Você está na página 1de 19

A DISTÂNCIA ENTRE O PODER DE PUNIR E PRENDER DO ESTADO

E O DEVER DE RESSOCIALIZAR: NECROPOLÍTICA, CASTIGO,


DISCIPLINA E OPRESSÃO

Luiz Eduardo Garcêz de Vasconcelos Vieira (FACESF)1


Vasconcelosluiz12345@gmail.com

Esp. Renan Soares Torres de Sá (FACESF)2


profrenansoares@gmail.com

RESUMO
A legislação penal e carcerária do Brasil é marcada pela sua obrigação, visto pelo campo da lei, de
ressocializar os sujeitos que por ela são penalizados. Tal dever do Estado, entretanto, não discursa
pela mesma linguagem que o discurso legislativo. Sendo preciso desmanchar a estrutura revestida
pelo poder em acepções microfísicas para maiores chances de desumanizar e oprimir os sujeitos. O
presente estudo admite como objetivo principal identificar e organizar a lacuna entre o poder de punir
com prisão do Estado e o dever de ressocializar sujeitos punidos, a partir de uma lógica que permite
alargar as noções de dominação, soberania, docilização e necropolítica. Através de uma abordagem
qualitativa descritiva, usando a caracterização do fenômeno de endurecimento das penas privativas
de liberdade do Brasil, o descuido com os ambientes carcerários, o superlotamento prisional e
articulando-se dados bibliográficos: 1. demonstrando a disparidade dos números de vagas e
ocupação de vagas prisionais; 2. apresentando as intersecções entre o fenômeno de nascimento da
prisão de Foucault e o modelo brasileiro; 3. a teoria de necropolítica e soberania de Mbembe; 4.
formulações a partir da teoria da educação emancipatória de Paulo Freire como uma garantia prática
da ressocialização.

Palavras-chave:
Poder Punitivo; Ressocialização; Necropolítica; opressão.

ABSTRACT
The criminal and prison legislation of Brazil is marked by its obligation, seen by the field of law, to
resocialize the subjects that are penalized by it. This duty of the State, however, does not speak in the
same language as the legislative discourse. Being necessary to dismantle the power-coated structure
in microphysical sense for greater chances of dehumanizing and oppressing the subjects. The present
study admits as the main objective to identify and organize the gap between the power to punish with
State imprisonment and the duty to resocialize punished subjects, based on a logic that allows to
widen the notions of domination, sovereignty, docilization and necropolitics. Through a qualitative
descriptive approach, using the characterization of the phenomenon of hardening of the custodial
penalties of Brazil, the carelessness with the prison environments, the prison overcrowding and
articulating bibliographic data: 1. demonstrating the disparity in the number of vacancies and
occupation of prisons; 2. presenting the intersections between the birth phenomenon of Foucault
prison and the Brazilian model; 3. Mbembe's theory of necropolitics and sovereignty; 4. formulations
from Paul Freire's emancipatory education theory as a practical guarantee of resocialization.

Key words:
Punitive Power; Resocialization; Necropolitics; oppression.

1
Graduando no curso de Bacharelado em Direito pela Faculdade de Ciências Humanas e Exatas do
Sertão do São Francisco – FACESF.
2
Bacharel em Direito pela Faculdade de Ciências Humanas e Exatas do Sertão do São Francisco –
FACESF; Especialista em Direito Penal e Processual penal pelo Centro Universitário Leonardo da
Vinci – Uniasselvi; Técnico Judiciário e Assessor de Magistrado no Tribunal de Justiça de
Pernambuco; Professor de Direito.
1 INTRODUÇÃO

A legislação penal e carcerária do Brasil é marcada pela sua obrigação,


visto pelo campo da lei, de ressocializar os sujeitos que por ela são penalizados. Tal
dever do Estado, entretanto, não discursa pela mesma linguagem que as práticas
legislativas atuais: endurecendo cada vez mais as normas que prolongam penas
privativas de liberdade. A conjuntura legal da privação de liberdade do ordenamento
jurídico brasileiro, sustenta em diversos legislados o que diz a Lei n. 7.210 de 1984,
da Execução Penal, em seu artigo 1º “A execução penal tem por objetivo efetivar as
disposições de sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a
harmônica integração social do condenado e do internado”, em outras palavras,
prender, além da coerção prevencionista sentenciada oriunda do poder estatal,
anseia remitir o sujeito condenado à sociedade de maneira integrada – alguém
emancipado e cidadanizado, refere-se.
Em 2019, a Lei nº 13.964 alterou o artigo 75 do Código Penal brasileiro,
aumentando de uma só vez em dez anos a mais o tempo máximo para o
cumprimento de pena privativa de liberdade. Isto é, a nova legislação do artigo 75
fixa em 40 anos este teto. De certo, a legislação muda ao tempo em que deve se
adequar às transformações sociais contemporâneas. Entretanto, evidenciar o
crescente numeroso da população carcerária do Brasil é a maneira de contrapor a
mudança no teto de tempo máximo das penas que prendem. De acordo com o
Conselho Nacional de Justiça (CNJ), por meio do Banco Nacional de Monitoramento
de Prisões (BNMP 2.0), o número é de 897.274 pessoas privadas de liberdade no
dia 28 de novembro de 2022. O número que oscila temporariamente, chega a passar
de 900 mil presos; o que coloca o Brasil entre os países com maior população
carcerária do mundo. Entre esses números, é importante pontuar que, no último
levantamento do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) a respeito da
capacidade e ocupação do sistema prisional, a capacidade de vagas total do país foi
de 448.599 presos. A distância entre o número de presos e o quantitativo de vagas é
altamente desproporcional, como demonstrado, e isso questiona a reforma ao teto
de tempo máximo para o cumprimento de pena privativa de liberdade.
Por isso, percebe-se a necessidade de análises profundas sobre o
ordenamento jurídico brasileiro observado na punição carcerária oriunda de
sentenças que efetuam a política criminal cada vez mais severa com o
endurecimento das sanções que punem com prisão os sujeitos cometedores de
ilícitos penais, ao tempo em que se verifica a lacuna provocada ao dever do Estado,
no exercício do seu poder punir e prender, de ressocializar.
Nessa perspectiva dinâmica, a presente pesquisa tem como objetivo
identificar a distância do Estado em ressocializar sujeitos punidos pelo
encarceramento, a partir de uma lógica de dominação dos corpos pela docilização e
o castigo mortal atenuando as penas que tem como protagonista a ação do poder de
punir do Estado, contradizendo o que manda o princípio da ressocialização
garantido por lei.
Tomando por base esta lacuna do Estado de garantir o direito de
recolocar à sociedade o sujeito enquadrado nas leis penais, o estudo desenvolvido
procura: 1. organizar as intersecções entre as instituições de encarceramento do
Brasil nos moldes atuais e o fenômeno de nascimento da prisão alicerçado nas
teorias de punição, disciplina e prisão de Michel Foucault; 2. analisar o
endurecimento da política criminal e carcerária do Brasil de modo que retrate, de
alguma maneira, a necropolítica, apoiando-se na teoria de Achille Mbembe; 3.
demonstrar a individualização da pena como forma de selecionar a quem deve ser
aplicada a sanção, exercício do poder punitivo estatal; 4. apresentar formulações a
partir da teoria da educação emancipatória de Paulo Freire como uma garantia
prática da ressocialização, fazendo cumprir o dever do Estado.
Daí, é preciso, entendendo como funciona a sútil arbitrariedade e
desumanização das quais o Estado se utiliza para exercer o poder endurecido de
prender como função de algo oposto à ressocializar, desmanchar (retirar a mancha
que esconde) a estrutura pela qual ocorre a necessidade de tornar cada vez mais
rígida a política criminal e carcerária com penas progressivamente mais longas.
Através de uma abordagem qualitativa descritiva, usando a
caracterização do fenômeno de endurecimento das penas privativas de liberdade do
Brasil, o descuido com os ambientes carcerários, o superlotamento prisional e
articulando-se dados bibliográficos, o presente estudo se estrutura em cinco
momentos: o primeiro deles é a demonstração da distância entre prender e
ressocializar, por meio da legislação carcerária e o número de presos destoante do
quantitativo de vagas prisionais, no tempo em que o segundo apresenta as
intersecções entre as prisões nos moldes originários pela teoria de dominação,
docilização, disciplina e prisão de Foucault, a teoria de necropolítica e soberania de
Mbembe são demonstradas no terceiro momento, neste que é o quarto momento,
apresentar formulações a partir da teoria da educação emancipatória de Paulo Freire
como uma garantia prática da ressocialização, fazendo cumprir o dever do Estado,
e, por fim, o quinto momento tensiona como há aproximação entre as produções
teóricas, o cenário carcerário e a política penal do Brasil.

2. PENA E PRISÃO: ENCARCERAMENTO NO BRASIL E O FENÔMENO DE


NASCIMENTO DA PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE PELAS TEORIAS DE
MICHEL FOUCAULT
O fenômeno de nascimento da prisão, ora relevante, é resultado de uma
busca pela humanização das penas aos criminosos, apresenta Foucault (2014).
Essa lógica é trazida à luz quando a própria sociedade não admite mais que se
enseje sobre os seus pares penas visivelmente cruéis, desintegrantes quanto ao seu
corpo; penas que machucam, adoecem e matam de maneira lenta e perversa, como
fazia o suplício; espetacularizar a dor e a morte como forma de punição, não mais
agradava; para Foucault3, é no final do século XVIII que a pena-espetáculo por
suplício ganha cunho negativo e, neste momento, começa o nascimento dos
estabelecimentos punitivos com recolhimento:
A forma geral de uma aparelhagem para tornar os indivíduos dóceis e úteis,
através de um trabalho preciso sobre seu corpo, criou a instituição-prisão,
antes que a lei a definisse como a pena por excelência. No fim do século
XVIII e princípio do século XIX se dá a passagem a uma penalidade de
detenção, é verdade; e era coisa nova. Mas era na verdade abertura da
penalidade a mecanismos de coerção já elaborados em outros lugares
(FOUCAULT, 2014, p. 223).

É nesse movimento de revolta que sobre os feitores da justiça recaem


desprezo e impopularidade, os tornando não mais protetores da vida e das coisas,
mas sim vilões impiedosos, carrascos. Depois disso, busca-se pelo Estado uma
outra forma de punir os ilícitos penais de maneiras a revogar o pensamento que o
colocava nesse lugar de algoz. Assim, nasce um modelo novo de punir que não mais
deixa aos olhos da sociedade escancaradamente o espetáculo punitivo desumano
anterior, agora, trocado pelas altas paredes, a falta de luz, a humidade dos locais

3
Sobre a história e o surgimento gradativo do nascimento do modelo punitivo por encarceramento,
ver Michel Foucault (2014).
fechados e sem ventilação. Nasce, então, um modelo de punição pretencioso não a
humanização, mas sim a ocultar a crueldade que ganha nova face: o
aprisionamento.
Estabelecimentos que privam de liberdade os sujeitos tornam-se, nessas
circunstâncias, a mais nova fisionomia da pena humanizada, ganhando a aprovação
social e devolvendo ao Estado a face de justo e firme: “a prisão, peça essencial no
conjunto das punições, marca certamente um momento importante na história da
justiça penal: seu acesso à ‘humanidade’” (FOUCAULT, 2014, p. 223). Fazendo com
que a ênfase à humanização entretece ao ponto de não ser analisado de maneira
profunda a alternativa surgente de punir prendendo, explicita Foucault, que chega a
descrever: “Para a justiça penal, uma nova era” (FOUCAULT, 2014, p. 13).
Entretanto, o que acontece é o inverso do pretendido e, mesmo não
sendo o espetáculo de crueldades, a prisão ataca o corpo encarcerado:
Segundo essa penalidade, o corpo é colocado num sistema de coação e de
privação, de obrigações e de interdições. O sofrimento físico, a dor do corpo
não são mais os elementos constitutivos da pena. O castigo passou de uma
arte das sensações insuportáveis a uma economia dos direitos suspensos.
Se a justiça ainda tiver que manipular e tocar o corpo dos justiçáveis, tal se
fará à distância, propriamente, segundo regras rígidas e visando a um
objetivo bem mais “elevado” (FOUCAULT, 2014, p. 16)

Ora, a prisão não se desprende do corpo, pelo contrário, o coloca em


situação de controle e servidão, de modo que vulnerabiliza o sujeito preso aos
ditames do espaço que o apreende. Nesse momento, acontece o que Foucault
descreve como a formação de “delinquentes”, sendo o poder exercido sobre os
sujeitos isolados socialmente manipulador e orientado a docilizar e capacitar aos
seus desejos os corpos.
No Brasil, os aparelhos de aprisionamento de sujeitos que cometem
ilícitos penais se intersectam com a prisão em seu modelo originário pela pretensão
de humanizar suspensa pelo superlotamento, desestruturação, falta de condições
primárias de higiene e violências diversas nas unidades penitenciárias, o que
distancia o seu caráter ressocializador. Ao longo do tempo, mais se prende e por
mais tempo, percebível no cruzamento dos números de capacidade e população dos
estabelecimentos carcerários do Brasil feito na introdução deste estudo. Mesmo não
havendo vagas, a política penal endurece as penas privativas de liberdade,
garantindo a manutenção do esgotamento dos espaços prisionais a níveis que
impossibilitam o básico para os presidiários, que nessas condições se distanciam
vagarosamente cada vez mais da sua própria condição humana. Em matéria do
programa televisivo Profissão Repórter, veiculada em 2017, imagens capturadas
escancaram as insuficiências higiênicas de diversos estabelecimentos carcerários e,
pelo que afirma a própria matéria, ratos, baratas, doenças e impossibilidade de
acesso ao básico, como água potável, é negado aos detentos brasileiros.
Essa manifestação, contudo, não é algo natural e despretensioso. A
desconstrução do sujeito que chega para cumprir pena de prisão, termina pela
missão de retirar sua condição humana por meio da ausência de possibilidade de
direitos básicos ao ser humano. Mais que isso, “a generalidade carcerária,
funcionando em toda a amplitude do corpo social e misturando incessantemente a
arte de retificar o direito de punir [do Estado], baixa o nível a partir do qual se torna
natural e aceitável ser punido” (FOUCAULT, 2014, p. 289). Em outras palavras,
quanto mais o Estado usa o seu poder de prender para aumentar o número de
cárceres, garante a manutenção do modo passivo de se sujeitar a penas
endurecidas de punição através da prisão. Sendo esse estado do sujeito, os
aspectos necessários para a docilização do corpo disciplinado. Observa-se,
portanto, que há ligações estruturais desse estado de coisas que levam o sujeito
brasileiro a uma articulada fábrica de desumanização e disciplinação de corpos,
onde o próprio direito a vida não faz mais sentido. O encarceramento brasileiro tem
demonstrado a distância nada visível da efetivação própria do seu caráter
ressocializador e a legislação penalista que garante a ressocialização.
A prisão que Foucault coloca como remédio para a impopularidade do
soberano quanto as penas cruéis e desintegrantes ao corpo dos sujeitos punidos e
supliciados se mostra com a mesma natureza que o discurso legislativo das leis
brasileiras que prometem aos cidadãos uma pena humana, transformadora,
amigável e generosa à ressocialização dos cometedores de ilícitos penais. A
garantia de escolarizar o sujeito emplacado pelo Código Penal para uma busca pelo
ser perfeito aos ditames das regras de convivência social tornou-se uma forma de
popularizar a pena privativa de liberdade no Brasil, ou melhor, uma maneira de fazer
com que não recaia sob o senso de justiça do direito brasileiro a impopularidade que
o soberano quis sanar com o nascimento da prisão.

2.1 A disciplina legal brasileira sobre a pena por prisão


O princípio fundamental norteador dos ditames constitucionais do Brasil,
trazido pelo primeiro artigo da Constituição Federal brasileira, prioriza de maneira
indiscutível a “dignidade da pessoa humana” como caminho para todo o seu
conjunto normativo e, por isso, tal princípio prega garantir o fundamental aos sujeitos
brasileiros. Daí, entende-se que todos os demais atos normativos
infraconstitucionais proporcionarão a estima necessária à manutenção da ordem
pregada pela dignidade da pessoa humana.
Ao que se refere às penas que instrumentalizam a prisão no Brasil, é
observado um rol de normas que transparecem a obrigação de humanidade da
pena, pelo que traduz o Pacto de San José da Consta Rica no artigo 5º, 2 “ninguém
deve ser submetido a torturas, nem a penas ou tratos cruéis, desumanos ou
degradantes. Toda pessoa privada da liberdade deve ser tratada com o respeito
devido à dignidade inerente ao ser humano”. Além dele, em 1991 foi promulgado o
decreto nº 40, onde o Brasil ratifica a Convenção Contra a Tortura e Outros
Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes. Por fim, cita-se ainda o
Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos. Esse pluralismo de normas que
versam sobre dignidade e proibição de práticas que desgastem a dignidade humana
caracterizam o discurso normativo brasileiro no que diz respeito à garantia da
ressocialização como papel da prisão e, como isso, afirma-se que, desde o
momento da elaboração até a interpretação, a legislação do Brasil ostenta a
intencionalidade transformadora da punição que prende e, para, além disso, o
repúdio aos atos perversos, como a pena de morte e a tortura. A Carta Magna
mensura esta ostentação, sobretudo, no seu artigo 5º, XLVII “não haverá penas: a)
de morte, salvo em caso de guerra declarada, nos termos do art. 84, XIX; b) de
caráter perpétuo; c) de trabalhos forçados; d) de banimento; e) cruéis".
Ao que se mencionou na introdução deste estudo, a legislação penal e a
política criminológica brasileiras caminharam, tortuosamente, distanciando-se desse
aporte normativo, despertando importante observação sistemática da conjuntura
político-penal do Brasil e fazendo-se notar ao menos dois discursos dissemelhantes,
o primeiro é a própria corporação legal do direito brasileiro que emerge dessa
intersecção entre tratados e normas formuladores do princípio constitucional-penal
da humanidade da pena, já o segundo, desdobrando-se deste outro, é o que se
observa nos números de capacidade e ocupação dos estabelecimentos carcerários,
na prolongação do período de tempo máximo de prisão, nas condições dos
estabelecimentos penitenciários e nas discussões a respeito de alargar as
alternativas em que se pode cercear a liberdade dos sujeitos.4 Daí, um discurso
prevalece sobre o outro? A aplicação do direito brasileiro, talvez, ilustra a indagação
que emerge dessa análise.

2.2 As finalidades da pena: prevenir, inibir, transformar, vingança

Em uma sucinta demonstração, atenta-se ao pluralismo das penas, ou


melhor, de suas finalidades. Genericamente, a que se pensar a pena como
ferramenta de manutenção da ordem, da capacidade de justiça do direito de um
povo. Depois disso, percebe-se estranhas mutações da sua própria natureza e a
pena ganha roupagens diferentes pelo tempo que a caracteriza com fins distintos,
mas sempre de gênio essencial.

Não para aprofundação, mas a título de constatação, pode-se declinar a três


espécies de objetivo penal. A primeira delas é pena pelo olhar de Cesare Beccaria
(1999), justa e imediatista. Para ele, a pena não desfaz o delito, mas sim o pune de
maneira a prevenir novos atos e inibir, em caráter pedagógico, o cometimento de
mesmo ato por sujeitos do mesmo grupo social. A segunda é a pena
transformadora, que prende para retirar da sociedade o sujeito que precisa passar
por ajustes sociais que o devolvam a ela como cidadão de vida plena e contributiva,
firmada na ressocialização do punido, é tipo de pena que Foucault afirma ser objeto
de popularização do encarceramento. Por fim, tem-se a pena como mera
demonstração de poder sobre o punido, quando a pena não terá outra pretensão a
não ser dominar como provação de um poder soberano que tem desejo pela
vingança, ou seja, a punição pela sua interpretação mais perversa, a configuração
da ideia de castigo e disciplina, pelo que adiante é configurado por Mbembe como
“necropoder”.

4
Em 2018 foi apresentado no senado o projeto de lei nº 166 que estabelece maior discussão sobre a
prisão após a condenação em segunda instância, alterando o art. 283 do Código de Processo Penal e
produzindo uma abertura maior das possibilidades de prisões antes da sentença condenatória
transitada em julgado, condição necessária para retirar a liberdade de alguém no Brasil.
É possível constatar que até aqui vimos produzindo uma correlação penal
daquelas que encarceram o sujeito cometedor de ilícitos penais, tal dualidade,
observando o direito brasileiro, ora versa sobre o que se diz pretender e o que se faz
no campo mesmo da prática. A face pretenciosa, precisa para justificar,
criminologicamente, do direito penal (a prisão) como algo oposto a vingança, dando
origem a formulação da satisfação baseada na punição que transforma, nascendo
daqui a, quase obrigatória, necessidade de personificar (no sentido de dar corpo) a
pena privativa de liberdade como medida justiceira e ressocializadora, observada a
impossibilidade de promover um conjunto normativo penalista sem essa defesa
discursiva de que o Estado quer, no tempo em que faz justiça, transformar o sujeito
que precisa ser reformado/cidadanizado para adequa-se a convivência com os
concidadãos. Esta face é necessária para a sustentabilidade do sistema punidor
com encarceramento na garantia da popularização da modalidade penal. Essa
observação surge da própria intersecção entre as distintas finalidades da pena
encontradas nas produções de Foucault, Mbembe e Beccaria.
Neste mesmo caminho, ao triangularizar estudos sobre soberania e
disciplina, Foucault (2019) trata de aspectos do poder, do direito e da verdade. Daí
que, baseando-se nisto, se compreende, ao menos um tanto, o discurso “verdadeiro”
que deve servir de armadura para a prática punitiva em questão, onde é preciso
tornar verdadeiro o discurso transformador da prisão para revestir ele de um caráter
inquestionável, sendo assim, direito normatizado. Direito que legitima o poder do
Estado. E mesmo não sendo pretensão do filósofo francês estudar e se aprofundar
nas estruturas do Estado e seu maquinário, utilizo-me de sua produção teórica como
ferramenta que desnuda e verifica pelo aspecto do poder, nas suas particularidades
microfísicas, exercido pelo Estado, o alinhamento entre a política penal e carcerária
do Brasil com a “verdade” foucaultiana: “somos submetidos pelo poder à produção
da verdade e só podemos exercê-lo através da produção da verdade” (FOUCAULT,
2019, p. 279).
É, pois, tal política penal e carcerária refugiada na legitimidade que ela
mesma a garante por meio dos diversos atos normativos, onde o discurso literal
promete ofertar uma prisão que transforme, ou que deveras condicione. “Estamos
submetidos à verdade também no sentido em que ela é a lei e produz o discurso
verdadeiro que decide, transmite e reproduz, ao menos em parte, efeitos de poder”
(FOUCAULT, 2019, p. 279), em outras palavras, a confecção da verdade é iniciada
pela elaboração, tramita pela interpretação e se consolida na aplicação da lei, isto é,
a palavra inquestionável, poderosa.
No Brasil, é possível apontar situações em que a lei é, sobretudo,
reconfortante no que diz respeito ao zelo pelo sujeito preso. A Lei de Execução
Penal, por exemplo, traz em seu bojo garantia assistencial impreterível ao básico de
proteção à vida e à dignidade do encarcerado, pelo que diz o artigo 10 e seguintes.
Esse mesmo artigo, ainda, formula o objetivo estatal da pena, sendo, pois, a
prevenção de crimes e a condução para a ressocialização. Vejamos, com isso, o
encontro nuclear entre a verdade inquestionável e a lei brasileira. São a mesma
coisa, ao que se parece. Ao se perceber uma série de insuficiências escancaradas
do sistema carcerário do Brasil5 e o modelo punitivo pela prisão vendido aos
brasileiros como aquele aplicado aos detentos através da lei – discurso verdadeiro
inquestionável, chega-se na percepção oblíqua de que, ao se refugiar na lei para
promover justiça, o Estado não pretende exercer seu poder soberano para alcançar
a verdade, mas sim distanciar-se da obrigação de ressocializar em detrimento da
punição por prisão nas acepções aspiradas pelo conjunto normativo penal do Brasil.

3. A NECROPOLÍTICA A PARTIR DO SUPERLOTAMENTO, DA DEGRADAÇÃO


DO ESPAÇO E DO AUMENTO DE TEMPO DO ENCARCERAMENTO: TERRA
ARRASADA

A ideia de “castigar” o sujeito que comete ilícitos penais, é um reforço


evidente de que o Estado o coloca não como infrator da lei penal, mas sim no lugar
de inimigo dele. Essa caracterização do penalizado como inimigo logo será
percebida como uma forma de indicar o “necropoder”, que, para Achille Mbembe
(2018), é o domínio da morte pelo poder calcado na soberania e destruição. A partir
desse entendimento, a delimitação espacial e separação dos sujeitos que divergem
da verdade é o campo apto para instaurar a eliminação decorrente de um processo
sem pressa e desapegado ao cuidado com a vida e a dignidade humana, isto, pois,
aproxima a caracterização da “ocupação colonial” que degrada espaços
intencionalmente ocupados a serviço do processo disciplinador onde o biopoder

5
Ver também A Visão do Ministério Público sobre o Sistema Prisional brasileiro (BRASIL. Conselho Nacional do
Ministério Público, 2018, pp. 97-109).
junto a necropolítica formam uma máquina verdadeiramente mortal. Por isso, é
imperceptível ao olhar ausente de lentes necessárias à compreensão desse
empreendimento perverso e contrário ao que se pretende ser o espaço carcerário do
Brasil, máquina do Estado.
Mbembe (2018) norteia no sentido de que tornar o ambiente em que se
encontra o “inimigo” inabitável, usado como arma de guerra, é parte do projeto
político da morte, ou ainda, do necrocastigo¹⁰: manter em condições adoecedoras o
sujeito que ora encontra-se num processo desumanizante, faz dele alvo da morte
lenta, vestida de não intencionada e sutilmente agressiva e perversa. Em outras
palavras, o estado de guerra que coloca o ambiente carcerário nestas condições não
precisa matar de maneira escancarada e muito menos se quer que seja perceptível.
Não pretende, é certo, o presente trabalho mapear a desgraça instaurada nos
estabelecimentos carcerários do Brasil; isso já o foi. Parte-se ainda do
superlotamento tenso e visível pelos números de capacidade e ocupação já
mencionados nesta pesquisa. Sendo o de ocupação espantosamente maior que o
de capacidade. Ainda mais, ao que pode afirmar, mesmo ciente da irregularidade
numérica exposta, o Estado aumenta o teto do tempo possível ao aprisionamento,
fazendo com que o sujeito passe mais tempo neste espaço duvidoso. Isto,
entretanto, não pode ser analisado de maneira dissociada. Pelo contrário, é unindo-
os como engrenagens que fazem funcionar uma máquina de castigos mortais, que
se arranja a lente ótica para enxergar o projeto político da morte ao uso da tática de
“terra arrasada”. Sendo assim, “mecanizada, a execução em série transformou-se
em um procedimento puramente técnico, impessoal, silencioso e rápido” (MBEMBE,
2018, p. 21). Em outras palavras, o Estado se ausenta do papel de algoz, e
protagoniza a humanização e solidariedade de se colocar como provedor da
ressocialização do sujeito preso; faz isso utilizando-se da letra da lei, que é a
verdade legitimada pelo poder estatal.
Por isso, partir do lugar de quem já entendeu que o discurso normativo
pretencioso ao realojamento integrado do sujeito que cumpriu prisão é verboso e
puramente simbólico é impreterível. Está posto, tal texto, para que se ausente o
Estado dessa perversão do castigo mortal.

3.1 Soberania, erro e crime: quem é preso


Ainda apoiando-se em Achille Mbembe, é necessário trazer à tona
informação pertinente ao estudo sobre aspectos de uma lógica sobre soberania no
sentido social, ou seja, a superioridade de determinados sujeitos sobre outros. Para
ele,
a percepção da existência do outro como um atentado contra minha vida,
como uma ameaça mortal ou perigo absoluto, cuja eliminação biofísica
reforçaria o potencial para minhas vida e segurança, eu sugiro, é um dos
muitos imaginários de soberania, característico tanto da primeira quanto da
última modernidade. O reconhecimento dessa percepção sustenta em larga
medida várias das críticas mais tradicionais da modernidade (MBEMBE,
2018, p. 19)

Em outras palavras, há a separação entre soberanos e outros sujeitos,


estes não soberanos, a partir da suposição entre quem deve viver e quem precisa
morrer para que “eu” (o soberano) não tenha riscos provocados por ele a “minha
vida”. Continuando este raciocínio, distingue-se “o ‘erro’ do cidadão e o ‘crime’ do
contrarrevolucionário na esfera política” (MBEMBE, 2018, p. 23). Daí que, o
soberano é o cidadão e o contrarrevolucionário é papel desse outro sujeito não
soberano. E por isso, é preciso “criar um espaço em que o ‘erro’ seria minimizado, a
verdade, reforçada, e o inimigo, eliminado” (MBEMBE, 2018, p. 23).
Por isso, não basta perceber a presença do castigo mortal, é importante
saber que tal punição não é para todos os sujeitos. Ela articula fórmulas próprias
para a punição direcionada; a final de contas, não é matar por matar. Desde sempre,
quando se percebe a juntura do poder do Estado a serviço de interesses
pertencentes a grupos privilegiados, sabe-se que é o sujeito às margens quem vai
ser vítima. Mesmo não pretencioso a respondê-la aqui, a pergunta existe e precisa
ser alvo de reflexão: quem é preso?
Diga-se, por fim, que a soberania articulada para que seja a verdade
inquestionável, destrinchada anteriormente neste estudo, mais uma vez serve a
interesses de quem a produz, interpreta e aplica; não sendo o Estado apenas um
conjunto de instituições e poderes variados, é, também, os sujeitos que ocupam a
possibilidade de manipulação das coisas, de manipulação da verdade. Esse
importante momento do estudo produz ligação ao que Foucault (2019) formula ao
certificar que a microfísica do poder vai além do maquinário estatal, é mais que isso
e se sobrepõem ao modelo tecnológico de democracia, ou qualquer nova forma de
sistema.
4. EMANCIPAÇÃO, HUMANIZAÇÃO E INTEGRAÇÃO: A EDUCAÇÃO COMO
CUMPRIMENTO DO DEVER DO ESTADO EM RESSOCIALIZAR

A desumanização do sujeito preso responde ao projeto de castigo mortal


que precisa, antes de tudo, legitimar a possibilidade de opressão seguida de uma
série de fatores desumanizantes ao condenado. É a garantia de que o dado agora
como inimigo do Estado, não mais é sujeito dotado de sua característica humana,
crítica, de raciocínio e disposta à dignidade; o contrário disto, constata-se, seria ele
cada vez mais objetificado, ou melhor, tornado objeto (FREIRE, 2020), coisa
passível de ser naturalmente descartada. Esse processo é tratável de maneira
discursiva, antes de tudo. Ora, a legislação penal brasileira prega a ideia de que, ao
prender, o Estado pretende ressignificar a conduta e a postura do sujeito cometedor
de ilícitos penais para, adiante, devolvê-lo e integrá-lo como cidadão competente e
proveitoso para a sociedade. Faz isso através de suas legislações. Não o sendo
feito, e aberto uma distância entre o dever dele ressocializar e o seu poder punitivo,
a letra da lei é esvaziada de seu sentido e o discurso se torna “oco”, digo, é tornado
a verdade inquestionável que reproduz a vontade soberana; o que se pretende é dar
ao povo uma face cuidadosa e sensível como sendo ela o corpo do Estado,
paradigma da popularização da punição pela prisão.
Não é pretendido, aqui, propor uma metodologia de emancipação do
sujeito preso através da educação. No entanto, é abordando a distorção do
ambiente carcerário que se faz possível o entendimento de que há, sem sombra de
dúvidas, uma lacuna opaca e densa entre a lei garantidora da ressocialização e os
moldes atuais do sistema carcerário brasileiro. E que esta situação das coisas é
observada, pelo campo da educação crítica de Paulo Freire (2020), como algo que
emerge nas vulnerabilidades de uma sociedade oprimida. O sujeito oprimido é o
preso e, entretanto, não somente ele, é também os sujeitos que articulam e aprovam
a vontade soberana do discurso verdadeiro, a lei. As contribuições de Paulo Freire a
respeito de um processo libertador, não se assemelha apenas à característica da
palavra liberdade como significado de “fora dos muros da prisão”, também apresenta
indicações consideráveis sobre o desprendimento reformador necessário ao preso
para que ele possa considerar-se cidadanizado novamente. Ou melhor, encontra-se,
talvez, na pedagogia freiriana uma orientação que sinaliza a necessária
ressocialização do sujeito enquadrado pela pena de privação de liberdade.
Uma educação que possibilitasse ao homem a discussão corajosa de sua
problemática. De sua inserção nesta problemática. Que o advertisse dos
perigos de seu tempo, para que, consciente deles, ganhasse a força e a
coragem de lutar, ao invés de ser levado e arrastado à perdição de se
próprio “eu”, submetido às prescrições alheias. Educação que o colocasse
em diálogo constante com o outro. Que o predispusesse a constantes
revisões. À análise crítica de seus “achados”. A uma certa rebeldia, no
sentido mais humano da expressão (FREIRE, 2020ª, p. 118).

A educação, pela acepção deste estudo, não é apenas a relação


educador e educando do ambiente escolar, é um sistema inteligente de tratamento
dos sujeitos, aqui, os sujeitos recolhidos pelo Estado para a cidadanização6. Ou
seja, a educação não pode ser observada por uma particular definição no sentido
literal, é preciso constatar que o patrono da educação brasileira produz um “manual”
para a retirada das opressões. Se o poder soberano, morada da microfísica do
poder, que produz o direito que está a serviço da lacuna apresentada entre o
dever/poder de punir do Estado e sua obrigação de ressocializar disciplina os corpos
e os aprisiona, seria esse o estado de opressão; e se há essa condição, já
devidamente organizada por Freire (2020), há também que se falar na emancipação
do oprimido por ele mesmo.
Pode-se dizer que não há uma obrigação do Estado em emancipar ao
sujeito preso. O que ele precisa fazer é criar as possibilidades para que o sujeito
possa, ele mesmo, ser o autor de sua transformação emancipatória (2020), ou
melhor, que ele possa alcançar a consciência que não existia, ao que parece,
quando infringi as normas de conduta social, o código penal, por exemplo. Essa
afirmativa é tomada como ponto de partida para que se entenda necessário pelo
menos duas coisas para ressocialização: a primeira delas é o próprio sujeito –
alguém composto de suas fundações enquanto ser humano; a outra, constitui-se da
predisposição do Estado em ressocializar por meio de ambientes e políticas
efetivamente cuidadoras e sensíveis à missão de retornar/educar o sujeito ao
convívio em sociedade, isto é, possibilitar a construção dessa consciência que é
crítica e reflexiva. Não é levar o sujeito preso à conformação do seu estado de
preso, é instigá-lo a desgostar do status de oprimido ao ponto em que deseje ser o

6
Refiro-me ao processo de retorno para a convivência em sociedade e a transformação do sujeito
preso pretendido pela ressocialização constante no cerne do objetivo da legislação penal e carcerária
do Brasil.
cidadão modelo da sociedade a qual pertence. Isso não é feito, percebe-se, pela
desumanização, mas sim pelo contrário disto.
Espera-se do Estado uma postura comparada à de uma professora que
repreende e ensina um caminho outro, oposto ao da conduta repreendida. Nessa
relação, mesmo penalizando o sujeito que ora se desvincula da conduta esperada, a
professora tenciona que aquilo, junto às intervenções educadoras feitas por ela,
fecundem a possibilidade de transformação do sujeito, ou seja, sua consciência do
erro e da necessidade de não errar. Em outras palavras, quando o Estado normal
repudia a prisão perpétua, a pena de morte e a tortura ao mesmo tempo em que
adota uma prisão pretenciosa a devolver à sociedade um sujeito outro integrado a
ela, obriga-se ele a ter a conduta da professora.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Para Foucault, o fenômeno que caracteriza esse modelo punitivo por
prisão é quando “o poder encontra o nível dos indivíduos, atinge seus corpos, vem
se inserir em seus gestos, suas atitudes, seus discursos, sua aprendizagem, sua
vida quotidiana” (FOUCAULT, 2019, p. 215). Sendo assim, percebo que essa
dominação soberana sobre o sujeito encarcerado é a lógica das prisões do Brasil em
sua essência, digo, no exercício mesmo do poder do Estado sobre os enquadrados
pela lei penal. Desde a análise dos números acerca das vagas e da ocupação do
sistema carcerário brasileiro, a exposição da degradação dos espaços prisionais por
todo o país e a linha punitiva onde ancora-se a sua política criminológica e
carcerária, é razoável propor uma delimitação, mesmo sendo ela pequena diante do
labor necessário, da distância existente entre, na prisão como ela mesma, o poder
de punir prendendo o infrator e, já pelo aspecto normativo-discursivo, o dever de
orientar à ressocialização.

Afirma-se a necessidade de se desfazer da antiga economia do poder de


punir que tinha como princípios a multiplicidade confusa e lacunosa das
instâncias, uma repartição e uma concentração de poder correlatas com
uma inércia de fato e uma inevitável tolerância, castigos ostensivos em suas
manifestações e incertos em sua aplicação. Afirma-se a necessidade de
definir uma estratégia e técnicas de punição em que uma economia da
continuidade e da permanência substituirá a da despesa e do excesso
(FOUCAULT, 2014, p. 86).

A medida em que não se sustenta mais o poder amostrado pela face


soberana, surge uma nova mecânica de poder, o discurso verdadeiro e
inquestionável é levado a isso através da popularização do modelo “humanizado” de
pena que, fenomenologicamente, surge com o nascer do estabelecimento prisional.
Daí que, no Brasil, a garantia de sustentabilidade e aceitação da punição por prisão
é oriunda dos discursos legais (re)produzidos pelo ordenamento jurídico pátrio, à
noção de justiça, um reforço de que o Estado tem um bem-querer aos sujeitos
brasileiros caracterizado pela formulação do seu tipo carcerário ressocializador. Para
Foucault, verificar e sistematizar tal fenômeno é “entendermos com isso fazer a
história do presente” (FOUCAULT, 2014, p. 34), ou seja, revelar a que serve a
punição pelo encarceramento modelado dessa maneira.

Se tratando da modelagem do espaço prisional, além da dominação sobre


os corpos obedientes, cujo superpoder ganha o nível capilar, conforme Foucault
(2014), existe um, diria, deslocamento do fenômeno carcerário que segue a mesma
lógica, mas reverbera novos horizontes, refiro-me ao modelo mortal enquanto
política adotado como necropolítica por Mebemb (2018) presente pelo necropoder
através da prática penal do Brasil nos seus estabelecimentos prisionais. A face mais
analisada aqui é, vagarosamente, pintada no cenário carcerário por meio da
degradação de suas instalações. As altas paredes que isolam o preso dos demais
concidadãos, escondem também a falta de assistência cuidadora ao básico
necessário para cada preso. O conceito é mais uma tática, pois trata-se de arrasar o
espaço e o maquinário do Estado capacita uma condição de guerra, segue
explicando Achille Mebembe (2018). Uma guerra declarada que acoita não-
soberanos. Ou seja, talvez, exista um perfil certo de quem é o sujeito a quem foi,
pela observação da verdade absoluta, manifestada a guerra. Onde, precisa-se dizer,
há um microscópio poder, e por isso não enxergado, exercido pelo Estado enquanto
produtor, articulador e aplicador do discurso verdadeiro-inquestionável que é
ferramenta de dominação e opressão.

Entendendo não ser suficiente, para um estudo crítico como este, a já


trabalhosa missão de, em parte, identificar o distanciamento do tema questão,
debruço-me a encarar o estado de coisas em que se encontra o sujeito preso como
opressão (co)mandada pelo poder estruturado; e assim sendo, o processo que deve
encorajar a ressocialização é emancipatório:

a ação política junto aos oprimidos tem de ser, no fundo, "ação cultural”
para a liberdade, por isto mesmo, ação com eles. A sua dependência
emocional, fruto da situação concreta de dominação em que se acham e
que gera também a sua visão inautêntica do mundo, não pode ser
aproveitada a não ser pelo opressor. Este é que se serve desta
dependência para criar mais dependência (FREIRE, 2020, p. 73).

Daí, entende-se, a necedade de ver a educação não como a formalidade


estruturada na instituição ensino aprendizagem, ao menos não apenas isso. O
horizonte aqui é de produzir um “jeito de ser” para o sistema carcerário do Brasil, a
forma mesma como atua a política penal. Paulo Freire articula e induz a prática
ressocializadora, mesmo que não seja nesta intencionalidade; quando, assim, é
necessário se posicionar, de maneira crítica, diante da realidade percebível e, por
meio da validação do discurso legislativo brasileiro, propor um diálogo ajustador,
cidadanizador, em outros termos. “Para isto, contudo, é preciso que creiamos nos
homens [e mulheres] oprimidos. Que os vejamos como capazes de pensar certo
também” (FREIRE, 2020, p. 73). Em outras palavras, se ao errar o sujeito comete
ação punível com prisão, acertando, ao ter sido condicionado para o acerto, pode
ele mesmo utilizar-se do impulso emancipatório ressocializador para voltar à
sociedade na posição de cidadão.

Nesse caminho, é substancial que se articule o produto possível para


retirar a mancha que esconde ou ao menos dificulta a observação do espaço
existente e, deveras, ocupado pelos ditames do poder soberano da verdade na
feitura de uma justiça fora de suas noções pelo ponto de vista do que deve ser a
vontade da legislação penal do Brasil. E, por isso, em vez de observarmos a mera
lacuna, é inevitável que seja promovida uma mudança analítica que articula dados
numerosos do sistema prisional brasileiro e as teorias foucaultianas junto aos
desdobramentos de Mbembe que engendram a arbitrariedade soberana do poder
estatal desnudada. E, depois disto, os estudos construtores da presente pesquisa
afirmam de maneira ainda pequena, diante da grandiosa problemática, o desfavor
para o Brasil que é a situação total dos estabelecimentos que efetuam o tipo penal
aqui tratado.

Não parando por aqui, assim como é observado ser importante a


educação pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ, 2021), aporto a possibilidade de
mudar o que até aqui não gerou resultados satisfatórios: o modelo de punição por
prisão que garante mudanças faz morada na consciência, sobretudo do certo e
errado, já que isso é o âmago da produção legislativa: um conjunto de proibições e
concessões. Vista, acrescenta-se, essa consciência pela ótica crítica da educação
emancipatória de Paulo Freire. Contribuindo, assim, com o campo do direito crítico.

6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BECCARIA, Cesare. Dos Delitos e das Penas; tradução de J. Cretella Jr. e Agnes
Cretella. 2ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999. Disponível em:
<http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraDownload.do?select_action
=&co_obra=4358&co_midia=2>. Acesso em: 20 de dezembro de 2022.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em:


<https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 20
de dezembro de 2022.

BRASIL. Lei nº 7210, de 11 de julho de 1984. Lei de Execução Penal. Disponível


em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7210.htm>. Acesso em: 20 de
dezembro de 2022.

BRASIL. Lei nº 13964, de 24 de dezembro de 2019. Disponível em:


<https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2019/lei/l13964.htm>. Acesso
em: 20 de dezembro de 2022.

BRASIL. Decreto nº 40, de 15 de fevereiro de 1991. Promulga a Convenção Contra


a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes.
Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-
1994/d0040.htm>. Acesso em: 09 de maio de 2023.

BRASIL. Decreto nº 592, de 6 de julho de 1992. Atos Internacionais. Pacto


Internacional sobre Direitos Civis e Políticos. Promulgação. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/d0592.htm>. Acesso em: 09
de maio de 2023.

BRASIL. Decreto no 678, DE 6 de novembro de 1992. Promulga a Convenção


Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), de 22
de novembro de 1969. Disponível em:<
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/d0678.htm>. Acesso em: 09 de maio de
2023.

CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Estatísticas Nacional BNMP. Disponível


em: <https://portalbnmp.cnj.jus.br/#/estatisticas>. Acesso em: 20 de dezembro de
2022.

CONSELHO NACIONAL DO MINISTÉRIO PÚBLICO. Sistema Prisional em


Números. Disponível em: < https://www.cnmp.mp.br/portal/relatoriosbi/sistema-
prisional-em-numeros>. Acesso em: 20 de dezembro de 2022.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão; tradução de Raquel
Ramalhete. 42ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014.

FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder/ Michel Foucault; Organização,


introdução e revisão técnica de Roberto Machado. 10ª ed. Rio de Janeiro/ São
Paulo: Paz e Terra, 2019.

FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade/ Paulo Freire. 46ª ed. São
Paulo: Paz e Terra, 2020a.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido/ Paulo Freire. 73ª ed. São Paulo: Paz e
Terra, 2020.

MBEMBE, Achille. Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção,


política da morte/ Achille Mbembe; traduzido por Renata Santini. São Paulo: n-1
edições, 2018.

REDE GLOBO. Profissão Repórter: Ratos, baratas e doenças como sarna, HIV,
tuberculose e sífilis são comuns em presídios brasileiros. Direção de Caco Barcellos.
Edição do dia 07 de junho de 2017. Disponível em: <https://g1.globo.com/profissao-
reporter/noticia/2017/06/ratos-baratas-e-doencas-como-sarna-hiv-tuberculose-e-
sifilis-sao-comuns-em-presidiosbrasileiros.html#:~:text=https%3A//glo.bo/2s5QS3A>.
Acesso em: 20 de maio de 2023.

Você também pode gostar