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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS

Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas

Curso de Graduação em Ciências Sociais

Pedro Cruz Marchese

BARALHO CIGANO: A experiência mágico-religiosa umbandista através da


cartomancia

Belo Horizonte

2021
2

Pedro Cruz Marchese

BARALHO CIGANO: A experiência mágico-religiosa umbandista através da


cartomancia

Trabalho de conclusão de curso apresentado ao


curso de graduação em Ciências Sociais da
Universidade Federal de Minas Gerais, como
requisito para a obtenção do título de Bacharel
em Antropologia

Orientador: Prof. Dr. Rogério Brittes Wanderley


Pires

Belo Horizonte

2021
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À Ava Cruz, por ser transe


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AGRADECIMENTOS

Este trabalho envolveu uma prolongada pesquisa de campo e muitas foram as pessoas
que, direta ou indiretamente, puderam me auxiliar na sua execução. Sou grato a todas elas.
Agradeço, primeiramente, a todas aquelas cartomantes, videntes, Mães e Pais de Santo
que contribuíram para a realização desse trabalho direta ou indiretamente. Em especial, agradeço
à cartomante Renata Berreta pelas contribuições essenciais.
Agradeço à comunidade do CCPAP por tudo. Viver a vida dentro de um terreiro é uma
relação de amor real, em toda a sua complexidade. Agradeço ao meu Pai e Mãe de Santo, Marcelo
e Ingrid, pelos ensinamentos, pelo carinho e pela receptividade que nunca havia encontrado em
outro lugar. Gosto de pensar que eles construíram o fundamento da minha fé, os princípios
basilares e, se hoje finalizo essa etapa tão importante para mim, é porque a força do axé deles me
inspira.
Agradeço à minha mãe, meu pai, meu irmão e minha vó, Cecília, Alessandro, Thiago e
Efigênia por todo o carinho e suporte ao longo desta jornada. Só cheguei aonde cheguei pelo
contínuo incentivo, por todo o amor e por todo o apoio que me deram desde sempre.
Ao Rogério, agradeço pela orientação ao longo deste trabalho. Sua contribuição e
compreensão muito me auxiliaram para que ele pudesse chegar aonde chegou. Pelas conversas,
dicas e proveitosos insights, eu agradeço. Também agradeço à Magda, primeira professora com
quem construí um laço de maior proximidade, e a quem devo muito do meu aprendizado durante
toda essa trajetória de graduação.
Sou grato aos vários colegas que, com suas observações e indicações, trouxeram
contribuições no decorrer de todo o curso desta graduação. Em especial, agradeço àquele a quem
a denominação de “amigo” não dá conta da importância exercida em minha vida, João Gabriel.
Por nossa irmandade, sou grato.
Não poderia ser menos grato aos seres espirituais que me auxiliaram e que sequer poderia
mencionar todos. Aos guias, mentores e orixás que me acompanham, sou grato por me guiarem
nesse caminho chamado vida. Como um dia disse Linn da Quebrada, D’eus pra mim é formado
de eus, de todas e todos os eus que me formam e me constituem. Só poderia acreditar em um
Deus que acredita em mim, nesse corpo, como vocês o fazem tão bem.
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RESUMO
Esta pesquisa se propõe a refletir acerca das transformações experienciadas pelas práticas de
cartomancia no Brasil, na medida em que tensionadas pelos regimes de saber umbandistas. Para
isso, debruço-me sobre a experiência mágico-religiosa ligada ao oráculo Baralho Cigano a partir
de uma análise de como os médiuns se desenvolvem enquanto cartomantes nas suas relações com
espíritos ciganos, trazendo implicações nos seus mecanismos de adivinhação. A maneira como a
cartomancia que se vale do Baralho Cigano se desenvolveu em terreno brasileiro encontrou
criativas e sincréticas formas de execução distintas daquelas encontradas em terreno europeu,
lugar a qual se atribui a sua origem comumente. Por esse motivo, o trabalho de campo que realizei
foi marcado por uma dimensão multifacetada constitutiva de práticas que se valem do Baralho
Cigano, pensadas no âmbito dessa pesquisa como caminhos a serem perseguidos. Para a
compreensão dessas diversas possibilidades de engajamento com tal ferramenta oracular,
discorro desde acerca da sua relação com a oferta de serviços mágico-religiosos autonomamente
até certos processos de transformação experienciados pelo campo umbandista contemporâneo no
tocante à absorção do culto aos ciganos como uma linha autônoma. Visando dar conta dessa
multiplicidade, este trabalho é resultado de uma pesquisa de campo prolongada dividida em três
etapas, tendo como centro a realização da observação participante, seja em meio virtual, seja
presencialmente. Também são abordados aspectos relativos à constituição de uma “escola
brasileira” de cartomancia através do Baralho Cigano, relacionada a uma rede de cartomantes
que buscaram produzir entendimentos nativos frente a esse sistema oracular a partir da ideia de
uma releitura simbólica e espiritual sob uma perspectiva “brasileira”, muito influenciada pelos
cultos afro-brasileiros. Nesse processo, a questão do sincretismo aparece como central, na medida
em que vemos um conjunto de procedimentos sendo operacionalizados, tendo como objetivo a
composição de mundos comuns a partir da sobreposição de territórios cosmológicos distintos.
Nesse aspecto, buscarei mostrar como a ideia de fundamento parece atuar como o elo norteador
entre esses universos cosmológicos, tanto no que se refere às possibilidades de sincretismo,
quanto no que se refere a sua recusa. Em última instância, o que se em encontra em voga quando
nos referimos à questão do sincretismo, bem como no que tange à incorporação do culto aos
ciganos no universo umbandista, é a maneira como o universo afro-brasileiro produz relações
com a alteridade, as quais o Baralho Cigano pode ser tomado como um espaço focal de reflexão.

Palavras-chave: Cartomancia. Baralho Cigano. Le Petit Lenormand. Umbanda.


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ABSTRACT

This research aims to reflect about the transformations experienced by the practices of
cartomancy in Brazil, as they are tensioned by the Umbanda knowledge regimes. To do so, I
focus on the magical-religious experience linked to the Gypsy Deck oracle, from an analysis of
how mediums develop themselves as fortune tellers in their relations with gypsy spirits, bringing
implications to their mechanisms of divination. The way Gypsy Deck fortune-telling developed
in Brazil found creative and syncretic ways of execution that were different from those found in
Europe, where its origin is commonly attributed. For this reason, the field I carried out is marked
by a multifaceted dimension constitutive of practices that make use of the Gypsy Deck, thought
in the scope of this research as caminhos (paths) to be pursued. To understand these diverse
possibilities of engagement with this oracular tool, I discuss from its relationship with the offer
of magical-religious services autonomously to certain processes of transformation experienced
by the contemporary Umbanda field regarding the absorption of the cult of gypsies as an
autonomous line. Aiming to account for this multiplicity, this paper is the result of an extended
field research divided into three stages, having participant observation as its center, which I call
(1) Incursions through the city of Belo Horizonte from the collection of pamphlets of magical-
religious services; (2) Virtual research in a study group on Facebook, focused on cartomancy and
other oracular practices; (3) On-site field work in an Umbanda temple, called CCPAP - Casa de
Caridade, Amor e Prosperidade Baiano Severino, in Belo Horizonte. I also approach aspects
related to the constitution of a "Brazilian school" of cartomancy through the Gypsy Deck, related
to a network of cartomancers that sought to produce native understandings of this oracular
system, based on the idea of a symbolic and spiritual re-reading under a "brazilian" perspective,
much influenced by Afro-Brazilian cults. In this process, the issue of syncretism appears as
central, to the extent that we see a set of procedures being operationalized, aiming at the
composition of common worlds from the overlapping of distinct cosmological territories. In this
aspect, I will try to show how the idea of foundations (fundamentos) seems to act as the guiding
link between these cosmological universes, both in terms of the possibilities of syncretism, and
in terms of its refusal. Ultimately, what is in vogue when we refer to the issue of syncretism, as
well as regarding the incorporation of the cult of gypsies in the Umbanda universe, is the way in
which the Afro-Brazilian universe produces relations with otherness, which the Gypsy Deck can
be taken as a focal space for reflection.

Keywords: Cartomancy. Gypsy Deck. Le Petit Lenormand. Umbanda.


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LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1 - Anúncio de serviço mágico-religioso I .................................................................. 18


Figura 2 - Anúncio de serviço mágico-religioso II ................................................................. 18
Figura 3 - Anúncio de serviço mágico-religioso III ................................................................ 18
Figura 4 - O Jogo da Esperança (Das Spiel der Hoffnung) ..................................................... 23
Figura 5 - Imagem do Baralho Cigana Sara Kali.................................................................... 26
Figura 6 – Momento da incorporação de entidade cigana na Mãe de Santo Ingrid ................. 46
Figura 7 – Momento da incorporação de entidade cigana no Pai de Santo Marcelo ................ 46
Figura 8 – Mesa Cerimonial contendo frutas para as entidades ciganas .................................. 47
Figura 9 – Cigano Igor realizando trabalho espiritual durante gira ......................................... 48
Figura 10 – Flyer de divulgação de gira pública de ciganos no CCPAP ................................. 61
Figura 11 – Símbolo de roda cigana ...................................................................................... 62
Figura 12 - Imagem comparativa entre a carta “A lua” no Baralho Cigano e no Tarot de Raider-
Waite ..................................................................................................................................... 71
Figura 13 – Imagem comparativa entre duas versões da carta 2 ............................................. 72
Figura 14 – Post do “pitaco” sobre leitura de Baralho Cigano ............................................... 80
Figura 15 – Post do “pitaco” sobre leitura de Baralho Cigano ............................................... 82
Figura 16 – Exemplo de Mesa Real nos moldes 4x9 .............................................................. 83
Figura 17 – Capa do livro “Tarot Cigano: A Magia do povo do Oriente (1993)”.................... 85
Figura 18 – Katja Bastos durante leitura oracular com o Tarot Cigano ................................... 86
Figura 19 – Imagem comparativa da carta 6 .......................................................................... 89

LISTA DE QUADROS

Quadro 1 – Relação entre os modelos francês e germânicos de naipes ................................... 24


Quadro 2 – Relação entre as cartas e os naipes no Baralho Cigano ........................................ 75
Quadro 3 - Relação entre as cartas e os Orixás segundo o Tarot Cigano da Trybo Cósmica ... 87
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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 9

Capítulo 1 - Narrativas em torno da cartomancia e do Baralho Cigano .......................... 17

1. 1 Percorrendo caminhos ..................................................................................................... 17

1.2 O Baralho Le Petit Lenormand ......................................................................................... 22

1.3 A cartomancia no Brasil ................................................................................................... 27

1.4 Nomadismos .................................................................................................................... 37

Capítulo 2 - O culto aos ciganos no CCPAP........................................................................ 43

2.1 A Gira de Ciganos ............................................................................................................ 43

2.2 A Consulta com o Baralho Cigano .................................................................................... 55

2.3 Trabalhar o corpo ............................................................................................................. 58

Capítulo 3 - O Sistema Lenormand: A estrutura do baralho e seus símbolos .................. 69

3.1 A dimensão narrativa oracular .......................................................................................... 69

3.2 As polaridades .................................................................................................................. 77

3.3 Formas de Tiragem ........................................................................................................... 79

4. O sincretismo com os Orixás ............................................................................................ 85

4.1 O Tarot Cigano da Trybo Cósmica ................................................................................... 85

4.2 O fundamento como elo articulador .................................................................................. 93

CONCLUSÃO .................................................................................................................... 100

REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS .............................................................................. 105


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INTRODUÇÃO

Este trabalho busca refletir acerca dos sentidos assumidos pelo oráculo Baralho Cigano
entre umbandistas a partir de uma análise de como os médiuns se desenvolvem enquanto
cartomantes nas suas relações com espíritos ciganos, trazendo implicações nos seus mecanismos
de adivinhação.
A maneira como a cartomancia que se vale do Baralho Cigano se desenvolveu em terreno
brasileiro encontrou criativas e sincréticas formas de execução distintas daquelas encontradas em
terreno europeu, lugar a qual se atribui a sua origem comumente. Nesse sentido, está entre os
propósitos desta monografia traçar os caminhos percorridos pelo Baralho Le Petit Lenormand,
oráculo europeu que dá a forma estrutural ao Baralho Cigano no Brasil, buscando descrever
etnograficamente as influências dos cultos de matriz afro-brasileira na sua prática oracular.
Para a realização desse trabalho, de cunho exploratório, busquei executar uma
combinação de diversas técnicas de pesquisas sob o enfoque qualitativo. Na busca por
compreender as práticas sociais e sistemas de significados relacionados às práticas mágico-
religiosas ligadas à cartomancia, a pesquisa foi dividida em três etapas, tendo como centro a
realização da observação participante, as quais denomino de (1) Incursões pela cidade de Belo
Horizonte a partir do recolhimento de panfletos; (2) Pesquisa em ambiente virtual através da
realização de entrevistas e observação participante em um grupo de estudos no Facebook,
voltados para a cartomancia e outras práticas oraculares; (3) Incursões presenciais à campo dentro
de um terreiro de Umbanda, de nome CCPAP - Casa de Caridade, Amor e Prosperidade Baiano
Severino, em Belo Horizonte.
No que tange à realização da primeira etapa da pesquisa, dei início a ela durante o ano de
2019, tentando coletar, durante meus deslocamentos diários pela cidade, diversos números
telefônicos contidos em panfletos e lambe-lambes referentes a serviços ligados às práticas
adivinhatórias e trabalhos espirituais. Esse tipo de atuação profissional, tomada inicialmente por
mim, de maneira generalizada, como sendo constituído por “cartomantes”, na verdade, mostrou-
se como sendo um campo de enorme diversidade interna, onde floresce não apenas uma
multiplicidade de autodenominações (videntes, Mães/Pais de Santo, magistas, etc), mas também
de práticas, no qual é possível observar um forte caráter inventivo e sincrético na execução de
um “saber-fazer” próprio. (CHAVES, 2011, p.111)
As primeiras tentativas de contato com meus interlocutores, feitas no ano de 2019, se
deram através de ligações em que relatei ser um estudante de Ciências Sociais que buscava
entender melhor a trajetória pessoal de cartomantes em Belo Horizonte, perguntando se havia
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disponibilidade para marcarmos um encontro para conversar de maneira despretensiosa sobre


seu exercício profissional. Foram feitas oito tentativas de contato que resultaram, todas elas, em
negativas por parte dessas pessoas - todas elas mulheres -, ainda que diferenças razões tenham
sido apresentadas. Enquanto que algumas alegaram falta de tempo em virtude de terem muitos
clientes para serem atendidos, outras alegaram trabalharem em terreiros e serem Mães de Santo,
o que tornava, como me foi dito, as coisas “um pouco diferentes”, quando aleguei que poderia
cobrir simbolicamente o valor da consulta para realizar a entrevista. Uma outra interlocutora com
quem pude conversar via telefone, também Mãe de Santo, falou que se tratava de uma
comunidade mais fechada e que não era qualquer pessoa que poderia entrar.
Essa experiência inicial de inserção via telefone se mostrou pouco frutífera, o que fez
com que eu optasse por mudar a estratégia adotada, na busca por construir relações mais
pessoalizadas com meus interlocutores, já que somente ligações pareciam não dar conta. Em
função disso, optei por contratar os serviços de leitura oracular para dar ensejo à pesquisa como
forma de construir um contato presencial com essas pessoas. Os resultados desse
empreendimento se mostraram mais frutíferos, tendo em vista que ao longo da pesquisa foram
realizadas três consultas oraculares com cartomantes distintas, cada qual com um estilo próprio
de leitura. Na presente monografia descrevo etnograficamente os eventos experienciados por
mim em diálogo com uma cartomante específica, de nome Marília, os quais acredito tenham
ressoado de forma mais significativa sobre minhas reflexões.
Em função do contexto da pandemia de COVID 19, os métodos e as condições de
realização da pesquisa tiveram que ser reformulados. Antes realizada presencialmente na cidade
de Belo Horizonte, a pesquisa passou a valer-se de inserção virtual em grupos, fóruns e redes de
especialistas online, chegando a sua segunda etapa.
O primeiro grupo virtual, denominado de “Baralho Cigano, Tarot, Oráculos e Feitiços”
consta atualmente com 32,8 mil membros e se autodenomina como um grupo destinado a
tarólogos, cartomantes e consulentes que buscam oferecer serviços gratuitos, divulgar seus
trabalhos ou trocar conhecimentos acerca de práticas oraculares. A partir desse grupo maior, pude
ter acesso a um menor no Whatsapp, que consta atualmente com algo em torno de 50 membros,
focado em Baralho Cigano, um tipo de oráculo mais popular entre praticantes de religiões de
matriz afro-brasileira.
No que se refere à introdução do elemento da etnografia em ambientes virtuais, também
conhecida como etnografia virtual ou netnografia (KOZINETS, 2014), nesse novo momento da
pesquisa, tal escolha se justifica por duas questões: a primeira de cunho conjuntural, em função
da pandemia de Covid-19, que colocou a necessidade de se repensar modelos de se produzir
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pesquisa de campo na contemporaneidade. Essa escolha se deve também devido a uma


especificidade do próprio campo. Através da minha inserção virtual, pude perceber que há uma
grande proeminência de cartomantes dentro dos meios virtuais, que se utilizam dessas
plataformas não apenas como uma ferramenta de divulgação dos seus serviços, mas também
como o espaço em si de realização das leituras oraculares, que não dependem do encontro
presencial. Adicionalmente, a inserção em grupos de discussão aparece também como um espaço
para interessados no assunto, de maneira geral, aprimorarem seus conhecimentos e promover
trocas de saberes.
Para dar continuidade à pesquisa, resolvi utilizar o Facebook como plataforma nesse novo
contexto que me foi colocado. Essa escolha se deve à grande quantidade de grupos de discussão
que existem neste site, no qual uma gama variável de assuntos reúne pessoas interessadas em
discuti-los a partir da lógica de formação de redes e fóruns de discussão. Uma vez inserido dentro
de um grupo, os usuários podem criar tópicos ou participar daqueles já existentes através de
comentários, assim como opinar em enquetes e ver lives transmitidas por vídeo especificamente
dentro do grupo. Qualquer usuário no Facebook pode criar um grupo, tendo liberdade para definir
se estas comunidades serão abertas (a entrada não depende de aprovação do dono) ou restritas
(entrada mediante aprovação). Além do dono, há a possibilidade também de serem escolhidos
moderadores, os quais dividem com ele a função de gerenciar a comunidade: podem apagar
tópicos, aprovar ou excluir membros.
A partir de uma busca rápida em torno de palavras como “Tarot”, “cartomantes” e
“oráculos”, pude ter acesso a uma ampla lista de grupos que tematizam essa questão. Contudo,
diante dessa miríade de opções, optei por solicitar a permissão para a entrada no grupo “Baralho
Cigano, Tarot, Oráculos e Feitiços”. Essa escolha se justificou não apenas pelo seu número de
membros - trata-se de um dos grupos com maior quantidade de usuários entre os quais tive acesso
-, mas também pelos próprios objetivos declarados do grupo, focado no compartilhamento de
conhecimentos e promoção de estudos no âmbito das leituras oraculares e feitiços.
Ao solicitar minha entrada no grupo, que possui caráter fechado, tive que preencher um
questionário rápido em que constavam algumas perguntas, como por exemplo, quais eram
minhas intenções em participar da comunidade, assim como tive que dar um “check” para regras
básicas do grupo (isto é, concordar com elas). Após receber a confirmação do aceite, busquei
descobrir quais eram os moderadores e administradores do grupo, informação facilmente obtida
na aba “Membros do grupo”.
A primeira pessoa com quem tive contato foi uma das moderadoras do grupo, que é
também uma das integrantes mais ativas, responsável por produzir conteúdos semanalmente
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relacionados ao estudo de Baralho Cigano na forma de lives. Meu objetivo era ser aberto com ela
em torno das minhas intenções em relação a etnografar o grupo, de modo que lhe relatei ser
estudante da graduação em Ciências Sociais e também um profissional que realiza leituras
oraculares. Também perguntei se estava de acordo com as normas do grupo fazer um post
perguntando se alguém teria interesse de voluntariamente participar de uma entrevista via voice-
call (chamada de voz). Sua resposta foi positiva, dizendo que isso poderia ser feito, ainda que
fosse necessário publicar a postagem em uma segunda-feira, especificamente, tendo em vista que
os outros dias estavam relegados exclusivamente aos estudos dos oráculos.
No contexto do grupo, os “pitacos” são os posts que mais movimentam interações
cotidianamente, no qual os cartomantes buscam compartilhar suas tiragens e, a partir da
perspectiva de outros profissionais, ampliar o sentido da leitura ao compartilhar diversas
perspectivas em torno dela. Comumente associada à concepção de um conselho não solicitado,
os pitacos possuem um sentido singular no âmbito do grupo etnografado de cartomantes. Podem
ser entendidos como postagens feitas por membros que buscam compartilhar a interpretação que
fazem da tiragem das cartas no seu exercício profissional, no sentido de confirmar ou não aquilo
que leram ou de ampliar a miríade de interpretações possíveis da leitura, adensando o seu
significado. Tal movimentação virtual é especialmente interessante no âmbito da execução de
uma etnografia, pois permitiu a mim ter um contato concreto com diversos modos de se realizar
a leitura oracular, viabilizando uma reflexão em torno não apenas do amplo saber-fazer atrelado
a essa prática, mas também permitindo-me contatar as dimensões subjetivantes trazidas por ela.
Foi também através do contato com o meio virtual que fiquei sabendo da retomada das
giras1 presenciais durante o ano de 2021 no CCPAP, terreiro de umbanda localizado na região
do Taquaril, em Belo Horizonte, viabilizando a entrada em na terceira etapa da pesquisa. O grupo
virtual “Umbanda em Belo Horizonte”, no Facebook, tem como objetivo principal unir
entusiastas da religião na cidade de Belo Horizonte e Região Metropolitana, a fim de trocar
informações sobre casas, compartilhar eventos e festas, estudos e fazer amizade. Além da
indicação de terreiros, no grupo pude observar uma série de posts relativos à promoção de artigos
religiosos, cursos práticos e teóricos ligados à religiosidade afro-brasileira, bem como
atendimentos particulares de cartomancia.

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As giras são os principais rituais públicos que acontecem dentro dos terreiros. Remetem a uma
reunião de espíritos de determinada categoria que se manifestam corporalmente nos médiuns através
do transe. Podem ter como objetivo o desenvolvimento mediúnico, a realização de trabalho espiritual
ou festividade.
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Objetivando sondar a proeminência do culto de ciganos dentro da Umbanda em Belo


Horizonte, criei uma publicação perguntando por recomendações de terreiros na região que
trabalhavam com a linha de ciganos e se encontravam em funcionamento. Nesse contexto,
encontrávamos em um momento da pandemia em que a prefeitura de Belo Horizonte havia
concedido um relativo afrouxamento da política de lockdown, viabilizando a abertura de uma
multiplicidade de lugares, incluindo instituições religiosas de maneira ampla, desde que
respeitassem os protocolos de distanciamento social. Contudo, naquele momento, somente
algumas casas optaram pela reabertura dos cultos públicos, mantendo apenas as consultas
particulares, como pude observar no grupo virtual.
Prontamente recebi um retorno positivo no grupo com a indicação de alguns lugares que
cultuavam essas entidades. Entre eles, está o Centro Espírita Ciganos do Oriente, em Contagem,
a Fraternal Cigana Amigos de Luz, em Betim, assim como o CCPAP - Casa de Caridade, Paz,
Amor e Prosperidade Baiano Severino, em Belo Horizonte. Houve também menção a um terreiro
que trabalha com a Linha do Oriente na região de Igarapé, sem a identificação do seu nome. O
CCPAP, contudo, acabou me chamando a atenção, por uma série de motivos. Primeiramente, por
sua maior proximidade em relação às outras que viabilizaram incursões ao lugar com mais
facilidade. Em segundo lugar, porque, alguns dias depois que publiquei a postagem, recebi
notificações no grupo de que haveria uma Gira de Ciganos se aproximando no terreiro, e uma
adepta veio me chamar no privado, a fim de me convidar para participar do culto.
Sendo já um adepto das religiões de matriz afro-brasileira antes do início da pesquisa,
fundamentalmente dentro de casas de candomblé, ainda que sem o “pé firmado” dentro de uma
casa, os relatos autoetnográficos por mim descritos em diálogo com os filhos de santo do CCPAP
registram propriamente o meu momento de conversão para a religião umbandista e os contatos
iniciais com tal terreiro, que desembocaram na minha entrada oficial para dentro da casa após
três meses de idas contínuas e semanais às giras. Nesse trabalho, contudo, somente os eventos
experienciados dentro de giras de ciganos são relatados mais detalhadamente, por uma questão
de delimitação de objeto de pesquisa.
Acredito que essas três dimensões da pesquisa trouxeram um campo interrogativo sobre
as práticas de cartomancia no Brasil que se valem do Baralho Cigano extremamente
multifacetado, em consonância com a própria diversidade constitutiva do campo, no que tange
aos seus entendimentos nativos em torno da prática, seus modos de saber, seus modos de
aprender, bem como a sua relação com os espíritos ciganos.
É nesse sentido que me utilizo da noção de “experiência mágico-religiosa” como uma
forma de dar conta dessa multiplicidade. No transcorrer de toda a pesquisa, tomei o conceito de
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experiência como fundamentação teórica geral, tendo como horizonte fugir de alguns vícios
colocados pelo conceito de representação, assim como pela velha noção de crença. A partir do
conceito de experiência, busquei dar ensejo propriamente à vida que se vive, que é experienciada
e experimentada. Nessa estratégia, os interlocutores são tomados como plenamente teóricos,
portadores de filosofias plenas que emanam das suas experimentações e relações com as práticas
mágico-religiosas de cartomancia.
Da mesma forma, buscando lidar com alguns problemas colocados pela dicotomia entre
magia e religião, frequentemente apropriada sob um viés hierárquico, optei pela inserção de um
hífen na definição de “experiência mágico-religiosa” como forma de apontar, na verdade, para
a continuidade entre esses mundos, em detrimento da sua cisão, de modo a conformar um
continuum entre esses “tipos ideais”. Na consonância de autores como Lévi-Strauss, que afirmam
que “não existe religião sem magia, nem magia que não contenha pelo menos um grão de
religião” (LÉVI-STRAUSS, 1989, p.247), o campo ligado às práticas oraculares de cartomancia
apontavam, na verdade, muito mais para uma continuidade entre magia e religião, pensando tais
dimensões ideais propriamente como artifícios teóricos, do que um recurso para delimitação de
um martelo crítico, isto é, uma tentativa de definição daquilo que é magia e o que é religião
nesses contextos.
Tratando-se de uma etnografia que discorre sobre práticas matizadas pelo universo
umbandista, a adoção de tal estratégia se mostrava fundamental, na medida em que, conforme
argumentado por Lísias Negrão, há problemas significativos na obra de autores como Roger
Bastide na forma como é tratado o universo umbandista, por exemplo, em função de uma
delimitação estanque entre essas categorias. Segundo o autor:

Sua posição metodológica diante da realidade observada, fortemente ancorada


na distinção magia/religião de Durkheim e em suas afinidades pessoais com o
candomblé, fez com que este fosse tomado (...) como paradigma da religião
autêntica frente a outras formas descaracterizadas magicamente (a macumba)
ou ideologicamente (a umbanda). (NEGRÃO, 1996, p.80)

Cartomantes, videntes, tarólogas, dentre uma multiplicidade de outras categorias, são os


principais sujeitos com quem esta pesquisa buscou dialogar, a fim de produzir uma maior
compreensão sobre suas atividades profissionais. Conhece-se pouco ainda sobre seus praticantes,
suas trajetórias de vida, suas motivações e os significados atrelados ao seu exercício profissional
que, muitas vezes, fogem da esfera religiosa institucionalizada, a qual poderiam ser tomados
como pertencentes ao campo da “macumba”.
Não obstante, a inserção dentro da esfera religiosa institucionalizada, mostrou-se como
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uma forma frutífera de acompanhar sincronicamente certos processos de transformação


experienciados pelo campo umbandista contemporâneo no tocante à absorção do culto aos
ciganos e utilização do Baralho Cigano como uma ferramenta oracular.
Exatamente por essa realidade multifacetada e constitutiva das práticas de cartomancia
que se valem do Baralho Cigano, penso suas múltiplas possibilidades como caminhos a serem
perseguidos. A noção de caminho e o versário das encruzilhadas são maneiras recorrentemente
utilizadas por cartomantes para expressar os resultados colocados pelos oráculos nas leituras.
Entende-se que os cartomantes devem orientar a situação para que o consulente tome um
direcionamento melhor, a fim de que as coisas possam fluir na vida dele, para prosseguir adiante
nos seus caminhos.
No capítulo 1, a partir de um resgate histórico em torno da trajetória percorrida pelo
Baralho Le Petit Lenormand, oráculo europeu que dá a forma estrutural ao Baralho Cigano no
Brasil, busco de forma exploratória construir um panorama, sem a pretensão de dar conta de
todas as referências históricas ao baralho já descritas, das múltiplas influências socioculturais
ligadas a tal manejo oracular, no tocante à influência do espiritismo e das práticas de ocultismo
durante o século XVIII, do universo cigano e, mais fundamentalmente, da influência dos cultos
de matriz afro-brasileira sobre tais práticas. Além disso, também é abordado aspectos relativos à
constituição de uma “escola brasileira” de cartomancia através do Baralho Cigano, relacionada a
uma rede de cartomantes que buscaram produzir entendimentos nativos frente a esse sistema
oracular a partir da ideia de uma releitura simbólica e espiritual sob uma perspectiva “brasileira”,
influenciado pelos cultos afro-brasileiros e pela encantaria cigana.
No capítulo 2, é proposta uma imersão etnográfica dentro dos cultos aos ciganos
conforme este é operacionalizado no CCPAP através das giras. Aspectos ritualísticos e
cerimoniais ligados a essa linha de entidades são descritos de forma mais detalhada, bem como
a maneira como as consultas oraculares com o Baralho Cigano ocorrem nesse estabelecimento,
tendo como base a minha própria experiência com esses espíritos.
Já no capítulo 3, debruço-me mais profundamente sobre o Baralho Cigano, no que se
refere aos aspectos simbólicos constitutivos do oráculo. Para além da multiplicidade de versões
iconográficas que florescem no interior desse sistema, há um pilar comum que compõe a estrutura
do baralho, ligadas a algumas características constitutivas associadas ao Sistema Lenormand,
manejadas durante as leituras oraculares. Ao me debruçar sobre essas características, busco
analisar algumas diferenças relativas à simbologia do Baralho Cigano em relação ao Le Petit
Lenormand tradicional e a outras formas de cartomancia, como o Tarot.
Por fim, no capítulo 4, discorro acerca de algumas proposições colocadas em torno da
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constituição de uma “escola brasileira” de cartomancia a partir do Baralho Cigano, no que se


refere ao sincretismo dos emblemas que compõem as cartas do baralho com elementos
cosmológicos das culturas afro-brasileiras. A partir de uma análise da versão oracular proposta
Trybo Cósmica, tomada por vários cartomantes como fundadora da “escola brasileira”, mudanças
de caráter iconográfico, simbólicas e nominais foram estabelecidas a fim de promover um
encadeamento entre os emblemas que compõem as cartas e os orixás. Vemos um conjunto de
procedimentos sendo operacionalizados a partir dessas alterações, tendo como objetivo a
composição de mundos comuns, a partir da sobreposição de territórios cosmológicos distintos.
Nesse aspecto, buscarei mostrar como a ideia de fundamento parece atuar como o elo norteador
entre esses universos cosmológicos, tanto no que se refere às possibilidades de sincretismo,
quanto no que se refere a sua recusa.
17

Capítulo 1 - Narrativas em torno da cartomancia e do Baralho Cigano

1. 1 Percorrendo caminhos

A maneira como a cartomancia se desenvolveu em terreno brasileiro encontrou criativas


e sincréticas formas de execução distintas daquelas observadas em terreno europeu, seu lugar de
origem. Neste capítulo, buscarei reconstruir um pouco dos caminhos percorridos pelo Baralho
Le Petit Lenormand, oráculo europeu que dá a forma ao Baralho Cigano no Brasil, buscando
construir um breve panorama histórico ligado à prática oracular de cartomancia em terreno
brasileiro. Os objetivos em torno desse empreendimento giram em torno de sondar as práticas
que matizam a constituição da cartomancia no Brasil, de forma mais geral, assim como trazer um
olhar mais atento aos caminhos percorridos por esse oráculo específico dentro das práticas
mágico-religiosas umbandistas.
Quando se caminha pelos grandes centros urbanos no Brasil é comum ver, colados em
postes ou muros, cartazes que prometem a resolução de problemas dos mais variados tipos. Os
chamados “trabalhos” são rituais que se manifestam na forma de oferendas a entidades, - ainda
que raramente isso apareça já nos cartazes - muitas vezes conjugados com oráculos e outros
serviços de adivinhação. Voltam-se para a solução de problemas amorosos, de saúde, de inveja,
de desemprego, conflitos jurídicos, que se valem dos oráculos como uma forma de produção de
diagnósticos, necessários para dar um direcionamento espiritual a uma gama de situações
relativas ao infortúnio e a necessidade de proteção que parecem não ter alternativa senão a via
espiritual.
Os estudos em torno da magia e dos oráculos ocupam um lugar notadamente clássico
dentro do campo de reflexão antropológica e podem ser localizados desde as origens da
disciplina. Atualmente no Brasil, entretanto, poucos são os estudos que se dedicam a tratar da
questão da oferta de serviços mágico-religiosos. Conhece-se ainda pouco sobre seus praticantes,
suas trajetórias de vida, suas motivações e os significados atrelados ao seu exercício profissional
que, muitas vezes, fogem da esfera religiosa institucionalizada.
Assim, dei início a minha pesquisa tentando coletar, durante meus deslocamentos diários
pela cidade, diversos números telefônicos contidos em panfletos e lambe-lambes referentes a
serviços ligados à práticas adivinhatórias. Esse tipo de atuação profissional, tomada inicialmente
por mim, de maneira generalizada, como sendo constituído por “cartomantes”, na verdade,
mostrou-se como sendo um campo de enorme diversidade interna, onde floresce não apenas uma
multiplicidade de autodenominações (videntes, Mães/Pais de Santo, magistas, etc), mas também
18

de práticas, no qual é possível observar um forte caráter inventivo e sincrético na execução de


um “saber-fazer” próprio (Oliveira, 2011, p.111).

Figura 1 - Anúncio de serviço Figura 2 - Anúncio de serviço Figura 3 - Anúncio de serviço


mágico-religioso I mágico-religioso II mágico-religioso III

Fonte: Foto autoral tirada na Fonte: Foto autoral tirada na Fonte: Foto autoral tirada na
Zona Leste de Belo Horizonte Zona Sul de Belo Horizonte em Zona Leste de Belo Horizonte
em 2019 2019 em 2019

Aconteceu justamente em um dos meus primeiros contatos com cartomantes


presencialmente na cidade de Belo Horizonte durante o ano de 2019, quando recebi um panfleto
que divulgava os serviços de Marília, uma mulher negra de aproximadamente cinquenta anos.
No papel, encontrava-se escrito a disponibilidade para realização de consultas com cartas e
búzios, assim como para a realização de trabalhos de forma rápida, garantida e sigilosa, para
questões de união e separação de casais, sucesso nos negócios, na vida sentimental e familiar,
bem como para tratar de vícios e impotência sexual.
Na medida em que buscam produzir uma intervenção na “ordem natural das coisas”, os
trabalhos fazem-se presentes como um dos maiores atrativos que levam potenciais clientes a
buscarem a atuação de cartomantes. O sigilo, portanto, é uma dimensão importante de todo
processo, tanto por parte de quem busca esses serviços, quanto de quem oferta, na medida em
que, em muitos casos, certas questões morais e éticas são tensionadas. É o caso dos rituais
mágico-religiosos denominados de demanda que, ao invés de buscarem resoluções de problemas,
são voltados para prejudicar outras pessoas, causando separação de casais, adoecimento,
19

impotência sexual, etc. Conforme assinala Chaves (2011, p. 20), vistos antropologicamente, tanto
os trabalhos quanto as demandas são ritos mágico-religiosos, ainda que eles se diferenciem em
função da sua finalidade: os primeiros auxiliam enquanto os segundos derrubam.
Através inicialmente de uma ligação à Marília, assumi o papel de um potencial cliente
interessado em tirar algumas dúvidas. Naquele momento, encontrava-me interessado em me
debruçar sobre os processos de realização de trabalhos de forma geral e quais eram seus tipos.
Marília relatou que havia vários tipos de trabalhos possíveis de serem feitos, entre os quais,
aqueles voltados para o amor, para a vida sexual, para cura e também para questões
judiciais. Interessado em saber mais sobre os trabalhos de amor especificamente, questionei-a
acerca de como s se dava a sua realização, a qual a profissional relatou que, anteriormente à
execução de um trabalho, era necessário fazer uma consulta aos oráculos, para averiguar se a
amarração se mostrava apropriada para a situação específica. Além disso, seus trabalhos eram
todos realizados na presença do consulente. Com isso, optei por marcar uma consulta com
Marília, de forma que combinamos um horário para que eu a pudesse encontrá-la em sua casa.
No dia em questão, encontrava-me acompanhado de uma amiga. Ao chegar em seu
apartamento, localizado em uma área extremamente movimentada do centro, próxima à Praça
Sete, pude perceber que as consultas se realizavam em um espaço específico da casa. Marília
desde o começo se apresentou muito hospitaleira e comunicativa. Enquanto esperávamos a
consulta, ela relatou um caso de uma experiência negativa com uma cliente que havia maltratado
seu cachorro. Constatando tal situação, Marília se recusou a atender a cliente, ainda que esta
tenha insistido em pagar uma quantia a mais.
Após esse relato, fui chamado à consulta e perguntei se minha amiga Ana poderia me
acompanhar. Marília disse que isso não poderia ocorrer porque “Eles” preferiam que não. Quem
seriam eles e qual a influência desses seres sobre seu exercício profissional? Esse questionamento
ressoou por muito tempo dentro de mim, como um daqueles momentos de encontro etnográfico
que nos marcam e nos incitam a questionamentos. Estávamos a sós na sala onde Marília realiza
suas consultas, o que me fez concluir que ela se referia aos espíritos com quem atuava em
conjunção.
Na sala, havia uma mesa larga com várias estátuas de santos católicos, como de São Jorge,
e também de entidades que compõem o universo umbandista, como caboclos. Havia também um
quadro da deusa hindu Shiva suspenso na parede. No centro da mesa, pude observar um jogo de
búzios, assim como um baralho de cartas, uma vela acesa e um copo com água. Ao fundo da sala,
havia duas grandes velas que, como Marília veio a me dizer posteriormente, queimavam por 90
20

dias e eram provenientes da Bahia. A cartomante, além disso, havia colocado uma espécie de
“jaleco” branco de mangas curtas e também se encontrava com guias de contas.
Quando questionado se queria uma leitura de cartas ou de búzios, respondi que gostaria
que fosse realizada uma leitura oracular com as cartas do baralho cigano. Marília, então, fez
algumas perguntas iniciais como qual era meu signo, onde eu morava, qual era meu estado civil
e minha data de nascimento. Mesmo solicitando o jogo de baralho, Marília não deixou de fazer
inicialmente uma consulta aos búzios.
Em seguida, começamos propriamente a leitura das cartas, cortando as cartas de tal forma
que elas se dividissem em três montes. Através deles, as cartas foram distribuídas em uma
disposição específica, em formato de cruz, cada qual relativa a um aspecto específico, como
coração para tratar do amor, cabeça sobre os pensamentos, etc.
De maneira geral, a leitura ocorreu de maneira extremamente densa, com uma série de
informações. Inicialmente, Marília pediu que eu não a interrompesse, com exceção dos casos em
que eu não havia entendido alguma coisa dita por ela. Quando entramos na temática do amor, ela
perguntou se eu tinha alguém na minha vida naquele momento. Acabei me abrindo e relatando
que sentia que minha vida amorosa se encontrava meio estagnada. A cartomante, então,
respondeu que minha linha do amor se encontrava cortada e que isso fazia com que todas as
minhas tentativas de desenvolvimento de uma relação acabassem por não dar certo. Como
resposta a uma de suas perguntas, relatei também que já havia namorado, mas que fazia cerca de
dois anos que me encontrava solteiro.
Em seguida, passamos para outra temática, ligada à espiritualidade, quando a questionei
acerca desse aspecto na minha vida pessoal, relatando que queria desenvolvê-la mais. No que
tange à essa questão, Marília me disse que não precisaria fazê-la dentro de um terreiro ou centro,
uma vez que isso iria me exigir muito tempo de dedicação, tempo este que eu deveria investir na
minha carreira e nos meus estudos. Enquanto conversávamos sobre espiritualidade, M. relatou
que já tentou se afastar da sua religião, na qual atua desde os oito anos de idade, e que tinha sido
iniciada por uma Mãe de Santo na Bahia. Contudo, ainda que reconhecesse que seu ofício lhe
trazia muitas responsabilidades e também desgastes, a cartomante via que esse era seu lugar no
mundo e que morreria caso tentasse fugir disso.
Chegando ao final da leitura, Marília me disse que, se eu confiasse nela, poderia atuar
sobre minha situação. Perguntei se era o caso de fazer algum trabalho de amor ou realizar um
banho de ervas, o que ela negou. Lembro-me também da cartomante relatar que ela não traz amor
de volta em três dias, retomando uma frase muito comum de ser vista nos lambes pregados nas
ruas. Como alternativa a minha situação, era necessário acender duas velas de 90 dias, cada uma
21

em uma extremidade do quarto. Também me foi orientado a acender uma vela de sete dias numa
sexta-feira e que fosse escrita uma prece, pedindo por sucesso no âmbito profissional e
emocional, colocando-a em um lugar acima da minha cabeça. Por fim, após o final da consulta,
também foi recomendado tomar um banho de cachoeira com uma roupa velha e rasgá-la sob a
queda d’água.
Depois desse encontro, nunca mais encontrei com Marília, ainda que diversas das coisas
que ela havia me falado ainda ressoem dentro de mim, tanto em termos antropológicos quanto
pessoais. As possibilidades de atuação oracular através das cartas em conjunção com entidades
foi um desses aspectos que, atualmente, compreendo como uma dimensão inovativa trazida pela
cartomancia no Brasil contemporaneamente, que se relaciona a todo esse processo que já vinha
ocorrendo anteriormente de associação de baralhos com práticas ligadas às religiões de matriz
afro-brasileira. Atuando à margem de uma esfera religiosa mais institucionalizada, sem um
terreiro próprio, Marília é uma entre muitos e muitas cartomantes, que trabalham autonomamente
na oferta de serviços mágico-religiosos.
Contudo, o uso do Baralho Cigano vem de maneira crescente sendo incrementado
também dentro daqueles terreiros que adotam o culto aos espíritos ciganos como uma parte
constitutiva do seu rito. Processo ainda recente e não necessariamente adotado por todos os
terreiros, diversos pais e Mães de Santo umbandistas vêm atualmente introduzindo o culto aos
ciganos como uma linha autônoma entre muitas outras dentro desse universo.
Todos os cartomantes com quem tive a oportunidade de conversar atuam desincorporados
quando vão realizar a leitura das cartas, ainda que relatem estar em comunicação com esses
espíritos, o que coloca a necessidade de se prestar culto constante a eles, a fim de produzir
proximidade entre as partes, conforme um interlocutor veio a me dizer posteriormente.
Discorrendo sobre as entidades ciganas, Thiago Tavares, um cartomante que faz uso do Baralho
Cigano, afirma:
Sim, a gente que cultua entidades, a gente, para uma questão de aproximação,
tudo começa com a parte do culto. Você precisa começar a cultuar a energia,
você precisa se afinar com a energia, com a entidade, para que ela se aproxime
de você. Então, se você quer que uma entidade cigana se aproxime de você, a
primeira coisa que você precisa fazer é prestar culto a essa entidade. Aí você
prestando culto a entidade, em uma certa continuidade, é possível e bem
provável que em determinado ponto desse culto que você vem prestando com
certa regularidade, essa entidade se aproxime de você e te dê provas da
existência dele no seu caminho a partir daí (LENORMAND, 2021; grifo meu)
22

O uso do Baralho Cigano, portanto, pode ser entendido, de forma crescente, como uma
ferramenta utilizada por Pais e Mães de Santo nas suas práticas como oraculistas, entendendo-as
como uma dimensão do seu exercício sacerdotal.

1.2 O Baralho Le Petit Lenormand

Aquilo que se compreende como baralho Le Petit Lenormand que, no Brasil, adquire o
nome de Baralho Cigano (BC), pode ser entendido atualmente como um sistema oracular que
compõem uma matriz de baralhos estilisticamente distintos, mas relacionados a partir de certos
aspectos constitutivos comuns, como sua composição de trinta e seis cartas, cada qual contendo
uma imagem central específica. Diversas versões em torno da sua origem são passíveis de serem
encontradas em campo, contudo, aquela mais difundida entre meus interlocutores é que seu
criador não foi a famosa vidente francesa Mademoseille Marie-Anne Lenormand, que dá nome
futuramente ao baralho, mas Johann Kaspar Hechtel (1771-1799). Hechtel foi um jovem homem
de negócios, dono de uma fábrica de artefatos de bronze, em Nuremberg, na Alemanha, criador
de jogos de salão, entre os quais se incluem Das Spiel der Hoffnung - O jogo da Esperança -, que
se tornou o protótipo para o baralho de cartomancia Petit Lenormand ao ser publicado por volta
do ano de 1799.
Trata-se de um jogo de tabuleiro que se valia de um baralho de trinta e seis cartas,
distribuídas no formato 6x6. Através do uso de dois dados, os jogadores percorriam a trajetória
das cartas com um peão, de tal forma que cada carta continha uma figura que poderia ter
consequências favoráveis, desfavoráveis ou indiferentes em relação ao andamento do jogo.
Valendo-se de um “imaginário popular” em torno das figuras desenhadas nas cartas, cada uma
delas levava a um efeito não apenas no que tange ao movimento dos peões, mas também em
termos de ganho ou perda da “moeda” do jogo. Conforme percorriam a trajetória das cartas, os
jogadores ganhavam ou perdiam moedas simbólicas até que chegassem ao final do jogo.
23

Figura 4 - O Jogo da Esperança (Das Spiel der Hoffnung)

Fonte: Museu Britânico do Jogo - Inglaterra2

O nome do jogo é dado pela forma como se ganha. Quem chegasse primeiro na carta
contendo a imagem central da Âncora, nº 35 e penúltima do jogo, seria o vencedor. A Âncora,
nesse aspecto, é o símbolo da esperança que dá nome ao jogo. Por outro lado, quem através dos
dados parasse na carta de número 36, A Cruz, ali ficaria preso até que tirasse números iguais nos
dados ou um jogador o salvasse. Caso o jogador lançasse um número que excedesse as trinta e
seis cartas, ele deveria contar para trás a quantidade de números que excede a carta da Cruz.
Além da imagem central, cada lâmina trazia também em sua parte superior a representação em
miniatura do baralho convencional em dois formatos distintos, o modelo francês e o modelo

2
Disponível em: <http://www.clubedotaro.com.br/site/h23_20_cigano_Alexsander.asp>. Acesso em
10/01/2022.
24

germânico, como é possível ver na imagem acima. Isso permitia que o Jogo da Esperança, além
de ser usado no contexto do Jogo da Esperança, também fosse usado como baralho lúdico em
ambos os sistemas, conforme apresentado abaixo:

Quadro 1 – Relação entre os modelos francês e germânicos de naipes

Naipe Francês Ouros Copas Paus Espadas

Naipe Germânico Guizos Copas Bolotas Folhas

Fonte: Mantovanni, 2020, p.34

Segundo Mantovanni (2020), o Jogo da Esperança detinha funções pedagógicas na


medida em que atuava também como envolto em certos valores culturais daquele contexto. É o
caso, por exemplo, da centralidade dada à carta da Âncora como símbolo da esperança,
diretamente associada ao sistema religioso cristão. Para o autor, a associação da figura da âncora
com a ideia de esperança pode ser recuperada sob a perspectiva das três virtudes teologais dentro
da teologia cristã, a fé, caridade e esperança, cada qual associada a um símbolo que se encontra
no BC, respectivamente, cruz, coração e âncora.
Durante o século XVIII, distintos tipos de baralho já eram o instrumento mais comum de
adivinhação na Europa. Elas eram baratas, de ampla disseminação e de uso recreativo. Muitos
usavam um baralho comum ou o denominado “Piquet”, um jogo de trinta e duas cartas utilizado
na França. Quando o cartomante francês Etteilla escreveu seu primeiro guia de adivinhação de
cartas, as pessoas começaram a usar o baralho de Piquet não apenas para jogatinas, mas também
para adivinhação. Através do seu primeiro livro “Etteilla ou manière de se récréer avec un jeu
de cartes” (1785)3, o ocultista buscou explicar o uso de cartas convencionais para fins
adivinhatórios através do uso do baralho Piquet, acrescido de uma carta extra, denominada de
“Etteilla”.
O Jogo da Esperança, inspirado no baralho de Piquet, tem, contudo, um conjunto de
imagens próprias, voltadas para um uso lúdico e educativo. Com animais, flores e objetos do dia-
a-dia, como livros, cartas e chaves, as cartas do Jogo da Esperança possuíam uma linguagem
simples e concisa que, ainda hoje, fundamenta o Petit Lenormand. Ademais, segundo Matthews

3
Baralho cujas bases estão fundamentadas em estudos relacionados ao Livro de Thoth, muito
influenciador dos processos de criação da Cabala e do Hermetismo.
25

(2014), além desses jogos lúdicos, os livros de emblemas dos séculos XVI e XVII podem ser
entendidos como as fontes primárias que balizam o imaginário do Petit Lenormand.
O estudo mais aprofundado em torno da vida de Marie-Anne Lenormand (1772–1843) e
o desenvolvimento das cartas Lenormand pode ser localizado na obra A Wicked Pack of Cards:
Origins of Occult Tarot (DECKER et al, 1996). Não só foi a vidente mais popular das primeiras
décadas do século XIX, como se mantém como a adivinha europeia mais célebre por ter entre
suas clientes Josefina de Beauharnais, esposa de Napoleão Bonaparte, entre outros membros da
nobreza francesa. Ela teria previsto, no seu exercício, a ascensão e queda do Imperador Napoleão
Bonaparte, assim como, ao ler suas mãos em 1807, ter previsto seu desejo de se divorciar da
Imperatriz Josefina.
Para afastá-la de cena, enquanto providenciava o divórcio, Napoleão ordenou sua prisão,
em 11 de dezembro de 1809, onde permaneceu por doze dias, mas que teve como contra-efeito
o verdadeiro lançamento da sua carreira e aumento da sua popularidade. A volumosa produção
bibliográfica da adivinha, que produziu livros durante toda a sua vida, mostra a grande variedade
de instrumentos utilizados como instrumentos oraculares:
Quando se permitia falar sobre suas técnicas divinatórias ela evocava um
impressionante catálogo de instrumentos mágicos: o espelho flamejante de Luca
Gaurico, as trinta e três varas gregas, a “cabale de 99 de Zoroastre”, alguns
grimórios, uma varinha divinatória, seus preciosos talismãs, o aço électre, as
chaves de Salomão, o anel cigano, a(s) flecha(s) de Abaris, uma lupa mágica
etc. As cartas não foram esquecidas, mas não foram, obviamente, colocadas em
primeiro lugar. Tarô, sempre escrito como tharots, não é frequentemente
mencionado. (DECKER et al, 1996)

Após a morte de Lenormand, uma série de oráculos começaram a ser publicados


utilizando-se do seu nome como estratégia mercadológica. Uma dessas reinvenções, Le Grand
Jeu Lenormand (O Grande Jogo Lenormand), vale-se não apenas de uma maior diversidade de
cartas, chegando ao total de 56 lâminas, mas também acrescenta elementos astro-mitológicos e
numerológicos que antes não se encontravam presentes nos baralhos adivinhatórios. Da mesma
maneira, “La Sibylle des Sallons” é um outro conjunto de cartas, publicado pela editora Grimaud
a partir de 1828, que carrega sentidos e métodos próprios expressos em situações extremamente
literais simbolizadas nas cartas. Ambos baralhos, contudo, não possuem relação com o Le Petit
Lenormand. Nesse sentido, é importante notar que tanto o Le Grand Jeu Lenormand e o Le Petit
Lenormand são os dois baralhos mais famosos associados à Mlle. Lenormand, mas que, contudo,
não carregam entre si uma relação de continuidade. É errôneo interpretar que o “Petit” de 36
cartas seja uma adaptação simplificada do primeiro, de 52 lâminas, que ficou conhecido como
“O Grande Lenormand”, tendo em vista que:
26

Sua composição de 36 cartas aponta para países germânicos ao invés da França,


onde tal composição não era usual desde o século XVII; sua iconografia simples
não tem nada a ver com o “Grand jeu de Mlle Lenormand” nem com os métodos
de leitura de cartas próprios de Mlle Lenormand. As miniaturas de cartas que,
por vezes, substituem as marcas francesas na parte central superior, mostram
padrões de naipes típicos da Alemanha. Cada carta tem somente um símbolo:
um anel, um navio, um coração etc. (DECKER et al, 1996)

Uma série de outras versões relativas à origem do baralho Le Petit Lenormand podem
ser, contudo, encontradas em campo, dentro dos manuais que acompanham a compra de um
baralho cigano, e nos ajudam a compreender os sentidos atrelados ao seu manejo, para além de
uma “história oficial”. Já em terreno brasileiro, no manual do Baralho Cigana Sara Kali, – santa
considerada padroeira do povo cigano como um todo – produzido pela companhia “Magia da
Flor” vemos uma versão distinta acerca da sua origem, ressaltando Mme. Lenormand como sua
criadora a partir de um contato com o povo cigano:

Figura 5: Imagem do Baralho Cigana Sara Kali

Fonte: Fotografia retirada do campo, 2021


27

UM POUCO DE HISTÓRIA - Os ciganos, eternos andarilhos, fascinaram os


povos de todo o mundo, gerando controvérsias e preconceitos por onde passam.
É muito nebulosa a origem do Povo Cigano e as teorias são muitas. A mais
aceita é que sua origem é a Índia, por várias semelhanças com aquele povo. Os
ciganos, após muitas perseguições, espalharam-se para a Europa, chegando até
a Pérsia, atual Irã.
QUEM FOI MADAME LENORMAND - Marie-Anne Adélaide Lenormand,
conhecida simplesmente como Madame Lenormand, nasceu na França em
1772. Era estudiosa da Cabala, Astrologia, Alquimia, Numerologia, entre
outras. Era cartomante da nobreza da França e de figuras da alta sociedade da
época. Em contato com o povo cigano, viu naqueles a possibilidade de criar um
novo baralho, adaptando com figuras mais simples, onde os “não ciganos”
poderiam ler a sorte. Este baralho espalhou-se rapidamente por toda a Europa,
sendo usado até os dias de hoje, não só na Europa, mas no mundo todo.
Fonte: Baralho Santa Sara, Magia da Flor, material encontrado em campo.

No contexto europeu, à medida que o baralho ganhava popularidade, diferenças regionais


em sua interpretação começaram a surgir naturalmente, em especial entre os sistemas da
Alemanha, França, Suíça e Bélgica. Apesar dessas pequenas diferenças, esse sistema de leitura
do Lenormand passou a ser chamado de Escola Europeia entre alguns cartomantes.

1.3 A cartomancia no Brasil

Tratando-se da inserção da cartomancia no contexto brasileiro, autoras como Mary del


Priore (DEL PRIORE,2014, p.103), apontam que a cartomancia teria chegado juntamente dos
franceses no contexto de instalação da corte portuguesa no Brasil, durante o século XIX no Rio
de Janeiro, como consequência do aprofundamento dos contatos culturais entre Inglaterra, França
e Brasil.
Trabalhos de cunho jornalístico, como o de João do Rio (1881-1921) apontam igualmente
para a popularização dessas práticas adivinhatórias durante esse período, ao tratar da diversidade
de manifestações do sagrado incorporadas pela população carioca no seu dia a dia, na sua obra
“As Religiões do Rio” (RIO, 2012). O autor produz um relato em torno do que ele denomina
como seu com contato com as “Sacerdotisas do Futuro”, o qual englobaria um campo
diversificado de práticas, como “cartomantes, nigromantes, sonâmbulas videntes, quiromantes,
grafólogas, feiticeiras e bruxas” (RIO, 2012, p. 229-230, unidas pela possibilidade de se pautar
o futuro a partir de diversos métodos. Seu olhar sobre essas práticas, contudo, é cético. O narrador
julga que o trabalho das videntes não passa de “doce ilusão” (RIO, 2012, p. 242), atribuindo o
seu sucesso entre a população como um todo, independente de classe social ou raça, ao temor do
desconhecido, capaz de levar “homens de posição” e senhoras respeitáveis a traírem a condição
28

de civilizados e renderem-se a “crendices” (VIEIRA, 2016, p.8).


Vale ressaltar que o recorte de gênero atribuído às práticas adivinhatórias pelo jornalista
não é fortuito. Autoras como Maia (2020), defendem que a cartomancia se estabelecia nesse
contexto como um ofício relacionado à predição e magia, tradicionalmente conectadas ao
feminino, constituindo-se como um espaço de protagonismo social desviante da sociedade
patriarcal e judaico-cristã no Brasil e na França durante o século XVIII. Ademais, para Veronese,
a participação das mulheres nessas práticas podia ser entendida como:
(...) uma oportunidade preciosa para elas, afinal, representa uma chance de
trabalho e rendimentos financeiros e, ao mesmo tempo, permite que acessem
um conjunto de conhecimentos e práticas dentro da qual podem obter autoridade
(VERONESE, 2017, p.119)

Entre suas andanças pelo Rio, o cronista afirma ter visitado cerca de oitenta “templos do
futuro”, mas se atém na sua descrição em torno dos seus relatos como uma cartomante específica,
Mme. Matilde, a cartomante da elite carioca. A oraculista gozaria de grande prestígio por ter ido
a Paris onde estudou com outras famosas cartomantes e teria se iniciado em práticas diversas
como a cartomancia, a telepatia, o sonambulismo, a metafísica das estrelas e a quiromancia.
Contrapondo sua atuação em relação a de outros templos, o autor cita um diálogo no qual Mme.
Matilde defende que haveria templos “de ouro, de prata, de cobre e de latão”, e complementa:
Meu caro, os verdadeiros templos do Futuro são de data recente entre nós. A
sorte começou a ser descoberta aqui por negros da África imbecis e por ciganos
exploradores. Depois apareceram as variações espíritas, os adivinhos que
montavam casinholas receosas, reunindo ao estudo das cartas a necessidade dos
despachos africanos. Uma crendice! As verdadeiras sacerdotisas datam de
pouco tempo, são de importação e anunciam. Essas não se ocultam mais e dão
consultas claramente. (RIO, 2012, p. 236-237)

O tom racista da fala de Mme. Matilde mostra um cenário de embates e divergências em


torno de quais seriam aquelas pessoas que deteriam o status de se falar do futuro com
propriedade, a qual a cartomante atribui àquelas pessoas de “importação”, isto é, de origem
francesa. Entretanto, evidencia também um quadro das múltiplas referências culturais que se
entrecruzam na constituição das práticas adivinhatórias de cartomancia em território brasileiro,
que vão desde a quiromancia cigana, aos cultos adivinhatórios afrodescendentes e a incorporação
de práticas espiritistas de origem francesa no manejo das cartas, através da influência kardecista.
Na perspectiva de autores como Minois (2016), o século XIX pode ser denominado de “o
século profético” em função da ascensão de uma diversidade de práticas relacionadas ao oculto
durante o período. Nesse momento, uma série de práticas ocultistas encontravam-se em ascensão
na Europa, como o mesmerismo, também conhecido como magnetismo animal que, por sua vez,
29

influenciaram na constituição do Espiritismo Kardecista, na França, e no espiritualismo norte-


americano4. Inicialmente desenvolvida pelo físico austríaco Franz Anton Mesmer (1734-1815)
durante o século XVIII, o mesmerismo pode ser entendido como um sistema de cura específico
pautado na existência de um magnetismo presente entre os seres vivos capaz de produzir efeitos
terapêuticos. O tratamento científico dado a essas manifestações de magnetismo apontavam para
intercontinuidades entre essas práticas e o kardecismo francês, como o seu próprio fundador,
Allan Kardec, coloca:
“O Magnetismo preparou o caminho do Espiritismo, e o rápido progresso desta
última doutrina se deve, incontestavelmente, à vulgarização das ideias sobre a
primeira. Dos fenômenos magnéticos, do sonambulismo e do êxtase às
manifestações espíritas não há mais que um passo; tal é a sua conexão que, por
assim dizer, torna-se impossível falar de um sem falar do outro. Se tivéssemos
que ficar fora da ciência magnética, nosso quadro seria incompleto e
poderíamos ser comparados a um professor de física que se abstivesse de falar
da luz. Todavia, como entre nós o magnetismo já possui órgãos especiais
justamente acreditados, seria supérfluo insistirmos sobre um assunto que é
tratado com tanta superioridade de talento e de experiência; a ele, pois, não nos
referiremos senão acessoriamente, mas de maneira suficiente para mostrar as
relações íntimas entre essas duas ciências que, a bem da verdade, não passam
de uma” (KARDEC, 2002 [1858], pág. 149)

Essa série de práticas, envolvendo contato com espíritos, mesas volantes, sonambulismo
e magnetismo chegam ao Brasil, como práticas eficientes no terreno da cura e da terapêutica, e
rapidamente se associam à cartomancia em termos de execução. A insistência em relacionar
cartomancia ao sonambulismo e ao espiritismo apontava para a influência francesa desse
processo, enquanto um estado de “sono lúcido” aos quais os sonâmbulos se libertavam das
limitações do corpo físico de modo a produzir previsões do futuro, a partir de uma comunicação
com o além, propiciando uma terapêutica de si e dos outros. Conforme Del Priore coloca, acerca
da efervescência da cartomancia no Rio de Janeiro:
Nas livrarias não faltavam livros que eram anunciados nos jornais: A mesa que
dança e a mesa que responde - experiência do magnetismo ao alcance de todos,
de Mr. Guillard, era vendido a 1 conto de réis na Livraria Laemmert. O
magnetismo e o sonambulismo se transformaram em ganha-pão. O Correio
Mercantil, em 31 de março de 1868, oferecia os serviços da "sonâmbula e
cartomante madame Pettie", que continuava a tirar cartas e "sonambulizava".
Como já se viu, a doutrina de origem europeia encontrou respaldo entre a
comunidade francesa e fez de imigrantes e expatriados sua correia de
transmissão. (DEL PRIORE, 2014, p.64)

4
O espiritualismo norte-americano é uma denominação dada a uma série de práticas que podem ser
retomadas, nas suas origens aos eventos experienciados pelas Irmãs Fox nos Estados Unidos, dando
origem à uma série de mesas-volantes que marcam o modern spiritualism. Para mais informações, ver
Weisenberg (2011)
30

Conforme Maia (2020, p.19) coloca a partir de uma análise historiográfica de atuação de
mulheres cartomantes no Rio de Janeiro durante os anos de 1860, apesar de muitas cartomantes
simultaneamente serem sonâmbulas, é possível observar que existia uma tentativa de estabelecer
distinções entre essas duas práticas, procedendo principalmente das praticantes de
sonambulismo. Isso porque o magnetismo e o sonambulismo partiam de premissas mais
conectadas à razão, gozando de um estatuto de cientificidade, advindo dos processos políticos e
sociotécnicos ligados à “descoberta” do eletromagnetismo durante o século XIX, que se
contrapunham ao tom de primitivismo e charlatanismo imputado não apenas às práticas de
cartomancia, quanto principalmente em relação às manifestações afro-brasileiras de transe. A
comunicação com os espíritos, nesse aspecto, não era uma novidade propiciada pela importação
do espiritismo kardecista ao Brasil, mas já se encontrava como fundamento de certas práticas
religiosas afro-brasileiras no qual se vigora um forte culto aos antepassados.
É dentro de esforços em contrapor a tese de que o Brasil seria uma sociedade católica na
sua essência que vemos, também no campo acadêmico, as primeiras menções à cartomancia -
encontradas por mim - ressaltando a influência dos cultos afro-brasileiros no seu uso, a partir da
obra “O Animismo Fetichista dos Negros Baianos” de Nina Rodrigues. Descrevendo a
diversidade de feitiços observados em campo, o médico ressalta que seus usos não eram comuns
apenas entre negros, os quais são mais uma vez mencionados sob um tom extremamente racista,
mas era requisitado também por outras classes sociais, tendo em vista a ampla clientela que
requisitava esses serviços mágico-religiosos:
O número que elas avultam ali sobre a mesa fatídica da feiticeira, bem indica a
riqueza da clientela e a extensão da crença nas virtudes do feitiço. Mas esta
clientela não se recruta sempre nas negras boçais e ignorantes, senão mesmo na
melhor sociedade da terra. Para não levantar as suspeitas que possam recair
sobre as damas de qualidade que a queiram consultar, a mãe do terreiro fez
instalar na sala principal da casa, bem em evidência, uma loja de modista. E que
não é de todo falso o boato que com insistência correu aqui há tempos, de que
alguém não se resolvera a aceitar a presidência da província e mais tarde a pasta
de ministro, sem prévia audiência de uma cartomante mãe de terreiro, prova a
oferta que Isabel me fez, dos préstimos dos seus fetiches para o caso de eu
pretender ser senador! (RODRIGUES, 2021, p.59-60, grifo próprio)

Essa não é, entretanto, a única menção que o autor faz à cartomancia, ainda que em todos
os casos, sua descrição prevaleça como um fio não-atado, um ponto em aberto, sem muitas
descrições detalhadas sobre quais baralhos eram utilizados e quais rituais compunham a
performatividade oracular nesses contextos. No início do capítulo V, denominado de “A
conversão dos Áfrico-baianos ao Catolicismo”, Nina coloca a cartomancia como integrante de
31

um conjunto de práticas que recebem e reproduzem a influência da feitiçaria e da idolatria


fetichista africana:
O animismo fetichista africano, diluído no fundo supersticioso da raça branca e
reforçado pelo animismo incipiente do aborígine americano, constitui o subsolo
ubérrimo de que brotam exuberantes todas as manifestações ocultistas e
religiosas da nossa população. As crenças católicas, as práticas espíritas, a
cartomancia, etc., todas recebem e refletem por igual o influxo da feitiçaria e da
idolatria fetichista do negro. (RODRIGUES, 2021, p.113)

Por fim, nas últimas páginas da sua obra, é possível ler o relato dos serviços mágico-
religiosos prestados por uma cartomante de nome Josefina. A menção à cartomante leva ao
encerramento do livro a partir de uma conclusão frente aos objetivos centrais do livro, que é
averiguar a sua tese de ilusão de conversão católica:
A mais afamada e consultada das cartomantes desta cidade é ainda uma mulata
que dirige candomblés. Ainda há pouco tempo uma senhora da nossa melhor
sociedade comunicou-me confidencialmente que, tendo ouvido à cartomante
Josephina sobre os seus sofrimentos, esta aconselhou-lhe que mandasse dizer
missas a diversos santos católicos, e fazer festas a Sangô e a Ogun. E como a
senhora lhe declarasse que lhe era fácil satisfazer a exigência em relação aos
santos católicos, mas muito difícil em relação aos orisás, a cartomante propôs-
lhe incumbir-se desta última parte. A cartomante Josephina tem residido em
diversas partes desta cidade sempre com grande celebridade e clientela; ouvida,
afirma-se até por médicos distintos em apuros de concurso na Faculdade. De
um se diz que fez em concurso diagnóstico psiquiátrico por inspiração da
cartomante. Tal é a disposição de ânimo da nossa população em geral. Continuar
a afirmar, em face de todos estes documentos, que os negros baianos são
católicos e que tem êxito no Brasil a tentativa de conversão, é, portanto,
alimentar uma ilusão que pode ser cara aos bons intuitos de quem tinha interesse
de que as coisas se tivessem passado assim, mas que certamente não está
conforme à realidade dos fatos. (RODRIGUES, 2021, p. 135)

A partir de tais relatos, é possível observar como, já desde o século XIX, as práticas de
cartomancia se encontravam, em diversas ocasiões, relacionadas com elementos que compõem
as religiões de matriz afro-brasileira.
Contemporaneamente, trabalhos recentes no campo acadêmico brasileiro reafirmam a
mesma confluência entre essas práticas, salientando a incorporação do uso do Baralho Cigano
por diversos Pais e Mães de Santo umbandistas na sua atuação como oraculistas, entendendo essa
prática profissional como uma das dimensões do seu exercício sacerdotal. Tendo como enfoque
na sua tese a realização dos denominados “trabalhos espirituais”, Kelson Oliveira CHAVES?
discorre sobre a presença conjugada do uso das cartas nesse processo, a partir do seu trabalho
etnográfico em terreiros umbandistas na região de Limoeiro do Norte, Ceará. Abordando as
funções exercidas por uma Mãe de Santo, o autor assinala:
32

Conforme já informado, Dona Leuda também coloca cartas. Essa prática não
ocorre separada do seu papel como rezadora e mãe de santo umbandista.
Alguém que vai pedir uma reza decide também botar o baralho. Depois de o
baralho revelar o diagnóstico, a pessoa continua o caminho e paga para fazer
um trabalho com alguma entidade. Tal qual acontece com Pai Salviano, com
Dona Leuda as três atividades se integram e passam a funcionar como uma coisa
só. No que diz respeito à cartomancia, Dona Leuda tem domínio sobre mais de
um tipo de baralho. Ela, contudo, faz uso principalmente do tarô egípcio e do
baralho cigano. (CHAVES, 2011, p.117)

As múltiplas umbandas existentes em terreno brasileiro podem ser entendidas como um


fenômeno religioso muito influenciador desse processo, a partir do século XX. O entendimento
hegemônico entre adeptos e estudiosos de que a umbanda teria origem na mobilização de um
grupo de indivíduos de base ou inspiração kardecista, responsáveis pela organização e expansão
da chamada “Umbanda branca”, no Rio de Janeiro das primeiras décadas do século XX, a partir
da incorporação do espírito Caboclo das Sete Encruzilhadas por Zélio de Castro.
Críticas a essa versão vem sendo debatidas no campo religioso e acadêmico, explicitando
o seu caráter higienista e voltado para a construção de um imaginário de nação nacional, no
contexto de ascensão dos ideais republicanos. Tomada como condizente de certos princípios que
norteiam esse período, ao reafirmar os valores estruturais do discurso oficial – civilização,
progresso, evolução –, alguns autores vêm explicitando os esforços desses indivíduos em
desassociar a Umbanda de um passado ligado à cultura negra, tomadas como bárbaras, atrasadas
e não evoluídas (BRITTO, 2019; ISAIA; 2015). Para aqueles que entendem a história da
umbanda sob outra perspectiva, esta demarcação exibe sua fragilidade quando contraposta ao
modo pelo qual certos terreiros compreendem o processo de constituição da umbanda, já que os
seus fundamentos básicos (espirituais/filosóficos e materiais/culturais) são anteriores ao
movimento de organização, institucionalização e legitimação social da religião entre o grupo
kardecista (ROHDE, 2010). A narrativa que esse trabalho busca seguir em torno dessa questão é
que existem múltiplas umbandas, cada terreiro atuando como um epicentro de fundamentações
próprias que podem ou não convergir quando tratamos dos seus autoentendimentos em termos
de uma origem.
Nas Umbandas, portanto, independente de qual narrativa se elija para tomar como
fundacional, as cartas, inicialmente ligadas ao pôquer, começaram a adentrar os terreiros através
da atuação de certas entidades, notadamente aquelas que compunham a chamada Linha da
Esquerda. As cartas de jogo lúdico adentram os cultos afro-brasileiros compondo certa
materialidade atrelada à expressividade de certas entidades específicas, como Exus, Zé Pelintras
e Pomba Giras. Nesse aspecto, médiuns incorporados passam a dar voz a entidades que, no seu
33

exercício espiritual, relacionavam-se ritualmente com o uso de cartas, promovendo uma


popularização do uso das mesmas nas cerimônias religiosas afro-brasileiras.
A presença das cartas de jogo lúdico dentro dos cultos umbandistas é, contudo, um
processo pouco documentado, muito pautado na transmissão oral. Alguns cartomantes buscaram,
eles mesmos, debruçar-se sobre esse processo, investigando a partir de pesquisas pessoais um
pouco desse processo. É o caso, por exemplo, de Renata Berreta, uma de minhas interlocutoras
de pesquisa, que assinala sobre seu processo investigativo:
(...) Aí eu descobri isso né, o Lenormand chega ao Brasil junto com essa onda
do espiritismo kardecista, as primeiras cartomantes elas começam a trabalhar
no RJ e aí a cartomancia francesa se espalha um pouco, depois se publica os
primeiros baralhos no Brasil a um preço muito acessível com o passar do tempo.
E aí a Umbanda é institucionalizada, outra coisa que eu também estudo, e que
a gente não pode dizer que foi [criada] em 1908. Em 1908, houve a
institucionalização, esse processo já acontecia né, então, com a expansão da
Umbanda, já se usava as cartas de pôquer principalmente na incorporação de
alguns Zé Pelintras e Pomba Giras, e aí essas cartas começam a ganhar espaço
e começam a serem usadas também dentro dos terreiros, nos ritos específicos
ali.Aí se começa a usar, tanto nos ritos, nas giras dedicadas aos ciganos, as
cartas, cada terreiro faz de uma forma diferente, dentro do rito, tira-se uma carta
ou às vezes tem um atendimento específico no dia da gira de cigano com as
cartas. Tem as saras ciganas também que aí quando tem os atendimentos se tem
um jogo um pouquinho maior, e o fenômeno que vêm acontecendo, que foi uma
coisa que a gente conversou, que os pais de santo e as mães de santo, os líderes
religiosos de casas e muitos frequentadores, pessoas que trabalham na corrente,
começam a também a desenvolver a função de cartomante, fora dos ritos, fora
dos terreiros. O pai de santo ou a mãe de santo, muitas vezes, em horários
específicos, ainda que se use a instalação do terreiro...mas as cartas vão entrando
por vários lados, assim, né. E aí o que aconteceu nesse processo todo. Foi aí
onde houve a releitura desses símbolos, desses emblemas. Então, o uso dentro
de um contexto cultural e social muito diverso do europeu, pediu essa releitura,
e aí se começou a associar cartas a determinados orixás, substituiu-se a dama e
o cavalheiro pelo cigano e a cigana, e enfim, outros processos que continuam
acontecendo. Então, isso já acontecia. Na verdade, o que eu descobri, com essa
pesquisa de cartomancia e Umbanda, é que já se associava guias e orixás às
cartas do Baralho de naipe, de pôquer. (Renata Berre, Entrevista em agosto de
2021)

Destituídos de uma linha própria de trabalho até meados do século XX, as entidades
ciganas frequentemente se manifestavam juntamente daqueles espíritos que compunham a linha
da esquerda, como Exus e Pomba Giras. Contudo, tamanha foi a importância dada a cultura do
povo cigano no Brasil que, com o passar do tempo, há a definição de uma linha específica para
esse grupo de espíritos, reverenciando tal povo como uma verdadeira força espiritual. Nesse
sentido, a falange dos ciganos passou a ter maior força dentro da Umbanda enquanto linha
própria, deslocando-se de manifestações ligadas à linha da esquerda e passando a se tornar
constituinte da linha de direita, momento em que a associação entre ciganos espirituais, as cartas
34

e manejo oracular passa a ser mais difundida.


É também sob a perspectiva da influência de um repertório afro brasileiro que muitos
cartomantes entendem a constituição de uma “escola brasileira” em torno do Baralho Cigano,
enquanto constituidora de um saber-fazer local atrelado à cartomancia. Foi durante os anos 80
quando a Ordem Iniciática Trybo Cósmica, localizada em Guaratiba-RJ e coordenada por Katja
e César Bastos, publicou o denominado “Tarot Cigano - A magia do Povo do Oriente” (BASTOS,
2020), da Trybo Cósmica. Sendo o transe seu sinal diacrítico, foi através da incorporação de uma
entidade de nome “Rainha Cigana”, guia espiritual com a qual a Yalorixá e Sacerdotisa do Povo
do Oriente trabalha, que os princípios que balizam um encadeamento de associações com o
universos cosmológico afro-brasileiro foram de maneira mais sistemática organizados, trazendo
como enfoque, por exemplo, o estudo das cartas do Lenormand associados aos Orixás, no caso
do seu baralho específico, além de uma iconografia repleta de simbologia ligada aos ciganos.
Ademais, em 1992, há o lançamento do livro do “Tarot Cigano – A Magia dos Orixás” com os
fundamentos litúrgicos e ritualísticos da Encantaria Cigana do Povo do Oriente. Nota-se também o
lançamento do Tarô do Cigano, em 1994, por J. DellaMonica, dando mais um passo na
estruturação de um método brasileiro de trabalho e compreensão do Baralho Cigano.
Ambos, ainda que se autodenominem como Tarot, estruturam-se na verdade conforme o
sistema Lenormand, na sua composição de trinta e seis cartas e simbologia específica. Na
perspectiva de Katja Bastos a diferença fundamental entre o BC e o Tarot Cigano, conforme
proposto pela Rainha Cigana, é que o Tarot Cigano pode ser entendido como um caminho dos
ciganos, por meio do qual os orixás falam, enquanto que a denominação de baralho seria
meramente um conjunto de cartas (DURÃO, 2016).
Conforme essas releituras propostas por uma rede de cartomantes específicas durante o
final do século XX, as cartas do Baralho Cigano passaram a ser editadas no Brasil com algumas
diferenças substanciais em relação às cartas do Le Petit Lenormand clássico. A primeira delas é
que a associação de cada lâmina com outra carta do baralho convencional, de maneira geral, foi
removida, trazendo apenas a imagem principal que dá seu nome à carta. Também se nota uma
variação na própria simbologia de certas lâminas: a carta europeia de número 2, por exemplo, o
Trevo, transforma-se na carta das Pedras ou dos Obstáculos na versão brasileira; A carta do
caixão passa a ser chamada de “A morte”, em algumas versões, e as cartas 28 e 29, o Homem e
a Mulher, transformam-se no Cigano e na Cigana. 5

5
Para uma análise mais detalhada das alterações iconográficas e de nomenclatura propostas pela escola
brasileira, ver capítulos 3 e 4.
35

Para além de releituras de cunho iconográfico ou simbólico referentes às cartas, a “Escola


brasileira de cartomancia” pode ser entendida como um processo em aberto, relativo a uma
maneira de se relacionar com o oráculo e de compreensão do que é oracular inovativa frente aos
entendimentos hegemônicos que se apresentavam em terreno europeu, fugindo, muitas vezes, de
uma autodenominação enquanto “membros” de uma escola de fato. Em campo, pode-se
averiguar empiricamente que os modos de se tratar o manejo oracular são diversos e muitas vezes
fogem de um entendimento por parte dos cartomantes enquanto praticante de uma “Escola
brasileira”, o que nos leva a concluir que tal denominação, nas suas proposições, está relacionada
a uma rede de cartomantes que buscam produzir interpretações locais do baralho segundo padrões
específicos, levando-se em consideração a influência dos cultos afro-brasileiros sobre tais
práticas, na constituição de uma ideia de “brasilidade” própria ao manejo das cartas, não dando
conta da multiplicidade de iconografias, usos e entendimentos possíveis de serem observadas em
campo.
De fato, a forte influência dos cultos afro-brasileiros sobre o Baralho Cigano pode ser
contrastada, na verdade, com uma ausência de indícios orais ou documentais que remetem ao uso
histórico desse mesmo oráculo entre ciganos étnicos, o que poderia explicar a sua denominação
enquanto tal. Discorrendo sobre as práticas adivinhatórias presentes entre ciganos étnicos,
Teixeira assinala a quiromancia como uma das principais, termo erudito para aquilo que
popularmente era conhecido como buena-dicha, sendo documentada desde os fins do século
XVII e início do século XVIII. Para o autor:
A buena-dicha não era para os ciganos um ritual sagrado, e nem poderia ser
considerada pela sociedade mineira como algo demoníaco. Para as ciganas, era
uma atividade lúdica e sua principal e mais rendosa atividade. Para as
consulentes, quase sempre, a buena-dicha significava boas novas, ou seja, a
esperança de mais sorte na vida. Algumas vezes, além de praticarem a
quiromancia, as ciganas também ocupavam-se "com a cura ou ao exorcismo de
doenças (TEIXEIRA, 2008, p.55)

Da mesma forma, nos meus encontros com cartomantes em grupos virtuais no Facebook,
pude ter contato com uma cartomante específica de nome Barbara que me trouxe importantes
apontamentos sobre tal problemática. Trabalhando com uma diversidade de oráculos, como o
Tarot, o baralho cigano, as runas, os baralhos de entidades da umbanda 6, Bárbara se
autodenomina como uma cigana “adotada”, porque, diferentemente dos ciganos de berço, sua

6
Por Baralhos de entidades, estou me referindo a um conjunto de cartas que se estruturam a partir de
outra lógica em relação ao Sistema do Le Petit Lenormand/Baralho Cigano, frequentemente denominados
de “Baralho Maria Padilha”, “Baralho da Pomba Gira”, Baralho do Malandro. No trabalho, não abordo
as singularidades colocadas por esses baralhos na sua relação direta com entidades que compõem linha
de esquerda dentro do universo umbandista, deixando tal empreendimento para estudos futuros.
36

mãe solicitou que fosse batizada por sua madrinha, que é cigana, conforme sua tradição. Desde
pequena Bárbara foi integrada ao clã de sua madrinha, de tal forma que muitos ensinamentos em
torno das práticas oraculares foram passados pela mãe da sua madrinha. Perpassando toda um
processo de aprendizado atrelado à questões de gênero, desde os oito anos de idade, Bárbara
começou a aprender a ler cartas de baralho e aos quinze anos foi consagrada manush pelo clã de
sua madrinha de forma que pode optar entre morar no acampamento juntamente do clã ou não,
isto é, ser uma cigana ranchada ou não. Conforme ela relata, no caso do seu clã específico, o
acampamento é uma denominação nativa para um lugar que sua família se reúne nas datas
festivas chamando os outros clãs próximos, convidando as outras famílias ciganas para poderem
festejar. Ser uma cigana ranchada, nesse aspecto, significaria abrir mão de algumas coisas, como
escolher o seu marido, função atribuída ao clã nesses contextos, o que fez com que ela optasse
em não ser ranchada.
Conforme Bárbara salientou em nossas conversas, existem ciganos das mais diversas
religiões, porque ser cigano está atrelado a uma condição étnica e não a uma religião em
específico. Os ciganos étnicos não possuem uma religião dada, de tal forma que frequentemente
adotam a cultura religiosa dos lugares que vivem há mais tempo. No seu caso específico,
colocando-se no cruzamento entre a perspectiva cigana sob a ótica umbandista e a perspectiva
cigana étnica, Bárbara buscou o desenvolvimento da sua espiritualidade dentro da Umbanda.
Conforme ela mesmo relata:
Eu tenho uma habilidade muito grande para ler cartas, não só cartas, mas eu tive
a mesma habilidade para ler mãos, depois eu tive a mesma habilidade para ler
borra de café, depois eu tive a mesma habilidade para ler vários outros tipos de
oráculo, runas, por exemplo. (...) Como que eu aprendi a ler outros oráculos?
Porque a maioria desses oráculos que eu falei para você eles [ciganos étnicos]
não usam. Porque depois do meu desenvolvimento, a espiritualidade foi me
chamando para outras coisas e a minha própria nona, minha vó, falou que eu
precisava desenvolver isso de alguma forma e foi aí que eu busquei a umbanda.
Eu busquei a umbanda quando eu tinha uns vinte e dois anos e aí fui trabalhando
dentro da cultura da umbanda, dentro dos ensinamentos da umbanda e dentro
também dos ensinamentos yorubá, fui desenvolvendo meu poder de
incorporação e aí fui trabalhando também com outros oráculos. (Bárbara,
entrevista pessoal, 2020, grifo próprio)

Nesse sentido, a Umbanda apareceu dentro da sua vida como uma forma de
desenvolvimento da sua espiritualidade a partir de um aprofundamento com uma gama de
práticas adivinhatórias. Da sua fala, é importante salientar como o seu desenvolvimento espiritual
sob a perspectiva umbandista a permitiu não apenas ter contato com uma gama de oráculos
maiores do que aqueles usados pelo seu clã étnico, mas também o desenvolvimento do seu poder
de incorporação, ainda que a cartomante, como todos os outros interlocutores com quem
37

dialoguei, não realize consultas oraculares incorporada. A influência, contudo, do culto a esses
espíritos na sua vida é tal que, conforme relatado em uma de nossas últimas conversas, Bárbara
carrega marcado em seu corpo uma tatuagem de um punhal, representando os espíritos ciganos
que a acompanham em vida.
Dessa forma, quando tratamos de uma perspectiva cigana, conforme colocada pelo
conjunto de práticas e rituais que perpassam o uso do Baralho Cigano, não necessariamente
encontramos um certo tipo de respaldo dentro da tradição étnica cigana. Conforme Renata
Berreta assinala:
É importante salientar que o fio condutor da perspectiva cigana representada no
conjunto de valores que norteiam o uso e a concepção do baralho cigano faz
menção a um repertório brasileiro (Encantaria cigana, Umbanda) simbólico e
espiritual que encontra na essência dessa egrégora um ponto de convergência.
Não falamos aqui de uma relação direta com as práticas da etnia cigana, dos
ciganos enquanto grupo étnico estabelecido no Brasil ou em outras partes do
mundo. Inclusive, não há até os dias de hoje provas históricas e documentais de
que os ciganos utilizavam, num passado próximo, o Lenormand como oráculo,
nem no Brasil nem em outros lugares. Sabe-se que a tradição da prática oracular
cigana é bastante ampla, mas se desenvolve muitas vezes no uso das cartas de
pôquer ou lança mão de elementos simbólicos que ficam restritos aos membros
dos clãs. Entretanto, a força imagética da egrégora é tão poderosa que, de fato,
ainda que em outros países e momentos da história do Lenormand clássico a sua
associação ao povo cigano, estimulada por questões mercadológicas, tenha
ocorrido, foi realmente no Brasil onde essa perspectiva ganhou força e
chancelou de uma vez por todas tal mística. (BERRETA, 2021, p.18)

Esse tipo de problemática evidenciada por uma disparidade entre práticas oraculares entre
ciganos étnicos e aquelas balizadas pela influência de ciganos espirituais coloca no seu cerne, na
verdade, uma questão propriamente antropológica: De que forma a cosmologia umbandista
constrói seu culto aos ancestrais ciganos na sua articulação com a diferença?
Gostaria de propor a seguir que o Baralho Cigano se constitui a partir de uma forma
própria a filosofia política das religiões afro-brasileiras de articular a diferença, como um modo
particular de encontro não essencializado.

1.4 Nomadismos

Raças que percorrem outras raças, espíritos como pontos de vistas incorporados em
corpos, pedras como perspectivas, santidades que se transformam, José Carlos Gomes dos Anjos
(2008) nos convida a pensar o mundo dos terreiros em pé de igualdade com a filosofia ocidental,
levando a uma aproximação da elaboração filosófica deleuziana com a cosmologia afro-brasileira
no tocante ao seu entendimento da diferença. Conforme o autor propõe:
38

A encruzilhada como categoria por meio da qual essa formação religiosa pensa
as diferenças e propõe um jogo com a alteridade, deve ser elevada a sua
condição de uma das maiores expressões de filosofia das diferenças. Essa
intuição de que na religiosidade afro-brasileira há uma lógica substancialmente
diferente das cosmovisões ocidentais já está presente em Bastide quando o
antropólogo constata que esse pensa- mento feito de linhas e de multiplicidades
em constante metamorfose não obedece “ao princípio da identidade e da não-
contradição” próprio ao pensamento ocidental. (ANJOS, 2008, p.81)

A encruzilhada como categoria por meio da qual a religiosidade afro-brasileira pensa as


diferenças foi inicialmente proposta por Leda Maria Martins na sua obra Afrografias da
Memória: o Reinado do Rosário no Jatobá (2021). A autora define as encruzilhadas - enquanto
conceito - como um agente tradutório e operador de princípios estruturantes do pensamento negro
capaz de oferecer possibilidades interpretativas referentes ao trânsito sistêmico e epistêmico que
emerge dos processos inter e transculturais nos quais se confrontam e entrecruzam - nem sempre
amistosamente - práticas performáticas, concepções e cosmovisões, princípios filosóficos e
metafísicos, etc. (MARTINS, 2021, p.51).
É a partir dessa chave que busco pensar a emergência do Baralho Cigano como ponto
nodal de encontro entre perspectivas no tocante à cosmologia afro-brasileira e as tradições
ciganas no Brasil, na maneira como se atravessam em seus nomadismos. Em certo sentido, ambas
as populações diaspóricas estariam cruzadas por certos questionamentos que, sugiro, poderiam
ter como ponto de partida da acerca da existência humana não a questão do Ser, mas da relação.
Assim, ambos agrupamentos estariam unidos naquilo que, como Mbembe coloca, está ligado à
questão de saber “como me transportar para lugares longínquos, simultaneamente diferentes do
meu lugar e implicados nele” (MBEMBE, 2017, p. 52).
Os povos ciganos, tradicionalmente entendidos como um conjunto de populações
nômades, vivenciaram durante os séculos XVI e XVII uma série de migrações compulsórias,
ligadas às ameaças de escravidão, assim como tentativas de expulsão dos seus territórios
ocupados, vendo nessas populações estigmas ligados à propagação de doenças e afeições à
criminalidade. Entre os seus principais perseguidores, a Igreja Católica teve especial papel ao
estigmatizar os ciganos como descendentes de Cã (Gênesis, 9:25): “os malditos”, inimigos da
Igreja pelas práticas de magia, cartomancia e quiromancia.
Como consequência desse processo, originam-se formas plurais de constituição
identitária em torno da sua formação enquanto povos diversos, de tal forma que, no seu percurso
nômade, buscam uma constituição de si não essencializada, mas que nem por isso deixa de ser
marcada etnicamente. A fala de Bárbara na seção anterior expressa um pouco desse processo:
como frequentemente adotam a cultura religiosa dos lugares que vivem há mais tempo,
39

encontram-se na limítrofe entre a absorção dos valores culturais da sociedade ampla e a


manutenção dos seus valores tradicionais, sem que isso leve a uma perda de um entendimento de
si marcado etnicamente. Conforme Magano (2012) nos mostra, esse processo se reflete nos
processos de identificação social, contribuindo, assim, para o aparecimento de identidades
plurais, novas formas sociais que se afastam do “modelo tradicional cigano”, mas que também
não se dissolvem totalmente nos modelos dominantes.
Da mesma forma, José Carlos dos Anjos denomina de nomadismos da religiosidade afro-
brasileira o processo por meio do qual em vez de dissolver as diferenças dentro de uma unidade
amorfa, busca-se nesses cultos conectar o diferente ao diferente deixando as diferenças subsistem
por si mesmas, de tal forma que, sem promover sua essencialização ou desracialização, o terreiro
faz desses grupos um território simbólico, produzindo uma cartografia de percursos nômades.
Conforme ele aponta:
Nem essencialização nem desracialização, o terreiro faz das raças e das nações
um patrimônio simbólico, espaços para percursos nômades, desessencializados
mais racializados. Essa é a equação, paradoxal aos olhos demasiadamente
ocidentalizados, que não é sequer cogitada nas arenas de reconstrução da
identidade nacional. O que se desprende dos jogos das diferenças na
religiosidade afro-brasileira é uma modalidade de não essencialização das raças,
que nem por isso deixa de se fazer como espaço de racialização. (ANJOS, 2008,
p.82-83)

Dessa forma, tanto os cultos afro-brasileiros quanto os povos ciganos estariam unidos por
um entendimento não essencializado da identidade, que nem por isso, nos seus encontros com a
alteridade, assumem a forma dos pressupostos da democracia racial, isto é, no qual o cruzamento
das diferenças está mais próximo de certo modelo biológico, em que espécies diferentes se
mesclam numa resultante que seria a síntese mulata, una. O que se encontra implicado nesse
processo de articulação das diferenças na religiosidade afro-brasileira é uma modalidade de não
essencialização das raças/etnias, que nem por isso deixa de se construir como um espaço étnica
e racialmente marcado. Goldman, produzindo uma leitura da supracitada teoria da encruzilhada
em Anjos, assinala que:
As diferenças são aí intensidades que nada tem a ver com uma lógica de
assimilação, mas sim com uma organização de forças que não envolve nenhum
tipo de escolha binária, mas uma modulação analógica para o estabelecimento
de conexões e disjunções múltiplas (GOLDMAN, 2021, p. 10-11)

No caso das religiosidades afro-brasileiras, o transe pode ser entendido como um dos
principais mecanismos de produção de nomadismos. Diferentemente dos processos de interação
com os espíritos observados dentro do kardecismo, de caráter estritamente individual, assim
40

como daqueles vigentes dentro dos ritos candomblecistas em relação às divindades dos orixás,
assentados na lógica do mito, na Umbanda vemos o transe como produtor de manifestações
segundo certos “tipos socioculturais”. Entre os entendimentos nativos acerca da relação entre os
espíritos e os humanos no universo umbandista, existe a concepção da existência necessária de
uma relação entre a linguagem cultural e psicológica das pessoas, e as aparências e missões dos
espíritos, isto é, a forma como eles se apresentam aos humanos, de modo a fomentar
corporeidades específicas. Conforme Espirito Santo (2016) coloca, alguns umbandistas
contemporâneos, particularmente na cidade de São Paulo dentro de um movimento denominado
de “Umbanda Sagrada”, liderada por sacerdotes como Rubens Saraceni, veem que a "cultura",
lida como o imaginário histórico brasileiro, se torna o material pelo qual os espíritos
reflexivamente vestem-se a si mesmos. Por esse motivo, há um espaço para o potencial gerador
da própria cultura na cosmologia - novas "linhas" de espíritos são vistas como emergindo de
cruzamentos históricos do Brasil - sem de fato postular o último como um produto direto
do primeiro. (ESPÍRITO SANTO, 2014, p.135)
Na consonância da proposta de Anjos de uma aproximação entre o pensamento
deleuziano e a cosmologia afro-brasileira, Goldman propõe uma aproximação das experiências
de transe à noção de devir deleuziana. Discorrendo sobre tal aproximação, o autor salienta:
Nessa direção, eu arriscaria mesmo dizer que o devir também pode ser pensado
em uma certa vizinhança com o transe, com o ser possuído por uma força ao
mesmo tempo estranha e familiar, externa e interna, de tal modo que alguém
pode se tornar algo diferente do que é sem deixar inteiramente de se ser o que
é. Reencontraríamos, assim, a formulação de Deleuze e Guattari de que devir é
simplesmente o movimento pelo qual saímos da nossa condição por meio de
uma relação com uma condição outra e compreendemos melhor por que os
autores sempre insistiram no fato de que as mulheres também entram em devires
mulheres, os negros em devires negros, e assim por diante. (GOLDMAN, 2021,
p. 27)

Os devires implicariam, da mesma forma que os transes no contexto umbandista, aquilo


que o pode ser entendida sob a ótica deleuziana de uma linha de fuga em relação a um estado-
padrão (maioria) por meio de um estado não padrão (minoria), sem que, com isso, haja a
constituição de uma minoria como estado.
O que uniria ambas as perspectivas seria um intenso nomadismo do desejo no que se
refere aos modos de constituição da identidade, desatrelados de perspectivas essencialistas, que,
no caso da religiosidade afro-brasileira, podem ser paradigmaticamente expressos na experiência
do transe. Na verdade, o que se encontra em voga no transe enquanto devir é a constante
capacidade de construir novos territórios existenciais onde se reterritorializar de formas
inovadoras. Sendo o movimento por meio do qual saímos de uma certa condição por meio de
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uma relação com uma condição outra, sem que se estabeleça um estado cristalizado em torno do
mesmo, o transe como devir se vale de territórios simbólicos minoritários como forma de
produzir novos espaços existenciais. Para o autor:
(...) essa “nossa condição” de que falam os autores é, por definição, a única de
que temos que sair, e deve ser entendida como um certo estado de coisas: o
conjunto dos traços que nos definem molarmente, nosso sexo, cor, classe, idade,
história pessoal… - a nossa “identidade”, se quisermos. E é porque se trata de
traçar linhas de fuga em relação a essa condição que os devires nada têm a ver
com atingir algum objetivo ou alvo (negro, índio, mulher…), ao mesmo tempo
em que sempre comportam um meio ou se dão através de um meio que, este
sim, pode ser negro, índio, mulher, criança, animal… Escapar da “nossa
condição” exige, pois, uma outra condição por meio da qual saímos, e essa
condição é sempre a de uma minoria, entendida, evidentemente, em uma
acepção não meramente quantitativa. Por isso não há devir homem, devir
branco, devir heterossexual: porque homem-branco-heterossexual é a principal
condição da qual escapar. (GOLDMAN, 2021, p.27)

Por não concretizar nunca como um estado cristalizado, uma essência, um dos maiores
desafios enfrentados dentro dos terreiros de umbanda é quando uma entidade se recusa a “subir”.
Exatamente por isso, incorporar ciganos é fundamentalmente distinto de ser etnicamente um
cigano.
Quando transpomos essa cosmopolítica inscrita em um nomadismo fundante para o
contexto do Baralho Cigano, vemos o oráculo como uma manifestação material do culto aos
ciganos sob a perspectiva umbandista, expressa nesse modo de articulação da diferença vigente
na religiosidade afro-brasileira. Um dos efeitos disso é a constituição de uma perspectiva cigana
tal que as diferenças entre ciganos étnicos e ciganos espirituais possam subsistirem por si mesmas
e constantemente se diferenciarem.
O baralho cigano, enquanto uma manifestação do culto aos ciganos sob a perspectiva
umbandista, expressa esse modo de articulação da diferença vigente na religiosidade afro-
brasileira, permitindo a constituição de uma perspectiva cigana de forma que as diferenças entre
ciganos étnicos e ciganos espirituais possam subsistirem por si mesmas.
Em trabalho recente, Paul Preciado (2020, p.31) defende a concepção de que os processos
de transição são os que permitem compreender melhor a transformação política mundial que
estamos enfrentando. Sendo a mudança de sexo e a migração duas práticas marcadas pela
travessia entre fronteiras, questionam a arquitetura política e jurídica do colonialismo patriarcal,
da diferença sexual e do Estado-nação, de forma a situar o corpo humano vivo nos limites da
cidadania, talvez até daquilo que entendemos por humanidade.
Gostaria de propor que as micropolíticas da travessia também podem ser inscritas a partir
da experiência do transe. Nela, os limites de si são transpassados a partir de uma força ao mesmo
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tempo estranha e familiar, de modo a produzir um outro tipo de articulação com a alteridade,
pautada não no distanciamento, mas na sua inscrição corpórea. Espíritos atuam como pontos de
vista incorporados. No centro de todas essas práticas, vemos um intenso nomadismo do desejo
no que se refere aos modos de constituição da identidade, desatrelados de perspectivas
essencialistas.
No próximo capítulo, de cunho totalmente etnográfico, buscarei descrever, de forma mais
aprofundada, algumas características ligadas ao culto aos ciganos a partir da minha experiência
dentro do CCPAP, salientando aspectos importantes atrelados a sua cosmologia.
43

Capítulo 2 - O culto aos ciganos no CCPAP

2.1 A Gira de Ciganos


Objetivando sondar a proeminência do culto aos ciganos dentro da Umbanda em Belo
Horizonte, fui convidado a conhecer a realização de uma gira voltada para esse grupo de
entidades no CCPAP - Casa de Caridade, Amor e Prosperidade Baiano Severino. O CCPAP se
encontra próximo a uma encruzilhada e sua parte pública e cerimonial consiste em um fundo de
garagem com entrada para a rua. Trata-se de um terreiro que possui cerca de setenta médiuns,
regido pelo orixá do dirigente da casa, Ogum.
Gira é a denominação dada no universo umbandista do ritual voltado para a realização
de trabalhos espirituais através da incorporação de entidades por médiuns. Em cada gira,
entidades de uma linha específica, isto é, “classe” de espíritos são incorporadas a fim de dar os
passes, as consultas àqueles necessitados de auxílio espiritual. Nesse momento, as pessoas têm a
oportunidade de conversar com os guias espirituais, de tal forma que possam receber
direcionamentos para aquelas questões que os afligem.
A vividez das cores que compunham a vestimenta das pessoas foi o primeiro aspecto que
me chamou a atenção quando cheguei ao CCPAP. Uma diversidade de mulheres dançantes
trajava saias coloridas, com adornos dourados na cabeça e na cintura, assim como alguns homens
tinham em suas cabeças lenços amarrados na cor vermelha e amarela. Havia também aqueles
membros trajando a vestimenta branca básica dos terreiros.
Na entrada do local, havia uma série de bancos na rua onde o público estava reunido
esperando o momento de a gira começar. Chegando lá, fui recebido por uma membra do terreiro
que recolheu o meu nome em uma lista e perguntou se eu estava ali para auxiliar com o público,
no que lhe respondi negativamente, dizendo que era minha primeira vez ali e gostaria de conhecer
o terreiro. Por estar trajando branco e um lenço na cintura, penso que ela tenha pressuposto que
estava ali para auxiliar externamente no andamento da celebração, o que me foi confirmado
posteriormente, quando ela disse que estava “todo cigano” para a festa.
Somente quando me sentei em um banco à espera do início da cerimônia pude, de fato,
perceber uma voz ao fundo ecoando por um microfone da casa à esquerda do terreiro. Tratava-
se de uma igreja evangélica a qual, paralelamente à festa de ciganos, celebrava seu próprio culto.
Esse fato me intrigou bastante não apenas como adepto, mas também como pesquisador, pois me
vi questionando a política implicada na situação, tendo o som como instrumento, dada as nuances
dos conflitos político-religiosos travados entre essas instituições no Brasil. Isso se dá por uma
profunda ambivalência que demarca não apenas os afastamentos radicais que uma se coloca em
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relação a outra, que findam no contexto brasileiro na recorrência de casos de intolerância


religiosa e destruição de terreiros, mas também pela proximidade cultual de alguns aspectos
rituais, expressas no compartilhamento de um vocabulário ligado à ideia de descarrego, vence-
demanda, entre outras categorias, em ambas.
O som que provinha do culto evangélico era alto e ecoava até meus ouvidos, dificultando
o entendimento do que estava sendo conversado. Antes da cerimônia começar oficialmente, o
Pai de Santo se dirigiu ao público que vinha acompanhar a cerimônia e explicou um pouco dos
planejamentos para o dia. Tive dificuldade para entender algumas coisas que foram ditas em
função dos sons que ecoavam do culto evangélico, mas na sua fala o Pai de Santo relatou que
antes de se iniciar a celebração aos ciganos, iriam baixar também alguns caboclos de Xangô,
outra linha de entidades presentes dentro da Umbanda. Durante a descida dessas entidades, não
haveria a consulta propriamente, mas o público iria ser benzido pelos caboclos. A consulta viria
a ser realizada pelas entidades ciganas, posteriormente, as quais o Pai nos informou que eram
voltadas para trazer prosperidade para os consulentes.
Enquanto falava, pude perceber com mais enfoque sobre sua vestimenta. O pai de Santo
Marcelo, um homem branco de barba proeminente, usava um lenço colorido na cabeça, uma
blusa estampada de coloração dourada bastante vibrante e alguns tecidos e lenços dourados na
cintura. Como ele mesmo indicou, o povo cigano é um povo considerado encantado na
perspectiva umbandista, especialista em tratar de questões envolvendo a prosperidade. A ideia
de prosperidade, contudo, não se resumia a uma abundância monetária material meramente. Na
verdade, a prosperidade se alargava a diversos aspectos da vida, incluindo a fartura alimentar, a
felicidade no núcleo familiar, o sucesso na carreira, entre outros aspectos associados ao povo
cigano pelos seus devotos.
A gira, então, deu início aos seus andamentos. Enquanto o público se encontrava sentado
do lado de fora da garagem onde ocorria a cerimônia, os membros do terreiro formavam uma
roda onde uma série de cantigas começaram a ser proclamadas. Como de praxe dentro da liturgia
umbandista, as primeiras canções eram dirigidas à linha de esquerda. É preciso dar de comer a
Exú e celebrá-lo antes de qualquer outra entidade, sendo este considerado o mensageiro
responsável pela comunicação entre os guias e os seres humanos. A gira começou,
respectivamente, com pontos a Exú Tranca Rua, Pomba Gira e Exu Mirim.
Em seguida, deu-se início o ritual da defumação. Enquanto a defumação do ambiente era
realizada, todos começaram a cantar um ponto. Começando por Oxóssi, o seguinte cântico era
repetido fazendo-se menção a todos os Orixás cultuados no terreiro:
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Meu Pai Exu, peço licença pra defumar

Eu defumo, eu defumo essa aldeia real.

Meu Pai Ossain, peço licença pra defumar

Eu defumo, eu defumo essa aldeia real.

Meu Pai Oxóssi, peço licença pra defumar

Eu defumo, eu defumo essa aldeia real…

(continua)
Findada a saudação aos Orixás, começou-se a cantar uma série de pontos para os orixás,
de tal forma que, em um momento específico, cantando-se para Xangô, baixaram uma série de
caboclos regidos por esse orixá nos médiuns da casa, expressas por saudações manifestas em
gritos fortes brandindo “KAÔ”. Suas entidades, cada qual, gritavam de uma maneira distinta,
algumas com gritos mais graves, outras saudavam de maneira mais aguda. Os caboclos entraram
em um ritmo de dança profunda ao som do atabaque, fazendo cortes no ar com a mão, enquanto
os outros membros da gira se curvaram ao chão e faziam rezas.
Em seguida, a constituição da roda deu vazão para que se iniciasse em seguida os
atendimentos ao público. Foram formadas duas linhas paralelas nos quais as entidades se
encontravam enfileiradas. Atrás delas, havia objetos como cigarros e bebidas para que elas
usassem durante o passe. Conforme o Pai de Santo nos havia dito, no passe com os caboclos de
Xangô não seria realizada a consulta propriamente dita, sendo esta relegada aos ciganos que iram
baixar posteriormente no âmbito da Festa dos Ciganos. Aos caboclos estava relegado o papel de
fazer apenas o ritual de descarrego – em que o guia purifica o consulente.
Foi-nos orientado, por um dos cambonos do terreiro, a fazermos uma fila para que o
descarrego desse andamento. O som dos atabaques era alto e se misturavam aos sons da igreja
evangélica provenientes do estabelecimento ao lado. Tratando-se de um terreiro pequeno, o
público pôde ser atendido por mais de um guia espiritual, prática que não é tão comum em
terreiros maiores. Chegando na minha vez, cumprimentei a entidade que iria me consultar indo
com meu antebraço esquerdo de encontro com o antebraço direito do guia, seguido do direito, de
forma cruzada. Quem me atendeu, primeiramente, foi uma médium incorporada no caboclo que
realizou a limpeza do meu campo áurico. Através do contato direto com meu corpo em pontos
específicos no peito, na cabeça e nas costas, foi feito o primeiro descarrego.
Em seguida, passei para o segundo caboclo que me atendeu. Seu cumprimento era
distinto, pois batemos com os braços cruzados de encontro um ao outro, conforme ele mesmo
me orientou. Sua voz era grave e da sua boca saíam também alguns grunhidos. O mesmo processo
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de descarrego foi realizado e, findado esse processo, retornei ao banco onde me encontrava
sentado.
Findados os rituais de purificação com o público ali presente, deu-se início a festa dos
ciganos. Nesse momento, o culto evangélico já havia chegado ao fim e o som dos atabaques deu
lugar a músicas tocadas em um som portátil. Músicas cantadas em espanhol começaram a ser
tocadas e, ao baixar as entidades ciganas, os membros da gira começaram a dançar. Muitas das
médiuns que vestiam saias, começaram a dançar segurando a ponta da saia de um lado,
rodopiando em movimento.
A Mãe de Santo, de nome Ingrid, vestia belos trajes vermelhos e trajava adornos dourados
na cabeça e na cintura. Logo mais a música tocava, ela se pôs a dançar com castanholas.
Enquanto o passe não se iniciava, pude conversar com algumas pessoas que estavam, assim como
eu, esperando ser atendidas. Perguntei a uma moça se os ciganos incorporavam nesse terreiro e
ela me confirmou dizendo que “até falavam espanhol!”.

Figura 6 – Momento da incorporação de entidade Figura 7 – Momento da incorporação de entidade


cigana na Mãe de Santo Ingrid (esq.) cigana no Pai de Santo Marcelo

Fonte: Foto tirada pelos próprios filhos de santo Fonte: Foto tirada pelos próprios filhos de santo
e disponível na página CCPAP (Facebook) 7 e disponível na página CCPAP (Facebook)

Em detrimento da cerimônia com os caboclos, o passe com os ciganos foi realizado


apenas com um médium, seguido de uma consulta com o cigano do Pai de Santo, de nome Igor.
Quando chegou o momento de realizar a consulta, comecei cumprimentando a cigana que me

7
Disponível em: <https://www.facebook.com/ingrid.lima.33449138>. Acesso em 11/01/2022
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atendia. Seu nome era Lúcia Carmencita e nos cumprimentamos com um aperto de mão. Sendo
os ciganos especialistas em tratar de questões ligadas à prosperidade que, vale dizer, não se
resumem ao aspecto financeiro, conforme o Pai havia dito, acabei lhe relatando sobre questões
que estavam se passando na minha vida pessoal.
Sua voz tinha o tom de uma conversa, muito distinta daquela observada quando atendido
com os caboclos, de tom mais grave e gutural. A cigana carregava um acessório de cabeça que,
tendo se sensibilizado com a minha situação, concedeu-o a mim. O lenço era amarelo e tinha
algumas bijuterias que imitavam moedas nas suas extremidades, de tal forma que, quando se
movia, fazia um barulho. A cigana pediu para que eu o segurasse enquanto acendia um cigarro e
soprava a fumaça sobre o objeto. Em seguida, deu início ao ritual de purificação, soprando o
cigarro ao meu redor. Pediu, por fim, que eu me virasse de costas, realizando o mesmo ato.
Após esse processo, fui encaminhado pelos cambonos a seguir para uma fila que se
encontrava do lado oposto de onde os atendimentos estavam sendo realizados. Nesse lado, havia
três membros do terreiro não incorporados que realizavam rituais de purificação. Dois deles
foram executados por mulheres que tinham cristais em suas mãos, uma segurando um par de cor
cristalina e outra um par de cristais azulados, que eram postos em partes específicas do meu
corpo, como mãos, peito, costas, etc. Em seguida, a terceira integrante realizou uma purificação
com dois incensos em torno do meu corpo.

Figura 8 – Mesa Cerimonial contendo frutas para as entidades ciganas


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Fonte: Foto tirada pelos próprios filhos de santo e disponível na página CCPAP (Facebook) 8

Findado esse processo, segui em direção ao cigano incorporado pelo Pai de Santo. Não
tive a oportunidade de perguntar seu nome naquele momento específico, mas conversando com
ele, pude ver que era falado uma mescla entre português e espanhol. A primeira coisa que foi
realizada foi o despejo de um pó de especiarias sobre meu corpo que não pude identificar
exatamente quais eram por uma ajudante do pai de santo. O cheiro era característico e cobria
todo meu corpo. Ao me aproximar dele, o cigano me cumprimentou com três beijos cada um em
um lado próximo a minha face, que estava coberta por uma máscara.

Figura 9 – Cigano Igor realizando trabalho espiritual durante gira

Fonte: Foto tirada pelos próprios filhos de santo e disponível na página CCPAP (Facebook)

Sem que eu dissesse algo, o cigano deu início a conversa relatando sobre o assunto,
falando que todos eram bem vindos no seu terreiro, independente da sua sexualidade, e que não
deveria me preocupar com aquelas pessoas que queriam meu mal ou não me respeitavam. Da
mesma maneira, o guia me perguntou se eu era de terreiro e lhe falei que já havia frequentado o
Candomblé há alguns anos, mas acabei me afastando da casa, por questões pessoais. No que lhe
disse isso, o cigano me relatou que não via emanando uma energia de Candomblé no momento e
sim de Umbanda e que, independentemente do terreiro que objetivava trabalhar meu

8
Disponível em: <https://www.facebook.com/ingrid.lima.33449138>. Acesso em 11/01/2022
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desenvolvimento mediúnico, deveria me atentar a isso. De fato, nos últimos tempos, sentia-me
mais próximo da Umbanda, tendo tido constantemente sonhos com entidades diversas, Pomba
Giras, Preto-velhos e Erês.
**
Em um segundo momento, algumas semanas após o encontro relatado acima, voltei ao
CCPAP para uma segunda gira de ciganos. Eis que, antes de chegar ao local, estava vivendo um
dilema pessoal em torno da vestimenta que utilizava. Era uma noite de inverno fria, no qual
trajava uma calça branca e um top considerado feminino, junto de um casaco longo avermelhado.
Esse dilema perpassava as próprias continuidades entre minhas posições enquanto antropólogo e
macumbeiro. Pensava que, caso existisse ali meramente enquanto pesquisador, faria mais sentido
usar roupas mais “neutras” que pudessem tencionar menos as questões de gênero que poderiam
surgir naquele espaço. Nesse sentido, o gênero não aparecia meramente enquanto um efeito
discursivo, mas também situado em certas tecnologias específicas de incorporação prostética que
possibilitam certas inscrições performativas generificadas através de um aglomerado de materiais
sintéticos, como o top em questão, o vestido, e a vestimenta de uma maneira geral, mas também
o silicone, a pílula anticoncepcional, se nos aproximarmos da perspectiva de autores como
Preciado (PRECIADO, 2018)
A ideia de neutralidade científica aparecia como eclipsada do corpo normativo que a
produziu, privilegiando um certo tipo de presença ausente ao tomar os seus significantes
corporais como não marcados socialmente propiciadores de um tipo de contato cultural menos
“enviesado”. À luz do pensamento de Jota Mombaça, podemos dizer que a não marcação dessas
posições atreladas à cisnormatividade e à supremacia branca dá chão não apenas ao fundamento
da sua ascensão enquanto categorias políticas de pessoa e sujeito, mas também é por meio desta
que as narrativas produzidas a partir destas posições alcançam seu efeito de verdade e sua
aparência de neutralidade. (MOMBAÇA, 2021, p.89)
O medo que me assolava internamente era de que a presença de um corpo estranho à
neutralidade heteronormativa, na sua maneira de se portar, vestir, existir, pudesse ser
incompatível com os modelos de produção científica vigentes e sua estética do eclipsamento.
Como os corpos estranhos fazem pesquisa? Tratava-se, assim, de um desejo de relocalizar a
subjetividade no fazer etnográfico sem cair nas amarras da produção de um conhecimento que se
pretende neutro, ao mesmo tempo em que profundamente demarcado a partir de certos
marcadores sociais hegemônicos.
Ao mesmo tempo, frequentar a macumba me levava a um desejo profundo de poder
vivenciar uma noção de fé no qual performatividades de gênero e sexualidade dissidentes não
50

fossem localizadas no campo do estigma. Inegavelmente, as religiões de matriz afro-brasileira


são importantes espaços para que corpos dissidentes possam pensar sua existência dentro de uma
cosmopolítica estranha à ideia de pecado e punição. Por isso, em detrimento a apreensões de se
passar como um sujeito neutro naquele contexto, eram afetos tensionados por um certo tipo de
presença estranha que me interessava produzir - não em relação ao terreiro, que desde o início se
mostrou aberto à minha existência, mas em relação aos modelos de produção científica
modernos. Esse questionamento em torno de como o corpo estranho pesquisa, mais do que
romper de maneira totalizante com a postura de neutralidade científica, tinha como foco cruzá-
la, de modo a subverter sua pureza, com outras intensidades produtoras de conhecimento sobre
o mundo.
Chegando ao CCPAP, os membros do terreiro juntamente com o público que iria
participar da festa se encontrava na entrada do local, conversando. Todos os banquinhos, postos
do lado de fora de onde a cerimônia se realizaria em função do contexto da pandemia,
encontravam-se ocupados. Dessa forma, encaminhei em direção a uma das extremidades de onde
as pessoas se encontravam para observar o festejo de pé.
Nesse dia, a igreja evangélica localizada ao lado do CCPAP se encontrava fechada. Os
ogãs 9 encontravam-se ao fundo do estabelecimento tocando os atabaques em tom despretensioso
enquanto a festa não dava início. Mais uma vez, as saias coloridas usadas pelas médiuns do
terreiro me chamavam a atenção, em seus tons brilhantes de vermelho, verde, amarelo e roxo.
Também me vi capturado pela maneira como o Pai de Santo se vestia. Na cabeça, ele utilizava
um lenço dourado amarrado, juntamente de brincos da mesma cor nas orelhas. Sua blusa era
larga e possuía uma estampa que se misturava com uma série de acessórios que usava, como
colares de cristais e um crucifixo cristão. Na sua cintura, havia um lenço também dourado
pendendo por sua coxa.
Como de costume, antes de iniciar a gira, Pai Marcelo se pôs de frente ao público que iria
tomar o passe. Tratava-se de aproximadamente vinte cinco pessoas. Conforme foi dito, tratava-
se de uma casa de Umbanda que trabalhava com a força das almas, distinta, portanto, do
Candomblé que atuava principalmente com a força dos orixás, ligada à divina manifestação da
natureza. Isso não significava, como ele veio a complementar em seguida, que na Umbanda os
orixás não estivessem presentes. Após traçar essa distinção entre a Umbanda e o Candomblé, o
Pai nos informou que no dia haveria uma gira voltada para o povo cigano, descrito por ele como

9
Ogã (ogan) na Umbanda está relacionado a curimba, isto é, dedicação ao toque e ao canto nos dias de
gira.
51

um povo encantado e voltado para a prosperidade. Mais uma vez, era reiterada a ideia de que a
prosperidade não se restringia apenas ao aspecto financeiro, abrangendo outras dimensões
ligadas à saúde, fartura alimentícia, família, etc.
O ritual deu início quando as luzes do terreiro foram apagadas, restando apenas uma luz
fraca ao fundo do terreiro de cor avermelhada. Com a constituição da roda pelos integrantes,
abriu-se a gira com uma saudação à Exu - Laroyê Exu -, seguida do forte som do atabaque. O
primeiro ponto cantado foi em homenagem a Exu Tranca Rua, conforme descrito abaixo:

Seu Tranca-Rua, dá uma volta lá fora (2X)


Quem for bom bota pra dentro e quem não for deixa lá fora. (2X)
Seu Tiriri, dá uma volta lá fora (2X)
Quem for bom bota pra dentro e quem não for deixa lá fora. (2X)
Seu João Caveira, dá uma volta lá fora (2X)
Quem for bom bota pra dentro e quem não for deixa lá fora. (2X)
Todos os Exus, dá uma volta lá fora (2X)
Quem for bom bota pra dentro e quem não for deixa lá fora. (2X)

Cantamos, também, um ponto para Pomba Gira, seguido de um ponto para Exu-Mirim

Arreda homem que aí vem mulher (2x)


Ela é a Pomba Gira, Rainha do Cabaré (2x)
Tranca-ruas vem na frente pra dizer quem ela é
Ela é a Pomba Gira, Rainha do Cabaré (2x)
**
Pedra de Sal (2X)
Pedra de Sal é Salgueiro
Eu deixei Exu Mirim
Tomando conta do terreiro

Em seguida, deu-se início o ritual da defumação, conforme já descrevi anteriormente.


Enquanto a defumação do ambiente era realizada, todos começaram a cantar um ponto.
Começando por Oxóssi, o seguinte cântico era repetido fazendo-se menção a todos os Orixás
cultuados no terreiro. Não consegui recolher em ordem todos os orixás que foram cantados, mas
lembro-me de, respectivamente, serem feitas menções a Oxóssi, Ogum, Obaluaê, Ossaim,
Oxumarê, Xangô, Nanã, Iemanjá, Oxum, Iansã…

Meu Pai Oxóssi, dê-me licença pra defumar


Eu defumo, eu defumo essa aldeia real.
52

Meu Pai Ogum, dai-me licença pra defumar


Eu defumo, eu defumo essa aldeia real.
Meu Pai Obaluaê, dai-me licença pra defumar
Eu defumo, eu defumo essa aldeia real…
(continua)
A Mãe de Santo passava com o defumador, primeiramente dentro da casa, para em
seguida defumar o público que veio comparecer à festa. O defumador girava em movimentos
pendulares em torno das pessoas, cobrindo-as de fumaça, enquanto rodavam, muitas vezes, de
mãos abertas para cima e braços dobrados. A mesma coisa foi realizada com o ritual da pemba,
giz de formato cônico-arredondado feito de calcário que pode ter diferentes cores. A ritualística
da Umbanda emprega a pemba nas mais diversas finalidades: ela cruza o Congá, cruza o terreiro,
as firmezas da porteira, cruza as guias de Umbanda (fios de contas), assim como cruza a Coroa
dos médiuns, cruza os atabaques, as imagens, o corpo dos médiuns, risca o ponto sagrado da
entidade, é soprada para imantar o terreiro, assim como, no ritual que presenciei, sobre o público.
Uma senhora mais velha, , trajando um turbante na cabeça e uma saia volumosa vinha ao encontro
do público e assoprava a pemba no formato de um pó branco sobre as pessoas. Paralelamente a
isso outro ponto era cantado:

Oi salve a Pemba
Também salve a toalha
Oi salve a Pemba
Também salve a toalha
Salve a coroa
A do nosso Zambi é maior
Salve a coroa
A do nosso santo é maior

Em seguida, uma série de pontos foram cantados aos Orixás. Nesse processo, os membros
da roda, cada qual segundo a menção às divindades específicas que eram feitas, colocavam-se
aos chãos. A efervescência do atabaque juntamente de toda a corporeidade envolvida no rito me
capturava intensamente, de modo que em vários momentos uma espécie de descarga energética
fluía sobre meu corpo, causando arrepios.
Foi nesse momento em que aconteceu aquilo que gostaria de chamar como uma captura
macumbística. Estava em pé observando a festa e, enquanto cantava um dos pontos, um
integrante do terreiro de nome Euler, aproximadamente nos seus cinquenta anos, apontou para
mim e pediu para que me aproximasse dele. Não sabia naquele momento do que se tratava sua
53

interpelação e, no que cheguei perto dele, o homem me perguntou de qual casa eu era. Disse a
ele que frequentava no passado o Candomblé em uma casa próxima ao CCPAP, mais “em cima
no bairro”. Relatei que os dirigentes da casa eram o Pai Geraldo e a Mãe Alessandra e ele disse
saber quem eu era e lembrar de mim. Fiquei um tanto surpreso com essa afirmação, porque não
me lembrava de conhecê-lo, assim como achava que minha vivência dentro do terreiro que
frequentava tinha sido curta demais para ter sido identificada dessa maneira.
Em seguida, Euler me convidou para entrar na gira e disse que se eu quisesse trabalhar
era permitido, ele só não gostaria de me ver passando mal. Essa fala me surpreendeu bastante,
porque até então nunca havia incorporado. Segui, contudo, em direção a roda, retirando meus
chinelos na entrada. Nesse momento, meu coração palpitava e um certo tipo de tensão rondava
meu corpo. Conforme me foi solicitado, passei a compor a gira em uma das suas extremidades.
Nesse momento, a roda já havia se desfeito em função dos passes que se encontravam em
andamento. Por esse motivo, as entidades ciganas já se encontravam enfileiradas em linhas
paralelas, juntos dos cambonos que atuavam no sentido de auxiliá-las. Agem no sentido de
conferir às entidades um suporte na execução dos passes, providenciando uma série de
instrumentos viabilizadores do ritual, como cigarros e cachimbos, que atuam no descarrego dos
clientes, assim como bebidas alcoólicas, como cachaça, vinhos e espumantes, possibilitadores
dos trabalhos das entidades no plano humano, conforme sua falange, isto é, sua classe dentro da
cosmologia umbandista.
Permaneci em pé compondo a gira ao lado de uma cambone que assessorava uma cigana,
que vestia uma saia longa e esperava o início dos atendimentos, enquanto fumava um cigarro.
Nesse momento, uma moça de aproximadamente vinte anos chegou para ser atendida por ela e
começou a lhe relatar suas questões. Os atabaques neste momento davam lugar a músicas em
espanhol tocadas em um aparelho eletrônico.
Não era possível e nem objetivava, por questões éticas, saber aquilo que se estava sendo
conversado. Contudo, a maneira como o passe estava sendo feito me atraia o olhar. A cigana
pediu que sua consulente abrisse as mãos e, com seu cigarro, soprou a fumaça nelas. Realizou
uma defumação com a fumaça em seu corpo todo em seguida. Carregava também um copo com
vinho branco que, periodicamente, colocava-se a bebericar enquanto conversava.
Em seguida, solicitou a cambona que se encontrava ao seu lado que lhe desse uma vela,
no que a ajudante prontamente se colocou a adquirir. Um ritual foi realizado valendo-se da vela,
na medida em que a entidade derramou o vinho pela sua parte de cera e se pôs a quebrá-la em
pedaços. Juntamente da sua consulente, ambas seguiram em direção a uma estátua que se
54

encontrava ao meu lado, onde já havia uma vela acesa, e colocou os restos de cera da vela em
frente a imagem.
Enquanto esse ritual se dava, havia pego a tiara que me havia sido dada por uma cigana
na última festa de ciganos que frequentei no CCPAP, conforme relatei anteriormente. Mais uma
vez Euler chegou a mim e ressaltou que se a entidade quisesse trabalhar eu não deveria ficar me
prendendo, no que uma outra cambona falou que estava a todo tempo olhando para mim porque
emanava uma energia de incorporação muito forte. Tudo isso me parecia muito estranho,
estranhamente familiar, todavia. Lembrava-me que essas sensações não me eram estranhas, já
havia sentido algo do tipo quando, no Candomblé, haviam tocado para os Orixás buscando
descobrir a quem pertencia minha cabeça.
Que tipo de rasura era essa colocada por um saber que circulava pelas macumbas as quais
eu não detinha, mas que meu corpo expressava? No que consistiria esse estranho familiar que
parecia me afetar, capaz de suspender as noções pré-concebidas do que me aparecia como interno
e externo, material e espiritual, real e imaginário?
Nesse momento, encontrava-me esperando o atendimento pelo cigano do Pai de Santo,
de nome Igor. Quando chegou minha vez de atendimento, o cigano se pôs a abrir os braços e me
dizer “Voltou!”, enquanto nos cumprimentávamos. Busquei, no passe, tratar de questões
envolvendo a minha própria espiritualidade, dada toda a ordem dos eventos que haviam ocorrido.
Relatei à entidade que parecia que me sentia atraído pela Umbanda, conforme ela mesmo havia
me dito na última sessão, e que não sabia o que fazer em relação a isso, porque meu próprio corpo
parecia responder a isso. Nisso, o cigano respondeu que se tratava da minha espiritualidade e de
uma mediunidade forte que, ao seu ver, estava emanando uma energia linda. Contudo, era
necessário averiguar se de fato meus caminhos me levavam a Umbanda ou se deveria permanecer
no Candomblé, sendo necessária uma consulta às cartas ciganas para averiguar a situação.
Ao final, foi recolhido meu número de telefone e me disseram que o Pai de Santo iria me
contatar futuramente para que a leitura fosse realizada. A entidade me entregou um saquinho,
uma espécie de lembrança dada a cada um dos que participaram da festa, contendo um pingente
em formato de uma moeda, alguns cristais e um pó de especiarias. Foi orientado a mim que o
colocasse pela minha casa para atrair a prosperidade.
Encontrava-me, portanto, diante de uma situação tal que a intermediação oracular
mostrava-se essencial para o seu entendimento. Tratava-se desse oráculo, o Baralho Cigano, que
teria o poder de não apenas falar, mas agir nesse contexto, isto é, respondendo à questão se meu
caminho se mostrava aberto para as porções cósmicas do Candomblé ou da Umbanda.
55

2.2 A Consulta com o Baralho Cigano

Conforme havíamos combinado, em uma terça-feira estava marcado dois compromissos


no CCPAP com o Pai e a Mãe de Santo. Era o dia de realização de uma leitura com o baralho
cigano e de realização de uma limpeza com pólvora na força de Exu. Cerca de uma semana antes,
havia frequentado uma festa de Pomba Gira, em uma segunda-feira, a título de comemoração em
torno de uma das entidades da Mãe de Santo, de nome Pomba Gira Sete Saias. Durante a gira,
havia conversado com a entidade e havia sido prescrita a realização de um ritual de limpeza.
Para que um médium entre oficialmente dentro do CCPAP, é necessária a realização de dois
rituais de limpeza que antecedem esse momento. Esses rituais se mostravam necessários para
retirar os eguns, espíritos obsessores, e como uma espécie de iniciação necessária para trabalhar
com as entidades no terreiro.
Mãe Ingrid desceu trajando roupas do dia a dia. Em função da festividade do dia anterior,
sua aparência estava cansada e, como ela veio me falar, no dia anterior desde antes do começo
da festa, estava focada em uma série de tarefas, como realizar a manutenção do chapéu e da capa
do Exu do Pai de Santo. Em seguida, a festa para Exu havia perdurado até mais tarde no correr
da noite.
Seguimos em direção a um quarto onde havia uma série de estátuas ligadas à entidades,
orixás e santos católicos, assim como oferendas reunidas em alguidares, que posteriormente me
falaram que se tratava dos quartos dos Exus. De fato, pelo perfil da oferenda parecia tratar-se de
uma série de Padês, oferenda específica dada aos Exus e Pomba Giras, com sua proeminência de
longas pimentas e farinha de mandioca. Sentei em frente a uma pequena mesa redonda em uma
pequena cadeira, localizada na direção oposta de onde a Mãe se encontrava. Havia uma série de
objetos compondo a mesa ritual entre os quais: um lenço branco cobrindo a mesa, uma vela
vermelha circundada por uma série de braceletes dourados, moedas, cristais diversos, incluindo
uma esfera de Quartzo rosa e, por fim, o baralho cigano no centro da mesa.
Abrindo a mesa, a Mãe de Santo acendeu um incenso e solicitou que eu escrevesse em
uma folha em branco meu nome completo e minha data de nascimento com um lápis. Feito isso,
o papel foi colocado embaixo de um pequeno tecido. Após embaralhar as cartas, ela solicitou que
eu cortasse o baralho em três montes. Em seguida, foi pegando cartas desses montes e
conformando uma tiragem.
Enquanto isso, conversávamos sobre temas diversos. Relatei que também trabalhava com
cartomancia, contudo, havia interrompido temporariamente os trabalhos oraculares por motivos
56

pessoais. Conversamos sobre como, geralmente, outros cartomantes tinham o costume de não ler
para si mesmos, preferindo ser atendidos por outras pessoas.
Também discutimos sobre como a prática de cartomancia guiadas pelo culto aos espíritos
ciganos colocava a necessidade de se cobrar pelas leituras, de modo a ofertar uma parte dos
ganhos às entidades na forma de moedas. Em conversas anteriores com outras cartomantes, essa
necessidade de se cobrar pelos atos de leitura foi denominada de corte com prata e se explicava
em função da relação dessa linha de entidades com a ideia de prosperidade. Por esse motivo,
algumas vezes me foi reiterado em falas com outras cartomantes que a cobrança se deve a uma
“questão de ancestralidade, para você honrar o povo cigano sempre se cobra, você não pode fazer
isso de graça”.
Mãe Ingrid também me falou que ela mesma já havia interrompido a prática oracular, por
se tratar de um ofício que exige muita responsabilidade na medida em que lida com a vida dos
consulentes, ao mostrar possibilidades ligadas aos seus caminhos. A primeira leitura realizada
pela Mãe Ingrid sempre versava sobre as questões ligadas à saúde. Para tratar desse, bem como
outros aspectos da minha vida, a Mãe realizava um método de leitura próprio em que eram
traçadas algumas fileiras de cartas, seguida de quatro cartas abaixo e três ao lado.
Essa compreensão espaço-temporal da vida e do corpo se expressa em um entendimento
singular em torno da saúde física e psíquica dos consulentes na leitura. A partir do oráculo é
possível inferir a existência de um modo de pensar a cura e a saúde corporal, no qual o corpo é
um espaço de intervenção de espíritos positiva e negativamente. Em virtude de sua cosmologia,
no universo umbandista, doenças e curas estão significativamente atreladas, portanto, a sua
atuação. Era o meu caso: o oráculo verificou a ausência de problemas de saúde que deveriam ser
tratados dentro do campo da medicina, mas a necessidade de se tratar de questões espirituais que
estavam gerando sofrimento mental e pensamentos obsessivos.
Essa existência de um domínio específico ligado ao tratamento de questões espirituais
que não negam o saber médico, mas que é entrecruzado por ele, reafirmava a necessidade de
realização do ritual de limpeza que ocorreria após a leitura oracular. Como a Mãe de Santo
afirmou: "Sua jornada começa agora com a limpeza.”
Após debatermos questões envolvendo saúde, a dirigente espiritual fez outras tiragens,
requisitando a mim que cortasse novamente o baralho para cada um dos temas abordados.
Debatemos questões envolvendo relações familiares, financeiras e, por último, amorosas. Mãe
Ingrid disse que gostava de deixar as questões amorosas por último por serem as mais buscadas
e as que geram grandes sentimentos de ansiedade nos consulentes, que acabam, muitas vezes,
por desconsiderar outros aspectos da vida. Contudo, existe uma inter-relação entre tais
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dimensões: questões familiares podem estar influenciando as amorosas, por exemplo, o que torna
necessário realizar a leitura de todos esses aspectos com calma e responsabilidade.
Também conversamos durante a leitura sobre a relação do oráculo com as entidades
ciganas. Segundo a Mãe, as leituras oraculares eram realizadas, como no caso que presenciei, de
forma desincorporada, ainda que, em muitos casos, as entidades falassem coisas para ela antes
mesmo da abertura da mesa. Questionei se ela não se sentia muito cansada depois da realização
das leituras, partindo da minha própria experiência com oráculos, no que ela confirmou que
também sentia um cansaço mental muito forte.
Também conversamos sobre como a linha de ciganos enquanto um culto próprio era algo
que não existia em todos os terreiros, assim como outras linhas, dentre as quais ela citou a dos
cangaceiros. Essa, como aquela, pode ser considerada uma linha recente a surgir em terra no
culto umbandista enquanto linha independente, com estrutura e fundamentos próprios. No caso
da linha de ciganos, a Mãe de Santo relatou que buscava respeitar as entidades que desciam no
terreiro de modo a dar-lhes proeminências nos seus respectivos dias de celebração. Nesse
aspecto, havia uma preocupação em controlar a vinda dos espíritos que desciam no terreiro para
que entidades como Pomba Giras e Exus não descessem em dias de culto a Ciganos. O mesmo
ocorria em dias de celebração de Malandros.
Findada a nossa conversa, era o momento de realizar a limpeza com o Pai de Santo,
Marcelo. No dia anterior, me foi solicitado que entrasse em preceito para sua execução. Os
preceitos são restrições que antecedem a execução de certos rituais. No caso, fui orientado a, na
véspera da limpeza, tomar meu banho de higiene pela noite e colocar roupas claras para dormir,
principalmente vestimentas íntimas. Também não poderia tomar outro banho e nem trocar de
roupa até a hora da limpeza. Por fim, deveria trazer também um conjunto de roupas limpas.
O ritual de limpeza era denominado de Ponto de Pólvora, elemento também denominado
de fundanga. O Pai de Santo pediu que eu me dirigisse em direção à tronqueira do terreiro, onde
estavam assentadas as entidades que compunham a linha de esquerda, como Exus, Pomba Giras
e Exu Mirins.
Nas tronqueiras encontram-se as firmezas e assentamentos feitos nas entradas de
terreiros, centros ou templos de Umbanda. São pequenas casinhas de Exús e Pomba Giras, que
têm por missão a proteção dessas entradas. As firmezas das tronqueiras podem conter vários
elementos, colocados nelas conforme as regras da casa, das ordens do Exú chefe do terreiro, ou
mesmo das recomendações do mentor do templo. Dentro delas, há vários tipos de ferramentas,
instrumentos e símbolos como tridentes, pedras, punhais, ervas, velas, quartinhas. Trata-se de
um ponto de força onde está firmado e, portanto, ativado, o poder dos guardiões que atuam na
58

linha de esquerda e atuam na comunicação, no movimento e no controle das energias que entram
no terreiro.
Coloquei-me de frente para a tronqueira enquanto aguardava que fosse posto uma certa
quantia de pólvora em dois compartimentos. O Pai da casa colocou uma fração da pólvora na
minha frente e outra atrás de mim. - “Laroyê Exu!” - uma saudação para Exu foi realizada,
enquanto o sacerdote intercedia pela minha limpeza espiritual e a retirada dos espíritos
obsessores. Após a realização dessa abertura do ritual, Pai Marcelo acendeu um fósforo e o jogou
na pólvora localizada nas minhas costas, fazendo com que uma grande labareda de fogo subisse
esquentando as minhas costas. Entende-se que, quanto mais a pólvora queima, maior é a limpeza
que está sendo realizada nesse processo. O mesmo sucedeu no compartimento com pólvora
localizado na minha frente, quando uma outra labareda subiu frente à minha visão.
Em seguida, Pai Marcelo solicitou que me virasse de frente para ele e abrisse os braços
para a próxima etapa do ritual. Nisso, tomou uma folha de espada de São Jorge e me avisou que
eu iria sentir umas “alfinetadinhas”. O sacerdote se pôs a dar lapadas com a folha em todo o meu
corpo, começando pelos braços, seguindo para pernas, tronco e costas. Por fim, segui em direção
ao banheiro da casa para que tomasse o banho normal, seguido de um banho de Anil com ervas
do pescoço para baixo, que se encontrava dentro de um pote de metal ao lado do chuveiro.
Durante o ritual, solicitei aos guias que limpassem o meu corpo e me preparassem para a jornada
espiritual que estava por vir.
Após terminar todo esse processo, Mãe Ingrid e eu nos colocamos a conversar. Perguntei:
“E agora, Mãe? O que vai acontecer?”. Ela me informou que era necessário que a limpeza fizesse
efeito e que eu não precisava ter pressa para entrar no terreiro, sendo necessária a realização de
uma segunda limpeza para que isso ocorresse de maneira oficial. Nesse meio tempo, poderia ir
seguindo participando das giras. Foi ressaltado também a importância do papel da cambonagem
como um locus de aprendizagem. Segundo a Mãe de Santo, a cambonagem é um momento
essencial na vida de um médium no qual não apenas o aprendizado se dá por via da observação
em torno do trabalho das entidades, mas também a partir de uma postura ativa de contato com os
espíritos.

2.3 Trabalhar o corpo

O termo “trabalhar o corpo” é uma designação utilizada por médiuns umbandistas


incorporantes para se referir à maneira como a atuação das entidades na incorporação são
reapropriadas enquanto técnicas de produção de subjetividade, ocasionando em efeitos positivos
59

na sua vida e entendimento de si. Em Pereira (2012, p. 383), seu uso está atrelado, mais
especificamente, à maneira como travestis, a partir do contato com perspectivas religiosas afro-
brasileiras, tecem um cenário de reapropriação de saberes míticos a fim de construir uma
gramática de gênero e sexualidade que se afasta da heterossexualidade compulsória, bem como
se inscrevem dentro de performances rituais que produzem corporalmente uma noção de si.
As interrelações entre gênero e religiosidade afro-brasileira têm sido um espaço de
cruzamento analítico frutífero no questionamento do caráter natural dado à relação sexo-gênero.
Autoras como Rita Laura Segato (1995), ao se debruçar sobre o Xangô de Recife, têm advogado
pela perspectiva de que a cosmologia afro-brasileira tem sistematicamente liberado as categorias
de parentesco, de personalidade, de gênero e sexualidade das suas determinações biológicas. Isso
pode ser igualmente explicitado a partir de certos fenômenos observáveis em campo, por meio
do qual corpos designados como masculinos no seu nascimento possuem orixás de cabeça
femininos ou trabalham com entidades femininas e vice-versa.
Emana daí um certo tipo de modelos de compreensão de tais categorias de gênero e
personalidade assentado em torno da lógica do mito, em que certos oráculos, como os búzios
mais frequentemente, mas também o obí, atuam como mediadores nessa designação. No relato
que se segue, tenho como objetivo produzir uma reflexão em torno da ideia de “trabalhar o corpo”
enquanto uma potencialidade macumbeira por meio da qual há a apropriação de um poder
cósmico pelos agentes, mediado por entidades e materialidades inscritas dentro de tecnologias
corporais, responsáveis por produzir um certo entendimento generificado de si.
Por outro lado, tal reflexão será fundamentada em torno de um questionamento em torno
de como pode o corpo estranho pesquisar, a partir de uma experimentação de cunho artístico
performático, não deslocada da vida, no qual certa gramática corporal daquilo que configura a
performatividade científica, a partir de seus regimes de enunciação em torno da neutralidade, são
tensionadas a partir da constituição de uma “presença estranha” em detrimento de uma “presença
ausente”. Isso se dá através de um uso estratégico de certos mediadores produtores de gênero,
notadamente roupas, acessórios, entre outros elementos que compõem uma estética designada
como feminina a um corpo designado como masculino, objetivando compreender suas
implicações e encadeamentos tanto no que se refere às práticas científicas, quanto no tocante às
práticas religiosas no terreiro.
Para isso, engendro uma descrição etnográfica dos eventos que se passaram após a
realização do primeiro ritual de limpeza no terreiro, quando experienciei minhas primeiras
vivências ligadas à incorporação de uma Cigana.
60

Durante todo o mês de agosto e início do mês de setembro, as atividades do CCPAP


estiveram voltadas para aquilo que nativamente se denomina Quaresma de Exu. Trata-se de um
período em que todas as giras são voltadas para a linha da esquerda e entende-se que os rituais
viram para a quimbanda. Durante esse momento, os dois encontros públicos semanais realizados
eram organizados segundo propósitos distintos. Enquanto que nas segundas, realizavam-se os
rituais de quebra de demanda e descarrego, nas quintas-feiras eram feitos os rituais de
prosperidade na energia de Exu.
Esses dois campos de atuação mágico-religiosa são exercidos nesse período com maestria
por uma série de entidades que compõem a linha da esquerda, sejam elas Pomba Giras, Exus ou
Malandros. Dentro da cosmologia umbandista, os espíritos são organizados hierarquicamente
segundo certos padrões vibratórios, estando tais entidades da esquerda ocupando posições mais
“baixas” em termos de emanação energética frente a outras, muito mais próxima daquela que os
próprios seres humanos emanam e também daquelas emanadas pelos eguns. Isso viabiliza um
certo tipo de singularidade colocada pela atuação das entidades que compõem a quimbanda, na
medida em que é apontado por alguns umbandistas a capacidade singular dessas entidades de se
vestir de egun para assim poder combatê-los e desfazer a atuação negativa desses espíritos.
Findado esse período voltado para a quimbanda, a primeira gira que introduziu a volta
dos trabalhos das outras entidades que compõem o universo umbandista foi a de ciganos.
Segundo o Pai de Santo dirigente da casa, a gira de ciganos acontece, com exceção do período
da Quaresma de Exu, uma vez ao mês. Pude ser informado da sua realização através de uma
publicação no Facebook do terreiro, no qual divulgou-se a realização do evento através do
seguinte post:

Ele é um cigano faceiro, ele é


Ele é das sete linhas e não é do Candomblé
Ele vem de muito longe,
Seus filhos ajudar
Ele vem de muito longe,
Saravá nesse congá
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Figura 10 – Flyer de divulgação de gira pública de ciganos no CCPAP

Fonte: CCPAP (Facebook)


Antes de se frequentar uma gira, é recomendado que os membros do terreiro se engajem
com uma série de preceitos. Os preceitos podem ser entendidos como uma espécie de rito
preparatório que antecede a realização de um ritual, ligados a certas privações normativas que
variam conforme o ritual que se deseja executar. No caso das giras de atendimento, por exemplo,
há um tipo de preparo específico, distinto dos preceitos necessários para a realização de um ritual
de limpeza. Nesse aspecto, cabe ao Pai ou Mãe de Santo consultar o guia chefe do terreiro na
determinação do tipo e o tempo de preceito para cada situação. No caso específico do CCPAP,
fui informado através de um guia que os preceitos ligados às giras estão relacionados à
necessidade de se tomar um banho de ervas antes do atendimento. Nesse dia, tratando-se de uma
gira de ciganos, realizei um banho de arruda, voltado para descarrego, e folha de laranjeira,
voltado para prosperidade.
Chegando ao estabelecimento, alguns membros do terreiro se encontravam do lado de
fora conversando de maneira jocosa enquanto fumavam. Seus trajes eram coloridos, com saias,
lenços e camisas de manga longa variando em tons de vermelho, verde, laranja e amarelo. Da
mesma forma, algumas pessoas que compunham a assistência, isto é, o público visitante do
terreiro, encontravam-se sentadas em bancos de plástico do lado de fora esperando o início da
cerimônia. Devido à pandemia, o uso de máscaras era obrigatório para que o público fosse
62

atendido. Além disso, como de praxe, era necessário colocar o nome em uma lista para que cada
pessoa fosse chamada em ordem para ser atendida.
Marcelo, o Pai de Santo, trajava um lenço de tom amarelo na cabeça, calça branca e uma
bata vermelha. No pescoço, carregava uma série de guias e colares, um deles contendo o símbolo
da roda cigana.
Figura 11 – Símbolo de roda cigana

Fonte: Povo de Aruanda10


Já na cintura, carregava um lenço amarrado, também na cor vermelha. Todas as vezes
antes de uma gira ocorrer, é realizado um pequeno discurso pelo dirigente da casa, apresentando
a festividade que iria ocorrer e informando ao público um pouco da teologia umbandista. Como
de praxe, Marcelo iniciou sua fala saudando a todos que se encontravam presente e informando-
nos que se tratava de uma casa de Umbanda, voltada para a atuação dos espíritos, em detrimento
do Candomblé, que dá maior enfoque à energia viva da natureza expressa nos Orixás. Nesse dia,
iria ser realizada uma gira de ciganos, povo encantado, nas suas palavras, que trabalham com
proeza em torno de questões relativas à prosperidade.
No campo religioso umbandista, a noção de prosperidade não se resume a questões
financeiras, ainda que sejam uma dimensão importante. A prosperidade é entendida como um
campo de multiplicação de dádivas tendo em vista a realização pessoal dos seus membros em
diversos âmbitos da vida como amoroso, familiar e também financeiro. Nas minhas incursões a
campo foi comum ouvir, por exemplo, que a prosperidade pode se expressar através de uma mesa
farta, quando não faltam alimentos para a família. Também pode igualmente se fazer presente no
campo amoroso, seja para aqueles que são solteiros e buscam um pretendente, quanto para
aqueles que já possuem uma relação e buscam fortalecer seus laços existentes. Na perspectiva de

10
Disponível em: <http://umbanda7.blogspot.com/2017/03/os-aros-da-roda-cigana.html>. Acesso em
12/01/2022
63

Pai Marcelo, os espíritos ciganos podem ser divididos conforme certas frequências com que
trabalham, dentro de um sistema classificatório, denominado de frequência dos nove raios.
Trabalham em conjunção com a energia de certos elementos da natureza, como o sol, a lua, etc,
e segundo sua frequência própria, cada raio tem suas cores dominantes no uso de velas, por
exemplo.
A abertura das giras de atendimento tradicionalmente inicia-se com um canto coletivo
voltado para a linha da esquerda. Enquanto o público se encontrava sentado do lado de fora do
terreiro onde ocorria a cerimônia, os membros do terreiro formavam uma roda no qual uma série
de pontos começaram a ser proclamadas. É preciso dar de comer a Exu e celebrá-lo antes de
qualquer outra entidade, sendo este considerado o mensageiro responsável pela comunicação
entre os guias e os seres humanos. Nesse sentido, os seguintes pontos foram cantados,
respectivamente, para Exu, Pomba Gira e Exu Mirim:

Seu Tranca-Rua, dá uma volta lá fora (2X)


Quem for bom bota pra dentro e quem não for deixa lá fora. (2X)
Seu Tiriri, dá uma volta lá fora (2X)
Quem for bom bota pra dentro e quem não for deixa lá fora. (2X)
Seu João Caveira, dá uma volta lá fora (2X)
Quem for bom bota pra dentro e quem não for deixa lá fora. (2X)
Todos os Exus, dá uma volta lá fora (2X)
Quem for bom bota pra dentro e quem não for deixa lá fora. (2X)
**
O Sino da igrejinha faz blém blém blom
O Sino da igrejinha faz blém blém blom
Deu meia-noite o galo já cantou
Seu Tranca-Ruas que é o dono da gira
Oh corre gira que Ogum mandou
O Sino da igrejinha faz blém blém blom
O Sino da igrejinha faz blém blém blom
Deu meia-noite o galo já cantou
Seu Tranca-Ruas que é o dono da gira
Oh corre gira que Ogum mandou
Seu Tranca-Ruas que é o dono da gira
Oh corre gira que Ogum mandou

Tranca Rua ganhou uma garrafa de marafo e levou na capela pro padre benzer,
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Encontrou com o sacristão, na batina do padre tem dendê,


Tem tem tem, na batina do padre tem dendê (2X)
**
Arreda homem que aí vem mulher!
Arreda homem que aí vem mulher!
Ela é a Pomba Gira, rainha do cabaré
Sete homens vêm na frente pra dizer quem ela é
Ela é a Pomba Gira, rainha do cabaré
**
Cemitério é praça linda
Mas ninguém quer passear
Cemitério é praça linda
Mas ninguém quer passear
Lá tem 7 catacumbas
A Padilha mora lá
Lá tem 7 catacumbas
A Padilha mora lá
Mora lá, mora lá (3X)
Maria Padilha mora lá.
**
Joguei no rei
Parei no às
Joguei no rei
Parei no às
Eu quero ver você fazer o que a Padilha faz (2x)
**
Pedra de sal (2X)
Pedra de sal é salgueiro
Eu deixei Exu Mirim
Tomando conta do terreiro
**
Você usou sua língua
Pra falar mal de mim
Eu vou dar o seu nome
É pra Exu Mirim
A sua língua é grande,
ela vai diminuir
65

Eu vou dar o seu nome


para Exu Mirim

O ritual de defumação se inicia na entrada do terreiro, onde se localiza a tronqueira, isto


é, local de assentamento da linha da esquerda. Nesse momento, O Ogã puxa o ponto, a Cambone
embala o turíbulo e a brasa do carvão incendeia as ervas, fazendo com que o aroma logo se
espalhe por toda a localidade. Em seguida, os membros da casa são defumados, e depois o
público, por último. Começando por Oxóssi, o seguinte cântico era repetido fazendo-se menção
a uma série de Orixás cultuados no terreiro. No tempo que frequentei o CCPAP, pude perceber
que a ordem e a quantidade de Orixás mencionados variavam. Em alguns dias, por exemplo, ouvi
menções à orixás como Obá, Logunã e Logunedé que, em outros dias, não eram necessariamente
citados. Contudo, os mais comuns são Oxossi, Oxalá, Ogum, Obaluaê, Ossaim, Oxumarê, Xangô,
Nanã, Iemanjá, Oxum, Iansã, conforme o seguinte ponto:

Meu Pai Oxóssi, peço licença pra defumar


Eu defumo, eu defumo essa aldeia real.
Meu Pai Ogum, peço licença pra defumar
Eu defumo, eu defumo essa aldeia real.
Pai Obaluaê, peço licença pra defumar
Eu defumo, eu defumo essa aldeia real
...
Vovó Nanã, peço licença para defumar
Eu defumo, eu defumo essa aldeia real…
Mãe Iemanjá, peço licença pra defumar
Eu defumo, eu defumo essa aldeia real…
(continua)
Em seguida, deu-se início ao ritual da pemba. A ritualística da Umbanda emprega a
pemba, um giz branco, nas mais diversas finalidades: ela cruza o Congá, o terreiro, as firmezas
da porteira, cruza as guias de Umbanda (fios de contas), assim como risca o ponto sagrado da
entidade. É assoprada para imantar o terreiro, assim como cumpre uma função de limpeza
espiritual quando soprada sobre o público. É variável a pessoa que pratica esse ritual, em alguns
dias pude presenciar o ritual da pemba ser executado pela Mãe de Santo, assim como em outros
momentos ele foi executado por outros membros do terreiro. O ritual consiste no assopro da
pemba em pó, respectivamente, acima dos dois ombros dos indivíduos, seguido de um assopro
na direção da testa.
66

Quando começaram a tocar os primeiros pontos para os Orixás comecei a sentir os


primeiros sinais de incorporação. Se, por um lado, durante as cerimônias, as diversas pessoas
presentes experimentam a ritualística das giras a partir de um uso do corpo através dos cantos,
das palmas, das saudações e orações, os primeiros sinais da incorporação podem ser entendidos
como um ponto limiar que marca a ruptura e a passagem para novas corporeidades, isto é, a
corporeidade das entidades, também expressa na ideia de “trabalhar o corpo”.
Esse contexto específico no qual os primeiros sinais da incorporação se manifestam é
expresso nativamente a partir da concepção de que a entidade encosta no médium. Nesse
momento, o indivíduo é capturado por algumas manifestações físicas. No meu caso, uma forte
contração muscular na altura da batata da perna. Como consequência desse processo, toda minha
perna se pôs a tremer em um movimento repetitivo e infindável que levava, em alguns momentos,
a uma perda de equilíbrio. Nesse momento, o som do atabaque já tinha dado lugar a uma música
tocada em um som, usada exclusivamente nas giras de ciganos, que não incorporam ao som do
batuque, mas sim ao som de cantigas ciganas. O interessante nesse processo era ver como essas
contrações levavam-me a dar pequenos passos para frente, expressando, na minha concepção,
um desejo da entidade de se aproximar da gira.
Dentro dos processos de incorporação, faz parte dos procedimentos de firmar a cabeça,
isto é, concentrar-se para que ocorra a incorporação, fechar os olhos. Penso que isso coloca uma
singularidade dentro dos processos de descrição etnográfica, na medida em que é necessário
fechar os olhos para se vivenciar a presença das entidades. Nesse sentido, em detrimento de um
privilégio da visão na descrição dos fenômenos observados em campo, vivenciar um processo de
incorporação significa uma abertura para diversos campos de sentidos experimentados pelo
corpo.
Com os olhos fechados, pude escutar meus batimentos cardíacos que ritmavam de
maneira compassada com os som dos atabaques, assim como pude me ater ao ritmo da minha
respiração. Os olhos fechados produzem um desligamento espacial de possíveis distrações e
levam a uma transposição espaço-temporal para certos elementos aos quais o médium associa à
energia de certa entidade. Via-me, neste momento, não apenas pensando nas entidades ciganas,
seus trejeitos, roupas e movimentos corpóreos, como também conversando com elas, solicitando
que se fosse do seu desejo trabalhar no dia, meu corpo estava disponível.
Conforme dito acima, em uma das minhas primeiras incursões em campo, uma cigana
incorporada me presenteou com um lenço que utilizava na sua cabeça, de cor amarela, contendo
pequenas moedas douradas. Após pedir para que eu o segurasse, a entidade se pôs a acender um
cigarro e soprar sua fumaça sobre o acessório. Fui orientado a andar com o lenço como um
67

amuleto de proteção, o que acabei de fato fazendo não apenas em certos contextos não-religiosos,
nos quais sentia a necessidade de carregá-lo, mas também dentro de contextos ritualísticos,
notadamente em outras giras de ciganos. Lembro-me também de ter conversado com a médium
da cigana, já desincorporada após a gira, quando me foi relatado que Lúcia Carmencita, a sua
cigana espiritual, adorava dar certos objetos que lhe pertenciam aos que eram atendidos por ela.
Carregava, em função disso, tal artefato em minha bolsa e, com o andamento da gira,
senti o desejo de segurá-lo em minhas mãos, fazendo movimentos continuamente para que me
concentrasse também no som que advinha desse processo, semelhante ao de um pandeiro. Após
um tempo, no contato contínuo com tal objeto, minha mão começou a vibrar, irradiando ondas
por todo o braço. Senti também, em diversos momentos, essa mesma sensação na região da
barriga, próximo ao umbigo.
Fui pego de surpresa enquanto me encontrava de olhos fechados quando uma das médiuns
do terreiro, responsável por chamar o público para o atendimento veio até mim e disse no meu
ouvido “Optchá”, a saudação aos ciganos dentro dos terreiros de Umbanda. Nisso lhe avisei que
sentia que a entidade estava encostando muito, o que fez com que ela se dirigisse em direção aos
dirigentes da casa para como proceder nesse contexto. Após conversar com eles, foi-me orientado
que firmasse a cabeça e esperasse o meu momento de atendimento, pois incorporar na rua corria
o risco de estar vulnerável à presença de certos eguns, o que, dentro da espacialidade do terreiro,
não poderia ocorrer, tendo em vista que na sua entrada estavam firmados assentamentos de
proteção contra esses espíritos.
Quando chegou a minha vez de atendimento, fui direcionado pelas cambones da recepção
à me dirigir a uma das primeiras entidades que se encontravam enfileiradas durante o
atendimento. Cumprimentamo-nos com um aperto de mão e nisso a cigana me perguntou no que
eu precisava de ajuda. Relatei a ela, com o lenço na mão, que sentia que uma entidade estava
encostando muito. Nada mais foi preciso de ser dito após esse momento. A cigana se pôs a rir
quando lhe relatei a minha situação. Após aproximar a minha cabeça do seu ombro, as contrações
da incorporação começaram a ficar mais intensas levando a um arqueamento do meu corpo. Meus
ombros remexiam, chegando ao cume de intensidade quando a cigana realizou um sopro na
minha orelha. As contrações eram tão intensas que meu corpo bambeava para os lados, sendo
necessária a ajuda do cambone que a auxiliava para que eu não me machucasse ou caísse no chão.
Lembro-me de ouvir a cigana se dirigindo a mim, mas conversando com a entidade que estava
incorporando, pedindo para que ela agisse “devagar, sem machucar o teu filho”.
Todo o processo ocorreu de maneira pendular, variando em termos de intensidade a força
do processo incorporativo. Via-me em vários momentos tentando recuperar a respiração, sem
68

conseguir falar nenhuma palavra, processo que rapidamente dava lugar a outros aumentos de
intensidade. Aconteceu justamente enquanto estava olhando para o chão, quando colocaram em
mim um pano longo vermelho sobre minhas costas que levavam novamente a um aumento das
contrações. A cigana parecia estar se divertindo nesse processo todo, referindo-se a mim, mas
perguntando em tom jocoso à entidade que estava incorporando se ela não desceria.
Em certo momento, senti uma forte vontade de rir, fazendo com que me pusesse a
gargalhar enquanto olhava fixamente para a entidade. Durante todo esse processo, o lenço que
carregava em minhas mãos encontrava-se em movimento, fazendo o seu barulho tão singular. A
cigana me pôs a rodar junto com ela de maneira que nossos corpos estavam entrelaçados. A mão
que carregava o lenço, como se tivesse desejos próprios, pôs-se a levantar e a se mexer enquanto
rodávamos. Em certo momento, já sem forças para mais nada, lembro-me que a cigana solicitou
à cambone que acompanhava todo o processo que enchesse sua taça de vinho que continha dentro
um morango. Ela me deu de beber todo o vinho que continha dentro da taça e falou que minha
cigana tinha sede e que eu precisava voltar a cultuar ela.
Segundo ela, beber a taça de vinho acalmaria minha cigana, o que de fato ocorreu, visto
que, depois disso, as contrações que vinha sentindo foram totalmente interrompidas. Foi a partir
desse momento que nos pusemos a conversar de maneira mais concreta. A entidade me perguntou
se eu era de alguma casa anteriormente, tendo em vista a minha facilidade com a incorporação.
Respondi a ela que havia frequentado por muito pouco tempo um outro terreiro, mas que não
havia chegado a incorporar lá. Todas as vezes que havia incorporado havia sido no próprio
CCPAP. Então ela disse que eu estava sofrendo porque não havia firmado o pé e que precisava
urgentemente firmá-lo em um terreiro, porque, caso contrário, as incorporações iriam começar a
acontecer na rua. Recomendou-me, por fim, que levasse para o terreiro esporadicamente alguma
quantidade de vinho para dar de oferta a ela.
69

Capítulo 3 - O Sistema Lenormand: A estrutura do baralho e seus símbolos

3.1 A dimensão narrativa oracular

Aquilo que se compreende como Petit Lenormand que, no Brasil, adquire o nome de
Baralho Cigano (BC), pode ser entendido atualmente como um sistema oracular que compõe
uma matriz de baralhos estilisticamente distintos, mas relacionados a partir de certos aspectos
comuns. Para além da multiplicidade de versões iconográficas que florescem no interior desse
sistema, composta por baralhos temáticos ligados, por exemplo, ao povo cigano, à wicca, às
religiões de matriz africana, à cosmologia hindu, etc, há um pilar comum que compõe a estrutura
do baralho, ligadas a algumas características singulares associadas ao Sistema Lenormand.
Vale dizer que, atualmente, outros baralhos assentados em outras lógicas vêm se
proliferando no contexto brasileiro. É o caso dos baralhos voltados para as entidades da linha de
esquerda, baralhos de Pomba Giras, malandros, etc que se organizam segundo outras cartas e
outros significados. Buscarei, contudo, ater-me ao sistema Lenormand no capítulo atual, visto
que expandir a análise para esses baralhos de entidades colocaria outras questões em jogo que
não necessariamente se apresentam ao baralho cigano.
Dito isso, o Sistema Lenormand possui trinta e seis cartas, cada qual caracterizada por
uma imagem central, um naipe, e um número. Os elementos iconográficos que integram as
imagens centrais podem ser entendidos como símbolos que permeiam a vida cotidiana de grande
parte das pessoas, como as flores, a casa, a árvore, o jardim e o cachorro. De fato, a simplicidade
iconográfica das cartas, no qual há, em geral, um enfoque imagético em torno do elemento
principal que a define, faz com que certas associações simbólicas possam ser produzidas,
valendo-se de um certo “imaginário social” em torno dos seus significados. É o caso, por
exemplo, da associação entre a figura do cachorro e a ideia de companheirismo, lealdade e
companhia.
Além disso, o Sistema Lenormand pode ser entendido como pautado em uma estrutura
narrativa, tanto no que se refere à constituição iconográfica das cartas, quanto nos modos
combinatórios de se realizar a leitura oracular. Essa conexão entre um elemento iconográfico e
um certo “imaginário social” compartilhado em torno do seu significado fundamenta aquilo que
se entende como emblema. A noção de emblema, na concepção nativa, pode ser entendida como
70

uma característica que difere os oráculos pautados no sistema Lenormand em relação a outros
baralhos dentro do campo da cartomancia, como o Tarot, que se valem da noção de arquétipo.
Muitos cartomantes contemporaneamente, inspirados nas ideias de Jung em torno desse conceito,
entendem as cartas do Tarot em termos de arquétipos simbólicos, isto é, imagens primordiais que
habitam o inconsciente coletivo da humanidade, de tal forma que podem, na concepção
junguiana, serem observados em diversas dimensões da vida humana, como sonhos e narrativas
míticas. Sobre a ideia de emblema, diz-nos a cartomante Renata Berreta:
“...Eu entendo que o Lenormand, ele é narrativo em vários aspectos, tanto na
concepção da parte simbólica dele, porque o emblema era uma forma de
linguagem que foi desenvolvida nesse período aí entre o século XVI e XVIII e
que ele tinha a ideia de, através das imagens, contar uma história. Foi uma época
que se queria usá-los como os hieróglifos, então, símbolos que contam histórias.
Então, o emblema em si é um desenho ou uma pintura, uma imagem de
elementos concretos da realidade desses séculos na Europa no contexto cristão,
e que ele tem uma função pedagógica e moral. Então, só de olhar para a
imagem… Você não precisa saber ler, só de olhar para a imagem, como aquilo
fazia parte do repertório cultural, você já conseguia falar sobre aquilo sem
precisar ler, né… E aí o que acontece, quando você junta vários, você conta uma
história, então ele é narrativo nesse aspecto, a partir da composição do que é
emblema. Tanto que no Lenormand, quando você usa, é diferente do Tarot, que
você faz uma leitura simbólica da imagem, então você descreve “Ah, o céu é
azul, nessa carta você tem uma uma grama verde, ou você tem um caranguejo
para um lado, ou você tem a lua aqui e isso interfere na interpretação, já no
Lenormand não. Não interessa se o céu é azul ou preto, ou se o dia está
ensolarado, o que interessa é o emblema central e a partir daquilo que você
mobiliza o significado para dar uma resposta. Então, são imagens que falam.”
(Renata Berreta, Entrevista em agosto de 2021)

Segundo a cartomante, essa distinção entre emblemas do Lenormand e arquétipos do


Tarot produziria efeitos distintos no que tange à maneira de se realizar uma leitura oracular. Em
oposição ao Tarot, em que cada elemento imagético leva a um adensamento da leitura a e
interfere naquilo que se busca interpretar durante a leitura, no Sistema Lenormand há, em geral,
um enfoque interpretativo em torno do elemento principal que a define. Em função dessa questão,
na perspectiva do cartomante Alexsander Lepletier, mudanças iconográficas importantes
relativas ao Lenormand merecem ser assinaladas, uma vez que:
Enquanto o tarô obedece a padrões mais rígidos, onde cenários, personagens e
suas posições precisam seguir certas regras como, por exemplo, [a carta] ”O
Mago” que deve segurar uma varinha e ter uma mão erguida e outra abaixada,
o Lenormand já não apresenta essa necessidade. A cegonha, independente de
estar se alimentando no lago, cuidando de seu ninho ou voando, manterá seus
atributos inalterados. Suas imagens podem ser elaboradas de forma mais livre
não estando presas às cadeias simbólicas, sendo mais simples.
(LEPLETIER,2015)

Ainda que seja possível encontrar pessoas que usam só uma carta para responder
71

perguntas a partir do Lenormand, entende-se que isso seja uma técnica importada do Tarot, já
que a estrutura do Lenormand, para muitos cartomantes, pauta-se na constituição de uma
narrativa a partir da combinação de duas cartas no mínimo.

Figura 12 - Imagem comparativa entre a carta “A lua” no Baralho Cigano e no Tarot de Raider-Waite

Fonte: Clube do Tarô11

Existem outras diferenças entre o Baralho Cigano e o Tarot. Podemos citar, por exemplo,
a questão da quantidade de cartas. Enquanto o BC possui trinta e seis cartas, o Tarot possui, em
geral, setenta e oito. As cartas do Tarot se dividem entre arcanos menores e arcanos maiores. Os
arcanos menores correspondem às cinquenta e seis cartas do baralho convencional: as cartas
numéricas, que vão do Ás ao 10, e os quatro personagens, valete, cavaleiro, rainha e rei.
Totalizando catorze cartas que se repetem em quatro naipes diferentes: ouro, copas, espadas e
paus. Os arcanos maiores incorporam de maneira mais profunda a noção de arquétipo, expressos
nas suas vinte e duas cartas. Entende-se que, em detrimento dos arcanos maiores, os arcanos
menores complementam a leitura dos arcanos principais, oferecendo detalhes sobre aquilo que
se lê, segundo o seu naipe e sua numerologia.
A divisão em torno de arcanos maiores e menores não existe no baralho cigano, assim
como, em muitas versões do BC, principalmente no contexto brasileiro, o naipe e a sua
numerologia são retirados das cartas, deixando como enfoque apenas o emblema central. De fato,

11
Disponível em: <http://www.clubedotaro.com.br/site/index.asp>. Acesso em 10/01/2022
72

no sistema de cartomancia da escola europeia, o Petit Lenormand manteve as representações de


naipes franceses e números, em detrimento dos baralhos que se auto intitulam seguindo os
princípios da escola brasileira – Em que o uso dos números e dos naipes não é muito comum.
Essas divisões, todavia, não são estanques. Em campo, por exemplo, é possível observar baralhos
que se autodenominam como baralhos ciganos que mantiveram a relação com os naipes e
números.
Uma outra importante mudança nos símbolos que compõem tal oráculo no seu curso
migrante envolve mudanças iconográficas no que tange à carta de número dois, denominada de
“Os trevos”, segundo o Lenormand europeu, que passa a ser denominada de “As pedras” ou “Os
obstáculos” no Baralho Cigano. Associada comumente a questões envolvendo boa sorte no
contexto europeu, novos entendimentos em torno dessa carta passam a ser promovidos em solo
brasileiro, ligados às noções de pequenos empecilhos, dificuldades, etc, o que levou à alterações
iconográficas em torno dessa carta. Na figura abaixo, é possível observar não apenas tal mudança
em torno do emblema principal, como também outras questões estilísticas ligadas às versões
produzidas no contexto brasileiro, como retirada da relação com os naipes na carta “Os
obstáculos”:

Figura 13 – Imagem comparativa entre duas versões da carta 2: O trevo (esq.) e Os obstáculos (direita)

Fonte: “Tarólogos e Cartomantes, Tiragens, Pitacos e Consultas”, Facebook, 2020.


73

A partir de certas proposições de releitura do BC, certos cartomantes que se


autodenominam como ligados a uma ‘escola brasileira” de cartomancia, como Katja Bastos
(Trybo Cósmica), André Mantovanni, etc, a carta de número 2 - “Os trevos” é eliminada e passa
a ser substituída pela denominação “As pedras” /” paus e pedras” ou “Os obstáculos”,
institucionalizando de maneira mais concreta tais alterações. Contudo, refletindo acerca desse
processo de mudanças iconográficas, Renata Berreta advoga por uma perspectiva pautada na
heterogeneidade desse processo:
“...porque é isso: isso já acontecia, na verdade, essa questão de trocar trevo por
paus e pedras já acontecia com outros baralhos publicados antes. Eu tenho
algumas fotos aqui [...] de baralhos que já substituem uma coisa pela outra,
porque algumas cartas vinham no lugar do trevo uma palmeira e tinha um
tronco, e aí, sabe, depois cortaram a folha e tem uma questão da imagem em si.
Tem outra questão, que é o trevo representar sorte, mas os paus e pedras
representam as dificuldades, problemas momentâneos, mas depois vem a sorte.
Enfim, tem discussão assim. Mas a grande questão é entender que esse é um
processo que não está finalizado, então, existiram baralhos que já tinham
pensado em algumas modificações e releituras parecidas antes da Katja, tem
muitos depois. Tem baralhos agora que tem os guias, que tem mais cartas que
as trinta e seis, isso também é um assunto para outra conversa, então, eu acho
que a escola brasileira tem algumas características que se mantém, mas ela é
muito plural, então eu não centralizo mais, a gente não pode centralizar mais
em torno do trabalho específico da Trybo Cósmica. A Trybo Cósmica tem uma
proposta, dentro do que é olhar para esse baralho cigano. Algumas
características são estáveis, outras não. (Renata Berreta, Entrevista em agosto
de 2021)

A cartomante advoga por uma perspectiva em torno da heterogeneidade desse processo,


questionando uma narrativa linear em torno do mesmo, atrelada aos processos ligados à formação
da “escola brasileira” enquanto uma rede de agentes específicos. Os próprios usos da noção de
“escola brasileira” se mostram como heterogêneos, na medida em que, às vezes, assume o sentido
de se referir a certos cartomantes específicos que cunharam o termo e se utilizam dele nos seus
entendimentos das próprias práticas, mas ora desliza também sobre um sentido mais amplo,
abarcando entendimentos gerais ligados ao que se configura como oracular no campo da
cartomancia no Brasil, muitas vezes estranhas a um entendimento enquanto pertencente a uma
“escola”.
Isso produz um cenário de multiplicidade de baralhos possíveis de serem encontrados em
campo, que não podem ser resumidos às alterações estabelecidas pelas reinterpretações propostas
por agentes específicos que compõem tal rede. Um exemplo disso é a concepção de que, no
Baralho Cigano, há a retirada da relação das cartas com os baralhos de pôquer e seus naipes, a
partir da proposição da “escola brasileira”. Etnograficamente é possível encontrar, contudo, uma
74

série de baralhos à venda com a autodenominação de baralho ciganos que preservam tal
associação.
Nos baralhos Le Petit Lenormand europeus, assim como entre aqueles baralhos ciganos
que preservam a associação com naipes e números, não há referências para os números 2, 3, 4 e
5. Cada carta se associa a um naipe específico entre os números restantes e as cartas da família
real. Dessa maneira, as trinta e seis cartas com seus emblemas preservam a associação com os
quatro grupos de naipes, cada qual com nove cartas. Cada grupo é representado por um naipe
numerado tal como existente nos baralhos lúdicos, isto é, paus, espadas, ouros e copas, de tal
forma que, dentro da simbologia do Baralho Cigano, cada naipe se liga a um elemento da natureza
e um aspecto da vida do consulente, conforme apresentado abaixo:

1 O naipe de ouro no Baralho Cigano representa o elemento Terra e o plano da existência


material, como bens e questões financeiras. As nove cartas que compõem esse naipe são:
a carta 02 (Os obstáculos); a carta 08 (O caixão); a carta 10 (A foice); a carta 12 (Os
pássaros); a carta 22 (Os caminhos); a carta 26 (O livro); a carta 31 (O sol); a carta 33 (A
chave) e a carta 34 (O peixe).
2 O naipe de paus representa o elemento Fogo e a dimensão da criatividade, da ação e da
espiritualidade. As nove cartas que compõem esse naipe são: a carta 06 (As nuvens); a
carta 07 (A cobra); a carta 11 (O chicote); a carta 14 (A raposa); a carta 15 (O urso); A
carta 21 (As montanhas); a carta 23 (O rato); a carta 25 (O anel) e a carta 36 (A cruz).
3 O naipe de espadas representa o elemento Ar e o plano de existência da mentalidade, dos
pensamentos e da racionalidade. As nove cartas que compõem esse naipe são: a carta 03
(O navio); a carta 09 (As flores); a carta 13 (A criança); a carta 19 (A torre); a carta 20
(O jardim); a carta 27 (A carta); a carta 29 (A cigana); a carta 30 (Os lírios) e a carta 35
(A âncora)
4 O naipe de copas no Baralho Cigano aponta para o elemento Água e a dimensão dos
sentimentos, afetos e emoções. As nove cartas que compõem esse naipe são: a carta 01
(O cavaleiro); a carta 04 (A casa); a carta 05 (A árvore); a carta 16 (As estrelas); a carta
17 (A cegonha); a carta 18 (O cachorro); a carta 24 (O coração); a carta 28 (O cigano) e
a carta 32 (A lua).

Nos casos em que o naipe e a numerologia são preservados, há a possibilidade de


encadeamento e multiplicação dos significados da leitura a partir dos outros componentes
constitutivos da iconografia das cartas para além do emblema central, na medida em que se
75

entende que cada um dos símbolos ligados aos naipes numerados possui outros significados que
lhe são próprios, ligados ao saber numerológico, por exemplo. Da mesma forma, a possível
prevalência de um certo naipe específico no curso da leitura oracular pode apontar, por exemplo,
para a pungência de um certo âmbito da vida do consulente - como a relação entre o naipe de
copas e o elemento água, voltado para o campo dos sentimentos - que se mostra como mais
central.
Existe, portanto, um sistema classificatório quadripartite que embasa a simbologia desses
Baralhos Ciganos específicos, pautado em uma distribuição do mundo a partir dos quatro
elementos da natureza, sendo vigente uma noção de pessoa segmentada segundo certos domínios
pensados como distintos, ainda que em relação, como a esfera das emoções, do pensamento, da
criatividade e da materialidade. Dentro dos meus estudos comparativos entre baralhos contatados
em campo, ainda que fosse possível observar uma ampla diversidade de significados relativos
aos emblemas principais, a relação entre cada uma das cartas do Baralho Cigano e os números e
naipes que compõem os baralhos lúdicos parecem ser bem delimitadas, conforme apresentado
abaixo:

Quadro 2 – Relação entre as cartas e os naipes no Baralho Cigano

Número Nome da Carta Naipe

1 O cavaleiro Nove de Copas

2 O trevo Seis de Ouros

3 O navio Dez de Espadas

4 A casa Rei de copas

5 A árvore Sete de Copas

6 As nuvens Rei de Paus

7 A cobra Rainha de Paus

8 O caixão Nove de Ouros

9 O buquê Rainha de Espadas

10 A foice Valete de Ouros

11 O chicote Valete de Paus

12 Os pássaros Sete de Ouros

13 A criança Valete de Espadas


76

14 A raposa Nove de Paus

15 O urso Dez de Paus

16 A estrela Seis de Copas

17 A cegonha Rainha de Copas

18 O cachorro Dez de Copas

19 A torre Seis de Espadas

20 O jardim Oito de Espadas

21 A montanha Oito de Paus

22 Os caminhos Rainha de Ouros

23 O rato Sete de Paus

24 O coração Valete de Copas

25 O anel Ás de Paus

26 O livro Dez de Ouros

27 A carta Sete de Espadas

28 O homem Ás de Copas

29 A mulher Ás de Espadas

30 Os lírios Rei de Espadas

31 O Sol Ás de Ouros

32 A Lua Oito de Copas

33 A chave Oito de Ouros

34 Os peixes Rei de Ouros

35 A âncora Nove de Espadas

36 A cruz Seis de Paus


Fonte: Mantovanni, 2020

Discorrendo sobre o uso dos naipes ou não dentro da leitura oracular com o baralho
cigano, uma internauta fez um post no dia 25 de março no grupo de Facebook “Baralho Cigano,
Tarot, Oráculos e Feitiços” perguntando se os outros membros consideravam a questão dos
naipes no BC. A autora do post afirmava que, de maneira geral, não os levava em consideração,
em função do seu conhecimento incipiente acerca dos seus usos na leitura oracular e buscava
77

saber a opinião dos outros membros, obtendo as seguintes respostas:

T.N.: Quase não levo em consideração, vejo mais os símbolos das cartas e o
contexto do jogo, mas às vezes salta aos olhos.
L.F.: Os naipes representam os 4 elementos, cada um deles com uma
significação dentro da leitura... As figuras da corte também têm grande
importância dentro do jogo... É preciso bastante estudo.
T.A: Os naipes trazem informações adicionais, é preciso estudo, e eles só são
usados na escola europeia. Se você joga pela escola brasileira, eles não são
usados.
M.BC: Olha, você pode até ler as cartas sem os naipes. Até pq [porque] os
naipes seriam mais um complemento e não a principal informação. O que
prevalece são os símbolos. Porém, com os naipes, a sua leitura fica mais
enriquecida, pois se eles estão nas cartas do baralho cigano, significa que ali
contém informações. É como se você estivesse ignorando essas informações,
então não dá pra gente dizer que só pelos símbolos a sua leitura está realmente
completa! Falta alguma coisa e o que falta são as informações contidas nos
naipes. O que não significa que você não possa ler só pelos símbolos. Eu
acredito que, em algum momento, você vai precisar estudar os naipes.
Fonte: “Tarólogos e Cartomantes, Tiragens, Pitacos e Consultas”, Facebook,
2021

3.2 As polaridades

Discutimos na seção anterior sobre como os emblemas que compõem as cartas possuem
uma dimensão narrativa constitutiva. Além disso, há também uma segunda dimensão narrativa
que compõe o oráculo ligado à técnica que se usa para jogar, através da associação combinatória
das cartas. Temos aí, mais uma vez, uma distinção entre o Tarot e o Baralho Cigano, na medida
em que, no Tarot, a leitura simbólica da imagem através dos arquétipos permite que seja realizada
uma interpretação oracular partindo de uma carta por si só. Diferentemente do que se observa no
Sistema Lenormand, em que os emblemas produzem sentidos na medida em que conjugados.
Depreende-se que a construção dos significados na leitura não está associada às cartas
enquanto entes separados, mas nas suas inter-relações em termos de posições dentro de uma
tiragem. As cartas, não sendo determinadas um sentido negativo ou positivo em si mesmas, são
constituídas por significados ambivalentes, que apontam tanto para qualidades quanto defeitos,
que se efetivam a partir da sua relação com outras cartas.
Esse aspecto ambivalente constitutivo das cartas é denominado nativamente como
atrelado a sua polaridade. Cada carta detém características que lhe são próprias ligadas tanto a
aspectos positivos na vida de um consulente quanto negativos ou neutros. Seus significados não
são estáticos, mas variam conforme a pergunta que é feita ao oráculo, a estrutura da tiragem e a
sua relação com outras cartas ao redor, conformando uma predomínio de certas características
78

frente às outras. No grupo virtual onde realizei etnografia, de nome “Baralho Cigano, Tarot,
Oráculos e Feitiços”, foi feita uma pergunta questionando se a carta da foice tinha relação com
vidas passadas, o que levou a uma discussão em torno do caráter variável e movente do
significado das cartas. Uma internauta, participante do grupo, opinou no que tange a essa questão
da seguinte forma:
As cartas NÃO têm significado fixo. Foice por si só não significa nada. As
cartas têm energias e arquétipos 12 que vão ser lidos de acordo com cada tiragem
específica. Por isso o nome é interpretação de cartas, pois o significado vai vir,
necessariamente, interpretado da pergunta e associação com as outras tiragens
daquele jogo.
Cada carta tem quase um livro de explicação sobre a sua energia/arquétipo. O
baralho/tarot é um estudo pesado e denso, não existe manual resumitivo,
infelizmente. O que aconselho é: leia livros sérios sobre o estudo das cartas,
aprenda a entender a leitura energética, desapegar dessa visão cartesiana que é
comum, atualmente, de só entender algo se for preto no branco. No mundo das
cartas não há preto no branco. Tentar decorar significado vai te trazer uma
leitura engessada e pouco precisa, com muitas bolas foras, justamente porque
você vai acabar excluindo uma enorme gama de respostas que estão ali, mas
você não aprendeu a ler. A foice pode ser positiva ou negativa, pode ser final,
ou pode ser comemoração, pode ser indicativo financeiro, ou pode ser saúde,
emocional... inúmeros significados. Se vier uma pergunta sobre um problema
entre vizinhos, por exemplo, pode significar que esses problemas vão ter um
fim positivo pra você, ou pode significar que você vai ter que pagar uma
indenização de danos morais no processo que ele entrou contra você... tudo
depende das outras cartas que estão na volta.
Quanto menos cartas, menos precisa é a resposta. Quanto mais ampla for a
pergunta, menos precisa é a resposta. Isso tudo justamente pq cada carta por si
só não tem um significado fixo, ela tem uma energia e como energia que é, é
ampla e pouco específica. Para você transformar energia em ação, ou seja,
tornar essa energia ampla num movimento direcionado e específico você
precisa de meios de canalização (no caso do corpo humano, o músculo, por
exemplo, no caso do baralho, o oraculista), contexto (no caso do corpo humano,
o movimento que você quer realizar, como correr, por exemplo; no caso do
baralho, a pergunta) e ambiente (no caso do corpo humano, o chão/solo que
você vai correr, por exemplo; no caso do baralho, as cartas que saíram junto da
que você está analisando). E isso se replica para cada uma das cartas, moldando
totalmente sua interpretação para aquela tiragem alí. Espero ter conseguido dar
uma luz.
Fonte: “Baralho Cigano, Tarot, Oráculos e Feitiços”, Facebook, 2021.

Ainda que algumas cartas tendam a ser mais negativas ou positivas, o seu sentido só se
concretiza no contexto de uma leitura. No blog “Baralho da Cigana” (MAAPELLI, 2005), é
retratado, a partir de uma menção a mesma carta “A Foice”, a maneira como a noção de
polaridade é operacionalizada no curso da leitura, podendo trazer pontos positivos:

12
Vale ressaltar que, ainda que em termos teóricos alguns cartomantes diferenciam emblemas de arquétipos, na
prática esses usos são móveis e intercambiáveis..
79

Podemos exemplificar isso com a carta 10-FOICE. Qual o significado da Foice?


perdas, cortes, rompimentos, ajustes, algo será ceifado, términos… Enfim, ela
nos traz uma visão de que algo acabará, chegará ao fim muito em breve.
Levando em conta essa simbologia da carta podemos ter uma percepção de uma
polaridade negativa para a lâmina, portanto ela seria uma carta ruim no nosso
jogo. Será? Mas porque negativa e ruim em um jogo? Dependendo do que está
sendo abordado no jogo ou em uma situação específica de nosso consulente vejo
a foice como a carta mais POSITIVA que poderia existir naquela jogada. Uma
relação que está desgastada, um emprego “patológico”, uma situação que acaba
com a pessoa todos os dias (e se torna recorrente), um amigo ou pessoa próxima
que fala apenas coisas negativas e acaba sugando sua energia. Ufa!! Apareceu
a foice no jogo para acabar com isso e ela acaba nos mostrando que a situação
acabará. Precisamos de um desfecho melhor?” (MAAPELLI, 2015)

Existem também aquelas cartas consideradas de polaridade neutra. É o caso, por exemplo,
das cartas de número 28 e 29, conhecidas respectivamente como 28 - O cigano (também aparece
como O Homem ou O Cavalheiro) e 29 - A cigana (A Mulher ou A Dama), ambas possuindo um
papel singular dentro do sistema Lenormand. Essas duas cartas são denominadas nativamente
como cartas testemunhas ou cartas significadoras, uma vez que cumprem a função de referenciar
dentro do jogo oracular a pessoa que está sendo consultada ou uma outra pessoa na vida do
consulente. Não sendo nem negativas nem positivas, elas atuam de modo a localizar pessoas
dentro do jogo oracular. São frequentemente usadas no entendimento de certas questões
amorosas na medida em que produzem um quadro simbólico e relacional de análise entre duas
pessoas, de modo a possibilitar uma compreensão das conjunturas amorosas.
Nos contextos de leitura amorosa entre pessoas não heterossexuais, pude observar a partir
de diversas consultas com cartomantes que diferentes mecanismos são acionados no
encadeamento entre carta e consulente: alguns solicitam que a própria pessoa consultada escolha
qual irá ser, seja perguntando diretamente, seja pedindo que um dos números (28 ou 29) seja
escolhido; outros não fazem nenhum tipo de pergunta em relação a isso, interpretando a partir da
própria combinação das cartas quem é quem. As cartas testemunhas não se resumem, contudo,
a estrita descrição de situações amorosas. Quando encadeadas com cartas específicas podem
também estar relacionadas tanto a outras posições sociais, como de cunho familiar ou
empregatício, ou mesmo atrelado a questões espirituais.

3.3 Formas de Tiragem

No grupo “Baralho Cigano, Tarot, Oráculos e Magia”, os “pitacos” são os posts que mais
movimentam interações no dia-a-dia do grupo. Comumente associada à concepção de um
conselho não solicitado, os pitacos possuem um sentido singular no âmbito do grupo cartomantes
80

etnografado. Podem ser entendidos como postagens feitas por aqueles que buscam compartilhar
a interpretação que fazem da tiragem das cartas, no sentido de confirmar ou não aquilo que leram
ou de ampliar a miríade de interpretações possíveis da leitura, adensando os seus significados.
Emana daí um tipo de verdade oracular construída a partir do entrecruzamento de diversas
perspectivas que não se finda em um regime de verdade fechado, acabado. Pelo contrário, o que
se busca é o seu caráter polifônico, sempre inacabado, aberto para a multiplicidade, que viabiliza
que os sentidos das cartas variem conforme as relações que se encontram ao redor.
Vejamos como esse regime de verdade se produz etnograficamente, através da
exemplificação de um “pitaco” retirado do grupo, no qual a carta-testemunha de número 29, A
cigana, atua como representação da oraculista, ao mesmo tempo que aponta para a presença de
uma entidade espiritual que lhe guia:

Figura 14 – Post do “pitaco” sobre leitura de Baralho Cigano

Fonte: “Tarólogos e Cartomantes, Tiragens, Pitacos e Consultas”, Facebook, 2020.

C.D: Tive um sonho nessa madrugada que me fez acordar, não foi assustador
ou algo do tipo, mas sim intenso. Fiquei me questionando se o sonho foi um
ataque espiritual ou uma mensagem. Então abri o baralho e fiz uma pergunta.
Método usado: passado, presente e futuro
O sonho que tive foi um ataque espiritual?
Eu vejo que não, nessa leitura, para mim, o sonho veio como uma mensagem.
E quem me trouxe essa mensagem foi uma entidade feminina que me protege
espiritualmente. Lendo a partir do método utilizado, o coração na posição
passado fala de um sonho que eu tenho no meu coração há muito tempo e, como
a própria posição da carta, ficou por um período no passado, numa época em
que me dediquei completamente a ele. Na carta central, no presente, eu leio
como a cigana representando a mim mesma, sabendo das capacidades que
possuo, acho que essa carta pode estar trazendo a mensagem de que preciso de
mais confiança em mim mesma se quiser alcançar esse sonho, porque a carta da
cigana fala de uma mulher que sabe dos dons que possui e de como usá-los para
conseguir o que quer. A estrela como carta do futuro, me fala que eu tenho
81

proteção espiritual para seguir no caminho que desejo para realizar os meus
sonhos e conquistar as minhas metas, mas preciso me dedicar a isso, cuidar de
mim espiritualmente e mentalmente também. Eu acredito que a estrela é uma
carta muito positiva, só vejo ela de forma negativa quando relacionada com
ilusão e não ter o pé no chão. Porém, pessoas que brilham demais atraem muita
inveja, pessoas falsas e gente aproveitadora, então vou precisar me cuidar
dobrado. Essa foi a minha leitura. Ler para si mesma é um trabalho e tanto...
Como leram esse jogo? Pitacos?
Grata desde já. Optchá!13
L.D: Interpretei da mesma forma. Vá com o coração e siga o seu sonho, mas
com os pés assentes na terra e não se iluda.
J.N: Optchá!
N.L.: Uma mensagem linda, ainda mais ontem que teve eclipse né, trouxe
muitas revelações.
Fonte: “Tarólogos e Cartomantes, Tiragens, Pitacos e Consultas”, Facebook,
2020.

Quando nos propomos a refletir acerca dos métodos de tiragem que envolvem a prática
oracular, estamos percorrendo um caminho bastante complexo e, no caso do Baralho Cigano,
muito individual e próprio de cada praticante. Para além dos estilos de tiragens mais clássicos e
estabelecidos, há um grande campo de experimentação e inovação que pode variar conforme as
perguntas que são feitas pelos consulentes ou conforme os acordos que são feitos entre os
oraculistas e seus guias espirituais, caso os tenha. Contudo, independentemente das múltiplas
formas que os métodos de tiragem podem assumir, o mais comum é que no mínimo duas cartas
componham o jogo oracular, tendo em vista que:
... a técnica que se usa para responder às perguntas, que é a combinação, também
é narrativa, porque você tem as trinta e seis cartas que podem ser combinadas
de diferentes formas e você vai construindo células cada vez maiores. Então,
você tira no mínimo duas cartas, depois você tira três, cinco… Com duas cartas
você forma uma frase, né, a gente pode pensar, sei lá… A parte mais didática a
gente fala que é um substantivo e um adjetivo, mas enfim... Com duas cartas
você constrói uma frase, com três ou um bloco de nove, você constrói um
parágrafo. Quando você faz uma mesa real, você constrói uma narrativa da vida
da pessoa, porque você fala do presente, do passado, do futuro. É como se fosse
um roteiro de filme, assim. Então, eu entendo que o Lenormand é narrativo
nessas duas perspectivas, na concepção do símbolo, do emblema, e na técnica
que se usa para jogar. (Renata Berreta entrevista em agosto de 2021)

Com o tempo e a experiência jogando cartas, muitos cartomantes acabam por se


acostumar mais com um ou dois métodos ou, em outros casos, criam seus próprios métodos.
Entende-se que é o tipo de pergunta que estabelece qual o método de tiragem mais apropriado,
uma vez que certos métodos de leitura específicos são capazes de responder melhor certas

13
Optchá é uma forma de saudação ao povo cigano vigente no universo umbandista.
82

questões. Por isso, conhecer diferentes métodos possibilita ao oraculista responder à pergunta do
consulente de maneira mais específica, aprofundando-se com mais precisão na questão colocada.
A maneira como se pergunta ao oráculo também interfere de maneira importante nas
tiragens, influenciando seus resultados. Idealmente, as perguntas devem ser formuladas de
maneira objetiva, sem que contenha em si mesma mais de uma questão. Em uma publicação de
um “pitaco”, é assinalada a importância de se fazer uma pergunta adequadamente a fim de se
obter uma resposta oracular mais exata:

Figura 15 – Post do “pitaco” sobre leitura de Baralho Cigano

Fonte: “Tarólogos e Cartomantes, Tiragens, Pitacos e Consultas”, Facebook, 2020.

SB: Queridos amigos, retomei minha pós que estava trancada e faltava
praticamente só o TCC para concluir, mas a faculdade acabou de incluir mais
matérias e tirar meu desconto, e com o que vou pagar pra terminar agora eu
poderia fazer outro curso em uma área que tem mais a ver comigo. Eu estava
praticamente acabando esse. (Que na verdade eu nem gosto)
A primeira pergunta foi se eu deveria parar ou continuar o curso que estou. E
saiu: Navio, foice, coração e trevos. Eu entendi que deveria cortar a mudança
para outro curso.
A segunda pergunta foi: Eu deveria mudar para outro curso, no caso de
tricologia que tem mais a ver comigo? Saíram: coração, buquê, pássaros e carta.
Entendi que eu gosto dessa área e posso evoluir nessa área, mas estou confusa,
acho que estou interferindo na interpretação. O que vocês acham das duas
tiragens?
BC: “A primeira pergunta foi se eu deveria parar ou continuar o curso que
estou”
83

1° - seria bom você mudar a pergunta. As cartas nunca respondem o que você
deve ou não fazer! Elas não interferem no seu livre arbítrio.
2° - você fez duas perguntas em uma!
Agora fica difícil entender o que as cartas estão respondendo, se você continua
ou se para! Esse "OU" só atrapalha, poucas cartas só respondem o que você
perguntou: "Devo ficar com Pedrinho ou com Joãozinho?" As cartas caem na
mesa e aí? Elas estão falando de Pedrinho ou de Joãozinho? Não dá pra saber!
Eu perguntaria: "Quais as consequências de iniciar um novo curso?"; "Será
positivo continuar no mesmo curso?"
Fonte: “Baralho Cigano, Tarot, Oráculos e Feitiços”, Facebook, 15 de outubro
de 2021)
Quando nos debruçamos sobre as formas de tiragem, entramos dentro de um universo de
criação próprio nos quais os cartomantes possuem liberdade para produzir, conforme seu
exercício profissional, formas próprias de leitura. Contudo, alguns métodos de tiragem são
considerados canônicos e possuem modos de serem operacionalizados mais canonizados.
É o caso, por exemplo, da Mesa Real, também conhecida como Grand Tableau, e que é
considerada um método de tiragem avançado. Através dessa abertura, podem ser abordados
diversos temas que levarão a conversas distintas a respeito da situação da pessoa que está se
consultando. Existem duas formas de dispor as cartas na realização de uma Mesa Real, ainda que
em ambas as formas sejam utilizadas todas as trinta e seis cartas do BC: 9x4 ou 8x4+4, conforme
indicado abaixo:
Figura 16 – Exemplo de Mesa Real nos moldes 4x9
84

Fonte: Ciganos na Web14


Valendo-se das trinta e seis cartas que compõem o Baralho Cigano, as leituras são
efetuadas através do cruzamento entre as cartas e a leitura de quadrantes. Não está entre os
propósitos desse trabalho realizar uma descrição completa de como se realiza uma Mesa Real.
Contudo, abordando a centralidade desse método de tiragem no seu modo de operar com o
Baralho Cigano, Renata Taño coloca:
Eu sou apaixonada pela Mesa Real. Ela é o que me faz ficar muito também no
Lenormand, porque eu vejo a potência que tem. Eu acho que você pode fazer
uma mandala, você pode responder uma pergunta. Eu acho inclusive que a Mesa
Real moldou a minha forma como eu conduzo o atendimento ao longo dos anos,
ela me moldou demais. Porque eu levava cada susto, eu ficava “Não é possível
que tirando todas essas cartas e a partir da observação a gente consegue
realmente traçar uma linha narrativa do passado, do presente e de possibilidades
de futuro.” Eu acho que ele é uma bomba, assim, é uma coisa louca, é muito
completo. Eu dificilmente faço outra leitura, eu não faço “Ah quero só tirar duas
cartas fazer uma pergunta”. Eu não faço, passo para outro cartomante. Porque
assim, ainda que você tenha questões centrais que você queira investigar ou
entender, a mesa real te mostra o que está fora do seu campo de visão, ela te
mostra o que tem mais preponderância no momento, a gente analisa tanto as
combinações, quanto a disposição das cartas, então a primeira carta da mesa me
mostra muito sobre o presente, sobre o que a pessoa vem buscar. A primeira
coluna me mostra as situações que estão ativas naquele momento e que
interferem em todos os setores da vida. Depois a gente analisa a pessoa, os
pensamentos, o corpo, o que está perto, as preocupações. A gente analisa o
financeiro, o afetivo, enfim, se a pessoa tem uma perspectiva mais espiritual e
ela quer olhar, também dá para ver. Tem as questões emocionais, feridas e
traumas. Enfim, dá para ver tudo. Quando eu comecei, eu ficava cinco horas
lendo uma Mesa Real. (Renata Berreta, entrevista em agosto 2021)

Dessa forma, pode-se concluir que os métodos de tiragem são importantes na medida em
que influenciam nas respostas dadas pelo oráculo. A forma de se perguntar, juntamente com a
forma de se tirar as cartas balizam o entendimento do cartomante na forma como os diferentes
setores da sua vida se encontram e a maneira como eles se influenciam de tal forma que as
disposições das cartas permitem construir um cenário da vida do consulente nos seus diversos
âmbitos.

14
Disponível em: <https://ciganosnaweb.net/pagina/mesa-real-baralho-cigano> . Acesso em 11/01/2022
85

4. O sincretismo com os Orixás

4.1 O Tarot Cigano da Trybo Cósmica

Figura 17 – Capa do livro “Tarot Cigano: A Magia do povo do Oriente (1993)”

Fonte: Conversas Cartomânticas15


Dentre os aspectos inovativos relacionados aos usos do Baralho Cigano no Brasil, muitos
cartomantes assinalam o sincretismo entre as cartas que compõem o baralho com os orixás como
constituinte do seu saber-fazer atrelado ao manejo oracular.
Marcio Goldman, na obra “Observações sobre o sincretismo afro-brasileiro” (2003),
busca esquematizar algumas características do universo dos cultos afro-brasileiros. Tratando de
algumas características que compõem esse universo, Goldman advoga pela concepção de que
essas expressões mágico-religiosas estariam assentadas em uma cosmologia ou mesmo
ontologia, pautada em um monismo ou essência única que se diversifica em várias modalidades
e constitui tudo aquilo que existe no universo. Essa essência, chamada de Axé, pode ser
aproximada à concepção melanésia de Mana.
Além disso, essa cosmologia se desdobra em um sistema classificatório diversificado, na
medida em que tudo que existe no mundo pode ser agrupado conforme pertencente ao domínio

15
Disponível em:<http://conversascartomanticas.blogspot.com/2012/03/tarot-cigano-magia-do-povo-do-
oriente.html>. Acesso em 10/01/2022
86

de um orixá. Os mitos expressam a polivalência das divindades na sua capacidade de serem, ao


mesmo tempo, uma série de coisas, como forças da natureza (raios, trovões, rios, etc…);
instituições culturais (guerra, justiça) e também indivíduos que viveram no passado (reis, rainhas,
guerreiros…) (Goldman, 2003, p.6).
Esse processo, para os propósitos do entendimento em torno da relação entre as cartas do
Baralho Cigano e o Orixás, nos é especialmente interessante, porque, como buscarei argumentar,
fundamenta a associação entre os emblemas das cartas e as divindades afro-brasileiras no curso
da leitura oracular. Além disso, essa proposição de encadeamento entre tais universos pode ser
recuperada mais formalmente a partir do final dos anos oitenta, quando a Ordem Iniciática Trybo
Cósmica, localizada em Guaratiba - RJ e coordenada pela Ìyálórìṣà de Iemanjá Katja Bastos Katja
e o Bàbálórìṣà César Bastos, publicou o denominado “Tarot Cigano - A magia do Povo do
Oriente” (BASTOS, 2020).
Através da incorporação de uma entidade de nome “Rainha Cigana”, guia espiritual com
a qual a sacerdotisa trabalha, os princípios que balizam um encadeamento de associações com o
universos cosmológico afro-brasileiro foram organizados de maneira mais sistemática, trazendo
como enfoque o estudo das cartas do Lenormand associados aos Orixás, além de uma iconografia
repleta de simbologia ligada ao povo cigano.

Figura 18 – Katja Bastos durante leitura oracular com o Tarot Cigano

Fonte: Conversas Cartomânticas16

16
Disponível em: http://conversascartomanticas.blogspot.com/2012/03/tarot-cigano-magia-do-povo-do-
oriente.html . Acesso em 10/01/2022
87

Em entrevista disponível no canal “As cartas Ciganas Tânia Durão”, Katja Bastos
desenvolve um pouco mais da sua perspectiva em relação ao instrumento oracular:
Tânia Durão: Só mais uma pergunta, a Trybo Cósmica existe há quarenta anos.
E o Tarot Cigano?
Katja Bastos: O Tarot Cigano nós lançamos por causa da Rainha Cigana.
Tânia Durão: Também há quarenta anos atrás? Então, nasceu tudo junto?
Katja Bastos: [concordando com a cabeça] A Umbanda, olha que interessante,
a Umbanda tradição, porque a Umbanda você sabe que é brasileira e que nasceu
em Niterói. Caboclo das Sete encruzilhadas, Zélio de Morais, é bem interessante
você pesquisar, porque é bem legal... E a Umbanda tem cento e dez anos. Então,
cento e dez anos comparado com quarenta, eu acho que é um complemento, foi
um desdobramento. As próprias entidades trouxeram, então, quem nasceu
primeiro o ovo ou a galinha não sei te dizer, mas hoje é uma linguagem
simbólica e a gente se comunica através do Tarot Cigano. (DURÃO, 2018)

Da sua fala, é interessante ressaltar como Katja Bastos entende o surgimento do seu Tarot
Cigano como um desdobramento das relações com os espíritos, tal qual expressa no evento que
se sucedeu com Zélio Fernandino de Morais. Na versão proposta pela Trybo Cósmica, mudanças
de caráter iconográfico, simbólicas e nominais foram estabelecidas a fim de promover um
encadeamento entre os emblemas que compõem as cartas e os orixás. Vemos um conjunto de
procedimentos sendo operacionalizados a partir dessas alterações, tendo como objetivo a
composição de mundos comuns, a partir da sobreposição de territórios cosmológicos distintos -
o universo afro-brasileiro dos orixás e o universo católico que fundamenta os emblemas no
sistema Lenormand. Na sua versão, em específico, o encadeamento entre esses universos se dá
da seguinte maneira:

Quadro 3 - Relação entre as cartas e os Orixás segundo o Tarot Cigano da Trybo Cósmica

Número Nomenclatura no Baralho Nomenclatura no Orixá associado


17
da carta Cigano Tarot Cigano da
Trybo Cósmica18

1 O Cavaleiro O Mensageiro Exu

3 O Navio O Mar Iemanjá

5 A Árvore As Árvores Oxóssi

17
A título de referência, foi utilizada a nomenclatura proposta pelo cartomante André Montovanni na
obra “Baralho Cigano: tradição, teoria e prática” (MANTOVANNI, 2020)
18
Conforme apresentado anteriormente (ver p.32), Katja Bastos possui uma explicação própria para a
denominação de Tarot Cigano para sua versão do baralho, ainda que este opere segundo os princípios do
sistema Lenormand.
88

6 O Ventos Os Ventos Iansã

7 A Serpente O Arco-íris Oxumarê

9 O Ramalhete A Chuva Nanã

10 A Foice As Transformações Obaluaiê

13 A Criança A Criança Erê

20 O Jardim As Ervas Ossaim

21 A Montanha As Pedras Xangô

22 Os Caminhos Os Caminhos Ogum

30 Os Lírios Os Rios Oxum

31 O Sol O Sol Oxalá

Fonte: BASTOS, 2020

A partir da tabela acima, podemos ver que na proposição de baralho colocada pela Trybo
Cósmica, a alteração da nomenclatura baliza certos regimes de associação com os orixás.
Tratando, por exemplo, da alteração da nomenclatura da carta 10, “A Foice”, para “As
transformações”, Katja Bastos discorre:
A carta 10, no Tarot Cigano, é a carta das transformações. O que a gente vê?
Trigo, você vê aquele amarelo do trigo maduro, sendo ceifado, sendo cortado
para se transformar em pão. Então, a carta “A Transformação” é o processo de
transformação, porque o Orixá que se apresenta na carta 10 é Obaluaiê, que é
justamente o senhor da transformação. Obaluaiê não tem nada a ver com a
morte, tá? Obaluaiê é o senhor da transformação. Obaluaiê transforma a doença
em saúde, Obaluaiê transforma aquela folha que cai na beira da água em húmus,
para voltar ao ciclo da natureza, alimentar e voltar de novo. Então, esse círculo,
esse circuito, como eu digo, essa harmonia da natureza, quem coordena e faz é
Obaluaiê. Então, ver Obaluaiê só pelo lado negativo do cemitério, eu acho uma
pena, porque é pobre, porque ali tem corpos em decomposição, sim, mas a areia
da praia é muito mais Obaluaiê. O que é a areia da praia: é pedra com o mar
batendo, batendo, virando grãozinho. Então, é o processo de transformação em
essência. Como a beira do rio, aquela areia é Obaluaiê. Então, você quer
conversar com Obaluaiê, você quer se harmonizar com Obaluaiê, ao invés de ir
para o cemitério, vai para a beira da praia, vai andar na beira da praia, deixa o
mar lavar os pés, vai mentalizando, vai pedindo “Senhor da transformação,
transforma tristeza em alegria, transforma a escuridão em luz, transforma a
doença em saúde. Ué, quem coordena o processo é ele. (...) Tanto que no
fundamento, qual é a principal comida de Obaluaiê? São as flores das pipocas,
porque é milho que se transformou em pipoca e vira flor, desabrocha. Então são
89

as flores, porque você olha e é flor, né, mas é uma flor que era um grão de milho.
E um detalhe, quando a gente faz a comida de Obaluaiê, você faz com a areia
da praia, você não faz com óleo nem com manteiga. Você faz as flores
desabrocharem com a areia da praia. (DURÃO, 2016, grifo meu)

Da mesma maneira, alterações na iconografia são procedimentos importantes acionados


pelos agentes por meio do qual mundos comuns são construídos a partir da associação entre os
emblemas e os orixás. Na figura abaixo, podemos ver comparativamente os processos que
balizam as operações de transformação realizadas no Tarot Cigano, segundo a proposição da
Trybo Cósmica. Na versão de André Mantovanni (2020), localizada à esquerda, vemos um fluxo
de vento que leva algumas folhas mortas consigo e enverga a única árvore presente na imagem,
também de aparência morta. O solo árido se encontra ressecado e com rachaduras. As cores
predominantes nessa versão são o azul do céu e o amarelo da terra seca. Por outro lado, na versão
da mesma carta, proposta por Katja Bastos, vemos uma radicalização da ideia de movimento e
força, expressa na turbulência do mar e da tempestade.

Figura 19 – Imagem comparativa da carta 6 “Os ventos” em duas versões do Baralho Cigano

Fonte: BASTOS, 2020; MANTOVANNI, 2020

A terra árida dá lugar a um mar em movimento intenso, arrebatador, indicando a


prevalência de uma tempestade marítima, com raios no centro da imagem. Da mesma maneira, a
cor que predomina é o vermelho, associado às próprias cores do Orixá Iansã. Discorrendo sobre
90

tal carta, Katja Bastos assinala:


A carta 6, a carta dos ventos, na própria figura também, o que você vê são raios,
nuvens, movimento. Aqui embaixo você vê que é o mar sendo virado pela força
do vento, quer dizer, você sente que o vento está presente, que o vento está
atuando, que o vento está se manifestando. E esse Orixá, Iansã, ela é o
dinamismo do vento, ela é uma guerreira. Ela vem aqui, vem ali, ela acelera, ela
realiza, ela traz vitória. Então, é uma carta de movimento e é uma carta de
dinamismo. Iansã é bem isso. A gente também procura “botar” as cores do
Orixá. Então, Iansã é vermelho, laranja, vinho, então as cores [estão] também
na própria carta, a gente procura passar o fundamento de qual é a característica
do orixá, como é que ele se apresenta, como é que você pode trabalhar com ele.
Então, no Tarot Cigano, o que a gente vê, quando sai a carta seis, a gente pede
calma e cautela, porque as vezes no meio das nuvens a gente se envolve e não
enxerga as coisas com clareza. (DURÃO, 2016; grifo próprio)

Através das falas de Katja, nota-se que aquilo que parece nortear as transformações
observadas, seja na iconografia, seja na nomenclatura, possibilitando o encadeamento entre esses
universos, está atrelado à noção de fundamento. Rohde (2010, p.11) propõem um entendimento
possível em torno do fundamento como sendo as bases sólidas e processualmente constituídas –
numa metáfora arquitetônica –, tanto materiais/culturais como também espirituais/filosóficas,
que caracterizam uma via espiritual-religiosa como a umbanda em sua complexidade e
pluralidade. Nesse sentido, abarca não apenas a base material e cultural do culto, as coisas de
que se pode falar sobre e também os seus segredos iniciáticos, a ancestralidade dos códigos
simbólicos, dos objetos de culto, das práticas, etc., que caracterizam cada casa/linha de umbanda
- sendo particulares para cada lugar, para cada modo de fazer -, mas também os fundamentos
filosófico-espirituais, pressupostos dentro da constituição de uma cosmovisão básica, que é
aquilo que muitos interlocutores afirmam serem os fundamentos essenciais da umbanda quando
perguntados a respeito.
Trata-se de compreender o fundamento na sua perspectiva fronteiriça e multifacetada no
sentido de abarcar tanto o movimento, a transformação e a fluidez, tão próprias desse universo,
quanto a preservação relativa de noções centrais de cosmovisão e dos modos de fazer humanos,
ou seja, de elementos das culturas pelos quais as pessoas prezam, no sentido de constituir uma
tradição viva. Dessa forma, é através da manutenção e da conservação das características
fundamentais de cada casa, cada linha e cada tradição, com relativa liberdade formal de
transformação de acordo com os fluxos dos acontecimentos que os terreiros experienciam, que
se encontra a força vital - o axé - das pessoas e do grupo em sua relação com o universo espiritual.
Na sua obra Festa de Nossa Senhora dos Navegantes em Porto Alegre: Sincretismo entre
Maria e Iemanjá (2009), José Carlos Gomes dos Anjos e Ari Pedro Oro propõem uma
conceitualização antropológica do fundamento que, ainda que inspirada no seu conceito nativo,
91

não são a mesma coisa. Os autores advogam pela concepção de que o fundamento é o elo
relacional que permite o encadeamento entre ícones sagrados distintos. Buscando discutir a
insurgência da festa devocional de Nossa Senhora dos Navegantes, na cidade de Porto Alegre,
ambos autores a concebem como um espaço sincrético de encontro entre duas figuras femininas
divinizadas: Iemanjá e Nossa Senhora.
Para isso, os autores se afastam de uma perspectiva pautada em um distanciamento
crítico, voltado para uma série de procedimentos ligados ao desvelamento dessas práticas a partir
de uma racionalidade científica além das perspectivas conscientes dos devotos. Nesse aspecto, é
acionada uma perspectiva em torno do sincretismo que não seja "legislativa", isto é, tomando-o
como destino inevitável ou tomando sua recusa como “antinatural”.
É nesse aspecto que os autores buscam, de um lado, evitar o sociologismo na abordagem
de práticas que se autodenominam de religiosas, ao mesmo tempo em que evitam ocupar um
lugar autorizado de exercício de proselitismo. Na concepção dos autores:
Se tomarmos o sincretismo como conjunto de procedimentos de composição de
mundos comuns, podemos dispensar as pretensões das metodologias científicas
e, humildemente, nos propomos repetir, na forma do aprendiz de feiticeiro, o
procedimento diplomático dos nossos interpelantes, no modo de misturar e
separar porções cósmicas. (ANJOS & ORO, 2009, p.6)

Aquilo que se mostra como inovador dentro dos esforços de teorização de Oro e Anjos
está nas suas preocupações em produzir uma reflexão sobre o sincretismo pautada em
procedimentos que abarquem tanto os esforços de certos agentes em compor certas porções
cósmicas como encadeadas, quanto entre aqueles que buscam separá-las, interrompendo o fluxo
entre certos encadeamentos de ícones. Com isso, recolocam o debate em torno dessa temática a
partir de outros termos, sem a pretensão de achar uma solução definitiva para o “problema do
sincretismo”, mas antes tratar seus interlocutores como portadores de filosofias plenas que
emanam das suas experimentações ativas no curso das suas vivências religiosas, que podem
culminar, no contexto de uma controvérsia religiosa, em diversas posições possíveis em jogo.
Esse tipo de postura dialoga criticamente com algumas perspectivas clássicas em torno do
sincretismo, tomadas por certos autores como um fenômeno universal. Para Pierre Sanchis, tratar
dos processos sincréticos não estaria ligado, conforme a tradição culturalista pensava, de formas
de confusão ou mistura de naturezas substantivas distintas, mas da afirmação da universalidade
de um processo, de caráter imprevisível, polimorfo, relacionado à construção coletiva de
homologias de relações. Contudo, para além da:
legitimidade analítica do conceito de sincretismo (…) esta reabilitação está
ainda balbuciante (…). Alguns grupos, religiosos ou políticos querem afirmar
uma identidade definida e única, afinal “desalienada” e “purificada” de qualquer
92

sincretismo; outros (…) sentem-se agredidos pela categoria e recusam-se a


utilizá-la em relação a si mesmos (SANCHIS, 1994, p. 10).

A postura analítica tomada por Sanchis, ao priorizar um entendimento voltado para a


universalidade do processo e ao desvelamento dessas práticas a partir de uma racionalidade
científica, acaba por colocar posições contrárias ao sincretismo tomada por certos atores como
um tipo de “entendimento errôneo” do mundo social, pautados em certos “ideais ilusórios de
pureza”. Como caso paradigmático, podemos assinalar a posição tomada por Mãe Stella de
Oxóssi, quinta Iyalorixá do Ilê Axé Opô Afonjá em Salvador, que, ao assumir a liderança do
terreiro, promove certas mudanças paradigmáticas na maneira como os cultos candomblecistas
se operacionalizam em Salvador, no que tange ao rompimento com o sincretismo religioso no
início dos anos 1980.
Em 1983, cinco Ialorixás dos mais conhecidos dentre os terreiros de Salvador lançaram
um manifesto expresso na publicação de dois documentos, sendo o primeiro deles datado de 27
de julho e o outro publicado em 12 de agosto de 1983, após a realização do II Conferência
Mundial da Tradição dos Orixás e Cultura (CONSORTE, 2009, p.190). Estava entre os objetivos
do manifesto a afirmação do candomblé como religião e o repúdio a sua qualificação como seita
ou animismo primitivo. Contudo, a imprensa, principalmente a partir da publicação do primeiro
documento, deu enfoque à “recusa do sincretismo”, o que na verdade pode ser entendido muito
mais como uma decorrência da primeira posição na perspectiva das suas signatárias
(CONSORTE, 2010, p.196-197).
Do manifesto, podemos retirar o objetivo central de defender a legitimidade do
Candomblé enquanto religião, que embasa uma perspectiva de não necessidade do sincretismo,
na medida que este aparece como uma “marca da escravidão econômica, cultural e social” que a
população negra e seus descendentes ainda sofrem (CONSORTE, 2006, p.72-73).
Buscando travar diálogos com perspectivas distintas em torno do sincretismo, como
aquelas apresentadas acima, José Carlos Gomes dos Anjos e Pedro Oro valem-se das múltiplas
possibilidades que se abrem a cada experimentação que seus interlocutores se engajam no que
tange aos atos, modos de existência e problematizações acionadas frente a tal fenômeno. É nesse
momento que a ideia de fundamento aparece como o elo que viabiliza ou não as possibilidades
de sincretismo no âmbito da teoria antropológica que os autores propõem.
Segundo eles, a crítica da religiosidade afro-brasileira gira em torno da possibilidade de
se carregar ou não o fundamento a partir da controvérsia cosmopolítica instaurada pela proibição
do culto fluvial narrada na sua obra. O fundamento é entendido, nesse contexto, como um
93

encadeamento entre características do Orixá e o ícone como intensidade que singulariza as


dimensões sagradas da divindade, no caso, o mar como sendo Iemanjá em si mesma. O
fundamento é a relação, expressa no encadeamento entre ícones sagrados, que por sua vez podem
ser definidos como:
Um ícone é aqui tudo o que pode se destacar para se associar a uma cadeia
prévia de relações: um brinco se associa à feminilidade da Iemanjá, que se
associa à beleza da efetuação, que se associa ao pensamento como a
intencionalidade do que se efetiva e, assim, prossegue a cadeia cotejada pelos
rituais adequados de encadeamento. É a cadeia que torna possível oferecer
brincos à Iemanjá em um pequeno barquinho de quarenta centímetros, azul e
branco, portando canjica, mel, agradecimentos e solicitações renovadas.
Adereços podem virtualmente se destacar do fundo indiferenciado do profano
para se articular a uma cadeia em processo de sacralização (ANJOS & ORO,
2009, p.79)

O sincretismo só é possível se os fundamentos estiverem respeitados, sendo definido em


um segundo momento enquanto um encadeamento adequado de ícones numa série sagrada, por
oposição à série profana (ANJOS & ORO, 2009, p.90). De todo modo, os autores se distanciam
de uma definição de sincretismo no sentido de hibridação de dois sistemas religiosos, tal qual
teorizado por certos autores no início do século XX, em que a imagem do cruzamento das
diferenças está mais próximo de certo modelo biológico (ANJOS, 2008, p.80), em que espécies
diferentes se mesclam numa resultante que seria a síntese mulata, resultante da mistura de valores
de origens diversas.

4.2 O fundamento como elo articulador

No que tange à possibilidade de sincretismo com os orixás, vimos como, no caso do Tarot
Cigano da Trybo Cósmica, uma série de procedimentos foram tomados no sentido de promover
alterações de cunho imagético, simbólico e nominal que possibilitasse a preservação do
fundamento de cada orixá na sua relação com a carta. Renata Berreta, que se vale dos
ensinamentos passados pelo Tarot Cigano, nos mostra como a associação com os orixás é
operacionalizada na prática:
Se eu faço uma mesa real, primeiro eu considero para quem eu estou lendo,
porque esse é um tipo de linguagem [dos orixás], um tipo de conteúdo que nem
todo mundo acessa, não faz sentido, então também não vou ficar falando, né…
Isso também acontece para além da questão dos orixás, porque como eu tenho
essa questão forte com os desencarnados, então facilmente eu vejo
desencarnados nos jogos de todo mundo através das cartas, além da minha
percepção, muitas vezes eu não falo, mas as cartas na minha forma de entender
o oráculo tem várias formas de localizar encosto. (...) E como é que essa
dimensão, essa segunda camada de sentido se manifesta? Eu uso a proposta da
94

Katja mesmo. A Katja propõe que, a partir da carta 11, que é a carta “A magia”,
com uma carta que representa o orixá, você tem a manifestação daquela energia
naquele jogo, relacionada a determinado assunto. Então, se faz sentido para a
pessoa, eu uso aquela combinação. Então, é uma combinação específica que me
mostra essa segunda camada de sentido em um jogo complexo. Então, assim,
se eu tenho a carta 11 do lado da carta 6, eu sei que eu tenho a presença da
energia de Iansã. A carta 11 com a carta 30, eu sei que tem a questão da presença
de Oxum. Com a 31, de Oxalá. Enfim, aí eu vejo a qual assunto aquilo está
relacionado e como a gente pode trazer aquilo para a interpretação. Então, você
pode mobilizar as principais características daquele orixá, o que ele representa,
trazer aquilo para o aconselhamento. Se para a pessoa faz sentido, ela pode fazer
uma oferenda, ela pode se conectar com o elemento da natureza que ele
representa. Um pouco nesse aspecto, tem várias formas de trabalhar com essa
questão, mas também a gente pode fazer tiragens específicas para aquele orixá.
Colocar o orixá como elemento significador: “Ah, então eu quero fazer uma
pergunta, pedir um conselho para Oxum”. Para essa energia, para essa força da
natureza, mobilizar o que ela representa. Quero fazer uma pergunta e aí eu faço
uma tiragem específica também. São essas duas formas. (Renata Berreta,
Entrevista em agosto de 2021)

Discorrendo sobre esse processo, contudo, Taño advoga pela perspectiva da


heterogeneidade no que tange às possibilidades de sincretismo, sem que o processo se resume a
uma proposta em específico, como a do Tarot Cigano da Trybo Cósmica:
Quando eu achava que tudo se resume àquilo, eu não achava nenhuma
divergência, mas quando eu comecei a pesquisa, eu faço parte de alguns grupos
de pais e mães de santo que aí eu comecei a conversar com pessoas do Brasil
todo e fora do Brasil, eu recebi mensagens de pessoas que associavam os orixás
a outras cartas. Então, por exemplo, no baralho da Katja, na proposta dela, há a
associação entre Oxum e a carta 30, dos lírios ou dos rios. Eu conheci pessoas
que associam Oxum à carta 24, que é a carta do coração. Eu aprendi através de
um baralho que bebeu da fonte da Katja, então para mim, na minha prática, tem
muita lógica e eu uso essa associação dos arquétipos dos orixás a partir do
elemento da natureza que representa aquela carta. Então, se eu tenho no
emblema original a carta do Mar, ela responde à Iemanjá.(...) Essa foi uma
escolha que eu fiz, inclusive, no [meu] livro quando eu coloco o significado das
cartas, eu coloquei os nomes dos elementos da natureza nas cartas, então, a
minha carta 3 é a carta do mar. A minha carta nove é a carta da chuva, não é o
ramalhete. O significado é o mesmo, mas eu sublinho, por uma questão de
escolha, sublinho essa relação com os elementos da natureza para abrir essa
porta para os arquétipos dos orixás, a partir desse ponto. Então, a escolha da
Katja é muito coerente, mas tem outras. E tem muitas outras. (Renata Berreta,
Entrevista em agosto de 2021)

Essa prática, contudo, não deixa de promover certas controvérsias no campo religioso, na
medida em que diferentes concepções do que constitui o fundamento parecem se mostrar em
voga. Para alguns, a própria possibilidade de encadeamento entre as cartas enquanto oráculo com
os orixás fere certas concepções de fundamento:
Tem também uma outra questão que fica sempre muito em pauta aí: que os
orixás já têm um oráculo que responde por eles, que são os búzios. E os búzios
95

é uma ferramenta utilizada dentro do Candomblé. A umbanda não usa, né. Mas
a Umbanda, cada vez mais, usa as cartas. Então, para quem joga búzios e para
quem é do Candomblé, só os búzios dizem quais são os orixás. Mas para um pai
ou mãe de santo não é isso dentro da umbanda. Tem muitos pais ou mães de
santo que falam os orixás de cabeça, de juntó, a partir de outras técnicas de
delimitação que não são os búzios. (…) primeiro que isso é muito importante
dentro do Candomblé. No Candomblé, a cabeça tem uma importância muito
grande, o Ori é onde mora a alma, então você precisa consagrar sua cabeça para
um orixá específico e isso vai reger o seu caminho espiritual, o seu
desenvolvimento, né. É muito importante. Dentro da Umbanda, você não tem
isso. Claro, são muitas umbandas, mas eu acho que a explicação que eu gosto
mais sobre isso é que, na nossa coroa, a gente tem a irradiação de todos os
orixás, da energia de todos os orixás. (Renata Berreta, Entrevista em agosto de
2021)

Nessa perspectiva, é a própria dimensão daquilo que é oracular e que responde aos orixás
que se encontram em pauta. No grupo virtual etnografado, pude acompanhar como os atores do
grupo, enquanto plenamente teóricos, discutiam suas perspectivas em torno da questão,
mostrando como suas experimentações se dão em torno dessa temática e como certos regimes de
associação de territórios sagrados são problematizados, recusando algumas modalidades de
composição de mundos e propondo outras (ANJOS & ORO, 2009, p.77). Foram selecionadas
algumas respostas estrategicamente, dentre as 64 obtidas, as quais acredito serem capazes de
resumir um pouco das discussões em torno dessa temática, na sua polifonia de posicionamentos:

S.S: Associar o baralho cigano ou tarô aos orixás você concorda ou


discorda?
M.M: Concordo. Acho que é possível sim, inclusive é na escola brasileira que
fazem isso, não é? Até porque atualmente há "várias versões" do Baralho
Cigano. Para quem acredita nos Orixás, acho que até faz sentido nesta
associação, mas se o consulente não crê, de que adianta falar sobre Iemanjá,
Pomba Gira, malandro, cigano, Oxum, Xangô e etc?

S.S: Vou da minha opinião e cada um tem a sua. Eu discordo. Acredito que cada
ferramenta de uso oracular tem sua finalidade e sua forma de uso.

S.C: Concordo em sincretismo, "energia do mar" tal qual "Iemanjá"... "Energia


de prosperidade, fartura da carta da árvore" tal qual Oxóssi…

M.M: Não acredito que um cartomante ou tarólogo vá falar coisas como "seu
orixá é tal" ou "sua Pomba Gira é fulana" ou "vejo aqui que você precisa fazer
trabalho tal", mas acredito que no BC dê para fazer associações das energias, eu
não só vi como senti isso. No primeiro curso que eu fiz, seguia a escola
brasileira e com isso, a minha professora ensinou que a carta do ramalhete
estava ligada ao povo cigano. Quando caiu a carta do caminho + ramalhete, eu
senti na mesma hora a presença da minha Pomba Gira cigana e a professora
também. Embora a entidade não respondesse no Baralho Cigano (para isso há
os búzios), ela apareceu na tiragem como quem falasse "eu estou aqui no seu
caminho e estou ao seu lado cuidando de ti".
96

Uma vez caiu a foice e eu pude sentir o meu exu caveira do meu lado.
Quando eu estudava BC, eu sentia a energia da minha Pomba Gira a ponto de
suar e sentir calor, ai eu descobri que a minha pomba gira jogava cartas e por
isso comprei cartas da minha Pomba Gira. Só que eu, M., estudo o Petit
Lenormand, sigo a escola alemã, não jogo incorporada, tudo o que eu leio e sei
é devido a cursos e ao estudo, além da prática, é claro. Como eu disse
anteriormente, como eu poderia falar para alguém que não é da umbanda ou
candomblé que eu sinto a energia de Iemanjá ou de qualquer outro orixá no jogo
dela?!?! Por isso, prefiro seguir a escola alemã e só faria talvez, algum tipo de
associação com orixás e entidades se a pessoa fosse da religião ou se fosse algo
gritando do meu ouvido, caso contrário, sempre sigo a escola alemã, embora eu
tenha iniciado meus estudos com a escola brasileira.

V.G: Mais ou menos. Você consegue enxergar a energia que está te rondando
sim, seja uma entidade ou Orixá, mas nunca vi eles respondendo pelo baralho
cigano. No caso de Orixá a resposta é apenas por búzios.

W.D: Eu associo minhas cartas ciganas aos orixás. Não vejo problema, mas
nem sempre eu leio aquela carta com o orixá que eu associo a ela. Só quando
sinto de falar algo. Acho que não é errado associar, desde que se tenha prudência
e saiba fazer as coisas no momento que elas são pedidas.

L.E: Eu não gosto. É uma mistura forçada (porque no fim não tem nada a ver
uma coisa com a outra, as associações são criações pessoais e socioculturais).
Eu tenho um deck cigano muito lindo, mas o livro é péssimo. Não vou citar,
claro, mas o autor ao invés de explorar o riquíssimo simbolismo cigano, se perde
falando majoritariamente dos orixás. Não estou diminuindo ou menosprezando
as tradições africanas (que também fazem parte da minha vivência) mas uma
coisa é uma coisa e outra é outra. Exu é Exu, não é o mensageiro da primeira
carta do baralho cigano apesar de ter algum grau de semelhança. Ele, e todos os
outros orixás vão se manifestar, responder em um outro oráculo, não nas cartas.

Fonte: “Tarólogos e Cartomantes, Tiragens, Pitacos e Consultas”, Facebook,


2020.

Nesse aspecto, entre aqueles que se posicionam a favor do sincretismo entre as cartas e
os orixás, é ressaltada a potencialidade em produzir novas associações no curso da leitura nos
contextos em que as mesmas fazem sentido em serem abordadas, como entre outros umbandistas,
bem como em fazer sentir a “presença”, expressa, principalmente, a partir de efeitos sensoriais
no corpo. Por outro lado, entre aqueles que problematizam tal regime de associação, compreende-
se comumente que os orixás já possuem um oráculo que responde a eles, tendo seus propósitos e
formas de uso próprios. Em última instância, é também em torno da noção de fundamento que se
problematiza a mistura entre essas porções cósmicas.
Quais as consequências advindas dessa proposição? Em primeiro lugar, é possível inferir
como o fundamento opera como elemento articulador da tradição, não como uma força inerte,
mas como um elo político que baliza as possibilidades ou não de transformação e mistura entre
97

porções cósmicas contextualmente. Nesse sentido:


Quando falo de tradição não me refiro a algo congelado, estático, que aponta
apenas à anterioridade ou antiguidade, mas aos princípios míticos inaugurais
constitutivos e condutores da identidade, da memória, capazes de transmitir de
geração a geração continuidade essencial, e ao, mesmo tempo, reelaborar-se nas
diversas circunstâncias históricas, incorporando informações estéticas que
permitem renovar a experiência, fortalecendo seus próprios valores. (SANTOS,
2002, p.112)

Além disso, cada terreiro atua como um epicentro de fundamentações próprias que podem
ou não convergir quando tratamos dos seus autoentendimentos em torno da tradição e do seu
saber-fazer atrelado à execução dos rituais. À luz do pensamento de Goldman (2003), podemos
dizer que os cultos afro-brasileiros são atravessados por um duplo sistema de forças: centrípetas,
voltadas para a codificação e unificação dessas religiões, e centrífugas, que atuam de modo a
pluralizar as variantes do culto, acentuando suas diferenças. O fundamento, nesse contexto, é
propriamente o elo fronteiriço entre essas dimensões, que se expressa no fato de cada terreiro ser,
de maneira autônoma e autêntica, um produtor de fundamentos, ao mesmo tempo em que é
empiricamente verificável suas possibilidades de manipulação, reinterpretação e cisão, de forma
a renovar a sua própria experiência, produzindo entendimentos particulares do que configura uma
prática tradicional.
Por fim, a cosmopolítica que perpassa a construção do fundamento não é meramente um
produto dos humanos. Vimos no capítulo em questão como os fundamentos que balizaram a
associação entre os orixás e as cartas do Tarot Cigano da Trybo Cósmica (BASTOS, 2020) foram
constituídos a partir da incorporação de uma entidade específica, a Rainha Cigana, o que nos dá
pista acerca da ideia de que, no universo umbandista, os espíritos podem ser entendidos como
agentes produtores de fundamento.
Atuando dentro de contextos particulares, as entidades reelaboram o saber-fazer
umbandista em diversas circunstâncias históricas, trazendo novos conhecimentos necessários
para se lidar com as situações imprevistas com as quais os terreiros se defrontam. Isso coloca a
necessidade de se pensar a atuação desses espíritos dentro de suas particularidades etnográficas,
de modo a repensar o lugar que essa dimensão centrífuga ocupa, no sentido de produzir
entendimentos distintivos em torno do fundamento. Como Goldman observa:
O que chama a atenção nos “estudos afro-brasileiros” é justamente o não
reconhecimento desta ambiguidade fundamental e a consequente tendência a
ignorar ou desprezar a dimensão centrífuga, tratando-a como uma espécie de
defeito de funcionamento do sistema. Trata-se, como mencionei acima, da
sombra do modelo cristão que, como se sabe, desenvolveu-se historicamente
através de uma luta contra as “heresias” e de um esforço para suprimir tudo o
que se afastaria do “dogma”. (GOLDMAN, 2003, p.8)
98

Na mesma chave argumentativa, Rohde também assinala que:


Aliás, a noção de cultura como estrutura parece ser a que embasa as análises
predominantes do universo umbandista, e até mesmo das religiões de matriz
africana de um modo geral, em detrimento de uma noção de cultura como
mediação para a ação, que comporta a atualização, a imprevisibilidade, a
adequação dos sistemas simbólicos-religiosos à experiência e às necessidades
específicas de cada ator (no sentido de quem age, não de quem representa um
texto), local e momento, enfim, uma noção de cultura que comporte essas
características evidentes do universo umbandista que chamo aqui de abertura e
movimento. (ROHDE, 2010, p.14)

Penso que talvez essa tendência a ignorar ou desprezar a dimensão centrífuga,


responsável por pluralizar as variantes dos cultos afro-brasileiros e construir singularidades,
conforme mencionada por Goldman, possa estar atrelada a alguns vícios no campo antropológico
derivados da centralidade dada à cultura como o “verdadeiro objeto da investigação
antropológica”. Poderíamos dizer que o conceito de cultura tem sido importante dentro das
reflexões antropológicas graças à distinção fundamental entre um eu e um outro que nela subjaz.
Os terreiros se encontrariam, contudo, dentro de uma encruzilhada, entre muitas outras presentes
no universo umbandista, entre a necessidade da cultura, produtora de distinção entre um eu e um
outro, e a necessidade de superação da cultura, no sentido da compreensão de que os fundamentos
espirituais da religião estão para além das diferenças, das particularidades culturais (ROHDE,
2010, p.11).
É possível elencar certos desafios para a própria forma como a textualidade acadêmica se
constitui ao se debruçar sobre esse universo, principalmente no que tange a aplicabilidade do
conceito de cultura. Alguns autores têm argumentado que teorias culturais costumam
superenfatizar a coerência (ABU-LUGHOD, 1990; ABU-LUGHOD, 2018), bem como produzir
efeitos de homogeneidade e atemporalidade, a fim de viabilizar generalizações, tão próprias ao
modo e estilo característicos da escrita das ciências sociais. Para Teixeira Coelho (2008), os
entendimentos normativos da cultura são produzidos e utilizados por ideólogos interessados na
afirmação e na defesa de identidades específicas e também por intelectuais acadêmicos em suas
análises, sempre aspirantes à segurança na definição de algum fenômeno social, o que é
fundamental na carreira de um especialista. Clifford também assinala que “a disciplina de uma
antropologia respaldada pelo trabalho de campo, ao constituir sua autoridade, constrói e
reconstrói a coerência de outros culturais e si-mesmos intérpretes” (CLIFFORD, 1988, p. 112).
Generalidade, coerência, atemporalidade e homogeneidade são alguns perigos colocados
pela noção de cultura. Poder-se-ia argumentar que antropólogos/as usam “cultura” de maneiras
mais sofisticadas e consistentes, e que seu compromisso em a utilizar como ferramenta analítica
99

é mais sólido. Ainda assim, seu uso não parece garantir escapatória de uma tendência a tais
características, tão estranhas ao mundo umbandista, dada a sua complexidade, seus desvios,
maleabilidades e aberturas radicais.
100

CONCLUSÃO
Este trabalho buscou perseguir os caminhos percorridos pelo Baralho Le Petit Lenormand
em solo brasileiro na maneira como a experiência mágico-religiosa da cartomancia se transforma
nesse contexto, matizada pelas práticas e pelo saber umbandista.
A partir inicialmente de um resgate histórico em torno da trajetória percorrida pelo Baralho
Le Petit Lenormand, oráculo europeu que dá a forma estrutural ao Baralho Cigano no Brasil,
busquei de forma exploratória construir um panorama, sem a pretensão de dar conta de todas as
referências ao baralho já descritas, das múltiplas influências socioculturais ligadas a tal manejo
oracular. Vimos como a cartomancia chega ao Brasil durante o século XIX em um momento de
ascensão de uma diversidade de práticas relacionadas ao oculto, as quais certos autores
denominam de “o século profético” (MINOIS, 2016). Uma série de práticas, envolvendo contato
com espíritos, mesas volantes, sonambulismo e magnetismo chegam ao Brasil, como práticas
eficientes no terreno da cura e da terapêutica, demarcadas em termos de gênero, rapidamente se
associam à cartomancia em termos de execução.
Da mesma maneira, a influência dos cultos afro-brasileiros sobre as práticas de cartomancia
pode ser observada a partir de trabalhos acadêmicos inaugurais na temática dos estudos de
religião afro-brasileiros, a partir de autores como Nina Rodrigues. Contemporaneamente,
trabalhos no campo acadêmico brasileiro reafirmam a mesma confluência entre essas práticas,
salientando a incorporação do uso do Baralho Cigano por diversos pais e mães de santo
umbandistas na sua atuação como oraculistas, entendendo essa prática profissional como uma
das dimensões do seu exercício sacerdotal.
A forte influência dos cultos afro-brasileiros sobre essas práticas me levou a compreender
que muito daquilo que perpassava o saber-fazer atrelado ao Baralho Cigano estava ligado à
maneira como os cultos afro-brasileiros, notadamente o campo umbandista, vem matizando essas
práticas com seu próprio saber, de forma a promover uma série de transformações no que se
refere a maneira como se relacionar com a dimensão oracular do baralho.
Essa confluência entre as práticas de cartomancia que se valem do Baralho Cigano e a
cosmologia umbandista, durante o andamento da pesquisa, pareceu se contrastar com uma
ausência de indícios orais ou documentais que remetem ao uso histórico desse mesmo oráculo
entre ciganos étnicos, o que poderia explicar a sua denominação enquanto tal. Quando tratamos
de uma perspectiva cigana, conforme colocada pelo conjunto de práticas e rituais que perpassam
o uso do Baralho Cigano, não necessariamente encontramos um certo tipo de respaldo dentro da
tradição étnica cigana.
101

Exatamente por isso, busquei abrir mão de um certo objetivismo histórico para
compreensão desse fenômeno para propor a concepção de que o que se encontra no cerne dessa
denominação é propriamente uma questão antropológica, relacionada à forma como a
cosmologia umbandista constrói seu culto aos ancestrais ciganos na sua articulação com a
diferença - fundamentalmente uma problemática ligada à construção de uma relação entre
territórios cosmológicos distintos. Nesse sentido, uma das teses centrais que embasa esse trabalho
é a concepção de que o Baralho Cigano se constitui a partir de uma forma própria a filosofia
política das religiões afro-brasileiras de articular a diferença, como um modo particular de
encontro não essencializado.
A noção de nomadismo foi tomada por mim como a mais propícia nesse empreendimento,
a fim de captar as singularidades colocadas pelo encontro entre ambas as perspectivas, na maneira
como se atravessam em seus modos de articulação da diferença. Seguindo as proposições teóricas
de autores como José Carlos Gomes dos Anjos (2008; 2009), centrais na condução dessa
pesquisa, propus a concepção de que tanto os cultos afro-brasileiros quanto os povos ciganos
estariam ambos unidos por um entendimento não essencializado da identidade, que nem por isso,
nos seus encontros com a alteridade, assumem a forma dos pressupostos da democracia racial,
isto é, quando o cruzamento das diferenças está mais próximo de certo modelo biológico, em que
espécies diferentes se mesclam numa resultante que seria a síntese mulata, una.
O que se encontra implicado nesse processo de articulação das diferenças na religiosidade
afro-brasileira é uma modalidade de não essencialização das raças/etnias, que nem por isso deixa
de se construir como um espaço étnica e racialmente marcado, espaços para percursos nômades.
Essa demarcação étnica, fundamentalmente minoritária, tão central na forma como os terreiros
produzem a sua filosofia política, pode ser expressa na maneira como são construídos os
entendimentos nativos dentro do universo umbandista acerca da relação entre os espíritos e os
humanos, no qual vigora-se a concepção da existência necessária de uma relação entre a
linguagem cultural e psicológica das pessoas, e as aparências e missões dos espíritos, isto é, a
forma como eles se apresentam aos humanos, de modo a fomentar corporeidades específicas.
(ESPÍRITO SANTO, 2016)
Aproximações teóricas entre as experiências de transe e o sofisticado pensamento da
diferença deleuziano, na sua concepção de devir, conforme colocado por Goldman (2021),
apontavam para a forma como a filosofia política afro-brasileira articula formas de relação com
a alteridade minoritariamente subversivas, construindo linha de fuga em relação a um estado-
padrão (maioria) por meio de um estado não padrão (minoria), sem que, com isso, haja a
constituição de uma minoria como estado.
102

A partir disso, pude concluir que, quando transpomos essa cosmopolítica inscrita em um
nomadismo fundante para o contexto do Baralho Cigano, vemos o oráculo como uma
manifestação material do culto aos ciganos sob a perspectiva umbandista, expressa nesse modo
de articulação da diferença vigente na religiosidade afro-brasileira.
Um dos efeitos disso é a constituição de uma perspectiva cigana tal que as diferenças
entre ciganos étnicos e ciganos espirituais possam subsistirem por si mesmas e constantemente
se diferenciarem, como pude empiricamente observar na forma como são construídos os
entendimentos nativos em torno do Baralho Cigano, seus modos de saber, seus modos de
aprender.
Ainda que não obrigatória, a relação com os espíritos ciganos mostrou-se como sendo
uma faceta importante das relações inovativas trazidas pelo saber umbandista na forma como se
produz o manejo com as cartas. Nesse aspecto, o Baralho Cigano passa a trazer consigo uma
novidade cosmológica atrelada ao seu uso, relacionada à possibilidade de comunicação com
espíritos ciganos durante a interpretação das cartas, colocando a necessidade de se manter
continuamente relações de culto com essas entidades. Isso se expressa, por exemplo, na forma
como as mesas de leitura se constituem a partir de elementos como cristais, incensos, punhais,
moedas, etc, de forma a produzir um território simbólico etnicamente marcado. Ainda que pouco
explorado em termos teóricos, o que buscarei fazer em trabalhos posteriores, acredito que os
relatos etnográficos inseridos no trabalho – como narrado na forma como certas materialidades,
como o lenço cigano, circulam pelos terreiros do CCPAP - em questão abrem margem para uma
ampliação da discussão em torno dos efeitos ontológicos propiciados pelos oráculos, na
consonância de trabalhos como de Holbraad (2012) e Espírito Santo (2013a; 2013b), tendo como
espaço focal o uso do Baralho Cigano no Brasil.
Depreende-se a necessidade de se pensar o manejo oracular e seus efeitos subjetivantes
enquanto agenciador de certas forças espirituais que não podem ser resumidas a um paradigma
semiótico. Isso significa buscar compreender o que o oráculo produz para além de uma mera
veiculação simbólica, mas também como uma prática que possui efeitos ontológicos, na sua
capacidade cosmológica de produzir relações com espíritos.
Essa centralidade dada à atuação de espíritos na forma como produzem certos efeitos
materiais pode ser expressa também dentro de certos entendimentos nativos na forma como
certos cartomantes produzem um autoentendimento acerca de uma origem, ligada à constituição
de uma “escola brasileira”.
Para muitos deles, a constituição de uma escola brasileira de cartomancia se origina
durante o final dos anos oitenta, quando a Ordem Iniciática Trybo Cósmica (Guaratiba-RJ),
103

coordenada pela Ìyálórìṣà Katja Bastos, publicou o denominado “Tarot Cigano da Trybo
Cósmica” (BASTOS, 2020). Katja Bastos entende o surgimento do seu Tarot Cigano como um
desdobramento das relações com os espíritos, tal qual expressa no evento que se sucedeu com
Zélio Fernandino de Morais. Através da incorporação da Rainha Cigana, entidade espiritual com
a qual Katja Bastos trabalha, os princípios que balizam um encadeamento de associações entre
as cartas com o universo cosmológico afro-brasileiro foram sistematizados, trazendo como
novidade o estudo das cartas associadas aos Orixás.
Para além de releituras de cunho iconográfico ou simbólico referentes às cartas, a “Escola
brasileira de cartomancia” pode ser entendida como um processo em aberto, relativo a uma
maneira de se relacionar com o oráculo e de compreensão do que é oracular inovativa frente aos
entendimentos hegemônicos que se apresentavam em terreno europeu, fugindo, muitas vezes, de
uma autodenominação enquanto “membros” de uma escola de fato. Em campo, pode-se
averiguar empiricamente que os modos de se tratar o manejo oracular são diversos e muitas vezes
fogem de um entendimento por parte dos cartomantes enquanto praticante de uma “Escola
brasileira”, o que nos leva a concluir que tal denominação, nas suas proposições, está relacionada
a uma rede de cartomantes que buscam produzir interpretações locais do baralho segundo padrões
específicos, levando-se em consideração a influência dos cultos afro-brasileiros sobre tais
práticas, na constituição de uma ideia de “brasilidade” própria ao manejo das cartas, não dando
conta da multiplicidade de iconografias, usos e entendimentos possíveis de serem observadas em
campo.
Contudo, é debruçando-se sobre a maneira como o Tarot Cigano da Trybo Cósmica
produz um conjunto de procedimentos, tendo como objetivo a composição de mundos comuns,
a partir da sobreposição de territórios cosmológicos distintos - o universo afro-brasileiro dos
orixás e o universo católico que fundamenta os emblemas no sistema Lenormand – que mais uma
vez a problemática da relação se mostrou central.
Através das falas de Katja, observamos que aquilo que parece nortear as transformações
na sua proposição de baralho, seja no campo da iconografia, seja no campo da nomenclatura, está
atrelado à noção de fundamento. Nesse aspecto, entre aqueles que se posicionam a favor do
sincretismo entre as cartas e os orixás, é ressaltada a potencialidade em produzir novas
associações no curso da leitura nos contextos em que as mesmas fazem sentido em serem
abordadas, como entre outros umbandistas, bem como em fazer sentir a “presença”, expressa,
principalmente, a partir de efeitos sensoriais no corpo. Por outro lado, entre aqueles que
problematizam tal regime de associação, compreende-se comumente que os orixás já possuem
um oráculo que responde a eles, tendo seus propósitos e formas de uso próprios. Em última
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instância, é também em torno da noção de fundamento que se problematiza a mistura entre essas
porções cósmicas.
Dessa forma, a partir de uma análise dos debates relativos às possibilidades de articulação
entre esses mundos, foi possível inferir como o fundamento opera como elemento articulador da
tradição, não como uma força inerte, mas como um elo político que baliza as possibilidades ou
não de transformação e mistura entre porções cósmicas contextualmente. Além disso, cada
terreiro atua como um epicentro de fundamentações próprias que podem ou não convergir quando
tratamos dos seus entendimentos em torno da tradição e do seu saber-fazer atrelado à execução
dos rituais.
Esse aspecto particularizado da forma como o fundamento se opera tem uma de suas
razões de existência na cosmopolítica que perpassa a construção dessa relação, que não é
meramente um produto dos humanos. Vimos como os fundamentos que balizaram a associação
entre os orixás e as cartas do Tarot Cigano da Trybo Cósmica (BASTOS, 2020) foram
constituídos a partir da incorporação de uma entidade específica, a Rainha Cigana, o que nos dá
pista acerca da ideia de que, no universo umbandista, os espíritos podem ser entendidos como
agentes produtores de fundamento. Ao reelaborar o saber-fazer umbandista em diversas
circunstâncias históricas, esses espíritos trazem novos conhecimentos necessários para se lidar
com as situações imprevistas com as quais os terreiros se defrontam no seu dia-a-dia.
Conhecimentos estes que só podem ser expressos e intermediados através da agência de
um corpo. Mas não um corpo qualquer, um corpo munido por certas tecnologias materiais de
produção de devires em transe. Buscar novos caminhos, significa, nesse sentido, seguir certas
linhas de fuga frente a formas codificadas por meio da qual o corpo se inscreve nos seus percursos
de vida, repensando o existir em relação ao gênero, ao infortúnio e ao habitar no mundo, de forma
mais geral.
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