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Laura Carolina Vieira

Saberes da Floresta, Produtos na Cidade? Os atravessamentos socioculturais que permeiam as


práticas tradicionais de cura amazônica em ambiente urbano – Belém/Pará.

Dissertação de Mestrado

Belém, Pará

2020
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Laura Carolina Vieira

Saberes da Floresta, Produtos na Cidade? Os atravessamentos socioculturais que


permeiam as práticas tradicionais de cura amazônica em ambiente urbano –
Belém/Pará.

Dissertação de Mestrado

Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do título


de Mestre em Antropologia pela Universidade Federal do Pará.

Orientadora: Profª Dra. Renata de Godoy.

Belém, Pará

2020
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iv

Laura Carolina Vieira

Saberes da Floresta, Produtos na Cidade? Os atravessamentos socioculturais que


permeiam as práticas tradicionais de cura amazônica em ambiente urbano –
Belém/Pará

Dissertação de Mestrado

Banca Examinadora:

__________________________________
Profa. Dra. Renata de Godoy (PPGA/UFPA)
Orientadora e Presidente da Banca Examinadora

__________________________________
Profa. Dra. Flávia Cristina Araújo Lucas (PPGCR/UEPA)
Examinadora Externa

__________________________________
Prof. Dr. Flávio Bezerra Barros (PPGA/UFPA)
Examinador Interno

__________________________________
Profa. Dra. Rosa Elizabeth Acevedo Marin (PPGA/UFPA)

Examinadora Suplente.
v

Para aquelas e aqueles que o coração pulsa

em frente ao raiar do sol Guajará.

Ao Seu João e Dona Miraci.


vi

Agradecimentos

Temo que minha memória não seja mais a mesma e que algum esquecimento se torne
injusto; infelizmente, a mente humana tem seus percalços. No entanto, para que todas as peças
aqui presentes se formassem, foi preciso um grande conjunto de mãos, abraços, suportes,
conversas, aconchegos e amizades; espero conseguir expressar nem que seja um pouquinho da
minha gratidão.

Meu primeiro agradecimento vai para todas as erveiras, erveiros e feirantes do Ver-o-
Peso, fundamentais para essa pesquisa, seja como conteúdo, seja como inspiração. Existe um
algo muito grande vivendo ali, espero de alguma forma ter honrado isso. Seu João, Dona Miraci,
Roni Rocha, Adailson e Ray, um obrigada especial.

Nessa singela forma escrita, agradeço aquele que me concedeu a permissão do estudo,
apontando com sua flecha verde e certeira os caminhos que eu deveria percorrer, me guiando
no que mirar e a importância do que estaria representando. É com alegria que entrego.

A minha querida mãe, Arlete, que quase no mesmo único mês viu dois dos seus filhos
se mudarem para direções opostas à quilômetros e quilômetros de distância. Já dizia o poeta
“mãe no parto sente dor”. Um profundo agradecimento por ser minha base, hoje e sempre. À
minha pequena grande menina, Sofia, por segurar as pontas e me preencher com seu coração
de ouro. À minha vó Ester, matriarca de toda essa linhagem de guerreiras. Amo vocês.

Com muito carinho agradeço a minha orientadora Profª Drª Renata de Godoy, que
desde 2017 me acolhe em todas as ansiedades. Sua figura inovadora, obstinada e sensível me
inspira como profissional; sua amizade me faz sentir segura em estar e compartilhar um
ambiente tão diferente. Obrigada pelas trocas, aprendizagens, conversas, pontuações, tato e
ensinamentos.

Sou grata também à todas professoras e professores com que tive aula do PPGA,
compartilhando seus saberes únicos; em especial ao Prof. Dr. Diogo Costa e a Profª Rosa
Acevedo, que contribuíram com alguns dos enfoques mais importantes da pesquisa; assim como
ao Profº Drº Fabiano Gontijo por suas indicações e empréstimos. Um agradecimento destacado
ao Profº Drº Flávio Barros, não só por suas aulas, sobremaneira relevantes, como também por
vii

suas considerações e colaborações no momento de qualificação; nesse sentido, agradeço ainda


pelas importantes reflexões do Profº Drº Andrés Zarankin durante aquela banca.

Um muito obrigada especial ao Antônio Carlos, exemplo em atenção, solidariedade e


competência. Um abraço a turma de 2018, especialmente Aline, Maria Helena, Luciana Castro,
Clarice, Gabrielle, Luciana Railza, Maria Luiza, Rayanne e Dilma. Obrigada também a todas
as meninas do GATA, com suas histórias, apoios e partilhas. Ana Paula e Amanda Seadra, meus
agradecimentos pelas ajudas tão pontualmente importantes..

Um agradecimento profundo para aqueles que deram cor e alma para minha rotina
nortista: Igor, Fabiano Esteban e Sinnd, desde de o começo e sempre. Taynara Nascimento e
Paula Zanardi, como irmãs, sangue, choro, riso e apoio. Diego Vieira, Laísa, Fernanda, Marcos,
Sabrininha e Alex, tão queridos. À todas e todos meus vizinhos da Vila Adrega, mostrando que
a coletividade garante a existência humana; aqui, um obrigada principal a Heloisa Pinho, que
sensação boa é saber que ao lado mora uma alma amiga.

As minhas bases lá de Curitiba: Prima Paula, longe, mas aqui quase todos os dias, me
trazendo sanidade. Mari, Kau, Re, Jéssica Mirely, Matheus, Fábio, Leila, Jéssica Ribeiro,
Anninha, Fer, quem seria eu sem vocês?

Agradeço ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal


do Pará, pelo fomento, auxílio e acolhida. Assim como agradeço à CAPES pelo apoio
financeiro. Por uma prática estudantil gratuita onde a diversidade e igualdade voltem a ganhar
espaço e valor. Que a educação, a pesquisa e inovação sejam universais, libertas e libertadoras.
Que sejam ultrapassados os desmontes e se retorne a soberania popular.
viii

RESUMO
O Setor das Ervas está entre as seções mais características do Complexo do Ver-o-Peso, maior
e mais antiga feira atacadista e varejista da capital do estado do Pará, Belém. Este acompanha
o surgimento da cidade e reúne particularidades significativas para a realidade urbana. No Setor
das Ervas, os artigos para venda são direcionados para fins de cura fisiológica e espiritual, frutos
de conhecimentos tradicionais e manejo etnobiológico comuns a região amazônica. Esses, no
município de Belém, entrelaçam-se às práticas culturais e fenômenos histórico-sociais próprios
ao município e seus sujeitos variados. Com tais fundamentos, pretende-se a análise das
dinâmicas socioculturais influentes na vigência de saberes medicinais tradicionais em contexto
urbano. Para o exame, são consideradas as significações, interações e manejos das práticas em
meio citadino político e urbanizador utilizando-se de levantamentos histórico-bibliográficos,
observação participante e entrevistas. São percebidos perspectivas subjetivas segundo
diferentes coletividades e suas expressões sociais, gerando configurações conflitivas sobre a
valoração dos saberes tradicionais de cura e seus sujeitos associados. Dessa forma, a pesquisa
contribui para o estudo de realidades urbanas e seus elementos mercantis, culturais e políticos,
considerando as novas as demandas e readequações que se fazem presentes. Contribui, também,
para a ampliação do campo de estudo das medicinas populares e trabalhar sobre as janelas
existentes que envolvem o estudo dos saberes tradicionais encadeadas com esferas hegemônicas
de produção e consumo.

Palavras-chave: Amazônia; Ver-o-Peso; Ervas; Saber Tradicional; Mercantilização; Cultura


Material; Urbanização.
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ABSTRACT

The Herb´s Market is one of the most characteristic sections of the Complexo do Ver-o-Peso,
the largest and oldest open market in the capital of the state of Pará, Belém. It representsthe
emergence of the city and gathes significant particularities of the urban reality. The products
for sale there are intended for physiological and spiritual healing purposes, resulting of
traditional knowledge and ethnobiological management common to the Amazon region. In
Belém, these are associated with cultural practices and historical-social conjuncture specific to
the municipality and its varied subjects. With such fundamentals, the goal of this research is to
analyze the socio-cultural dynamics that influences the existence of traditional medicinal
knowledge in an urban context. For such evaluation, meanings, interactions and management
of practices in a political and urban environment are considered, using historical-bibliographic
surveys, participant observation, interviews. Subjective perspectives are perceived according to
different social collectivities and their expressions, which generates conflicting configurations
about the valuation of traditional healing knowledge and its associated subjects. In this way,
the research contributes to the study of the urban realities and their commercial, cultural and
political elements, considering new demands and readjustments. It also contributes to the
expansion of the field of popular medicines and to the works on the existing windows that
involve the study of traditional knowledge linked to hegemonic spheres of production and
consumption.

Key-words: Amazon; Ver-o-Peso; Traditional Medicinal Knowledge; Urban Environment;


Commodification.
x

LISTA DE FIGURAS

Figura 1 Destaque fotográfico dos produtos. Autoria: Laura Vieira, ano 2019 ....................... 11

Figura 2 Vista aérea contemporânea do Ver-o-Peso, desde a Ladeira do Castelo até a Feira
Livre. FONTE: IPHAN. Disponíel em:
<<http://portal.iphan.gov.br/pagina/detalhes/828>> .................................................. 14

Figura 3 Cartão-Postal da vista diagonal da Pedra do Peixe, em 1914. Fonte: Acervo Nostalgia
Belém <<shorturl.at/dent4>> ..................................................................................... 17

Figura 4 Retrato a partir da Boulevard Castilhos França, pegando Mercado de Ferro e Pedra do
Peixe. Fonte: Acervo Nostalgia Belém. <<shorturl.at/pFLM2>> .............................. 18

Figura 5 Figura – Ver-o-Peso na década de 1980. Autoria: Mark Edwards, HARD RAIN
PICTURE LIBRARY ................................................................................................. 20

Figura 6 área varejista do Ver-o-Peso em 1985. Fonte: Acervo Nostalgia Belém


<<shorturl.at/biyRX>> ............................................................................................... 20

Figura 7 Vista lateral da Pedra do Peixe, abrangendo a frontal dos casarões, característica
primária do tombamento do Conjunto e a área onde atravessadores atracam para a
venda dos produtos – Autoria: Jéssica Mirely Farias, 2019 ....................................... 23

Figura 8 Sobreposições Complexo Ver-o-Peso. Fonte:Cardoso et al (2016). .......................... 26

Figura 9 Descansando sobre uma embarcação atracada, duas “garças namoradeiras”, símbolos
de canções, presença e imaginário sociocultural no Ver-o-Peso. Autoria: Laura Vieira,
2018. ........................................................................................................................... 39

Figura 10 Fotografia de uma erveira do Setor das Ervas no Plano Turítico Ver-o-Pará. Fonte:
SETUR (2012) ............................................................................................................ 44

Figura 11 Dados de contato no rótulo facilitam o retorno dos clientes .................................... 55

Figura 12 Variedade de rótulos. Laura Vieira, 2020. ............................................................... 56

Figura 13 Variedade de rótulos. Autoria: Laura Vieira, 2020. ................................................. 57

Figura 14 Garrafada para "descer" a mesntruação atrasada. Restrita a pedidos particulares.


Autoria: Laura Vieira, 2020. ...................................................................................... 58

Figura 15 Mix de folhas para defumação próspera na Virada do Ano. Autoria: Laura Vieira,
2018 ............................................................................................................................ 59

Figura 16 Barraca do erveiro Garcia, ervas in natura .............................................................. 60

Figura 17 Vista do corredor central do Setor das Ervas a partir da Av. Boulevard Castilhos
França. Fonte: Autora, 2018 ........................................ Erro! Indicador não definido.
xi

Figura 18 Representação figurativa aérea da organização das barracas do Setor dar Ervas,
situando a posição da Av. Boulevard Castilhos de França e as margens da Baía do
Guajará. Fonte: Laura Vieira, 2018 ............................................................................ 73

Figura 19 O início da frontal direita, barracas “da Loura”. Fonte: Laura Vieira, 2018 ........... 74

Figura 20 Por dentro do corredor central. Fonte: Laura Vieira, 2018 ..................................... 77

Figura 21 O corredor central e seu aspecto aglomerado. Fonte: Autora, 2018 ........................ 78

Figura 22 O jogo “tema-horizonte”: aspecto abóboda, céu como fundo, sons, velocidades, cores
e cheiros. Fonte: Laura Vieira, 2018 .......................................................................... 79

Figura 23 Pela abertura se vê o Solar da Beira como “horizonte”. Fonte: Laura Vieira, 2018 80

Figura 24 Compras à luz solar. Fonte: Laura Vieira, 2018 ...................................................... 81

Figura 25 Frontal esquerda. Fonte: Laura Vieira, 2018. .......................................................... 83

Figura 26 Barracas de medicinais da Miraci. Fonte: Laura Vieira, 2018. ................................ 84

Figura 27 Barracas de místicos de Miraci. Fonte: Laura Vieira, 2018. .................................... 85

Figura 28 Barraca de insumos naturais. Fonte: Laura Vieira, 2018. ........................................ 85

Figura 29 Barraca do Seu João Alexandre, que trabalha há 32 anos no setor. Fonte: Laura Vieira,
2018. ........................................................................................................................... 87

Figura 30 A barraca de Roni, nº 75. Fonte: Laura Vieira, 2018. .............................................. 88

Figura 31 Barracas da Dona Coló. Fonte: Laura Vieira, 2018. ................................................ 89

Figura 32 Bandeirinhas do Brasil. Fonte: Laura Vieira, 2018. ................................................ 90

Figura 33 Cartaz do Círio de Nazaré de 2018 na frontal direita. Fonte: Laura Vieira, 2018. .. 91

Figura 34 Vista da Boulevard Castilhos de França, antes da reforma promovida por Edmiso
Rodrigues, bem vista pela maior parte da população da cidade. Fonte:
<<https://www.edmilsonpsol.com.br/2002-edmilson-inaugura-o-novo-ver-o-peso/>>
.................................................................................................................................. 104

Figura 35 Após a reforma durante o governo de Edmilson Rodrigues. Autor: Igor Mota. .... 104

Figura 36 Imagem projetada segundo a Proposta vigente do, então, atual governo, Zenaldo
Coutinho. Fonte: Belém (2019) ................................................................................ 105

Figura 37 Placa bilíngue indicando o Setor das Ervas. Autoria: Laura Vieira, 2019 ............. 108

Figura 38 Página 31 da Proposta Básica. Fonte: Belém (2019) ............................................. 109

Figura 39 Estante de uma loja de souvenir no Aeroporto Val de Cans, Belém/PA. Autoria: Laura
Vieira 2019 ............................................................................................................... 112
xii

Figura 40 Caixa de um restaurante em área insular de Belém, Ilha do Combu. Essa, com forte
atração turística. Autoria: Laura Vieira, 2018 .......................................................... 113

Figura 41 Exposição "Feiras" no Museu Municipal Atílio Rocco, em São José dos
Pinhais/Paraná. Representação do Complexo em barraca estilizada, ao estilo das origi
Fonte: Luciano Chinda, 2019. .................................................................................. 113

Figura 42 Capa do Jornal Diário do Pará, edição 27/03/2019. Destaque para as narrativas de
grandeza versus decadência; o recorte turístico e sensorial, além da "morena paraense".
Fonte: Diário do Pará. .............................................................................................. 118

Figura 43 Logo da Associação Ver-as-Ervas feito de modo cooperativo. Fonte: Silva e Martins,
2009. ......................................................................................................................... 123

Figura 44 Enchente em época de maré alta no inverno amazônico; atrapalhando comércio.


Autoria: Amanda Seadra, 2020. ............................................................................... 125

Figura 45 Erveiras irmãs: “Tira uma foto nossa!”. Fonte: Laura Vieira, 2018.......................129

Figura 46 Beth Cherosinha. Fonte: Laura Vieira, 2018..........................................................130

Figura 47 Erveira Izabel. Fonte: Laura Vieira, 2018...............................................................131


xiii

SUMÁRIO
INTRODUÇÃO -------------------------------------------------------------------------------------------- 1
Apresentação – Trajetória entre campos ------------------------------------------------------------- 1
1. Capítulo – Saberes tradicionais, práticas e lugares -------------------------------------------- 10
1.1 O Ver-o-Peso na história: ponto social, econômico e urbano estratégico ---------------- 14
1.2 Dizer sobre e experienciar: metodologia da pesquisa. -------------------------------------- 24
1.3 Olhares, Interpretações e Projetos: um mercado e seus elementos como representantes
culturais. ------------------------------------------------------------------------------------------------ 35
2. Capítulo – O Setor das Ervas: tradição, sensorialidade, agência ---------------------------- 47
2.1 A Tradição do Banho de Cheiro: a cultura das ervas medicinais e os laços entre seu uso
e a cidade de Belém ----------------------------------------------------------------------------------- 48
2.2 Os produtos: especialidades e relação com suas erveiras e erveiros ---------------------- 54
2.3 Citadinas em processos sociativos: diferença entre comunidades tradicionais e o
conjunto urbano de erveiras e erveiros ------------------------------------------------------------- 66
2.4 Percursos etnográficos: vivenciar o comércio no Setor das Ervas em relação com suas
formas e estratégias mercadológicas --------------------------------------------------------------- 68
3. Capítulo – As dinâmicas socioculturais que atravessam o comércio ----------------------- 96
3.1 Políticas urbanistas: condicionamentos institucionais sobre as práticas comerciais. --- 97
3.1.1 Revitalizações na orla histórica de Belém: higienismo e gentrificação. ------------ 99
3.1.2 As revitalizações perante os sujeitos, sociabilidades, saberes e práticas do Ver-o-
Peso. ------------------------------------------------------------------------------------------------ 103
3.1.3 O turismo como categoria específica de análise. -------------------------------------- 110
3.2 Cultura, natureza e erveiras(os) segundo discursos: influências exógenas sobre os
pilares dos saberes tradicionais em formatações mercantis. ----------------------------------- 114
3.3 A agência dos sujeitos: As(os) erveiras(os) como agentes mercantis e de domínio
sobre a vigência dos saberes medicinais tradicionais. ------------------------------------------ 120
3.3.1 Agência coletiva: Sociabilidades e sociação no Setor das Ervas -------------------- 121
3.3.2 “Erveira e feirante”: agentes comerciais mediadoras(es) ----------------------------- 126
CONCLUSÕES ----------------------------------------------------------------------------------------- 134
A adaptabilidade da cultura das ervas e banhos-de-cheiro: características que envolvem a
vigência dos saberes tradicionais medicinais. ------------------------------------------------------- 134
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS --------------------------------------------------------------- 140
xiv

Preso à minha classe e a algumas roupas,


vou de branco pela rua cinzenta.
Melancolias, mercadorias espreitam-me.
Devo seguir até o enjoo?
Posso, sem armas, revoltar-me?

Olhos sujos no relógio da torre:


Não, o tempo não chegou de completa justiça.
O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera.
O tempo pobre, o poeta pobre
fundem-se no mesmo impasse.

Em vão me tento explicar, os muros são surdos.


Sob a pele das palavras há cifras e códigos.
O sol consola os doentes e não os renova.
As coisas. Que tristes são as coisas, consideradas sem ênfase.

Vomitar esse tédio sobre a cidade.


Quarenta anos e nenhum problema
resolvido, sequer colocado.
Nenhuma carta escrita nem recebida.
Todos os homens voltam para casa.
Estão menos livres mas levam jornais
e soletram o mundo, sabendo que o perdem.

Pôr fogo em tudo, inclusive em mim.


Ao menino de 1918 chamavam anarquista.
Porém meu ódio é o melhor de mim.
Com ele me salvo
e dou a poucos uma esperança mínima.

Uma flor nasceu na rua!


Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.
Uma flor ainda desbotada
ilude a polícia, rompe o asfalto.
Façam completo silêncio, paralisem os negócios,
garanto que uma flor nasceu.

Sua cor não se percebe.


Suas pétalas não se abrem.
Seu nome não está nos livros.
É feia. Mas é realmente uma flor.

Sento-me no chão da capital do país às cinco horas da tarde


e lentamente passo a mão nessa forma insegura.
Do lado das montanhas, nuvens maciças avolumam-se.
Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pânico.
É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.

A Flor e a Náusea, Carlos Drummond de Andrade


1

INTRODUÇÃO
Apresentação – Trajetória entre campos

O estudo aqui situado propõe-se à análise das dinâmicas socioculturais envolvidas na


vigência de saberes tradicionais para cura e fins espirituais em contexto urbano. Considera para
tal a comercialização de produtos medicinais no Setor das Ervas da Feira do Ver-o-Peso em
Belém/PA, percebidos como expressões materiais dos conhecimentos e das práticas tradicionais
da cura popular regional. Para tanto procura-se perceber quais os atravessamentos que estão
presentes nos processos de consumo dessas configurações em ambiente urbanizado,
contemporâneo e nortista.

A Feira do Ver-o-Peso se caracteriza como locus de pesquisas, análises e proposições


não apenas no campo social como também aplicado. Destacando-se em produções relativas às
práticas de reciprocidade e sociabilidade, confere exames que abrangem suas intrincadas etapas,
relacionando produtores, vendedores e consumidores (Lima 2008; Leitão 2010). Também
promove discussões relativas aos seus elementos culturais, arquitetônicos, políticos,
tecnológicos, urbanísticos, históricos, entre outros. O presente estudo pretende-se somar à tais
pontos debatendo acerca das configurações que permeiam a presença dos saberes tradicionais
de cura natural no Setor das Ervas considerando as relações conjunturais inerentes ao processo
de uso e prática do uso medicinal em questão. Assim, espera-se contribuir para a ampliação do
campo de estudo das medicinas populares e trabalhar sobre as janelas existentes que envolvem
o estudo dos saberes tradicionais encadeadas com esferas hegemônicas de produção e consumo.

O estudo começou idealizado ainda antes do contato com a Antropologia. Em


Curitiba/PR, durante meu bacharelado em História - Memória e Imagem1, estiveram presentes
debates concertantes aos usos e narrativas correlacionadas aos bens culturais e as subjetividades
dos lugares, sobretudo quanto ao papel da memória na formação e repercussão dos significados
que tais teriam – não como simples marcos sociotemporais memorialísticos, mas propulsores
dialógicos da sociedade com possíveis modelos de passado, os quais seriam intensamente

1
O curso de História – Memória e Imagem foi criado em 2009 pela Universidade Federal do Paraná/UFPR, com
caráter interdisciplinar, visando à formação em dois eixos: relação entre História e Memória e entre História e
Imagens. O primeiro destinado “à formação de conhecimento acerca das relações entre História e Memória,
apontando para os usos dos suportes da memória social (arquivos, museus, monumentos), sua preservação e
fruição” (DEHIS 2020) e o segundo “voltado ao estudo das relações entre História e suportes imagéticos” (DEHIS
2020), nele “pretendemos formar um historiador em condições de atender às novas demandas sociais relativas ao
seu campo de conhecimento: ‘preservação do patrimônio, assessorias a entidades públicas e privadas nos setores
culturais, artísticos, turísticos etc.’. Parecer CNE/CES Nº 492/2001.” (DEHIS 2020)
2

representativos de identidades/personificações. A partir da teoria de Pierre Nora (1997)


angulando historiografia, nação e crise do presente, o estudo da categoria memória em função
discursiva suscitou perceber, além de narrativa, a discussão das características e efeitos,
positivos ou negativos, “existentes” ou “inexistentes” dessa. O potencial de influência no
presente dos bens culturais expressos pelos lugares, monumentos e edificações fomentava
abordar, naquele momento, o processo de construção e uso que estes respondiam, suas
indicações e implicações políticas, sociais e econômicas no tempo-espaço. Baseada nas noções
de lugares de memória (Nora 1993)2, me questionava sobre as potencialidades e vínculos os
quais elementos histórico-culturais respondem e geram nas sociedades que se expressam, me
atentando para a formação identitária social. Também nesse período, participando do Grupo de
Estudo e Pesquisa em Patrimônio Cultural/GEPPC3 – promovido pelo Círculo de Estudos
Bandeirantes/CEB e Fundação Cultural de Curitiba/FCC –, me familiarizei com um conjunto
variado de cadeiras acadêmicas que discutiam as apropriações, usos e significados que cultura
e seu aspecto patrimonial envolve, no passado, mas principalmente hoje: artes, arquitetura,
história, turismo, direito, produção cultural e outros. Foi no GEPPC que me interessei realmente
pelos laços políticos, econômicos e discursivos da cultura, que se somaram aos conhecimentos
prévios sobre os aspectos – e espectros – identitários, memorialísticos e históricos. Alicerçado
nesse contexto que (re)percebi o Setor das Ervas da Feira do Ver-o-Peso, uma vez que suas
práticas culturais inerentes estavam fortemente associadas ao seu lugar na memória e identidade
da cidade de Belém.

Possuindo interesse pessoal sobre o conteúdo do Setor desta icônica feira, tão distante
de mim e da minha realidade brasileira-sulista, intensificou-se um olhar sobre as subjetividades
e leituras que envolviam o consumo, absorção e valoração dos saberes e práticas curativas e
espirituais pelas ervas. Naquele período eu também estava em contato com uma rede campesina
socioambiental. As práticas do conjunto envolviam pontos como agrofloresta, permacultura,
defesa do meio ambiente, povos tradicionais e variadas outras. Destacava-se os estudos de
medicinas naturais desde os sistematizados como a ayurveda e a medicina tradicional chinesa;
mas também não sistematizados – “folks” –, como as garrafadas, unguentos, argilas, etc;
ritualísticos, como tabaco; e espirituais: defumações, banhos, purificações, patuás. A troca de

2
Assim como memória, representação e esquecimento por Michael Pollack (1989), memória, política e visibilidade
trabalhada pelo dissenso de Jacques Rancière (1996), memória coletiva de Maurice Halbwachs (2004), tradição
inventada e a construção de um passado histórico de Eric Hobsbawn (2008).
3
Grupo de Estudos e Pesquisas em Patrimônio Cultural fundado em 2017, sob a liderança de Luciano Chinda
DoArte.
3

informações entre, e sobre, produtores de insumos, naturopatas, benzedeiras, parteiras, lojas,


feiras e assentamentos campesinos era ativa.

Nessa perspectiva, o Setor de Ervas da Feira do Ver-o-Peso era um ponto conhecido,


citado como conglomerado viável (pensando o acesso) de medicinas da floresta e um tipo de
prática curativa ativa, producente e bastante singular em termos regionais. Tal circunstância nos
permitia o conhecimento de grupos, indivíduos e locais variados que dialogavam com as
práticas tradicionais de medicina. Foi assim que o campo surgiu, primeiro como ponto
importante do conjunto de meus interesses, local de reunião de saberes medicinais, para –
conforme minha formação proporcionava – a compreensão desse como um representante
simbólico de uma cidade e cultura popular, inerentemente atravessado por múltiplas percepções
subjetivas. A partir dessa nova percepção sobre um lugar que eu conhecia “de ouvir falar”, e
questionei sobre as influências que envolviam o processo de uso desses produtos no Ver-o-
Peso, um local mercantil nada simples, mas multiforme, envolvendo um abastecimento e
circuito econômico extenso; questões de gênero, modos e práticas de vida; fenômenos culturais;
fatos sociais totais (Mauss 2003) e um importante contexto geográfico, não apenas nacional
como internacional – além de tensionador de pretensas dicotomias, como natureza e
cultura/sociedade.

Assim sendo, minhas primeiras relações com o locus do campo, e em certo nível, com
o próprio tema da pesquisa, vieram da transposição do meu olhar sobre um lugar cultural,
naquele momento, apenas pessoalmente relevante, para o questionamento das razões de sua
relevância para o processo de perpetuação de suas práticas culturais pelos indivíduos que o
envolvem, outros que não eu e minhas próprias percepções e anseios 4. Eu, naquele momento,
estava definindo questionamentos sobre uma realidade outra que a minha, baseando-me numa
associação com as prévias das quais já estava ligada e discutia coletivamente.

Introduzo esse “preâmbulo” para apresentar os motivos que me instigaram ao presente


estudo, mas também para pontuar um basilar componente interdisciplinar, em especial a

4
Como será demonstrado, houve um processo no qual começa pelo meu interesse pessoal no tema, transposto à
avaliação desses pela crítica social, pretensamente apoiada na impessoalidade, até enfim a constatação da minha
própria influência nos fenômenos e uso da minha individualidade para as considerações desses. Minha relação
com a investigação é tanto como aquela persona que infere, como uma das “engrenagens” no panorama estudado,
isso mesmo antes de iniciar o processo da pesquisa, pois já me posicionava como consumidora de saberes
tradicionais de cura e as imagéticas/construções sobre o Setor das Ervas.
4

arqueologia5, que me levou a tal e como este é uma carga relevante e presente nos fundamentos
da minha abordagem e ação antropológica, seja em marcos teóricos ou posturas metodológicas
e técnicas. Apesar de inicialmente temer um envolvimento multidisciplinar, ainda que assim o
desejasse, considero que o diálogo com outros campos permitiu um cuidado maior em relação
à abrangência do conteúdo da pesquisa e como essa seria transmitida, em sua forma e absorvida
pelos leitores, devido à sua forma. Essa postura veio com o tempo, entre dúvidas e meias
certezas, mas principalmente pela minha presença e interação com o Setor das Ervas.

Rememorando que a ação etnográfica não deveria ser engessadamente prevista, a


primeira vez que entrei em contato com o Setor foi também a primeira vez que visitei a Região
Norte do Brasil, já para os processos de seleção do Programa de Pós-Graduação em
Antropologia da Universidade Federal do Pará - PPGA/UFPA ao final de novembro de 2017.
Lembro bem da minha primeira ida ao Setor das Ervas, durante a semana antes do dia estipulado
para a minha defesa do projeto. Nela, não pude conter minhas observações e certo temor quanto
à validade do meu projeto de pesquisa, que agora me parecia tão pretensiosamente formulado;
estar “em campo” pode ter muito blues (DaMatta 1974). Percebida como turista e consumidora,
posição que de fato ocupava, me dei conta do quão inserida estava na conjuntura que pensara
em analisar, me perguntando sobre como lidaria a respeito de tal fenômeno. Esse momento de
“desilusão deslumbrante” foi categórico por introduzir uma busca por referenciais teóricos que
me permitissem um apoio concernente a posição que ocupava, como crédula das práticas e
tocada pelo que é materializado nos produtos e saberes do Setor, além de representação de um
tipo essencial para os acontecimentos do comércio dali.

Observando como esse cenário apontava para um nível afetivo, íntimo e anfêmero,
somou-se às minhas disposições o pensamento acerca da postura afetada (Siqueira 2005) que
definia minha pesquisa. Ainda nessa primeira incursão em campo outro elemento, no qual teria
consciência racional um pouco mais tarde, já se apresentava: a dimensão sensorial como parte
fundamental da expressão e leitura do Setor, do Ver-o-Peso e da cidade de Belém. Desde a
primeira vez, estar lá corporificada foi fundamental para significação e apreensão do campo, e
por sua vez, das narrativas que o envolvem. Os estímulos sensoriais tais quais cheiros, sons,
imagens, dimensões, temperaturas, gostos e texturas foram itens definidores nesse estudo, pois

5
A arqueologia, em maior escala, foi importante para o trabalho acerca da cultura material e relações espaciais e
paisagísticas com teoria sensorial. Assim como o lugar, a partir da perspectiva da geografia com o senses of place;
a história, com o levantamento historiográfico e paradigma indiciário; a arquitetura com a imagem da cidade e o
urbano da cidade, proposto pelo geógrafo Milton Santos.
5

sustentam a minha interação com o Setor do mesmo modo que se ligam aos fenômenos sociais
desse. A sensorialidade tanto impacta minha percepção no campo pelo seu caráter
fenomenológico (Merleau-Ponty 2004), como pela consciência que assim precisaria ser, uma
vez eu deveria estar em uma posição de ser impactada dessa forma, pois o uso de gatilhos
sensórios para atração marca e singulariza o Setor das Ervas.

Aumentando a lista de alguns percalços profícuos para esse estudo, conforme


vivenciava o campo, notei uma falta de legitimação da minha condição de pesquisadora, por
mais que muitas vezes assim me portasse. Para o meu desespero, eu, sulista e branca, era
constantemente tratada e reafirmada apenas como uma consumidora interessada potencial e
como se não bastasse, uma consumidora... Turista! O turismo surge como uma categoria
importante para o comércio em si do Setor e a representação desse (e suas associações: Ver-o-
Peso, Belém, “amazônia”) em níveis socioculturais, econômicos e políticos. Ser turista na
seção, ao mesmo tempo que pesquisadora, crédula e nova moradora da cidade, me permitiu
entrar em contato com as divergências simbólicas dos produtos e o saber tradicional. Evitando
aqui uma etnografia de si, destaco como minha presença em diferentes pontos de interação com
as(os) erveiras(os) e a cultura do uso de ervas, banhos de cheiro, entre outros, possibilitou uma
proximidade subjetiva e paralela as diversas leituras, compreensão e significações do tema
desenvolto. No entanto, com o progresso das minhas interações, percebi que ser vista como
consumidora – tanto pelas vendedoras e vendedores do Setor como por seus frequentadores –
abria outro panorama para o estudo, no qual minhas observações, questionamentos e
ponderações se enriqueciam juntamente pela possibilidade de pouco ser entendida com uma
agente investigadora e mais como um elemento daquele sistema de consumo de saberes
tradicionais. Nesse ponto, minha preocupação se volta para a linha tênue que se encontrava a
efetividade da minha pesquisa, como colocou a própria Jeanne Favret-Saada:

Como se vê, quando um etnógrafo aceita ser afetado, isso não implica
identificar-se com o ponto de vista nativo, nem aproveitar-se da
experiência de campo para exercitar seu narcisismo. Aceitar ser afetado
supõe, todavia, que se assuma o risco de ver seu projeto de
conhecimento se desfazer. Pois se o projeto de conhecimento for
onipresente, não acontece nada. Mas se acontece alguma coisa e se o
projeto de conhecimento não se perde em meio a uma aventura, então
uma etnografia é possível. (Siqueira 2005:160)

Procurando não me perder “em meio a uma aventura”, mas em uma “etnografia
possível” a partir das correspondências, me atentei em três pontos: as intepretações provindas
do meu ofício, um vetor científico, “externo”; minha presença com uma engrenagem dos
6

fenômenos daquela vivência e, por fim; a interpretação que viria da condição de ser esse
elemento “afetado”. Tal tríade não deve ser entendida como pontos apartados, mas sim
mesclados e projetados entre si. Por tanto, o estado afetado e as influências sensoriais na minha
participação distanciam esse estudo de um nível puramente objetivo ou pretensamente neutro.
Conforme me colocava em campo – já que constantemente lá estava como frequentadora do
Ver-o-Peso, nos múltiplos momentos de compra, lazer, sociabilidade e pesquisa –, mas
procurava manter uma postura reflexiva e dialógica do que de ativa/passiva aos fenômenos
partilhados, atenta para não contrair, centralizar e verticalizar as considerações, mas inteirar e
participar das experiências partilhadas.

Assim, as análises aqui seguem por uma metodologia integrada, em determinados


momentos mais ou menos participativas, na qual os dados são percebidos a partir dos percursos
e vivências em campo, com investidas distintas, diretas ou indiretas, em sintonia com um ritmo
e prática citadina de experienciação do espaço, suas nuances, influências e sensações. Projeto-
me no lugar como um ser encorpado que experiencia (Zarankin 2015), evitando “maquiar”
minha atuação em campo para a compreensão dos sistemas expressões, mas ao contrário:
“conceder estatuto epistemológico” (Siqueira 2005:160). Priorizei uma relação em campo
menos objetiva, procurando manter poucas atitudes repetidamente questionadoras, ainda que
eventualmente tenha me apoiado em entrevistas semiestruturadas e catalogações quantitativas
(Bernard 1995). Essas técnicas de pesquisa rareavam conforme eu me adaptava aos sistemas e
aumentava minha familiaridade, criando outras formas de interação e percepção com os
indivíduos e elementos materiais. Dessa maneira, os estímulos sensórios foram substanciais
para a construção de uma intimidade com os movimentos do Setor; sendo que caminhar pelo
local foi a principal forma de assimilação do espaço, seus sentidos, configurações, afluxos e
cadências, sendo os próprios percursos parte dos componentes espaciais (Jenks e Neves 2000).
Os caminhos em campo eram flexíveis e seguiram a plasticidade da sazonalidade comercial,
abrangendo dias úteis, finais de semana, feriados e outros maiores marcos sociotemporais,
como a época da Círio de Nazaré, Natal e Ano Novo; também em momentos determinados
como a Copa do Mundo de Futebol e as eleições do ano de 2018. Muitas vezes os horários
foram considerados, principalmente quando se tratava do levantamento de dados referentes ao
consumo, já que certas horas e dias da semana reuniam clientes e frequentadores mais
específicos. Quando sentia que precisava estar em contato maior e direto com as erveiras e
erveiros, escolhia os momentos que se apresentavam mais calmos e apropriados para uma
conversa ou demonstração mais detalhada e alongada; lógica que não impossibilitava minha
7

presença em períodos mais agitados, quando percepções acerca do consumo e suas


sociabilidades ficavam mais explícitas.

O produto das relações que se formaram entre mim, as interlocutoras, interlocutores e


espaço-tempo recebeu especial atenção em seu registro, análise e escrita. Uma vez que
abordagem sensorial presume considerar as sensações, emoções e experienciações; aspectos
elementares do estudo que procurei sensibilizar em campo e transpassar nas análises,
singularizando-as em seus componentes. Influo, assim, os fenômenos sensórios vivenciados na
linguagem escrita, considerando em conjunto os aspectos que Alice Ferreira (2014:388) coloca
sobre a tradução-descrição a partir da sua produção de sentido em “uma realidade que a priori
não tinha”. Minhas impressões sensoriais e a própria discussão da sensorialidade presente no
Setor das Ervas e seus efeitos no consumo são reconduzidas no texto, demonstrando o
envolvimento que tive na vivência, ritmo do campo e produção textual como sujeita
pesquisadora (Zarankin 2014; 2015).

Analiso as dinâmicas envolvidas no comércio do Setor das Ervas a partir de três


principais frentes. A primeira canaliza a amplitude dos produtos a partir dos seus aspectos
cosmológicos, terapêuticos e religiosos; observando os processos associados à sabedoria
tradicional e sua valoração memorialística-representativa na cidade de Belém. Já a segunda
volta-se para as impressões sobre o Setor, erveiras(os) e artigos; considerando suas projeções e
expressões simbólicas no contexto material, social ou narrativo. Por fim, a terceira se
responsabiliza por discutir as dinâmicas apresentadas e como estas estão vinculadas à
conjuntura citadina, agindo sobre os processos de vigência, valoração e difusão dos saberes.
Para tal, fundamentam-se leituras relativas à etnoecologia (Oliveira 2009; Toledo e Alárcón-
Cháires 2012; Costa Neto e Alves 2010; Diegues e Arruda 1999), contribuindo para análise do
percurso K-C-P6. Antropologia e arqueologia sensorial (Pink e Howes 2010; Tilley 2014;
Zarankin 2015; Pellini 2010, 2012), auxiliando nas interações entre a materialidade e a carga
sensível manifesta e manejada no Setor. Assim como textos para o suporte quanto aos
fenômenos simbólicos, sociativos e coercitivos (Bourdieu 1989; Velho 1988, 2013; Simmel
2006, Gluckman 1987). Utilizar-se dessas três abordagens possibilita a inscrição das atitudes
tomadas pelos frequentadores e comerciantes conforme interagem – a partir de jogos de escala
entre o macro e micro, ou seja: Setor das Ervas, Ver-o-Peso, Belém – e o alcance de suas

6
Sistematizado em crenças, kosmos; conjuntos de conhecimentos, corpus; e práticas produtivas, práxis (Toledo e
Alárcón-Cháires, 2012). Possibilita a compreensão holística da cadeia relacional em manejo da natureza.
8

inclinações e referências sobre os produtos de acordo com o contexto de nova urbanização


formado na cidade, sobretudo os seus aspetos políticos e econômicos.

Pensando a ordenação dos capítulos, o primeiro apresenta o locus da pesquisa: o Setor


das Ervas da Feira do Ver-o-Peso; além da metodologia empregada. Pontua-se seu contexto
histórico e busca-se demonstrar a sua relevância social a partir da relação dos seus
componentes, imaginários presentes, elementos, sistemas e pessoas. As colocações situam e
delineiam o campo em seus amplos aspectos, criando o terreno para as discussões relativas aos
processos que permeiam os conhecimentos e práticas no Setor: tradição e memória, processos
sociativos, mercantilização cultural e influências discursivas. São subsídios às ponderações
referentes aos vínculos citadinos.

O segundo capítulo abarca a relação das erveiras(os) com os saberes, técnicas e


insumos que envolvem o processo de elaboração dos produtos, trabalhando a partir de um
holismo interacional entre cultura e natureza. A partir da pesquisa etnográfica se apresenta os
produtos, a rotina mercantil do Setor, as relações das erveiras(os) com os consumidores e os
fenômenos sensórios que caracterizam o lugar, intentando perceber as circunstancias cotidianas
que influem na transmissão dos conhecimentos. Por fim, o terceiro capítulo destaca as
dinâmicas urbanistas circulantes sobre os componentes do Setor das Ervas, erveiras(os),
sociabilidade, estrutura, produtos imagética, representação e identidade, percebendo as
configurações da intersecção dos saberes tradicionais com a realidade hegemônica
contemporânea de consumo e suas matizes políticas. Reunindo e analisando tais colocações,
pauta-se uma discussão acerca dos processos de criação dos referenciais que instigam a ação
mercantil em questão (Appadurai 2008), mas também interacional, dando relevância aos atores,
os quais se influem – ainda que divergindo em suas singularidades, fato também determinante
para o processo – sejam esses as erveiras/erveiros ou os compradores e frequentadores. À vista
disso, acrescentam-se questões relativas ao aspecto global na vida moderna (Santos 2008), a
influência urbanística (Leão et al 2017) e a leitura dos produtos culturais em mercantilização
(Veloso 2006).

O presente estudo esteia-se em indícios de uma realidade polivalente convergindo à


ação mercantil dos produtos e sua característica tradicional sobre os saberes e práticas
medicinais populares no contexto belenense e urbano. Tais observações assimilam a narrativa
e imagética que envolvem as subjetividades dos consumidores, considerando seus variados
tipos e contextos: varejistas; rotineiros; eventuais; turistas; com ou sem preferência por
9

determinada erveira e erveiro; entre outros. Perspectivar esses fatores à ação mercantil,
referentes não apenas compra e venda, mas aspectos subjetivos e sociotemporais, capta frações
relevantes que levam ao entendimento das dinâmicas cursadas pelas múltiplas presenças dos
saberes tradicionais com o ambiente citadino no contexto amazônico cosmológico e
globalizado.
10

1. Capítulo – Saberes tradicionais, práticas e lugares

"ó garrafada das ervas maceradas do breu das brenhas


se adonai de mim e do meu peito lacerado
ó senhora dos remédios
respingai grossas
gotas de vossos venenos
ó garrafada das maceradas ervas do breu das brenhas
adonai-vos do peito lacerado e do lenho oco que ocupo"

Waly Salomão

Saberes e conhecimentos tradicionais são conceituações acadêmicas que designam a


reunião de princípios, noções e práticas perpassadas oralmente de maneira geracional. Com
forte cunho histórico e identitário baseiam-se em ligações entre o mundo natural – inclusive
seus aspectos sobrenaturais – e aspectos da organização social (Diegues et al. 2000) presentes
em processos e elementos da vida dos seus respectivos grupos detentores. Em geral, são
associados às comunidades tradicionais, envolvendo também seus territórios; pontos que por
sua vez acabam sendo correlatados à um contexto interiorano, rural e menos tecnológico 7. O
caráter territorial acaba sendo designado por conta do intenso vínculo dos grupos, que com
ocupação, desenvolveram traquejos profundos com os recursos naturais da localidade (Pereira
e Diegues 2010). Contudo, a existência e relação com um território não é determinante para a
produção de saberes, costumes e práticas tradicionais (Moreira 2007), mas sua legitimação por
parte daquelas pessoas que se associam e a constância temporal, a qual depende das
transferências geracionais e laços culturais.

Intentando compreender as dinâmicas socioculturais que permeiam a vigência de


saberes tradicionais para curas naturais no em contexto mercantil e urbano, esse estudo se atém
a cidade de Belém, capital do Pará. Tais produtos discutidos consistem em banhos-de-cheiro,
garrafadas, defumações, unguentos, patuás, incensos, óleos, tinturas e resinas; comuns nas
práticas populares de cura para enfermidades, problemas espirituais, emocionais e sociais na
região: a garganta está inflamada? Óleo de copaíba (Copaifera langsdorffii). Problemas
amorosos? Talvez uma garrafada de Comigo Ninguém Pode (Dieffenbachia seguinte) ou então
de Agarradinho (Antigonon leptopus). Busca-se por prosperidade nos negócios? Banho-de-

7
“O fato de o modo de produção não se enquadrar completamente aos padrões da sociedade urbano-industrial e
ser caracterizado em parte como de subsistência remete ao sistema de manejo de recursos naturais que estas
populações utilizam.” (Pereira e Diegues 2010).
11

cheiro do Uirapuru (Cyphorhinus arada). Mau-olhado? Defumação de Arruda (Ruta


graveolens) ou ainda Breu Branco (Protium Heptaphyllum), a exemplo da figura 1. Frutos de
tradições que envolvem diferentes grupos, principalmente aqueles tradicionais da região – tais
quais indígenas, quilombolas e ribeirinhos – estão presentes em múltiplas localidades da
amazônia, assim como em todo o Pará, no qual o local soberano de vendas dos tipos é o Setor
das Ervas, importante seção da maior feira da capital do Estado, o Complexo do Ver-o-Peso.

Figura 1 Destaque fotográfico dos produtos. Autoria: Laura Vieira, ano 2019

Apesar da definição de “saberes tradicionais” estar sombreada pela localidade na qual


se desenvolveria – principalmente ambientes menos urbanos ou rurais, por seu vínculo com
grupos tradicionais e matriz biodiversa – tais saberes se firmam socialmente em relevância e
vigência apoiados em elementos temporais e memorialísticos, onde transmissão geracional e
oralidade é marcante. Dada a circunstância, pretende-se discutir as configurações da realidade
urbana, debatendo se localidade e memória são os únicos fatores que envolvem a presença dos
saberes tradicionais
12

No Setor das Ervas, os produtos comercializados são materializações dos saberes das
erveiras(os) que os produzem e/ou comercializam, no qual o domínio sobre a feitura8, saber-se
dos manejos, cuidados e formas de uso são seus componentes intrínsecos, canalizando uma
cultura de uso de ervas ancestral da região. Utilizando dos insumos naturais provenientes na
sua grande maioria da biota amazônica, os produtos carregam saberes, crenças e noções
formadas coletivamente no tempo-espaço, constituído de vínculos emocionais e
memorialísticos, fundamentais para a formação de suas configurações (Little 2002).
Constituindo de uma seção que predomina o gênero feminino, as(os) produtoras(es)
erveiras(os)9 do Ver-o-Peso não compreendem uma comunidade tradicional, mesmo em nível
político, uma vez que se percebem como sujeitas individuais urbanas10. Contudo, estando em
sociação e sociabilidade – nos termos de George Simmel (2006) –, todas estão envolvidas em
redes de transmissão, preservação e prática dos saberes, com laços ativos de memória,
afetividade e pertença.

Percebeu-se como esses saberes dialogam com dois momentos temporais: o ancestral e
o atual, onde os conteúdos anteriores interagem com as renovações, formas e informações
cotidianas. São dessa forma “produtos históricos” (Cunha 1999), por tanto transformativos,
onde a difusão é carga relevante, assim como o ambiente onde acontecem. O comércio dos
produtos tradicionais das erveiras e erveiros do Ver-o-Peso constitui-se uma forma de assegurar
a propagação de cosmologias, práticas, conhecimentos, sistemas de organização e existência
provenientes de panoramas e grupos locais que possuem relações outras que as formas
hegemônicas e padronizadas de realidade.

No entanto, questiona-se: Como acontece a difusão de práticas e conhecimentos


tradicionais de cura em meio ao ritmo urbano que se transforma rapidamente, estando sempre
em diálogo com instituições competitivas, conflituosas, dominativas, exógenas? O saber
tradicional, sua aplicabilidade, vigência e potência podem sofrem influencias desagregadoras?
Novos sentidos e usos podem ser somados? Quem são aqueles envolvidos por essas dinâmicas

8
Ou o conhecimento para tal, visto que nem sempre todas as erveiras(os) produzem os artigos que comercializam,
podendo ser outras(os) familiares também erveiras(os) e feirantes, assim como produtos revendidos, produzidos
pelos mateiros, fornecedores das ilhas da Belém Insular, como será discutido.
9
Categoria êmica para aqueles que estão comercializando os produtos no Setor das Ervas. São também, excluindo
os ocasionais ajudantes, os produtores, podendo muitos comprarem insumos e artigos de outros produtores, esses
mateiros.
10
Segundo o Decreto nº 6.040/2007, artigo 3: Povos e Comunidades Tradicionais: grupos culturalmente
diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e
usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e
econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição (Brasil 2007)
13

e como podem reagir? Pesquisar o Setor das Ervas é um meio de lidar com o estudo de saberes
tradicionais atravessados por novas temporalidades, sentidos e agentes, pois além de ser um
locus expressivo para o tema, com particularidades importantes, acontece numa capital que
reúne uma das maiores feiras públicas a céu aberto do mundo, envolvida por historiografia
política influente, assim como relevância socioeconômica definitiva e espacialidade estratégica,
o Complexo do Ver-o-Peso.

Por si só, o Complexo constitui uma interseção entre a realidade de rio e ribeirinha com
o ambiente urbano e de terra firme. Mesmo com as diversas transformações nos fluxos urbanos
de Belém ao longa da história, continua o principal ponto de ligação com o comércio fluvial,
interiorano e extrativista. Sendo comerciantes e trabalhadoras da feira – o que já define noções,
práticas, modos, elos geracionais, memórias e biografias similares a muitos dos trabalhadores
de diferentes setores – as erveiras e erveiros reúnem e sustentam em ambiente urbano tradições
comuns à outras localidades do Estado. Entender a importância dessas e da feira para o contexto
amazônico e seus aspectos socioculturais permitirá que se perceba diferentes questões ativas
que afluem sobre a validade do saber tradicional, tais como gentrificação, mercantilização,
fetichização, colonização.

Assim, o primeiro capítulo começa com uma regressão histórica e urbanística,


necessária para compreensão alguns dos fundamentos com os quais as percepções hoje sobre o
Setor das Ervas, do Ver-o-Peso e de Belém foram construídas, iniciando discussão sobre como
conhecimentos, existências e práticas tradicionais interagem com as administrações políticas
belenenses. Após, a explanação relativa às diferentes vivências de sujeitos, falas e
multiplicidades presentes no Complexo, imprimem-se as escolhas metodológicas da pesquisa,
elucidando as investidas etnográficas e sua importância para a compreensão da problemática.
A terceira subdivisão finda com a reunião das complexidades discutidas nessas apreensões
divergentes, indicando os meios simbólicos envoltos nelas e como influem na ação mercantil,
assim como os significados dos saberes/produtos na sua realidade social atual.
14

1.1 O Ver-o-Peso na história: ponto social, econômico e urbano estratégico

Localizado às margens da baía de Guajará em Belém, capital do Estado do Pará (Figura


2), o Ver-o-Peso se formou com o aterramento da Praia e do Igarapé do Pirí11 em meados do
século 19. A região que já se constituía como área de porto naval, relevante na economia e
política da cidade desde o século 17. Sempre em associação vital com rios, estabelecia-se como
área de intercâmbio e fator comercial desde os primórdios da possessão portuguesa, que
começou a partir do assentamento e construção do Forte do Presépio após aliança conflituosa
com a população indígena tupinambá estabelecida na localidade12. Planejado para o controle da
entrada e saída do Rio Amazonas, facilitava a defesa do espaço contra indígenas locais,
holandeses e franceses, permitindo ainda o acesso em busca das drogas do sertão e atividades
extrativistas, as quais começavam desde a Capitania do Maranhão.

Figura 2 Vista aérea contemporânea do Ver-o-Peso, desde a Ladeira do Castelo até a Feira Livre. FONTE: IPHAN. Disponíel
em: <<http://portal.iphan.gov.br/pagina/detalhes/828>>

11
Igarapé é uma denominação da região amazônicas dos cursos d’agua navegáveis que se vinculam a algum rio
ou canal maior. São associados a zonas de mata e ilhas, seguindo profundidade e volume da água de acordo com
os horários e ciclos lunares (as vazantes e lançantes, em categoria êmica). O Igarapé do Piri cortava de onde hoje
é a Avenida Almirante Tamandaré até a Baia do Guajará, onde localizava-se sua foz e a Casa de Haver o Peso,
local que se estabeleceria o então Mercado do Ver-o-Peso, a Feira da Praia e o resto do que hoje se tem como o
Complexo. Esse limitava a cidade, com o seu aterramento possibilitou uma das primeiras expansões territoriais de
Belém (Araújo Júnior 2014)
12
A aliança foi mediada por grupos tupinambás do atual Estado do Maranhão, então Capitania do Maranhão, a
qual se expande e torna-se Capitania do Grão-Pará. A aliança em molde cristão-colonizador explorou e escravizou
a mão de obra indígena gerando combates e guerrilhas que culminaram no Levante dos Tupinambás no ano de
1618, com triunfo português.
15

Os rios, não sendo manejados como fronteiras, serviam terreno para o acesso ao interior
amazônico. O Porto Naval de Belém do Pará ficava estrategicamente ao sul do estuário
amazônico, “protegido do oceano” (Almeida 2008 p. 53); garantia de maior segurança e
expansão portuguesa. Assim, rios e igarapés tornam-se meios primários para o surgimento da
cidade, visto que na fase ribeirinha (Ribeiro 2004) as mercadorias chegando e partiam por via
fluvial – seja com demais localidades e regiões amazônicas ou mesmo estrangeiras. A área, e
assim a cidade, constituiu-se um ponto de destaque da Província do Grão-Pará para a Coroa
Real Portuguesa em termos de soberania e meio econômico.

Em 1627, a circunstância se fortalece com o governo luso que instaurou a Casa de


Haver-o-Peso, entreposto de pesagem, distribuição e arrecadação de fiscal dos produtos ali
comercializados (Campelo 2010); ancestral distante do, agora, Complexo do Ver-o-Peso. Sendo
o embrião da região histórica da cidade13, aquele local apenas volta-se em definitivo para as
atividades comerciais no século 19, com o aterramento do Igarapé do Piri e construção da Doca
do Ver-o-Peso, acompanhada pelo surgimento do Mercado do Ver-o-Peso (ou também,
Mercado de Ferro), da feira livre aos arredores dele e outros elementos ainda hoje presentes ao
Complexos, como o Mercado de Carne (ou, Mercado Francisco Bolonha); Praça do Relógio,
Praça do Pescador; Solar da Beira.

O ciclo da borracha14 e demais potências comerciais foram circunstâncias importantes


para a edificação do Ver-o-Peso naquele século, associando-se com o desenvolvimento da
capital. Construções e melhorias na infraestrutura eram previstas pelo governo, planejadas de
acordo com as propostas urbanas correntes do período que objetivavam características de
modernidade, aos moldes das cidades europeias da belle époque. Instigado por Antônio Lemos,
maranhense intendente de Belém entre os anos 1897 e 1913, pretendia-se equiparar Belém
àquelas metrópoles europeias e estadunidenses que compravam e usavam do látex extraído da
região amazônica. Tendo em consideração o contexto periférico do Brasil ao sistema capitalista,
com sua posição de exportador de matérias-primas (Prado e Capelato 1977), o ciclo gomífero,
ao aumentar o potencial econômico e político da cidade, foi importante para o surgimento do
desejo de equiparar cultural e urbanamente – talvez sua principal cidade comercial –, Belém15.

13
Compreendida atualmente pelos bairros da Cidade Velha e Campina. Naquele momento eram chamados de
Cidade e Campina e surgem a partir das primeiras ruas que descem do Forte do Presépio, paralelas ao rio (Moraes
2017; Almeida 2008)
14
Predominante na década de 1880 até início do século 20.
15
Belém e um pouco mais tarde Manaus, são as duas cidades apontadas como os maiores centros de
comercialização do látex; ambas passando por melhorias em suas infraestruturas e sendo consideradas as
metrópoles mais desenvolvidas do país no período, quando a venda da borracha superava com facilidade o café da
16

O projeto planificado por Antônio Lemos buscava melhorias na salubridade, estética e


hábitos urbanos, seguindo preceitos higienistas de cunho europeu em voga no Brasil, os quais
legitimavam teorias sanitárias, médicas, de civilidade e controle populacional:
Ao longo do século XIX, as teorias médicas neo-hipocráticas que
localizavam a doença no meio natural ou construído, influenciaram
normas de comportamento e a organização das cidades. Os Tratados
de Higiene Pública, que orientaram a legislação e as práticas
administrativas, propunham medicalização do espaço e da sociedade.
As topografias médicas, levantamentos das características físicas,
sociais, econômicas e culturais dos lugares, constataram que as
concentrações urbanas eram os ambientes mais doentios, do conflito e
da desordem. Urbanistas progressistas e culturalistas, influenciados
pelo discurso médico e social elaboram projetos de cidades utópicas,
cidades salubres e «justas», que se tornaram referência para os
reformadores do século XIX. Outra constatação é que as epidemias não
respeitavam fronteiras políticas nem classe social, o que gerou a
organização de Conferências Internacionais de Higiene Pública,
visando salvaguardar os indivíduos contra as doenças e garantir a
liberdade do comércio internacional. (Costa 2013:51. Grifo meu)

Pensando em distinguir a cidade de outros municípios brasileiros e dialogar com a


realidade estrangeira, a gestão inicia uma reestruturação urbanística que visa as edificações
públicas, lugares alimentícios, pontos de tráfego, iluminação, áreas verdes, redes d’água e
práticas dos citadinos. A proposta para o florescimento de Belém previa a inserção de novos
hábitos, mais adequados e salubres à população, baseando-se nos conceitos de civilidade e
modernidade propagados pela intelectualidade europeia. A partir da ação pelo que se via como
qualificação ao padrão estético/urbano difundido, ficaria marcado o lugar e a potencialidade
tecnológica e econômica do município. Essa reestruturação idealizada pelo intendente se
voltava para as áreas centrais do município, e mesmo agindo sobre demais citadinos presentes
na localidade, priorizava em destaque a elite populacional que vivia na região histórica (Sarges
2000). Desde o tempo colonial, as elites locais distinguiam-se dos demais moradores; detendo
poder político, eram considerados cidadãos, donos de escravos e com portes de armas, porém,
conviviam na urbe com múltiplas pessoas: “pobres de origem portuguesa”, estrangeiros,
“mestiços”, indígenas, negros e religiosos (Chambouleyron 2008:18), alguns desses os
principais grupos que pretendiam-se enquadrar a partir do projeto de reestruturação urbana e
sociocultural, como será discutido.

região sudeste, segundo maior commoditie brasileiro. Apesar do ciclo da borracha ter sido fundamental para tais
benfeitorias, aconteceram ainda muitos empréstimos ao capital estrangeiro (Sarges 1998).
17

Lemos fazia visitações, “passeios cotidiano” (Sarges 1998:117) a diversos pontos na


redondeza do atual Ver-o-Peso e região histórica. Perambular e observar “tornaram-se práticas
administrativas” (Sarges 1998:117) sendo registradas em diários, que por sua vez
transformavam-se em ordens de gestão. Como em outras áreas visitadas, procurava entender e
descrever o Mercado de Ferro, o Mercado de Carnes e a feira livre que se formava entre esses,
de modo agir segundo a morfologia espacial e cultural presente. Desde o início de seu mandado,
em 1897, pontuou a necessidade de melhorias estruturais que são ainda hoje debatidas pela
sociedade organizada, poder municipal e instituições acadêmicas sobre o Complexo; como
ventilação, organização, disposição, controle mercantil e técnicas de manuseio dos produtos
(Moraes 2017). Rebaixando a graus de incivilidade as práticas culturais de criação de animais
soltos, modos de consumo dos produtos e as sociabilidades próprias entre feirantes,
desqualificava elementos da realidade vigente, buscando parcerias com a iniciativa privada para
a reformulação dos espaços, o que acreditava refletir no comportamento dos citadinos e adequá-
los as condutas apropriadas das sociedades desenvolvidas.

O Mercado de Carne, a exemplo, teve sua reforma concedida ao Engenheiro Francisco


Bolonha com a Resolução nº 151, que se utilizaria de materiais europeus importados e
padronizaria os aparatos de venda. Tal situação engatilhou discussões acerca dos privilégios
partidários envolvidos, intensificando conflitos políticos existentes (Moraes 2017). Mudanças
nessa linha também aconteceram ao Mercado de Ferro e áreas do entorno (figura 3 e 4), com
melhorias no calçamento e nas vias de acesso. Criou-se a Praça do Pescador como ponto de
convívio, setorizando os armazéns das docas.

Figura 3 Cartão-Postal da vista diagonal da Pedra do Peixe, em 1914. Fonte: Acervo Nostalgia Belém <<shorturl.at/dent4>>
18

Figura 4 Retrato a partir da Boulevard Castilhos França, pegando Mercado de Ferro e Pedra do Peixe. Fonte: Acervo
Nostalgia Belém. <<shorturl.at/pFLM2>>

Apesar das reformas e legislações, a feira livre formada com o comércio de ambulantes
de variedades começou a crescer e atingir novos espaços, espalhando-se pelas ruas, até que na
década de 1940 se oficializou Feira da Praia, aberta e permeando as edificações. Durante esse
percurso temporal, mais atividades e produtos foram agregando-se para além da venda de
produtos extrativistas e de cultivo, como os artigos manufaturados e a venda das ervas e banhos
de cheiro (Penteado 1968:247), a qual já acontecia por meio de ambulantes nas ruas da cidade.
Essa feira, ao contrário das estruturas dos Mercados, se mostrou menos controlável e
padronizada, com fluxos mais diversos e intensos. Essa classe de feirantes, somado aos
ambulantes, foi estigmatizada durante o governo de Lemos, que via neles a contribuição para
mantes a cidade “feia e suja, pois onde estacionavam para exercer suas atividades, deixavam o
local imundo”, contribuindo para a desordem e práticas ociosas, eram “desocupados” (Sarges
1998:166-167).
19

No entanto, mesmo com regulamentos, continuou-se a manutenção das práticas


culturais e tradicionais advindas das sociabilidades e vínculos dos grupos extrativistas,
interioranos e mercadores nativos; aqueles que pouco encaixavam-se no ideal civilizatório
programado: “Esse projeto civilizador não foi capaz, contudo, de modificar certas tradições
culturais, hábitos e costumes de uma população que vivia em outro contexto, muito diferente
do europeu” (Sarges 1998:134)16. Essa camada populacional era a mais precarizada e pobre,
notadamente nativos da região amazônica, “bárbaros” que ameaçariam o projeto civilizatório
e, apesar do direcionamento do local histórico para as elites, estavam lá presentes por razão
comercial. Dessa maneira, com a expressão popular espontânea, foi que a Feira da Praia, mais
que os Mercados, fortaleceu o vínculo entre “lugar e comércio” (Moraes 2017:64) tendo apenas
na década de 1960 sua primeira interferência oficial feita pelo poder público, que agiu de forma
direta e ordenadora na feira livre, instituindo as primeiras barracas (Lima 2008).

A personalidade Antônio Lemos e seu projeto de restruturação formam a “história da


cidade”, seja no “traçado urbano ou no poder constituído” (Sarges 1998:135), no qual os
padrões para a remodelagem do município se efetivaram de maneira duradoura nos demais
projetos urbanísticos, servindo de referencial e propósito:

Nos dias atuais, recuperar a imagem de Antônio Lemos parece ser um


ato anacrônico. Apesar disto, este recurso é muito utilizado para
construir um modelo de administrador de Belém. Se perguntarmos, a
muitos paraenses, qual foi o melhor administrador que a cidade já teve,
certamente eles responderão que foi o “Velho” Lemos. Essa constante
reafirmação da figura pública de Lemos nos remete à construção de uma
memória que legítima as ações institucionais do intendente, e que não
somente fixa, mas também se funde com a própria história da cidade
(Sarges 1998:131-132, grifos meus).

Reformas buscando padronização e reestruturação aconteceram de forma intermitente


pelo século 20, até a gestão de Almir Gabriel em 1985 (figuras 5 e 6), que abriu alas para as
revitalizações mais atuais discutidas no capítulo três, visto que essas similarmente influenciam
e relações nas práticas mercadológicas atuais, agindo, novamente, sobre costumes, saberes,
sociabilidades e grupos locais.

16
Práticas cotidianas e tradicionais da região foram visadas, essas de todos os tipos: como a queima de lenha para
afastar mosquitos pela fumaça, em desacordo com métodos civilizados; o consumo de “exagerado” do açaí
(Euterpe oleracea) pelos trabalhadores ou o consumo de bebidas alcoólicas. Maria de Nazaré Sarges (1998, p.
148) demonstra que Antônio Lemos também partilhava de muitas dessas práticas, sendo natural da região
amazônica; porém, ao desdenhar dos hábitos, definia seu preconceito de classe, procurando controlar e distinguir-
se das camadas mais pobres, as quais seriam também nativas e menos europeias.
20

Figura 5 Figura – Ver-o-Peso na década de 1980. Autoria: Mark Edwards, HARD RAIN PICTURE LIBRARY

Figura 6 área varejista do Ver-o-Peso em 1985. Fonte: Acervo Nostalgia Belém <<shorturl.at/biyRX>>
21

Hoje, o Ver-o-Peso e o comércio nas ruas e travessas próximas, sejam em lojas ou


barracas, está associado ao circuito inferior da economia (Santos 2008)17, unindo-se com o
comércio informal notório por toda a cidade, mas principalmente em praças, feiras e mercados
(Rodrigues et al 2017). Contudo, o período da borracha brasileira e da belle époque europeia
inseriu a estética e a representação do muito que se têm e narra por Ver-o-Peso. Apesar de
continuarem ocorrendo outras – pequenas ou grandes – reformas, a primeira nos séculos 19, 20,
com implantação de noções higienistas e civilizatórias, conferiu ao local incumbência político-
simbólica, edificando, literalmente, o que seria o Ver-o-Peso e o que deveria, em conjunto com
outros pontos, representar para a formação da cidade: vital elemento da capital do Pará, visível
e adequado para o mundo civilizado (Sarges 1998).

Com a decadência do mercado de látex e uma intensificação divergente dos tipos


comerciais, sociabilidades e práticas populares, as elites da região histórica que chamava Belém
de “Paris Tropical”, “Francesinha do Norte”, materializando seu imaginário europeu de belle
époque por meio urbano18 transferiram-se para dentro da cidade (Trindade Júnior 2018). Essa
situação abriu portas para que o comércio da região se voltasse às necessidades das classes
populares, gradualmente retraindo a imagem elitista do local e de forma conjunta propiciando
ideias sobre decadência, insegurança e esquecimento desse, que se perpetuaram e estão
presentes mesmo hoje. Essas categorias, evidentemente, eram antagônicas às propostas de
desenvolvimento que assemelharia Belém ao estrangeiro – realidade que já na época de Lemos
era apontada como a formar de atrair de visitantes estrangeiros (Sarges 1998:173), intenção
mantida pelas gestões contemporâneas, onde suas ações de revitalização pautadas sobre
discursos de decadência, intentam melhorias que induziriam o turismo e o lazer como práticas
centrais desses lugares, sendo as relações mercadológicas o meio para essas formas de interação
dos (novos, outros e selecionados) indivíduos.

A partir das realidades sociais e temporais correspondentes do passado e presente, todo


panorama contribuiu para a confluência de um discurso distanciado e sobre o local e seus
sujeitos, ao mesmo tempo em que existem (e se percebe, mas claro, de maneira marginalizada)

17
Sobre circuitos econômicos, Milton Santos (2008) observa a qualidade do fluxo, que em seu caráter de
movimento e circulação contribuem para o estudo das situações de distribuição e consumo. Percebendo dois
maiores circuitos, apresenta um superior, associado a grandes estruturas, tais quais marcas, empreendimentos e
corporações; e um inferior, associado a menores comerciantes e relações mais pessoais com o contexto de
produção, comercialização e consumo. A estrutura urbana admite essas configurações e se relaciona.
18
Mas também pela moda e consumo de produtos importados comprados em lojas como “Paris N’América”,
“Notre Dame de Paris”, “Marselhesa”, “Petit Paris”; tendo comportamentos, hábitos e formas de lazer como a
presença em cafés, conferências, bailes, óperas e peças teatrais (Sarges 1998:169; 136; 171)
22

discursos e expressões surgidas a partir das existências dos sujeitos, formados por esses
mesmos. Realidades que envolvem práticas no mínimo “inquietantes” para um projeto
civilizatório, desde de o início com cunho colonizador (ainda que modernista), que se procurou
fazer dominante, desarticulador e necropolítico.

Com o reconhecimento como Conjunto Arquitetônico e Paisagístico pelo Instituto


Histórico e Artístico Nacional/IPHAN em 197719, por conta da sua expressão arquitetônica e
histórica (figura 7) os nomes dos mercados, praças e demais elementos se firmaram. A Feira da
Praia, onde abriga o Setor das Ervas, virou a Feira do Ver-o-Peso, mais usualmente Ver-o-Peso,
ou simplesmente Veropa20, nomenclatura afetiva que se pode referir também a toda e qualquer
parte do Complexo do Ver-o-Peso. Hoje, esse assemelha-se, com suas especificações de
contexto, a situação de muitos outros Mercados Públicos Municipais, pontos invariavelmente
de grande ação histórica, articuladores de questões sociopolíticas e econômicas, desenvolvendo
redes e estruturações urbanísticas. Igualmente, continua vital para o abastecimento e giro
econômico da cidade21, com um atacado que alimenta exportações, feiras outras e
supermercados privados; dotado de uma área varejeira que atrai múltiplos públicos, promotora
e articuladora de imaginários, narrativas, formações e ações do contexto vigente.

19
Sob o Número de Processo: 812-T-1969, foi tombado com o nome: Conjunto Arquitetônico e Paisagístico “Ver-
o-Peso” e áreas adjacentes, Praça Pedro II e Boulevard Castilhos de França, Mercado de Carne e Mercado de
Peixe. Inscrições nº 69, de 09/11/1977, no Livro do Tombo Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico; inscrição nº
460, de 09/11/1977 no Livro do Tombo Histórico e, por fim, inscrição nº 525, de 09/11/1977, no Livro do Tombo
Belas Artes.
20
Veropa é, em categoria êmica, o apelido dado pelos trabalhadores, frequentadores e residentes da cidade ao Ver-
o-Peso. O nome Ver-o-Peso (ou mesmo Veropa) inspira muitos outros estabelecimentos ou centros pela cidade;
se tem por exemplo o centro de lazer Ver-o-Rio, o bar Veropinha, as praças de alimentação na Universidade
Federal do Pará: veropesinho, a loja de redes Ver-as-Redes, etc.
21
A exemplo: dados da Secretaria de Economia – SECON no ano de 2019 apontam para 100 toneladas diárias de
pescado desembarcado na Pedra do Peixe, o que corresponde a 70% de todo o pescado comercializado na capital.
23

Figura 7 Vista lateral da Pedra do Peixe, abrangendo a frontal dos casarões, característica primária do tombamento do
Conjunto e a área onde atravessadores atracam para a venda dos produtos – Autoria: Jéssica Mirely Farias, 2019

As considerações historiográficas demonstram um Ver-o-Peso que contribui em para a


formação da cidade de Belém e que congrega, de maneira conflituosa, intensos elementos
tradicionais relacionados às sociobiodiversidades amazônicas: “(...) feiras e mercados permite
identificar a produção e manutenção das práticas e saberes ribeirinhos em ambiente urbano”
(Leitão 2010:25). Não obstante, um local de disputas de modos de expressão e vivência, no
qual o poder municipal age por meio urbanístico, buscando manejar grupos populares e
controlar o ambiente mercantil. É um lugar que confronta classes sociais, projetos (Velho 2013)
e realidades; falar sobre outros e/ou falar de si. Edificado pelo governo lemista que selecionava
perspectivas sobre a cidade e seus elementos, negando as existências ribeirinhas e dos “sujeitos
incultos que andavam seminus”, surge de um contexto que artificializa e mimetiza realidades
exógenas, desprezando componentes intrínsecos domínios amazônicos (Sarges 1998:123-124).

Entender como o Ver-o-Peso se faz para a realidade citadina, sua dualidade do que se
pretende e do que se é e como esses dois polos estão dialogando e reagindo entre si torna-se
vital para perceber de maneira crítica um comércio que se apoia em ambos os caminhos.
Abordá-lo em seus aspectos políticos e estruturais para falar da difusão saberes naturais
tradicionais por meio da venda de produtos (uma realidade mercantil, como veremos, que se
24

caracteriza pela prática comercial vigorosamente pessoalizada/subjetiva – por tanto também


fenomenológica e afetiva) necessita da consideração da influência histórica ainda corrente, que
nesse momento, além de ditar ordenações colonizadoras e desarticulações socioculturais, soma-
se com contemporâneas possibilidades capitalistas de mercado, que, tranquilamente, vão ao
encontro e adesão daqueles tipos antigos de controle e coerção que já apregoados. Fala-se sobre
o turismo, a mídia, a gentrificação e a mercantilização cultural; conjunto de questões que se
ligam e combinam às intenções que voltadas aos processos homogeneizantes.

1.2 Dizer sobre e experienciar: metodologia da pesquisa.

O levantamento histórico bibliográfico sobre a região e o Complexo, destacando sua


importância estratégica, reestruturação e concepção política, delineia algumas categorias
centrais para entender a ação mercantil presente; observa-se como o lugar concretiza intenções
e poderio, enquanto os sujeitos, em sua multiplicidade, dinamizam a realidade social com suas
múltiplas relações perante as premissas institucionais. Lugar e sujeitos são duas bases
importantes para compreender, além da ação mercantil, os envolvimentos de identificação e
valorização da ação comercial e daquilo que se vende particulares daquele contexto; além de
relevantes para os próprios processos referentes a vigência dos saberes e práticas tradicionais
medicinais.

A maioria das influências e leituras institucionais sobre o Complexo assentam sua


singularidade e significado ao emparelhá-lo com narrativas de soberania e representação
paramentada que se descontextualizam quando contrastadas com as dimensões e sentido
concedidos por seus frequentadores e familiarizados. Esses sujeitos, e suas narrativas, acabam
marginalizados em detrimento de construtos superficiais apoiados em padrões exógenos e de
classe. Desde o governo de Lemos foi visto como as ações por meio do poder público tiveram
direcionamentos coercitivos, desarticuladores e incoerentes à realidade local e coeva, onde
mercadejar também deveria seguir modelos. A mídia atual, impressa, digital e, principalmente,
publicitária, apoia-se aqui e ali em imagéticas exotizadas e tons superficiais da rotina do
Complexo. Mesmo nas Universidades são firmam estudos, pesquisas, levantamentos e projetos
que vendem a “circunstância veropesiana” apartada dos seus sujeitos constituintes em
detrimento preocupações científicas. São formas de falar sobre que estão, sim, ligadas a
realidade social no Ver-o-Peso, mas equivocadas ou descoladas; pretendendo moldes e fins
25

compulsórios. O Complexo como lugar, o que aqui quer dizer um ambiente atravessado por
sentidos e reconhecimentos (Shamai; Ilatov 2005), é também concorrência de existências.

Atentar-se às perspectivas dos múltiplos sujeitos que se relacionam com o Ver-o-Peso


é tanto necessária para a compreensão das influências sobre os saberes e práticas tradicionais
de cura, como os arranjos surgidos a partir dos acontecimentos mercantis, uma vez que como
agentes, variados sujeitos22 quando na feira a percebem por diferentes prismas, determinando
suas formas de expressão e leitura, interferindo diretamente no significado e valoração dos
saberes tradicionais para os indivíduos citadino, uma vez que contrasta com influências
contemporâneas sobre elementos culturais como o exotismo e fetichização.

Que Ver-o-Peso existe? Ou, quais existem? Quem são seus sujeitos, de onde e para onde
falam? Se visto por um caminho mais pragmático, é chamado aqui por Ver-o-Peso uma
formação próxima ao que se busca representar na área de sobreposição da figura 8, pois sendo
produto de diretrizes governamentais cabe na consideração do regime macrossocial delineado
a partir da historiografia23. É com as experiências, etnografia e partilhas em campo-locus, que
a capacidade microssocial das relações entre indivíduos, saberes e local são percebidas ativas
nos processos de significação e valorização do Complexo; polarizando com as estruturas
oficiais.

22
Erveiras(os) feirantes, e consumidores variados: fregueses, clientes, turistas, passantes.
23
Levando em conta que as estruturas e seus graus de influência e permeabilidade acontecem entre diferentes
instituições, dependendo dos conjuntos de sujeitos
26

Figura 8 Sobreposições Complexo Ver-o-Peso. Fonte:Cardoso et al (2016).

Max Gluckman, enfatizando a importância do trabalho de campo, em Análise de uma


Situação Social na Zuzulândia Moderna (1987) utiliza-se dessas posturas para perceber as
relações entre zulus e europeus colonizadores em transposição para o ambiente moderno. Seu
estudo de caso detalhado e trouble situations permite observar as coerções e alianças móveis
entre sistemas diferentes (daqueles que dominam ou não), geradoras de um equilíbrio
relativamente consistente em ambiente de dominação e colonização; panorama conveniente
para examinarmos como as(os) erveiras(os) se estabelecem mais ou menos adequadas, e
certamente dialógicas, devido a situação vigente de modos comerciais e discursos sobre o Ver-
o-Peso e cultura tradicional.

A partir de um equilíbrio social entre instituições – sistemas (Gluckman 1987) –


detentores de práticas diferentes, uma terceira via é percebida e considerada ao conjunto; a do
encontro e troca. Assim, esse tipo de equilíbrio “de intercâmbio” constitui-se em uma dinâmica
social que se alterna em três aspectos: separação, conflito e cooperação (Guizardi 2012);
envolvendo lutas, ganhos, perdas e permeabilidade. Percebe-se que o equilíbrio social entre
erveiras(os), consumidores, poder público e mídia é poroso, permeável à influências que sofrem
fluxos, refluxos e transformações. A coerção, mesmo que dominante, não é fixa, se ajustando
as modelagens e incitações por parte dos outros sistemas (indivíduos) que estariam dominadas
(Gluckman 1987; Velho 2013).
27

Presumivelmente, as relações são conflituosas entre os indivíduos e instituições (dois


diferentes sistemas), isso devido aos embates entre coerção social e a ação individual. Essas são
avaliadas a partir do uso aproximado da metodologia de casos estendidos (Gluckman 2006) –
pautada na analisa das maneiras como os indivíduos e sistemas se situam em seus diferentes
momentos de interação, usando da extensão temporal para observar a transformação social e
inferências macrossociais, como contexto econômico, projetos políticos e discursos coloniais
(Guizardi 2012). Essa é a práxis que tive na pesquisa para entender os processos ativos das
relações entre sujeitos, e seus conjuntos, com os sistemas/instituições (Gluckman 2006).

Contudo, reações às interações não são suficientes para entender a heterogeneidade dos
sujeitos em ambiente citadino. Gilberto Velho (1988), ao atentar-se as sociedades complexas,
demonstra como a multiplicidade e diversidade de sujeitos – aqui destacando suas culturas e
sistemas cognitivos – estão em coexistência e ligadas a diferentes formações, como etnia;
gênero; ocupações diárias. Gerando e abarcando muitos modos de vida, o complexo ambiente
urbano envolve-se com o conflito, todavia, esse também depende das concepções subjetivas
dos sujeitos-indivíduos e suas ligações sociais. Dessa forma, saberes tradicionais em contexto
citadinos, além de relativos aos seus prismas de origem, dependem da variedade cognitiva dos
sujeitos relacionados e o jogo entre sistemas.

O Ver-o-Peso é também um local de comércio de feirantes ambulantes não registrados


e feirantes permissionários, carregadores, fazedores de “bico”, autônomos, lojistas, pescadores,
moradores em situação de rua, refugiados, familiares, amigos, camaradas, rivais, amantes,
lideranças, consumidores... Articula existências, recebendo eventos, comemorações, ações
artísticas, manifestações políticas. Lá muitos criam seus filhos, acontecem namoros e
separações, ressacas alcoólicas são curadas, piadas são contadas, histórias partilhadas; há
múltiplas formações de identidade e cotidiano. Sua ação mercantil é soberana, mas acontece de
maneiras outras que estritamente troca econômica. Esses são aspectos que fortalecem a
concepção micro do que se chama por “Ver-o-Peso”, formação que se aciona pelos vínculos lá
tecidos. Dialeticamente, assim também é com o Setor das Ervas e seu modo íntimo de venda.

Nos últimos anos, principalmente na primeira década do século 21, uma profusa
quantidade de pesquisas firmou, dentro de suas temáticas e problematizações, a marca das
sociabilidades (Simmel 2006) em conjunto à riqueza de sujeitos, afetividades, composições e
redes que singularizam e preenchem as estruturas desse aglomerado mercantil. Na área de
ciências humanas, autoras como Wilma Marques Leitão (2010), Maria Dorotéia de Lima (2008)
28

e Marilu Márcia Campelo (2010) são referenciais primárias dessas investigações; somando-se
outros importantes nomes e grupos de pesquisa aparelhados. Há uma busca por perceber o Ver-
o-Peso a partir do seu cotidiano, de seus agentes e emoções, considerando a relação entre os
acontecimentos e coletividades. A qualidade de local de encontros fomenta estudos
etnográficos ou mesmo de naturezas diversas24.

Sobre a perspectiva antropológica, aparece em variados estudos e temas, alguns


trabalhando sua relação com a identidade espacial e a dos citadinos; as questões da sua posição
como patrimônio material; o seu patrimônio imaterial não oficial; o seu modo de operação em
redes de parceria e confiança; sua imagética a partir da arquitetura; seus hábitos, costumes e
comportamentos como representante cultural de Belém; suas relações com as festividades e a
religião; capacidades narrativas; questões raciais; potência artística; relação com outros portos
e feiras da cidade ou do estado. Esses pontos de partida são apenas alguns das suas inumeráveis
possíveis leituras em contexto acadêmico, pois somando com todos os sujeitos e elementos
materiais que o constituem e fomentam estudos, o Ver-o-Peso – como ícone que é, por sua
própria expressividade dinâmica – confere fartas especificações para cada um desses.

Para entender as dinâmicas que permeiam os saberes no Setor das Ervas, é vital perceber
os encadeamentos que estão ali e como extrapolam a seção, caracterizando-se diferentes e
próprios de cada relação, por cada consumidor e feirante. Procura-se nesse escrito partir, e não
findar, compreendendo o Veropa como um local de laços, sociabilidades e sociação –
conjuntamente com a discussão sobre a atuação dos elementos institucionalizados mais as
influências simbólicas manejadas, também produtoras de concepções sobre o lugar. Tal
configuração é vital para o estudo haja visto a importância das relações diretas entre sujeitos
para a difusão dos saberes em meio comercial.

Perceber a potência agencial dos elementos subjetivos advindos do cotidiano (Certeau


1999) é resultado de uma pesquisa que se fez pela troca e experiência com gentes; pessoas que
estão em meio ao familiar no Ver-o-Peso; trabalhadores que quando o citam repetem expressões
tais quais: “minha casa”, “é minha família”, “meu amante”25. A vida rotineira aparece como

24
Podemos citar algumas para além das trabalhadas no texto, na vertente: conflito (Campelo 2010), comércio e
circulação (Corrêa e Leitão 2010; Silva e Rodrigues 2016), coletânea (Leitão 2010), geografia (Penteado 1968),
exposições (Carvalho 2011), artes visuais (Coelho 2003; Maués 2014), história (Cruz 1962; Oliveira 2018),
filmografia (Guedes et al 1984), patrimônio (Lima 2010), arquitetura (Malheiros 1996), teatro (Salles 1981),
ciência da informação (Dantas e Ferreira 2013), sociologia (Rocha 2012), museologia (Maués 2014), antropologia
e não-humanos (Silveira et al 2016), raça (Lopes et al 2010)
25
Anotações diário de campo. Abr/18.
29

instituição concorrente aos externos determinismos urbanísticos, discursos simbólicos e


narrativas políticas (por mais que esses se usem de enfoques e objetivos sociais). Tal cotidiano
nem sempre identifica ou reconhece essas mediações exógenas. Como dito, a permeabilidade é
uma característica presente entre diferentes sistemas coexistentes, logo as categorias descritas
se entrecruzam. A produção a partir da vivência, absorções da realidade fenomenológica e dos
sentimentos eclipsa concepções trazidas por levantamentos cartográficos, sensos, índices,
reportagens e agências turísticas; faz-se também mais significativa para aqueles diretamente
relacionados. Em um incabível falar por, aqui nesse estudo, se ambiciona falar mais perto.

Assim guiado, o estudo se baseia na etnografia do Ver-o-Peso, principalmente o Setor


das Ervas, onde as apreensões dos atos comerciais decorreram da minha familiarização como
consumidora e frequentadora do Veropa; situação mais ou menos por mim dirigida, na qual
pude participar das transações – e seus elementos associados – de maneira espontânea e
dialógica com as(os) erveiras(os) feirantes, permitindo minha agregação ao ambiente e sua
basilar qualidade íntima. Ainda que está tenha sido a forma preponderante, o início da pesquisa
é marcado por entrevistas semiestruturadas e narrativas biográficas in locus. Somaram-se, de
forma complementar, levantamentos historiográficos e urbanísticos, tendo como fontes planos
de manejo para a área; projetos municipais de revitalização; dados de assembleias deliberativas
(que reuniram poder municipal, programas de pós-graduação da Universidade Federal do Pará,
IPHAN e sociedade organizada) e roteiros turísticos dirigidos por estudantes de diferentes
cursos da UFPA. De maneira suplementar, representações artísticas, jornalísticas e midiáticas
também foram observadas e serviram de apoio para o produto etnográfico, são elas provenientes
da literatura; notícias e textos jornalísticos; exposições fotográficas; canções; marchinhas de
carnaval; peças de teatro; cortejos; propagandas em mídia virtual e impressa. Esses suplementos
ajudaram na aclimação do locus de maneira sutil, mas ativa.

O momento inicial da pesquisa se caracterizou por uma coleta de dados abrangente e


variada, inteirando-se do Setor e o Ver-o-Peso. Durante o primeiro semestre do ano de 2018 as
apurações foram ordenadas e rijas, espelhando o tom das minhas interações com as(os)
erveiras(os), uma vez que minha anunciação como pesquisadora ativou dispositivos de dúvidas
e embaraços. No Ver-o-Peso é comum a circulação de alunos e pesquisadores, porém eu,
estranha e visivelmente forasteira, criei uma esfera tensionada e hesitante, a qual de alguma
forma já conjecturava. Acontece que durante os anos de 2006, a multinacional brasileira de
30

perfumaria e cosméticos Natura – definida por sua ligação ambiental26 – esteve em processo
judicial com as(os) erveiras(os) da seção, pois, a partir de algumas entrevistas e gravações
visuais, reuniu informações que resultaram em um comercial e um novo produto lançado ao
mercado com base nos saberes das(os) erveiras(os), não gerando retorno de qualquer tipo para
tais. A circunstância foi responsável pela criação da Associação Ver-as-Ervas, que mais tarde
se tornou relevante também para outras necessidades oficiais do Ver-o-Peso como um todo, a
qual será melhor discutida no terceiro capítulo.

Assim, já sabendo do panorama de desconfiança instalado entre as feirantes do Setor,


intentei uma inserção mais comedida, porém essa não foi suficiente para me fazer ser vista sem
suspeita, gerando, praticamente, apenas questionamentos e evasivas quanto a pesquisa – quando
não, sugestões para tratar minhas dúvidas com a liderança da associação. Dentre 14 erveiras(os)
das quais tentei contato – dos aproximadamente 90 feirantes da seção –, apenas oito aceitaram
se envolver com a investigação, sendo que dessas, só duas pessoas continuaram como
interlocutoras ativas durante todo o correr da pesquisa, interagindo continuamente (ver tabela
1). De forma flutuante, outras três contribuíam, mas com constância variável. Outras erveiras
também se relacionaram comigo, essas não se interessando pela pesquisa, mas em uma relação
de comércio – ainda benéfica.

Nome Idade Anos de Quantidade Área do Gerações Nível de


trabalho de barracas Setor familiares Participação
no Setor
Beth _ 52 2 Corredor 5ª, com Participação
Cherosinha central seus netos flutuante na
pesquisa
Dola Coló 62 anos 43 4 Corredor - Participação
central apenas na
fase inicial
da pesquisa
Edimar 66 anos 38 1 Frontal - Participação
Santana (no Ver- esquerda apenas na
o-Peso) fase inicial
4 da pesquisa
(no Setor
das
Ervas)

26
Extratos retirados da página virtual oficial da marca: “Desde o primeiro dia, construímos um negócio com a
missão de proporcionar o bem-estar-bem, relações harmoniosas do indivíduo consigo mesmo, com os outros e
com a natureza”. Disponível em https://www.natura.com.br/a-natura/nossa-historia. Acesso: Dez/19. “Priorizar
ingredientes vegetais é nossa maneira de tocas nossa atividade de modo inovadora, com recursos renováveis”.
Disponível em https://www.natura.com.br/sustentabilidade/cadeia-de-valor. Acesso: Dez/19.
31

Izabel - >40 2 Corredor - Participação


central flutuante na
pesquisa
Miraci 53 anos 40 3 Frontal 4ª, com Participação
esquerda sua filha intensa na
pesquisa
Robertina - 28 1 Frontal 3ª, com Participação
direita ela apenas na
fase inicial
da pesquisa
Roni - 23 1 Frontal - Participação
Rocha direita flutuante na
pesquisa
Seu João - 32 1 Frontal 1ª, barraca Participação
Alexandre direita veio de intensa na
amigo pesquisa
Tabela 1 – Relação de interlocutoras, registro em 2018

A falta de apoio ao estudo também foi agravada pela minha não legitimação como
pesquisadora, pois além de controversa, minha aparência, sotaque e postura eram rapidamente
percebidos como relativos à um outro grupo presente na seção, o turista. Assim, mesmo aqueles
primários interlocutores que aceitaram a pesquisa apresentaram falas pré-preparadas ou
impessoais, iniciando assuntos que julgavam interessantes para meus ouvidos curiosos de
“viajante”, mesmo com o esclarecimento, consentimento e tema da pesquisa. Respaldada nessas
condições, procurei em primeiro momento reforçar meu interesse com pesquisadora utilizando
de entrevistas semiestruturadas, onde poderia iniciar uma aproximação dos pontos que
intentava, esperando que o diálogo demonstrasse as intenções da pesquisa ao mesmo tempo que
tivesse menor direcionamento e garantisse autonomia as(os) erveiras(os). A partir do Termo de
Consentimento Livre e Esclareci comecei as gravações com aquelas(es) que aceitaram a
participação.

Nessas, elementos básicos surgiram, possibilitando regressões biográficas que firmaram


um substrato significativo para as análises posteriores. Ainda assim, mesmo com um reforço
das minhas intenções como estudiosa, os tópicos priorizados pelos interlocutores relacionavam-
se à assuntos já tratados e automatizados de outros estudos fora da temática27. A intensificação
dos temas mais pertinentes aconteceu na segunda parte da pesquisa. Para perceber as dinâmicas
que envolviam o saber tradicional medicinal, me atentei aos dois fenômenos mais básicos para
a vigência dos mesmos: local e transmissão.

27
Porém, esses foram proveitosos ao passo que suscitaram a percepção das inclinações científicas associadas à
atenção sobre as(os) erveiras(os), seu comércio e saber tradicional.
32

Esses, categorias substanciais para a vigência dos saberes e práticas, apontaram para a
necessidade da análise acerca dos sujeitos, tanto em interação com o espaço quanto relações
entre indivíduos, uma vez que os sujeitos são os agentes que dinamizam o local e a transmissão.
Por sua vez, a particularidade da pesquisa ilustra como espaço e indivíduos em interação são
perspectivados pelo ambiente urbano. Assim, a avaliação das apreensões em campo e estudo
diagramaram-se de tal forma:

Diagrama 1 Estruturação básica dos elementos analisados

Com minha deslegitimação dupla, elaborei novas possibilidades de abordagem, onde os


atos de caminhar e apreender o entorno, apoiados na contínua sucessão temporal e absorção
sensorial, possibilitaram a minha familiarização e adequação à lógica mais densa do Setor, onde
ser turista (ou então de fora), pode conviver melhor com características de pertencimento ao
lugar, isto é, aos fenômenos e cognições partilhadas por aqueles que fazem uso contínuo e
profundo do local. Com esse tratamento, os limites demarcados pelas entrevistas – não
reconstituições integrais dos movimentos do Setor –, puderam ser alargados, abrangendo mais
indivíduos relacionados, como os consumidores e, principalmente, perceber os fluxos
mercantis. Essa circunstância manifesta-se a partir do início do segundo semestre de 2018, se
33

moldando e amadurecendo ao longo de todo o trabalho de campo, que findou em novembro de


2019.

Nessa segunda fase, minha condição como, agora, moradora de Belém, e especialmente
do bairro da Cidade Velha, também influiu sobre minha presença em campo, pois Ver-o-Peso
em si tomou dimensões cotidianas para mim. Suas seções atendem minhas necessidades como
habitante e sua localização faz parte alguns dos meus trajetos comuns para outros pontos da
cidade. Morando na região histórica, o Ver-o-Peso aos poucos se amarrou aos meus lugares
significativos da vida ordinária, tanto em âmbito mercantil como de lazer, histórias, sentimentos
e amizades. Essa conjuntura propiciou minha interação em um ritmo diferente do induzido e
rigidamente comprometido, afetando a pesquisa em um intenso processo de aclimação: de um
lugar observado e em relação, tornou-se uma das extensões da minha existência belenense.

Contudo, não significa que considerações acerca dos níveis, limites e configurações da
familiaridade (Velho 2013) adquirida não estiveram destacados. Foram pesadas e calculadas as
problemáticas sobre a circunstância da neutralidade; a minha situação de intervenção na
realidade estudada (aqui agora como pesquisadora e não componente/consumidora) e, também,
um elemento passivo de observação e opinião. Dado o panorama de conflito extra e intra setorial
envolvendo disputas de freguesia, esses pontos estiveram destacados, não só por suas
relevâncias epistemológicas, mas por influírem diretamente no andar da pesquisa e minha
admissão, mais ou menos harmoniosa, ao Setor. Sabendo da impossibilidade de ter um acesso
livre e próximo com todas(os) as(os) erveiras(os), tanto pelo conflito com a Natura, como
também por saber ser vista como próxima/freguesa (apenas) daqueles interlocutores principais,
estar atenta com minhas posturas, integralidade e autoconsciência quando em campo foi
substancial para garantir rigor científico paralelo a elaboração do estudo de maneira espontânea
e sociável. Ter cuidado em não atrapalhar o fluxo comercial e evitar sempre que possível o uso
em campo de anotações e gravações foram exemplos de atitudes que facilitaram minha inserção.
Como técnica, as fotos tiveram parte significativa para compreender algumas categorias
analíticas envolvendo as estratégias de comercialização e identidade, como propaganda e
distinção entre erveiras(os).

A fotografia é tomada a princípio na antropologia como item de evidência, onde a


autoridade fotográfica, ou seja, o pesquisador, define a situação registrada e como será narrada,
sustentando os pressupostos e conceitos discutidos em sua pesquisa; e a imagem, assim como
sua captura, deveria seguir um estilo “imperceptível e transparente”, onde discreta, estaria fiel
34

ao naturalismo do que é fotografado (Edwards 2016:159). No entanto, a foto como prática


representativa28 entra indagação nos anos 197029, questionando sua amplitude e ajuste com a
realidade, além do autoridade assimétrica ocupada por aquele que saca as fotos. Assim, a
percepção de parcialidades confere sua dupla situação ao uso da imagem: ferramenta e objeto
antropológico. Se antes o estilo apoiava-se na amplitude, realismo, distância e autor
imperceptível, novas sensos se apresentam, com o destaque das seleções, escolhas,
proximidades, construções e preparos dos autores, mas, mais importante para essa pesquisa, a
propriedade dos sujeitos fotografados em se postar para tal, posando, definindo interesses e
escolhendo narrativas.

O posar estético das erveiras(os) para as fotos dos consumidores e turistas demonstra
facetas de suas agências sociais na escolha da história e imagem que quer contar, além da
valorização pessoal por conta do que se representa ser fotografada(o), e assim escolhido dentre
outras(os), para tal. Possibilita alcançar a dinâmica local onde a imagem e imagética são formas,
também, estratégicas de divulgação e autoestima das próprias(os) erveiras(os); desejadas e
estimuladas.

Os usos institucionais apoiados em narrativas simbólicas, como serão discutidos, tem a


fotografia como principal canal de apoio dentro do Setor das Ervas. Esta então como prática
representativa possibilita impulsionar olhares como singularidade, orgulho e regionalismo – a
depender das leituras – como qualidades de atração turística e fortalecimento econômico30;.
Assim, a fotografia é um status e deve ocorrer. Eu, em meus três espectros – pesquisadora,
moradora e turista – fui impelida a fotografar, ironicamente, menos por questões metodológicas
do que interacionais, pois se estando lá, assim se espera e é de bom tom. Logo, percebi a
importância da fotografia como meio e conteúdo de pesquisa.

Andar foi a central técnica da pesquisa. Seja percorrendo, passeando ou perambulando,


caminhar toma aspectos e relevâncias próprias no contexto citadino; desde o flâneur
baudelairiano (Eckert e Rocha 2003), diversas percepções consideraram como ponto comum a
excepcionalidade que mover-se gera para apreensão e vivência para aqueles que estão nas urbes.
Até mesmo Antônio Lemos, como visto, fazia disso uma prática governamental. Meu estar em

28
Importante para a produção do corpo colonial enquanto objeto antropológico (Edwards 2016:154)
29
Em conjunto com a “crise de representação” do momento (p.154).
30Que como será discutido encontram-se afinados a realidade corrente na seção e seus anseios,
porém respondem a um projeto de gentrificação patrimonial.
35

campo é marcado por percursos variados, onde a observação depende dos caminhos, espaço,
interações e minha subjetividade. Não obstante o produto analítico da primeira fase em campo,
analisado pelo método estendido; tenho como principal dado de análise o conjunto gestáltico
das minhas caminhadas durante a segunda etapa da pesquisa. Para tal, apoio-me na
consideração da subjetividade e corporificação pessoal, sendo a razão para qual utilizo-me dos
estudos de sensorialidade, onde o corpo e seu movimento são agentes em conjunto com o
ambiente, propiciando minha aclimação no lugar. Andar permitiu perceber a associação das
atividades de reprodução social ali presentes e os processos de percepção dos sentidos e
estímulos locais que, reverberando na sua singularização, constituem-se elementos apropriados
tanto pelas(os) erveiras(os) quanto o discurso público e midiático. Dessa forma, o Setor das
Ervas é tratado como um lugar comercial onde os vínculos, afetividades e subjetividade são
definitivos para a prática mercantil e a significação dos artigos comercializados; a canalização
desses acontecem por meio das assimilações dos estímulos sensórios do ambiente provindo da
absorção fenomenológica, corporificação, movimento, aspectos emocionais e decurso
temporal.

1.3 Olhares, Interpretações e Projetos: um mercado e seus elementos como


representantes culturais.

O Complexo reúne materialmente diversos elementos relevantes e constituintes da


variedade cultural de Belém e do Norte brasileiro. Sua posição emblemática dentro da vida
belenense se expressa socialmente pela satisfação das necessidades rotineiras da população
geral e sua qualidade, somada ao viés cultural, de resguardar identidades, memórias, projeções
e olhares, possuindo a capacidade de permanecer um microcosmo de relações interpessoais e
reciprocidades (Nascimento e Rodrigues 2014).

Atualmente, as diretrizes municipais da cidade situam por Complexo do Ver-o-Peso a


área que reúne a Feira do Açaí, a Feira do Ver-o-Peso (antiga Feira da Praia), o Mercado de
Carne (Mercado Francisco Bolonha), o Mercado de Ferro (ou também Mercado de Peixe, antigo
Mercado Ver-o-Peso), a Praça do Pescador, a Praça do Relógio e a Ladeira do Castelo; a área
amarela da figura 4. Como visto, com o tombamento pelo Iphan, esse Complexo insere-se em
uma distinção mais abrangente, onde o núcleo continua o Ver-o-Peso: o Conjunto Arquitetônico
e Paisagístico do Ver-o-Peso, que além dos elementos supracitados, abarca uma série de
casarios, ruas, praças e espaços que compõe parte dos bairros da Campina e Cidade Velha, os
mais antigos da cidade (área azul da figura 5).
36

Ambos Complexos, sejam em âmbito mercantil, direcionado pela prefeitura, ou


patrimonial, vinculado às escolhas, seletivas e parcialidades de diretrizes do órgão federal
responsável, confluem para o intrincamento do que se denomina corriqueiramente como de
Ver-o-Peso – ou então, Veropa. Esse, no entanto, é ainda o local de feiras, mercados e praças;
as vezes também sendo indicado por “Ver-o-Peso” as ruas adjacentes, com suas lojas e barracas;
algumas outras como centro histórico, citando a larga Boulevard Castilhos França, a Avenida
16 de Novembro, a Igreja e Praça das Mercês.

Os dois Complexos foram definidos e normatizados por instituições oficiais, estando


coerentes a admitidos para aqueles que lá o acompanham, porém quando se fala de “Ver-o-
Peso” para a maioria da população belenense, em termos de significante linguístico, antes que
área geográfica e/ou ocupação mercantil, se fala de uma impressão criada por associações
emotivas, promotora de memória, afeição ou repulsa; um signo (Saussure 2006) onde a
funcionalidade como qualidade do significado é posterior as características emocionais que são
evocadas a parti desse.

Maria Dorotéia de Lima (2010), debatendo sobre as diretrizes oficiais que envolveram
o processo de patrimonialização da área selecionada para tombamento do Iphan, pontuou como
essa não conferiu com as variadas visões e expectativas dos feirantes, marcando o processo de
oficialização do patrimônio cultural norteado segundo a orientações institucionais em voga –
nem sempre concebidas pelos sujeitos que produzem e vivem a realidade cultural. Os elementos
determinantes para tal situação formam-se a partir narrativas homogeneizantes tais quais a
noção do nacionalismo; pautando aspectos da cultura popular e/ou tradicional como patrimônio
da nação perante um mundo globalizado. Maria Cecília Londres Fonseca (2003) discorre sobre
as tendências que envolvem a legitimidade de algum elemento como patrimônio, as quais
priorizaram por muito tempo manifestações materiais, edificações e monumentos, tipicamente
expressões de classes dominantes, como casarios, igrejas, fortes, lojas e outros mais, provindos
da colonização lusa. Fonseca destaca como o Ver-o-Peso, ao ser tombado em seu conjunto
paisagístico e arquitetônico, prima pela influência portuguesa antiga, em um lugar de
expressões culturais próprias e características, rebaixando assim os indivíduos – e suas práticas
“culturais coletivas” (2003:58) – que o compõe, ante a história colonial.

Em certa medida, existe um falar a partir do Ver-o-Peso, assim como também se fala
sobre Ver-o-Peso. Feiras e mercados públicos são formações focais de encontros negociações,
interações, práticas simbólicas e produtivas; fortes personagens no desenvolvimento citadino e
37

civilizatório, atuando em nível social, político, histórico, econômico e cultural, são infindos os
processos envolvidos31. O comércio do saber tradicional está sendo estudado em associação ao
ambiente mercantil de feira na esfera urbana, ou seja, em meio social intrincado. Os estudos
das sociedades complexas, que como visto, formadas com o tramite coexistente de diversas
configurações sociais cognitivas, deve ser analisado por meio da consideração dos níveis
biológicos, psicológicos e socioculturais dos sujeitos perante a realidade social, postulando as
heterogeneidades culturais, a multiplicidade de significações, as influências históricas e a
tensão entre indivíduo e sociedade com embate de projetos nas cidades (Velho 1988). Dessa
forma, as estruturas coercitivas inserem-se nessas dinâmicas e fluxos pelos atravessamentos e
provocações de dissenso e mediação (Velho 2013). Falar próximo de um lugar interno não
desvincula a necessidade de aferir dimensões macrossociais e marcar, de forma ciente, que
ainda se trata de falar sobre.

Na história da cidade, o Ver-o-Peso é um sujeito do espaço urbano, acompanhando o


desenvolvimento dessa e sendo influente nos processos de sua construção e vida social, tanto
dos trabalhadores como dos cidadãos. Funcionando todos os dias da semana e todas as horas
do dia, está sempre com pelo menos uma de suas feiras ativas32, com um comércio intenso
característico, seja no atacado ou varejo. A imensa profusão de pessoas, fluxos, redes e
intercâmbios que marcam e fazem o Ver-o-Peso demonstram sua vigência e vitalidade no tempo
presente, continuando seu status na cidade; seu aspecto multifacetado e abrangente o qualifica
como um espaço agregador de inúmeros olhares. Nisso, Marilu Campelo questiona:

A quem pertence o Ver-o-Peso afinal? Ao homem das ilhas (o


“caboclo”) que vem vender suas mercadorias. Aos homens e mulheres
que vivem e trabalham no espaço da feira e que têm nela o cenário para

31
Historiadores como Fernand Braudel (1987) demonstram relações comerciais, redes de trocas e dependências,
desenvolvimento urbano, movimentos políticos, relações alimentares, legislativas e temporais a partir de estudos
sobre feiras e mercados públicos a partir dos séculos 14 e 15 na Europa; no século 18 na Ásia, África e Américas,
precursores da urbanização e realidade urbana. Fala-se também sobre as grandes feiras do século 19, partidas da
Revolução Industrial, as quais mostram os adventos tecnológicos, produtos farmacológicos inovadores e novos
costumes de lazer e entretenimento, influindo sobre conceitos de modernidade, estética, consumo e prazer que são
formados naqueles ambientes (De Decca 1985). Antropólogos como Clifford Geertz (1978), Verger e Bastide
(1992), Marcel Mauss (2003) demonstram práticas laborais, sistemas monetários, influências familiares e de
gênero, redes de comércio e reciprocidade analisando mercados e feiras tradicionais.
32
É ativo mesmo na calada da noite e durante a madrugada, quando uma de suas principais feiras, a Feira do Açaí,
está em sua plena funcionalidade na área das Docas e Pedra do Peixe. Também nessas horas do dia é possível
encontrar abertas algumas barracas de lanche na área externa do Setor de Alimentação, destinadas a atender tanto
os variados trabalhadores da feira – sobre os múltiplos e variados trabalhadores que a compõe – quanto passantes
da região, a qual possui bares e casas noturnas que reúnem além dos trabalhadores de desembarque e venda de
pescados, hortaliças e outros, quanto pessoas não vinculadas ao trabalho no Ver-o-Peso. O resto dos setores da
área varejista estão fechados nesse período, com um reduzido policiamento realizado por dois seguranças situados
no pátio, os quais inibem a perambulação pelo local.
38

suas histórias de vida. Aos citadinos que vão à feira comprar os


produtos que tanto apreciam ou àqueles homens e mulheres que jamais
passaram por aquele local. Aos poetas, escritores, pintores e jornalistas
que fazem o Ver-o-Peso “personagem” de suas artes ou ora o
enaltecem, ora o denigram. Aos arquitetos, engenheiros e técnicos que
acham que ele deve ser reabilitado. Aos meninos de rua (...), às
prostitutas, aos ladrões e traficantes que agem no local. Às ciganas
“escondidas” dos olhares curiosos e preconceituosos. Aos apontadores
do jogo de bicho, aos boêmios e aos feirantes. (...) Ao turista que visita
o local e sai encantado e/ou decepcionado com o que viu. Quais
identidades que ele representa? Terá este mesmo espaço o mesmo
significado para a memória popular e a memória nacional? (Campelo,
2010:65-66)

Os sujeitos e suas perspectivas são produtores de interações e percepções acerca dos


produtos, elementos, saberes e práticas existentes. Para entender o comércio de produtos de
cura tradicional em um meio que se exprime flutuante e permeável, com leituras que pesam
sobre seus fenômenos, é vital uma verificação das variadas concepções geradas por tais.

Na memória da cidade, o Complexo influi noções de pertença para os belenenses ou


mesmo migrantes que desenham suas vidas em Belém. Muitos de seus elementos são ali
apontados como constituintes da vida belenense: o brega tocando na bike som aos finais de
semana; nomes da maioria das linhas de ônibus, as quais estampam o Complexo como destino;
a garça (Ardea alba) “namoradeira” e o “malandro” urubu (Coragyps atratus) (figura 9), os
barcos atracados, as ervas cheirosas, o açaí (Euterpe oleracea) do grosso e a farinha de
mandioca (Manihot esculenta) da baguda33... Mesmo hoje, com uma ampla cadeia de mercados
privados, públicos, lojas, shoppings atendendo diversos pontos da malha urbana, a compra no
Veropa é para muitos moradores um ato de lembrança, da valorização de costumes e mesmo
tradições34, principalmente em momentos especiais sociais como o evento religioso do Círio de
Nazaré, festividades do mês junino e fim do ano.

33
Brega é um dos mais tocados estilos musicais da região. Bike som são bicicletas utilizadas por ambulantes para
a venda de álbuns musicais, nelas estão acopladas caixas de som que tocam as músicas disponíveis; seus
condutores vendem Cd’s gravados de artistas expoentes ou locais, mesmo de outros municípios como Ananindeua
e Castanhal. “Garça namoradeira” e “Malandro urubu” são duas personagens comum da cidade de Belém,
principalmente o Ver-o-Peso; existem histórias, músicas, quadrinhos e causos de uma relação dos dois; tal fato
acontece pelo grande número de garças e urubus na área, principalmente na pedra do peixe, uma das canções
famosas: https://www.youtube.com/watch?v=CkFpmCP-R04. “Açaí do grosso” e “farinha baguda” se referem às
espessuras e dureza dos insumos respectivos.
34
Eric Hobsbawn (2008) difere costume de tradição. O primeiro está relacionado ao comprometimento com o
passado, com uma flexibilidade implícita. Já a tradição fala sobre um conjunto de práticas reguladas por “regras”,
que podem ser rituais ou simbólicas, inculcando valores e normas de comportamento por repetição que implica na
continuidade de um passado, sempre que possível “adequado”, como noções de nacionalismo. São formas que
podem ser coexistentes.
39

Figura 9 Descansando sobre uma embarcação atracada, duas “garças namoradeiras”, símbolos de canções, presença e
imaginário sociocultural no Ver-o-Peso. Autoria: Laura Vieira, 2018.

Faz parte de um ethos “ser belenense” que envolve experienciar e construir momentos
biográficos com o Complexo, configuração que inicia já na infância. Mesmo com um número
eloquente de pessoas que não o frequentam a anos, quando questionadas sobre a sua intensidade
afetiva com o local, pouquíssimos são aqueles que declinam qualquer laço ou sentimento
vigoroso de pertença ou satisfação. Os que assim fazem, coincidentemente ou não, tem
trajetórias de vida que envolveram mudança de cidade quando ainda novos, com regressos
posteriores e já não mais frequentando o Ver-o-Peso desde então, demonstrando indiferença
desse em suas vidas35.

35
Durante a produção dessa pesquisa, produzida nos anos 2018 até 2020, fui (e sou) moradora da cidade de Belém,
ainda que minha terra natal seja Curitiba, na qual passei todos os outros anos da minha vida. Algumas das análises
que trago sobre o município em si e que não saem diretamente de levantamentos bibliográficos ou do campo no
Ver-o-Peso e no Setor das Ervas – vem da minha vida na cidade. Estar morando sozinha em uma região antes
desconhecida por mim, a mais de 3.000 quilômetros de onde é minha origem, me fez entrar e manter contato com
uma profusão de pessoas e redes, desde universitários acadêmicos, até amigos, amigos de amigos, familiares de
amigos, vizinhos, comerciantes, donos de bares, de lanchonetes, padarias, organizações e grupos políticos,
viajantes, amores, atendentes, pessoas em situação de rua, trabalhadores de Uber ou taxistas, artistas locais,
organizadores de evento, crianças, adolescentes e idosos. Com mínimas exceções, todos esses encontros
questionaram ou foram direcionados por conta da minha origem, acabando ou não em discussões sobre o tema da
40

Com um comércio varejista expressivo, dominante perante qualquer outra feira da


cidade, e a importância marcada nos corações, recordações e costumes da maior parte da
população, o Ver-o-Peso congrega distintos sujeitos. É necessária a avaliação dos sensos
cardiais partilhados no conjunto desses que se caracterizam como consumidores do lugar, seja
compradores, usuários/frequentadores e visitantes (turistas ou não)36.

Sendo o principal público consumidor os moradores que frequentam o Setor das Ervas
se dividem em dois nichos. Há aqueles que compram ou consomem regularmente na feira, se
não todos, a maioria dos insumos que consomem em suas casas e que buscam preços módicos
em relação a supermercados e outros; esses não necessariamente são de poder econômico mais
baixo, uma vez que o Ver-o-Peso não é a feira mais barata da cidade, inclusive sendo
considerada muitas vezes a mais cara por frequentadores costumeiros de feiras37. São também
o conjunto mais ativo no Setor das Ervas, tomados como clientes, geralmente possuem
preferência por determinada(o) erveira(o) e agem como divulgadores da qualidade do
atendimento e dos produtos. Com um vínculo mais profundo e constante sobre saberes
tradicionais de cuidado fisiológico e espiritual, dão preferência aos artigos in natura; trocam
experiências com seus vendedores; encomendam; indicam alguma referência; confidenciam
problemas e, em uma relação dialógica, partilham histórias pessoais38, sendo comum um clima
amistoso, muitas vezes com carinho, amizade e contatos familiarizados. A feira por suas
próprias características já permite essa realidade mais pessoal, mas esse tipo de clientismo é
determinante para uma relação de confiança que extrapola mediações midiáticas superficiais.
São relações constituídas de diversos níveis e conforme a frequência e intimidade crescem, mais
cheias de características sentimentais.

minha pesquisa, mas sempre iniciando uma exuberância de comentários, dicas, explicações, conversas e
divagações sobre minha “nova vida” que muito me situaram e contribuíram para alargar o locus e as essências que
trazem Belém, o Ver-o-Peso e o Setor das Ervas. Ainda que nunca houvesse uma pretensão formal, um “survey”
ou “entrevista (semi)(não)estruturada”, para a aquisição desses conhecimentos – e sim a rotina do dia-a-dia – todas
as pessoas que encontrei, em algum nível, deram sustentação e maior profundidade para esse estudo. A todas
agradeço.
36
Os feirantes também são compradores de artigos do próprio Ver-o-Peso; no Setor das Ervas as(os) feirantes são
principalmente consumidores de refeições prontas do Setor de Alimentação, de serviços estéticos como manicure
e de “fazem tudo”, “meninos de recado”.
37
Em seu estudo, Santos (2014) também observa como consumidores de renda baixa não compram só em feiras,
ainda que as deem preferência.
38
Esse tipo de consumidor não necessariamente depende completamente das erveiras e suas indicações, podendo
com embasamentos próprios demandar artigos definidos. Em geral são clientes costumeiros que já sabem o que
buscam e os efeitos terapêuticos e espirituais, ou mesmo outros agentes terceiros de cura como benzedeiras e
pessoas de santo (Costa e Cordovil 2017; Campos e Campelo 2017)
41

A constância na Feira não tem, necessariamente, o comércio como fator exclusivo, as


vezes é a proximidade do trabalho, o acesso ao transporte público, amigos ou familiares que ali
trabalham ou o costume familiar que os levam a estarem lá. A regularidade, entretanto, é
determinante para que ligações se fortifiquem e nutram a percepção de um lugar cada vez mais
íntimo. A variedade e procedência dos produtos também é componente decisivo; moradores de
lugares que não têm feiras próximas, ou que as têm, mas essas não possuem o que é procurado,
veem o Complexo como primeira opção de compra – se não os Mercados e feira em si, os
ambulantes ou comércios nas ruas próximas que também acabam virando “Ver-o-Peso”.

Há também os esporádicos; consumidores moradores de Belém que frequentam menos


ou muito pouco o local – e a região histórica da cidade. É um público que cita os bairros
centralizados da Campina, Nazaré, São Brás e Umarizal, mais novos e verticalizados, como
seus espaços costumeiros de convivência. O Ver-o-Peso influi aqui como lugar de memória,
transitando em uma realidade passada significativa (Nora 1977) ainda que ao mesmo tempo
seja compreendido como em atividade, mas não mais paralelo a rotina urbana desses grupos.
Assinalando sua decadência, insegurança e insalubridade, reiteram o vínculo afetivo
comentado, mas comparecem “uma, duas vezes ao ano”39, principalmente em momentos
pontuais como para “comprar maniva do Círio”40.

O Setor das Ervas surge fortemente compreendido pelas narrativas simbólicas, onde
seus produtos, a prática, o saber e as(os) erveiras(os) são entendidos constituintes e
representantes da cultura local, mas pouco interativos as suas vidas, cambiando entre
desconhecimento, curiosidade, antiguidade e orgulho. Os saberes tradicionais de uso de ervas
e afins são amplamente difundidos na sociedade paraense, porém apreendem camadas
diferentes de interesses em contexto belenense, onde a classe social e os modos de vida influem
na assimilação em níveis dos saberes, sendo que quanto mais capitalizada e urbanizada estejam
os referencias de estima, menos contato direto com a feira, com as práticas populares e domínio
sobre os saberes tradicionais. Dessa maneira, o Complexo tem sua relevância percebida, porém
não está influente nos hábitos. É um consumidor da “Belém do ar-condicionado”41. Entendido

39
Consumidora moradora do bairro Batista Campos quando perguntada sobre sua constância no Ver-o-Peso como
um todo. Caderno de campo; setembro/19.
40
Em continuação, está explica o que lhe atrai à feira. Maniva é o nome dado às folhas da mandioca (Manihot
esculenta Crantz); cozida por no mínimo sete dias para limpar sua toxidade, é o substrato principal da maniçoba,
prato típico da região e do Círio de Nazaré, manifestação religiosa central de Belém e maior evento do calendário
belenense.
41
“do ar-condicionado”, e suas variantes, é uma expressão jocosa que volta e meia aparece em conversas sobre
pessoas que não “viveriam” a totalmente a cidade, que andam “do apartamento para o carro, do carro para o
trabalho, do trabalho pro shopping, do shopping para o crossfit”, tudo isso envoltos pelo conforto do ar-
42

mais seleto, é visado nos projetos municipais de revitalização do centro histórico, que discutido
no capítulo três, se pretende área de lazer e turismo. Distingue-se do primeiro conjunto de
sujeitos por formar outras percepções sobre o lugar, atrelando um cenário de violência e
descuido, característica que é destaca quando contrastado por esses sujeitos com a instalação
vizinha e aprazível, a Estação das Docas, complexo turístico e cultural privado surgido no ano
de 2000 onde antes instalava-se o Porto de Belém42. Com suas seções chamadas de Boulevard,
é, segundo sua página virtual e depois das propostas de revitalização municipal que o atingiram:
“um dos espaços que mais refletem a região amazônica” 43. Contudo, está tão apartado de um
elemento germinal do desenvolvimento da cidade, e mesmo da região amazônica, – e que fica
ao seu lado.

Dois estilos centrais de relação estão presentes no maior nicho de consumidores,


refletindo considerações destoantes entre si. Ambos notam a importância do Complexo e falam
sobre suas afetividades e vínculos, porém diferem em seus senses of place (Shamai; Ilatov,
2005). Senso de lugar pode ser entendido como “a lente através da qual as pessoas
experimentam e fazem sentido de suas experiências no e com o lugar” (Adams 2013:46)44. É
tanto o apego que vem dos laços entre pessoas e o lugar, quanto o significado e valoração
refletidos a partir dos sentidos simbólicos que os sujeitos atribuem a ele (Adams et al 2016).

As pessoas enxergam as cidades de maneiras diferentes, pois a experienciam e sentem


de forma variada. O senso de lugar permite discutir as possibilidades da coexistência de
compleições positivas que também podem ser desapreciadas por outros sujeitos; espaços que
podem conter elementos aceitos para parte daqueles envolvidos, não necessariamente serão
compreendidos de mesma forma para outros que não percebem aspectos favoráveis ou
auspiciosos. Senso de lugar não é sobre localização45, pois essa não supre o que o conceito
instiga: “localização em si não é a condição suficiente para criar o senso de lugar. Para que se

condicionado, que precisa de um ambiente fechado para ser efetivo. “Pegar um ar” também é uma expressão que
diz a respeito do acondicionamento térmico, aplicada quando se passa por locais, lojas e estabelecimentos que
possuem ar condicionado durante o trajeto a pé. São expressões geralmente vinculadas a grupos divergentes, a
primeira para aqueles que teriam uma menor ligação com a cidade, vivendo em seus ambientes protegidos e
controlados, a última para aqueles que usam do transporte público, andam pelas ruas, praças, feiras e podem se
depara com acontecimentos imprevisíveis que um centro urbano possui.
42
Possuindo características de galeria, tem lojas de souvenires, roupas, sorveterias, restaurantes e bares
tradicionais, banheiros, caixas eletrônicos, sala de cinema e evento, área de exposições, terraço com vista à Baía
do Guajará com barcos para passeio na mesma, banda ao vivo em plataforma móvel suspensa, áreas abertas para
ensaios fotográficos. Muitos belenenses ironizam o espaço, chamando-o por “Estação das Dondocas”.
43
Disponível em: << http://www.estacaodasdocas.com/>>. Acesso em Dez. 2019.
44
Tradução da autora. Original: “sense of place is the lens through which people experience and make meaning of
their experiences in and with place”.
45
Ou a noção de lugar discutido por Certeau (1999), contrário ao espaço praticado.
43

crie senso e adesão, é preciso um longo e profundo conhecimento do lugar, preferivelmente um


envolvimento com tal” (Shamai e Ilatov 2005:468)46. O envolvimento no Ver-o-Peso se
desenvolve a partir das dimensões da vida: temporalidades, concepções, vivências,
comunidade, história.... Aqueles que pouco se envolvem buscam referenciais outros para a
definição dos seus sensos, apoiando-se em narrativas imagéticas e discursos públicos que
tendem a esmaecer as subjetividades individuais personalizadas e homogeneizar olhares: “a
experiência não é neutra” (Shamai e Ilatov, 2005:468)47.

A concepção dos turistas e visitantes do Ver-o-Peso acaba sendo diversa, voltada à uma
lógica de consumo do produto como souvenir e da experiência como vivência exótica. Agustín
Santana Talavera (2003) discute o turismo como um fato continuamente em movimento,
renovável e adaptável; se antes restrito a um modelo, a partir dos anos 1980 novas demandas
surgem e o interesse pelo meio ambiente e cultura se fortalecem. Anseios relacionados à
história, paisagem, etnografia, arquitetura, arqueologia, fauna e flora pautam estilos turísticos,
que associando esses segmentos a grupos humanos mais virtuais do que reais. Em ambição ao
autêntico, destacam o ambiente, a cultura e a gente. Busca-se o compartilhamento de
experiências, que se vinculam a noção de “exótico”, “primitivo” e “autêntico”48.

Santana distingue dois grupos que teriam ações e responsabilidades diferentes: o turista
direto que procuraria a carga cultural baseada em de conhecimento e um “maravilhamento”
baseado no nostálgico e autóctone, mas ainda com níveis de segurança e conforto; quanto ao
indireto, aqueles que não procurariam patrimônios e expressões culturais como primeira ou
central opção. Caracterizados pelas massas, desejam entretenimento e relaxamento na ação
turística, seu contato com os patrimônios acontecem por casualidade, recebendo o prestígio
social que essa proximidade confere.

O turismo no Ver-o-Peso congrega esses dois exemplos, uma vez que é o “mais famoso
cartão-postal da cidade”, enriquecendo-se por seu conteúdo histórico e cultural; continuamente,
as ervas e erveiras(os) estão entre os elementos primários para o mercado turístico quando

46
Tradução da autora. Original: “location itself is not a sufficient condition to create a sense of place. In order to
create a sense and attachment to place, there is a need for long and deep experience of a place, and preferably
involvement in the place”.
47
Tradução da autora. Original: “The experience of a place is not neutral”
48
Procurando perceber as influências que modelam os gostos turísticos, Santana fundamenta um vetor ligado a
pós modernidade e seus alcances econômicos, políticos e sociais presentes no século XX ligados e impulsionados
pelo Estado de Bem Estar. No que se segue, distingue-se como uma noção de distinção social fundamental a
introdução desse tipo de turismo, onde preocupações outras que não as antigas aparecem, como a questão ecológica
e a experiência da cultura que serviriam como marcadores de distinção.
44

apontadas as atrações locais, mais fortes mesmo que algumas das edificações tombadas. Na
figura 10 está uma fotografia de uma erveira do Setor das Ervas, cuja legenda é “Cheiro-do-
Pará”; trata-se de um estrato do Plano Ver-o-Pará, responsável pelo manejo turístico no estado:

Figura 10 Fotografia de uma erveira do Setor das Ervas no Plano Turítico Ver-o-Pará. Fonte: SETUR (2012)

Santana Talavera aponta no modo de turismo discutido como uma comercialização da


cultura, a qual estaria introduzida no mercado turístico, onde poderiam ser percebidas e criadas
expetativas para uma clientela em acordo com as demandas do momento. As motivações
envolveriam a atração por produtos culturais possíveis graças a uma padronização desses, não
necessariamente dependendo de uma qualidade anteriormente comum. O consumo dessa
cultura “enlatada” (2003:52) é maior entre os turistas indiretos, enquanto os diretos seriam mais
seletivos.

A matriz natural e cultural acaba por ser hoje o principal componente que sustenta o
turismo no Ver-o-Peso. Funciona como imagética, dialogam com processos de fetichização e
mercantilização (Veloso 2006). O Setor das Ervas, ao ser um dos principais destaques da feira,
influi da sua configuração predisposta a essência natural, cultural e estética; as quais não se
restringem apenas aos turistas, ainda que esses sejam o grupo mais susceptível, mas também
45

aos visitantes variados, moradores da cidade que percebem o local como um ponto de lazer,
confraternização e celebração.

O turista regular do Setor das Ervas é aquele que reage aos produtos em um misto de
desconfiança, curiosidade, descrença, interesse e preconceito. A estética e os estímulos
sensoriais agem de forma a aguçar o entusiasmo e fascínio, as estratégias de abordagem
volumosa das(os) erveiras(os) – posturas, vestimentas, expressões e tons – transmitem a
singularidade e provocam reações diversas. As impressões criadas são flutuantes e
ambivalentes, mas asseguram o lugar da natureza e cultura, ainda que em formas
estigmatizadas. As relações tecidas são, contudo, cordiais, iniciadas pelo forte componente
atrativo. O Ver-o-Peso que é da memória; da vivência; dos enredos; das reportagens e guias
turísticos; dos poemas, canções e tantos outros, é um lugar que se faz por estar de mãos dadas
com o meio natural amazônico, esse simbólico e prático: está ali, em algum lugar depois do rio,
ou no próprio rio; está no pescado vindo do Marajó; no ribeirinho; no paneiro; na tigela de açaí
(Euterpe oleracea); está no Mercado de Ferro, construído com o ouro líquido “de antigamente”
provindo das suas seringueiras (Hevea brasiliensis); na umidade do inverno, no boto (Sotalia
fluviatilis) furtivo que passeia pelo Rio Guamá e está nas(os) erveiras(os) e suas folhas, nos
banhos-de-cheiro, nas “mandingas” do Setor das Ervas49.

Narrativas, informações, imagéticas, discursos e produção cultural são possíveis


estruturas simbólicas formativas da realidade, qualificando-se também como meios de
dominação (Bourdieu 1989)50. As instituições, ou sistemas, dominantes podem por meio do
reforço da cultura e discursos afins definir identidades canalizadas por ordenações urbanísticas,
midiáticas, mercadológicas e políticas. Considerando que o Ver-o-Peso se singulariza, dentre
outros aspectos, por sua associação com modos tradicionais de existência e o meio ambiente
amazônico, tendo um cotidiano tão afinado com essa característica (presente nos saberes,
práticas, sociabilidades, afetividades e materialidades); percebe-se a confluência dos seus
fenômenos diretos com estruturas simbólicas narrativas constituintes de perspectivas
controladas sobre o que este representaria e sua relevância para a realidade social. Um olhar

49
A ideia de mandinga está discutida no capítulo 2, tatando sobre formas de significação e estigma.
50
Pierre Bourdie (1989) discorre sobre como a linguagem, arte, mito, religião, conhecimentos e demais sistemas
coletivos são formativos no panorama de perspectivas, uma vez que operam na construção de modos, hábitos;
formando tanto estruturas simbólicas, quanto fenômenos de ordem prática: “atividades mundanas de atribuição de
sentido” (Loïc 2013:91), que materializam a realidade social. Os dois pólos, estruturas simbólicas e fenômenos
práticos, são coexistentes construtores de realidade, a qual, a partir do poder de classe e suas instituições
vinculadas, tende ao consenso para a integração social, buscando a reprodução da ordem vigente e estabilidade
das classes.
46

legitimado e sutil que interage com as visões particulares, subjetivas e pessoais daqueles que
vivem, frequentam, consomem, visitam o Complexo.

Uma perspectiva com maior controle e definição sobre Setor das Ervas atenta – seja
habitante ou turista, obviamente em níveis diversos – para produtos, costumes, finalidades e
modos de vida que dialogam com imagens cada vez mais exotizadas, fetichizadas e
mercantilizadas. Significativos e relevantes, são apropriadas por projetos higienizadores,
acabado atravessados por inclinações cujo sentido aponta para fins que estão em disputa: quais
são as existências que se querem ali mais asseguradas? A da cidade de Belém, que por meio
turístico aparecerá como local atrativo, singular, projetando-se em cenário globalizado? As(os)
erveiras(os), que com a seleção de produtos e modelos comerciais superficializados, terão mais
conforto, filhos na universidade, clientela abundante e fixa? A cosmologia, os saberes, práticas
e costumes tradicionais que, nos conformes das cartilhas vindas dos workshops municipais,
serão preservados, divulgados e estimados? Ou o consumidor, que pela inserção da tecnologia,
do ambiente higienizado, colorido, bonito de se estar, gostará mais, aumentará a frequência e
comprará mais?

As influências simbólicas, atingindo, em níveis diferentes, alguns conjuntos de sujeitos


é legitimada e consensual, ainda que discreta. Se utiliza da história, do hábito, do dia-a-dia, da
mídia, dos apreços e percepções, assegurando sua assimilação por estar superficialmente
aproximada dos significantes diretos, traz homogeneidade nas noções e estabiliza concepções.
No entanto, o Setor das Ervas e mesmo todo o Ver-o-Peso agrega micro configurações próprias
que divergem de direcionamentos estruturais. Nesse jogo de escala também se destaca a
intimidade, a singularidade e a agência, se fazem presentes por conta da plasticidade e
permeabilidade de dinâmicas, pela instabilidade constante dos grupos e fenômenos, nos quais
o envolvimento é definitivo para concepções e estar corporificado faz toda a diferença.

Como ocorre o comércio de produtos naturais para práticas tradicionais quando


envolvido por um ambiente ambivalente de fortes relações intimistas e cotidianas, ao mesmo
tempo que materiais e estruturais? Quais são as influências que essa situação gera para os
produtos e como isso reflete em suas práticas associadas?
47

2. Capítulo – O Setor das Ervas: tradição, sensorialidade, agência

Partindo de processos fundamentados nos levantamentos acerca da permanência,


instalação, relação e rotina das erveiras e erveiros com o Setor das Ervas, nesse capítulo
pretende-se apresentar a seção debatendo as configurações do comércio de ervas medicinais e
afins na cidade de Belém a partir do destaque das(os) erveiras(os), suas práticas e estímulos
relativos aos seus seres. Em primeiro momento discute-se o valor da “cultura das ervas de
cheiro” para a cidade como um substrato de memórias e encadeamentos com outros elementos
representativos dessa. Em seguida, são focados os produtos em uma observação sobre seus
aspectos singulares de cura e saber tradicional amazônico, enredando a próxima discussão, onde
as(os) feirantes erveiras(os) estão em plano destacado, uma vez que agem sobre a
potencialidade dos produtos, configuram o modo de apreensão, valoração e difusão desses em
nível comercial. Por fim, considerando a personalidade, estrutura, localização e espacialidade
do Setor dentro do Ver-o-Peso, incide um percurso etnográfico reconstruído, debatendo sobre
a situação da sensorialidade para a excepcionalidade e mística do local.

Para a locução sobre a cultura das ervas de cheiro na capital paraense lança-se mão de
uma interpretação indiciária onde a confluência de detalhes secundários possibilita o exame do
contexto social (Ginzburg 2006) em conjunto com o locus etnografado. São somadas duas
análises periféricas as quais congregam a discussão da contemporaneidade e a tradicionalidade
na cultura das ervas a partir dos dois mais intensos períodos comerciais dentro do Setor, a época
do Círio de Nazaré e as festa juninas. É o caso do extrato literário memorialístico da jornalista
paraense Eneida de Moraes (1989) e do fenômeno pontual ocorrido durante o Auto do Círio de
2018. São paralelismos cujos elementos episódicos caracterizam-se indicativos, inferindo nos
contextos diretamente pesquisados, uma vez que interdependentes. Apesar de característico
método historiográfico, partir do paradigma indiciário nessa seção possibilita perceber casos
em que o uso das ervas e outros substratos naturais estão aportados em significações e
funcionalidades profundamente individuais, mas ao mesmo tempo delineadas e coerentes aos
seus momentos coevos sociais, de forma que ambos os polos demonstram a intensidade da
tradição cultural discutida.

Na seção respectiva aos produtos comercializados, esses são retratados em seus tipos;
origens e semelhanças socioculturais; singularidades e unicidades; qualidades curativas e
mágicas. Tais pontos são atentados a partir do diálogo com outros estudos similares sobre
formas medicinais amazônicas; teoria etnoecológica; avaliações da propriedade singular do
48

Setor das Ervas perante outros locais; e meu lugar como pesquisadora-consumidora, onde o
contato com as práticas, modos, indicações e curas são formas de compreensão da realidade
medicinal e componentes espirituais.

A terceira discussão prioriza o debate sobre as(os) erveiras(os) como agentes de


promoção, reconhecimento, transmissão e imanência sobre os produtos e, dialeticamente, o
saber tradicional associado. A partir do conceito de mediação proposto por Velho (2013), suas
posturas e posicionamentos são observados como formas de agenciamento da realidade
sociocultural, comercial e política, definindo sua mobilidade dentro da realidade citadina
flexível, tecnológica e midiática

A reconstrução do Setor das Ervas como percurso intenta observar suas qualidades
atrativas, das quais influem em sua representação e destaque social. Esse é feito a partir de um
construto gestáltico, onde o acúmulo das minhas pessoais, e subjetivas, interações em campo
formam um montante segmentado de considerações variadas sobre o local. A sensorialidade é
a forma definida para a absorção fenomenológica por sua característica corporificada, além da
exaltação dos estímulos sensoriais como marca e estratégica comercial na seção.

2.1 A Tradição do Banho de Cheiro: a cultura das ervas medicinais e os laços entre seu
uso e a cidade de Belém

O uso de banhos-de-cheiro, ervas, óleos, patuás e demais são correntes na região


amazônica. Formas populares de medicina, suas curas envolvem etnopercepções holísticas
sobre enfermidades, essas tanto fisiológicas, tanto espirituais. Napoleão Figueiredo, no
Primeiro Congresso Internacional de Etnobiologia, em Belém no ano de 1994, apresentou um
dos primeiros estudos associados ao tema, nele inicia:
Nas diversas etapas dos vários trabalhos de campo que desenvolvemos
na Amazônia, estudando os experimentos religiosos existentes na área,
um dos aspectos que mais nos chamou a atenção foi a utilização de
vegetais, animais e minerais, quer nos cerimoniais observados, quer no
receituário da "medicina de folk" ou "medicina popular" utilizada por
segmentos de população urbana ou pela população interiorana da
região. (Figueiredo 1994:75).

As interações entre práticas religiosas, acesso ao meio, experimentos e difusão ou troca


de conhecimentos permitiram a confluência na região amazônica entre diferentes grupos e seus
respectivos saberes.
49

De maneira geral, a tradição popular de uso de produtos curativos naturais em meio


amazônico surge das interações interétnicas, influência fitoterápica da medicina popular
europeia51, influência africana e nordestina – essa última com seus próprios processos
sincréticos (Santos 2000). Figueiredo já apontava que o estudo do assunto no ambiente
belenense deve seguir uma maior flexibilidade quando citadas as influências originárias, uma
vez que se difere em certos aspectos sobre as práticas interioranas:
(...) a montagem de um modelo mecânico, decalcado em uma
bibliografia falha, onde foram tomadas as informações constantes dos
autores clássicos da Amazônia, como ponto de referência, aliadas à uma
abordagem do tipo histórico-comparativa ou mesmo eclética,
condicionou a colocação do problema, por parte desses pesquisadores,
no que poderíamos chamar de uma "classificação didática" (...) A
colocação do problema no centro macro-regional que é Belém revela
mudanças no nível ideológico de seus habitantes, pois se no interior do
Estado existe uma crença e uma prática de pajelança interiorana (ou
cabocla), esse mesmo cristianismo se dilui na adesão de religiões
mediúnicas, sejam elas de fundo evangélico (pentecostal), Kardecista
(espírita) ou sincrética (afro-brasileira). (Figueiredo 1994:76-77)

A tradição, abrangente, não é pasteurizada, tanto por suas múltiplas estruturações


primárias, quanto por sua atualização ao tempo que compõe, ou seja, inventadas e reinventadas
de acordo com as interações e pluralidade contextual.

O Setor das Ervas, como representante predominante do comércio desses produtos,


magnetiza a experiência sociobiodiversa da região em contexto urbano, o que confere matizes
próprias, uma vez que propicia o encontro de práticas culturais populares de qualidade florestal
com pressões urbanas provindas das estruturações capitalistas de classe. Seus produtos
variados: águas de cheiro, óleos, ervas, unguentos, raízes, gorduras, partes de animais, pomadas,
cosméticos e outros similares artesanalmente produzidos são frutos dos conhecimentos
tradicionais locais transmitidos geracionalmente por meio oral e prático, como coloca Dona
Coló, antiga mateira e agora erveira:

“Cada um foi aprendendo vendo o outro (fazer dos produtos), de tá


junto (...) Essas duas aqui são minhas (barracas) a outra quem cuida é
só meu filho. Minha filha também vende; essa da frente.” Dona Coló.
Jun./2018

51
A exemplo a teoria dos humores de Hipócrates.
50

Ativos e relevantes em outras localidades52, os artigos se constituem um tipo


importante de representação material dos costumes e hábitos ancestrais da população belenense
em consonância com sua região, sendo ainda possíveis em denotar vínculos e mostras da
história da cidade; seus arranjos socioculturais e saberes locais – originários de práticas
religiosas, relações cosmológicas e domínios medicinais associados com a biodiversidade
amazônica. Assim, importantes para a compreensão da cultura popular local, além de possíveis
articuladores da análise da realidade social citadina belenense.

A prática do comércio de banhos de cheiros, unguentos, garrafadas e amuletos está


presente na cidade de Belém mesmo antes do assentamento oficial do Ver-o-Peso, como
discorre Lucielma Silva (2018) sobre os primeiros registros da atividade: originária de mulheres
negras que, a partir dos seus conhecimentos religiosos sobre as ervas e outros insumos,
comercializavam tais produtos como ambulantes antes mesmo do assentamento da feira no Ver-
o-Peso. Desde os primórdios, a comercialização envolve e se fundamenta em interesses e
anseios voltados as questões espirituais, perspectivados pela curanderia ou feitiçaria;
envolvendo aspectos de pajelança e outras práticas religiosas de matriz africana, assim como
etnofarmacologia.

Em períodos mais recentes, além da feira e da prática ambulante, o contato com os


insumos de curanderia também foram percebidos em centros religiosos, como demonstra
Figueiredo (1994) ao catalogar o uso de partes de animais mais comuns em ambientes de
reminiscências de práticas africanas, pajelança interiorana, xamanismos indígena, kardecismo
e outros, os “centros mediúnicos” (Figueiredo 1994:78). O levantamento quantitativo observa
os empregos mais comuns desses e seu realce na vida “do homem da região, quer em seu
aspecto popular quer em seu aspecto cerimonial” (Figueiredo 1988:91).

No Ver-o-Peso, a venda de ervas se firma acontece na feira livre desde o início do


século 19 (Pantoja e Simonian 2010), se firmando em Setor organizado a partir da gestão de
Almir Gabriel, em 1990, o qual estipula barracas e padroniza a estrutura da seção. Antes o
comércio dava-se próximo a sua localização atual, porém com as ervas expostas no calçadão
(Oliveira 2018). Mantem-se o usa dessa área; agora, durante o amanhecer do dia é ocupado

52
A exemplo: só durante o tempo desse estudo, sem pretensão de análise e por casualidade, outros municípios
demostraram seu vínculo com medicinas naturais tradicionais, mesmo em nível comercial como em Soure, na Ilha
do Marajó, onde uma barraca de produtos está situada ao lado externo do mercado municipal. Percebe-se o uso da
população ainda em Pesqueiro e Salvaterra, ambos na Ilha do Marajó; no conjunto de ilhas em Abaetetuba, e na
comunidade de Fortalezinha, na Ilha de Maiandeua.
51

pelos mateiros – produtores e vendedores de ervas in natura para a venda “por atacado”, seja
para as erveiras da própria seção, seja para outras(os) erveiras(os) das outras feiras da cidade,
que apesar de menor quantidade e menos expressão também comercializam ervas e afins,
estando distribuídas em pontos mais distantes do centro histórico, como Mercado de São Braz,
Feira do Marco, a Feira da Pedreira, a Feira do Guamá e Complexo de Abastecimento do
Jurunas.

O uso de ervas, banhos, óleos e patuás é reiterado nos hábitos e tradições belenenses,
principalmente durante as festas juninas. Em Aruanda - Banho de Cheiro (1989) a jornalista
Eneida do Moraes registra em suas memórias a importância dos artigos:

(...) em minha terra, na longínqua e amada cidade de Santa Maria de


Belém do Pará, há uma prática extremamente bela e perfumada, que se
chama o banho de cheiro ou banho da felicidade. (...) raízes, madeiras
cheirosas da Amazônia que, raladas, esmagadas – verdes pela juventude
ou amarelas pela velhice – darão, depois de fervidas, um líquido
esverdeado, com estranho perfume de mata virgem. Perdoai se os
nomes dessas ervas parecerem selvagens aos vossos ouvidos habituados
aos caros, raros e belos perfumes franceses, cujos rótulos lembram
romances e poemas. Nossos aromas são, primitivos, agrestes, são frutos
da floresta e, com êles, naturalmente nossos avós índios também se
perfumavam. (Moraes 1989:69-70)

Pontuando os antigos vínculos festivos, onde o especial dia católico de São João se
caracteriza com a prática dos banhos-de-cheiro:

(...) nas vésperas de São João, a cidade amanhecia festiva, com a


correria de homens carregando à cabeça tabuleiros cheios de ervas da
felicidade. Seus pregões embalavam as mangueiras que arborizavam as
praças e ruas da Belém do meu tempo: – Cheiro cheiroso! (a pronúncia
local: chêro chêroso). Eram muitos, muitos; janelas e portas se abriam
em todas as casas. Quem deixava de comprar seu banho para aquela
noite? (...) São João ia chegar encontrando nossos corpos perfumados,
prontos nossos corações para a felicidade (Moraes 1989:71).

Além da venda por ambulantes, cita o Ver-o-Peso e as mulheres erveiras:

(...) estou a vê-la agora mesmo sentada num trecho do mercado, sôbre
o banquinho, tão cheirosa na sua roupa cerzida, muito limpa, muito
limpa. O cabelo em coque, e dentro dêle um ramo de jasmins bogaris.
Ah, os jasmins bogaris da minha terra (...) se muito usados, podem até
provocar vertigens; foi o que me contou, aconselhando cuidado, a preta
Marcolina. Mas quero falar é da outra, a do banquinho, e seus pés um
mundo de plantas, raízes, favas, ervas de vários feitios, cheiros, formas.
Chamava-se Sabá (...) contava-me estórias maravilhosas do mundo
52

vegetal, estórias que depois dela não mais encontrei em nenhum livro,
em nenhum pedaço de vida. Sabá era, como já disse, uma cabocla
paraense que vendia banhos de felicidade no mercado de Belém
(Moraes 1989:73-74)

A relação entre formas, comportamento e característica da planta/animal como


determinante para sua ação curativa e espiritual também é descrita:

Mulher precisa agarrar marido, namorado ou outro qualquer amor que


começa a ser infiel? É só tomar banho de carrapato. – Esfrega no corpo
dizendo três vezes seguidas: carrapato, assim como tu te prendes nas
árvores, faz com que fulano se agarre a mim (Moraes 1989:74)

Eneida, em sua recomposição de épocas antigas de São João, repercebe a tradição, sua
situação e ligação com a cidade e as questões da urbe:

Não posso assegurar que o mesmo quadro do passado se reproduza hoje


na cidade onde nasci. Ela mudou muito; é agora uma triste e
envelhecida cidade, arrasada pela miséria e maus governos. A primeira
vez que voltei a Belém, depois de quinze anos de ausência, procurei
Sabá. Morrera havia muito – disseram – e infelizmente não deixara a
receita de nenhuma erva que dê à gente de minha terra um pouco de
dinheiro.

O banho de cheiro ainda existe até hoje e é cultivado por muita gente
(...) pode ser comprado já pronto no mercado ou em casas que se
dedicam aos perfumes da Amazônia. Não resolve nenhum problema,
nem sequer traz esperanças, mas continua perfumando os corpos, nêles
deixando o cheiro de mata virgem. (...) São João abandonou minha
cidade e sua gente. Por quê? (Moraes 1989:76-77)

Muitos dos elementos citados por Eneida de Moraes são coerentes ao panorama
encontrado na cidade atual; em suas estimas e desencantos. O apreço ao aroma; a associação
mística da floresta; a influência indígena e negra; o entrelaçamento dos costumes; a estética das
erveiras; a oralidade; a modernidade e sua realidade desregulada; o uso em minúsculo de
“mercado”, intimidade que denota a ancestral centralidade do Ver-o-Peso perante outros locais
de comércio, pois para quê demarcar com Mercado Ver-o-Peso uma grandeza já óbvia...
Maiores ou menores indícios, esses marcadores se mostram perenes ao costume das ervas,
anotações de um cotidiano descrito na singularidade e afetividade local, repetidos e
recontextualizados.

A continuidade de uma prática comercial significante – ou seja, viva e não


plastificada/sintética, mercantilizada – por si só revela a vigência da cultura tradicional das
ervas e banhos nas existências, subjetividades e ritmo dos citadinos e a própria Belém, mesmo
53

com seus contornos contemporâneos. Trata-se de uma continuidade e dinâmica emocional


complexa, onde se utilizar de um banho-de-cheiro “chêroso”, um incenso depurativo ou um
óleo medicinal envolve vivenciar outros elementos encadeados: a história da cidade; os saberes
amazônicos; os costumes da família, da vizinhança; a realidade social nortista. Processos que
envolvem orgulho, identidade, nostalgia, memória e excitação.

A profunda familiaridade com a tradição da cultura das ervas, mesmo que fora do
consumo comercial, permite compreendê-la em equidade com outros elementos culturais
constituintes, a exemplo no ano de 2018, durante o cortejo do Auto do Círio. Esse evento, de
frequência anual desde 1993, surgiu com o núcleo de teatro da Universidade Federal do Pará e
está inserido como programa cultural paralelo ao Círio de Nazaré, ocorrendo suas apresentações
na sexta-feira antes dos dias da transladação, no sábado, e o Círio propriamente dito, no
domingo. Iniciado na Praça do Carmo, no bairro da Cidade Velha, percorre a rua Doutor Assis
até alcançar a Igreja da Sé, próxima ao Forte do Castelo, Igreja de Santo Alexandre, Casa das
Onze Janelas, instalando-se por fim na Praça D. Pedro II. Nesse referido ano, no momento que
o cortejo seguia em direção a Igreja da Sé, moradores de um sobrado na rua Doutor Assis53, em
sua varanda nos altos, borrifavam sobre os transeuntes que passavam, galões preenchidos de
banho-de-cheiro por meio de uma adaptação feita em uma lavadora de alta pressão VAP.

Tal situação marca um inter-relação entre fenômenos culturais basilares da sociedade


belenense. O Círio de Nazaré, maior procissão religiosa do país, patrimônio cultural imaterial
pelo IPHAN e patrimônio cultural da humanidade pela UNESCO54, é também o acontecimento
social de maior relevância para o calendário paraense, em destaque a cidade de Belém, reunindo
um contingente médio de 2 milhões de pessoas. Seu itinerário religioso coexiste a outras
manifestações paralelas, como a Festa da Chiquita, a Feira do Miriti, o almoço do círio, o arraial,
e o próprio Auto, esses de qualidades festivas, o lado “profano do Círio” onde a emoção e os
sentimentos tornam-se fatores de sociabilidades e agregação, o “que cimenta a vida social
paraense” (Frugoli e Bueno 2014:135).

Perceber novos usos festivos do banho-de-cheiro, principalmente em um contexto


onde categorias como identidade e afeto estão presentes, denota o patamar assegurado em que
as ervas e afins evocam na subjetividade citadina. “(...) há uma prática extremamente bela e

53
Uma das mais antigas da cidade, com um expressivo número de casarões portugueses, abrigando o Palacete
Pinho, importante centro cultural e artístico durante o ciclo da borracha.
54
Inscrito na Lista Representativa do Patrimônio Cultural da Humanidade no ano de 2013, durante a VIII sessão
do Comitê Intergovernamental para a Salvaguarda do Patrimônio Imaterial, realizada em Baku/Azerbaijão.
54

perfumada, que se chama o banho de cheiro ou banho da felicidade” (Moraes 1989:69, grifo
meu).

A prática continua ativa e relevante, associada ao manejo da modernidade e das


dinâmicas da urbe, como notado por Eneida de Morais, já em meados do século 20. Salvo o eu
poético da intelectual, percebe-se como as atualizações contemporâneas influem sobre o
comércio de ervas, onde as problemáticas citadinas de Belém atingem níveis desarticuladores
sobre as tradições, tão afetivas e locais, onde o destaque está nos banhos-de-cheiro e afins,
contrastando relações contraditórias do panorama moderno, a segurança da
sociobiodiversidade, das identidade e trajetórias de vida. Essas colocações são mais debatidas
nas próximas divisões, onde configuram-se problemáticas para a transmissão e sustentação do
saber tradicional em contexto citadino.

2.2 Os produtos: especialidades e relação com suas erveiras e erveiros

Os produtos são artigos variados envolvendo o manejo de insumos naturais da


localidade amazônica, podendo ainda reunir outras matérias-primas de regiões diferentes, em
uma rede de contatos com comerciantes e feirantes. Se dividem em três principais formatos:

 Produção manual: garrafadas, sinergia de óleos, banhos-de-cheiro, unguentos, patuás,


preparados de defumação, incensos, xampus;
 Produtos in natura: ervas, óleos, gorduras, cascas, sementes, rizomas, partes de
animais, seivas;
 Produção manufaturada em pequena escala: sabonetes, pomadas.

Os dois primeiros tipos prevalecem, sendo os únicos na maioria das barracas. O tipo
manufaturado em pequena escala responde a sabonetes e pomadas naturais que passaram por
algum processo de industrial; ainda naturais, possuem marcas de indústrias locais ou firmam-
se em curas populares amplamente reconhecidas como o caso do “sebo de carneiro” e “canela
de velho”, com propriedades hidratantes e anti-inflamatórias. Essa variedade está
principalmente nas barracas dos vendedores erveiros, em quantidade equiparável aos outros
tipos, como nos casos dos interlocutores Seu João e Roni Rocha. Algumas erveiras também
possuem esses artigos, principalmente aquelas da frontal direita da seção, mesma região do Seu
João e do Roni Rocha.
55

Os produtos artesanais são apontados como cargo chefe de venda, onde o manejo
agrega valor comercial, uma vez que envolve os saberes das(os) erveiras(os) produtoras(es)
sobre a mistura de compostos, qualidade do trabalho, qualidade da proveniência dos insumos,
amplitude de conhecimentos. Se dividem em dois grupos: os visados ao público turista, os de
comércio geral. Os primeiros se caracterizam pela padronização advinda de workshops
municipais, onde as etiquetas normatizadas contém os insumos reunidos em língua portuguesa
e muitas vezes em inglesa; o nome, telefone, contato virtual e número da barraca da(o)
erveira(o) em questão; explicações sobre seu fim (figura 11). Estão em embalagens menores,
mais bonitas, bem embaladas e lacradas (afim de facilitar o transporte); priorizam insumos e
misturas mais conhecidas como o óleo de andiroba (Carapa guianensis), o óleo de copaíba
(Copaifera langsdorffii), a buchinha-do-norte (Luffa operculata) e toda a sorte de dos banhos-
de-cheiro, as menores embalagens da seção, feitas de vidro ou plástico, em tamanho
aproximado de 10 centímetros.

Figura 11 Dados de contato no rótulo facilitam o retorno dos clientes


56

Esses produtos possuem um valor maior quando comparados com os produtos menos
visados, maiores e mais baratos; também são os mais propagandeados, em especial o óleo da
bota (Sotalia fluviatilis). Dentre esses, os banhos-de-cheiro ganham destaque simbólico, sendo
os mais caros, menores, mais visíveis e numerosos da seção, são o pilar estético do Setor e seu
imaginário cultural; importantes podem ser dados de presente conforme a simpatia entre
feirante e consumidor, ou como formas de “desconto” para comprar grandes.

Os produtos artesanalmente produzidos de comércio geral podem ou não ter rótulos, e


se os têm, não estão em língua inglesa (figuras 12 e 13), concentram-se em embalagens maiores
e estão menos visíveis na barraca se comparado aos do conjunto anterior. Também são vendidos
para os turistas, mas não apresentados no primeiro momento do contato.

Figura 12 Variedade de rótulos. Laura Vieira, 2020.


57

Figura 13 Variedade de rótulos. Autoria: Laura Vieira, 2020.


58

Alguns desses somente são acessíveis com extrema intimidade com a(o) erveira(o) em
questão, envolvem tabus sociais (figura 14) ou são possuem elementos proibidos de
comercialização.

Figura 14 Garrafada para "descer" a mesntruação atrasada. Restrita a pedidos particulares. Autoria: Laura Vieira, 2020.

Os produtos de produção manual possuem mais saberes agregados e a escolha da(o)


erveira(o) feirante produtora influi de maneira mais preponderante, onde quatro fatores se
tornam decisivos para a tal: o costume, ou seja, o clientismo, que pode vir da escolha familiar
geracional; a indicação, onde um freguês ou cliente satisfeito pode difundir a(o) erveira(o)
59

excepcional; o lugar, onde a localização da(o) erveira(o) influi sobre a quantidade de


abordagens com o público consumidor, fazendo com que haja uma atração mais rápida para si
e, por fim, a fama, fator com maior influência, conglomerando estratégias de abordagem,
apresentação, postura, decoração de barracas, exposição de clientes famosos, uso de nomes ou
apelidos parecidos aos das erveiras reconhecidas em meio midiático.

Os produtos in natura estão presentes em todas as barracas em maior ou menor grau.


Os líquidos são armazenados em garrafas, enquanto os outros podem estar amarrados em ramas
ou sacos. Apresentam-se de forma variada: frescos, secos, maturados (figura 15).

Figura 15 Mix de folhas para defumação próspera na Virada do Ano. Autoria: Laura Vieira, 2018

O erveiro Garcia gerencia uma barraca apenas de ervas e folhagens, sendo a única do
Setor desse tipo (figura 16). Apesar de trabalhar em outra barraca, essa continua próxima a de
sua mãe, antiga mateira; percebe-se como as ligações familiares são ativas na seção, se não
trabalhando em uma mesma barraca, a família possui uma expressão própria em um conjunto
60

de barracas, fortalecendo a representação da erveira como um pilar, considerando a sociação de


erveiras(os).

Figura 16 Barraca do erveiro Garcia, ervas in natura

As(os) erveiras(os), ainda que produtoras dos artigos, compram a maioria dos seus
insumos dos mateiros, interioranos que trazem a matéria-prima vendendo-as antes do raiar do
dia, como dito, em uma área à frente do Setor. Sua proveniência majoritária é: Barcarena, Ilha
das Onças, Abaetetuba, Boa Vista, Outeiro, Mosqueiro, Genipaubá. Ao contrário do comércio
na seção, onde a prevalência feminina é maior, esses vendedores são todos homens, mas se
posicionam em uma função próxima ao atravessador, que como mostrado por Josias Sales
(2014), atravessa o pescado dos pescadores interioranos para os feirantes e mercadistas
61

belenenses. Contudo, o mateiro adquire as ervas e afins ou de hortas próprias ou de familiares,


em destaque suas mães e avós. Assim, a produção dos artigos como resultado de um acúmulo
de saberes, técnicas e crenças, considerando seu meio natural de obtenção e meio de preparo e
uso, é marcado pela forte presença feminina. Existem aquelas(es) erveiras(os) feirantes que se
usam de insumos somente de sua própria horta, uma vez que daria mais propriedade sobre a
situação e qualidade da matéria-prima, além da autonomia em relação aos mateiros. Porém,
esses continuam sendo o principal canal de origem dos compostos naturais

Sejam os artesanais ou in natura – ou mesmo alguns dos manufaturados, como os


sabonetes de coco babaçu (Attalea speciosa); castanha-do-pará (Bertholletia excelsa); priprioca
(Cyperus articulatus), etc. – suas formulações e alquimias seguem conhecimentos perpassados
geracionalmente, como visto. Não obstante, percebe-se regularidades entre os saberes
tradicionais de medicina natural na região amazônica, onde a relação entre humano-natureza
pauta-se em equipolência, ou seja, elementos estão em orientação à outros: os seres humanos e
a biodiversidade tencionam qualidades e realidades semelhantes, quase como espelhadas e por
isso em causalidades reflexivas. Para produzir um artigo, depende-se da observação astuta da
realidade natural e seu pressuposto equipolente na situação humana. Assim, uma fórmula de
cura porta significações e substâncias próprias associadas aos seus compostos naturais, os quais
com suas características atuam nas necessidades relativas em questão. Plantas e ervas
acolhedoras, suaves e doces são usadas para os cheiros atrativos, como o “Agarradinho”;
aquelas mais densas e unidas adicionam aos seus compostos camadas de qualidades mais
enraizadas, passando essas características para os seus produtos, como o “Pega não me larga”;
para quando se intenta afastamentos, banimentos ou limpezas, servem aquelas mais agressivas,
pontiagudas, fedidas55.

Entretanto, muitos dos conhecimentos são comuns a população, esses sendo de


“domínio difuso”56, matriz à população paraense em geral, principalmente quando se referem
as finalidades medicinais e insumos mais comuns, como o óleo de andiroba (Carapa
guianensis) e o óleo de copaíba (Copaifera langsdorffii) para as torções e inflamações de

55
Essa relação pelo recorte sexual e erótico é discutida por Bruno (2019), onde se percebe que certos insumos são
priorizados em detrimento de outros para os fins mágicos, onde os elementos mais saudáveis promovem
relacionamentos também harmoniosos; aqueles compostos fracos ou que putrefazem são capazes de adoecer a
união, a potência sexual, etc.
56
“Domínio difuso” foi o termo empregado pelo Ministério da Justiça para os saberes e práticas tradicionais
presentes no Setor das Ervas devido a problemática entre as(os) erveiras(os) e a marca de cosméticos multinacional
Natura, como já citado. “Domínio difuso” concedeu a liberdade de uso da empresa sobre as informações, visto que
não se tratava de domínio próprio à comunidades tradicionais, como regula a Medida Provisória 2186-16/2001,
que protegeria as comunidades e seus saberes de exploração empresarial e científica.
62

garganta, onde massagens para o primeiro e um pedaço de algodão enrolado no dedo e


besuntado e esfregado ao mais fundo na parte interna dessa – causando pequenas memórias
dramáticas de infância por conta da ânsia, cheiro e gosto amargo – para o segundo, são
indicações comuns, inclusive tendo preparados desses comercializados por ambulantes no
transporte público. Esses conhecimentos medicinais mais comuns, e mesmo outros de ordem
espiritual como as partes da bota (Sotalia fluviatilis) para atração e poder sexual, são de amplo
conhecimento. As(os) erveiras(os) não são as únicas detentoras dos saberes, mas estão entre as
mais informadas e com os conhecimentos mais especializados dentre a população citadina –
mesmo que eventualmente questionadas em alguns de seus métodos por religiosos de matriz
africana, os quais possuem outras significações sobre o uso de insumos naturais.

Apesar de formas variadas do comércio de produtos naturais, aqueles do Setor das


Ervas no Ver-o-Peso se distinguem sobremaneira. Além da ampla biodiversidade encontrada,
os artigos comercializados possuem influência social por seu status, sua qualidade tradicional
e sua potência espiritual. O comércio envolve múltiplos fatores: o produto em si, a variedade
do seu insumo, o saber tradicional associado, as(os) erveiras(os) com seus conhecimentos, o
Ver-o-Peso como tradição (Hobsbawn 2008), os vínculos emocionais e subjetivos. Mesmo
próximo à Feira, na Rua Oriental do Mercado, existem lojas especializadas na venda de ervas,
grãos, raízes e resinas, com uma rica seleção e diversidade de tipos, das quais também são
indicadas para tratamentos medicinais, como exemplo a feitura de chás e banhos; contudo a
compra nessas lojas segue sentido contrário à da compra no Ver-o-Peso. Os produtos no Setor
são agregados de um valor no qual superam a finalidade fisiológica e sua característica de
medicina folk57 (Araújo 1959); eles dizem a respeito de um conceito no qual espiritualidade,
história, tradição, natureza, costume e identidade se amalgama em relevância cultural e ethos.
Sua carga mista é relevante para a diferenciação de outros lugares de venda de insumos; as
ervas e afins de herbários e casas de grãos responde a lógicas desassociadas da expressão
sociocultural, onde o destaque de suas propriedades químicas, as medições, pesagens,
indicações e formas de apresentação estão consoantes a um padrão onde produto não vincula
com seus produtores/vendedores, apartado de significado histórico-social e aproximados a
modos ocidentais de preparo58.

57
Tida como medicina rústica mista, de influência indígena, negra e portuguesa, reunindo técnicas, fórmulas,
ritualizações, remédios e modos próprios dos sujeitos de uma localidade para a cura e prevenção, podendo ser elas
do tipo mágico, religioso ou empírico (Araújo 1959).
58
Durante uma visita ao Setor das Ervas com uma amiga belenense que trazia “à tira colo” uma lista de ervas
apontadas para a sua sorte e proteção, segundo busca prévia que fez sobre o assunto na internet, lidou com a
dificuldade de encontrar todas as ervas do inventário prévio e, diante da sua hesitação às indicações que recebia
63

O valor dos produtos abrange níveis simbólicos e subjetivos, dependendo da


associação com a(o) erveira(o) em questão, por sua sapiência na produção, manejo, feitura e
utilização dos artigos – não se configurando artigos inertes, mas animados (Mauss 2003:200).
A(os) erveiras(os) são uma autoridade, criando fortes laços de intimidade e clientismo, mas não
se colocam como personas mágicas ou canais de poderes curativos, mas sujeitas conhecedoras
qualificadas e competentes. Durante todo o trabalho de campo, apenas uma erveira se colocou
como benzedeira e filha de santo, duas outras foram citadas indiretamente por duas
interlocutoras, porém desmoralizadas, uma vez que se trataria apenas de estratégia
mercadológica. O estudo de Iracema Costa e Daniela Cordovil (2017) discute a relação entre
erveiras(os) e benzedeiras nas feiras de Belém, demonstrando como são práticas desassociadas.

Sujeitas decisivas na qualidade e eficácia do produto, projetando sua relevância no


meio para a legitimação do que é vendido, as(os) erveiras(os) são ao mesmo tempo especialistas
e comerciantes; preocupadas com a qualidade dos artigos, com os resultados de seus produtos,
a organização de suas barracas, a boa apresentação para venda, a formação de uma rede de
clientes e a variedade dos artigos. Ao contrário ao descrito por Pedro Oro (1999) sobre o
comércio de produtos religiosos, a dubla lógica “para dentro do balcão” e “para fora do balcão”,
onde na primeira os produtos são associados a produção comercial e transações financeiras – o
olhar do comerciante –, e na segunda possuem valores e significados espirituais – o olhar dos
consumidores –, não é aplicável no Setor, visto que os saberes tradicionais, mesmo que para
aqueles artigos mais simples e sem pretensões curativas, como souvenires, advém de manejos
e noções sobre as qualidades e variedades das plantas respectivas59. Uma sobreposição do
conceito de produto comercial sobre produto curativo não procede, pois os saberes associados
são creditados independente do vetor econômico capitalista. Percebe-se essa realidade quando
processos de barganha ou descrença acontecem e se intensificam a ponto de criar conflito entre
feirante e interlocutor; tratar os artigos de forma profundamente monetizada ou jocosa torna-se
um insulto para a(o) erveira(o) feirante em questão, pois existe mais entre os produtos e as curas
produzidas do que pensa-se o frívolo comércio mercantil.

da erveira que nos ajudava em questão, essa nos indicou as lojas da Rua Oriental do Mercado, pois lá
encontraríamos o que era buscado. Mal-humorada, a erveira me segredou, em um momento de distração de minha
amiga, sua indignação com a “juventude” e a “internet”, que confiava em “baboseira” e desconsiderava aqueles
que sabiam do assunto. Nessa trouble situation (Gluckman, 1987) de colisão entre dois sistemas, erveira-idosa-
experiência e consumidora-jovem-internet, vislumbra-se o componente diferenciador entre o que são os produtos
do Setor e o que são ervas e outros insumos naturais: tradição, identidade e relevância histórico-cultural.
59
A exemplo os “cheiros do pará”, pequenas águas de cheiro de aproximadamente 10ml compostas por álcool,
raízes de priprioca e/ou patchoulli.
64

Os saberes, confluindo com seu traço representativo, geracional e memorialístico, são


os primeiros e principais componentes de valoração de um artigo, estando diretamente
associado a(o) sua(seu) erveira(o); desqualificar ou questionar o saber, tratar os produtos como
objetos comuns de feira é uma afronta para algo que não se mede pelo conhecimento de fora
nem por grandeza econômica exógena.

As(os) erveiras(os) não se colocam como benzedeiras(os) e ou canais de cura; a


potência curativa de seus produtos está acessível ao aprendizado comum. A distinção que surge
envolve procedência e acúmulo de saberes, canalizados pelas formas de atração e fidelidade do
público consumidor. Ainda assim, para muitas pessoas, as erveiras, e aqui destaca-se o uso do
gênero feminino, são vistas como feiticeiras, “macumbeiras” e “mandigueiras” – como intitula
a própria página virtual da prefeitura de Belém sobre o Setor das Ervas: “As mandigueiras” 60.
Sujeitas de poderes mágicos das quais seus produtos carregam suas forças e magias61.

A literatura clássica de Lévi-Strauss (2008) demonstra os três estágios necessários para


a crença mágica: a crença no feiticeiro que executa a magia, a crença daquele que demanda no
poder do feiticeiro e a confiança da comunidade no ato. Considerando essas perspectivas,
percebe-se que as erveiras são consideradas entes mágicas por suas estéticas, modos,
apresentações, ações e indicações sobre a maneira de uso dos produtos – ainda mais por aquelas
pessoas que esperam sujeitos mágicos, como a comunidade evangélica e o público turista. Por
fim, a imagética e discurso sobre a prática de banhos, associada à sua historiografia e origem
religiosa fortalece um panorama no qual as erveiras podem ser lidas como seres mágicos e seus
produtos feitiçarias.

A discussão sobre a origem, canalização e motivo da magia é de difícil percepção no


Setor, seja referente aos artigos ou ao papel da erveira62; não existe uma fala formal sobre os
poderes mágicos embutidos, nem uma relação religiosa oficial. As erveiras não se colocam
como benzedeiras, rezadeiras ou integrantes de alguma religião, sendo canais de benfeitorias
associadas a essas – mesmo sendo religiosas, majoritariamente possuindo ícones, estatuetas,
imagens e outros objetos relacionados a santos católicos e referências a umbanda e candomblé
em suas barracas. A religião pode ser um impedimento para o comércio. Com o crescimento de

60
Disponível em: < http://www.belem.pa.gov.br/ver-belem/detalhe.php?i=1&p=367>. Acesso em: Dez/19.
61
Friso essas colocações como discussões substâncias sobre gênero, misoginia e racismo, que podem ser
encontradas nos trabalhos de Silva (2010) e Kilomba (2019).
62
Os interlocutores masculinos, Seu João e Roni Rocha, declinam de forma integral influências místicas,
afirmando a potência natural das plantas e afins como razão de cura.
65

congregações evangélicas, situações de conflito aumentaram, com ataques e ofensas as erveiras


e seu ofício. Ainda que algumas confirmam possuir clientes e fregueses evangélicos.

Estruturas raciais e sexistas somam-se a ideia lévi-straussiana que aponta a


necessidade da crença no executor da magia como feiticeiro. A representação da imagem
feminina como figura mágicas pendula em dois arquétipos, a bruxa nefasta e a benzedeira
santificada, tratando do poder informal estatutário da mulher. Apoiado por meio simbólico e
hierarquias de gênero, as mulheres estão associadas à realidade interna da sociedade, ao
domínio dos corpos, da casa; enquanto isso, os homens possuem o domínio exterior social,
legitimado, porém exposto (Maluf 1992)63. O poder feminino se exprime de forma marginal,
por meio de figuras desestabilizadoras como feiticeiras, ou sustentadoras, como santas. Essa
configuração, somada ao racismo estrutural, onde da civilidade das práticas religiosas cristãs,
“medicalização das práticas espíritas” (Goldman 1983:24), coloca-se as pessoas de cor em
processos de marginalização social, permitem a geração de preconceitos, reducionismos e
ataques. Nessa situação as erveiras são o alvo principal, não os saberes ou o uso desses, visto
que continuam confluindo e coerentes na vida sociocultural belenense, pouco estigmatizados.

Como dito, apenas uma erveira se colocou como benzedeira, uma vez ao ler minha
mão, cuidando do meu peito aberto e me aconselhando, mas essa ação foi única e só aconteceu
depois que estava familiarizada pelas(os) erveiras(os) no ambiente. Se colocando como
católicas(os), todas as interlocutoras e interlocutores se afirmaram sabedores dos poderes da
floresta, apreendidos de forma parental, nas quais seus antepassados, negros ou indígenas, são
detentores originários, que lidavam com a cura e tratamento dos problemas em um período de
inexpressão ou difícil acesso a medicina ocidental-farmacológica.

Percebe-se como os produtos possuem facetas sociais, culturais, espirituais,


ambientais e econômicas. Sua presença infere relações entre indivíduos e ideologias variadas,
pensando Gilberto Velho (2013). Agir sobre os aspectos compositores dos artigos influi
diretamente sobre a vitalidade e validade dos saberes tradicionais associados.

63
Pensemos aqui na relação dos mateiros, como atravessadores para um lugar, e em suas familiares, como
produtoras de um lugar.
66

2.3 Citadinas em processos sociativos: diferença entre comunidades tradicionais e o


conjunto urbano de erveiras e erveiros

A cultura tradicional e popular baseia-se em noções como tradição e reconhecimento


cultural e social, relacionando normas e valores a partir de aspectos da transmissão oral ou
outras práticas, abrangendo língua, crenças e costumes, rituais, mitologias e produções como
artesanato, música, dança, entre outras expressões particulares (Moraes e Jaime 2017). O
contexto amazônico de populações tradicionais não indígenas, assim como essas, possui uma
intensa relação com o extrativismo aquático ou florestal e uma produção voltada a subsistência
familiar, com venda de excedentes.
As populações, acostumada a enfrentar, com seus próprios recursos,
enfermidades que às vezes desconheciam, criaram novas técnicas de
uso, descobrindo novas finalidades para as plantas que já conheciam, a
partir dos dados recém-incluídos no seu dia-a-dia. Os saberes
amazônicos, sistematizados em seus diversos matizes – indígenas e
caboclos, seringueiros, madeireiros, pescadores, colonos, garimpeiros,
balateiros, regatões etc. –, consolidaram-se em suas práticas,
destacando-se o uso dos ‘remédios do mato’ como um de seus traços
culturais mais marcantes (Santos, 2000:929)

Em geral, ribeirinhos convivem e se relacionam com as várzeas, rios e mata;


adquirindo um amplo leque de conhecimento sobre frutas, plantas medicinais, fibras, resinas e
tinturas a partir da observação e experimentação (Diegues et al. 2000), elementos e processos
naturais que estão diretamente ligados ao contexto do ambiente em que se situam. Tais
comunidades se conectam e convivem com a flora e fauna, com os ciclos lunares, cheias e
vazantes, sazonalidade.

No Brasil, a conceitualização de povos e comunidades tradicionais está apresentada


no Decreto n° 6.040/2007, artigo 3º, parágrafo I:

Povos e Comunidades Tradicionais: grupos culturalmente


diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas
próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e
recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social,
religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações
e práticas gerados e transmitidos pela tradição.

As/os erveiras(os) não podem sem compreendidas como uma população tradicional,
fato com as quais concordam64. Como discutido, o Ver-o-Peso, ainda com suas transformações

64
Contudo, a categorização de “povos tradicionais” ou “comunidades tradicionais” não é unanime na academia, o
que demonstra a variedade de configurações socioculturais e seus processos de reconhecimento, que não dizem
apenas as questões representativas como de direitos vinculados (Sousa e Pezzuti 2017).
67

nos fluxos urbanos, está fortemente associado com a realidade fluvial e ribeirinha, vinculando
a cidade urbana o interior65. Pensando de maneira direta, os mateiros são as figuras que angulam
a diferença entre ser erveira(o) e ser interiorano, pois esses são vistos como outra formação,
aquela que provém a matéria-prima. Como comentado, uma das erveiras dentre as mais
famosas, Dona Coló, era antiga mateira para outras erveiras do Setor, possuindo agora barracas
e criando uma linha geracional dentro da seção, todavia, sua origem com provedora e
interiorana, é muitas vezes posta como um fator de menor legitimidade na sua posição do Setor,
ainda que esta seja de proeminência inegável.

Ser erveira(o) é principalmente se firmar a partir de conhecimentos e lida com a venda


dos produtos de forma geracional ou então aprendendo por meio da amizade com alguém
erveiro anterior do Setor, como no caso do Seu João. É essa circunstância de difusão interna
para externa que creditaria lugar mais legitimo no Setor. Ter um vínculo ancestral, ainda que
não parental, com a seção produz uma posição social naquela esfera.

Já para o exterior, a maior fama, cuidado com a procedência e influência segura são
fatores que creditam a erveira, como demonstrado. Estar articulado com as tendências atuais de
consumo garante boa parte da posição no Setor perante o público, agindo diretamente na
quantidade de clientes, um processo que, agora, influência as relações internas. Como ambiente
sociativo (Simmel 2006), as(os) erveiras(os) apresentam maior coesão perante o público, ou
seja, frente aos sistemas exógenos (Gluckman 1987), porém seguem em arranjos e desarranjos
em seus subsistemas particulares.

Não se identificando uma comunidade, se percebem sujeitas(os) urbanas(os)


individuais em relações mais ou menos coletivas, reconhecendo, conquanto, as ligações e
ancestralidade dos conhecimentos teóricos e práticos para a coleta, feitura e uso de seus artigos.
Apesar de muitas(os) serem de provenientes de outros municípios menores, elas reiteram sua
categoria citadina pela descrição de suas vidas e rotinas, que quando não associadas ao grande
tempo que passam no Ver-o-Peso, são sempre descritas em âmbito urbano belenense: nos
bairros, no lazer nas praias de Mosqueiro, distrito de Belém; no dia-a-dia com seus filhos que
– quando não trabalhando em conjunto – estão empregados em pontos da cidade; no cuidado
básico com a segurança dos netos, esses cursando a Universidade Federal do Pará em Belém.

65
O mesmo acontece com as demais feiras associadas aos portos da cidade de Belém, com forte diálogo entre
interioranos e citadinos, fortalecimento formas tradicionais em ambiente urbano a partir dos feirantes, como é
discutido sob o olhar urbanista (Cañete; Silva; Cañete 2014:230)
68

Estar vivendo e ser da cidade é sempre destacado, mesmo não excluindo a origem antiga de
áreas interioranas ou familiares próximos que estão nessas. Ser erveira(o) no Ver-o-Peso é estar
na urbe e ser parte constituinte dela, apesar de suas figuras serem difundidas como místicas,
profundas e detentoras de saberes naturais, os quais seriam não urbanos, hegemônicos ou
comuns.

Como citadinas(os) posicionam-se integrantes dessa, se atentando aos problemas da


urbe e como afetam os saberes tradicionais que se relacionam. A segurança, a apropriação
indevida de conhecimentos, a banalização dos saberes, a diminuição progressiva de
interessados em aprender, a homogeneização pública e a coerção institucional são percebidas
cotidianamente, discutidas e avaliadas perante sua categoria de feirante do Ver-o-Peso. Quando
questionadas sobre os fatores mais agressivos para a continuidade do comércio, denotam a falta
de indivíduos que perdurem os conhecimentos, pois a modernização retira o interesse sobre o
cuidado com as ervas, por isso devem se organizar para cativar novos públicos. A problemática
da difusão é constante em panoramas que envolvem saberes e costumes tradicionais em
contextos onde a juventude está com maior contato aos elementos tecnológicos e modernos;
sobre o recorte do uso de ervas, Santos coloca:

O processo de valorização da medicina ocidental em detrimento dos


saberes tradicionais atinge em maior número os indivíduos mais jovens,
mas já perpassa, em larga medida, toda a sociedade. (2000:935)

Assim, a busca por novos públicos volta-se ao tipo turista como potencial canal de
difusão e mantimento dos saberes em relevância social. E as(os) erveiras(os), citadinas, são
capazes de transitar com suas estratégias por meio de um público variado. Gilberto Velho
percebe que dentro do ambiente urbano, com suas flexibilidades e variedade de indivíduos,
esses estão em contato com diferentes formações subjetivas de sujeitos múltiplos. Os
mediadores são aqueles capazes de comunicação entre grupos distintos, alterando fronteiras e
transitando com valores (Velho 2013:147), ou seja, agenciando os projetos, como discutido no
capítulo 3.

2.4 Percursos etnográficos: vivenciar o comércio no Setor das Ervas em relação com suas
formas e estratégias mercadológicas

As narrativas simbólicas que permeiam a significação exotizada dos produtos de cura


tradicional na cidade de Belém apoiam-se na somatória entre a tradicionalidade e representação
cultural invocada com o manejo da imagética que o Setor das Ervas fomenta na sensibilidade
69

subjetiva individual. Mercado, banhos, erveiras, práticas, modos e conhecimentos... Esses


elementos são associados em suas cargas estéticas, sensoriais e emocionais quando
presenciados. Pensemos a descrição de Eneida de Moraes (1989), já não mais existe vendedores
ambulantes de ervas nas ruas, ainda assim, continuam-se as erveiras com suas roupas
cuidadosamente escolhidas, seus penteados floridos, modos, unhas pintadas, orelhas, mãos e
pescoços reluzindo seus enfeites, presentes e marcando a seção. Agora, com barracas, as ervas
são melhores dispostas e organizadas aos olhos dos consumidores, há outras formas de conviver
e partilhar experiências. Como é a espacialidade do Setor das Ervas e qual sua relevância no
senso de lugar, senses of place? Quais são os seus recursos aproveitados pelos discursos
políticos afins do destaque da seção no contexto econômico priorizado no atual projeto
municipal para o Ver-o-Peso? Perceber o ambiente de trabalho e socialização das erveiras(os)
promove a compreensão da sensorialidade como categoria primária para a formação de
apreensões e significações sobre o saber tradicional e sua relevância urbana.

O Setor das Ervas, encontra-se na ponta sul da área varejista, envolto de outras seções,
como a de Temperos, a Legumes e a Animais. Está entre as duas edificações, o Solar da Beira
e o Mercado Ver-o-Peso (Mercado de Ferro/Mercado de Peixe) (Figura 17); em frente,
atravessando a rua, encontra-se o Mercado Municipal de Carne (Mercado Francisco Bolonha).
Assim, insere-se em uma área de grande afluxo de transeuntes – ao contrário do Setor de
Plantas, por exemplo, que comercializa produtos para jardinagem e está isolado da maior parte
do Complexo, próximo à Praça do Pescador, reunindo poucos transeuntes.
70

Figura 17 - Legendado pelo número 3, entre 1 e 2. Fonte: Lima, 2008

Observar como o espaço é ocupado – seja por suas coisas, pelas suas estruturas ou
sujeitos –, é um modo de apreensão possível para analisar os aspectos subjetivos presentes, uma
vez que os elementos citados fomentam as relações sociais e materiais desses. A intenção é
captar as sensações inferentes no ambiente a partir da percepção em meio sensorial
corporificado, “subjetividade não surge na mente ou na consciência, mas está no corpo” (Tilley
e Cameron-Daum 2017:6).

Essa abordagem baseia-se no princípio fenomenológico no qual o contato com o


exterior se dá a partir da acessibilidade do nosso corpo – sendo esse externo “revestido” de
propriedades nossas, fundindo o “espírito” e “corpo” (Merleau-Ponty, 2004:18). Assim, todas
as características dos elementos exteriores envolvidos podem ser expressas em uma lógica de
unidade com os sentidos, uma vez que se comportam em relação ao corpo humano e sua
subjetividade, de forma que esse, o corpo, também se apresente assim a elas.

Ao trabalhar o percurso e absorção do fenômeno sensorial pela subjetividade e


consciência humana previamente a uma relocação racional teorizada desses estímulos, a teoria
sensorial realça a necessidade da fisicalidade e corporificação, aproximando o mundo material
71

à uma relação ativa. Trata-se de pensar o externo não sem associação ou independente da
humanidade e nem produzido por tal, mas em interação com essa, possibilitando e valorizando
a compreensão da existência de ambos os pólos como ativos, numa perspectiva reflexiva. Não
separando o sujeito e o objeto, dissolve dualismos que promovem um rompimento sobre a
realidade, demonstrando que se algum corpo entra em contato com um estímulo material ou
imaterial, esse mesmo estímulo – que permite esse evento de contato – também se encontra
tocando o corpo e se afirmando como um sujeito ativo, ainda que não se trate de uma fusão
englobante dos corpos (Tilley 2014). É dessa interação sensorial primária, da percepção em
mão dupla relacionada a episódios terrenos, que se iniciam as análises fenomenológicas sobre
a estruturação da consciência, direcionando a compreensão sobre o Setor das Ervas e seus
fenômenos de maneira a tocar as subjetividades dos indivíduos envolvidos.

Considerando que vivenciar sua estruturação é essencial para experienciar à carga


sensorial que evoca, o Setor é apresentado a partir do percurso mais adotado por mim, ainda
que possa ser acessado de maneira multiforme e direcional. Aqui é colocado o caminho com
maior fluxo de inserção no Setor , ocorrendo por meio das seções do extremo norte do
Complexo: Setor de Animais, Embutidos, Farinhas, Temperos, Artesanato, Polpas,
Alimentação... Ou seja, paralelo à margem da Baía do Guajará sentido à Avenida Portugal, a
Pedra do Peixe e a Praça do Relógio.

Percorrer nesse rumo, “norte-sul”, é a maneira mais comum e simples de andar por
toda a área varejista. Esse direcionamento responde a logística de acesso do consumidor ao Ver-
o-Peso, uma vez que o trânsito da Av. Boulevard Castilho de França desce no sentido “norte-
sul” e a maioria dos sujeitos chegam pela malha do transporte público, ou mesmo pelos pontos
de transporte privativo como táxis, Uber e outros; esses últimos deixam os passageiros, em sua
maioria turistas, na área dos setores mais próximos a Estação das Docas, como o de
Industrializados, ou, eventualmente, o de Refeições. Esse sentido também é o adotado pelo
Projeto Roteiros Geo-Turísticos, percursos turísticos gratuitos promovidos por docentes e
discentes da UFPA pelos determinados pontos selecionados da cidade66.

66
“Organizado pelo Grupo de Pesquisa de Geografia do Turismo da Faculdade de Geografia e do Programa de
Pós-Graduação em Geografia (GeoTur) da UFPA, o Projeto Roteiros Geo-Turísticos busca promover caminhadas
a pé, gratuitas, no centro histórico de Belém, e abordar o patrimônio material e imaterial, cultural e ambiental da
cidade, por meio da apresentação da geografia, da produção do espaço, da história e da arquitetura da cidade. O
projeto já soma mais de dez roteiros, que visitam pontos turísticos e de grande valor histórico para a população
paraense, como Ver-o-Peso, Belle Époque, Campina, Reduto, Batista Campos, Umarizal, Estrada de Nazaré. Fora
do centro de Belém, em experiências coordenadas por professores colaboradores, o projeto também já foi realizado
nas cidades de Cametá, Altamira, Marabá, Vigia e Ponta de Pedras.” Disponível em: <<https://is.gd/yMgiUs>>.
Acesso: Jan/2020. O projeto Roteiros Geo-Turísticos foi um dos vencedores do prêmio nacional do IPHAN, 29º
72

Pontuo essas informações, pois, além do valor do conteúdo visando à compreensão


dos modos de experimentação possíveis do Setor, é relevante para entender a quebra de
percepção – e seus efeitos – que tive do Setor ao romper justamente com esse percurso que
majoritariamente fazia e como esse corte veio após minha aclimação ao Ver-o-Peso e a cidade.
Eu, já familiarizada, não via sentido em repetir as formas que caminhava antes, iniciadas no
meu período de reconhecimento espacial e feitas por um dos dois caminhos principais de
chegada de turistas, o ponto de Uber da Estação das Docas (o outro é o acesso pela Pedra do
Peixe, que por usa vez inicia em geral na Praça do Relógio). Com o conhecimento de outras
ruas do Comércio67, outros acessos ao Ver-o-Peso são experienciados: por meio de travessas,
de áreas sombreadas, caminhos mais rápidos, curtos ou seguros, a depender de quem me
acompanha, das minhas impressões e necessidades do momento. Expor as diversas quebras de
comportamento e suas consequentes novas percepções criaria muitos “linhas temporais”, dessa
forma, descrevo a compreensão espacial do Setor das Ervas a partir da primeira forma que me
relacionei, salvando, para a análise, as causas que me levaram as rupturas. Manter o “itinerário
original” também permite que seja exposto o modo mais comum de circulação, praticamente
definitivo no núcleo turista e majoritário na esfera de moradores, independente de frequência.

O Setor das Ervas, relativamente pequeno ao ser contrastado com os setores vizinhos
e sua fama, é formado por quatro fileiras paralelas de barracas, dispostas de maneira a formar
um corredor central e duas frontais laterais; contando com um total de 80 barracas. No esquema
abaixo, as aberturas das barracas estão representadas pela cor vermelha, o referido corredor
central ladeado por duas fileiras formadas das barracas de número 21 até 60; a frontal da
esquerda está configurada pelas barracas de 01 até 20 e a da direita, pela 61 até 80 (Figura 18).
O corredor central é formado apenas por erveiras(os), “fechado”, enquanto as duas frontais
laterais, da esquerda e direita, dão para a continuidade da feira. Diferente de outros setores,
quem formam apenas um ambiente integral, essa configuração cria divisões internas, que pela
soma do ambiente ao entorno, o caminho traçado para percurso e o conjunto de erveiras(os) e
seus conflitos internos respectivos, coloco como os três estágios do Setor.

Edição do Prêmio Rodrigo de Melo Franco de Andrade, na categoria projetos de iniciativas de excelência “em
promoção e gestão compartilhada do patrimônio cultural, envolvendo diversos campos da preservação e oriundos
do setor público, do setor privado e das comunidades.” Disponível em: <<
https://ww2.ufpa.br/imprensa/noticia.php?cod=12223>>.
67
Comércio é o nome dado para a área comercial do bairro da Campina, esse dando acesso ao Ver-o-Peso para
além do trânsito da Boulevard Castilhos de França.
73

Figura 18 Representação figurativa aérea da organização das barracas do Setor dar Ervas, situando a posição da Av.
Boulevard Castilhos de França e as margens da Baía do Guajará. Fonte: Laura Vieira, 2018

Visto o sentido “norte-sul” de fluxo já mencionado, é pela frontal direita alcanço o


Setor (figura 19). Nas primeiras barracas, a contar regressivamente do número 80, a proprietária
em questão é a Loura, a qual possui feirantes não erveiras, mas empregadas; essas são
encarregadas de atender os clientes que se aproximam, uma vez Loura nem sempre está presente
ou, como na maioria das vezes, se limita à sua primeira barraca. O uso de mais de uma barraca
por um mesmo proprietário – que pode deixar essas sobre os cuidados de outrem, sejam
familiares ou conhecidos – é fato comum e corriqueiro em todo o Ver-o-Peso (Santos e Leitão
2014). Essa relação formada pode acompanhar a difusão dos saberes vinculados, seja no manejo
do produto, seja no modo e abordagem de venda.
74

Figura 19 O início da frontal direita, barracas “da Loura”. Fonte: Laura Vieira, 2018

A localização e posicionamento dessas primeiras barracas cria uma visão privilegiada


da feira pelas vendedoras ali situadas, o que facilita o contato maior com o público freguês e
uma atração imediata desse, ao passo que, se obedecido a lógica “norte-sul”, é o primeiro
estímulo que o Setor provoca naqueles já transeuntes da feira. Absorvo de imediato esse
contato, pois à ação das vendedoras auxiliares, que aglomeradas nas primeiras barracas
emparelhadas, em captar minha atenção exprime como que um aviso sonoro a entrada no Setor.
Os vínculos afetivos dessas trazem à elas um modo próprio às suas abordagens, demonstrando
seu subsistema contrastado perante as(os) outras(os) erveiras(os) vizinhas(os), visto que
conforme caminha-se em direção pelo resto extremidade dessa frontal, reúnem-se erveiras(os)
autônomas(os), proprietárias(os) de suas barracas. Agindo em uníssono ao sinal de proximidade
de um potencial cliente, sua localização e coletividade permite garantir um primeiro olhar para
o comércio da Loura.

Dentro agora, de um outro subsistema, o subsistema da frontal direita, a Loura é


percebida como a principal representante daquele conjunto de erveiras(os), seja suas
vendedoras, seja das(os) autônomas(os), sendo a pessoa indicada para entrar em contato na
primeira fase da pesquisa. Essa, no entanto, não apresentou interesse e aparentou desconforto.
O contato direto como pesquisadora por vezes apresentava um empecilho para o comércio, visto
de demandava atenção das feirantes, atrapalhando o fluxo. Conquanto, na frontal direita conheci
dois interlocutores, Roni Rocha e Seu João, onde esse último se tornou, talvez, o principal
feirante do Setor a contribuir com a pesquisa. Tanto Roni como Seu João afirmavam sua
emancipação dentro da seção e ao subsistema da frontal direita, apontando percepções outras
75

que as discutidas pela Associação Ver-as-Ervas68. Marca-se o panorama sociativo vigente na


seção, onde divisões e subdivisões coexistem e conflitos internos são constante a agremiações
ao externo.

Percorrer a frente da direita traz uma percepção mais comercial e objetiva das barracas.
A sensação de continuum advindas do comércio dos outros setores, mantem, como inércia, a
mesma impressão para frontal direita. Ou seja, como é o primeiro contato visual com o Setor
das Ervas e por se manter “aberto”, voltado a uma sequência longa de outros setores, transpassa
entrelaçamento com o restante do Complexo, quase como uma posição de fronteira, onde a
“identidade” do Setor das Ervas ainda não está bem estruturada. Essa fronteira, o primeiro
contato, também gera uma sensação de “novidade”, é o começo de algo, seus primeiros
ordenamentos incertos mesclados com outras seções69.

Não é o Setor ou seus elementos que possuem intrinsecamente em si as sensações das


quais se absorve; ao se deparar com a frontal direita, o conjunto de mulheres e suas
cumplicidades externadas nas suas maneiras de interpelação não dispõem, inerentemente, de
uma impressão efervescente e extrovertida que chega até um sujeito sensível. Essas percepções
advêm das propriedades neurológicas em respostas aos fenômenos externos presentes e
manifestados, fundindo-se com construções teóricas nas quais não apenas o ambiente físico é
influente, mas outros aspectos da experiência, provindos da nossa individualidade e
singularidade (Pellini 2012). São ações complexas que dependem das inúmeras maneiras que o
experimentador, eu, Laura, as vivências, considerando ainda os seus espectros de aculturação
vinculados, os ângulos temporais, espaciais e a canalização pela memória. É com base nessas
sequências e recortes diferentes das experiências que se molda uma percepção imediata do
exterior e por ela pode-se construir uma realidade, que, assim como ela integra os sujeitos
“absorventes”, esses a integram, uma vez que os objetos não são apenas passivos, mas também
agentes ativos da experiência (Tilley 2014:42).

68
As contribuições de Seu João foram substanciais para entender as relações coercitivas do poder público perante
o comércio do Setor e do Ver-o-Peso. As categorias analíticas como turismo, mercantilização e revitalização foram
nossos principais pontos de discussões, enveredando para problemáticas políticas da cidade.
69
No começo de 2019 e ainda agora no começo de 2020, o Solar da Beira, edifício vizinho ao Setor que se volta
para sua frontal direita, passa por trabalho arqueológico e reforma. Uma barreira de metal o circunda, diminuindo
o campo visual com as erveiras e vendedoras de Loura. Com o sombreamento criado, pessoas se sentam em
banquinhos enquanto descansam as costas nas chapas. A circulação está apertada, sujeira se acumula e é difícil até
mesmo o acesso para outros setores, uma vez que a barreira do Solar é grande e atinge entroncamentos.
Pessoalmente, parei de passar ali, consequentemente vejo menos o Seu João e o Roni, interlocutores que criei
amizade e sempre estavam no meu “itinerário” para batermos um papo quando ia fazer a feira. Pontuo tal situação
como mais um exemplo da influência sensorial causada pela cultura material presentificada.
76

O que acontece é uma seleção das manifestações sensórias pelos estados neurais e uma
dependência entre tais, mais as habilidades sensório-motoras, mais os próprios estímulos
externos em seus conteúdos e aspectos temporais múltiplos e mais nossas subjetividades
prévias. O resultado dessa somatória avia para a compreensão que toda a percepção passa pelo
sujeito, esse sendo um filtro da realidade, do fenômeno “total”. Nesse ponto, minha conduta
sujeito torna-se relevante, ou seja, aqui, as relações interacionais, narrativas e discursivas que
tenho sobre o Setor, pois ocorre uma interpretação da realidade e não a realidade em si (Pellini
2012), fazendo com que essa seja múltipla e responda a formações subjetivas próprias,
partilháveis ou não. Nesse ponto, as narrativas simbólicas propagandeadas com o
direcionamento do poder público associam-se as impressões corporificadas.

Ainda que uma análise sensorial possa corresponder a impressões comuns e mais
gerais, é a forma particular de uma sensibilidade que se destaca. Aqui me preocupo sobre o
número de análises que se movimentam por um canal subjetivo intrínseco, carregando o “olhar”
do indivíduo, do autor – eu em questão –, que o perpassa ao texto durante o processo de escrita.
É então que se ressalta a posição específica que eu ocupo como sujeito observador-autor sobre
a percepção e leitura que produz e como essa, por sua vez, pode ser prontamente contestável
em sua particularidade relativa70. O movimento é uma maneira do corpo definir e redefinir. Ao
se movimentar, ocorre um giro sobre as manifestações, causando novas reinterpretações dessas,
ou seja, a ideia de que os lugares se formam pela ação do deslocamento indica não apenas que
os sentidos são absorvidos enquanto experienciamos, mas também transformados conforme o
movimento, circunstância também relevante (Ingold 2000).

Atravessado o portal frontal da direita, continua-se para o corredor central (figura 20


e 21), onde suas laterais são fileiras compostas por barracas ladeadas. É o principal responsável
pela “aura” difundida socialmente e midiaticamente do Setor das Ervas, abrigando suas duas
personalidades mais conhecidas, Beth Cherosinha e Dona Coló.

70
Se a fenomenologia trata em primeira instância da percepção da realidade a partir da corporificação – o corpo
absorvendo os estímulos exteriores, anteriormente as abstrações e formulações que se seguem – e a noção da
existência do externo e do interno pessoal dependem desse entrelace e absorção das sensorialidades, é tido que os
estímulos sensoriais não são estáticos, assim como as sensações que causam; esse corpo que experiencia também
é definido e redefinido, ou como já colocado, agentes ativos (Tilley 2014).
77

Figura 20 Por dentro do corredor central. Fonte: Laura Vieira, 2018

As duas fileiras estão arranjadas de maneira a formar como que uma abóboda. Essa
configuração cria uma sensação de aconchego, atração e centralidade que também se aplica em
uma reunião mais expressiva do público. Influindo como uma artéria vital do Setor é ali que o
fluxo de pessoas se acumula em momentos mais agitados, é também onde os passantes seguem
com um ritmo mais lento, os turistas percorrendo hesitantes, pulando de barraca aqui e acolá.
78

Figura 21 O corredor central e seu aspecto aglomerado. Fonte: Autora, 2018

Tilley (2014) aponta – por meio da teoria gestáltica – a abrangência e ligação de vários
planos sensórios, permitindo analisar contiguidade dos corpos envolvidos. Desconstruindo a
percepção usual dos planos visuais, olfativos, táteis e outros como sobrepostos ou apartados
entre si e, a partir para a noção de “tema” e “horizonte” e como esses se reafirmam as existências
concomitantemente, fica elucidado o caráter sinestésico da discussão sensorial compreendendo
o enaltecimento de determinado “tema” sem desarticulá-lo com o “horizonte”, o qual não só
não é menosprezado como também é essencial para a afirmação desse próprio “tema”. Situação
de grande maleabilidade, ocorrendo a transposição “tema-horizonte”, “horizonte-tema” de
acordo com a perspectiva envolvida (Tilley 2014). Assim, a experiência sensorial assenta-se
também nas transposições que se faz de um domínio sensorial a outro – sem desmembrá-los e
hierarquizá-los segundo um pensamento analítico, mas pensando um todo com diferentes
planos que se interagem em continuidade (Figuras 22 e 23), findando com a noção de “corpo
79

sujeito” independente ou de um si individual, pois apesar das distinções, não ocorre uma
separação, mesmo envolvendo elementos não sencientes na equação.

Figura 22 O jogo “tema-horizonte”: aspecto abóboda, céu como fundo, sons, velocidades, cores e cheiros. Fonte: Laura
Vieira, 2018

Nessa consideração, relacionando os elementos do Setor apenas com o espaço físico


do Complexo; aqui, no corredor central, percebe-se a estrutura da seção fundindo-se em um
plano de fundo que é a própria cobertura do Ver-o-Peso, a criar essa “abóboda”. O jogo de
tema-horizonte, pela posição do meu corpo, aprofunda e encurvando a minha visão. Essa
sensação curva é particular dessa área do Setor, mas também do próprio em si. Enquanto outros
aparentam um arranjo aberto, horizontal (ou mesmo fechado, mesmo entulhado, mas ainda sim
quadrado e estendido), o corredor central sua configuração possui algo de forma circular e é a
partir desse aspecto que surge o clima de se adentrar em uma redoma quimérica, que ainda será
reforçado pelos “temas” outros. Essa disposição, que criar uma ambientação que se conecta e
se reforça com os demais aspectos e características do conteúdo do Setor, é contrastante à
grande maioria dos outros departamentos da feira, principalmente aqueles que se relacionam
com o comércio de produtos alimentícios, como embutidos; farinhas; polpas; maniva; frutas e
verduras, priorizando aspectos sanitários mais pertinentes de armazenamento como ventilação;
altura e parapeitos de expositores; bancadas para processos de corte, pesagem, embrulho e
alimentação... Todos esses configurando um plano horizontal, no qual a visão panorâmica
80

predomina. Aqueles outros setores que fogem dessa segunda possibilidade, também se referem
a produtos não alimentícios, assim como no Setor das Ervas. Estão entre eles o de artesanato,
de produtos industrializados, de tabaco, os quais mesmo não possuindo o arqueamento
representativo da área de ervas, ainda partilham de aspectos de ordenação e estrutura.

Figura 23 Pela abertura se vê o Solar da Beira como “horizonte”. Fonte: Laura Vieira, 2018

Nesse corredor, as aberturas em partes da cobertura amarelada permite que fachos de


luz entrem e deixem o ambiente central com maior saturação dourada, respingando essa luz no
próprio material do toldo de maneira com que esse crie uma ambientação nebulosa que na lógica
“tema-horizonte” se associa com os aromas de ervas fazendo com que os cheiros se fundam à
iluminação dourada-turva (figura 24) formando uma sinestesia que sofre pungências ao
transportar o olhar para o colorido da decoração e dos produtos das barracas, assim como as
próprias erveiras e erveiros, em suas falas e articulações; um colorido que se reforça pelo
81

avivamento dado pelos planos ondulados dos recortes do tecido no babado das saias vestidas,
da dobra das toalhas, dos panos.

Figura 24 Compras à luz solar. Fonte: Laura Vieira, 2018

O corredor do centro abriga o maior subsistema de erveiras(os), com um grau alto de


competição. Pelas mesmas razões os laços também são mais comuns, porém flutuantes. As
erveiras Beth Cheirosinha e Dona Coló são apontadas como as principais personalidades
pelas(os) outras(os) erveiras(os), mas também pela mídia, tendo as suas figuras como principais
não só do Setor como de todo o Complexo. Nesse corredor também se encontra a Izabel,
interlocutora menos ativa a qual se coloca como benzedeira. A concentração de fregueses incide
nas relações de concorrência e estratégias de venda.

Já na frontal esquerda o fenômeno sinestésico é menos denso. Na verdade, essa frente é


marcantemente distinta se comparada com as duas anteriores. Por se situar contrário ao fluxo
“norte-sul”, em geral recebe menos olhares, aparentando inclusive ser menos atrativa. Nesse
momento se nota a qualidade reflexiva entre corpo e elemento sensorial: como o andar, olhar e
sentir do indivíduo não apenas é “tocado”, sendo estimulado, mas também “toca” e estimula a
“presença” do objeto, em um sentido de unidade e relação de via dupla:
82

Objetos são um resultado secundário do pensamento. Isso não


significa que esses objetos sejam imateriais ou puramente um
produto da mente. Em vez disso, os objetos fazem parte do mesmo
mundo social e material em que vivemos. Nós os “produzimos” ou
“os reconhecemos” através da reflexão sobre esse mundo e o
processo é indeterminado na medida em que nunca podemos sentir
o mundo inteiro a partir da localização determinada de nossos
corpos. Nós existimos no mundo e nos relacionamos com ele de um
ponto de vista – a configuração de nossos corpos. Assim, a
percepção começa no corpo material e subjetivo “pré-objetivo” e
termina nos objetos que o corpo percebe em relação a ele (Tilley e
Cameron Daum 2017:7).

Por tal razão, raras vezes percebi a frontal esquerda de outra forma, não que não tenha
ocorrido, principalmente quando comecei a alterar minhas rotas e me “esquecer” da feira em
sua função como “feira”, mas passei a também a vivê-la como local de passagem – o que
invariavelmente estava associado a rotas difusas e diversas.

Contudo, sendo a margem oposta à frontal direita, tem também opostas suas evocações
em consideração àquela. Não estando espacialmente arranjada de maneira a ser, em geral, o
primeiro contato com o público já em percurso interno do Complexo, igualmente não é o
segundo, uma vez que o corredor central ocupa essa posição – ou mesmo o primeiro lugar de
contato, por pensar-se como medular. A frente da direita aparenta ser a menos expressiva na
disposição do Setor por estar menos visível e mais exígua em sua dinâmica de percurso que os
demais ambientes (figura 25). Tal configuração, se o corredor da direita era a fronteira de algo
que surgiria novo, faz da frente da esquerda uma fronteira de algo que finda, o outono do Setor.
83

Figura 25 Frontal esquerda. Fonte: Laura Vieira, 2018.

Nessa frontal, outra erveira se destaca, a Dona Miraci. A segunda interlocutora mais
ativa, Miraci assemelha-se ao Seu João, demarcando autonomia perante outros grupos.
Contudo, ela também se aproxima a Loura, Dona Beth e Dona Coló, uma vez que amplamente
reconhecida por fregueses variados. Sua diferença entre essas outras erveiras refere-se as suas
características menos conflitivas e competitivas, elementos que afirma problemáticos para o
Setor e mesmo a continuidade geracional da sua linhagem no comércio de ervas.

Reforçando o caráter ímpar que a questão temporal, espacial e subjetiva da minha


presença imprime, são admitidos esses três ambientes como três maiores configurações
sensoriais que determinam o caminhar no Setor, criando panoramas mais ou menos atrativos
para cada indivíduo com seus intentos respectivos. Compreendo essas três partes
principalmente como “horizontes” em relação aos seus diferentes “temas”, não se esquecendo
da flutuabilidade desse e o próprio Complexo como um “horizonte maior”. A tríade de
configurações apresentadas configuram distinções no Setor que reverberam em suas
84

apreensões, sejam essas marcadas pelo maior ou menor expressão, modos de interação entre as
vendedoras e vendedores, público frequentador, turista, ou ocasional; maneiras de se conceber
o Setor – como paisagem – segundo os vínculos materiais e as relações sociais que se cria,
considerando memórias e afetividades, sejam subjetivas, temporais ou sensoriais. Também
asseguram conflitos, mais intensos em determinados ambientes, com concorrência mais
explícita entre aquelas de mesma área.

As barracas são os maiores elementos que contribuem para a estruturação do Setor,


somando artigos e equipamentos. É comum a posse de mais de uma barraca por erveira, o que
possibilita o trabalho em equipe ou família, além de concentrar uma maior quantidade de
produtos expostos, inclusive os dividindo em seções, como medicinais, produtos para fins
espirituais e in natura, como ervas, folhagens, raízes e cascas (figura 26, 27, 28).

Figura 26 Barracas de medicinais da Miraci. Fonte: Laura Vieira, 2018.


85

Figura 27 Barracas de místicos de Miraci. Fonte: Laura Vieira, 2018.

Figura 28 Barraca de insumos naturais. Fonte: Laura Vieira, 2018.


86

A forma de ordenação íntima das barracas, organizadas e estilizadas pelas(os)


erveiras(os) também influem na sensorialidade do Setor, homogeneizando-o esteticamente à
primeira vista, mas detalhando-o conforme se percebe a variedade de elementos sensíveis,
representantes das singularidades dos proprietários, produtores e suas formas de apropriação do
espaço – considerando o intuito mercantil da prática comercial –. As rotinas de montagem e
desmontagem das barracas, ações diárias das vendedoras e vendedores, seguem seus próprios
modelos, horários e espaços. Os interiores das barracas, quando não preenchidos por prateleiras
e nichos, são em geral mais escuros e de pouca expressão, escondidos pelos produtos que saltam
para fora das estruturas da barraca. As(os) erveiras(os) ficam em frente de suas barracas, com
contato direto com seu público e maior conforto para cuidar de preparos e arrumações71.

Além da estética e funcionalidade, a preocupação com a higiene é outro dos maiores


pontos comentados no que se refere a arrumação, visto que também ativa os processos de
atração de consumidores. A ideia de higiene está diretamente associada a qualidade dos artigos,
sejam esses artesanais ou manufaturados. Para os erveiros interlocutores, a decoração não é
essencial, sendo que suas propriedades cativantes podem em suas barracas por meio da
ordenação regular, cuidadosa e detalhada, o que transparecerá a segurança dos artigos. Os
feirantes homens possuem maior venda de produtos manufaturados, se comparado com o resto
das erveiras; suas garrafadas também envolvem misturas mais básicas, com insumos mais
gerais, tendo fórmulas menos complexas, por exemplo o óleo de andiroba (Carapa guianensis),
o óleo de copaíba (Copaifera langsdorffii) e os banhos-de-cheiro de 10 mililitros.

Percebe-se que as erveiras possuem uma maior interação e atividade nas formulações
dos produtos e essa carga pessoalizada, da interação entre erveira e saberes, se transparece
também na estética pessoal e ornamental das barracas; enquanto isso, os erveiros investem
menos em decoração, assim como em processos criativos que associam-se com seus
conhecimentos pessoais, mas valorizam mais os discursos sobre uma aspecto higiênico e
organizado, sendo um dos poucos feirantes a ter uma produção residencial ou ações de coleta –
como em viagens – quase completa de todos os insumos por eles utilizados, alegando assim

71
Aproximados das barracas, voltam-se para os consumidores, abrindo caminho para suas passagens, ordenação
que amplia o campo de visão das erveiras e erveiros – como me ocorreu quando me sentei em um dos banquinhos,
uma vez que a Beth me colocou de molho enquanto atendia uma cliente; surpresa com o deslocamento inesperado,
me admirei com o resultado da mudança de perspectiva: uma transfiguração abrupta do setor e de como enxergar
aqueles que ali transitavam. Tal situação reforça a noção da potência das perspectivas e dos movimentos na
apreensão dos sensíveis; conhecer uma visão mais ampla do Setor, a partir de uma aproximação com os elementos
permite compreender as organizações e sistemas sociais, formas de trabalho e maneiras (Zarankin et al 2011). De
repente, aquela abóboda hospitaleira que sempre me foi o corredor central se transformou um horizontal campo.
87

uma melhor qualidade por estarem a par de praticamente toda a origem das matérias-primas
(figuras 29 e 30). A organização segundo os moldes das(os) erveiras(os), seja por motivo de
funcionalidade, beleza ou qualidade, é percebido como basiliar para a fortuna do comércio,
como coloca Miraci: “Se organizado, Deus abençoa”72.

Figura 29 Barraca do Seu João Alexandre, que trabalha há 32 anos no setor. Fonte: Laura Vieira, 2018.

72
Entrevista aberta gravada em Jun./2018.
88

Figura 30 A barraca de Roni, nº 75. Fonte: Laura Vieira, 2018.

A decoração conflui tanto aspectos estéticos como funcionais para o trabalho na seção.
As formas de exposição dos produtos priorizam o olhar do consumidor, mas também a
facilidade de acesso, áreas de sombra ou mais arejadas para os insumos in natura como vasos
e ramas de ervas (figura 31). De maneira particular e reativa à cada erveira(o), deixar os artigos
vistosos, cheirosos, verdes, coloridos, separados por tipos é uma forma de otimizar do espaço
das barracas, mas também encantar os consumidores, que podem entrar em contato com os
artigos e seus estímulos sensórios.
89

Figura 31 Barracas da Dona Coló. Fonte: Laura Vieira, 2018.

Enfeitar as barracas é uma das centrais ações para o atendimento do público, seja com
fotos tiradas em conjunto com pessoas famosas ou em eventos os quais participou, símbolos
religiosos, estatuetas, toalhas, fitilhos... Os arranjos mudam constantemente, conforme seu
estoque de produtos se renova e demanda de outras formas de organização, como o uso de um
possível cesto ou caixinha (figura 32). Renovar e inovar na apresentação torna-se uma forma
90

de manter o interesse e conquista de consumidores, mesmo aquelas já rotineiros; além do mais,


é uma maneira de mostrar a vitalidade de seus comércios perante outras(os) feirantes.

Assim como toda a Feira, o Setor também segue um ritmo paralelo externo no que se
referem alguns modos de organização e decoração. Percebe-se, em conjunto com sazonalidades,
marcos relevantes socialmente, como datas festivas e períodos comemorativos ou pontuais,
como a Copa do Mundo de Futebol de 2018, evento que promoveu o embelezamento de Belém
por parte da população com bandeiras e pinturas representando o Brasil e a seleção brasileira73.
Com o advento do tal campeonato esportivo, o Setor das Ervas, além da área de bares do Setor
de Alimentação74, enfeitou suas estruturas coletivas, decorando particularmente também
algumas de suas barracas, principalmente aquelas mais visadas ao público turístico (figura 24).

Figura 32 Bandeirinhas do Brasil. Fonte: Laura Vieira, 2018.

Aos poucos, os itens decorativos particulares, como a toalha presente na mesa externa
da Dona Coló, foram sendo retirados ou substituídos por outros itens de outras sazonalidades,

73
Mas também os e os Círios de Nazaré de 2018 e 2019.
74
A qual por si só também possuiu complexibilidades referente à sua especificidade no Ver-o-Peso, por sua
característica recreativa.
91

como os tradicionais cartazes anuais do Círio de Nazaré – ainda que as bandeirinhas e fitilhos
de motivos brasileiros pendurados nas tendas se mantiveram mesmo após o fim da Copa (figura
33):

“É pra fazer o gosto, na Copa enfeita uma coisinha aqui e ali, bota a
fita, enfeita um pouco... Fica bonito também pra foto, né?” Dona Coló.
– Jun/2018

“Não, não tira (fitilhos), deixa... Fica mais bonito, da mais alegria paro
lugar” E. – Jun/2018

Figura 33 Cartaz do Círio de Nazaré de 2018 na frontal direita. Fonte: Laura Vieira, 2018.

Essas configurações em temporalidades excepcionais produzem experiências outras,


principalmente ao público turístico ou muito casual; assim como expressa a vivacidade e o
92

pulsar da feira, que tão familiar e “doméstica” age de formar a marcar os ritmos e ciclos íntimos
dos feirantes e frequentadores constantes.

Pensando “estética” em seu caráter etimológico, aisthesis, podemos compreendê-la


associada à sensorialidade, uma vez que pressupõe a vivência do ser humano com o mundo de
forma integrada, tendo o seu oposto, anestesia, a noção de perda das sensações, dos sentidos
(Kakumoto 2005). Assim, a relação da estética no Setor vai para além do embelezamento, mas
a capacidade de gerar estímulos mais, inserindo sensações. Tal configuração se expressa no
Setor com o cuidado e preocupação com os materiais e a forma que serão absorvidos, pois com
a capacidade de direcionar determinas impressões amplia-se a possibilidade de valorização dos
produtos e da compra. Esse panorama permite avaliar, a partir do uso, quais são os modelos
sensoriais priorizados pelas erveiras e erveiros, como esses estão interagindo com o meio
externo – consumidores variados – e qual aspecto se relacionam cognitivamente (Pink 2008),
com os próprios elementos naturais e práticas tradicionais.

A qualidade estimuladora do Setor está presente em muitos elementos: os ruídos


plásticos das embalagens e embrulhos, a temperatura vítrea dos frascos, a texturização e odor
das ervas expostas de variadas maneiras, a vibração ao se romper um desses das cordinhas que
os prendem pendurados, o tráfego ululante do público visitante... A mostra é que o Setor das
Ervas é uma fonte copiosa de sensorialidade, pois, além das impressões que provocam-se pela
ordenação das barracas, seus elementos e configurações estéticas aprofundam a experiência,
ampliando outras formas de apreensão sensorial que não somente o sentido da visão, mais
valorizado em um contexto de racionalização ocidental (Johnson 2012).

O Setor influi uma carga subjetiva própria, mas intensamente vincula a uma poética
amazônica, construto tanto orgânico como de desenvolvimento parcialmente artificial e de
relativismo externo, pois suas qualidades identificatórias dependem, em alguns níveis, de um
contraste com algo outro que não si mesmo. O Setor em sua imagética se assenta na consciência
de sua singularidade, que, com perceberemos, é reforçada a partir da oposição com outros
panoramas. Dessa maneira, atenta-se quanto aos direcionamentos que tem as repercussões
identitárias dessa configuração e seus efeitos mercantis e culturais.

Presenciar o Setor, seja como consumidor, visitante ou estudiosa, é a possiblidade de


perceber os objetos como elementos não neutros, capazes de evocar condutas dos sujeitos com
o meio. Os corpos criam uma dinâmica com o espaço, sejam na formação das barracas ou nos
93

produtos, gestos, práticas e posicionamentos dos comerciantes e frequentadores, que


engendram a forma de paisagem viva:

Paisagem é um diálogo que o homem estabelece com mundo externo


por meio de uma linguagem simbólica. Nessa conversa, o homem
percebe o mundo em constante construção. Não existem paisagens que
não sejam mediadas pelo entendimento que o observador tem do seu
mundo (Pellini 2012:22)

Entender a espacialidade direta da seção permite ao mesmo tempo a associação das


atividades de reprodução social ali presentes e os processos de formação da sua identidade
cultural, reverberando na singularização no local (Alencar 2008). Tratando o Setor das Ervas
como um lugar canalizado pelas assimilações dos estímulos sensórios do ambiente pelos
indivíduos em interação, os tratos sociais aqui apresentados envolvem o uso de meios
perceptivos a partir da corporificação respaldada pelas subjetivas prévias, considerando os
aspectos emocionais particulares e inerentes. Essas considerações permitem a disposição do
setor em um panorama paisagístico, no qual o entorno é apropriado socialmente e manejado
(Pellini 2012).

Ter em mente o Setor das Ervas como uma paisagem contextualizada pelas interações
sociais é basiliar para uma análise sensorial apoiada na teoria gestáltica de “tema-horizonte”
(Tilley 2014), da qual as absorções advindas da espacialidade, elementos e atributos da seção
são formadas pela justaposição de ambientes e estruturas presentes na relação com o Ver-o-
Peso. Isso ocorre devido o encadeamento de relações sociais próprias do espaço de feira, na
qual a pluralidade de atos sociais abrange o tempo, espaço e matéria. Essas formações sociais,
como entendidas por Simmel (2006) são cambiantes estando continuamente construídas a partir
das relações confrontadas por elementos e suas diversas qualidades. Assim sendo, a
contiguidade de tais elementos, e aqui principalmente, de corpos, permite percepções
moldáveis, múltiplas e variáveis, vinculadas aos contextos singulares e únicos, temporalmente
e espacialmente delimitados. Por essa razão que o espaço do Setor das Ervas depende, também,
de análises relativa a toda a Feira, seus aspectos e questões.

Com todas essas considerações, é correto inferir que caminhar por todo o Ver-o-Peso
em si sucinta receber um amplo leque de sensações, confluindo não só “os cinco sentidos
aristotélicos”, mas as sensorialidades internas corporais e emocionais (Pellini 2012). Seja qual
for a intencionalidade e proximidade do transeunte, este, ao percorrer o complexo, defronta-se
com múltiplos estímulos inter-relacionados. Barracas, corredores, acenos e cumprimentos,
94

utensílios, movimentação da freguesia, interpelações dos vendedores, olhares turísticos


ansiosos e perdidos, o calor, o cheiro de peixe frito e logo mais o cheiro de ervas, poças pós-
chuva... Não diferente, o Setor das Ervas, “das cheirosas”, mantém esse mesmo ritmo, contudo
singulariza-se justamente por utilizar-se dessa qualidade como um atrativo, seja diretamente,
por meio de seus fenômenos sensórios, seja indiretamente, pela construção de narrativas sobre
esses mesmos; como discute-se no capítulo três.

É certo que experienciação, o ato imediato de experienciar, é fortemente ambíguo,


amplo, múltiplo, vago e incompleto; emocionalmente particular, dependente e fugaz,
dificultando sua racionalização. Compreender a influência sensitiva da materialidade no
comércio do Mercado das Ervas do Ver-o-Peso permite analisar vários desdobramentos dessas
características por meio, não apenas científico e racional, mas pessoal e encarnado. Quando
escrevo sobre a sensação de três etapas presentes no Setor das Ervas, suas fronteiras e
centralidades, me refiro à percepção que sempre tenho percorrer de igual forma o ambiente. No
entanto, se antes serpenteava intentando uma postura objetiva e acadêmica, na qual eu influía
uma lógica no caminho tomado, com o passar do tempo e a intimidade crescente com o Setor e
minha nova relação com o Ver-o-Peso – que pouco a pouco inseria-se cada vez nos meus
hábitos e cotidiano – novas maneiras de ação apareceram. Cada vez me sentia mais conectada
e com outras sensibilidades, o que levava, inerentemente, a novas corporificações e
interpretações (Pellini et al 2015; Pellini 2012). Minha relação com a feira em si cambaleava
entre uma postura investigativa e empírica para um nível de convivência e familiaridade, tanto
com o ambiente quanto com as pessoas.

Ainda que mantenha com o Setor das Ervas um distanciamento no tocante a


intensificação de laços, minhas necessidades atendidas pelo restante do Complexo acabaram
por projetar novos comportamentos e leituras desse. Com o desenvolver do tempo e da rotina,
comecei a me colocar ou evitar o campo, passar por ele rapidamente, me delongar, passar
parcialmente, deixar de andar por uma ou outra frente, ou mesmo deixar de andar pelo corredor
central – o qual sempre considerei o meio de sustentação do Setor e de vital relevância para a
pesquisa. Com esses diversos comportamentos que adotei, em princípio por procurar atender
minhas demandas pessoas e posteriormente por interesse metodológico, reaprendi a
experienciar o Setor, sentindo-o diferente do que antes já sentia e aprendendo a ser sensível ao
que antes não me tocava, redefinindo hierarquias sensórias próprias:
95

Tuan (1983) foi um dos primeiros a analisar o espaço sob o ponto de


vista da percepção. Para o autor, a percepção é tanto a resposta dos
estímulos sensoriais externos, quanto a atividade intencional da
consciência que registra certos fenômenos enquanto ignora outros.
Muito do que nós percebemos está envolto em fenômenos que nos
interessam do ponto de vista emocional, prático, do ponto de vista da
sobrevivência, ou do desejo de obter alguma satisfação, seja ela qual
for (Pellini 2012:22)

Se o caminhar é um modo de assimilação do meio com seus variados estímulos:


sonoridades, formas, pessoas, clima, cores, tensões, fluxos e dinâmicas; expandindo a noção do
espaço que abriga os elementos estudados e regulam novas experiências com o campo, deve-se
ter em conta que é uma técnica que altera normas da disciplina (Edensor 2010), ainda que não
seja incomum e não esteja deslegitimada, uma vez que não exclui o uso de inferências teóricas
e metodológicas associadas às lógicas científicas de ação.

As considerações apontadas acima sobre minha posição/rota em campo e minha


presença como um “fator-evento” em tal, considerando as considerações teóricas de Sarah Pink
(2010) acerca do pesquisador e a criação da sensorialidade pelo percurso, relaciona-se, como
dito variadas vezes, a minha singularidade e subjetividade, em todos os seus aspectos
socioculturais. Contudo, outros detalhes técnicos também devem ser levados em conta; alguns,
comentados brevemente na introdução desta produção, são centrais para as considerações
postas. São presentes a questão da memória vinculada a passagem temporal e os caminhos que
tomei, ditas place-making (Ingold 2007), todos esses pontos variáveis e relacionados entre si,
ou serem reordenados, ou seja, em outros momentos de sensibilidade sobre a materialidade
externa, outras formas de circulação e outros dias, criaram múltiplas observações e análises,
com similitudes e/ou divergências bruscas. Tais ações baseiam-se na ideia metodológica de
uma antropologia citadina, em percursos dos quais sou elemento constituinte, estranho talvez,
se tratando de Belém, mas esperado.
96

3. Capítulo – As dinâmicas socioculturais que atravessam o comércio

Sendo uma interseção entre realidades ribeirinhas e citadinas desde o princípio, foi
visto a importância do Ver-o-Peso em se configurar um local multifocal, importante tanto para
a cidade de Belém como para as áreas insulares desse e outras regiões interioranas. As
transposições de contextos são comuns e marcam a rotina do ambiente. Assim como o Setor
das Ervas, o Complexo sublinha sua dimensão cultural e é referência para outras feiras e cidades
paraenses (Carvalho, Rossy e Bastos 2014).

Percebe-se como sua configuração de lugar reage de forma profunda no desenrolar do


comércio de ervas curativas, isso porque denota características particulares a essas, seja pelo
seu contexto histórico, ou também político, memorialístico, afetivo e simbólico. Dessa forma,
os saberes tradicionais do Setor das Ervas do Ver-o-Peso ilustram em seus processos mercantis
e sociais a relação estrutural com esses elementos constituintes da formação da cidade. Assim,
movimentos contemporâneos que influam sobre tal lugar afetam diretamente a atividade da
seção, em seus níveis econômicos e socioculturais.

Já durante o período da sua estruturação, o Ver-o-Peso se fortaleceu por criar um


profundo enraizamento entre relações comerciais e localidade, onde para seus sujeitos a
existência cotidiana significava os laços de pertencimento. O poder público lemista também
procurou criar um vínculo semelhante, utilizando-se de projetos de reforma e urbanização para
manejar o espaço representado em seu desenvolvimento econômico. São dois formatos que
definem a sensibilidade do comércio perante as dinâmicas que atravessam o Ver-o-Peso.
Especificamente – tratando-se do saber tradicional das(os) erveiras(os) – não apenas as formas
mercantis são afetadas, mas sua perenidade e difusão, visto que são as(os) feirantes que
promovem a canalização dos saberes por meio das suas práticas e produtos, uma vez que
alterações sobre o lugar – físicas ou simbólicas – as atinge e os saberes são reestruturados em
seu contexto.

Lugar e sujeitos tornam-se categorias analíticas fundamentais para compreender os


processos de legitimação dos saberes tradicionais de cura natural. Dessa forma, necessita-se
perceber as novas demandas citadinas de Belém que versam sobre o local do Ver-o-Peso, quais
são seus idealizadores, as intenções e os estímulos que provocam, possibilitando a compreensão
das renovações, interações contemporâneas e propósitos acerca da valorização da cultura das
ervas.
97

Assim, o terceiro capítulo pauta-se em perceber e examinar a influência dos projetos


urbanísticos belenenses, considerando suas situações socio-historiográficas visando uma
análise conjectural. Dividido três partes, a primeira ocorre o levantamento das influências e
projetos políticos, fomentando uma discussão sobre o panorama da cultura popular em meio
globalizado, onde a economia de mercado afeta o ritmo citadino (Santos 2000). Seguidamente,
são debatidos os manejos em que a cultura popular é envolvida nos ciclos de urbanização,
percebendo processos discriminatórios e coercitivos, inferindo em suas significações externas
e internas. Por último, trabalha-se a realidade cotidiana do Setor das Ervas como situação
permeável e (re)ativa, onde a agência das(os) erveiras(os) é elemento de contraste ou controle
de formas exógenas dominantes, suscitando o movimento e percepção dos sujeitos sobre a
realidade sistêmica; inferindo sobre as possibilidades atuais da continuidade dos saberes
tradicionais perante a Belém contemporânea.

3.1 Políticas urbanistas: condicionamentos institucionais sobre as práticas comerciais.

A urbanidade configura-se de maneira altamente dinâmica, mutável e estimulante, sob


um prisma benéfico ou maléfico aos sujeitos envolvidos; possuindo um forte e singular impacto
sobre a psicologia humana e as relações sociais (Velho 2013; Smith 2014).
Contemporaneamente, organizam-se sobre uma temporalidade acelerada e globalizada que se
projeta em sua realidade social, a cidade e seu urbano(Santos 1994)75 – somando-se com outras
particularidades atinentes à essa que retratam e definem a experiência citadina. Ainda que
tensionando diversas facetas e estigmas entre ruralidade e urbanidade, a cadeia concreta
formada entre Setor das Ervas, Ver-o-Peso e Belém, envolve lógicas e fenômenos perceptíveis
ao estudo do urbano, onde eventos e estruturas respondem a contextos de modernização,
restruturação urbanística e a interação ativa entre conjuntos múltiplos de sujeitos sociais e
subjetividades próprias ou partilhadas76. Está relacionado ao caráter “multifacetado, dinâmico
e, muitas vezes, ambíguo da vida cultural” citadina (Velho 2013:45).

Considerando a condição de metrópole – que se caracteriza com o crescimento


citadino convergindo em uma área de influência econômica e de gestão expressiva – a cidade
de Belém nas últimas décadas, tanto em gestão municipal quando estadual, iniciou ações

75
Milton Santos percebe ao urbano as qualidades gerais e abstratas materializadas no “concreto” da cidade
(1994:70).
76
O “estudo no ambiente urbano” é baseado por Velho (2013) em abordagens interacionistas e integrativas, que
consideram em conjunto três níveis configurativos da realidade: biológico, psicológico e social.
98

visando à ampliação, estruturação, modernização e readequação de espaços, repercutindo


também nas territorialidades prévias77. Procurou-se transformar locais entendidos como
decadentes em novos e produtores atrativos (Cardoso 2016; Trindade Junior 2018), sustentados
em seu potencial histórico-cultural orgânico; destacando a orla belenense em detrimento de
áreas interiores da cidade.

São iniciativas que buscam a promoção e representação do município perante outras


capitais e localidades brasileiras de destaque nacional e internacional. Assim como o período
lemista, as melhorias na infraestrutura são vistas como o meio de capacitação, que agora está
intensamente voltada ao mercado turístico e de lazer, priorizando a região histórica da cidade.
Historicizando, além de terem produzidos resultados materiais que podem ser reaproveitados
nas novas estruturações representativas, as reformulações e o projeto civilizador trazidos no
período da borracha são aproveitados como fórmula-mãe, ou seja, programa progenitor das
intenções atuais.

Se antes as propostas lançavam-se diretamente para a inserção de novos hábitos


civilizados aos cidadãos pelo meio urbanístico, advogando a modernidade; agora procura-se
moldar as realidades da região visada por meio de discursos de revalorização e restituição de
um prestígio que teria se perdido (Cardoso 2016). Discrimina-se, afetando as práticas e os
sujeitos presentes à cargo de melhorias econômicas e políticas, essas que seriam trazidas pelo
turismo e representatividade local histórica – apoiada em uma imagética belenense, ou
paraense, ou mesmo nortista, vinculada ao momento e padrão global.

São selecionados por meios institucionais os bens culturais, materiais ou intangíveis,


que devem ser valorados e as formas adequadas que se dariam sua recuperação, demonstrando
os recortes e intenções priorizadas. É nesse sentido que colocam Voyner Cañete, Luiz Silva e
Thales Cañete sobre o Portal da Amazônia, empreendimento inserido nas propostas de
revitalização da orla: “Há sim uma atitude ideológica de valorizar shoppings centers em vez de
feiras populares, e de substituir trapiches por piers. Assim, em nome da geração de renda e
emprego pelo turismo, se nega uma realidade social (...)” (2014:261). As relações desiguais de

77
Os primeiros projetos se circunscreveram na revitalização por meio do reuso do São José Liberto, o Complexo
Feliz Lusitânia e a Estação das Docas. Eles desconsideraram e desarticularam, respectivamente, moradores do
entorno; práticas econômicas populares prévias e o uso do terminal de transporte fluvial, antes de utilização por
parte dos ribeirinhos e agora para uso recreativo e de turismo. O Mangal das Garças construção pensada para
traduzir caraterísticas da flora, fauna e arquitetura da cidade também teve, em conjunto com o Portal da Amazônia,
sua construção com relevância apartada dos moradores da região.
99

poder entre diferentes sistemas – nos termos de Gluckman (1987) –, expressam-se em relações
desiguais sobre os espaços, lugares.

Elevar a região da orla histórica de Belém à um ambiente adequado para a afluência


de determinada variedade de pessoas, classes médias e turistas, é uma forma discriminar
sujeitos envolvidos, moldar e engessar práticas, escolher experiências e imagens públicas da
cidade (Lynch 1997)78 – as quais deveriam refletir os discursos de progresso e desenvolvimento
aterrados naqueles elementos eleitos pelo poder público. Esse panorama interfere diretamente
na circulação dos saberes das(os) erveiras(os) do Ver-o-Peso, visto que esse não apenas se
encontra na região indicada, como é tido o principal “cartão-postal” da cidade e “as cheirosas”
suas “garotas propagandas”.

3.1.1 Revitalizações na orla histórica de Belém: higienismo e gentrificação.

Desde os anos 1950 os centros das cidades brasileiras começam a decair em sua
relevância simbólica e contextual. A partir da década de 1990, processos visando à renovação
urbana dessas áreas começam a entrar em pauta por meio de parcerias entre o poder público e
iniciativas privadas; esse andamento, principalmente em cidades com potencial turístico, segue
a linha higienista e mesmo gentrificadora (Jayme e Trevisan 2012).

Em Belém, a partir do fim do ciclo da borracha e interiorização das elites, a região


histórica perde relevância urbana em detrimento de outros bairros, que antes associados às
camadas populares passam a ser habitados por classes mais altas e modernizados, enquanto os
habitantes prévios são afastados ainda mais para o interior da terra firme ao mesmo tempo que
voltam a frequentar a região do Ver-o-Peso e o Comércio79, ainda que não como moradores
(Trindade Junior 2018). Essa movimentação é acompanhada por discursos que destacam a
decadência, periculosidade e inoperância da região, a qual uma vez luminosa na “belle époque
belenense”80 agora encontra-se em declínio; levando em conjunto a imagem, nos termos de
Lynch (1997), de Belém.

78
"Imagens mentais comuns a vastos contingentes de habitantes de uma cidade: áreas consensuais que se pode
esperar surjam da interação de uma única realidade física, de uma cultura comum e de uma natureza fisiológica
básica" (Lynch 1997:8)
79
O Comércio compreende a região do bairro da Campina, contíguo ao Ver-o-Peso. Reúne um grande número de
lojas e comércios populares que atendem a população belenense. Ao mesmo tempo, configura-se um lugar
proscrito e inseguro, principalmente para as classes médias e altas.
80
Ideia que se mostra romântica, uma vez que, apontados as inúmeras pretensões e insatisfações do governo
leminista com a região, a convivência entre elementos “desenvolvidos” e “incivilizados” era coeva.
100

Surgem então projetos urbanísticos sobre a área, onde as ações, postas como
revitalizações, aludem aos seus objetos – ruas, edificações, comércio, lugares públicos... – a
transformação de algo que possuiria um caráter inoperante, extenuado, esmaecido ou paralisado
em elemento ativo, presente, funcional e integral. Elementos que contribuam para os aspectos
de desordem, sujeira e periculosidade – os quais seriam características dessas áreas –, deveriam
ser manejados a fim da organização social, fenômeno que seria considerado positivo (Douglas
1976). Essa polaridade, entre “ordem” e “desordem” segundo as perspectivas governamentais
públicas, demonstra o elemento hierárquico social presente a partir de antagonismos do que
seria bom, correto e direito ou não (Hertz 2016).

Tal concepção de renovação e produtividade volta-se a formatações generalizadoras,


utilitaristas, padronizadoras e deterministas dos espaços citadinos, afluindo-se no ritmo de
desenvolvimento e aprimoramento postos como exemplos de uma urbanidade globalizada,
consonante ao “modernismo” civilizado e ocidental (Fanon 1961:91). Perceber, aqui, os
entrelaces entre as propostas higienizadoras e as relações de raça tornam-se vitais para
compreender os estigmas que permeiam o projeto belenense, onde os sujeitos, práticas e
configurações vislumbradas à melhoria e manejo estão marcadas pela distinção étnica daquilo
que se pretende assentar. Desde as intenções civilizatórias de Lemos, até a racionalização de
realidades e existências nos projetos atuais, deseja-se uma sociedade desenvolvida, pensada
como branca; oposta a configuração nortista (ainda que – ironicamente, ou não – se apregoe à
Belém o apelido de cidade morena81).

São múltiplos os sujeitos que se relacionam no Ver-o-Peso, a expressão ribeirinha se


faz presente em conjunto com camadas urbanas marginalizadas no contexto brasileiro. São
essas pessoas que “fazem o lugar” (Certeau 1999); um lugar dito como decadente, mas que
movimenta diariamente cerca de um milhão de reais82. Visualizar as intenções que permeiam
os projetos de revitalização do Ver-o-Peso é fundamental para perceber a posição social
reservada aos sujeitos e realidades práticas naquele espaço e, assim, compreender as
formatações atuais da vigência dos saberes tradicionais e cultura das ervas.

81
A locução “cidade morena” é presente na elaboração política e social de Belém, suscitando diferentes canais de
expressão (como veremos a seguir, no caso das “cheirosas”). O uso, talvez, possa exprimir um processo de
dessemelhança, onde a branquitude depende da outroridade para se marcar existente (Kilomba 2019). Mais além,
é visto como a moreneidade também é maneja como potencial atrativo, tratado adiante.
82
Estimativa segundo pesquisa do DIEESE – Departamento Intersindical de Estatística e Estudos
Socioeconômicos em reportagem ao jornal OLiberal. Disponível em: <<
https://www.oliberal.com/belem/complexo-do-ver-o-peso-movimenta-r-1-milh%C3%A3o-por-dia-1.98984>>.
Acesso em: Jan/2020.
101

Os processos estão vinculados a uma intensificação da diferenciação social, na qual


agentes de controle agiriam de forma a impor normas e ordenações. Tais restrições seriam
legítimas uma vez que facilitariam o controle e a diminuição de arranjos que possibilitariam
ilimitados cenários de “perigo” (Douglas 1976). Dessa maneira, a presença de outros estimados
conjuntos de sujeitos estariam assegurados, iniciando uma movimentação gentrificadora.

A gentrificação, circunstância presente em todo o contexto mundial, não tem um


consenso definitivo sobre sua conceitualização, uma vez que seus matizes se singularizam
sobremaneira com as realidades em questão. Inicialmente tomada em pauta sobre os temas
habitacionais e de moradia, discute também outras relações de despojamento espacial e social,
onde o câmbio de estratos sociais divergentes pode ser discutido a partir de ambientes
econômicos e socioculturais (Paes 2017). Assim, atitudes gentrificadoras podem ser notadas
nas intervenções realizadas nos centros das cidades onde se pretendem uma valorização da
região como local de consumo, lazer e ambiente cultural (Jayme e Trevisan 2012) seja por meio
de iniciativas públicas ou privadas, agindo materialmente com edificações, estrutura urbana,
mobilidade e acesso, ou imaterialmente, retrabalhando e redirecionando hábitos e costumes ou
práticas do dia-a-dia. Vincula-se intimamente com processos de higienização socioeconômica.

Esse modelo de gentrificação é regular na realidade latino-americana (Paes 2017) onde


patrimônios e regiões históricas são pontos comuns do processo gentrificador – não de
deslocamento habitacional, mas de frequência e participação de classes mais altas nesses
ambientes os quais estão predominantes as classes populares e trabalhadoras. Esse modo
trabalha a partir da revalorização do espaço, o qual é relevante na trajetória da história e cultura
local. Sua práxis reúne medidas higienistas de adequação aos padrões internacionais e não
locais, refletindo o interesse no potencial econômico das áreas; esse o caso do Complexo
(Cardoso 2016).

Para o Ver-o-Peso, são usadas narrativas românticas sobre o passado enriquecido pelo
látex, onde a tradição – operante e significativa em contexto cotidiano, prático – também toma
sentidos discursivos, fazendo-se crer similar a tradicionalidade orgânica, quando essa depende
das inter-relações oriundas entre o lugar e os sujeitos, as quais são artificiais (e artificializadas)
pelas propostas coercitivas, desarticulando e designificando a qualidade sociocultural e
histórica da área.
102

O projeto vigente para requalificação da área, assim como seus anteriores – em suas
respectivas contextualizações e características – é muito similar as basilares propostas lemistas
sobre determinadas necessidades que deveriam ser atendidas. Sua configuração está pautada
em três pilares: salubridade, segurança e ordem, sendo que a última, ainda posta como
ferramenta, capacitaria a vigência das demais. Por meio de um ambiente de estrutura
padronizada, com uma ordenação controlada dos dispositivos de venda (barracas, vitrines,
ferramentas, bancos, feirantes...), a salubridade e a segurança aumentariam, primeiro pela
limpeza e segundo pelo controle de periculosidade.

Um Ver-o-Peso revitalizado, limpo, padronizado, seguro; um Setor das Ervas –


considerando toda as suas cargas culturais – regulado à uma fórmula de produção econômica;
é buscar, a partir do principal símbolo da cidade, destacar contemporaneamente Belém com
outras metrópoles globalizadas. A anteriormente já tida como “Paris nas Américas”,
devidamente representante da Belle Époque no meio da maior floresta tropical do mundo em
um país colônia de exploração, procura, contemporaneamente, se aprimorar a maneira do que
julga meta, as formas das nações colonizadoras:
A cidade do colono é uma cidade sólida, toda de pedra e ferro. É uma
cidade iluminada, asfaltada, onde os caixotes do lixo regurgitam de
sobras desconhecidas, jamais vistas, nem mesmo sondadas (...) é uma
cidade saciada, indolente, cujo o ventre está permanentemente repleto
de boas coisas. A cidade do colono é uma cidade de brancos, de
estrangeiros. (Fanon 1961:29).

Como coloca Franz Fanon na crítica ao colonialismo, o que se tem de como cidade
desenvolvida é ser limpa, organizada; diferente de uma cidade subdesenvolvida, típicas de
realidades colonizadas: “onde os homens estão uns sobre os outros, as casas umas sobre as
outras (...) faminta de pão, de carne, de sapatos, de carvão, de luz (...) é uma cidade acocorada,
uma cidade ajoelhada, uma cidade acuada” (1961:9). Diferente do que se teria por configuração
hoje de Belém.

É o higienismo pautado em noções que envolvem o controle da desordem, essa


estampada nos aspectos de impureza do local, associados à poluição, menor estética, higiene
ou etiqueta (Douglas 1976); circunstâncias que são colocadas como os motivos das sanções
sociais de desprezo e ostracismo dos belenenses perante a feira, contrariamente ao que estaria
buscando o poder público, preocupado com o bem-estar e restabelecimento do Complexo. Um
discurso onde o seu conteúdo se afirma aparelhar aos fenômenos e circunstâncias, mas está
intrinsecamente desconectado com a realidade social presente Veropa.
103

3.1.2 As revitalizações perante os sujeitos, sociabilidades, saberes e práticas do Ver-o-


Peso.

Padronizar e arrumar o espaço é torná-lo reflexo de uma ideia, de maneira a “relacionar


a forma e a função” (Douglas 1976:7). É em razão da abrangência de públicos distantes do
cotidiano da feira, mas propícios ao consumo econômico dessa, que são incididas as propostas
urbanistas para o Ver-o-Peso, afetando também sua prática mercantil e elementos de comércio,
o que, como visto, dispõe na absorção dos saberes e práticas em contexto citadino.

O projeto municipal de revitalização do Complexo do Ver-o-Peso utiliza-se, dentre


outros, da relevância cultural do espaço, para qual as narrativas de abandono e decadência
ganham força perante a ideia da “perda” das tradições, valorosas e que devem ser destacadas,
situação que compõe os intuitos das propostas governamentais. Entre um Ver-o-Peso que
pendula hostil e simpático, as inferências municipais associadas a agência privada atribuem em
sua retórica o sentimento de ruína e perecimento de centrais referenciais belenenses: as práticas,
costumes e hábitos cotidianos, locais e tradicionais. Motiva-se assim, tanto para os sujeitos
diretos do Complexo – trabalhadores, entre outros – quando para os demais cidadãos, mais uma
contribuição advinda por meio das as reformas, agora em aspecto identitário.

Resgate, melhoria e valorização são as noções propagandeadas sobre as revitalizações


do Complexo, atingindo as estruturas, sujeitos, mercadorias e saberes, abrindo porta para que
esses estejam mais conectados e adequados ao público exógeno. Contudo, as interferências
municipais são questionadas por conjuntos sociais, como os permissionários do Ver-o-Peso,
órgãos governamentais como o IPHAN, Ministério Público, setores da Universidade Federal
do Pará, além da sociedade civil organizada. Esses, com suas respectivas preocupações e
interesses, pontuam de forma geral a desarticulação entre o poder municipal e os feirantes, esses
últimos reiterando a falta de consulta, as coerções e os conflitos políticos presentes.

Ocorreram três grandes intervenções na estrutura do Complexo durante o século XX:


em 1968, com o governo de Alacid Nunes; em 1980 com o prefeito Almir Gabriel, primeira a
padronizar as barracas; e nos anos de 1999 até 2004, durante a gestão de Edmílson Rodrigues,
mais notória e reconfigurando toda a Feira (figuras 34 e 35).
104

Figura 34 Vista da Boulevard Castilhos de França, antes da reforma promovida por Edmiso Rodrigues, bem vista pela maior
parte da população da cidade. Fonte: <<https://www.edmilsonpsol.com.br/2002-edmilson-inaugura-o-novo-ver-o-peso/>>

Figura 35 Após a reforma durante o governo de Edmilson Rodrigues. Autor: Igor Mota.
105

Desde o ano de 2016, intenta-se uma nova intervenção pelo governo do desde então
prefeito Zenaldo Coutinho (figura 36). Essa, barrada de início pelo Iphan e Ministério Público
do Pará – tanto por problemas referentes a proposta da DPJ Arquitetura e Engenharia Ltda,
responsável pela obra, quanto pela falta de diálogo com os permissionários por parte da
prefeitura –, estagnou em 2016 sendo levada para análise até a sede do Iphan em Brasília, a
qual aprovou o projeto básico para execução no final de fevereiro do ano de 2019. Contudo, o
Ministério Público do estado cobrou a maior participação popular (2019), destacando a falta do
poder públicos em apresentar o projeto aos feirantes e as reclamações desses sobre ações
retaliativas da prefeitura83.

Figura 36 Imagem projetada segundo a Proposta vigente do, então, atual governo, Zenaldo Coutinho. Fonte: Belém (2019)

83
Em nota: (...) Desde 2016, o Ministério Público Federal (MPF) acompanha com preocupação um projeto de
reforma, apresentado pela prefeitura de Belém sem consulta aos feirantes, aos moradores da cidade ou aos órgãos
que cuidam do patrimônio cultural brasileiro (...) Eles também denunciam que, apesar de já ter sido feita audiência
e consulta pública em 2016, com várias recomendações do MPF e do Iphan nesse sentido, o projeto de reforma
continua sendo conduzido sem nenhuma participação dos maiores interessados, os trabalhadores do complexo (...)
Em documento enviado ao MPF em dezembro de 2018, várias associações de trabalhadores do Ver-o-Peso
denunciaram a prefeitura de Belém e a Secretaria de Economia do município por negar as salas do Mercado de
Carne para utilização pelos feirantes (...) No documento, as diversas associações que representam os feirantes
afirmaram que as recusas da prefeitura e o abandono dos espaços do Ver-O-Peso tinham o caráter de retaliação
contra o movimento deles de reivindicar participação no projeto de reforma (Ministério Público Federal 2019).
106

Analisando o documento básico de Revitalização da feira do Ver-o-Peso


disponibilizado para consulta pública pelo Iphan após decisão do Ministério Público de
Federal84 percebe-se três eixos centrais para a proposta:

1) Estrutura, agindo sobre questões como sistema elétrico, hidráulico, a própria


deterioração temporal...

2) Higiene e conforto, considerando materiais menos dispostos à sujidades, problemas


térmicos e sonoros, além cumprimento às normas sanitárias;

3) Padronização e segurança, com a reordenação das barracas para melhor


visibilidade, localização do comércio e aumento da segurança local.

Tais eixos gerariam melhorias para o ambiente, promovendo uma organização “lógica
e sequencial” (Belém 2019:38) da feira, análoga a modelos hegemônicos de ordenação espacial
e arquitetônica. De maneira precavida, afirmam a conservação da singularidade local,
assegurando sobre o patrimônio cultural e imaterial do espaço uma valorização das “práticas,
expressões culturais e relações sociais entre indivíduos” (Belém 2019:54) justificando a
frugalidade da reforma, visto que a partir de apontamentos utilizados do geógrafo Milton Santos
em Por uma geografia nova, o espaço social não fica estagnado, mas configura-se dinâmico.

A gestão atual do psdbista Zenaldo Coutinho, (de dois mandatos seguidos: 2013 até
2020) justifica nesse documento que a intervenção iniciada em 1999, do então petista Edmilson
Rodrigues, já “introduziu um elemento contemporâneo e moderno no Conjunto Histórico do
Ver-o-Peso (...) Importante citar que o Memorial deste projeto não analisa ou se refere ao
impacto que seria causado por esta inserção.” (Belém 2019:50), demonstrando, por meio de
precedentes, como o antagônico governo anterior também alterou o espaço; e que foi de maneira
pouco dialógica sem atentar-se as influências que causaria. A carga política na reforma é
evidente, como afirmou de maneira reversa o próprio Zenaldo Coutinho em audiência pública:
“Um patrimônio da importância do Ver-O-Peso, nós compreendemos que enseje a preocupação
de muitas pessoas, tanto por interesses legítimos como também por interesses esdrúxulos,
partidários, ideológicos e políticos” (Ministério Público Federal:2019b)

84
Disponível em <<https://drive.google.com/drive/u/0/folders/0B2WSm9iee25FRXdVNldIQmFrZnc>>. Acesso
em: Jun/19
107

Como método de análise, Gluckman aponta as “situações sociais” estressantes, ou


trouble situations, como momentos relevantes para a percepção das coerções sociais e ações
individuais que permeiam a estrutura social, pela fragilidade das relações pacíficas (Guizardi
2012:17) na qual os indivíduos são levados a se posicionar tanto de acordo com assumidas
regulações externas, quanto suas inclinações. O prefeito Zenaldo, em sua frase supracitada,
coloca a avaliação do projeto como em mira de diversos interesses, que seriam menos ou mais
dignos. Procura reafirmar a legitimidade de suas atitudes e ações, ainda que, ao mesmo tempo,
assuma a possibilidade das propostas estarem embrenhadas de intenções partidárias espúrias,
pouco referentes aos feirantes e consumidores locais. É observação perigosa quando tanto seu
projeto como governo são repetidamente condenados pela falta de diálogo, explicações e
boicotes aos permissionários85.

Com uma distensão temporal, a análise desses casos de relações conflituosas, seja entre
governos ou com os permissionários, permite compreende em análise situacional (Gluckman
1987) a reforma da Feira do Ver-o-Peso engendrada em um projeto de modernização,
urbanização, gentrificação e ensejos políticos que, ainda que beneficie em determinados níveis
os feirantes, pouco pertencem a esse conjunto; não sendo inesperada a conduta de
estranhamento e distância da população.

Mesmo essa intervenção modernizadora criando debates e conflitos entre as partes, os


permissionários não negam a necessidade de melhorias e atualizações na estrutura e nas práticas
de comércio. Suas rejeições giram em torno da noção identitária, afetiva e agencial que estão
presentes quando se é feirante do Ver-o-Peso e que o poder público e os setores econômicos
desconsideram. Além de elemento histórico, material e intangível em uma lógica de
representação sociocultural, o Complexo forma-se a partir dos sentimentos vívidos de pertença
para o conjunto dos seus comerciantes, sendo um ambiente que os constituem enquanto
indivíduos. Como discutido, a feira é central para suas vivências, personalidades, afetividades,
relações e biografias. Tratar o Veropa de uma forma objetivada, funcional e unidirecional,
mesmo o considerando um espaço patrimonial, é tratar os feirantes, marreteiros, atravessadores
e demais sujeitos da mesma forma.

85
Pontuando os antagonismos políticos e a anterior desconsideração de interesses socioculturais na última reforma,
o governo atual apoia-se, contraditoriamente, nesse mesmo caso prévio de revitalização para legitimar o seu
projeto, demonstrando a permeabilidade de seu posicionamento com o sistema pregresso (Gluckman 1987) perante
a necessidade de consolidar sua soberania política. Representa, ao mesmo tempo, persona dupla, mas mais
soberana – essa aponta os erros de sucessores, legitimando sua excelência, mas também se apoia em tais, ainda
que afirme os aprimorar e revitalizar.
108

O comércio presente no Setor das Ervas apresenta tais questões. Sendo uma das seções
mais destacadas e tradicionais na reputação do Ver-o-Peso, seus modos e relações clássicas de
comercialização dialogam em níveis consideráveis com as transformações temporais. Os
artigos produzidos a partir de saberes tradicionais transmitidos geracionalmente e de cunho
ancestral, em consonância com a cultura da floresta e natureza regional, dinamizam-se no
ambiente urbano moderno. As(os) erveiras(os) advogam por melhorias no ambiente de trabalho,
principalmente aquelas referentes a segurança, tanto trabalhista como adequação do sistema
elétrico e expulsão/prevenção do acúmulo de águas pluviais e fluviais comuns do inverno
amazônico, como proteção física e pessoal. Apontamentos sobre a renovação de estruturas,
abertura de espaços, reelaboração do sistema de saneamento e coleta de lixo, rede elétrica,
sanitários, limpeza e outros mais percorrem a feira, referindo-se primeiramente ao desejo de
melhorias da condição de trabalho para além do crescimento econômico. Já no projeto, o Setor
das Ervas, marcado oficialmente como “Raízes”/”Roots” (figura 37) nem mesmo aparece
(figura 38), sendo remanejado de local e a área “Ervas” transferida para uma localidade próxima
ao Setor de Artesanato (que se mantém na mesma região), denotando o paralelismo com o
consumo turístico, souvenir, ao invés da localidade atual entre o Setor de Hortifrúti, pimentas
e Mercado de Ferro.

Figura 37 Placa bilíngue indicando o Setor das Ervas. Autoria: Laura Vieira, 2019
109

Figura 38 Página 31 da Proposta Básica. Fonte: Belém (2019)

Acontece que cidade de Belém inteira é constantemente apontada pelos citadinos em


um processo de deterioração, estando muito “jogada” e “esquecida” pelo poder público,
principalmente o municipal. Já no meio do século 20 dizia Eneida de Moraes: “Ela mudou
muito; é agora uma triste e envelhecida cidade, arrasada pela miséria e maus governos (...) São
João abandonou minha cidade e sua gente. Por que?” (Moraes 1989:76-77). Os momentos de
esplendor do município estão associados ao período da economia gomífera iniciado a 100 anos
atrás, momento que, de maneira efetivamente, coexistiam com máximo do requinte tecnológico
coevo, um maior número de realidades dispostas como incivilizadas. Talvez possa-se supor que
o único momento de atenção governamental para a cidade foi esse, ou talvez possa-se inferir
que são as motivações políticas e econômicas que determinam o investimento urbano. Quiçá a
questão mais adequada seja por quê canalizar noções contínuas de necessidade por melhorias
para apenas marcada área em detrimento do resto da cidade?

Apesar da resposta, sujeitos, práticas, saberes e vivências continuaram remanejados e


estipulados, uma vez que as iniciativas têm sua estruturação pouco condizente com as práticas
cotidianas populares do comércio, das feiras e portos, intensas na área central belenense e
110

manifestado fortes aspectos sociais, culturais e históricos da cidade, das sociabilidades e das
redes de ligação e relação com a floresta amazônica:

Os moradores e usuários gostariam de continuar pertencentes a esses


lugares onde desenvolvem um modo de vida próprio e, ao mesmo
tempo, gostariam de ver o poder público investindo recursos para
melhorá-los. No entanto, o que ocorre quase sempre é um tipo de
desenvolvimento urbano que, em vez de melhorar nos seus próprios
termos o que já está estabelecido no lugar, moderniza (se essa é a
palavra apropriada) aquela realidade, suprimindo-a do mapa da cidade,
a despeito da resistência popular. A supressão de modos de vida
populares ocorre de forma generalizada, e se dá como ação que integra
Estado e empreendimentos particulares. (Silva e Peixoto 2014:239)

3.1.3 O turismo como categoria específica de análise.

Belém insere-se em uma proposta de “se juntar aos demais centros históricos, como
Ouro Preto, Olinda, Salvador, São Luís e Diamantina que já são Patrimônios da Humanidade”
(Campelo 2010:63). Como visto, as reformas na região histórica intentam o aumento do fluxo
turístico e de entretenimento, onde um novo público consumidor apareça. Transformar as
localidades em ambientes agradáveis, seguros e “autênticos” torna-se uma forma de atração de
visitantes os quais desejam experienciar formas culturais nativas. A gentrificação é um fruto
sociogeográfico dos processos de revitalização, envolvendo problemas políticos e econômicos.
O turismo, dentre esses, reforça as problemáticas socioculturais comuns a realidades
gentrificadas, uma vez que identidade e cultura ficam dependentes do mercado. Em uma
política pública, torna-se ferramenta para o consumo e divulgação dos discursos e imagéticas
selecionados pelas instituições.

O público turista é expressivo no Setor das Ervas, contribuindo sobremaneira na


difusão e absorção dos saberes materializados nos produtos. Ainda que haja uma diferenciação
entre os tipos preferidos e valorizados, o turismo ampliou o alcance das práticas regionais de
cura e melhoria, inclusive propiciando momentos de intercâmbio com as erveiras(os),
valorizando os saberes como representantes culturais.

Ainda que priorizados para aumento de fluxo nos projetos, os turistas são uma
constante do Ver-o-Peso, principalmente de alguns setores específicos, como o das Ervas e o
de Artesanato. As(os) erveiras(os) sempre consideraram sua variante e, comerciantes que são,
adaptam e criam estratégias para a venda de seus produtos. São relações alinhadas com o tempo
e os estímulos desse, pois devido ao contexto econômico e mercantil das cidades, novas
111

maneiras de relação dinâmica com os bens culturais são notadas, com “apropriação,
reinterpretação, reabilitação e mesmo reinvenção de tradições” (Arantes 2006:431). A
circunstância não é necessariamente uma problemática para a difusão dos saberes tradicionais,
visto que esses não são estáticos e possuem a característica de se adaptar ao contexto, já que se
tratam de noções e práticas apreendidas.

Contudo, o impasse surge com as atribuições e significações que os turistas, em sua


maioria, afligem aos produtos e saberes. Essas são uma soma entre construtos simbólicos e
estruturações de outroridade, que resultam em percepções exotizadas, tanto a nível de fetiche
quando desprezo. As imagéticas e imaginários que contribuem para essas concepções advém
pelo canal do marketing e da publicidade, que intuem a mercantilização profunda dos produtos
a partir do valor cultural associado; impactando a singularidade dos produtos, bens, justamente
por um dos aspectos que o destaca (Arantes 2006).

Entender os anseios turísticos predominantes é importante para as(os) erveiras(os),


mas principalmente para o poder público, visto que esse pode influenciar processos e formas
de venda através de cursos ministrados as(os) feirantes do Setor das Ervas. Percebendo a busca
por experiências “autênticas”, em contato com formas “ancestrais” e “exóticas”, a cultura
começa a ser comercializada e objetificada.

A normatização é a expressão definitiva dessa conjuntura no Setor das Ervas. Impor a


padronização os rótulos das embalagens de todas as barracas é uma forma de unificar os saberes
como que em um inventário da seção, diminuindo os saberes particulares das(os) erveiras(os)
e suas maneiras apreendidas em meio familiar e íntimo. É, ainda, assegurar os produtos como
formas replicáveis, seguras em sua – falsa – produção seriada. A autenticidade procurada tem
mais relação com a forma de apresentação e como essas são interpretados, do que valores por
seu conteúdo (Santana Talavera 2003).

As iniciativas públicas buscam criar uma realidade voltada principalmente ao consumo


da experiência, na qual a autenticidade torna-se um molde de imagens e expectativas, ligadas a
“cerimônias inventadas” (Santana Talavera 2003, p. 43). Esse “consumo da experiência” em
ambiente mercantil já é presente no Setor e Ver-o-Peso, lugar onde agências turísticas
promovem visitações, contudo, a compra de produtos lá vendidos, como os banhos-de-cheiro,
ocorre em ambiente higienizado, como a Estação da Doca (Oliveira 2009), lojas de souvenir,
aeroporto (figura 39). Vale lembrar que é a qualidade sensorial e estética própria da seção, que
112

provoca e fomenta a singularidade da experiência e essa acaba sendo transplantada para outras
configurações de lazer e consumo mercantil (figuras 39, 40 e 41).

Figura 39 Estante de uma loja de souvenir no Aeroporto Val de Cans, Belém/PA. Autoria: Laura Vieira 2019
113

Figura 40 Caixa de um restaurante em área insular de Belém, Ilha do Combu. Essa, com forte atração turística. Autoria:
Laura Vieira, 2018

Figura 41 Exposição "Feiras" no Museu Municipal Atílio Rocco, em São José dos Pinhais/Paraná. Representação do
Complexo em barraca estilizada, ao estilo das origi Fonte: Luciano Chinda, 2019.
114

A adaptabilidade orgânica das(os) erveiras(os) associa-se e dialoga com as influências


institucionais, onde processos de criação e recriação dos sentidos de pertença, identidade e
características, combinam-se ora em circunstâncias benéficas, ora em desarticulações. Os danos
podem ser percebidos na superficialização dos saberes e artificialização das práticas, resultando
em uma caricatura homogeneizada; “enlatada” (Santana Talavera 2003:52).

O turismo surge como categoria distinta nos processos de difusão e transmissão dos
saberes tradicionais de cura em meio urbano por estar voltado as formatações mercadológicas
próprias da realidade globalizada. Entender a absorção e valorização dos saberes como
construtos de outroridade, objetificados e pitorescos influem na valoração das formas regionais
e não ocidentais de vivência e cosmologia, afastando do conceito de urbanidade – por meio da
exotização – modos ímpares de vida e apreensão existencial.

3.2 Cultura, natureza e erveiras(os) segundo discursos: influências exógenas sobre os


pilares dos saberes tradicionais em formatações mercantis.

As leituras privilegiadas pelo poder municipal para a propaganda do Ver-o-Peso


procuram manter seu caráter distinto e monumental, como formas de representação (Nora 1993)
do povo belenense e paraense. A cultural e a natureza, aparecem com em conjunto com a
história, as qualidades que legitimariam tal posição. Como visto, é por meio da associação de
modos tradicionais de existência e do meio ambiente amazônico que narrativas simbólicas e
imagéticas se firmam, principalmente porquê de fato são coerentes à realidade social que ainda
está configura e interagem com o município de Belém, se comparado com outras capitais
brasileiras urbanas.

Os produtos se fazem especiais tanto para moradores como para turistas por trazerem
noções como a potência e riqueza natural; os insumos mais naturais e menos químicos, a
experiência do modo de vida profundo ou antigo; as práticas geracionais próprias da identidade
local e soberania nortista. Dentro de cada embalagem, está um pouco da sociobiodiversidade
paraense, com suas experiências, percursos, composições e formatos culturais. Esse panorama
ganha tons atrativos perante uma modernidade globalizada onde a relação entre mercadoria e
consumidores está pautada em associações internacionais (Appadurai 1996), primeiro para os
moradores locais, cuja a presença e costume está em marcada em afetividades e identificação,
segundo para moradores visitantes e turistas, que podem entrar em contato com essas
formações, ainda que em uma lógica de vitrine.
115

E é assim que a cultura acaba manejada como um efetivo e atrativo diferenciador,


abrindo campo para as ações dos projetos de revalorização e revitalização que visam um
amoldamento e correspondência com o contexto global. O ciclo continua com essas
repadronizações influindo em novas percepções sobre a mesma cultura, faz com que essas
tornem mais facilmente mercantilizadas. Aqui, os saberes tradicionais de cura têm sua
importância não garantida pelos meios de difusão preservacionista, mas como produto
mercantil (Veloso 2006), aos gostos palatáveis ao mercado econômico (Jayme e Neves 2010).
A cultura mercantilizada provando ser o grande conglomerador que liga a rentabilidade e
escolha de patrimônios/representações da cidade para a revalorização das áreas centrais e a
repercussão no fluxo econômico.

A cultura para se mercantilizar depende da objetificação e exotização. Não é de hoje


que Belém, o Ver-o-Peso e suas ervas/erveiras sensibilizam por sua singularidade, formas,
ritmos e sensações. Moradores e visitantes reiteram e descrevem os sabores, cheiros e elementos
do local; suas encantarias, marés, chuvas e fé. Ao mesmo passo estão apontados os alagamentos,
o acúmulo de lixo, a falta de saneamento, de estrutura urbana e a agressiva desigualdade social.
De maneira ambivalente, são considerações que elegem uma configuração muito especial do
local e a forma de olhar para essas determina o conceito inteiro que a cidade terá, principalmente
tratando dos turistas.

A exotização se faz presente, estando na atração e jocosidade de lidar com os produtos,


se revelando nos nomeares estigmatizados das feirantes, nos insultos velados e mesmo nos
olhares atônitos ou vacilantes, percebidos e comentados pelas(os) erveiras(os). Superficializar
o significado dos artigos do Setor das Ervas por meio da mercantilização facilita a percepção
desses como objetos curiosos, pitorescos e fora do seu sentido original de cura fisiológica ou
transmutação de problemas intangíveis, e reais. A seção está permeada por uma aura de
“magia”, não apenas pelo conteúdo espiritual de alguns dos seus produtos e pelas suas
evocações sensoriais, mas, principalmente, pelo imaginário sobre as culturas “da floresta”, “do
cabloco”, “do indígena”. Construto associado a cultura local e fortalecido por meios sutis de
discursos e atuais projetos institucionais, percebendo e gerindo “a cultura paraense como
recurso identitário para uma vitrine de negócios” (Ferreira e Rodrigues 2017:125)

Assim, essas ações torcem a imagética da cidade de maneira a atribuir novos sentidos
ao passado, presente e futuro, relacionando-se com uma qualidade comercial da cultural (Jayme
e Trevisan 2012) iniciando uma série de manejos e relações entre sistemas à medida que as(os)
116

erveiras(os) correlacionadas(os) interagem ou não com essas novas ações, que se mostram
despreocupadas quanto às sociabilidades, realidades, significações e atividades86. Em nome da
legitimação de uma identidade compreendida como “imagem-marca” de Belém (Leão et al.
2017), a cultura – aqui, por meio dos saberes – é utilizada como chamariz, agindo sobre
elementos próprios da realidade do Setor das Ervas: as práticas, a transmissão geracional, o
conhecimento natural, as sociabilidades entre feirantes, a diversidade de produtos e demais
aspectos socioculturais e subjetivos.

A natureza igualmente dá suporte para a composição do imaginário. Tão importante


economicamente, se mostra ainda valorosa para a promoção do Complexo; novamente a
significação direcionada de elementos intrínsecos.
O contexto amazônico é fundamental na construção das representações
do Ver-o-Peso, pois pela sua exuberância e afluência de seus recursos
naturais, exprime a diversidade de produtos presentes na feira, uma vez
que a maioria dos gêneros vendidos ali é proveniente da fauna e flora
da região. Neste sentido, simbolicamente o mercado se configura como
uma metáfora da floresta amazônica. (Silva 2010:185)

Tal representação é colocada de forma idílica e/ou romantizada a maneira de agradar


os gostos do mercado, refletindo no comércio local. As ervas, óleos e demais insumos são
associados a ideias de essência, natura e um tipo de “arcadismo tropical” que acontece por meio
do contraste à realidade dos visitantes que estaria desenvolvida, complexificada e distante das
origens:
(...) em minha terra, na longínqua e amada cidade de Santa Maria de
Belém do Pará, há uma prática (...) que se chama o banho de cheiro ou
banho da felicidade. (...) raízes, madeiras cheirosas da Amazônia que,
(...) darão, depois de fervidas, um líquido esverdeado, com estranho
perfume de mata virgem. Perdoai se os nomes dessas ervas parecerem
selvagens aos vossos ouvidos habituados aos caros, raros e belos
perfumes franceses (...) Nossos aromas são, primitivos, agrestes, são
frutos da floresta e, com êles, naturalmente nossos avós índios
também se perfumavam. (Moraes 1989:69-70. Grifos meus.)

Longínqua; Amazônia; estranho perfume de mata virgem; selvagens; perfumes


franceses; aromas primitivos, agrestes; frutos da floresta. Retomar essas colocações de Eneida
de Moraes permite perceber a singularidade local em relação com os construtos exógenos que
podem aparecer. A característica natural dos produtos, conjunto aos processos de reforma e
organização governamental, dependem de uma tradução para o gosto e anseio dos novos tipos

86
Assim como demais feirantes ou moradores, segundo seus contextos.
117

de frequentadores, onde a sociobiodiversidade presente esteja compreensível aos padrões não


locais, moldando assim seus ritmos costumeiros. A atração pelo exótico se vincula tanto com
os discursos institucionais quanto com a função comercial original da seção. Aqui, o processo
de difusão depende dos três pontos, os quais dinamizam-se de maneira elástica e permeável.

No governo lemista as práticas tradicionais deveriam ter suas atividades


regulamentadas e ordenadas a fim do projeto civilizatório onde a ruralidade seria suplantada. O
rural, ali, principalmente aos moldes extrativistas e modo de vida tradicional, foi entendido
como uma oposição ao urbano e desenvolvido, próprios da modernidade racional burguesa.
Essas imagens socioculturais ainda são hegemônicas sobre a ruralidade (Moreira 2003), vista
como obsoleta, “primitiva e agreste”. Os produtos também podem ser significados dessa forma,
um imaginário selvagem sobre a floresta amazônica, seus sujeitos e as práticas desses contidos
dentro de uma embalagem87.

Erveiros e, principalmente, erveiras também são manejadas dentro do panorama de


institucional. Tal articulação sustenta-se no engessamento das(os) feirantes como um conjunto
ora mitificada(os) como “representantes do povo”, ora exotizadas(os) em um processo que beira
a objetificação, com formas de controle que determinam seus espaços, suas funções, imagens,
modos e maneiras, colocando-as como “garotas propaganda”. Ser comerciante no Setor das
Ervas é ser fantasiada(o) pelos olhos dos direcionamentos governamentais e estar marcada(o)
hierarquicamente por seus laços socioculturais, sua classe econômica, suas posturas, sua origem
ancestral.

Esses marcadores estão associados ao conceito de morenidade/morenice paraense,


onde imagens de mulheres cuja “as características fenotípicas que se convencionou chamar de
‘morena paraense’” (Silva 2010:195), são divulgadas nos meios midiáticos e jornalísticos em
representações que as colocam associadas em ambientes “de grande beleza” natural da cidade
e/ou edificações representativas (Silva 2010), tal qual o Ver-o-Peso; tal qual o Setor das Ervas
(figuras 10 e 42).

87
Grada Kilomba pontua como “as novas formas de racismo raramente fazem referência à ‘inferioridade racial’.
Em vez disso, falam de ‘diferença cultural’ (...) o racismo, portanto, mudou seu vocabulário. Nos movemos do
conceito de ‘biologia’ para o conceito de ‘cultura’, e da ideia de ‘hierarquia’ para a ideia de ‘diferença’.”
(2019:112)
118

Figura 42 Capa do Jornal Diário do Pará, edição 27/03/2019. Destaque para as narrativas de grandeza versus decadência; o
recorte turístico e sensorial, além da "morena paraense". Fonte: Diário do Pará.

A morenidade associa-se como valor cultural, e, no município, o conjunto do


“encontro” entre indígenas, brancos e negros, representativos da brasilidade, “forma que a
sociedade brasileira encontrou para lidar com as questões raciais sem abordar diretamente as
oposições” (Silva 2010:202). As erveiras jovens, como morenas paraenses, associadas a ideia
de morenidade – essa bem quista na população (Silva 2010) – são por vezes vinculadas a
imagéticas sexualizadas de pessoas negras, aqui, em especial as mulheres, comuns no país; a
exemplo da “mulata” (Silva 2010:1999).

Grada Kilomba, discorrendo sobre aspectos psicológicos da relação branquitude e


people of colors, aponta como alguns termos da língua portuguesa durante o processo de
exploração colonial lusa criaram formas de rebaixar as identidades dos sujeitos negros por conta
de uma política “de controle da reprodução e proibição do ‘cruzamento de raças’”, as quais
adquiriram uma carga romantizada:

Essa romantização é uma forma comum de narrativa colonial, que


transforma as relações de poder e abuso sexual, muitas vezes praticadas
contra a mulher negra, em gloriosas conquistas sexuais, que resultam
num novo corpo exótico, e ainda mais desejável. Além disso, esses
termos criam uma hierarquização dentro da negritude, que serve à
119

construção da branquitude como a condição humana ideal (...)


(2019:19)

O ethos moreno adquire nas propagandas uma qualidade “do diferente”, “do atrativo”,
assim como os fenômenos únicos da natureza e cultura local. Contudo, ao ser singular, sua
qualidade de diferença está “inseparável a valores hierárquicos”:

Aqui, temos que perguntar: quem é “diferente” de quem? É o sujeito


negro “diferente” do sujeito branco ou o contrário, é o branco
“diferente” do negro? Só se torna “diferente” porque se “difere” de um
grupo que tem o poder de se definir como norma – a norma branca
(Kilomba 2019:75).

As erveiras e os erveiros compõe um conjunto variado de pessoas negras e brancas,


além da ancestralidade indígena comum. É a ideia do “caboclo”/”caboco”. Seus magnetismos
e unicidade para ação comercial estão presentes em primeiro momento em suas vestimentas,
em seus enfeites e falas; “estou a vê-la agora mesmo sentada num trecho do mercado, sôbre o
banquinho, tão cheirosa na sua roupa cerzida, muito limpa, muito limpa. O cabelo em coque, e
dentro dêle um ramo de jasmins bogaris.” (Moraes, 1989:73-74). O conjunto desses estímulos,
quando exotizados na outroridade e destacando seus corpos, tocam noções raciais onde o
racismo surge como forma de erotização, primitivização, incivilização. São conceitos
projetados pela sociedade branca em outros grupos raciais, onde essa possa suprimir sua
“historicidade de opressão e se construa como ‘civilizado’ e ‘decente’” (Kilomba 2019:79)88.

A primitivização está associada ao selvagem, atrasado, básico e natural. Na


incivilização está o outro suspeito, ameaçador. E na erotização está o exótico, o fabuloso e
atrativo (Kilomba 2019); “é por isso que, no racismo, a pessoa negra pode ser percebida como
‘intimidante’ em um minuto e ‘desejável’ no minuto seguinte (...) ‘fascinantemente atraente’ a
princípio, e depois ‘hostil e dura’” (Kilomba 2019:78-79). São fenômenos que podem ser
percebidos durante a ambivalência da atração e chacota sobre o natural, produto ou sujeitos,
que compõe o Setor, um natural que está perdido na sociedade urbana ocidental moderna89.

A interação do Setor e o que ele representa, com contexto urbano e mercadológico


apontam, trabalham e consideram as relações e vínculos com a realidade social, econômica,
cultural e política urbana se utilizando do imaginário sobre o meio ambiente natural, as formas

88
Projeção que ocorre a partir com supressão da polaridade psicológica de “sexualidade e agressão” na sociedade
branca (Kilomba 2019).
89
Como a pontuação de Kilomba:”’primitivo’, como aquele que está mais perto da natureza, que possui o que
as/os brancas/os perderam e o que, portanto, as/os excita.” (2019, p. 118)
120

da cultura amazônica e as(os) sujeitas(os) comerciantes. Esses processos contemporâneos de


manejo acabam influindo sobre o comércio de saberes medicinais, atingindo seu espaço, seus
agentes e suas formas de difusão. Isso não significa que seja o único panorama vigente; os
saberes tradicionais não se limitam à artificialização quando em ambiente citadino. O uso dos
banhos-de-cheiro, ervas, óleos, unguentos, amuleto e garrafadas é comum a parcelas da
sociedade belenense, que se vinculam profundamente com tais hábitos e, caso não, já estiveram
em contato lídimo. A tradição, como colocado por Silva (2018), esteve presente durante a
modernização da cidade no contexto da borracha e se mantém hoje tanto com os processos de
gentrificação quanto com o emprego costumeiro e habitual, postulando o potencial dos saberes
tradicionais em suscitar práticas na realidade, seja como atração econômica, seja como
elemento constituinte no modo de vida de citadinos. É importante salientar a atividade de uma
vigência não objetificada e exotizada, principalmente por ser uma característica advinda de
moradores locais, significando sua valorização contextualizada e potencial de difusão interna.

Percepções mais distanciadas acerca da tradição, sejam dos turistas, moradores ou


instituições, acabam atravessadas por retóricas desconexas a realidade do Setor e o uso e prática
dos saberes. Isso afeta em sua situação de aderência social, já que remodela memórias,
sentimentos e processos de transmissão dos conhecimentos, bases fundamentais para a
continuidade da cultura das ervas em seu meio, que, aqui na urbanidade, concorre com lógicas
divergentes de consumo (Appadurai 2008). Essas ativas e paralelas influentes em autonomias
locais.

Os empreendimentos de reforma e revitalização do Ver-o-Peso torcem a então imagem


da cidade atribuindo novos sentidos e usos do passado, relacionando-os a uma qualidade de
bem cultural (Certeau 2003; Jayme e Trevisan 2012; Leite 2004) correspondente a concepção
de vínculos identitários e representativos, baseado em distintas memórias, tradições, afetividade
e pertença (Halbwachs 2004; Pollak 1989, 1992). Tal situação pode dar início a uma série de
conflitos à medida que os sujeitos correlacionados prévios aceitam ou não essas novas ações
sobre o espaço urbano.

3.3 A agência dos sujeitos: As(os) erveiras(os) como agentes mercantis e de domínio
sobre a vigência dos saberes medicinais tradicionais.

O panorama social conflui uma série de ideologias e estruturas concorrentes (Velho


2013:60). Os projetos de revitalização e reforma no Ver-o-Peso não são únicos definidores de
formas novas da apresentação dos saberes tradicionais na cidade. Desde a heterogeneidade do
121

público consumidor até as variantes das(os) erveiras(os) em suas práticas, o Setor das Ervas
partilha e difere em elementos, significados e processos. Há uma relação plástica entre sistemas
e subsistemas, ou seja, entre as configurações e conjuntos formados; o local do sujeito-
indivíduo também cresce em interação com as demais estruturas (Velho 2013; Gluckman 1987).
As(os) erveiras(os) possuem uma posição destacada para a dinâmica social da seção, seja
comercial, discursiva e social, concorrendo com as formas hegemonias de leitura sobre os
produtos, o Setor, a cultura das ervas... A agência – legitimada na memória, afetividade e
pertencimento dos sujeitos – se torna angular para a o compartilhamento dos saberes, uma vez
que o contato pessoalizado e suas estratégias comerciais influem sobre os significados de
maneira muito mais concreta e própria, detalhando a vitalidade, vigência e atuação dos saberes
no cotidiano. Tal configuração permite a construção de projetos – condutas organizadas para
atingir finalidades específicas – aproximados aos sujeitos diretos, visto que surgem a partir
desses (Velho 2013:65).

Setor das Ervas está entre os setores mais atualizados e dinâmicos do Ver-o-Peso, com
forma de captação e adesão de consumidores mais complexa que o resto do varejo – esse mais
despessoalizado e homogêneo – intensificado pela sua elasticidade e permeabilidade de
formatações e associações sociais: entre erveiras(os) feirantes, com fregueses, com o poder
público, com a mídia. Estar adaptado aos fluxos e ondulações que surgem na rotina, sejam de
influência momentânea ou continuada, permite o estabelecimento das(os) feirantes em seu
meio, ainda que não necessariamente seja uma situação confortável, haja vista os embates
pessoais, a coerção institucional e a multiplicidade de fregueses.

3.3.1 Agência coletiva: Sociabilidades e sociação no Setor das Ervas

A agência se expressa em duas formas: como potência individual e ação sociativa.


Dentro do Setor, os subsistemas de organização possuem laços de interação “lúdica” (Simmel
2006:65), onde as trocas cotidianas produzem interações naturais, sem pretensões distinguidas
ou objetivadas. A sociabilidade está nas conversas, confidencias, escutas, ajudas no troco, em
cuidar por alguns momentos da barraca durante ausências, indicar outras erveiras... não
ambiciona um fim que dependa de uma união coletiva, mas acontece sem motivação prévia e
sim pela variedade rotineira dos fenômenos, sentimentos e relacionamentos.

O panorama também comporta desavenças, brigas, depreciações e outras formas de


convivência conflitivas; acontecendo por razões pontuais diversas, mas com base na
concorrência por fregueses, de maneira mais comum estão os desentendimentos pessoais
122

quando as estratégias para cativar os consumidores, o desgosto pela valorização imagética de


erveiras famosas em detrimento de outras, além do maior fluxo de venda dos produtos dessas,
que em geral também tendem a ter o preço um pouco mais elevado, fato rebatido pelas feirantes
em questão por esses serem de melhor qualidade. São formas de pontuar suas singularidades e
os códigos morais que reivindicam, procurando demonstrar seus suportes e legitimar sua
posição no disputado jogo interacional. Tais afrontas marcam a individualidade presente no
Setor, a qual liga-se intensamente à noção de pessoalidade em um local que se apresenta
unificado, e por isso estável, mas que é perene em um desequilíbrio proveniente de diversas
forças coercitivas, interações competitivas e lealdades contraditórias, uma vez que sujeitos
podem pertencer a mais de um sub-sistema (Gluckman 1987).Tais formas de convivência em
relação à demais sujeitos, seja em momento simpático ou não configuram a unidade de
sociabilidade (Simmel 2006) do Setor.

Destacando os conflitos, esses desenrolam-se de maneira sutil para os consumidores,


ainda sim são influentes nas agremiações ou desencontros coletivos. O contexto familiar
presente intensifica a diferenciação de conjuntos; assim como diferentes perspectivas sobre a
posição política da seção, as formas de venda, ação do consumo e retorno econômico envolvido
na “cultura das ervas”, como o caso com a Natura, que contrastou opiniões.

Esse, iniciou-se desde o de 2003, onde a empresa de cosméticos realizou entrevistas e


filmagens na seção, com consentimento do uso de imagem e som das erveiras selecionadas em
questão. Contudo, foi no ano de 2006 que começou o processo pivô, devido ao desenvolvimento
de um perfume com base na priprioca, raiz cheirosa comum do Setor e um dos seus carro-chefe,
no banho Cheiro-do-Pará, o que atrapalhou o comércio do Ver-o-Peso, considerado uma
exploração dos saberes das(os) feirantes. As negociações foram intensas, com a empresa
alegando o conhecimento tradicional difuso, o desenvolvimento dos produtos por investimento
tecnológico na Unicamp diverso ao método utilizado no Setor, além do acesso ao patrimônio
genético por meio da comunidade Boa Vista, próxima a Belém, e não pela seção. Já as(os)
erveiras(os) apontam as entrevistas nas quais tratavam de repassar informações sobre os saberes
em questão e o surgimento da dificuldade em obter os insumos depois da chegada da Natura,
visto que esse causou grande aumento do preço e diminuiu a quantidade. Ao fim, ficou decidida
a repartição de benefícios (Soares 2010).

Esses foram firmados em contrato com a Associação Ver-as-Ervas (figura 43),


constituída pelas 102 erveiras e erveiros do Setor. No entanto, problemas referentes a divisa
123

dos benefícios surgiram, visto que as disposições do contrato não tiveram contato direto de
todas(os) erveiras(os), fato que agravou conflitos internos e percepções diferentes sobre o
significado da venda dos produtos, para alguns, transformados de forma exploratória em
mercadoria, onde o conjunto das(os) feirantes acabou sendo ludibriado pela hierarquia
econômica da empresa e daquelas pessoas que teriam se “aparelhado” a elas. Outros, afirmam
a dificuldade da aplicação da resolução, uma vez que não houve acessória para aplicabilidade
das disposições jurídicas.

Figura 43 Logo da Associação Ver-as-Ervas feito de modo cooperativo. Fonte: Silva e Martins, 2009.

Apesar das diferenças internas da Associação90, essa se firmou perante o conjunto


maior do Ver-o-Peso, como um dos coletivos ativos, possuindo uma sede de uso comum no
bairro do Reduto, para armazenamento e produção de artigos. O processo jurídico fomentou a
temática relativa as formas de transmissão dos saberes dentro da seção, visto que escancarou a

90
A associação Ver-as-Ervas não é um exemplo de união e interelação sem conflito e homogênea. Como em A
Análise de uma Situação Social da Zuzulândia Moderna (Gluckman 1987), as “situações sociais” que levam a
relação transpassam as diferenças, segundo os interesses em comum, porém se mantém enfatizadas. Então percebe-
se situações de antagonismo entre determinadas erveiras e erveiros, mesmo quando unidos em prol de certa
situação. Assim como também são notadas aproximações e vínculos mais destacados, seja em afetividade como
quando em socialidade. Como na Zuzulândia, se mantêm hierarquias, estruturas e divisões, a exemplo a frontal
direita, onde a figura da Loura torna-se referencial para alguns e não para outros; o mesmo acontecendo com as
outras divisões do Setor e suas erveiras respectivas.
124

lógica hegemônica de mercado possível sobre esses. Dentro de um ambiente mutável, onde as
pressões exógenas podem se moldar de formas diversas, a sociação das(os) erveiras(os) por
meio da Ver-as-Ervas é uma ferramenta que possibilita estratégias de prevenção e ação, ainda
que haja conflitos internos nessa união. A sociação, conforme Simmel (2006) trabalha a união
de sujeitos para além da sociabilidade, mas uma agremiação sistemática de cooperação que visa
fins comuns, confluindo pessoas múltiplas e diversas, com perspectivas e interesses idem, para
uma mesma tomada de atitude e postura, motivada por ambições iguais. Um estado de
correlação que emerge anseios por determinadas finalidades, paralelas ou antagônicas,
iniciando o convívio e ação em referência “ao outro, com o outro e contra o outro” (Simmel
2006:60).

Seja por meio da Associação Ver-as-Ervas, ou, principalmente, da relevância social


que ocupam, o consenso sociativo das(os) feirantes prioriza a defesa dos saberes, práticas e
modos em meio mercantilista, uma vez que percebem as desarticulações promovidas pelo poder
público e iniciativa privada. A ferramenta possível para a continuidade de suas realidades
aponta a difusão da cultura das ervas a partir de suas falas e comportamentos. Contar as
histórias, indicar produtos, saber dos problemas e pedir retornos são processos vistos como
vitais para a valoração e perpetuação dos conhecimentos, pois demonstram a transmissão desses
para outras pessoas que não somente as(os) erveiras(os). Nessa troca e rede de informações,
sujeitos consumidores continuar a divulgação, ajudando na problemática referente a diminuição
gradativa de interessados em comercializar no Setor, haja visto a descaracterização promovida
pela prefeitura e o aumento da escolarização universitária dos descendentes, que acabam
escolhendo outras profissões. O público é um terreno que permite o enraizamento e
florescimento do costume.

Essa situação pode ser perspectivada como resultado segundo necessidades, interesses
e vontades determinadas, no qual o processo de sociação criou uma valorização desse
agrupamento, justamente pelos resultados gerados a partir de tal (Simmel 2006). Assim, houve
um fortalecimento, não só social, mas político do coletivo no Setor. É um canal de operação
que sustenta o reforço de suas expressões, agindo quanto seus direitos e reivindicações.

O conjunto de feirantes do Ver-o-Peso se organizam de forma a rebater o atual projeto,


sabendo da potência desse para a desarticulação das práticas e existências presentes. No Setor
das Ervas, as imposições que alteram as lógicas comuns são discordadas, uma vez que as(os)
erveiras(os) desejam reformulações do espaço, mas não em moldes exógenos e sem diálogo,
125

que acarretam em mudanças na organização espacial, comercial e afetiva. O domínio sobre o


espaço é fundamental para a ação mercantil, pois essa é feita de maneira celebrativa,
pessoalizada e acolhedora, transparecendo a essência das(os) erveiras(os) também por meio da
decoração, arrumação e exposição. Padronizações deixam o ambiente dessensibilizado e
limitam as estratégias sensoriais da seção, interferindo no significado particular dos
consumidores, que estariam perspectivando pela ordenação institucional não só em nível
simbólico, como material.

As vendedoras e os vendedores do Ver-o-Peso em sua maioria apontam muitas


vantagens com a reforma feita, ainda que não completa, do projeto anterior. Questões sobre a
higiene, abertura de espaço para a melhoria nos fluxos de trânsito e melhores condições de
trabalho são constantemente frisadas, apontadas como básicas para o funcionamento adequado
do comércio (imagem 44).

Figura 44 Enchente em época de maré alta no inverno amazônico; afetando dia-a-dia e comércio. Autoria: Amanda Seadra,
2020.
126

Contudo, quando se trata da discussão sobre a transformação do Complexo em


mercado fixo e fechado, sem a caracterização de feira, essa moldável e adaptável, as
contestações aparecem. Apontamentos sobre a desarticulação de outros setores ou trabalhadores
também estão nas preocupações, visto que alguns não estão contemplados no plano atual, a
exemplo da Pedra do Peixe e Feira do Açaí; fora a despreocupação da prefeitura com os
ambulantes e trabalhadores individuais, como manicures, vendedores de sacola, vendedores de
diversos, carregadores.

Essas intervenções e ações reordenadoras dos espaços transpassam campos de embates


baseados nas territorialidades prévias existentes nesses próprios, que pela estruturação histórica
configuram o Ver-o-Peso de maneira outra que os usos comuns dos sujeitos visados no processo
de gentrificação – classes médias e altas. As territorialidades são formadas a partir de relações
de associação, poder e conflito pelos variados atores que interagem e se apropriam de partes da
cidade, produzindo o espaço urbano. Esses conjuntos não devem ser entendidos como
conglomerados homogêneos, mas também não individualizados e sem relações, mas em
sociação. As territorialidades, sendo um suporte material, ainda que talvez imaterial, envolvem-
se com ações de reinvindicação e direito sobre o local e a cidade. O público mistura-se com o
coletivo e/ou grupo (Medeiros 2010).

Ter o domínio do território da feira como agentes diretos é assegurar com mais firmeza
a produção de elementos que constroem “sensos de lugar” (Shamai e Ilatov, 2005) vinculados
aos anseios das(os) erveiras(os), reafirmando o espaço como um construto que transfere
impressões baseadas em seus fenômenos endógenos, afetivos e cotidianos. Assim, os saberes e
práticas medicinais são, com mais segurança, difundidos de forma parelha àquelas que fazem e
comercializam os produtos.

3.3.2 “Erveira e feirante”: agentes comerciais mediadoras(es)

A agência individual também viabiliza formas comerciais propicias a transmissão. A


existência de erveiras(os) no Ver-o-Peso acontece a ciclos geracionais extensos, marcando a
memória e cognição da população em diferentes faixas etárias. Seu lugar destacado não
acontece porque estão na mídia, encenando propagandas e constituindo itinerários turísticos,
mas primeiramente porque representa elementos de vivências comuns a grande parte da
população belenense, projetando – por meio dos saberes – um aspecto fortemente local e
identificatório.
127

Seus status social validam suas agências cotidianas, fazendo com que essas expandam-
se em nível de projeto (Velho 2013). Suas ações agenciais práticas envolvem dois campos: o
manejo do espaço e a divulgação de suas personas; ambos estratégicos para a angariação dos
consumidores variados. Ainda que com a possibilidade de suas territorialidades transpassadas
pela proposta de reforma pública, fortalecem-se no manejo material da estrutura do Setor das
Ervas, readequando espaços, decorando barracas, aumentando espaços de exibição dos
produtos, delimitando áreas de passagem, reaproveitando elementos físicos para a produção de
artigos, criando possibilidades de descanso, alimentação e cuidado com as crianças que por
ventura acompanham suas mães no trabalho. Como coloca Leite (2004) os espaços urbanos
podem sofrer “contra-usos” onde seus coletivos sociais associados insurgem contra as
iniciativas reguladoras e padronizadoras, quando, por exemplo, diferem na demarcação e
ordenação simbólica e socioespacial esperada. É um momento onde a territorialidade e seus
aspectos de pertencimento e direito influem nas práticas urbanas e sociabilidades, impelindo ou
moldando as ações gentrificadoras.

As(os) erveiras(os) possuem em sua posição de agentes, a qualidade de mediadoras,


transitando entre os diferentes públicos consumidores, absorvendo a atualização dos estímulos
e interesses coevos. Gilberto Velho demonstra como a posição de mediação que determinados
indivíduos ocupam se caracteriza pela possibilidade de circulação e troca com sujeitos de outros
coletivos e sistemas cognitivos, sofrendo e recebendo influências. Essa postura conflaga do
manejo de “informações, acessos, prestígio, credibilidade como instrumentos fundamentais
para sua atuação” (Velho 2013:146). Estar em contato e intercambio com consumidores
variados, de origens variadas, transitando em espaços que não apenas o Ver-o-Peso, mas mídia
e organizações, permite criar estratégias comerciais e de valoração dos saberes condizentes as
demandas que surgem e seus anseios individuais de erveiras(os) comerciantes:
Ao circular e transitar entre diferentes meios e mundos, são fortalecidas
a autorreferência e identidade singulares que alimentam visões do
futuro e estratégias de ação para atingir objetivos delimitados (...) Os
mediadores, estabelecendo comunicação entre grupos e categorias
sociais distintos, são, muitas vezes, agentes de transformação,
acentuando a importância do seu estudo. A sua atuação tem o potencial
de alterar fronteiras, como o seu ir e vir, transitando com informações
e valores (Velho 2013:147).

Assim, erveiras(os) absorvem os valores exógenos comuns e os adaptam as suas


realidades, criando um panorama de diálogo que possibilita o trânsito e fortalecimento do
mercado sem a descaracterização de seu ethos. A adaptabilidade também confere novas matizes
128

para a relação com os produtos, porém sem a desqualificação e superficialização dos saberes.
Estar coerente com novas demandas e situações é um valor para as(os) erveiras(os), que
reiteram seus lugares na realidade citadina dinâmica e mutável, representantes de
conhecimentos que não estão estagnados, mas fazem sentido e possuem potência em seu
contexto social coevo. O importante, entretanto, é garantir seus lugares de transmissão de
maneira desmistificada, com retornos e benefícios reais a sua atuação profissional.

Atentam-se sobre formas atuais de apresentação, venda, armazenamento, como


também modos e técnicas ocidentais de preparo, seleção de insumos não regionais e ofertas de
cura para problemas coevos à sociedade urbana. Cativar o consumidor insere-se em um
processo criativo que conflui as tonalidades próprias do comércio popular belenense, com o
ritmo do Ver-o-Peso e os recortes do Setor das Ervas, conjuntamente com os estilos e anseios
comerciais comuns aos diferentes fregueses, sendo ainda uma maneira característica da
localidade e, assim, relevante para o comércio. Advogam-se um ambiente em que o contato do
consumidor com os produtos seja permitido; que as falas e técnicas das(os) erveiras(os) para a
indicação dos artigos apropriado fluam naturalmente e de maneira pessoalizada; além de uma
estrutura que sua materialidade comporte significados de intimidade, transparecendo a estética
e os sentidos das(os) feirantes. Ao mesmo tempo, admitem o caráter turístico e seu vínculo
econômico, circunstância positiva onde suas interações são aprimoradas diariamente, de forma
orgânica e ativa, ao contrário dos discursos sobre sua decadência e míngua. Hoje, as(os)
erveiras(os) sabem como lidar com seus diferentes públicos, sabem agradar e cativar, produzir
e valorizar medicinas coevas às questões atuais; sabem encantar turistas e moradores, ensinar
conhecimentos locais, enaltecer as singularidades do que se orgulham. O Setor das Ervas está
vivo perante as relações vigentes de mercado. Decorar a seção, priorizar produtos, posar para
fotos, selecionar vestimentas, organizar suas barracas e atender de maneira pessoalizada,
valorizando a transmissão e uso de conhecimentos são modos vivificados da vigência das
práticas e saberes tradicionais de cura natural amazônica. Apesar da propaganda da necessidade
de ação sobre um local desvitalizado, “mas de grande potencial”, já existe uma realidade
dinâmica que absorve e interage com atravessamentos socioculturais múltiplos e variados.

As(os) erveiras(os) são mediadoras(es) de influências e sabem dessa sua qualidade,


por isso são ferrenhas em defender o Setor e o Ver-o-Peso de visões descontextualizadas e com
princípios desarticuladores; sabendo perceber pontos coerentes, como a necessidade de maior
segurança e salubridade, mas primeiro porque são necessidades que lidam cotidianamente,
segundo porque são comerciantes geracionais, ou seja, com avós, mães e outros parentes no
129

oficio, sendo elas(eles) mesmas(os) trabalhadoras de muitos anos, com um acúmulo de


experiências na prática mercantil.

O projeto de revitalização estrutural, os direcionamentos sobre benfeitorias à ação


mercantil91 e a inserção de discursos midiáticos e objetificadores acerca do local, das erveiras
e seus produtos visam uma atualização do Setor perante um tipo de comercialização mais
padronizada às tendências urbanas contemporâneas em relação com bens culturais. Impor novas
realidades de comércio que marginalizam a agência e competência torna-se uma violência a
medida de desqualifica as(os) sujeitas(os), suas ações e vivências. Contudo – e sim, sabendo o
forte apelo comercial do Setor das Ervas, não só por sua atuação real e operante no contexto da
cidade e população belenense, mas também em um contexto de mercado turístico visado pelo
poder público – as(os) erveiras(os) apropriam-se e retrabalham as influências externas, trazendo
suas particularidades próprias e orgânicas de relação e sociabilidade, formatando outras
estruturações mercantis nas quais suas personas midiáticas, a expressão sociocultural dos
hábitos e práticas, a noção de autenticidade e o saber tradicional, como conteúdo, demonstram
suas agências em viabilizar elementos imanentes a sua realidade.

A relação interacional entre configurações próprias e elementos das novas formulações


podem ser percebidas a partir da discussão de intercâmbio proposta por Gluckman (1987)
permitindo compreender as escolhas e apropriações das(os) erveiras(os) sobre exógenas
possibilidades de ação. De forma permeável, há percepções que geram interações criativas
(Guizardi 2012), onde as(os) feirantes escolhem formatos de atuação mais similares e digeríveis
dos ambientes mercantilizados, porém de forma agencial e elástica, uma vez que não estão
presas(os) à configurações mitificadas do “ser erveira”, não permitindo as reduções artificiais
propostas. Apropriar-se é o modo de ajustar intenções que as(os) beneficiem, garantindo a
soberania de suas escolhas sobre as influências que podem as atravessar, somando, assim, novas
condutas autorais às suas posições prévias, já mais significativas e marcantes no contexto do
Ver-o-Peso do que as inferências exógenas.

A agência individual prioriza atitudes autorais que canalizem a expressão própria de


cada erveira(o) em questão. Como atores sociais, criam-se dinâmicas de autopromoção como
forma de sustentação às práticas mercantil. Criar um ambiente que reflita suas personalidades

91
As erveiras e erveiros foram direcionadas a terem especial cuidado com a rotulagem, as informações sobre
modos de uso e componentes, além de dados sobre a barraca determinada e meios de contato digital. Essas
orientações foram feitas por meio de workshops municipais que também estiveram voltados ao fabrico, manejo
dos insumos e meios atuais de pagamento, como cartões de crédito/débito.
130

e colabore com a abordagem comercial, além de utilizar de estéticas e modos, com o apoio das
suas representações sociais permite às(aos) feirantes um panorama de atuação propício que dê
relevância particular ao seu comércio, além de refletir no destaque do Setor perante outros
pontos turísticos, mantendo a configuração dessas e desses como agentes ativos em seus
processos, escolhas e sensos.

O posar estratégico para fotografias é uma das condutas indiciárias de agência


particular dentro do Setor. Aquela(e) erveira(o) que cativa os olhares e instiga a ação fotográfica
acaba sendo reafirmado como um(a) comerciante que tem melhor mediação e intercâmbio com
os anseios do público consumidor. Tal situação age:

1) Impulsionando a notoriedade interna, dotando às personas que se destacam de


referências políticas e decisórias mais autônomas92, uma vez concluído os demais
processos de distinção – que dependem de outros fatores, como anos de trabalho,
convivência sociativa e abrangência familiar. Assim, o impulso da cotação interna
por meio da fotografia se configura como resultado de uma influência externa para
a validação interna. Esse prestígio entre as(os) colegas não está acompanhado,
necessariamente, de sentimentos de amizade, simpatia ou afeição.
2) Configurando-se uma forma de interação ao meio midiático pela divulgação das
fotos no ambiente da web, com as redes sociais virtuais. Expande-se assim a
abrangência de suas representações e narrativas próprias em canais tecnológicos
de controle difuso e aberto.
3) Ampliando a captação de novos consumidores, principalmente aqueles com pouca
relação ao Setor das Ervas e a práticas medicinais de cura, que acabam priorizando
as(os) erveiras(os) mais estéticas e articuladas para a fotografia, que também se
utilizam dessas com personalidades famosas e midiáticas para decorar seu espaço
e demonstrar sua fotogenia e importância pela consideração de pessoas notórias.
4) Assegurar uma boa autoestima e sentimento de adequação ao ambiente e aqueles
que lá circulam, garantindo sua potência e robustez como integrantes da seção,
seres ativos e realizadores dos ritmos que estão presentes no cotidiano e prática
mercantil.

92
A exemplo a representação daquela(e) que pode falar com mais propriedade, responder demandas externas e
representar o Setor das Ervas de forma mais oficial, para além da Associação, como por exemplo é colocada Beth
Cherosinha.
131

A validação da fotografia e, principalmente, a pose par tal possibilita perceber os


elementos que são queridos das(os) erveiras(os) e suas importâncias para a vivência no Setor
das Ervas; destacando suas roupas, seus produtos e si mesmas, compreende-se como essas são
questões que definem o comércio local e como a difusão dos saberes tradicionais depende
dessas para uma transmissão coerente e contextualizada aos seus promotores diretos, que
descendem de outros ainda mais permeados pela cultura primária das ervas, essa não mais
verdadeira, mas mais comum à população local que tinha menos acesso a medicina ocidental
farmacológica (figuras 44, 45 e 46).

Figura 45 Erveiras irmãs: “Tira uma foto nossa!”. Fonte: Laura Vieira, 2018
132

Figura 46 Beth Cherosinha - Fonte: Laura Vieira, 2018


133

Figura 47 Erveira Izabel. Fonte: Laura Vieira, 2018

Assim, reconfigurar os elementos caros as(os) erveiras(os) é manejar diretamente suas


escolhas e percepções autênticas sobre os sentidos que devem estar permeando a atividade
mercantil. Há uma escolha e intenção em se vestir, portar, decorar produtos, barracas e Setor, a
qual atende os sentidos, percepções e anseios das(os) comerciantes erveiras(os) sobre o que
estão comerciando e a importância dos saberes nos ambientes em que serão transplantados.
Manter formatos pessoalizados, interações afetivas e vínculos ancestrais é uma forma tanto
mercantil quanto de preservação cultural.

As erveiras e erveiros estão em interação coeva e ativa com a cidade, utilizando de


seus geracionais conhecimentos tradicionais de maneira a atuar com solidez sobre os vários
processos urbanos hegemônicos, tais quais o comércio, o turismo, a mídia, o patrimônio, a
sustentabilidade, o exotismo; adaptando-se de maneira a usufruir dos aspectos que as interessam
e rechaçando as ações desagregadoras exógenas – principalmente quando de maneira autoritária
e de pouco diálogo – por meio sociativo e/ou individual, canalizados pelos contra-usos do
espaço e a propagação das suas próprias narrativas e imagéticas.
134

CONCLUSÕES

A adaptabilidade da cultura das ervas e banhos-de-cheiro: características que envolvem


a vigência dos saberes tradicionais medicinais.

A avaliação das dinâmicas socioculturais relacionadas ao consumo de curas


tradicionais em contexto belenense coevo necessita da percepção dos atravessamentos externos
que as cidades, e essa em questão, impõem. Saberes, erveiras(os) e produtos quando analisados
em seus contextos comerciais citadinos dependem da consideração das relações entre
urbanidade e ruralidade, as quais se expressam em estigmas e processos civilizatórios
canalizados por meios atuais. Desenvolvimentismo, novos sentidos, temporalidades e
significações desconexas se mostram formas de apropriação compulsiva da cultura popular em
contexto urbano hegemônico:

(...) Belém segue o modelo da sociedade moderna, nos ‘processos de


acumulação e de concentração de capital e a precarização crescente das
relações de trabalho que aprofundam e atualizam contradições’, nos
rumos da Amazônia contemporânea. Essas mudanças refletem-se nas
cidades amazônicas, que reproduzem as múltiplas formas de
apropriação dos espaços de produção e de trabalho, que traduzem o
fenômeno urbano das cidades capitalistas. (Silva e Castro 2014:187)

A cidade, em sua miríade de conjuntos sociais, comporta tipos de associações coletivas


antes não regulares da realidade rural; nela, hábitos prévios somam-se com modos comuns da
realidade urbana (Velho 2013). Ao tratar dos saberes tradicionais de cura na cidade sujeita-se
discutir as variações do modo urbano, tanto em nível institucional quanto individual, uma vez
que esses afetam diretamente os processos difusivos e memorialísticos, essenciais para a
continuidade dos conhecimentos e práticas em questão e canalizados por sujeitos.

A partir das suas especificidades próprias e temporalidades, as atividades do Setor das


Ervas acompanham durante todos esses séculos as reorganizações políticas e espaciais urbanas,
baseando-se no meio comercial de produtos próprios a cultura e práticas regionais. Essas, não
apenas materializadas nos artigos e dentro de uma lógica de compra e venda, mas articuladoras
de interação social, transmissão e valoração de saberes, assim como de sentidos identitários
entre as(os) feirantes e perante os consumidores. A seção é uma estrutura social que tem se
mostrado permissiva à manutenção e renovação dos atributos e hábitos tradicionais regionais
no contexto da cidade – assim urbana. Relacionando lugar e os sujeitos, age na construção da
afetividade e memória; panorama básico para a estima e perenidade da cultura das garrafadas,
135

banhos-de-cheiro, ervas e afins. É também veículo de manutenção de tradições que no ambiente


urbano dificilmente teriam continuidade.

O fenômeno de vigência dos saberes tradicionais de cura natural em ambiente urbano


se compreende dinâmico, menos uma tradição fixada no tempo advinda de um molde do
passado (que está caduca nos tempos atuais) e mais uma configuração ativa que depende das
vivências dos sujeitos diversos. Essas, por sua vez, estão relacionadas com as interpelações de
memória, afetividade, identificação, senso de lugar, sentidos discursivos e subjetividades. Os
conhecimentos são em boa parte geracionais, mas sua origem, produção e atividade acontece e
dependa das realidades coevas, ou seja, não estão atrelados a um passado ancestral ou realidade
distante, essa muito menos mítica e exótica. São fenômenos que se constituem e expressam de
acordo com as circunstâncias, as quais envolvem o jogo entre os sujeitos diretos (erveiras e
erveiros feirantes) e instituições (poder público, mídia), promovendo interações permeáveis,
elásticas e conflituosas, que reagem conferindo sentidos, perspectivas e leituras. Ambos pólos
requerem de uma associação com os sujeitos indiretos, ou secundários (consumidores diversos),
os quais, por meio do consumo e receptividade dos saberes, são capazes de sustentar algum
desses dois sistemas, creditando-o de poder de atuação perante a vigência, difusão e valorização
de uma cultura popular – potência de singularidade e valia que pode servir a outros projetos.

É dessa forma que os saberes tradicionais se renovam a partir das novas configurações
externas, sejam elas de fins higienizadores, gentrificadores, econômicos, de representatividade
local ou valorização identitária. Seus agentes, sujeitos diretos e instituições, diferem-se na
utilização de suas cargas potenciais, ainda que confluam para a noção desses como fontes
singulares de valor afetivo e identitário, operadas por meio da tradicionalidade, memória e
costume. A prática medicinal e espiritual de cura e benfeitoria por meio de insumos naturais e
saberes locais, mais do que sua ação de cura, tem hoje, em ambiente urbano, importância como
bem cultural, amarrando assim significações que se inserem em discursos de patrimônio,
propriedade e nacionalismo. São formas abstratas de catalogação identitária que nem sempre
estão contextualizadas com os sentimentos e significações daqueles que diretamente se
relacionam, produzem, experienciam e interagem com os saberes e sua carga cultural.

Existem os processos de intercâmbio e permeabilidade entre as polaridades, estando


presentes concordâncias, trocas e apropriações, a exemplo do poder público absorvendo noções
comuns em seus discursos, atentando-se aos desejos e melhorias populares, além da relevância
dos costumes das garrafas, banhos-de-cheiro e afins para a população; da mesma forma as(os)
136

erveiras(os) apropriando-se de formatações mais comerciais representadas nas propostas de


revitalização. No entanto, o conflito existente nas relações de contato – em especial, as
problemáticas entre feirantes, permissionários ou não, e prefeitura. Essas envolvem o
Ministério Público, IPHAN, UFPA e sociedade organizada – demarcando as desigualdades de
projetos, expondo poderes coercitivos. Para as instituições, o fenômeno do saber tradicional de
cura, como bem cultural, possibilita a visibilidade política e retorno econômico, associando-se
aos planos de modernização “civilizatória” higienista que gentrificam, regulam e desarticulam
realidades desconsiderando formas de organização e vivência que não os padrões hegemônicos
da “única” sociedade urbanizada e desenvolvida. Determina as(os) erveiras(os)
permissionárias, e demais sujeitos de outras áreas e conjunturas afetadas do Ver-o-Peso ou
mesmo a orla belenense, em associação à um espaço e local de miséria – economicamente
potencial em sua rica expressão cultural, mas miserável, desvitalizado e esmaecido.

Para os sujeitos diretos, erveiras e erveiros produtoras(es) e vendedoras(os), os saberes


tradicionais orientam-se como elementos de fonte de renda, trabalho, valoração pessoal,
sociabilidade, laços identitários, crenças e cosmologias, fortemente imbricados em suas
experiências, constituintes de suas vivências, sendo primordiais para suas estabilidades
particulares, sociais e econômicas. A situação permite compreender a flutuação e
permeabilidade entre elementos diferenciados: erveiras(os) e poder público; tradição e
modernização.

É expressiva a relevância dos saberes e práticas tradicionais de cura sobre a sociedade


metropolizada. Configuram-se ativos e recebem influências constantes, sejam em níveis
práticos como formas atuais de apresentação, venda, armazenamento, modos e técnicas
ocidentais de preparo, etc., ou como direcionamentos narrativos, e canais econômicos 93, e,
principalmente, como unidades da constituição social e íntima de uma parcela da população. O
desenvolvimento do comércio de curas tradicionais acompanhou os processos de urbanização;
dotando as(os) erveiras(os), suas práticas e produtos de um firme imaginário sociocultural e
representativo na cidade e demais lugares onde tais configurações são validadas, possibilitando
a legitimação desses como componentes culturais representativos centrais do munícipio (Silva
2018). Tal fato expande-se contemporaneamente com a presença da mídia e dos órgãos
governamentais que enxergam na situação um potencial econômico baseado na atratividade

93
Assemelhando-se as outras relações vigentes de mercantilização de bens tradicionais em lógica urbana:
artesanato, comidas típicas, produções culturais, ritos e celebrações...
137

turística formulada sobre um véu de exotismo. Essa conjuntura está relacionada com os
processos contemporâneos de urbanização ativos em Belém. Sobre essa diversidade de
fenômenos, deve-se considerar a relação do Setor e suas expressões como próprias, mas em
diálogo reflexivo com o macro, percebendo configurações específicas do ambiente e
envolvendo os anseios mercadológicos em seus diferentes níveis e sujeitos: ora baseados nos
processos institucionais de higienização e gentrificação discutidos, ora na ação direta e
particular das(os) feirantes do Setor.

Esse panorama intrinca-se ainda mais por estar versado a questão do exotismo e
autenticidade que o consumo “da cultura” como bem estaria baseado, perspectivando a
legitimidade dos múltiplos sujeitos beneficiados com o manejo e definição dos rumos dessa.
Belém, como metrópole que valoriza políticas de atração turística para fins desenvolvimentistas
e econômicos, constitui-se uma cidade onde a diferença entre sujeitos em conjunto com a
valorização ou marginalização sociopolítica de suas existências está definida em distinções de
classe, raça e origem (urbana ou interiorana):

Em Belém, os novos padrões produtivos e de ocupação e verticalização


dos espaços coexistem com padrões tradicionais de produção de bens e
serviços, de informalidade acompanhada pela precarização da vida
urbana, reproduzindo traços culturais e particularidades de uma grande
cidade que (...) avança na dinâmica da metropolização, e ao mesmo
tempo abriga comunidades com modos de vida tipicamente ribeirinhos,
entre outros aspectos que reagem as interações entre o urbano e o rural,
permeadas por um complexidade de relações e vínculos (Silva e Castro
2014:188)

Perceber a episteme de algumas das noções que estão presentes no atravessamento da


modernização do Ver-o-Peso e do Setor das Ervas é considerar a desintegração vigente entre o
poder público e os interlocutores locais. Observa-se como as ações reformistas se baseiam em
um lapso entre a ideia de realidade urbanizada/moderna própria das cidades desenvolvidas e
ausente naquelas “subdesenvolvidas”, sendo o elemento étnico categórico para a situação
classificativa dessas. Belém não foi Paris na Amazônia ou nas Américas; as(os) erveiras(os),
exotizáveis ou não, são belenenses, paraenses e nortistas; com origens diversas (mulheres
negras, indígenas, brancas, da região norte, nordeste e centro-oeste). Romantizá-las em
conjunto com seus saberes e práticas é objetificar tais marcadores e aproveitar seu efeito
econômico por meio de discursos imagéticos, representações simplistas, prestígio turístico.
138

Considerar a agência das erveiras em aderirem, mais ou menos, às influências e


padrões externos na comercialização dos seus produtos permite olhar os processos de interação
entre a tradição e realidades novas, assim como os diferentes sistemas reguladores, seus
impactos e projetos. Fomenta outros debates que surgem a partir do choque, como a plasticidade
e dinamizações dos processos culturais e da cultura; os limites da tradicionalidade como
qualidade do autêntico; as influências padronizadoras globais sobre processos regionais e como
esses são fortemente representativos de memorias/identidades; a agência de grupos em
interação com cosmologias não hegemônicas perante estruturas homogeneizantes de caráter
mercantil; e, por fim, a capacidade dos saberes tradicionais regionais em dinamizar estruturas
sociais que se voltam a padronização.

Considerando a urbanidade e o aspecto da metrópole, que se vincula politicamente,


economicamente e socialmente com outras localidades, nacionais ou internacionais, opor-se ou
rejeitar novas realidades, se não prejudicial, é no mínimo inviável. As próprias práticas,
materialidades, sociabilidades e saberes associados ao comércio no Setor das Ervas, absorvidas
como exemplos da cultura belenense, paraense, devem também considerar as mudanças
sociotemporais. Ultrapassar essa relação, modernidade e tradição, como dois pontos
antagônicos e desvinculados, permite expor as configurações que estão atravessando os saberes
e práticas ao permear os processos de interação entre os agentes/sujeitos e lugar ao mesmo
tempo que fomentar novas configurações propícias a autonomia, preservação e profundidade
da cultura das ervas e afins em relação aos seus sujeitos diretos, erveiras e erveiros, e
secundários, consumidores. Debatendo o empoderamento local a partir das associações com
sua cultura e meio, pensando a elasticidade e dinâmica em polo positivo ou negativo dessas.
Assim, que se possa usufruir e viabilizar atitudes no ambiente citadino que comporte grupos
variados; estando atento e sensível as aspirações locais ao invés de sustentar direcionamentos
exógenos e hegemônicos que não admitem as múltiplas possibilidades advindas do encontro e
a coexistência entre o local e o global, o tradicional e moderno da estrutura metropolitana.

Dessa forma, é possível perceber novos hábitos, relações e práticas derivadas dessa
convergência, que acabam por manejar outras formas de lidar com o espaço, com os
consumidores, com colegas da feira, com as ações políticas, econômicas e mesmo com as
culturais. É uma configuração que se difere da imposição dominante e externa, ainda que se
relacione com tal; resistindo e mantendo a valorização dos produtos, do saber e das práticas de
forma afinada com o panorama citadino, considerando as suas próprias pretensões, porém em
relação. Abordar os saberes tradicionais de cura fisiológica e espiritual em contexto citadino é
139

considerar como esses adquirem, para, somando com suas qualidades afetivas e costume,
caráteres de bens culturais, dado os atravessamentos socioculturais e dinâmicas econômicas de
Belém, relacionando com o contexto urbano de consumo, sendo esse de produtos, práticas,
noções. Deve-se considerar e colocar em pauta teorias e campos que compreendam os atores,
erveiras e erveiros, como agentes em relação com natureza e também condutores dos diálogos
entre o saber tradicional e as ações urbanas hegemônicas, considerando a maneira como os dois
“modelos de ação” divergem e convergem em planos de ação de consumo.

A prática do uso de ervas, banhos, garrafadas, amuletos e demais artigos articula-se


atualmente com uma gama variada de intenções, sujeitos e projetos; expandindo-se perante
formações que não apenas o uso particular ou a tradicionalidade, mas conjunturas mistas de
valoração, significação simbólica, coerção e manejo. Tal panorama acontece pela conflução das
influências citadinas e organização urbanizada, típica dos conjuntos sociais complexos. São
necessárias abordagens que demandem considerações sobre as configurações que permeiam as
metrópoles globalizadas, considerando suas particularidades de elementos e destacando a
agência e colocações dos sujeitos diretos, os quais são tão, ou mais, influentes e ativos quanto
hegemonias exógenas, redinamizando a dualidades e relevando o dissenso (Velho 2013),
considerando as sutilezas que envolvem os processos culturais no panorama capitalista e
nacionalista.
140

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