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GRUPO EDUCACIONAL FAVENI

RAILMA FERREIRA RAMOS

A REPRESENTAÇÃO DO PERSONAGEM NEGRO NA OBRA A ESCRAVA


ISAURA: UMA VISÃO DISTANCIADA A PARTIR DE ESTEREÓTIPOS
FUNDAMENTADOS NO PRECONCEITO RACIAL

CAMPINA GRANDE
2023
GRUPO EDUCACIONAL FAVENI

RAILMA FERREIRA RAMOS

A REPRESENTAÇÃO DO PERSONAGEM NEGRO NA OBRA A ESCRAVA


ISAURA: UMA VISÃO DISTANCIADA A PARTIR DE ESTEREÓTIPOS
FUNDAMENTADOS NO PRECONCEITO RACIAL

Trabalho de conclusão de curso apresentado


como requisito parcial à obtenção do título
especialista em LÍNGUA PORTUGUESA E
LITERATURA BRASILEIRA

CAMPINA GRANDE
2023
A REPRESENTAÇÃO DO PERSONAGEM NEGRO NA OBRA A ESCRAVA
ISAURA: UMA VISÃO DISTANCIADA A PARTIR DE ESTEREÓTIPOS
FUNDAMENTADOS NO PRECONCEITO RACIAL

RAILMA FERREIRA RAMOS 1

Declaro que sou autor(a)¹ deste Trabalho de Conclusão de Curso. Declaro também
que o mesmo foi por mim elaborado e integralmente redigido, não tendo sido
copiado ou extraído, seja parcial ou integralmente, de forma ilícita de nenhuma fonte
além daquelas públicas consultadas e corretamente referenciadas ao longo do
trabalho ou daqueles cujos dados resultaram de investigações empíricas por mim
realizadas para fins de produção deste trabalho.
Assim, declaro, demonstrando minha plena consciência dos seus efeitos civis,
penais e administrativos, e assumindo total responsabilidade caso se configure o
crime de plágio ou violação aos direitos autorais. (Consulte a 3ª Cláusula, § 4º, do
Contrato de Prestação de Serviços).

RESUMO: Durante o século XIX surge no Brasil uma forte discussão sobre a escravidão e o futuro do
País. Políticos, escritores e artistas por diferentes motivos se envolveram no movimento que lutava
pelo fim da escravidão. Neste período Bernardo Guimarães conhecido como “romancista da
escravidão” se apropria da imagem do negro para defender suas ideias, porém, ao colocar o
afrodescendente como protagonista o escritor cria uma série de personagens estereotipados. Neste
sentido, este estudo tem como objetivo investigar como o negro é representado no romance A
escrava Isaura (1875). Nossa pesquisa é bibliográfica, de cunho teórico-interpretativo. Para isso, nos
detemos a vários estudos sobre o período escravocrata no Brasil e sua relação com a Literatura,
assim, utilizamos os pressupostos teóricos de Paz (2007), Candido (2000-2006), Proença Filho
(2004), Andrews (1998), Fernandes (2004), Viotti da Costa (1999).

PALAVRAS-CHAVE: A escrava Isaura. Abolição. Negro. Romantismo

ABSTRACT: During the 19th century, a strong discussion about slavery and the future of the country
anaised in Brazil. Politicians, writers and artists for different reasons were involved in the movement
that fought for the end of slavery. In this period Bernardo Guimarães known as "novelist of slavery"
appropriates the image of the black to defend his ideas, however, by placing the Afrodescendant as
the protagonist the writer creates a series of stereotyped characters. In this sense, this study aims to
investigate how the black is represented in the novel The Slave Isaura (1875). Our research is
bibliographic, theoretical-interpretative in nature. For this, we study several studies on the slave period
in Brazil and its relationship with literature, thus, we used the theoretical assumptions of Peace (2007),
Candido (2000-2006), Proença Filho (2004), Andrews (1998), Fernandes (2004), Viotti da Costa
(1999).

KEY-WORDS: Slave Isaura.Abolition. Black. Romanticism.

1
railmaf95@gmail.com
1. INTRODUÇÃO

História e Literatura se entrelaçam e revelam, cada uma a seu modo, o


panorama de uma sociedade em uma determinada época: suas concepções,
crenças, valores e organização social. Diferentemente da história que busca um
relato objetivo, a Literatura sensibiliza a cada frase, incapaz de esconder sua
subjetividade, especialmente no período romântico que caracteriza-se,
principalmente, pela oposição ao pensamento racionalista e transborda a
expressividade, a personalidade sonhadora, o sentimentalismo e o exagero.
Os textos literários desnudam as várias transformações políticas e sociais
vivenciadas por uma sociedade. Neste contexto, encontramos a Literatura como um
efeito das condições sociais, mas sem deixar de encaminhar o leitor de volta à
sociedade, pois "[…] a palavra do escritor tem força por que brota de uma situação
de não força" Paz (2007, p.1). Diante disso, é possível afirmar que a Literatura tem
uma relação direta com o meio social, ao realizar por meio dos textos uma
disseminação ideológica, deixando-se na maioria das vezes explícito uma denúncia
a um problema social. 
É nesta perspectiva que Cândido (2000) afirma que a Literatura desempenha
um papel de instituição social, pois utiliza a linguagem como meio específico de
comunicação e a linguagem é criação social. O teórico observa, ainda, que o
conteúdo social das obras em si próprias e a influência que a Literatura exerce no
receptor fazem dela um instrumento poderoso de mobilização social. 
Assim, na terceira geração do período romântico no Brasil a Literatura é
utilizada como arma de ação política e social, através da escrita revolucionária e
abolicionista, tendo como pano de fundo o tema “escravidão”. Neste período muitos
escritores, artistas, e políticos se envolveram no movimento abolicionista, que pedia
pelo fim da escravidão no Brasil, alguns movidos mais por interesses políticos e
econômicos do que com a identificação com o sofrimento humano.
O negro que até então pouco aparecia nos textos literários começa ganhar
mais espaço ainda que de forma discreta e estereotipada. Segundo Proença Filho
(2004), na Literatura brasileira evidencia-se dois posicionamentos com relação ao
negro: a Literatura do negro que põe este em posição de sujeito a partir de uma
atitude compromissada e a Literatura sobre o negro que coloca-o numa posição de
objeto a partir de uma visão distanciada. Sobre este último posicionamento podemos
citar o romance A escrava Isaura, de Bernardo Guimarães (1875), que através do
branqueamento do negro tenta promover uma identificação do seu público leitor,
geralmente brancos da elite, com a realidade a que estavam submetidos os
escravos, fato que talvez justifique a escolha de uma personagem principal escrava,
mas que detém todas as características de uma moça rica da elite, inclusive a cor e
a educação. É importante ressaltar que essa tentativa de comoção através da
aproximação da cor, comportamento e cultura europeia, retira de Isaura a
representatividade de sua raça intensificando o distanciamento da relação de
igualdade entre negros e brancos, e consequentemente promovendo o preconceito
racial.
A partir deste viés investigaremos a representação do personagem negro no
livro de Bernardo Guimarães, publicado em 1875, assim como a relação da obra
com o movimento abolicionista. Quanto a metodologia, trata-se de uma pesquisa
bibliográfica, de cunho teórico-interpretativo, fundamentada nos pressupostos
teóricos de Paz (2007), Candido (2000-2006), Proença Filho (2004), Andrews
(1998), Fernandes (2004), Viotti da Costa (1999).
Inicialmente, discorremos sobre o período escravocrata no Brasil, que
perdurou por mais de trezentos anos e sobre o movimento abolicionista que foi tema
recorrente de obras da terceira geração do romantismo, em seguida abordaremos
sobre o movimento romântico no Brasil. Por fim, apresentaremos a análise do
romance de Guimarães evidenciando a representação do personagem negro ligada
a diversos estereótipos e, portanto, carregada de preconceito.

2. O PERÍODO ESCRAVOCRATA E O MOVIMENTO ABOLICIONISTA NO


BRASIL

A escravidão no Brasil marcou um longo período na história do país chegando


ao fim apenas no ano de 1888, após a promulgação da lei Áurea, o que resultou na
consolidação de vários aspectos sociais, culturais e organizacionais da sociedade
brasileira. Mais que uma relação de trabalho, a adoção da mão de obra escrava
Africana representou a fixação de um conjunto de valores sociais com relação ao
homem, ao trabalho, e as instituições. E neste contexto é possível verificar-se o
problema do preconceito racial e a desigualdade social, que atingem principalmente
os negros, e perdura até os dias atuais.
A escravidão dos povos africanos, na sociedade brasileira, esteve diretamente
ligada a realidade social, econômica e política que o mundo viva naquele período.
No Brasil a sua adoção ocorreu pelos mesmos motivos que em todas as outras
colônias: a apropriação e acúmulo do capital.
O período escravocrata brasileiro se estendeu por mais de trezentos anos e
representou por muito tempo a base da economia junto com a exportação de açúcar
(ANDREWS, 1998). Desta forma, podemos perceber que o olhar do colonizador
sobre “o novo mundo” era o de fornecer matéria prima barata para o exterior e usar
mão de obra barata. Esse modelo de assimilação do capital introduzida no Brasil no
período colonial reflete até os dias atuais, não apenas no setor econômico, mas
também no que tange as relações sociais e éticas.
A condição de escravo retirava do homem o direito à livre escolha do trabalho,
participação social e autonomia, assim o negro passava a ser visto como uma
coisa/objeto, uma espécie de sub-raça intelectualmente desfavorecida. Essa
desumanização do negro reflete diretamente no preconceito racial ainda existente
em pleno século XXI.
A escravidão na sociedade brasileira caracterizou-se pela apropriação do
esforço humano para objetivos mercantis determinados. O homem negro escravo
era entendido como um bem mercantil (FERNANDES, 2004, pp. 366-367).
O papel social do negro e os estereótipos atrelados a ele na sociedade
brasileira do período escravocrata pode ser evidenciada a partir de sua ausência na
Literatura e/ou a partir da forma como é apresentado, nas raras vezes que aparece,
sendo retratado através personagens secundários. Apenas a partir da metade do
século XIX com o movimento abolicionista o negro começa aparecer na Literatura
ainda que de forma discreta e estereotipada a partir de uma visão distanciada e
apresentado como objeto, como podemos observar no livro A escrava Isaura, do
autor Bernardo Guimarães. Além disso, podemos observar outros problemas como o
branqueamento do negro como forma de estabelecer alguma identificação com a
elite que era público-alvo.
No cenário exterior, o Brasil começa sofrer fortes pressões internacionais para
dar fim ao período escravocrata e em especial da Inglaterra que em meio a
Revolução Industrial criou mais mercados consumidores e modificou as relações de
trabalho, com movimentos operários batalhando em prol da valorização do
trabalhador livre, pois o interesse dos ingleses era expandir o mercado para o Brasil,
mas para isso precisavam de mais consumidores, portanto, a escravidão não
atendia aos seus interesses comerciais. Além disso, no meio internacional a
escravidão passou a representar um sistema atrasado e até imoral e assim poucos
países mantinham esse modelo comercial. E como justificar a existência de um
sistema atrasado e cruel em um país jovem e recém independente?
Neste sentido, o Brasil passa a sofrer pressões internas e externas cada vez
mais intensas e consequentemente o movimento abolicionista ganha cada vez mais
força.
A Literatura desempenhou uma função interessante na defesa da abolição,
justamente por sua capacidade de sensibilizar o leitor, embora alguns escritores ao
adotarem a estratégia de atribuir à personagens negros características particulares
do homem branco acabaram por corroborar com a intensificação do preconceito
racial e da ideologia de supremacia de uma raça sobre a outra, como acontece com
Isaura personagem de Bernardo Guimarães. O branqueamento do escravo na
Literatura denuncia como o preconceito racial estava enraizado na sociedade a
ponto de estar presente até mesmo entre os que defendiam o movimento
abolicionista que muitas vezes acontecia mais interesses políticos e econômicos do
que com o compromisso humanista com os escravos.
O movimento abolicionista no Brasil aconteceu de forma lenta, gradativa e
difícil passando pela lei Eusébio de Queiroz, que proibia o tráfico de escravos, a lei
do ventre livre e a lei do Sexagenário, que garantia a liberdade aos idosos a partir de
65 anos mas que abandonava-os a própria sorte sem oferecer-lhes respaldo algum.
Com o fim da escravidão, o movimento abolicionista se extinguiu (VIOTTI DA
COSTA, 1999, p. 513), nada questionando sobre da situação do negro, que se
manteve inferiorizado e marginalizado socialmente, sem qualquer apoio
governamental e dos seus ex-senhores. O fim da escravidão significou a
manutenção da situação de apartação do negro socialmente, abandonando-o à sua
própria sorte, sem qualquer garantia econômica, de segurança e de assistência. O
Estado entendeu que a concessão da liberdade tornava os escravos responsáveis
por si mesmos, estando ele e os ex-senhores de escravos desobrigados com os
libertos.

3. O MOVIMENTO ROMÂNTICO NO BRASIL

O romantismo no Brasil marcou um período de evolução, a nação encontrava-


se recém independente e buscava afirmar sua identidade, as obras existentes na
época reproduziam os modelos europeus, logo sentiu-se a necessidade de romper
com os padrões que eram seguidos havendo assim também uma independência
cultural.
Os escritores da época buscaram inserir em suas produções um sentimento
de nacionalidade e patriotismo trazendo para Literatura brasileira uma identidade
própria, o que diferiu da Literatura desenvolvida na época colonial, em que os
escritores se prendiam ao modelo europeu. Para Candido (2009), ocorreu na
Literatura desse período um processo de abrasileiramento, “uma tomada de
consciência que se estabelecia como posição pré-portuguesa ou antiportuguesa”
(CANDIDO, 2006, p. 98).
A primeira geração romântica teve a preocupação em buscar elementos que
remetessem ao passado histórico do país, bem como, características que
valorizassem as questões locais, para que assim houvesse a formação de um
caráter nacional. Os autores foram chamados de nativistas, pois empenharam-se em
exaltar os aspectos nacionais, como a natureza, o índio e a religiosidade, tais
elementos trouxeram para a Literatura brasileira características próprias
estabelecendo uma imagem libertaria para a Literatura do Brasil. Diante disso,
Candido (2009) afirma que:

Descrever costumes, paisagens, fatos, sentimentos carregados de sentido


nacional, era libertar-se do jugo da literatura clássica, universal, comum a
todos, preestabelecida, demasiado abstrata – afirmando em contraposição o
concreto espontâneo, característico, particular. (CANDIDO, 2009, p. 333).

Já a segunda geração iniciou-se em meados do século XIX e foi marcada


pelo pessimismo, os autores voltaram-se para um eu-lírico que tinha como foco ele
mesmo, a geração foi marcada por um forte sentimentalismo e trouxe de forma
idealizada temáticas mórbidas, como a noite, a melancolia, a solidão e o medo do
amor. Tais características fez com os autores ficassem conhecidos como
ultrarromânticos.
Em meados dos anos 60 surge a terceira geração que perdurou até o fim do
romantismo em 1880. Nesse período os autores retiram o foco do "eu" e passam a
se debruçar diante de aspectos políticos e sociais da época.
Nas obras a busca por uma identidade nacional permanece, mas tendo como
foco o personagem negro, desse modo, temas como o abolicionismo foi retrato em
alguns livros, pode-se citar entre eles A escrava Isaura, de Bernardo Guimarães,
publicada em 1875 em plena campanha abolicionista. A qual, embora de modo
estereotipado consegue direcionar o olhar da elite para a situação do escravo no
Brasil.
Mesmo focalizando em uma temática social, o autor é fiel ao modelo literário
de seu tempo, ao decorrer do enredo a natureza ganha destaque na caracterização
dos cenários como também nas comparações com os traços da personagem Isaura,
que é descrita com “[...] os seios, que até ali apenas arfavam como as ondas de um
lago em tranquila noite de luar, começaram de ofegar, túrgidos e agitados, como
oceano encapelado”. (GUIMARÃES, 2012, p. 48)
No tocante aos cenários, Guimarães os aponta com exaltação desde as
primeiras páginas do livro, no qual revela os elementos naturais com exacerbação e
excesso de adjetivos:
O Sol não era ainda posto, e parecia boiar no horizonte suspenso sobre rolos
de espuma de cores cambiantes orlados de fêveras de ouro. A viração
saturada de balsâmicos eflúvios se espreguiçava ao longo das ribanceiras
acordando apenas frouxos rumores pela copa dos arvoredos, e fazendo
farfalhar de leve o tope dos coqueiros, que miravam-se garbosos nas lúcidas
e tranquilas águas da ribeira. (GUIMARÃES, 2012, p. 03).

Outra característica romântica presente na obra refere-se a imagem


idealizada de Isaura, durante todo o livro a personagem é descrita como um ser
humano perfeito, "[...]uma fada, [...] um anjo, [...] uma deusa! [...]” (GUIMARÃES,
2012, p. 39), dotada de virtudes e atribuída de um caráter bondoso e puro. Esta
passagem aponta como a cativa tem sua beleza exaustivamente descrita a partir do
exagero e idealização, marcas inerentes ao romantismo.
Destaca-se na narrativa a noção de primeiro amor, traço predominante do
romantismo “[...]amou-o com esse amor exaltado das almas elevadas, que amam
pela primeira e única vez” (GUIMARÃES, 2012, p. 63), bem, como, do amor que
tudo vence e tudo supera, como ocorre com Álvaro e Isaura que apesar de tantas
impossibilidades conseguiram ficar juntos no final.
Dessa forma podemos verificar que embora a terceira geração do romantismo
tenha se detido a escrita de temas de cunho social os escritores não abandonaram
as marcas do romantismo da primeira geração como: o exagero no uso de adjetivos;
a representação da mulher-branca-idealizada; e a exaltação da natureza e do amor.

4. ANÁLISE DA OBRA A ESCRAVA ISAURA

Desde o período colonial o negro exerceu papel crucial no desenvolvimento


econômico e cultural da sociedade brasileira, porém sua presença na Literatura é
muito discreta em textos literários anteriores a abolição do tráfico negreiro. Situação
que denuncia como o negro era concebido pelo branco, apenas, sendo objeto e
aquisição valiosa para o desenvolvimento da economia da época. Essa coisificação
do negro teve como consequência a desumanização do cativo que era visto como
uma sub-raça.
Apenas com o advento do movimento abolicionista no Brasil, em meados do
século XIX, o negro começa a ter algum espaço na Literatura, ainda que de forma
discreta e com personagens secundários. Na trajetória do negro na Literatura
nacional podemos observar dois posicionamentos distintos: a Literatura que fala
sobre o negro e a Literatura escrita por negros. Na primeira tem-se “a condição
negra como objeto” tratando-os a partir de uma visão distanciada. Sobre isso
Proença Filho afirma:

A visão distanciada configura-se em textos nos quais o negro ou o


descendente de negro reconhecido como tal é personagem, ou em aspectos
ligados a vivências do negro na realidade histórico-cultural do Brasil se
tornam assunto ou tema. Envolve, entretanto, procedimentos que, com
poucas exceções, indiciam ideologias, atitudes e estereótipos da estética
branca dominante (PROENÇA FILHO, 2014, p. 161)

O livro A escrava Isaura ilustra satisfatoriamente essa afirmação, sendo


carregado de ideologias e estereótipos que visavam comover a elite a partir da
aproximação das características da personagem Isaura com as senhoras da
nobreza, pois esta recebeu uma educação igual ou superior a de qualquer dama
livre da alta sociedade, como podemos verificar na seguinte passagem:
Á medida em que foi crescendo e entrando em idade de aprender, foi-lhe ela
mesma ensinando a ler, escrever, a coser e a rezar. Mais tarde, procurou-lhe
também mestres de música, de dança, de italiano, de francês, de desenho,
comprou-lhe livros e empenhou-se em fim em dar a menina a mais esmerada e fina
educação. (GUIMARÃES, 2012, p. 09).
Bernardo Guimarães autor da obra, é conhecido como um ávido “romancista
da abolição”, entretanto uma leitura mais atenta deste romance permite ao leitor
perceber que existe uma grande preocupação em valorizar a estética branca. Em
várias passagens do livro o autor se mostra contraditório ao defender a liberdade
dos negros por um lado e apresentar, através da fala dos personagens, a ideologia
de supremacia da raça branca por outro, fato que nos leva a perceber que
Guimarães enxergava no movimento abolicionista interesses mais fortes do que a
“simples” identificação com o sofrimento humano, como pode ser observado na
seguinte passagem do diálogo entre Leôncio e Álvaro, “[...] cospe o desrespeito e a
injuria sobre o túmulo de sua santa mãe, que criou com tanta delicadeza, educou
com tanta esmero essa escrava para torná-la digna da liberdade.” (GUIMARÃES,
2012, p. 78).
Neste trecho fica claro, a partir da fala de Álvaro, a ideologia de que Isaura
deveria ser livre porque havia recebido uma educação diferenciada que a colocava
em posição superior aos demais escravos e, portanto, à tornava digna da liberdade.
Essa situação aponta a posição do autor que se dedica a criticar o sistema
escravagista no Brasil, instrumentalizando a imagem do negro no combate à
escravidão, no entanto, ele constrói em sua narrativa uma imagem estereotipada do
negro no Brasil, que mais tarde fundamentaria o preconceito racial. Isto denuncia a
existência de um interesse pelo fim do período escravocrata no país movido muito
mais pelos interesses sociais e econômicos do que pela causa humanista, pois a
abolição resolveria muitos problemas em diversos setores da economia e manteria
assegurada a supremacia da raça branca dominante sobre os negros.
No livro A escrava Isaura (1875) é visível a estereotipação e coisificação à
qual está ligada a imagem do negro, bem, como os indícios de ideologias e
comportamentos da classe branca dominante. Durante todo o livro, a nobreza de
Isaura apresenta-se relacionada a submissão, beleza, delicadeza; a pureza aparece
ligada a sua cor, e seu comportamento e desenvolvimento intelectual à educação
aos moldes europeus que recebeu.
A partir destas observações nos ateremos em analisar alguns estereótipos a
partir dos quais a figura do negro está representada no romance A escrava Isaura,
como: o negro nobre, o negro vítima, o negro sensual, a relação da beleza e do valor
atrelado a cor, o negro depende da proteção do branco e tem tendência a
criminalidade.

4.1 Negro nobre


Embora tendo recebido todos os “privilégios” Isaura se apresentava a todo
momento como uma figura dócil e submissa características que Proença Filho
(2004) associa ao estereótipo do negro nobre, e sobre isso cita que o escravo nobre
“vence pela força de seu branqueamento mesmo que a custo de muito sacrifício e
humilhação”, de acordo com o teórico a nobreza estereotipada do personagem
negro está na submissão, como pode ser verificado nos seguintes trechos de um
diálogo entre Isaura e sinhá Malvina:

Não quero, — continuou em tom de branda repreensão, — não quero que a


cantes mais, ouviste, Isaura?... se não, fecho-te o meu piano.
— Mas, senhora, apesar de tudo isso, que sou eu mais do que uma simples
escrava? Essa educação, que me deram, e essa beleza, que tanto me
gabam, de que me servem?... são trastes de luxo colocados na senzala do
africano. A senzala nem por isso deixa de ser o que é: uma senzala.
— Queixas-te da tua sorte, Isaura?
— Eu não, senhora; não tenho motivo... o que quero dizer com isto é que,
apesar de todos esses dotes e vantagens, que me atribuem, sei conhecer o
meu lugar. (GUIMARÃES, 2012, p. 5) (grifo nosso).

4.2 Negro vítima


O comportamento de submissão de Isaura está presente em quase toda a
narrativa e está ligada a outro estereótipo que merece destaque :o negro vítima,
bastante presente neste romance, e coloca-o como figura de idealização, como
forma de comover o público leitor e promover a exaltação da liberdade e defesa da
causa abolicionista, como pode ser observado em trechos de uma canção cantada
por Isaura:
Desd’o berço respirando
Os ares da escravidão,
Como sempre lançada
Em terra de maldição,
A vida passo chorando
Minha triste condição. [...]
Cala-te pobre cativa:
Teus queixumes crimes são;
É uma afronta esse canto,
Que exprime tua aflição.
A vida não te pertence,
Não é teu coração. (MAGALHÃES, p.4).

4.3 Negro sensual


A sensualidade é uma condição que na época da escravidão imaginava-se
estar intrínseca a essência do negro, Isaura mesmo sendo descrita em várias
passagens da narrativa como um anjo sofre pelo excesso de beleza tornando-se
objeto de desejo por onde passava:
[...] Os três interlocutores de Álvaro, bem como muitas outras pessoas, que
por ali se achavam, puseram-se em ala para verem passar Elvira, cuja
presença causava sensação e murmurinho[...]
- Com efeito!...É de uma beleza deslumbrante!
-Que porte de rainha”...
-Que olhos de andaluza!...
-Que magníficos cabelos!...
- E o colo!... Que colo!...Não reparaste?...
-E como se traja com tão elegante simplicidade! – Assim murmuravam entre
si os três cavalheiros, como impressionados por uma aparição celeste.
(MAGALHÃES, p. 42)

Porém, a cativa por ser branca tem a sensualidade descrita de forma sutil e se sobressaem
sua pureza e delicadeza, diferente de rosa, escrava do mesmo dono de Isaura, que é descrita como:

[...]uma rapariguinha, a mais faceira e gentil [...]esbelta e flexível de corpo,


tinha o rostinho mimoso, lábios um tanto grossos, mas bem modelados,
voluptuosos, úmidos, e vermelhos como boninas que acabam de
desabrochar em manhã de abril. Os olhos negros não eram muito grandes,
mas tinham uma viveza e travessura encantadoras. Os cabelos negros e
anelados podiam estar bem na cabeça da mais branca fidalga de além-mar.
Ela porém os trazia curtos e mui bem frisados à maneira dos homens. Isto
longe de tirar-lhe a graça, dava à sua fisionomia zombeteira e espevitada
um chispe original e encantador [...]e os túrgidos e ofegantes seios que
como dois trêfegos cabritinhos lhe pulavam por baixo de transparente
camisa[...] (GUIMARÃES, 2012, p. 25).

Nessas passagens fica clara a diferença de tratamento e concepção de


sensualidade atribuídas as duas escravas, enquanto a escrava branca tinha a sua
sensualidade apontada de forma sutil, e apresentada como um dos motivos de seu
sofrimento, pois sua beleza estonteante atraia o desejo e despertava paixões
avassaladoras de heróis como Álvaro à homens libidinosos e carrascos como
Leôncio. Para Rosa a mulata sensual, sua beleza representava uma moeda de troca
e facilmente deitava-se com seu senhor.

4.4 A relação da beleza e do valor atrelado a cor:


No romance A escrava Isaura se faz presente, também, a vinculação da feiura
a cor negra, e o autor parece apresentar as cativas da fazenda de forma gradativa
partindo da mais escura para mais clara:

Eram de vinte a trinta negras, crioulas e mulatas, com suas tenras crias ao
colo ou pelo chão a brincarem em redor delas. Umas conversavam, outras
cantarolavam para encurtarem as longas horas de seu fastidioso trabalho.
Viam-se ali caras de todas as idades, cores e feitios, desde a velha africana,
trombuda e macilenta, até à roliça e luzidia crioula, desde a negra brunida
como azeviche até à m mulata quase branca (GUIMARÃES, 2012, p. 38).

A enumeração dos adjetivos começando com “trombuda”, “macilenta”


passando por “roliça”, “luzida” até chegar à omissão de atributos, transmite a ideia
de que quanto mais escura, mais feia, respectivamente, quanto mais clara, mais
bela. Assim Guimarães apresenta no romance três personagens que encaixam,
perfeitamente, nessa definição: Joaquina (negra feia), Rosa (mulata sensual), Isaura
(mulata branqueada bela).
Contaminado por esse sentimento de preconceito pela própria raça o pajém
André, mulato e também escravo da mesma propriedade, não demonstra nenhum
orgulho pela sua cor, ao contrário se demonstra constrangido ao ver Isaura junto as
demais escravas:
“[...] dói-me deveras dentro do coração ver aqui misturada com esta corja de negras
beiçudas e catinguentas uma rapariga como tu, que só merece pisar em tapetes e
deitar em colchões de damasco” (GUIMARÃES, 2012, 29.).

4.5 O negro depende da proteção do branco e tem tendência a


criminalidade
Inquestionavelmente, e independente dos motivos que o levaram a isto,
Bernardo Guimarães se pôs na luta pelo fim da escravidão no Brasil, embora, fique
claro no seu mais famoso livro A escrava Isaura (1875) que o autor defendia a
bandeira de que o negro dependia da tutela do branco. Esse posicionamento fica
claro não só a partir da personagem Isaura que após a morte de sua mãe precisou
ser amparada pela sua senhora, que após a morte desta precisou da defesa de
sinhá Malvina contra as investidos de seu devasso senhor, que com a saída desta
da fazenda precisou do amparo de seu pai um português branco, e no final foi salva
pelo herói branco Álvaro que mesmo dando-lhe a liberdade após o casamento
passaria a tutela deste, esta ideologia fica ainda mais clara na segunda passagem
do livro quando Álvaro entra em cena:

Como, porém, Álvaro tinha um espírito minimamente filantrópico,


conhecendo quanto é perigoso passar bruscamente do estado de absoluta
submissão para o gozo da plena liberdade, organizou para os seus libertos
em uma de suas fazendas uma espécie de colônia, cuja direção confiou a
um probo e zeloso administrador. Desta medida podiam resultar grandes
vantagens para os libertos, para a sociedade, e para o próprio Álvaro. A
fazenda lhes era dada para cultivar, a título de arrendamento, e eles
sujeitando-se a uma espécie de disciplina comum, não só preservavam-se
de entregar-se à ociosidade, ao vício e ao crime, tinham segura a
subsistência e podiam adquirir algum pecúlio, como também poderiam
indenizar a Álvaro do sacrifício, que fizera com a sua emancipação
(GUIMARÃES, 2012, p. 44).

Aqui, também, fica clara a incerteza que sociedade da época tinha com
relação ao que ia acontecer com escravos após a liberdade, ao observarmos a
concepção que se tinha de que o negro tinha predestinação a criminalidade o que
reforçava ainda mais a ideia de que o negro mesmo após a alforria precisava do
branco para sobreviver.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante do exposto, podemos concluir que as transformações ocorridas no


Brasil, sejam elas econômicas, políticas ou sociais, levaram a produção de uma
Literatura mais aproximada da realidade. A obra A escrava Isaura, do escritor
Bernardo Guimarães, por exemplo, apresenta em sua narrativa denúncias explícitas
sobre o período escravocrata no Brasil e, consequentemente, a difícil realidade a
qual estavam submetidos os escravos. Não podemos afirmar com certeza os
motivos que levaram Guimarães (1975) a defender o fim da escravidão no país,
tenha sido por preocupação com a economia do Brasil ou com a intenção de lucrar
com a venda de seus livros, o fato é que se por um lado o escritor conseguiu através
desta obra comover parte de seus leitores e instigá-los a defender o movimento
abolicionista, por outro ao instrumentalizar o personagem negro para defender suas
ideias ele acaba criando uma visão estereotipada do negro fundamentada no
preconceito racial.

6. REFERÊNCIAS

ANDREWS, G. Negros e brancos em São Paulo: 1888-1988. São Paulo: Edusp, 1998.
CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira: momentos decisivos. 6a. ed. Belo
Horizonte: Editora Itatiaia, 2000.

Candido, Antonio. Literatura e cultura de 1900 a 1945. In: _____.Literatura e sociedade.


Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2006.

Candido, Antonio. Formação da literatura brasileira: momentos decisivos. São Paulo;


Rio de Janeiro: FAPESP; Ouro sobre Azul, 2009.

FERNANDES, Florestan. A sociedade escravista no Brasil. In: IANNI, Octavio (org).


Florestan Fernandes: sociologia critica e militante. São Paulo: expressão popular, 2004.

GUIMARÃES, Bernardo. A Escrava Isaura. 5ª ed. São Paulo: Martin Claret, 2012.
PROENÇA FILHO, Domício. A trajetória do negro na literatura brasileira. In: Estudos
avançados. São Paulo, v. 18, n. 50, p. 161-163 apr. 2004.

VIOTTI DA COSTA, Emília. Da monarquia à República. São Paulo: UNESP, 1999.

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