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JUAZEIRO/BA
2018
ROBSON MARQUES DOS SANTOS
Dissertação apresentada a
Universidade do Estado da Bahia –
Campus III - para o exame de defesa
do Título de Mestre em Ecologia
Humana e Gestão Socioambiental.
JUAZEIRO/BA
2018
Maria de Fátima Santos de Lima
Bibliotecária – Documentalista
CRB – 5ª / 1801
67 f.: il.
CDU: 299.6
UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA – UNEB
DEPARTAMENTO DE TECNOLOGIA E CIÊNCIAS SOCIAIS – DTCS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO MESTRADO EM ECOLOGIA HUMANA
E GESTÃO SOCIOAMBIENTAL - PPGEcoH
Diretor do Departamento
JUAZEIRO/BA
2018
BANCA EXAMINADORA
JUAZEIRO/BA
2018
Dedicatória
Quero agradecer, nestas poucas linhas que escrevo, todo o carinho, amor e atenção
daqueles que abraçaram e conduziram comigo este projeto. Inicialmente as Forças e
Energias dos Encantados, Caboclos, Nkisi, Orixás e Espíritos que se movimentam no
espaço e movem o Universo. Ao Povo de Terreiro de Candomblé do Sertão, mais
particularmente ao Babalorixá Adeilson (Pai Dedé), às Yalorixás Idjemim (Mãe Edneusa)
e Maria da Paixão (Mãe Maria de Tempo); à Mãe kota Nadiane, ao Ogã Antônio, à Yaô
Euziane e à Yalaxé Gessiane; também às crianças Kerlen, Naian e Davi e; à adolescente
Letícia. Aos meus familiares (pai e mãe, filho, irmãos, cunhados, cunhadas, sobrinhos e
sobrinhas, em especial a Kerly pelo empréstimo da máquina fotográfica). Aos colegas e
amigos Talles Cerqueira e Aline Sampaio também pelo empréstimo dos gravadores de
voz. Aos amigos André, Paulo Wataru e Alzeni Tomaz pelo apoio logístico, cuidados e
acolhimento em Paulo Afonso. Às amigas e conselheiras Rosa e Daniela que tanto
corroboraram e me ajudaram ora na proa ora no leme, mas sempre dispostas a navegarem
comigo. Ao amigo Duda (Luiz Eduardo) pela irmandade e empréstimo das armaduras de
couro e de consciência quando da necessidade de atalhar as novilhas endiabradas por
entre os garranchos e urticante vegetação das veredas da vaidade acadêmica. Ao amigo
Antônio Jairo (Tom) pela amizade e colaboração cartográfica de localização dos terreiros.
Aos colegas do IF Baiano Campus Senhor do Bonfim, em particular aos da Coordenação
de Assuntos Estudantis pela cooperação. Aos docentes, discentes e à Coordenação do
PPGEcoH, em especial ao Prof. Carlos, a Secretária Stéfane e a estagiária Laiane pela
atenção, paciência e comprometimento profissional. Ao professor Walter Sá pela
colaboração na tradução do artigo Folhas Pequenas: Crianças nos Terreiros de
Candomblé do Sertão do Brasil. Ao vizinho e conselheiro Rubão da Serra dos Morgados
pela companhia também na interação com os bichos, com as plantas e as terras da Serra.
À Lilian, pelo companhia, parceria e cuidados. A Juracy, Jozete e Maria Ribeiro pelos
abraços e beijos amorosos e de proteção nos dias mais frios ou mais fervorosos da minha
existência. E aos Professores Doutores Luciano Bomfim (orientador) e Marcelo Ribeiro
(Coorientador) pelas orientações.
Sumário
Introdução ................................................................................................................................ 13
Proposição ......................................................................................................................16
Introdução
Para Berno e Santos (2010) forças espirituais e divindades, chamadas por algumas
culturas de Orixás e por outras Nkisi cruzaram o Atlântico e enraizaram-se em terras
brasileiras e não mais saíram daqui. Em alguns cantos elas se misturaram e deram vida às
novas formas de cultos, às vezes chamadas de Umbanda, de Candomblé, de Caboclo, de
Giro, entre outras.
Prandi (2006) aponta que a religião dos Orixás foi refeita no Brasil por africanos
ou descendentes que, no século XIX, viviam nas grandes cidades costeiras, ocupando-se
em atividades urbanas, fossem eles escravos ou livres.
Para Marques e Novaes (2015) são múltiplas as definições e os sentidos atribuídos
ao candomblé e à umbanda em nosso país como são infinitos os sentidos experimentados
pelos sujeitos que vivenciam essas religiões de fortes relações com a história do povo
negro. Segundo os pesquisadores, no semiárido brasileiro essas realidades ganham
contornos bem particulares.
A participação de crianças nos rituais do candomblé no Brasil é um assunto que,
pela particularidade, tem-se mostrado como tabu. A experiência vivida por centenas de
pessoas que integram as religiões de matrizes africanas se mostra muito mais carregada
de mistérios e desconhecimentos para quem não vive a religião. No Sertão do Brasil
pouco se fala sobre a iniciação de crianças nestes espaços que relacionam ancestralidades,
processos de resistência, de resiliência, questões socioambientais/ecológicas, crenças e
educação informal.
Stela Guedes Caputo, em seu livro “Educação nos Terreiros e como a escola se
relaciona com crianças de Candomblé,” publicado em 2012, indaga e suscita curiosidades
que a levaram aos terreiros da Baixada Fluminense no Estado do Rio de Janeiro,
inicialmente para mapear os terreiros como pauta de reportagem e depois observando e
ouvindo as práticas de crianças e adolescentes que frequentam terreiros de candomblé,
entendendo os terreiros como espaços de educação e, consequentemente, também
observando e ouvindo a escola para saber como ela se relaciona com essas crianças.
Oliveira e Almirante (2017) no artigo “Criança, terreiro e aprendizagem: um olhar
sobre a infância no candomblé” discorrem sobre a interface entre a Antropologia da
Educação, da Criança e da Religião, visando investigar o que é ser criança no Candomblé
e a forma como se constituem os processos de aprendizagem das crianças no terreiro,
14
Proposição
EIXOS TEMÁTICOS
ARTIGOS CIENTÍFICOS
Área de Estudo
A escolha das áreas para imersão na pesquisa baseou-se nas publicações sobre os
povos de terreiros de Paulo Afonso/BA, Jaguarari/BA, Juazeiro/BA e Petrolina/PE
realizadas pelo Núcleo de Estudos em Comunidades e Povos Tradicionais e Ações
Socioambientais (NECTAS/UNEB), pela Sociedade Brasileira de Ecologia Humana
(SABEH), pelo Projeto Nova Cartografia Social do Brasil e pela Nova Cartografia Social
da Bacia do São Francisco. Desde 2009 são realizadas pesquisas etnográficas com esses
povos e como resultado a publicação de livros que dão voz a Babalorixás, Yalorixás e
Filhos de Santo de Terreiros.
Dessas experiências buscou-se o recorte da participação e iniciação de crianças
nos terreiros de candomblé nas cidades em que, até então, foram feitas as Cartografias.
Com exceção da cidade de Jaguarari, por motivo de desistência de última hora pela
Yalorixá do Terreiro que havia se disposta, as demais compõem as áreas para estudo na
proposição de um terreiro por cidade para a investigação/análise de conteúdo.
Em Juazeiro/BA a permissão dada para a realização da pesquisa no Terreiro
Bandalecôngo, localizado na Rua Padre Cícero, 504 – Palmares I, foi da Yalorixá Mãe
Maria de Tempo.
Em Petrolina/PE, o espaço sagrado para o estudo foi o Terreiro Ilê Dará Axé Omo
Logum Edé de Pai Adeilson (Pai Dedé), no Bairro Dom Avelar, na Rua do Cobre, nº07.
19
Figura 2 – Localização do
Terreiro Ilê Dará Axé
Omo Logum Edé
Figura 3 –
Localização do
Abassá da Deusa
Oxum de Idjemim
20
Artigo 1
RESUMO
ABSTRACT
The objective of this article is to analyze the educational processes in the initiation of
children in Candomblé Terreiros of three Northeastern cities in the Sertão of Brazil:
Juazeiro / BA (Terreiro Bandalecônco Mother Mary of Time), Petrolina / PE (Ilê Dará
Axè Omo Logum Edé de Father Adeilson) and Paulo Afonso / BA (Abassá of Goddess
Oxum de Idjemim) from the perspective of two Yalorixás (Mothers of Santo) and one
Babalorixá (Father of Santo). It consists of an ethnographic research, using analyzes of
1Este artigo foi submetido e publicado na REVASF, Petrolina-PE, vol. 7, n.14, p. 89-107, dez., 2017
ISSN : 2177-8183
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the content of the interviews of the religious authorities and how this has repercussions
in a ecology of the terreiros in the making of the rites and connections between the planes
of materiality and the spirituality associated with the representations of the orixás with
the kingdoms and elements from nature. In addition, there is an existential contribution
to children's participation in terreiros, characterizing a social process of learning and
transmission of knowledge for the maintenance or re-elaboration of religious cultural
traditions that pass from the oldest to the youngest.
INTRODUÇÃO
Figura 4 – Lideranças Religiosas - Em primeiro plano da esquerda para a direita: Mãe Maria de Tempo, Pai Dedé e
Mãe Edneusa (Arquivos do Autor, 2017)
O estudo desenvolvido neste trabalho traz à tona a vivência dos candomblés como
um elemento da religiosidade popular que, ao longo do tempo tem sido estereotipado pela
visão colonialista como uma negação que invisibiliza o direito dos praticantes dessa
religião de exercerem-na como tal.
Partindo desse ponto inicial, a pesquisa etnográfica foi adotada como viés para o
desenvolvimento da investigação por aproximar o pesquisador da realidade em estudo,
mediante a experiência, demonstrada por Macedo (2015) como algo que não sucede, que
2Autores: Juracy Marques, Joaquim Novaes, Iva Miranda Pires, Kerly Mariana Marques Xavier, Wellington Amâncio
da Silva, Alzení de Freitas Tomáz, Robson Marques
23
nos implica e, portanto, nos afeta, nos toca, nos mobiliza e também nos impõe,
comprometendo-nos. Para ele a experiência nunca nos deixa indiferentes e a experiência
e a subjetividade não se separam na sua constituição.
Nesta perspectiva foram acessados três terreiros de Candomblé (Bandalecôngo
em Juazeiro/BA, Ilê Dará Axé Omo Logum Edé em Petrolina/PE e Abassá da Deusa
Oxum de Idjemim em Paulo Afonso/BA). As entrevistas realizadas com um Babalorixá
e duas Yalorixás foram do tipo semiestruturadas, com vinte perguntas que, em síntese,
indagam sobre a identificação e a identidade pessoal e dos terreiros, sobre particularidades
da religião, preconceito e discriminação, elementos da natureza e suas relações com o
humano e o sagrado, sobre o que fazem as crianças nos terreiros, instrumento sociais e
legais de iniciação e memórias da iniciação.
A incursão em campo, considerando os primeiros contatos, passou pela
permissão/autorização para a pesquisa e a efetividade das gravações das entrevistas,
observações dos rituais com registros em diário de campo e fotografias, compreendendo
um período de janeiro de 2017 a março de 2018.
Tomou-se por estratégia o estudo de caso, visto tratar-se de uma questão ainda
pouco explorada na região e pelo contexto do estudo que faz um recorte para evidenciar
a participação de crianças no candomblé do Sertão (OLIVEIRA, 2008). O fechamento
metodológico para as inferências deu-se pela análise de conteúdo, seguindo as possíveis
categorizações descritas por Bardin (2016). Especificamente, as respostas das entrevistas
foram organizadas em seis eixos temáticos pelos valores semânticos dos conteúdos. Estes
eixos estruturam os tópicos analíticos que fundamentam os resultados e a discussão do
estudo.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Marques (2014) considera a Ecologia Humana como uma Ecologia que coloca
gente nos ecossistemas, estuda suas relações e reflete suas consequências. Nos Terreiros
do Sertão Nordestino brasileiro essa relação se particulariza e Mãe Maria de Tempo,
Yalorixá do terreiro Bandalecôngo, nos apresenta uma associação religiosa dos homens
com seus deuses intrinsecamente relacionada aos elementos do meio ambiente e a
natureza, dizendo-nos que tem tudo a ver porque o Orixá é a natureza e que:
Sem a natureza, sem as plantas, a gente não vive! Sem os animais, sem
o canto dos pássaros... A gente tem que cuidar. E no candomblé a gente
tem que saber a hora de fazer um banho. Tem que saber a hora de colher
aquela folha que vai precisar para aquele banho, se naquela hora exata
tá podendo pegar aquela folha ou não. Tem folha, tem ervas que a gente
planta lá na beira do rio. Planta aquela erva que é pra estar ali sempre
que a gente procurar. Se a gente não tem espaço dentro do terreiro, tem
que ir lá e plantar que é para quando a gente for procurar, precisar
daquela erva, a gente ter. Eu tenho costume de fazer isso com meus
filhos. A gente planta lá na beira do rio porque, destá, a natureza cuida.
Então a ligação é muito forte do Candomblé com as ervas e com os
animais. O Candomblé sem as ervas e sem os animais não é nada. Acho
que as pessoas sem as ervas, sem o candomblé, elas não existiriam,
porque tem tudo à ver (MÃE MARIA DE TEMPO, 22/07/17).
25
Para essa perspectiva de interação parece pertinente ouvir Pires e Craveiro (2014)
que assentem que a Ecologia Humana surge da necessidade de produzir conhecimento
para compreender a relação do homem com o seu ambiente, para responder a interrogação
de qual o seu lugar na natureza. Os autores julgam que essa interrogação desafia também
o pensar ético de um compromisso ecológico e sustentável entre a espécie humana e as
outras espécies, os recursos naturais e as formas de ocupação do território.
O Babalorixá do Ilé Dará Axé Omo Logum Edé, Adeilson Gomes (Pai Dedé),
também faz suas associações sobre a relação homem, natureza, religião e meio ambiente,
discorrendo que antigamente fazia muitos trabalhos em lugares como cachoeira, rios e
beira de mar, deixando, além das oferendas, também utensílios de vidro, barro e até metal,
mas que atualmente reflete, corrige sua conduta e tece suas criticas a este respeito:
Tem pessoas que levam balaios com vidros de perfumes, garrafa de
champanhe dentro dos balaios e jogam dentro do rio e eu não concordo
com esse tipo de atitude de alguns Babalorixás, Mães de Santo, etc. Eu
gosto de fazer minhas oferendas e lá eu coloco, mas os utensílios que
são usados, que são de metais ou de barro ou de vidro eu trago de volta.
Todas as vezes que eu vou na beira do rio que eu vejo alguma coisa lá
que eu vejo que a natureza vai passar centenas de anos para destruir, eu
pego e trago de volta para a minha casa. Não sei quem colocou, mas eu
trago de volta. Porque os peixes irão comer a comida, as sementes
cozidas, tipo, feijão. Alí, as criaturas que estão lá dentro, os seres vivos
que estão lá dentro, vão comer aquela comida que eu depositei lá,
simbolizando os Orixás e tudo. Agora vidro, perfume, sabonete eu não
gosto de colocar dentro dos rios. Não gosto de acender velas em matas
porque é um perigo. Eu peço Agô3 e tento fazer o possível para não
fazer esse tipo de coisa porque eu sei que existem muitos incêndios e
acabam com a natureza e tudo enfim (PAI DEDÉ, 26/07/17).
para nos fortalecer. Tem vários Orixás das matas: tem os caboclos, tem
os encantados, tem Ossaim, que é das matas, tem Oxossi. Tem deles
que pertencem tanto às águas quanto às matas, q’nem Logum Edé que
é um que pertence ao rio e pertence às matas. Eu, na minha teoria, digo
que todos pertencem a todos os elementos, mas só que tem aqueles que
são o foco. Muitas coisas eu associo à medicina. Digamos: tem o
cirurgião que ele é para tudo, mas tem deles que é especialista só
naquilo. Tem Orixá que é especialista só nas matas, mas isso não deixa
de ele pertencer aos outros locais (MÃE EDNEUSA, 15/07/17).
Vale recorrer a compreensão de Tomaz (2014) quando nos diz que os terreiros de
candomblé e outras vertentes religiosas não são apenas locais de ritos espirituais, mas
também, tradicionalmente, áreas de cultivos de ervas medicinais e por isso os movimentos
afrorreligiosos entram, ainda, na luta pela preservação ecológica.
As vozes das lideranças do Sertão são irmanadas ao discurso de Mãe Palmira de
Yánsàn, Yalorixá do Terreiro Ilé Omo Oya Leji, na Baixada Fluminense – RJ, dizendo
que o Candomblé vai contra a lógica que destrói o planeta e que esta religião lida com os
quatro elementos da natureza (ar, fogo, terra e água) e com os três reinos (vegetal, mineral
e animal), formadores da força dinâmica que tudo move e que tudo anima, o Axé
(CAPUTO, 2012).
Essa conexão de diálogos reelabora sentidos que podem ser entendidos como uma
cooperação de esforços na tentativa de estabelecer um ecossistema em equilíbrio,
particularmente nas práticas ritualísticas do candomblé no Sertão, visto os cuidados
dispensados aos elementos da natureza, presentes nos conteúdos das falas aqui analisadas,
contemplando a essência de uma ecologia humana que, pela especificidade da relação
também com os orixás e caboclos, pode assumir uma concepção de Ecologia Humana dos
Terreiros.
Corsaro (2011) nos diz que crianças são agentes sociais, ativos e criativos que
produzem suas próprias culturas infantis, enquanto, simultaneamente, contribuem para a
produção das sociedades adultas. Este mesmo autor infere que a infância é uma forma
estrutural, num período socialmente construído, possibilitando que as crianças vivam suas
vidas e que, enquanto forma estrutural, a infância é uma categoria ou uma parte da
sociedade, como classes sociais e grupos de idade nos quais são membros ou operadores
de suas infâncias. Ele ainda nos revela que para a própria criança a infância é um período
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temporário, mas que, para a sociedade, a infância é uma forma estrutural permanente ou
categoria que nunca desaparece, embora seus membros mudem continuamente e sua
natureza e concepção variem historicamente.
As Yalorixás e o Babalorixá nordestinos imergiram nas delicadezas e intimidades
de suas vidas para descreverem as histórias das suas missões ritualísticas e ancestrais até
chegarem a condição de Mães e Pai de Santo, em situações que se assemelham às histórias
e às condições de iniciação porque passam (ou passaram) seus Filhos de Santo ainda
crianças, numa elaboração infantil muito particular das religiões afro-brasileiras, neste
caso, nos terreiros de candomblé do Sertão Nordestino.
Dizendo-nos que sua relação com a espiritualidade, mais especificamente com o
Orixá Tempo, teve início aos sete anos de idade ao vivenciar sensações estranhas sem
causa aparente e incompreendidas pelos familiares, com tonturas e desmaios constantes,
inclusive em sala de aula, Maria da Paixão (Mãe Maria de Tempo) descreve como acessou
pela primeira vez o seu guia de cabeça:
Eu tinha sete anos, só que meu pai não sabia o que era. Antes de
completar quatorze anos, o som do atabaque me chamou. Fui fazer uma
visita no antigo Abassá de Xangô, hoje é o Onyndancor, e nesta visita
foi o meu começo de tudo. Eu, como criança, já ouvia o povo falar e,
do nada, com o som do atabaque a me chamar, esse Orixá me jogou no
chão e saiu bolando4 o chão todinho. Quando eu cheguei lá tomei a
bênção ao meu padrinho e me sentei. Ele começou a cantar lá os
negócios dele, e quando começou a cantar para Tempo, dizem que eu
não pulei, eu voei de lá do lugar que eu estava e fui cair num canto
bolando. Desse tempo para cá ele não me deixou mais (MÃE MARIA
DE TEMPO, 22/07/17).
4 Momento em que a divindade incorpora naquele que escolhera para reger a vida, normalmente não esperado por
quem é acometido, mas que sinaliza o início de uma relação do humano com o sagrado.
5 O Iaô é um/uma iniciado/a que se comprometeu em aprender e seguir as normas de conduta e orientação da religião
dos orixás
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É importante destacar que nos terreiros desta pesquisa a expressão mais comum
é “bolar no santo” e que das análises dos conteúdos das falas dessas lideranças religiosas
do Sertão, extrai-se que a inserção na religião deu-se, inicialmente, de forma inesperada,
indesejada e/ou pela busca da cura de enfermidades/doenças que os acometiam.
Da Cartografia Social dos Terreiros de Candomblé e Umbanda de Petrolina/PE e
Juazeiro/BA6, publicada em 2015, foi acessada a história em que Pai Dedé, além de relatar
as incertezas iniciáticas, descreve suas sensações enquanto criança:
Também a Yalorixá Edneusa, filha de Oxum com Oxossi e Yansã, cuja a djina8 é
Idjemim9, nesse ciclo em que as autoridades religiosas descrevem suas experiências
iniciais, enquanto crianças e também tendo os sete anos como idade ápice dos
acontecimentos, resume a história do seu processo de iniciação relatando que achou sua
infância difícil porque sua mãe sempre foi médium e desta mediunidade fazia muitas
travessuras. E conta-nos que:
6 Publicação da série Candomblé e Umbanda no Sertão, realizado pela Editora SABEH em 2015 do Projeto Nova
Cartografia Social do Brasil e Nova Cartografia Social da Bacia do São Francisco
7 Iniciar na religião seguindo os ritos de recolhimento e feitios para apreender os ensinamentos e fundamentos religiosos
Para este estudo buscou-se também, das lideranças religiosas, a descrição dos
sentidos que marcam o envolvimento, bem como os processos de aprendizagens, aqui
chamado de participação, das crianças iniciadas em seus terreiros. No Terreiro
Bandalecônco a pertença é marcada também pelos laços familiares, pois a Yalorixá Maria
de Tempo é mãe de Naian – criança de dez anos, iniciado aos seis anos - e avó paterna
de Kerlen, de oito anos de idade e iniciada aos setes anos.
O pai de Naian e esposo de Mãe Maria de Tempo não é iniciado, mas convive
harmoniosamente com os fundamentos e vivências da religião, visto que todos os seus
filhos (duas mulheres e dois homens, incluindo a criança Naian) são diretamente
envolvidos. Também os pais e a avô materna de Kerlen são de terreiro: o pai é Ogã, a
mãe é Mãe Kota a avó Mãe Pequena do Bandalecôngo. Constata-se, portanto, uma
religião caracterizada pela extensão da família e que naturalmente têm este espaço como
um lugar de aprendizagem e educação informal, pois Mãe Maria também costura, cozinha
e faz uso das ervas em comunhão familiar.
No Ilê Dará Axé Omo Logum Edé, de Pai Adeilson, foi possível constatar muito
da presença familiar como uma condição natural em que os ensinamentos são
transmitidos pela oralidade dos mais velhos para os mais novos ,numa cadeia contínua e
hierárquica onde o pai Ogã estende seu ofício ao filho, ensinando-o os toques nos
atabaques e como lidar com os animas durante os rituais de imolação e as mães também
11 Mãe Edneusa descreve a Jurema como sendo uma cabocla muito considerada, cheia de muito Axé, sagrada e de
muita caridade.
12 Espaço sagrado onde estão os fundamentos da Jurema e onde acontecem os ritos de atendimento.
30
às suas filhas quando dos cuidados com a limpeza, o preparo dos alimentos e os
ensinamentos dos fundamentos e as danças, enquanto Ekedi, Mãe Kota ou Mãe Pequena.
Também no Abassá da Deusa Oxum de Idjemim é marcante a presença de famílias
participando das atividades. Da família da Yalorixá, com exceção de dois filhos e o
esposo que não são iniciados, todos os seus outros três filhos (e também os filhos de santo
que inclui a adolescente Letícia – Abiã e filha de Euziane, Iaô do terreiro) a acompanham
na religião aprendendo os seus ensinamentos.
A Yalorixá do Terreiro Bandalcôngo revela-nos:
Meu menino Edmilson, que toca, é Ogã, o Alabê, ele nunca deu valor a
preconceito. Ele ia para escola, o povo xingava e ele não ligava. Mas
em compensação o outro filho meu que entrou, que era mais velho do
que ele, não gostou porque ele sentia vergonha quando o povo xingava
que eu era macumbeira: “filho de macumbeira!” Aí então ele terminou
13Termo utilizado, com frequência, como práticas das religiões afro-brasileiras pejorativamente (CAPUTO, 2012).
31
saindo. Ele saiu tinha doze anos de idade. Ele era Ogã de Oxum. Eu
ainda fui lá mais Alzeni, nós dissemos coisas: que isso não era certo,
que a escola não era para ensinar a ter preconceito. Então nós fomos e
a diretora garantiu que não ia mais acontecer. Mas quando garantiu, o
menino até a escola largou. Não queria ir mais. E tocava bem viu!?
Tocava melhor do que o outro. Agora se você me chamar: “vamos para
um debate sobre a discriminação!?” O que eu puder fazer eu faço, eu
vou. Eu gosto mais de debate porque se eu puder dar uma palavrinha,
mostrar para as pessoas que o Candomblé não é esse bicho que as
pessoas pintam e que elas têm a oportunidade de ver para poder falar,
eu falo e abro as minhas portas para elas verem o que é a religião
Candomblé (MÃE EDNEUSA, 15/08/17).
Foi preciso atenção e muito cuidado ao analisar os conteúdos das falas das
autoridades para não incorrer em generalizações, pois mesmo em se tratado de uma
mesma religião, cada terreiro apresenta suas particularidades e especificidade ritualística
na condução quando da participação de crianças (ensino e aprendizagem dentro dos
terreiros). Atentos a esta condição do Babalorixá Adeilson (Pai Dedé) ouviu-se que “em
Petrolina e em São Paulo, na casa de meu Pai Cido de Oxum é comum, pois a mãe é mãe é feita,
o pai é feito, aí os filhos acompanham” e que no seu terreiro:
Uma filha de santo minha incorporou quando ela era criança. Quando
foi iniciada, ela não manifestava e eu falei para todo mundo: “gente,
futuramente esta menina vai manifestar, ela vai entrar em transe. Olhei
no meu jogo de ifá e eu tenho certeza que ela vai incorporar
futuramente”. Porque quando uma pessoa não manifesta, muitos
Babalorixás, Mãe de Santo, Pai de Santo, iniciam como Ekedi ou Ogã.
Para Pai Dedé “a participação de crianças e velhos na religião cria um pouco mais
de respeito e credibilidade”. Para ele “onde tem criança e idoso, pode escrever que lá é
um lugar sério”. Quanto aos cuidados para que os fundamentos do candomblé sejam
aprendidos de forma sadia pelas crianças é enfático aos relatar que os adultos devem
servir como modelo e discorre:
Existem festas de Pomba Gira e Exu que gira muita bebida alcóolica e
cigarros, muito fumo. Então para uma criança, presenciar essas atitudes,
dessas entidades, eu acho que prejudica. É como se estivesse induzindo
a criança a ser futuramente uma pessoa alcóolatra, a beber, a fumar e aí
eu não sou muito de acordo. Eu acho que se tiver uma festa de Pomba
Gira, de Exu, entidade, a gente tinha que evitar que as crianças
participassem, mas não é porque ia fazer mal espiritualmente, mas no
sentido de, talvez, induzi-las futuramente. Então tem que ter este lado
de educação mesmo desde criança (PAI DEDÉ, 26/07/17).
A religião não pode parar, então quando a gente inicia crianças é sinal
que futuramente vai passa de geração para geração. Eu acho que é uma
continuidade para o futuro porque se a gente não tiver criança no
candomblé, na religião, ela vai se acabando. E eu acho que a gente tem
que passar alguns ensinamentos para elas para que as coisas não se
percam como já se perdeu muito. Que a religião era muito escondida,
muitos segredos. Todas as crianças que vão na minha casa presenciam
Borí18, Orôs, que são as imolações dos animais na casa e eles veem isso
com toda naturalidade, não têm medo de nenhum animal, nenhum
cabrito, nenhum pato, nenhuma galinha. Eles amam (PAI DEDÉ,
26/07/17).
Eu acho que um líder cria seu povo, a sua fé. Então eu vejo e passo para
os meus filhos de santo que a criança tem que vim, mas você não tem
que obrigar ela a ser aquilo que ela não quer ser. Eu acho que ela só
pode decidir quando ela estiver adulta. Se ela ver que essa religião que
ela frequentou é boa para ela, tudo bem, ela fica. E outra coisa que eu
não gosto é quando a mãe induz a criança a fazer aquilo. Eu acho que
ela tem que fazer espontânea, se ela quiser (MÃE EDNEUSA,
15/08/17).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
particularmente são possíveis nos terreiros que se firmam como espaços informais de
educar.
Por fim, deve-se considerar que o trabalho aqui realizado não dá conta das
demandas incorporadas pela temática Lideranças Religiosas e as crianças nos Terreiros
de Candomblé do Sertão do Brasil, o que pressupõe mais empenho em novas empreitadas
e com mais profundidade.
REFERÊNCIAS
KILEUY, Odé; OXAGUIÃ, Vera de. O candomblé bem explicado: Noções Bantu,
Iorubá e Fon. BARROS, Marcelo (org.). Rio de Janeiro: Pallas, 2011.
Artigo 2
Figura 5 – Pai e Mães de Crianças de Terreiro com seus respectivos filhos - Da esquerda para a direita: Euziane
(mãe) e Leticia (filha), Antônio (pai) e Davi (filho), Nadiane (mãe) e Kerlen (filha) (Arquivos Robson Marques).
RESUMO
Este artigo descreve como se dá a interação entre pais e filhos nos processos de ensino e
de aprendizagem dos saberes e conhecimentos religiosos (participação) de duas crianças
e uma adolescente de três Terreiros de Candomblé em três cidades do interior do Sertão
do Brasil, sob a perspectiva do pai de uma criança Ogã, da mãe de uma criança Iakekerê
e da mãe de uma adolescente Abiã, que vivenciam a cultura religiosa afro-brasileira no
nordeste. O presente trabalho é fruto de uma pesquisa etnográfica, que se valeu da análise
de conteúdo de entrevistas semiestruturadas. Para sua execução foi empreendido um
estudo de caso com anotações em diários de campo, gravações em áudio e registros
fotográficos. Após análises e categorização das falas dos entrevistados, inferiu-se que o
pai e as mães compreendem as vivências que seus filhos acessam nos terreiros como
processos estruturantes de ensino e aprendizagem imbricados de valores éticos, morais,
ecológicos, ambientais e humanos.
19 Mestrando em Ecologia Humana e Gestão Socioambiental – PPGEcoH/UNEB Campus III. Servidor Público –
Assistente de Alunos no IF Baiano campus Senhor do Bonfim/BA. E-mail: robsonmarquesambiente@yahoo.com.br
20 Prof. Orientador do Programa de Mestrado em Ecologia Humana e Gestão Socioambiental – Doutor em Filosofia
ABSTRACT
This article describes how the interaction between parents and children in the process of
teaching and learning the knowledge and religious knowledge (participation) of two
children and one adolescent from three Candomblé Terreiros of three cities in the
hinterland of the Sertão do Brasil, from the perspective of a father of a child Ogan, a
mother of a child Iakekerê and a mother of a teenager Abiã, experience the Afro-Brazilian
religious culture in the northeast. The present work is the result of an ethnographic
research, which was based on the content analysis of semistructured interviews. For its
execution a case study was carried out with notes in field diaries, audio recordings and
photographic records. After analysis and categorization of the interviewees' speeches, it
was inferred that the father and the mothers understand the experiences that their children
access in the terreiros as structuring processes of teaching and learning imbricated of
ethical, moral, ecological, environmental and human values.
INTRODUÇÃO
de Idjemim (Mãe Edneusa), situado na Rua Teofilândia, Bairro Barroca. Euziane é mãe
da adolescente Leticia Maria de treze anos de idade.
Objetivamente a intenção deste trabalho foi descrever as interações entre
pais/mães e filhos/filhas religiosos para a compreensão de como se estabelecem os
processos de participação e iniciação de crianças em terreiros de candomblé no Sertão do
Brasil sob o olhar de um pai e duas mães de duas crianças e de uma adolescente
candomblecistas.
MATERIAIS E MÉTODO
duas mães de pessoas (duas crianças e uma adolescente) que vivenciam a religiosidade
candomblecista no sertão nordestino do Brasil.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Antônio, Ogã do Terreiro Ilê Dará Axé Omo Lgum Edé e pai biológico de Davi,
criança de sete anos, também relaciona seus Orixás com a natureza e a interação
homem/divindade:
Desde que eu passei a me aprofundar no Candomblé, passei a estudar
que a pessoa vê: Oxalá representa a pomba da paz; Oxum e Iemanjá
representam a água doce, os rios e o mar. Xangô, os raios, a justiça.
Iansã, é os ventos, as tempestades. Tudo faz parte da natureza. Quando
a gente quer resolver alguma causa, que a gente quer justiça, sempre se
entrega a Xangô (ANTÔNIO, 26/07/17).
Inferimos das falas desses conteúdos uma elaboração das relações com o sagrado
e a natureza que estruturam as Ecologias Humanas dos terreiros do sertão numa
concepção muita semelhante a que muitos teóricos acadêmicos publicam. Para muitos
43
Mãe Beata do terreiro Ilé Omiojuaro, no Bairro Miguel Couto, Nova Iguaçu- RJ,
conta-nos que em seu terreiro todas as diferenças são respeitadas e que partilham essa
conduta com suas crianças para que as elas cresçam partilhando o amor, as coisas de seu
Egbe22 e aprendem, fundamentalmente, a respeitar a ancestralidade (CAPUTO 2012).
Cosaro (2011) nos diz que as crianças criam e participam de suas próprias e
exclusivas culturas de pares quando selecionam ou se apropriam criativamente de
informações do mundo adulto para lidar com suas próprias e exclusivas preocupações,
mas que mesmo desempenhando um papel ativo na produção de rotinas culturais com
adultos, elas geralmente ocupam posições subordinadas e são expostas a muito mais
informações culturais do que elas podem processar e compreender.
Para Kileuy e Oxaguiã (2011) iniciar-se no candomblé é renascer para um novo
mundo como uma pessoa mais segura e mais forte religiosa e psicologicamente e também
estabelecer uma ligação da sua vida física com a vida sagrada, surgindo assim uma nova
22Egbé significa Sociedade: designa a Sociedade dos Espíritos Amigos e se refere, simultaneamente, a um orixá e a
uma irmandade ou corporação de seres espirituais: trata-se de Èré igbó ou Aráagbó, que significa Habitante da floresta
ou Habitante do além. (fonte: http://yorubabrasil.wixsite.com/yorubabrasil/egb).
44
aliança, uma nova união. Para os autores, depois da iniciação, as pessoas têm a capacidade
e a possibilidade de ajudar a conduzir melhor o seu destino permitindo que seu orixá aja
permanentemente no seu dia-a-dia, ajudando na construção de uma vida mais harmoniosa
e próspera.
Nadiane, Mãe Kota do Terreiro Bandalecôngo, aquela que cuida transmitindo os
saberes/conhecimentos para os que se iniciam, descreve as circunstâncias que a levaram
aos cuidados e a cuidar dos Orixás:
Ainda sobre quando essa missão fora revelada e como se deu seu processo de
iniciação, Nadiane descreve que Kerlen tinha três anos de idade, mas que só aos sete foi
feita sua iniciação:
Ela ficou nessa preparação vinte e um dias recolhida pra iniciar e depois
de iniciada ela passou mais três meses que são o resguardo, que a gente
chama, as restrições de várias coisas. Depois dos três meses ficou
restringida mais um ano para que tudo que foi feito na iniciação dela
não desse errado. Aí por conta disso tem essas restrições como não
23 A mãe de Nadiane, portanto avó materna de Kerlen, é a atual Mãe Pequena (Iakekerê) no Terreiro.
45
Para a mãe Nadiane esse cuidado faz parte de uma escolha que não foi só da parte
dela, pois a princípio ela não queria, mas que depois de conversar com Kerlen e ouvir da
filha “oxe mãe, eu quero! É bonito, eu quero participar, quero ajudar a vovó24”, resolveu
seguir as orientações dos Orixás. A Mãe Kota e mãe revela que hoje Kerlen ajuda na parte
da preparação e organização dos fundamentos, que seu Orixá de cabeça é Iansã e o ajuntó
Oxossi. Também que a raspagem da cabeça significa renovar os pensamentos, para uma
nova consciência de um novo ciclo que se inicia tanto na vida religiosa quanto na vida
social e que ela só não participa de trabalho braçal e pesado porque, apesar de tudo, ela
ainda é uma criança, “Kerlen na sociedade é uma criança normal: brinca, corre... Em casa
é uma menina preguiçosa, não quer fazer nada, só quer dormir. E aqui (no terreiro) ela é
bem ágil”.
Segundo Antônio, pai e ogã, o candomblé “é uma religião que você é escolhido”.
E acerca da sua iniciação nos diz que quando chegou no Ilé Dará Axé Omo Logum Edé,
há quatorze anos, e num cenário bastante diferente do atual no qual a casa ainda não era
rebocada e apenas coberta de palha de coco, uma “coisa” lhe disse que era ali que ele se
firmaria e que Ossain seria seu mentor, mesmo ele acreditando que seria filho de um outro
Babalorixá de Petrolina.
Afirmando que a condição de estar no candomblé nem sempre é uma escolha e
que, por conta do gênero, a discriminação pode ser mais acentuada, Antônio assegura que
o seu filho Davi não amargou a discriminação da mesma forma que a sua filha, pois para
ele:
Homem pode raspar de boa e não tem problema. Já a minha filha sofreu
discriminação a ponto de ter que mudar de escola. Ela teve que mudar
de umas duas escolas porque ela tinha o cabelão bem grande, aí quando
ela raspou, apareceu do nado com o cabelo pequeno. Aí sofreu, de certo
modo, discriminação. Como as pessoas não entendiam, uns diziam que
ela estava doente, depois que ela falou que era do candomblé algumas
pessoas, mesmo assim discriminavam (ANTÔNIO, 26/07/17).
Quanto aos cuidados com sua filha, Euziane diz que tem falado muito com Letícia
a respeito da sua obrigação (obrigação de feitura que será realizada brevemente, previsto
para dezembro de 2017) e como tal situação poderá impactar suas relações na escola:
Às vezes ela falta na primeira quinta-feira do mês para vir para a Jurema
e a gente diz: “ah! porque vou sair com o teatro28, vou para uma
apresentação, vou ao médico, vou fazer alguma coisa...”, mas ela me
disse: “mãe, eu vou dizer para onde eu vou”. Ai eu perguntei se ela tava
preparada porque ela não sabia como os outros iam aceitar ou o que ela
ia ouvir. Então a gente dialoga muito com ela neste sentido. Mas ela
27As forças, as energias que orientam o equilíbrio. Uma ordem de Orixás e/ou Caboclos que compõem uma sequência
hierárquica como dos elos que formam uma corrente.
28
Euziane e Leticia compõem uma companhia de teatro da cidade em que moram.
48
disse que na sala dela alguns professores sabem que ela é do Candomblé
(EUZIANE, 14/08/17).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A organização das sínteses dos conteúdos das falas de um pai e de duas mães de
crianças e da adolescente de terreiros, e que também são homem e mulheres do candomblé
no Sertão constitui um exercício que provoca também a análise das análises, vistos todos
os sentidos envolvidos: da família à sociedade; da coletividade ao individual, mas
principalmente pela ótica da religiosidade que foge aos olhos da razão para fazer morada
na subjetividade das existências dos seres humanos e não humanos.
A Ecologia Humana no terreiro Bandalecôngo, segundo Nadiane, vai além da
relação com os animais que alimentam as energias (Orixás, Caboclos, Encantados e
Nkisi) com seu sangue, estendendo à comunidade com movimentos e atitudes de
solidariedade (ajuda). E quanto à iniciação da sua filha Kerlen, Nadiane, dá-nos o
entendimento de que estar e ser integralmente de candomblé exige comprometimento e
muita dedicação, mas que apesar de tamanha responsabilidade atribuída a Kerlen depois
da iniciação, Nadiane nos assegura que ela (Kerlen), na sociedade, é uma criança normal:
brinca, corre é preguiçosa e ágil.
Do Ilé Dará Axé Omo Logum Edé, Antônio relaciona a Ecologia Humana com as
forças presentes na natureza associando a representatividade dos Orixás a tais elementos,
dando como exemplo Xangô pela justiça e Oxum e Iemanjá, Orixás presentes na água
doce e na água salgada respectivamente. Ele é objetivo ao relatar que ser de candomblé
nem sempre é uma escolha, mas uma orientação divina.
49
REFERÊNCIAS
AMÂNCIO, Wellington; ANDRADE, Maria José Gomes de; MIRA, Feliciano José
Borralho de. A ECOLOGIA HUMANA E AS GENTES DO SERTÃO
NORDESTINO. In: NOGUEIRA, E. et. al.(Orgs). OS SABERES POPULARES NO
VIÉS DA ECOLOGIA HUMANA. Paulo Afonso: SABEH, 2016, 30-53.
ARAÚJO, Sergio Murilo Santos de. A Natureza na História do Homem:
Considerações sobre a contribuição da Geografia na Ecologia Humana e na História
Ambiental. In: MARQUES, Juracy (Org.). ECOLOGIAS HUMANAS. Feira de
Santana: UEFS Editora, 2014, 313-322.
BARDIN, Laurence. Análise de Conteúdo. Trad.: Luiz Antero Reto e Augusto Pinheiro. São
Paulo: Edições 70, 2016.
50
CAPUTO, Stela Guedes. Educação nos Terreiros e como a escola se relaciona com
crianças de Candomblé. Rio de Janeiro: PALLAS, 2012.
CORSARO, William A. Sociologia da Infância. Porto Alegre: Artmed, 2011.
KILEUY, Odé; OXAGUIÃ, Vera de. O candomblé bem explicado: Noções Bantu,
Iorubá e Fon. BARROS, Marcelo (org.). Rio de Janeiro: Pallas, 2011.
Artigo 3
Este estudo firma-se como um recorte das realidades experienciadas por três crianças e
uma adolescente de três Terreiros de Candomblé nas cidades de Juazeiro/BA,
Petrolina/PE e Paulo Afonso/BA (Sertão Nordestino Brasileiro), cujo principal objetivo
foi descrever, sob suas próprias percepções, como se estabelecem suas relações no
processo de participação (iniciação, ensino e aprendizagem dos saberes) nesses espaços
de cultos religiosos afro-brasileiros. Pela pesquisa etnográfica foram entrevistadas duas
crianças no Terreiro Bandalecôngo de Mãe Maria de Tempo, em Juazeiro/BA; uma
criança no Terreiro Ilé Dará Axé Omo Logum Edé de Pai Adeilson, em Petrolina/PE e;
uma adolescente no Abassá da Deusa Oxum de Idjemim, em Paulo Afonso/BA. Os
discursos foram interpretados a partir da Análise de Conteúdo, segundo Bardin (2016).
Concluiu-se que as relações envolvendo criança, infância, religião, família e comunidade
são fundamentais para a construção e (re) elaboração de conhecimentos e saberes no
processo de ensino e de aprendizagem dentro e fora dos terreiros.
ABSTRACT
This study is a reflection of the realities experienced by three children and one adolescent
from three Temples of Candomblé in the cities of Juazeiro / BA, Petrolina / PE and Paulo
Afonso / BA (Sertão Nordestino Brasileiro), whose main objective was to describe, under
their own perceptions, how their relationships are established in the process of
participation (initiation, teaching and learning of knowledge) in these spaces of Afro-
Brazilian religious cults. Two children were interviewed by ethnographic research in
Terreiro Bandalecôngo de Mãe Maria de Tempo, in Juazeiro / BA; a child in the Terreiro
Ilé Dará Axé Omo Logum Edé of Pai Adeilson, in Petrolina / PE and; a teenager in the
Abassá of the Goddess Oxum de Idjemim, in Paulo Afonso / BA. The method used was
that of Content Analysis, according to Bardin (2016). It was concluded that the
relationships involving children, childhood, religion, family and community are
fundamental for the construction and (re) elaboration of knowledge and to know in the
process of teaching and learning inside and outside the temples.
29
Artigo apresentado na XXIII International Conference Society for Human Ecology “Navigating complexity: human-
environmental solutions for a challenging future” – Lisboa, Portugal, July 7-10, 2018.
30
Mestrando em Ecologia Humana e Gestão Socioambiental – PPGEcoH/UNEB Campus III. Servidor Público –
Assistente de Alunos no IF Baiano campus Senhor do Bonfim/BA. E-mail: robsonmarquesambiente@yahoo.com.br
31 Prof. Orientador do Programa de Mestrado em Ecologia Humana e Gestão Socioambiental – Doutor em Filosofia
INTRODUÇÃO
Corsaro (2011) infere que, pela concepção teórica tradicional, em que grande parte
do pensamento sociológico sobre criança e infância deriva do trabalho teórico sobre
socialização, processo pelo qual as crianças se adaptam e internalizam a sociedade, a
criança é vista como alguém apartada da sociedade, que deve ser moldada e guiada por
forças externas a fim de se tornar um membro totalmente funcional. Ele nos diz que, no
modelo determinista, a criança desempenha basicamente um papel passivo, no qual é,
simultaneamente, uma “iniciante” com potencial para contribuir para a manutenção da
sociedade e uma “ameaça indomada”, que deve ser controlada por meio de treinamento
cuidadoso. Ainda para este autor, no modelo construtivista, a criança é vista como um
agente ativo e um ávido aprendiz, perspectiva na qual a criança constrói ativamente seu
mundo social e seu lugar nele.
Nas suas pesquisas Caputo (2012) informa que, enquanto pesquisadora, tenta
“enquadrar” aspectos da realidade e recortar da imensidão observada uma imensidão
menorzinha, sobre a qual se pode olhar mais detidamente e que o terreiro lhe oferecia o
infinito, mas que focou suas observações conversando, entrevistando e fotografando
especialmente as crianças relacionando-as a comunidade de terreiro como um todo.
Tomando essas concepções como orientação para se chegar a uma possível
descrição/compreensão dos processos que envolvem crianças na aprendizagem e na
socialização dos conhecimentos e saberes das religiões de matrizes africanas, mais
especificamente do Candomblé no Sertão, foram realizadas entrevistas semiestruturadas
com três crianças e uma adolescente de três terreiros de Candomblé em três cidades do
nordeste brasileiro.
Do Terreiro Bandalecôngo (Juazeiro/BA) foram entrevistadas as crianças Kerlen
de oito anos de idade, iniciada no candomblé aos sete anos, e Naian de dez anos de idade,
iniciado na religião quando tinha seis anos; Do Terreiro Ilê Dará Axé Omo Logum Edé
(Petrolina/PE), foi entrevistada a criança Davi de sete anos de idade, iniciado aos quatro
anos e; Do Abassá da Deusa Oxum de Idjemim (Paulo Afonso/BA), o conteúdo analisado
foi o da fala de Leticia de treze anos de idade, iniciada aos dez anos.
53
MATERIAIS E MÉTODO
(2016), a qual propõe a categorização do conteúdo das falas, como um dos métodos
possíveis de análise.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
33
Autoridade religiosa que conduz o terreiro.
34 Para Kileuy e Oxaguiã (2011) o sentido de “fazer ebó” firma-se em rituais que permitem o fortalecimento da vida
espiritual, como também faz parte dos rituais que ajudam a afastar as forças negativas, que trazem a instabilidade. São
elementos que podem ser ofertados para Exu, eguns e Edus e também para os orixás e demais divindades.
35
Da fala de Naian o sentido apreendido é o daquele que lida com ebó, mas que, segundo a Mãe Kota, ele não exerce
o cargo ainda.
36 Para Prandi (2003), a Umbanda é um ramo afro-brasileiro e se formou no século XX, no Sudeste, e representa uma
síntese do antigo Candomblé da Bahia, transplantado para o Rio de Janeiro na passagem do século XIX para o XX,
com o espiritismo kardecista, que veio da França no final do século XIX (MARQUES e NOVAES, 2015, p. 33).
55
Davi, criança do Ilê Axé Dará Omo Logum Edé, afirma que é Ogã37, que gosta de
tocar atabaques e que lida com os animais de forma tranquila. Assume ainda que é de
Candomblé, verbalizando sua defesa conceitual do que diferencia Candomblé de
Umbanda: “Umbanda toca bateria e Candomblé toca atabaque”. Descreve também como
cuida das plantas: “Boto água e deixo no sol.” E o porquê de gostar de cobras e não temê-
las: “porque eu sou de cobras38”, aludindo ao seu Orixá de Cabeça, Oxumaré.
A criança esboça naturalidade ao falar que presencia seu pai e seus tios (que
também são Ogãs) nos rituais e já realiza as imolações para oferecer às divindades. Na
condição de Alabê, Davi auxilia o pai e os tios em funções específicas de Ogã Axogum.
A este respeito Caputo (2012) nos diz que:
Ela faz uma associação na relação da religião com a natureza e adverte quanto ao
comportamento ecológico do homem sobre os elementos:
É muito igual porque a cobra, por exemplo, tem um deus que domina
ela, que é Oxumaré. Tem a floresta que quem manuseia é o Oxossi e as
folhas Ossaim. Tem a lama que é a Nanã, tem o rio de água doce que é
a Oxum. Tem a de água salgada que é Iemanjá. Tudo se bate com a
realidade do Candomblé. Eu acho que o candomblé é mais a realidade
da natureza do que a igreja católica.
Mas o homem tem que ter consciência daquilo que ele está fazendo.
Exemplo: tem um deus que vai dizer o que é que ele tem que fazer?
37 Autoridades masculinas, de posto hierárquico abaixo do/a sacerdote/sacerdotisa, e seus auxiliares diretos, assim
denominados pelo povo ioruba. Na nação fon recebem o nome de runtó/huntó e na nação bantu são chamados de
xicaringome/xincarangoma. Estes homens, tal como as equedes, não entram em transe (Kileuy e Oxaguiã, 2011, p. 60).
38
Pai Dedé ratifica que Davi é filho de um Orixá chamado Oxumarê que na religião é uma cobra. Por isso que ele é
apaixonado por cobras.
39 Traz a ideia de inicio, de nascimento, representa o começo, é um pré-iniciado, o primeiro momento do futuro iaô.
56
Não! Tem que partir dele, não é dos outros. Porque cada vez mais a
gente encontra uma floresta desmatada. O povo sempre questiona por
que não chove ou por que ali choveu muito e aqui não choveu. Talvez
onde não choveu era onde estava tudo desmatado e onde choveu é
porque eles preservaram (LETÍCIA,13/08/17).
40 Trata-se de um documentário disponível nas redes e plataformas sociais, que foi acessado no dia 09-02-2018
(https://www.youtube.com/watch?v=6YFTh2yEPlk), mas que não dispõe da data de sua produção.
41
Livro organizado por Juracy Marques, Maria Rosa de Almeida Alves e Robson Marques
42 É o nome da nossa cabeça física para os iorubas; camutuê ou mutuê para os bantus; e tá para a nação fon. O orí é
uma divindade que serve apenas a seu filho, pois é individual e unitário (KILEUY e OXAGUIÃ, 2011).
58
mas eu acho que foi eu que escolhi.” E revela que seus guias de frente são: “Oxossi de
cabeça e Oxalá, Iemanjá e Oxum vem depois.”
Infere-se, do conteúdo das falas de Naian, o quanto a sua realidade religiosa está
em constante conflito com os olhares alheios a sua religião no cotidiano escolar pela
relação relatada com seu colega, mas que é sustentada pela convicção das vivências com
sua mãe biológica e também de santo.
Davi falou apenas que tem um colega que é de um outro terreiro, e que na escola
não percebiam nada de diferente. Ele, com respostas inusitadas e próprias da sua faixa
etária, diz que foi com seu tio Mida que aprendeu a tocar. E, quando é perguntado quais
os métodos que seu tio utilizava para o ensinar ele, verdadeira e infantilmente, responde:
“Ensinando! Eu olhava e aprendia”. Essa fala traduz uma das formas como se dá a
educação nos terreiros: ainda fortemente baseada na tradição oral, as crianças observam,
ouvem e aprendem.
Letícia revela-nos que por ser de Terreiro de Candomblé já foi discriminada, já
passou por alguma situação preconceituosa:
Tem uma colega minha, da escola, que ela é crente. Ela não acredita
nisso e tal. Se eu for com um colar assim eu já sou macumbeira, eu já
sou aquela que faço feitiço para o povo, jogo aquilo no povo e tal. Aí
quando eu chegava lá ela começava a dizer coisas, começava a rir de
mim. Aí, aula de religião, a professora começou a falar do Candomblé
e perguntou quem era do Candomblé. Eu disse que eu era e tinha uma
outra colega que era também. Aí essa menina (crente) foi querendo
inventar coisa e tal. Eu disse a ela: do mesmo jeito que eu respeito a
sua, você tem que respeitar a minha. Eu tenho a minha escolha, você
tem a sua. Eu disse isso para ela e mais nada. E hoje ela é de boa com a
religião. Ela nunca mais disse nada. Vou de colar e tal, nunca mais disse
nada (LETÍCIA,13/08/2017).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
nos terreiro mantendo a ingenuidade e a pureza peculiares das suas idades firmando suas
infâncias no contexto da religiosidade e também enquanto seres ativos e criativos.
Kerlen e Davi economizaram na verbalização das respostas, mas se mostraram
muito atentos e encantadores pelo desprendimento na reelaboração das suas realidades.
O conteúdo das falas de Davi, em especial quando relata que “Umbanda toca bateria e
Candomblé toca Atabaque”, parece evidenciar um afastamento do argumento adulto de
que são as entidades, os ritos, os toques, as músicas, as oferendas e, mais genericamente,
o rito de raspar ou não raspar a cabeça o que representa esse diferencial (distinção entre
candomblé e umbanda), ratificando sua autêntica interpretação.
Naian também envolve a musicalidade quando se dispõe a distinguir Candomblé
de Umbanda, o que é muito pertinente, visto sua condição também de Ogã. E que muito
provavelmente a discriminação vinda das pessoas externa à sua religião, o faz se entender
melhor com os seres que não o julgam: os animais não humanos, “os bichos”.
É preciso considerar também ainda que Letícia define Candomblé como sendo um
ritual de fé sincretizado no Catolicismo (religião Cristã)43. Associando os elementos da
natureza com os orixás, em seu discurso, ela compara sua religião com a igreja católica
emitindo que o candomblé vivencia mais a realidade ambiental e também relativiza as
responsabilidades sinalizando que, na hierarquia de cuidados, tá faltando muito da parte
dos humanos.
A respeito dos sentimentos dos seus processos de aprendizagem e iniciação, as
crianças e a adolescente de terreiros do Sertão do Brasil descrevem o quanto de
brincadeira, beleza, saberes e conhecimentos há em tocar atabaques, cantar, dançar,
auxiliar nos preparos ritualísticos, bem como se conectar em planos distintos (o terreno e
carnal com o ancestral e divino) reelaborando e ressignificando, dentro das suas
perspectivas infantis, as realidades culturais e religiosas do candomblé compartilhadas
com os adultos.
Pode-se inferir da fala de Kerlen que da parte de seus colegas há mais curiosidade
que discriminação quando pedem para vê-la dançando, mas nem as perguntas nem as
respostas dão conta de argumentos capazes de um desfecho conclusivo. De Naian, infere-
se o quanto é violento para ele ser rotulado de macumbeiro a ponto de não ter coragem
de contar para os colegas e professores que é de Candomblé, temendo maiores retaliações
43
A este respeito a Yalorixá Mãe Maria de Tempo diz-nos que, no inicio, lá quando começou tudo para a sociedade
aceitar um pouquinho o candomblé, precisou-se esconder muita coisa. Então tiveram que comparar o Orixá que
incorporava na pessoa com o Santo da igreja católica.
61
o que pode estar colocando-o, como muitos de terreiro, numa posição de invisibilidade
religiosa.
E o sentimento de pertencimento de Leticia é ratificado por toda a sua história de
dedicação e reciprocidade quando dos seus aperreios serem devidamente cuidados dentro
dos ritos da sua religião. Crianças nos terreiros, para Leticia, ganha sentido de uma
realidade com liberdade e espontaneidade nesses espaços pelos comportamentos
naturalmente vivenciados, o que faz do seu discurso uma pérola visto a autonomia e
autenticidade das suas descrições.
Por fim destacamos quão importante foi escutar as próprias crianças e a
adolescente a respeito das suas vidas, das suas escolhas e das suas participações no
candomblé. Suas falas são ventos fortes contra toda a montanha de preconceitos,
discriminações e intolerâncias estruturados contra o candomblé e, particularmente, sobre
a iniciação de crianças em religiões afro-brasileiras. As construções, interpretações e
(re)elaborações infantis próprias do contexto histórico marcantes do povo negro ratificam
que as crianças de candomblé do Sertão são Folhas Pequenas que nos ensinam grandes
lições.
REFERÊNCIAS
BARDIN, Laurence. Análise de Conteúdo. Trad.: Luiz Antero Reto e Augusto Pinheiro.
São Paulo: Edições 70, 2016.
GIL, Antonio Carlos. Como Elaborar Projetos de Pesquisa. 5. ed. São Paulo: Editora
Atlas, 2010.
HIGINO, Mônica Estela Neves. As relações da criança candomblecista no espaço
social da escola. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Pedagogia) –
Universidade do Estado da Bahia, Salvador. 2011. 43f.
62
KILEUY, Odé; OXAGUIÃ, Vera de. O candomblé bem explicado: Noções Bantu,
Iorubá e Fon. BARROS, Marcelo (org.). Rio de Janeiro: Pallas, 2011.
Resultados e Discussão
Pra gente é uma alegria danada, ela não tem maldade com nada, a
criança não tem maldade, é uma coisa que realmente passa pra gente
que é uma coisa pura. Muito emocionante ver uma criança
manifestando, dá alegria. Dá uma forte emoção e eu acho muito legal
(MARQUES e NOVAES, 2015).
Numa entrevista feita por Maria José Quados, publicada no Jornal O Globo Pierre
Verger fala que o candomblé é admirado e respeitado também pelos brancos, e isso faz
com que se tenha um certo orgulho de ser negro e que do ponto de vista psicanalítico o
candomblé é muito importante, com uma grande vantagem: na psicanálise há o
psicodrama, as pessoas são levadas a representar publicamente o que está escondido em
sua personalidade, mostrar seu lado mais vergonhoso, enquanto que no candomblé é
o contrário, isso ocorre em clima de festa, a gente pode mostrar o que é e ser admirado,
porque afinal de contas não é a pessoa que está fazendo ou dizendo aquelas coisas, é o
orixá (VERGER, 16/08/92).
A este respeito as falas dos povos de terreiro convergem sempre para o sentido da
lógica da preservação, conservação e manutenção dos ambientes naturais como as
cachoeiras, os rios, as matas, os oceanos dentre outros elementos que se constituem como
moradas sagradas dos seus Orixás, Caboclos, Nkisi e Encantados, pois nas relações
ritualísticas a interação é indissociável.
Considerações Finais
BARDIN, Laurence. Análise de Conteúdo. Trad.: Luiz Antero Reto e Augusto Pinheiro. São
Paulo: Edições 70, 2016.
BERNO, Alfredo Wagner; SANTOS, Juracy Marques (org.). CANDOMBLÉ E
UMBANDA NO SERTÃO: Cartografia Social dos Terreiros de Candomblé e Umbanda
de Jaguarari/BA. Manaus: EUA, 2010. 212p.
CAPUTO, Stela Guedes. Educação nos Terreiros e como a escola se relaciona com
crianças de Candomblé. Rio de Janeiro: PALLAS, 2012.
CORSARO, William A. Sociologia da Infância. Porto Alegre: Artmed, 2011.