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MULTIC

VALTER ROBERTO SILVÉRIO

O multiculturalismo
e o reconhecimento:
mito e metáfora

N
o momento em que desejo, estou pe- VALTER ROBERTO
SILVÉRIO é professor do
dindo para ser levado em consideração. Departamento de Ciências
Sociais da Universidade
Não estou meramente aqui-e-agora, se- Federal de São Carlos.

lado na coisitude. Sou a favor de outro


lugar e de outra coisa. Exijo que se leve

em conta minha atividade negadora na medida em que

persigo algo mais do que a vida, na medida em que de fato

IS
batalho pela criação de um mundo humano – que é um

mundo de reconhecimentos recíprocos.

Eu deveria lembrar-me constantemente de que


o verdadeiro salto consiste em introduzir a invenção den-

tro da existência.

No mundo em que viajo, estou continuamente a


1 Frantz Fanon, Black Skin,
White Masks, London, Pluto,
criar-me. E é passando além da hipótese histórica, instru- 1986, pp. 216, 229, 231.
Esta versão tem introdução de
mental, que iniciarei meu ciclo de liberdade (1). Homi Bhabha.

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A política multicultural e seus compromissos com

a diversidade eclodiram de uma história de luta conflituosa

e da resistência organizada pelas minorias em sua busca

incessante da transformação da sociedade. Nessa longa

caminhada, mesmo os momentos interpretados como de

ULT acomodação e de integração podem ser relidos como

espaços temporais de rearranjo estratégico na exigência

de justiça social. Assim, para alguns autores, embora o

termo multiculturalismo ou política multicultural apare-


URALI
ça, com maior freqüência, no início dos anos 70, ele po-

deria recobrir, em uma leitura retrospectiva, parte da

história do Ocidente, especialmente, a partir do século

XVIII, com a emergência das ciências sociais como disci-

plinas de investigação.

De acordo com este raciocínio, o multicultura-

lismo tem sido um aspecto da ciência social ocidental

moderna que tem seus progenitores na ciência moral e

social grega, como os próprios modernistas sublinham ao

se referirem à sua descendência. Por exemplo, Isócrates,

com seu pan-helenismo fanático, empregava uma visão

multicultural para incitar os gregos a renunciarem à de-

mocracia em troca de uma cruzada pela dominação mun-

dial. Seu contemporâneo, Aristóteles, forneceu elemen-

tos para justificar a escravidão, a subordinação das mulhe-

res e para a construção de uma hierarquia de ordem

MO
constitucional distintiva pela recorrência e/ou insinuação

a leis naturais oriundas da diversidade cultural. Platão está

associado, para alguns, à origem de um discurso terapêutico

moral que, aparentemente, informa os defensores da

eugenia cultural. Na era cristã, os exemplos dos horrores

causados pela diversidade cultural e os terrores pratica-

dos em nome da sua extinção são numerosos para serem

detalhados (Robinson, 1996, pp. 388-9).

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Assim, para Robinson, por exemplo, desafiado quando definido como parte do
existe um multiculturalismo pré-moderno discurso essencialista ou de dominação. O
presente no pensamento e nas práticas dos desafio que o termo apresenta é marcado
gregos que influenciou, posteriormente, um pelo caminho no qual tem sido apropriado
multiculturalismo em que a diversidade por várias correntes e posições ortodoxas de
cultural passa a ser interpretada dentro de pensamento. Para esse autor, na perspectiva
uma hierarquia de superioridade e inferio- liberal contemporânea, por exemplo, o
ridade racial ou étnica, que originou regi- multiculturalismo denota um pluralismo
mes familiares como escravidão, colonia- desprovido de contextualização histórica.
lismo e imperialismo. Relações e proces- Quanto às especificidades das relações de
sos sociais que, com maior ou menor inten- poder, os liberais retratam uma visão de luta
sidade, impulsionaram e reforçaram a idéia cultural na qual as contradições fundamen-
de que os indivíduos considerados “superio- tais envolvendo raça, classe e gênero podem
res” estariam, a partir do contato físico ser harmonizadas dentro da estrutura predo-
sexual, sujeitos a reproduzirem seres bio- minante de relações de poder. Isso significa
logicamente regredidos. Ao mesmo tempo dizer que, para muitos conservadores, o mul-
estariam ainda vulneráveis a uma contami- ticulturalismo tem significado uma força
nação cultural em suas relações com os despedaçadora, desestabilizadora e perigo-
grupos ou indivíduos “inferiores”. Essas sa na sociedade americana (Giroux, 1996, p.
situações de contato cultural e os processos 336). Para alguns críticos, tem sido tomado
e relações decorrentes delas têm preocupa- como um slogan para promover uma iden-
do a imaginação intelectual dos agentes tidade política essencializada e várias for-
civilizatórios nos últimos dois séculos. mas de nacionalismo e etnicismos. Em re-
Somam-se, a essas preocupações, a de des- sumo, o multiculturalismo pode ser defini-
vendar os discursos sobre alteridade desen- do através de uma variedade de constructos
volvidos mesmo antes do aparecimento do ideológicos e de significados como um ter-
Oeste como uma episteme. De fato, esses reno de luta em torno da reformulação da
discursos pré-modernistas e modernistas memória histórica, da identidade nacional,
permitiram práticas que legislaram a mo- da representação individual e social e da
derna narrativa multicultural, posicionando política da diferença.
o Oeste como a civilização e a Europa bran- Nesse sentido, em oposição à perspec-
ca como a agência consciente de desenvol- tiva conservadora e, também, contrário à
vimento histórico humano. Conseqüente- ênfase liberal sobre a diversidade indivi-
mente, o multiculturalismo atual, núcleo dual, Giroux propõe ou visualiza um
de uma enorme controvérsia, especialmente multiculturalismo insurgente ou rebelde
nos Estados Unidos, é anti/pós-modernis- que deve focalizar as diferenças grupais, a
ta, isto é, pode ser visto como uma terceira maneira pela qual as relações de poder fun-
variante a qual pretende contestar a afirma- cionam na estruturação das identidades
ção epistêmica do multiculturalismo mo- étnicas e raciais (Giroux, 1996, p. 337).
dernista e de seu progenitor. Se o contexto Além disso, diferenças culturais não po-
foi antigo, medieval ou mais recentemente dem ser vistas como meramente assimilá-
sistema-mundo, o multiculturalismo pré- veis no interior de uma cultura comum ou
modernista e o modernista são, aparente- através do controle das esferas econômica,
mente, discursos que pretendem dissimu- política e social que restringem a cidadania
lar prerrogativas de poder, dissimular a plena aos grupos dominantes. Como bem
humanidade do Outro, dissimular as terrí- observa Bhikhu Parekh, multiculturalismo
veis estratégias políticas de subordinação não significa simplesmente pluralidade nu-
(Robinson, 1996, p. 389). mérica de diferentes culturas, mas um es-
Para Giroux, o termo multiculturalismo paço comunitário que é criado, garantido e
como tantos outros com amplos significa- encorajado dentro do qual diferentes co-
dos é multiacentuável e deve ser duramente munidades são capazes de crescer no seu

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próprio ritmo. Ao mesmo tempo, significa diversidade seja a regra e não objeto de
a criação de um espaço público no qual perseguição ou mesmo destruição.
essas comunidades são capazes de interagir, Assim expostos, os problemas e tensões
enriquecendo a vivência cultural e criando que circundam as disputas em torno do
um novo consenso cultural no qual possam multiculturalismo permanecem descontex-
reconhecer os reflexos de suas próprias tualizados. Daí a necessidade de se recor-
identidades (Bhabha e Parekh, 1989, p. 4). rer a alguns textos que possam explicitar,
A definição de Parekh aparentemente do ponto de vista do pensamento social, a
evita a noção de multiculturalismo como origem de algumas polêmicas e dilemas
um pluralismo superficial. Permite identi- presentes no debate atual. Nesse sentido,
ficar os desafios presentes no desenvolvi- por um lado ganha relevância a relação entre
mento de um novo espaço público, do pon- a idéia de reconhecimento e a construção
to de vista dos defensores dessa nova polí- da identidade individual ou grupal e, por
tica multicultural. outro lado, o multiculturalismo, enquanto
A tentativa de mapeamento realizada uma linguagem crítica de denúncia, procu-
até aqui torna possível realçar alguns pro- ra desvendar as conexões entre racismo,
blemas relevantes ou nucleares e as pro- monoculturalismo e supremacia branca.
postas ou sugestões para sua resolução,
presentes no debate em torno do multicul-
turalismo. A exigência de reconhecimento
O RECONHECIMENTO E A
da diversidade cultural e de um tratamento
igualitário na convivência das várias etnias
IDENTIDADE
e/ou raças que edificaram e constituem o
espaço público de uma sociedade mul- De acordo com Taylor, contempora-
tirracial é o primeiro de tais problemas. neamente, um expressivo número de cor-
Talvez porque signifique um imperativo rentes políticas defende a necessidade e, às
para os defensores do multiculturalismo. vezes, a exigência de reconhecimento. Essa
Ao descrever o segundo problema, pode- necessidade ou exigência tem aparecido,
se dizer que a política multicultural anti/ em primeiro plano, formulada de muitas
pós-moderna identifica, nos atuais donos maneiras: em nome dos grupos minoritários
do poder (homens brancos), a origem da ou “subalternos”, em algumas formas de
sexização e da racialização das relações e feminismo e no que hoje se denomina de
instituições sociais, incluindo as ciências. política do “multiculturalismo” (Taylor,
Como resultado, a sociedade contemporâ- 1996, pp. 75-106). Nessas situações, a exi-
nea trata diferencialmente ou exclui as gência de reconhecimento torna-se premen-
mulheres e os não-brancos das várias di- te devido aos supostos nexos entre o reco-
mensões da vida social. Esse fato impõe a nhecimento e a identidade, expressão que
necessidade urgente de uma reestruturação designa a habilidade do homem para ob-
radical das instituições e da forma de ges- servar suas próprias ações, perceber suas
tão do poder na sociedade, de modo a per- experiências e emoções, conhecer o que
mitir a participação efetiva das minorias ele é (auto-identidade).
em novas formas de regulação social que Como esse processo faz parte de um
contemple seus interesses distintos. Nessa espaço compartilhado, é preciso lembrar
afirmação reside o terceiro problema. Por ainda a identidade voltada para os outros.
último, uma efetiva política multicultural Ter uma identidade supõe não apenas ter o
do ponto de vista multiculturalista deve-se conhecimento do que a pessoa é, mas tam-
assentar na construção de um novo currí- bém o conhecimento que os outros fazem
culo escolar que inclua a contribuição das dela (identidade para os outros). Há uma
diferentes culturas sem privilégio ou des- relação de identidades tão profundamente
taque de nenhuma em especial, e na cons- estabelecida que, entre essas duas situações,
trução de um novo espaço público, onde a deve haver um mínimo de concordância.

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Seguindo sua argumentação, Taylor intitulada Fenomenologia do Espírito, es-
mostra que a tese implícita sustentada por pecialmente na discussão em torno da “Di-
esses grupos é que nossa identidade se alética do Senhor e do Escravo” (2) (Hegel,
molda, em parte, pelo reconhecimento ou 1977, capítulo 4). No entanto, segundo
pela ausência deste e, freqüentemente, pelo Taylor, é possível retroceder no tempo e iden-
falso reconhecimento dos outros. Assim, tificar duas grandes mudanças sociais rela-
um indivíduo ou grupo de pessoas pode cionadas entre si cujo desdobramento pre-
sofrer verdadeiro dano, uma autêntica de- parou o terreno para a generalização do dis-
formação, se as pessoas ou a sociedade que curso do reconhecimento e da idéia de iden-
os rodeia se comporta como reflexo, mos- tidade no sentido anteriormente colocado.
trando-lhe um quadro limitativo, degradan- A primeira mudança consistiu no colapso
te ou depreciativo de si mesmo. O falso de uma sociedade baseada em hierarquias
reconhecimento ou a falta de reconheci- socialmente estabelecidas; a segunda, como
mento pode ser uma forma de opressão que conseqüência da anterior, foi a emergência
aprisiona alguém em um modo de ser falso, de uma sociedade baseada na noção de igual
deformado e reduzido (Taylor, 1996, p. 75). dignidade dos seres humanos, acompanha-
Dessa forma, pode-se compreender da do ideal de construção de uma sociedade
melhor por que, em alguns casos, grupos democrática. Dito de outra forma, um trata-
2 Esse é um texto difícil e carac- feministas sustentam que as mulheres, nas mento igual, digno e indiscriminado, é com-
terístico do método hegeliano.
Ele inspirou amplamente as sociedades patriarcais, foram induzidas a patível somente com uma cultura democrá-
análises contemporâneas sobre adotar uma imagem depreciativa de si tica e vice-versa. Assim, o discurso do reco-
as relações do eu com o outro.
Na luta de duas consciências, mesmas, internalizando sua própria inferio- nhecimento e da identidade está inextrin-
Hegel analisa simultaneamen-
te a relação de dois “eu” e a
ridade. De modo análogo, pode-se estabe- cavelmente vinculado a essas mudanças que
relação de cada eu com sua lecer uma relação com os negros sobre os resultam, por um lado, na emergência do
própria vida. O “senhor”, aque-
le que é vitorioso no combate, quais a sociedade branca projetou, durante indivíduo e, por outro, na conformação do
aceitou arriscar a vida. Por con- várias gerações, uma imagem deprimente, liberalismo (Taylor, 1996, p. 76).
seguinte, ele é mais do que ela,
por sua coragem colocou-se imagem que muitos não conseguiram dei- Desse modo, a idéia de reconhecimento
acima dos objetos comuns da
necessidade e da existência xar de adotar. Nessa linha de raciocínio, a dá lugar a uma nova interpretação da iden-
empírica. O vencido, aquele própria autodepreciação se transforma em tidade individual em surgimento. Desde
que se rendeu, tem medo de
perder a vida. Por conseguin- um dos instrumentos mais poderosos da então, pode-se falar de uma identidade indi-
te, ele é , de início, escravo da
vida e de seus objetos
opressão. A primeira tarefa a ser posta em vidualizada, particularmente minha e que
empíricos. Torna-se também execução deverá consistir em liberar-se dessa eu descubro em mim mesmo. Esse conceito
escravo do senhor que o con-
serva (servus = conservado) a identidade imposta e destrutiva. surge com o ideal de ser fiel a mim mesmo,
fim de ler em seu olhar temero- Um argumento similar tem sido usado ao meu peculiar modo de ser. Então, é pos-
so e submisso o reflexo de sua
vitória, a fim de se fazer reco- atualmente com relação aos índios e aos sível falar da identidade como ideal de “au-
nhecer como consciência.
Hegel quer dizer que o senhor povos colonizados em geral. Tal argumen- tenticidade”. Na origem dessa doutrina está
não é senhor “em si”, mas por to sustenta que, a partir de 1492, os euro- a idéia de combater uma opinião rival e,
meio de uma mediação, isto é,
uma relação. O senhor se defi- peus projetaram nesses povos uma imagem nesse sentido, o conhecimento do bem e do
ne por uma relação com o es-
cravo e por sua relação com os
inferior, “incivilizadora”, e mediante a for- mal é questão de calcular as conseqüências,
objetos que depende, ela pró- ça da conquista lograram impor essa ima- particularmente aquelas ligadas ao castigo e
pria, da relação com o escra-
vo. No ponto de partida, o gem aos conquistados. A figura depreciati- à recompensa divina. Recorrendo a uma
senhor domina os objetos de va emblemática dos aborígines utilizada analogia, Taylor mostra que, anteriormen-
necessidade, posto que no
campo de batalha ele se mos- para exemplificar é a de Caliban. Dentro te, ao final do século XVIII, Deus ou a idéia
trou corajoso, superior à sua
vida, portanto, aos objetos das dessa perspectiva, o falso reconhecimento de Deus era considerada essencial e plena.
necessidades. Secundariamen- pode infligir sérios danos às suas vítimas, Porém, hoje, a fonte com a qual se deve entrar
te, o senhor domina os objetos
por mediação do escravo que pois o reconhecimento não é apenas uma em contato se encontra no que há de mais
trabalha, isto é, que transforma
os objetos materiais em objetos
cortesia que se deve fazer aos outros, mas profundo em nós mesmos. Esse fato é parte
de consumo e de fruição para uma necessidade humana vital. essencial do enorme giro subjetivo caracte-
o senhor. Graças ao trabalho
do escravo, a relação do se- Apesar do uso atual, os discursos do re- rístico da cultura moderna; é uma nova for-
nhor com a coisa é uma rela- conhecimento e da identidade podem ser ma de interioridade na qual chegamos a
ção de simples gozo que equi-
vale à negação da coisa. localizados na importante obra de Hegel pensar em nós mesmos como seres com

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profundidade interna (Taylor, 1996, p. 77). obstáculos. Pode-se reconhecer aqui a idéia
Em certo sentido, pode-se observar uma seminal do nacionalismo moderno (Herder,
continuidade e intensificação do desenvol- op. cit., citado por Taylor, 1996, p. 78).
vimento das idéias que se iniciaram com Na verdade, Taylor quer demonstrar que
Santo Agostinho, para quem o caminho até tanto o ideal de autenticidade como a no-
Deus passava por nossa autoconsciência. ção de dignidade surgem, em parte, da de-
Em Rousseau, esse contato íntimo que o cadência da sociedade hierárquica, onde o
homem tem consigo mesmo é mais funda- que hoje chamamos de identidade depen-
mental do que qualquer opinião moral, ele o dia, na maioria das vezes, da própria posi-
chamou de “o sentimento de existência” ção social. O nascimento de uma sociedade
(Rousseau, Les Rêveries du Promeneur democrática não anula por si mesmo esse
Solitaire, “Cinquième Promenade”, in fenômeno, pois as pessoas continuam a se
Oeuvres Complêtes (Paris, Gallimard, 1959, definir pelo papel social que desempenham.
1, p. 1047, citado por Taylor, op. cit., p. 78). Entretanto, o que é novo no argumento de
Outro desenvolvimento dessas idéias Herder é que o meu modo de ser não pode
encontra-se em Herder, que é o principal mais derivar da sociedade e sim interna-
articulador da idéia de que cada um de nós mente. Em substituição a essa perspectiva
tem um modo original de ser humano, isto monológica que aparece em Herder, Taylor
é, cada pessoa tem sua própria “medida” propõe uma interpretação dialógica das
(Herder, 1877-1913, vol. 13, p. 291, citado diferentes linguagens humanas que estão
por Taylor, op. cit., p. 78). Essa idéia pene- na base da formação de nossa identidade e
trou muito profundamente na consciência da nossa exigência de reconhecimento.
moderna. É considerada, portanto, uma A importância do reconhecimento hoje
idéia nova para a ciência. Antes do século é universalmente reconhecida tanto no pla-
XVIII, nada levava a pensar que as diferen- no íntimo ou individual quanto no plano
ças entre os seres humanos tivessem esse social. No primeiro caso, existe a consci-
tipo de significação moral. Há certo modo ência de como a nossa identidade pode ser
de “ser humano” que é o meu modo. No bem ou mal formada no curso de nossas
entanto, essa idéia atribui uma importância relações com os outros significantes. No
nova à fidelidade que eu devo a mim mes- segundo caso, contamos com uma política
mo. Se não sou fiel a mim mesmo, estou ininterrupta de reconhecimento igualitário.
desviando-me de minha vida, estou per- Dessa forma, o discurso do reconhecimen-
dendo de vista o que é, para mim, ser huma- to opera tanto na esfera privada ou íntima,
no. É esse o poderoso ideal moral que che- onde se deve compreender que a formação
gou até nós. Ser fiel a mim mesmo significa da identidade tem lugar em um diálogo per-
ser fiel a minha própria originalidade, algo manente com os outros significantes, quan-
que só eu posso articular, que é minha pro- to na esfera pública, onde a política do re-
priedade. Essa é a interpretação do moder- conhecimento igualitário tem desempenha-
no ideal de autenticidade e dos objetivos de do um papel cada vez maior. Algumas teo-
auto-realização e autoplenitude que esse rias feministas trataram de mostrar os vín-
ideal procura sustentar. Herder apresenta culos existentes entre ambas as esferas (3).
essa concepção de originalidade em dois Taylor se propõe a tratar da esfera pública
planos: a) no âmbito individual, o “eu” está para demonstrar que o conceito de autenti-
entre outros indivíduos; b) no plano grupal, cidade se desenvolve a partir de um deslo-
estão os povos que transmitem sua cultura camento do acento moral, isto é, original-
para outros povos. Da mesma forma que as mente a voz interior era importante porque
3 Nancy Chodorow, Feminism
pessoas, um povo deve ser fiel a si mesmo. nos dizia o que era correto e o que devía- and Psychoanalytic Theory,
Nisso consiste sua cultura. O colonialismo mos fazer. Estar em contato com nossos New Haven, Yale University
Press, 1989; Jessica Benjamin,
europeu deve anular-se para dar aos povos sentimentos morais importava como meio Bonds of Love: Psychoanalysis,
do que hoje chamamos o Terceiro Mundo para alcançar o fim: atuar com retidão. O Feminism and the Problem of
Domination , New York,
sua oportunidade de ser eles mesmos, sem deslocamento é, precisamente, quando es- Pantheon, 1988.

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tar em contato com nossos sentimentos pas- liza este regime em uma sociedade informa-
sa a ter uma significação independente e da com um propósito comum, em que o “eu”
decisiva para atuar no plano social. Este é “nós” e “nós” é “eu” (Hegel, 1977, p. 110).
indivíduo em surgimento torna-se visível em Assim, a política do reconhecimento
duas matrizes do pensamento social, associ- igualitário tem duas significações bastante
adas aos nomes de Kant e Rousseau que, distintas relacionadas. Isto é, com a passa-
segundo Taylor, influenciaram duas pers- gem dos títulos honoríficos para a idéia de
pectivas distintas de liberalismo que podem dignidade sobreveio uma perspectiva polí-
ser, com alguma dificuldade, identificadas tica de caráter universalista, pressupondo a
contemporaneamente (Taylor, 1996, p. 85). igual dignidade de todos os cidadãos, e o
Tais perspectivas colocam, de modo conteúdo dessa política foi a igualação dos
radicalmente diferente, o que deve ser re- direitos e dos títulos. Mesmo quando con-
conhecido como igual e digno nos seres sideramos todos os tipos de crítica e as di-
humanos e, também, por que caracterizam ferentes interpretações, o resultado último
a sociedade ou os objetivos desta, de modo é que o princípio de cidadania igualitária é
distinto. Em Kant, cujo emprego do termo hoje universalmente aceito. O exemplo
dignidade constitui uma das primeiras evo- mais recente de sua universalização é o
cações, o que inspira respeito em nós é nossa movimento dos direitos civis nos Estados
condição de agentes racionais, capazes de Unidos na década de 60. Por contraste, a
dirigir nossas vidas por meio de princípios segunda mudança, o desenvolvimento do
(Taylor, 1996, p. 84). Dessa forma, o que conceito moderno de identidade, fez surgir
aqui se considera valor é um potencial hu- a política da diferença. Desde logo, tam-
mano universal, uma capacidade compar- bém a identidade tem uma base universalista
tilhada por todos os seres humanos. Em que, na visão de Taylor, causa sobreposição
Rousseau, conhecido como o pensador que e confusão entre ambas as políticas.
inaugurou a política da dignidade igualitá- Dito de outro modo, com a política da
ria, a chave para um Estado livre parece ser dignidade igualitária, o que se estabelece
a rigorosa exclusão de toda diferenciação pretende ser universalmente o mesmo, ou
de regras. De acordo com esse autor, três seja, um “conjunto” idêntico de direitos e
coisas parecem inseparáveis na constitui- imunidades. Com a política da diferença, o
ção das bases universais das capacidades que se pede que seja reconhecido é a iden-
humanas: liberdade (não-dominação), au- tidade única do indivíduo ou do grupo, o
sência de regras diferenciadas e um denso fato de ser distinto de todos os demais. Essa
propósito comum. Todos os homens devem condição de ser distinto tem sido “esqueci-
depender da vontade geral para que não da”, não focalizada, objeto de explicações
surjam formas bilaterais de dependência. Sob obscuras assimiladas por uma identidade
a égide da vontade geral, todos os cidadãos dominante. Essa assimilação, segundo
virtuosos serão honrados por igual. Taylor, é o principal pecado contra o ideal
Esta nova crítica do orgulho, adotada de autenticidade. Hoje, a condição de ser
por Hegel, tornou célebre sua dialética do distinto está subjacente ao princípio de
senhor e do escravo. Contra o velho discur- igualdade universal como uma exigência.
so do orgulho, Hegel considera fundamen- Assim, aqueles que reivindicam a política
tal o fato de que só podemos florescer na da diferença, freqüentemente, denunciam
medida em que somos reconhecidos. Toda discriminações e alocações à cidadania de
consciência busca o reconhecimento de segunda classe, isto é, têm como “referên-
outra consciência, e isso não é sinal de uma cia” o princípio da igualdade universal, o
falta de virtude. Sob essas condições, a luta que significa um ponto de enclave na polí-
pelo reconhecimento só pode encontrar uma tica da dignidade (Taylor, 1996, pp. 89-94).
solução satisfatória no regime de reconheci- Dentro dessa perspectiva, a política da
mento recíproco entre iguais. Segundo diferença emerge da política da dignidade e
Taylor, Hegel segue Rousseau quando loca- impele a um reconhecimento da especi-

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ficidade, imprimindo um significado radi- na, na medida em que suprime as identida-
calmente novo a um velho princípio. des, senão também porque, de uma forma
A política da dignidade igualitária se sutil e inconsciente, resulta sumamente
apóia na idéia de que todos os seres huma- discriminatória.
nos são igualmente dignos de respeito; o Nesse sentido, o multiculturalismo anti/
que está em causa aqui é a condição dos pós-moderno tem por objetivo a descons-
homens enquanto agentes racionais. É esse trução das hierarquias ao defender o mesmo
potencial, e não o que cada pessoa fez de si, valor para as vidas e tradições de todas as
o que assegura a cada indivíduo merecido pessoas, independente de raça, etnicidade,
respeito. No caso da política da diferença, gênero, orientação sexual ou qualquer outra
também se pode dizer que encontra seu condição. A origem das diferenças e a natu-
fundamento no potencial universal, isto é, reza das relações inter e entre grupos são
o potencial de moldar e definir nossa pró- explicadas historicamente pela dominação
pria identidade como indivíduo e como de um grupo freqüentemente considerado
cultura. Essa potencialidade deve ser res- como hegemônico. Dessa forma, o movi-
peitada em todos por igual e não igualmen- mento pelos direitos civis dos negros norte-
te. No contexto intercultural, surgiu recen- americanos surge como o principal evento
temente uma exigência poderosa: a de tra- histórico ao questionar, por um lado, uma
tar com igual respeito todas as culturas. As “democracia” racista, excludente e
críticas à dominação européia ou à domina- segregacionista, embora considerada mode-
ção dos brancos são dirigidas no sentido de lo mundialmente, e, por outro, suas conquis-
que eles não apenas suprimem senão, o que tas, ou, mais precisamente, seus desdobra-
é pior, não valorizam as outras culturas. mentos, os quais estão na origem da exigên-
A questão central é que esses dois modos cia de uma nova política multicultural.
de política, que compartem o conceito bási-
co de igualdade e de respeito, entram em
conflito. Para um, o princípio de respeito
O MULTICULTURALISMO
igualitário exige que se trate às pessoas de
forma cega à diferença. A intuição funda-
E O RACISMO
mental de que os seres humanos merecem
esse respeito está centrada no que é igual em Como parte de uma linguagem crítica,
todos, isto é, em nosso potencial racional. portanto, o conteúdo central de um multicul-
Para o outro modo de política, é necessário turalismo insurgente preocupa-se em des-
reconhecer e fomentar a particularidade. A pir a supremacia branca de sua legitimida-
reprovação que o primeiro faz ao segundo é, de e autoridade, possibilitando o desenvol-
justamente, que este viola o princípio de não- vimento de uma noção de democracia radi-
discriminação. A reprovação que o segundo cal em torno das diferenças que não são
faz ao primeiro é que este nega a identidade excludentes ou fixadas, mas que designam
quando impele e constrange as pessoas para locais de luta aberta, fluida, podendo suprir
introduzi-las em um molde homogêneo que as condições para a expansão da hete-
não lhes pertence. Em um aprofundamento rogeneidade e a possibilidade para diálo-
da crítica, a reprovação vai mais adiante, gos críticos entre as diferentes comunida-
pois afirma que esse conjunto de princípios, des políticas constituintes do espaço públi-
cegos à diferença, e supostamente neutros co (Mercer, 1992, p. 3).
– da política da dignidade igualitária – é, na Desse modo, o multiculturalismo está
realidade, o reflexo de uma cultura hegemô- intimamente relacionado com o combate
nica. Dessa forma, somente as culturas ao racismo individual ou institucional, na
minoritárias ou subalternas são constran- presença ou na ausência do discurso bioló-
gidas a assumir uma forma que lhes é alheia. gico ou do discurso cultural sobre a raça.
Por conseguinte, a sociedade supostamente Entre 1956 e 1966, os negros americanos
justa e cega às diferenças não só é desuma- foram além do Movimento pelos Direitos

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Civis e se voltaram para a consciência ne-
gra, impulsionando segmentos brancos –
incluindo as primeiras feministas, estudan-
tes, ativistas antiguerra, gays e lésbicas – a
começarem, também, a transformar suas
idéias e experiências políticas na direção
de suas próprias demandas de mudança.
Para alguns autores, a visão de C.Wright
Mill da sociological imagination, de 1959,
foi inspirada diretamente na filosofia polí-
tica dos Estudantes para uma Sociedade
Democrática (SDS), expressa na Declara-
ção de Port Huron de 1962 (Lemert, 1993,
p. 17). Em 1963, Betty Friedan lança The
Feminine Mystique, marcando o nascimen-
to do feminismo pós-Segunda Guerra
Mundial. Nesse mesmo ano, negros e bran-
cos começaram a ler Frantz Fanon, o grande
teórico do mundo colonial. Aparentemente,
esse autor influenciou substantivamente al-
gumas lideranças do Black Power e, tam-
bém, todo o debate em torno das conseqüên-
cias da opressão racial no mundo coloniza-
do e da existência de uma relação do tipo
colonial entre negros e brancos nos Estados
Unidos (Walters, 1984, pp. 209-32).
A preocupação central de Fanon em seus
escritos era desvendar os aspectos des-
trutivos da experiência colonial, mostran-
do como essa situação era absurdamente
desumana, tanto psicológica quanto socio-
logicamente. No primeiro caso, Fanon ana-
lisa os efeitos da inferiorização racial e
cultural no plano individual; no segundo,
procura demonstrar como a economia, a
política e toda a vida social de um povo
colonizado está controlada através do re-
curso à violência policial e/ou militar
(Fanon, 1952, 1961, 1968). A única saída
para um indivíduo ou povo colonizado e,
portanto, racial e culturalmente inferio-
rizado é a conquista da liberdade através de
um processo revolucionário.
Desse modo, aparentemente o racismo
como um produto da ideologia sancionada
“cientificamente” da desigualdade entre as
raças surge como um importante móvel na
busca de uma nova sociedade. Assim, o
pan-africanismo, as lutas de libertação na
Ásia e na África, o movimento pelos direi-
tos civis dos negros americanos e a ação

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afirmativa são momentos fundamentais na As antigas formas de hierarquias baseadas
luta contra a supremacia branca baseada na na origem social são transportadas para as
opressão e no genocídio. Ao mesmo tem- sociedades coloniais e reproduzidas a par-
po, tais acontecimentos proporcionaram um tir da noção da existência de raças superio-
alargamento do horizonte democrático. res e inferiores. É contra essa situação,
Fanon demonstra que, na situação colo- contra esse desvio na realização do ideal da
nial e para o “homem” não-branco de modo igual dignidade humana que Fanon luta e
geral, existe uma inversão dos três elemen- conclama todos aqueles que foram subme-
tos constitutivos da dignidade igualitária e tidos a essa forma de dominação a se rebe-
das bases de um Estado livre propostos por larem. Nesse sentido, a problemática de
Rousseau, isto é, dominação (não-liberda- Fanon é saber como o homem pode realizar
de), presença de regras diferenciadas e dife- sua liberdade com sua experiência coloni-
rentes propósitos entre colonizador e colo- zada e sua razão racializada. Sekyi-Otu
nizado ou entre brancos e não-brancos. caracteriza Fanon como um homem, um
Uma outra questão é que, diferentemen- intelectual, preocupado em contribuir para
te de Herder, para quem autenticidade im- a descolonização da experiência e para a
plica, necessariamente, individualização da desracialização da razão. Ele está no cen-
constituição da identidade, isto é, negação tro do debate político contemporâneo em
de qualquer forma de derivação societária, torno da importância do reconhecimento
em Fanon se pode observar que tanto o ho- da inerente dignidade de todos os seres hu-
mem considerado isoladamente quanto uma manos e de suas diferentes formas de ex-
cultura são sempre resultado de uma socio- pressão socioculturais (Sekyi-Otu, 1996).
gênese ou, mais precisamente, produto de As primeiras iniciativas de colocar em
relações socioeconômicas e políticas. prática as idéias defendidas pelos multi-
A revolta contra a ordem colonial, a luta culturalistas ocorreram no início da década
contra formas imperialistas de conhecimen- de 70, quando, em 1972, o governo cana-
to, “transforma espectadores humilhados dense anunciou o primeiro ministério de
com sua não essencialidade em atores pri- Estado para o multiculturalismo com o ob-
vilegiados com a grandiosa clareza históri- jetivo político exposto um ano antes, de
ca sobre eles” (Fanon, 1968, p. 36). Mas promover e realçar a diversidade cultural
essa insurgente afirmação do não-essenci- e, ao mesmo tempo, trabalhar para a elimi-
al em suprema autoridade, essa verdadeira nação do racismo na sociedade mais am-
insurreição foucaultiana dos saberes sub- pla. O anúncio foi acompanhado da decla-
jugados não é, segundo Fanon, guia para a ração de que os grupos minoritários seriam
recusa do discurso do universal. Porque ele auxiliados em sua preservação e participa-
é capaz de conciliar o direito de particula- ção a partir da remoção das barreiras cultu-
ridades com uma obrigação epistêmica e rais. Como o Canadá, os Estados Unidos
política, sem permitir ou sancionar um também têm populações indígenas, um le-
relativismo ético e epistemológico sobre a gado de imigração e grande diversidade
premissa de que o “discurso universalizante cultural, mas o multiculturalismo tem uma
é o discurso do privilegiado” (Sekyi-Otu, história e significado um pouco diferente.
1996). Fanon realiza uma narrativa dramá- Neste último país, o termo foi cunhado no
tica onde explicita tanto uma crítica norma- final dos anos 1980, referindo-se a um novo
tiva à sociedade de seu tempo quanto à sua tipo de pluralismo cultural que visa esti-
visão humanística revolucionária. mular a inclusão de membros de grupos
Dito de outra forma, para Fanon, a minoritários em todas as esferas ou posi-
especificidade da situação colonial e de ções de poder decisório da vida pública
todas as relações assimétricas reside no fato americana.
de elas impedirem a aplicabilidade da no- A bibliografia especializada aponta para
ção de igual dignidade humana e, também, uma das diferenças marcantes do atual
do regime de reconhecimento recíproco. pluralismo em relação ao seu predecessor

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do início do século; este último foi conce- e o historiador Arthur Schlesinger Jr. se
bido por alguns sociólogos como uma res- somava às vozes queixosas em seu The
posta para a massiva imigração daquele Disuniting of America (4), argumentando
período. O multiculturalismo dos anos 80 e ser um desatino sustentar que as tradições
90 tem sido defendido e desenvolvido por ocidentais não eram mais influentes ou im-
membros e ativistas das minorias culturais portantes que as outras na vida americana.
para fazer justiça ao que foi visto e inter- Um dos articuladores do chamado currí-
pretado como a continuidade de um padrão culo rainbow e um dos principais defensores
injusto de exclusão. O termo, de acordo da perspectiva afrocêntrica tem sido Molefi
com seus proponentes, tem sido constante- Asante, da Temple University, que observou,
mente amplificado, incluindo membros de acerca da controvérsia, que Ravitch e outros
vários grupos marginalizados, tais como detratores da proposta não conheciam muito
mulheres e pessoas com inaptidão ou bem quais seriam as tradições não-ociden-
invalidez. Usado sem maior precisão tais, considerando-as como menos significan-
definicional, em seu sentido ordinário, na tes. Molefi Asante também chamava atenção
conversação cotidiana, multiculturalismo para a referência depreciativa feita por Ravitch
pode se referir simplesmente à consciência em relação à inclusão da história da Iroquois
da diversidade cultural americana. Nesse League, uma federação pré-colonial de índi-
sentido, multiculturalismo significa um os americanos, em Nova York. Na discussão
composto de várias culturas. sobre a inclusão desta Liga no novo currícu-
De acordo com essa definição, muitos lo, Ravitch pensava que os leitores “poderi-
estados nacionais modernos são multi- am se espantar com aquela inclusão”, como
culturais por apresentarem uma pluralidade se sua obscuridade comprovasse sua própria
de etnias e identidades sociais, como, por indignação de acordo com Asante (Asante,
exemplo, os Estados Unidos, que se auto- 1993, pp. 85-97). Isso porque, aparentemen-
proclamam uma nação de imigrantes. te, Ravitch desconhecia a importância dos
Aparentemente, um dos principais de- índios ingênuos do seu próprio estado. Ata-
safios enfrentados pelas sociedades mul- ques e disputas à parte, esse episódio é
ticulturais, em geral, e pelos Estados Uni- ilustrativo dos problemas que envolvem o
dos, em particular, tem sido como negociar debate em torno do que era, do que é e do que
os dilemas inerentes a grupos de pessoas deve ser a sociedade americana, focalizando
culturalmente diversas. Opiniões acerca de o espaço escolar ou acadêmico, especialmente
como resolver os problemas da diversida- o currículo como o lugar em que as contendas
de cultural separam aqueles que são a favor entre multiculturalistas e monoculturalistas
do pluralismo cultural daqueles que advo- podem ganhar algum sentido e visibilidade.
gam a assimilação. As discordâncias entre Para os multiculturalistas, o currículo
tais opiniões podem ser percebidas a partir americano tem tradicionalmente excluído a
do debate em torno da reforma do currículo contribuição de vastos setores humanos, tais
da escola pública no estado de Nova York. como as mulheres e minorias étnicas, omi-
Uma proposta apresentada no início dos tindo seus conhecimentos e sabedoria. Isso
anos 90 para introduzir uma perspectiva tem permitido a continuidade e permanên-
afrocêntrica no currículo escolar recebeu cia de uma exagerada avaliação das idéias e
fortes acusações de etnocentrismo ao con- realizações do Ocidente Europeu. Desse
trário, acompanhadas de uma avaliação, apa- modo dois problemas que levantam um con-
4 Arthur Schlesinger Jr., The rentemente desdenhosa, dos educadores junto de questões estão em jogo aqui. O
Disuniting of America, Knoxville,
Whittle Communications, proponentes. Diane Ravitch, na época for- primeiro diz respeito ao etnocentrismo ou à
1992. Esse autor ganhou o
prêmio Pulitzer por seus livros
malmente assistente da Secretaria da Edu- crença de que sua própria cultura é a melhor,
The Age of Jackson (1945) e A cação do governo americano, queixava-se neste caso específico, a afirmação endossa-
Thousand Days (1965). Esses
trabalhos, somados a outros, amargamente acerca do que ela classificava da por Schlesinger e Ravitch de que as rea-
colocaram o referido autor en- como a “guerra sobre o então chamado lizações culturais européias são mais impor-
tre os principais historiadores
americanos. eurocentrismo” no currículo de Nova York, tantes do que quaisquer outras. O segundo

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problema, extensão do anterior, ganha visi- res e dos não-brancos a prova das promes-
bilidade na afirmação de que a maioria dos sas não cumpridas de um mundo melhor,
americanos partilha amplamente de um con- ao mesmo tempo que denunciavam as ten-
junto de valores e experiências, produtos de tativas ou a supressão de fato das diversi-
uma cultura comum. Certamente, algumas dades em nome do progresso.
dúvidas podem ser levantadas sobre crenças Além disso, o mito multiculturalista mo-
e instituições criadas pelos homens brancos derno consiste na rigorosa exclusão de toda
a partir de idéias centrais forjadas no diferenciação de regras. A metáfora políti-
Iluminismo europeu, que supostamente re- ca decorrente desse mito é que todos os
cobrem, na atualidade, a experiência huma- cidadãos deverão ser tratados por igual –
na em geral. Acredito ser um bom exercício como se fosse possível a supressão plena
intelectual tentar trilhar, de modo parcial e das diversidades e das desigualdades.
incompleto, no interior do próprio Ilu- Diferentemente, o mito do multicul-
minismo, um percurso que pode nos auxili- turalismo anti/pós-moderno se origina na
ar na localização das origens dos problemas possibilidade de construção de um espaço pú-
complexos que envolvem as disputas entre blico que expresse o reconhecimento da
multi e monoculturalistas. pluralidade étnica, racial e sexual, tratando a
Esse percurso tem sido trilhado pelos todos por igual, mas não igualmente. A me-
multiculturalistas através do resgate de tex- táfora política decorrente desse mito consiste
tos de autores não-canônicos, que embora na idéia de que as particularidades possam
partilhassem do ideal da dignidade iguali- ser respeitadas, negociadas e representadas
tária identificavam na exclusão das mulhe- nas diferentes instituições da vida social.

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