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PORTO SEGURO - BA
2023
DANIELE SANTOS ALMEIDA
PORTO SEGURO - BA
2023
UNIVERSIDADE FEDERAL DO SUL DA BAHIA
Instituto de Humanidades, Artes e Ciências
Programa de Pós-Graduação em Ensino e Relações Étnico-Raciais / PPGER
FOLHA DE APROVAÇÃO
_______________________________________________________________
Prof. Dr. Richard Santos (UFSB/PPGER)
Presidente da banca
_______________________________________________________________
Prof.ª Dra. Maria do Carmo Rebouças dos Santos (UFSB/PPGER)
Membra interna
_______________________________________________________________
Prof.ª Dra. Eliana Póvoas Estrela Brito (UFSB/PPGER)
Membra interna
_______________________________________________________________
Prof. Dr. Álamo Pimentel (UFSB/PPGES)
Membro externo
_______________________________________________________________
Daniele Santos Almeida
Candidata
Dedico este trabalho ao meu filho Martín, minha Divina
Criança Solar, e a todo corpo negro que persiste em estar
vivo, visto que nossa existência é por si só um ato de
insurgência.
AGRADECIMENTOS
Agradeço Èsù, meu pai. Pelos caminhos abertos, pelo colo, pela companhia e
pela proteção, desde sempre. Mo dúpẹ́ fún gbogbo, bàbá mi.
Agradeço à minha família: ao meu filho Martín, meu presente ancestral, sua
existência me faz feliz, forte e corajosa. Ao meu companheiro Antonio, pelo
incentivo, pelo cuidado e por tornar meus sonhos seus também. Ao meu irmão
Diego, pelo apoio e por sempre acreditar em mim. À minha mãe Terezinha, pelo
exemplo de força, fé e bom caráter. À minha amiga (e cunhada) Poliana, pelos anos
de amizade pura e verdadeira, por ser tão amorosa e sensível. Amo vocês.
As minhas amigas, Ísis e Lia. Pelas boas trocas, pela escuta generosa, pela
amizade sincera, pelo apoio e por me lembrar o quão grande eu posso ser. Eu sou
porque nós somos. Vocês também são minha família, e que sorte é poder caminhar
com vocês.
Agradeço aos meus queridos sogros, Mikie e Alfredo por todo apoio e
suporte, inclusive durante os estudos.
Ao meu orientador professor Dr. Richard Santos, pela parceria bonita que
construímos, por sempre acreditar em mim e, como bom filho de Èsù também,
sempre apontar os melhores caminhos.
Ao meu avô Antônio José dos Santos, que há pouco tempo se tornou ancestral
e hoje alegra o Orun com sua sanfona, histórias e risadas. Àṣẹ.
RESUMO
This research sought to conduct an analysis of the Municipal Education Plan of the
municipality of Santa Cruz Cabrália - BA, seeking to verify how the document
addresses the Education of Ethnic-Racial Relations. To do so, it follows multi-
methodological paths and uses the historical-dialectical method, with a qualitative-
quantitative approach and exploratory nature. It also associates documentary and
bibliographical research procedures, semi-structured interviews, and data analysis.
As a premise, we started from the identification of a colonial discourse still present in
this territory and whose proliferation produces and maintains the black population in
a situation of invisibility, besides causing its identity fragmentation and its whitening.
By analyzing the PME in the light of decoloniality, we find that these colonial effects
enter municipal education not only reflecting the erasure of the black population, but
also perpetuating its place of otherness. This work is also committed to the
elaboration of a product in the context of continuing education for educators, aiming
to provide them with Racial Literacy, in order to develop skills that allow them to
undertake an anti-racist praxis and break with the old colonial pacts that perpetuate
rigid hierarchies of power and/or race.
MEMORIAL ....................................................................................................... 9
INTRODUÇÃO ................................................................................................. 25
CAPÍTULO 1
1.2. Filhos desta Terra-Mãe: uma breve análise das relações raciais em Santa
Cruz Cabrália ................................................................................................... 43
CAPÍTULO 2
REFERÊNCIAS.............................................................................................. 100
9
MEMORIAL
Estou ligada a esse trabalho de tantas formas que sinto como se ele fosse uma
extensão da minha existência. Das indagações que urgem de minhas experiências
enquanto mulher negra de pés, mãos e coração fincadas nesse território, teço essa
pesquisa do lugar professora dessa rede básica de ensino, que outrora foi estudante
e que cuja profissão, posicionamento político e escolha por este mestrado se
alicerça no compromisso com a emancipação do meu povo.
Família materna. Vovô Antônio perdeu seus pais ainda muito jovem, foi criado pelo
seu tio Constâncio, um homem preto, de quem herdou um bom bocado de terras.
Casou-se jovem e teve cinco filhos. Vovó Judite casou-se ainda criança, com 13
anos. Nas andanças por aí, ela e o primeiro esposo chegaram à roça de tio
Constâncio para trabalhar, todo dia ela ia para lavoura junto com todos. O marido,
alcóolatra, pouco trabalhava e o pouco que ganhava gastava com bebida e
mulheres. Acabou sendo despedido e chamou minha avó para ir embora, ela não
queria e tio Constâncio interveio, disse que ela era uma boa mulher e que não
merecia um péssimo marido como ele e que, se ela quisesse, podia ficar na
fazenda, pois tinha teto, comida e trabalho. Minha avó ficou e o marido foi embora,
tendo falecido tempos depois. Tempo depois, quando meu avô ficou viúvo,
Constâncio sugeriu que ela e meu avô se casassem, pois, segundo ele, Judite era
trabalhadora, já conhecia as crianças e podia ajudar à cria-las. Meus avós casaram-
se, tiveram cinco filhos juntos, três homens e duas mulheres, sendo minha mãe a
filha mais velha. Viveram do trabalho árduo na terra, construíram patrimônio, criaram
todos os filhos com os frutos desse trabalho. Foi entre aventuras na roça, rezas,
festividades e histórias com meus avós, que vivi a minha infância. Vovó Judite
perdeu a visão quando eu era adolescente, o que a limitou em algumas coisas, mas
não a parou. Vovó tem uma ótima saúde e segue autônoma, firme e forte. Vovô
Antônio faleceu no ano de 2021. Além das doenças que adquiriu por não cuidar da
saúde, acumulou muita tristeza por conta dos com os conflitos dentro da família e
as constantes brigas por terra e herança, mesmo quando ele ainda era vivo. Vovô foi
enterrado na terra onde trabalhou desde criança, como era sua vontade. Vovó segue
vivendo lá, sob o cuidado dos meus tios e, como todos nós, convivendo com a
saudade.
Família paterna. Pouco sei sobre minha família paterna, tivemos pouco contato. O
pouco que sei é o que meu pai conta e, particularmente, ele não gosta, pois suas
lembranças se resumem a uma infância e juventude permeada pela fome, pela
miséria e violência. Meu pai vem de uma família de origem portuguesa e acredito
que indígena também. Meu pai cresceu em meio à pobreza de uma família que
possuía dezoito filhos. Ele conta que meu avô era extremamente violento com minha
avó, espancando-a constantemente. Uma lembrança que ele nunca esquece, e que
já nos contou inúmeras vezes, é de um dia que seu pai coloca a cabeça da minha
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avó no forno ligado e queima seus longos cabelos. Minha avó, sobrecarregada e
violentada, também era violenta com os filhos. Meu pai foi a criança que mais sofreu
com essa violência, meus tios contam que ele era o mais “danado” e que
constantemente apanhava por comer a comida dos irmãos também. Meu pai relata
que a comida era pouca e regrada, ele sentia muita fome e constantemente se
mordia e procurava no lixo restos de pão e alimentos para se saciar. Em meio à
pobreza extrema, os diversos filhos eram enviados para serem cuidados pelos tios,
já jovem meu pai passa parte da juventude na cidade de Eunápolis e no Rio de
Janeiro. Meu pai é um sobrevivente. Sobreviveu às torturas físicas, aos abusos, à
fome, à uma família desestruturada. É um homem trabalhador, inteligente (apesar do
pouco estudo), endurecido pela vida e ferido, mas que nunca reproduziu em nós as
violências sofridas. Entretanto, como toda pessoa branca criada em uma família
racista, por vezes reproduz, inclusive em nós, seus filhos, o racismo. Renato Russo,
na música Pais e Filhos, nos diz: “você culpa seus pais por tudo, isso é absurdo.
São crianças como você, o que você quer ser quando você crescer?” Sendo assim,
é preciso entender que nossos pais também foram crianças feridas e como todo ser
social, carrega em si o ônus de uma criação violenta e racista. A adulta que me
tornei é aquela que compreende que nosso processo de cura começa com a
compreensão e humanização dos nossos, para que juntos possamos nos curar.
boas condições financeiras, e tinham pessoas como eu: bolsistas. Eu tinha bolsa de
estudos porque minha mãe trabalhava lá, mas existiam outras crianças que também
eram bolsistas pois a escola ofertava algumas bolsas para famílias pobres, esses
alunos eram principalmente alunos do bairro. A escola existe até hoje e essas bolsas
também. Na época eu tinha uma melhor amiga cujos pais tinham boas condições
financeiras, ela se chamava Maria e os pais delas eram incríveis! O pai dela era
artista plástico e escultor e sua mãe era “dona de casa”, sempre sorridente e solícita.
A casa de Maria era um sonho, eles moravam em um sítio e a casa era toda rústica
com vários móveis e artefatos feitos pelo pai dela e outros artistas. Eu amava passar
o fim de semana lá, era uma casa com piso de cimento queimado amarelo, sem
janelas, apenas telas, com muitos livros, quadros, esculturas, gibis, jogos, lápis de
cor, tintas...era um ambiente feito para despertar nossa criatividade. Passávamos o
fim de semana lendo gibi da Turma da Mônica, desenhando, brincando no quintal,
ouvindo as histórias que os pais delas contavam. Não sei se Maria se percebia
assim, mas a leitura racial que eu fazia dela era de uma menina não-branca
(entretanto não sei se a ascendência dela é negra ou indígena), ela era uma criança
gordinha e já criança sentia o peso dos padrões de beleza. Entretanto, seus pais
faziam questão de enfatizar como ela bonita, inteligente e gentil. O primeiro show
que fui em minha vida foi com Maria e sua família, era uma exposição de arte no
Hotel Chauã em Porto Seguro e o pai dela expunha algumas peças. Foi um show da
banda Nataraj, uma banda de rock e reggae aqui da cidade. Lembro que eles
tocaram em um palco em cima da piscina e de observar um artista que fazia quadros
incríveis com tema de galáxias usando spray. Os pais dela nos levavam na praia no
fim de semana e acompanhavam a gente na matinê da Woodstock, uma barraca de
praia que tinha música e dança. O pai dela também deixava a gente escolher
qualquer picolé da Kibon, e eu aproveitava para pegar o mais caro porque era
quando eu podia tomar um Corneto. Na época considerava Maria minha melhor
amiga, ela era gentil, engraçada e se “parecia” comigo. Eu também amava os pais
dela, eram pessoas simples, cultas e divertidas. Lembro que o pai dela fazia som de
trompete com o canto a boca sempre que começava a dar “piti” quando eles não
faziam o que ela queria. Era engraçado. Eles eram legais e não brigavam como
meus pais, pelo menos não na nossa frente. Eles também nos davam carona todo
dia para a escola. Maria tinha uma amiga que era uma das garotas mais populares
da escola, era obviamente uma menina branca. Lembro de um dia vê-la chorar muito
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porque descobriu que essa amiga não a considerava sua melhor amiga. Nesse dia
também descobri que também não era a melhor amiga de Maria e foi bem triste.
Hoje percebo como as dinâmicas raciais estavam implícitas em muitas coisas. A
quarta série eu fiz na Escola Nosso Amiguinho, que na época era particular. Minha
mãe não trabalhava lá e se esforçava muito para pagar, lembro que a escola
pertencia à uma família adventista e tínhamos aula de religião que basicamente era
aula sobre o cristianismo. Não tenho muitas lembranças dessa época, lembro que
tinha coral e cantávamos bastante e que em um dia de chuva ao voltar correndo do
recreio, escorreguei e caí de cara no chão. Lembro do meu nariz ficar muito inchado
e meu rosto roxo, não lembro se quebrei o nariz ou se fui ao médico, mas me
recordo de ter que participar de alguma apresentação com o rosto dessa forma. Foi
horrível. Outra lembrança que tenho é de ir à Eunápolis com as professoras para
escolher meu vestido de formatura, era branco de princesa. Não lembro da
formatura, mas tenho fotografias.
Fundamental II. Nos anos finais do ensino fundamental eu voltei para a escola
pública, as escolas privadas do município não ofertavam o Fundamental II e meus
pais não tinham como pagar a escola privada nem aqui e muito menos em Porto
Seguro. A 5ª e 6ª séries eu fiz no Nair Sambrano, foi uma época que fiz muitos
amigos. Era o início da adolescência, aquela fase de buscar se reconhecer e querer
ser diferente e aceito. Me recordo que nessa época tinha um menino insuportável da
minha sala que vivia implicando comigo, ele me deixava desconfortável e tocava em
mim. Eu o odiava, mas ninguém fazia nada. Cabrália é uma cidade pequena então
meio que todo mundo se conhecia e nessa época tinham os meninos e as meninas
populares da cidade, foi uma época que o crack dominou a cidade. Lembro de ter
alguns colegas que foram internados e outros que morreram. Nessa época eu sofria
muito bullying, mas não me lembro o motivo, acredito que eu tenha bloqueado muita
coisa da infância. Uma vez fui empurrada por um outro aluno enquanto entrava na
sala e bati o rosto na cadeira que era de madeira maciça. O “furinho” que tenho na
bochecha do lado esquerdo foi resultado dessa queda. Foi uma época que passei a
frequentar bastante a biblioteca, lia bastante e também passei a praticar esportes. O
7° e 8° ano eu fui estudar na escola pública em Porto Seguro, se chamava Colégio
Ubaldino Júnior (atualmente Colégio Municipal de Porto Seguro) e tinha uma ótima
infraestrutura: salas climatizadas, biblioteca, sala de artes, quadra, vestiário,
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auditório, etc. Nessa época tive aula com Help, um professor muito querido aqui na
região. Tio Help era professor de história, desenhava muito bem e suas aulas eram
incríveis. Tinha também ideias consideradas muito “liberais” para a época e muito
pais não gostavam dele. Diziam que ele que nos influenciava a ficar revoltados. Help
era muito criativo e sempre bolava trabalhos incríveis. Tenho vagas lembranças do
Piquenique Club que foi um piquenique na praia da Ponta Grande, as equipes
tinham que recolher o lixo e cumprir algumas provas, uma delas foi criar uma obra
de arte com o material recolhido. Um outro trabalho foi fazer uma paródia com fatos
históricos e o aluno devia apresentar vestido como personagem da história. No
oitavo ano fizemos uma atividade sobre eleições, o que era basicamente uma a
simulação de uma eleição: tínhamos que criar partido político, se candidatar, criar as
propostas e fazer campanha pois nossos eleitores eram os alunos do 7° e 6° ano.
Apesar dessas boas lembranças, foi nesse ano que saí na lista das meninas mais
feias da escola. Lembro da lista circular em um jornal dos alunos e eu chorar muito
no banheiro. Não entendia porque eu tinha saído na lista, eu não fazia mal a
ninguém. As outras meninas da lista eram todas parecidas comigo, algumas eram
meninas negras retintas. Todas nós destoávamos da lista das meninas mais bonitas
da escola: todas brancas de cabelo liso.
para a noite pois tinha começado a estudar, detestava estudar à noite. Eram todas
pessoas mais velhas e tinha um garoto insuportável que eu detestava. Mas uma
colega que estudei em Porto Seguro e que também morava aqui na cidade começou
a estudar lá, ficamos próximas e estávamos sempre juntas na escola. Nesse ano
também tive meu primeiro namorado, um relacionamento que foi péssimo para mim
por diversas experiências que prefiro não relatar. Descobertas, confusões, uma
péssima relação com minha mãe, traumas e álcool resumem meus anos finais do
Ensino Médio. Ainda assim, nos estudos sempre fui boa aluna. Gostava de estudar e
era muito boa em português, redação e ciências humanas. Nunca repeti de ano. Não
tinha perspectiva nenhuma de fazer um curso superior.
Trabalho. Meu primeiro emprego foi aos 15 anos como auxiliar de classe em uma
escola, depois atuei na biblioteca, como auxiliar administrativo e quando era
necessário, substituía professores. Nessa experiência em sala, a gestão da escola
sempre pontuava como eu era didática, carismática e como tinha facilidade com
comunicação. Além disso, era articulada com a escrita e tinha uma letra bonita, “letra
de professora”, “igual à da mãe”, diziam. O hábito de ler e a curiosidade, facilitavam
o trabalho comunicativo e a criatividade. Posteriormente, quando fiquei
desempregada, fui chamada por uma escola para assumir uma sala de educação
infantil, na época chamava Infantil 2, e os alunos tinham em torno de 4 e 5 anos.
Com essa turminha, experienciei os primeiros passos para na alfabetização infantil.
Ao fim do ano, muitos já escreviam o próprio nome e algumas palavras/frases em
letra cursiva. Alguns e já liam palavras simples e frases curtas. Todos diziam que eu
era uma professora nata. Entretanto, a desvalorização do trabalho do professor me
desmotivou e resolvi não seguir carreira na educação. Assim, fui seguindo outros
caminhos e trabalhei como caixa de supermercado, auxiliar administrativo na
Controladoria Municipal, garçonete, atendente etc. Já na UFSB em 2016, vendia
lanche para meus colegas do Cuni Cabrália para ajudar nas contas de casa.
Graduação. Adentrei na UFSB em 2016 pelo Cuni Cabrália com o intuito de cursar
direito. Na época já tinha um bom nível de letramento racial e politização, conseguia
racializar debates e articular com as terias feministas. Assim, meu intuito era
advogar para a população negra, mulheres e crianças. Anteriormente, já havia
tentado fazer outras graduações ao longo da vida, mas todas sem sucesso, nunca
conseguia concluí-las. O contato com diversas áreas do conhecimento
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manifestação que trouxe resultados muitos positivos. Pela primeira vez muitos
moradores de Cabrália souberam que na região havia uma universidade pública e
da sua importância para nós enquanto sociedade, além disso a situação foi resolvida
e se estabilizou. A conquista do transporte público universitário garantiu, inclusive, o
retorno de muitos estudantes da turma de 2014 que haviam desistido por não terem
condições de arcar com os custos da mobilidade até o campus. Durante toda essa
mobilização eu já estava grávida e Martín já sentia o frenesi da luta no conforto do
útero.
Gestar. 2019 foi um ano intenso, já atuava como professora, fazia residência
pedagógica, estudava e descobri a gravidez. Trabalhei, estagiei e estudei até os 9
meses de gestação. Exausta, mas com um filho a caminho, as contas só
aumentavam e não podia me dar ao luxo de perder a bolsa, o emprego ou desistir
na reta final da graduação. Nesse ano, me matriculei em um componente optativo
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O parto. Martín nasceu no fim do mês de julho e alguns dias após o parto eu já
estava sentada entre as mamadas e os cochilos dele, produzindo os trabalhos finais
do quadrimestre. Mandei um e-mail para o professor Richard, pedindo uma
adaptação no trabalho final, pois como o parto não havia saído como planejado e
tive que ser submetida à uma cesárea emergência, a recuperação era mais lenta e
complicada. Ele prontamente adaptou o trabalho às minhas necessidades. Nesta
adaptação eu devia escolher dois textos trabalhados no componente e escrever uma
resenha crítica, produzindo um debate entre os dois textos e articulando minha visão
sobre eles. Escolhi o clássico Discurso sobre o Colonialismo, de Aimé Césaire e o
texto Os brancos saberão resistir? do Prof. Dr. Gabriel Nascimento. O trabalho final
ficou, sem modéstia, muito bom. Tenho até hoje o e-mail com o feedback do
professor dizendo que “o trabalho ficou um primor, a comparação entre os dois
autores ficou maravilhosa”. Mesmo com toda limitação de um pós-parto, a
adaptação à um bebê, o puerpério, a autossabotagem e a famosa síndrome do
impostor, dei o meu melhor e fui reconhecida por isso. Nesse ano participei da
primeira edição da Jornada do Novembro Negro e fui convidada pelos professores
Richard e Maria do Carmo para participar do Grupo de Pesquisa Pensamento Negro
Contemporâneo. Esse foi o ano que pari meu filho e a certeza de que meu caminho
começava a se delinear.
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A pesquisa. Minha dissertação passou por várias fases. A primeira foi aquela
idealista no qual acreditava que podia fazer tudo, no entanto a realidade veio como
um banho de água fria. A limitação da pesquisa de campo em tempos pandêmicos,
a conciliação com o trabalho (pois não há financiamento de pesquisa), o fato de ser
um mestrado profissional com foco na educação, as demandas pessoais com a
criação dos filhos e os cuidados da casa, a preocupação constante com as contas,
os trabalhos extras que somos obrigados a fazer para dar conta de sobreviver, os
bloqueios na escrita, a ansiedade, a autossabotagem e o complexo de impostora.
Esses são alguns dos muitos desafios e com as quais tenho que lidar. Na segunda
fase já consegui adaptar melhor o meu tema de pesquisa à área de educação,
entretanto ainda achava que não estava do jeito que eu queria. Nessa última fase
consegui delimitar melhor o campo de estudo, mas tive muita dificuldade para
escrever. Não porque tenha dificuldade com a escrita, mas porque minhas
demandas pessoais me deixam muito exausta. Por várias vezes pensei em desistir,
mas Èsù sempre me lembra do meu compromisso com minha comunidade.
INTRODUÇÃO
Fiz todo meu percurso educacional aqui em Cabrália, primeiro como filha de
professora que vivia e convivia na escola, depois como aluna da educação básica,
estudante universitária, estagiária e hoje como mestranda e professora do Ensino
Médio. Nesse vasto percurso, meu contato com a Educação das Relações Étnico-
Raciais se deu apenas na universidade, foi quando entrei na UFSB em 2016 que
tomei conhecimento da Lei 10.639/03, a Lei 11.645/08 e demais diretrizes e
instrumentos legais que subsidiam a necessidade de uma educação
afrorreferenciada e antirracista. Pouco anos antes, a partir do boom da internet em
2014 (boom aqui em Cabrália que as poucas demoram um pouco para chegar),
comecei a ler artigos e textos sobre questões raciais. As inquietações que motivam
esse trabalho, foram comumente surgindo à medida que adquiria letramento racial e
me tornava ciente das dinâmicas raciais existentes e das artimanhas do racismo
dentro e fora da educação.
de quais formas suas dinâmicas raciais são construídas. Para isso traçamos uma
linha histórica, analisando-a de forma crítica e racializada. A isto, refere-se o primeiro
capítulo dessa dissertação.
Percurso metodológico
Dessa forma, a pesquisa bibliográfica não deve ser entendida como repetição
do que já foi produzido sobre determinado assunto, mas como um importante
método que possibilita um novo enfoque ou abordagem acerca de um tema.
(MARCONE; LAKATOS, 2003). Esse estudo utiliza, ainda, a pesquisa documental
como principal procedimento de coleta de dados. Tanto a pesquisa bibliográfica
quanto a documental utilizam documentos, entretanto se diferenciam quanto a fonte
desses documentos. Enquanto a pesquisa bibliográfica utiliza fontes secundárias, ou
seja, toda bibliografia pública sobre determinado tema, a pesquisa documental utiliza
fontes primárias, isto é, fontes as quais não receberam nenhum tratamento analítico.
(KRIPKA; SCHELLER; BONOTTO, 2015).
APORTE TEÓRICO
Conforme nos elucida Munanga (2004), o conceito de raça foi mobilizado das
ciências da natureza na tentativa de tentar explicar a diversidade humana. Com o
avanço das ciências biológicas (genética humana, bioquímica etc.), os estudiosos
chegaram à conclusão de que raça não é uma realidade biológica e que essa
definição é cientificamente ineficaz para explicar a diversidade humana. Isso não
quer dizer que todas as pessoas e populações são geneticamente iguais, mas que
as diferenças existentes não são suficientes para dividi-las em raças. Munanga
(2004) é pontual ao afirmar que o problema não é a categorização em si, mas sim a
relação intrínseca que fizeram entre fatores biológicos (cor da pele, fenótipo) e
qualidades psicológicas, morais, intelectuais e culturais.
O Brasil foi o país que mais recebeu africanos escravizados, estima-se que a
quantidade gire em torno de 4 a 6 milhões de pessoas, sendo este montante mais
de um terço de todo comércio negreiro (IBGE, 2000). Também foi o último país do
ocidente a abolir a escravidão (SCHWARCZ, 1993). Dessa forma, as instituições, a
ciência, a educação, a cultura, a economia, a sociedade e todos os elementos
constituintes do Estado brasileiro, foram construídos em cima de processos de
exploração e escravização e de uma lógica racista. O racismo, no Brasil, é estrutural
e institucional, e atravessa as questões de gênero e classe de maneira contundente.
racismo latino-americano sofisticado a ponto de, mesmo sem assumir uma política
legal de apartheid, manter negros e indígenas em situação de extrema exploração.
Charles Wade Mills, em sua obra O Contrato Racial (1997, apud DIANGELO,
2018), descreve a supremacia branca como “o sistema político inominado que fez o
mundo moderno aquilo que ele é hoje”. Segundo Mills, embora a supremacia branca
tenha moldado o pensamento político ocidental, ela nunca foi nomeada. E é
justamente essa invisibilização e esse fracasso em reconhecê-la, que a protege do
exame e a mantém em seu lugar (DIANGELO, 2018).
CAPÍTULO 1
O colonialismo é uma ferida que nunca foi tratada. Uma ferida que dói
sempre, por vezes infecta, e outras vezes sangra.
Grada Kilomba¹
Santa Cruz Cabrália, é uma pequena cidade do extremo sul da Bahia e que
ostenta o título de “Terra-Mãe do Brasil”. Foi aqui que, no ano de 1500, os
colonizadores portugueses chegaram dando início ao invasivo e violento processo
de colonização. Apesar de toda violência que a colonização é (CÉSAIRE, 2020), é
justamente a falsa narrativa colonial de “progresso” e “contato entre os povos” que
impera nesta cidade, principalmente como estratégia para manter o turismo histórico
que se baseia na narrativa romantizada (e falsa) do contato dos colonizadores com
os povos indígenas. De população majoritariamente negra (IBGE, 2010), Santa Cruz
Cabrália é uma cidade que se mostra embranquecida e, quando conveniente,
indígena. Visto que os povos indígenas que aqui habitam, sofrem com ostracismo da
população não-negra e não-indígena, e com o descaso do poder público em
solucionar suas demandas por território, segurança, saúde e educação.
No dia 22 de abril avistaram um monte e, por ser época de Páscoa, foi nominado
por Cabral de Monte Pascoal, e a nova terra foi chamada Terra de Vera Cruz. Em 23
de abril, seguiram à terra ancorando à foz de um rio, entretanto, na madrugada do
dia 24 uma tempestade fez as embarcações se afastarem e eles decidem seguir ao
norte e procurar um porto seguro para atracar e se estabelecer. Após navegarem
dez léguas pela costa, as caravelas encontram um recife (Ilhéu de Coroa Vermelha),
com um porto seguro onde puderam ancorar. Chegam, então, à Baía Cabrália,
donde em 25 de abril se juntam as demais embarcações. Em 26 de abril, domingo
de Páscoa, Cabral determina a celebração da primeira missa do Brasil, realizada no
Ilhéu de Coroa Vermelha. Em primeiro de maio, já estabelecido contato com a terra
e seus habitantes, é fincada em terra uma grande cruz de madeira e um altar
improvisado donde foram pregados os símbolos da coroa portuguesa e realizada a
missa de posse da terra pelo Frei Henrique de Coimbra. (CARVALHO NETO, 2004)
Às margens opostas do Rio Mutarí, próximo à sua foz, Tourinho funda a Vila
de Santa Cruz. Mas a povoação não se estabelece por muito tempo nesta
região devido aos ataques dos índios e pela insegurança do local. E no final
do século XVI, transfere-se para um platô às margens do rio Sernambetiba
(hoje João de Tiba), estabelecendo-se definitivamente. (CARVALHO NETO,
2004, p. 32-33)
Por muito tempo, a pequena Vila de Santa Cruz fez parte da Capitania de
Porto Seguro. Somente em 1832 a vila é elevada à categoria de município, e em 23
de julho de 1833 sua implantação é concretizada, data até hoje comemorada como
marco de sua emancipação política. Em julho de 1931, o então interventor Artur
Neiva, através do decreto n° 7. 479, anexa o município de Santa Cruz ao município
de Porto Seguro que recupera sua autonomia apenas dois anos depois. Em 1935,
através do decreto n° 9.400, o nome “Cabrália” é anexado à Santa Cruz, e a
município passa a se chamar, definitivamente, Santa Cruz Cabrália.
Com uma área territorial de 1.462,942 km² (IBGE, 2021), Santa Cruz Cabrália é
um município localizado no extremo-sul da Bahia e que faz parte da Costa do
“Descobrimento”. Seu conjunto paisagístico, em especial o Ilhéu da Coroa Vermelha,
a orla marítima e o conjunto arquitetônico e paisagístico da Cidade Alta foram
tombados como patrimônio material pelo Iphan, no ano de 1981 (IPHAN, 2021).
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1.2 Filhos desta terra-mãe: uma breve análise da população e das relações
raciais santa-cruzenses
Até 1500, ano na intrusão europeia, estima-se que aqui viviam entre 3 e 9
milhões de nativos, divididos em cerca de 900 povos (CESAR, 2011). Estes diversos
povos pindorâmicos, apesar das muitas distinções culturais e linguísticas, também
possuíam diversas similaridades e, por isso, foram agrupados em dois grandes
troncos linguísticos: o Tupi e o Macro-Jê, e também em cerca de 19 famílias
linguísticas que não apresentam graus de semelhanças suficientes para que possam
ser agrupadas em troncos (BRASIL, 2019; 2021).
(...) Santa Cruz é, sob todos os pontos de vista, muito menor que Porto
Seguro. Dizem que outrora foi mais florescente, porém os habitantes mais
ricos morreram. O rio Santa Cruz nasce a distância de uns poucos dias de
viagem. Provindo de duas nascentes principais, que se unem e correm para
o mar. (...) Os Botocudos vagueiam pelo Alto Santa Cruz, mais perto do
litoral, porém, o rio lhes demarca os limites do território, vivendo os
Patachós e os Machacalis na região situada à margem sul. As plantações
existentes rio acima foram assolados, não haviam muito, pelos Botocudos,
do mesmo modo que a vila, em outros tempos, pelos Abatirás e Aimorés ou
Botocudos (...). (WIED, Maximiliano, 1998 apud CARVALHO NETO, 2004)
Sampaio (2000) afirma que esse trágico episódio, até hoje marcado na memória
desse povo, é frequentemente percebido por eles como um mal-entendido que
causaria a perda de suas terras. Para o povo Pataxó, o Parque de Monte Pascoal
seria originalmente destinado aos indígenas para que mantivessem seu modo de
vida, mas que a partir das mortes de Rondon e Getúlio Vargas (visto por alguns
deles como protetores dos indígenas) o trágico evento foi usado como desculpa para
o parque ser entregue ao atual Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e
Recursos Naturais Renováveis). Foram anos de resistência e tentativas de retomada
47
do seu território, tal período conforma com o surto madeireiro que atingiu a região
em razão da construção da BR-101 e com o início da exploração pelo turismo.
Em Santa Cruz Cabrália temos duas aldeias pataxós. Mata Medonha, situada à
margem esquerda do Rio Santo Antônio, e instituída em 1951 por uma família de
refugiados de Barra Velha e que, posteriormente, abrigou outras famílias. E a aldeia
de Coroa Vermelha, implantada em 1972 com o intuito de comercializar artesanato
de modo a atender à demanda turística. Coroa Vermelha é a comunidade pataxó
que mais cresce e está localizada no sítio histórico de Coroa Vermelha, situado
entre a praia e a BR-637, a 8 km da sede do município de Santa Cruz Cabrália e 15
km do centro de Porto Seguro (SAMPAIO, 2000). Além do território regularizado e
homologado em 1998, a aldeia abarca outras áreas “retomadas” pelos pataxós
(REGO, 2012)
Note que o ouvidor utiliza as classificações raciais branco, pardo e preto forro.
Pela época e pela ausência do nome “índios”, como costumavam chamar os nativos
da terra, compreende-se que a categoria pardo refira-se aos indígenas. É Pero Vaz
de Caminha que utiliza pela primeira vez o termo para descrevê-los, como consta
em sua carta ao rei de Portugal: “Eram pardos, todos nus, sem coisa alguma que
lhes cobrisse suas vergonhas” (CORTESÃO, 2003). Por sua vez, o uso do termo
pretos deixa explícito tratar-se dos africanos. O vocábulo preto forro, refere-se aos
48
Em cada missão havia uma igreja e uma escola. Além da leitura, escrita e
cálculo, ensinavam ofícios de carpinteiro, ferreiro e tecelão. Nóbrega, logo
após sua chegada a Salvador, embarca para Porto Seguro, em companhia
de Diego Jácome, a fim de vistoriar a situação desta capitania.
Permanecem nesta localidade por alguns meses. Imediatamente depois
dessa visita, o padre superior designa dois irmãos à capitania, a fim de dar
início àqueles trabalhos de catequeses solicitados pela Coroa Portuguesa
(CARVALHO NETO, 2004)
Toda a vila conta atualmente com 268 fogos, 832 almas, contando o
município 6.200. (...) Tem o município duas escolas sendo uma para cada
sexo, funcionando ambas na vila, em prédios que carecem das condições
para este fim. A pobreza faz com que nem toda a população escolar esteja
matriculada. A escola do sexo masculino tem 43 alunos e frequência de 30.
A do sexo feminino tem de matrícula 39, de frequência 35. Concorre o
município para a manutenção das escolas com a 6ª parte de sua renda,
contribuindo o Estado com o restante. (ARAGÃO, 1899, p. 43)
Uma segunda interpretação desse trecho inicial nos leva a compreender que
a vila tinha 268 domicílios, habitados por 832 almas em um total de 6.200 almas na
vila, sendo alma um termo equivalente a habitante. Entretanto, indaga-se onde vivia-
se essa maioria populacional já que não constavam nos domicílios (fogos)? Quais os
critérios para uma habitação ser considerada um domicílio? Ademais, no relato do
ouvidor Thomé Couceiro de Abreu, em 1764 ele descreve uma população composta
por brancos, indígenas e pretos (ainda que apenas considere a condição do preto
alforriado), sendo inegável a presença africana neste território. Portanto, em um
contexto colonial, com condições complexas e distintas de racialização e
escravização de indígenas e negros (africanos e afro-brasileiros), questiona-se:
quem seriam as pessoas que habitavam os domicílios? Essas são muitas perguntas
que gostaria de poder responder com precisão, mas que o próprio epistemicídio
perpetrado neste território me impossibilita de responder.
Em 1935, as classes já eram mistas (sem separação por sexo) e havia duas
escolas estaduais primárias na sede do município, uma delas, denominada
Tiradentes, funcionava na casa da professora Nair Sambrano Bezerra, e a outra
funcionada na casa da professora Stela Santos Sambrano. Em 1948, conforme
relato do prefeito Sidrach Carvalho, a situação das escolas era crítica, pois ainda
funcionavam em casas particulares tão mal construídas e localizadas, que em época
de chuva as aulas eram suspensas para não prejudicar a saúde das crianças
(CARVALHO NETO, 2004).
CAPÍTULO 2
De acordo com dados do Censo Escolar do ano de 2020, dos 7.471 (sete mil
quatrocentos e setenta e um) alunos da rede educacional de Santa Cruz Cabrália,
9,2% se autodeclararam racialmente brancos, 5,4% se autodeclararam pretos,
36,3% se autodeclararam pardos, 18,3% se autodeclararam indígenas, 0,3% se
autodeclararam amarelos e 30,6% optaram por não se autodeclarar (CABRÁLIA,
2022). No Brasil, negro é uma categoria sociopolítica que engloba pessoas
autodeclaradas pretas e pardas, dessa forma 41,7% dos estudantes santa-
cruzenses são negros. Ou seja: a escola pública santa-cruzense tem cor e ela é
negra.
Neste capítulo apresento uma breve história da luta dos movimentos negros por
uma educação emancipadora e antirracista, as atribuições do PME frente à
Educação das Relações Étnico-Raciais e empreendo uma análise crítica de como o
PME santa-cruzense aborda a Educação das Relações Étnico-Raciais
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I - Erradicação do analfabetismo;
Antes de iniciar essa análise reitero aqui os limites dessa pesquisa cujo intuito
é analisar a forma como o Plano Municipal de Educação deste município aborda a
Educação das Relações Étnico-Raciais e como o apagamento da população negra
empreendido através de um discurso colonial vivo e presente nesse território,
reverbera no referido documento. Posto isto, essa análise seguirá a ordem em que o
documento está organizado, onde pontuo apenas os trechos/partes que são
congruentes com os objetivos dessa pesquisa.
I - Erradicação do analfabetismo;
Mesmo que esses dados fossem reais, negros ainda seriam a maioria
quantitativa da população, sendo a população branca uma minoria, o que explica
que apenas a exigência educacional dessa população branca seja levada em
consideração, se não o racismo? Assim, Kilomba (2020, p. 76) questiona: “Quem
pode ver seus interesses políticos representados nas agendas nacionais? Quem
pode ver sua história incluída em programas educacionais?” e eu complemento:
Quem pode demandar sobre as políticas educacionais do nosso município?
De certo que muitas pessoas que lerão esse trabalho, tomarão minha análise
como exagerada ou “radical”, ou até mesmo defenderão que essa é apenas “minha
interpretação” pois o texto não diz essas coisas diretamente. Entretanto, “sob o
espectro também do não dito, a supremacia branca do Brasil incorpora esse modelo
de relações e continua a produzir dominação e assujeitamento” (RAMOS, 2019,
p.12). Assim, a dimensão da dominação a qual somos submetidos enquanto
população negra é tanta, que até o direito de nomear de racismo a violência que
nos assola, “é um processo de quebra com o sistema que nos trata como negros,
mas nos nega a denúncia” (RAMOS, 2019, p. 12).
Engenho é a única que tem relação com a população negra e, como era de se
prever, fazia uma encenação do sofrimento dos negros escravizados no trabalho
forçado no engenho de cana-de-açúcar, felizmente essa foi uma das “tradições” que
deixaram de existir. Desnecessário dizer o quão violento são essas representações
e como ajudam a sustentar a imagem subalternizada do povo negro.
(...) Território de deuses e entidades espirituais pretas, por meio dos quais
se busca a prática de uma religiosidade, a um só tempo terapêutica e sócio-
histórico-cultural, que se volta para o continente africano, berço do mundo
no Novo Mundo. (NOGUEIRA, 2020, p. 15)
com a Réplica da Primeira Missa celebrada no Brasil, era um evento grande com
quase 250 participantes entre atores, figurantes e os indígenas Pataxós
(CARVALHO NETO, 2004). Hoje o evento é um pouco menor, mas de grande
prestígio e importância para o município, principalmente como forma de reiterar
nosso status de Terra-Mãe do Brasil.
Das 147 (cento e quarenta e sete) estratégias que o PME possui, apenas
essas três fazem alusão direta ao proposto pela Educação das Relações Étnico-
Raciais. A Estratégia 7.10 cita explicitamente as Leis 10.639/03 e 11.645/08; a
Estratégia 11.13 versa sobre a importância de se reduzir as desigualdades étnico-
raciais e regionais no que se refere ao acesso e permanência da educação
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Para além dessas estratégias supracitadas, o PME traz outras 4 (quatro) que
contemplam as populações do campo e as comunidades quilombolas e indígenas,
são estas:
Os dados são recolhidos de acordo com cada meta e para isso busca-se em
diferentes fontes: INEP (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais
Anísio Teixeira), setor de Recursos Humanos e Contabilidade Municipal, MEC,
contabilidade municipal, universidades, colégios estaduais, secretarias e setores
pedagógicos das próprias escolas, etc. Márcia aponta que a situação de defasagem
do censo populacional realizado pelo IBGE, cujos dados possuem mais de 10 anos,
por vezes é grande empecilho para a produção de um monitoramento mais completo
e ostensivo. Ela cita como exemplo a Meta 1 que versa sobre a universalização da
Educação Infantil. Para saber o quantitativo de alunos que vão adentrar a educação
infantil, eles confrontam dados de crianças matriculadas na rede municipal de ensino
e cadastradas no SUS, entretanto há crianças que não estão nem matriculadas na
escola e nem cadastradas no SUS, o que, com a desatualização do censo
populacional, gera dados pouco assertivos.
CAPÍTULO 3
Por efeito, por vezes nós educadores nos tornamos também reprodutores e
mantenedores das violências raciais e falhamos em identificar e combater o racismo
na escola nas diversas formas em que ele se apresenta. E, por consequência,
nossas investidas de trabalhar as questões étnico-raciais são tão folclóricas e
descontextualizadas, que a tentativa de efetivar a Educação das Relações Étnico-
Raciais se transforma em uma afirmação dos estereótipos racistas que tanto
combatemos.
83
Sei também que um curso não tem o poder de mudar a triste realidade em
que vivemos, entretanto acredito que essa construção conjunta pode ser o pontapé
inicial para o desenvolvimento de uma consciência racial e social crítica, que
responda nossos anseios coletivos por justiça, dignidade e cidadania plena.
O campo de pesquisa foi uma pequena cidade do Rio de Janeiro onde Twine
(1998) viveu com uma família brasileira por um tempo. Dessa convivência a autora
relata que quando tentava dialogar sobre a questão racial com a família com a qual
conviveu, frequentemente recebia como resposta que o assunto era inapropriado,
90
(6) uma análise das formas em que o racismo é mediado por desigualdades
de classe, hierarquias de gênero e heteronormatividade.”
MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO
UNIVERSIDADE FEDERAL DO SUL DA BAHIA
INSTITUTO DE HUMANIDADES, ARTES E CIÊNCIAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ENSINO E RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS - PPGER
GRUPO DE PESQUISA PENSAMENTO NEGRO CONTEMPORÂNEO – UFSB/CNPq
___________________________________________________________________________
CURSO
Graduação e pós-
Formação continuada 60h
graduação
OBJETIVOS
PALAVRAS – CHAVE
METODOLOGIA
MÓDULO I
MÓDULO II
MÓDULO II
REFERÊNCIAS
ALMEIDA, Silvio. O que é Racismo Estrutural? Ed. Letramento, Belo Horizonte, 2018.
DIANGELO, Robin. White fragility: Why it's so hard for white people to talk about
racism. Beacon Press, 2018.
GOMES, Nilma Lino. O movimento negro educador: saberes construídos nas lutas por
emancipação. Editora Vozes Limitada, 2019.
2017.
RIBEIRO, Paulo Rennes Marçal. História da educação escolar no Brasil: notas para uma
reflexão. Paidéia (Ribeirão Preto), n. 4, p. 15-30, 1993.
TWINE, France Widdance. A White side of black Britain: The concept of racial literacy.
Ethnic and Racial Studies, v. 27, n. 6, p. 878-907, nov. 2004.
BRASIL, Plano Nacional das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das
Relações Étnico-raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana.
Brasília: SECAD; SEPPIR, jun. 2009.
BRASIL. Conselho Nacional de Educação. Parecer CNE/CP 3/2004. Diretrizes
curriculares nacionais para a educação das relações étnico-raciais e para o ensino de
história e cultura afro-brasileira e africana. Brasília, 2004a.
DIANGELO, Robin. White fragility: Why it's so hard for white people to talk about
racism. Beacon Press, 2018.
FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas (R. Silveira, Trad.). Salvador, BA:
EDUFBA.(Trabalho original publicado em 1952), 2008.
2017.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O nosso atual PME tem validade de dez anos, ou seja, até 2025. Logo será o
momento de iniciarmos as discussões para um novo Plano Municipal de Educação.
Por conseguinte, almejamos que a análise empreendida aqui, à luz da
decolonialidade, contribua para que as falhas e equívocos pontuados sejam
discutidos e retificados, para assim construirmos um novo Plano Municipal de
Educação e, também, políticas públicas educacionais verdadeiramente
comprometidas com uma educação emancipadora para toda a população, sobretudo
para a população negra tão negligenciada e vitimada pelo Estado e pela sociedade.
101
REFERÊNCIAS
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étnico-raciais. Tear: Revista de Educação, Ciência e Tecnologia, v. 3, n. 1, p. 1-21,
2014.
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imaginário das elites--século XIX. Annablume, 1987.
BRASIL, Povos Indígenas no. Quantos eram? Quantos serão? (2021). Disponível
em: <http://pib. socioambiental. org/pt/c/no-brasil-atual/quantos-sao/quantos-eram-
quantos-serao>. Acesso em 30 de julho 2021.
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Relações Étnico-raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e
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Gestão de Políticas Públicas em Gênero e Raça)—Universidade de Brasília, Brasília,
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DIANGELO, Robin. White fragility: Why it's so hard for white people to talk about
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do século XIX e início do XX. In: ROMÃO, J. (Org.). História da educação dos negros
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GOMES, Nilma Lino. O movimento negro educador: saberes construídos nas lutas
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NOGUERA, Renato. Entre a linha e a roda: infância e educação das relações étnico-
raciais. Revista Magistro, v. 1, n. 15, 2017.
PEREIRA, Ana Emilia da Silva et al. NEABS, educação das relações étnico-raciais e
formação continuada de professores. 2013.
REGO, André Gondim do. " Uma aldeia diferenciada": conflitos e sua administração
em Coroa Vermelha/BA. 2012.
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uma reflexão. Paidéia (Ribeirão Preto), n. 4, p. 15-30, 1993.
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TONIAL, Felipe Augusto Leques; MAHEIRIE, Kátia; GARCIA JR, Carlos Alberto
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