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– (FGE-SP)
INSTITUTO DE PESQUISA E MEMORIA PRETOS NOVOS – IPN
RIO DE JANEIRO
2023
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TAINÃ CRISTINA BANDEIRA SANTANA
RIO DE JANEIRO
2023
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TAINÃ CRISTINA BANDEIRA SANTANA
BANCA EXAMINADORA
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A IMPORTÂNCIA DA ARTE AFRICANA PARA A PRESERVAÇÃO DA MEMÓRIA
AFRO BRASILEIRA
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IPN – Instituto Pretos Novos e FATEC PR. Pós-graduação em Ensino da História da África e da
Diáspora Atlântica
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Introdução
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pensamento científico evolucionista buscavam na arte o reflexo do progresso
cultural da humanidade (WILLET, 2017), em um momento que viam a Europa
como centro da evolução social, a arte africana foi relegada a uma definição de
primitiva.
Por conseguinte, aos poucos as investigações e estudos da arte
africana de qualidade estão sendo feitos, contudo, é recente e ainda está em
curso os novos conhecimentos acerca do tema, é uma produção que até então
não chegou efetivamente nas instituições de educação artística e nos livros
didáticos (SILVA, 1997), a negação ou obliteração do estudo da arte negro
africana faz com que esta produção artística permaneça em desconhecimento
e quando abordada, devido aos preconceitos e racismo gerados desde o
período escravocrata, que impulsionaram essa realidade enfrentada até a
atualidade no Brasil, ela é tratada com superficialidade.
Nesse sentido, o artigo apresenta um estudo da natureza2 da arte
africana, alicerçado nas cosmogonias africanas, mitos de origem de diferentes
povos e seus reflexos na criação artística, com base nos estudos do crítico de
arte Babatunde Lawal, o antropólogo Frank Willett, o historiador da arte Robert
Farris Thompson, Kabengele Munanga, a doutora em estética e filosofia da arte
Naiara Paula Eugenio, os artistas Abdias Nascimento e Emanoel Araújo
também nos ajudam a compor o quadro teórico.
Discorrendo sobre as múltiplas histórias mitológicas é possível
encontrar uma essência ontológica que atravessa muitas sociedades africanas,
uma unidade cultural africana (DIOP, 1957). Nesse âmbito, atribuída a uma
essência mitológica da origem da existência humana. Sendo o ser humano uma
porção da divindade criadora, essa força vital da totalidade divina é presente
nos seres humanos, nos animais, nas plantas e em toda a natureza. Portanto,
esse entendimento ontológico africano propõe uma ética ancorada no respeito
ao todo, uma interação harmoniosa com o cosmos, posto isto, o ser humano
representado com o encargo de continuidade da criação do mundo, existe uma
semelhança na incumbência do ser humano dar continuidade na criação do
mundo, com o importante papel dado ao artista e a habilidade de manipular as
forças criativas, transformando um objeto comum em algo de maior valor
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Natureza – compreendida aqui com o significado de essência ou conjunto de princípios da arte
africana.
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(LAWAL, 1983), simbolicamente, através da produção da obra de arte altera-
se a desordem em ordem e o caos em equilíbrio.
Este processo criativo envolve uma jornada mental, mas também
holística, onde o ser humano percebe que os elementos da linguagem artística
estão contidos em abundância na natureza, e assim como tudo na natureza
possui uma função, a obra de arte igualmente é atribuída a um papel de
universo em miniatura, no qual, desempenha a manutenção do equilíbrio
cósmico. Isso demonstra que, a arte tem como princípio uma responsabilidade
com o todo e evidência uma preocupação com a harmonia da comunidade e o
artista desempenha a função de preservar valores espirituais e filosóficos de
sua comunidade.
No campo dos estudos da história e memória, a pesquisa trouxe
como referência o autor Jacques Le Goff e FAGE, J. D, para a historiografia da
África, bem como para o estudo e reflexão da tradição oral como fonte de
transmissão de saberes e preservação da memória usou-se como fonte o
tradicionalista malinês Amadou Hampâté Bâ. Propondo uma conexão entre
ancestralidade africana e a memória, Amos Wilson (2021), fornece uma
abordagem revolucionária para dar conta do funcionamento da mente e da
experiência africana, utilizando pontos específicos da epigenética3, em função
das experiências vividas serem registradas no DNA, uma memória contida nos
genes, torna-se um fio condutor de comportamentos, sentimentos, traumas e
histórias geracionais.
Visto que, a história da diáspora africana tem como fenômeno a
escravidão, sua população herda como um trauma histórico. As experiências
da escravidão, a imposição de um sistema-mundo euro-ocidental que provoca
um descarrilamento no modelo de vida dos negros, é imprescindível examinar
“o impacto causado pelo sequestro de 20 milhões de africanos, se faz urgente,
já que a fratura não foi apenas física, mas, sobretudo, subjetiva e existencial, e
que vulnerabiliza a população negra diaspórica” (NJERI, 2020).
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Amos Wilson utiliza em sua análise o estudo das mudanças nas funções dos genes, em que o
ambiente social e hábitos de vida podem modificar o funcionamento dos genes, não há alteração na
sequência do DNA, a herança epigenética são herdadas pelas próximas gerações, características
que irão determinar a morfologia e fisiologia e, até certa medida, comportamentos do indivíduo.
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No contexto da arte africana, as elaborações de conhecimento
acerca da oralidade, memória do corpo e ancestralidade pavimentam uma
análise da funcionalidade criativa da arte, no papel de trazer aspectos culturais,
filosóficos, espirituais para o sujeito africano manter-se conectado à sua
história, seu passado, com sua própria origem, raízes e rica herança cultural,
como maneira de alcançar um despertar de consciência, saber trabalhar com a
memória e realizar criações e reflexões.
Por fim, o presente trabalho, tem o intuito de somar na produção de
conhecimento acerca da arte africana no Brasil, avistando a arte como agente
suleador4 na retomada de memória afro brasileira, diante esse processo do
embranquecimento da história, no apagamento de memórias e dominação
cultural.
Para iniciar tal desenvolvimento, analisaremos as definições que
compõem o conceito de arte africana, considerando aspectos culturais e
filosóficos de diferentes povos africanos para conhecer as suas práticas
artísticas.
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Oposição simbólica ao mote Norte ou norteador, Sulear é uma ferramenta epistemológica contra o
pensamento hegemônico eurocêntrico.
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Onde quer que materiais recebam forma, onde quer que o movimento tenha
direção, onde quer que a vida tenha, por assim dizer, linha e composição, lá
temos inteligência e então temos essa transformação de um determinado
caos em uma ordem desejada e desejável. Novamente, se você usa essa
definição, a arte existirá na África tradicional (WELSH-ASANTE, 1994, Apud
EUGENIO, p. 115).
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Obatalá molda cada ser com suas próprias mãos e concede a ele
características próprias.” (2020), depois Olodumaré soprou seu espírito (èmi)
na obra de arte e o colocou dentro do ventre de uma mulher para que
desenvolve-se.
Em síntese, Babatunde Lawal justifica que:
É a crença que o corpo humano é uma obra de arte divina que levou os
lorubás a considerá-lo igual a uma escultura feita pelo homem, que é então
usada para localizar o èmi, ou as almas desmaterializadas dos mortos, mais
especialmente no momento da invocação. Desta maneira, a Arte ajuda os
iorubás a concretizar sua crença na vida depois-da-morte, permitindo-os
encarar o futuro com alguma esperança - uma esperança reforçada pela
crença na reencarnação (Atúnwá) (LAWAL, 1983, p. 53).
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recebeu a missão de equilibrar, zelar e cuidar de todas as forças do universo
(HAMPATÉ BÂ, 1982).
Dentro da tradição bambara, acredita-se que Deus não completou
a obra da criação, Ele deixou uma parcela inacabada justamente para que os
seres humanos dessem continuidade a esse movimento de criação.
Para a tradição iorubá há uma semelhança também nesse
processo contínuo de criação, como afirma Naiara Paula Eugenio “quando
Olodumaré enche a obra de vida dá para ela o movimento que será intrínseco
à sua completude.” (2020), portanto a obra de arte é viva, tem movimento e
assim como tudo na natureza, tem uma funcionalidade.
A civilização e a arte do povo Bakongo reverberam esse
movimento cíclico da vida em sua cosmogênese. Segundo ela, no princípio, o
mundo era um vazio, visualizado no pensamento Kongo como um círculo
atravessado no meio por uma linha reta, uma força atinada de fogo emergiu em
autossuficiência e como numa explosão criou uma massa em fusão, reunindo
vários elementos, se tornando o berço da vida na Terra, chamada Kalunga.
Quando essa matriz se resfriou criou a água, surgindo os rios e montanhas
(SANTOS, 2019a).
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pluriontológico (SANTOS, 2019), a força da criação é chamada por Nzambi
(Aquele de cuja boca se materializa tudo), por Kalunga e Ntu “o princípio da
existência de tudo, a parte essencial de tudo que existe e tudo que nos é dado
a conhecer a existência” (NJERI, 2020) bem como, para se referir ao ser
humano é chamado por muntu, indicando o ser humano como uma porção de
Ntu.
O mundo Bakongo é organizado por um cosmograma regido
pelos quatro pontos da jornada diária do Sol, quando ele nasce e se põe, de
modo que, o percurso circular da vida não tem fim e “a morte é apenas uma
transição no processo de mudança” (THOMPSON, 2011, p. 112). Na força da
Kalunga tudo na Terra está em movimento, o muntu (ser humano) é posto a
trilhar nesta força espiral.
Há uma correspondência no significado das deidades nas
culturas africanas, que é o sistema espiritual apoiado na natureza, bem como,
o Vodu do Daomé atualmente a República do Benin. O reino daomeano de
acordo com a tradição conta sobre uma antiga migração iorubá, a filha do rei
Tado, explorava uma floresta, quando “encontrou e fez amor com um espírito
de leopardo; a união resultou no nascimento do príncipe Agasu, um ancestral
lendário de todo o povo Fon do Daomé (THOMPSON, 2011, p.164). Thompson,
aponta inter-relações das deidades do panteão ioruba com os deuses do
Daomé.
As deidades são chamadas Vodun (mistérios), a elas são deferidos
poderes das forças da natureza, assim como os orixás, Oxalá é chamado em
Fon de Lisa, Exu se chama Legba, Ogun deus do ferro é Gū (THOMPSON,
2011), com semelhanças e singularidades de culto, a tradição daomeana deve
ser considerada com o contexto de suas particularidades
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É importante trazer os mitos de origem para pensar em como
configura-se a perspectiva ontológica africana, visto que, não existe uma
dicotomia entre o real e o não real, entre o sentimento e o racional. Essa ideia
de que precisa-se separar o mito do racional faz parte de outro eixo civilizatório
advindo do pensamento filosófico grego (Marimba Ani, 1994). A origem
mitológica explica a dinâmica invisível do mundo. Então, a noção de matéria e
espírito são componentes da mesma realidade e esta realidade é permeada do
sagrado, lidar com um sem o outro é ser incompleto.
Em função disso, nas culturas africanas o conceito de humanidade
não está reservado somente às pessoas, mas como foi dito acima, a arte conflui
com a natureza, consequentemente, todos os seres e elementos são vivos,
tem inteligência e se comunicam e agem um sobre o outro. Portanto, esse ideal
constrói a noção de totalidade, e a humanidade é uma característica atribuída
aos animais, as florestas, aos rios e por esse motivo, a vida social e as práticas
religiosas também vão refletir essas dinâmicas entendendo que o búzio fala, a
árvore fala, o tambor fala, o chão (terra) fala, logo, todos comem, porque são
todos vivos (FLOR DO NASCIMENTO, 2015). A humanidade vai integrar um
corpo humano, um corpo vivo, um corpo cósmico, um corpo natureza. É um
caminho de cuidar da natureza, um princípio ético que cria um vínculo
ecológico, porque se um individuo mata ou destrói, ele está fazendo isso
consigo mesmo. Essa associação propõe construir uma convivência com si
próprio, com a comunidade, com a natureza e cultivo de uma responsabilidade
com o todo.
Na tradição artística africana há de se considerar todos estes
valores atribuídos a sua criação. Simultaneamente, essas características dadas
à arte devem ser observadas de forma não hegemônica e nem estática. Mas
uma característica baseada em eixos culturais que dialogam pelo continente
africano, como no estudo de Cheik Anta Diop (2014), a África possui uma
unidade cultural, em um território tão vasto e diversificado, Diop buscou
encontrar traços culturais comuns e abordou “a noção de estado, de realeza, a
moral, a filosofia, a religião e a arte consequentemente, a literatura e a estética”
(DIOP, 2014, p. 9).
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Uma comparação das esculturas de Nok com as de Ifé, no entanto, deixa
poucas dúvidas sobre uma conexão cultural e artística entre elas, ainda que
a natureza precisa dessa conexão continue obscura. Essas são as duas
únicas tradições artística antigas que conhecemos em toda a África que
executaram esculturas de figuras humanas em terracota em escala próxima
à natural. Os fragmentos de troncos e membros são, de fato, muito parecidos
em sua simplificação, apesar do grande naturalismo dos rostos ifé, enquanto
as bainhas dos trajes são representadas com uma convenção idêntica, [...]
esta é, certamente, uma semelhança mais cultural do que artística, embora o
estilo de representação de contas seja frequentemente parecido (WILLET,
2017, p. 85).
Como vemos acima, Willet também acredita que exista uma conexão
cultural entre as culturas africanas, segundo ele, há elementos comuns no estilo
escultórico entre as culturas Nok e as de Ifé. Essas características também podem
refletir a movimentações de povos e tradições pelo território africano, com trocas
culturais e migrações ao longo do tempo.
A elaboração de Diop (2014), permite encontrar valores culturais
compartilhados pelas sociedades africana, em relação ao espaço da mulher, não de
uma forma homogênea, mas, acerca do valor da feminilidade, a mulher como
elemento estabilizador dentro da sociedade, a matrilinearidade como organização
política, uma unidade cultural encontrada por exemplo nas obras de arte africana, as
inúmeras esculturas africanas femininas simbolizando preces por abundância,
riqueza, fertilidade e saúde para a comunidade.
No tocante ao culto à ancestralidade, o respeito e hierarquias
estabelecidas pela senioridade, são um conjunto de princípios que na arte irão
produzir suas respectivas funções naquelas sociedades representadas, por técnicas
e estilos variados, as obras são geralmente elaboradas com o recurso natural que o
ambiente oferece, porém, a função correspondente é semelhante. Vejamos que, em
culturas que utiliza as miçangas em cerâmica como joias, em outras são criações em
ouro, latão e bronze, mas todas essas joias desempenham a função de adorno e
comunicação social dentro da sociedade.
Para aprender sobre a arte africana, Willet considera que, é preciso
atenção no contexto cultural em que as obras foram criadas, uma maneira coerente
de abordar as tradições artísticas em seus próprios termos, localizando-as em suas
regiões de origem. Ademais, o perigo da categorização da arte africana desconectada
de sua história fez com que ela fosse classificada como arte primitiva, essa definição
de origem eurocêntrica deslegitimou a criatividade artística, beleza e sofisticação de
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suas tradições artísticas. A seguir discutiremos sobre a inautenticidade dessa teoria,
como também é contemplado, o significado de beleza nas estéticas africanas.
Da mesma forma, arte tradicional africana tem seus propósitos sociais, mas
existem alguns produtos cujo propósito é claramente definido. Os fons da
República do Benim (ex-Daomé), por exemplo, fazem esculturas em latão de
animais e de pessoas trabalhando ou em cortejos que não possuem qualquer
intuito religioso ou didático. São produzidas pelo latoeiro para serem objetos
belos e, nesse sentido, devem ser consideradas exemplos de ‘arte pela arte’.
Contudo, têm uma função social que independe totalmente do tema
representado: a de conferir prestígio, já que o latão é considerado um metal
semiprecioso e apenas os ricos têm condições de comprar tais peças, que
são exibidas na residência como objetos de beleza e símbolos de status.
Himmelheber descobriu “que os dans produzem objets d’art por mero prazer
estético, mas apenas em latão (WILLET, 2017, p. 176, 177).
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Por mais que, uma pequena quantidade de obra de arte do continente
africano fosse produzida apenas para ser apreciada por sua beleza e produzir prazer
estético, esse ideal de beleza, vai precisar ser deslocado da lógica ocidental
hedonista, muitas vezes atribuída a uma beleza egocêntrica esvaziada de significado
e atribuída fortemente a um padrão estético. Para se pensar o que significa a busca
da beleza ou produzir objetos belos, para o povo iorubá, por exemplo, está associado
a um comportamento, a uma estética-ética (EUGENIO, 2020).
Por esses aspectos, vê-se uma arte que possui critérios profundos para se
achar o belo. Em que, a estética do belo exige uma reflexão de sentimentos, de
sensações e de bom caráter, isto significa, que a beleza interior juntamente com a
serenidade do caráter forja a beleza no externo.
Na obra de arte iorubá também se busca a beleza com o bom caráter.
No momento em que uma escultura está sendo feita, serão analisados a forma do
rosto, o olhar e as expressões da peça, observa-se se a aparência demonstra
serenidade, se a posição do corpo, suas proporções demonstram ações benéficas
para a sua comunidade (EUGENIO, 2020). Visto que, o bem viver no contexto africano
perpassa por valores como o respeito aos mais velhos, culto aos ancestrais, a
coletividade, a figura feminina simboliza a fertilidade e a natureza provê a
prosperidade, então todos esses elementos, serão buscados pelo artista para serem
representados na sua composição, na intenção de agregar beleza à obra.
“Na perseguição destes ideais, a Pintura, Escultura, Música, Dança
estão rotuladas com grande habilidade, tanto como para comunicar um forte elemento
de Arte pela Arte, embora dentro de um contexto maior de Arte pela Vida.”
(BABATUNDE, 1983). Além da qualidade técnica também fazer parte das
considerações, Munanga (2000) expõe algumas caracterizações mínimas que podem
ser colocadas para esta vertente artística se qualificar com uma estética afro:
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articulados através do domínio de uma técnica capaz de dar corpo e
existência a uma obra de arte autêntica. Outros elementos, como a
monumentalidade, a repetição, a desproporção entre as partes do corpo e a
conceituação das ideias vem se somar para aprofundar a diferença entre a
arte africana no singular, à arte ocidental e outras (MUNANGA, 2000, p. 87).
Mesmo assim, é verdade que grande parte da arte africana tem propósito
religioso, ainda que exista uma boa variedade de práticas no campo da
escultura religiosa. É costume que o ato de entalhe seja rodeado de rituais,
uma vez que a árvore que fornece a madeira geralmente é vista como o lar
de um espírito que precisa ser aplacado (WILLET, 2017, p. 179).
Para apreciar a escultura tal como foi concebida pelo artista, precisamos vê-
la em movimento, se possível na altura dos olhos e iluminada pelo fogo
intermitente das tochas. Além disso, isolar a máscara significa retirá-la de seu
contexto significativo, pois a máscara em si é vista apenas como parte de um
complexo – parte de um traje com o qual se dança ao som da música –, e é
apenas quando todos esses elementos estão presentes que a máscara
ganha vida, tornando-se habitada pelo espírito (WILLET, 2017, p. 184).
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outro caso é os desenhos Bakongo, também chamados de pontos riscados podem
ser apreciados pela beleza visual que carregam, mas para cumprir sua função eles
precisam ser desenhados “cantando o ponto” para que a potência da voz cantada e o
traçado do desenho pudessem ser a abertura do portal de contato com o mundo
espiritual (THOMPSON, 2011). Assim para Willet, retirar as obras de arte africana de
seu contexto ou desconhecer as circunstâncias em que ela foi criada impossibilita uma
apreciação máxima das mesmas.
No capítulo posterior, discorreremos sobre a incumbência da memória dos
antepassados escravizados, para manter e preservar os saberes, a arte e a
espiritualidade na diáspora, portanto, a memória é compreendida aqui como um eixo
de resistência dos valores afro civilizatórios e da visualidade estética da arte africana.
Nós somos história. Não podemos viver no futuro – o futuro está sempre à
nossa frente. E o presente é essencialmente a vanguarda do passado. Você
não deixa seu passado para trás. O passado vive em seu cérebro; no seu
comportamento; a maneira como você vê a vida e a maneira como se vê.
Tudo o que acontece com você no presente é filtrado pelas experiências
passadas presentes em sua mente. Isso significa que o passado está
presente operacionalmente a todo momento (WILSON, 2021, p. 282).
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A experiência africana é imensa e possui uma grande pluralidade, neste estudo analisaremos
somente no que tange a população afro-brasileira.
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contribuições na construção desse país. Contudo, a profusão de imagens criadas
nesse período e posteriormente explorada pela indústria cultural tem procurado
infiltrar um equivocado imaginário socialmente construído, que a memória afro-
brasileira se resumiria aos elementos da escravização.
Refletir sobre a ambiguidade desta história de que a vida negro-africana
está inserida numa dinâmica excludente e opressora, ao mesmo que, o seu passado
glorioso, seus conhecimentos, seu processo histórico que tem em África o início da
humanidade como ponto de partida, são histórias sistematicamente invisibilizados,
que precisam ser conhecidas para que a população no lugar de vergonha sinta orgulho
de sua história e identidade. Por esse motivo, Amos Wilson elucida sobre a
importância de acessar a história africana a partir da África e não da escravidão, como
maneira de alcançar um despertar de consciência africana.
Considerando a memória do corpo como uma experiência histórica, pode-
se abordar a permanência de modos de vida africanos na diáspora através da
memória e da tradição oral como fonte de transmissão de saberes ancestrais.
Em síntese, e segundo o tradicionalista malinês Hampaté Bá,
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Diante desta conexão transatlântica entre África e Brasil, Abdias
Nascimento expõem;
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princípios fundamentais que reverberam na diáspora brasileira através da memória e
oralidade.
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muitos artistas, é significativo sua citação ao trabalho de José Heitor, artista auto
didata, Nascimento o chama de criador mágico
Considerações Finais
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ou espiritual” (LAWAL, 1983, p. 57) a fim de que, os aspectos culturais preservados
na arte possa possibilitar caminhos de libertação intelectual e restauração enquanto
povo africano, no continente e na diáspora.
Com um caráter dinâmico e holístico o fazer artístico ancorado nos
paradigmas africano provoca reflexões ontológica sobre a maneira de estabelecer o
próprio modelo de humanidade, do que é belo e desejável, de uma afroperspectivação
(NOGUEIRA, 2014).
A respeito dessas questões levantadas, o pensamento de Dr. Amos
Wilson (2022) endossa a elaboração ao explicar que a representação simbólica do
que almejamos solucionar, procede também do poder do impacto semiótico no
imaginário social do povo, e o dialogo com o coração e alma reimprimi modelos de
humanidade e realidade que pode ser vivida.
Em conclusão, o presente estudo valoriza os múltiplos lugares que a arte,
o artista e a obra de arte ocupam nas sociedades africanas em Casa e na diáspora.
A arte enriquecesse as suas experiências, contribui com o fortalecimento de uma
memória coletiva africana brasileira, que sofre tentativas de apagamento e
esquecimento de suas origens, a arte torna-se instrumento de auto conhecimento,
consciência histórica, reconquista de valores civilizatórios, filosóficos e estéticos
africanos.
Uma vez que a arte negro africana evoca a memória afro-brasileira a
honrar os antepassados, abarca uma perspectiva cultural crítica que valoriza a sua
própria história e humanidade, como também inspira a realização de ações
transformadoras no presente rumo ao futuro.
Referências Bibliográficas
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(Doutorado em Letras) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, da
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WILSON, Amos. Amos Wilson: da PNL à epigenética. São Paulo: Editora Poder
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