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Abstract
Resumo This paper synthesizes the conclusions of a research
Artigo que sintetiza as conclusões de pesquisa vol- conducted into the recent changes underwent
tada às recentes transformações na regulação das by slums regulation, especially regarding the
favelas, notadamente quanto à formalização da formalization of real estate property and the right
propriedade imobiliária e ao direito edilício. Com to build. Based on an original empirical research
base em pesquisa empírica original e dados de and on data from previous studies, we aimed to
pesquisas anteriores, buscou-se mapear o “estado map the “state of the art” of such regulation. A
da arte” dessa regulação. Dialoga-se com o deba- dialogue with the contemporary debate on slums
te contemporâneo a respeito da configuração das configuration and on urban policies addressed to
favelas e das políticas urbanas a elas direcionadas, slums is also developed. In this sense, common
interpelando hipóteses frequentes, especialmente hypothesis are questioned, especially those which
aquelas que creem no desaparecimento de proces- argue that dialogic processes have disappeared,
sos negociais, supostamente subsumidos pela so- since they have been subsumed by a violent
ciabilidade violenta, ou que veem as favelas como sociability, or even those which conceive slums
regiões anômicas, de onde o Estado estaria ausen- as anomic spaces, where the State is seen as an
te. Sugere-se a revisão dessas hipóteses, à vista das absent agent. A revision of such hypothesis is
recentes intervenções do Estado, nas quais se veri- suggested due to the recent State policies, in which
ficam conflitos em torno do “novo” ordenamento conflicts over the “new” order proposed to the
proposto para as favelas. slums can be widely observed
Palavras-chave: regularização urbanística; regula- Keywords : informal settlements regulation;
rização fundiária; urbanização; direito de construir; land regulation; slums upgrading; right to build;
direito de propriedade. property right.
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à constituição de formas privatizadas de regu- outras, ainda não abrangidas por tais ações,
lação social. A maneira como tais problemas nas quais poderia se verificar uma espécie de
são enfrentados, seja por meio das políticas efeito onda ou efeito dominó, resultantes dos
de regularização seja por outros mecanismos, impactos urbanos mais amplos desencadeados
constituiria um poderoso indicador das possi- por ações executadas em localidades determi-
bilidades de êxito da proposta de integração, nadas. O reordenamento a que ora aludimos
da qualidade desta e, logo, dos impactos e/ou consistiria num novo arranjo entre normas lo-
resultados das políticas de regularização para cais e oficiais na composição da regulação das
a consolidação do projeto democrático. Assim, favelas, que se distinguiria do anterior em fun-
outro dos objetivos da pesquisa é o de reunir ção da nova conjuntura física e sociopolítica in-
elementos que permitam uma avaliação, a troduzida pela urbanização e regularização. En-
mais aproximada possível, da medida do êxito tre outros aspectos, essas ações têm incluído a
na realização dessa meta, tendo claro que não edição de legislação específica para cada área
se trata de uma avaliação definitiva, uma vez urbanizada, bem como o desenvolvimento de
que estamos lidando com processos em curso, ações e criação de órgãos de implementação
isto é, com objetos em franco movimento. dessa legislação, o que vemos como um novo
O novo cenário da regulação das favelas vetor a pressionar os limites do arranjo norma-
constituído pelo desenvolvimento dos progra- tivo anterior, induzindo à sua redefinição.
mas de regularização constitui um dos fatos
que tomamos no sentido de justificar a perti-
nência histórica (ou social) e teórica de nosso
objeto e das questões que elaboramos a seu
Especificidades na pesquisa
respeito. Nesse sentido, nossa pesquisa inte-
jurídica em favelas:
graria o esforço coletivo de avaliar sistematica- algumas demarcações
mente as transformações no tecido urbano in-
troduzidas pelas políticas de regularização ur- Desde a década de 1970, a obra de Boaventura
banística e fundiária ora em curso no país – em de Sousa Santos tem sido considerada uma re-
escala nacional e com ares de política urbana ferência fundamental para a pesquisa sobre as
prioritária – contribuindo para seu aprimora- relações jurídicas encontradas nas favelas. Não
mento. Como fator distintivo das demais ava- obstante, algumas diferenças relevantes, entre
liações já realizadas, aquela que ora propomos a abordagem desse intelectual e a que nos pro-
teria a singularidade de dirigir seu foco a um pomos desenvolver, podem ser demarcadas. Em
dos impactos que essas políticas inescapavel- primeiro lugar, embora as referências empíricas
mente estariam buscando, consistente na ten- de nossa pesquisa tenham reafirmado a centra-
tativa de reordenamento jurídico das favelas lidade da Associação de Moradores de Favelas
nas quais essa intervenção estatal se processa. para a reprodução das relações jurídicas e ad-
Tal impacto, talvez, não se reduza àquelas fa- ministração de conflitos nesses espaços, que
velas nas quais se executaram diretamente as constitui uma das descobertas fundamentais
ações de regularização, podendo vir a alcançar da obra de Santos, nossa pesquisa não tinha
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por objetivo investigar práticas jurídicas que, natureza de sua presença variam bastante con-
necessariamente, girassem em torno dessa forme os campos sociais;
instituição, mas, ao contrário, perquirir de que 3) possui prioridade organizativa entre as
modo essa centralidade tem se transformado, diversas formas jurídicas, dado que “todas as
nos últimos dez a quinze anos. A rigor, nossa outras formas de direito tendem a tornar a sua
pesquisa procurou mapear as instituições con- presença garantida e a organizarem e maximi-
temporâneas do que denominamos Direito da zarem a sua própria intervenção e eficácia re-
Favela – o que Santos, em seus escritos, cha- gulatória em redor dos limites, falhas e fraque-
ma de Direito de Pasárgada ou, de modo mais zas do direito estatal” (Santos, 2001, p. 300);
abrangente, de Direito Comunitário – quais se- 4) ao contrário de outras formas de poder,
riam seus agentes e que posições ocupam no funciona “como se estivesse desincorporado de
campo em que se inserem. Assim, valemo-nos qualquer contexto específico, com uma mobi-
em nosso trabalho, com as necessárias adap- lidade potencialmente infinita e uma enorme
tações, da distinção fundamental, elaborada capacidade de disseminação nos mais diversos
desde a obra de Santos, entre Direito Estatal e campos sociais” (idem, idem);
Direito da Favela. 5) tende a superestimar, ou sobreestimar,
O Direito Estatal – também designado suas capacidades regulatórias, prometendo
por Santos por Direito Territorial do Estado ou mais do que aquilo que pode efetivamente ofe-
Direito do Espaço da Cidadania – é, nas socie- recer e garantir;3
dades modernas, o Direito central na maioria 6) é a única forma de Direito autorreflexiva,
das ordens jurídicas, sendo qualificado como isto é, a única que vê a si mesma como Direito;
forma cósmica de Direito, enquanto todas as 7) tende a considerar o campo jurídico como
demais constituiriam formas caósmicas (San- exclusivamente seu, recusando-se a reconhecer
tos, 2001, p. 301).2 Seu valor estratégico reside que seu funcionamento se integra em constela-
no poder do Estado, que o sustenta, “um poder ções de Direitos mais vastas:
altamente organizado e especializado, movido
por uma pretensão de monopólio e comandan- Ao longo dos últimos duzentos anos ele
foi construído pelo liberalismo político e
do vastos recursos em todos os componentes
pela ciência jurídica como a única forma
estruturais do direito (violência, burocracia de direito existente na sociedade. Apesar
e retórica)” (Santos, 2001, p. 300). É aquele de seu caráter arbitrário inicial, esta con-
que, dentre todas as formas jurídicas, possui as cepção, com o decorrer do tempo, foi in-
seguintes peculiaridades, ou notas distintivas vadindo o conhecimento de senso comum
e instalou-se nos costumes jurídicos dos
fundamentais (cf. Santos, 2001, p. 291 e ss.):
indivíduos e dos grupos sociais. (Santos,
1) tende a estar mais difundido do que as 2001, p. 299);
outras formas jurídicas nos diferentes campos
sociais (ou espaços estruturais); 8) é um campo jurídico extremamente di-
2) sua presença na manifestações concretas versificado, abrangendo uma multiplicidade
do Direito é muito irregular, isto é, o alcance e a de subcampos – cada um deles tendo um
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direito moderno como estatal”. Nesse senti- atenção ao longo de toda sua obra: as formas
do, Santos afirma que “a absorção do direito de poder, de conhecimento, e de Direito,que
modernopelo estado foi um processo histórico funcionam geralmente como meio ou condição
contingente que, como qualquer outro proces- de exercício umas das outras (Santos, 2001,
so histórico, teve um início e há de ter um fim” p. 291). Assim, define a sociedade capitalista
(Santos, 2001, p. 170). Indo mais a fundo, o como aquela que se caracteriza “por uma su-
autor sentencia que “na realidade, o Estado pressão ideológica hegemônica do caráter po-
nunca deteve o monopólio do direito”, tendo lítico de todas as formas de poder excetuando
em vista que formas de Direito infra (ordens a dominação, do caráter jurídico de todas as
jurídicas locais, com ou sem base territorial) formas de direito, excetuando o direito estatal,
ou supraestatais (os mecanismos do sistema e do caráter epistemológico de todas as for-
mundial) coexistiram, subsistiram ou surgiram mas de conhecimento, excetuando a ciência”
em paralelo à forma própria do Estado-nação (Santos, 2001, p. 325).
(Santos, 2001, p. 171). De outro lado, o mo- Outra fonte da ideia do monopólio jurí-
nopólio estatal do Direito, se algum dia exis- dico estatal residiria no pensamento burguês
tiu, não foi sequer igualmente distribuído por em suas várias vertentes – como liberalismo,
todos os campos jurídicos, alguns deles his- contratualismo e iluminismo. Hoje, esse mo-
toricamente mais receptivos às juridicidades nopólio é um cânone político e epistemológico
emanadas de fora do Estado – Santos oferece que vem sendo objeto de crítica entre os her-
o exemplo do reconhecimento do Direito Indí- deiros do pensamento burguês, isto é, por parte
gena – embora o faça de maneira submetida de seus próprios arautos (Santos, 1982, p. 13).
ao Direito Estatal (Santos, 1982, p. 13). A ideia Sob a crise do contrato social e no contexto do
do monopólio estatal é atribuída por Santos, chamado capitalismo desorganizado,9 mais do
dentre outros fatores, aos mútuos compromis- que nunca estaria evidenciada a fragmentação
sos entre estatismo, cientificismo e positivis- do poder e o relativo declínio do poder jurídico
mo, que geraram o pressuposto ideológico de centrado no Estado, obrigado a coexistir com
que o Direito moderno, para se constituir, deve outras formas de regulação da sociedade, ad-
desconhecer o conhecimento da sociedade a vindas dos “múltiplos legisladores não-estatais
esse respeito, para, a partir dessa ignorância, de fato, os quais, por força do poder político
construir uma afirmação epistemológica pró- que detêm, transformam a faticidade em nor-
pria (Santos, 2001, p. 165). À medida que o Di- ma, competindo com o Estado pelo monopólio
reito foi se “tornando” estatal, foi se tornando da violência e do direito” (Santos, 2003, p. 13).
também científico, e, consequentemente, des- Santos situa a separação entre Direito e
politizando a dominação estatal, que transita Estado como ponto de partida para pensar cri-
de dominação política a dominação técnico- ticamente o Direito – a rigor, des-pensar – num
-jurídica (Santos, 2001, p. 165). Nesses enun- contexto de transição paradigmática, uma vez
ciados comparecem as três dimensões básicas que serviria a alguns propósitos fundamentais:
que se articulam para formar as sociedades ca- c mostrar a não-historicidade do monopó-
pitalistas, para as quais Santos procura chamar lio estatal do Direito (“não só o Estado nunca
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centrípeta, de luta pela legalidade estatal um sentido específico de função social, bem
e jamais de ruptura com ela e construção de como se sujeita a uma série de circunstâncias
uma nova legalidade, mostra-se, quanto muito, da economia doméstica e das redes de relações
parcialmente verdadeira. De fato, alguns dados pessoais do titular, que configuram uma insti-
empíricos sugerem que muitas das instituições tuição mais complexa do que aquela. Apesar
jurídicas em uso nas favelas teriam sido desen- da inegável intensificação do aproveitamento
volvidas sob a inspiração das instituições esta- dos imóveis e de sua aplicação em moldes ren-
tais – numa espécie de emulação ou simulacro tistas, tais processos não ocorrem de maneira
dessas últimas ou, ainda, como atendimento descolada de outros valores, que não se redu-
de necessidades simbólicas e políticas – bem zem ao proveito econômico a ser extraído da
como parece bastante concreta a expectativa propriedade do solo.
dos moradores de favelas no sentido do reco- O mesmo pode se dizer no tocante ao
nhecimento de suas propriedades pelo Estado. chamado Direito de Construir, no qual o mo-
No entanto, observa-se, também, a instituição vimento real dos moradores de favelas parece
de solenidades específicas ou a admissão de longe de configurar-se como a busca de uma
possibilidades inexistentes no âmbito do Di- regularidade edilícia e urbanística, nos termos
reito estatal. Mais ainda, se bem consideradas como essa se encontra colocada pela prefei-
as expectativas dos moradores de favelas com tura, a despeito dessa regularidade ser algo
relação à formalização da propriedade, bem co- que, como concepção geral, seria de interesse
mo os conflitos envolvidos na regulação, pelo dos moradores. A aplicação, ao caso estuda-
Estado, do uso e ocupação do solo nas favelas, do, da hipótese dos movimentos centrípetos e
estas constituiriam pautas para a própria re- sem caráter de rejeição ou desconfirmação da
formulação das bases legais referidas a essas ordem estatal estabelecida implicaria descon-
matérias, e da própria política de intervenção siderar os jogos de força – latentes ou explíci-
estatal nas favelas, incluídas aí as estratégias tos – entre Estado e classes subalternas, que,
de construção e de implementação da norma- no caso, envolvem disputas relativas a um
tividade estatal. novo sistema de classificação dos espaços na
Portanto, o movimento real, captado em favela. Tal movimento teórico corresponderia,
nossas pesquisas, não se caracterizaria como em linhas gerais, ao movimento que tem si-
um movimento puro e simples em direção à do feito, pela prefeitura, no campo político,
legalidade estatal, tal como ela já está posta, interpretando que o mesmo está imbuído
mas a uma legalidade, em parte, transformada de diversos aspectos de violência simbólica,
pela incorporação das instituições das favelas e pautado na eterna busca de uma “reforma
das aspirações de seus agentes. Uma das evi- cultural” dos moradores da favela, usualmen-
dências nesse sentido residiria nos contornos te proposta no âmbito dos processos de regu-
que a instituição da propriedade assume nas larização e de implementação da normativa
favelas. A despeito da mercantilização dos imó- urbanística estatal, e que constitui uma das
veis, que evocaria a concepção de propriedade- faces visíveis do projeto político subjacente
-mercadoria, essa mesma instituição assumiria aos referidos processos.
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uma característica exclusivamente observável contenção desses mecanismos. Com isso, nos
no caso das favelas. afastamos das teorias que interpretam os pro-
Por outro lado, observamos a reação cessos sociais, nas favelas, com base na noção
negativa dos moradores das favelas diante do de ausência ou carência do Estado, o que reme-
controle edilício ensaiado pelo Estado, inclusive teria os moradores de favelas, inescapavelmen-
com a possibilidade de resolução desse conflito te, à legalidade de fato dos agentes nela esta-
mediante o uso da força. Em nossa perspectiva, belecidos, numa versão moderna do estado de
esse fato sinaliza para o que, baseados em San- natureza hobbesiano. Julgamos mais adequado
tos, nomeamos como o componente violento, o esforço teórico em se tentar apurar as formas
observável em diversos momentos do processo específicas de atuação do Estado nas favelas,
de regulação das favelas, no qual visualizamos, as vicissitudes, nuanças e estratégias que esse
além desse, as normas costumeiras, oriundas desenvolve diante delas. Consideramos que o
dos pactos estabelecidos entre os moradores e, estabelecimento de um ângulo de análise, co-
por fim, as próprias normas editadas pelo Esta- mo aquele que aqui propomos, estaria mais ap-
do, configurando uma tríade em relação dialé- to a captar e analisar os movimentos dos agen-
tica e contraditória. Nossa hipótese é a de que tes desse campo, caminhando numa linha que
a importância do componente violento, no caso busca reconhecer o que as favelas objetiva-
de cada favela, seria determinada de acordo mente têm, isto é, qual o conteúdo das relações
com o status e o perfil de atuação dos agen- sociais que a envolvem, quais as instituições e
tes que operam no campo que nelas se confi- agentes que nela interagem, de que modo es-
gura. Em outras palavras, dada a importância ses operam, escapando, assim, do viés analítico
relativa dos agentes que operam baseados em que procura “conhecê-las” com base naquilo
mecanismos violentos – como a boca de fumo que, real ou supostamente, lhes faltaria.
e as agências do Estado (não exclusivamente,
aquelas de natureza policial) – importância
que é dada pelo grau de legitimidade local de
outros agentes, que possam representar um
As constelações entre o estatal
contraponto ou alternativa em relação a esses,
e o comunitário e a crítica
a capacidade de influenciar – e, no limite, de à perspectiva dualista
“contaminar” – as relações estabelecidas nes-
se local, pode ser maior ou menor. Os dados revelados, por nossa pesquisa, pare-
As agências do Estado, na verdade, te- cem reforçar a tese de que as ordens jurídicas
riam a capacidade de atuar nos dois pólos que estatal e da favela encontram-se em um contí-
acima definimos, quer como um agente que nuo e conflituoso processo de diálogo, havendo
pode atuar no sentido de reforçar (pela ação, diversas formas em que uma é condicionada
precária ou não, e pela omissão) os mecanis- pela outra, por exemplo, no processo em que as
mos violentos de construção e imposição da instituições, rituais e procedimentos, adotados
ordem jurídica e urbanística local, quer como no âmbito da favela, constituem-se recorren-
agente capaz de intervir como contraponto ou do à incorporação de elementos originários da
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ordem jurídica estatal. Vemos nesse processo apresentariaa vantagem de melhor levar em
um capítulo dos conflitos sociais mais amplos, conta as transformações ocorridas, especial-
próprios de sociedades capitalistas como a mente, nas últimas três décadas, em que uma
brasileira, isto é, tratar dessas ordens jurídicas série de equipamentos e serviços públicos che-
constitui nada mais do que um ângulo para tra- gou às favelas, que culmina com a difusão de
tar de como se constitui a ordem social, como políticas públicas de regularização. Tais fatores
um todo. Não estamos, pois, diante de duas seriam determinantes de dinâmicas novas, mul-
ordens estanques, isoladas entre si, o que re- tiplamente determinadas e, logo, mais com-
presentaria uma perspectiva dualista a respeito plexas do que a tradicional noção de exclusão
do objeto estudado, perspectiva que refutamos pode comportar.
em nossas referências teórico-metodológicas. Nossa crítica ao dualismo também signi-
Pode-se afirmar, com maior rigor, que estamos fica que recusamos uma perspectiva moral na
diante de uma juridificação híbrida, isto é, o abordagem das duas ordens jurídicas em ar-
Direito da Favela, a que aqui nos referimos, re- ticulação, visão que promoveria a associação
presenta não uma “outra” ordem, inteiramente intrínseca de virtudes positivas (democráticas,
diversa e apartada da estatal – daí porque não liberais e/ou emancipatórias) a uma delas e
nos valemos da expressão Direito Alternativo, negativas (autoritárias, opressivas, excluden-
adotada em parte da literatura – ou, ainda, de tes), à outra, ou vice-versa. O fato de falarmos
uma ordem necessariamente em déficit, peran- de uma ordem jurídica interna à favela não
te a estatal, mas de uma ordem jurídica cons- significa que ela seja, necessariamente, me-
truída no embate, no diálogo e na contradição lhor ou pior, mais ou menos democrática, do
com aquela posta pelo Estado. que a ordem legal estatal. De fato, na ordem
Por outro lado, o fato de recusarmos o estatal encontramos uma retórica democráti-
dualismo metodológico, acima referido, não se ca mais consistente do que na ordem comu-
confunde com a negativa do reconhecimento nitária, bem como instrumentos mediante os
da situação de subordinação, à qual as coleti- quais essa ordem democrática pode ser rea-
vidades favelizadas encontram-se submetidas, lizada, sobretudo no que tange à legislação
posto que a comunicação e os fluxos existen- produzida na esteira da Constituição de 1988.
tes, entre essas ordens, são profundamente No entanto, a ordem legal estatal possui uma
desiguais, parecendo-nos correta a hipótese de série de contradições no que diz respeito à
Santos a respeito da “troca desigual de juridi- regulação das favelas, ensaiando a retomada
cidade”, que vigoraria entre Estado e favelas. de instituições – como as do congelamento
Nossa recusa do apontado dualismo signifi- urbanístico, da regularização a título precário,
ca, diversamente, não recorrermos à noção e da remoção – que não parecem inspirados,
de exclusão como ferramenta explicativa dos propriamente, em propósitos democráticos e/
processos sob análise, uma vez que nossa in- ou emancipatórios.
terpretação caminha na perspectiva da integra- O dualismo metodológico, que critica-
ção subordinada, que nos parece mais acertada mos, parece comparecer em trabalhos acadê-
e fértil ao trabalho analítico. Tal perspectiva micos e jornalísticos que tratam do problema da
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não vigência, de fato, do Estado legal e/oudas ciações de Moradores de Favelas, de princípios
ambiguidadesdo funcionamento do sistema bastante assemelhados aos cultivados no âm-
legal,como um problema restrito às favelas e bito do Direito estatal que rege os registros
às outras regiões, definidas, costumeiramen- imobiliários,constituiria, a nosso ver, a ponta
te, como cidade informal. Na verdade, esse do iceberg de um processo maior de apro-
é um problema que diz respeito ao conjunto priação das instituições oficiais. Por mais que
da cidade e ao Direito Urbanístico de maneira algumas dinâmicas sociais sejam efetivamente
geral, este último histórica e recorrentemente duais, e que a própria visão dos moradores de
marcado por crônica inefetividade, o que tem favelas, a respeito do espaço em que vivem, se-
motivado a hipótese de que não representaria ja, em grande medida, marcada por uma pers-
uma área central dos processos de dominação pectiva dualista, tais aspectos não podem ser
jurídica e política (Santos, 1982) e/ou de que transportados acriticamente para o plano da
não teria sido adequadamente articulado, no teoria social, de forma a determinar a aceita-
pacote de intervenções e de direitos básicos, ção do dualismo metodológico, o que compro-
que surgem no bojo da formação do Estado meteria seus resultados analíticos.
de Bem Estar Social, no caso brasileiro(Car-
doso, 2003). Com base nessas hipóteses, pre-
ferimos afirmar que o sistema legal, de manei-
ra geral, apresenta graduações em sua efetivi-
A qualificação da regulação
dade, ao longo do tempo e do espaço social e das favelas: nossas hipóteses
em função de diversas circunstâncias, que não
se reduzem de maneiraalguma aos espaços O debate a respeito da regulação das favelas
ditos “informais”, “de exceção”, dentre outras impõe o enfrentamento de algumas questões
já propostas. Entre as variáveis condicionan- atinentes à qualificação dessa regulação, o que
tes dessa graduação, que pode afetar a medi- dispomos em três dimensões:
da e a maneira como as normas legais se im- 1) quais as fontes materiais dessa regulação?
plementem, poderíamos citar tanto o aparato 2) de que valores essa regulação estaria imbuída?
institucional organizado pelo Estado a fim de 3) qual a especificidade dessa regulação em
fazer cumprir as normas estabelecidas, como relação àquela vigente para as demais regiões
as estruturas sociais, que podem opor resis- da cidade?
tências ou operar como facilitadores. Partimos da hipótese de que a regulação
Apesar de alguns moradores de favelas das favelas possui dois pilares – o do Direito
fazerem distinções rígidas entre as normas que Estatal e o do que Santos denomina Direito
valem dentro e fora da favela, o fato é que o Comunitário – e, mais do que isso, ela decorre,
espaço da favela parece ser amplamente re- concretamente, das constelações de juridicida-
gulado, bem como, nele, observa-se a presen- des, elaboradas a partir das interações, com-
ça relevante de diversas instituições oficiais. O binações e articulações de princípios, regras e
caso paradigmático da absorção, pelas Asso- procedimentos, oriundos desses dois campos.
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O Direito Estatal teria por fonte principal o jurídicas, que regulam o campo das favelas,
sistemalegal – composto pelos atos norma- com as quais buscamos responder às questões
tivos, expedidos pelo Legislativo e, também, acima colocadas. Tais hipóteses poderiam ser
pelo Poder Executivo –, enquanto o Direito enunciadas, na forma abaixo:
Comunitáriodecorreria de usos e costumes, 1) as mudanças em curso nas favelas, desde
elaborados localmente, que se traduzem, por o início do processo de regularização urbanís-
exemplo, na concepção de um código de obras tica e fundiária, não indicam a ocorrência de
comunitário ou de um sistema comunitário de contestação ou esvaziamento da autoridade
formalização da propriedade. Essas estruturas e/ou da legitimidade da Associação de Mora-
regulatórias, provavelmente, estão relaciona- dores, no desempenho da função de controle e
das a práticas jurídicas trazidas dos locais de formalização da propriedade imobiliária, isto é,
origem dos moradores de favelas, visto que um de registro, reconhecimento e publicidade dos
grande contingente deles é natural de outras atos de aquisição e transmissão de imóveis, na
regiões do Estado do Rio de Janeiro e do país, escala local. As tendências captadas não apon-
ou mesmo de outras favelas. tam para a dissolução ou superação desse sis-
No caso da cidade do Rio de Janeiro, a tema, que, em tese, pode vir a se combinar com
última década se caracteriza pelo fato de a Pre- um sistema estruturado pela Prefeitura e/ou
feitura iniciar um investimento institucional no com outros sistemas (estruturados em outros
sentido de estabelecer uma legislação urbanís- órgãos públicos, como os cartórios ou agências
tica voltada às favelas, na esteira dos progra- de serviços públicos), aos quais os moradores
mas de urbanização e regularização, o que im- recorram a partir de suas conveniências, os
poria a negociação de novos limites e frontei- quais têm operado, até aqui, como mecanismos
ras com o Direito Comunitário. Nesse contexto, preparatórios ou complementares àquele geri-
emergem questões que dizem respeito: do pela Associação.
• aos significados dessa legislação editada 2) a hipótese anterior não significa afirmar a
pelo município; não importância dos sistemas de formalização
• aos impactos do advento dessa legislação da propriedade imobiliária que coexistem com
sobre os usos e pactos pré-estabelecidos; aquele centrado na Associação de Moradores,
• aos impactos do advento dessa legislação que podem ser quantitativa e qualitativamente
sobre as percepções e sensibilidades dos mo- tão expressivos quanto esse.
radores, com relação àquilo que constituiriam 3) os diversos sistemas de formalização não
seus direitos sobre o espaço em que vivem; parecem operar de maneira competitiva ou an-
• ao que resultaria, em termos de dinâmicas tinômica entre si, mas, ao contrário, parecem
de regulação, da dialética entre as novas nor- ser mutuamente dependentes, de forma que
mas legais e as normas comunitárias, tradicio- o advento do sistema centrado e gerido pelo
nalmente vigentes. Estado poderia vir a fortalecer, indiretamente,
Resultaram de nossas pesquisas algumas aquele centrado na Associação de Moradores,
hipóteses relacionadas ao que seria o estado até mesmo porque aquele se organiza, em boa
atual das interações entre as diversas formas medida, apoiado nesse.
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emulaçãode cima para baixo. Os dados de nos- Uma hipótese que nos parece mais rudi-
sas pesquisas apontam na direção da operação mentar, a respeito da questão colocada, afirma-
de processos de comunicação, de alguns rituais ria que as semelhanças em tela constituiriam
e procedimentos legais definidos pelo Estado, uma espécie de necessidade lógica e/ou uma
aos costumes vigentes na favela, hoje menos necessidade operacional, isto é, as normas es-
discreta e imperceptível do que em contextos tatais, incorporadas à prática jurídica dos mo-
passados, não merecendo sequer o rótulo de radores de favelas, decorreriam do bom senso
um processo novo, uma vez que já estaria em na administração dos negócios imobiliários,
curso há algum tempo. A despeito dos proces- sem o qual essa perderia sua racionalidade.
sos, históricos e estruturais, de segregação so- Mais forte, no entanto, parece-nos ser a pers-
cioespacial, tal fator não tem sido impeditivo pectiva que toma esse movimento, de emula-
de que haja certo intercâmbio e/ou apropria- ção e de reapropriação das instituições esta-
ção, de instituições oficiais do Estado, por parte tais, como estratégia, talvez não rigorosamente
das coletividades favelizadas. O processo opos- planejada, de pavimentação das relações da fa-
to também ocorreria, porém, possivelmente, em vela com os mundos do Estado e da legalidade,
escala menor e de uma maneira mais racionali- conferindo, assim, maior força à sua posição.
zada, exprimindo-se, por exemplo, no princípio Tratar-se-ia de uma via de acesso à cidadania,
do respeito à tipicidade local nas intervenções desenvolvida pelos segmentos sociais faveli-
do Estado em favelas, princípio incorporado ao zados, que, por meio da apropriação das ins-
Plano Diretor e à legislação específica, para tituições do Estado, buscaria legitimar, interna
as favelas cariocas. Assim, as favelas estariam e externamente, suas próprias instituições. Tal
mais integradas à vida social do que aparen- hipótese confirmaria a percepção clássica do
tariam, à primeira vista, com o que se reitera a poder simbólico do Direito Estatal nas relações
crítica à interpretação dualista da sociedade. À sociais modernase contemporâneas, reconhe-
medida que as estruturas jurídicas internas das cida tanto por Santos, como por outros cientis-
favelas se institucionalizam, elas parecem ten- tas sociais (v. g., Bourdieu, 2004), que induziria
der a absorver algumas técnicas e instrumentos os mais diversos agentes sociais (não somente
de administração da vida coletiva incorporadas aqueles das favelas, portanto) a buscarem, sis-
ao ordenamento estatal, apropriadas, há mais tematicamente, recobrir legalmente seus inte-
tempo, pelos agentes extralocais. Cogitamos resses e instituições, produzindo uma narrativa
de tal processo sem deixar de frisar, conforme jurídica a respeito deles, inspirada na institucio-
acima colocado, que ele ocorre em paralelo e nalidade jurídica dominante – aquela oriunda
em combinação com pelo menos outros dois, do Estado. Em nossas pesquisas, deparamo-nos
que identificamos como processos de resignifi- com uma série dessas narrativas, nas quais os
cação das instituições estatais e como criações entrevistados (de moradores de favelas a téc-
originais da experiência jurídica da favela, que nicos da Prefeitura) elaboravam suas próprias
assinalam o fato de o Direito Comunitário não leituras, representações e interpretações acerca
se resumir a uma cópia “de segunda mão” do daquilo que figuraria na legislação em vigor, as
Direito estatal. quais soavam para nós, enquanto advogados,
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como noções equivocadas e sem suporte legal cariocas, os quais, a princípio, possuíam vín-
objetivo, mas que demandam serem olhadas culos com instituições externas a elas,10 e que,
como resultado do processo social de apro- mais recentemente, passaram a se estabele-
priação jurídica, a que aqui nos referimos. Uma cer na favela ou mesmo a serem moradores
questão teórica, a ser explorada futuramente, e lideranças comunitárias, num processo de
no sentidodo aprimoramento teórico da hipó- progressiva internalização do capital técnico
tese que aqui ensaiamos, consistiria em discuti- do Direito. Um dos casos mais emblemáticos
-la à luz de alguns conceitos, elaborados no e remotos que encontramos recai sobre a fi-
âmbito do pensamento social brasileiro, a fim gura de Magarinos Torres, que, ao longo das
de dar conta das relações entre dominantes e décadas de 1950 e 1960, além de advogado,
subalternos no sistema social. foi um importante presidente de Associação
A similitude de procedimentos aqui de- de Moradores na favela da Maré, tendo lide-
batida, a princípio, surpreendeu-nos, na medi- rado e organizado os processos de ocupação e
da em que não supúnhamos que as lideranças parcelamento do solo em áreas como Parque
comunitárias tivessem qualquer formação ju- União e Rubens Vaz, além de ter sido quadro
rídica. No entanto, apuramos, em mais de um do PCB.
dos casos estudados, que antigas lideranças A questão da participação de advogados
comunitárias – ex-presidentes e ex-diretores – em movimentos comunitários de favelas, e sua
haviam cursado faculdades de Direito, alguns contribuição com esses movimentos no senti-
deles tendo obtido inscrição nos quadros da do da instrumentação jurídica das lutas dos
OAB e encontrando-se em franca atuação ad- moradores dessas localidades, afigura-se como
vocatícia. No período recente, tem aumentado outradentre as questões que resultaram de
a presença de profissionais do Direito nas fave- nossas pesquisas, e que ficam em aberto para
las. Numa delas, verificamos que uma advoga- sua retomada em pesquisas futuras.
da aí estabeleceu seu escritório, que lá funcio- Diante do exposto, chegamos às seguin-
na há quase dois anos, tendo o projeto de abrir tes proposições gerais, com relação às influên
uma sucursal em favela vizinha. No mesmo lo- cias do Direito Estatal, na conformação do Di-
cal, a Associação de Moradores oferece orien- reito da Favela:
tação jurídica gratuita aos moradores, através a) as leis do Estado possuem uma vigência
de um advogado que faz plantões semanais na relativa nas favelas, na medida em que (1) en-
sede da própria associação. Por fim, identifica- contram estruturas jurídicas que não se con-
mos a atuação de três corretores imobiliários formam facilmente às suas disposições, (2) o
nessa mesma favela, um deles morador do investimento institucional do Estado, em sua
local, além de ex-dirigente associativo e atual efetivação, revela-se, muitas vezes, limitado,
pastor protestante. Em outras localidades, ob- e (3) a debilidade de espaços públicos como
servamos que advogados integram a própria fontes produtoras da normatividade estatal
diretoria da Associação de Moradores. Nossas recém-estabelecida cria um déficit considerá-
pesquisas legaram-nos a percepção de que é vel entre os comandos legais e as expectati-
antiga a presença de advogados nas favelas vas normativas dos moradores de favelas.
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Moradores, à míngua de qualquer convênio favor, deve-se atentar, por outro lado, para os
com os órgãos estatais competentes); a requi- sinais contidos nos movimentos contrários aos
sição judicial (dirigida à Associação de Morado- projetos estatais, muitas vezes apressadamente
res) de informações a respeito de imóveis situa- desqualificados, conforme verificamos nas pu-
dos na favela; as ordens judiciais no sentido de blicações oficiais da Prefeitura do Rio de Janei-
que se promova (nos registros da associação) a ro (a exemplo de Rio de Janeiro, 2008) e mes-
partilha de imóveis de casal que se divorciou, mo em algumas entrevistas com seus agentes.
tal como é feito em relação aos cartórios do re- Tais movimentos são indicativos de que muito
gistro imobiliário. embora intervenções de urbanização e regu-
Quanto ao aspecto da titulação da pro- larização sejam, de maneira geral, desejáveis,
priedade, prometida pelo Estado, no processo isso não autoriza a supressão do complexo e
de regularização – à qual os moradores se refe- necessário debate a respeito dos interesses que
rem como “passar a escritura da casa” – muito estaria concretamente atendendo, bem como
embora os moradores de favelas costumem ser de seu modus faciendi, o que exige que a aná-
enfáticos em afirmar seu interesse em que tal lise desça aos pormenores de seus procedimen-
medida seja implementada – o que sugeriria tos e considere as inúmeras questões que aí se
a idéia de que ela seria, no mínimo, algo mo- abrem. Nos casos que estudamos, e mesmo em
ralmente válido – também avaliam, por outro outros citados na literatura especializada, ob-
lado, que a eficácia dessa medida será pequena servamos que os movimentos dos moradores
caso não acompanhada de outras, no sentido da favela mostram que os mesmos pretendem
de garantir a efetiva segurança da posse. Po- assegurar alguns valores que podem não es-
demos afirmar que um dos desafios para as tar contidos nos projetos urbanísticos, não se
políticas de regularização, na Cidade do Rio de reduzindo suas expectativas à segurança da
Janeiro, consistiria em propiciar uma titulação posse e à dotação de infraestruturas e serviços
que se revele eficaz tanto para dentro da fave- públicos, conquanto tais medidas sejam de ine-
la – considerando-se as circunstâncias de sua gável relevância. Tais movimentos reafirmam
ordem interna – quanto para fora dela. Os me- que, mesmo em meio à precariedade física e
canismos de formalização da propriedade de- urbanística, existem determinadas conquistas
senvolvidos nas favelas, muito embora tenham e aquisições que também estão em jogo, nos
cumprido um importante papel na estabiliza- momentos em que se implantam projetos ur-
ção das relações sociais referentes ao acesso à banísticos. Assim, a não consideração atenta
terra e à moradia, em geral defrontam-se com de tais valores constituirá, fatalmente, objeto
a última das duas limitações acima referidas. de conflitos e resistências, nem sempre inter-
Se é passível de crítica a concepção de pretados corretamente, uma vez que, frequen-
que os moradores de favela seriam portadores temente, atribuídos a qualidades negativas dos
de uma cultura autóctone, que buscaria se re- moradores e/ou de suas respectivas lideranças.
produzir sem a interferência do Estado, sendo No tocante ao Direito de Construir, tam-
mais verossímil afirmar que possuiriam a ex- bém se coloca de maneira bastante evidencia-
pectativa de que o Estado intervenha em seu da o projeto de reordenamento jurídico das
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favelas por parte do Estado. Muito embora os enumerar(1) a desorganização dos controles
processos de controle, estabelecidos pela Pre- comunitários preexistentes à intervenção esta-
feitura, busquem, em alguma medida, se arti- tal; (2) a tendência à expropriação dos espaços
cular com as forças internas da favela – v. g. públicos; (3) a imposição de novas normas de
imbricando-se com a Associação de Moradores maneira apartada de processos consistentes
e valendo-se de instrumentos como os agentes de negociação e deliberação; e (4) o recurso a
comunitários e representantes de rua – não há expedientes de violência simbólica, tais como
como esconder a gama de conflitos envolvidos a proposta dita “socioeducativa” e de “reedu-
nessa proposta. Dado o alcance considerável cação cultural” (cf. Rio de Janeiro, 2008), aos
desses conflitos, os mecanismos de imbricação quais podem eventualmente se somar aqueles
comunitária da regulação e controle urbanísti- de coação direta, como a realização de demoli-
co afiguram-se-nos indiscutíveis mecanismos ções. Tudo isso transcorre num quadro em que
de amortecimento desses conflitos, a fim de mi- não se acena com a realização de investimen-
nimizar as dificuldades inerentes ao processo tos permanentes em infraestruturas e serviços
de reordenamento, fatalmente percebidas pe- nas favelas objeto dessa regulação – aquelas
los agentes públicos logo no primeiro momen- que já receberam obras de urbanização – que
to de sua implantação. Tais dificuldades não se venham, ao menos, assegurar a manutenção
reduzem às resistências opostas, pelos morado- dos benefícios implantados quando da exe-
res, à implementação da nova ordem urbanís- cução do projeto de urbanização. Em suma,
tica projetada para o local em que vivem, mas trata-se de uma combinação de fatores na qual
são agravadas pelos problemas de ordem polí- se acentua o aspecto regulador da ação do
tico-administrativa, que também acompanham Estado, não se abrindo espaços para medidas
a trajetória dos programas para favelas desde de caráter emancipatório, a essa altura funda-
seu surgimento. Parece-nos haver um grande mentais não somente para atender demandas
descompasso entre a ousadia da proposta de acumuladas, como para modificar a imagem, já
reordenamento territorial e os meios e condi- muito desgastada, de que o Estado goza nas
ções objetivas disponíveis para tanto, o que faz favelas, não se vislumbrando perspectivas de
com que sejam incertos os efeitos dos mencio- superação dos problemas reais, relativos ao
nados programas. seu desenvolvimento como partes da cidade.
Entre os efeitos perceptíveis que a inter- Nesse quadro, as estratégias defensivas e rea
venção do Estado nas favelas cariocas estaria tivas ora em curso – tipificadas, de um lado,
engendrando, registramos alguns classificáveis pelo discurso da irregularidade articulado pelos
como positivos – alguma orientação técnico- agentes públicos, e, de outro, pelo discurso do
-construtiva, abertura de mais um possível desconhecimento manejado pelos moradores
canal de processamento de litígios relativos de favelas – podem assumir tons mais graves,
ao aproveitamento do espaço, e prevenção que denotem o recrudescimento desse conflito.
de acidentes – ao lado de outros, bastan- Conforme já debatido, concebemos as
te preocupantes e que configurariam seu relações jurídicas, nas favelas, como sendo
legadonegativo. Entre esses últimos, podemos marcadas por três distintas vertentes: a) os
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Notas
(1) Conceito que extraímos da obra de Guillermo O´Donnell, que o define como a parte do Estado
que é personificada num sistema de leis, que, penetrando e estruturando a sociedade como um
todo, fornece um quadro básico para as atividades sociais, conferindo relativa estabilidade e
previsibilidade às relações sociais (O’Donnell, 1998, pp. 45-46). O Estado legal é um dos pilares
da aposta democrática, que não pode prescindir desse instrumento para sua constituição e
perpetuação. Assim, para falar em democracia deve-se ter em conta não apenas aspectos
relativos ao regime político, como também aspectos relativos ao Estado. Requer-se, portanto,
que “as pessoas devam ser capazes de confiar na lei quando agem, [...] que ela [a lei] exista, que
seja conhecível, que suas implicações sejam relativamente determinadas e que se possa esperar
com confiança que ela estabeleça limites dentro dos quais os principais atores, incluindo-se o
governo, agirão” (O’Donnell, 1998, p. 50).
(2) Trata-se de uma distinção inspirada na obra de Foucault. O poder cósmico consistiria naquele
poder centralizado, fisicamente localizado em instituições formais e hierarquicamente
organizado; é o macropoder que encontra sua realização mais completa no poder do Estado.
O poder caósmico alude aos micropoderes presentes na família, na escola, Igreja, clube, etc.,
um poder sem centro, atomizado, móvel, múltiplo, sem localização específica (cf. Santos,
1982, p. 27).
(3) Esta nota peculiar se relaciona diretamente às colocações de Santos a respeito das promessas não
cumpridas da modernidade, incorporadas nas Constituições políticas modernas, e convertidas
em direitos da cidadania, e que estão sendo literalmente abandonadas no contexto da pós-
modernidade, sendo essa uma das questões de fundo que corta transversalmente as reflexões
desse autor (especialmente Santos, 2001; 2004).
(4) Colocação que nos parece ser uma referência às chamadas fontes formais do Direito.
(5) Esta também é uma categoria que, em outros momentos, é criticada por Santos, pois também
afirma que não faria sentido considerar o Direito de Pasárgada como não oficial na medida
em que este – e quaisquer outras formas jurídicas não estatais – são capazes de constituir sua
própria oficialidade (Santos, 1996, p. 261).
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(8) Após a fase inicial de projetos, as obras do Programa Favela-Bairro tiveram início em 1995, em
16 favelas distribuídas pelas cinco Áreas de Planejamento (APs) definidas no Plano Diretor. As
primeiras obras são inauguradas em fins de 1996, e, nesse mesmo ano, foram concebidos e
instituídos oficialmente os Postos de Orientação Urbanística e Social (POUSOs) nas favelas que
recebiam as obras, que começaram a funcionar efetivamente a partir de 1997. Foram criados
com os objetivos de “orientar a execução de novas construções ou ampliações das existentes,
bem como o uso dos equipamentos públicos implantados” e de “exercer fiscalização urbanística
e edilícia” (art. 1º do Decreto 15.259). A fiscalização a ser exercida pelos POUSOs deverá
“controlar a expansão das edificações (tanto horizontal, como verticalmente), de forma que
os equipamentos implantados não se tornem insuficientes” (art. 2º, III do mesmo Decreto),
buscando evitar a “refavelização” das áreas atendidas por projetos de urbanização, procurando
dar-se um destino melhor a elas após sua urbanização (Rio de Janeiro, 2008, p. 12). Esse ponto
de vista, encampado pela Prefeitura do Rio de Janeiro, parte do pressuposto, a nosso ver
analiticamente discutível, de que, com as obras de urbanização, os locais que as receberam
efetivamente deixaram de configurar-se como favelas, do contrário não teria sentido falar-se em
refavelização. Os POUSOs constituem, ainda, o veículo de articulação das ações do Município na
favela, cabendo-lhes subsidiar os órgãos competentes para a elaboração da legislação edilícia
a ser estabelecida para cada uma das favelas que receberam as obras de urbanização. As
equipes de cada posto devem ser compostas por profissionais de nível superior (um arquiteto ou
engenheiro e um profissional da área social), além de agentes comunitários. No caso da cidade
do Rio de Janeiro, falar-se em regulação das favelas pelo Estado implica uma menção obrigatória
à trajetória desses organismos, que constituem um dos mais relevantes legados deixados pela
execução de obras de urbanização.
(9) Santos (2001, p. 139) recepciona da obra de Claus Offe a clássica periodização do capitalismo
em liberal (cobre todo o século XIX), organizado (desde fins do século XIX, atingindo seu ápice
entre as duas guerras e nas duas décadas do pós-2ª guerra) e desorganizado (desde fins da
década de 1960 até o momento atual). O período do capitalismo desorganizado seria marcado
pela consciência de quatro ideias: nada que a modernidade concretizou é irreversível; não há
garantia de permanência para aquilo que da modernidade deva ser preservado; as promessas
não cumpridas ainda continuarão por cumprir; o déficit da modernidade entre promessas
e realizações é maior do que o imaginado no período anterior (Santos, 2001, p. 139). Santos
reconhece que essa denominação é traiçoeira na medida que o capitalismo contemporâneo
estaria mais organizado do que nunca, devendo ser recebida como uma reconstituição das
formas de regulação social do período anterior num nível de coerência muito mais baixo;
como crescente desajuste e autoritarismo dos aparelhos burocráticos; como ruptura do pacto
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anterior envolvendo Estado, classes trabalhadoras e classes empresariais; e/ou como crise dos
paradigmas fordista e keynesiano (Santos, 2001, pp. 153-164).
(10) Tais como a Fundação Leão XIII, a Pastoral de Favelas da Arquidiocese do Rio de Janeiro, a Ordem
dos Advogados do Brasil, a Fundação Bento Rubião e o Projeto Balcão de Direitos, mantido pelo
movimento Viva Rio.
(11) Optamos por utilizar essa categoria, e não a categoria “ordenamento”, de acordo com nossas
premissas a respeito do caráter regulado, e não anômico ou de “folha de papel em branco”,
das favelas.
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