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RESUMO
A legislação penal e carcerária do Brasil é marcada pela sua obrigação, visto pelo campo da lei, de
ressocializar os sujeitos que por ela são penalizados. Tal dever do Estado, entretanto, não discursa
pela mesma linguagem que o discurso legislativo. Sendo preciso desmanchar a estrutura revestida
pelo poder em acepções microfísicas para maiores chances de desumanizar e oprimir os sujeitos. O
presente estudo admite como objetivo principal identificar e organizar a lacuna entre o poder de punir
com prisão do Estado e o dever de ressocializar sujeitos punidos, a partir de uma lógica que permite
alargar as noções de dominação, soberania, docilização e necropolítica. Através de uma abordagem
qualitativa descritiva, usando a caracterização do fenômeno de endurecimento das penas privativas
de liberdade do Brasil, o descuido com os ambientes carcerários, o superlotamento prisional e
articulando-se dados bibliográficos: 1. demonstrando a disparidade dos números de vagas e
ocupação de vagas prisionais; 2. apresentando as intersecções entre o fenômeno de nascimento da
prisão de Foucault e o modelo brasileiro; 3. a teoria de necropolítica e soberania de Mbembe; 4.
formulações a partir da teoria da educação emancipatória de Paulo Freire como uma garantia prática
da ressocialização.
Palavras-chave:
Poder Punitivo; Ressocialização; Necropolítica; opressão.
ABSTRACT
The criminal and prison legislation of Brazil is marked by its obligation, seen by the field of law, to
resocialize the subjects that are penalized by it. This duty of the State, however, does not speak in the
same language as the legislative discourse. Being necessary to dismantle the power-coated structure
in microphysical sense for greater chances of dehumanizing and oppressing the subjects. The present
study admits as the main objective to identify and organize the gap between the power to punish with
State imprisonment and the duty to resocialize punished subjects, based on a logic that allows to
widen the notions of domination, sovereignty, docilization and necropolitics. Through a qualitative
descriptive approach, using the characterization of the phenomenon of hardening of the custodial
penalties of Brazil, the carelessness with the prison environments, the prison overcrowding and
articulating bibliographic data: 1. demonstrating the disparity in the number of vacancies and
occupation of prisons; 2. presenting the intersections between the birth phenomenon of Foucault
prison and the Brazilian model; 3. Mbembe's theory of necropolitics and sovereignty; 4. formulations
from Paul Freire's emancipatory education theory as a practical guarantee of resocialization.
Key words:
Punitive Power; Resocialization; Necropolitics; oppression.
1
Graduando no curso de Bacharelado em Direito pela Faculdade de Ciências Humanas e Exatas do
Sertão do São Francisco – FACESF.
2
Bacharel em Direito pela Faculdade de Ciências Humanas e Exatas do Sertão do São Francisco –
FACESF; Especialista em Direito Penal e Processual penal pelo Centro Universitário Leonardo da
Vinci – Uniasselvi; Técnico Judiciário e Assessor de Magistrado no Tribunal de Justiça de
Pernambuco; Professor de Direito.
1 INTRODUÇÃO
3
Sobre a história e o surgimento gradativo do nascimento do modelo punitivo por encarceramento,
ver Michel Foucault (2014).
fechados e sem ventilação. Nasce, então, um modelo de punição pretencioso não a
humanização, mas sim a ocultar a crueldade que ganha nova face: o
aprisionamento.
Estabelecimentos que privam de liberdade os sujeitos tornam-se, nessas
circunstâncias, a mais nova fisionomia da pena humanizada, ganhando a aprovação
social e devolvendo ao Estado a face de justo e firme: “a prisão, peça essencial no
conjunto das punições, marca certamente um momento importante na história da
justiça penal: seu acesso à ‘humanidade’” (FOUCAULT, 2014, p. 223). Fazendo com
que a ênfase à humanização entretece ao ponto de não ser analisado de maneira
profunda a alternativa surgente de punir prendendo, explicita Foucault, que chega a
descrever: “Para a justiça penal, uma nova era” (FOUCAULT, 2014, p. 13).
Entretanto, o que acontece é o inverso do pretendido e, mesmo não
sendo o espetáculo de crueldades, a prisão ataca o corpo encarcerado:
Segundo essa penalidade, o corpo é colocado num sistema de coação e de
privação, de obrigações e de interdições. O sofrimento físico, a dor do corpo
não são mais os elementos constitutivos da pena. O castigo passou de uma
arte das sensações insuportáveis a uma economia dos direitos suspensos.
Se a justiça ainda tiver que manipular e tocar o corpo dos justiçáveis, tal se
fará à distância, propriamente, segundo regras rígidas e visando a um
objetivo bem mais “elevado” (FOUCAULT, 2014, p. 16)
4
Em 2018 foi apresentado no senado o projeto de lei nº 166 que estabelece maior discussão sobre a
prisão após a condenação em segunda instância, alterando o art. 283 do Código de Processo Penal e
produzindo uma abertura maior das possibilidades de prisões antes da sentença condenatória
transitada em julgado, condição necessária para retirar a liberdade de alguém no Brasil.
É possível constatar que até aqui vimos produzindo uma correlação penal
daquelas que encarceram o sujeito cometedor de ilícitos penais, tal dualidade,
observando o direito brasileiro, ora versa sobre o que se diz pretender e o que se faz
no campo mesmo da prática. A face pretenciosa, precisa para justificar,
criminologicamente, do direito penal (a prisão) como algo oposto a vingança, dando
origem a formulação da satisfação baseada na punição que transforma, nascendo
daqui a, quase obrigatória, necessidade de personificar (no sentido de dar corpo) a
pena privativa de liberdade como medida justiceira e ressocializadora, observada a
impossibilidade de promover um conjunto normativo penalista sem essa defesa
discursiva de que o Estado quer, no tempo em que faz justiça, transformar o sujeito
que precisa ser reformado/cidadanizado para adequa-se a convivência com os
concidadãos. Esta face é necessária para a sustentabilidade do sistema punidor
com encarceramento na garantia da popularização da modalidade penal. Essa
observação surge da própria intersecção entre as distintas finalidades da pena
encontradas nas produções de Foucault, Mbembe e Beccaria.
Neste mesmo caminho, ao triangularizar estudos sobre soberania e
disciplina, Foucault (2019) trata de aspectos do poder, do direito e da verdade. Daí
que, baseando-se nisto, se compreende, ao menos um tanto, o discurso “verdadeiro”
que deve servir de armadura para a prática punitiva em questão, onde é preciso
tornar verdadeiro o discurso transformador da prisão para revestir ele de um caráter
inquestionável, sendo assim, direito normatizado. Direito que legitima o poder do
Estado. E mesmo não sendo pretensão do filósofo francês estudar e se aprofundar
nas estruturas do Estado e seu maquinário, utilizo-me de sua produção teórica como
ferramenta que desnuda e verifica pelo aspecto do poder, nas suas particularidades
microfísicas, exercido pelo Estado, o alinhamento entre a política penal e carcerária
do Brasil com a “verdade” foucaultiana: “somos submetidos pelo poder à produção
da verdade e só podemos exercê-lo através da produção da verdade” (FOUCAULT,
2019, p. 279).
É, pois, tal política penal e carcerária refugiada na legitimidade que ela
mesma a garante por meio dos diversos atos normativos, onde o discurso literal
promete ofertar uma prisão que transforme, ou que deveras condicione. “Estamos
submetidos à verdade também no sentido em que ela é a lei e produz o discurso
verdadeiro que decide, transmite e reproduz, ao menos em parte, efeitos de poder”
(FOUCAULT, 2019, p. 279), em outras palavras, a confecção da verdade é iniciada
pela elaboração, tramita pela interpretação e se consolida na aplicação da lei, isto é,
a palavra inquestionável, poderosa.
No Brasil, é possível apontar situações em que a lei é, sobretudo,
reconfortante no que diz respeito ao zelo pelo sujeito preso. A Lei de Execução
Penal, por exemplo, traz em seu bojo garantia assistencial impreterível ao básico de
proteção à vida e à dignidade do encarcerado, pelo que diz o artigo 10 e seguintes.
Esse mesmo artigo, ainda, formula o objetivo estatal da pena, sendo, pois, a
prevenção de crimes e a condução para a ressocialização. Vejamos, com isso, o
encontro nuclear entre a verdade inquestionável e a lei brasileira. São a mesma
coisa, ao que se parece. Ao se perceber uma série de insuficiências escancaradas
do sistema carcerário do Brasil5 e o modelo punitivo pela prisão vendido aos
brasileiros como aquele aplicado aos detentos através da lei – discurso verdadeiro
inquestionável, chega-se na percepção oblíqua de que, ao se refugiar na lei para
promover justiça, o Estado não pretende exercer seu poder soberano para alcançar
a verdade, mas sim distanciar-se da obrigação de ressocializar em detrimento da
punição por prisão nas acepções aspiradas pelo conjunto normativo penal do Brasil.
5
Ver também A Visão do Ministério Público sobre o Sistema Prisional brasileiro (BRASIL. Conselho Nacional do
Ministério Público, 2018, pp. 97-109).
junto a necropolítica formam uma máquina verdadeiramente mortal. Por isso, é
imperceptível ao olhar ausente de lentes necessárias à compreensão desse
empreendimento perverso e contrário ao que se pretende ser o espaço carcerário do
Brasil, máquina do Estado.
Mbembe (2018) norteia no sentido de que tornar o ambiente em que se
encontra o “inimigo” inabitável, usado como arma de guerra, é parte do projeto
político da morte, ou ainda, do necrocastigo¹⁰: manter em condições adoecedoras o
sujeito que ora encontra-se num processo desumanizante, faz dele alvo da morte
lenta, vestida de não intencionada e sutilmente agressiva e perversa. Em outras
palavras, o estado de guerra que coloca o ambiente carcerário nestas condições não
precisa matar de maneira escancarada e muito menos se quer que seja perceptível.
Não pretende, é certo, o presente trabalho mapear a desgraça instaurada nos
estabelecimentos carcerários do Brasil; isso já o foi. Parte-se ainda do
superlotamento tenso e visível pelos números de capacidade e ocupação já
mencionados nesta pesquisa. Sendo o de ocupação espantosamente maior que o
de capacidade. Ainda mais, ao que pode afirmar, mesmo ciente da irregularidade
numérica exposta, o Estado aumenta o teto do tempo possível ao aprisionamento,
fazendo com que o sujeito passe mais tempo neste espaço duvidoso. Isto,
entretanto, não pode ser analisado de maneira dissociada. Pelo contrário, é unindo-
os como engrenagens que fazem funcionar uma máquina de castigos mortais, que
se arranja a lente ótica para enxergar o projeto político da morte ao uso da tática de
“terra arrasada”. Sendo assim, “mecanizada, a execução em série transformou-se
em um procedimento puramente técnico, impessoal, silencioso e rápido” (MBEMBE,
2018, p. 21). Em outras palavras, o Estado se ausenta do papel de algoz, e
protagoniza a humanização e solidariedade de se colocar como provedor da
ressocialização do sujeito preso; faz isso utilizando-se da letra da lei, que é a
verdade legitimada pelo poder estatal.
Por isso, partir do lugar de quem já entendeu que o discurso normativo
pretencioso ao realojamento integrado do sujeito que cumpriu prisão é verboso e
puramente simbólico é impreterível. Está posto, tal texto, para que se ausente o
Estado dessa perversão do castigo mortal.
6
Refiro-me ao processo de retorno para a convivência em sociedade e a transformação do sujeito
preso pretendido pela ressocialização constante no cerne do objetivo da legislação penal e carcerária
do Brasil.
cidadão modelo da sociedade a qual pertence. Isso não é feito, percebe-se, pela
desumanização, mas sim pelo contrário disto.
Espera-se do Estado uma postura comparada à de uma professora que
repreende e ensina um caminho outro, oposto ao da conduta repreendida. Nessa
relação, mesmo penalizando o sujeito que ora se desvincula da conduta esperada, a
professora tenciona que aquilo, junto às intervenções educadoras feitas por ela,
fecundem a possibilidade de transformação do sujeito, ou seja, sua consciência do
erro e da necessidade de não errar. Em outras palavras, quando o Estado normal
repudia a prisão perpétua, a pena de morte e a tortura ao mesmo tempo em que
adota uma prisão pretenciosa a devolver à sociedade um sujeito outro integrado a
ela, obriga-se ele a ter a conduta da professora.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Para Foucault, o fenômeno que caracteriza esse modelo punitivo por
prisão é quando “o poder encontra o nível dos indivíduos, atinge seus corpos, vem
se inserir em seus gestos, suas atitudes, seus discursos, sua aprendizagem, sua
vida quotidiana” (FOUCAULT, 2019, p. 215). Sendo assim, percebo que essa
dominação soberana sobre o sujeito encarcerado é a lógica das prisões do Brasil em
sua essência, digo, no exercício mesmo do poder do Estado sobre os enquadrados
pela lei penal. Desde a análise dos números acerca das vagas e da ocupação do
sistema carcerário brasileiro, a exposição da degradação dos espaços prisionais por
todo o país e a linha punitiva onde ancora-se a sua política criminológica e
carcerária, é razoável propor uma delimitação, mesmo sendo ela pequena diante do
labor necessário, da distância existente entre, na prisão como ela mesma, o poder
de punir prendendo o infrator e, já pelo aspecto normativo-discursivo, o dever de
orientar à ressocialização.
a ação política junto aos oprimidos tem de ser, no fundo, "ação cultural”
para a liberdade, por isto mesmo, ação com eles. A sua dependência
emocional, fruto da situação concreta de dominação em que se acham e
que gera também a sua visão inautêntica do mundo, não pode ser
aproveitada a não ser pelo opressor. Este é que se serve desta
dependência para criar mais dependência (FREIRE, 2020, p. 73).
6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BECCARIA, Cesare. Dos Delitos e das Penas; tradução de J. Cretella Jr. e Agnes
Cretella. 2ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999. Disponível em:
<http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraDownload.do?select_action
=&co_obra=4358&co_midia=2>. Acesso em: 20 de dezembro de 2022.
FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade/ Paulo Freire. 46ª ed. São
Paulo: Paz e Terra, 2020a.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido/ Paulo Freire. 73ª ed. São Paulo: Paz e
Terra, 2020.
REDE GLOBO. Profissão Repórter: Ratos, baratas e doenças como sarna, HIV,
tuberculose e sífilis são comuns em presídios brasileiros. Direção de Caco Barcellos.
Edição do dia 07 de junho de 2017. Disponível em: <https://g1.globo.com/profissao-
reporter/noticia/2017/06/ratos-baratas-e-doencas-como-sarna-hiv-tuberculose-e-
sifilis-sao-comuns-em-presidiosbrasileiros.html#:~:text=https%3A//glo.bo/2s5QS3A>.
Acesso em: 20 de maio de 2023.