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SOBRE ALMAS E ANGOLA.

Informações básicas para os integrantes do Projeto IPHAN-NUER/UFSC


de mapeamento de religiões afro-brasileiras na Grande Florianópolis.

Franco Delatorre1

ATENÇÃO: texto de circulação exclusiva entre os integrantes do referido Projeto.


NÃO AUTORIZADA SUA REPRODUÇÃO OU COMPARTILHAMENTO COM
TERCEIROS SEM PRÉVIA AUTORIZAÇÃO.

Introdução.
Esse texto foi elaborado com o intuito de auxiliar o processo de familiarização dos
integrantes do Projeto de Mapeamento das religiões afro-brasileiras na Grande Florianópolis,
realizado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) e pelo Núcleo de
Identidades e Relações Interétnicas (UFSC), com a religião de Almas e Angola. Nas linhas que
seguem, há um breve histórico da religião, seguido por descrições básicas sobre os sujeitos que a
compõem, a estrutura básica dos templos (os ‘terreiros’), seus principais rituais e ainda outros
aspectos relevantes para pesquisas iniciais. Cabe frisar que a abordagem generalizante pretendeu
apenas traçar linhas bastante gerais sobre essas práticas, que de fato são muito mais variadas e
complexas do que qualquer dos aspectos que aqui será tratado.

1 Doutorando em Antropologia Social pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (UFSC).

1
1. breve histórico
A narrativa consagrada entre os religiosos de Almas e Angola sobre o surgimento de sua
religião em Florianópolis remete à mãe-de-santo Guilhermina Barcelos, 'Mãe Ida', que teria trazido
tais práticas rituais há mais de meio século do Rio de Janeiro (estado onde atualmente a religião
seria inexistente). Como resumido por Cardoso e Head, os praticantes inserem Almas e Angola
no conjunto de práticas rituais afro-brasileiras e ao mesmo tempo remetidas às influências
das práticas do espiritismo e do cristianismo […] Almas e angola guarda muitas
semelhanças com a umbanda, mas, segundo seus praticantes, aproxima-se também do
candomblé por causa da influência de seus rituais de reclusão [, de imolação animal,] e
iniciação. Se a distinção com o candomblé se manifesta publicamente nos cânticos em
português e no próprio conjunto de divindades cultuadas pela almas e angola, para os [...]
os filhos de santo a diferença está marcada pelo que descrevem ser a ênfase na “caridade”
em suas práticas religiosas (2013, p. 269).

Giovani Martins (2006) escreve que foi o falecido Pai Evaldo quem introduziu uma “nova
fase” em Almas e Angola, após Mãe Ida passar a frequentar Candomblé na década de 70. Em 1986,
ainda segundo Martins, Evaldo vai ao encontro de Ida, convidando-a para voltar para Almas e
Angola. O convite foi aceito, e as “inovações” já feitas por Evaldo foram somadas aquelas feitas
pela própria Ida, influenciadas pelo candomblé – são elas: os Reforços de Camarinha (Reforços de
7, de 14 e de 21 anos), os Assentamentos para os Orixás, o Oráculo via búzios, e o sacrifício de
galinhas d’angola brancas (Martins, p. 28). Juntos, esses ritos formaram um modelo ritualístico
seguido por “90% dos Terreiros” (ibidem).
As definições nativas quanto à religião divergem, e é possível ouvir que Almas e Angola é
'uma religião de matriz africana'; que 'não é uma religião' distinta, mas 'um ritual da umbanda' (uma
vertente ritualística da umbanda); que é uma 'mistura de umbanda e candomblé'; que é a “umbanda
catarinense” (Martins, 2006); e, mais recentemente, tem sido chamada de 'nação' 2 (cf. Martins,
2010). É a religião afro-brasileira, ou de matriz africana, que em Santa Catarina possui o maior
número de adeptxs (filhos ou filhas-de-santo, pais e mães-de-santo) e de templos (também
chamados de terreiros, tendas, centros, casas, etc.).
São os religiosos que explicam que o termo “almas” refere-se ao trabalho espiritual com os
espíritos de desencarnados, e “Angola” alude à África e ao culto dos orixás (cf Martins 2006, p. 33).

2 Estas autodenominações também são abordadas por Alves (2008) e por Farias (2008), entre outrxs. Obs.: ao longo
desse texto uso aspas simples para expressões próprias do povo-de-santo.

2
2. o ‘povo-de-santo’
Quando se fala no povo-de-santo3, fala-se de um coletivo formado, de um lado, por humanos
‘encarnados’ (nós, o chamado ‘povo-da-terra’ ou ‘o povo-de-cá’) e, de outro, por humanos
‘desencarnados’ (os espíritos, chamados também pelo nome genérico de ‘entidades’) e orixás
(unanimemente descritos como sendo ‘as forças da natureza’). Estes dois últimos formam o ‘povo-
de-lá’, habitantes do ‘mundo espiritual’, mais conhecido como o ‘povo de Aruanda’.

2.1. o ‘povo-de-lá’ (as/os orixás)


Os orixás em Almas e Angola são apresentados em imagens no Altar (ver Desenho 01,
página 13) e espalhadas pelo terreiro (em mais imagens ou em quadros, por exemplo), geralmente
através de santos católicos. Os esquemas a seguir trazem parcialmente algumas correlações com
as/os orixás – são nove cultuados em Almas e Angola:

ORIXÁ SANTO/A CORES (dos fios de contas ELEMENTO NATURAL


e das roupas) OU CULTURAL
Oxalá / Jesus Cristo / Branco; prata / Sol, paz, tranquilidade, cajado
Oxaguiã (jovem) Menino Jesus de Praga (raro no altar) Branco e azul-claro opaxorô, pomba, pilão
Iemanjá Nossa Sra. dos Navegantes / Iemanjá Transparente; branco; prata Peixes, fertilidade, mar, pesca
Xangô São Pedro; São Jerônimo Marrom Pedreiras, justiça, trovão
Oxum Nossa Sra. da Conceição; Azul-claro Fertilidade, sensualidade, águas
Nossa Sra. Aparecida doces, maternidade, mel, ouro
Iansã / Oiá Santa Bárbara; Santa Catarina Amarelo; laranja; salmão Raios, ventos, tempestades
Nanã Nossa Sra. Sant’Ana Roxo; lilás Lama, velhice, transformação
Obaluaê / Omolu São Lázaro; São Roque Branco e preto Cura, cemitério, renovação
Oxóssi São Sebastião Verdes Caça, abundância, assertividade
Ogum São Jorge Vermelho Tecnologias, estrada, guerra
Tabela 01: orixás em Almas e Angola.

2.2. o ‘povo-de-lá’ (as entidades)


Os espíritos de humanos outrora ‘encarnados’ são chamados genericamente de entidades.
Diz-se que obedecem as vontades e ‘regras’ ou ‘leis’ dos orixás, que espiritualmente são superiores.
Em Almas e Angola os espíritos, assim como as pessoas encarnadas, são relacionados a algum/a
orixá. São chamadas ‘guias’4, ‘guias espirituais’, ‘protetores’, etc.; e formam 4 grupos ou ‘linhas’:

Pretos e pretas-velhas: esse grupo de espíritos é formado por africanos e seus descendentes
escravizados. É comum serem chamados de Pai, Vovô, Vovó, Tia, Tio (exemplo: Vó Maria Conga;

3 Termo genérico para o coletivo de um templo de religião afro-brasileira; designa ainda a comunidade
formada pelos seguidores das diversas modalidades religiosas afro-brasileiras.
4 Não confundir ‘as guias’ – os fios de conta – com ‘os guias’ – os espíritos.

3
Tio José de Angola). Costumam fumar cachimbo e beber vinho, café ou mesmo cachaça (‘marafo’).
Apresentam-se quase sempre curvados, podendo usar bengala e chapéu, e dão suas consultas
sentados em banquinhos baixos ou em pedaços de tronco cortados. Procura-se os pretos e pretas-
velhas para conselhos, benzeduras, proteção espiritual através de banhos e trabalhos espirituais, e
orientações em geral. A Festa de pretos-velhos geralmente é realizada no dia 13 de maio, mas há
casas que preferem o dia 20 de novembro para servir pretos-velhos e convidados com farta feijoada

Caboclos/as, índios/as e boiadeiros: nessa ‘linha’ chegam os espíritos relacionados às matas, aos
sertões e, assim como alguns pretos-velhos, às antigas fazendas interioranas (caso dos boiadeiros).
Exemplo de nomes de caboclos/as: Caboclo Guaracy; Cobra Coral; Cabocla Jurema; Cacique
Araribóia; Cabocla Iara… Alguns fumam cachimbo, mas é mais comum ver os caboclos fumando
charutos. Suas vestimentas podem apresentar chapéus, cocares, penas avulsas, dentes de animais,
entre outros adornos. Em geral os caboclos ‘benzem’, ‘cruzam as pessoas’ ou lhes dão ‘passes’, para
afastar maus espíritos, más energias, trazendo cura receitando chás e banhos, etc. Há terreiros em
que os caboclos realizam um ‘passe’ coletivo ao final da sessão, após terem dançado, bebido e
fumado ao longo da noite. As Festas para caboclo costumam ser feitas junto a de Oxóssi, o orixá
que os rege, em 20 de janeiro, preferencialmente no mato, próximo a uma cachoeira. Comem frutas

Bejadas: também chamados de erês ou Ibeji (que é um orixá, no candomblé), as bejadas são espí-
ritos infantis. No altar, são apresentadas pela imagem dos gêmeos São Cosme e São Damião, e sua
Festa é em 27 de setembro. Comem coisas doces e bebem água e refrigerantes. O ‘axé’ das bejadas
é de cura, de pureza (limpeza) espiritual, e de alegria. Costuma-se levar outras crianças para brincar
com os erês para que sejam curadas de doenças, para que se recuperem de traumas, para que fiquem
alegres e doces. Os espíritos infantis vêm geralmente rolando pelo chão, falam com voz mais aguda
e em sua maioria brincam incessantemente, fazendo bagunças pelo salão e assistência do terreiro.
Costumam ser sessões de muita gargalhada e muita sujeira, ao final. Médiuns vestidos como se
fossem crianças se veem, ao fim de uma sessão de bejada, com a roupa e o corpo bastante melados.
Exemplo de nomes de bejada: Mariazinha da Praia; Luizinho da Cachoeira; Joãozinho da Mata...

Povo-de-rua: é uma ‘linha’ composta pelos exus e pelas pombagiras, tido como ‘catiços’ ou
serviçais dos orixás. Em Almas e Angola, Exu não é um orixá (como o é nos Candomblés). A ‘linha
de exu’ compreende espíritos que ocuparam um lugar socialmente marginalizado: foram assassinos,
prostitutas, ladrões, ‘malandros’, gigolôs, traficantes, mendigos, ciganas, etc. Há a Festa para os
exus (13 de junho) separada da Festa para as pombagiras (13 de agosto), mas na sessão comum

4
destinada ao povo-de-rua, homens e mulheres dançam juntos. Essas sessões são marcadas pela
sensualidade, pela impudência, a grande quantidade de bebidas alcoólicas, cigarros e charutos
consumida. O povo-de-rua é bastante procurado para resolução de questões (extra-)conjugais, de
‘guerra espiritual’ (combatendo ou revidando ‘feitiços’), para conselhos amorosos, mas igualmente
para ‘abrir caminhos’, solucionar problemas com a justiça, cura de doenças e limpeza espiritual.
São exemplos de nome de exu e de pombagira: Seu Tranca-Ruas; Maria Padilha; Seu Caveira das
Almas; Exu Sete Encruzilhada, Cigana da Praia; Maria Molambo; Sete Saias; Zé Pilintra...

‘Linha’ espiritual Espíritos de... Cores (roupas e colares) Atribuições


Pretos e pretas-velhas Africanos ou brasileiros es- Branco e preto Benzeduras, curas, proteção
cravizados, benzedeiras, etc. espiritual, orientações, etc.
Caboclos e boiadeiros Índios e índias, boiadeiros, Principalmente os tons de Curas, fortalecimento espiri-
‘cangaceiros’ e caboclos/as verde, mas usam mais cores tual, limpezas, proteções
Bejadas Crianças (idades variadas) Azul-claro e rosa-claro Doçura, calma, cura, alegria
Povo-de-rua ou da-esquerda Ciganas, prostitutas, assassi- Preto e vermelho Proteção, conquistas, resolu-
(exus e pombagiras) nos, gigolôs, malandros, etc. ções, caminhos abertos, etc.
Tabela 02: entidades espirituais em Almas e Angola.

2.3. o ‘povo-de-cá’
Como já dito, o ‘povo-de-cá’ somos nós, os humanos ‘encarnados’, também chamados
(principalmente pelos pretos-velhos) de ‘povo-da-terra’. Um terreiro de Almas e Angola é composto
por três tipos de cargos/funções/títulos/postos, a saber: ogãs; cambones; médiuns de incorporação.
Apesar de se ouvir que todas as pessoas possuem mediunidades, são aquelas que entram em transe
(os/as médiuns de incorporação) que são chamadas pela forma simples de ‘médium’, assim se
diferenciando dos demais cargos existentes. Esses cargos são distribuídos hierarquicamente e
também espacialmente num terreiro, são eles:
Nome do título-status na hierarquia:
Anjo-de-guarda
Borí, Oborí ou, ainda, Oborizado/a
Mãe-pequena / Pai-pequeno
Pai-de-santo (babalorixá ou babá) / Mãe-de-santo (ialorixá ou iá5)
Reforço de 7 Anos
Reforço de 14 Anos
Reforço de 21 Anos
Cambone ou Cambono/a
Ogã; Ogã Kolofé
Tabela 03: Títulos dxs médiuns em Almas e Angola.

5 Em Almas e Angola é comum que as mães-de-santo venham a ser chamadas pela forma diminutiva do mesmo nível
hierárquico ocupado por homens – isto é, são chamadas ‘babá’.

5
Os sete primeiro cargos correspondem às pessoas chamadas de médiuns de incorporação,
são aquelas cuja mediunidade permite que orixás e espíritos possam controlar seus corpos (ocorre
incorporação espiritual ou transe). Elas ocupam o salão principal, em fileiras próximas às paredes,
onde dançam ao ritmo dos atabaques, dos cantos, das palmas e demais instrumentos.
Anjos-de-guarda são as pessoas que potencial ou efetivamente incorporam, mas que, via de
regra, passaram a integrar o terreiro há pouco tempo. Veremos que aquelxs que passaram pelo ritual
de batismo carregam no pescoço um colar de contas brancas. Ogãs e Cambones são assim
chamados desde o início de seu ingresso no terreiro.
Cambonas e cambonos ocupam algum canto do salão principal, porém, assim como os ogãs,
não passam pelo transe ou incorporação6. São pessoas encarregadas de administrar os rituais junto a
quem está comandando a sessão (pais/mães-de-santo ou seus espíritos incorporados). Devem saber
manipular ingredientes e objetos; saber como e com o quê servir orixás e entidades; são as princi-
pais responsáveis pelo que se cozinha num terreiro; traduzem as mensagens espirituais; transmitem
os recados da espiritualidade para médiuns outrora em transe – e conhecem ainda mais uma
infinidade de procedimentos e saberes. São, enfim, pais e mães-de-santo que não incorporam7.
Ogãs são quase sempre homens, responsáveis por tocar os atabaques e entoar as cantigas
que iniciarão, manterão e encerrarão os diversos tipos de ciclos rituais (as variadas ‘sessões’ e as
Festas). Muitos deles são também responsáveis pelas imolações animais e outras tarefas que possam
exercer, de acordo com as regras do terreiro em que se encontram. A fileira de atabaques que
ocupam (um tambor por ogã) em geral também encontra-se em algum canto do salão principal, de
costas para o público de visitantes, ou ‘a assistência’ (ver Desenho 01, página 13).

2.4. o coletivo espiritual de cada médium (ou: ‘o carrêgo de santo’)


Entre os praticantes de Almas e Angola entende-se que toda pessoa é médium, independente
de saber ou não disso, de ter ou não alguma religião, de frequentar ou não um terreiro, e da função
que desempenhe no terreiro. Portanto, ogãs e cambones são também considerados médiuns. Há
vários tipos de mediunidade, e uma pessoa pode vir a ‘desenvolver’ (termo local) mais de uma ao
longo da vida. Mediunidade poderia ser resumida como a “habilidade”, por assim dizer, de
estabelecer algum contato direto (não mediado por terceiros) com os seres espirituais (v. Delatorre,
2014). Há, entretanto, pessoas que não possuem, momentânea ou permanentemente, esta ou aquela
“habilidade” mediúnica. ‘Dons’ como o de ouvir os espíritos, de vê-los e de incorporá-los, por

6 Mas não é incomum vermos exceções a essa regra, sobretudo com ogãs – em alguns terreiros, há ogãs que dividem
o tempo da sessão entre aquele que tocam os atabaques e aquele em que passam incorporados.
7 Definição encontrada no filme “Brincando com os Deuses” (2010), cujo contexto é o candomblé.

6
exemplo, não parecem ser universais; já o contato por sonhos e por intuições parece ocorrer com
qualquer pessoa. Mas, independente dos dons mediúnicos que se tenha, toda e qualquer pessoa é
acompanhada (ou, antes, constituída) por um coletivo espiritual. Em Almas e Angola, este coletivo
recebe também o nome de ‘carrêgo’8 ou ‘carrêgo de santo’, cuja organização resume-se a:

Pai e Mãe-de-Cabeça: toda pessoa possui um casal (necessariamente heterossexual) de orixás


principais, que lhe deram a vida e que a regem. Destes dois, um deles é mais importante,
“dominante” ou ‘de frente’, podendo ser o Pai (orixá masculino) ou a Mãe (orixá feminino). Todos
os demais seres que compõem o carrêgo espiritual de alguém devem estar ‘alinhados com’ /
‘obedecer’ essas forças superiores, que são o Pai e a Mãe-de-Cabeça (ou vice-versa) dx médium

Responsável Espiritual: o/a Responsável Espiritual dx médium é aquela entidade que deverá
responder, informar, e preferivelmente resolver seus problemas espirituais. É encarregado/a de
trazer e de levar mensagens entre ‘a Terra’ e o ‘lado de lá’ (dos espíritos). Quando um filho-de-santo
está com problemas espirituais, é o/a responsável que o pai ou mãe-de-santo invoca a fim de saber o
que está se passando. Em geral, são caboclos/as e pretos/as-velhas os Responsáveis Espirituais
(particularmente, desconheço casos em que bejadas ou que exu ou pombagira façam esse papel).

O carrêgo espiritual ainda conta com pelo menos uma entidade de cada linha. Isto é, toda
pessoa conta, além de um casal de orixás principais, com ao menos um caboclo ou cabocla, um
preto-velho ou preta-velha, uma bejada, um exu e uma pombagira. Há, entretanto, médiuns que
“carregam” várias entidades de cada linha. Assim, não é raro saber de alguém que diz ter dois exus
e duas pombagiras, um caboclo e duas caboclas, uma bejada menino e uma bejada menina, e um
casal de pretos-velhos (sem mencionar os casais de orixás secundários, que serão desvendados ao
longo da vida do/a médium). Assim, o carrêgo espiritual varia de médium para médium, tanto em
quantidade, como nos nomes das entidades e dos orixás. Segue um exemplo hipotético de ‘carrêgo’:

FULANO DE TAL (que conta com mais de uma entidade em algumas linhas espirituais):
Pai e Mãe-de-cabeça (dois orixás principais): Oxóssi e Oxum
Responsável espiritual (sempre só uma entidade nessa função): Pai Joaquim de Aruanda (trata-se de um preto-velho)
Caboclos: Seu Rompe-Mata e Caboclo Cobra-Coral (duas entidades nessa linha)
Bejada: Pedrinho das Matas (uma entidade nessa linha)
Exu: Seu Arranca-Toco e Zé Pilintra (dois exus na linha do povo-de-rua)
Pombagira: Sete Saias (uma pombagira na linha do povo-de-rua)

8 Dependendo do contexto, a palavra carrêgo é sinônimo de coisas negativas, referindo-se às demandas espirituais,
“macumbas”, “feitiçarias” e forças contrárias que prejudicam alguém.

7
Como já escrito, independente da função que se desempenhe no terreiro, cada pessoa traz
consigo uma coletividade espiritual, e há várias formas de se descobri-la/desvendá-la. Para quem
entra em transe o mais comum é que as próprias entidades digam seus nomes ao longo do tempo – e
o/a Responsável dirá o nome completo dos orixás principais, já que raramente os orixás falam.
Aqueles que não incorporam (ogãs e cambones) acabam sabendo os nomes das suas entidades e
orixás através das entidades de terceiros (geralmente são as entidades de seus pais ou mães-de-santo
que fazem tais revelações). Outra forma de revelar e/ou ‘confirmar’ o carrêgo espiritual, a qual vem
crescendo em Almas e Angola, é o ‘Jogo de Búzios’.

8
3. principais rituais (as Camarinhas e a hierarquia de um terreiro)
Ogãs, cambones e médiuns de incorporação passam por rituais que envolvem um período de
reclusão e que geram ascensão hierárquica: são as chamadas Camarinhas. Não cabe aqui entrar mais
detidamente em detalhes sobre esses rituais, mas em breves descrições e observações mais gerais
que permitam entender a dinâmica hierárquica e os títulos dispostos na Tabela 03 (página 5). Esses
rituais acarretam modificações sociais no terreiro para médium e seus guias espirituais (no caso de
quem os incorpora), referentes ao status, às funções rituais e às crescentes responsabilidades nos
ritos e perante os demais integrantes.
Os praticantes de Almas e Angola explicam que o objetivo das Camarinhas é fortalecer
espiritualmente xs médiuns (sejam ogãs, cambones ou de incorporação). Ao fim de cada Camarinha,
a pessoa ascende seu status na hierarquia do terreiro, em relação ao grupo de médiuns no qual
desempenha suas funções – significa dizer que, além de uma hierarquia geral em que o pai ou a
mãe-de-santo lidera, há ainda uma hierarquia particular entre médiuns que incorporam, entre ogãs e
entre cambones. A hierarquia pode ser observada na ocupação do espaço físico de um terreiro,
também nas vestimentas e adornos dos médiuns – ‘as guias’ ou colares são um exemplo disso:
médiuns de incorporação e cambones ‘mais velhos’ (i.e., com mais alto grau hierárquico), ficam
mais próximos do altar nas fileiras do salão; e quanto mais alto é o grau hierárquico ocupado, as
roupas e guias vão ganhando cores, e essas últimas vão ganhando mais contas e mais complexidade.
É nas Camarinhas que se obtém as chamadas ‘Coroas’ - denominação que faz referência à
parte do corpo para a qual esses rituais são destinados: a cabeça, ou ori, morada dos orixás. Há seis
tipos de Camarinhas, a saber, em sequência ascendente: de Borí; de Pai ou Mãe-Pequena; de Mãe
ou Pai-de-Santo (Ialorixá ou Babalorixá); de Reforço de 7 anos; de Reforço de 14 anos e de Reforço
de 21 anos. (Note-se que esses rituais e os títulos que eles conferem são homônimos.)

(a) Camarinha de Borí: após esse ritual, o médium recebe guias coloridas de acordo com seus dois
orixás principais. Os médiuns de incorporação deixam de ser chamados de anjo-de-guarda e passam
a ser chamados de ‘borí’, e seu lugar na ‘corrente’ passa a ser à frente dos anjos-de-guarda. Também
ogãs e cambones passam a dizer que possuem ‘coroa de bori’. Em alguns terreiros, é apenas depois
da camarinha de Borí que as entidades dxs médiuns passam a usar roupas coloridas. Nota-se que há
ainda as Camarinhas de Cura, rituais não muito comuns, com os quais procura-se atingir a cura de
doenças graves através das forças espirituais (nesse caso, diz-se que a pessoa fez ‘borí de cura’).

(b) Camarinha de Pai ou Mãe-Pequena: quanto mais alto o grau hierárquico ocupado, mais
atribuições são delegadas. Mães e Pais-Pequenos zelam pelos médiuns mais novos (borís e anjos-

9
de-guarda), ajudando a desenvolvê-los espiritualmente, e podem ter para si filhxs-de-santo (os quais
só poderão passar por Camarinhas depois que seus Pais ou Mães-Pequenas atingirem o grau de Pai/
Mãe-de-Santo). Há colares especiais para esse estágio, e a pessoa mesma pode usar roupas coloridas

(c) Camarinha de Babalorixá ou Ialorixá: só após alcançar a Coroa de Pai ou Mãe-de-Santo é que
se pode abrir um terreiro próprio para liderar e desempenhar todas as funções possíveis de alguém
que entra no estado de transe. Um/a babá deve conhecer os segredos da religião, e tanto ele/ela
como seus guias espirituais devem executar todos os rituais da forma mais competente possível.
Pais e mães-de-santo usam uma guia que designa seu status, somada a outras que pertencem aos
seus orixás e entidades. Ogãs que passam pela Camarinha que equivale à de Pai/Mãe-de-Santo aos
que incorporam, recebem o título de Kolofé 9. É a partir dessa Camarinha que se começa a contar o
‘tempo de feitura no santo’, para então se proceder aos chamados Reforços

(d) Reforços: passados 7 anos da Camarinha de Babá, a pessoa está apta a fazer seu primeiro
Reforço (chamado Reforço de 7 anos). Novamente o objetivo é de fortalecimento espiritual e maior
conhecimento nos ‘fundamentos’ (os segredos) da religião. A cada Reforço, assim como com as
Camarinhas anteriores, novos tipos de colares vão designando o grau hierárquico. A superioridade
traz novas exigências, mas permite certos reconhecimentos e “privilégios”. O intervalo entre as três
primeiras Camarinhas pode variar consideravelmente, mas as de Reforço costumam seguir o ínterim
nelas indicado: sete anos entre cada uma. Para estas três últimas, o título conferido é também
homônimo: respectivamente, diz-se, de pais e mães-de-santo que já passaram por elas, que são
Reforçados ou Reforçadas de 7, de 14 ou de 21 Anos (após a ‘feitura de 21 anos’, costuma-se
chamar os homens de ‘Táta de Almas e Angola’ e as mulheres de ‘Imperatriz de Almas e Angola’)

3.1. principais rituais de Almas e Angola


As Camarinhas são considerados rituais especiais, não tanto porque não ocorrem com a
mesma frequência das Sessões semanais, mas por serem mais longas, complexas e por precisarem
do engajamento de todos os integrantes do terreiro em que são realizadas (é comum que médiuns de
outros terreiros venham ajudar nos rituais de Camarinha). São rituais que demandam muito conhe-
cimento e trabalho ao longo de uma semana (período de duração de uma Camarinha completa).
São quatro os principais tipos de rituais na religião de Almas e Angola: o Batismo, as
Sessões, as Festas e as Camarinhas. Segue uma breve descrição dos que ainda não foram abordados:

9 Ver Tabela 03, página 5. (Cabe conferir se o mesmo título também é dado às/aos Cambones...)

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Batismo: uma espécie de “entrada oficial” para a religião, o Batismo é o primeiro ritual pelo qual
passam todas as pessoas que integrarão ‘a corrente’ de um terreiro de Almas e Angola, seja ogã,
cambone ou médium de incorporação. O batismo é feito dentro dos terreiros e, às vezes, em
cachoeiras, em geral inserido em algum momento de um ritual mais longo (de uma sessão ou Festa).
Para o batismo, é preciso contar com um padrinho e uma madrinha, não necessariamente ligados à
religião. Após batizada, a pessoa passa a ser considerada efetivamente filho/a-de-santo do pai ou da
mãe-de-santo que lavou sua cabeça, e ganha um fio de contas branco consagrado à Oxalá

Sessões: são os rituais mais frequentes da religião. São rituais públicos (com exceção das Sessões
de Desenvolvimento de alguns Centros, conforme veremos), na maioria das Casas feitos uma vez
por semana. É nas sessões que os orixás vêm dançar incorporados, e que os espíritos de médiuns já
‘desenvolvidos’ vêm ‘trabalhar’ (isto é, dar consultas e disponibilizar seus conhecimentos e
poderes). São organizadas em duas etapas: na primeira, chama-se um grupo de orixás, e após breve
intervalo (para que xs médiuns possam descansar, ir ao banheiro, beber água e, dependendo da
ocasião, trocar de roupa), começa a segunda etapa, em que são chamadas as entidades. As sessões
são classificadas de acordo com a linha de entidade que será chamada naquela noite – há, portanto,
as sessões de preto-velho, as sessões de caboclo, as sessões de bejada e as sessões de exu e
pombagira. Os orixás a serem invocados na primeira parte de cada uma dessas sessões varia entre
os terreiros, mas é comum que se “chame” nos seguintes padrões: Oxalá, Xangô, Nanã e Obaluaê
na primeira parte das sessões de preto-velho; Ogum, Iansã, Oxum e Iemanjá antes de invocar os
caboclos; o chamado Povo d’Água (as “mães” Oxum, Iansã e Iemanjá) antes das sessões de bejada;
e apenas Ogum (às vezes acompanhado de Iansã), nas sessões de povo-de-rua. (Observa-se que nas
sessões de povo-de-rua as cortinas do altar permanecem fechadas.)

Sessões de Desenvolvimento: há terreiros que fazem sessões destinadas exclusivamente ao desen-


volvimento mediúnico dxs médiuns. Podem ser total ou parcialmente fechadas ao público. Nelas, o
foco é a aprendizagem dos mais novos, supervisionados pelos médiuns mais velhos. Mais do que
nas sessões comuns, aqui as pessoas mais velhas podem abertamente corrigir e ensinar ogãs,
cambones e médiuns de incorporação. Para este último grupo, ensina-se formas de se ‘concentrar’ e
se ‘conectar’ com as vibrações espirituais, mas sobretudo a perder o medo de entregar-se aos transes

Festas: há uma Festa para cada orixá e para cada linha de entidades, distribuídas num calendário
anual. Esses rituais são marcados pelo consumo de comidas e bebidas relacionados ao orixá ou aos
espíritos em questão, e pela diferença espacial-temporal em relação às sessões comuns: podem

11
ocorrer no período vespertino (como é comum nas Festas de bejadas); o terreiro é decorado e outros
espaços podem ser abertos e estendidos ao público (como garagem, a cozinha-de-santo, etc.);
podem ocorrer fora do terreiro (em cachoeiras e praias, por exemplo). As Festas também se
distinguem das sessões semanais pela não obrigatoriedade das entidades ‘trabalharem’ (ou seja, as
entidades incorporadas não têm outro compromisso a não ser aproveitar a ocasião bebendo,
comendo e dançando – suas consultas estão suspensas nos dias de Festa)

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4. estrutura física

C P
ALTAR

Assistência

Desenho 01: planta-baixa básica de um terreiro de Almas e Angola.

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4.1. o lado de fora
Do lado externo de um terreiro de Almas e Angola (o qual não consta no esquema acima),
encontramos duas construções, quase sempre uma ao lado da outra, chamadas canjira e casa-das-
almas. São respectivamente feitas para o povo-de-rua e para os pretos-velhos. Os tamanhos dessas
construções variam bastante de terreiro para terreiro, podendo ir desde pequenas casinholas com
espaço suficiente para abrigar poucas imagens e outros objetos, até construções maiores que
comportam várias pessoas. Com raras exceções essas construções estão dentro dos terreiros (isto é,
com suas portas voltadas para dentro da construção que abriga o salão principal em que acontecem
as sessões). A canjira pode ter sua porta marcada com elementos de culto aos exus e pombagiras,
como desenhos de tridentes, figas penduradas, ferraduras, entre outros; na porta da casa-das-almas é
possível ver o desenho de uma cruz, por exemplo. Ainda do lado externo do terreiro podem ser
encontrados grandes potes de barro (os ‘porrões’) e alguidá (prato de barro) contendo alguns
objetos. A porta de entrada dos terreiros é entendida como domínio de exu, e nela (acima ou em
algum de seus cantos) pode ser encontrado algum (grupo de) objeto sacralizado.
O povo-de-santo é devidamente instruído para saber como se aproximar e ‘saudar’
(literalmente fazer saudações, cumprimentos) tais objetos e espaços. É um sinal de respeito que
visitantes e curiosos não tentem fazer tais saudações, que apenas as façam se souberem corretamente
como proceder, ou que façam somente mediante solicitação de alguém responsável pelo terreiro. O
lado de fora pode conter plantas que certamente têm função religiosa, e também elas requerem
tratamento adequado10.

4.2. o lado de dentro (ver Desenho 01)


a) Assistência: é assim denominado o espaço em que ficam, geralmente sentados em bancos, os
visitantes dos terreiros, aqueles que “assistem”, que observam o desenrolar dos ritos;

b) Porteira: é a abertura, que pode ou não ter uma portinhola, que conecta o salão principal à Assis-
tência (equivale ao retângulo de cor marrom no Desenho 01). Também recebe saudações. Quase
sempre há aí uma tábua redonda (representada pelo círculo preto) em que se encontram desenhados
a giz símbolos de proteção espiritual, acompanhada de velas e um copo contendo algum líquido;

c) Atabaques: como já escrito, em geral os atabaques (círculos na cor cinza) ficam enfileirados lado
a lado em algum canto do salão principal;

10 Alguns candomblés possuem árvores-orixás (como Iroko, Apaoká, entre outras), que são adornadas com tecidos.

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d) Quatro cruzes: os espaços descritos entre (a) e (f) são todos alvos de saudações em momentos
específicos nos rituais de um terreiro. Também as quatro cruzes, na cor cinza, poderão ser saudadas
mais de uma vez ao longo de uma sessão comum ou quando das Camarinhas, pelxs filhxs-de-santo e
mesmo pelos orixás e entidades. A ordem exata com que serão saudadas apresenta variação entre as
casas, e cada uma corresponde a um/a orixá que acompanha o pai ou a mãe-de-santo responsável
pelo terreiro – assim como o Ponto Central, elas são ‘assentamentos’ (altares especiais) de orixás;

e) Ponto Central (círculo, estrela e cruz): este conjunto de símbolos, desenhado no meio do salão
principal, costuma vir pintado nas cores dos orixás que regem a casa, com a cruz central geralmente
na cor branca – no Desenho, a estrela em vermelho e o círculo em azul-claro indicam que Ogum e
Iemanjá são os pai e mãe-de-cabeça do dono ou da dona do terreiro. É mais importante que as quatro
cruzes – saudar o Ponto Central é obrigatório sempre; nele é feita a saudação de “bater cabeça”, o
que não é obrigatório para as quatro cruzes;

f) Altar: também aos pés do Altar, geralmente “separado” do salão pela altura de um degrau, é
obrigatório “bater cabeça” (saudação em que se deita, levando a testa ao chão). Nele estão as
estátuas dos orixás, geralmente apresentados pelas imagens de santos católicos. Pode conter velas,
copos com água, flores, outras imagens católicas (como de anjos), e ainda as imagens de entidades
(exceto as do povo-de-rua). Quase sempre apresenta uma organização piramidal, com Oxalá no
topo, e na base Ibeji à direita e Obaluaê à esquerda

g) Camarinha (C): Espaço destinado à realização das Camarinhas. Há terreiros que possuem mais
de um destes espaços, que comportam, cada, uma pessoa adulta deitada. Quando há mais pessoas
que passarão pelo mesmo ritual, utiliza-se o espaço do salão principal. Quando o terreiro não está
em processo de Camarinha, este espaço é comumente utilizado como depósito;

h) Pejí (P): “Pejí”, palavra bastante usada nos Candomblés, não é uma denominação universal em
Almas e Angola para este cômodo que em geral serve para que fiquem organizados os fios de conta
e outros objetos que têm uso frequente nas sessões. Nos Candomblés, o significado de pejí equivale
ao de altar; em Almas e Angola, o uso crescente desse termo designa este ambiente que, por vezes, é
aí designado apenas como “quarto de santo”.

O espaço interno de um terreiro conta ainda com a indispensável cozinha-de-santo,


banheiros e, às vezes, com vestiários para as necessárias trocas de roupa dxs filhxs-de-santo.

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CONCLUSÕES FINAIS:
Com o presente texto busquei trazer um entendimento breve e bastante geral da religião de
Almas e Angola, abordando seus principais rituais, organização interna, e os sujeitos que integram
esses coletivos. Contudo, penso ser importante ter em mente que Almas e Angola não é exceção
àquilo que Márcio Goldman denomina “lei de Herskovits” (2012, p. 273), referindo-se às
constatações de Herskovitz sobre a heterogeneidade constitutiva das religiões de matriz africana.
Basicamente a lei de Herskovitz pode ser traduzida por “cada casa é um caso” – uma outra maneira
de dizer que “[n]ão há regra que não tenha sua exceção; [porque] em todas as circunstâncias, as
situações alteram os casos” (Herskovits apud Goldman 2012; ver também Barbosa Neto 2012). Ou
seja, em Almas e Angola, assim como ocorre nas demais religiões afro-brasileiras, muitos de seus
aspectos apresentam variações maiores ou menores, desde as formas com que se executa certos
rituais, até os modos com os quais certos ‘fundamentos’ (os segredos-princípios sagrados que regem
as práticas daquele centro) são concebidos e repassados. Isso se dá por inúmeras razões, e uma delas
não tem origem no terreiro propriamente dito: a vida religiosa dxs adeptxs é em considerável escala
experienciada fora dos terreiros. Filhxs-de-santo, em suas próprias residências ou nas residências de
conhecidos e clientes, ‘trabalham’ com suas entidades e mantêm contato com pessoas de outros
terreiros (de Almas e Angola e outras religiões afro-brasileiras). Pessoas e espíritos trazem novas
informações que podem adicionar, transformar ou invalidar determinado conhecimento ou prática.
Outra razão, entre as inúmeras possíveis, para a heterogeneidade que lhes constitui, é a trajetória
religiosa de cada líder, passando por diversas religiões e experiências pessoais que dão sentido
àquilo que fazem, da maneira com que fazem. Portanto, buscar definir, homogeneizar, corrigir ou
“desvendar a verdadeira” religião de Almas e Angola são procedimentos estéreis ou mesmo
improváveis do ponto de vista analítico, e no mínimo problemáticos dos pontos de vista ético e
politico no âmbito das pesquisas (Delatorre 2014).
Outro ponto importante a ser considerado pelos pesquisadores é a possibilidade de interven-
ção dos espíritos nas pesquisas, mesmo fora de momentos “oficialmente” demarcados como rituais.
Uma vez que, para o povo-de-santo, sem o consentimento dos seres espirituais nada se faz, podem
haver situações nas quais x pesquisador/a precise lidar com os espíritos da mesma forma que os
religiosos o fazem – ou seja, enquanto sujeitos.
A negociação com os espíritos é uma possibilidade em pesquisas nesse campo, mas isso não
deve ser interpretado de maneira “espetacular” ou “exótica” – por mais que os espíritos sejam
descritos como sujeitos razoavelmente misteriosos e poderosos, relacionar-se com eles e elas pode
ser tão ordinário ou tão surpreendente como se relacionar com qualquer pessoa ‘do lado de cá’.
Além disso, “[p]edir que médiuns respondam por “seus” espíritos (e vice-versa) seria, no mínimo,

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uma incongruência: espíritos trabalham no corpo dos médiuns, mas de forma alguma são os
médiuns eles mesmos” (Delatorre 2013, grifos no original).
Nesse imaginário os espíritos são culturalmente reconhecidos enquanto sujeitos – no senti-
do de terem desejos, serem geradores de ação, e terem uma subjetividade culturalmente
reconhecida – intimamente relacionados com seus médiuns, mas de forma alguma perten-
centes a estes ou de natureza similar a estes. Seu estatuto de sujeito é necessariamente
distinto daquele dos outros sujeitos sociais – vivos ou já mortos – afinal são conhecidos
como "espíritos", "santos", "entidades", e não como "pessoas" (Cardoso 2009, p. 206).

Levar adiante uma pesquisa que “leve a sério” as concepções e práticas do povo-de-santo
não implica quaisquer impedimentos. O respeito às concepções e práticas dos coletivos com os
quais realizamos pesquisa é questão de dimensões ética, política e mesmo epistemológica na
Antropologia (idem; Goldman 2003, p. 462). Como nos ensinam os “mais velhos” da disciplina,
dificilmente aquilo que se estipula a priori nas pesquisas prosseguirá com sucesso. Os processos que
envolvem nossos projetos – desde a parte metodológica até as negociações com nossos
interlocutores – estão sempre imbricados entre si, sujeitos às experiências do trabalho em campo, e
“precisarão ser problematizados constantemente a cada pesquisa, de forma crítica e reflexiva. Ou
seja, não há uma fórmula que dê conta de todos e quaisquer problemas éticos” (Delatorre 2013, p.
248). Por fim, refletir sobre estas questões e expô-las em nossos textos e encontros são tarefas
indispensáveis no trabalho antropológico atual.

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REFERÊNCIAS:

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Almas e Angola da Grande Florianópolis. 2007. Trabalho de Conclusão de Curso. (Graduação em Ciências
Sociais) - UFSC. Orientadora: Vânia Zikán Cardoso.

BARBOSA NETO, Edgar. 2012. A máquina do mundo: Variações sobre o politeísmo em coletivos afro-
brasileiros. Tese de Doutorado, PPGA, Museu Nacional, UFRJ.

Brincando com os deuses. Direção: Maria Augusta Galli; Simone Colombo. 2012. Disponível em: <
http://www.youtube.com/watch?v=9tzDZpOkHB8 >. Acesso em: set 2016.

BROWN, Diana deG. Umbanda: religions and politics in urban Brazil. Columbia: Columbia University
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CARDOSO, Vânia Zikán. “Narrar o mundo: estórias do 'povo-de-rua' e a narração do imprevisível”. In


Mana, ano 12, nº 2, 2007, pp. 317-345.

______. “O espírito da performance”. Ilha: Revista de Antropologia, Florianópolis, v. 9, n. 1, p.197-213,


2009.

CARDOSO, Vânia Zikán; HEAD, Scott Correll. “Encenações da descrença: a performance dos espíritos e a
presentificação do real”. In: Revista de Antropologia, São Paulo, USP, 2013, v.56, nº2.

FARIAS, André Luiz. Fazer um Tata de Almas e Angola. 2008. Trabalho de Conclusão de Curso
(Graduação em Ciências Sociais) - Universidade Federal de Santa Catarina. Orientador: Márnio Teixeira-
Pinto.

DELATORRE, Franco. “Éticas em campo: breves reflexões sobre dilemas éticos entre os campos legislativo
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______. ‘Trabalhar no santo’: etnografia das práticas mediúnicas de um coletivo religioso ‘de matriz
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Orientadora: Vânia Zikán Cardoso.

GOLDMAN, Marcio. 2005. “Formas do saber e modos do ser: observações sobre multiplicidade e ontologia
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______. “Histórias, devires e fetiches das religiões afro-brasileiras: ensaio de simetrização antropológica”.
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OLIVEIRA, Bianca Ferreira. 2012. Pessoa, jocosidade e moral a partir de uma família de santo de
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TRAMONTE, Cristiana. Com a Bandeira de Oxalá! Trajetória, práticas e concepções das religiões afro-
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