relações? O quanto era valioso um escravo numa
escravaria com cerca de 40 escravos, numa propriedade com engenho moente e corrente?
Mais informações adiante trarão algumas sugestões.

Por hora o que podemos concluir diante destas comparações entre propriedades,
heranças e vontades senhoriais próximos à sua morte? Entre as conclusões de Lizandra
Ferraz sobre a prática de alforria na década de 60, a autora verificou que neste período
ocorreu um aumento significativo nas alforrias nas grandes propriedades. Citando Robert
Slenes, a pesquisadora coloca que os senhores de grande escravaria em Campinas sofriam
menos entraves econômicos do que aqueles senhores de pequenos plantéis, que num
momento de dificuldade financeira tendiam a vender os seus cativos. Da mesma maneira,
os escravos nas propriedades de plantation possuíam um maior poder de barganha em
relação à produção, o que segundo Slenes ―conferia mais recursos aos escravos na sua
negociação com os donos – isto é, mais poder para ‗sabotar‘ a produção – do que no caso
no cultivo em pequena escala‖.480 O autor ainda aponta que este poder de barganha deve ser
aumentado após 1850 devido à escassez da mão de obra escrava e o aumento do preço dos
cativos. Diante disso, Ferraz sugere, levando em conta seu estudo sobre Campinas (SP),
que os senhores a partir da década de 1850 adotaram a prática da alforria como um
instrumento político de controle tanto da população cativa (através da expectativa de
liberdade) quanto da população liberta (através do recurso da gratidão) para superar os
problemas deste período como a escassez de mão de obra escrava. Lizandra Ferraz ainda
acrescenta:

Esta interpretação pode também explicar, a superioridade das alforrias


condicionais que observamos na década de 1860, uma vez que os senhores ao
libertar condicionalmente controlavam, pelo menos por um tempo maior, os
serviços desse liberto condicional e ainda incutiam nos demais cativos uma
possível chance de liberdade. 481

480
FERRAZ, L. op cit, 2008, p. 82. SLENES, R. Na senzala uma Flor: Esperanças e Recordações na
formação da família escrava – Brasil sudeste, século XIX. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999, p.111.
481
FERRAZ, op cit, 2008, p. 82.

311
Em nosso estudo de casos sobre a Zona da Mata Norte pernambucana, verificamos
três categorias analíticas: 1) o perfil do proprietário; 2) o perfil do escravo e sua
comunidade, 3) as condições de produção do engenho. Nestas categorias, sugerimos
investigar as seguintes variáveis para a prática da alforria nos testamentos: 1) Quanto ao
perfil do proprietário: o estado civil do proprietário, a presença de herdeiros – sua
quantidade e faixa etária, a mentalidade do senhor, a religião do senhor. 2) Quanto ao perfil
do escravo e sua comunidade: a presença da família escrava, a idade do escravo e dos
outros, seu sexo, sua cor, seu valor no mercado e as possíveis relações entre o senhor e o
escravo. 3) Quanto às condições de produção do engenho: o tamanho da escravaria, a
riqueza em dinheiro, os bens de raízes, a necessidade do proprietário utilizar o escravo
como capital de giro, a presença de foreiros ou lavradores, a atividade do engenho (parado
ou moente e corrente) e a presença de lavouras. Obviamente estas categorias e variáveis são
interligadas e precisam ser analisadas em conjunto. São também aspectos que verifiquei
tendo como base a minha amostragem e diante das circunstâncias específicas do meu objeto
de estudo, fato importante de se observar num exercício de comparação. Como assinalamos
anteriormente, na comarca de Nazareth no período que estamos estudando, entre 1867 e
1887, não existiam muitos senhores proprietários de grandes escravarias, com mais de 50
escravos. A grande maioria era de senhores medianos, mas que possuíam uma variação de
riqueza grande, assim como era variável a capacidade dos engenhos de cada proprietário.
Outra problemática é que existiam muitos engenhos que possuíam dois ou mais
proprietários, assim, existe um condicionante a mais que é a relação senhor-escravo e a
realidade do engenho todo. Tentamos analisar este aspecto também. A sugestão aqui,
obviamente, é que ainda precisamos explorar mais estes estudos e, principalmente, em
frentes de pesquisas regionais. Por hora, acredito que é crucial traçarmos relações entre
tamanho da escravaria e a carta de alforria, como também atentarmos para os aspectos
acima relacionados.

Numa visão ampla dos últimos trabalhos sobre a temática, Robert Slenes em seu
artigo ―Great Arch‘ Descending: Manumission Rates, Subaltern Social Mobility and Slave
and Free(d) Black Identities in Southeastern Brazil, 1791-1888‖ prenuncia o argumento
aqui utilizado de que é necessário um olhar mais próximo de cada contexto ao buscar
compreender os processos de manumissão no Brasil. O autor analisa que estudos recentes

312
de alforria em testamentos e processos de herança, que ligaram as liberdades individuais
nas listas de avaliação de escravos para lugares no século XIX e Sudeste XVIII, sugerem
alguns contrastes interessantes. Verificou-se que pequenos proprietários alforriavam,
proporcionalmente, mais em testamentos do que os grandes proprietários. Segundo o autor,
nas plantations de Campinas, oeste de São Paulo, na segunda "escravidão" (1836-1845), a
morte (sucessão testamentária ou ab intestato) de "pequenos proprietários" (aqueles que
têm um até 20 escravos) resultou uma porcentagem de manumissões, por vontade ou
durante a herança, de 66 em cada mil cativos possuídos por estes falecidos. No entanto, esta
porcentagem foi quase o dobro dos 37 mil libertados por ocasião da morte dos "grandes
proprietários" (com 41-100 escravos) e cerca de treze vezes (5 por mil libertados) por
"muito grandes proprietários" (com mais de 100)482. Diante disso, Slenes sugere que mais
pesquisas em micro-história sejam desenvolvidas para ampliar este quadro de análise,
pesquisas, sobretudo, que também acessem fontes de alforrias como os registros de
batismos, cartas de liberdade em notas cartoriais, testamentos, processos de heranças. Para
ele, a intenção deste percurso investigativo é interessante, pois a ―lógica social‖ que ele
acredita que levou um sub-conjunto de pequenos proprietários a mostrar mais
―generosidade" do que os grandes proprietários quando concediam suas manumissões em
testamentos, também deve ter levado este grupo a ser mais favorável a outros tipos de
liberdade. Assim, Slenes aposta que a partir dos dados disponíveis atualmente a taxa de
alforria em grandes propriedades foi geralmente mais elevada do que em todo o período
pós-1830 do Sul dos EUA, onde os direitos dos proprietários para libertar os trabalhadores
eram geralmente limitados por lei; entretanto, ―a porta para a liberdade em tais
propriedades, provavelmente, não foi aberta o suficiente, mesmo para os crioulos, para ter
um impacto significativo sobre as identidades e estratégias. De fato, para os próprios
escravos nas grandes propriedades, certamente a medida mais relevante de privação foi a
experiência de cativeiro em pequenas propriedades. Vistas neste contexto interno, as
grandes propriedades devem ter parecido sistemas fechados, que ofereciam pouca chance
de liberdade‖.483

482
Slenes está se referindo aos trabalhos de Paiva (2000: 176) ; Freire (2009: 323), Lizandra Ferraz (2010 em
andamento), Freire (2009: 323), Salles (2008: 291, 307).
483
Slenes, Robert. A ―Great Arch‖ Descending: Manumission Rates, Subaltern Social Mobility and Slave and
Free(d) Black Identities in Southeastern Brazil, 1791–1888. In: John Gledhill e Patience Schell, orgs.,

313
Para Slenes, novos estudos sobre alforrias sugerem que nas alforrias os incentivos
na escravidão das plantation não levaram a um canal amplo em direção à liberdade, mas um
―ponto de estrangulamento‖, cujas restritas recompensas não teriam sido suficiente para
transformar as tensões individuais em grupos de animosidades - a não ser que houvesse
outros fortes motivos para a divisão da senzala. Para o autor, portanto, torna-se imperativo
olhar de perto as tradições culturais trazidas pelos africanos instalados na região sudeste do
Brasil. A presença de grupos de pessoas radicalmente diferentes pode ter enfraquecido ou
mesmo derrotado um imperativo na senzala na busca de um terreno comum. Ao contrário, o
encontro entre tradições estreitamente relacionadas pode ter facilitado esse esforço.484
Neste estudo, pesquisando o período posterior a 1860, a intenção talvez não seja
alcançar as tradições culturais trazidas pelos escravos africanos exclusivamente, porém,
pensar como os escravos (africanos e brasileiros) da comarca de Nazareth, na Zona da Mata
Norte, pertencentes em sua maioria a médias escravarias, agiram diante da existência ou
não da prática de alforria, fosse testamental, por herança, condicional, incondicional ou
através de pecúlio. Através de nossos estudos constatamos, como colocado mais acima, que
neste período, das porcentagens de alforrias registradas em cartórios, as incondicionais
vieram em primeiro lugar (63,51%), em segundo vieram as alforrias conquistadas com
pecúlio (31,08%) e em terceiro as condicionais (2,70%). Nos testamentos, as incondicionais
vieram em primeiro (62,07%), as pagas em segundo (24,13%) e as condicionais em terceiro
(6,89 %). Existiu, portanto, uma proporção significativamente maior de alforrias registradas
e em testamentos que ocorreram de forma incondicional. Estas indicações levam-nos a crer
que os escravos dos engenhos da comarca cultivavam relações de cunho paternalista com
seus senhores, e que as mesmas lhes traziam saldos positivos, como a liberdade sem
condições. No mais, a presença marcante do pecúlio também nos remete à luta diária do
escravo pela liberdade individual e dos seus entes. A presença de lavradores e foreiros em
alguns engenhos também abriu portas para a alforria dos cativos que com eles mantinham
relações. No mais, ainda temos os dados significativos das ações de liberdade, que
comprovam as estreitas ligações entre livres e escravos na comarca de Nazareth. Vale ainda
ressaltar que os grandes favorecidos foram: crioulos, pardos e mulatos e mulheres.

Rethinking Histories of Resistance in Brazil and Mexico (Durham, North Carolina: Duke University Press, no
prelo).
484
Idem, op. cit., p.14.

314
Voltando às considerações de Slenes, acrescento que todo este cenário pernambucano de
conquista pela liberdade também foi composto pelas manifestações culturais que os
escravos realizavam ora sob olhos do senhor, ora escondidos na mata, manifestações que se
talvez não trouxessem uma identidade cultural tradicionalmente africana, ao menos,
reviveram aspectos da cultura da África, num processo de ressignificação da realidade da
cana e do engenho pelos seus principais sujeitos: os escravos crioulos, pardos, mulatos,
pretos, angolas.

3.4) Escravos que se libertam: de onde vem, para onde vão, por que ficam?

Para entender melhor a lógica das alforrias ocorridas na comarca de Nazareth entre
1867 e 1887, um caminho foi propor alguns cruzamentos entre os escravos e escravas que
conseguiram suas alforrias ou participavam de uma ação de liberdade, e seus senhores e
suas escravarias. Quais são os aspectos econômicos e sociais que se relacionaram ou não
com os processos de liberdade? Quem libertava mais, grande, pequenos ou médios
senhores? E que tipo de liberdade era conquistado e/ou permitido? A perspectiva aqui,
todavia, é perceber as relações entre propriedade e as alforrias registradas em cartório, os
quais, como observamos, em sua maioria ocorreram de forma incondicional e com
percentagem significativa através do pecúlio.
Em 1870, os pequenos André e Isabel, de 7 e 6 anos foram alforriados por João
Antônio da Mota Silveira, morador do Engenho Jacaré, filho de Antônio da Mota Silveira
Cavalcanti, este proprietário do mesmo engenho e do escravo José, pai das crianças
libertadas. Os escravinhos foram herança da mãe de João, Antônia Joaquina da Mota
Silveira que faleceu em julho de 1869. Dona Antônia Joaquina deixou para seus 6 filhos
herdeiros e seu marido Antônio da Mota Silveira Cavalcanti todos os seus bens, entre eles
52 escravos nos valores entre 100$000 e 1:400$000. Entre os outros bens havia o Engenho
Jacaré, moente e corrente, casas de vivenda, de engenho, de caldeira, de purgar, senzala,
estrebaria, casa de farinha com aviamento, de boladeira, tudo de tijolo, destilação grande e
de cobre, tudo novo, moenda e tachos de ferro, formas, furos, correntes, tanque, dois
balcões, balanças e pesos. O engenho foi avaliado em 30:000$000 e as outras quatro
propriedades avaliadas em 17:000$000 contos de reis. Na parte da lavoura declarou haver

315
uma safra nova de canas no engenho Jacaré, mas em mau estado, avaliada em 1:000$000.
Em produto, possuía 70 pães de açúcar nos andaimes em 460$000 e 4 cargas de açúcar
branco em 120$000. No total líquido, incluindo o pagamento das dívidas, a falecida
Antônia Joaquina deixou para seus herdeiros a quantia de 100:429$730, sendo a metade
destinada ao marido Capitão Antônio da Mota Silveira Cavalcanti.
Entre os escravos, 36 ficaram para o Capitão Antônio, e o restante, 16 escravos,
foram divididos entre os filhos. José, pai das crianças Isabel e André, no inventário foi
avaliado por 800$000, preço de um escravo de mais ou menos 40 anos de idade. Assim,
não era um crioulo como Benedito, de 35 anos que valia 1:000$000, mas também não era
Antônio, angola, de 60 anos valendo 400$000. Por seu valor monetário, José se encaixava
em uma posição intermediária entre um escravo caro, jovem, sadio, bom para trabalhos
braçais, e um que já estava com a idade avançada e, portanto, provavelmente rendia menos.
Na partilha, Isabel e André tornaram-se escravos de João Antônio. Isabel, cabra, 4 anos, foi
avaliada em 400$000 e André, cabra, em 200$000 réis.
Um ano depois dessa partilha, André e Isabel foram libertados por seu senhor. Se
não tivéssemos analisado o testamento do pai de João, o Capitão Antônio, poderíamos
sugerir que como este era proprietário de José, pai das crianças, poderia ter existido um
auxílio por parte do Capitão para a concessão da liberdade das crianças. Poderia ser que
José fosse um escravo de confiança entre os outros 36. Na carta de liberdade, por exemplo,
não verificamos o pagamento de pecúlio. Assim, será que o Capitão Antônio auxiliou estas
liberdades? Em seu testamento, 4 anos depois, em 1874, o Capitão não alforriou nenhum de
seus escravos, assim, talvez fosse difícil este pensamento ―generoso‖ ter acontecido em
1870. As liberdades de André e Isabel foram incondicionais, no entanto, mantendo o pai
escravo, as crianças continuariam vivendo sob o domínio senhorial, e quando crescidas,
trabalhariam com os outros, ainda carregando a gratidão pelo ato do senhor. A boa notícia,
porém, é que na lista de matrícula de 1872, José não apareceu como escravo do Capitão
Antônio. Não sabemos o que de fato aconteceu, torcemos para que José tenha conquistado
sua liberdade, e não tenha sido vendido para outro senhor. A realidade, no entanto, era um
pouco diferente, as informações sobre o senhor de José, o Capitão Antônio Silveira, não
nos trouxeram evidências de que recompensava seus cativos. Em 1873, sofreu uma ação de
liberdade de outra escrava, Luiza. Vejamos a história.

316
Como verificamos anteriormente, o Capitão Antônio da Mota Silveira Cavalcanti
morreu em agosto de 1875; em seu testamento, declarou ter os filhos com a falecida
Antônia Joaquina, João, Joaquim, Antônia e Ana, falecidos Manoel e Antônio, e confessou
que por fraqueza humana teve um filho natural de nome Amando, de idade de 4 anos, sendo
sua mãe a parda Inácia Maria, solteira. Todos foram incluídos como herdeiros, e o finado
deixou à parda Inácia Maria da Conceição os escravos Antônio, Joaquina e Sebastiana e
mais o valor de 1:000$000 nas terras do Engenho Jacaré. Seu filho Joaquim tornou-se o
tutor de Amando, a fim de que ele fosse educado num colégio e numa academia do Império
para formar-se.485 A mãe Inácia foi umas das escravas de herança da esposa de Antônio
Cavalcanti. Em 1869, tinha 18 anos e foi avaliada em 1:4000$000, entre os 52 escravos, era
a de maior valor. Na época de seu falecimento, em 1876, o Capitão Antônio possuía 43
escravos com valores entre 100$000 e 1:2000$000, e por motivos óbvios, Inácia não era
mais sua escrava.
Capitão Antônio Silveira Cavalcanti e sua esposa Antônia Joaquina Mota Silveira,
donos do engenho Jacaré e outras terras, não tinham o costume de alforriar escravos,
ambos, por exemplo, não alforriaram em seus testamentos, e entre os proprietários da
comarca, estavam entre os possuidores de uma grande escravaria com idade ativa de
trabalho. No inventário do Capitão, por exemplo, encontramos apenas um escravo acima de
46 anos e poucos abaixo de 13 anos. Há evidências, desse modo, de que nas relações entre
Capitão Antônio e seus escravos ocorriam poucos incentivos de recompensa em troca de
liberdade. Em 1873, por exemplo, a escrava Luiza teve que recorrer à Justiça para
conseguir sua liberdade por direito.
Segundo o curador da ―preta‖ Luiza, esta deveria estar livre por conta da carta de
alforria dada pela viúva D. Josefa Maria da Soledade, falecida. Diante dos fatos, a escrava
pretendia sua plena liberdade, no entanto, tinha estado como cativa em metade de seu valor
de 900$000. Como na referida carta não mencionava nenhuma cláusula depois da morte da
doadora, foi requerido seu pretenso senhor o Capitão Antônio da Mota Silveira Cavalcanti,
morador no Engenho Jacaré.486 No resultado da sentença, foi julgada procedente a ação
intentada pela preta Luíza, por seu curador, em face do reconhecimento e desistência de

485
Inventário de Antônio da Mota Silveira Cavalcanti. Testamento anexo 28/09/1874. Museu do
Açúcar/Fundaj.
486
Ação de Liberdade de Luiza.18/10/1873. Museu do açúcar/FUNDAJ.

317
seus presumidos senhores. Assim, Luiza conseguiu sua carta de liberdade e ―gozou de sua
inteira liberdade como se de ventre livre nascera‖487. Antônio Silveira não recorreu à
Justiça, mas foi ao réu no julgamento; como observamos, ele não costumava alforriar seus
escravos, ao mesmo tempo, também não precisava brigar na Justiça por conta de uma
escrava que recebera de doação e que, provavelmente, trabalharia na casa grande. Era um
grande proprietário, com seu Engenho moente e corrente, e em plena expansão, afinal entre
1869 e 1873 foi um assíduo comprador de terras, provavelmente, para plantar mais canas e
aumentar sua produção.488 Contudo, o fato de a família possuir uma escravaria grande,
assim como uma propriedade em pleno funcionamento e produção, não nos diz ainda tudo
sobre a prática de alforria nesta família de proprietários.
Amando Ivo da Mota Silveira, pardo, filho de Inácia e do Capitão Antônio, faleceu
em janeiro de 1888. Por conta de sua morte, Inácia, ainda viva, requereu, no mesmo ano, os
bens pertencentes ao filho que estavam em mãos do tutor Joaquim Manuel da Mota
Silveira, nomeado 12 anos antes. Para tanto, a suplicante teve que juntar certidão de
batismo, de óbito, da herança paterna do dito finado e do valor que o Engenho Jacaré valia
em 1876.489
O batismo de Amando ocorreu no dia 12/12/1869 - quatro meses depois que a
esposa do Capitão Antônio Cavalcanti, Antônia Joaquina, tinha falecido - no oratório da
casa de vivenda do Engenho Jacaré, realizado pelo Padre Frei Francisco de São
Boaventura. O batizado tinha apenas 8 meses, e estavam presentes a mãe Inácia e os
padrinhos Antônio Martins da Cunha Souto Maior e sua mulher, D. Paula de Jesus Souto
Maior. O registro se deu na paróquia de Santo Antônio de Tracunhaém, pelo vigário Basílio
Gonçalves da Luz. Amando morreu aos 18 anos, como cadete, assim como pedira seu pai
em testamento.
Na época do falecimento de Antônio, em 1876, o Engenho Jacaré valia 30:000$000,
sendo o quinhão de Amando 13:252$900 no valor de: engenho e bens, algumas partes de
terra, animais e os escravos Malaquias, 12 anos, cabra, valor 600$000; Marcolino, cabra,
valor 500$000; José, pardo, valor 400$000; Rosa, parda, 36 anos, 400$000. No entanto,
doze anos depois, em 1888, a mãe de Amando, Inácia, conseguiu provar que era de fato

487
Ação de Liberdade de Luiza.18/10/1873. Museu do açúcar/FUNDAJ.
488
Registros de compra e venda de terras entre 1869 e 1874. Cartório de Nazaré. Museu do Açúcar/FUNDAJ.
489
Inventário de Amando Ivo da Mota Silveira. 20/02/1888. Cartório de Nazaré. Museu do Açúcar/FUNDAJ.

318
herdeira do falecido, e passou a ser proprietária dos bens do filho. O inventariante, Joaquim
Manoel da Mota Silveira, que até aquele momento cuidava dos bens de Amando, repassou
à herdeira como de direito: uma vaca avaliada em 40$000, parte na propriedade e obras do
Engenho Jacaré, parte na propriedade Canafístula, parte na propriedade Malombá, e os
escravos Malaquias, pardo, 24 anos, valor 60$000, Marcolino, 20 anos, solteiro, 140$000.
No entanto, uma nova informação mudaria um pouco os rumos dessa conquista de Inácia.
Verificamos que no ato do inventário foi entregue a carta de liberdade aos outros escravos
que por direito pertenciam à Inácia. E, a última escrava, de nome Rosa, que também foi
doada a Amando e por herança pertenceria à sua mãe Inácia, seis anos depois do inventário,
em 1888, com 48 anos de idade, requereu sua liberdade no Juízo 3 meses antes da abolição.
Ao longo das décadas de 70 e 80 não verificamos na família deste grande
proprietário uma significativa quota de alforrias e de fato isso parece ter permanecido até
alguns meses antes do fim da abolição. No entanto, talvez para Joaquim Silveira, filho e 1º
herdeiro do Capitão, em momento de perder alguns escravos para a mãe parda do irmão
bastardo, a carta de liberdade foi bem vinda. Foi, talvez, uma estratégia de incentivo
positivo para que seu investimento no crescimento de Marcolino e Malaquias não se
perdesse. Eles ainda estavam em idade ativa de trabalho, e, talvez, ainda que tivessem
liberdade, pelo ―generoso‖ ato de Joaquim, estes poderiam decidir continuar a trabalhar no
Engenho Jacaré e suas plantações. Ou, talvez não, pois ainda que por herança eles
pertencessem à parda Inácia, com suas cartas de liberdade na mão, o mundo afora seria
mais interessante. Para Rosa, certamente, a liberdade era a melhor opção, e foi atrás disso
em uma ação na Justiça, afinal, possivelmente, seu antigo senhor Joaquim não lhe concedeu
a carta de liberdade porque uma escrava com 48 anos de idade talvez não lhe fosse tão
essencial na produção, portanto, não valia seu ato de ―generosidade‖, pois, possivelmente,
após a liberdade, Rosa abandonaria seus serviços.
O filho mais velho do Capitão Antônio da Mota, Joaquim Manoel da Mota, desde a
morte de seu pai, em 1875, se apossava dos escravos pertencentes à Inácia. Como o Capitão
declarou em testamento, deixara à parda Inácia, mãe do dito menor Amando, os escravos
Antônio, Joaquina e Sebastiana, e mais o valor de 1:000$000 nas terras do Engenho

319
Jacaré.490 Em 1877, todavia, Inácia Maria moveu uma ação executiva contra Joaquim
Manoel, pois segundo a autora o testamenteiro Joaquim apesar de findo o prazo legal para
cumprimento do testamento, ainda não tinha feito, até aquela data, a entrega da escrava
Joaquina.491 De fato, no inventário do Capitão registrou-se o pagamento feito à legatária
Inácia, mãe do órfão Amando, o valor de 2:1000$000: Antônio, crioulo, carreiro, 800$000,
Sebastiana, crioula, 300$000 e 1:000$000 no valor do Engenho Jacaré.492 A escrava
Joaquina não foi entregue para Inácia no ato do inventário, mas ela sabia que no testamento
a cativa era sua por direito. Mesmo assim, ela desistiu da ação. Não era tão simples assim
um proprietário, diante de uma considerável escravaria, partilhar um escravo, ainda que
fosse pela vontade do patriarca da família.
Novamente questiono: o que significava um escravo numa grande escravaria? O que
era ser um escravo numa grande escravaria na comarca de Nazareth? O que significava para
um grande proprietário alforriar ou vender um escravo? E mais do que isso, a exemplo da
família do Capitão Silveira, o que representava para um proprietário admitir que uma parda,
ex- escrava, que teve um filho com o patriarca da família, gozasse do prestígio de ser
proprietária? Como, observamos, não era nada fácil para uma parda gozar do direito à
propriedade escrava, e, pelo contrário, muito se fazia para impeli-la. Esse pode ser apenas
um exemplo, porém, é significativo pensar como um senhor abastado, mesmo próximo de
maio de 1888, ainda temia e entravava a ascensão social de uma mulher parda. E aqui
devemos perguntar: o que significava socialmente uma parda livre na sociedade de
Nazareth?
Nos exemplos das duas grandes escravarias existentes na década de 70 na comarca
de Nazareth, isto é, no Engenho Braúna (mais acima citado) e no Engenho Jacaré,
respectivamente com 58 e 53 escravos no início dos 70, não verificamos o ―costume‖ de se
assinar manumissões. Os casos de liberdade que ocorreram nas duas escravarias foram ou
por parcialidade da família do proprietário, ou por conta de uma ação de liberdade, ou,
possivelmente, por uma tática imediata na tentativa de não perder mão de obra em idade
ativa. Ainda que os dois exemplos pareçam poucos, em duas amostragens de fontes

490
Inventário de Antônio da Mota Silveira Cavalcanti. Testamento anexo 28/09/1874. Cartório de Nazaré/
Museu do Açúcar/Fundaj.
491
Juízo Cível. Ação Executiva de Inácia Maria contra Joaquim Manoel da Mota Silveira. 12/02/1877.
Cartório de Nazaré/ Museu do Açúcar/Fundaj.
492
Inventário de Antônio da Mota Silveira Cavalcanti. .1876. Cartório de Nazaré/ Museu do Açúcar/Fundaj.

320
documentais diversas, a percentagem de alforrias entre grandes proprietários de escravos é
baixa. Vejamos outras escravarias.
Emereciana Maria da Piedade, proprietária do Engenho Junco e co-proprietária do
Engenho Trapuá, faleceu em 1877 possuindo 29 escravos entre os valores de 200$000 –
1:200$000. Entre 1867 e a data de seu falecimento alforriou 6 escravos. Casada com o
falecido Antônio Vicente da Costa, teve 9 filhos, sendo vivos apenas 5. Declarou haver o
Engenho Junco, moente e corrente, com obras e benfeitorias, com capela paramentada, casa
de vivenda, robustos de ferro, caixas e bacias de madeira, casa de fornalha, forno de
cozinhar tijolo, casa de purgar com formas, furos e correntes e tanque, balança e pesos de
ferro, casa de farinha com aviamentos, senzala, estribaria, uma casa de vivenda, casa de
lavradores, cercado fechado, açude e sua propriedade, mais duas partes da propriedade
Alagoa dos Paus, avaliado o dito engenho em 30:000$000 e mais 653$000 relativo a uma
parte de terras no todo do engenho Trapuá.493
Em 1867, João e Maria, angolas, respectivamente, de 50 e 48 anos de idade, tiveram
sua carta de liberdade ―concedida‖ por Emereciana Piedade, em vista dos bons serviços
prestados. Não foi pago pecúlio e a carta não contém condições de serviços. De fato, pela
idade avançada do casal, não lhe caberia o pagamento de mais anos de trabalho. No
entanto, talvez Emereciana não pensasse assim, afinal, como ficou implícito na carta de
liberdade, João e Maria foram libertos por esta, mas por conta do óbito do marido. Assim,
podemos sugerir que existia alguma condição entre os escravos e o falecido que cessaria
com a morte do senhor dando a liberdade aos cativos. Fato semelhante aconteceu, no
mesmo ano, com a escrava Simôa, de 60 anos que teve sua liberdade por bons serviços
assinada pelos filhos e genros após a morte do Capitão José Barbosa de Queiroz, senhor do
engenho Retiro.494
Situação diferente do escravo José, angola, de 60 anos, marido da escrava Josefa
que, em 1867, foi alforriado pelo pagamento de 150$000 para João Gonçalves da Silva co-
proprietário do engenho Alagoa do Ramo de Baixo.495 Diferente também era a situação
econômica deste proprietário. Quando faleceu em 1869, João Gonçalves deixou em bens a

493
Inventário de Emereciana Maria da Piedade. 3/09/1877. Cartório de Nazaré. Museu do Açúcar/FUNDAJ.
494
Cartas de Liberdade de João e Maria. 1867. Carta de Liberdade de Simôa, 27/03/1867. Cartório de
Nazaré/Museu do Açúcar/FUNDAJ.
495
Carta de Liberdade de José. 2/05/1867. Cartório de Nazaré/Museu do Açúcar/FUNDAJ.

321
quantia de 2:692$100, contando escravos, partes de terra e do engenho Alagoa. Quando
morreu possuía apenas 3 escravos: Damião, mulato, 900$000, Francisco, mulato, 900$000
e Josefa, esposa de José, no valor de 50$000.496 Diante da situação, talvez libertar José, de
60 anos, fosse uma forma de se livrar de encargos que, possivelmente, em sua situação
econômica poderia ser um demasiado peso. Como José era casado com Josefa, e esta se
manteve escrava, ambos continuaram trabalhando para João Gonçalvez. Este, por sua vez,
aceitando o pecúlio e dando a liberdade a José, se livrou de um encargo e ainda se
apresentou como um senhor ―generoso‖.497
Para Simôa, João e Maria, escravos pertencentes a uma escravaria média, a
liberdade apresenta-se como uma recompensa pelos anos de serviço. Recompensa também
para os proprietários que ao concederem a liberdade estimulavam também os outros
escravos ao trabalho, à dedicação e à complacência. No caso da proprietária Emereciana
Piedade, 5 anos depois, em 1872, ela alforriou mais 3 escravas: Catarina, 60 anos; Luiza, 50
anos; e Maria, 23 anos. Catarina conseguiu sua liberdade com o pagamento do pecúlio no
valor de 200$000, Luiza, com 250$000, um terço do seu valor, conseguiu a carta, e Maria,
avaliada em 1:000$000, também se alforriou pagando como pecúlio um terço de seu
valor.498 É interessante que as três foram alforriadas no mesmo dia, 2/06/1872. Seria uma
recompensa em grupo? Se foi uma recompensa, vale dizer que foi uma generosidade em
parte, uma vez que a outra parte estava sendo paga pelas escravas. O processo de liberdade,
portanto, trazia a participação ativa do escravo, ainda que também trouxesse a outra face da
moeda, o domínio camuflado da senhora através da bondade. ―Bondade‖ que em 1876 se
repetiu, a senhora Emereciana assinou a carta de liberdade de Ana, filha dos libertos João e
Matilde.499
No Engenho Retiro, no qual Simôa conseguiu sua liberdade, entre os herdeiros do
Capitão José Barbosa de Queiroz que assinaram sua carta de liberdade estavam João
Barbosa Albuquerque Vasconcelos e Joaquim Ricardo Albuquerque Vasconcellos. Em
1871, João Barbosa, co-senhor do Engenho Retiro, alforriou Custódio, cabra de 6 anos,
filho da escrava Bertolina ―por (esta) ter criado seu senhor como se fosse seu filho‖. A

496
Partilha amigável. Nazaré Caixa 96. Memorial da Justiça/Recife.
497
Ver SLENES, op. cit., 1975, p. 547.
498
Cartas de liberdade de Luiza, Catarina e Maria. 2/06/1872. Cartório de Nazaré/Museu do
Açúcar/FUNDAJ.
499
Carta de Liberdade de Ana. 8/12/1876. Cartório de Nazaré/Museu do Açúcar/FUNDAJ.

322
escrava pagou o pecúlio de 500$000 e conseguiu a liberdade do filho sob a condição de
ficar em companhia de seu senhor até os 22 anos, ―para criá-lo e educá-lo‖.500 É
interessante perceber que as palavras na carta expressam a atitude do senhor vinda de uma
imensa gratidão, uma recompensa que o senhor estaria dando à sua escrava dedicada e que,
além da liberdade, o pequeno Custódio ganharia também criação e educação até os 22 anos,
ou nas entrelinhas, seria escravo até então. Liberdade condicional que, no mais, foi
alcançada por um pecúlio acima do mercado. Comparando com outros valores de escravos
em outros inventários no mesmo ano de 1871, constatamos que um escravo, cabra, de 17
anos ou uma escrava, cabra, 30 anos, valia 700$000; ou ainda um escravo, cabra, 14 anos,
valia 500$000.501 Será que o pecúlio de 500$000 mil réis para uma criança de 6 anos não
era um valor superestimado? Ainda mais para uma liberdade que viria de fato depois de 16
anos?
Joaquim Ricardo de Albuquerque era filho de Manoel Ribeiro de Albuquerque
Vasconcelos, e neto de João Barbosa de Queiroz, todos co-senhores e co-proprietários do
Engenho Retiro. Em 1887, Manoel Ribeiro faleceu e deixou parte de sua herança com seu
filho Joaquim, um total de 1:220$000 contos de réis em safra do Engenho Retiro, 250$000,
casa da propriedade Manca em 150$000, parte do sítio do Uruá 500$000, animais e a
escrava Ana, 80$000.502 Ana, seis meses depois da partilha, entrou na Justiça com uma
ação de arbitramento contra seu novo senhor Joaquim Ricardo. O advogado de Ana,
Fabrício de Albuquerque, expôs que a preta havia sido arbitrariamente castigada e não
querendo voltar ao seu senhorio, temendo por sua liberdade, exibiu a quantia de 40$00 que
seria suficiente para a indenização do seu valor uma vez que a escrava se encontrava em
mal estado de saúde. O juiz municipal determinou que fosse depositado o pecúlio e
apresenta-se o curador para seguir a audiência. Depois de ter passado por um tratamento
médico, cujo encarregado foi o depositário Dr. Antônio Cavalcanti Pena, Joaquim Ricardo
embora tivesse considerado o pecúlio bem abaixo do valor da escrava avaliada em 80$000,
―concedeu e concordou‖ com a alforria da mesma escrava pela quantia exibida. Joaquim,

500
Carta de Liberdade de Custódio. 1871. Cartório de Nazaré/Museu do Açúcar/FUNDAJ.
501
Inventários de José Nunes de Souza e Miguel da Cunha Araújo Pinheiro. 1871. Cartório de Nazaré/Museu
do Açúcar/FUNDAJ.
502
Inventário de Manoel Ribeiro de Albuquerque Vasconcelos. 21/05/1887. Cartório de Nazaré/Museu do
Açúcar/FUNDAJ.

323
no entanto, renunciou o valor recebido da escrava a favor da Sociedade Beneficiente de
Nazareth.503
Muitas vezes, a crueldade era elemento crucial para a busca da liberdade na Justiça.
Nesses casos, a ―concessão‖ da liberdade mesmo através do pecúlio não adiantava. Foi
preciso Ana entrar na Justiça, passar pelo processo, para que conseguisse sua alforria. O
fato do senhor Joaquim Ricardo não aceitar seu valor não passava por motivos econômicos.
Apesar de ter herdado apenas Ana como escrava de seu pai, a ordem era preservar o
patrimônio pelo seu justo valor, nem tanto pelo dinheiro em si. Prova disso foi a doação do
pecúlio para a Sociedade Beneficiente da cidade. Obviamente, o prestígio, a moral
senhorial atribuída à posse de um ser humano ainda eram muito preciosos em tempos que o
valor capital do escravo já havia decaído muito. E aqui voltamos à questão do valor do
escravo enquanto capital e ser humano passível de posse. Como podemos constatar, as
significações variavam.
O Engenho Babilônia, por sua vez, foi o que mais alforriou escravos na década de
70. Entre 1872 e 1881 foram libertados 9 escravos. O Engenho era de propriedade de José
Antônio da Costa Azevedo, marido de D. Felícia Joaquina da Costa Azevedo. Após seu
falecimento seus bens foram para usufruto de Felícia que se tornou ―mulher‖ de seu
sobrinho João da Costa Ribeiro e Souza. Assim, em junho de 1872, o ―mulatinho‖ Ageu, de
7 anos, filho da escrava Josefa, foi alforriado e batizado como livre pelo Padre Marcolino
Alves dos Prazeres Lima; em julho do mesmo ano, a ―escravinha‖ Rosa e a ―mulatinha‖
Lucrecia, esta de 5 anos, filhas da escrava Firmina, foram libertadas por João da Costa e
Felícia Joaquina, respectivamente, pela quantia de 100$000 e 2000$000 mil réis. Em 15 de
maio de 1873, Felícia alforriou a crioula Severina, de 50 anos de idade, por livre vontade. E
um dia antes, Josefa, avaliada em 1:100$000, conseguiu sua liberdade com o pagamento do
pecúlio de 600$000 e em vista dos bons serviços prestados. Neste caso, os herdeiros do
finado José Antônio assinaram sua carta de liberdade. Já, por conta do falecimento de
Felícia, mais 3 escravos foram libertados: Firmínia, Ignez e Severino, este último por
pagamento de pecúlio, e as primeiras sob condição de servir até a morte de João da Costa
Ribeiro e Souza.

503
Ação de Arbitramento da escava Ana contra Joaquim Ricardo de Albuquerque. 22/11/1887. Nazaré Caixa
132/Memorial da Justiça/Recife.

324
Quadro 34: Escravaria do Engenho Babilônia de José Antônio da Costa Azevedo e
Felícia Joaquina da Costa Azevedo (1864-1881)

Escravo Cor Valor Condição e idade em Valor em


em 1864 1881 1881
Rafael (filho de Florentina) Pardo 1:100$000 Escravo, 37 anos 1:100$000
Firmínia (filha de Florentina) Parda 500$000 Liberta, 34 anos 500$000
Amaro (filho de Marcelina) Preto 800$000 Escravo, 29 anos 800$000
João (filho de Marcelina) Preto 1:100$000 Escravo, 34 anos 1:100$000
Manuel Preto 1:000$000 Escravo, 32 anos (braço 300$000
direito aleijado)
Josefa Preta 1:200$000 Liberta, 44 anos 800$000
José Fellipe (filho de Josefa) Preto 300$000 Escravo, 21 anos 1:000$000
João Cabaço Preto 900$000 Liberto 200$000
João Ingá Preto 1:100$000 Escravo, 49 anos 400$000
José Mendes Preto 800$000 Escravo, 34 anos 700$000
Severino Preto 700$000 Liberto, 32 anos 800$000
Ignez Preta 800$000 Liberta, 29 anos 500$000
Anna Preta 800$000 Escrava, 32 anos 200$000
Vicente Preto 1:200$000 Vendido -
Jeremias - 700$000 Vendido (1879) -
Zacarias - 200$000 Falecido (1878) -
Benedito Mulato 1:200$000 Falecido -
Lucio - 1:200$000 Falecido -
Luis - 1:200$000 Falecido -
José Angola 1:200$000 Falecido -
Mathias - 800$000 Falecido (1874) -
Leôncio - 200$000 Falecido (1864) -
Florência - 100$000 Falecida (1880) -

Fontes: Inventário amigável de José Antônio da Costa Azevedo. 1881. Nazaré Caixa 230. Memorial da
Justiça/Recife. Inventário de Felícia Joaquina da Costa Azevedo. 1881. Cartório de Nazaré/Museu do
Açúcar/FUNDAJ.

Na época da morte de José Antônio, meados da década de 60, o Engenho Babilônia


possuía 23 escravos. No entanto, foi realizado um inventário amigável apenas em 1881, já
após a morte de Felícia Joaquina, no qual o inventariante João da Costa, que administrou o

325
Engenho com a falecida durante esse período, teve que fazer o balanço dos escravos (morte,
fugas e valores) para fins de partilha. Pelo inventário de 1881, Felícia Joaquina possuía
apenas 12 escravos, entre estes alguns libertos. A partir do levantamento que João da Costa
teve que fazer, é possível constatar a evolução ou decadência de um plantel de médio porte
durante quase duas décadas, isto é, entre 1864 e 1881 (quadro acima).
Analisando as informações, podemos aferir que possivelmente nesta família de
proprietários do engenho Babilônia, estes adotaram a prática da alforria como um
instrumento político de controle. O processo se dava, sobretudo, através da alforria
condicional, isto é, entregava a carta de liberdade às crianças, mas não à mãe, ou concedia-
se a alforria através de pecúlio com a condição de serviço até a morte do proprietário. É
interessante perceber que em 17 anos a escravaria do Engenho Babilônia perdeu 34,7% de
escravos por falecimento, 39,1% foram libertos e 8,6% vendidos. Mesmo notando que
alguns libertos permaneceram no engenho, ainda assim verificamos que ocorreu uma
redução da mão de obra escrava em, aproximadamente, 43,3%.
Como apontamos acima, em 1880, Felícia Joaquina fez seu testamento, e neste,
alforriou alguns escravos, assim como também deixou 300$000 em dinheiro para outros.
Comparando com esta relação feita após sua morte, em 1881, podemos tirar algumas
conclusões quanto à prática de alforria desta senhora e as escolhas de seus escravos. Os
escravos e as escravas que estão listados como libertos - Firmínia, Josefa, João Cabaço ou
Carreiro, Severino e Ignez - na verdade alcançaram sua liberdade através de pecúlio,
todavia, tiveram que cumprir com algumas condições, como, por exemplo, servir ao marido
da senhora Felícia até a morte. Firmínia, mãe das meninas Roza e Lucrecia, que
conseguiram sua liberdade em 1872, ficou liberta pelo testamento de Felícia, porém teve
que esperar a morte do marido desta para ficar livre de fato. No mais, como bem deixou
claro o testamento de Felícia, suas filhas deveriam ser educadas e casadas, assim,
dificilmente, mãe e filhas saíram do engenho, ou por gratidão, ou por falta de uma opção
melhor. João e Severino, ao invés da carta de liberdade, receberam 300$000 mil réis em
dinheiro. Obviamente, eles utilizaram-no como pecúlio para a compra de suas alforrias.
Contudo, a liberdade de fato só viria com a morte do esposo de Felícia. Já a história da
liberta Josefa foi um pouco mais frustrante. Ela alcançou sua carta de liberdade em 1873,
através de pecúlio e com registro em cartório, porém, teria que cumprir as condições

326
impostas pela senhora para alcançar a liberdade de fato. Em 1881, este tempo para Josefa já
durava 8 anos. Curiosamente, estes 5 casos de libertos que aparecem na relação de João da
Costa, todos juntaram pecúlio, algumas vezes até mesmo doado pela própria senhora,
compraram suas liberdades e não se tornaram livres. Assim, vários indícios indicam que a
senhora Felícia praticava de várias formas – via testamento, concedendo a carta de
liberdade, doando dinheiro – a política de domínio através das alforrias e/ou do incentivo
desta. Estranhamente, a relação dos escravos feita por João da Costa, entre 1865 e 1881,
não lista alguns escravos que no meio do caminho foram libertos sem condições: Severina,
João Pedro, Estevão, Gabriel, Maria Antonia e Ageu, este filho de Josefa. Se na relação
João da Costa destacou os escravos falecidos e fugidos, por que não listaria os livres de
fato?504 Muitos fatores podem estar por trás desta omissão; sugiro, no entanto, que não seria
muito interessante para João da Costa expor que sua esposa tivesse libertado cerca de 30%
dos seus escravos. Isto corrobora a ideia de que a prática de alforriar é uma política de
domínio para com seus escravos, e não para todos. Não podemos afirmar se os libertos
continuaram no Engenho Babilônia, contudo, o esposo da sua senhora, por algum motivo,
quis escondê-los ou eliminá-los do histórico da escravaria que por herança ficou sob seu
domínio.
Economicamente, Babilônia não era um engenho de grande porte, foi avaliado em
torno de 10:155$848 contos de réis, sendo que na década de 60 chegou a valer 24:000$000.
A propriedade também não possuía grandes lotes de terra, então, possivelmente, não
possuía uma extensa plantação de cana. Assim, não se vê na partilha produtos como pães de
açúcar, ou safras. De escravos, todavia, a quantia era de 8:400$000 contos de réis. Talvez
fosse uma das maiores riquezas. Mesmo assim, observamos a alta taxa de alforrias com
relação ao tamanho total. Numa situação onde o índice de falecimento era grande, com
casos de perda de atividade escrava por aleijamento, talvez fosse necessário criar um
ambiente de estímulos e recompensas para que os poucos escravos se mantivessem
trabalhando forçadamente e garantissem produção para os senhores. Não interessavam, por
exemplo, escravos rebeldes, obviamente. E para conter esse tipo de atitude, o senhor do
Engenho utilizou-se também de atitudes que geravam insegurança. Essa ideia se reforça,

504
Segundo os comentários de Robert Slenes, o mais provável é que os falecidos e fugidos representam uma
perda de patrimônio; já os livres, se ficam como trabalhadores dependentes, não são perdidos.

327
quando verificamos que os escravos que tinham ―mau comportamento‖ foram vendidos.
Segundo João da Costa, o escravo Vicente, por ter dado de ―fujão‖, ―ladrão‖ e ter tido um
―péssimo‖ comportamento, obrigou-o a vendê-lo para fora da Província, e acabou obtendo
apenas 600$000 na comercialização, sendo que o escravo foi avaliado em 1:200$000. Com
Jeremias, foi o mesmo caso, tendo ―má conduta‖, foi vendido para Recife por José Pinto
Souza Neves, pelo valor de 950$000 em 1879.505 Diante desse quadro, a não complacência
poderia significar um risco de separação entre membros de uma família, que não eram
poucos no engenho Babilônia, salvo o fato que a maioria dos alforriados pertencia a uma
família cativa. A insegurança de ser vendido por um mau comportamento, provavelmente,
era grande.
Segundo Slenes, para os escravos o medo da venda deveria ter constituído um forte
incentivo negativo para eles se conformarem com o modelo de comportamento desejado
pelo proprietário. Em áreas de não plantations, depois de 1850, no entanto, o medo deve ter
sido, particularmente, acreditável na ausência de recompensas igualmente creditáveis. A
insegurança da situação do escravo deve ter provocado disfunção, generalizando mais
ressentimentos entre escravos do que resignação (abandono, submissão). Se os proprietários
estavam cientes disso ou não, a alta das taxas de alforria em zonas de não plantation deve
ter formado parte do sistema de recompensas que renovava para mais a insegurança da
escravidão nestas áreas e, assim, o escravo menos disposto para arriscar revoltas. Por outro
lado, é possível que grande parte dos proprietários em áreas de não plantation tinha
empresas que eram, economicamente, marginais e/ou mais concentradas em lucros em
curto prazo. Sem isso, então, proprietários nestas áreas deveriam usar as manumissões para
se libertar da carga de manter velhos e doentes escravos mais frequentemente do que
proprietários de escravos das plantations de café ou açúcar. Nesse sentido, escravos
naquelas áreas eram mais inseguros.506 Os escravos Vicente e Jeremias, provavelmente,
observaram Josefa à espera de sua liberdade desde 1873, assim como, a alforria
acontecendo apenas para os escravos que possuíam uma família, os quais, provavelmente,
nasceram e cresceram ali, sob os olhos dos proprietários, pois era dessa forma que a

505
Inventário amigável de José Antônio da Costa Azevedo. 1881. Nazaré Caixa 230. Memorial da
Justiça/Recife.
506
SLENES, op. cit.,1875, pp. 547 -548.

328
senhora Felícia almejava e testava próxima a sua morte: suas escravas teriam que ser
educadas e casadas.
Novamente percebemos que a variação de pequenas, médias e grandes propriedades
da Zona da Mata do norte pernambucano proporcionou diversificadas relações entre
escravos e senhores. Quanto às manumissões, verificamos, por exemplo, casos de escravos
idosos que eram libertados para que os proprietários pequenos se livrassem dos encargos, e,
ao mesmo tempo, constatamos casos de liberdade de idosos em grandes propriedades que
só foi conquistada pela condição de tempo de serviço ou pela ação judicial. Mais ainda,
constatamos que alguns testadores abastados de médias e grandes propriedades, mesmo
tendo em sua escravaria idosos acima de 50 anos, não praticavam a alforria, provando que
escravos idosos também eram usados para trabalhos no campo, ou para trabalhos leves,
eventuais. Nas propriedades médias, contudo, as manumissões, frequentemente, foram
usadas como uma forma de manter os escravos em situação passiva e de muito trabalho,
posição ―aceita‖ pelos escravos talvez, entre outros motivos, pelo fato de que não queriam
se separar da sua família. A venda, nesse caso, trazia uma forte insegurança. Em suma,
mesmo em uma zona de plantation, como é o caso da Zona da Mata de Pernambuco, as
formas e as ocorrências de manumissões se davam, entre outros fatores, conforme um
conjunto de variantes sociais, econômicas e políticas circunstanciais ao engenho.
Sugestivamente, grandes propriedades alforriavam menos, e médias e pequenas,
proporcionalmente, realizavam mais manumissões. Quanto às formas, médios proprietários
utilizavam mais mecanismos de domínio senhorial através da prática de alforria.
Vale ressaltar que idosos eram alforriados com ou sem pecúlio. Conforme as
conjunturas econômicas específicas, as condições de liberdade variavam uma vez que os
médios proprietários poderiam querer se livrar de algumas despesas sendo o escravo um
possível alvo, encargos que certamente representavam um peso maior para os pequenos
proprietários, como por exemplo, foi o caso da liberdade conquistada por José, angola de
60 anos.
Sugerimos que nessas relações de incentivos ocorridas nas médias escravarias da
comarca de Nazareth, os escravos que mais se beneficiaram foram: os que possuíam boas
relações com os senhores, os filhos de escravos ou ex-escravos que trabalhavam nos
engenhos e plantações, e idosos que tinham um longo período de cativeiro. Os escravos que

329
possuíam uma família por um lado tinham condições de juntar um pecúlio para a liberdade
dos filhos mostrando o quanto era interessante fortalecer e construir um núcleo familiar. Ao
mesmo tempo, a insegurança de uma possível separação levava os escravos que possuíam
uma família a aceitarem o jogo dos senhores, sendo mais complacentes e cumprindo as
condições de serviços impostas como parte do pagamento para a liberdade. Como coloca
Chalhoub, a política de domínio senhorial constituía em cada cativo saber perfeitamente
que, excluídas as fugas e outras formas radicais de resistência, sua esperança de liberdade
estava contida no tipo de relacionamento que mantivesse com seu senhor particular.

A idéia aqui era convencer os escravos de que o caminho para a alforria


passava necessariamente pela obediência e fidelidade em relação aos senhores.
Mais ainda, (...) a concentração do poder de alforriar exclusivamente nas mãos
dos senhores fazia parte de uma ampla estratégia de produção de dependentes,
de transformação de ex-escravos em negros libertos ainda fiéis e submissos a
seus antigos proprietários. 507
No entanto, como Chalhoub constata através dos escritos de Machado de Assis de
1888, ainda que enfatizasse a continuação da exploração, a abolição era como um não-fato
do ponto de vista das relações sociais; por outro lado, a alforria como parte de uma política
de domínio, como estratégia de produção de dependentes, já tinha falido havia pelo menos
duas décadas; assim, era difícil imaginar que negros, como o personagem machadiano
Pancrácio, interpretassem a liberdade simplesmente como a continuação da antiga servidão.
A ênfase de Machado de Assis na submissão, da figura de Pancrácio, para Chalhoub, seria
o exemplo de que o autor identificava na falência de uma política específica de domínio um
dos pontos cruciais do processo histórico de abolição da escravidão.508 Talvez fator que,
durante a escravidão na segunda metade do XIX, possivelmente, também influenciou os
libertos, os quais ainda continuavam sob o domínio senhorial, a vislumbrar sua condição de
livre, ainda que sob a exploração social. E é justamente esse vislumbrar que poderia dar
razão para que pais escravos ou libertos buscassem a liberdade de seus filhos e/ou esposas
e/ou maridos.
Essa relação entre liberdade condicional e prole algumas vezes levava as escravas a
entrarem na Justiça pela alforria do filho. Esse foi o caso da escrava Alexandrina, do

507
CHALHOUB, S. Visões da Liberdade. Uma história das últimas décadas da escravidão na corte. São
Paulo, Cia das Letras, 1990. p. 100.
508
Idem, op. cit., p. 100.

330
engenho Macaco, de co-propriedade de Manoel Gomes da Cunha. Em 1876, a ―mulata‖
Alexandrina, com 18 anos, foi libertada, em vista dos relevantes serviços prestados, sem
pecúlio, porém sob a condição de servir enquanto viver a seu senhor.509 Oito anos depois,
em 1884, a mesma escrava entrou com uma ação pela liberdade do filho José alegando que
este nascera depois de sua carta de alforria, assim ele também deveria ser liberto. O senhor
Manuel Gomes da Cunha, co-proprietário do Engenho Macaco, ciente do depósito de seu
escravo José, se defendeu da acusação provando através da ―certidão de idade‖ e batismo e
carta de alforria, que José nascera em agosto de 1865 e Alexandrina foi liberta em 1876. No
mais, foi verificado que José - juntamente com seu pai Manoel de Carmo - foi matriculado
em 1872 com 4 anos de idade. Diante destas comprovações e descartada a hipótese de que
José nascera quando Alexandrina já era liberta, o curador Manoel Macedo entrou na Justiça
com uma ação de arbitramento pedindo um valor para indenização de 100$000 mil réis pela
liberdade de José. Infelizmente, não encontramos o resultado510. Mesmo assim, a sequência
dos fatos nos traz algumas conclusões e contradições: se José foi batizado em 1865, como
em 1872 ele tinha 4 anos? Se o senhor Manuel alegou que José nascera em 15 de agosto de
1865, como podemos explicar o fato de que na certidão de batismo feita pelo Vigário
Anísio de Torres Lira datada de 1884, declarou-se que José foi batizado em junho de 1865
com 3 meses de vida? No mais, as informações também se contradizem nas nomenclaturas
utilizadas ao longo do processo. Este José era constantemente chamado de ―escravinho‖, no
entanto, se as afirmações do senhor Manoel eram verdadeiras, isto é, que José nascera no
ano de 1865, em 1884, data do processo, seria um homem de 19 anos. Então, como assim
chamá-lo de escravinho? Do outro lado, a defesa do advogado de que José nascera depois
da liberdade da mãe, isto é, após 1876, e por isso deveria ser livre, pois de ventre livre
nascera, de nada vale, uma vez que, pela lei, José, em 1876, deveria ter sido livre pela Lei
do Ventre Livre, esta promulgada em 1872. Assim, muitas contradições marcaram o
processo e não tivemos acesso a outras informações complementares para revelar essas
questões. No entanto, é interessante perceber a possível estratégia utilizada pela escrava e
seu marido para buscar a liberdade de seu filho.

509
Carta de Liberdade de Alexandrina, 1876. Cartório de Nazaré. Cartório de Nazaré/Museu do
Açúcar/FUNDAJ. Cópia da Carta de liberdade de Alexandrina anexada na ação de liberdade de Manoel,
10/03/1884. Juízo Municipal de Nazaré. Nazaré Caixa 127. Memorial da Justiça/Recife.
510
Depósito do escavo José. Juízo Municipal de Nazaré, 10/03/1884. Juízo Municipal de Nazaré. Nazaré
Caixa 127. Memorial da Justiça/Recife.

331
Provavelmente, os argumentos foram construídos pelo curador, mas o fato da liberta
procurar a Justiça para libertar o filho e alegar que ele nascera livre uma vez que nascera de
um ventre de uma liberta leva-nos a pensar em como esses libertos vislumbravam suas
condições. Ainda que os libertos continuassem no cativeiro sob condição de servir seu
senhor até a morte, eles tentavam se aproveitar da situação em benefício próprio e dos seus.
Manoel, pai de José e marido de Alexandrina, continuou escravo no Engenho Macaco,
provavelmente seu preço era alto, e assim buscar sua liberdade poderia ser mais difícil. Seu
filho, por outro lado, tinha mais chances, se não nascera do ventre de uma liberta,
possivelmente, não tinha um valor tão alto, afinal no processo foi apresentado apenas
100$000 para sua indenização. Mais um motivo para desconfiarmos do fato de que José
tivesse 19 anos em 1884. De alguma forma, a família estava tentando libertar mais um
membro da família. Caminhos, por sua vez, que não necessariamente levariam a uma
mudança radical de vida, afinal o pai era escravo, a mãe uma liberta obrigada a servir seu
senhor em vida e, diante disso, será que José ao alcançar a condição de liberto sairia pelo
mundo, ou seria mais um liberto a continuar a trabalhar nas terras do engenho Macaco?
Quais eram as reais possibilidades de vida dos escravos e libertos nos engenhos da comarca
de Nazareth nesse período? De qualquer forma, se mãe, pai e curador entraram na briga
pela alforria de José, a liberdade de alguma forma se consumava, caso contrário não haveria
indícios da busca constante por parte dos escravos para serem livres, busca realizada,
principalmente, através do acúmulo do pecúlio. Era, portanto, uma luta diária.
Assim, diante destes fatos, é importante para a compreensão destacar vários
aspectos analíticos. Questões como: as relações paternalistas, a gratidão do escravo para
com o senhor que lhe assinou a alforria, o escravo liberto pela Lei do Ventre Livre que
continuava sob tutela do senhor, ou pela falta de opção de como sobreviver, mas que na
prática significava a continuidade das relações de trabalho escravistas.511 Ou ainda as
questões, como ressalta Sílvia Lara, de que os escravos estavam inseridos num universo de
relações pessoais em que a noção de dominação estava ―embutida‖ e ―que pelas cláusulas
frequentes de pagamentos parcelados ou prestação de serviços, ou ainda pelo

511
MEDONÇA, Joseli N. Cenas da abolição: escravos e senhores no parlamento e na justiça. 1ª edição. São
Paulo, Editora Fundação Perseu Abramo, 2001, p. 47. Ver também sobre essa discussão na historiografia,
MELO, Ariane. Entre o cativeiro e a liberdade: a escravidão no Brasil no final do século XIX. In: Anais do
XXXIII Simpósio da ANPUH.

332
apadrinhamento, quer por uma rede de relações pessoais que os envolvia e os controlava, o
liberto permanecia ainda sob domínio senhorial,‖512 fato que enfatizava a precariedade e os
limites de qualquer ―experiência de liberdade numa sociedade paternalista, organizada em
torno da reprodução dos laços de dependência pessoal‖.513 E ainda, reflexões como salienta
Chalhoub de que a ―escravidão e paternalismo, cativeiro e dependência pessoal, pareciam
duas faces da mesma moeda‖.514 Ao mesmo tempo, é necessário visualizar em quais
circunstâncias específicas nossos sujeitos estavam inseridos, isto é, a comarca de Nazareth.
Possivelmente, existia um leque de fatores que influenciava nas decisões dos escravos,
fossem estas de rebeldia, ou, publicamente, de complacência, gratidão ou submissão.
Alexandrina, liberta, e seu marido Manoel, escravo, sabiam bem as nuances que existiam
entre ser escravo, liberto sob condição e livre de fato. Prova disto foi a luta pela liberdade
de seu filho através da alegação de que nascera de um ventre livre, ainda que de um corpo
socialmente sob condições de domínio senhorial, significações que também se
(re)significavam conforme as relações de trabalho que variavam de acordo com seus
espaços.
Três anos antes do processo de Alexandrina, no mesmo engenho Macaco, o co-
proprietário Francisco Gonçalvez Carneiro foi réu da ação de liberdade em favor do
escravo Theodósio. Na petição inicial constava que Theodósio, preto, de 50 anos, doente,
aleijado, querendo tratar de sua liberdade e não o podendo fazer livre de constrangimento,
por achar-se em poder de seu senhor Francisco Gonçalves Carneiro, morador em seu
Engenho Macaco, desta comarca, vinha a bem de seu direito requerer nomear-lhe
depositário e curador. Requeria, ainda, mandar lavrar termo de exibição da quantia de
53$000 e fazê-la depositar na estação competente. No mais, o suplicante queria que se não
efetuasse o acordo prescrito na lei, que fosse citado com vênia seu senhor para que, na
audiência marcada, viesse nomear e aprovar louvados que dessem o valor ao suplicante.
Assim, em 11 de maio de 1881, foi nomeado depositário e curador Luiz José da Silva
Cavalcanti Filho para qual foi entregue o escravo Theodósio.515

512
LARA, Sílvia H. ―Trabalhadores escravos‖. In: Trabalhadores. Secretaria Municipal de Cultura. Prefeitura
do município de São Paulo, 1990, p. 5.
513
Idem, op. cit., p. 5
514
CHALHOUB, S. Machado de Assis Historiador. São Paulo, Cia das Letras, 2003, p. 135.
515
Ação de liberdade de Teodósio. 1881. Cartório de Nazaré/Museu do Açúcar/FUNDAJ. Ação de liberdade
de Teodósio. Nazaré Caixa 230. Memorial da Justiça/Recife.

333
No dia seguinte, na casa do Juiz Municipal José Sá Barreto em Nazareth, Francisco
Gonçalves Carneiro, o senhor do libertando, apresentou-se para tratar de um acordo para o
qual foi comunicado em relação à alforria de seu escravo. No entanto, Francisco Carneiro
afirmou que tendo seu escravo a idade de 45 anos, sendo robusto e constatando que o
defeito da sua perna não impedia de trabalhar, não podia concordar, e de fato na
concordava, na alforria do mesmo pela ―ridícula‖ quantia de 53$000 mil réis. O senhor
Francisco alegou que uns dias antes daquele julgamento, dois compradores tinham lhe
apresentado altos valores para a compra do mesmo cativo: Esmeraldo Pereira de Cavalcanti
tinha oferecido a quantia de 200$000 mil réis e José Bellarmino Pereira, rendeiro do
Engenho Limeirinha, a quantia de 300$000 mil. Para o senhor Francisco, era, portanto, sem
cabimento aceitar a insignificante quantia para que seu escravo fosse forro. A meu ver, sem
cabimento comercial para aceitar tal proposta tratando-se, portanto, claramente de um
negócio: o negócio da liberdade.
Em junho de 1881, decidiu-se, pelo acórdão de 25 de junho e 17 de setembro de
1878 da Relação de São Paulo, no qual o curador de Theodósio, pelo prazo de uma
audiência podia requerer o dito arbitramento, uma vez que, não tendo lugar o respectivo
acordo, estaria sob pena de levantamento de depósito e de voltar o escravo ao poder do
suplicado.
Os avaliadores Luis de Albuquerque e Antônio Xavier Carneiro de Moura, em
atenção à idade, ao estado de saúde e à aptidão de Theodósio para o serviço do campo, e
especialmente para engenho, para o qual não lhe impendia possuir as pernas tortas, foi
avaliado em 200$000 pelo segundo e pelo primeiro em 300$000. No ato de desempate, o
valor de 200$000 foi aprovado, principalmente, porque se tratava de uma alforria. Mesmo
assim, em 22 de junho sendo a quantia exibida por Theodósio muito inferior ao da sua
avaliação, o juiz mandou que o escravo voltasse ao poder de seu senhor Francisco
Gonçalves Carneiro. No entanto, um mês depois o advogado João Batista de Amaral e
Mello, o novo curador do ―preto‖ Theodósio, não se conformou com o arbitramento para a
indenização de valor do mesmo escravo e apelou da decisão do Juiz Municipal para o Juiz
de Direito da comarca de Nazareth.
Na apelação, o advogado Amaral e Mello acusou o senhor Francisco Gonçalves
Carneiro de ―dezero de compaixão‖, nobre sentimento que por certo não motivou em juízo

334
o preço para a alforria do cativo. Segundo o advogado, a notícia de ação proposta chegou
ao senhor Francisco antes do escravo se apresentar ao juiz. Por conta do aviso, o senhor
―encolheirou‖ e castigou - e ―o castigo foi bárbaro‖ - o escravo Theodósio. Para o
advogado, estas ―ofensas‖ foram a gota d‘água e deram espaço a um sumário crime.
―Espancado‖ e ―ensaguentado‖, Theodósio apresentou-se em casa do Dr. Juiz de Órfãos e,
denunciando ―em sua carne lacerada‖ o crime de seu senhor, pediu para exibir a quantia de
53$000 para sua alforria. Segundo o advogado, foi proposta a ação, no qual não constava o
termo de exibição da quantia oferecida e, assim, foi intentado o sumário crime contra o
senhor. A pronúncia teria sido proferida no artigo 265 do Código Criminal e foi intentada
pelo Juiz de Direito. Depois do alto valor conferido ao escravo no arbitramento, este iria
novamente voltar ao poder de seu senhor. Todavia, segundo o advogado Amaral e Mello,
em outra província do Norte, entre outros brasileiros, o apelante não voltaria para um
senhor ―indignado com o processo crime‖, com a pronúncia que não o deixava aparecer e
que o obrigou a ocultar-se para não ser preso.516
O argumento do advogado era que o apelante, aleijado, não poderia andar, não era
capaz do serviço do campo, pois não podia trabalhar de foice, machado ou enxada, uma vez
que para Theodósio levantar precisava arrumar as costas. Assim, o escravo não era capaz de
serviço na razão do ―valor do seu alimento, era escravo sem valor na fábrica‖.517 Para o
advogado, todos que conheciam o apelante acordavam em declarar que é um escravo sem
valor. Na avaliação foi declarado que Theodósio tinha as pernas tortas, no termo de acordo
foi descrito como aleijado. Assim, a avaliação não devia estar à disposição da vontade dos
avaliadores, mas sim sujeita a regras que garantiam o cativo. A idade, o defeito físico, a
moléstia dariam limites ao valor do escravo. Por não terem seguido essas regras, o
advogado solicitou novo arbitramento ao Juiz de Direito da comarca. Segundo o advogado,
assim também teria sido feito no caso da escrava Edwirges contra seu senhor Manoel Pedro
de Oliveira Mello em agosto de 1879.
A defesa do senhor não tardou. Segundo seu advogado, o apelado já teria sido
pronunciado, como depuseram as testemunhas, como autor de crimes que não praticou.
Assim era para completa insatisfação dos bons agricultores da terra local, que ainda

516
Ação de liberdade de Teodósio. Nazaré Caixa 230. Memorial da Justiça/Recife.
517
Ação de liberdade de Teodósio. Nazaré Caixa 230. Memorial da Justiça/Recife.

335
sofressem a apelação em cima de seus sagrados direitos de propriedade. Segundo o
advogado do apelado, a avaliação foi feita como a lei mandaria sendo os nomes dos
avaliadores indicados por parte do apelante. Durante a avaliação, foi considerado o fato de
o cativo possuir as pernas tortas, mas que esse fato não era um obstáculo para os serviços
no campo e, especialmente, no engenho, além do que, o resultado da avaliação foi dado
pelo menor valor em vista de se tratar de um processo de alforria, e caso não fosse por esse
motivo, seria conferido ao escravo o maior valor. Sobre o caso de Edwirges, o apelado
ressaltou que esta, naquele momento já liberta pelo fundo de emancipação, não estava em
condições semelhantes com o processo de Theodósio, comparação, portanto, que não daria
fundamentação para o argumento do advogado do apelante.
Por fim, em agosto de 1881, a sentença conferiu, atendendo aos avaliadores da
própria nomeação do apelante quando taxaram o valor deste, em consideração às condições
exigidas pela lei, isto é, a idade, o estado de saúde e a aptidão para o serviço. Assim,
mesmo considerando o defeito físico do apelante, declarou-se não servir de obstáculo este
defeito para o manejo de engenho e serviço do campo, e que atendendo a favor da alforria
do apelante foi aceito o laudo com relação ao valor do mesmo, fatos que levaram o juiz de
Direto a negar a apelação interposta pelo apelante.
O caso de Edwirges que já citamos anteriormente vem à tona novamente.
Coincidentemente, o advogado João Batista Melo que no caso da escrava Edwirges
defendeu o proprietário da mesma, fazendo com que ela perdesse a ação, em 1881, no caso
do preto Theodósio, João Batista estava do outro lado, defendendo o escravo como seu
curador e advogado. A argumentação se apoiava na Lei, que a partir da segunda metade da
década de 70 vem auxiliar o cativo. No entanto, a argumentação dos proprietários, tanto no
caso de Edwirges como no caso de Theodósio, é sobre o direito da propriedade e sobre as
regras que envolvem o processo de avaliação do valor do escravo.
Ao mesmo tempo, nos dois casos é interessante ressaltar que a justificativa quanto à
idade e à condição do escravo para trabalhar foi claramente específica quanto ao tipo de
trabalho que seria realizado pelo cativo. No caso de Edwirges, idosa de mais de 50 anos,
considerou-se sua capacidade de trabalhar na agricultura, mas não necessariamente no
campo. Do mesmo modo, no caso de Theodósio, foi declarado que apesar da deficiência da
perna, este poderia trabalhar na agricultura e no engenho. Por estas argumentações,

336
verificamos que o trabalho realizado pelos escravos e o alcance da liberdade eram fatores
que se relacionavam, isto é, dependendo da função ocupada pelos escravos dentro das
propriedades canavieiras e dependendo do tamanho e da atividade das propriedades, maior
ou menor facilidade os cativos tinham para alcançar a liberdade. Isto ocorria,
principalmente, com os cativos idosos. Exemplo disso foi o valor conferido pelos
avaliadores do caso Theodósio. Na avaliação foi justificado que o escravo ―não era capaz
de serviço na razão do valor do seu alimento, era escravo sem valor na fábrica‖. Aqui de
fato constatamos as relações existentes entre trabalho-escravo-capital-liberdade.
O senhor de Theodósio, Francisco Gonçalves Carneiro, faleceu em 1891, e em seu
inventário podemos constatar que dez anos depois da ação de liberdade, seu engenho ainda
estava moente e corrente, tendo casa de vivenda de taipa, casa de engenho de tijolo, casa de
purgar em taipa, tudo em ―regular estado de conservação‖, avaliados em 16:000$000, e
suas plantações ainda produziam safras de cana, vale ressaltar, em meação com os
lavradores.518
Joseli Mendonça em seus estudos pontua claramente que por volta da lei do
Sexagenário em 1885, as contestações do domínio senhorial por conta do preço da
liberdade tornaram-se atitudes preocupantes para aqueles que eram interessados na
pacificação da relação senhor-escravo. Eram tantos casos nas cidades, fazendas e tribunais
que o assunto chegou ao Parlamento. Segundo Mendonça, as referências aos ―abusos‖
cometidos nos processos que objetivavam a alforria por apresentação do pecúlio
multiplicavam-se pela Câmara a cada vez que se entrava na ―discussão da questão servil‖:

Não era raro que os reclamos sobre manifestações abolicionistas fossem


somados pelos protestos sobre a ―exorbitância‖ da magistratura nos processos de
liberdade. O deputado Rodrigues Peixoto chegava a pedir a intervenção do
ministro da Justiça perante o Poder Judiciário no sentido de conter os ‗abusos‘
praticados pelos juízes. Dentre tais ‗abusos‘, o deputado destacava aqueles
referentes ao pecúlio e depósito de escravos.519

Desse modo, com efeito, a autora coloca que as reclamações no âmbito parlamentar
abarcavam questões possíveis de ocorrer em um processo de arbitramento de preço: o

518
Inventário de Francisco Gonçalves Carneiro. Nazaré Caixa 138. Memorial da Justiça/Recife.
519
MENDONÇA , Joseli M. N. Entre a mão e os anéis. A lei dos sexagenários e os caminhos da abolição no
Brasil. 2ª edição, Campinas, Ed. Unicamp, 2008, p. 227.

337
favorecimento da magistratura, a apresentação de um pecúlio que não correspondesse
àquele que o senhor entendia ser ―equivalente‖ ao preço do escravo, as informações sobre
idade ou defeitos físicos que, prestadas pelos escravos, tentavam abaixar o preço da
alforria, e até mesmo os riscos de insubordinação pelos maus exemplos que poderiam
decorrer da importância que se dava às queixas e às informações dos escravos. Todos estes
processos, todavia, eram, de fato, uma grande afronta ao exercício do domínio senhorial,
um grave problema que levou a Câmara à proposta do estabelecimento de preços fixos para
as alforrias dos escravos.520 A prática jurídica, portanto, que envolveu os escravos
Theodósio e Edwirges entre outros, trazia preocupações, que ainda que levassem para
atitudes políticas de repressão à liberdade, por outro lado, colocavam em desequilíbrio o
domínio senhorial. Exemplo disso foi a aprovação da tabela de preços no Projeto Dantas
que incluiu somente a idade do escravo como critério para a fixação do preço. 521 Caso esta
tabela tivesse entrado em vigor antes, os argumentos dos advogados, contra a aprovação do
valor do pecúlio de Theodósio e Edwirges, e que foram, sobretudo, pautados nas condições
de trabalhar e no tipo de profissão exercida, iriam por água abaixo.
Não era fácil conseguir a liberdade no Engenho Macaco durante a década de 70. Por
outro lado, os escravos acessaram a Justiça em busca de suas alforrias. A presença de
curadores interessados em processar alguns proprietários na comarca de Nazareth pode ter
auxiliado os escravos que precisavam processar seus senhores e tinham, cada vez mais, essa
possibilidade legalmente a partir de 1872. Ao mesmo tempo, o fator econômico de cada
propriedade e de cada proprietário desenhava o perfil dessas alforrias.
Escravos e escravas idosos que trabalhassem em uma propriedade de grande porte
com engenho corrente e moente, possivelmente, teriam que ser escravos até o fim da sua
vida, pois nessas propriedades existiam variados tipos de trabalho que um escravo acima de
50, sem graves problemas de saúde, na visão dos proprietários e juízes, poderia exercer.
Numa grande propriedade, a possibilidade de existirem escravos em idade ativa de trabalho
e com famílias é maior, assim, a probabilidade destes se fixarem também. Nestes casos, a
alforria de escravos idosos ocorria por tempo de serviço ou morte do senhor. Em médias
propriedades, verificamos que ocorria a ―liberdade com condição‖ para escravos que eram

520
Como coloca Joseli Mendonça, a ideia da tabela de preços estava presente já no Projeto Dantas. Idem, p.
228.
521
Idem, op. cit., p. 232.

338
bem vistos pelos senhores, assim como para os filhos dos mesmos. Vale ressaltar que, nos
casos analisados, uma das propriedades que tinha o ―costume‖ de alforriar na década de 70,
o Engenho Junco, também foi a única que entre seus bens continha ―casas de lavradores‖
além da senzala. Como dizia Henri Milet no Congresso de Recife, proprietários com boas
condições financeiras, com cativos e produção de açúcar tinham melhores condições de
adquirir escravos e conseguir mão de obra livre, afinal eram as propriedades estáveis e em
grande atividade que estes trabalhadores procuravam para morar e trabalhar. Pequenos e
médio-pequenos proprietários sofriam com a carência de mão de obra. Nestas situações, as
redes de recompensa eram, possivelmente, utilizadas pelos senhores com intuito de manter
libertos e escravos na propriedade, trabalhando como complacente, possivelmente, por isso,
constatamos casos frequentes de alforrias em médias escravarias durante a década de 70.
No mais, nas pequenas propriedades, muitas vezes, libertar também significava livrar-se de
despesas.
A partir dos anos 80, aumentaram as chances de se conseguir alforria através das
ações de liberdade. O aumento do acesso à Justiça por parte dos escravos em busca da
liberdade sugere que muitos cativos não aderiram ao sistema de estímulo e recompensa
adotado pelos senhores para manter o domínio. Traz também indícios de certa consciência,
por parte do cativo, de que não era tão recompensador o modo como os senhores estavam
libertando seus escravos. Obviamente, as ações ocorreram em um momento histórico em
que a Justiça passara por transformações que auxiliaram positivamente o acesso dos
escravos ao âmbito jurídico. No entanto, ainda assim, optar pelo processo judicial
impossibilitava o escravo de conseguir a liberdade por pecúlio e ―concessão‖ do senhor. A
ação significava uma afronta ao senhor que precisaria ir ao júri para defender seu ―sagrado
direito de propriedade‖. Era, portanto, uma escolha sem volta por parte do escravo.
Quanto às possibilidades de escravas se alforriarem, verificamos que nos dados
levantados para a comarca de Nazareth, a maioria das liberdades conquistadas foram por
mulheres cativas. Muitos fatores podem ter colaborado para essas manumissões: o trabalho
doméstico e sua relação pessoal com o senhor, os serviços de amas de leite ou ter tido
muitos filhos aumentando a escravaria.
É interessante perceber que dentro de uma média-grande propriedade, como no caso
do Engenho Junco ou como no Engenho Feliz Ventura, de propriedade de Cosma de Sá

339
Albuquerque e Herculano Cavalcanti Sá Albuquerque (engenho moente e corrente, casas de
lavradores, senzala, safras em torno de 1.800 pães de açúcar em 1873), a alforria das
mulheres cativas se fazia por conta destas servirem seus senhores pessoalmente. Assim, em
1875 Antônia e Luciana, respectivamente, crioula de 27 anos avaliada em 700$000 e parda
de 27 anos avaliada em 800$000, foram libertas sem pecúlio e sem condição. Na carta de
liberdade, o tenente Coronel Herculano Cavalcanti de Sá Albuquerque considerou os bons
serviços prestados a seus filhos, na tenra idade, pelas escravas Luciana e Antônia (esta até
fornecera leite e seus seios para a alimentação). No mais, em virtude do aniversário do filho
mais velho do Tenente Herculano, que completaria 6 anos de idade, e, querendo solenizar
tal data, pois ―nenhum outro motivo lhe causaria tanto regogizo como a liberdade às duas
infelizes‖, o proprietário concedeu a carta de liberdade para as escravas, que dali em
―diante pra sempre ficariam livres‖. O senhor Herculano, assim, ―presenteou‖ suas escravas
num ato público de comemoração do aniversário de um membro da família. Nada seria tão
significativo de tamanha generosidade, se não fosse o fato de que o tenente Herculano era
proprietário de uma vasta escravaria, que as mulheres eram a maioria e que ele,
possivelmente, também contratava pessoas livres para trabalharem e morarem em suas
casas de lavradores. Assim, quais seriam as perdas para o ―generoso‖ Herculano? Será que
elas estavam alcançando uma liberdade de fato? Na verdade, talvez Herculano quisesse
readquirir o que a legislação de 1871, de certa forma, lhe ameaçava, isto é, a perda do poder
moral de ser senhor e proprietário. Desse modo, nesse momento histórico, alforriar
cerimoniosamente suas escravas ajudava a reafirmar, ao menos simbolicamente, a
generosidade e o poderio senhorial. E do lado das escravas, o que poderíamos abordar?
O ato do senhor Herculano, certamente, não gerou apenas e exclusivamente a
gratidão passiva por parte das escravas. Em 1875, quando Antônia e Luciana foram libertas,
a primeira era mãe de José de 6 anos e segunda era mãe de Damiana, 9, e Fabrícia, 6 anos.
Então, ainda que as mães conseguissem a liberdade, os filhos continuariam escravos, e,
possivelmente, elas, por conta destes, continuariam a servir seu antigo senhor, e passariam,
como libertas, a conviverem com a realidade de terem seus filhos como cativos. Sugerimos
diante disso que a condição ―ser livre de fato‖ dependia, não apenas dos laços paternalistas
estabelecidos entre escravos e senhores, mas também dos laços estabelecidos entre escravos
e escravas nas terras dos engenhos durante o cativeiro. Neste caso, as escravas alcançaram a

340
liberdade, porém, não puderam consumá-la de fato uma vez que seus filhos ainda
permaneceram cativos. Estariam, no mínimo, ainda presas ao sistema de escravidão, pois
teriam que cuidar de suas crias. E o ―generoso‖ senhor sabia disso.
É interessante perceber como as autoridades moralmente julgavam as escravas que
abandonassem seus filhos, e como isso nos anos 80 era colocado na defesa, ou não, da
liberdade de um escravo. Foi o que aconteceu com Salústia em 1884. Na ação de liberdade
da escrava, esta apresentou uma indenização de 100$000 mil réis a qual seu senhor José
Marques Bacalhao não aceitou. A argumentação do advogado Manoel Macedo foi que de
fato a escrava apresentara uma quantia muito inferior ao seu real valor, isto é, de uma
escrava de 25 anos, com boa saúde e bom serviço.
O advogado iniciou sua argumentação afirmando que o escravo, ao requerer o
arbitramento do seu valor para libertar-se pela indenização, devia a seu senhor. Assim, o
cativo não deveria ser depositado previamente, visto que não havia disposição que no caso
autorizasse o seu depósito. No mais, na visão do advogado Macedo, não era justo que se
privasse antecipadamente o senhor dos serviços de seu escravo caso este não tivesse dúvida
sobre sua própria condição, e somente alforriar-se-ia por um dos meios que as leis lhe
coubessem. Desse modo, não se poderia prevenir o receio dos serviços, uma vez que o
mesmo escravo poderia voltar para o poder de seu senhor no caso de não se libertar por
conta do valor insuficiente depositado ao seu pecúlio - acordo da relação de Ouro Preto, de
26 de junho de 1874, relação de Recife de 2 de abril de 1878.522
Seguindo a defesa, o advogado acrescentou que:

(...) a escrava em questão, tendo uma criança de três meses de idade, que é por
ela amamentada, ausentou-se deixando-a em casa do suplicado. Não é possível
que o suplicado, além de ser privado sem autorização legal aos serviços da
mesma escrava, seja ainda em cima obrigado a despesa de uma ama de leite. A
lei não permite isso, e o magistrado que é a Lei faltando, segundo em notável e
judicioso escriptor, deve executá-la lealmente. Vai nisso todo respeito devido as
garantias por ella estabelecida aos direitos do cidadão. E, por tanto, a justiça que
VSa, attendendo ao expendido, ordem que dita escrava seja entregue ao
suplicado, que por sua educação, posição social e distinctos prececentes, é

522
Auto de defesa do réu. Ação de Liberdade de Salústia. Juiz Municipal, 9/08/1884. Nazaré Caixa 147.
Memorial da Justiça/Recife.

341
incapaz de quaisquer acto menos digno e incompatível com os preceitos da
humanidade.523

Manoel Macedo era o advogado que destacamos no capítulo 2 como o ―defensor


dos pobres‖, e de fato foi assim classificado por seus conterrâneos durante a década de 70.
Muitas vezes atuou como advogado dos escravos nas ações de liberdade, como por
exemplo, no caso de Edwirges que citamos. Nos anos 80, no entanto, Macedo defendeu o
senhor José Marques Bacalhao morador do Engenho Pindoba. Interpretou a lei pelos olhos
do proprietário que não poderia se privar de seus bens, ou melhor, dos serviços e benefícios
que suas propriedades (escravos) deveriam oferecer. O discurso do advogado montou um
quadro perfeito para desequilibrar a balança da Justiça. De um lado a escrava, jovem, sadia,
que valia muito, mas que ofereceu pouco como indenização e, além de tudo, abandonou o
filho, ainda recém nascido, dependendo de leite materno, ato desumano somado a um ato
de desabono para o senhor, o qual teria que arcar com os custos para salvar uma criança
que, por conta da Lei do Ventre Livre em vigor havia 10 anos, não era de sua propriedade.
A combinação do gesto desumano, para não dizer imoral, somado ao fator econômico de
prejuízo à propriedade alheia, construía o veredicto perfeito contra a escrava, justificativas,
por sua vez, que não estavam pautadas linha a linha na lei, mas sim, na moralidade vigente:
moral humana e materialista.
Vale dizer que sendo o senhor um homem distinto, Salústia estaria garantida pelos
direitos do cidadão. Direitos de uma ―escrava cidadã‖? O discurso ambíguo de que o
advogado se muniu nas vésperas da abolição nos sugere justamente a ambiguidade
existente entre os homens da lei na comarca de Nazareth. Proteger a propriedade de um
senhor e defendê-lo de mais ônus que poderia estar tendo em épocas de queda do preço do
açúcar seria um ato legal, moral e justo. Tão moralmente correto, porém, incoerente, que
concedia à escrava garantias de cidadão, não a libertando, porém assegurando-a que não
seria castigada por ter buscado a liberdade e abandonado seu filho. Será que, de fato, na
comarca de Nazareth, existiam homens da lei abolicionistas? E se eram, de que
pensamentos abolicionistas eles se referiam? Ou melhor, que direitos dos cidadãos estavam
defendendo? Pois, além do mais, como coloca Chalhoub, discutir a liberdade dos escravos

523
Auto de defesa do réu. Ação de Liberdade de Salústia. Juiz Municipal, 9/08/1884. Nazaré Caixa 147.
Memorial da Justiça/Recife.

342
significava interferir no pacto liberal de defesa da propriedade privada, e, além disso, era a
própria organização das relações de trabalho que parecia estar em jogo. ―Ou seja, o assunto
era delicado porque nele cintilava o perigo de desavenças ou rachas mais sérios no interior
da própria classe dos proprietários e governantes‖.524 E, talvez, por esse motivo, o
posicionamento de Macedo na escolha de seus clientes variou durante os anos. Na comarca
de Nazareth, a classe heterogênea dos proprietários, composta por muitos médios e
pequenos proprietários, criava um ambiente na Justiça ambíguo que prejudicava a conquista
da liberdade pelo escravo.
Obviamente, Salústia foi reavaliada e validada por 400$000 mil réis, fato que fez
com que seu pecúlio de 100$000 torna-se ainda mais inferior ao mínimo para a indenização
de sua alforria. Assim, a Justiça decretou que seu depositário, José Maria Cardoso,
apresentasse a escrava em juízo para que fosse entregue a seu senhor.
Nesse caso, vale ressaltar que depois da Lei de 1871, o escravo tinha que segui-la
especificamente. Como coloca Grinberg antes, embora a prova já estivesse presente como
uma exigência (o que talvez já demonstre o movimento de positivação do direito), ela não
se fazia tão fundamental. A lei do Ventre Livre adquire, assim, uma faceta diferente
permitindo a restrição da liberdade.525
Salústia, ao voltar para o cativeiro, reencontrou seu filho o qual, certamente, não foi
abandonado friamente como ela foi acusada nos tribunais. Possivelmente, Salústia tivera
acesso ao conteúdo - ou pelo menos parte dele - das cláusulas da Lei do Ventre Livre, as
quais diziam respeito ao futuro das crianças nascidas de escravas. Como estava no artigo 1
parágrafo 1: ―os ditos filhos menores ficarão em poder e sob a autoridade dos senhores de
suas mães, os quais terão a obrigação de criá-los e tratá-los até a idade de oito anos
completos. Chegando o filho da escrava a esta idade, o senhor da mãe terá opção, ou de
receber do Estado a indenização de 600$000, ou de utilizar-se dos serviços do menor até a
idade de 21 anos completos. No primeiro caso, o Governo receberá o menor e lhe dará
destino, em conformidade da presente lei‖. Diante disso, respaldada pelo Estado, através da
lei, Salústia pôde decidir em sair e buscar sua liberdade, afinal, seu senhor era obrigado

524
CHALHOUB, S. Visões da Liberdade. Uma história das últimas décadas da escravidão na corte. São
Paulo, Cia das Letras, 1990. p. 99.
525
GRINBERG, Keila. Liberata: a lei da ambiguidade. As ações de liberdade da corte de apelação do Rio de
Janeiro no século XIX. Rio de Janeiro, Relume – Dumará, 1994, p. 97-100.

343
pela lei a criar e tratar de seu filho até 8 anos de idade. No mais, segundo o parágrafo 4 do
mesmo artigo, ―se a mulher escrava obtiver liberdade, os filhos menores de oito anos que
estejam em poder do senhor dela por virtude do § 1 lhe serão entregues, exceto se preferir
deixá-los e o senhor anuir a ficar com eles‖. Estava aí a grande chance de Salústia.
Assim, se a cláusula 1 do artigo 1 da lei, de certa forma, na representação política
atenuava a perda da força moral do senhor, dando-lhe o poder de ―libertar‖ os filhos das
escravas, pela lei já nascidos livres, depois de terem recebido indenização ou tempo de
serviço; ao mesmo tempo, em algumas situações como a de Salústia, essa cláusula auxiliou
estimulando a vontade da escrava de buscar a liberdade. Os homens da lei na comarca de
Nazareth, por sua vez, apelaram para um discurso humanitário e sentimental que acabou
piorando a situação da escrava que possuía um pecúlio bem abaixo do seu valor. A
liberdade não se concretizou, mas ações estratégicas das escravas se utilizando da Lei de
1871 para se libertar existiram e eram reais e concretas.
Por fim, podemos guardar algumas conclusões: os escravos que decidiam buscar a
liberdade pela Justiça, possivelmente, não alimentavam boas relações com seu senhor e se
muniam de uma cultura de resistência construída em seu próprio meio, seja na comunidade
ou na família. Quanto às cartas de liberdade concedidas pela livre vontade dos senhores,
também se trataram de conquistas feitas no mundo do trabalho, dentro das fazendas e
engenhos, numa relação de confiança estabelecida entre os dois lados. E quanto às
liberdades conquistadas na Justiça, a lei atrelada às falhas dos senhores ao não matricular
seus escravos ajudou muito, mas de nada adiantaria se os escravos e as escravas não
estivessem munidos de uma vontade e de uma certeza do que queriam: viver fora da teia de
poderes e interesses, e buscar seu caminho, juridicamente, livres.

3.5) Outros caminhos de liberdade na escravidão

Partindo da conclusão de que as mulheres escravas tiveram mais acesso à liberdade,


fosse por meio de alforrias com ou sem condição, ou através das ações de liberdades,
acredito que os homens escravos, principalmente em idade ativa de trabalho, precisavam
buscar outras formas de burlar o poder senhorial e conquistar a liberdade, ou viver mais
livremente em sua vida cotidiana ainda que sob o domínio senhorial.

344
Entre 1865 e 1888 na comarca de Nazareth, não ocorreram casos de rebelião de
escravos, salvo a suspeita de uma durante um Cavalo Marinho e um Maracatu nas terras do
Engenho Alagoa Seca em 1871 que no próximo capítulo abordaremos. Fora isso, houve em
momentos esparsos atos de enforcamento e fugas individuais com ou sem atentado ao
senhor.
Interessante que entre os casos encontrados, a maioria envolveu escravos do sexo
masculino, à exceção do caso de Vicência. Crioula, escrava de Alexandre Manuel da Silva,
proprietário do Engenho Conceição do 3º Districto de São Vicente, de combinação com o
crioulo Manuel Paulo de Montes, assassinou a golpes de enxada o infeliz proprietário por
pretender deixá-la liberta por sua morte. Segundo o delegado Francisco de Paula
Cavalcanti, depois de encontrado o cadáver do infeliz e vistoriado, os dois confessaram o
crime. Vicência sob condição de conseguir sua liberdade após a morte de seu senhor parece
que não teve dúvida em encurtar o tempo desta condição, e junto com Manuel, homem
livre, armaram uma estratégia de liberdade ao preço do assassinato. O ato de Vicência trata-
se de um caso em que a carta de liberdade já havia sido alcançada, mas a liberdade de fato
ainda não.526
Os casos que envolveram os homens escravos e as estratégias para alcançar a
liberdade à revelia do senhor foram, principalmente, através das fugas ou em atos de auto-
enforcamento que feria em cheio o domínio senhorial sobre suas propriedades,
demonstrando de fato quem possuía o domínio sobre o corpo-propriedade. Entre os casos,
cito dois enforcamentos ocorridos no Engenho Junco no ano de 1880. Ambos os escravos
pertenciam a Antônio Vicente da Costa. O primeiro, Antônio, suicidou-se enforcado na
casa de bagaço do Engenho, o segundo, Amaro, em dezembro do mesmo ano, enforcou-se
na própria senzala.527
O Engenho Junco era de propriedade de Dona Emereciana Maria Piedade e Antônio
Vicente da Costa que faleceram antes de 1877. Antônio Vicente da Costa era também o
nome do filho mais velho do casal, o qual passou a ser herdeiro majoritário dos bens da
família a partir de 1877 quando Emereciana faleceu. Antônio Vicente era o proprietário dos
escravos Antônio e Amaro que se suicidaram 3 anos depois que a matrona Emereciana

526
Oficio do delegado de Nazaré, Francisco de Paula Cavalcanti, para o chefe de polícia, José Pereira da Silva
Moraes. Delegacia de Polícia de Nazaré, 1/03/1865. SSP Nazaré 245 vol. 654. APEJE/Recife.
527
SSP Nazaré 249 vol 650. APEJE/Recife.

345
morrera. Esta, como verificamos acima, tinha o costume de alforriar seus escravos com ou
sem pecúlio, com ou sem condição, na maioria mulheres escravas e homens e mulheres
idosos. No engenho Junco também havia casas de lavradores, prova de que o trabalho livre
convivia com o trabalho escravo neste período. Amaro e Antônio, no entanto, não vieram
para Antônio Vicente como herança da mãe. Na partilha, Antônio herdou, entre outros
bens, Brasiliana, crioula de 16 anos (600$000), Eugênio, crioulo, 31 anos (1:000$000),
Félix, crioulo (200$000), João, 42 anos (500$000), João, crioulo, 39 anos (1:000$000).
Infelizmente não tivemos acesso ao inventário de Antônio Vicente para verificar quantos
escravos ele possuía e as possíveis condições de trabalho. De qualquer modo, Amaro e
Antônio que morreram enforcados no Engenho Junco faziam parte de um espaço social em
que existiam cerca de 30 escravos trabalhando, mais lavradores livres, e pertenciam a um
senhor que 3 anos antes do ano de 1880, herdara 5 escravos, sendo 4 homens em idade
ativa para o trabalho. No mais, o Engenho Junco estava em plena atividade nesse período
com engenho moente e corrente e produção de safras de cana.528
Mesmo diante da pouca informação sobre o caso do suicídio dos escravos Amaro e
Antônio, ainda assim podemos sugerir algumas conclusões. Diante do fato de que dois
escravos homens se suicidaram, no mesmo ano, no mesmo Engenho, e em espaços
significativos de condição de moradia e de trabalho, e frente às informações sobre os
processos de liberdade da comarca de Nazareth, o suicídio possivelmente significou um ato
de negação às condições de vida, de trabalho e de liberdade as quais, principalmente, os
escravos homens estavam sujeitos. No mesmo sentido, é notório o fato de verificarmos
fugas apenas entre escravos homens: Thomas, José, Alexandre, Cândido, Flaviano, Manoel
Luis, Manoel Joaquim e outros, durante, principalmente, a década de 70.529 Neste ponto,
voltamos à questão: quais eram as possibilidades de escolhas, melhorias e conquistas de
vida que os escravos podiam buscar nos engenhos da comarca de Nazareth?
Quanto às fugas, ressalto a história de Manoel Joaquim que em 12 de maio de 1869
foi remetido pelo delegado de Nazareth, João Wanderley, para o serviço de recrutamento.
Um mês depois, em 8 de junho, o chefe de polícia da província apresentou novamente
Joaquim Manoel ao delegado de Nazareth, seguindo comunicado de que o General

528
Inventário de Emereciana Maria da Piedade. 3/09/1877. Cartório de Nazaré. Museu do Açúcar/FUNDAJ.
529
SSP Nazaré 247 vol 652. APEJE/Recife.

346
Comandante das Armas de Pernambuco declarou que Joaquim era um escravo pertencente
ao senhor Manoel Urbano proprietário do engenho Jacu da comarca de Nazareth.530 Duas
semanas depois, no entanto, a resposta do delegado de Nazareth ao chefe de polícia foi
categórica: ―ser Manoel Joaquim de muito conhecimento, vadio e turbulento, conhecido por
todos do lugar de sua residência por forro‖.531
Em auto de perguntas proferido à Manoel Joaquim, com a presença do delegado de
Recife, João Alves Maciel, o questionado respondeu que tinha 45 anos de idade, era
solteiro, escravo de Manoel Urbano, senhor do Engenho Jacu, que era filho de Luiza,
escrava, natural de Jacu e lá morador e não sabia ler nem escrever. Ao perguntarem por que
motivo ele havia declarado ser livre, quando foi recrutado, Manoel respondeu que tinha
receio de dizer ser escravo em consequência de estar fugido. Segundo ele, fazia três meses
que fugira porque seu senhor era mau. Perguntado ainda aonde foi preso e para que lugar
foi remetido, Manoel respondeu que estava em um samba no lugar denominado Cueira
quando chegou o Inspetor de Quarteirão e o remeteu para a cadeia de Nazareth donde foi
para Recife e ficou recolhido no Hospital por se achar doente. Disse que como não foi
reconhecido por ninguém na cadeia em Nazareth, pôde ocultar sua condição.532
Em 22 de junho, no entanto, do Engenho Jacu, o senhor Manoel Urbano Pereira
escreveu uma carta para o delegado de Nazareth esclarecendo que o preto Manoel Joaquim
não era escravo dele, e sim era conhecido por todos como liberto, pois era filho de Lorença
moradora em um lugar localizado entre o Engenho e ―o barro vermelho‖. Segundo Manoel
Urbano, o preto era afilhado de sua tia Dona Feliciana a qual lhe criou em sua casa. Por
fim, o senhor Manoel pede ao delegado que ―desole a meninice‖ do preto Manoel Joaquim
o qual teria morado sempre pela região de Jacu como todos poderiam afirmar.533
Nessa pequena história, a versão de Manoel Joaquim de que era escravo fugido,
filho de escrava e temeroso ao senhor mau, acoplada à estratégia infeliz de se passar por
livre e criminoso e ser recrutado, poderia ter dado certo caso ele não se arrependesse e

530
Ofício do chefe de Polícia de Pernambuco para o delegado de Nazaré, João Wanderley. 8/06/1869. SSP
Nazaré 246 vol 653. APEJE/Recife.
531
Ofício do delegado de Nazaré, João Wanderley para o chefe de Polícia de Pernambuco, 21/06/1869. SSP
Nazaré 246 vol 653. APEJE/Recife.
532
Auto de Perguntas a Manoel Joaquim, escravo. Delegacia de Recife, Recife, 8/06/1869. SSP Nazaré 246
vol 653. APEJE/Recife.
533
Carta de Manoel Urbano Pereira para o delegado de Nazareth, João Cavalcanti Maurício Wanderley. Jacu,
22/06/1869. SSP Nazaré 246 vol 653. APEJE/Recife.

347
preferisse voltar ao cativeiro, fatos que nos levam a pensar sobre o que era ser escravo em
um engenho na comarca de Nazareth e, nas outras possibilidades, isto é, de não ser escravo.
As considerações do delegado e do suposto senhor do escravo levam-nos a refletir sobre as
contradições dos discursos das autoridades e senhores sobre: o forro, o liberto e o escravo.
O delegado foi categórico, Manuel não passava de um ―forro‖, um vadio e turbulento. Para
o senhor, apesar dele não ser seu escravo e sim de sua Tia D. Feliciana, mesmo assim,
tratou-o como um ―liberto‖ que estava aprontando meninices. Curioso que Manuel se
classificou como ―escravo‖, fugido e insatisfeito com seu senhor mau. Diante desses três
discursos sobre um mesmo fato, podemos sugerir algumas pistas do que era ser: um forro
para as autoridades policiais, um ex-escravo de criação (filho de uma moradora livre) para
um senhor de Engenho, e um escravo fugitivo, para um preto que não queria ser recruta.
Manoel Joaquim não queria ser recrutado, e, por esse motivo pode ter mentido e dito ser
escravo. Vale ressaltar a escolha do preto Manoel Joaquim de dizer que era escravo
justamente de um senhor que julgou suas atitudes como ―meninices‖, parecem-nos ser uma
boa tática utilizada pelo preto. Acredito assim que Manoel Joaquim sabia o que estava
fazendo, e com quem estava jogando. Afinal ele tinha plena consciência do perfil do seu
suposto ―senhor mau‖. Tentou a liberdade, mesmo sendo livre? Ou, na verdade, tentou a
liberdade, pois era um liberto sob condições ainda não totalmente livres? Detalhes que não
sabemos, mas que podemos imaginar. A história, por outro lado, contém nitidamente traços
de um paternalismo por parte do suposto senhor do escravo, o qual não era de fato senhor
do outro que também não era escravo, um paternalismo, portanto, que extrapolava a relação
estritamente senhor-escravo. Ao mesmo tempo, já no início dos anos 70, as autoridades
locais tinham na ponta da língua o conceito que ligaria o substantivo forro ao adjetivo
vadio. Diante dessa situação de um paternalismo enraizado nas relações dentro do engenho
e em suas terras, e de um discurso de criminalização em crescimento nos julgamentos das
autoridades locais, qual seria a melhor opção de vida para um escravo e para um ex-escravo
na comarca de Nazareth?
Outro caso interessante talvez possa nos dar mais pistas sobre essas relações. No dia
30 de novembro de 1873, pelas oito horas da manhã, no Engenho Terra Vermelha, no 1º
distrito da freguesia de Tracunhaém, o doutor Antônio de Holanda Cavalcanti da Rocha
Wanderley na qualidade de rendeiro do dito engenho indo empatar a colheita de um roçado

348
de Manuel, escravo de José Feliz Bezerra de Menezes, morador na propriedade do mesmo
engenho, visto que o escravo não queria pagar a renda do mesmo roçado, ordenou a
Manuel, o qual estava junto com um seu irmão de nome Bastos, para que se retirasse do
roçado que lhe pertencia uma vez que ele (o escravo) não aceitava pagar o devido foro.
Porém, José Feliz Bezerra, inimigo capital do referido Dr. Antônio, chegando à ocasião e
observando o acontecimento, gritou a seus escravos Manoel e Bastos para que matassem o
Doutor Antônio. Estes obedeceram à ordem de seu senhor e armados de facas de ponta e
jagunço dirigiram-se ao Dr. Antônio Cavalcanti com mais algumas pessoas procurando
assassiná-lo. Os escravos não conseguiram o ato, pois após Manoel e outros negros terem
ferido com a ponta do jagunço o Dr. Antônio, este, ao chão, começou a dar algumas
pancadas com o coice de uma espingarda espoleta em Manoel o que resultou em disparos.
Nenhum tiro causou ferimentos ou ofensa física de qualquer natureza. O tumulto, no
entanto, separou os envolvidos os quais, depois, seguiram para suas casas.534
As evidências de que escravos arrendavam pedaços de terra e pagavam foro para
proprietários traz-nos pistas de uma sociedade escravocrata onde cativos tinham suas
possibilidades de ganho com a lavoura e acesso a pedaços de terra através do pagamento de
foros. Esta condição, todavia, não excluía a existência da relação paternalista. Ao mesmo
tempo, diante de uma opressão que saísse da relação senhorial estabelecida, a resistência se
fazia e, algumas vezes, com apoio do senhor, o qual também, por motivos pessoais,
defendia seus escravos. Assim como Manoel Joaquim que tentou jogar com as relações
entre senhor e escravo e escapulir de uma infeliz tentativa de liberdade, Manoel, escravo de
José Feliz, não teve dúvidas ao confrontar o dono da terra, Dr. Antônio Cavalcanti
Wanderley, pois, provavelmente, sabia que teria a proteção de seu senhor.
Podemos alcançar algumas considerações, ou mais, diante dos fatos. A principal, e
que ficou bem nítido em todo este capítulo que discorremos sobre os caminhos da
liberdade, diz respeito aos laços sociais dos escravos que se davam de forma horizontal e de
forma vertical, num jogo astuto de aferição sobre as possibilidades de conquista da
liberdade, quer seja sob condições ou não. Em outras palavras, não devemos compreender
os processos de alforrias nem como conquista e nem como concessão, e sim, buscar

534
Oficio do delegado de policia de Nazareth para o chefe de polícia de Pernambuco, Antônio Francisco
Correia de Araújo. Nazareth, 5/12/1873. SSP Nazaré 247 vol 652. APEJE/Recife.

349
investigar de forma dialética os processos sociais, compreendendo os conflitos e as
conjunturas sociais, econômicas e políticas específicas. Neste ponto, e diante da
investigação exposta neste capítulo, acredito que podemos desconstruir a dificuldade
colocada por Roberto Guedes de entender ―esta simbiose em que alforria é ao mesmo
tempo engodo senhorial e conquista escrava‖535, e também propor um outro caminho de
compreensão sobre as manumissões que escapam de uma possível visão dicotômica
presente numa interpretação que vislumbra conquista-resistência, por um lado, e engodo-
contradição, por outro. Inspirando-nos, sobretudo, nas reflexões de James Scott, apostamos
numa análise das relações sociais e, principalmente, de dominação, como existindo uma
dialética entre o público e o ―hidden transcript‖536 – práticas, gestos, falas que são excluídos
do ―public transcript‖537 pelo exercício do poder. Na visão do autor, se a dominação é
particularmente severa, isto é, como produzir um ―hidden transcript‖ de correspondência
riquíssima.538 O que podemos olhar de cima como a extração de um desempenho exigido,
podemos facilmente procurar de baixo para cima como a manipulação engenhosa de
deferência e adulação para alcançar seus próprios fins.539 Assim, grupos subordinados
devem sentir sua conformidade como espécie de manipulação. E na medida em que a
conformidade é tática, isto é com certeza manipulativo.540 Assim, as informações sobre as
condições sociais e econômicas dos senhores para praticarem as alforrias ou não disseram-
nos muito sobre estes, e também nos disseram muito sobre seus escravos que viviam e
pensavam sobre as condições de seus senhores. Isto tornou os escravos e libertos muito
astutos, e, muitas vezes, rebeldes, levando-os às fugas, aos suicídios ou à Justiça. Levou-os
também a construir uma vida cotidiana de forma mais livre, não necessariamente através da
liberdade legal em si, mas através da liberdade de (re) significar a vida no cativeiro.
Geraram mecanismos também na esfera simbólica, na esfera cultural, e de forma

535
GUEDES, op. cit., 2008, p. 182.
536
Scott coloca ―hidden transcript‖ para caracterizar o discurso que se faz no lugar dos bastidores, para além
da observação direta dos poderosos. O ―hidden transcript‖ deriva no que consiste aqueles discursos nos
bastidores: gestos e práticas os quais confirmam, contradizem ou flexionam o que aparece na ―public
transcript‖. Já este termo é colocado como uma forma abreviada de descrever a interação aberta entre
subordinados e aqueles que dominam. Uma performance necessária para os sujeitos elaborarem e
sistematizarem formas de subordinação. SCOTT, Domination and the Arts of Resistance: Hidden Transcripts.
New Haven: Yale University Press, 1990.
537
Na língua original: public transcript. SCOTT, op. cit., 1990.
538
SCOTT, op. cit., 1990, p. 34.
539
SCOTT, op. cit., 1990, p. 34.
540
SCOTT, op. cit., 1990, p. 33.

350
consistente e enraizada, criaram seus próprios costumes, costumes culturais que ficaram
amarrados na roda da história e sobrevivem até hoje entre os trabalhadores rurais.
Então vamos ao samba!

Capítulo 4

Viva a liberdade! As festas dos trabalhadores rurais na Zona da Mata


Norte de Pernambuco

Meu avô lá no Congo foi rei Bantu


Mas aqui eu sou rei do Maracatu
Fiz, eu fiz meu reinado, fiz meu trabuco
Lá nos canaviais do meu Pernambuco

Ai, ai Orixalá
Ai, ai meu pai nagô
Ó Vem abençoar meu reinado
Que foi feito só de paz e de amor
(Luiz Gonzaga e Zé Dantas, 1950)

4.1) A historiadora-brincante: objetivos, fontes e escolhas metodológicas

Sem produção não há história, insistiu R. S. Sharma oportunamente. Mas devemos


dizer também: sem cultura não há produção.
(E. P. Thompson)

A cultura não é um poder, algo ao qual podem ser atribuídos casualmente os


acontecimentos sociais, os comportamentos, as instituições ou os processos; ela é um
contexto, algo dentro do qual eles podem ser descritos de forma inteligível – isto é,
descritos com densidade.
(Clifford Geertz)

Antes de iniciar propriamente o capítulo que deu origem à tese, preciso e devo
propor ao leitor uma conversa sobre minha experiência como atriz-bailarina e historiadora

351
na interpretação do folguedo do Cavalo Marinho da mata norte pernambucana e seus
sujeitos. Busco nesse diálogo refletir sobre a importância de uma análise pelo viés da
História Social para ampliar a compreensão do brinquedo como obra do trabalhador da
cana dentro do processo histórico. Desenvolver este foco interpretativo vem possibilitar que
a ação do pesquisador em História some às ações dos atores e bailarinos, qualificando ainda
mais a prática destes como produtores de arte e textos acadêmicos. Resultados, por sua vez,
que voltam à sociedade e se inserem na rede social de construção de atos, escritos e dizeres
sobre a cultura popular, influenciando também seus sujeitos e sua história.
Desde 2003 quando iniciei uma pesquisa em dança como integrante do grupo Peleja
(Campinas-SP) sobre o Cavalo Marinho na Zona da Mata Norte de Pernambuco, existiam
duas perguntas que me incomodavam: por que essas culturas festivas se mantêm entre esses
trabalhadores rurais? Que significados essa cultura tem para esses trabalhadores hoje, e ao
longo do processo histórico? Diante dessas questões prévias, resolvi desenvolver uma tese
de doutorado que colocasse o Cavalo Marinho e o Maracatu como centros da minha
interpretação, no entanto, almejava (re) construí-los apoiada na História Social. Para tanto,
a pesquisa teria como foco o trabalhador rural e suas ações na história. Por sua vez,
trabalhador rural de que momento histórico? O recorte estabelecido, 1870 a 1888, veio para
incluir: escravos, libertos, livres brancos e negros, mulatos, caboclos, etc.541, e, dentro dessa
ordem, diversas reflexões sobre o processo de abolição. Um estudo, portanto, que buscou
investigar os indícios de embates cotidianos e culturais para assim suscitar outras visões
sobre os folguedos e a história dos trabalhadores da cana pernambucanos.
Nessa perspectiva encontramos, na bibliografia internacional, os trabalhos de Roger
Abrahams, Lawrence Levine e James Scott, que também refletem sobre como as pessoas
agiam e reagiam no mundo cotidiano.542 Os autores investigaram formas culturais de

541
Destacamos também mulatos, crioulos, pardos, cabras e toda a nomenclatura utilizada no século XIX e XX
para as classificações de cor e raça.
542
ABRAHAMS, Roger. Singing the Master. The emergence of african-american culture in the plantation
south. Nova Iorque, Pinguins Books, 1992.____ The Man of words in the west indies. Performance and the
Emergence of Creole Culture.. Baltimore, The Johns Hopkins Press, 1983. LEVINE, Lawrence. Black
Culture and Black Consciousness Afro-American Folk thought from de slavery to freedom. Nova Iorque,
Oxford University press, 1977. E também o capítulo Religion and Festivities on the Plantation. In: STEIN, S.
J. Vassouras: um município brasileiro do café, 1850-1900. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1990. SCOTT, op.
cit., 1990. SLENES, R. Eu venho de muito longe, eu venho cavando: jongueiros cumba na senzala centro-
africana. IN: LARA, S.H. & PACHECO, G. Memória do Jongo, 2007. Rio de Janeiro, Folha Seca, Campinas,
SP, Cecult, 2007.

352
resistência dos negros durante a escravidão através, por exemplo, de estudos sobre rituais,
contos, crenças, músicas, danças e outras manifestações que reconstituem uma nova cultura
africana no contexto escravista americano.
Os estudos que priorizam a segunda metade do século XIX e o mundo da
escravidão, ou para o início do século XX e para o mundo do trabalho assalariado, estão se
beneficiando de fundamentos empíricos e teóricos advindos, principalmente, de uma
literatura de história política, cultural e social do trabalho inglesa. O trabalho de E. P.
Thompson, por exemplo, foi de suma importância para ampliarmos o conceito de classe
social, questionando sua reificação e toda uma lógica de determinação "em última
instância" do político e do social pelo econômico. A afirmação de centralidade dos valores
e comportamentos de um grupo social, que se relaciona com a posição que ocupa no
mercado de trabalho, mas não se esgota nela, foi fundamental para a valorização de
questões que abarcavam a etnia, o gênero e as tradições culturais dos trabalhadores, assim,
no cerne da questão, a categoria "experiência" que coloca a vivência dos atores históricos
em cena.543
Alf Lüdtke observa o cotidiano focando a reconstrução das situações recorrentes de
lutas diárias para a sobrevivência e, também, propondo reviver caminhos nos quais os
participantes são - ou poderiam tornar-se - simultaneamente objetos e sujeitos da história.
Buscas, sobretudo, para entender como são as formas nas quais as pessoas se apropriam e
transformam seu mundo. Para o autor, ainda que inseridos nas relações de forças sociais de
seus contextos específicos, indivíduos e grupos criam e recriam dentro e através da ordem
social, política e cultural vigente, linguagens, discursos e códigos próprios reconhecidos
socialmente.544 Ou ainda, como destaca Certeau: como uma sociedade inteira não se reduz
à "vigilância"? Que procedimentos populares ("minúsculos" e cotidianos) jogam com os
mecanismos da disciplina e não se conformam com ela a não ser para alterá-los?545
Essas ações de resistência à ordem social e política hegemônica podem se
manifestar de diferentes maneiras como, por exemplo, através da cultura. Como coloca

543
THOMPSON, E. P. Costumes em Comum. Estudos sobre a cultura popular tradicional. São Paulo, Cia
das Letras, 1998. THOMPSON, A Formação da Classe Operária Inglesa. (trad.). Rio de Janeiro, Paz e Terra,
1987.
544
LUDTKE, Alf. The History of everyday life reconstructing historical experiences and ways of life. New
Jersey, Princenton University Press, 1995. p. 6-8.
545
CERTEAU, Michel. A invenção do cotidiano. Petrópolis, Ed. Vozes, 1994, p. 41. Vale ressaltar, que
considero que o autor explora pouco os aspectos politizados das ações cotidianas.

353
Kaschuba, é interessante focar a análise na prática cultural dos sujeitos históricos como
uma realidade complexa.546 Como nossos escravos, libertos e brancos trabalhadores dos
engenhos se (re) apropriavam de suas condições enquanto dominados pela ordem
paternalista e criavam através do Cavalo Marinho ou do Maracatu, expressões culturais de
resistência, acomodação ou negociação político-social? Ou como coloca Thompson: muito
mais atrativo é quando nos voltamos para a cultura, as normas e os rituais do povo sobre
quem as classes dominantes exerciam seu domínio, pois a cultura, as normas e os rituais
são comumente tidos como intrínsecos ao modo de produção em si, à reprodução tanto da
vida mesma quanto dos meios materiais da vida.
Nesse sentido, minha grande inspiração internacional veio das pesquisas sobre
charivaris realizadas por E. P. Thompson e Natalie Zemon Davis, que consideram as
formas festivas, como algo muito além de serem meras válvulas de escape, isto é, como
meios usados pela comunidade para perpetuar certos valores e/ou fazer crítica da ordem
social.547 Sua abordagem contribuiu, e muito, para a tendência da História Social desde a
década de 80 de estreitar vínculos com a antropologia e a literatura para discutir as formas
pelas quais os critérios culturais modelam decisivamente os processos sociais que
constituem seu objeto central.
Das pesquisas que contemplam o tema das culturas festivas no Brasil, considero as
coletâneas de István Jancsó e Kantor, e Clementina Cunha, entre outros, excelentes
exemplos de como analisar manifestações populares de origens, formas e contextos
diferentes, mas que revelam aspectos dos contextos sociais, econômicos e políticos em que
estavam inseridas.548
É importante destacar que esses estudos, principalmente a coletânea de Cunha, fazem
parte de uma vertente que busca evitar pensar a cultura em termos de totalidade, para lançar
um olhar mais detido aos seus elementos, rituais, significados, atributos, processos de
hegemonia, formas de transmissão e troca simbólica. A cultura também é concebida como
um conjunto de diferentes recursos em que há sempre uma troca entre o escrito e o oral, o

546
KASCHUBA, Wolfang. Popular culture and workers culture as symbolic orders comments on the debate
about the history of culture and everyday life. In: LÜDTKE, 1995, p. 170-174.
547
DAVIS, Natalie Zemon. Culturas do Povo. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1990. THOMPSON, op. cit., 1998.
548
JANCSÓ, I. & KANTOR, I. (org.). Festa, cultura & sociabilidade na América portuguesa. Vol. II, São
Paulo, FAPESP/ Imprensa Oficial/EDUSP, 2000. CUNHA, M. Clementina (org.). Carnavais e outras
F(r)estas. Campinas/SP, Ed. Unicamp, Cecult, 2002. Ver também ABREU, Martha. O Império do Divino.
Festas religiosas e cultura popular no Rio de Janeiro, 1830-1900. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999.

354
dominante e o subordinado, a aldeia e a metrópole; é uma arena de elementos conflitivos,
que somente sob uma pressão imperiosa - por exemplo, o nacionalismo, a consciência de
classe ou a ortodoxia religiosa predominante - assume a forma de um "sistema".549
Para Thompson, o significado de um ritual só pode ser interpretado quando as fontes
(algumas delas coletadas por folcloristas) deixam de ser olhadas como fragmento
folclórico, uma "sobrevivência", e são reinseridas no seu contexto total.550 E na verdade o
próprio termo "cultura", com sua invocação confortável de um consenso, pode distrair
nossa atenção das contradições sociais e culturais, das fraturas e oposições existentes dentro
do conjunto.551 Um processo, portanto, dinâmico, que me distancia da concepção de
―tradição‖ e seu caráter permanente, isto é, algo que atravessou o tempo e se manteve, algo
tomado pela invariabilidade552. Assim, é necessário esclarecer desde o início que pretendo
trabalhar com o conceito de ―cultura‖ e ―costume‖ de E. P. Thompson, que está ―longe de
exibir a permanência sugerida pela palavra ‗tradição‘‖553. Nas palavras de Hobsbawm, a
tradição deve ser nitidamente diferenciada do ―costume‖, vigente nas sociedades ditas
―tradicionais‖. O passado real ou forjado a que ela se refere impõe práticas fixas
(normalmente formalizadas), tais como a repetição. O ―costume‖, nas sociedades
tradicionais, tem a dupla função de motor e volante. Para o autor, o ―costume‖ não impede
as inovações e pode mudar até certo ponto, embora evidentemente seja tolhido pela
exigência de que deve parecer compatível ou idêntico ao precedente.

Sua função é dar a qualquer mudança desejada (ou resistência à inovação)


a sanção do precedente, continuidade histórica e direitos naturais conforme
expresso na história. Os estudiosos dos movimentos camponeses sabem que
quando numa aldeia se reivindicam terras ou direitos comuns ‗com bases em
costumes imemoriais‘ o que expressa não é o fato histórico, mas o equilíbrio de
forças na luta constante da aldeia contra os senhores de terra ou contra outras
aldeias. Os estudiosos do movimento operário inglês sabem que o ―costume de
classe‖ ou da profissão pode representar não uma tradição antiga, mas qualquer
direito, mesmo recente, adquirido pelos operários na prática, que eles agora
procuram ampliar ou defender através da sanção da perenidade. O ―costume‖
não pode se dar ao luxo de ser invariável, porque a vida não é assim nem mesmo

549
THOMPSON, op. cit., 1998, p.17
550
THOMPSON, op. cit., 2001, p. 238.
551
THOMPSON, op. cit., 1998, p.17.
552
Ler considerações sobre tradição e costume em HOBSBAWM, E. A invenção das tradições. Trad. Celina
Cardim Cavalcante. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1997, p. 9-23.
553
THOMPSON, op. cit., 1998, p.16.

355
nas sociedades tradicionais.554

A respeito da história inglesa, segundo E. P. Thompson, no século XVIII, o costume


constituía a retórica de legitimação de quase todo uso, prática ou direito reclamado. Por
isso, o costume não codificado estava em fluxo contínuo. Longe de exibir a permanência
sugerida pela palavra ―tradição‖, o costume era um campo para a mudança e a disputa, uma
arena, na qual os interesses opostos apresentam reivindicações conflitantes. Para o autor,
essa é uma razão pela qual precisamos ter cuidado quanto a generalizações como ―cultura
popular‖. Para ele, esta pode sugerir, numa inflexão antropológica influente no âmbito dos
historiadores sociais, uma perspectiva ultraconsensual dessa cultura, citando Peter Burke,
entendida como sistemas de atitudes, valores e significados compartilhados, e as formas
simbólicas (desempenhos e artefatos) em que se acham incorporados. Para Thompson, em
seus estudos sobre a cultura plebeia inglesa do século XVIII, ele almejou tornar o conceito
desta cultura como algo mais concreto e utilizável (―no lugar material que lhe
corresponde‖), não mais situado no ambiente dos ―significados, atitudes, valores‖, ―mas
localizado dentro de um equilíbrio particular de relações sociais, um ambiente de trabalho
de exploração e resistência à exploração, de relações de poder mascarados pelos ritos do
paternalismo e da deferência‖.555 E, na minha opinião, aqui sim temos também uma
proposta real de investigação sobre a cultura popular brasileira.
Ainda quanto à definição de cultura popular, aposto nas perspectivas historiográficas
que tomam como problema central de análise os processos de comunicação entre diferentes
sujeitos das festas, mas não escondem a intenção de vislumbrar outra forma pela qual, no
interior deste diálogo, o conflito se produz, reproduz e realiza. O pressuposto não se apóia
na divisão da cultura entre a dos "eruditos" e a dos "populares" (ou dominantes e
dominados, altos e baixos). Pensa-se em um repertório disponível a todos os atores que
produz uma multiplicidade de significados circulando como objeto de disputas e tensões,
apropriações diversas e ressignificações, repressão e sedução, no interior de um mesmo
contexto cultural.556
Talvez nesse ponto, considero que, hoje, ao pesquisarmos o Cavalo Marinho e o

554
HOBSBAWM, E. ―A invenção das tradições‖. Trad. Celina Cardim Cavalcante. São Paulo, Paz e Terra,
2008, p. 10.
555
THOMPSON, op. cit., 1998, p. 17.
556
CUNHA, op. cit., 2002, p.18.

356
Maracatu e outras manifestações culturais ditas populares, não estamos tratando de
universos tão distintos do saber, isto é, o saber oral e o saber letrado, o popular e o erudito.
Devemos visualizar um panorama de relações, conflitos, identidades, trocas, imposições e
resistências entre estas realidades – popular e erudita - que, ao mesmo tempo que se
diferem, historicamente, se fizeram (e fazem) entrelaçadas e diante de um contexto
comum.557 Devemos, portanto, almejar o entendimento de conjunturas específicas que
constituem culturas específicas.
Outra definição importante para se discutir sobre a temática é o conceito de festa.
Norberto Guarenello trabalha com uma definição que sugere uma abordagem das festas
como estrutura do cotidiano, ou, antes, como parte da estrutura do cotidiano. Propõe,
portanto, vê-las não como realidade oposta ao cotidiano, mas integrada nele. E o autor
pensa o cotidiano, apoiando-se em Martini, não como uma dimensão particular da
existência humana, mas como o tempo concreto de realização das relações sociais.558
Assim, para Guarenello, festa é

(...) parte de um jogo, é um espaço aberto no viver social para reiteração,


produção e negociação das identidades sociais. Traçam fronteiras, espontâneas
ou impostas, entre os aptos a dela participar e os que são estranhos a ela.
Coincide com a linha da identidade que produz em seu interior. Identidade não
homogênea. Identidade criada que é uma unidade diferenciada e conflituosa; de
cooperação e de competição; uma estrutura de produção e consumo e, portanto,
uma estrutura de poder.559

Na realidade histórica, por sua vez, a manifestação cultural dos trabalhadores da cana
variou dialogando com o processo social de seus sujeitos. Em tempos da escravidão, sob
condições específicas de cativeiro, de não liberdade, de relações paternalistas e de um jogo
de dominação e subordinação, os escravos, ao realizarem seus Maracatus e Cavalos
Marinhos, faziam-nos em íntimo diálogo com a conjuntura existente. Assim, exerceram

557
Aqui discordo de certa maneira das considerações expostas por TENDERINE, H. M. Na pisada do galope
Cavalo Marinho na fronteira traçada entre brincadeira e realidade. Dissertação de Mestrado em
Antropologia, UFPE, Recife/PE, 2003, p. 20-25. OLIVEIRA, Erico José Souza de. A roda do mundo gira: um
olhar sobre o Cavalo Marinho Estrela de Ouro (Condado-PE). Recife, Sesc, 2006, p. 150-152, obras que
citarei mais a frente neste capítulo.
558
GUARENELLO. Festa, Trabalho e Cotidiano. In: JANCSÓ, I. & KANTOR, I. (org.). Festa, cultura &
sociabilidade na América portuguesa. Vol. II, São Paulo, FAPESP/ Imprensa Oficial/EDUSP, 2000, p. 971.
MARTINI, 1998, p.1-8.
559
GUARENELLO, op. cit., 2000, p.973.

357
essa prática aos olhos do poder. O brinquedo, desse modo, foi, muitas vezes, expresso aos
olhos dominantes como uma manifestação ligada aos ritos brancos, ou em níveis legais ou
―para inglês ver‖. No entanto, levando em conta as reflexões sobre as relações de
dominação de James Scott, devemos tomar cuidado em ver linguisticamente a deferência e
gesto de subordinação meramente como performance extraída pelo poder. O fato é que eles
servem também como uma barreira e um véu que o dominante acha dificuldade ou
impossibilidade de penetrar. De um lado, o poder deforma a comunicação, mas, de outro, a
comunicação distorcida preserva um lugar sequestrado onde um discurso autônomo pode
desenvolver. Para James Scott, grupos subordinados devem sentir sua conformidade como
uma espécie de manipulação. Na medida em que a conformidade é tática, isto é, com
certeza, manipulação. É preciso, portanto, entender os olhares dos dois ―eus‖ envolvidos na
relação. Existe, portanto, o público e o escondido; existe um discurso da liberdade e uma
ação de resistência fora dos olhos dos dominantes, ainda que sob os seus olhos.560
As evidências documentais, por exemplo, de que em certo sábado da década de 70
do XIX, em terras dos engenhos da comarca de Nazareth, as festas do Maracatu e do
Cavalo Marinho eram realizadas pelos escravos e em meio desses ouviram-se gritos de
Viva a Liberdade, pode nos trazer algumas informações relevantes sobre a ação escrava em
favor da liberdade. Contudo, a declaração pública (e aqui utilizo o sentido dado por Scott
de ―public transcript‖ como uma forma abreviada de descrever a interação aberta entre
subordinados e aqueles que dominam. Uma performance necessária para os sujeitos
elaborar e sistematizar formas de subordinação561) de que se tratava apenas de uma
comemoração de batizado leva-me a (re) construir os feitos e os ditos observando os dois
lados da moeda como parte de um mesmo todo, de um mesmo momento social, de relações
e construções sócio-culturais em constante troca (negociadas, impostas ou resistidas). Em
outras palavras, ainda que no século XIX na zona rural pernambucana, os escravos ao
realizarem os folguedos tenham declarado publicamente estar apenas comemorando um
ritual católico branco, digo, o batismo, pergunto: por que o fizeram às escondidas e por que
foi justamente esse o argumento utilizado para escapar da repressão policial? Acredito, sim,
em tática de um discurso sequestrado, um discurso secreto a seus participantes, pertencente

560
SCOTT, J. Domination and the Arts of Resistance: Hidden Transcripts. New Haven: Yale University
Press, 1990.
561
SCOTT, op. cit., 1990, p. 2.

358
apenas a eles. Por outro lado, publicamente, jogava-se nas regras das relações paternalistas
do período.562
Já em outro momento histórico, na época dos relatos de Pereira da Costa, por
exemplo, no início do século XX, presenciamos em suas narrativas sobre o Cavalo Marinho
(Boi) uma inversão dos papéis sociais de forma explícita, aos olhos de quem queria ver. A
valorização da figura do negro de alguma forma é colocada, igualmente, como na
brincadeira atual através das figuras de Mateus e Bastião.
É nesse sentido que expresso a importância de pensarmos processos sociais que
caracterizam a história do Cavalo Marinho como um costume cultural praticado por
escravos antes da abolição, por trabalhadores rurais em outros contextos históricos, como
―expressão folclórica‖ relatada por folcloristas em tempos de usinas sem escravidão, e nos
tempos atuais, onde a manifestação é também tema de colóquios, grande foco de pesquisa
de artistas, acadêmicos e das políticas públicas culturais locais.
Aqui, portanto, temos em vista duas dimensões de interpretação histórica do
folguedo. Uma através da investigação sobre a história de seus sujeitos, de como esses (re)
construíram sua realidade frente às circunstâncias, e de como foram significando o Cavalo
Marinho e o Maracatu ao longo do processo histórico. No mesmo sentido, mas em outra
dimensão - e também apostando nos conceitos acima expostos sobre cultura popular como
não homogênea e, sim, como uma arena de elementos conflitivos, de multiplicidades e
significados e (re)significações, e como objeto de disputa e tensões dentro de um grande
contexto cultural, presentes ―eruditos‖ e ―populares‖ - refletimos sobre a interpretação dos
processos do Cavalo Marinho, e na sua reprodução hoje, realizada no diálogo com artistas e
acadêmicos.
Se, na época da escravidão, os indivíduos não inseridos no meio social dos
praticantes do folguedo entenderam ou se fizeram entender a realização do folguedo como
uma comemoração dos rituais de batismo, rito introduzido pelo branco, esta interpretação (e
a necessidade dela) influenciou diretamente na expressão pública do brinquedo para o meio
sócio-cultural e sócio-econômico vigente. Este entendimento público, portanto, foi
construído na relação estabelecida entre escravos e dominantes, e pode ter se mantido e/ou
transformado ao longo do tempo. De qualquer modo, se constituiu através da relação entre

562
Mais à frente analisaremos esta fonte e sua problematização com mais detalhes.

359
quem realizava e quem assistia e relatava. Em 1907, naquela sambada relatada por Pereira
da Costa, se o capitão do mato estivesse na plateia, será que nego Fidelis, na cena iria
amarrá-lo? Se não, podemos interpretar o evento como uma manipulação tática, se sim, aí a
proposta de uma inversão das hierarquias estava clara e foi dita publicamente. Agora, se de
fato a inversão das hierarquias se colocasse como costume na realização do folguedo, talvez
hoje, o Cavalo Marinho tivesse alcançado outras significações políticas.
Nesse sentindo, avançando no tempo, ressalto que, como envolvidos no contexto
cultural do Cavalo Marinho, influenciamos a construção do folguedo hoje e amanhã. Isso é
fato conhecido por todos, e quem teve a oportunidade de conviver por certo tempo no
cotidiano dos brincadores percebeu isso. Obviamente, a cultura é dinâmica. No entanto,
toda dinâmica tem em seu centro relações propulsoras de sujeitos e suas subjetividades.
Ao analisar essa dinâmica atual, identificamos claramente o processo social pelo
qual os brincadores na sua maioria deixam de ser brincadores-trabalhadores da cana para se
transformarem em brincadores-artistas. Sem atribuir benefícios ou malefícios a essa
transformação, cabe-nos refletir sobre as mudanças em si. Mudanças cujas consequências
reverberam nos modos de viver, de brincar, de rememorar, de se relacionar cotidianamente,
de dançar, de tocar, de serem interpretados e pesquisados, e de se colocarem e serem
colocados no mundo. São consequências que, certamente, influenciam, menos nós artistas-
pesquisadores-brincantes, do que os descendentes diretos e viventes da comunidade do
Cavalo Marinho e do Maracatu.
Nessa dinâmica contínua de construção e (re)construção dessa cultura canavieira,
vale dizer movimento incontrolável, a intenção aqui é agregar a esse processo o
conhecimento histórico produzido. Por mais que a paisagem de um lugar mude, sempre
existirá sua história para que pelos menos o seu nome, suas raízes e suas lembranças
continuem existindo. Lembranças que tomam novos rumos, se entendermos os sentidos
políticos que os sujeitos lhes atribuem. De fato, a meu ver, enfocar esses sentidos políticos
na interpretação da história é refletir sobre a luta de classes, não no sentido marxista
ortodoxo do termo, mas seguindo os conceitos thompsonianos acima expostos.
A investigação histórica sobre o Cavalo Marinho, o Maracatu e seus sujeitos,
contribui desse modo para reconhecermos que o brinquedo teve significados complexos,
enraizados na experiência social dos trabalhadores da cana. Para os negros escravos,

360
provavelmente, significou muito mais do que um simples folguedo para diversão. Acredito
que, além de relembrar os aspectos da ―tradição‖ africana, os Maracatus e Cavalos
Marinhos possibilitaram dentro daquele cotidiano um momento de propor transformações e
sonhar com novas opções de vida, como, por exemplo, a liberdade.
Conhecer essas vivências do passado, rememorá-las, interpretá-las e divulgá-las,
influencia diretamente a dinâmica do contexto cultural desses sujeitos hoje, transformar o
modo como os indivíduos envolvidos com o tema se relacionam e estabelecem relações
com o folguedo. A disciplina da História serve para essa finalidades importante.
Em outra dimensão, pesquisadores da arte munidos do saber histórico também
qualificam suas realizações e construções pessoais de um corpo cênico. Corpo cênico que,
ao investigar outros corpos num ―encontro de continentes‖, parafraseando Mia Couto, não é
apenas matéria, mas mente e corpo.
Aqui retomo a ideia sobre a relação corpo-mente na visão dos japoneses e chineses,
mostrada pelo filósofo japonês Yasuo Yuasa citado por Greiner. Essa relação, segundo
Yussa, "(...) muda através do treinamento do corpo, o que se processa pela cultura (shugyô)
e a formação (keikô) propriamente dita".563 Portanto, considera-se a relação corpo-mente a
partir da experiência vivida e essa experiência é sempre nosso corpo em interação com o
ambiente, nosso corpo em movimento, em ações que modificam esse ambiente ao mesmo
tempo em que esse corpo é constantemente modificado. A dramaturgia é concebida como
nexos de sentidos que dão coerência a esse fluxo de informações entre o corpo e o
ambiente. As informações se constroem nesse "entre", na "mediação", no encontro.
Assim, podemos concluir que a dramaturgia do corpo não pode ser pensada distante
da cultura. A cultura que fabricamos nos treinamentos e/ou a cultura do ambiente de origem
do Cavalo Marinho:

Um corpo cotidiano com um comportamento construído pelas relações com


seu meio, com sua cultura. Não sendo possível eliminar o comportamento
cultural desse corpo no momento de representação, indissociabilidade que pode
ser identificada claramente em manifestações tradicionais onde o corpo do
trabalho cotidiano, da lida, da peleja está presente no corpo da manifestação
espetacular. Da mesma forma, não podemos pensar nosso corpo artista sem
considerar por onde ele passa e pelos encontros que o constroem.564

563
GREINER, Chrintine. O Corpo - Pistas para estudos indisciplinares. São Paulo, Annablume, 2005.
564
LARANJEIRA, C. & GUARALDO, L. & BRUSANTIN, B. Pois bata o Baião: as experiências de campo
e corpo na pesquisa artística do Grupo Peleja. In: Revista do Lume – Unicamp. Campinas, 2008.

361
Cultura e arte que juntos constroem histórias sob corpos e holofotes ou letras e
práticas de ensino. Histórias, por sua vez, que são produtos também de um processo no
tempo. E é justamente este processo que fazem os atos humanos acontecerem.
Nos encontros dessa vida, como coincidências não tão casuais, em uma das
apresentações do Magüi (―jogo‖ apresentado no início do Cavalo Marinho) pelo grupo
Peleja, quando eu ainda fazia parte, a atriz Ana Cristina Colla relembrou de suas excursões
pela literatura africana e, ao assistir a cena, diretamente se remeteu ao conto do
moçambicano Mia Couto, ―Gaiola de Moscas‖. Nascia aí um espetáculo. Um espetáculo
que se fez da junção de duas culturas, que certamente muito têm em comum: a da zona da
mata canavieira, Pernambuco, Brasil, e a de Moçambique, África. Assim também se fez nos
processos históricos, através dos quais a cultura africana e a cultura brasileira dialogaram
tendo como materiais culturais condutores as festas, a música, os cantos, os cultos, os
rituais.
Mergulhar na arte escrita de Moçambique, que também é uma reconstrução dos
processos sociais daquela comunidade, foi reviver em muitos aspectos a Zona da Mata
Norte de Pernambuco. Seja nas descrições poéticas de Mia Couto das feiras onde se vendia
de tudo, ora dos personagens que de estranho tinham muito, seja no nome: Dona
Cantarinha, Zuzé Bisgate ou Julbernaldo, ora nas falas e nos ―contatos com os de lá de
cima‖; ora pela presença constante do riso sobre a dor, ora da luta pela sobrevivência e da
intimidade com a morte.
São encontros no mundo da arte que na realidade histórica também aconteceram.
Investigar o passado nos leva a isso, a História como arte de produzir encontros e caminhos
para novos encontros. Nesse sentido, proponho construir conhecimentos próprios do ato de
historiar para gerar novos caminhos para aqueles que pesquisam e produzem arte e para
aqueles que vivem na comunidade da Zona da Mata Norte pernambucana. Se as realidades
do passado proporcionaram melhores condições de vida, de luta e de sonhos para os
antecedentes dos brincadores, folgazões e mestres dos folguedos, o que proporcionaria para
estes o acesso aos processos sociais dessa história? No que influenciaria a construção de
uma identidade harmoniosa ou conflitante com este passado? Que novos aspectos trariam
para a dinâmica do Cavalo Marinho e do Maracatu e para a vida de seus sujeitos? Que

362
novos corpos-mentes os artistas construiriam? Que novas relações humanas, com a arte,
com a academia e com o folguedo se desenvolveriam?
Deixo no ar estas dúvidas e reflexões que carrego na minha vivência como
brincante, artista, pesquisadora, historiadora e, enfim, vivente do ―mundo‖ do Cavalo
Marinho e do Maracatu, mundo que se faz em troca com outros mundos e que, na relação
travada entre si, multiplica significados.
Agora, voltemos de fato à História. Afinal, neste capítulo viemos em busca do
samba565, de seus sambadores no século XIX, na comarca de Nazareth, em Pernambuco.

4.2) As produções bibliográficas sobre o Cavalo-Marinho e o Maracatu de Baque


Solto: reflexões sobre o presente

Os estudos no âmbito acadêmico sobre as manifestações culturais do Cavalo-


Marinho e do Maracatu de Baque Solto concentram-se, principalmente, nas áreas de Artes,
Etnomusicologia, Antropologia e Sociologia. Não verificamos, portanto, trabalhos no
âmbito propriamente da História, sobretudo, História Social. O contato, portanto, com a
bibliografia e também com os próprios pesquisadores, principalmente, das Artes e
Antropologia, inclusive, muitas vezes, realizando pesquisas de campo conjuntamente, me
auxiliou muito, parafraseando Thompson, na identificação de novos problemas, na
percepção de velhos problemas a partir de novas perspectivas, na ênfase em normas ou
sistemas de valores e em rituais, na atenção para as funções expressivas de diferentes
formas de agitação social, e também na observação das manifestações simbólicas da
autoridade, do controle e da hegemonia. Lidando, contudo, com a questão do tempo
histórico e seus processos de duração, diversas perguntas suscitadas e atendidas pela
atualidade, muitas vezes, não encontraram respostas em outras épocas por conta da
ausência das informações documentais, dos indícios e das evidências. O diálogo, portanto,
com a maior parte da bibliografia sobre o tema se deu mais na prática do que na teoria, isto
é, meu olhar analítico como pesquisadora em História Social teve o privilégio de

565
Aqui logo de início vale destacar que a expressão samba é utilizada, tanto no século XIX como atualmente,
para designar os folguedos do Cavalo Marinho e Maracatu e outros. É interessante citar a definição de samba
e batuque dada por José Muniz: ―No Brasil não é outra coisa, tomada a palavra na sua popular e genuína
acepção; é dança sagrada dos feiticeiros, dos curandeiros, dos rezadores de quebrantos e olhados, dos
dispensadores de fartura (...) O samba é a dança ritual, a dança da reza, a profana, o baile, o mero
divertimento, é o batuque.‖MUNIZ Jr., Do Batuque à escola de samba. São Paulo, Símbolo, 1976.

363
vislumbrar movimentos corporais, músicas, passos de dança, máscaras, performances,
toadas, loas, ritmos e relatos, contudo, meu foco de pesquisa sempre esteve em outro
momento histórico. Com o foco num passado difícil de acessar apenas através da
observação do hoje, ainda assim, relembro Marc Bloch o qual nos seus estudos sobre as
―origens‖ das instituições feudais e da paisagem rural, considerou que ―para interpretar os
raros documentos que nos permitem penetrar nessa brumosa gênese, para formular
corretamente os problemas, para até mesmo fazer uma ideia deles, uma primeira condição
teve que ser cumprida: observar, analisar a paisagem de hoje‖.566 No nosso caso, podemos
dizer, observar, analisar os homens e suas culturas de hoje. Assim, o processo dialógico
com os tempos históricos e as outras disciplinas sempre foi produtivo e promissor.
A produção acadêmica sobre o Maracatu de Baque Solto é bem pequena e destaco
apenas quatro autores. O historiador Severino Vicente publicou dois livros sobre o
Maracatu de Baque Solto (ou rural ou de orquestra). O primeiro intitulado Festa de
Caboclo e o segundo Maracatu Estrela de ouro de Aliança: a saga de uma aliança,567
ambos retratando o universo do Maracatu na Zona da Mata Norte, principalmente, a partir
de relatos dos próprios participantes. O historiador propõe fazer um estudo histórico e não
folclórico sobre os caboclos de lança (―personagem‖ guerreiro que participa do folguedo do
Maracatu de Baque Solto). Sua análise, no entanto, não abrange uma pesquisa documental
sobre o tema ou a região, restringindo-se suas considerações em experiências vividas pelo
autor e nos relatos e memórias dos brincadores. A ausência de uma pesquisa documental
não prejudica o trabalho, que, sobretudo, apesar do autor não especificar, trata da história
do Maracatu e seus caboclos a partir do século XX. Todavia, os sujeitos de nossa história
constroem sua memória em cima das informações que tiveram acesso, e por isso, muitas
vezes, o fato do pesquisador não ter um apoio documental compromete as informações
mais objetivas, como por exemplo, a data do primeiro Maracatu na cidade de Nazareth.
Segundo o autor,

O primeiro maracatu rural tem local e data de nascimento. O mais antigo


foi criado no Engenho Olho d‘Água, em Nazaré da Mata, no dia 10 de dezembro

566
BLOCH, Marc. Apologia da História ou O Ofício de historiador. Trad. André Telles. Rio de Janeiro,
Zahar, 2002, p. 67.
567
SILVA, Severino Vicente. Festa de caboclo. Recife, Ed. Associação Reviva, 2005. ______. Maracatu
Estrela de Ouro de Aliança: a saga de uma tradição. Recife, Ed. Associação Reviva, 2008.

364
de 1914, num sábado, como diz Ernesto Francisco do Nascimento, o mais antigo
dos caboclos. Era o Cambindinha de Araçoiaba. Quatro anos depois, em 1918,
no Engenho de Cumbe, em Nazaré da Mata, nasceu o Cambinda Brasileiro.568

Primeiramente, como ressaltei anteriormente, encontrei informações na


documentação policial da comarca de Nazareth de que escravos e livres praticavam o
folguedo do Maracatu, bem como do Cavalo Marinho, em 1871. Provavelmente, eles já o
faziam anteriormente, o que, portanto, vai contra os relatos do caboclo citado por Severino
Vicente. Esta constatação merece uma análise social crítica, ao contrário, da mera
confrontação de dados e uma desqualificação dos relatos de Ernesto Nascimento. Por que
Nascimento faz questão de afirmar esta data como nascimento do folguedo? Quais são os
processos sócio-culturais que envolvem a história de vida deste sujeito e do Maracatu
citado como o primeiro? O curioso é que o fato do pesquisador reafirmar a data relatada
exclui completamente a participação dos escravos (enquanto tais) deste processo de criação
cultural. Em outras palavras, desvincula qualquer aspecto social (e por que não político)
possível de análise a partir desta manifestação e, portanto, as diversas apropriações por
parte dos negros, enquanto escravos, do folguedo. Inclusive o autor afirma que o Maracatu
de Baque Solto nasceu dizendo-se brasileiro, neles estão os índios, os negros, os brancos
mais pobres, os mestiços‖.569 Sem confrontar tal afirmação, apenas indago: e quanto aos
africanos? Se levarmos ao pé da letra a constatação, diríamos: como não brasileiros, não
fizeram parte. Será?
No segundo livro, Severino busca compreender a região da Zona da Mata Norte e
seus aspectos históricos, e deixa em aberto quem foram os primeiros a brincarem. Para ele,
―seus nomes perderam-se nas memórias, nas distâncias do tempo‖.570 Mas aí, a meu ver,
completo: talvez, aí esteja a função do historiador, reconstruir as distâncias. O autor, por
sua vez, pretendeu contar a partir do presente a história do Maracatu Estrela de Ouro de
Aliança, e o fez de forma interessante reunindo informações sobre as últimas décadas deste
brinquedo e de seus participantes. Destaco, principalmente, a narrativa sobre o Mestre
Batista, grande brincador de Aliança (PE) e uma das grandes referências para os mestres de
Cavalo Marinho. No geral, o trabalho de Silva é um bom registro para o público leigo e um

568
SILVA, op. cit., 2005, p. 26.
569
Idem, op. cit.
570
SILVA, op. cit., 2008, p. 43.

365
grande passo em direção a uma bibliografia que valorize a cultura popular da zona da mata.
Contudo, o caminho precisa continuar.
Ana Valéria Vicente também realizou um trabalho na área do jornalismo sobre o
Maracatu Rural. Seu foco foi analisar a construção do folguedo como espetáculo através da
imprensa de Recife nos anos 80 e 90. A autora buscou, portanto, compreender os sentidos
sociais construídos em cima da manifestação e suas repercussões também dentro dos
folguedos, entre os participantes. No mais, ela fez um estudo interessante sobre o conceito
do brinquedo, suas características, pautando-se em estudos de Katarina Real e outros
estudiosos e folcloristas (abaixo discorreremos melhor sobre). Além disso, faz uma
discussão bibliográfica sobre os conceitos de povo, de cultura popular e de tradição.571
O trabalho de Roseane Medeiros na área da ciência política propôs um olhar sobre a
manifestação na atualidade (1990 – 2000) não só percebendo seus aspectos artísticos, mas
também, sua possível representação classista, isto é, dos trabalhadores rurais. A autora
critica os trabalhos que apenas vislumbram o folguedo num processo apenas descritivo,
sem pensar as relações de poder e dominação que constituem o brinquedo. Como aporte
teórico, e mais um aspecto interessante deste trabalho, é que a pesquisadora se apóia no
conceito de cultura popular de Antonio Gramsci, o qual, numa visão dialética, aposta que a
cultura popular se constitui na visão de mundo das classes subalternas e é fruto da sua
inconformidade, denúncia e aceitação da ideologia dominante, encontrando-se, portanto,
eivada de contradições (vale ressaltar que Thompson aproxima-se desse conceito).
Medeiros, seguindo este raciocínio, acredita no estudo do Maracatu Rural uma vez que este
oferece dados acerca de valores, aspirações, graus de consciência crítica, contradições e
conflitos das classes menos favorecidas do estado de Pernambuco. A partir dessa visão, ela
realizou estudo que teve como objetivo geral analisar as expressões de luta, resistência e
submissão dos trabalhadores rurais expressas nos maracatus. 572Resumidamente, seu estudo
investe em 3 partes. A primeira que trata da história do carnaval no mundo ocidental, no
Brasil e em Pernambuco, momento em que ocorre a manifestação do Maracatu. Em
segundo, ela focou sua análise no Maracatu rural como um ritual guerreiro no qual o

571
VICENTE, Ana Valéria. Maracatu Rural – o espetáculo como espaço social: um estudo sobre a
valorização do popular através da imprensa e da mídia. Recife, Ed. Associação Reviva, 2005.
572
MEDEIROS, Roseana Borges. Maracatu Rural: luta de classes ou espetáculo? Recife, Fundação de
Cultura Cidade do Recife, 2005, p. 19.

366
trabalhador expressa a sua visão de mundo e enfatizou a figura do caboclo de lança
justamente porque sua representação carrega traços de luta. No mais, a autora analisa,
principalmente através dos relatos dos participantes de alguns maracatus sediados em
Nazaré da Mata e dois em Recife, os conflitos e ambiguidades expressos na manifestação
pelo trabalhador rural. Segundo Medeiros, no Maracatu de Nazareth observa-se a presença
do tradicionalismo religioso, o clientelismo e também a íntima vinculação com os
movimentos sociais (vale ressaltar que isto não se dá de forma generalizada, apenas nos
exemplos investigados por ela).
O trabalho da autora é muito interessante e abre uma bibliografia que vislumbra as
manifestações culturais inseridas num contexto de disputas de classes e exploração social.
Ela não despreza o sentido ritualístico e artístico do Maracatu Rural, e, além disso,
investiga seus sujeitos enquanto agentes sociais e políticos. Ela compara, por exemplo, o
perfil dos maracatus, destacando inclusive um intitulado Maracatu Leão dos Sem Terra que
foi criado em um assentamento do Movimento Sem Terra (MST). Ao mesmo tempo,
analisa também outro Maracatu, o Cambinda Brasileira, fundado no início do século XX
que possui, segundo a autora, um caráter tradicional e clientelista. Apesar da qualidade do
trabalho em buscar compreender os vários aspectos sociais e políticos que envolvem o
universo dos maracatus, muitas vezes, suas conclusões foram rápidas em cima de alguns
relatos. De qualquer modo, isso não desqualifica o trabalho que consegue construir uma
análise interessante sobre a cultura popular rural observando as falas de seus sujeitos e sua
condição real de trabalhadores, na maioria das vezes, em situação de exploração. Vislumbra
como estes se utilizam do espaço sócio-cultural do Maracatu para manifestar suas atitudes
seja de insatisfação ou de comodismo. Vale destacar que, diferente do Cavalo Marinho que
possui ―personagens‖ que podem representar a realidade, no Maracatu Rural o grande canal
de expressão, além de representações como o caboclo de lança, é a parte dos versos
cantados pelos mestres que se constitui claramente com um caráter de desafio, tanto pela
beleza da métrica improvisada, como também, por seu conteúdo, que, muitas vezes, serve
de manifestação da dura realidade vivida pelos brincadores. Por fim, a autora, analisando o
processo de massificação, observa que mesmo com a espetacularização do folguedo, as
―classes subalternas‖ apresentam os antagonismos e conflitos vivenciados por elas.573

573
MEDEIROS, op. cit., 2005, p. 208 e 209.

367
Como último trabalho, cito a dissertação de Suiá de Castro Chaves, Carnaval em
Terras de Caboclo: uma etnografia sobre Maracatus de Baque Solto, que investigou os
sentidos do carnaval, partindo das concepções de quem brinca o folguedo. A autora buscou
abordar a ideia do que é brincar Maracatu do ponto de vista dos próprios participantes. A
pesquisadora, além de fazer uma narrativa sobre seus interlocutores e sua vivência dentro
do brinquedo, trabalhou com as memórias dos brincadores e compreendeu seus relatos
como um território privilegiado para pensar o reconhecimento e a atribuição de ‗valores‘,
nas intensidades do ―brincar Maracatu‖. Para ela, ―um conjunto de narrativas míticas e
histórias sobre o passado que nos guiam, na problemática da constituição do Maracatu
como ‗cultura‘, nas atribuições de posição e nas relações em torno do ‗saber‘ do
Maracatu‖.574
Entre os capítulos desenvolvidos por Suiá Chaves, destaco o último da dissertação
que foca a temática da guerra no Maracatu através das narrativas dos participantes. No
mais, ela ressalta a ligação que o Maracatu tem com o brinquedo do Cavalo Marinho e a
existência de um universo compartilhado entre os dois folguedos. Como expõe a autora, e
também verifiquei em minhas pesquisas e vivências, além das duas brincadeiras trazerem
referências em comum (personagens, locais, estética visual), elas compartilham muitos de
seus participantes. ―A proximidade destas duas brincadeiras traz um universo comum e cria
uma relação de complementaridade e oposição‖. Neste caso, a autora se refere à concepção
religiosa. Segundo os relatos de alguns participantes, o Cavalo Marinho aparece como uma
festa criada por Deus, que celebra, entre outras coisas, o nascimento de Cristo, a alegria, a
graça, a beleza. No seu oposto, estaria o Maracatu, uma brincadeira tipicamente
carnavalesca, considerada uma festa inventada pelo diabo numa tentativa de pegar Cristo.
Segundo a autora, este folguedo lida com o lado maligno da vida, o perigo, a rivalidade
declarada, a canalização de ―maus sentimentos‖, uma espécie de obstrução religiosa. Para
ela, a sequência temporal em que as festas acontecem, o Cavalo Marinho no período
natalino, até o dia de reis (na minha análise algo que não se aplica tão à risca) e o Maracatu
durante o carnaval, sugere um ‗modelo estrutural‘, citando Levi-Strauss, da celebração
regional: a brincadeira de deus e a brincadeira do diabo.575 Apesar de não concordar

574
CHAVES, S. Carnaval em Terras de Caboclo: uma Etnografia sobre Maracatus de Baque Solto. Rio de
Janeiro, UFRJ/Museu Nacional –PPGAS, 2008, p.5.
575
CHAVES, op. cit., 2008, p. 66.

368
totalmente com esta visão, até mesmo porque acredito que existe um ―discurso‖ dos
sujeitos que foi construído historicamente e por trás podem existir outros sentidos, no
Cavalo Marinho existe, por exemplo, a figura do Caboclo de Arubá que é colocada pelos
mestres do brinquedo e através das suas loas (versos) como também na própria
desenvoltura da ação, aparentemente onde ocorre uma incorporação, se fazem referência a
Jurema, rito da Umbanda e típica da região da Zona da Mata Pernambucana. Nas falas
públicas, todavia, ao perguntarmos sobre a religião do Cavalo Marinho, seus participantes e
mestres dizem que é uma festa católica, para Santos Reis do Oriente. E não deixa de ser,
contudo, vale a pena historicizar e problematizar esta construção religiosa nas diferentes
conjunturas históricas. De qualquer modo, sobre o Maracatu, vale, e muito, reproduzir um
relato registrado pela autora de um brincador de Maracatu e também antigo nego Mateus da
brincadeira do Cavalo Marinho. Na visão de Seu Martelo:

Maracatu não pertence a Deus não. Maracatu pertence ao diabo. O diabo foi
quem fez o Maracatu. Fez uma festa de três dias. O Maracatu começou assim: o
diabo passou e viu Nosso Senhor dando a medicina aos dotô, que vive nos
hospital e posto de saúde. Quando chegou à terra dele (do diabo) que tinha o
patrão dele (disse): ‗eu vi o senhor do povo dando a medicina aos dotô e eu
achei bonito. Que a gente faz? ‘ Ele disse: ‗Vamo fazer uma festa de 3 dias. Faz
a festa e vai chamá ele (NS). Em cada beco de rua a gente bota 2 vigias. ‘ (o
Diabo): ‗A gente vai fazer uma festa de 3 dias o Senhor vai?‘ ele (o Senhor)
disse: ‗vou‘. Em todos os 3 dias NS foi: no domingo, na segunda e na terça,
quando foi na quarta ele (o Diabo) chegou: ‗cadê você eu não lhe vi‘. Em cada
beco de rua tinham botado 2 vigias pra pegar Nosso Senhor, mas não tinha
podido pegar. Eles atentaram Nosso Senhor na quarta feira da cinzas até na sexta
feira da paixão, botaram os judeus pra pegar. Nosso Senhor na virada e pegou,
né? Quando foi domingo de páscoa fizeram Maracatu, fizeram carnaval, pra ver
se Nosso Senhor tava aqui na terra. Ai ficou o Maracatu. 576

Uma narrativa complexa, repleta de ―realidades‖, mas que se registra como


significado apropriado por um trabalhador, brincador e cidadão da região da mata norte.
Em cima dessa e muitas outras narrativas podemos realizar diversas reflexões sobre o hoje,
porém, como foco desta pesquisa, gostaria de questionar sobre as possíveis construções
desses significados no contexto da escravidão, mais especificamente nas últimas décadas do
XIX. Veremos mais à frente.

576
Depoimento Sr. Martelo registrado por Suiá Chaves. CHAVES, op. cit., 2008, p. 69.

369
Por hora, prosseguindo na discussão bibliográfica sobre o tema, como anteriormente
colocado, meu caminho investigativo sobre a cultura do Cavalo Marinho e seus sujeitos
iniciou-se através de uma pesquisa artística da dança que é praticada no folguedo. Diante
disso, antes mesmo de centrar os esforços numa análise histórica sobre o universo social,
pratiquei um exercício de observação dos corpos dos brincantes e mestres. Um corpo em
movimento que revelava a memória dos gestos praticados na lida da cana, no cortar e
carregar quilos e mais quilos de mandioca. Mãos calejadas, corpos musculosos e ao dançar
sempre inclinados para baixo numa representação quase idêntica do movimento de abaixar
para cortar a cana de açúcar. Não só os personagens (figuras) traziam falas e loas que
narravam o cotidiano rural vivido por décadas pelos participantes do brinquedo, mas
também os corpos dos brincantes nos contavam sobre o mundo do trabalho arduamente
vivido por eles. É, portanto, inegável a correlação do mundo da arte com o mundo do
trabalho, e essa noção é compartilhada pelos próprios sujeitos da brincadeira como pelos
pesquisadores. Assim, pude realizar e compartilhar com outros estudiosos diversas
perspectivas analíticas sobre o folguedo e seus criadores. Por isso, primeiramente destaco
os trabalhos no campo das Artes que tratam o tema do Cavalo Marinho em um intenso
diálogo com a dramaturgia e a dança. Especialmente, destaco 3 pesquisas de mestrado das
quais, direta e indiretamente, participei e que colaboraram muito na minha prática de
trabalho como pesquisadora das Artes e da História.
Lineu Guaraldo, Carolina Laranjeira e Ana Caldas analisaram, em diferentes
frentes, aspectos do teatro do Cavalo Marinho tendo como foco principal o folguedo da
cidade de Condado (PE), especificamente, o brinquedo de Mestre Biu Alexandre, o Cavalo
Marinho Estrela de Ouro. Foco também das minhas pesquisas de campo, os brincantes,
mestres, músicos e agregados a este grupo, principalmente, Aguinaldo, Fábio Soares, Biu
Alexandre, Risoaldo, Cláudio, Bebe Água, Bó, Martelo, entre outros, foram os grandes
interlocutores das pesquisas dos autores acima. Num olhar analítico sobre os gestos, o
corpo, as máscaras, os risos e o cotidiano na cana e nas ruas, Guaraldo, Laranjeira e Caldas
buscaram interpretar a brincadeira do Cavalo Marinho como manifestação cultural e
artística analisando aspectos riquíssimos para compreendermos a arte da Zona da Mata
Norte como parte composta de um universo cultural complexo, dinâmico e, ao mesmo
tempo, tradicional.

370
Lineu Guaraldo577 realizou uma investigação - que considero antropológica e
artística - com intuito de apropriar elementos da brincadeira para utilização em
procedimentos de formação e treinamento de atores-dançarinos. O pesquisador, todavia, a
partir de experiências práticas envolvendo trabalhos corporais e vivências em campo,
conseguiu realizar uma discussão sobre as noções da brincadeira ampliando as discussões
sobre o conceito de cultura popular e seus métodos de pesquisa. Não necessariamente, as
noções defendidas por Guaraldo foram nesta tese absorvidas, até mesmo porque como
anteriormente explicitado, desenvolvemos um diálogo com os conceitos de costume e
cultura popular desenvolvidos por E. P. Thompson. Todavia, acredito que a metodologia de
pesquisa utilizada pelo pesquisador é de grande contribuição para os interessados em
estudar a arte popular. Como coloca Guaraldo, durante sua pesquisa, ele manteve um fluxo
intenso de trocas que envolveram o pesquisador, os brincadores e o denso contexto social
onde a brincadeira encontra-se enraizada. Esta dinâmica proporcionou uma aprendizagem
corporal e intelectual do pesquisador repleto de subjetividade e de informações também
objetivas extremamente ricas tanto para os estudos na área das Artes, como na História, na
Antropologia e afins.
Um dos pontos interessantes que Guaraldo problematiza e que para nós se coloca
como interessante, contribuindo principalmente para a compreensão do outro e da relação
deste com o caráter supostamente tradicional do Cavalo Marinho, é a reflexão sobre o
conceito de sobrevivência. O autor, apoiando-se em Canclini578, questiona, por exemplo, a
vinculação da noção de sobrevivência com a manifestação popular. A ideia defendida por
Guaraldo é compreender quais os processos sociais dão uma função atual à tradição. Para
ele, é necessário abarcar a relevância da produção da chamada cultura popular nos cálculos
e nas negociações de poder e de identidade, locais de encontros (conflituosos ou não) de
diferentes, onde emergem valores culturais.579 Daí, citando Bhabba, o pesquisador destaca
que ―o que é teoricamente inovador e politicamente crucial é a necessidade de se passar

577
GUARALDO, L. Na mata tem esperança: encontros com o corpo sambador no cavalo marinho.
Dissertação de Mestrado em Artes, IA/UNICAMP, Campinas, 2010.
578
No caso Lineu Guaraldo se refere a obra ―Culturas Híbridas – estratégias para entrar e sair da
modernidade‖ de Nelson Canclini.
579
GUARALDO, op. cit., 2010, p. 34.

371
além das narrativas de subjetividades originárias e iniciais e de focalizar na articulação de
diferenças culturais‖.580
Tentando aprofundar ainda mais estas concepções, Guaraldo buscou refletir sobre o
sujeito na interação com a tradição e a contemporaneidade, bem como os motivos que
levam um sambador a aderir a certa prática, permanecer na manifestação cultural e
continuá-la. Para tanto, o autor se apoiou nas afirmações de Luigi Pareyson que traz a
noção de tradição associando-a à concepção de conciabilidade (ou copossibilidade) entre
continuidade e originalidade.581 E citando na íntegra Pareyson:

Não pertencemos a uma tradição se não a temos em nós, e ela não tem
propriamente outra sede a não ser aqueles atos de adesão que a reconhecem na
sua eficaz realidade, e não é possível agregar-se a uma tradição sem já modificá-
la apenas com esta agregação, nem inová-la sem ter sabido interpretá-la na sua
verdadeira natureza e torná-la operante em sua real atividade.582

Levando em conta que nossos sujeitos se localizam em outro contexto histórico, o


diálogo com estas reflexões estéticas, antropológicas e sociológicas é pertinente no sentido,
justamente, de perceber como dinamicamente os sujeitos da cultura se apropriam e
modificam seus produtos culturais, e como, de forma correspondente, no passado, também
assim o faziam. Diante disso, o trabalho de Guaraldo traz-nos reflexões sobre a arte dos
trabalhadores da cana do hoje, e que podem nos servir como caminhos de compreensão
sobre os trabalhadores e sua arte no ontem. Nesse sentido, a grande contribuição que a
dissertação de Guaraldo trouxe para esta pesquisa – além das diversas trocas durante o
campo – foi um olhar mais aprofundado sobre as relações entre brincantes e o seu
brinquedo, entre sujeitos e sua cultura, entre sambadores e o seu samba. Uma visão,
sobretudo, não apenas objetiva dos trabalhadores e sua arte, mas também da subjetividade
viva em todo o processo de apropriação e transformação contida na longa história da
manifestação do Cavalo Marinho na Zona da Mata Norte pernambucana. Inclusive, acredito
que, para os pesquisadores da História Social investigar a arte e seus artistas, é bem
sugestivo trocar com os pesquisadores da arte, que além das reflexões antropológicas

580
BHABHA, H. K. O local da cultura. Belo Horizonte, Editora da UFMG, 2007, p. 20. Apud GUARALDO,
op. cit., 2010, p. 34.
581
GUARALDO, op. cit., 2010, p. 35.
582
PAREYSON, Luigi. Os problemas da Estética. São Paulo, Martins Fontes, 2001, p. 137. Apud,
GUARALDO, op. cit., 2010, p. 36.

372
necessárias ao mundo da História, também carregam consigo aspectos da sensibilidade
humana, essenciais para a existência da arte enquanto tal, e que, às vezes, nos fogem da
vista. O próprio significado da manifestação do Cavalo Marinho requer certo cuidado,
afinal, como coloca Guaraldo,

Toda definição é um evento de transposição, de adequação de uma


realidade complexa e multifacetada aos limites da linguagem escrita (que, por
sua vez, possui suas próprias regras e exige habilidades específicas). Acredito
que é proveitoso mergulhar em camadas mais densas de significado para que
possamos atenuar a inextinguível distância que existe entre a afirmação objetiva
e o fenômeno dinâmico e polissêmico que nos propomos a abordar. Em se
tratando de cavalo marinho, toda afirmação objetiva e generalizante possui o
destino quase inevitável de tornar-se uma simplificação engessada, estanque e,
portanto, vazia, pois a brincadeira é caracterizada pela combinação de elementos
paradoxais, como resistência e dinamismo, criando e recriando-se a cada
apresentação. 583

Ainda no campo das Artes, destaco as dissertações, ambas também defendidas no


Instituto de Artes da UNICAMP, de Ana Caldas Lewinsohn e Carolina Dias Laranjeira, que
buscaram entender as correlações entre a qualidade do corpo do brincante de Cavalo
Marinho e do corpo do ator-dançarino. A primeira pesquisadora buscou refletir sobre as
proximidades, as diferenças e os contágios entre brincadeira e teatro abordando as
características de cada uma dessas modalidades artísticas. Com base nesta discussão, ela
formulou o conceito de ator brincante, que representa tanto o brincante de Cavalo Marinho,
como o ator do Teatro de Rua, numa qualidade que combina estabilidade e instabilidade ao
vivenciar um estado cênico com um repertório codificado e ao mesmo tempo disponível,
aberto e inesperado.584 Como se trata de um trabalho bem específico da área de artes
cênicas, são poucos os diálogos que podemos estabelecer. Destaco, de qualquer modo, o
capítulo no qual a autora faz um enfoque maior no personagem Mateus do Cavalo Marinho.
Este representa um negro ―safado‖ que trabalha para o Capitão ou senhor de Engenho e é
chamado para tomar conta do terreno e da festa, porém ele não ―dá conta do recado‖ e o
Soldado precisa ser chamado para castigá-lo. Esta figura representa nitidamente o preto
escravo ou não. O brincante necessariamente, sendo preto ou não, pinta a cara de preto e
583
GUARALDO, op. cit., 2010, p. 48.
584
LEWINSOHN, Ana Caldas. O Ator Brincante: no contexto do teatro de Rua e do Cavalo Marinho.
Dissertação de Mestrado, IA/UNICAMP, 2009.

373
tem a função de tomar conta da roda (terreiro) do samba durante a brincadeira. É o primeiro
personagem que entra seguido pelo seu companheiro o nego Bastião, e diferente deste,
assume a posição principal de negociar seu serviço com o Capitão e durante a brincadeira
de buscar os novos personagens que chegam. Mateus se mantém sempre do lado direito da
semi-roda que se forma (de quem olha de frente para o banco dos músicos), ficando,
portanto, sempre do lado mais próximo do Capitão. A representação é de um homem de
confiança do Capitão, porém, um ―nego‖ que faz a sua vontade, zombando dos personagens
e do público entre caretas, falas e cantorias atravessadas e com as letras trocadas. A cena
entre Capitão e Mateus, ou entre o escravo e o senhor de engenho ou entre o negro e o
empreiteiro, foi o principal símbolo produzido pela manifestação que me levou a levantar
uma série de questões a respeito do cotidiano, das relações sociais, políticas e econômicas
vividas não apenas no contexto atual, mas na época da escravidão, quando a figura do preto
na realidade teria infinitas representações, mas, sobretudo, seria atrelada à condição de
escravo.
Por outra via analítica, Ana Caldas inspirou-se neste personagem para pensar o
treinamento do ator e também aspectos simbólicos como a presença do grotesco.585 A
autora utiliza o conceito de grotesco utilizado por Bakhtin no contexto da Idade Média e
Renascimento. Para ele, o grotesco está vinculado a um riso ambivalente, festivo, que, ao
mesmo tempo que destrói, faz nascer o novo. Destaca a autora, citando Bakhtin, as partes
do corpo como o ventre e o falo têm um caráter extremamente simbólico, pois representam
a fertilidade e a abundância vivenciadas nessas festas populares e as necessidades básicas
do ser humano expressas de uma forma exagerada e com uma tensão que se expressa nos
olhos ―esbugalhados‖. O que evidencia é sempre a ideia de renascimento que surge a partir
da inversão das leis, da eliminação de hierarquias, da vivência plena da festividade. E na
visão da autora, estas características estão presentes no folguedo do Cavalo Marinho. Para
Ana Caldas, podemos observar essa inversão das leis e a eliminação de hierarquias de uma
maneira geral em toda a brincadeira, onde os brincantes, que são empregados na vida real,
fazem o papel de patrão:

No caso do Mateus, mesmo sendo ele um empregado, chamado pelo


Capitão para tomar conta do terreiro, ele o faz a sua maneira, de acordo com os

585
LEWINSOHN, op. cit., 2009, p. 113

374
seus valores, todos invertidos e fortemente críticos e satíricos. Em seu corpo e
seu gestual, verificamos claramente os olhos ―esbugalhados‖ e a evidência do
falo e do ventre quando se remete repetidas vezes ao ato sexual, por exemplo. O
riso provocado por Mateus é sempre "ambivalente", ao mesmo tempo afirmação
e negação. Nota-se uma mistura de medo e graça na recepção do público,
acompanhado de um fascínio gerado pelo mistério que a figura do Mateus
evoca. Em muitos momentos, seus olhos, arregalados, fixam uma pessoa do
público, alternando braveza e gracejos, que causa um estranhamento além do
riso. 586

Na visão da autora outras figuras também apresentam características do grotesco. A


Véia do Bambu (um homem vestido de velha, com máscara, que sempre tem o
comportamento de tarada e safada), o Soldado, o caboclo de Arubá ou o Boi são figuras que
suscitam o riso grotesco, uma mistura de medo e da graça, do cômico e do trágico. A
presença do grotesco, portanto, faz-se presente num jogo de criação constante uma vez que
apesar do teatro do Cavalo Marinho ter um enredo fixo, com loas, personagens e toadas,
muitos improvisos ocorrem, principalmente, por se tratar de uma cena aberta em constate
interação com o público.
As características apresentadas pela autora, em alguns casos, não são
compartilhadas por mim, principalmente no que tange à inversão das hierarquias e na
generalização sobre a presença do grotesco. Contudo, concordo com a pesquisadora quanto
à presença de alguns aspectos abordados por Bakhtin para a figura do Mateus ou da Véia. A
respeito da inversão das hierarquias, acredito mais na representação da hierarquia presente
na realidade acontecendo sem inversões, e em mais ainda, na sua fortificação. Nesse caso, é
necessário analisar em cada realidade específica o perfil social dos brincantes e mestres.
Vale dizer que na grande maioria dos casos o Mestre do brinquedo, não necessariamente, o
mesmo indivíduo que representa a figura do Capitão, além de ser o dono dos brinquedos
também ocupou (ou ocupa) funções no mundo do trabalho dos engenhos e usinas como
cabos, empreiteiros ou feitores. Assim, não vislumbro a inversão das hierarquias na
realização do Cavalo Marinho, e sim, uma reafirmação de outras hierarquias existentes no
universo social e econômico, no qual, os brincantes, mestres e público vivem. Mais para
frente abordaremos estas reflexões com mais detalhes, por hora, vale a grande contribuição
para o mundo da arte proporcionado pela pesquisadora, em especial, o destaque merecido à
figura do Mateus, bem como um dos trabalhadores que o representa: o Sr. Martelo.
586
LEWINSOHN, op. cit., 2009, p. 114.

375
O trabalho de Carolina Laranjeira, companheira de muitas conversas e pesquisas,
buscou refletir através da experiência de práticas vivenciadas na manifestação do Cavalo
Marinho, como em cena, a corporeidade do Cavalo Marinho, e a partir dessa investigação
construir uma narrativa reflexiva sobre o corpo-subjétil, um corpo-em-arte e as ideias sobre
níveis de dramaturgia gerados a partir de um trabalho corporal específico. Com uma
linguagem peculiar dos estudos sobre dramaturgia, principalmente, desenvolvida pelo ator
Renato Ferracini587, a autora realizou uma pesquisa que incluía sua própria atuação como
atriz-bailarina tanto em seus treinamentos para ator em grupo, como na suas participações e
vivências com a manifestação do Cavalo Marinho e seus participantes. Ela analisa tanto a
suas qualidades corporais diante da vivência em treino e em campo, como também, as
―qualidades‖ corporais dos brincantes. O interessante desta busca, e que traria algum tipo
de diálogo com este trabalho, é que a pesquisadora defende que além dos aspectos
―físicos‖, ―energéticos‖ e de ―movimento‖, o corpo-em-arte carrega consigo também
aspectos culturais. Assim, para Laranjeira,

Não dá para eliminar o comportamento cultural desse corpo e vemos isso


claramente em manifestações tradicionais em que o corpo do trabalho, da lida,
da peleja cotidiana está presente no corpo da manifestação espetacular, assim
como não podemos pensar corpo-subjétil sem considerar por onde ele passa e
pelos encontros que o produzem. A nossa dramaturgia deu-se através desse
corpo no mundo, na vida cotidiana e nas relações que o construíram a partir de
encontros. A brincadeira e o campo foram vivenciados e vistos como geradores
de sentidos. 588

Considero, portanto, interessante como as pesquisas mesmo com intuito artístico


não deixaram escapar a realidade social, cultural e econômica vivida pelos sujeitos da
brincadeira. Não à toa, a manifestação do Cavalo Marinho, e aí um dos motivos da minha
escolha como objeto de estudo, é um folguedo rico tanto pela multiplicidade de expressões
em música, poesia, dança, passos, gestos, cenas e personagens, como também é um
universo popular, que se faz e refaz enquanto corpo-em-arte, teatro, costume e cultura, e
que está intrinsecamente atrelado ao mundo do trabalho dos engenhos. Diante disso, não

587
FERRACINI, R. A Arte de Não Interpretar como Poesia Corpórea do Ator. Campinas, Unicamp, 2003.
588
LARANJEIRA, Carolina Dias. Corpo, Cavalo Marinho e dramaturgia a partir da investigação do Grupo
Peleja. Dissertação de Mestrado IA/UNICAMP, Campinas, 2008, p. 141.

376
nos podia escapar os estudos na área das Artes que analisaram isso de forma profunda e
relacional, valorizando, sobretudo, os homens e mulheres sujeitos na vida e no folguedo.
Ainda na área das Artes, destaco o trabalho de Erico de Oliveira, que buscou
realizar um trabalho na área de etnocenografia sobre o Cavalo Marinho. O autor buscou
construir um diálogo entre a academia e as manifestações populares procurando discutir
através das noções de teatralidade e espetaculariedade almejando uma forma de olhar e
aprender o outro em seu momento espetacular e de festa, sem esquecer seu contexto sócio-
histórico. O pesquisador analisou as mudanças e permanências da brincadeira através de
uma discussão da bibliografia sobre o tema, dos relatos de folcloristas e dos atuais
participantes. O autor também apresentou uma versão textual e explicativa sobre a
brincadeira - na minha opinião a grande contribuição do trabalho - e construiu uma análise
sistemática da brincadeira do Cavalo Marinho Estrela de Ouro da cidade de Condado (PE) a
partir de seus elementos cenológicos, da criação de categorias e da reflexão de sua possível
estrutura.
O extenso livro de Oliveira traz consigo interpretações na área das Artes
interessantes para atores que pesquisam na perspectiva da etnocenografia. Para nós, a
grande contribuição foi a descrição densa das falas das figuras bem como suas
características. Presta-se perfeitamente como um registro da brincadeira na atualidade. Há,
no entanto, um ponto de discordância essencial entre os conceitos desenvolvidos nesta tese
e na obra de Oliveira. O pesquisador defende que o conceito de cultura está dividido entre
dois universos distintos: a cultura oral e a letrada, ou, informal e formalizada. Esta
perspectiva conceitual, diferente da nossa visão, perpassa todo o trabalho do autor que
busca criar um diálogo entre os universos.589 Obviamente, por este motivo, ainda que seja
um trabalho em outra área acadêmica, bem como de outro momento histórico, por conta da
divergência básica do conceito de cultura, muitas interpretações propostas por Oliveira
divergem das propostas analíticas sobre a brincadeira e seus brincadores sugeridas nesta
tese. De qualquer forma, a obra traz boas referências sobre o folguedo.
Em outra perspectiva disciplinar e anteriormente a estas recentes produções no
campo das Artes, revendo alguns trabalhos sobre o Cavalo Marinho na área da

589
OLIVEIRA, Erico José Souza de. A roda do mundo gira: um olhar sobre o Cavalo Marinho Estrela de
Ouro (Condado-PE). Recife, Sesc, 2006, p. 151.

377
Antropologia, podemos encontrar uma produção pioneira realizada na década de 80 por
Edval Marinho de Araújo denominado O Folguedo Popular como veículo da comunicação
rural: estudo de um grupo de Cavalo-Marinho590. Seu estudo tem como base uma
descrição de personagens, um breve histórico sobre a cidade de Ferreiros (PE) localizada na
Zona da Mata Norte, a observação das brincadeiras e sua transcrição literal. Neste trabalho,
o autor defende a hipótese de que a brincadeira expressa a problemática cultural, social,
econômica e política de uma população rural de baixa renda e ocorre em substituição à
comunicação de massa. Para o autor, através da música, da dança e da encenação, os
trabalhadores dos canaviais se apropriam do folguedo, fazendo dele um veículo de difusão
e propagação de uma mensagem crítica. A questão da propriedade privada é representada
no enredo do folguedo, na medida em que o Capitão representa a oligarquia, o chefe
político e o poder local. Na sua visão, as figuras do Mateus e Bastião representam os
trabalhadores, os camponeses e os agricultores sem terra. Esta representação ocorreria
através, por exemplo, de uma suposta disputa pela terra (roda do samba) entre Mateus e
Bastião com a saída do Capitão. Este, por sua vez, utiliza-se do Soldado, para o autor um
representante militar do Estado. Na interpretação do pesquisador sobre a narrativa do
folguedo,

O entrecho dramático representa um proprietário que, precisando de se


ausentar, contrata dois trabalhadores para tomarem conta da propriedade na sua
ausência. Antes de completar um ano, ele volta, e os trabalhadores não querem
mais reconhecê-lo como dono. O proprietário chama o soldado para retomar a
propriedade. Ao mesmo tempo, o soldado exige dos posseiros, Mateus e Bastião,
que permitam ao proprietário, o capitão, promover uma festa com baile,
comemorando a reintegração de posse. Essa festa é feita como homenagem aos
Santos Reis, qual os galantes é que são as figuras de realce.591

Marinho pode ter presenciado nas suas pesquisas de campo em Ferreiros (PE) esta
narrativa e, em cima disso, compreendeu que estas figuras podem representar aspectos de
uma realidade de desigualdades sociais e de poder centradas, muitas vezes, na questão da
terra. Contudo, em minhas observações de campo junto ao Cavalo Marinho Estrela de Ouro
de Condado (PE) (2004-2010), constatei que nesta parte na narrativa-encenação ocorre um

590
MARINHO, Edval. O folguedo popular como veículo de comunicação rural: estudo de um grupo de
cavalo marinho, Dissertação de Mestrado em Administração Rural na UFRPE, Recife, 1984.
591
MARINHO, op. cit.,1984.

378
delimitar da roda (do terreno) por parte do Mateus que, ao receber as ordens do Capitão
para cuidar da sua fazenda, precisa confirmar com seu contratante quais são os limites da
sua fazenda. Muito parecido com a demarcação de terras que ocorria no século XIX, esta
narrativa-encenação ocorre atualmente no Cavalo Marinho da cidade de Condado (PE), e a
cena é feita pelo Sr. Martelo, antigo brincador da região. Assim, no caso investigado pelo
pesquisador Edval Marinho, cidade de Ferreiros (PE), as representações podem ter sido
outras, sendo difícil, portanto, analisar um único e exclusivo simbolismo para a
manifestação. Focado nesta localidade, o pesquisador buscou discorrer sobre como a
exploração econômica, social e política é expressa através do brinquedo do Cavalo Marinho
que, em sua opinião, serve como veículo de comunicação deste universo rural. Certamente,
a arte de modo geral funciona como veículo de expressão de sentimentos, conflitos, acordos
e desejos, e, provavelmente, desde os tempos da escravidão o Cavalo Marinho, assim como
o Boi Bumbá, o Maracatu foram preciosos canais de expressão das comunidades rurais dos
engenhos de cana de açúcar. O que falta é justamente analisarmos suas peculiaridades e sua
inserção no mundo social dentro do processo histórico.
Dentre as críticas sobre o trabalho do pesquisador Marinho, uma das principais,
segundo Maria Acselrad, é a ausência da visão dos brincantes no exercício analítico do
pesquisador. Paras as pesquisadoras Helena Tenderine592 e Maria Acselrad593, a transcrição
de diálogos da brincadeira na sua íntegra não contribui necessariamente para que a voz dos
sujeitos seja escutada, tornando a análise pouco convincente do ponto de vista da
construção dos dados. Para as autoras, se o folguedo expressa uma problemática cultural
específica, talvez fosse importante investigar um pouco mais detalhadamente o universo
deste grupo, a sua relação com a brincadeira e com o meio de que faz parte. 594 Nesta
perspectiva, Helena Tenderine desenvolveu em Na pisada do galope Cavalo Marinho na
fronteira traçada entre brincadeira e realidade, uma reflexão sobre o lugar da brincadeira

592
TENDERINE, H. M. Na pisada do galope Cavalo Marinho na fronteira traçada entre brincadeira e
realidade. Dissertação de Mestrado em Antropologia, UFPE, Recife/PE, 2003.
593
ACSELRAD, M. Viva Pareia! A arte da brincadeira ou a beleza da safadeza - uma abordagem
antropológica da estética do Cavalo Marinho. Dissertação em Antropologia pela UFRJ, Rio de Janeiro, 2002.
594
A crítica feita pelas autoras se fundamenta na questão do olhar distante do pesquisador que analisa algum
fenômeno cultural sem ressaltar o lado do outro. Isto é, uma forma de distanciamento empírico que
desvaloriza a ação histórica dos próprios sujeitos envolvidos. Tenderine e Acselrad tentam resolver esse
problema, ao utilizar a reconstrução histórica através da memória dos brincantes. Assim, o uso da História
Oral é bem interessante para tentarmos construir uma interpretação que também considere a interpretação dos
próprios atores sobre o processo histórico e cultural que envolve o folguedo.

379
do Cavalo Marinho na vida de quem faz parte dele, de quem é ele. Analisou, portanto, o
lugar da vida de quem o faz (e é ele) dentro da própria brincadeira, suscitando, deste modo,
uma observação sobre o diálogo entre estes dois universos vivenciados quotidianamente
por quem, de alguma forma, participa da brincadeira, seja apenas assistindo, produzindo
roupas e objetos usados nela, seja dançando, brincando. Ela acabou abordando também
questionamentos a respeito da relação entre duas sociedades diferentes que, no entanto,
convivem e se interpenetram dentro e fora do Cavalo Marinho: a dos dominantes e a dos
dominados. A pesquisadora percorre um caminho de estudo pela memória dos brincadores
de Cavalo Marinho voltando-se, principalmente, para a fronteira tênue entre a brincadeira e
a realidade. Também questionou a insistência da mídia em pontuar a origem do Cavalo
Marinho como portuguesa, ibérica. Neste sentido, a autora questiona por que um folguedo
de origem portuguesa contaria a história de negros que desobedecem a seu senhor e por que
as pessoas que o praticam são, em sua grande maioria negros.595
Uma escolha de Helena Tenderine foi trabalhar com o conceito de tradição ao invés
de cultura popular. Segundo a autora, apesar dela concordar em algumas questões com os
conceitos levantados por Marilena Chauí e Nestor Canclini, como, por exemplo, em relação
tanto ao plural de culturas populares (por que são várias) usado por Canclini, quanto ao do
povo utilizado por Chauí, ela continuou achando o conceito problemático, ―pois contém a
ideia de povo e, afinal, quem seria esse povo?!‖. A autora defendeu que povo é ainda uma
categoria confusa na academia porque traz a ideia implícita de classe social economicamente
desfavorecida. E, segundo ela, nem sempre quem se encontra na condição de dominado
economicamente é povo, assim como alguém que tem um poder aquisitivo maior (por ter
‗subido na vida‘, como se diz) pode continuar pertencendo ao povo. Parafraseando o
provérbio yorubá ―mesmo quando não sabemos bem para onde vamos, sempre nos
lembramos de onde viemos‖, a autora corrobora da ideia de que a tradição é o que define o
povo, e que ela pode traçar claramente as fronteiras entre estas sociedades ou mesmo expor a
sutileza existente entre elas. Acredita, contudo, na ideia de tradição como algo em
movimento, dinâmico e vivo,596 conceitos, que como coloquei acima, eu discordo.

595
TENDERINE, op. cit., 2003.
596
TENDERINE, op. cit., 2003, p. 25 -28.

380
Uma das escolhas interessantes de Tenderine foi não ―dar nomes aos bois dos
outros‖, pois, segunda a autora, em suas observações de campo, frequentemente, termos
usados no cotidiano das brincadeiras ao serem transpostos para a academia se esvaziam do
significado para qual são realmente empregados. A pesquisadora acredita que o movimento
da ética pede gestos de entendimento e explicação muito mais do que de adaptação e
desapropriação. Desse modo, Tenderine optou por usar termos como figura, brincadeira ou
folgazão, brincadeira, folguedo ou brinquedo ao invés de personagem, brincante, teatro
folclórico. Sua influência, aqui também adotada, vem do antropólogo Geertz. Segundo este
autor, ao tentar explicar como realizou seu trabalho com os povos marroquinos, indonésios,
muçulmanos, hindus - a fim, sobretudo, de demonstrar o quanto cada um possuía uma visão
do mundo diferente - ele descreveu, de forma quase telegráfica, os conceitos de
personalidade e ainda mais telegraficamente descreveu as estruturas mais amplas de
pensamento e de ação, nas quais aqueles conceitos desabrocham. Em seguida, Geertz
argumenta que o antropólogo para ―resgatar‖ as informações tem que ―bordejar‖ entre dois
tipos de descrições – entre observações cada vez mais detalhadas e caracterizações cada vez
mais sinópticas - de tal forma que, quando esses dois tipos de informação se conectam na
mente, formam um retrato vívido e verossímil de um tipo de vida humana.

Tradução, neste caso, não significa simplesmente remoldar a forma que as


outras pessoas têm de se expressar em termos das nossas formas de expressão
(este é o tipo de exercício em que as coisas se perdem), mas sim mostrar a lógica
das formas de expressão deles, com nossa fraseologia. Uma metodologia que se
aproxima mais daquilo que um crítico faz para tornar claro um poema, do que o
que faz um astrônomo quando justifica a existência de uma estrela.597

Esta perspectiva antropológica geertziniana aproxima-se muito dos trabalhos dos


antropólogos e artistas que pesquisam o folguedo do Cavalo Marinho e que aqui me
auxiliaram muito nos trabalhos de campo. Todavia, ainda, na realização de um trabalho em
História Social, trabalhando com um tempo histórico passado, sobre o qual as informações
são esparsas e indiretas, se em alguns casos a aplicação de alguns procedimentos
antropológicos se perdem, por outro podem se transformar quando relacionados aos métodos
históricos de levantamento documental, agrupamento de indícios e análise dos fatos. O

597
GEERTZ, Clifford. A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro, LTC, 1989, p.19 e 20.

381
homem e suas ações sempre estão como base de tudo, e é impossível não ter referências do
presente ao me encontrar com estes e suas realizações no passado. Acredito que esta é a
maior ponte que posso traçar com estes universos acadêmicos, muitas vezes, distantes.
Em uma investida antropológica sobre o Cavalo Marinho também observamos o
trabalho de Maria Acselrad, Viva Pareia! A arte da brincadeira ou a beleza da safadeza -
uma abordagem antropológica da estética do Cavalo Marinho, que buscou pensar as
possibilidades de análise que a arte oferece à antropologia, como objeto de estudo, que ao
representar um sistema cultural, mais do que um reflexo da sociedade que a produz,
apresenta-se como uma reflexão sobre ela, uma análise da brincadeira do Cavalo Marinho
que pretendeu levantar uma discussão sobre a experiência estética, como elaboração de
estilo intencional ligada a valores que almejam o melhoramento do mundo, uma reflexão
sobre os corpos em movimento dos brincantes no intuito de pluralizar e diversificar uma
concepção de povo purista e homogênea, predominante na interpretação de um grupo de
intelectuais do início do século XX, contribuindo assim para a própria compreensão do
corpo da brincadeira. Para a autora, a arte da brincadeira como forma de celebrar a diferença
e de ter uma relação de cuidado com a vida.598
Outro trabalho que abordou vários aspectos que dizem respeito ao universo sócio-
cultural da brincadeira e que relacionou sua prática e o seu contexto de produção foi O
Cavalo-Marinho de Várzea Nova (um grupo de dança dramática em seu contexto sócio
cultural) de Werber Moreno599. Através de uma análise histórica do município de Santa
Rita (PB), o autor destacou as condições de vida experimentadas por seus brincadores que
em sua maioria vivem da agricultura de roçado.
Definida como ―canto, dança e representação dramática que ocorre em meio ao
público circundante‖600, para Moreno a brincadeira é compreendida como um espaço de
comunicação simbólica. Tal como a feira livre, local cujos acontecimentos sociais
ultrapassam os limites do simples comércio de gêneros de primeira necessidade, a
brincadeira também pode ser compreendida do ponto de vista de sua organização interna, já
que não envolve apenas aspectos relativos ao mundo do trabalho, mas inclui também os

598
ACSELRAD, op. cit., 2002.
599
MORENO, Werber Pereira. O Cavalo-Marinho de Várzea Nova: um grupo de dança dramática em seu
contexto sócio-cultural, Dissertação de Mestrado em Ciências Sociais na UFPB, João Pessoa, 1997.
600
MORENO, op. cit., 1997, p.16.

382
divertimentos que são vivenciados pelos trabalhadores, em seu tempo livre. Baseada na
hierarquia de saberes, na divisão de funções especializadas, no trabalho e no divertimento,
mas também na multiplicidade de experiências e modos de aquisição de conhecimento, a
brincadeira oferece um longo processo de aprendizado para aqueles que dela desejam
participar.
A questão exposta por Moreno de que o Cavalo Marinho também extrapola o
mundo do trabalho e faz parte das horas de lazer e aprendizado traz boas sugestões de como
olhar esta manifestação no final do século XIX e início de XX. Apesar de apostar na ideia
de que o ritual, a festa, a brincadeira, se realizava no final de um processo produtivo
(moagem) e que, portanto, estava inserido diretamente na divisão do trabalho, ao mesmo
tempo, tratava-se de um momento de lazer onde os trabalhadores dos engenhos e usinas
reproduziam e/ou produziam valores, costumes e ―tradição‖.
Por outro lado, a concepção, defendida por Werber Moreno e Edval Marinho, de
que a festa é uma forma de resistência e protesto dos trabalhadores clama por um estudo
―contextualizado‖ sobre o folguedo.601 Vale ressaltar que essas análises foram realizadas a
partir de um contexto histórico contemporâneo dos anos 80 e 90 do século XX e, como
observamos nas pesquisas de campo (2004-2010), a apresentação do Cavalo Marinho
jamais se repete. Cada apresentação de espetáculo é um espetáculo ímpar, mesmo porque
―pelo seu caráter de oralidade, o folguedo permite a improvisação‖.602 Trata-se de um
costume festivo, que mantém aspectos tradicionais, mas também transforma e inova.
Por este viés, consideramos interessante a análise feita por Acselrad de que se cada
brincadeira é diferente porque seu conteúdo crítico é o que faz com que ela se transforme e
consequentemente o mundo que a rodeia, ou então, por outra, se ela tem entre tantas
funções o objetivo de reproduzir uma determinada ordem, o fato é que sendo dinâmica, a
brincadeira produz acontecimentos dessa mesma ordem. E assim, tendo o poder de reforçar
uma dada realidade, também tem de transformá-la.603
Essa afirmação, porém, causa um problema que é lidar com o caráter dinâmico,
fluido e volátil observado no Cavalo Marinho. Para Santos Moreno, o problema virou
solução na medida que em seu estudo sobre o Cavalo-Marinho de Várzea Nova/Paraíba, em

601
Contextualizado no sentido abordado por E. P. Thompson que será explicado mais a frente.
602
MARINHO, op. cit., 1984, p. 31.
603
ACSELRAD, op. cit., 2002, p. 25.

383
Versos e Espetáculo do Cavalo-Marinho de Várzea Nova, a autora se apóia na ideia de que
a cultura é dinâmica e acompanha o desenrolar dos processos sociais. Por isso, das duas
abordagens possíveis em relação aos estudos de cultura popular – uma com base no que se
entende por tradição, isto é, ―suas manifestações são encaradas como obras do passado
sobreviventes no presente‖, e outra que valoriza o dinamismo da cultura popular
―mostrando como suas práticas se articulam, inseridas no seu contexto de produção‖ – a
autora escolhe a segunda.604
Mais próximo à nossa perspectiva analítica de integrar processo histórico aos
valores, símbolos e manifestações culturais, o trabalho de Murphy605 Performing a moral
vision: an ethnography of Cavalo Marinho, a Brazilian musical drama, critica os
estudiosos que entendem este drama como veículo de protesto. O autor sustenta a hipótese,
ao explorar o significado do Cavalo Marinho para os seus praticantes e problematizar a
continuidade histórica entre antigas e atuais versões nesta região, de que ―a brincadeira é
multivocal e seu significado complexo‖. Para John Murphy, a manifestação do Cavalo
Marinho servia como uma janela da visão moral de seus participantes, onde há espaço para
a punição de ―maus‖ patrões e empregados e o reconhecimento dos ―bons‖. Citando o
mestre do brinquedo Batista (falecido), ressaltou que este declarou enfaticamente: ―anote
isso e leve anotado, e bota no cabeçalho do livro: é mais com respeito do que com crítica‖.
Segundo o autor, ―os participantes do Cavalo Marinho tratam o respeito devido do Capitão
como natural e justo, e a punição dos trabalhadores irresponsáveis e rebeldes como
merecida‖. Nessa lógica ele acredita que a crítica feita é dirigida ao ―mau patrão‖ e não ao
―bom patrão‖.606 Para ele, as brincadeiras devem ser entendidas mais como respeito do que
como crítica. A visão moral implica julgamento e punição de más-condutas, de relações
irresponsáveis. Para ele, o ―complexo do patrão‖ é a base para a ideologia hierárquica das
relações sociais no Brasil rural. Gerações de moradores dependeram, para o acesso à terra –
e assim para a sua subsistência -, do patronato de senhores de engenho. Um patrão que trata
seus servidores justamente ganha reputação de ―bom patrão‖. Diante disso, Murphy conclui

604
SANTOS MORENO, Josane Cristina. Versos e Espetáculo do Cavalo-Marinho de Várzea Nova,
Dissertação de Mestrado em Letras na UFPB, João Pessoa, 1998.
605
MURPHY, John. Performing a moral vision: an etnhography of cavalo marinho, a Brazilian musical
drama, Tese de Doutorado em Etnomusicologia, Columbia University, New York, 1994. Traduzido para o
português: MURPHY, John. Cavalo Marinho pernambucano. Trad. André Curiati de Paulo Bueno. Belo
Horizonte, Ed. UFMG, 2008.
606
MURPHY, op. cit., 2008, p. 132 e 133.

384
que a crítica é dirigida não ao sistema de patronato, existente há tanto tempo, mas contra
―maus‖ patrões.607
Por considerar estas constatações de Murphy de grande valia, ainda mais por se
tratar de um estudo rico sobre etnomusicologia e que ainda abarca questões sociais, gostaria
de travar um diálogo mais detalhado com este autor partindo das minhas pesquisas de
campo realizada entre 2004 e 2010. Para tanto, precisarei, contudo, abrir um pequeno
parágrafo neste capítulo. Uma pausa para pensarmos o presente.

4.3) As memórias dos brincadores e trabalhadores rurais da Zona da Mata Norte de


Pernambuco: um diálogo com o presente

Como parte desta tese, realizei um trabalho de pesquisa (premiada pelo concurso
Memória do Trabalho - CPDOC/Fundação Getúlio Vargas, Ministério do Trabalho e
Emprego e Petrobrás) na qual entrevistei 11 homens que exercem ou exerceram sua
profissão no setor canavieiro e/ou usineiro e atuam como brincantes ou donos de
brinquedos na região da mata norte de Pernambuco. Entre estes trabalhadores também
foram entrevistados alguns membros da diretoria de dois Sindicatos de trabalhadores rurais:
608
da cidade de Nazaré da Mata e de Aliança. Em cima das informações recolhidas, pude
realizar algumas interpretações sobre estes sujeitos e suas relações com o mundo do
trabalho e da arte, abrindo possibilidades para um diálogo com as produções acadêmicas
que vislumbram a cultura popular atualmente, e principalmente, responder as considerações
de John Murphy sobre as representações produzidas pela brincadeira do Cavalo Marinho.
Apesar de não estar realizando uma pesquisa no campo da antropologia ou sociologia e não
centrar meus esforços na história contemporânea, considero positivo analiticamente trazer
algumas reflexões sobre este universo no presente.
O principal fio que liga estas pessoas é o trabalho na cana nos engenhos e/ou nas
usinas da mata norte pernambucana. Um passado social marcado pela presença de

607
MURPHY, op. cit., 2008, p. 132.
608
O projeto Do corte da Cana à brincadeira popular: Histórias de luta e de lazer dos cortadores de cana
brincantes dos folguedos da Zona da Mata Norte de pernambucano (prêmio Memória do Trabalho -
CPDOC/Fundação Getúlio Vargas, Ministério do Trabalho e Emprego e Petrobrás) teve como objetivo
principal registrar e catalogar as narrativas desses brincantes e sindicalistas a fim de encontrar aspectos sobre
a identidade, as lutas, a arte, o trabalho da cana, enfim, sobre a vida desses sujeitos singulares por trazer em
sua história as mãos calejadas da lida com a cana e a riqueza da cultura popular pernambucana.

385
latifúndios, relação patrão-senhor, relação feitor-trabalhador, de boas e más condições, de
comida e fome, de permanências e transformações. Ao mesmo tempo há também um
passado cultural comum marcado por tradições festivas e ritualísticas que existe faz séculos
nesse universo, vivências culturais, de forma intensa ou observadora, que também
construíram elos de identidade. O Maracatu, a Ciranda, o Caboclinho, a Burra, o
Mamulengo e o Cavalo Marinho fazem parte das memórias dos trabalhadores, no entanto
cada um agencia sua apropriação de forma particular. Com vistas neste universo, discorri
sobre os caminhos de distanciamento e de aproximação entre trabalho (e aqui trabalho
repleto de relações sócio-econômicas) e cultura construídos pelos sujeitos que dão vozes a
essas histórias.
Quais são as conexões entre trabalho da cana e o brinquedo, construídos por estes
sujeitos? E de que forma criaram novos significados para o perfil social e cultural que
estavam inseridos? Significados talvez inenarráveis por nós estranhos a esse mundo e, ao
mesmo tempo, talvez ainda desestruturados em forma de narrativa na memória de cada
locutor. No entanto, mesmo que os significados ainda estejam desestruturados
conscientemente para seus sujeitos, não podemos deduzir, em cima dessa suposição, que
eles não estejam sendo experimentados cotidianamente. E talvez o ponto crucial esteja
justamente aí: no não dito, não visto, mas vivido e revivido.
Severino Alexandre, José João, José Manuel, Severino França, Pedro Ramos,
Severino Barbosa, José Lourenço, Genival Coutinho, José Pereira e outros vivem e
exercem suas atividades como trabalhadores, sindicalistas e ―artistas‖ na região da Zona da
Mata Norte pernambucana nas cidades de Condado, Goiana, Aliança, Nazaré da Mata e na
localidade de Chã de Camará. Historicamente, como observamos nos capítulos anteriores,
esta zona específica teve um cenário da produção de cana de açúcar, principalmente em
engenhos banguês. Não ocorreu, por exemplo, a implantação dos chamados Engenhos
Centrais ou de grandes quantidades de usinas no final do início do século XIX. Por longo
tempo, até meados do século XX, o sistema de fábrica que existia era de condição técnica
menos avançada, com relações de trabalho senhor-empregado e com trabalhadores livres e
escravos até a abolição. Vale ressaltar, portanto, que não apenas tecnicamente diferia a
usina e de um engenho banguê, mas também todas as relações sociais, econômicas e
culturais que estruturavam este novo sistema produtivo. O primeiro como uma empresa

386
particular que não, necessariamente, possuía terras com plantação de cana, e o segundo, o
engenho banguê, como uma estrutura de fabricação de açúcar, tendo a terra e a cana como
constituinte, a existência da moradia - quer do senhor e/ou do trabalhador - e a presença
essencial do trabalho humano para a produção, entre outros elementos.609
Por que essas informações são relevantes? A resposta vem com nossos entrevistados
e com os processos de implantação das usinas e da saída dos moradores dos engenhos.
Para Maria Wanderley, as usinas representam um avanço em relação aos engenhos
anteriores, e nelas a tecnologia empregada e os processos de produção já correspondem aos
de uma grande indústria:

A força de trabalho no setor industrial é constituída por trabalhadores


assalariados. O caráter de mercadoria desta força de trabalho é indiscutível, uma
vez que a usina realiza, neste setor, o processo que separa os produtores diretos
da propriedade dos meios de produção. 610

Segundo a autora, a demanda de trabalhadores, em grande parte ex-escravos, que


seria destinada ao trabalho nas usinas, tenta escapar à dominação do capital, pela imigração
ou pela recusa à disciplina do trabalho. Assim, era frequente a reclamação de usineiro sobre
a carência de braços e sobre a ―irresponsabilidade‖ dos trabalhadores, que segundo aqueles,
habituados a uma vida miserável, limitavam-se a trabalhar dois ou três dias por semana, o
suficiente para garantir sua sobrevivência. Para Maria Wanderley, o processo de
acumulação nas usinas se funda, assim, na apropriação da mais valia produzida por
operários assalariados e, desta maneira, o capital se realiza como relação social, processo o
qual, como me referi anteriormente, ocorreu de forma tardia na região da mata norte
pernambucana.

Esta ―emigração‖ dos trabalhadores dos engenhos e usinas, segundo Sigaud,


ocorreu em meados da década de 50 e, mais especificamente, após 1964, com a queda do
Governo Goulart. Os moradores começam a abandonar em massa os engenhos e os
proprietários a recusar sistematicamente novos moradores. Fechado o acesso à morada, os
moradores se dirigem para as cidades da região, não mais em caráter provisório, mas para

609
Mais informações sobre as Usinas e Engenhos na Zona da Mata Norte ver capítulo 1 desta Tese.
610
WANDERLEY, op. cit., 1978, p. 49

387
lá se instalarem definitivamente, o que vai se refletir no crescimento urbano espantoso na
Zona da Mata.611

Entre os motivos de mudança deste sistema de morada foi a ameaça que os


movimentos rurais, principalmente as Ligas Camponesas, trouxeram para os proprietários.
A resposta destes foi a de se livrar da presença de moradores, quer fechando o acesso à
morada, quer conseguindo que os moradores saíssem das propriedades. Se na fábrica o
capitalista apenas necessita se preocupar com as horas que o operário efetivamente trabalha
dentro de seus domínios e para realizar esse controle joga com os próprios mecanismos da
produção, num engenho as coisas são mais complicadas.

Se toda a vida do morador se passa dentro da propriedade, mas essa própria


vida é controlada por um proprietário ao qual o morador se liga através de uma
relação personalizada marcada pelo dom de um lado e a dívida por outro, a
subordinação do morador é total mesmo naquelas esferas, como no trabalho para
si na terra concedida e no âmbito doméstico, que escapam a um controle
imediato do senhor ou de seus pressupostos.612

Assim, no momento em que os moradores não mais vão disputar entre si os favores
dos proprietários, mas se articular para reivindicar aumento de salário e melhores condições
de trabalho, sua presença dentro do engenho se torna uma ameaça bastante real. Os
moradores começam a reinterpretar os próprios elementos da vida do engenho.
Transformam o barracão, de local onde se abasteciam, em local de aglutinação e discussão,
os instrumentos de trabalho em armas de luta, e entre outros, o mais importante, o
companheiro, de homem de confiança do proprietário como deveriam ser todos os
moradores, em homem de sua confiança investido na condição de delegado sindical.613
Esse processo de transformação de morada, em outras palavras, a perca da moradia
pelos trabalhadores dentro das terras de engenhos e usinas e a sua mudança para a rua,
expressão usada para determinar a cidade ou distrito, segundo Sigaud, talvez não tenha sido
algo interessante para os trabalhadores. Segundo a autora, mesmo considerando que a casa
de morada (a possibilidade que tinha de produzir, quer através da agricultura ou da criação)
parte do que consumia, o acesso à água, à lenha e ao crédito no barracão estavam

611
SIGAUD, Lygia. Os clandestinos e os direitos, Estudo sobre Trabalhadores da cana-de-açúcar de
Pernambuco, Livraria Duas Cidades, São Paulo, 1979, p. 33
612
SIGAUD, op. cit., 1979, p. 40.
613
SIGAUD, op. cit., 1979, p. 40.

388
subordinados à relação com o proprietário e não se constituíam como objeto de uma
apropriação livre fundada na tradição, mesmo assim, ao romper-se a relação de morada, as
condições de existência do morador são alteradas e ele se transforma em mero vendedor de
força de trabalho.614
Nesse sentido, o governo de Miguel Arraes auxiliou muito na luta pelos direitos dos
trabalhadores rurais juntamente com a promulgação em 1963 do Estatuto do Trabalhador
Rural e, em 1964, do Estatuto da Terra. Com o regime ditatorial instalado em 1964, a saída
dos moradores dos engenhos aumenta massivamente, justamente porque se inclui o fato
político como determinante para a continuação do sistema de morada. Neste momento, a
atuação do sindicato, limitada sempre pela legislação trabalhista e pelo controle do Estado,
vai se dar no sentido de tentar manter os trabalhadores dentro dos engenhos, recorrendo
para tanto aos dispositivos legais do Estatuto do Trabalhador Rural e do Estatuto da Terra.
O pressuposto desta ação sindical, segundo Sigaud, visando assegurar a permanência dos
trabalhadores no engenho, é de que morando dentro das propriedades o trabalhador vive em
melhores condições do que na cidade, na medida em que tem uma casa assegurada e o
acesso à água e à lenha do engenho. No mais, enquanto mora no engenho, o trabalhador
ainda pode manter um pedaço de terra, e isso pode servir de suporte para uma luta na
Justiça no sentido de garantir uma concessão que com o fim da morada tende a se perder. A
essência da reivindicação é, portanto, não no sentido de retomar o sistema de morada, mas
de tentar reverter o sentido de um processo cuja tendência seria a saída de todos os
moradores dos engenhos.615
José Lourenço,616 presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Aliança em
2006 disse que sempre morou nos engenhos: Terra Nova, depois Chã de Ouro, depois para
Gameleira Grande e atualmente mora no sítio Chã de Esconso. Para ele, ter ido para rua
―foi a pior coisa‖. A família toda de Lourenço é rural, ―ninguém teve chance à escola‖. Para
ele, antes do ―velho‖ Miguel Arraes a vida era muito ruim. Conta José que na sua casa tinha
13 pessoas. No fim do dia de trabalho, ele pegava um vale com o cabo e ia comprar alguma
coisa no barracão para comer: ―uma colher de café, um pacote de sardinha‖. Já no domingo,

614
SIGAUD, op. cit., 1979, p. 36.
615
SIGAUD, op. cit., 1979, p. 42-43.
616
Depoimento de José Lourenço da Silva, presidente Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Aliança,
concedido a Beatriz Brusantin. Aliança (PE), 17 /11/2006.

389
como não tinha serviço, ―todo mundo ficava com fome‖. Nessas situações a solução era
―chupar cana, arrancar macaxeira‖. Lembra também que não tinha roupa para vestir todo
mundo, esta acabava sendo feita de saco. Já ―na saúde era tristeza, qualquer doença já dava
para falecer‖.
Para ele, hoje (2006) tudo é bem melhor: ―o que tinha de bom é que ―era tranquilo,
dormia de porta aberta, tinha a casa de farinha, tinha as festas: maracatu, coco, viola,
ciranda, cavalo marinho‖. Ele mesmo era cantador de viola. ―Hoje tem muito pouco, só tem
cana. Hoje precisa muito do Estado, do governo‖. Como presidente do sindicato faz
fiscalização todo dia para ver as condições de serviço. ―Naquele tempo não tinha justiça
nada, o cabra apanhava do patrão, morria e ninguém ficava sabendo‖. Para ele, ―se não
houvesse o sindicato, a Contag e a Fetape o trabalhador ia ser morto que nem muriçoca‖.
Sua história de luta foi observando as injustiças, como trabalhador ficava indignado com a
pobreza, a caatinga, as condições de moradia e de trabalho. E hoje já fez muito pelo
sindicato, conquistou o lugar, reformou o espaço, conseguiu carro para a fiscalização. Até
2003 trabalhava no campo, na Usina Mata Limpa, depois veio para o sindicato. Quando ele
morava no engenho não se lembra da ação do sindicato. Hoje, eles (o sindicato de Aliança)
fazem reuniões nas sedes através das associações. Tem cerca de 800 associados. Antes
quando tinha problema com o patrão no engenho, ele vinha no sindicato e não era atendido,
mas pagava ―certinho as mensalidades‖. ―Durante a ditadura militar foi o começo do fim.
Pois o fim mesmo era ter que cortar a sardinha para 3 pessoas comerem. Segundo José
Lourenço, ―quantas e quantas vezes só tinha água para beber antes de trabalhar, daí era
catar cará no mato para comer, caçar ninho de passarinho para comer os ovos‖. Diz ele:
―hoje (2006) a vida é bem melhor‖. Porém, para ele, é preciso urgentemente uma ação do
governo federal para acabar com os agrotóxicos: ―isso tá matando muito trabalhador‖. Para
Lourenço, é necessário uma lei para acabar com o uso dos agrotóxicos: ―porque é assim, o
trabalhador só vai ser fichado se trabalhar com o agrotóxico, daí ele desempregado, aceita‖.
―E mata tudo, contamina água, mata os animais, as crianças bebem a coisa toda
contaminada. Não tem mais passarinho, não tem mais peixes nos riachos. E essa história
começou com as máquinas que veio e substituiu os homens‖.
Para Lourenço, outra luta sindical é contra o ―empeleteiro‖, pois com a contratação
deste, ―o trabalhador não é fichado ficando sem os direitos‖. Lourenço já trabalhou muito

390
com ―empeleteiro‖, diz ele: ―era dureza, cada dia era um lugar de trabalho. Hoje tem até
―empeleteiro‖ fichado, que se chama firma. O feitor também era dor de cabeça. Esse tem
dois nomes: cabo ou supervisor‖. Atualmente, o presidente do sindicato de Aliança conta
que ―vive fiscalizando as medições do supervisor‖.
Entre outros problemas, Lourenço destaca que hoje em dia há muita violência nos
engenhos ocorrendo muitos assaltos e assassinatos:

A vida mudou muito no campo. Mas patrão é patrão sempre. Patrão não
gosta de trabalhador, gosta do trabalho. E para o trabalhador o castigo era o
próprio trabalho. Tinha que trabalhar que nem bicho. Só depois daquela
Revolução de 64 é que o trabalhador começou ter algum direito. Agora, as festas
o patrão deixava. Tinha que avisar e pedir a ordem, daí deixava. Mas também
não tinha mais nada mesmo. E para conseguir tem que negociar. Nada de
violência.617

Os relatos de José Lourenço revelam uma trajetória de vida representativa da análise


feita pela autora Sigaud. Salvo a informação de que José Lourenço acredita que atualmente
sua vida é melhor e ressaltar que mesmo quando morava nos engenhos, ali passava fome e
não havia justiça, ainda sim afirmou: ir para rua foi a pior coisa. O fato, no entanto, é que
José Lourenço percebe sua vida de forma positiva, isto é, ela melhorou, e como mesmo
conta, a ditadura foi o começo do fim, pois o fim mesmo era dividir a sardinha para 3
pessoas. E nesse processo positivo do decorrer da vida, a ação sindical, a luta pela justiça
fizeram parte dessas conquistas para o melhor. José Lourenço sendo historicamente
trabalhador rural e atualmente como presidente do sindicato, facilmente, aponta os
principais problemas que envolvem o universo da cana. Primeiro, o agrotóxico que, além de
um problema de saúde, se apóia em um sistema sócio-econômico de dependência e miséria.
Para José Lourenço, outra luta que precisa ser travada, é contra o ―empeleteiro‖, o feitor, o
cabo e o supervisor. Uma briga necessária para a efetivação do direito do trabalhador rural
a fim de conseguir melhores condições de trabalho e de vida.
Nas falas de José Lourenço, um homem que passou dificuldades no passado, mas
que buscou melhorias através da Justiça, através da ação sindical, as lembranças do que
passou não lhe parecem saudosistas. Mesmo vivendo atualmente sob ameaças de morte por

617
Depoimento de José Lourenço da Silva, presidente Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Aliança,
concedido a Beatriz Brusantin. Aliança – PE, 2006.

391
causa da sua ação contra as injustiças empregadas pelas usinas da região, ele ainda
considera hoje (2006) sua vida melhor. Certamente um aspecto óbvio para esse sentimento
seria o fato de que ele e sua família sofreram muito com a falta de necessidades básicas
para a sobrevivência, no entanto, percebemos que existe algo a mais que lhe faz sentir mais
confiante e positivo com relação à história de sua vida. Este ―algo mais‖ aponto como
sendo as conquistas através da ação sindical, que mesmo tendo também um histórico de
problemas, foi um espaço social que ele encontrou para fazer o embate contra as injustiças
das classes dos proprietários e também contra as injustiças advindas dos setores sociais
formados por seus mediadores: ―empeleteiro‖, feitores, cabos e etc. E é justamente neste
último aspecto que podemos constatar um antagonismo intrínseco na classe dos
trabalhadores rurais.

Entre os estudiosos que analisam as festas na região da mata norte pernambucana,


Maria Acseral aposta que a dissolução da relação de morada trouxe implicações
extremamente negativas para a manifestação cultural do Cavalo Marinho. Segundo a
autora,

(...) acreditar que houve uma conquista de liberdade com a saída dos
trabalhadores rurais para as ―ruas‖, infelizmente, é uma interpretação deste
processo de mudança nas relações sociais no mínimo ingênua, ou mesmo
perversa. Se no passado predominava uma relação de trabalho baseada na
dominação e na negligência de direitos elementares, como o descanso e o
salário, hoje a instabilidade profissional, a baixa remuneração e a ausência de
cuidados assistenciais são consideradas mais nocivas ainda para a sobrevivência
de famílias inteiras e de suas práticas festivas.618

Para a autora, atualmente, assim como os próprios trabalhadores rurais, as


brincadeiras têm que disputar um espaço e um público extremamente concorrido. O
pagamento cada vez menos expressivo por um Cavalo Marinho e a disputa pela atenção do
público e até pelos próprios brincadores são alguns sinais que ilustram o agravamento do
processo de proletarização da massa de trabalhadores rurais da Zona da Mata Norte,
resultante das transformações de ordem econômica desencadeadas pela emergência das

618
ACSERALD, op. cit., 2002, p.18.

392
usinas, da valorização do açúcar no mercado internacional e da ampliação do mercado
interno.

Em seu trabalho, Maria Acserald ressalta o depoimento de alguns brincantes de


Cavalo Marinho, os quais claramente expõem seu saudosismo do passado vivido nos
engenhos. Como contou Biu Roque:

De premero, pra se trabalhar era muito bom. Naquele tempo a gente


amarrava cachorro com linguiça porque tinha de sobra. A essa hora assim a
gente tava tudo no assentamento do engenho, bebendo caldo, lambendo mel,
comendo açúcar bruto. Era tudo dentro do engenho. Depois, a inflação foi
aumentando. Aí cortava cana, tomava cana e fazia empréstimo. Quando era no
fim da safra, a usina tomava conta de tudo, quando ia ver o dinheiro não dava
pra pagar as despesa do povo. Senhor de engenho não aguentava e vendia às
usina. Até que as usina tomou conta de tudo. Foram acabando com os sítio. Eles
vieram plantando cana, plantando, plantando e me espremendo. Aqui, só sobrou
eu. Por causa dos direito. A usina tá em falência, não tem dinheiro pra fazer
acordo, quando for me diz. Tô morando aqui porque não tem solução.619

As memórias de Biu Roque (falecido), toadeiro da brincadeira de Cavalo Marinho


de Chão de Esconso, já trazem outro cenário para o passado vivido nos engenhos da mata
norte. Na verdade, trazem-nos outra visão no presente do passado vivido. O saudosismo
está claro e a visão negativa das transformações também. Comparando com as falas de José
Lourenço, constatamos que, talvez, os dois tivessem vivido em situações diferentes nos
engenhos, um com um passado mais farto, outro não. De qualquer modo, ambos, Biu
Roque e José Lourenço nos contam que sair dos engenhos foi algo ruim. O fato, no entanto,
é que se um encontrou avanços positivos para sua classe através da ação sindical, o outro
diz que a vida atual persiste por não haver soluções. Assim, o mais interessante é perceber
como, no presente, cada um se apropria e vivencia as transformações sócio-econômicas no
sistema canavieiro de forma diferente, e também interagem diferentemente com as
manifestações festivas da região. Como coloca Maria Acserald, a saída dos moradores dos
engenhos além de acelerar a proletarização dos trabalhadores, prejudicou a brincadeira do
Cavalo Marinho. José Lourenço também pontua em sua fala que o único aspecto bom na
vida nos engenhos era a tranquilidade, o acontecimento de muitas festas (ele até tocava

619
Depoimento de Biu Roque registrado por Maria Acserald, 2002, p. 15 -16.

393
viola) e a quase inexistência da violência. Por outro lado, para ele era só isso que os
trabalhadores tinham de bom e que era possível negociar com o patrão.

Infelizmente, não possuo mais detalhes da vida de Biu Roque enquanto trabalhador
rural, apenas podemos constatar que atualmente (2010) ele vive da arte de cantar e tocar
toadas dos folguedos da região. É um grande artista, e desse modo, economicamente
sobrevive. Portanto, voltemos para os nossos entrevistados, e verifiquemos algumas
questões que nos permitam refletir sobre a possível hipótese de que brincadores dos
folguedos são mais saudosistas do que sindicalistas, e se assim for, como se relacionam
com o trabalho e suas relações sociais intrínsecas.

O ponto principal que aqui gostaria de destacar é a constatação de que, entre os


entrevistados que são brincantes dos folguedos, encontrei algo de interessante e comum
entre os mestres e donos dos brinquedos da região: a maioria ocupou a função de
―empeleteiro‖ (empreiteiro), feitor ou cabo no seu histórico como trabalhador rural. Não só
o registro do fato em si é interessante, mas também a valorização da função social na
narrativa dos próprios sujeitos e nas falas dos filhos destes ou de pessoas próximas. Assim,
seja na memória do dono ou mestre, ou na memória de seus filhos ou conhecidos, o perfil
sócio-econômico de ser ―empeleteiro‖ (empreiteiro), feitor ou cabo teve espaço garantido e,
portanto, possivelmente, construiu significados de identidades ou conflitos.

Como coloca Sigaud, o processo de quebra das relações tradicionais de morada


levou a uma expropriação sobre a reprodução da força de trabalho. Apesar disso, no
entanto, a autora verificou que a reprodução da força de trabalho estava sendo assegurada
pela venda continuada dessa força de trabalho aos mesmos proprietários aos quais os
trabalhadores estavam ligados anteriormente como moradores. A relação, no entanto, entre
este trabalhador morador da cidade e o proprietário se dava através da existência de um
empreiteiro (ou empeleteiro), por conta de esquema, aquele só conseguia trabalho através
deste.620 De fato, José Lourenço expõe em seu relato o quanto era difícil trabalhar através
do empreiteiro e como este setor social faz parte do embate travado pelos sindicalistas atrás
de condições trabalhistas.

620
SIGAUD, op. cit., 1979, p. 14.

394
Logicamente aqui a proposta não é traçar uma estatística do perfil social dos mestres
e donos dos folguedos da região da mata norte pernambucana. É, sobretudo, perceber como
este fato é presente em vários casos e como esta função social é parte constituinte da
memória de cada participante das manifestações culturais.

Pedro Gonçalves Ramos, dono do caboclinho Cahetes de Goiana (PE), conhecido


como Pedro Alemão, nasceu em Goiana (PE), veio de família de 9 filhos, viveu 8 anos na
Usina Matary em Itaquitinga (PE) onde seu pai era marceneiro. Sua mãe era dona de casa,
mas pescava para alimentar a família. Quando ele tinha 8 anos começou a vender munguzá,
depois cocada e nos dias de São João vendia fogos. Como seu pai ganhava pouco teve que
começar a cortar cana. ―E era difícil porque a cana não era queimada, daí tinha cobra e
marimbondo‖. Ele chegou para trabalhar no campo no momento da Revolução de 64. Conta
ele que ―era todo mundo escondendo a foice, e daí os delegados chegaram e fecharam os
sindicatos‖. Depois deste momento, passou a trabalhar de pedreiro na Chácara da Formiga.
Quando terminou o tiro de guerra, ele foi para usina. Neste trabalho, Pedro teve que
negociar com o patrão, pois estudava e não podia ficar até 10 horas da noite, então
conseguiu ficar até as 5 horas da tarde e trabalhava todo o fim de semana. De mestre de
obra virou empeleteiro e daí, segundo ele, foi quando ganhou dinheiro:

Comecei então a contratar ajudantes e pagava certinho, até mais.


Praticamente construí a Usina toda. Era difícil o trabalho na Usina porque
ganhava pouco, não era fichado, era contratado. Só ganhei mais porque
empeleitava, daí ganhava, mas não era fichado. Tanto que vários empeleiteros
que saiam do trabalho reclamavam na Justiça, mas eu não, porque reclamar se
ganhei dinheiro lá? 621

Seu Biu Alexandre622, como é chamado Severino Alexandre da Silva dono do


Cavalo Marinho Estrela de Ouro de Condado (PE), nasceu no Engenho Paraguaçu, em
Aliança (PE), onde viveu de 1943 a 1967. Segundo ele, ―Lá era bom, pois o povo tinha
muita liberdade. A maioria dos moradores tinham roçado: inhame, macaxeira‖. Conta ele
que seu pai era feitor do engenho, para ele ―um coordenador‖. Seu Biu começou a trabalhar
na cana com 11 anos de idade, ―mas era preguiçoso, gostava, não‖. Depois foi cambiteiro e

621
Depoimento de Pedro Gonçalvez Ramos concedido para Beatriz Brusantin, Goiana –PE, 13/11/2006.
622
Depoimento de Severino Alexandre da Silva concedido a Beatriz Brusantin. Condado (PE), 28/12/2006.

395
carreou também com o carro de boi. No Engenho Aliança, trabalhou como feitor. Foi para
outro engenho porque ele arengou com o administrador que virou rendeiro. A briga
aconteceu, pois ele estava trabalhando com um burro muito bravo e não dava pra trabalhar.
―Passava o dia empalhado‖. Assim, Biu falou: ―Seu Aragão, ou troca o burro, ou paga por
diária‖. Mas os outros cambiteiros não quiseram trocar o burro. Por conta disso, em janeiro
de 1967, seu Biu pegou ―suas rédeas‖ e foi embora para o Engenho São Bento, onde a mãe
dos seus filhos morava. Lá trabalhou até 1976. Depois ele foi ―empeleteiro‖, nas suas
palavras ―chefe de turma‖. Trabalhou de trator e depois de carregadeira. A história com o
Cavalo Marinho veio com seu pai, Pedro Alexandre (Pedro de Quina), que era mestre lá em
Paraguaçu. ―Nessa época como ninguém era fichado não tinha que pedir para brincar em
outros lugares. Hoje já é diferente‖. Na época, ele, criança, queria brincar, mas o pai não
deixava. Então com 13 anos ele fugiu para o Engenho Guarani e foi brincar no folguedo do
Mestre Duda Bilau. Dali por diante começou a mestrar o Cavalo Marinho, e já faz 35 anos.
Aprendeu muito com o Mestre Batista em Chã de Camará, mas como mestre diz: ―eu não
sei brincar Cavalo Marinho. Não é a gente que se elogia, é o outro que diz que a gente
sabe‖.
O filho de Mestre Biu Alexandre, Aguinaldo Roberto da Silva, foi criado pelos avós
paternos no Engenho Paraguassú em Aliança (PE). Segundo ele, tanto os avós paternos
como maternos trabalharam na cana, ou como cortadores de cana ou como feitor, assim foi
seu avó paterno, Pedro de Quina, pai de Biu Alexandre. Para Aguinaldo, ―morar no
engenho era tranquilo, silencioso, era bom demais. A comida faltava sim, era um pão
dividido por três. Porém, os ladrões acabaram com tudo. E todo mundo foi morar na rua‖.
A mãe costurava, vendia tapioca e uns pasteizinhos para pagar a dívida da casa. Quando era
menino ficava do lado querendo uma foice para cortar cana, mas era novo demais. O
primeiro trabalho foi aos 10 anos com o avô de cocheiro. No campo foi com 12 anos,
mapeando cana, ―cobrindo com o empeleteiro mesmo‖, até cortar cana. Na lavoura branca
(inhame, macaxeira) começou depois com o pai. Assim Aguinaldo levou a vida, de dia
trabalhando na roça e de noite como vigia. Nessa época ainda não era fichado:

(...) mas daí um cabra conseguiu uma ficha no Engenho da Barra. E daí virei
cortador de cana fichado. Lá era bom, patrão era bom, só na hora de sair que
teve que falar com o sindicato. Sua foice tinha arrebentado, o patrão até que

396
falou que ficava por sua conta, mas o feitor ficava de gracinha daí não teve jeito,
pediu as contas. Depois fui para Engenho Retiro, Usina Matary, Engenho
Miranda, Usina Santa Tereza, Engenho Itabu. Neste aqui teve até uma greve
braba por causa de salário. Mas fiquei de fora, pois sou contra a violência.623

Aguinaldo apenas deixou a cana quando começou a surgir dinheiro com o Cavalo
Marinho e o Maracatu Rural. A sua história com o folguedo do Cavalo Marinho começou
com o avô paterno, Seu Pé de Quina (administrador ou feitor do Engenho) e depois com
seu o pai, Biu Alexandre. No entanto, por muito tempo teve que negociar para brincar. Uma
vez estava cortando cana no tabuleiro e teve que falar com o ―doutor‖ (dono da Usina
Matary):

Sabe que é doutor, eu faço parte da cultura e tamo indo para São Paulo e o
dono já veio me chamar. São oito dia. Já tinha falado com o feitor, com o
administrador e não tinha adiantado. E daí na quarta feira fui falar com o doutor,
o feitor não tinha deixado, mas fui assim mesmo pedir a licença para o doutor.
Peguei carona com o motorista do caminhão que também brincava de maracatu e
daí ele me levou até o prédio que o dono tava. Falei com a secretária que já tinha
ordens para me liberar a título de férias.624

Severino José França625, o conhecido Biu do Côco, nasceu no Engenho Pendência


no município de Aliança (PE). Toda família nasceu e morou neste engenho, são 13 irmãos.
Os pais trabalhavam no roçado e na canavieira. Biu do Côco assinou a carteira com 16
anos, mas trabalhou desde criança: ―eu acordava bem cedo, tomava um cafezinho e saia
atrás do meu pai. Antes o senhor de engenho não queria que as crianças trabalhassem, mas
o dono da Usina Água Branca queria que os filhos da família trabalhassem‖. Assim, Biu
trabalhou 11 anos na cana e não gostou porque, segundo ele, o dinheiro era pouco e eram
muito ―xingados‖. O esquema era sair cedo de casa, pegar na cana e trabalhar e trabalhar.
―Em cada quadra tinha feitor em cima, e eu não ganhava nada‖. O pai dele, por exemplo,
morreu com mais de 70 anos dentro do engenho e não teve uma casa para morar. Daí
Severino se cansou dessa vida e foi para Recife trabalhar de servente de pedreiro e depois
foi morar no sítio do Mestre Batista em Chã de Camará, Aliança (PE). Como ele estava sem
trabalho um camarada dele chamou para fazer uma caravana de Maracatu, de Côco e

623
Depoimento de Aguinaldo Roberto Silva concedido a Beatriz Brusantin. Condado (PE), 24/11/2006.
624
Depoimento de Aguinaldo Roberto Silva concedido a Beatriz Brusantin. Condado (PE), 24/11/2006.
625
Depoimento de Severino José França (Biu do Côco) concedido a Beatriz Brusantin. Aliança (PE),
17/11/2006.

397
Ciranda. Com isso, ele voltou e começou a fazer as brincadeiras no sítio cujo dono era o
mestre Batista do Maracatu Estrela de Ouro e do Cavalo Marinho. Conta Biu do Côco que
Batista trabalhava na usina como cabo, ―tomava conta da turma‖.
Mestre Batista, que ensinou muito para o Mestre Biu Alexandre, também foi cabo
ou empreteiro. Em 2006, quando realizei esta pesquisa, Batista já havia falecido, mas o
pesquisador John Murphy em seus estudos sobre o Cavalo Marinho pernambucano teve a
oportunidade de entrevistá-lo. Em uma de suas conversas, Murphy relata que José
Lourenço da Silva, mestre Batista, botou roçado e trabalhou como cambiteiro e outros tipos
de trabalho com a cana de açúcar. Quebrou clavícula carreando (trabalhando carro de boi) e
acabou ganhando muita confiança dos patrões. Em seguida, passou por vários empregos,
entre eles, vendedor de bananas. Em 1965, ganhou um processo judicial alcançando o
direito de viver no sítio de Chã de Camará. No sítio ele trabalhou como empreiteiro e na
Usina Aliança tornou-se chefe da turma.626 Mestre Batista foi referência para vários outros
mestres e brincantes de Maracatu Rural, Cavalo Marinho, Ciranda e Coco da região de
Aliança (PE). Hoje em seu sítio Chã de Camará existe um Ponto de Cultura com várias
atividades artísticas durante o ano.
Mestre Batista no mundo do trabalho também exerceu funções de destaque e de
menos subordinação. Ganhara a confiança dos patrões, foi chefe de turma, empreiteiro,
aspectos reafirmados em suas narrativas e nas falas de pessoas próximas a ele. O mesmo se
dá com Mestre Biu Alexandre, dono do Cavalo Marinho de Condado (PE). Neste caso, a
função de feitor, cabo ou empreiteiro é lembrada por gerações. O filho, Aguinaldo,
rememora nas suas falas a função do avô e do pai, Biu Alexandre. Este valoriza em sua
narrativa sua experiência como feitor e relembra a mesma função de seu pai, Pedro de
Quina, pessoa também de referência sobre o folguedo do Cavalo Marinho. Seu Pedro
Alemão, dono do Caboclinho Cahetes, foi empeleteiro e também se tornou referência na
cidade de Goiana (PE). Genival Rufino da Silva627, brincante da Burra Reboladeira e
também morador de Goiana (PE), foi ajudante dentro da Usina Santa Tereza e, segundo ele,
entrou lá por causa do Pedro Alemão, mestre do Caboclinho Cahetes. Conta ele que ―lá seu
Pedro, que era empeleteiro, ensinou a arte do ofício‖.

626
Relatos registrados por John Murphy: http://web3.unt.edu/murphy/brazil
627
Depoimento de Genival Rufino da Silva concedido a Beatriz Brusantin. Goiana (PE), 8/11/2006.

398
Diante destas narrativas, contatamos que, por um lado, nas falas de Biu Alexandre e
Pedro Alemão, os quais foram feitores e empreiteiros, os embates e as negociações com os
proprietários, rendeiros ou usineiros existiram e foram necessários para eles melhorarem
suas condições de vida e de trabalho. Por outro lado, Aguinaldo Silva e Biu do Côco que
não ocuparam a função de feitor ou empreiteiro destacaram embates claros com as pessoas
que ocupavam essas funções em seus cotidianos de trabalho. Ambos, no entanto, trazem em
suas narrativas contradições: de um lado, reviveram valorizando a função social de
empreiteiro ou feitor das pessoas próximas a eles, e de outro, quando descreveram suas
atividades de trabalho, se remetem aos feitores e aos empreiteiros de forma negativa.
Observo estes fatos interpretando-os como duas construções individuais: uma com relação
às pessoas que realizam o folguedo e outra com relação ao mundo do trabalho. No entanto,
sabemos que estes mundos fazem parte de um todo: o próprio sujeito.
Verificamos que em todos os casos citados, os mestres, indivíduos de referência na
arte de brincar os folguedos da região, ao narrarem suas histórias - ou os outros ao falarem
deles - destacaram suas funções de trabalho como empreiteiro ou feitor, ao mesmo tempo
que valorizaram também a função cultural desses sujeitos dentro das manifestações. Sugiro,
desse modo, que a memória (aqui tomo o conceito de Pollack de que a memória é um
fenômeno construído628) então construída em torno dessas ―pessoas referências‖ constitui-
se por significados adotados em torno da função da pessoa dentro das manifestações
culturais e em torno da pessoa dentro do sistema de trabalho. Tanto os elementos culturais
como os sociais colaboraram para a solidificação de uma identidade entre os brincantes dos
folguedos. São elementos que criam (e criaram) nexos de pertencimento através da
valorização. Os mestres ao contarem suas histórias acreditavam que pontuar sua função
como feitor (―coordenador‖) ou empreiteiro valorizaria sua pessoa diante daquela situação
de entrevistado e talvez intensificasse a sua outra função: como mestre de Cavalo Marinho,
Maracatu ou outros folguedos. Assim, através da memória individual constituiu-se não só a
imagem de si para o outro, mas a imagem do outro (no caso dos filhos e netos que
destacavam as funções dos pais e avós ou dos conhecidos) para a construção de si.

628
POLLACK, Michael. ―Memória e identidade social‖. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 5, n. 10,
1992, p. 4 e 5.

399
Como expõe Michael Pollak, partindo do pressuposto de que a memória é um
fenômeno construído social e individualmente, quando se trata de memória herdada,
podemos também dizer que há uma ligação fenomenológica muito estreita entre memória e
o sentimento de identidade, no caso, o sentimento de identidade no sentido da imagem de
si, para si e para os outros. Isto é, a imagem que uma pessoa adquire ao longo da vida
referente a ela própria, a imagem que ela constrói e apresenta aos outros e a si própria, para
acreditar na sua própria representação, mas também para ser percebida da maneira como
quer ser percebida pelos outros.629

Nessa construção de identidade (...) há três elementos essenciais. Há a


unidade física, ou seja, o sentimento de ter fronteiras físicas, no caso do corpo da
pessoa, ou fronteiras de pertencimento ao grupo, no caso de um coletivo; há a
continuidade dentro do tempo, no sentido físico da palavra, mas também no
sentido moral e psicológico; finalmente, há o sentimento de coerência, ou seja,
de que os elementos que formam um indivíduo são efetivamente unificados.
Podemos portanto dizer que a memória é um elemento constituinte do
sentimento de identidade, tanto individual como coletiva, na medida em que ela
é também um fator extremamente importante do sentimento de continuidade e
de coerência de uma pessoa ou de um grupo em sua reconstrução de si.630

O autor conclui que ao assimilarmos a identidade social à imagem de si, para si e


para os outros, há um elemento dessas definições que necessariamente escapa ao indivíduo
e, por extensão, ao grupo, e este elemento, obviamente, é o outro. Na visão de Pollack,
ninguém pode construir uma autoimagem isenta de mudança, de negociação, de
transformação em função dos outros. ―A construção da identidade é um fenômeno que se
produz em referência aos outros, em referência aos critérios de aceitabilidade, de
admissibilidade, de credibilidade, e que se faz por meio da negociação direta com
outros‖.631 Vale dizer que a memória e a identidade podem ser perfeitamente negociadas, e
não são fenômenos que devam ser compreendidos como essências de uma pessoa ou de um
grupo. As narrativas, desse modo, construídas pelos brincadores acima, além de fazerem
parte de um sentido de coerência, de continuidade da comunidade de trabalhadores-
brincadores também fazem parte da constituição da identidade e da memória destes à luz de
processos de negociação com o outro, processos, estes, obviamente, históricos.

629
POLLACK, op. cit., 1992, p. 5.
630
Idem, op. cit.
631
Idem, op. cit.

400
E quanto à narrativa construída em torno da figura do patrão? No folguedo do
Cavalo Marinho, as relações entre patrão e empregado são claramente encenadas entre a
figura do Capitão Marinho com os negros Mateus e Bastião. Para John Murphy, como
vimos anteriormente, a manifestação servia como uma janela da visão moral de seus
participantes, onde há espaço para a punição de ―maus‖ patrões e empregados e o
reconhecimento dos ―bons‖. Ao citar mestre Batista, ressaltou que este afirmou em suas
falas o caráter do folguedo como de respeito e não de crítica. Há a punição dos
trabalhadores irresponsáveis e rebeldes, assim, a crítica é feita não ao ―bom patrão‖, mas ao
―mau patrão‖. John Murphy, reproduzindo estas falas, cita James Scott e defende a hipótese
de que os trabalhadores da cana através do Cavalo Marinho recriam uma estrutura de um
universo comum compartilhado, uma noção comum do que é justo. Murphy, ao citar Scott,
realiza um exercício analítico para o século XX que também vislumbramos para
compreender o século XIX, salvo as observações conjunturais. Murphy empresta as
discussões desenvolvidas por Scott sobre economia moral do camponês e de resistência
diária. Fala sobre o ―conteúdo velado‖, um reino do discurso que se fecha para as classes
dominantes, onde os dominados expressam seu descontentamento. Nas palavras de
Murphy, como se estes construíssem seu próprio universo moral, diferente do da elite.632
Assim,

Na visão moral articulada através do cavalo marinho os patrões são


razoáveis. Em lugar de ―um mundo de pernas para o ar‖ carnavalesco onde
servidores mandam em patrões, a vida do engenho no cavalo marinho é voltada
a evocar uma vida de engenho ideal – apenas com mais música e dança. 633

Murphy, citando Scott, coloca que é especialmente no campo da cultura que um


campesinato vencido ou intimidado deve nutrir sua teimosa divergência moral em relação a
uma ordem social criada pela elite. Para James Scott,

Este refúgio simbólico não é simplesmente uma fonte de consolo numa vida
precária, não simplesmente uma fuga. Ele representa um universo moral
alternativo em embrião – uma subcultura dissidente, existencialmente verdadeira
e justa, que ajuda a unir seus membros como uma comunidade de valores. (...)

632
MURPHY, op. cit., 2008, p. 133.
633
MURPHY, op. cit., 2008, p. 133.

401
Trançada no tecido do comportamento camponês, assim, seja na rotina normal
ou na violência de um levante, está a estrutura de um universo moral
compartilhado, uma noção comum do que é justo.634

Destaco as citações de Scott justamente porque as considero preciosas para


compreendermos nosso objeto de estudo no século XIX, durante a escravidão. Por hora, na
utilização de Murphy, considero que o autor talvez não tenha aprofundado tanto nas
conclusões de Scott. A meu ver, o conteúdo moral justo, compartilhado, também é um
discurso velado da realidade social existente. E no mais, compartilhado por quem
exatamente? Assim, apesar de Murphy apontar a hierarquia existente dentro da brincadeira
e, mesmo assim, evocar a manifestação como um compartilhamento comum de uma visão
moral dos patrões razoáveis, acredito que essas conclusões, embora interessantes, pecam
quando não interagem os aspectos culturais e sociais da conjuntura rural específica. Em
outras palavras, ao verificar que mestre Batista, grande interlocutor das conclusões de
Murphy, exerceu a função de empreiteiro, isso pode ter influenciado na noção do que de
fato significa a manifestação do Cavalo Marinho para todos os brincadores. No mais, o fato
de que entre mestres e donos de brinquedos da região da mata norte existiram muitos
feitores e empreiteiros, e que mais ainda, esse fato é valorizado nas falas de parentes e
próximos, nos mostra outros aspectos sócio-culturais comuns e compartilhados entre esses
sujeitos.
A manifestação cultural não é um hiato do real. Ela está inserida dentro do cotidiano
de seus participantes. Se na cena, mestres e capitães mostram o que gostariam de apresentar
sobre as relações entre patrões e empregados, e em suas narrativas pessoais, expressam que
em cena criticam apenas os maus patrões, talvez seja porque na vida, como feitores e
empreiteiros, suas relações patrão-empregado não sejam tão antagônicas e apenas de
embates. Em outras palavras, na ausência do senhor, o feitor mandava; na conjuntura
econômica usineira, quem contratava o trabalhador era o empreiteiro. Portanto, John
Murphy ao construir suas conclusões ele não está levando em consideração as narrativas de
trabalhadores rurais comuns, e sim ressaltou apenas a visão daqueles que foram no mínimo
mediadores das injustas relações patronais e são participantes dos brinquedos. Se como o
próprio autor pontua, há na brincadeira claras hierarquias, há na vida real também,

634
SCOTT, James C. The Moral Economy of the Peasant: Rebellion and Subsistence in Southeast Asia. New
Haven: Yale University Press, 1976, p. 167 e 240. Op cit. MURPHY, 2008, p. 134.

402
hierarquias e relações sociais autoritárias que fogem à forma bipolar: senhor-escravo e
patrão-empregado. Talvez mais do que nós acadêmicos explicarmos o outro, talvez eles
mesmos nos digam tudo. Assim, citando novamente o depoimento de José Lourenço do
sindicato de Aliança, com relação às festas, José Lourenço narra como acontecimentos bons
do passado vivido nos engenhos. Ele mesmo era tocador de viola. Porém, em sua fala, as
ocorrências das festas, as quais eram permitidas pelo patrão desde que avisadas e
negociadas, não são encaradas como conquistas e, ao mesmo tempo, nem como bondade do
patrão, afinal eles (os trabalhadores) ―não tinham mais nada mesmo‖. Claramente para ele,
―patrão é patrão sempre. Patrão não gosta de trabalhador, gosta do trabalho. E para o
trabalhador o castigo era o próprio trabalho‖. Assim, na visão de Lourenço, patrão é patrão
em qualquer espaço e lugar: só quer saber de trabalho, ainda que permitisse sob aviso
prévio e negociação a realização das festas.
O que está em jogo aqui são as identidades construídas em torno do trabalhador
brincador que em certos momentos precisou do sindicato e do trabalhador que teve parte
ativa nas lutas sindicais e gostava das festas. A conclusão não é a simples ideia de que os
participantes dos brinquedos são menos conscientes politicamente e socialmente que os
sindicalistas. Os embates e as negociações (fosse com proprietário, rendeiro ou feitor)
também ocorreram nas trajetórias de vida dos brincadores. As reflexões cruciais aqui são
como os participantes dos folguedos optaram por construir suas identidades, quais foram
suas referências sociais, como se apropriaram das divisões sociais advindas do mundo do
trabalho de forma consciente e seletiva e como, através dessas escolhas, formaram uma
identidade do trabalhador rural peculiarmente pautada também pelos aspectos culturais. De
outro lado, a experiência sindical trouxe outras identidades, outras reflexões, talvez mais
justas para os trabalhadores, mas, ao mesmo tempo, distanciou-se culturalmente de um
setor da comunidade da cana cujas pessoas representativas – donos e mestres - atuavam
como mediadores entre patrão e empregados. Com vistas em todas essas informações, será
que podemos concluir que as construções de identidade se fizeram apenas por meios
culturais? Ou podemos dizer que na verdade também se construíram através de uma
escolha consciente de querer pertencer a um grupo sócio-cultural determinado? Talvez aqui
ainda não alcancemos respostas definitivas, porém, de um caminho temos certeza: muitas
escolhas e afinidades conscientes foram feitas e isso possibilitou a construção de formas de

403
identidades diferentes dentro da classe dos trabalhadores rurais. Ao mesmo tempo,
provocou distanciamentos, afinal a análise depende muito do olhar e do ângulo que
percebemos esses trabalhadores da cana levantadores de bandeiras e artistas populares.
Em suma, para finalmente pôr um ponto (pelo menos aqui) no presente, o que
podemos dele aproveitar? É interessante perceber como a questão da negociação foi
expressa para entendermos o conjunto de ações destes sujeitos, quer na constituição de suas
memórias, quer nas suas narrativas do mundo do trabalho, quer na representação do patrão
na brincadeira. A constatação de que mestres e donos dos brinquedos populares serviam
como mediadores de patrões e empregados nas usinas e engenhos da zona da mata, que isso
é rememorado pela comunidade de brincadores e trabalhadores, e que dentro da
manifestação do Cavalo Marinho existe uma possível representação moral do patrão e
trabalhador, sugere-nos um ângulo de análise interessante dos brinquedos populares e seus
sujeitos no passado. Sem prévias conclusões, até mesmo para não entrar no risco do
anacronismo, a reflexão destes sujeitos no hoje (século XX e XXI) serve-nos de indicativo
de onde chegamos, porém, falto-nos entender mais sobre os processos. Sem pretensões de
buscar origens e continuidades, a proposta desta tese, e em especial deste capítulo, é
compreender o processo histórico de trabalhadores escravos brincadores de Cavalo
Marinho e Maracatu no século XIX, numa conjuntura histórica onde outros aspectos sócio-
culturais estavam em jogo e outros caminhos e propósitos de negociação foram ativados.
Nas palavras de E.P. Thompson, a história é uma disciplina do contexto e do processo: todo
significado é um significado-dentro-de-um-contexto e, enquanto as estruturas mudam,
velhas formas podem achar sua expressão em novas formas, e, citando Bloch, ―para o
grande desespero dos historiadores, os homens deixam de mudar seu vocabulário toda vez
que mudam seus costumes‖.635

4.4) Sobre as “origens”, os significados e as representações: relatos e interpretações


sobre os folguedos da mata norte pernambucana

Pesquisar a cultura popular leva-nos diretamente a acessar as fontes produzidas por


folcloristas. No nosso caso, folcloristas como Câmara Cascudo, Sílvio Romero, Mário de

635
E.P.Thompson. ―Folclore, antropologia e história social‖. In: NEGRO, Antônio Luigi e SILVA, Sérgio
(orgs.). As Peculiaridades dos ingleses e outros artigos. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2001, p. 243.

404
Andrade, Pereira da Costa, Ascenso Ferreira e Hermilo Borba Filho. Este procedimento,
todavia, não é algo simples e ingênuo. O próprio conceito ―folclore‖ é algo imbuído de
significações históricas. Autores como E. P. Thompson contam-nos como os pesquisadores
ingleses caminharam academicamente seus estudos sobre os costumes populares ingleses.
Suas reflexões servem-nos de exemplo.
Segundo Thompson, o costume e o ritual foram frequentemente encarados pelo
―cavalheiro paternal‖ a partir de cima e por cima de uma fronteira de classe, sendo ainda
divorciados de sua situação ou contexto. As perguntas dos folcloristas raramente
procuravam saber da sua função ou uso corrente. ―Antes, os costumes eram vistos como
relíquias de uma antiguidade remota e perdida, como ruínas desmoronadas de fortificações
e povoados antigos‖.636 A respeito da produção sobre o folclore na Inglaterra no
Oitocentos, Thompson coloca que sobreveio um interesse estritamente classificatório com
relação ao costume e ao mito, algo semelhante ao interesse taxonômico de outras ciências
oitocentistas. ―Costumes e crenças foram escrupulosamente examinados de acordo com
seus atributos formais e, então, essas propriedades formais foram comparadas transpondo-
se imensos abismos culturais e temporais‖.637 Para o autor, o encontro com a antropologia
salvou os estudos folclóricos nas universidades britânicas. Conta Thompson que no início
do século XX as coleções de canções folclóricas, danças e costumes na Inglaterra eram uma
causa abraçada por intelectuais de esquerda, mas, nos anos 30, essa simpatia se esvaeceu. A
ascensão do fascismo suscitou uma identificação dos estudos folclóricos com uma
ideologia profundamente reacionária ou racista. A partir de então, o interesse no
comportamento costumeiro tendeu a ser prerrogativa dos historiadores com perfil
conservador (e que no Brasil também podemos perceber estas influências). Visualizando
esta situação, Thompson propôs reexaminar o velho material há muito recolhido, mas fazer
novas perguntas, procurando recuperar os costumes perdidos e as crenças que os
embasavam.638

636
Thompson, E.P.. ―Folclore, antropologia e história social‖. In: NEGRO, Antônio Luigi e SILVA, Sérgio
(orgs.). As Peculiaridades dos ingleses e outros artigos. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2001, p. 232-
234.
637
Idem, op.cit.
638
Idem, op. cit.

405
Nesta perspectiva, Natalie Davis e E. P. Thompson em seus estudos,
respectivamente sobre charivaris e a rough music639, ampliaram as análises de antropólogos
e folcloristas, acreditando, sobretudo, que a importância desses rituais está em identificar
quais tipos de conduta (sexual, marital, pública) ofendem a comunidade e revelam também
suas normas. Propuseram, portanto, analisar os rituais não por suas possíveis estruturas
universais, mas por suas funções dinâmicas. Davis, por exemplo, busca mostrar que em vez
de mera válvula de escape, desviando a atenção da realidade social, a vida festiva pode, por
um lado, perpetuar certos valores da comunidade (até garantindo sua sobrevivência) e, por
outro, fazer a crítica da ordem social. Em busca dos homens e das organizações que
estavam por trás das festas, a autora seguiu dois modos para explicar a forma e o conteúdo
das festas: histórico e funcional. Tentou, sobretudo, relacionar a várias coisas: à história de
grupos de jovens, à história das formas sociais entre as camadas e ao problema da festa e de
640
suas funções. Por conta deste percurso, chegou à conclusão de que o ―desgoverno‖ foi
enriquecido dramaticamente e à sua velha função de manter a ordem da família foi
acrescida uma nova, a da crítica política.641
Thompson faz a descrição das formas, versos, significados e variações da rough
music. Porém, o autor propõe que ao invés de fazer uma espécie de botânica humana como
os folcloristas do XIX, a ideia é observar as evidências que as formas oferecem. Opondo à
análise estruturalista, em que os elementos míticos dos quais o charivari teria se originado
assume ascendência sobre o processo social e o substitui pela lógica formal, o autor sugere
que devemos também nos prevenir contra a desintegração das propriedades míticas num
empirismo variável de um caso a outro:

Entre o mito, de um lado, e a função, de outro, existe – citando Ginzburg –


a posição intermediária dos ritos representados e transmitidos. Aqueles que
representam esses ritos podem ter esquecido há muito tempo as suas origens
míticas. Entretanto, os próprios ritos evocam poderosamente os significados
míticos, mesmo que esses sejam compreendidos de modo apenas fragmentário e
parcialmente consciente. 642

639
Demonstrações barulhentas de mascarados para humilhar algum malfeitor da comunidade.
640
Abadias do Desgoverno era uma festividade que ocorria na França, no final da Idade Média e do século
XVI, na época do Natal e tinha como nome oficial a Festa dos Bobos.
641
DAVIS, Natalie. Culturas do povo. Sociedade e cultura no início da França Moderna. Rio de Janeiro, Paz
e terra, 1990.
642
THOMPSON, op. cit., 2002, p. 381.

406
Assim, para Thompson, os atores das festas empregam o vocabulário herdado
seletivamente por razões próprias e também condicionados pelas normas e papéis impostos
pela sociedade em que as pessoas atuam, vivem e se amam. Diante disso, os ritos talvez
sejam menos interessantes em si mesmos do que como ferramentas para desvendar os
segredos do código moral de uma sociedade. Existe, portanto, um jogo de significações
entre o público e o privado. Um processo que depende do equilíbrio de ―forças dentro de
uma comunidade, das redes familiares, das histórias pessoais, da espiritualidade ou da
estupidez dos líderes naturais‖.643 E por isso que compilar não basta, é necessário um
exame da história interna detalhada de alguns incidentes particulares, e de recuperar os seus
contextos.
Em nossa análise, tentaremos levantar alguns aspectos simbólicos que
pesquisadores e folcloristas recolheram sobre o Cavalo Marinho e o Maracatu de Baque
Solto. A maioria, todavia, faz parte de um repertório do século XX, com exceção de um
relato do Padre Lopes da Gama, de 1840. Vale ressaltar que a manifestação do Cavalo
Marinho nunca foi vista por seus relatores como um brinquedo diferente do Bumba meu
Boi. Estes sempre trabalharam – o Cavalo Marinho - como um personagem dentro do auto
do Boi, nunca como um brinquedo específico. Por outro lado, nas narrativas contadas por
seus participantes, estes afirmam que se trata de dois folguedos diferentes. Contudo, os
relatos do Boi coletados pelos folcloristas trazem os mesmos personagens bem como falas
semelhantes até hoje faladas e cantadas no Cavalo Marinho. Sabemos que historicamente
existiu o Boi pernambucano e também, historicamente, se brinca o Cavalo Marinho.
Acreditamos que são dois brinquedos diferentes com personagens parecidos, e que, em
alguns relatos, o observador podia estar presenciando um Cavalo Marinho, mas classificou-
o como Boi. No mais, o importante é que, nos relatos policiais de 1871, utilizou-se a
nomenclatura Cavalo Marinho para o brinquedo que os escravos estavam praticando. Esta
evidência nos comprova o fato de que o brinquedo existia desde esta época e com esta
denominação.

643
THOMPSON, op. cit., 2002, p. 387 – 390. O autor coloca que se por um lado a Rough Music doméstica
era socialmente conservadora, no sentido de que defendia o costume e a tradição de dominação masculina,
por outro lado, a Rough Music era sempre potencialmente subversiva, com seus ritos de inversão, suas
blasfêmias e obscenidades podiam adquirir significado social polêmico (p. 392).

407
As formas, os símbolos e as representações para nosso intento apenas serão
importantes se estabelecermos uma conexão com a conjuntura sócio-econômica e sócio-
cultural do século XIX. Assim, faremos um exercício duplo de interpretação. Das formas,
funções e símbolos para a história de seus sujeitos, e ao mesmo tempo, vice e versa, da
história para as representações. Salvo os possíveis descompassos temporais, nos
aproximaremos dos relatos que datam do início do século XX e XIX. No mais, também é
interessante exercitar a comparação, buscando, sobretudo, levantar novas questões e
salientar as especificidades espaciais e conjunturais.
Pensando um pouco sobre as origens do Maracatu e do Cavalo Marinho (ou Boi),
muitos folcloristas e pesquisadores tentaram explicar algumas possibilidades que mesclam
as tradições ameríndias, africanas, portuguesas, italianas.644
A respeito do Maracatu de Baque Solto, Olímpio Bonald acredita que surgiu como
variação do ―maracatu tradicional‖ ou ―urbano-antigo‖, sucessor dos autos dos congos na
Zona da Mata Norte de Pernambuco. Já os caboclos de lança – personagem do Maracatu -
teriam seu surgimento ligado à macumba, linha indígena da umbanda; seriam os filhos de
Ogum. Para o folclorista Roberto Benjamin, os maracatus rurais seriam uma variante do
Cambindas, folguedo composto basicamente por homens vestidos de baianas e com rosto
pintado, acompanhados por uma orquestra de percussão. Assim, já colocava Câmara
Cascudo, Cambindas ―foi a modalidade primitiva dos maracatus de Pernambuco‖.645 E para
o surgimento do caboclo de lança, o autor acredita que o lanceiro é a mesma figura do
Mateus, presente no Bumba-meu-Boi, com um progressivo enriquecimento dos motivos
decorativos e mudança de papel.

644
Ver ANDRADE, M. Danças Dramáticas do Brasil. Belo Horizonte, Ed. Itatiaia, 1982. CASCUDO, Luís
da Câmara. Dicionário do Folclore Brasileiro, Ediouro, Rio de Janeiro, 1998. BORBA FILHO, Hermilo.
Apresentação do Bumba-meu-Boi, Imprensa Universitária, Recife, 1966. REAL, Katarina. O folclore no
carnaval do Recife. Rio de Janeiro, Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro/ Ministério da Educação e
Cultura, 1967; PEREIRA DA COSTA, F. A. Vocabulário Pernambucano, Coleção Pernambucana, Recife,
1976. VICENTE, Ana Valéria. Maracatu Rural. O espetáculo como espaço social. Recife, Editora Reviva,
2005. BENJAMIN, Roberto. Folguedos e danças de Pernambuco, Ed. Fundação de Cultura da Cidade do
Recife, 2a Edição, Recife, 1989. BONALD NETO, Olímpio. Os caboclos de lança. Azougados Guerreiros de
Ogum. In: SILVA, Leonardo Dantas, SOUTO MAIOR, Mário(org). Antologia do Carnaval do Recife. Recife:
Fundaj, Massangana, 1991. FERREIRA, Ascenso. O maracatu, presépios e pastoris e o bumba-meu-boi.
Recife, Secretaria de Educação do Estado de Pernambuco, DSE/Departamento de Cultura, 1986.
645
BONALD, op. cit., 1991; BENJAMIN, op. cit., 1989; VICENTE, op. cit., 2005. FERREIRA, op. cit.,
1986.

408
Ainda sobre os caboclos, Katarina Real relaciona-os com os quilombos,
especificamente, o Quilombo de Catucá, localizado nas proximidades de Goiana (PE).
Segundo Real, ―esses lanceiros possivelmente sejam descendentes, legítimos ou pelo menos
sócio-culturais, do antigo Quilombo de Catucá ou de outros Quilombos existentes nas
redondezas de Goiana no século passado‖.646
No mais, Real e Bonald convergem quando definem a formação do Maracatu de
Baque Solto como uma fusão de elementos de vários folguedos populares existentes no
interior de Pernambuco: Pastoril e Baianas, Cavalo Marinho. Seria um produto do
sincretismo afro-índio gerado pela criatividade do povo canavieiro da Zona da Mata
Norte.647
De qualquer forma, Valéria Vicente destaca em seu livro que ainda não existe uma
data que marque o surgimento do Maracatu de Baque Solto, apenas existem hipóteses de
que nos fins do século XIX ele veio surgir. O mesmo acontece nos relatos de folcloristas
sobre as origens do Cavalo Marinho.
Roberto Benjamin, Câmara Cascudo e Mário de Andrade definem de modo geral o
Cavalo Marinho como vindo do Bumba meu Boi, sendo este, como coloca Benjamin, uma
variante dos Reisados. Na descrição de Benjamin, ele separa a manifestação do Bumba meu
Boi, que ocorreria em toda a zona da mata e litoral de Pernambuco e a do Cavalo Marinho,
que teria ocorrência na mata norte de Pernambuco e regiões limítrofes da Paraíba. Os
enredos dos dois se parecem, assim como os personagens são semelhantes (nos dois, por
exemplo, existem os personagens do Mateus, Bastião e do Cavalo Marinho, entre outros)
tendo a exceção de que no Cavalo Marinho ocorre a Dança do São Gonçalo dos Arcos, em
homenagem ao Santos Reis do Oriente. Ambos terminam com a morte e a ressurreição do
Boi.648
Atualmente, a manifestação denominada Cavalo Marinho aparenta ser uma mistura
do Bumba e do Cavalo Marinho descrito por Benjamin. O mesmo vale para a descrição
feita por Pereira da Costa no início do século XX do Bumba meu Boi ou Cavalo Marinho,
que contém toadas até hoje cantadas. Pereira da Costa, por sua vez, descreve o Bumba meu
Boi como uma forma do teatro hierático das festas populares do Natal e Reis. Em

646
Apud VICENTE, op. cit., 2005, p. 30. REAL, op. cit., 1990, p. 188.
647
Apud VICENTE, op. cit., 2005. BONALD, op. cit., 1991; BENJAMIN, op. cit., 1989.
648
BENJAMIN, op. cit.,1989; CASCUDO, op. cit.1872; ANDRADE, op. cit., 1982.

409
Pernambuco, todavia, era exibida não somente nessas épocas, como também em várias
ocasiões, principalmente pelo Carnaval e nas festividades religiosas de arraial. Considera,
assim, o Bumba como um drama pastoril.
Nenhum autor cita as datas dessas manifestações, isto é, desde quando se ouve falar
em Cavalo Marinho ou em Bumba meu Boi. Pereira da Costa e Hermilo Borba colocam
que as origens do Boi perdem-se no passado. Tradicionalmente associa-se às representações
que, desde a Idade Média, são dadas por ocasião da Festa da Igreja, mas as festas de bois
sempre existiram em vários outros países desde tempos. Segundo pesquisas de Cascudo,
podemos citar: quer de origem religiosa, quer de origem pastoril, desde o Boi Ápis, a vaca
Ísis, o touro Mnésio, o Boi Geroa, o Boi de São Marcos ao touro Guape ou Huaco. ―É um
nunca acabar de ligações, reminiscências, influências, afinidades‖.649 Como o próprio
Borba Filho coloca, vale ressaltar os ecos longínquos da commedia dell´arte. Neste caso,
além de vários personagens os quais se assemelham com a antiga comédia popular italiana
(o Arlequim, por exemplo), o folguedo do Boi também possui um soggeto, em torno do
qual são improvisados os diálogos, os lazzi.
Hermínio Borba Filho, por outro lado, não acredita na hipótese de que o Boi
pernambucano seja mais antigo que os outros Bois do Brasil (Amazonas, Maranhão, Ceará,
Rio Grande do Norte, Espírito Santo, Rio de Janeiro, Santa Catarina, Rio Grande do Sul).
Além disso, defende a ideia de que nos versos sempre são acrescentadas referências locais.
Já para Pereira da Costa os versos
Meu boi morreu,
Que será de mim?
Manda buscar outro
Lá no Piauí.

indicam que vem depois das descobertas e colonização das terras do Piauí, e da exportação
do gado ali cujo comércio começou entre fins do século XVII e princípio do imediato, uma
vez que as primeiras doações de terras em sesmarias para a situação de fazendas de criação,
naquele Estado, foram feitas pelo governador de Pernambuco em 1681, a cuja capitania
pertencia então o território piauiense. Essa circunstância unida às relações de vida
administrativa e de comércio do Piauí com Pernambuco parecem também indicar que o
poema é de origem pernambucana, acaso dramatizando depois para representações

649
BORBA, op. cit.,1966, p.13.

410
públicas. Ainda em apoio dessas nossas conjecturas vêm estes versos do coro do Cavalo
Marinho:

Cavalo Marinho
Dança bem baiano,
Bem parece ser
Um pernambucano.650

Quanto aos aspectos formais do brinquedo, Edison Carneiro afirma que o folguedo
é, em si mesmo, uma reivindicação – a da importância daqueles que lidam com o boi em
relação com seus beneficiários. Para o autor, se reduzirmos as pessoas do drama ao
estritamente essencial – isto é, o Boi, o Cavalo Marinho ou Capitão, o Mateus e o doutor –
veremos que o Mateus e o Boi, de que ele cuida, são os personagens verdadeiramente
atuantes, sem os quais o auto não poderia subsistir.651 Ascenso Ferreira, em suas
observações datadas de meados do século XX, supõe que o Cavalo Marinho simbolize os
antigos capitães-generais de Pernambuco, mas parece mais provável que se trate de um
proprietário rural, do senhor de escravos, pois na versão pernambucana mais moderna
aparece um engenheiro para lhe medir as terras e, tanto na antiga como na moderna versão,
Bastião e Catirina são escravos do Cavalo Marinho.652
Pelo viés histórico, acho interessante perceber o folguedo do Boi e suas variações e
representações sociais. Na Bahia, mais especificamente na comarca de Geremoabo, a
historiadora Joana Medrado, num estudo sobre as estratégias de ação e a cultura política
dos vaqueiros em relação aos fazendeiros, acabou observando a construção de um
imaginário por aqueles, principalmente através das narrativas sobre o Boi Misterioso (ou
Encantado, Mocambeiro, Ideado, Mandigueiro, Rezado, Curado ou Moleque) 653, sobre
habilidades mágicas do vaqueiro, além de valores como dignidade, honra, liberdade,
orgulho profissional. Reunindo informações da literatura de cordel, das entrevistas com
vaqueiros e do material recolhido por folcloristas, a pesquisadora percebeu que existia um
enredo central que permeava todas as fontes. Tratava-se

650
PEREIRA, op cit, 1974, p. 264-265.
651
CARNEIRO, Edison. Dinâmica do folclore. São Paulo, Martins Fontes, 2008, p. 30.
652
Idem. op. cit., p. 30.
653
MEDRADO, Joana. Terra, laço e moirão: relações de trabalho e cultura política na pecuária.
(Geremoabo, 1880 -1900). Dissertação de Mestrado, IFCH/UNICAMP, Campinas, 2008, p. 133.

411
(...) na constatação por parte do fazendeiro ou do vaqueiro da existência na
fazenda de um boi ou uma vaca misteriosos que o vaqueiro vê, mas não
consegue pegar para ferrar, imprimir no couro o domínio sobre o animal. Num
primeiro momento há uma tentativa de vencer a rês por parte dos trabalhadores
da própria fazenda, mas depois, tendo a vaca ou o boi conseguido escapar, são
convocados vaqueiros ―de fora‖ para o desafio. A narrativa costuma se
concentrar nessa busca, nos detalhes da correria, na malícia do gado, na destreza
do vaqueiro.654

Para a autora, embora algumas histórias fossem claramente ―irreais‖, hiperbólicas


ou cheias de imaginação, elas eram derivadas da vida real, do trabalho diário com o gado e
da relação estabelecida com o dono da fazenda. Por esse aspecto, não devemos fixar uma
dicotomia entre as narrativas ―reais‖ e as ―imaginárias‖ porque estas são a continuação
necessária daquelas. Assim, é muito provável que as histórias sobre bois encantados
exprimissem aspectos das estratégias de driblar as dificuldades cotidianas. A pesquisadora
observou que mesmo nos relatos sobre a lida com o gado, é comum o vaqueiro apelar,
quando não consegue explicar uma situação, para a existência de forças sobrenaturais, no
caso o encantamento do boi ou do vaqueiro que tivesse conseguido pegar o boi.655 Por fim,
Medrado considera que através da poesia e dos relatos sobre bois e vaqueiros misteriosos,
temos a oportunidade de compreender melhor os valores que sustentavam as relações
sociais e de trabalho na pecuária, principalmente um espaço privilegiado de valorização
cultural do vaqueiro.656
No caso do Cavalo Marinho, não encontramos a figura do Vaqueiro sempre
presente, como personagem principal do enredo, mas observamos duas correspondências:
constatamos a figura (personagem) específica do Vaqueiro, porém, a figura que se relaciona
mais diretamente com o Boi, domando-o inclusive, é o negro Mateus, que em algumas
narrativas traz uma denotação da imagem de um Vaqueiro.
Nas narrativas de Pereira da Costa, Mateus entra vestido de Vaqueiro, à sertaneja, e
armado de uma vara com ferrão, seguindo-se depois o Sebastião e o Fidélis conduzindo o
Boi. Rompe a cena o Cavalo Marinho dirigindo-se ao Arlequim:

Ó Arlequim

654
MEDRADO, op. cit., 2008, p. 128.
655
MEDRADO, op. cit., 2008, p. 139.
656
MEDRADO, op. cit., 2008, p. 152.

412
Ó pecados meus,
Vai chamar Fidélis
E também Mateus.
Ó meu Arlequim
Vai chamar Mateus,
Venha com o boi
E os companheiros seus. 657

Responde o Arlequim:

Ó Mateus, vem cá
Sinhô está chamando.
Traze o teu boi,
E venhas dançando.
-Só achei o Mateu,
Não achei Fidélis;
Bem se diz que negro
Não tem dó da pele 658

Dirige-se o Cavalo Marinho a Mateus e interroga-o: ―Ó Mateus, cadê o boi?‖. Entra


o boi, rompendo as cantadeiras em coro:

Vem, meu boi lavrado,


Vem fazer bravura,
Vem dançar bonito.
Vem fazer mesura.
Vem fazer mistérios,
Vem fazer beleza;
Vem mostrar o que saber
Pela natureza.
Vem dançar, meu boi,
Brinca no terreiro;
Que o dono da casa
Tem muito dinheiro,
Este boi bonito
Não deve morrer,
Porque só nasceu
Para conviver.659

Segue-se, então, uma toada com estes versos, ao som da qual dançam o Mateus,
Sebastião e Fidélis, rasgadamente:

657
PEREIRA, Francisco Augusto da Costa. Folk-lore Pernambucano. Recife, Arquivo Público Estadual, 1974,
p.280-285.
658
Idem, op. cit.
659
Idem, op. cit.

413
Toca bem esta viola
No baiano gemedô
Que o Mateus e o Fidelis
São dois cabras dançadô
No passo da Juriti,
Tico-tico, rouxinó,
Se Fidélis dança bem,
O Mateus dança milhó
Meu negro Mateus,
Dança o miudinho,
Para dar um gosto
Ao cavalo-marinho
(...) Eu fui dos que nasci
Na maré do caranguejo,
Quanto mais carinho faço
Mais desprezado me vejo.
Como sou filho do povo,
Tenho o dom da natureza;
Não sou feliz, mas bem passo
Com toda a minha pobreza,
Dança o boi, dança Mateus,
Dançam todos os vaqueiro,
Dançam que hoje nós temos
Grande festa no terreiro. 660

Ao terminar a última estrofe, grita Mateus, como que para interromper a


continuação da cantiga:

Pára, pára, pára!


Quero dizê um recado:
- Boio dançou, dançou,
Mai agora ta deitado!
E grita Sebastião:
Ah! Pracero meu!
Boi de sinhô morreu...
Responde Mateus:
A t‘embora, bobo,
O bóio divertiu muito,
Agora ficou cansado;
Toca bico do ferrão,
P‘ra tu vê como arrevira
E te dá no chão

Sebastião ferra o Boi, que não se move, e verificando Mateus que ele estava morto,
exclama:

660
Idem, op. cit.

414
Minha bóio morreu!
Que será de mim?
Manda buscar outro lá no Piauí.

O capitão, fulo de raiva, espanca o Mateus, e ordena-lhe:

Ó Mateus, vá chamar
O doutor para curar
O meu rico boi:
Quero saber do Fidelis
Para onde foi,
Ó Sebastião, vá a toda pressa,
Chame o capitão do mato,
Dê as providência
Que traga Fidélis
Na minha presencia.661

Assim, como na Bahia, o Boi possui certos mistérios, ao menos, certas mesuras,
belezas e encantos e veio para o terreiro dançar. Os negros também vieram para fazer sua
dança, Fidélis, Mateus e os vaqueiros vieram fazer bonito para o Cavalo Marinho. Mas tem
negro que não tem dó da pele, como diz o verso, e nem sempre se faz por obediente.
Portanto, mais do que o Boi que acaba morrendo na cena, Mateus e Fidélis é que são os
rebeldes do terreiro. Ao mesmo tempo em que desafia, também dança o miudinho para dar
gosto ao Cavalo Marinho. Porém, como cantam Mateus, Fidélis e Sebastião, quanto mais
carinhos fazem, mais desprezado se vêem, como são filhos do povo, têm o dom da
natureza, não são felizes, mas passam bem, com toda a sua pobreza.
A meu ver, são claras as referências ao cotidiano dos escravos e livres e seus
senhores nos engenhos. Cavalo Marinho como a figura do Capitão, do senhor, manda na
situação. O Boi próximo aos negros tem, sem encanto, seu valor, mas é Mateus, Fidélis e
Sebastião os grandes protagonistas e antagonistas da cena. Numa realidade diferente da
sertaneja onde a pecuária prevalecia, na monocultura da cana, a mão de obra escrava era
importante, essencial e, também, em alguns termos, bem submissa às condições precárias
de vida. Na cena, os negros aprontam e exibem sua esperteza de encantar, obedecer e
desobedecer, num complexo jogo de negociação direta com o senhor, algo bem possível na
realidade heterogênea da mata norte, com pequenos e médios proprietários. No mais, numa
realidade de não extensa pecuária, o Boi era mais utilizado para carregar ou como força
661
Idem, op. cit.

415
animal para moer a cana, logicamente sempre guiado por um trabalhador, negros e
escravos, os ditos, carreiros, bem comum na lista dos inventários post-mortem dos maiores
engenhos.
Quanto à literatura disponível sobre Bumba-bois brasileiros, concordo com André
Bueno que o vício de buscar raízes na episteme da ―civilização do couro‖ leva a pensar em
vaqueiros erigidos ao estatuto romântico de heróis culturais nordestinos. Com isso se
esquece a realidade mais antiga dos carros de boi canavieiros, com seus carreiros adultos e
candeeiros meninos. Segundo Bueno, há pouco ou nenhum carinho na aproximação com o
gado de criação extensiva para o abate, embora os vaqueiros sigam todo um princípio de
respeito como grande animal e desenvolvam aboios cantados. O boi de carro, por outro
lado, é muito mais doméstico, ele vive em contato com gente, em trabalho de tração
paciente.

É importante pensar no funcionamento do carro de boi colonial brasileiro:


compunha-se do carro, do boi e de dois trabalhadores escravos que o conduziam,
o carreiro e o candeeiro. O carreiro, adulto, carregava o material a ser
transportado e ia sobre o carro. O candeeiro, menino, ia caminhado ao lado do
boi sempre que era necessário guiá-lo, com sua vara de tocar, e, só de levantá-la,
o boi obedecia. Se ainda era madrugada ou já era noite, ele levava a candeia que
iluminava o caminho, senão o boi podia atolar com o carro num barreiro.662

Para Bueno, há diferença marcante entre a aproximação que o carreiro e o candeeiro


faziam com o boi doméstico e a que o vaqueiro faz com o boi indomado: o candeeiro tem
os pés no chão, mesmo nível do boi, e o vaqueiro trabalha a cavalo. E aquela relação mais
nivelada entre o homem e o animal é a que se desenvolve em primeira instância na
―brincadeira‖ do Bumba meu Boi do Maranhão e no Cavalo Marinho ou Boi
pernambucano. Ainda que haja a figura do Vaqueiro tanto no Boi maranhense como no
pernambucano, a realidade material e social é a do pé no chão. ―E o mesmo pé que anda
para trabalhar, dança o Bumba-meu-Boi, e vem dançando desde os tempos da escravidão‖.
663

Perceber, portanto, as nuances dessas manifestações do Boi no Brasil e assim,


também, os sujeitos que os praticavam ajuda-nos a compreender melhor estas

662
BUENO, André P. O bumba meu boi em São Paulo. São Paulo, Nankin Editorial, 2001, p. 66.
663
Idem, op. cit.

416
manifestações culturais como de fato produtos históricos. Assim, acredito que a
contribuição que a História Social pode dar a essa gama de fundamentos sobre as festas do
universo da cana é questionar, sobretudo, a apropriação destas pelos sujeitos diante as
circunstâncias históricas, pensar, primeiramente, significados para as festas e os
significados para as formas de resistência, de luta, de negociação e acomodação.
O teatro narrado por Pereira da Costa ainda continua, e mais a frente veremos o
desfecho; vale, por hora, reproduzir a cena do Doutor, que depois de ajustar com o Capitão
a cura, apontam-lhe o Boi, e ele furioso dirige-se ao Mateus:

Ó negro, teu desaforo


Já chegou aonde foi;
Quando tu me chamares,
É p‘ra gente, e não p‘ra boi

E o Mateus responde, batendo-lhe depois com uma bexiga cheia de ar:

Ah! Uê, Ah! Uê!


Troco miúdo
Tu vai recebê. 664

Mateus fortifica sua imagem de atrevido na relação com o Doutor, porém, o negro
faz questão de esclarecer que o contrato será cumprido, e o médico iria receber pelo
serviço. Este tipo de referência, isto é, a referência de contratos de trabalho, seu pagamento
e a relação de confiança em relações de serviço é vista em diversas situações no Cavalo
Marinho. Normalmente, o Capitão negocia os serviços com os negros Mateus e Sebastião,
inclusive numa negociação confusa sobre o valor, na qual Capitão e Mateus tentam enganar
um ao outro quanto ao valor a ser pago. Talvez, nada mais parecido com a realidade rural
da região canavieira da mata norte pernambucana, onde escravos se transformaram em
trabalhadores, e assim passaram de ―negociantes‖ da liberdade (como observamos no
capítulo 3 o quanto era expressivo o número de cartas de liberdade compradas com pecúlio)
a ―negociantes‖ de serviço com seus ex-senhores. A ―malandragem‖ dos negros Fidélis,
Bastião e Mateus foi algo social e culturalmente construído por conta da realidade ―sem
muitas opções‖ da região dos engenhos da mata norte de Pernambuco. Esta era a opção:
mediar, negociar, algumas horas aceitar, por outras, resistir. Afinal, como diziam as falas

664
Idem, op. cit.

417
do personagem Arlequim: bem se diz que negro não tem dó da pele. Eu diria, os negros
tinham muita força e vontade de resistir.
Quando exercitamos a análise comparativa da manifestação do Boi presente em
todo território brasileiro, bem como em outros países, novas questões aparecem, justamente
porque novas conjunturas sociais, políticas e econômicas são acessadas. No caso acima, a
realidade da comarca baiana de Gerimoabo traz relações sócio-econômicas de um universo
da pecuária, diferente da realidade canavieira da comarca de Nazareth em Pernambuco. O
imaginário e a arte, inseridos nestes reais, também representam outros mundos possíveis.
As diferentes criações dos personagens esclarecem bem estas peculiaridades.
Também fazendo uma análise comparativa com o Boi de Mamão realizado
tradicionalmente em Santa Catarina, uma das questões principais que pode ser abordada é a
reflexão sobre a função social dos trabalhadores açorianos e negros na sociedade
oitocentista nos dois Estados. Mais uma ponte entre o mundo do trabalho e das festas. Em
Pernambuco, o Bumba meu Boi tradicionalmente, segundo relatos de ex-moradores dos
engenhos da Zona da Mata Norte, acontecia no final da moagem: era a pejada. Terminada a
moagem, limpava-se a moita do engenho, retirando-se todo o olho de cana que ficasse.
Durante toda a noite os trabalhadores se divertiam, havia farta distribuição de bolacha e
aguardente. O feitor e o vigia estavam presentes para evitar qualquer excesso de bebida e
briga. O senhor de engenho comparecia com a família por algumas horas, prestigiando a
festa.665
Era, portanto, um teatro que se inseria no universo da cana, dos engenhos, da
produção do açúcar e das relações de trabalho escravista e paternalista na qual a mão de
obra negra era imprescindível. Em Santa Catarina não obtive informações se a
periodicidade da festa tinha uma relação estreita com a produção agrícola, porém, o enredo
do teatro popular é pautado no contexto rural.
Além disso, seus sujeitos também se assemelham. Nos dois estados ocorreram as
presenças dos açorianos, africanos e descendentes no trabalho rural e urbano. No caso de
Pernambuco, como afirma Marcus Carvalho, houve algumas tímidas tentativas de
promover a migração de trabalhadores endividados açorianos para Pernambuco na segunda

665
PEDROSA, Petronilo. Engenho bangue: termos relativos a instrumentos de trabalho, atividades e fatos da
vida social. Faculdade de Nazaré da Mata, Nazaré da Mata – PE, 1977.

418
metade da década de 1840. Aqueles trabalhadores embarcavam frequentemente sem
passaporte e comprometiam-se a pagar as passagens com a venda de seus serviços ao
chegar ao porto de destino. Dentro dos próprios navios, os açorianos eram escolhidos pelas
elites pernambucanas e, uma vez comprados os seus serviços pelo preço da passagem, eram
desembarcados. No entanto, as passagens custavam geralmente mais do que deveriam e os
salários oferecidos eram abaixo da média local. Além disso, queixavam-se as autoridades
portuguesas de serem os trabalhadores selecionados a bordo dos navios, sem nenhum
direito a escolha do patrão ou de um contrato melhor. Segundo Carvalho, a documentação
portuguesa refere-se, frequentemente, à importação dos açorianos como um verdadeiro
―tráfico de escravatura branca‖.666
Em Santa Catarina os folguedos relacionados ao Boi (farra do Boi e Boi de Mamão)
sempre foram vistos como uma forma de resistência cultural dos portugueses, portanto, dos
brancos. Vale ressaltar, no entanto, que ocorreu um movimento cultural de ―resgate‖ da
cultura portuguesa na década de 80 que pode ter levado a uma visão reforçada dessa
identidade.667 Certamente a cultura portuguesa, com seus carnavais, máscaras e bois, teve
sua importante participação na construção dos festejos do Boi em Santa Catarina. Todavia,
não podemos descartar a influência na brincadeira da cultura africana, mais especificamente
bantu e angolana.668
Focando sobre os sujeitos dessas brincadeiras catarinenses, um dado colhido pelo
pesquisador Sergio Ferreira nos chama a atenção. Como coloca o autor, em janeiro de 1843
foi preso um ―pardo praticando divertimento de boi fora do dia permitido‖.669 Os dias
permitidos eram os domingos e dias de santos, sobretudo, Natal e Páscoa. Fora desses dias
não eram permitidas práticas, o que hoje é chamado de Farra do Boi. Assim, ainda que a
nomenclatura tenha sido parda, acredito que, em Santa Catarina, negros se divertiam com o
Boi, ainda mais que, como veremos adiante, um dos instrumentos utilizados no folguedo
era a puíta, de origem bantu. No mais, outro aspecto interessante abordado por Ferreira foi
a questão dos outsides em certas freguesias em Santa Catarina. Segundo o autor, na cidade,

666
CARVALHO, Marcus Joaquim. A guerra dos Moraes (a luta dos senhores de engenho na praieira).
Dissertação Mestrado em História. UFPE, Recife, 1986.
667
Ver: FERREIRA, Sergio. Nós não somos de origem. Populares de ascendência açoriana e africana numa
freguesia do sul do Brasil (1780-1960). Tese de doutorado, UFSC, Florianópolis, 2006.
668
Ver PIAZZA, W. A. Escravidão Negra numa província periférica. Florianópolis, 1999.
669
FERREIRA, Sergio. op cit. 2006, p. 181.

419
no final do século XIX, o Boi na Vara, a Folia do Divino, o Terno de Reis e o Entrudo
foram proibidos. No entanto, nos arraiais e freguesias, a fiscalização era mais branda, os
jornais não tinham tanta influência, de modo que tudo isso permaneceu entre os ―ditos
açorianos fracassados‖.670
Em Pernambuco, o pesquisador Marcus Carvalho percebeu que entre 1830 e 1840
as mulheres dos estratos médios e altos eram cada vez mais vistas nas ruas do Recife. As
presepadas populares, os bumba-meu-boi e lundus, que tanto incomodavam os moralistas,
expressavam mudanças que alcançavam as camadas médias urbanas. A participação nesses
folguedos de mulheres que não eram negras nem escravas é um indício do afrouxamento
dos velhos costumes patriarcais de reclusão, que mesmo em declínio ainda teimava em não
desaparecer.671
Nesta perspectiva de análise, podemos observar o Bumba meu Boi de Recife como
um dos meios de expressão das camadas subalternas que almejavam se livrar das amarras
da moral e propor um novo costume. Um novo costume que abrangia mulheres brancas,
negras, negros, mestiços, mulatos, caboclos, trabalhadores do campo. Se pensarmos nas
mulheres, logo sugerimos que estas estavam atacando a sociedade patriarcalista vigente. E
se pensarmos no negro, no branco pobre, trabalhador rural da década de 40 do século XIX?
Uma sugestão, seguindo o raciocínio anterior, é perceber o folguedo do Bumba meu Boi
como uma forma representativa de resistência das pessoas pertencentes aos setores sociais
marginalizados da sociedade brasileira urbana e rural do Oitocentos, que, muitas vezes,
eram imperceptíveis aos olhos da elite branca e, às vezes, à primeira vista, invisível nos
documentos oficiais.
Partindo dos vestígios mais remotos sobre a manifestação em Pernambuco,
encontramos o relato do Padre Lopes da Gama no ano de 1840 em um artigo intitulado A
estultice do Bumba Meu Boi:

De quantos recreios, folganças e desenfados populares há neste nosso


Pernambuco, eu não conheço um tão tolo, tão estúpido e destituído de graça,
como o aliás bem conhecido Bumba-meu-Boi. Em tal brinco não se encontra em
enrêdo, nem verossimilhança, nem ligação: é uma agregado de disparates. Um
negro metido debaixo de uma baeta é o boi; um capadócio enfiado pelo fundo
670
FERREIRA, Sergio. op cit. 2006, p.46.
671
CARVALHO, Marcus de. ―De portas adentro de portas afora: trabalho doméstico e escravidão no Recife,
1922 – 1850‖. In: Revista Afro-Ásia, no 29/30 – 2003, p. 41

420
dum panacu velho, chama-se o cavalo-marinho; outro, alapardo, sob lençóis,
denomina-se burrinha; um menino com duas saias, uma da cintura para baixo,
outra da cintura para cima, terminando para a cabeça com uma urupema, é o que
se chama a caipora; há além disto outro capadócio que se chama o pai Mateus. O
sujeito do cavalo marinho é o senhor do boi, da burrinha, da caipora e do
Mateus. Todo o divertimento cifra-se em dono de toda esta súcia fazer dançar ao
som de violas, pandeiros e de uma infernal berraria o tal bêbado Mateus. (...)
Além disso o boi morre sempre, sem que nem para que, e ressuscita por
virtude de um clister, que despega o Mateus, coisa mui agradável e divertida
para os judiciosos espectadores. Até aqui não passa o tal divertimento de um
brinco popular e grandemente desengraçado, mas de certos anos para cá não há
bumba-meu-boi que preste se nêle não aparece um sujeito vestido de clérigo e
algumas vezes de roquete e estola para servir de bobo da função.
Quem faz ordinariamente o papel de sacerdote bufo é um bregeirote
despejado e escolhido para desempenhar a tarefa até o mais ridículo; e para
complemento do escárneo esse padre ouve de confissão ao Mateus, o qual negro
cativo faz cair de pernas ao ar o seu confessor, e acaba, como é natural, dando
muito chicotada no sacerdote. 672

Padre Lopes da Gama, o Carapuceiro como era chamado por conta da revista, não
era um religioso comum da sua época, como coloca Valente: faltava a caridade cristã, era
compulsivo e arrogante. Sem rédea nas línguas metia a boca nos costumes e por acidentes
na política, parafraseando seus escritos. Condenava o comércio de escravos, já em regime
de contrabando, e a propósito do cativeiro censurava o comportamento erótico do
escravizador e tudo o que fosse contra as leis, a Religião, os bons costumes e a saúde.673
A revista O Carapuceiro se encaixava nas publicações da época que faziam críticas
de costume usando e abusando do humor, das sátiras, das ironias e do grotesco. Possuía um
perfil liberal, porém com conteúdo moral. O número 1 foi publicado em 7 de abril de 1832
e a circulação foi até 1834. De 1835 a 1836 suas matérias foram divulgadas no Diário de
Pernambuco e em 1837 voltou a circular avulsamente até 1844. Como coloca Ivana Lima,
citando Gilberto Freyre, o período regencial brasileiro foi um momento de ―frequentes
conflitos sociais e de cultura entre grupos da população – conflitos complexos com
aparência de simplesmente político – que todo ele se distingue pela trepidação e pela
inquietação‖. 674

672
A estultice do Bumba meu Boi, Padre Lopes da Gama, O Carapuceiro, 11/01/1840. IAHGPE/Recife.
673
VALENTE, Waldemar. O padre Carapuceiro: crítica de costumes na primeira metade do século XIX.
Departamento de Cultura da SEEC, Recife, 1969.
674
FREYRE, Gilberto. Sobrados e Mucambos. Apud LIMA, Ivana Stolze. Cores, marcas e falas: sentidos da
mestiçagem no Império do Brasil. Rio de Janeiro, Arquivo Nacional, 2003, p.20.

421
Para a autora, seria genérico demais considerar as disputas políticas do período
como de inspiração liberal, sem considerar um aspecto da cultura política específica
daquele momento, isto é, de seus valores, comportamentos e experiências singulares: o fato
de que eram disputas, em torno da identidade, identidade de ―brasileiro‖ e, em segundo
lugar, uma identidade ―racial‖, referida às cores dos cidadãos. Porém, o tema das cores não
deve ser entendido não só como atributo físico; o sentido político do ―cidadão de cor‖, do
―brasileiro pardo‖ é muito mais rico e complexo do que a cor de pele. Cabe-se assim para
esse momento da história uma historicidade das percepções e classificações raciais. E
considerar os múltiplos sentidos da mestiçagem é considerar a rua, e eu acrescentaria as
matas.675
Nesse relato sobre o Bumba meu Boi é interessante explorar a crítica que os
personagens-atores fazem da figura católica e como o Padre narrador se incomoda com as
cenas. Cenas que mostram claramente o prestígio da figura do Mateus, representando um
negro, em contraposição com a imagem do clérigo que servia de bobo da função. Era uma
cena de conflito entre estratos sociais e também entre as ―cores‖ da sociedade. Por outro
lado, nos folguedos realizados nas matas dos engenhos da Zona da Mata Norte de
Pernambuco em 1871, segundo os relatos dos escravos, o Cavalo Marinho estava sendo
realizado em comemoração a um batizado. Neste caso, a religião católica se apresenta com
outros sentidos, alguns até repletos de entrelinhas.
Como um drama pastoril, o Bumba é uma teatralização do teatro: a ação não
acontece mais neste ou naquele lugar imaginário, mas no próprio lugar da função. Assim,
não se trata de um padre, mas de um ator representando um padre, numa farsa. Na farsa
brinca-se com as pessoas mais sérias, as de maior categoria social e nisto a farsa se
assemelha à tragédia onde os personagens mais altamente colocados são os que caem para,
por contraste, causarem maior impacto. A comunicação entre atores e espectadores faz-se
franca e informalmente, não só com palavras, mas com vaias e assobios. Isso dinamiza o
teatro uma vez que enriquece o espetáculo de novos elementos de atração substituindo de
elementos socialmente menos válidos por outros mais atuantes e mais condizentes com o
gosto e os interesses momentâneos da comunidade para o qual ele exibe.676

675
LIMA, op cit, p. 20.
676
BORBA FILHO, Hermílo. Apresentação de Bumba meu Boi. Recife, Imprensa Universitária, 1967.

422
Observando a forma do teatro do Bumba meu Boi pernambucano (ou Cavalo
Marinho), percebemos o quanto existia espaço no ato da cena para os seus atores
(trabalhadores) realizarem através da farsa críticas às autoridades religiosas e, às vezes,
propor alguma inversão das hierarquias sociais. Podemos verificar o mesmo no Boi
catarinense, e da comparação propor novas questões.
Em Pernambuco e em Santa Catarina, conforme a localidade e a época, utilizavam-
se um ou outro personagem. No geral, a estrutura se mantinha, porém, os detalhes se
inovavam, fato que nos leva a atenção justamente para o contexto que esses folguedos
aconteciam. Quanto à forma, é interessante perceber, por exemplo, o quanto em 1840, em
Pernambuco se valorizava a sátira e o deboche na figura do padre e o quanto a figura do
Capitão, ou do senhor ou do capitão do mato, é destacada em outro momento. Por outro
lado, em Pernambuco, a figura do negro sempre era encenada com o mesmo perfil: uma
figura esperta que toma conta da festa e do Boi e quer enganar o Capitão. Já em Santa
Catarina o personagem Mateus era um ajudante do Vaqueiro que trazia o Boi, fazia suas
toadas, brincava com o público, mas não realizava gestos de afronta direta aos seus
superiores. Seria isso alguma representação da subordinação social?
Um bom exemplo para pensarmos essa questão é analisarmos as duas toadas
observadas em 1871 na ilha do Desterro e em 1906 na Zona da Mata Norte de Pernambuco.
Nessas passagens há uma inversão: a figura do Cavalo Marinho (Capitão) em Pernambuco
substitui a figura do Boi em Desterro, ou vice e versa. Em Desterro, José Boiteux descreveu
que Pai Mateus ao entrar em cena cantava:

Vem meu boi malhado


Vem fazer bravura
Vem dançar bonito
Vem fazer mesura
Vem dançar, meu boi.
Brincar no terreiro
Que o dono da casa tem muito dinheiro.677

Nas narrativas de Pereira da Costa sobre o folguedo pernambucano, observamos que


a figura do Cavalo Marinho dança a toada:

677
BOITEUX, José. Águas passadas. In: SOARES, Doralécio. Boi de mamão catarinense. Cadernos de
Folclore 27,Rio de Janeiro, FUNARTE, 1978.

423
Cavalo Marinho
Dança no terreiro,
Que o dono da casa
Tem muito dinheiro.
Cavalo Marinho
Que o dono da casa
Tem galinha assada,
Cavalo Marinho
Dança no tijolo,
Que o dono da casa
Tem cordão de ouro.678

Aqui talvez façamos a pergunta óbvia: por que em Santa Catarina o Boi dança a
toada de mesura para o dono da casa que tem muito dinheiro e em Pernambuco quem faz
esta dança é o personagem do Cavalo Marinho?
No universo simbólico das nomenclaturas, vale refletir sobre as imagens do animal
boi e do animal cavalo no universo da cana. Segundo interpretações de Gilberto Freyre,

A cultura da cana, no Nordeste, aristocratizou o branco em senhor e


degradou o índio e principalmente o negro, primeiro em escravo depois em
pária. Aristocratizou a casa de pedra-e-cal em casa-grande e degradou a choça
de palha em mocambo. Valorizou o canavial e tornou desprezível a mata.
Nesse sistema de relações que dividiu os homens e as suas habitações e a própria
paisagem, em metades tão diferentes e até antagônicas, pode-se dizer, para efeito
de generalização, que o cavalo ficou no primeiro e o boi no segundo grupo. E
estes foram os dois grandes animais da civilização da cana de açúcar no
Nordeste do Brasil.
Sem o cavalo, a figura do senhor de engenho do Nordeste teria ficado
incompleta na sua dignidade de dono de terras tão vastas e na sua mística de
fidalgo de casas-grandes tão isoladas. Incompleta nos seus movimentos de
mando, nos seus gestos de galanteria, nos seus rompantes guerreiros679 (grifos
meus).

No universo simbólico dos engenhos de cana de açúcar, Freyre destaca de forma


interessante ao colocar a imagem do boi e do cavalo como representantes de classes sociais
diferentes. Acredito que ainda que Freyre venha banhado pela lógica do paternalismo, da

678
PEREIRA, Francisco Augusto da Costa. Folk-lore Pernambucano. Recife, Arquivo Público Estadual,
1974, p. 268.
679
FREYRE, Gilberto. O Nordeste do Açúcar (crônica -1937). RIEDEL, Diaulas. IN. Os canaviais e os
mocambos. Paraíba, Pernambuco e Alagoas. São Paulo, Editora Cultrix, 1975.

424
rígida divisão entre dominados e dominadores, desenvolvida em Casa Grande & Senzala, a
figura dos animais podia realmente ser relacionada com a hierarquia vigente.
Em A presença do açúcar na formação brasileira, Freyre coloca que

O escravo vindo da África não encontrou aqui melhor companheiro do que


o boi para seus dias mais tristes. Para os seus trabalhos mais penosos. Quando
depois o boi associou-se também aos dias alegres do negro de engenho - os de
dança, de cachaça, de festa- na figura do bumba meu boi - é natural que o negro
tenha feito desse drama popular um meio de expressão de muita mágoa
recalcada: a glorificação do boi, seu companheiro de trabalho, quase seu irmão.
Já houve quem enxergasse no bumba meu boi a sátira dolorida do negro e do
índio oprimido contra a prepotência do branco talvez haja aí exagero e um pouco
de retórica. 680

Ainda que possa existir um pouco de exagero na relação feita por Freyre entre o
negro e o boi, ainda assim, podemos perceber que a imagem para o branco do Bumba meu
Boi é a glorificação da figura do Boi, sua exaltação e sua apologia. E seguindo a lógica do
autor, se a figura do Boi estava estritamente ligada com a do escravo ou negro, o auto
realizava-se como uma festividade próxima a essa classe social.
Para Freyre, a imagem do cavalo fica clara no verso Cavalo Marinho, maricas meu
bem, parafraseando um trecho na poesia do Bumba pernambucano. Segundo o autor, no
cavalo ele sente o animal meio maricas do senhor; o animal cheio de laços de fita e
mesureiro, o animal urbanizado, civilizado e capaz de graças e mesuras. Na visão do autor,
essa imagem ultrapassa o drama do Bumba meu Boi e também se transparece nos nomes
dados para cavalos e bois nos engenhos nordestinos. Para cavalos, nomeia-se: Marajá, Rajá,
Príncipe, Guararapes, Sultão, Capitão, Bonaparte, Serinhaém, Monjobem Maipió; para os
Bois, em geral, Meia Noite, Malunguinho, Muleque, Tranquinho, Veludo, Desengano.
Assim, para o autor, fica claro que se identificava o boi com o escravo negro e o cavalo
com o senhor.
Ainda em cima dessas considerações, podemos nos aprofundar no assunto se
acrescentarmos à visão de Gilberto Freyre o conceito sobre paternalismo desenvolvido por
E. P. Thompson onde longe está de uma noção de metades sociais opostas onde as relações
são construídas de forma unilateral e generalizadas, e sim a partir de uma construção
cultural ambivalente e contextual. Em outras palavras, a forma como acontecia o folguedo
680
FREYRE, op. cit. 1975, p. 41 e 42.

425
do Boi ou do Cavalo Marinho evidencia o universo social e político dos engenhos de cana
de açúcar pernambucanos. Um universo onde as relações sociais entre senhores e
trabalhadores ocorriam de formas hierárquicas, mas não com uma divisão cultural
independente, sem influências entre dominados e dominadores, relações sociais que se
faziam à luz do processo histórico. Melhor dizendo, como expõe Thompson, podemos
definir o controle nos termos da hegemonia cultural. Porém, isso deve significar não
renunciar ao intento da análise, e sim arquitetá-la para os tópicos necessários às imagens de
poder e autoridade e às mentalidades populares de subordinação.681 É interessante perceber
que não eram poucos os processos crimes na região da Zona da Mata Norte de Pernambuco
que envolviam roubos de cavalos. Provavelmente, bois também eram roubados, no entanto,
provavelmente, no ―status quo‖ real e imaginário, o cavalo carregava um signo social de
poder mais do que a figura do boi.
Remetemos aqui a referência dos nuers da África Ocidental pela historiadora Joana
Medrado. Segundo a autora, ao citar o trabalho de Evans-Pritchard, o povo nuer,
eminentemente pastoril, considerava o gado o bem mais prezado por ser fonte de alimentos
essencial e a posse social mais importante, a ponto de ser motivo máximo de orgulho entre
os nuer expor seu gado.

Além disso, os animais viviam em íntima associação, inclusive física, com


os indivíduos e estava presente nos nomes das pessoas, nas palavras e
expressões, no folclore, na alimentação e vestuário, sendo o gado, ‗em si mesmo
uma finalidade cultural‘. Toda a observação sobre valores ou comportamento
social era feita em função do gado, a ponto de Pritchard considerar o ‗idioma
social‘ dos nuer como um ‗idioma bovino. 682

Ainda aproveitando o parecer de Freyre, o autor afirma que, sem o cavalo, a figura
do senhor de engenho ficaria ―incompleta nos seus movimentos de mando, nos seus gestos
de galanteria, nos seus rompantes guerreiros‖. De fato, no folguedo do Cavalo Marinho, a
figura do Boi é representada como animal (um homem embaixo de um artefato de boi) e a
figura do Cavalo Marinho pelo cavalo e seu cavalheiro, o Capitão. Cavalo e homem juntos
constroem a imagem.

681
THOMPSON, op. cit. 2001.
682
MEDRADO, op. cit., 2008, p. 145 e 146.

426
Por outro lado, no Cavalo Marinho, o núcleo do teatro é justamente o baile dos
agaloados ou galantes. Segundo Benjamin, talvez, uma reminiscência dos guerreiros. Os
galantes, todavia, não usavam espadas. Eles dançavam em par com as damas, diziam loas,
faziam louvações e bailavam a Dança do São Gonçalo dos Arcos, que na verdade é uma
variante brasileira do São Gonçalo do Amarante realizada em Portugal desde a Idade Média
e que existiu no Brasil até início do século XX. 683
Com relação à reminiscência dos guerreiros, é interessante estabelecermos uma
conexão com a dinâmica e os personagens do Maracatu de Baque Solto. Como coloca
Benjamin, antes da saída do grupo no Maracatu se processa uma cerimônia de recepção,
chamada de trincheira:

Os primeiros integrantes chegados, o mestre e a orquestra, formam um


pequeno grupo tendo ao centro o estandarte. Cada folgazão que se aproxima faz
grupo movimentar-se como se fosse defender o estandarte de um ataque
iminente. Os lanceiros agitam as lanças, jogam pra cima e para baixo em dança
guerreira. O recém-chegado se aproxima também de modo violento. Depois
pára. É identificado como membro do grupo pelo mestre, que o saúda, com
versos improvisados. Ele então, se aproxima e confraterniza. A cena se repete
para cada um que chega, até que se decida a hora de sair. 684

A escolha desses dois folguedos para esta pesquisa ocorreu justamente pelo costume
de que seus sujeitos são os mesmos. Isto é, quem brinca Cavalo Marinho também se
apresenta no Maracatu – prova disso vem também do relato policial de 1871 no qual
escravos estavam brincando Maracatu e Cavalo Marinho na mesma noite. As duas
manifestações têm suas relações não apenas na forma, mas com envolvimento de seus
participantes. Perceber, assim, a relação de significações guerreiras em ambos os folguedos
talvez possa nos dizer algo sobre os significados culturais construídos por seus sujeitos, isto
é, negros, escravos ou livres.

683
BENJAMIN, p. 56. Diferente então dos outros reisados de boi do Nordeste, os galantes não representavam
de fato os guerreiros-cristãos. É uma variante que simboliza a louvação a São Gonçalo do Amarante.
Reminiscências católicas portuguesas, porém, tratava-se de uma festa religiosa peculiar e que foi proibida em
Olinda (PE) pelas autoridades eclesiásticas, a começar de 1816 porque, segundo Pereira da Costa, os europeus
censuravam esses bailes como indecência indigna do templo de Deus (PEREIRA, Op. Cit., 1974, p. 197).
684
BENJAMIN, op. cit., 1989.

427
Com referência às influências africanas nestes folguedos, acredito que seja possível
uma apropriação da festa do Boi por africanos vaqueiros, no caso da África central 685, mais,
especificamente povos do sudoeste da Angola, para expressarem possíveis contestações ao
sistema e/ou cultivarem materiais culturais de seus ancestrais como, por exemplo, a música
e seus instrumentos (ganzá, bajo), suas falas ou no uso de máscaras.686
Quanto às máscaras, vale ressaltar sua possível influência portuguesa. Na verdade,
como coloca Benjamin Pereira, a máscara é um elemento que se encontra amplamente
representado em todos os continentes – África, Mundo Antigo, Ásia clássica, América Pré-
Colombiana. No entanto, ressalta o autor, que as máscaras portuguesas para lá de certas
semelhanças meramente formais, nada têm que ver com as máscaras de povos que situam
fora do continente europeu. Assim, para Pereira, as máscaras portuguesas entram em uma
categoria que ela classifica como complexo europeu das máscaras:

De caráter ritual, cultual e profano, às máscaras européias, além do seu


sentido lúdico mais sensível, apontam-se três finalidades específicas
fundamentais: propiciatórias, apotropaicas, profilácticas; e com elas concorrem
vários elementos: peditórios, rituais, comportamentos obscenos, aspersões com
água e cinza, combates, danças barulhentas de campainhas e chocalhos, roubos
cerimoniais, etc. Por vezes, elas integram-se em cerimônias que assumem
caráter de verdadeiras representações dramáticas e, através de trajes e atributos
prefiguram seres sobrenaturais.687

Em Portugal tradicionalmente são realizadas por mascarados as seguintes


festividades: Festas dos Rapazes; Festas de Santo Estevão, Festas do Natal, Ano Novo e
Reis, Carnaval, São João e São Pedro. Alguns aspectos são semelhantes com as
manifestações do Brasil que estamos estudando. As festas possuem datas semelhantes,
como a Festa dos Rapazes que se inicia na noite de Natal e vai até dia de rei, 6 de janeiro,
período também de costume do Cavalo Marinho. A presença de ―personagens‖ como a
Velha e o Velho nas Festas do Natal, Ano Novo e Reis assemelha-se com as figuras do
mesmo nome no folguedo do Brasil e o mascarado ―Chocalheiro‖, que em Portugal possui
aspectos demoníacos, carrega uma bexiga cheia de ar, muito parecida com a bexiga que o

685
Ver artigo de FLORENTINO, M. & VIEIRA RIBEIRO, A. & DOMINGUES DA SILVA, D. ―Aspectos
comparativos do tráfico de africanos para o Brasil (séculos XVIII e XIX)‖. IN: Afro-Ásia, no 31 –2004, p. 83.
686
Segundo o próprio Gilberto Freyre, Artur Ramos coloca o Bumba meu Boi como uma remota origem
bantu.
687
PEREIRA, Benjamin. Máscaras portuguesas. Lisboa, Museu de etnologia do Eltramar, 1973, p. 11.

428
negro Mateus do Cavalo Marinho também leva consigo. Quanto ao material, as máscaras
portuguesas são feitas de cortiça, madeira, lata e couro. As máscaras do Cavalo Marinho
―tradicionalmente‖ são feitas de couro e em raros casos de papel machê. Estas poucas
semelhanças apenas servem como um exercício superficial de comparação. Pode significar
alguma evidência sobre possíveis influências, mas não geram pistas reais e concretas,
todavia, não deixam de se constituir como possíveis influências.
Há, no entanto, um fato curioso, que é a ausência da máscara. Os únicos
personagens que não usam a máscara, além dos galantes e do capitão, são os negros:
Mateus, Bastião e Catirina. Ao contrário, eles pintam a cara de preto (atualmente com água
e carvão). A pintura é também uma tradição presente em algumas culturas africanas. Nos
estudos, por exemplo, de Reid de Mitchell sobre o carnaval afro-creole em New Orleans do
século XIX e início do XX, podemos encontrar representações da cultura afro-creole, e
entre as manifestações, o Rei do Velório (festividade que ocorria no século XIX), no qual o
autor salientou referências estéticas africanas através de ―contorções‖ e ―caretas‖, estéticas
também presentes no Cavalo Marinho principalmente no personagem do negro Mateus.
Este mesmo personagem também se encaixa com os zulus de New Orleans. No dia do
Mardi Gras, no século XX, no desfile do Clube Zulu de Ajuda Mútua e Diversão (uma
organização de trabalhadores negros):

(...) os zulus – homens negros com o rosto pintado de preto – ridicularizavam os


estereótipos brancos e devolviam aos negros de New Orleans sua própria realeza
– o rei dos zulus tradicionalmente se vangloria – ‗ jamais houve e jamais haverá
um rei como eu‘. O Rei do Velório reaparecia como o rei dos zulus.688

Além dessas informações formais e estéticas interessantes para o nosso trabalho, o


artigo de Mitchell que tem como objetivo central pesquisar a persistência do carnaval do
povo negro (diferente do carnaval da elite negra) iniciando em 1823 com o Rei do Velório
sugere-nos uma visão analítica das manifestações de negros africanos ou afro-americanos
na América. Para ele, no Rei do Velório a retenção de formas africanas entre negros torna-
se clara, assim como sua apreensão de um feriado branco para seus propósitos. O
surgimento, no final do século XIX, dos índios do Mardi Gras mostra esta sensibilidade

688
MITCHELL, Reid. Significando: carnaval afro-creole em New Orleans do século XIX e início do XX. In:
CUNHA, M. C. Carnavais e outras f(r)estas. Campinas, Ed. Unicamp, 2005, p. 62.

429
negra integrando elementos americanos a tradições africanas e criando uma nova forma
cultural. Já a invenção, no início do século XX, do Zulu, um desfile que comentava
diretamente as atitudes brancas em relação aos negros e o próprio carnaval branco, pode ser
vista ―significando: a repetição e revisão, ou a repetição com uma notável diferença de
sinal; neste caso, a repetição e revisão negras de formas culturais brancas‖.689
Acredito, neste sentido, que o Boi ou Cavalo Marinho, bem como o Maracatu, pode
ter seguido um percurso semelhante de repetição, revisão, inovação de materiais culturais
africanos, portugueses, indígenas e brasileiras. No entanto, também propondo uma
ressignificação negra de formas culturais brancas. Neste sentido, remetemos às discussões
sobre a presença da cultura africana nas Américas e os processos de ―crioulização‘,
―aculturação‖ e transculturação‖ aprontadas por Mintz e Price, Lovejoy e Robert Slenes.
Mintz e Price, num trabalho datado da década de 70, um momento, portanto, sem
grandes pesquisas empíricas, propuseram a desconstrução do conceito holístico de cultura
que pode mascarar os processos implicados nas continuidades e descontinuidades entre a
África e as Américas. Para os autores, os africanos que chegaram ao Novo Mundo não
compuseram grupos logo de saída. Muitas vezes, formaram multidões heterogêneas.
Apenas formam comunidades através de processos de mudança cultural. Ganhou forma
com a criação de padrões normativos de conduta, e tais padrões só podiam ser criados com
a base em determinadas formas de interação social.690 Segundo eles, os escravos eram
transportados por membros de grupos étnicos de status diferentes, eram sacerdotes e
sacerdotisas, mas não carregaram sistemas de status diferentes ou o corpo sacerdotal e os
templos. Na América, a tarefa organizacional foi justamente criar instituições. Assim,
conclui Mintz e Price: ao delinear a diferença entre essas instituições 691 e os materiais
culturais de origem africana o que se torna relevante é a distinção entre o que é "social" e
que é "cultural".692 E a partir daí pensar a cultura em termos de relações interpessoais que
fazem a mediação dos materiais culturais. Nessa linha de pensamento, Price e Mintz
acreditam que a interpretação adequada dos processos de formação cultural deve começar

689
MITCHELL, op. cit., 2005, p. 42.
690
PRICE, R. & MINTZ, S. O nascimento da cultura afro-americana - uma perspectiva antropológica. Rio
de Janeiro, Pallas, Universidade Candido Mendes, 2003, p. 37
691
Aqui entender instituição como qualquer interação social regular ou ordeira que adquira um caráter
normativo e, por conseguinte, possa ser empregada para atender a necessidades reiteradas (PRICE & MINTZ,
2003, p. 43).
692
Idem, op cit, 2003, p. 38.

430
por um exame criterioso do que se conhece sobre os pontos de contato entre escravizados e
livres e sobre os tipos de instituições (domésticas, econômicas, religiosas e políticas)
desenvolvidas por cada grupo para favorecer seus interesses.693
Esta visão foi contestada por alguns estudiosos como Paulo Lovejoy que em um
artigo intitulado ―The African Diaspora: Revisionist Interpretations of Ethnicity, Culture
and Religion under Slavery‖ fez severas críticas contra a ―crioulização‖ exposta em alguns
estudos sobre a diáspora africana. O autor é completamente contra a visão de que os
africanos escravizados em geral não partilharam da mesma cultura, crenças religiosas,
linguagens e estruturas sociais em demasia suficiente para influenciar as economias e as
sociedades das Américas mais do que apenas ocasionalmente. Segundo Lovejoy, a visão da
―escola da crioulização‖ enfatiza a necessidade que os africanos escravizados tinham em
gerar mecanismos de defesa para proteger-se da brutalidade arbitrária da escravidão, ou
seja, a ―crioulização‖ foi essencialmente uma reação à escravidão.694 Lovejoy defende que
a busca da história africana na diáspora demonstra como os escravos podiam criar um
mundo que foi em grande parte autônomo do branco (sociedade europeia). Citando
Melville Herskovits, o autor salienta que é possível identificar ―sobrevivências‖ ou
―africanismos‖ que ligam as pessoas à sua ascendência africana a um comum, embora
vago, antecedente. É prematuro dizer, portanto, que não houve contínua experiência
histórica para os escravos africanos que vieram para a América. Para Lovejoy, os africanos
escravizados foram vítimas de sua situação, mas ainda eram agentes da sua própria
identidade dentro dos limites da escravidão.695 Para ele, o desafio consiste em corrigir o
eurocentrismo que dominou os estudos de escravos (e que estaria embutido no conceito de
crioulização), estabelecendo o significado específico de ―sobreviventes‖ no contexto
histórico. Assim, destaca que se a histórica africana detém a chave da diáspora,
consequentemente, o estudo da diáspora deve começar na África, não na América ou em
outro lugar. O autor enfatiza, por exemplo, que algumas atividades culturais, como os
carnavais, oferecem possibilidades para identificar e isolar as conexões histórias em curso
entre os africanos nas Américas e na África. Desse modo, a sugestão dele é corrigir os

693
Idem, op cit, 2003, p. 55.
694
LOVEJOY, Paul. ―The African Diaspora: Revisionist Interpretations of Ethnicity, Culture and Religion
under Slavery‖. Studies in the World History of Slavery, Abolition and Emancipation, II, 1, 1997.
695
Idem, op. cit.

431
estudos que vislumbraram a marginalidade da África para o desenvolvimento da diáspora, e
assim, o processo de ―crioulização‖. Em sua opinião, os escravos diante a escravidão nas
Américas reinterpretaram questões e instituições africanas buscando dar sentido às suas
condições e estabelecer uma nova identidade na diáspora. Essa identidade, por sua vez,
teria começado no contexto dos acontecimentos e experiências na África.696
Price, em artigo intitulado ―O milagre da crioulização retrospectiva‖, contra ataca as
considerações de Lovejoy, acusando-o até mesmo de uma retórica ―afrocêntrica‖ que
estaria em voga e serve, infelizmente, para polarizar e inflamar, desviando estudiosos e
alunos dos desafios propriamente históricos que nos confrontam.697 Sem entrar em muitos
detalhes desta discussão, até mesmo porque concordo com Robert Slenes quando coloca em
uma nota de rodapé em ―A Great Arch Desecnding...‖ de que a polarização exposta entre
Africanismo cultural e crioulização, expressas por Lovejoy e Price, não nos serve de grande
utilidade698, é importante ressaltar que Price tenta retomar o modelo exposto em M&P,
reparando algumas críticas a este trabalho feitas, por exemplo, a afirmação de J. Thornton
sobre haver ―uma confusão cultural postulada pelos que vêem a diversidade africana como
barreira ao desenvolvimento de uma cultura americana baseada na África. 699 Defende-se
Price dizendo que apresentou sistematicamente a diversidade cultural africana como um
incentivo ao sincretismo e à crioulização inter-africanos. No mais aponta que Thornton
afirma ainda que, nas grandes plantations das Américas, ―os escravos, tipicamente, não
tinham dificuldade de encontrar membros de sua própria nação com quem se comunicar‖700
e que ―o tráfico de escravos e a transferência subsequente para as plantations do Novo
Mundo, portanto, não foram um processo tão aleatório quanto o postulado pelos que
afirmam que os africanos tiveram que partir do zero, em termos culturais, ao chegarem ao

696
Idem, op. cit.
697
PRICE, R. ―O milagre da Crioulização Retrospectiva‖. Estudos Afro-Asiáticos, Ano 25, no 3, 2003, p. 389.
698
SLENES, R. A ―Great Arch‖ Descending: Manumission Rates, Subaltern Social Mobility and Slave and
Free(d) Black Identities in Southeastern Brazil, 1791–1888. In: John Gledhill e Patience Schell, orgs.,
Rethinking Histories of Resistance in Brazil and Mexico (Durham, North Carolina: Duke University Press, no
prelo), nota 11, p. 23.
699
THORNTON, J. Africa and Africans n the making of the Atlantic World, 1400 – 1800. Cambridge,
Cambridge University Press, 1992, p. 187 Apud PRICE, p. 391- 392.
700
Idem, op. cit., p. 199. Apud PRICE, ―O milagre da Crioulização Retrospectiva‖. Estudos Afro-Asiáticos,
Ano 25, no 3, 2003, p. 392.

432
Novo Mundo‖701 Price ressalta que há décadas ninguém mais endossa a ideia de os afro-
americanos haverem ―partido do zero‖.
Por fim, ainda sobre Price, acredito ser importante ressaltar a sua defesa para um
estudo da escravidão nas Américas que consista na historicização e na contextualização.
Assim, corroboro com a aposta na análise das particularidades históricas, numa reflexão das
circunstâncias concretas enfrentadas pelos indivíduos envolvidos no processo. Neste ponto,
concordamos com o autor, no entanto, quanto à polaridade entre ―crioulização‖ ou
africanismo, optamos por adotar a interpretação defendida por Robert Slenes em ―Saint
Anthony at the crossroads in kongo and Brazil‖ sobre ―transculturação‖ centrada nas
questões políticas.702 Analisemos esta perspectiva analítica.
Quando propomos ligações com a cultura africana ou outras, pensamos em um
conjunto de materiais culturais (africanos, portugueses e indígenas) interessantes de serem
refletidos através de seus pontos de contatos e seus tipos de instituições ou manifestações.
Não temos a pretensão de constatar construções de identidades culturais africanas através
das manifestações realizadas por negros no século XIX ou XX na Zona da Mata Norte
pernambucana, mas almejamos pensar apropriações de signos culturais do além mar em
diálogo com a realidade social vigente. A proposta de comparações com outros Estados
brasileiros intenciona justamente ressaltar conjunturas e especificidades sócio-culturais
representadas nos folguedos.
Quanto à presença africana em Pernambuco, Carvalho aponta as evidências de
navios negreiros em 1836, 1837 e 1840 que vinham de negociações ilícitas com Angola.703
E segundo os dados do The Trans-Atlantic Slave Trade database entre 1800 e 1866 em
Pernambuco desembarcaram 19.584 africanos vindos do Golfo de Bênin e numa diferença
imensa, 216.278 da África Centro Ocidental. Entre 1831 e 1866, desembarcaram de Bênin

701
Idem, op. cit., p. 204. Apud PRICE, op. cit., p. 392
702
SLENES, R. Saint Anthony at the crossroads in kongo and Brazil: ―creolization‖ and identity politics in
the Black south atlantic, ca. 1700/1850. In: SANSONE, Livio& Soumonni, Elisseé& BARRY, Boubacar.
Africa, Brazil and the Constrction of Trans-Atlantic Black Identities. 2008. O autor se inspira no conceito de
―transculturação‖ de Fernando Ortiz em oposição à ―aculturação‖. Ver ORTIZ, Fernando. Cuban
Counterpoint: Tobacco and Sugar. New York, Vintage Books, 1970. E quanto ao sentido político, Slenes se
remete ao trabalho de Mary Pratt que coloca o sentido de luta política no cerne do conceito da formação de
identidades sociais contrastantes. Ver PRATT, Mary L. Imperial Eyes: Traved Writing and Transculturaton.
London, Routledge, 1992.
703
CARVALHO, M. ―Estimativas do tráfico ilegal de escravos para Pernambuco na primeira metade do
século XIX. In: Revista de Pesquisa Histórica. UFPE, Série História do Nordeste, no 12. Recife, 1989.

433
350 africanos, e de África Centro Ocidental, 51.665. Isso sem contarmos os africanos
vindos de outros portos, e na possibilidade de africanos que iam para Bahia passarem pelo
porto de Recife. Neste caso, isto é, desembarcados na Bahia, tem-se, entre 1831 e 1866,
cerca de 67.000 africanos de Bênin. Vale retomar os dados expostos no capítulo 1 desta
tese, nos quais verificamos através do censo de 1872 que apenas na comarca de Nazareth
existiam 4.585 escravos da raça preta e 1743 pardos, sendo 260 de nacionalidade
estrangeira. Entre os livres, 4.618 eram pretos e 19.575 pardos. A quantidade de negros
escravos ou não pretos, portanto, provavelmente descendentes de africanos é imensa, e, se
contarmos os registrados pelo censo como de fato estrangeiros (e sabemos que estes dados
podem estar subestimados uma vez que muitos senhores mentiam quanto à nacionalidade
de seus escravos por conta do fim do tráfico) ainda assim temos um número
proporcionalmente expressivo. E, de fato, entre os inventários, observamos diversos
escravos listados como angolas. Diante disso, é fato que existiam africanos vivos e
trabalhando nos engenhos de açúcar ainda na década de 70 do XIX, e que, na sua maioria,
eram africanos vindos da África Centro Ocidental, mas também do Golfo do Bênin.
É importante ressaltar que como desenvolveu Jan Vansina, e Robert Slenes analisou
observando as expressões culturais africanas no sudeste brasileiro, a região da África
Centro Ocidental (a área do Gabão a norte da Namíbia, do Atlântico até os Grandes Lagos)
é uma área cultural comum. São unidos não apenas pela sua herança linguística bantu, mas
também pelo fato de que seus povos ―compartilham da mesma visão do universo e da
mesma ideologia‖.704 Como expõe Vansina, por volta de 1850 os povos da África Central
de Duala até o Rio Kunene e do Atlântico até os Grandes Lagos – ―Great Lakes‖ –
compartilhavam de uma visão comum do universo e uma ideologia política comum. Isto
incluía assuntos sobre papéis, símbolos, status, valores e a própria noção de autoridade
legítima. O autor destaca que entre a abundância de símbolos relacionada com essas visões
estão o leopardo, o leão, o sol, a bigorna, e o tambor simbolizando, respectivamente, o líder
como predador, protetor, forjador da sociedade e a voz de todos. Salienta Vansina que,

704
VANSINA, Jan. ―Deep down time: polical tradition in Central Africa‖, History in Africa 16, 1989, p. 341.
Apud. SLENES, R. A ―Great Arch‖ Descending: Manumission Rates, Subaltern Social Mobility and Slave
and Free(d) Black Identities in Southeastern Brazil, 1791–1888. In: John Gledhill e Patience Schell, orgs.,
Rethinking Histories of Resistance in Brazil and Mexico (Durham, North Carolina: Duke University Press, no
prelo), p. 12. SLENES, R. Eu venho de muito longe, eu venho cavando: jongueiro cumba na senzala centro-
africana. IN LARA, S. & PACHECO, G. Memória do Jongo. Gravações históricas de Stanley J. Stein.
Vassouras, 1949. Rio de Janeiro, Folha Seca, Campinas, CECULT, 2007, p. 116.

434
obviamente, em cada caso, a ideologia política comum foi expressa em visões sutilmente
diferentes, refletindo o impacto dos diferentes processos históricos sobre os variados
povos.705 No mais, Slenes, baseando-se, sobretudo, nos estudos de John Janzen, aponta que
apesar dos povos bantu do leste do continente demonstrarem mais diversidade entre si e
menos ligações evidentes com os povos do oeste, ainda sim, os dois grupos compartilham
elementos culturais significativos. Slenes ressalta, citando Janzen, que muitas sociedades da
África Centro Ocidental e Oriental ―têm pressupostos cosmológicos semelhantes no que diz
respeito à etiologia da doença e do infortúnio, e tendem a procurar a ‗terapia‘ – para
restaurar a ‗saúde‘ ou obter a ‗fruição‘ – em cultos – ou tambores – de aflição, que
ressaltam a música e a dança como meios para a cura‖.706 Slenes conclui que, na verdade,
as partes ocidental e oriental da África Central devem ser consideradas, ―senão uma única
área cultural, pelo menos aparentada‖.707
No mais, Slenes destaca que, além dessas semelhanças gerais, pode-se identificar
também as tradições específicas que configuram especialmente os encontros entre centro-
africanos no Novo Mundo. Ressalta o autor que outra grande contribuição dos novos
estudos sobre a África Central, especialmente de Joseph Miller, é a demonstração que

(...) mesmo no século XIX, quando a ―fronteira de escravização‖ havia


adentrado profundamente no continente, provavelmente a maioria dos cativos
remetidos para a América ainda vinha de povos da ―zona atlântica‖ (povos
próximos da costa ou mesmo interioranos, cujas sociedades foram transformadas
em ―escravistas‖ e exportadoras de seres humanos pelo impacto do comércio
atlântico). Refiro-me aos ovimbundu do planalto da hinterlândia de Benguela, os
mbundu (ambundu) da região de Luanda os kongo do baixo rio de Zaire e norte
da atual Angola, e grupos vizinhos no interior (por exemplo, os tio/teke e os
mbala) que tendiam a ser parentes próximos em língua e cultura dos três
mencionados. 708

705
VANSINA, Jan. ―Deep down time: polical tradition in Central Africa‖, History in Africa 16, 1989, p.341.
706
JANZEN, JOHN. Lemba, 1650-1930: a drum of affliction in Africa and the New World. New York
Garland Publishing, 1982, e Nogma: discourses of healing in Central and Southern Africa. Berkeley,
University of California Press, 1992. Apud SLENES, op. cit., 2007, p. 117.
707
SLENES, op. cit., p. 118.
708
SLENES, op. cit., 2007, p. 118. Slenes refere-se ao trabalho de MILLER, Joseph. Way of death: Merchant
capitalism and the Angolan slave trade, 1730 -1830. Madison, The University of Wisconsin Press, 1988, cap.
5. Também ver SLENES, R. A ―Great Arch‖ Descending: Manumission Rates, Subaltern Social Mobility and
Slave and Free(d) Black Identities in Southeastern Brazil, 1791–1888. In: John Gledhill e Patience Schell,
orgs., Rethinking Histories of Resistance in Brazil and Mexico. Durham, North Carolina, Duke University
Press, no prelo.

435
A conclusão de Slenes é de que a proporção provinda da zona atlântica parece ter
sido grande entre os cativos exportados pelo ―Congo Norte‖, isto é, pela costa entre a foz
do rio Zaire e o atual Gabão. Isso vale, especialmente, para o sudeste brasileiro, no qual os
escravos exportados do Congo Norte constituíam mais de 40% dos cativos importados
provenientes da África Centro Ocidental.709 No mais, como o autor salienta, o comércio de
escravos provocou intenso intercâmbio cultural na África. Mesmo as pessoas do extremo
interior enviadas diretamente para o Brasil normalmente aprenderam uma das línguas
pidgin (baseado em Kikongo, Kimbundu e Umbundu, respectivamente, as línguas do
Kongo, Mbundu e Ovimbundu) utilizadas no comércio no caminho para a Costa. Outras,
que passaram algum tempo como escravos nas sociedades costeiras, antes de serem
vendidas no comércio transatlântico devem ter adquirido uma maior noção das línguas e
das culturas dessas áreas. Ainda outras pessoas, que nasceram de mulheres escravas
compradas a partir do interior, teriam sido completamente "fluentes" no Congo, Mbundu ou
cultura Ovimbundu, mas também teriam tido algum conhecimento das tradições de suas
mães (e, portanto, poderia ter servido como co-intermediários para os recém-chegados do
interior africano, tanto nas sociedades de origem e na senzala brasileira).710
Nesta perspectiva, a hipótese de Slenes é que assim como os centro-africanos
moveram-se em direção à formação de uma cultura comum, na travessia do Atlântico,
através das descobertas de afinidades no vocabulário e na cosmologia através de suas
línguas intimamente relacionadas, do mesmo modo, depois que estes africanos chegaram ao
Brasil, continuaram a basear-se em elementos comuns de uma ampla zona do Atlântico
(tradição da África centro ocidental), que, sugere Slenes, no contexto de uma comunidade
fechada como as plantations, podem ter facilmente fornecido os marcadores da identidade
para a senzala.711 Para Slenes, ―ao negociarem uma nova cultura e identidade, os escravos

709
SLENES, op. cit., 2007, p. 120, e SLENES, op. cit., no prelo, p. 12-14.
710
SLENES, R. A ―Great Arch‖ Descending: Manumission Rates, Subaltern Social Mobility and Slave and
Free(d) Black Identities in Southeastern Brazil, 1791–1888. In: John Gledhill e Patience Schell, orgs.,
Rethinking Histories of Resistance in Brazil and Mexico. Durham, North Carolina, Duke University Press, no
prelo, p. 13.
711
Idem, op. cit., p. 14. Slenes concentra-se em três movimentos religiosos entre escravos e pessoas livres em
Vassouras (1848), São Roque no oeste paulista (1854) e São Mateus no norte do Espírito Santo (o grupo da
Cabula, 1900). O autor demonstra que ―cultos de aflição‖ centro-africanos, individuais e ―comunitários‖
proliferavam no Sudeste. ―Os comunitários, aliás, eram bastante similares àqueles descritos nas fontes sobre o
kongo, e claramente eram precursores da macumba e da umbanda do século XX ‖. SLENES, op. cit., 2007, p.
123.

436
das plantations, à semelhança de seus pares nos Estados Unidos, provavelmente se viravam
‗para dentro‘, mas neste caso em direção a uma senzala predominantemente centro-
africana.‖712 Propõe o autor que a manutenção de certos cultos de cura ou de crenças
religiosas (precursores da umbanda e da macumba) parece ter servido como lócus
privilegiado para a oposição dos escravos à sua condição (o que, segundo Slenes, não deve
nos surpreender, pois na África, também, eles tinham conotações políticas como
instituições de ―governança‖), e esta evidência corrobora para a hipótese de Slenes de que
uma identidade centro-africana ressignificada caracterizava uma proporção substancial dos
escravos de plantation.713
Para Robert Slenes, ao investigar a prática africana dos cultos de aflição
denominada Kimpasi714, tendo Santo Antônio como elemento cultural de conjunção,
oferece uma oportunidade única para o estudo da ―crioulização‖ no Brasil. Vale ressaltar
que o autor entende ―crioulização‖ como ―transculturação‖, em suas palavras, ―a
apropriação seletiva e reinterpretação da cultura do ‗outro‘, como praticada por todos os
grupos envolvidos em uma dada situação de contato e conflito‖.715 Para o autor, além de ser
uma resposta para a crise grave da comunidade, os cultos de aflição forneciam um meio
para os detentores do poder para justificar a sua administração. No entanto, há um outro
lado desta história, como o atesta o desconforto que os movimentos Kimpasi no meio e no
final do século XVII causou à elite política do Kongo e pelo papel que estes cultos jogaram
como berço da "intervenção" do movimento ―Antonian‖ (1704-1706) em uma luta pela
sucessão ao trono congolês. Em suma, conclui Robert Slenes que Kimpasi também poderia
mobilizar o descontentamento para manter a mordomia de quem está no poder. Assim, para
Slenes, dado o caráter destes cultos na África Central, pode-se concluir da sua presença no
Brasil que os escravos se basearam em seu passado, não apenas para criar novas normas e

712
SLENES, op. cit., 2007, p. 121.
713
Idem, op. cit., p. 123-124.
714
Beatriz Kimpa Vita, Reino do Congo em 1704 1706, morreu e ressuscitou como Santo Antonio. Vita
prometia reunir o reino, oficialmente cristão desde 1491, e acabar com a constante violência e captura de
escravos. No Brasil, durante o intenso tráfico de escravos da África Central, especialmente Kongo, no Rio de
Janeiro e em São Paulo, 1848-1854, movimentos políticos religiosos entre as escravarias também invocavam
Santo Antônio. SLENES, R. Saint Anthony at the crossroads in kongo and Brazil: ―creolization‖ and identity
politics in the Black south Atlantic, ca. 1700/1850. In: SANSONE, Livio & Soumonni, Elisseé & BARRY,
Boubacar. Africa, Brazil and the Construction of Trans-Atlantic Black Identities. 2008.
715
SLENES, R. Saint Anthony at the crossroads in kongo and Brazil: ―creolization‖ and identity politics in
the Black south atlantic, ca. 1700/1850. In: SANSONE, Livio & Soumonni, Elisseé & BARRY, Boubacar.
Africa, Brazil and the Construction of Trans-Atlantic Black Identities. 2008, p. 2.

437
consagrarem sua vida no novo ambiente, mas também para colocar em prática suas próprias
instituições políticas. Estas teriam sido concebidas, em primeira instância, para mediar os
conflitos entre os membros de uma dada comunidade - entre eles, certamente, aqueles
gerados por meio de incentivos de seus donos -, mas também para olhar para fora, para
diagnosticar as causas mais amplas de aflição.716 Por fim, Slenes conclui que na
encruzilhada política e cultural do Kongo e no Brasil, Santo Antônio foi dirigido pelos
centro-africanos e seus filhos por caminhos inesperados. Em ambos os casos, esta figura
―crioulizada‖ contribuiu para a formação de novas identidades sociais, muitas vezes
definida em oposição às pessoas das quais tinha sido apropriada. No mais, destaca que há
demonstrações claras de como o cristianismo foi ―naturalizado‖ por interpretação seletiva
com base em categorias autóctones.717
Estas abordagens de Robert Slenes trazem-nos um aporte teórico interessante para
pensarmos as relações entre cultura africana e as ressignificações em terras pernambucanas
de escravos africanos, crioulos e seus filhos em torno de expressões culturais como o
Cavalo Marinho, o Bumba meu Boi ou Maracatus. No mais, a ligação com as questões
políticas que estavam por de trás revela-nos possíveis caminhos de resistência escrava
dentro das senzalas dos engenhos pernambucanos e na construção de uma identidade
crioula com referências centro-africanas e com base política.
Almejando encontrar indícios da ―cultura boeira‖ entre os povos da África Centro
Ocidental e Oriental e zona atlântica, que possivelmente foram exportados para o Brasil no
comércio transatlântico do século XIX, encontramos algumas referências na bibliografia
sobre a etnografia do sudoeste de Angola e sobre os Ovimbundu. Sobre o sul de Angola,
Carlos Estermann destaca que diversos povos dependiam e agregavam grande valor à
criação de gados como atividade econômica. Cita por exemplo os Hereros que de todas as
matizes não podiam viver sem gado. Os Kuvale tinham como principal riqueza manadas de
bovinos e ovinos. O mesmo vale para os Chimbas de Angola, que possuíam uma grande
716
SLENES, R. A ―Great Arch‖ Descending: Manumission Rates, Subaltern Social Mobility and Slave and
Free(d) Black Identities in Southeastern Brazil, 1791–1888. In: John Gledhill e Patience Schell, orgs.,
Rethinking Histories of Resistance in Brazil and Mexico. Durham, North Carolina, Duke University Press, no
prelo, p. 16. SLENES, R. Saint Anthony at the crossroads in kongo and Brazil: ―creolization‖ and identity
politics in the Black south atlantic, ca. 1700/1850. In: SANSONE, Livio & Soumonni, Elisseé& BARRY,
Boubacar. Africa, Brazil and the Construction of Trans-Atlantic Black Identities. 2008.
717
SLENES, R. Saint Anthony at the crossroads in kongo and Brazil: ―creolization‖ and identity politics in
the Black south atlantic, ca. 1700/1850. In: SANSONE, Livio & Soumonni, Elisseé & BARRY, Boubacar.
Africa, Brazil and the Construction of Trans-Atlantic Black Identities. 2008.

438
quantidade de cabeças de gado: em média 6 cabeças de gado por habitante. Existia até
mesmo a expressão ovanahambo que significava entre os Cuanhamas ―pastores
profissionais‖, os quais sabiam distinguir entre as gramíneas e os arbustos comestíveis para
os gados. Para o autor, provavelmente entre os povos do sul da Angola também podemos
encontrar este tipo de conhecimento e especialidade. Também atribuía-se aos ―pastores
profissionais‖ a arte de saber curar uma ou outra moléstia que causavam estragos nos
rebanhos. No mais, como todos os pastores do sudoeste de Angola, os Hereros enalteciam
os seus bois com cantos de apreço. Muitas vezes, estas ―ladainhas‖ melodiadas são um puro
enfiar de nomes de animais, das suas cores, ou da sua genealogia. Existiam até cantos mais
inspirados, dignos de serem classificados como ―poemetos‖.718
Segundo o autor, o cultivo do gado servia para fornecer uma alimentação rica em
leite e carne para as refeições, não de maneira habitual e regular, mas em muitas ocasiões
de festas e cerimônias. Entre os Kuvale, por exemplo, tinha-se o costume de abater uma rês
fora de qualquer preocupação ritual, em função apenas de uma festa profana denominada
epupwete. Descreve o autor que

Um proprietário de gado mata um boi em honra de uma das duas mulheres,


de um filho ou de um parente próximo. É claro que não faltarão convidados,
tanto que a ocasião será aproveitada para dar à guerra, ao ritmo do batuque.
Quem foi honrado contrai a obrigação de proporcionar igual distinção ao
organizador da festa que lhe foi dedicada.719

Há ainda entre o grupo étnico Herero a existência do gado sagrado, encontrado mais
acentuadamente entre Ambós e Nhanecas-Humbes. Citando alguns: Otyipanga - ―animais
de minha riqueza‖, Onawanga, Ondyla-ombe, Ombindisi (o boi oráculo), além das 11
categorias de bois consagrados entre os Chimbas. Sobre os bois sagrados dos Hereros,
Estermann conclui que estes animais constituem como que um traço de união entre os
antepassados e os membros vivos da família e do clã. Como eles, por outro lado, convivem
com os bois profanos, estes também se acham, de certo modo, ―santificados‖ por tal
contato. ―Desta maneira tornam-se todas as relações de um proprietário de gado com os

718
ESTERMANN, Padre Carlos. Etnografia do sudoeste de Angola. O grupo étnico herero. Vol. 3. No 30.
Lisboa, Memórias da Junta de investigações do ultramar, 1961, p. 131-135.
719
Idem, op. cit., 1961, p. 137.

439
seus animais como que sacralizadas‖720 Estas representações e as considerações do autor
levam-nos muito próximos do universo narrado pelos folguedos do Bumba meu Boi e do
Cavalo Marinho, bem como o cotidiano vivido por escravos e trabalhadores rurais de
Pernambuco.
Por último, ainda sobre os Hereros, Estermann destaca que os Dimbas, Chimbas e
Kuvales, assim como os aparentados, usam para designar os fenômenos ligados à magia os
mesmos termos que Nhanecas-Humbes, termos que nos deparam em muitos outros povos
da África Banta. Esta particularidade verifica-se especialmente quanto ao poder chamado
ou-anga, cujo detentor é apelidado de onganga – poder mágico nocivo e malévolo
empregado para prejudicar o semelhante com doenças e a própria morte. Narra Estermann
que

O onganga tido como culpado tem de matar um boi por meio de zagaia,
modo pouco usual de tirar a vida a uma rês entre os Hereros. Se o orifício
deixado pela lança é pequeno de mais, obrigam-no a alargá-lo com um pau
aguçado. Feito isso o enfeitiçador declara em tom firme: ―Todos os meus
espíritos maus, ovilulu, entraram agora neste boi.‖ 721

Como analisa Iracema Dalley, em umbundu, duas palavras poderiam ser traduzidas
como feiticeiro: onganga e ochimbanda. Ochimbanda é usado, atualmente, para fazer
referência aos médicos ocidentais. No entanto, destaca a autora, que a palavra está
relacionada ao uso das forças sobrenaturais com o objetivo de curar males físicos ou
psicológicos, remetendo à ideia de um curandeiro comprometido com o bem-estar da
comunidade, preocupado com o restabelecimento do equilíbrio social. Já o onganga é o
praticante de magia no sentido disruptivo do termo, sendo muitas vezes temido por seu
poder de influenciar o curso dos acontecimentos de forma a provocar efeitos negativos
sobre uma determinada pessoa ou todo o grupo.722 Entre os Ovimbundu, povo que também
praticava a cultura do pastoreio (gado vacum), Leona Tucker identificou rituais de
invocação espiritual com Ochimbanda (neste caso como sacerdote e não feiticeiro) nos
quais o boi aparece. Descrevendo parte do ritual, Tucker narra que Ochimbanda ligado a

720
ESTERMANN, op. cit., 1961, p. 139- 149.
721
Idem, op. cit., 1961, p. 219-220.
722
DULLEY, Iracema. ―Suku onganga – Divindade traduzida em feitiçaria e missionação no colonialismo
português em Angola. (mimeo) http://www.ifch.unicamp.br/ihb/Textos/GT48Iracema.pdf

440
um chifre de antílope invertido e decorado com uma pérola desempenha uma parte
proeminente na invocação do espírito que fala na e através da ongombo. Ele levanta a
extremidade aberta do chifre para os lábios e assovia, ao mesmo tempo, que sacode o
―chocalho‖. Descreve Tucker que essas ações atraem o espírito, o qual diz: Ongombe yange
yeyi; chosi va sokiyila ale – Aqui está meu boi: tudo deve estar pronto para mim – e então
este vem para o Ochimbanda. 723
Se observarmos a História da África, desde os registros da Pré-história africana
existem representações artísticas do boi, do búfalo, do cavalo e do camelo:

Tomou-se o hábito de batizar os grandes períodos da arte mural como o


nome do animal que lhe serve de referência tipológica. Assim, quatro grandes
sequências foram caracterizadas pelos búfalo, o boi, o cavalo e o camelo.
O búfalo (Bubalus antiquus) era uma espécie de búfalos gigantesco que data,
segundo paleontólogos, do início do Quaternário. È representado desde o
começo da arte rupestre (aproximadamente 9000 B.P.) até cerca do ano 6000
B.P. Outros animais que marcam este período são o elefante e o rinoceronte.
Quanto ao boi, trata-se tanto do Bos ibericus ou bachyceros, com chifres curtos
e grossos, como dos Bos africanus, dotado de magníficos chifres em forma de
lira. Ele aparece por volta do ano 6000 B.P.
O Cavalo (Equus caballos) aparece por volta do ano 3500 B.P., por vezes
atrelado a um carro. O camelo fecha a fila desta caravana histórica. Levado para
o Egito, aproximadamente, no ano 500 pelos conquistadores persas, aparece com
frequência no início da era Cristã.724

Voltando-nos para os estudos mais remotos sobre o tema, Artur Ramos já observava
algumas afirmações sobre o imaginário banto-descendente que tinha ligações com o boi:

O totemismo do boi é largamente disseminado entre vários povos bantus


onde, em algumas tribos, toma um aspecto francamente religioso. Os BA-
Naneca teem uma ceremonia especial, por ocasião das colheitas, quando prestam
um verdadeiro culto a um boi a que chamam Gerôa. Este boi é conduzido
processionalmente nesses dias, e festejado com cânticos e certos instrumentos
especiaes a elle consagrados. Cada chefe de família tem ainda um boi que o
protege, objecto de sua affeição.725

Artur Ramos ainda refletindo sobre o repasto totêmico, em que o animal-totem é


morto e chorado em meio a uma grande festa, após o luto segue-se uma grande alegria

723
TUCKER, Leona. ―The Divining Basket of the Ovimbundu‖. The Journal of the Royal Anthropological
Institute of Great Britain and Ireland. Vol. 70, No. 2, 1940, p. 171-201.
724
J. Ki-zerbo. História Geral da África. V. 1, 1973, p. 99. Apud BUENO, André P. O bumba meu boi em
São Paulo. São Paulo, Nankin Editorial, 2001, p. 57.
725
RAMOS, op. cit., 1935.

441
festiva, em que todos os excessos são permitidos: ―é que os membros do clan, depois de
comerem o animal-totem, reforçam sua identidade‖.726 Como ressalta Bueno, essa
caracterização da identidade do grupo destacada no ritual do totemismo, leva-nos a
relacionar também a visão do caráter familiar do totemismo Bantu. Segundo Ramos, o
totemismo africano de sobrevivência no Brasil é essencialmente de origem bantu, entre
cujos povos se achavam mais disseminados que entre os sudaneses.

Entre os Banhaneca e os Ban Kumbi, A. F. Nogueira encontrou verdadeira


organização totêmica. Família, entre elles, tem nome de lunda, ou anda se se
refere ao grupo constituindo o totem: anda do elephante, da cobra, etc., isto é,
família de todos os indivíduos que descendem do elephante, da cobra, etc. Os
casamentos ou ligações conjugaes também são prohibidos tanto no primeiro caso
como neste último.727

André Bueno em seus estudos sobre o Boi do Maranhão destaca duas vertentes de
ritos ligados ao Boi na África: um dos povos do sudoeste de Angola e o outro dos Senufos,
grupo sudanês. A cultura localizada no Jau, sudoeste de Angola, trata-se de um festejo
anual em homenagem aos grandes touros santos, considerados portadores dos princípios
vitais emanados de toda uma ancestralidade.

Saem cortejos simultâneos de diferentes aldeamentos daquele povo, cada


grupo com seu manso touro, que caminha junto às pessoas livremente. Após a
primeira parada, recebidos por família que oferece alimento, passam a cantar e
agradecer e seguem cantando e percutindo bastões. Os grupos se encontrarão na
aldeia capital para homenagear a família antiga de que todos descenderiam,
reunindo seus touros ao touro do velho chefe.728

A segunda vertente vem do povo Senufo que desenvolve um ciclo de máscaras


voltadas aos animais sagrados, incluindo o grande Boi Nasolo, que revive o mito local do
Búfalo Solar. Segundo estudos de Fábio Leite e documentação visual de Michel Huet, a
saída da máscara corporal Nasoloo, boi-elefante ou búfalo, trata-se da fase final do terceiro

726
RAMOS, op. cit., 1935.
727
RAMOS, 1935. A.F. Nogueira, A raça negra sob o ponto de vista da Civilização da África. Usos e
costumes de alguns povos gentílicos do interior de Mossamedes e as Colônias Portuguesas, 1880, p. 284.
Apud, BUENO, 2001, p. 61-62.
728
BUENO, op. cit., 2001, p. 62.

442
Poro da iniciação Senufo, marcando o ingresso na classe de idade adulta quando o ser
humano adquire estado mais ―sólido‖, como ocorre com a terra. 729
A interpretação de Bueno nos interessa, pois ao observarmos os casos que ele cita,
constatamos que em um ritual os próprios animais de estimação são cultuados em famílias,
e em outro, a máscara corporal que representa o boi é que dança com os jovens recém-
circuncidados e ―em ambas as representações, finalmente, o boi é associado à solidez adulta
e à força vital de resistência e permanência‖.730 Diante destas interpretações, podemos
relacionar estes ritos, cultos e festejos ao boi dos povos africanos, consequentemente suas
possíveis (re) significações com os descendentes aqui no Brasil, com as condições dos
escravos praticantes da festa do Boi ou do Cavalo Marinho nos canaviais da Zona da Mata
Norte de Pernambuco. Como verificamos nos capítulos 1 e 3, são vários os indícios da
existência de núcleos familiares, forte permanência dos escravos em um mesmo espaço de
trabalho ou moradia e de certos aspectos de resistência. Características que são
simbolizadas nos cultos ao Boi pelos povos africanos os quais, possivelmente,
compartilhavam essa tradição simbólica da vitalidade do boi com os negros africanos que
vieram para o Brasil, e que, portanto, podem ter sido novamente (re) simbolizadas em
festejos ao Boi entre os descendentes escravos trabalhadores dos engenhos pernambucanos.
Assim, ao pensarmos na origem (ou origens) do Bumba meu Boi, existem duas
vertentes: uma que coloca o Bumba meu Boi como um arremedo do auto de Gil Vicente, o
―Monólogo do Vaqueiro‖ ou ―Auto da visitação‖, declamado na câmara da rainha D. Maria
I, em 7 de junho de 1502 e também com influência da tradicional Festa do Minho, em
Portugal.731 E outra apresentada por autores como André Bueno, Arthur Ramos e por nós
que salientam a presença na África, especialmente, cultivada nos povos da região de
Angola e Benguela os quais vieram para o Brasil, de rituais, cortejos, festas, cultos de cura
com o Boi.
A própria nomenclatura Bumba segundo o dicionário de Macedo Soares lê-se:
―bumbo s.m., tambor grande, bombo. Etm. provavelmente do lat bombus tem, entretanto,
na linguagem da Angola, o correspondente mububim tambor grande, caixa redonda, cujo

729
BUENO, op.cit., 2001, p. 62-63. LEITE, Fábio. ―O Poro‖. Dédalo – Revista do Museu de Arqueologia e
Etnologia USP. São Paulo, 26, p. 27-42, 1988 e ―Sizanga‖ – Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia
USP. São Paulo, 5, p. 251-60, 1995. HUET, Michel. Danses d‟Afrique. Paris, Edtitions Du Chêne, p. 74-90.
730
BUENO, op. cit., 2001, p. 63.
731
MELO, G. T. Pereira de. A música no Brasil. Bahia, Tip. São Joaquim, 1908.

443
rad. Bum deu o v. cu-bumbi, arredondar. E, em cima disso, vale destacar que a base
instrumental musical utilizada no século XIX no Boi pernambucano era zabumba e ganzá,
ambos de origem africana. O mesmo para o Maracatu, gonguê e também o ganzá que têm
suas origens em terras africanas. Ou da Poica, uma cuíca de voz baixa, utilizada no
Maracatu de Baque Solto e semelhante à Puíta, instrumento da zona atlântica africana,
geralmente chamada pwita, mpwita, kipwita.732
Diante destes estudos, principalmente, da nova bibliografia sobre a África Centro
Ocidental e Oriental, parece-nos claro que os povos africanos da região de Angola,
portanto, que foram em grande quantidade trazidos para o Brasil durante o século XIX,
além de serem povos que viviam economicamente do pastoreio também possuíam ligações
mágicas, espirituais, de cura, festivas, profanas e poéticas (através dos cantos de ordenha).
Eram, portanto, povos que se relacionavam com o animal boi pelo viés do trabalho, da
necessidade alimentar, mas também em momentos festivos, poéticos e ritualísticos.
Possivelmente, os negros advindos desses lugares, bem como seus filhos e netos podem ter
carregado na memória e na crença algumas dessas manifestações culturais e religiosas. Em
terras do novo mundo, especialmente em Pernambuco, onde observamos os escravos
realizarem folguedos em torno do Boi e do Cavalo, provavelmente, eles ressignificaram
essas relações humanas com o boi, e num processo de ―transculturação‖ e ação política que
podem ter criado elos identitários e/ou aguçado conflitos nas comunidades em que viviam.
Voltando ao caso de Santa Catarina com o Boi de Mamão, apesar de ser recente a
presença do negro na historiografia sobre o sul brasileiro, as novas pesquisas mostram que
mesmo sendo pequeno o número de africanos e descendentes no estado, estes eram partes
integrantes da economia catarinense. Clemente Penna, por exemplo, aponta que o número
de escravos em Santa Catarina apresenta um grande crescimento a partir principalmente da
década de 1830, período em que teve início o boom do café no vale do Paraíba. O
pesquisador José Augusto Leandro afirma que no século XIX a região recebeu escravos
vindos diretamente de portos africanos durante o período de ilegalidade do tráfico, sendo
que muitos deles possivelmente tinham como destino as propriedades no litoral
catarinense.733 Desse modo, é bem provável que continuaram a entrar escravos na província

732
SLENES, op. cit., 2007, p. 124.
733
PENNA, Clemente. Escravidão, Liberdade e os arranjos de trabalho na ilha de Santa Catarina nas
últimas décadas de escravidão (1850-1888). Dissertação de Mestrado, UFSC, Florianópolis, 2005. Apud:

444
mesmo a partir da década de 1850, com a interrupção do tráfico atlântico e o fortalecimento
da produção cafeeira. Ao mesmo tempo a imigração também cresceu nesse período.
Diante dessas pesquisas, podemos sugerir que em Santa Catarina imigrantes brancos
e escravos conviveram no mundo do trabalho e socialmente através, principalmente, das
festas e brincadeiras populares, não apenas como atores, mas também como sujeitos
culturais, isto é, como responsáveis por novos comportamentos, novas formas de
sociabilidade e novas condutas morais.
É curioso perceber, por exemplo, que no folguedo de Santa Catarina, a figura do Boi
era mais louvada no Boi de Mamão do que no Cavalo Marinho (Bumba meu Boi)
pernambucano. E se pensarmos sobre a lógica de Freyre: se no Nordeste a figura do Boi
estava mais atrelada ao negro e do Cavalo ao branco, será que podemos replantar essa
imagem também para Desterro?
Para Fernando Henrique Cardoso, a relação senhorial foi acanhada em Desterro uma
vez que os escravos majoritariamente ocuparam uma função de trabalho doméstico e não
tanto na área rural.734 No entanto, estudos recentes como de Penna mostram que os
trabalhos da casa e da lavoura se misturavam e os cativos exerciam atividades tanto na roça
quanto na casa.735 Portanto, era bem provável que existisse sim uma relação senhorial
semelhante a dos engenhos pernambucanos, onde o árduo trabalho de fabricação do açúcar
se comparava à dureza da fabricação de farinha de mandioca em Santa Catarina, ou mesmo
da cana, uma vez que, possivelmente, essa produção ultrapassou a outra no século XIX.736
De qualquer modo, ambos os trabalhos exigiam disciplina, horas de esforço e ritmo
desumanos.
Ainda nesta perspectiva analítica sobre as possíveis influências da cultura africana
nos folguedos pernambucanos, vale por último, mas não menos importante, apontar mais
um ponto de convergência entre as representações do Cavalo Marinho e a cultura africana:
algumas correlações com a nomenclatura Capitão.

LEANDRO, José Augusto. Gentes do grande mas Redondo: riqueza e pobreza na comarca de Paranaguá
1850-1888. Tese de doutorado, UFSC, Florianópolis, 2003.
734
CARDOSO, Fernando Henrique. Cor e mobilidade Social em Florianópolis. São Paulo, Ed. Nacional,
1960.
735
PENNA, op. cit, p.83.
736
CARDOSO, op. cit., 1960.

445
Novamente numa visão comparativa, ao ler o artigo de Maria Cecília Velasco e
Cruz sobre as tradições negras dos trabalhadores em Trapiche e café carioca entre 1905 e
1930, me deparei com algumas referências de Debret sobre o trabalho dos escravos que
transportavam café no Rio de Janeiro em 1816:

Não somente um número de carregadores igual ao de sacos, mas ainda um


capataz entusiasta, capaz de animar os homens com suas canções improvisadas.
A coluna era guiada pelo capataz, que costumava munir-se de um chifre de boi
ou de carneiro. Tal chifre seria um amuleto com o qual o capataz se impunha à
superstição dos seus comandados eventuais, mas depois do grupo chegar a seu
destino e ser pago, a igualdade voltava a reinar entre todos e a confraternização
se fazia na venda mais próxima. Descrevendo a mudança de uma casa rica, ele
também afirma que os escravos contratados recebiam salários iguais para evitar
discussões, e que um feitor a cavalo supervisionava a marcha do grupo,
percorrendo constantemente os flancos da coluna e distribuindo chicotadas aos
carregadores isolados e preguiçosos. 737

Maria Vellasquez, todavia, vem demonstrar que o termo ―capataz‖ era usado no
início do XIX, mas nos relatos dos viajantes do início do XX não falam mais em
―capatazes‖ ou ―feitores‖, mas muitos se referem ao ―capitão‖ ao descreverem como os
escravos de ganho trabalhavam no transporte de alguns tipos de carga. Narrou Daniel
Kidder, chegado ao Rio em 1837, que os carregadores de café andam geralmente em
magotes de dez ou vinte negros sob direção de um que intitula capitão:

São em geral os latagões mais robustos dentre os africanos...Cada um


desses grupos tem um condutor, que de ordinário vai sacudindo um chocalho, ao
som do qual seus companheiros vão cantando atrás dele...Ao voltar, alguns
continuavam em sua cantoria, e corriam como se aquela faina os alegrasse(...)738

As descrições do trabalho no porto de Debret lembram-me muito a brincadeira do


Cavalo Marinho, como se fosse a encenação do folguedo na realidade. Detalhes como a
presença do capataz, depois denominado ―capitão‖, e o chifre de boi como amuleto nas
mãos, bem como o feitor a cavalo, trazem referências interessantes. Quanto ao segundo

737
DEBRET, Jean Baptista. Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil. São Paulo, Martins Fontes, 1954, p. 235
– 237. Apud CRUZ, M. C. Velasco e. ―Tradições negras na formação de um sindicato: sociedade de
resistência dor trabalhadores em Trapiche e café, Rio de Janeiro, 1905 – 1930.‖ Afro-Ásia, 24 (2000), 243-
290, p. 256.
738
KIDDER, Daniel. Reminiscências de Viagens e Permanências nas Províncias do sul do Brasil. Belo
Horizonte, Itatiaia/São Paulo, USP, p. 65. Apud CRUZ, 2000, p. 257.

446
relato, de Kidder, o título de ―capitão‖ para o africano e a presença de chocalho
acompanhando ritmo novamente me vem à mente os folguedos do Cavalo Marinho e do
Maracatu de Baque Solto. Tudo não passaria de mera coincidência, se eu não encontrasse
nos estudos de Marina de Mello e Souza, ao estudar os Reis do Congo do Recife e as
corporações profissionais com etnias originárias da costa da Guiné, novamente a referência
do uso do termo ―capitão‖, mas agora em Salvador. Segundo os estudos da autora, no porto
baiano, grupos reuniam-se nos cantos das ruas de mais movimento, à espera dos carretos ou
recados, debaixo da direção de um chefe, ao qual chamavam ―capitão‖ e a quem obedeciam
cegamente. Roger Bastide, segundo a autora, destacou que os negros de ganho formavam
pequenos grupos de 4 a 6 indivíduos, dirigidos por um ―capitão‖, todos da mesma etnia, o
que facilitava a comunicação entre eles e propiciava a manutenção das tradições de seus
ancestrais.739
Não estamos pesquisando escravos urbanos e nem de ganho, mas sim advindos da
região africana apontada, e que, provavelmente, em algum momento, nos navios ou portos
da vida, podem ter cruzado escravos que foram para o Rio de Janeiro ou Salvador.
Suposições, claro, mas existe um aspecto social por trás destas interpretações. Marina
Souza, quando se referiu aos negros de ganho de Salvador, estava fazendo uma referência
às lideranças dos reis do congo do Recife que eram eleitos por grupos de negros como um
líder simbólico que a comunidade negra deveria obedecer. Maria Velazquez, em seus
estudos no Rio de Janeiro, conclui que ao contrário da imagem repressiva narrada por
Debret, nos relatos do início do século XX, em vez de grupos subordinados e
supervisionados por feitores, o que surge nesses textos é uma coletiva de trabalhar
estruturada de modo independente pelos próprios ganhadores, e a admiração do branco com
a eficiência da organização de trabalho criada pelos pretos de ganho. No mais adere a um
aspecto linguístico ao termo ―capitão‖ no seu sentido figurado, isto é, como cabeça, líder,
guia, alguém que comandava uma empresa ou que era perito em alguma arte ou ciência.
Segundo a autora, os ―pretos capitães‖ descritos pelos viajantes eram chefes da guerra pela
sobrevivência nas ruas, mestres espertos na arte de empreitar o trabalho e comandantes
respeitados da sua execução. Para a autora, é imprescindível, no entanto, especificar as

739
SOUZA, Marina de Mello e Souza. Reis Negros no Brasil escravista: história da festa de coroação de rei
Congo. Belo Horizonte, Ed. UFMG, 2002, p. 205.

447
etnias das turmas de trabalho acima descritas. Segundo ela, trazendo consigo uma tradição
urbana e comercial incomum nas outras nações africanas, os minas740 aparentemente
monopolizavam o mercado de trabalho gerado pelas firmas comerciais envolvidas com a
exportação de café. Por outro lado, mantinham-se relacionados por associações voluntárias
de fundo étnico como as caixas de alforria, cujo modelo parece ter sido a esusu, instituição
ioruba que a diáspora africana plantou em vários lugares do solo americano. Ligados
provavelmente ao carrego do café para exportação, os membros do grupo de africanos
envolvidos no episódio que a autora narrou acompanhavam com cuidado os eventos
políticos da Corte, tinham no corretor de navios inglês uma conexão confiável, mantinham-
se informados sobre o que acontecia no litoral da África e do Brasil, e sustentavam relações
estreitas com pessoas que residiam na Bahia741, e sugiro: por que não em Pernambuco?
Marcus Carvalho, em seu estudo sobre os canoeiros do Recife na primeira metade
do XIX, ressaltou que o pastor Kidder comenta que entre estes havia uma hierarquia
semelhante à militar. Segundo ele, alguns seriam eleitos pelos outros para os postos de
sargento, alferes, tenente, capitão, major e coronel.742 Entretanto, para Marcus Carvalho, ―o
mais provável é que essa hierarquia fosse apenas mais um aspecto da organização geral dos
negros do Recife, os quais nessa época ainda elegiam os seus chefes, seja por etnia ou
nação, seja por profissão‖.743 Estas evidências vêm fortificar a nossa hipótese de que a
classificação ―capitão‖ do Cavalo Marinho indicava também uma nomenclatura de
organização dos negros cativos.
Assim, apostamos que existe, ainda que remota, a possibilidade dos negros do
Cavalo Marinho terem tido as mesmas raízes culturais dos negros de ganho dos portos
cariocas e baianos ao usarem o termo ―capitão‖. De qualquer forma, não excluo a referência
da palavra ―capitão‖ aos muitos senhores capitães da zona da mata, contudo, uma coisa não
exclui a outra, afinal, quem representava o ―capitão‖ na cena não era o senhor branco, mas
o escravo negro. Desse modo, acredito na possibilidade de um duplo ressignificado
cultural, um velado e o outro público. Ou em outro sentido, uma revisão negra dos aspectos
sócio-culturais brancos.

740
Denominação genérica e que abarca etnias provenientes tanto do Daomé (Benin) quanto da Nigéria.
741
CRUZ, op. cit., 2000, p. 262.
742
KIDDER, Reminiscências, p. 112. Apud CARVALHO, M. ―Os caminhos do Rio: negros canoeiros no
Recife na primeira metade do século XIX ‖. Afro Ásia, no 19/20, 1997, p. 91.
743
CARVALHO, op. cit., 1997, p. 91.

448
A propósito, existem algumas versões sobre a denominação Marinho para Capitão.
Ascenso Ferreira classifica que a figura do Capitão Marinho é um ―misto de cavalo e oficial
de Marinha‖.744 Já os relatos orais relatam outras versões. Uma explicação, comumente
afirmada pelos mestres, é que Capitão Marinho significa ―o cavalo do capitão Marinho‖745,
neste caso, Marinho seria o nome ou sobrenome do capitão que possui o cavalo. Outra
classificação, esta na verdade registrada apenas por dois mestres, curiosamente, dois
negros, dizem que Cavalo Marinho vem do animal marinho, cavalo-marinho, e que este é
tomado de uma magia e vem do mar, então, os escravos teriam se inspirado pelo animal e
colocado o nome no folguedo.746 Nesta versão, o nome Marinho do ―capitão‖ seria relativo
ao mar, ao animal. A meu ver, a relação entre a palavra ―marinho‖ com o mar é bem
contextualizada se estamos pensando nas possíveis relações entre o folguedo e os povos do
além mar: africanos e portugueses. Entretanto, a afirmativa dos mestres e brincadores de
que Marinho é um sobrenome ou nome de um capitão dono do cavalo, também, faz sentido
com a conjuntura da Zona da Mata Norte, terra de senhores-capitães e com a presença de
famílias com o sobrenome Marinho.
Se por parte do Capitão ainda restam dúvidas, talvez por parte dos negros
confirmemos algo, pois possíveis representações étnicas de grupo também podem ser
observadas na figura dos negros Mateus e Bastião. Ambos durante a realização do Cavalo
Marinho se comunicam e se apresentam ao Capitão como ―pareias‖, isto é, parentes. Se nos
voltarmos novamente para os estudos de Marina de Mello e Souza sobre as eleições dos
reis negros, perceberemos que o termo ―parente‖ possui significados étnicos de
solidariedade interessantes. Souza afirma que com o estilhaçamento das relações familiares
provocado pelo tráfico, os africanos escravizados buscaram reconstruir em novas bases os
laços fundamentais que uniam as pessoas. Segundo a autora, a reunião em grupo oriundos
da mesma etnia ou de regiões próximas, pertencentes a um mesmo complexo sócio-cultural,
foi uma forma encontrada para recriar as afinidades fundadas nas relações de parentesco.747

744
FERREIRA, Ascenso. O maracatu, presépios e pastoris e o bumba-meu-boi. Recife, Secretaria de
Educação do Estado de Pernambuco, DSE/Departamento de Cultura, 1986, p. 111.
745
Afirmação de Mestres e brincadores do Cavalo Marinho pernambucano. Registrado por Beatriz Brusantin
entre 2004 e 2010.
746
Versão de Mestre Martelo, Mateus do cavalo Marinho Estrela de Ouro, Condado (PE). Mestre Antônio
Telles, Estrela Brilhante de Condado (PE), também faz referências ao animal cavalo-marinho. Registrado por
Beatriz Brusantin entre 2005 e 2010.
747
SOUZA, op. cit., 2002, p. 181.

449
A etnia nesse conjunto teria uma grande importância na vida religiosa, social e política dos
africanos. Souza destaca que Katia Mattoso e João José Reis assinalaram a utilização do
termo ―parente‖ para pessoas do mesmo grupo étnico havendo entre elas vínculos
essenciais no processo de redefinição de solidariedades, antes fundadas em relações de
linhagens. Reis afirma que os africanos redefiniram a abrangência semântica da palavra
―parente‖ para incluir todos da mesma etnia, inventando o conceito de ―parente de nação‖.
Para o autor, esses parentescos simbólicos foram resultado do impacto do tráfico e da
escravização sobre pessoas vindas de ―sociedades baseadas em estruturas de parentesco
complexas, das quais o culto aos ancestrais era uma parte importantíssima.748 Seria pouco
coerente desconsiderarmos estas possíveis ligações entre os ―pareias‖ de Pernambuco com
os ―parentes‖ de outros lugares do Brasil. No folguedo praticado pelos escravos da Zona da
Mata Norte de Pernambuco, as figuras que representavam eles próprios também traziam
sinais de laços de solidariedade baseados em traços étnicos.
Quanto às relações étnico-culturais e à linguística, Robert Slenes em seu trabalho
sobre ―Malungu, ngoma vem!‖ faz um interessante estudo sobre os sentidos da palavra
―malungu‖ indicando-nos as possibilidades de elos culturais profundos entre os negros
vindos da África. Salienta o autor que os falantes da língua kimbundu (Luanda), umbundo
(região de Benguela) e kikongo (área que se estende entre o rio Dande – norte de Luanda –
até acima de Loango, entre o mar e Stanley Pool/Rio Kwanza) teriam chegado a ―malungu‖
– companheiro da mesma embarcação – pelo menos em parte através do conceito
compartilhado de ―meu barco‖. ―Temos aqui, portanto, uma palavra de grande ressonância
na Costa Atlântica da África Central‖.749 Entretanto, o autor constata que os escravos do
interior africano – e também uma parte significativa dos cativos vindos ao Brasil da costa
leste da África – teriam chegado ao sentido de ―malungo‖ não inicialmente do conceito
―barco‖, porém via o de ―irmão-parente‖. Coloca Slenes que, coincidentemente, existem
três vocabulários-raízes do ―proto-batu‖, ou ―língua-mãe‖ dos idiomas dessa família (com
significado de ―irmão‖, ―parentesco‖ e ―tribo‖), ―que assumem formas em línguas
modernas às vezes não muito distantes de ―malungo‖, e que tem uma difusão bastante

748
SOUZA, op. cit., p. 182.
749
SLENES, R. ―Malungu, ngoma vem! África coberta e descoberta do Brasil‖. Revista USP. N. 12,
dezembro/janeiro/fevereiro, 1991-1992, p. 53.

450
grande no Centro e no Leste da África bantu‖.750 Pensando a vinda dos escravos
embarcados de Angola-Congo Norte para a América, nos séculos XVIII e XIX, e
verificando os estudos que mostram as grandes afinidades entre as culturas de uma mesma
região da África Central, no que diz respeito a suas pressuposições básicas sobre parentesco
e suas visões cosmológicas, Robert Slenes conclui que os escravos de diversas origens
daquela região africana, ao se encontrarem em solo do Brasil, teriam reconhecido ―uma
gramática de parentesco em comum, centrada no conceito da linhagem, muito embora
viessem alguns de povos matrilineares e outros de grupos patrilineares ou bilaterais‖751.
Essas evidências corroboram com as hipóteses expressas pelos autores acima, e pelos
sentidos por mim sugeridos para uso do termo ―pareia‖ pelos negros brincadores do Cavalo
Marinho. De fato, como expõe o autor, existia uma construção gramatical de parentesco
entre africanos vindo da África Central que, possivelmente, os levaram à percepção da
existência de elos culturais mais profundos do que apenas linguístico.752
Nesse sentido, apostamos que as brincadeiras traziam correspondências étnicas
africanas, bem como traços sociais que propunham coesão e força para o grupo. A
representação de um líder, um capitão traz o significado de organização, de união, que por
um lado serviria para agradar o branco, e, por outro, para unir e melhorar o trabalho dos
negros. A utilização do termo ―pareia‖ comum entre os negros da cena no Cavalo Marinho
não só pode indicar um parente de nação, mas também um parente de vida, de trabalho, um
laço de solidariedade e também união. Como veremos mais à frente, em 1871 os escravos
trabalhadores dos engenhos e brincadores dos folguedos propunham suas uniões e suas
―reuniões‖ quinzenalmente. Muitos em torno de laços de parentesco, afinal a maioria dos
cativos dos engenhos era formada por famílias escravas, ou por motivos familiares, como o
batizado de um filho. Assim, de qualquer forma, capitães ou Mateus, ambos no real e no
folguedo, eram compostos por negros, provavelmente que queriam se identificar como
pertencentes da mesma terra ou como pertencentes da mesma situação social ou grupo
familiar. Representar e/ou viver em união talvez fosse o objetivo principal.
Diante dessas narrativas sobre os possíveis significados e representações, bem como
as origens dos folguedos como o Boi, o Cavalo Marinho, o Maracatu, cabe-nos irmos para

750
SLENES, op. cit., 1991-1992, p. 53.
751
Idem, op. cit., p. 58.
752
Idem, op. cit., p. 49.

451
o ano de 1871 e verificarmos mais detalhes sobre os sujeitos do brinquedo. Em outras
palavras, é preciso olhar eles como agentes sociais de sua realidade, e consequentemente,
suas manifestações culturais como inseridas no social.

4.5) Liberdade de sambar, caminhos para se libertar: culturas de luta e a prática do


Cavalo Marinho e do Maracatu pelos escravos da comarca de Nazareth na década de
70 do XIX

Em março de 1871, o subdelegado do 3º Distrito de Alagoa Seca enviou ofício ao


Delegado de Nazareth, constando que

(...) entre os engenhos Alagoa Seca e Urubu há hum pequeno arraial e alli nos
dias santificados há reuniões de vadios e folgazões e com intervenções de
escravos dos differentes pontos onde se tem tratados de negócios perigosos,
correndo o boato que no último maracatu de sábado passado. Domingo proximo
passado número mais de 500 escravos; de differentes engenhos, Vicência e de
outros lugares. Entrando portanto na devida apresiação disto tenha concluído
que o facto é verdadeiro (...) que a pretesto de cavallos marinhos e outros
brinquedos desta ordem alli se reúnem para fim sinistros. Hoje prestei auxilio ao
Sr. do Engenho Alagoa Secca, para capturar dous escravos seus que dizem
serem influentes neste negócio, correndo a acuzação do ditto Sr. de engenho
cujo rezultado ainda ignoro, e como tudo isso seja no próximo Districto dessa
Cidade cumpre que Vsa deixar ordem corrente devendo scientificar-lhe que
também informando que de Sábado próximo vindouro a oito dias há reunião
naquele ponto; será pois conveniente que na noite do indicado dia esteja a
Polícia em atitude em todos os pontos da comarca; para se conhecer da verdade,
capturando quantos escravos transitarem sem motivo justificado. 753

Essa ocorrência levou a um inquérito policial que intimou cerca de 30 escravos.


Dentre as denúncias constava que em meio ao divertimento os escravos começaram a dar
―Vivas à liberdade‖ afirmando que estariam livres. No mais, segundo o delegado, os
escravos brincadores dos folguedos estavam prometendo se reunir para em seguida
matarem seus senhores e saquearem as vilas da comarca de Nazareth. No inquérito, os 30
escravos participantes do samba negaram as acusações. No entanto, dois escravos, José e
Luis, afirmaram que realmente existia um escravo de nome Constâncio, escravo do Capitão
Ignácio Xavier de Albuquerque, senhor do engenho Bonito, que estaria pela região a dizer
que os senhores já tinham em seu poder a ―própria‖ liberdade dos escravos. A notícia

753
Ofício para o delegado de polícia, José Cavalcanti Wanderley do Subdelegado. Subdelegacia de Polícia do
3º Distrito de Alagoa Seca . 8 de março de 1871. SSP Nazaré 247 vol 652 APEJE/Recife.

452
mereceria, portanto, uma ação coletiva dos negros os quais, segundo os relatos,
programaram uma reunião no Engenho Alagoa Seca, durante a festa, para em seguida,
juntos, cobrarem suas cartas de liberdade dos seus senhores.
Para além da dimensão simbólica que a realização deste folguedo pode ter
proporcionado, como por exemplo, toda a representação e (re) significação culturais
possíveis do Maracatu e do Cavalo Marinho expostas em demasia anteriormente, o
acontecimento acima relatado pela polícia evidencia o universo social e, por que não,
político, vivido pelos escravos brincadores do folguedo. Vale ressaltar que o acontecido
demonstra justamente a possibilidade da convergência entre festividade e reivindicação
pela liberdade. Mais ainda, gostaria de entender o porquê da escolha dessa convergência, e
não, por exemplo, a opção mais radical por uma rebelião, ou de fato, um levante, uma
―insurreição‖ como delegados e senhores gostaram de denominar o acontecido. Vale dizer
que as festas ou ―as reuniões‖ ocorriam normalmente nos dias santificados, porém, havia
algum tempo, nos anos 70 do XIX, os escravos estavam tratando de ―negócios perigosos‖.
Seriam as festas um instrumento de disfarce? Ou um veículo de mediação?
Já existia um boato, por parte dos senhores de engenho Antônio Tavares e Araújo e
Luiz de Andrade de Albuquerque Maranhão, engenhos Junquara e Gotibinha, de que ―as
fábricas‖ (escravos) dos engenhos envolvidos com a festividade se achavam
insubordinadas. No próprio engenho de Alagoa Seca, historicamente os escravos se
mostraram insatisfeitos com suas condições de vida. Em maio de 1860, o delegado suplente
de Nazareth escreveu um ofício ao chefe de polícia de Pernambuco, avisando-o que aquele
Termo já havia tomado as providências necessárias para neutralizar as ―vistas sinistras com
que procederam aos escravos daquela propriedade‖.754
Narrou o Inspetor Jacintho que no dia 13 de maio o senhor de engenho de Alagoa
Seca chamou-o para que lhe socorresse diante de um atentado violento de seus escravos.
Ao chegar ao engenho, o inspetor encontrou junto da casa de vivenda um cachorro morto a
tiros. Soube então que os escravos, que estavam presos em um tronco, tinham fugido. Dois
dias depois, as diligências policiais conseguiram capturar 3 escravos do grupo que
assassinara o cachorro. Entre estes, um dos que fugira do tronco prestou depoimento. Na

754
Ofício do delegado suplente de Nazareth para o chefe de polícia de Pernambuco, Tristão de Alencar
Araripe. Delegacia de Nazareth, 19/05/1860. SSP Nazaré 244. APEJE/Recife.

453
declaração, o cativo confessou que tinha sido o negro Luciano que atirara no cachorro e que
a chave do tronco tinha sido dada por uma escrava da casa. Disse também que o negro de
nome Theodósio tinha dado um tiro de picadeiro do engenho para a casa de vivenda, disse,
finalmente, que ocorreu um ―concerto para se armarem‖ porque não queriam mais servir a
seu senhor. Depois o mesmo inspetor encontrou na senzala do engenho Gameleira, do
mesmo proprietário do Engenho Alagoa Seca, facas de ponta e armas que estavam em
poder dos escravos. Regressou ao engenho Alagoa Seca e cercou as matas entre os dois
engenhos a fim de prender os escravos fugitivos, principalmente, os citados Luciano e
Theodósio. No mesmo mês, o delegado de Nazareth escreveu ao chefe de polícia de
Pernambuco a fim de esclarecer alguns boatos que estavam sendo publicados no Jornal o
Liberal, e que alarmavam as pessoas sobre a existência de um grupo de indivíduos armados
que estariam percorrendo as localidades a fim de roubarem os pacíficos cidadãos. Tal
boato, segundo o delegado, estava até mesmo animando os escravos a ―urdirem tramas
horríveis‖ contra seus senhores como aconteceu no Engenho Alagoa Seca.755
Os escravos do Engenho Alagoa Seca e vizinhos (Gameleira) não estavam contentes
com as condições de vida que estavam vivendo nos anos 60 do XIX. Armaram-se,
reuniram-se, agiram em conjunto em busca da liberdade e ameaçaram simbolicamente a
vida do senhor através de atos violentos contra o cão da casa. A polícia era acionada,
cumpria o seu papel e também se defendia perante a imprensa da oposição (liberal)
buscando atrelar a culpa da rebeldia cativa às disputas políticas. Será que realmente existia
alguma ligação? Como observamos no capítulo 2, a briga entre liberais e conservadores era
frequente em toda a província, e também na comarca de Nazareth. As acusações eram
mútuas e, muitas vezes, entre elas existia a acusação de roubo de escravos e/ou a proteção
de criminosos. Diante deste histórico sócio-político, é bem provável que ideias da liberdade
chegassem até os ouvidos dos cativos por abolicionistas locais, fato que não desconsidera a
possibilidade dos próprios escravos buscarem as informações por conta própria e, diante
dos conflitos dos ―grandes‖, encontrarem seus espaços de luta. Em 1871, as falas dos
escravos, moradores dos mesmos engenhos, parecem trazer mais indícios sobre estas
possibilidades.

755
Ofício do delegado suplente de Nazareth para o chefe de polícia de Pernambuco, Tristão de Alencar
Araripe. Delegacia de Nazareth, 23/05/1860. SSP Nazaré 244. APEJE/Recife.

454
Em 14 de março de 1871, José Luis, nascido em Tracunhaém, 30 anos, escravo do
Capitão Ignácio Xavier Carneiro de Albuquerque, ao responder a pergunta da polícia acerca
da pretensão dos escravos de exigirem por meio da força a liberdade a seus senhores,
respondeu que chegando sexta-feira à noite de Igarassú (PE) com cal que seu senhor
mandara comprar, ele, depois de ―dar as contas‖ ao senhor, estendeu um saco na porta de
sua casa e cochilou. Mais tarde seu cunhado Chinhão, escravo também de seu senhor,
acordou-o e pediu que José Luis entrasse na casa. Este, ao entrar, encontrou seu irmão
Constantino, José, escravo de João Curado, genro de seu senhor, e Fellis, escravo no
engenho Tupacu, mais Marcelino e outros, os quais estavam conversando ―a respeito da
liberdade dos escravos‖. Ao começar a se aproximar do grupo, José perguntou a José Luiz
se falava da liberdade dos escravos. Este respondeu que sim, que se falava ―muito, muito‖ e
que seu próprio senhor disse a ele e aos outros no terreiro que a liberdade estava por vir,
não sabendo, porém, determinar o tempo e que então o senhor aconselhou aos escravos que
―trabalhassem com gosto‖. José Luiz disse que após esta declaração a seus camaradas pediu
a eles que mudassem de assunto, pois outros podiam contar a seus senhores. Os camaradas
atenderam a solicitação, encurtaram a conversa e foram embora. Por último, o escravo
contou ao delegado que não sabia o que os filhos do Capitão disseram sobre a liberdade,
mas que a escrava Vitória disse que achava que ainda faltavam uns seis anos e que os
escravos deveriam desejar o eito.756
O escravo Luiz, 40 anos, natural de Pau d‘Alho (PE), solteiro, morador do Engenho
Rozario, escravo de Antônio de Holanda Cavalcanti Wanderley, também foi interrogado.
Ele contou que indo para Recife, no início do mês de março, ao passar no rio Tracunhaém,
terras do Engenho Bonito, encontrou Constâncio, escravo do Capitão Ignácio Xavier de
Albuquerque, senhor do mesmo engenho, que lhe perguntou se sabia algo sobre a liberdade
e Luiz respondeu que nada sabia. Mesmo diante da resposta negativa, Luiz contou que
Constâncio continuou o assunto dizendo que seu senhor já tinha em seu poder ―as próprias
liberdades dos escravos‖. Diante desse fato, Constâncio convidou o declarante para se
reunir com os outros escravos que vinham de vários engenhos da região a fim de irem à
casa do senhor para exigirem a liberdade e depois também seguirem para o Engenho Sipoal

756
Termo de Interrogatório feito a José Luis, escravo do Capitão Ignácio Xavier Carneiro de Albuquerque.
Delegacia de Nazareth. 14/03/1871. SSP Nazaré 247 vol 652 APEJE/Recife.

455
com o mesmo fim, isto é, exigirem dos senhores ali residentes a liberdade de seus escravos
e dali seguirem livres procurando outros engenhos. Com esta proposta, Luiz afirmou à
polícia que Constâncio disse para não se ―meter no eito por ser negro era nada‖ e que daria
fim aos brancos. Luiz, no entanto, declarou que não aceitou o convite. O delegado ainda
perguntou a Luiz quem era o chefe desses escravos, e ele respondeu que o ―chefe dos
barulhos‖, segundo dizia o mesmo Constâncio, era José Luiz, escravo do mesmo Capitão
Ignácio Xavier, e outro escravo do engenho Urubu. No mais, Luiz afirmou que Constâncio
disse que os escravos do engenho Alagoa Seca estavam todos ―combinados‖. 757
A polícia interrogou ainda outros escravos que supostamente participaram do samba
no Engenho Alagoa Seca e tinham a intenção de matar e roubar seus senhores. Entre as
perguntas, o delegado queria saber se os escravos tinham ouvido falar sobre o fim da
escravidão, se houve gritos de liberdade no samba, se existiam libertos no samba, quem era
o chefe, e - as duas questões mais interessantes - se tinham sido convidados para irem à
Capela Conceição com o fim de ouvirem a leitura do papel da liberdade que estava em
poder do capelão e se tinham ouvido falar que a ―Rainha‖ viria para o Recife dar a
liberdade a todos os escravos. As respostas foram variadas. Os escravos do Engenho
Ribeirão Grande responderam negativamente para todas as questões. Alguns escravos dos
engenhos Camaleões responderam que ouviram falar do samba que ocorrera no Alagoa
Seca e foram para lá, sem serem chamados por ninguém. Responderam, no entanto, que
tinham muitos negros e que apenas conheciam Rufino, escravo do mesmo engenho e que a
festa tratava-se da comemoração do batizado do filho do mesmo. O escravo Antônio, de
Camaleões, disse que ouviu gritos de ―viva a livre aguardente‖ e que conhecia dois libertos,
Manoel Calitó e Manoel Cocó, ambos residentes do engenho Alagoa Seca. O escravo Luiz
do Sipoal disse que também viu um negro livre presente no samba, era Batico, morador do
engenho Alagoa Seca. Alexandre, escravo do engenho Caricé, por outro lado, disse que
tinham muitos libertos, entres eles Constatino, Manoel Calixto, Luisa, todos moradores do
engenho Camaleões. Porém, a informação mais interessante da declaração do negro
Alexandre foi a de que ele fora convidado por Rufino, chefe do samba, para saírem pelas
vilas para procurarem o papel da liberdade e que de fato eles andavam procurando direitos

757
Termo de Interrogatório feito a Luis, escravo do Antônio de Holanda Cavalcanti Wanderley. Delegacia de
Nazareth. 27/03/1871. SSP Nazaré 247 vol 652 APEJE/Recife.

456
para serem forros. Um tal de João Mandeiga do Engenho Papicú já tinha dito que os negros
estavam todos forros, era necessário apenas que a ―Rainha‖ viesse.758 Esta declaração
também foi confirmada pelo escravo Juvenal do engenho Camaleões759 e por João
Soiabom, escravo do Engenho Alago Secca, que apesar de não ter ido ao samba pois estava
doente, respondeu que na festa deram vivas apenas a Rufino e Daniel (filho de Rufino), e
que ouviu dizer daquele que ―a rainha‖ vinha para Recife dar a liberdade a todos os
escravos.760
O escravo Rufino confirmou que fez o samba por ter batizado seu filho na festa de
Natal e que convidou apenas 4 escravos do Engenho Terra Preta, Thomé da Várzea Grande
pertencente ao senhor do Engenho Sipoal, Genoveva, Antônio Camandango e Maria, todos
escravos do senhor Manoel Gomes, senhor do engenho Coricó. Não convidou mais
ninguém e os escravos e forros que estavam no samba foram por curiosidade. Sobre a
leitura do papel da liberdade durante a missa da Conceição na Capela de Alagoa Seca,
Rufino afirmou que não foi convidado por João, escravo de Antônio Campello, porém,
encontrou Joana que foi convidada e que ele não teve nenhum conhecimento. Disse
também que não conhecia José Luiz, escravo do Capitão Ignácio do Engenho Bonito e que
não estava programando nenhuma vingança ao seu senhor, nem roubá-lo e que também não
deu ―vivas à liberdade‖ durante o samba. Perguntado a ele em que lugar tinha feito o
samba, Rufino respondeu que realizou-o entre a casa do forro Joaquim Guabirú e uma
mulher de nome Vicência que moravam fora do cercado do engenho de seu senhor, mas
bem próximo. A polícia diante deste fato questionou por que ele não fez o samba dentro da
senzala, o escravo respondeu que não o fez com receio que seu senhor brigasse. Quanto aos
―vivas‖, Rufino afirmou diante do delegado que ocorreram apenas dois ―vivas‖: um a ele e
o outro a Daniel, seu filho.761
Joaquim Gabiru, forro, agricultor, confirmou a história de Rufino. Contou que, no
dia 5 de março, chegou um escravo do senhor de engenho de Alagoa Seca pedindo

758
Termo de Interrogatório feito a Alexandre, escravo do engenho Caricé. Delegacia de Nazareth.
11/03/1871. SSP Nazaré 247 vol 652 APEJE/Recife.
759
Termo de Interrogatório feito a Juvenal, escravo do Engenho Camaleões. Delegacia de Nazareth.
11/03/1871. SSP Nazaré 247 vol 652 APEJE/Recife.
760
Termo de Interrogatório feito a João Soiabom, escravo do Engenho Alago Seca. Delegacia de Nazareth.
13/03/1871. SSP Nazaré 247 vol 652 APEJE/Recife.
761
Termo de Interrogatório feito a Rufino, escravo do Engenho Alagoa Secca. Delegacia de Nazareth.
11/03/1871. SSP Nazaré 247 vol 652 APEJE/Recife.

457
consentimento para fazer um samba em sua casa. Joaquim, no entanto, não teria permitido e
por isso o folguedo foi feito numa várzea próxima dali. No mais, ele confirmou a história
de que o evento aconteceu por causa do batizado do filho de Rufino, ou pelo menos, foi
isso que ouviu do próprio escravo.762
No final do inquérito, a polícia concluiu que o fato tratava-se de uma ―insurreição‖
programada e que apenas não deu certo, pois no samba da madrugada do dia 4 de março
faltaram algumas ―fábricas‖, mas que os escravos estariam programando um novo encontro
para dia 12, o que também não ocorreu uma vez que a polícia, junto com alguns senhores,
cercou as senzalas e prenderam 32 escravos. Estes foram castigados ―com moderação‖ e
depois entregues aos seus senhores.763
Quais são os significados que podemos aferir em cima deste conjunto de
informações? Primeiramente, podemos afirmar que é bem provável o descontentamento dos
escravos do engenho de Alagoa Seca e circunvizinhos. Não apenas pelos indícios de uma
―revolta‖ em torno do samba, mas pelo histórico de rebeldia que vem desde 1860. Quanto à
festa de março de 1871, parecia ser algo costumeiro, isto é, era costume os escravos
realizarem ―sambas‖ inclusive dentro das senzalas, e em outras situações, nas matas dos
engenhos. No entanto, em março de 1871 parece que algo a mais envolveu a reunião dos
escravos. Alguns cativos confirmaram que estavam conversando sobre a liberdade e que
alguns negros, inclusive o dono do samba, estavam afirmando que ―a liberdade‖ ou o
―papel da liberdade‖ estava em mãos dos senhores, e que na verdade, tinha sido trazido pela
―Rainha‖. No mais parece que este ―papel‖ teria sido lido em uma missa em homenagem à
Nossa Senhora da Conceição por um capelão local. Assim, de antemão, podemos concluir
que um samba, reunindo ao mesmo tempo Macaratu e o brinquedo do Cavalo Marinho,
pode ter sido um momento, entre outros, dentro do cotidiano dos escravos e libertos dos
Engenhos Sipoal, Urubu, Camaleões, Alagoa Seca e Caricé localizados na comarca de
Nazareth, que serviu para fortalecer um sentimento de identidade, possíveis trocas de
ideias, lazer e a construção simbólica e real sobre a liberdade. Além disso, diante do
acontecido, algumas questões chamam-nos atenção: de que Rainha os escravos estavam

762
Termo de Interrogatório feito a Joaquim Gabiru. Delegacia de Nazareth. 10/03/1871. SSP Nazaré 247 vol
652 APEJE/Recife.
763
Ofício de José Cavalcanti Maurício Wanderley, delegado de polícia de Nazareth para, Luiz Antônio
Fernandes Pinheiro, chefe de polícia de Pernambuco. Delegacia de Nazareth. 14/03/1871. SSP Nazaré 247 vol
652 APEJE/Recife.

458
falando? Quais as ligações entre religião católica e as festividades negras, bem como, o
movimento pela liberdade?
Corroboramos com os relatos dos escravos sobre a liberdade através das dezenas de
alforrias conquistadas durante o período de 1865 a 1888. Como observamos no capítulo
anterior, o acesso à carta de alforria ocorreu de diversas maneiras – testamento, pecúlio,
livre vontade do senhor - incluindo ações na Justiça. Nesse sentido, as evidências levam-
nos a crer que os escravos tinham consciência sobre os caminhos de conseguir a liberdade,
bem como, conversavam sobre isso e se organizavam para tanto. Mais ainda, tinham
condições de discernir sobre seus direitos e condições justas de vida, afinal, os relatos
dizem que eles precisavam reivindicar uma liberdade já conquistada, mas que estava nas
mãos dos senhores, era necessário apenas fazer a ―justiça‖ conquistando o que lhes era de
direito. Por outro lado, como constatamos no capítulo anterior, muitas das alforrias
conquistadas foram alcançadas através de uma liberdade condicional, na qual os escravos
deveriam ainda pagar alguns anos de serviço ou esperar a morte do senhor, do cônjuge ou
dos filhos para serem livres de fato. A experiência de ―esperar‖ a liberdade, portanto,
também era algo costumeiro entre os escravos. A fala do senhor Capitão Ignácio de
Albuquerque para seu escravo José Luiz, de que a liberdade estava próxima, bastasse
apenas que os escravos continuassem a trabalhar com gosto, leva-nos a crer na construção
por parte dos senhores, e aceita em parte pelos escravos, de uma cultura da obediência, da
recompensa, do trabalho árduo que renderia frutos. Cultura que contrapunha e ao mesmo
tempo dialogava com uma cultura festiva e/ou de resistência, de rebeldia e de luta. Aqui
vale ressaltar as considerações de Marcelo Mac Cord sobre as realizações do Maracatu de
Baque Virado ou Nação na segunda metade do XIX no Recife. O autor citando os relatos
de Ascenso Ferreira salienta que os senhores reprimiam os participantes do folguedo e
puniam-nos com mais trabalho. Assim, na visão de Mac Cord, o folguedo se dirigia de
encontro à ordem e entre as principais características no intenso movimento de
criminalização, estava a total negação do mundo do trabalho.764 De acordo com estas
considerações, acrescento que não vislumbro essas contraposições como pressupondo a
existência de duas culturas (uma da festa e outra do trabalho) antagônicas e excludentes.

764
MAC CORD, Marcelo. O rosário dos homens pretos de Santo Antonio: alianças e conflitos na história
social do Recife, 1848-1872. Dissertação de Mestrado, Campinas, IFCH/UNICAMP, 2001, p. 208-210.

459
Acredito na construção e na constituição dialógica destas culturas, isto é, cultura do
trabalho, da festa, da luta e da obediência se constituindo enquanto tais de forma relacional
umas com as outras, ora se contrapondo, ora se harmonizando. O dono do samba, Rufino,
através de seu relato, expõe o quanto era maleável a prática dos escravos. Na verdade, todos
os escravos envolvidos com a festa e os outros, que buscaram suas liberdades sob
condições e/ou através do pecúlio, nos revelam o quanto às ações dos escravos em busca da
liberdade eram estratégicas e táticas. Em outras palavras, não era simplesmente uma
aceitação das condições impostas pelos senhores, mas os escravos possivelmente agiam
conscientes de que diante das opções disponíveis naquela conjuntura específica, recuar ou
lutar, dependia de muitos fatores. Obviamente, a meta era a liberdade para si e para os seus,
mas o caminho para isso tinha que ser trilhado dentro do jogo de sobrevivência
estabelecido. No mais, vale ressaltar que o senhor do engenho de Alagoa Seca, Henrique
Campello, assim como o Capitão Ignácio de Albuquerque e os senhores dos engenhos
Urubu, Sipoal, Camaleões e Caricé não assinaram nenhuma carta de alforria a seus
escravos entre 1865-1888. Segundo minha pesquisa, não verifiquei nenhum processo de
liberdade envolvendo estes senhores, apenas com uma exceção em 1874. Neste ano,
Henrique Campelo ao receber de sua escrava Luiza, esposa de Martinho, 500$000 réis,
assinou sua carta de liberdade. Vale ressaltar que Luiza não era escrava de Henrique, e sim
do seu pai que ao morrer deixou-a como herança. Podemos, portanto, concluir, que o
senhor Henrique Campelo e os outros senhores envolvidos no acontecimento não tinham
costume de libertar seus escravos, e estes, pelo visto, sabiam bem disto. Por outro lado,
possivelmente, para os escravos destes engenhos, eram difíceis as condições para se juntar
um pecúlio em busca da liberdade. E, justamente, por estes motivos, e talvez outros não
evidentes, a relação senhor-escravo também se constituiu em voltas às culturas festivas, de
luta e de rebeldia.
E para entender melhor esta percepção da cultura festiva como integrante desta
relação senhor-escravo, vale observarmos as pesquisas sobre o Caxambu. Stanley Stein em
seus estudos sobre os escravos das fazendas de café no município de Vassouras (RJ), ao
analisar a manifestação cultural do Caxambu, realizada pelos escravos em uma cerimônia
de posição intermediária entre o religioso e a diversão secular, características bem
parecidas com o Cavalo Marinho ou Boi, verificou que nos regulamentos municipais após

460
1831 os fazendeiros tentaram restringir o Caxambu para escravos de uma só fazenda a fim
de que o encontro não gerasse a oportunidade para que: ―organizassem sociedades ocultas,
aparentemente religiosas, mas sempre perigosas pela facilidade com que algum negro
inteligente poderia utilizá-la para fins sinistros‖.765 Aqui vale ressaltar que Stein percebeu a
ligação entre o caxambu/jongo com o mundo espiritual dos escravos, ―laico no tema,
embora criado em torno de elementos religiosos africanos como o tambor, o solista, o coro
responsório e os que dançavam‖766, no entanto, Slenes, em seus estudos sobre o Jongo,
buscou especificar a natureza precisa dessa conexão com o Outro Mundo, e identificar suas
origens africanas. Destaca Slenes que Stein documentou a natureza comunitária do
caxambu/jongo. A presença de escravos de outras propriedades nessas festas (que
continham danças e canções visando honrar a macota, os anciãos da senzala) e os convites
transmitidos para eles através de cantos de trabalho cifrados sugerem a existência de um
nexo social mais amplo, mantido por uma rede de comunicação em que jongos e jongueiros
desempenhavam um papel significativo.767
Nesse sentido, Slenes buscando alcançar os problemas levantados por Stein, e com
vistas a uma recente bibliografia sobre África Centro Ocidental e Oriental, consegue
demonstrar que kumba e makumba, em suas várias formas e significados em kikongo,
―estavam no âmago do que os jongueiros cumba faziam e do que eram.‖768 Para Slenes,
isso significa que esses ―guardiões dos tambores‖, esses (futuros) integrantes da macota,
esses nkümbi ou sábios cavadores de estradas para o Outro Mundo (como Slenes ressalta,
que em algum momento de sua ―jornada‖ brasileira deixaram de ser grandes ratos centro-
africanos para assumir-se como tatus, especialmente tatubebas), devem ter tido um lugar
proeminente nos ―cultos de aflição‖, frequentemente chamados na África de nogma, ou
―tambores (de aflição)‖: isto é, na liderança escrava.

Quando cativos em Vassouras, organizando-se dentro de um ―tambor


(comunitário) de aflição‖, semelhante aos do kongo, conspiraram em 1848 para
levantar-se contra a escravidão – ajudando, assim, a destruir o consenso dos
escravocratas a favor do tráfico – os jongueiros cumba seguramente estavam lá,

765
STEIN, op. cit., 1985, p. 244.
766
STEIN, op. cit., 1985, p. 243.
767
SLENES, op. cit., 2007, p. 115.
768
SLENES, op. cit., 2007, p. 155.

461
abrindo linhas de comunicação entre suas várias comunidades e também com
espíritos territoriais e ancestrais brasileiros.769

Em nosso estudo, não alcançamos tal profundidade analítica de Robert Slenes,


porém sugerimos que africanos e descendentes africanos que possuíam ―culturas boeiras‖
podem ter (re) significado suas experiências através do nosso folguedo brasileiro. Ao
mesmo tempo, na comarca de Nazareth os sambas também ocorriam de forma a atrair e
reunir diversos escravos e livres dos vários engenhos da localidade. Portanto, a troca e a
constituição de possíveis representações comunitárias também eram reais. Existia uma
dinâmica, que a festa possibilitava, de reunir trabalhadores rurais de vários espaços de
trabalho – engenhos - para coletivamente realizarem uma manifestação comum confluindo
identidades e conflitos. Quanto a possíveis restrições das autoridades, a única referência
que encontramos foi a Lei nº 1.614, de 1857, nas posturas adicionais da Câmara Municipal
de Nazareth, no artigo 17 que dizia: ―Ninguém poderá rufar tambor, tocar búzios e fazer
alaridos depois do toque de recolher, sob pena de 2$000 de multa e dous dias de prisão‖. 770
No entanto, sabemos que em alguns municípios de Pernambuco, como salienta Clarissa
Maia, no século XIX, as ―danças dos pretos‖, em geral, como demonstram as posturas,
estavam ganhando espaço a ponto de o legislador aplicar penas diferentes tanto para os
livres quanto para os cativos que delas participassem. Todavia, a autora destaca que em
alguns municípios encontramos a punição generalizada em 1874: ―art. 58 – Ficam
prohibidos em todo o município os batuques e samba: os contraventores serão presos por
24 horas, alem da multa de 2$000‖.771 De qualquer modo, não notamos que a realização do
folguedo em Nazareth se constituísse como proibida no ano de 1871, pelo contrário,
constatamos que era um costume a realização destes. Por outro lado, parece que os escravos
na ocasião decidiram mudar o lugar que costumeiramente faziam as festas: tiraram da
senzala e foram para fora das terras dos engenhos, nas várzeas e nas matas onde moravam
os livres e libertos.
Como observamos, dentre as respostas dadas pelos livres e escravos interrogados
pela polícia, a maioria respondeu que o samba, organizado pelo escravo Rufino do engenho
769
SLENES, op. cit., p. 155.
770
Posturas municipais de Pernambuco ano de 1857. APEJE/Recife.
771
PM de Bom Conselho, lei no 1171, de 26/04/1874, APEJE/Recife. Apud MAIA, Clarisse Nunes. Sambas,
batuques, vozerias e farsas públicas: o controle social sobre os escravos em Pernambuco no século XIX
(1850-1888). São Paulo, Ed. Annablume, 2008, p. 103.

462
Alagoa Seca, ocorreu por conta do batizado do menino Daniel, filho do mesmo. Rufino
confirmou a história. No entanto, quanto aos gritos de Vivas, muitos disseram que não
ouviram nada, outros que ouviram Vivas ao menino. O curioso é que mesmo aqueles que
responderam que não foram ao samba, afirmaram que os gritos de Vivas foram em nome do
batizado, o que deixa-nos um pouco intrigados quanto à veracidade. Mais ainda quando
constatamos alguns escravos como: Alexandre do Engenho Caricé, Juvenal do Engenho
Camaleão e João de Alagoa Seca que afirmaram diante da polícia ouvir Rufino dizer que a
Rainha viria para o Recife dar a liberdade a todos os escravos e que por isso já estariam
todos os negros ―forros‖.772
Existiam evidências, portanto, que de fato o organizador do folguedo conversava,
pensava e almejava a liberdade dos escravos. Ou nas palavras dos próprios escravos,
andavam procurando seus direitos para se tornarem ―forros‖. O ano de 1871 foi marcado
pela Lei do Ventre Livre, datada de 28 de setembro de 1871, que declarava: ―de condição
livre os filhos das mulheres escravas que nascessem a partir da data da Lei, libertos os
escravos da Nação e outros, e providenciava sobre a criação e tratamento daqueles filhos
menores e sobre a libertação anual de escravos‖ (discutimos esta lei nos capítulos
anteriores). É possível, assim, que já em março de 1871 houvesse rumores de que a
legislação estava para ser modificada em favor da liberdade dos escravos. Algum escravo
que trabalhasse na casa grande, ou transitasse em ambiente doméstico, poderia ter ouvido
os senhores conversarem sobre essas discussões parlamentares sobre o processo de
emancipação e concluído que a liberdade viria para todos. Pode ser que os boatos sobre a
liberdade estivessem prosperando entre os escravos de Pernambuco, principalmente, a
partir da Guerra do Paraguai. Como coloca Sidney Chalhoub, depois do abandono das
discussões sobre a emancipação por conta da Guerra do Paraguai, inclusive, com o convite
de D. Pedro II aos conservadores para formarem um novo gabinete em 1868 - entre eles
773
estavam ―a fina flor da resistência escravocrata‖ , visconde de Itaboraí, o barão de
Muribeca, Paranhos, José de Alencar os quais se recusaram a debater a questão da
emancipação - em 1870, com o fim da Guerra do Paraguai, os rumos começaram a mudar, e
a Câmara dos Deputados nomeou a comissão para elaborar parecer e projeto sobre a

772
Interrogatório ao escravo Alexandre, Juvenal e João. Delegacia de Policia de Nazareth. 11.03.1871. SSP
Nazaré 247 vol 652 APEJE/Recife.
773
CHALHOUB, op. cit., 2003, p. 163.

463
questão do elemento servil.774 Assim, removido o espetáculo da guerra e auxiliado pela
oposição firme e constante ao gabinete Itaboraí, liderada por Nabuco de Araújo no Senado,
em setembro de 1870, d. Pedro II livrou-se do gabinete escravocrata e convidou exatamente
Pimenta Bueno (Visconde de São Vicente) para formar ministério e conduzir o problema da
emancipação no parlamento. Porém, em março de 1871 ocorre nova mudança de gabinete,
e Visconde de São Vicente cedeu a vez a Paranhos (Visconde de Rio Branco) que com
fama de ―prudente‖ aderiu à causa por conta de suas experiências diplomáticas com o
Uruguai e Argentina defendendo o quanto manter a escravidão manchava a imagem do
Brasil nos países vizinhos.775 Esta retomada dos trabalhos pode ter causado alvoroços entre
políticos e senhores e alcançado os ouvidos dos escravos informando-os de que a liberdade
estava mais próxima do que nunca.
Flávio Gomes no seu estudo sobre quilombolas do Turiaçu-Gurupi, Maranhão,
afirma que a conjuntura da Guerra do Paraguai influenciou nos temores dos senhores por
revoltas negras nos quilombos da província do Maranhão (região de Viana a Turiaçu-
Gurupi). Se os escravos já procuravam roubar pólvora e munição, enviar manifesto e
pretender ficar libertos ou ―gozarem de sua liberdade‖ no quilombo, a guerra e o
recrutamento para as tropas e para a Guarda Nacional também funcionaram como ―tempero
naquele caldeirão‖.776 Como coloca Gomes,

Se fizeram palpitar os corações se senhores e autoridades também podem


ter sido percebidos e avaliados pelos quilombolas. O próprio quilombola
Martiniano disse que soube no mocambo ‗que Lopes do Paraguai estava tratando
da liberdade deles‘. Havia aqui uma percepção clara dos cativos sobre a Guerra
do Paraguai e seus significados para a massa escrava. Não só porque o
contingente militar estava enfraquecido. Do Maranhão, sabe-se que pelo menos
157 escravos foram libertados para lutar no Paraguai. Lutariam lado a lado com
brancos livres pobres.777

Para Gomes, com a Guerra do Paraguai em curso e um contingente de negros, ex-


escravos enviados para o campo de batalha, o medo ganharia outros contornos. Ainda que
os senhores e autoridades acreditassem que as ideias estavam sendo propagadas de forma
vaga e confusa, estas estavam informadas de que os negros acreditavam que a Guerra teria

774
CHALHOUB, op. cit., 2003, p. 163.
775
Idem, op. cit., p. 164 e 165.
776
GOMES, Flávio dos Santos. A hidra e os pântanos. Mocambos, quilombos e comunidades de fugitivos no
Brasil (séculos XVII – XIX). São Paulo, Ed. Unesp, Ed. Polis, 2005, p. 211.
777
GOMES, op. cit., 2005, p. 211.

464
alguma afinidade com a sua libertação. Segundo o autor, fazendeiros, administradores e
feitores encontravam-se atentos e já reclamavam que ―um ou qual‖ espírito de
insubordinação crescia entre os escravos.778 Assim, para Flávio Gomes, conjuntamente com
as discussões parlamentares sobre a emancipação dos escravos, existiam a Guerra do
Paraguai e o problema do recrutamento militar, sem falar das ideias de liberdade que
circulavam. No mais, chegavam notícias sobre a guerra civil americana e a libertação dos
escravos nos EUA e as disputas diplomáticas entre Brasil e Inglaterra. ―E os escravos
percebiam, construindo significados para as mesmas – modificando-as – a partir de suas
próprias lógicas‖.779 Nesse sentido, partindo dessas evidências constatadas por Gomes
sobre a província do Maranhão, talvez possamos sugerir que depois do término da Guerra
paraguaia as ―ideias‖ e os ―murmúrios‖ sobre a liberdade, possivelmente, germinadas por
conta do recrutamento, aumentaram suas repercussões após o término da Guerra e com a
retomada das discussões parlamentares. Os escravos de Pernambuco também podem ter
percebido a nova conjuntura escravista e o medo senhorial que se formara em torno disso
tudo.
Nessa perspectiva, podemos aferir que a Rainha a qual os escravos se referem pode
ser de fato a Princesa Isabel a qual, no início de 1871, foi para a Europa visitar sua irmã
mais nova Leopoldina que estava com tifo e que faleceu em 7 de fevereiro de 1871. Logo
depois D. Pedro II antecipou sua viagem à Europa e Dona Isabel e o marido tiveram que
renunciar aos prazeres da Europa e voltar ao Brasil. Porém, chegaram ao Rio de Janeiro
apenas em 1º de maio. ―Ela se viu num mundo novo e desconhecido, no qual agora ocupava
um lugar central, e tinha de passar pelo teste do desempenho de um papel. Foi seu pai que a
colocou ali ‖.780 É importante ressaltar aqui, como salienta Barman, que na segunda metade
da década de 1860, D. Pedro II tinha dois objetivos em mente: o extermínio de López no
Paraguai e a libertação dos escravos no Brasil. Uma vez atingida a primeira meta em março
de 1870, ele se voltou imediatamente para a realização da segunda. Assim, em março de
1871 o soberano nomeou um novo gabinete, liderado pelo Visconde do Rio Branco e

778
GOMES, op.cit., 2005, p. 219.
779
Idem, op. cit., 2005, p. 221.
780
BARMAN, Roderick. Princesa Isabel do Brasil: gênero e poder no século XIX. São Paulo, Ed. Unesp,
2005, p. 154 e 155.

465
encarregado de um amplo programa de reformas, inclusive a extinção gradual da
escravidão.781

Esse programa seria apresentado na fala do trono, por ocasião da abertura


da nova sessão legislativa, no começo de maio. Mas quando se iniciassem os
debates sobre a lei dos escravos, D. Pedro II estaria na Europa, não no Brasil.
Ausentando-se, ele sabotava os adversários da lei. Não poderiam acusá-lo de
inibir, com sua presença, um debate franco e aberto sobre o decreto do gabinete.
Em vez disso, ele deixou o país nas mãos de uma moça inexperiente. (...) Depois
de manter a filha excluída dos negócios públicos, agora D. Pedro fazia dela e de
sua inexperiência uma arma tática de grande utilidade. Era o visconde do Rio
Branco, o chefe do gabinete, quem assumiria efetivamente o controle durante a
ausência do monarca, mas este julgou necessário orientá-lo um pouco no papel
de regente. 782

Isabel assumiu como regente com plenos poderes a partir de 15 de maio, quando a
lei entrou em vigor. Antes disso, constata Barman que a princesa não foi incentivada a se
preocupar com a coisa púbica. Podemos concluir, portanto, que muito menos ela poderia ter
adquirido alguma imagem pública, e entre os escravos, de redentora, ou ―rainha da
libertação‖. A documentação policial encontrada data do início de março de 1871, assim é
possível que todos esses fatos tenham sido comentados no cotidiano dos engenhos ou nas
vilas e cidades, e, por conta disso, os escravos estivessem cientes de que D. Pedro II ao ir
para Europa deixaria o trono para Dona Isabel. No entanto, março de 1871 ainda é muito
cedo para a construção da imagem da Princesa como a ―libertadora‖ entre os escravos da
Zona da Mata Norte de Pernambuco. Mais provável de divulgação e de propagação são as
notícias de que, cessada a Guerra do Paraguai, o fim da escravidão estivesse próximo e que
D. Pedro II tinha nomeado um novo gabinete pra tratar do assunto. Entretanto, estes
acontecimentos podem ter gerados boatos entre os escravos sobre a liberdade, mas não
sobre a Princesa como ―libertadora‖. Lilia Schwartz aponta que apenas após da abolição,
em 1888, quando se publicou a versão oficial do fim da escravidão, é que se construiu a
imagem da Princesa Isabel como ―A Redentora‖. Neste momento, segundo a autora, foram
construídos dois mitos paralelos: de ―Isabel, a Redentora‖ e de D. Pedro II como o ―grande

781
Idem, op. cit., p. 155.
782
Idem, op. cit., p. 157.

466
pai de todos‖. Era a tentativa, sobretudo, de personificar o processo da libertação dos
escravos e de dar um último ―golpe‖ para salvar a imagem da monarquia.783
Podemos sim afirmar, pautando-se sobretudo no capítulo 3 desta tese, onde
constatamos grande quantidade de alforrias conquistadas pelos escravos da comarca de
Nazareth e muitas delas através do pecúlio e outras através de ações de liberdade, que
existiam escravos na comarca, moradores dos engenhos, que acessavam a Justiça atrás da
liberdade, ou se organizavam e se programavam juntando pecúlio para adquirirem sua
alforria bem como de seus companheiros e filhos. Desse modo, é bem possível, diante da
realidade existente entre os cativos de Nazareth, que o escravo Alexandre e outros
estivessem buscando seus direitos. Do mesmo modo, o ―boato‖ de que se tratava de um
―papel da liberdade‖ traz-nos um sentido de carta de liberdade, portanto documental e legal,
demonstrando-nos que os escravos tinham a preocupação de alcançar a liberdade de fato,
legalmente constituída e de direito. Em outras palavras, nesta liberdade não caberiam
promessas e nem condições, ela estava escrita, documentada e nas mãos de uma Rainha.
Rainha esta que, se considerarmos a possibilidade dos escravos ouvirem conversas sobre
leis, ideias e projetos políticos em vigor na época, podemos sugerir ser ela uma referência à
Rainha branca. No entanto, sem excluir esta possibilidade, se nos voltarmos para o fato de
que a festa foi o grande motivo de preocupação dos brancos e de sociabilidade dos negros,
e que durante a mesma os negros realizaram além do Cavalo Marinho também um
Maracatu, folguedo de reminiscência dos Reis do Congo, talvez aí seja necessária uma
nova reflexão sobre a suposta Rainha, uma visão mais atenta à cultura, aos símbolos, às
significações e representações negras.784
Buscando a perspectiva de um descendente africano, vale ressaltar que o Maracatu
de Baque Virado ou Nação, que ocorre tradicionalmente na cidade do Recife, tem suas

783
SCHWARCS, Lilia M. Dos males da dádiva: sobre as ambiguidades no processo da Abolição brasileira.
In: CUNHA, Olívia M. Gomes & GOMES, Flávio dos Santos. Quase-cidadão. Rio de Janeiro: FGV, 2007,
p.23-54.
784
Outra opção que podemos considerar para a Rainha Branca é a referência à Virgem Maria – Salve Rainha
(Salve Regina). Como coloca Slenes em seus estudos sobre Kimpa Vita, no século XVII tornou-se
generalizada a noção de que a Virgem tinha respondido ao Anjo da Anunciação: ―Eis a escrava do senhor‖.
Em um sermão publicado na década de 1680, Antônio Vieira explicou que: ―Como o Filho de seu Pai,
(Cristo) é o senhor da humanidade, mas como Filho de sua Mãe, a Mãe deseja muito que ele também seja o
escravo da humanidade‖. Assim, também é possível que os escravos envolvidos neste folguedo em
Pernambuco estivessem louvando a Virgem Maria, como mãe de um escravo, também poderia proteger os
escravos da terra. SLENES, op. cit., 2008, p. 226, nota 64. Ver também SOUZA, Juliana. ―Viagens do
Rosário entre a Velha Cristandade e o Além-Mar‖. Estudos Afro-Asiáticos, 23:2, 2001.

467
origens em uma festividade católica de coroação de Reis Negros celebrada na Festa do
Rosário dos Pretos. E, segundo Mário de Andrade, representa a corte africana, pois desde o
século XVI com a importação de escravos ―da Guiné‖, nas levas dos quais também vieram
reis vencidos, se firmou no Brasil essa tradição de coroação de reis.785 Estudiosos datam o
ano de 1867 como o surgimento do Maracatu de Baque Virado, sendo que a última eleição
do rei do congo pela Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos em
Recife, D. Antônio de Oliveira Guimarães, ocorreu em 1848, reinado este que durou até
1872.786 Aqui vale uma informação importante sobre as primeiras notícias de africanos
oriundos do Congo, escravos e libertos, que elegiam reis e rainhas. Segundo Marina de
Mello, Pereira da Costa datou de 1706 como a mais antiga notícia de coroação de um rei
Congo em Pernambuco na Irmandade de Nossa Senhora do Rosário de Igaraçu, no entanto,
a autora verificou que na Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos do Recife
já se elegiam reis em 1674, sendo que em 1676 foram eleitos quatro reis angolas, quatro
crioulos, cinco rainhas angolas e cinco crioulas.787
Apesar do Maracatu de Baque Solto, o qual tradicionalmente é realizado nos
engenhos da região, não ser citado pelos folcloristas e pesquisadores como tendo raízes
diretas na coroação dos negros, há indício de que o folguedo da Aruenda, muito conhecido
na região de Goiana (PE) e semelhante ao Maracatu de Baque Solto, no período posterior à
proclamação da República, sofreu perseguição policial e teve que cessar a representação
dos personagens do Rei e da Rainha no folguedo.788 Há, portanto, evidências na zona da
mata, da possibilidade de representação por parte dos negros, de rainhas e reis negros na
segunda metade do século XIX. Nesse sentido, talvez fosse possível considerar que os
negros da comarca de Nazareth, ao falarem da Rainha que voltaria para Recife a fim de
libertar os escravos, poderiam também estar se referindo às representações e às
significações de uma corte negra dos rituais de coroação dos Reis do Congo, ou
desenvolvidas em folguedos como o Maracatu Nação e a Aruenda.

785
BENJAMIN, 1989, P. 81. ANDRADE, M. Maracatu. In: Revista Contraponto. No 4, março de 1974.
786
MAC CORD, Marcelo. O rosário dos homens Pretos de Santo Antônio: alianças e conflitos na história
social do Recife, 184801872. Campinas (SP). Dissertação de Mestrado História Social, IFCH-UNICAMP,
2001, p. 194. LIMA, Ivaldo Marciano de França & GUILLEN, Isabel Cristina Martins. Cultura afro-
descendente no Recife: Maracatus, valentes e catimbós. Recife, Bagaço, 2007, p. 186.
787
SOUZA, Marina de Mello. Reis Negros no Brasil escravista: história da festa de coroação de rei congo.
Belo Horizonte, Ed. UFMG, 2002, p. 205.
788
Revista Contraponto. No 11, 1949. FUNDAJ/Recife.

468
Por outro viés, podemos sugerir que a Rainha que estes africanos e/ou descendentes
(vale dizer que Marcus Carvalho verificou a evidência de navios negreiros vindos de
Angola até 1840)789 estavam se referindo era à própria rainha Nzinga ou Jinga Mbandi
Ngola Kiluanji, sucessora do trono dos Ndongo no reino de Matamba.790 Vale reafirmar,
como coloca Ribeiro, que os últimos grupos étnicos que chegaram a Pernambuco nas
décadas de 20 e 30 do XIX e que predominantemente eram vendidos em Recife, foram os
que procediam de Angola e do Congo (75%), Guiné e da Mina (16,3%), Moçambique
(5,9%), sendo raros os do Senegal (1%) e de São Thomé (0,02%).791
Nzinga era filha de Ngola-Zinga, rei de Matamba e irmã de Nogla Bandi. Depois da
morte do pai, o irmão não aguentou as batalhas portuguesas comandadas por Luís Mendes
de Vasconcelos no ano de 1618 e fugiu de Matamba buscando a irmã Jinga para suplicar
sua intervenção. Em 1621, Jinga foi a Luanda, parlamentar, e portando-se ―como uma
princesa real e não como uma bailarina em minuto de contorsão‖, conquistou a todos.
Receberam-na com salvas de artilharia e continências. Jinga fez-se batizar, com
indispensável solenidade. Ficou sendo Ana Nzinga Nabandi Ngola. Voltando a Matamba,
cristã e simpatizada, reorganizou seus guerreiros. O irmão tentou atacar, mas foi destroçado
e morreu envenenado. Aclamada Rainha, Jinga atraiu o filho do morto, o sobrinho
detestado. Apunhalou-o vingando a morte do filho. ―Entregou o cadáver aos crocodilos. E
os tambores ressoaram a noite inteira, jubilosos pelo êxito‖.792
Narra Cascudo que ela instalou-se como uma soberana autêntica, na legitimidade de
todas as tradições africanas, luxo, armas, festins, invasões de fronteiras, massacres de
suspeitos, consolidação militar. A tática ficou melhorada e tranquila. Não enfrentava o
poder português em Angola, mas os feudatários do governador. Ia roendo as raízes do
domínio lusitano. Porém, o governador Fernão de Sousa interrompeu as manobras de Jinga,
derrotando-lhe. Jinga desaparecera. Ressurgiu em 1641, com a entrada holandesa. A rainha

789
CARVALHO, M. ―Estimativa do tráfico ilegal de escravos para Pernambuco na primeira metade do século
XIX‖. IN: Revista de Pesquisa Histórica UFPE, Série História do Nordeste. No 12. Recife, 1989.
790
GLASGOW, Roy. Nizinga: resistência africana à investida do colonialismo português em Angola, 1582-
1663. São Paulo, Perspectiva, 1982, p. 42-43. Apud LIMA, Ivaldo M. ―Tempo e instituições, lógicas não-
ocidentais em alguns maracatus-nação: da áfrica ao Brasil, a homogeneização das diversidades‖. Saeculum –
Revista de História. No 11. João Pessoa, ago./dez. 2004.
791
RIBEIRO, René. Cultos afrobrasileiros do Recife. Boletim do Instituto Joaquim Nabuco. Recife, Ed.
Recife, 1952, p. 22.
792
CASCUDO, Câmara. A rainha Jinga no Brasi‖. IN: Made in África. Rio de Janeiro, Editora Civilização
Brasileira, 1965, p. 27-29.

469
Jinga despertou, numa surpreendente ―agilidade aliciadora‖, mobilizando seus exércitos ao
lado dos batavos. Não era portuguesa e nem católica. ―Era uma rainha africana, livre para
escolher o seu senhor‖. A posse holandesa de Luanda em 1641 foi um triunfo para Jinga.
Voltou a ser rainha senhora de seu reino, mandando, dançando, planejando, tendo as
aclamações festivas quando passava pelas aldeias trovejantes de elelenu, o brando da
saudação quimbunda. Em 1648, os portugueses retomaram Luanda. Jinga nada mais
poderia realizar. Em 1657 converteu-se novamente ao catolicismo. Restituíram-lhe algumas
posses. Jinga possuía a terra e as vidas que quisesse. Faleceu em 17 de dezembro de
1663.793
Neste período é interessante perceber as relações entre África – Holanda - Brasil
(Recife). René Ribeiro destaca que antes da invasão holandesa no período de 1620 a 1623
registravam os livros da Alfândega que 15.000 negros haviam sido introduzidos em Recife,
todos procedentes de Angola. Segundo o autor, no período de 1636 a 1645, os holandeses
chegaram a introduzir 23.163 escravos africanos, numa média anual de pouco mais de dois
mil. Essa importação regular de escravos obtidos nos portos de Elmina e Luanda,
conquistados respectivamente em 1637 e 1641 só viria a ser descontinuada por eles a partir
de 1646 quando os seus navios negreiros começaram a se afastar do Recife em virtude da
revolução pernambucana. É interessante perceber que neste mesmo momento Nzinga era
rainha e negociava tanto com os portugueses quanto com os holandeses de Nassau em
África.794 Histórias, portanto, que podem ter feito parte da memória e da tradição oral dos
africanos que vieram de Luanda para Pernambuco.
Para Câmara Cascudo, a História de Angola estaria intrínseca, através de lendas,
anedotas e invenções consagradas à imagem da rainha, indomável, astuta, obstinada,
opositora ―do irresistível preamar dominador e branco‖.795

Fisionomia móbil, tenaz no desígnio de resistir, de salvar seu povo,


governando-o como ele amava ser governado, com guerra, sangue e festa, em
tôdas as ocasiões julgadas oportunas para combater, atirou seus pretos contra as
ocasiões julgadas oportunas para combater, atirou seus pretos contra os canhões
lusitanos. Rendeu-se várias vezes. Ficava serena, gentil, concordadora, até que

793
Idem, op. cit., p. 29.
794
RIBEIRO, op. cit., 1952, 13-14.
795
CASCUDO, Câmara. ―A rainha Jinga no Brasil‖. IN: Made in África. Rio de Janeiro, Editora Civilização
Brasileira, 1965, p. 25.

470
brilhasse a hora da reação. Erguia o braço de comando e os batalões negros
atiravam-se contra os portugueses. Aquela onda angolana elevava-se, fremente
de ódio, percutindo a rocha das Quinas, a espada d´ El Rei, sem evitar um
momento, infalível, teimosa, infatigável, na insistência do heroísmo ineficaz.
Nos derradeiros anos, exausta, doente, vencida, voltou a batizar-se (...).Morreu
curvada, anciã veneranda, cabeça firme, olhos manhosos, inquietos,
perscrutando a possibilidade de reacender a revolta e combater.796

Segundo Cascudo, ninguém conseguiu esquecer a Rainha Nzinga, nem brancos,


pretos, mestiços, estrangeiros, nativos. Sua história está registrada em livros impressos e na
literatura oral. Por onde passou foi deixando a impressionante marca de sua personalidade
enérgica, invulgar, poderosa. O autor, em suas viagens por Angola, ouviu muito se falar de
Jinga como uma entidade presente, atual, numa menção incontida de evocação, um nome
pronunciado pelos lábios de todas as classes, como nenhum outro reino de Angola.797
No nordeste brasileiro nos Congos ou Congadas aparece seu nome soberano,
dispondo das vidas, determinando guerras, vencendo sempre; ―Mandou matar Rei, meu
senhor! E quem mandou foi Rainha Jinga!‖.798 Segundo Cascudo, o embaixador, expressão
maior do alto dos Congos, é enviado da Rainha Jinga. Essa não aparece. Ninguém a vê.
Sente-se o poder, a força, o domínio implacável. Para o autor, os escravos idos de Angola
levaram a odisseia tempestuosa da rainha negra de Matamba. ―Em cada navio, invisível e
lógica, embarcava a Rainha Jinga...‖799Cascudo define as Congadas como autos que
carregam na sua origem os cortejos e embaixadas reminiscências de danças representativas
de lutas guerreiras protagonizadas pela rainha Nzinga Mbandi, bem como a coração dos
Reis do Congo.800
Ainda sobre a rainha, destacou Souza que, em 1657, Njinga escreveu uma carta ao
Papa descrevendo as atividades realizadas em seu reino, o batismo dos membros da corte, a
construção de igrejas e pedindo missionários para a expansão da fé. Ao morrer em 1663,
com 81 anos de idade, estava empenhada na construção de uma nova capital, programada
para ser o centro da cristandade em Maramba. Coloca Souza que

796
Idem, op. cit.
797
Idem, op. cit. p. 26.
798
Idem, op. cit., p. 32.
799
Idem, op. cit., p. 32.
800
CASCUDO, L. da C. Dicionário do folclore brasileiro. São Paulo, Melhoramentos, 1980, p. 242.

471
A fama de Njinga, assim como a de D. Afonso I, atravessou os séculos e os
mares, sendo evocada em festas populares realizadas no Brasil no passado e
ainda hoje. Enquanto Njinga ficou ligada à resistência e autonomia dos
angolanos, o rei do Congo passou a simbolizar a conversão dos congoleses ao
cristianismo. Mas, como aponta Glasgow, antes de se alojar no imaginário
popular, as lições de Njinga muito provavelmente foram postas em prática na
luta dos quilombolas de Palmares. No século XVII, os escravos embarcados para
Pernambuco vinham de Angola, e entre eles havia chefes guerreiros que foram
banidos para o Brasil. Muitos podiam ter sido aliados ou partidários de Njinga,
ou podiam ter ouvido falar dela. O fato é que há uma grande semelhança entre as
táticas de guerrilha dos ambundos de Angola e as dos palmares.801

Segundo a autora, a despeito da sua conversão final, Njinga é lembrada ainda hoje
em Angola como rainha guerreira que resistiu aos portugueses. Já nas festas realizadas por
africanos e seus descendentes no Brasil, seu nome é geralmente associado a inimigos do rei
congo que acabam sendo por este convertidos ao cristianismo. De qualquer forma, salienta
Souza, ―assim como o rei congo, a rainha Njinga é um exemplo de como eventos históricos
podem ser congelados, mitificados, ritualizados e evocados na constituição de
identidades‖.802
Assim, o universo do simbólico, as narrativas africanas, lendas e histórias também
podiam ter sido acessadas pelos escravos da zona da mata canavieira pernambucana os
quais, no intento de reafirmarem uma identidade comum, negra e livre, construíram laços
culturais comuns com materiais, principalmente, africanos, indígenas e portugueses através
das manifestações do Maracatu e do Cavalo Marinho. Os folguedos provavelmente
tornaram-se um símbolo cultural desta possível identidade comum. Identidade por sua vez
que talvez não tivesse o mesmo alcance e o mesmo sentido se os escravos cotidianamente
não construíssem caminhos de conformismos, lutas e resistências. Isto é, na luta diária, nas
relações sociais, no trabalho, no acúmulo do pecúlio, na conquista da carta da liberdade, nas
fugas, nos suicídios, nas ameaças, nos atos publicamente conformistas, nos laços de
solidariedade, nas brechas das disputas políticas dos grandes ou nos acordos com os
pequenos. A sociabilidade no cotidiano dos engenhos e fazendas, nesse sentido,
possivelmente carregou uma forma de (re) afirmação sócio-cultural entre os escravos
trabalhadores da cana que fortificou mais e mais as ressignificações culturais, como as
festas, trazendo junto delas caminhos mais sólidos para a construção de uma identidade.

801
SOUZA, op. cit., 2002, p. 113.
802
SOUZA, op. cit., 2002, p. 114.

472
O acontecimento de 1871, no engenho Alagoa Seca, traz-nos um conjunto de
informações entrecruzadas que nos possibilita acessar os possíveis caminhos de ação,
organização, representação e significação da realidade vivida pelos escravos, não só da dura
realidade, mas, principalmente, das buscas para melhorá-la dentro do campo sócio-cultural
existente. A conversa dos escravos sobre a liberdade, a dos direitos para a conquista da
liberdade, a realização do Maracatu e do Cavalo Marinho, a comemoração do batizado, a
espera de uma Rainha, possivelmente, Njinga (ou Nzinga) a qual possuía um histórico de
conversão e apoio ao cristianismo e a possível leitura do ―papel da liberdade‖ na capela de
Alagoa Seca são pistas e evidências da atmosfera de onde brotaria um pensamento e uma
organização de luta e ressignificação cultural por parte dos escravos.
Nos capítulos anteriores, observamos a conjuntura social e econômica que os
escravos trabalhadores dos engenhos viviam. Constatamos o quanto existia uma rede de
conflitos e interesses complexa e conflituosa, e por isso, o quanto seria difícil para o
escravo encontrar suas brechas. Necessariamente um jogo de cintura, uma vida de
negociações, avanços e recuos seriam necessárias, principalmente, se a busca fosse pela
liberdade e pela ―segurança‖ da família cativa. Para o escravo, manter-se, por exemplo,
atrelado à terra era necessário para que conseguisse juntar um pecúlio para a compra da
alforria. Caminho difícil e às vezes demorado, mas não impossível como constatamos nas
porcentagens de alforrias com pecúlio. Acessar a Justiça - prova de que tinham contatos
com livres - também era um caminho, mas talvez não como melhor opção para escravos
que possuíssem uma família: filhos e esposa, perfil social da maioria dos escravos. Assim,
o conjunto de informações sobre a realidade sócio-econômica e cultural dos escravos na
comarca de Nazareth leva-nos a observar o quanto era preciso, por parte do cativo,
negociar, em outras palavras, jogar com o poder senhorial. De um lado, resistiam, criavam,
juntavam pecúlio, procuravam seus direitos, buscavam a liberdade, mantinham-se
trabalhando, viviam sob condições, etc. Isso tudo leva-nos a crer que também nas
manifestações culturais se ressignificavam as realidades brancas e negras: era necessário
agir de forma velada, com deferência e resistência ao mesmo tempo. E isso não apenas nos
atos cotidianos, mas também nas construções culturais, nas estratégias sociais e nas ações
políticas.

473
Nesta perspectiva analítica, o que podemos aferir sobre a constatação de que os
folguedos realizados às escondidas nas matas foram realizados por conta de uma
comemoração pelo batizado de uma criança filha de um escravo? Segundo os estudos de
Schwartz, era comum a realização dessa cerimônia, que, algumas vezes, estabelecia uma
relação de compadrio entre escravos e senhores. De fato, observamos que no engenho
Alagoa Seca era costume a realização de batismos, inclusive sendo o senhor, Henrique
Campello, padrinho.803 Uma relação ambígua que podia reafirmar o poder do senhor sobre
o escravo, num paternalismo, ou não, como expõe Stuart Schwartz. O autor demonstra que
dentro da instituição e das relações de compadrio, onde se esperaria encontrar
demonstrações claras de posturas ―paternalistas‖ expressas pelos senhores com relação aos
escravos, há poucos indícios dessas posturas. Os senhores e seus parentes raramente
batizavam e se tornavam guardiães espirituais dos próprios escravos, e sua ausência desses
papéis refuta o suposto paternalismo dos senhores de escravos brasileiros.804 Vale
acrescentar, novamente, a concepção de paternalismo colocada por Sílvia Lara de que não
conseguimos entender o conceito de paternalismo, sem entender o conceito de luta de
classes, pois através do paternalismo os senhores tentavam superar a contradição da
impossibilidade de os escravos tornarem-se coisas ―ao definir o trabalho compulsório dos
escravos como uma legítima retribuição à proteção e à direção senhoriais concebiam a
escravidão como uma relação de ‗direitos‘ e ‗deveres‘ recíprocos‖.805 E aqui temos outra
possibilidade de interpretação sobre as falas dos escravos a respeito do seus ―direitos‖. Eles
poderiam estar se referindo aos ―direitos‖ garantidos pela relação ―recíproca‖ estabelecida,
afinal constatamos no capítulo 3 de que, na comarca de Nazareth, os senhores costumavam
exercer ações ―paternalistas‖ em processos de alforrias.
Quanto ao ritual católico, segundo Schwartz no início do século XIX, o batismo de
escravos tornaram-se costumeiros e tanto os senhores quanto outros escravos exerciam
pressão para a prática do ato. Para o autor, apresentava-se aos escravos a admissão no
grêmio da Igreja como uma etapa necessária para a melhoria de sua situação.806 Henry

803
Nota de batismo do vigário Luiz Ferreira Nobre. Freguesia Nossa Senhora da Conceição de Nazareth. SSP
Nazaré 247 vol 652. APEJE/Recife.
804
SCHWARTZ, op. cit., 2001, p. 265.
805
LARA, ―Blowin in the wind. E. P. Thompson e a experiência negra no Brasil‖. In: Projeto de História,
São Paulo, vol 12, outubro de 1995, p. 47.
806
Idem, op. cit., p. 269.

474
Koster, que morou em Pernambuco, escreveu em 1816 que os escravos recém-chegados só
eram totalmente aceitos depois que eram batizados e recebiam um sobrenome cristão:

O negro que não foi batizado percebe que é considerado um ser inferior; e,
embora talvez não perceba o valor que os brancos dão ao batismo, sabe que o
estigma pelo qual é censurado desaparecerá com o batismo; e, por conseguinte,
está desejoso de tornar-se igual aos companheiros. (...) Não se pergunta aos
escravos se querem ser batizados ou não. Seu ingresso na Igreja católica é
tratado como inevitável. 807

Apesar das considerações de Koster precisar de uma análise cautelosa,


principalmente, sobre as percepções e os sentimentos dos escravos, vale refletir na
possibilidade do batismo significar uma inserção do negro no mundo do branco. Porém,
ainda vale insistir na interpretação que talvez fosse uma forma de disfarce tanto da
subordinação como da identificação, algo que fizesse parte do jogo das relações sociais.
Como coloca Schwartz no contexto do catolicismo, o batismo era a principal maneira de
tornar qualquer indivíduo, escravo ou livre, membro da sociedade cristã. Não obstante, os
escravos tinham diversos meios de criar elos de associação ou formas de parentesco, tanto
dentro das estruturas da sociedade predominante quanto fora delas:

Os laços criados pela etnia, pela língua, pela religião e pela política
africanas continuaram a funcionar no Brasil, como demonstram as rebeliões
etnicamente organizadas no início do século XIX. 808

Esses laços que Stuart Schwartz comenta também podem ser criados através de
manifestações culturais, como os folguedos que trazem traços da cultura africana e, assim,
alimentam uma identificação com materiais culturais, sejam eles religiosos ou profanos,
não-brancos. Anteriormente, observamos que existem alguns símbolos e representações que
estão presentes no Cavalo Marinho e no Maracatu e possivelmente vêm de referências
culturais africanas. Talvez não fossem suficientemente fortes para criarem laços de
identidade centro-africana ressignificada entre os escravos, como observamos nos estudos

807
KOSTER, 1817, p. 198 -99. Apud SCHWARTZ, 2001, p. 270.
808
SCHWARTZ, op. cit., 2001, p. 267.

475
de Robert Slenes;809 todavia, em nossa hipótese os folguedos poderiam servir como canais
de articulação e identidade dos escravos como trabalhadores da cana negros, ―pareias‖ ao
menos, de uma mesma raça. No mais, não só recriavam significados culturais comuns,
utilizando referências culturais comuns, como também as manifestações, muitas vezes,
podiam fortificar as ações pela liberdade que já vinham sendo construídas cotidianamente
através das relações sociais. Desse modo, reconstruir as relações sociais da comarca de
Nazareth trouxe-nos evidências de que o Maracatu e o Cavalo Marinho também eram
expressões produzidas pelos escravos que, possivelmente, construíam uma identidade como
grupo social (isso o próprio processo histórico comprova). Ao mesmo tempo, as
informações formais e simbólicas sobre as manifestações e suas ressignificações culturais
da realidade por parte dos escravos nos levam a compreender os caminhos negros de
reinvenção da realidade através das brincadeiras costumeiramente praticadas e
historicamente dinâmicas. O fato, portanto, de verificar a questão do batismo adiciona mais
um aspecto cultural, religioso, comum dos escravos que servia de mediação com o mundo
do senhor, com finalidades, sobretudo, nem sempre de submissão.
É interessante notar que, em 1871, Rufino, o escravo, ao ser indagado pela polícia
porque não realizou o samba em homenagem ao batizado na senzala, respondeu que não
queria que o seu senhor ficasse bravo com ele. Será que se realmente entre senhor e escravo
existisse uma relação de compadrio não seria negociável essa comemoração? Ou será que a
comemoração, que realmente podia ser por conta do batismo, representava uma celebração
para se fazer apenas entre os seus? De qualquer forma, o uso da cerimônia do batismo
como a desculpa certa para escapar da inquisição policial parece-nos aqui como um meio
tático utilizado pelos escravos para escapar da represália, e manter o laço religioso como
ponto comum de subordinação e obediência, algo, pelo menos, aos olhos do poder. Assim
como a rainha Nzinga que na sua trajetória de vida repleta de estratégias de luta, de perdas
e conquistas, ora se fez cristã e ora não.
Lembremos o caso, narrado no capítulo 2, da rixa entre o brincador de Maracatu
Manoel Rufino (será o mesmo Rufino escravo em 1871?) e o evangélico Alexandre em
Nazareth no ano 1879. Neste episódio, este não conseguiu realizar seus cultos uma vez que

809
SLENES, R. L‟arbre nsanda replante. Ver também SLENES, R. ―Eu venho de muito longe, eu venho
cavando. Jongueiros cumba na senzala centro-africana‖. In: LARA, Silvia H. & Gustavo Pacheco. Memória
do Jongo.Rio de Janeiro, Folha Seca, Campinas, SP, Cecult, 2007.

476
era constantemente atacado por fiéis católicos ou pelo vizinho Manoel Rufino que
perturbava as orações com seus ensaios de Maracatu. Vale destacar que a polícia ficou ao
lado do brincador e condenou Alexandre incultando-o várias características que difamavam
sua moral. Para ressaltar mais ainda a qualidade da população local de adeptos ao
catolicismo e venerados seguidores da padroeira Nossa Senhora da Conceição, o delegado
teve até mesmo que abafar a desobediência legal de Manoel Rufino de realizar ensaios (sua
licença para ensaiar tinha sido cassada). Afinal, daquela situação, entre evangélicos e
praticantes do Maracatu, era preciso honrar a religião oficial do Império e ficar com estes,
principalmente pelo motivo de que eles se colocaram socialmente como inimigos dos
evangélicos e, portanto, ao lado dos católicos. Mais uma vez, a religião católica permeou a
mediação das relações sociais entre classes, e também claramente, serviu como passaporte
para a realização da manifestação cultural dos pequenos, livre de repressões, proibições e
impedimentos.
É curioso e sugestivo mencionar o trabalho de Marcus Carvalho sobre as estratégias
de resistência escrava no Recife na primeira metade do século XIX. Carvalho descreve um
episódio que ocorreu em 1846 a respeito de uma seita religiosa de negros (na verdade era
um disfarce para uma sociedade secreta cujo objetivo era preparar uma insurreição de
escravos). O líder – o divino Mestre – era o crioulo Agostinho José Pereira que, segundo o
autor, tinha 300 seguidores na cidade. Fazendo um link com o episódio que estamos
narrando, isto é, especialmente a parte de que ocorreu a leitura de um papel da liberdade na
capela da Conceição em Alagoa Seca nos anos 70 do XIX e de que os escravos
participantes do sinistro folguedo com vistas a uma insurreição poderiam ter participado de
tal ato, destacamos, conforme narrou Carvalho, que também existiu um boato em Recife na
década de 40 do XIX de que os discípulos da seita do Divino Mestre divulgavam textos
tratando-se da liberdade dos escravos.

Um editorial do Diário de Pernambuco conta que no bairro da Boa Vista, na


casa de um dos principais discípulos de Agostinho, foi encontrada uma bíblia
onde estavam marcadas as passagens que tratavam do fim da escravidão. Mais
grave ainda foi a apreensão, na casa do próprio réu, de alguns textos que
tratavam do Haiti. Dentre os papéis sediciosos havia um verso chamado ABC,
sobre o qual as autoridades foram particularmente insistentes durante os

477
interrogatórios – mas que lamentavelmente não se deram ao trabalho de
transcrever.810

Divino Mestre era Agostinho José de Pereira, livre e crioulo, desertor do exército,
―afirmou ser cristão, mas deixou claro que considerava os santos ‗estátuas‘ e que a Igreja
não cumpria os mandamentos, embora tomasse cuidado no interrogatório para não afrontar
a Igreja católica‖.811 Agostinho não foi visto apenas como um protestante qualquer, um
problema apenas da ordem religiosa, mas era, sobretudo, um pastor negro. Assim, Carvalho
conclui que o pastor podia livremente interpretar as escrituras cristãs, e identificando-se
com seus fiéis, recriou dentro da perspectiva do escravo, enfatizando as passagens que
falavam da libertação do cativeiro. ―A própria Bíblia tornava-se um instrumento de
resistência e não de conformismo. A partir das escrituras ficava também demonstrada a
superioridade moral do negro sobre o branco, afogado no pecado de escravizar o próximo‖.
Não chegamos tão a fundo no caso de Nazareth, mas podemos aferir que existia a
possibilidade de uma cultura de resistência negra dentro de uma cultura da cristandade.
Pelo menos, isso foi propagado entre os negros seguidores do Divino Mestre no século
XIX, e pode ter sido utilizado como estratégia de luta de forma disfarçada por outros
escravos em Pernambuco.
Nesse sentido, cabe-nos novamente citar James Scott em suas considerações sobre
Domitation and Arts of Resistance. Segundo Scott, ao refletir sobre as relações de
dominação, devemos tomar cuidado em ver linguisticamente a deferência e gesto de
subordinação meramente como performance extraída pelo poder. O fato é que eles servem
também como uma barreira e um véu que o dominante acha difícil ou impossível de
penetrar. De um lado, o poder deforma a comunicação, mas, de outro, a comunicação
distorcida preserva um lugar sequestrado onde um discurso autônomo pode desenvolver.
Para Scott, grupos subordinados devem experimentar sua conformidade como espécie de
manipulação, na medida em que a conformidade é tática, isto é, com certeza, manipulação.
É necessário olhar, assim, os dois ―eus‖ envolvidos na relação: olhar de cima como uma
performance de deferência ―precisada‖ e de baixo como a astuta manipulação de deferência

810
CARVALHO, Marcus. ―Rumores e rebeliões: estratégias de resistência escrava no Recife, 1817-1848‖.
Tempo, vol. 3, no 6, Dezembro de 1998.
811
Idem, op. cit.

478
e adolação para realizar seus próprios fins.812 Existe, portanto, o público e o escondido;
existe, um discurso da liberdade e uma ação de resistência fora dos olhos dos dominantes,
ainda que sob os seus olhos.
O próprio folguedo do Cavalo Marinho mesclava sombra e clareza em seus atos e
falas. Julio Bello, em Memórias de um senhor de engenho, ao narrar a parte do teatro que
ocorre a morte do Boi, explica que ao aparecer um ―fiscal‖ a exigir a retirada da carniça do
terreiro:

Trava-se a discussão entre ele, ―Matheus‖ e ―Catharina‖, que são o casal de


palhaços do toda a funcção e se esforçam sempre em falar como os antigos
pretos d´Angola uma arrevesada algaravia, muita vez graciosa e original. 813

Bello, ao colocar ―antigos pretos d´Angola‖, talvez não estivesse falando


especificamente sobre essa nação, mas sabemos que os escravos vindos de Angola
costumavam ser denominados com o mesmo nome. De qualquer forma, o observador
branco certamente estava se referindo a uma linguagem, de outra nação que não a
portuguesa ou brasileira, e que no momento da brincadeira era utilizada como códigos
acessíveis aos brincadores e inteligíveis para as autoridades da plateia. Desse modo, aposto
sim, que naquele momento, as figuras de Matheus e Catharina, representados por negros
escravos, estavam exercendo uma dupla resistência: social, por criar uma linguagem de
compreensão restrita a seu grupo, e cultural, por, possivelmente, usar falas que faziam
referência ao mundo dos seus ancestrais. Nesse sentido, de certa forma, estavam
construindo a sua identidade.
Stein também assinala que no Caxambu era a oportunidade de se cultivar o
comentário irônico, hábil, frequentemente único, acerca da sociedade dentro da qual só os
escravos constituíam um segmento tão importante. O sistema de polícia e a supervisão
constante tendiam a abalar o ânimo e a disposição do imigrante africano e de seus filhos,
mas,

(...) o Caxambu com seus ritmos poderosos, com a quase completa ausência de
supervisão do fazendeiro, com o uso de palavras africanas para disfarçar as

812
SCOTT, op. cit., p. 32-34.
813
BELLO, op. cit., 1935.

479
alusões óbvias e os ocasionais traços de cachaça morna, proporcionavam aos
escravos a oportunidade de expressar seus sentimentos em relação seus senhores
e feitores e comentar acerca das fraquezas de seus companheiros. 814

A festa desde os tempos coloniais faz parte desse campo de dominação e resistência.
Como coloca Ferlini, o trabalho, gerador de riquezas, era, ao mesmo tempo, elemento de
disciplinarização, de integração do cativo pagão na sociabilidade cristã, elemento de sua
salvação. Daí a contradição entre folga, o dia santo, o feriado e o trabalho, por interromper
o processo de dominação e disciplinarização que integrava o escravo. A festa, a folga, seria,
assim, uma quebra do cotidiano, da rotina das obras servis, da produção, que poderia gerar
o ócio.815 E para Sílvia Lara, o perigo advindo dos ‗vícios‖ advindos do ―ócio‖ estava
justamente na criação de certas identidades entre os ―vícios‖ e as práticas lúdicas e
religiosas que escapassem ao controle senhorial, ou melhor, escapassem ao domínio e
controle do senhor.816
O folguedo realizado pelos escravos em terras da comarca de Nazareth, certamente,
era um evento que ocorria com frequência e fazia parte do cotidiano dos engenhos da
região. No entanto, o samba, isto é, o Maracatu e o Cavalo Marinho, que ocorreu no
primeiro sábado do mês de março de 1871, entre outros, não foi permitido pelo senhor.
Ocorreu fora da senzala e dos olhos do dominante. E se a maioria dos respondentes afirmou
que foi por conta da cerimônia religiosa do batizado, ficou certo silêncio quanto aos gritos
de Vivas à Liberdade ocorridos durante a festa. Vivas que podem ter sido para a liberdade,
e um momento em que escravos livremente vivenciavam um coletivo de dança, música e
teatro.
Liberdade, por sua vez, que era conquistada diariamente pelos escravos da Zona da
Mata pernambucana e que se concretizavam através das dezenas de cartas de alforrias
conseguidas de diversas formas: pela Justiça, pelo pecúlio ou pelas boas relações com seus
senhores. Estes viviam entre farpas políticas, e também driblavam a abolição num jogo
político e moral. Como vimos, nas últimas décadas da escravidão não era tão fácil ser um
severo senhor, pelo menos aos olhos dos abolicionistas os quais não eram poucos na
comarca de Nazareth. Diante disso, a pressão também vinha ―de cima‖ pressionando mais

814
STEIN, op. cit., 1985, p. 246.
815
FERLINI, op. cit., 1984.
816
LARA, op. cit., 1988.

480
ainda os senhores a repensarem, pelo menos em alguns aspectos, as relações escravistas.
―De baixo‖ os escravos estavam bem informados sobre direitos e a liberdade, e realizando
festas, ressignificavam esta conjuntura complexa, cheia de ambiguidades e extremamente
autoritária.
Os relatos de Pereira da Costa sobre um Bumba meu Boi ou Cavalo Marinho
ocorrido em Goiana em 1906 trazem a dinâmica que os personagens criaram em torno das
figuras do negro e do capitão. Observemos a descrição da parte final:

Entra o capitão de campo, perseguindo Fidelis para prender e amarrar como


negro fugido. Canta o coro:
Capitão Colombo
Tome bem sentido,
Leve para casa
O negro fugido.
E o capitão atirando-se sobre Fidelis brada-lhe:
Eu te amarro, cão,
Eu te atiro, negro,
Eu te mato, ladrão.
E Fidelis responde:
Capitão me chama negro
Negro eu não sou não;
Quero que você me diga
Quantos contos deu por mim.
Tratava-se então uma luta entre ambos, e o Fidelis deitando por terra o capitão
amarra-o com a própria corda que trazia cantando então o coro a esta cena:
Capitão de campo,
Veja que o mundo virou;
Foi ao mato pegar o negro,
Mas o negro o amarrou.
Responde o capitão:
Sou valente e afamado
Como eu, não pode haver;
Qualquer susto que me fazem
Logo me ponho a correr. 817

De forma semelhante com o padre que sofre no Bumba narrado por Lopes Gama em
1840, em 1906, podemos perceber a cena do capitão sendo amarrado pelo negro Fidelis que
fugiu e que coloca para correr seu opressor. A cena é de inversão dos valores
hierarquicamente estabelecidos pela sociedade vigente. No folguedo, quem manda e coloca
no centro a autoridade para o deboche é a figura do negro.

817
Relato sobre o Bumba meu Boi de Goiana (PE) datado de 1907. IN: PEREIRA, Francisco Augusto da
Costa. Folk-lore Pernambucano. Recife, Arquivo Público Estadual, 1974. IAHGPE/Recife.

481
Enquanto isso a figura do Cavalo Marinho dança a toada:

Dança bem baiano,


Bem parece ser
Um pernambucano.
Cavalo Marinho
Vai para a escola
Aprender a ler
E a tocar a viola.
Cavalo Marinho
Sabe conviver
Dança o teu baiano
que eu quero ver.
Cavalo Marinho
Dança no terreiro,
Que o dono da casa
Tem muito dinheiro.
Cavalo Marinho
Que o dono da casa
Tem galinha assada,
Cavalo Marinho
Dança no tijolo,
Que o dono da casa
Tem cordão de ouro.818

Nos versos do Bumba meu Boi narrado por Costa, podemos visualizar uma
construção do drama popular centrado nas figuras do negro e da opressão do senhor na
figura do Cavalo Marinho e na do Capitão do Mato. A posição do Cavalo no teatro trata-se
de um personagem-animal ligado ao dinheiro, às boas condições materiais, à alfabetização,
aos dons de tocar viola (um instrumento de origens árabes), que sabe conviver e dançar
parecendo um pernambucano, em outras palavras, um brasileiro.
Se numa cena o Cavalo Marinho faz bonito, faz mesura para pedir licença para o
dono da casa, e, assim, a festa começar, em outra, o negro Fidelis é o fugitivo e, ao mesmo
tempo, inverte o papel de bobo para o capitão do mato. Típico ―nego safado‖, fala comum
nos Cavalos Marinhos de hoje. Vale perceber que Fidelis na sua loa não admite ser negro
para o Capitão, e o que ele quer saber é quanto vale sua captura. No entanto, vale
interpretar a recusa como sendo direcionada ao modo como o capitão do mato o chama de
negro colocando-o na subordinação, e não como negação da sua raça de origem, justamente

818
PEREIRA, op cit, p. 268.

482
pelo motivo que em seguida Fidelis completa: ―Capitão de campo, veja que o mundo virou;
Foi ao mato pegar o negro; Mas o negro o amarrou‖.819
Buscar compreender os negros escravos, trabalhadores dos engenhos e fazendas,
como responsáveis pela produção dos folguedos, seus costumes e sua tradição, num
momento que a legislação no Brasil inicia um percurso que começa auxiliar a redução do
cativeiro, e constatar que a polícia tem evidências de que Cavalos Marinhos e Maracatus
podem ser meios de louvação à liberdade; e que existem escravos participantes desse samba
que conversavam sobre suas alforrias e percebiam uma luz no fim do túnel, seja pela
Rainha branca ou negra; é, sobretudo, dar um passo adiante sobre o que significam essas
festas, esses rituais e essas brincadeiras para seus sujeitos e para o meio social em que
viviam.
No período pós-abolição, as manifestações mantiveram seu costume, assim, como
até hoje. No entanto, o dia a dia trazia em cena o que deveria ali ser comunicado. Como nos
relatos de Pereira da Costa, as marcas da escravidão se mantiveram nas falas dos
personagens, no entanto, em forma de um teatro-memória que trouxe a inversão social onde
quem foge é o capitão do mato. E como coloca Benjamin, o Mateus e o Bastião ou Fidélis,
que são os personagens negros do Cavalo Marinho, nas versões mais antigas eram escravos,
nas mais recentes são empregados de confiança do capitão do Cavalo Marinho. No entanto,
em todas as versões eles são negros – ―e para que não haja dúvida da condição, mesmo
quando representados por atores negros, estes usam uma pintura para enegrecer, as partes
do corpo que ficam à mostra: rosto, pescoço, braços, mãos e pés‖.820
Significações que interpretam e expressam as implicações do fim do cativeiro sobre
as vivências cotidianas das populações negras que ali habitavam. Assim como colocou
Fraga Filho, é essencial perceber como as populações que emergiram da escravidão; de
variadas e criativas maneiras, buscaram modificar o rumo de suas vidas em meio à
imprevisibilidade e aos limites impostos por uma sociedade que continuou assentada sobre
profundas desigualdades sócio-raciais.821 Marcas simbolizadas nos folguedos que
permanecem, mas ao mesmo tempo se renovam, afinal de contas as formas de dominação

819
Idem, op. cit.
820
BENJAMIN, op. cit., 1985, p. 46.
821
FRAGA FILHO, Encruzilhadas da Liberdade. Histórias de escravos e libertos na Bahia (1870-1910).
Campinas, Ed. Unicamp, 2006.

483
também mudam. E aqui, citando novamente Guarenello, festa é parte de um jogo, é um
espaço aberto no viver social para reiteração, produção e negociação das identidades
sociais. Coincide com a linha da identidade que produz em seu interior. Identidade não
homogênea. Identidade criada que é uma unidade diferenciada e conflituosa; de cooperação
e de competição; uma estrutura de produção e consumo e, portanto, uma estrutura de
poder.822
E, justamente, são essas estruturas de poder que precisamos acessar no processo
histórico e (re) identificar pela ótica de seus sujeitos. Processo histórico que inclui aspectos
da dinâmica social, cultural, econômica, política e simbólica de dominação, luta e
acomodação no mundo do trabalho canavieiro. Talvez aí comecemos a olhar os folguedos,
autos, brincadeiras ou sambas brasileiros com o devido alcance que a existência desses
proporcionou, e proporciona, na vida de seus participantes. Olhos que investiguem ações
históricas e não vestígios da cultura popular. Vale lembrar os escravos da revolta dos malês
em 1835 em Salvador. Seguno coloca João Reis há fortes evidências de que a rebelião fez
parte do programa do Ramadã, haveria de ser uma celebração, primeiro ato de uma nova
era. O estado de festa para estabelecer a nova ordem se expressou nos termos escolhidos da
língua portuguesa por muito rebeldes para definir seu movimento, termos como ―folguedo‖,
―brincadeira‖, ―brinquedo‖, ―banzé‖. Para o autor, a linguagem lúdica faz supor que
religião, política e festa se confundiam na visão de mundo dos malês e com certeza de
outros africanos.823
Diante das ações históricas dos escravos trabalhadores da cana e brincadores de
Cavalo Marinho e Maracatu, observo muita ―malandragem‖, característica principal do
negro Mateus, não no possível mal sentido atribuído ao termo, mas no melhor sentido que o
termo poderia trazer: no sentido de saber jogar, de saber esquivar e de saber dar o golpe na
hora certa. Por vários aspectos, e principalmente, por aspectos sociais, percebemos que na
comarca de Nazareth nas últimas décadas da escravidão, não era muito viável ao cativo
morador dos engenhos uma grande rebelião, ainda mais para os escravos com filhos e/ou
esposas. Contudo, a alforria era possível, os números comprovam. Muitas vezes, a condição
para se libertar existia, mas nestes casos talvez outra opção não fosse tão possível. Em

822
GUARENELLO, op. cit., 2000, p. 973.
823
REIS, J. J. ―Rebelião escrava no Brasil. A história do levante dos malês em 1835‖. São Paulo, Cia das
Letras, 2003, p. 264.

484
outras, o confronto era necessário, e lá estava a Justiça. Fugas, suicídios e assassinatos
também serviam de opções para alguns escravos, afinal a consciência da condição de
cativo, certamente, trazia desilusões em profundidade irreparáveis e incontroláveis. Diante
disso, vislumbro a abertura de um campo imenso de estratégias escravas em terras dos
engenhos da mata norte. Mais do que isso, sugiro que estes escravos foram capazes de
construir culturas escravas atreladas ao mundo do trabalho nos engenhos, que reverberou
em diversas instâncias: políticas, sociais e culturais. Vale dizer que eles construíram uma
cultura historicamente situada no pós 1870, mas que, não por isso, deixou de ressoar no
período pós-abolição, no pós-república, no século XX e XXI. Prova disso são as
manifestações culturais festivas, que guardam a memória de sua ascendência nas falas, nas
formas, nos cantos e nas poesias. Prova maior ainda é que tudo isso é dinâmico, justamente
porque a história destes trabalhadores também se movimenta. Isso também os escravos
deixaram de herança para seus descendentes, a consciência plena da roda da história. Nunca
deixaram de perceber a dinâmica do poder, até mesmo porque precisavam agir nas brechas,
nos meandros, inovando, reinventando e ressignificando as relações de poder escravistas.
Concluo, portanto, que, para estes escravos, lutar era, sobretudo, criar melhores formas de
viver, construir sentidos para a liberdade no mundo real e no mundo da arte, de formas não
excludentes, mas complementares.

485
486
Conclusão

Entre folgas e folguedos, entre foices, façanhas e artimanhas: construindo


culturas

- Capitão, pronto. O senhor me chamou pra quê?


- Não, porque aqui tem um serviço pra o senhor tomar conta desse sítio aqui, dessa
população aqui e dessa festa. Pra tomar conta e dar conta.
- Disso tudinho, é?
- É, Mateus.
- Capitão, eu tomo conta e não dou conta.
-Mas tem que tomar conta e dar conta.
- Ô, Capitão, quanto o senhor quer pra tomar conta desse negócio aqui?
- Se eu tomasse conta eu não lhe chamava aqui, Mateus.
- Então eu vou fazer a minha empeleitada.
- Tá certo. Quanto você cobra?
-Eu cobro doze, redoze, dezesseis com quatorze, uma buxada e uma beirinha de samba. Tá
valido?
- Tá valido.
- Então, pode dizer o que é que eu tenho que fazer, Capitão.
- Ô, Mateus, mas eu to achando que esse serviço é muito pra você. Você trabalha sozinho,
ou tem um outro parente, uma família, um irmão, um amigo, um pareia?
-Eu tenho meu pareia.
-Como é que ele vem?
-Do mesmo jeito que eu vim.
-Do mesmo jeito?
- Tem música aí?
- Tem.
- Mande tocar que é capaz dele vir do mesmo jeito que eu vim.
(Diálogo entre Mateus e Capitão, Cavalo Marinho Estrela de Ouro, Condado –PE, 2002,
registrado por Érico Oliveira)

João José Reis em seus estudos sobre a festa negra na Bahia na 1ª metade do XIX
conclui que o caráter polimorfo e polissêmico da festa negra confundia os responsáveis por
seu controle. O autor constata, através das narrativas, que os negros insistiam em fazer um
mundo seu do lugar e hora de festejar, um mundo que desejavam sempre mais ampliado em
tempo, espaço, formas, gestos, jeitos, com abundância de dança, música, comida, bebida,

487
dádivas e deuses. E, segundo Reis, para alcançarem este objetivo, precisavam negociar
concessões ou desafiar a soberba dos detentores de pequenos e grandes poderes. 824 No
mais,

Entre a folga e o folguedo, de fato, muitas revoltas e conspirações escravas


tiveram lugar na Bahia e em outras regiões do Brasil. O levante dos malês, em
janeiro de 1835, aconteceu num final de semana do ciclo de festas do Bonfim,
dia de folga dos escravos.
Entretanto, revoltas ocorriam nos dias festivos não somente porque o controle
dos escravos estivesse relaxado, mas porque os escravos estavam reunidos a
celebrar valores próprios e rituais de identidade e solidariedade, tomados por
aquele espírito de liberdade, de audácia, que a festa frequentemente promove. A
subversão simbólica do mundo ficava, assim, a um passo da rebelião. 825

Em nossa pesquisa, não encontramos nenhuma revolta como a de Malês, e na


verdade, nenhuma rebelião de fato se consumou. Entretanto, os burburinhos, as ameaças e o
medo por parte do branco existiram. Nossos folgazões escravos da zona da mata norte
pernambucana, certamente, como bem aferiu Reis sobre os negros na Bahia, subverteram
de forma simbólica o mundo desigual e violento que eles e os seus viviam. Recriaram o real
através da celebração e respiraram liberdade compartilhando valores e expressões culturais
comuns estreitando seus laços de solidariedade e identidade.
Na vida cotidiana, junto aos seus senhores, os escravos trabalhadores dos engenhos
da comarca de Nazareth também conquistaram suas liberdades através das alforrias
alcançadas de diversas formas. No leito de morte do senhor, na labuta do dia a dia juntando
um pecúlio, no trabalho no eito sendo obediente ao seu senhor e/ou acessando a Justiça.
Nesse jogo da busca pela liberdade, nem sempre os caminhos eram fáceis e o resultado
positivo. Muitas vezes, as condições senhoriais de prestação de serviços imperavam, ou no
caso das ações na Justiça, as articulações entre os grandes emperrava a aplicação da Lei,
que também era ambígua, cheia de brechas e ainda mantinha certos princípios do direito à
propriedade.
Esse cenário observado na comarca de Nazareth na década de 70 e 80 do XIX faz-
nos entender não só as dificuldades e desilusões escravas em contraposição do poder dos

824
REIS, João José. Tambores e Temores. A festa negra na Bahia na primeira metade do século XIX. In:
CUNHA, Maria C. (org.). Carnavais e outras f(r)estas. Campinas: Ed. Unicamp, 2002, p. 101-105.
825
REIS, Op Cit, 2002, p. 116.

488
senhores, mas também indica-nos o quanto esta sociedade, principalmente, produtora de
açúcar, sustentava o sistema de trabalho escravo às vésperas da Abolição. Assim,
observamos que se tratava de uma manutenção da propriedade, mas também de uma
necessidade econômica uma vez que a região como constatamos era composta
majoritariamente de engenhos banguês, isto é, com pouco investimento tecnológico e com
um sistema de produção de açúcar unido ao de cultivo da cana. Esta verificação contrapõe
alguns estudos que afirmam um fim da escravidão sem grandes problemas para os senhores.
Obviamente, a reflexão de Peter Eisenberg 826 de que não houve grandes conquistas sociais
com o fim da escravidão, passando de escravo a trabalhador quase nas mesmas precárias
condições, possivelmente, tem fundamentos na realidade que estudamos. Numa realidade,
como expomos complexa e cheia de conflitos. Por outro lado, a afirmação de que na Zona
da Mata Norte, desde a primeira metade do XIX, a economia praticamente sobrevivia
através de braços livres, e por isso, o fim do cativeiro foi demasiadamente tranqüilo, não é
real. Nazareth possuía uma das maiores escravarias da zona da mata canavieira entre 1873 e
1887. Proprietários medianos em sua maioria, a posse de escravo valia muito, fosse como
capital ou como mão de obra, afinal, mão de obra livre apesar de utilizada desde a década
de 50 como verificamos, em tempos de crise e em condições financeiras difíceis, era
problemático propor algum tipo de remuneração. Por esse lado, a condição escrava era uma
opção necessária, ou ainda a condição liberta sob condições, afinal, Nazareth também tinha
um alto percentual de alforrias.
Ainda nessa mesma temática, podemos aferir um pouco mais nesta perspectiva de
Eisenberg sobre os ganhos sociais. Não avançamos nossos estudos no período posterior ao
13 de maio, mas estudamos sua véspera e visualizamos que de muitas maneiras os escravos
buscaram a liberdade, sua (re) significação simbólica, bem como propuseram atos, ainda
que isolados, de rebeldia. Ao mesmo tempo, verificamos alguns sinais de acomodação ou
obediência, ações que encaramos como um passo para trás, um recuo tático. Observamos,
portanto, que para entender os processos de alforria é necessário uma apreensão da
complexidade social, seus conflitos e harmonias, observando, sobretudo, o conjunto
específico das relações sociais, as peculiaridades, as dinâmicas próprias e seus processos

826
EISENBERG, P. Modernização sem mudança: a indústria açucareira em Pernambuco, 1840 -1910. Rio
de Janeiro, Paz e Terra; Campinas, Unicamp, 1977.

489
dialéticos. Inspirando-nos em James Scott, tentar vislumbrar as ―artimanhas‖ e ―astúcias‖
presentes nas relações de dominação. Dados referentes à quantidade de escravos que
viviam na localidade e a grande porcentagem de crianças e famílias nos anos 70 do XIX,
traz-nos, por exemplo, sinais de que escravos produziam laços familiares, tinham filhos e se
mantinham juntos. Entre vários possíveis motivos porque experimentavam a realidade nos
engenhos, ainda que cruel, como uma boa opção até alcançarem a liberdade de todos os
seus parentes – aqui lembremos as alforrias ―concedidas‖ e/ou pagas que envolveram filhos
e mães e/ou pai. Desse modo, podemos corroborar com a constatação de que as condições
sociais daquela região continuaram desiguais e injustas (e na verdade até hoje vemos isso),
entretanto - como observamos através das pesquisas aqui desenvolvidas - devemos
acrescentar a esta visão a possibilidade de que os negros após Lei Áurea carregaram
consigo as experiências de luta, conflito, harmonias, acomodações, solidariedades e
identidades vividas na senzala e no trabalho, e não esqueçamos também nas várzeas. As
culturas festivas, de lutas e de resistência construídas por eles dia a dia durante a escravidão
não desapareceram de seus corpos e mentes. As conquistas de liberdades conseguidas para
si ou para os seus, assim como as vitórias compartilhadas pelos comuns, trouxeram-lhes
para o mundo não escravista, manhas e artimanhas de agenciar uma relação paternalista
que, possivelmente, mudou um pouco a roupagem, mas ainda continuou a existir nas terras
da comarca de Nazareth e região. Até mesmo porque, os senhores, agora, patrões, também
trouxeram consigo suas experiências de disputas e conciliações entre grandes e entre
grandes e pequenos.
Os conflitos entre famílias, entre políticos conservadores e liberais, entre grandes
senhores-proprietários e médios/pequenos marcaram, em diferentes conjunturas políticas,
as décadas 40, 50, 60, 70 e 80 do século XIX daquela região. Certamente, com a chegada
da República e sua tendência liberal, bem como, com as mudanças dos pólos econômicos
no Brasil, novos cenários de disputas surgiram alterando as alianças e as rivalidades da
classe dos proprietários. Entretanto, voltando-nos para as décadas de 70 e 80, na nossa
comarca de Nazareth, verificamos alguns resquícios da Revolta Praieira ainda neste
período, principalmente, no que diz respeito ao roubo de escravos. Como constatamos, por
conta da situação de roubos e acoitamentos de escravos, muitas vezes, os pequenos
proprietários tiveram que se aliar aos grandes para se proteger de outros grandes

490
proprietários que roubavam ou acoitavam seus escravos. Neste jogo de conflitos e alianças,
os cativos, diante da situação de roubo numa disputa familiar e/ou política entre os
proprietários, perdiam a conexão com seus laços horizontais construídos no cativeiro que
pertenciam antes de serem roubados. Contudo, ao mesmo tempo, na situação em que
ocorresse o acoitamento, e o escravo às vezes até mesmo buscasse outro senhor ―se
deixando roubar‖, as relações verticais estabelecidas ecoam para a interpretação de que
―pequenos se aliavam aos grandes para se defenderem de outros grandes‖. Diante desta
realidade, também podemos concluir que as disputas ―intra-classes‖, protagonizadas pelos
senhores da comarca de Nazareth, influenciaram as ações dos escravos que estavam no
meio deste fogo cruzado, afinal, como observadores-participantes dessas complexas
relações horizontais e verticais, tiveram que jogar com a ordem hierárquica existente e/ou
criar laços que os auxiliassem na busca de melhores caminhos para se viver e/ou se libertar.
Os indícios de que escravos eram atentos às disputas sócio-políticas locais e que
tinham a sensibilidade e esperteza de escolherem as melhores brechas para resistir, lutar ou
se acomodar, são fortificados quando observamos – e daí as conclusões vieram, sobretudo,
através da análise comparativa com o trabalho de Luciano Mendonça sobre Campina
Grande (PB) – a não participação dos cativos (e também de libertos) na revolta do Quebra-
Quilos que ocorreu em Nazareth. Na realidade pernambucana da década de 70 do XIX,
outros atores sociais decidiram pegar o barco da revolta do Quebra-Quilos: a classe dos
pequenos e médios proprietários. Obviamente, existia toda uma conjuntura sócio-política e
econômica com reminiscências na Guerra dos Marimbondos que ocorreu na mesma região,
algumas décadas antes. Percebemos que na conjuntura da Comarca de Nazareth esse
cenário de revolta pertenceu a outros setores sociais. E é justamente esta constatação que
nos trouxe os indícios não somente sobre o silêncio dos cativos, mas sobre as portas que
existiam e que possuíam as maiores brechas para os escravos conquistarem melhores
condições de vida. Em outras palavras, trouxe-nos a luz dos conflitos e desequilíbrios
sociais e políticos que existiam naquela sociedade, naquele momento histórico e nos
informou, justamente, sobre as teias sociais que os cativos tinham que driblar. O registro
documental da não ação cativa, na verdade, em nossa interpretação, registrou o indício da
ação escrava em outro sentido. Na memória recriada pelos descendentes dos trabalhadores
da cana registrada através do Cavalo Marinho, nego Mateus é amarrado pelo soldado, por

491
ordem do delegado. Na conjuntura das revoltas acima explicitadas, o Estado Imperial
intencionando a centralização tinha a polícia como seu braço e também as elites regionais
como apoio lhe conferir legitimidade ao funcionamento.827 Vale salientar, como coloca
Izabel Marson, que no espetáculo político do Império, principalmente, na conjuntura da
Praieira, os homens pobres e livres que ousassem ganhar autonomia, tranvestiam-se em
criminosos, ou seja, eram ambíguas e contraditoriamente, cidadão-criminosos, tanto
quantos os escravos testemunhas.828
Escravos sabiam dos caminhos que podiam trilhar. Os casos das ações de liberdade,
bem como os exemplos das mulheres escravas e mães que negociaram as liberdades das
filhas, ou agiram de forma suspeita para os senhores, mas, possivelmente, conscientes das
cláusulas da Lei do Ventre Livre e das obrigações dos senhores para com as crianças filhas
de libertas. Provavelmente, em contato com livres ou libertos, os escravos não arriscavam
sua pele em confrontos diretos com o senhor ou com a polícia, pelo menos não observamos
ações significativas neste sentido. Todavia, observamos acoitamentos e também livres que
eram apoiados por seus patrões os quais acessavam a Justiça para proteger seus moradores.
Estas alianças entre classes, entretanto, eram bem escolhidas, e na maioria das vezes era
pautada por questões sócio-políticas. Em outras palavras, as brigas dos grandes eram as
brechas para os pequenos. Graças a ―boa‖ relação entre o Vigário e o lavrador Thomé de
Araújo, este se livrou do recrutamento forçado, fugiu das amarras autoritárias do senhor
Barão de Tracunhaém e continuou perto de sua família mantendo seu trabalho junto à
agricultura. De semelhante forma, a rendeira do Engenho Cangaú e o senhor do Engenho
Tabatinga auxiliaram a revolta do Quebra-Quilos de caráter também popular. Ou ainda, no
caso do senhor do Engenho Baraúna que armava seus escravos e moradores para proteger
Bernardo de Tal, provavelmente, morador do mesmo engenho, contra a apreensão do
Delegado de Polícia de Nazareth.
Em outra dimensão, mas não isolada, o perfil abolicionista cultuado na comarca
através, principalmente, dos Jornais, da Sociedade Humanitária e Emancipadora Nazarena
em 1886 e própria eleição de Joaquim Nabuco, possivelmente, fez com que se construísse

827
CARVALHO, José Murilo. Teatro das sombras. A política imperial. São Paulo, Vértice, 1988, p. 65.
828
MARSON, Isabel Andrade. ―O cidadão-criminoso: o engendramento da igualdade entre homens livres e
escravos no Brasil durante o segundo reinado.‖ Estudos Afro-Asiáticos, Rio de Janeiro, no 16, p. 141-156,
março de 1989.

492
uma cultura dos senhores como ―bonzinhos‖, ―redentores‖, ―homens em busca da
igualdade‖, ―honrados‖. Não desconsiderando a presença de alguns abolicionistas que de
fato poderiam acreditar em um caráter de cidadania mais igual para os trabalhadores
escravos, devemos salientar que a conjuntura política, principalmente, aspectos como dos
liberais, da situação político-partidária específica da eleição de Nabuco, do perfil da
maioria das alforrias, dos sinais de luta e rebeldia escrava, dos números de escravos
constatados em 1887, do perfil tecnológico da produção de açúcar e dos conflitos acirrados
entre conservadores e liberais, convence-nos de uma construção por parte dos senhores de
uma cultura abolicionista apoiadas na redenção e na dádiva. Aqui vale salientar o estudo de
Lilia Schwarcz sobre as ambigüidades no processo da Abolição brasileira. Segundo a
autora, no Brasil a Abolição foi entendida como uma dádiva, um presente que merecia atos
recíprocos de obediência e submissão. ―Aos escravos recém-libertos só restava, pelo menos
na visão das elites, a resposta servil e subserviente, reconhecedora do tamanho do
‗presente‘ recém recebido.‖829Nos jornais da época não se referiam apenas à violência
advinda do sistema escravocrata, pelo contrário, descreviam ―eventos maravilhosos‖ e
como tal, exemplares de libertações feitas por particulares, como atos de vontade
individual. Também percebemos tais conteúdos nas notas publicadas nos jornais de Recife
e Nazareth em 1881 sobre a ação ―nobre e generosa‖ dos senhores da comarca nazarena
para com seus escravos ao libertarem-nos. Simão Velho, aquele senhor liberal leitor de
Dom Quixote, também foi outro que publicou sua própria nota no jornal da capital
pernambucana, sobre sua própria atitude, o título: ―Um exemplo edificante‖. No entanto, o
conteúdo – vale a pena cita novamente - era bem claro:

Não foi sem condição a liberdade concedida. Mas a condição


imposta é certamente, além de aceitável, salutar, porque estabelece um
regime transitório de trabalho obrigatório por cinco anos em semanas
alternadas. Acabou com a sensala e converteu os moradores delas em
moradores avulsos, que vão levantar suas cabanas à parte, constituindo de
novo o lar da família liberta com economia separada e responsabilidade
própria.830

829
SCHWARCS, Lilia M. Dos males da dádiva: sobre as ambigüidades no processo da Abolição brasileira.
IN: CUNHA, Olívia M. Gomes & GOMES, Flávio dos Santos. Quase-cidadão. Rio de Janeiro: FGV, 2007,
p.23-26.
830
Artigo Um exemplo edificante. Jornal do Recife, 17/12/1884. Arquivo pessoal Simão Velho Pereira
Borba. Fundaj/Recife.

493
Para os senhores, a mudança de status dos escravos passava por suas mãos, de modo
que, ele mantinha seu poder enquanto proprietário, e ao conceder a liberdade, como um
proprietário para o qual o escravo devia ―gratidão‖. Esta tentativa de controle por parte da
831
classe senhorial já vinha sendo expressa, como bem expôs Sidney Chalhoub, nas
décadas de 60 e 70 durante as discussões a respeito do pecúlio por conta da aprovação da
Lei do Ventre Livre. Através das análises sobre as alforrias na comarca de Nazareth,
verificamos na prática a tentativa por parte dos senhores da aplicação desta política de
controle. Estas informações trazem-nos aspectos da cultura de dominação presente na
comarca de Nazareth e que era enfrentada e/ou aceita pelos escravos. Na verdade, as ações
de conflito ou acomodação dos negros cativos ou libertos jogavam com esta cultura
senhorial de domínio. Esta para os senhores teria que ficar intocável, afinal o poder, de
alguma forma, precisaria se manter, contudo, as relações sociais não se davam de forma
simplesmente antagônicas, muitos meandros e (des) meandros compunham este processo,
que poderia conter intenções e ações de todos os envolvidos.
Esta ação senhorial de manutenção do poder através da ―troca desigual‖ de
concessão e obrigação lembra-nos o diálogo dos escravos envolvidos com a suspeita de
―insurreição‖ na realização do samba no engenho Alago Seca em 1871. Um deles tinha
ouvido do seu senhor que a liberdade estava próxima, mas para conquistá-la era preciso
apenas que ele continuasse trabalhando. Alguns negros podem ter se posicionado
acomodados nesta situação, na experiência de esperar, outros, preferiram criar outras
culturas em contraposição a cultura de dominação colocada pelos proprietários. Eles
ouviram a leitura do ―papel da liberdade‖, tinham a crença de que a Rainha viria do Recife
para dar a liberdade, era de ―direito‖ ir buscar a liberdade e tirá-las das mãos dos seus
senhores. Mas este papo, era ousadamente falado às escondidas. Permitido mesmo eram as
festas, que às vezes, aconteciam de forma escondida, em território livre, porém por motivos
publicamente aceitáveis. Em outras palavras, por motivos católicos moralmente
oficializados pelo Estado. Aliás, pelo mesmo motivo até a polícia, o delegado de Nazareth,
deixava pra lá a desobediência de um ―pobre‖ por ensaiar Maracatu. Afinal, nas entrelinhas,
este atrapalhava um culto evangélico.

831
CHALHOUB, S. Machado de Assis, historiador. São Paulo, Cia das Letras, 2003.

494
Como colocou João Reis sobre os tambores baianos, a festa ―era um fenômeno
plural, naturalmente suas diversas manifestações também provocaram reações diferentes,
dependendo de onde e quando aconteciam, sobretudo, o que nelas se fazia e quem delas
participava.‖832Seguindo esta mesma perspectiva, podemos vislumbrar nossos sambas
pernambucanos como ―instrumentos de mediadores de cultura‖, ou na verdade, perceber a
fundo a conceito de E. P. Thompson sobre cultura popular e observar sua constituição na
comarca de Nazareth pelos escravos e libertos como intrinsecamente atrelada, em forma de
conflito ou harmonia, à cultura de dominação senhorial. Aqui vale novamente destacar o
conceito de samba e batuque, este nem sempre tinha um caráter religioso, mas aquele, sim
não era profano. E apesar de, em alguns momentos a polícia nazarena em 1871 chamar a
manifestação do Cavalo Marinho como brinquedo, trazendo um significado ―inocente‖ para
a festa, em todo o inquérito a expressão utilizada foi samba, tanto pelo delegado como
pelos escravos. Perceber as caracterizações de brincadores e sambadores não sugere,
todavia, uma contradição, mas sim justamente o seu próprio caráter cultural: múltiplo.
Escravos e libertos estavam diante de uma conjuntura sócio-política e econômica onde os
donos do poder não jogavam com pratos limpos. Aos escravos, mais do que viver a
experiência do esperar, também tinham que praticar a experiência do driblar ou do gingar
na expressão capoeira. Conta-nos a manifestação do Cavalo Marinho que negro Mateus era
esperto. Já no Maracatu, as expressões culturais são também de personagens guerreiros. Em
outros tempos, lá em 1871, os escravos disseram para as autoridades no samba feito às
escondidas deram Vivas ao menino batizado, ou talvez à aguardente, ou à liberdade. De
qualquer forma, entre tantas ações em busca da liberdade ou de melhores condições, a única
manifestação que teve um caráter coletivo, reunindo muitos escravos, e que, possivelmente,
costumava proporcionar uma identidade comum, foi a realização do samba.
Os senhores proprietários medianos dos engenhos da Comarca de Nazareth não
tinham condições econômicas, nem interesses sociais, para aplicar o trabalho escravo em
curto prazo. Henri Milet sabia das dificuldades sócio-econômicas e defendeu-lhes bem no
Congresso Agrícola do Recife em 1878. A liberdade imediata, proposta por Joaquim
Nabuco, servia mais aos grandes proprietários, os quais tinham condições de investimentos

832
REIS, op cit., 2002, p. 102.

495
e de pagamento aos trabalhadores livres.833 Para os nossos senhores a melhor pedida era um
processo lento e sob indenização. E assim, exercitaram, entre alforrias condicionais, pagas
ou ―concedidas‖ sob um discurso pomposo que lhes enchiam de virtudes e bondades. Aos
escravos restava-lhes a ―obrigação de retribuir‖, a ―gratidão‖. Isto tudo aos olhos dos
senhores, obviamente, porque aos corpos e almas escravas, suas ações aqui descritas nos
contaram outra versão deste mesmo processo. Escravos e libertos construíram suas culturas
festivas e de luta sob conflitos, negociações e acomodações. E, além dos caminhos traçados
em seu tempo, deixaram para a posterioridade indícios nas expressões culturais de um
passado não passivo, nem apático e muito menos apolítico. Eles, através, das festas, com
caráter, direto ou indireto, religioso, dos processos de alforrias e das ações de liberdade
propuseram mediar a política de dominação senhorial. Visualizamos, sobretudo, um
agenciamento de suas necessidades de forma velada e sutil, e as manifestações culturais
apresentam-se como (re) significação justamente dessa ação. Nestes espaços eles trocavam
valores comuns, solidarizavam-se com suas condições e com suas buscas, planejavam
possíveis lutas e também, mediavam com os senhores e autoridades que ora desconfiavam
de ações sinistras, ora viam apenas como brinquedos ou como único divertimento dos
pobres. E talvez fosse isso mesmo, afinal, os escravos e libertos não eram uma massa
homogênea e compacta, eles tinham suas necessidades, suas vontades, suas escolhas
próprias. Nem sempre todos e todas juntos ao mesmo tempo escolhiam o mesmo caminho.
Alguns fugiam, outros assinavam outros se suicidavam, outros pagavam pela liberdade da
filha, outros buscavam a Justiça e etc. Assim, todos, de alguma forma, propunham
cotidianamente alternativas para buscar a liberdade e uma vida mais digna. Na realidade da
comarca de Nazareth, localizada na região da mata norte de Pernambuco, durante as
décadas de 70 e 80 do XIX, senhores, escravos, libertos, livres, ―bandidos‖, vigários,
feirantes, rendeiros, autoridades, juízes jogavam com as armas que tinham, e na verdade,
conforme o ritmo da música. É, assim, que também se aprende a dançar o Cavalo Marinho,
tem que seguir o pulso que está sendo tocado, entretanto, ninguém dança igual ao outro,
cada um com seu traquejo, faz do grupo, um grande espetáculo de particularidades. A
metáfora significa aqui a realidade escravista brasileira nas últimas décadas do XIX.

833
MARSON, op. cit., 2008.

496
Com este estudo aprendemos um pouco sobre uma sociedade pernambucana, o
objetivo principal foi propor uma versão diferente da história da elite política brasileira, da
classe senhorial, e, sobretudo, dos trabalhadores da cana escravos, libertos e livres. Uma
versão, principalmente, que desperte a reflexão sobre a cultura popular dos trabalhadores da
cana pernambucanos, com muita mais consciência histórica sobre as ações dos escravos.
Uma reflexão um pouco mais ampla sobre o processo de abolição de Pernambuco e do
Brasil. A política cultural pernambucana do presente não deve roubar a cena da história dos
trabalhadores da sua terra, a história é que tem a condições de dar um novo cenário para a
cultura política do presente.

497
Arquivos e Bibliotecas

Arquivo Público Jordão Emereciano – Recife (PE)

Biblioteca Central ―Cesar Lattes‖ da UNICAMP – Campinas (SP)

Biblioteca do Centro de Artes e Comunicação – UFPE – Recife (PE)

Biblioteca do Centro de Ciências Sociais Aplicadas – UFPE – Recife (PE)

Biblioteca do Centro de Filosofia e Ciências Humanas – UFPE – Recife (PE)

Biblioteca Prof. Dr. Octávio Ianni – IFCH - UNICAMP– Campinas (SP)

Biblioteca Pública Jordão Emereciano – Recife (PE)

Biblioteca Pública de Nazaré da Mata- (PE)

Biblioteca Pública de Goiana (PE)

Instituto Arqueológico Histórico e Geográfico pernambucano – Recife (PE)

Fundação Joaquim Nabuco – Recife (PE)

Memorial da Justiça – Recife (PE)

498
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