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INTERFACES ENTRE
POLÍTICAS PÚBLICAS
DE EDUCAÇÃO
DO CAMPO E
MOVIMENTOS
SOCIAIS
CAMPONESES NO
BRASIL

Organizador
Ramofly Bicalho

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Conselho Editorial
Dr. Clívio Pimentel Júnior - UFOB (BA)
Dra. Edméa Santos - UFRRJ (RJ)
Dr. Valdriano Ferreira do Nascimento - UECE (CE)
Drª. Ana Lúcia Gomes da Silva - UNEB (BA)
Drª. Eliana de Souza Alencar Marques - UFPI (PI)
Dr. Francisco Antonio Machado Araujo – UFDPar (PI)
Drª. Marta Gouveia de Oliveira Rovai – UNIFAL (MG)
Dr. Raimundo Dutra de Araujo – UESPI (PI)
Dr. Raimundo Nonato Moura Oliveira - UEMA

INTERFACES ENTRE POLÍTICAS PÚBLICAS DE EDUCAÇÃO DO


CAMPO E MOVIMENTOS SOCIAIS CAMPONESES NO BRASIL
© Ramofly Bicalho
1ª edição: 2023

DOI: 10.29327/5211162
Link de acesso: https://doi.org/10.29327/5211162
PREFÁCIO

Recebi com honra o convite para fazer o Prefácio do livro Coletânea “Interfaces entre políticas
públicas de Educação do Campo e movimentos sociais camponeses no Brasil” organizado pelo Ramofly
Bicalho. A obra aborda aspectos históricos, princípios, conceitos, práticas e marcos legais da Educação
do Campo. Sendo assim, compreendo que estou aqui como integrante de um grupo de sujeitos que
se articulam em torno da luta pela construção e consolidação da Educação no Campo desde os seus
passos iniciais. Por isto já agradeço ao organizador da obra e dos autores e autoras dos capítulos pela
confiança em mim depositada.
Então, na minha trajetória histórica na Educação do Campo venho participando da discussão
e elaboração de conceitos, metodologias, projetos de pesquisa, de ensino e extensão, políticas públicas,
moções, exposição de motivos, artigos, livros, vídeos, dentre outros. Não fiz este trajeto sozinha.
Estive e estou junto aos sujeitos do campo e com suas formas organizadas de luta, com os colegas das
universidades, das redes públicas (federal, estadual e municipal), das redes privado/comunitárias ( Escolas
Comunitárias, Centros Familiares de Formação em Alternância, para citar alguns), orientandos(as) de
graduação, de mestrado, doutorado, pós-doutorado, bancas de avaliação de monografias, dissertações e
teses, e mais uma infinidade de ações cotidianas. Em meu texto Memorial, elaborado para concorrer ao
grau de Professora Titular da Universidade Federal de Minas Gerais, coloquei como título “Aprender
e Ensinar nos caminhos da indignação e da esperança” para sinalizar a relevância que o campo e seus
sujeitos ocuparam minha existência nas últimas quatro décadas.
Então, é deste acúmulo que atualmente faço uma sistematização quando se trata de discutir,
apresentar e/ou refletir a Educação do Campo como uma experiência que, em sua potência, demanda
uma sistematização de suas diferentes dimensões e vinculações no tempo/espaço campesino. Sendo
assim, organizo a Educação do Campo como um território, na acepção sinalizada por Fernandes
( 20061 ), que pode ser acessado e compreendido em pelo menos cinco dimensões: como um
Movimento de Luta protagonizado pelos sujeitos campesinos; como uma matriz político-pedagógica;
como um conjunto de práticas; como produção e socialização de conhecimentos e tecnologias e como
um território de conquistas e materialização de políticas públicas. Na leitura vou encontrando estas
dimensões nos dezesseis capítulos que compõe o livro.
A dimensão da Educação do Campo como um movimento é proposta temática do livro. E o tema
se desdobra a medida que verificamos, já nos primeiros textos, que os autores cuidaram de sinalizar a
Educação do Campo como um movimento de luta, protagonizado pelos povos campesinos, ressaltando
sua organicidade, suas diferenças, seus limites e possibilidades. Encontro ao longo dos capítulos
expressões como “A Educação do Campo [...] tem pouco mais de 20 anos de existência, criado com o
protagonismo dos movimentos e organizações sociais e sindicais populares do campo em articulação
com universidades públicas e organizações governamentais e não governamentais que afirmam o
Direito à Educação dos povos do campo [...] sintonizadas com a vida, o trabalho e os territórios dos
povos tradicionais e camponeses.” Sem dúvida, este é certamente o diferencial da Educação do Campo
com relação a outros movimentos de luta pela educação, principalmente aquela vinculada aos povos
do campo. Em alguns capítulos a referência nominal aos diferentes Povos que produzem e reproduzem
suas vidas no campo aparece de forma contundente e substantiva. Um movimento que não se inicia
e nem se encerra somente na luta pela educação, pelo contrário, está profundamente vinculado a luta
pela terra e por direitos.
O Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária, o Curso de Licenciatura em Educação
do Campo, o Programa Escola da Terra, as ações educativas desenvolvidas pelo movimentos sociais e
sindicais, por universidades, pelas escolas públicas como um conjunto de práticas é, sem dúvida, outro
ponto forte da obra. O cuidado com o resgate histórico, com a sistematização é análise da experiência é,
sem dúvida. uma fonte de registro da materialização da Educação do Campo em diferentes contextos.
Seguindo o caminho proposto encontro pistas para apreender a Educação do Campo como

1 FERNANDES, Bernardo M. Os campos da pesquisa em Educação do Campo: espaço e território como


categorias essenciais. In Molina, Mônica C. (org.) Educação do Campo e pesquisa: questões para reflexão. Brasília:
Ministério do Desenvolvimento Agrário, 2006.

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território que denomino como matriz político pedagógica. Por aqui é possível ver o movimento da
luta se constituindo, se fortalecendo e territorializando por meio de práticas que produzem conceitos,
categorias, metodologias que, aos poucos, vai delineando uma referência analítica. As interfaces com
os Movimentos da Pedagogia da Alternância, da Educação Popular e da Agroecologia criam novas
possibilidades para organizar, compreender e intervir nos tempos espaços educativos bem como
resgatam experiências e saberes vinculados aos sujeitos. Uma dica é acompanhar, em cada texto,
como o movimento de luta se traduz em práticas e estas, por sua vez, produzem princípios, conceitos,
metodologias e tecnologias.
Numa passagem pelas referências é que se tem dimensão da Educação do Campo como produção e
socialização de conhecimentos e tecnologias. O volume de publicações por meio de diferentes tipos
de portadores de textos deixa evidente que o movimento de luta e suas práticas estão ocupando espaços
na produção científica. Ao consultar o perfil de cada autor e autora é possível compreender como um
movimento, que se materializa em prática, capaz de refletir sobre si mesma, é capaz de tornar efetivo
o seu principal princípio: garantir o protagonismo dos sujeitos que produzem esta luta. Eles e elas
estão por todo o livro, como autores, autoras e referências. Por aqui a compreensão do significado
da partícula do quando vincula os termos educação e campo. Não é para, não é sobre, não é com. É
Educação do Campo.
E já nos primeiros capítulos encontramos a Educação do Campo se afirmando e se materializando
por meio políticas públicas. PRONERA, PROCAMPO, Escola da Terra, Decretos, Diretrizes,
Pareceres, dentre outros, são citados como referências de conquistas, de possibilidades, mas também
de desafios. Aqui posso afirmar, que ainda que não apareça explicitamente nos textos, temos trabalho
pela frente para afirmar estas políticas como leis, seja no âmbito federal, estadual ou municipal. E
ainda ressaltando a relevância de garantir legislação para garantir a inclusão dos Centros Familiares de
Formação por Alternância nas políticas públicas.
Em síntese, este é um livro que nos interroga em termos dos anúncios e das denúncias que
estruturam a Educação do Campo, em todas as suas dimensões. Anúncio porque mostra as conquistas,
os avanços e as possibilidades do que está sendo construído. Denúncia porque sinaliza os desafios, os
retrocessos e os limites que será preciso enfrentar nas próximas décadas. Há muito o que fazer, mas
muito o que celebrar. Cada texto mostra que a força motriz precisa e deve permanecer, que são os
sujeitos do campo e seus contextos como protagonistas de sua própria história. A trajetória de Fátima,
seringueira, ribeirinha e estudante da Licenciatura em Educação do Campo é, sem dúvida, uma história
de vida marcada pela denúncia e pelo anúncio.
Retomando o que disse no início deste Prefácio entendo que este livro é uma contribuição
relevante na produção e divulgação científica da Educação do Campo. Nesta perspectiva, como
professora e pesquisadora só posso recomendar que esta obra se constitua como leitura obrigatória
professores, gestores de instituições e políticas públicas, estudantes e participantes dos movimentos
sociais e sindicais . Sendo assim, que possa fazer parte dos programas de cursos nas escolas, na formação
inicial e continuada de professores, nos programas de mestrado e doutorado e nas instâncias gestoras
da educação brasileira. Como leitora agradeço a oportunidade de acessar textos que me apresentaram
uma experiência que sinalizam para futuros. Temos muito a aprender com a Educação do Campo.

Maria Isabel Antunes-Rocha


Professora Titular na Faculdade de Educação
Universidade Federal de Minas Gerais.
Fevereiro/2023

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SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO...................................................................................................................................................................08

CAPÍTULO 1 - A ESCOLA DO CAMPO NÃO É UMA ESCOLA MULTISSERIADA,


NUCLEADA, CICLADA... É UMA ESCOLA EM MOVIMENTO, QUE POSSUI O JEITO DO
CAMPO.......................................................................................................................................................................................13

CAPÍTULO 2 - BASE NACIONAL COMUM CURRICULAR E A FORMAÇÃO CONTINUADA DOS


PROFESSORES DO CAMPO.............................................................................................................................................25

CAPÍTULO 3 - A CONTRIBUIÇÃO HISTÓRICA DO MST PARA A EDUCAÇÃO DO


CAMPO.......................................................................................................................................................................................41

CAPÍTULO 4 - A UTILIZAÇÃO DO TRANSPORTE ESCOLAR NO CAMPO..........................................54

CAPÍTULO 5 - PROGRAMA NACIONAL DE EDUCAÇÃO NA REFORMA AGRÁRIA E SUAS


POTENCIALIDADES DURANTE OS GOVERNOS LULA (2033-2010). .......................................................61

CAPÍTULO 6 - INTERFACE ENTRE EDUCAÇÃO DO CAMPO E EDUCAÇÃO


POPULAR..................................................................................................................................................................................72

CAPÍTULO 7 - GRUPO TEMÁTICO AGROECOLOGIA: EXPERIÊNCIA DO CURSO DE


LICENCIATURA EM EDUCAÇÃO DO CAMPO DA UNIVERSIDADE FEDERAL RURAL DO RIO
DE JANEIRO.............................................................................................................................................................................86

CAPÍTULO 8 - FORMAÇÃO CONTINUADA DE PROFESSORES DE ESCOLAS MULTISSERIADAS:


DO PROGRAMA ESCOLA ATIVA AO PROGRAMA ESCOLA DA TERRA..............................................102

CAPÍTULO 9 - O DIREITO SOCIAL E A EDUCAÇÃO NAS CONSTITUIÇÕES BRASILEIRAS:


BREVE RECORTE HISTÓRICO....................................................................................................................................119

CAPÍTULO 10 - HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO DO CAMPO NA UFRRJ.....................................................136

CAPÍTULO 11 - EDUCAÇÃO DO CAMPO NO ÂMBITO DA POLÍTICA EDUCACIONAL: A


FORMAÇÃO DE EDUCADORAS/ES NAS LICENCIATURAS EM EDUCAÇÃO DO CAMPO E NO
PROGRAMA ESCOLA DA TERRA..............................................................................................................................155

CAPÍTULO 12 - REFLEXÕES NA INTERFACE ENTRE EDUCAÇÃO DO CAMPO E REFORMA


AGRÁRIA POPULAR.........................................................................................................................................................169

CAPÍTULO 13 - INTERFACES ENTRE EDUCAÇÃO DO CAMPO, EDUCAÇÃO QUILOMBOLA E


SABERES DOS POVOS TRADICIONAIS..................................................................................................................182

CAPÍTULO 14 - O FECHAMENTO DAS ESCOLAS MULTISSERIADAS NO AMAZONAS.............196

CAPÍTULO 15 - PEDAGOGIA DA ALTERNÂNCIA: AÇÃO COLETIVA PRODUTORA DE EDUCAÇÃO


E DE PERMANÊNCIA NO CAMPO...........................................................................................................................................204

CAPÍTULO 16 - DESAFIOS TEÓRICO-PRÁTICOS DA APLICAÇÃO DA PEDAGOGIA DA


ALTERNÂNCIA: APROXIMAÇÕES A PARTIR DE UM ESTUDO DE CASO NAS EFAS DE
OLIVÂNIA, VINHÁTICO E GARRAFÃO/ES...........................................................................................................214

CAPÍTULO 17 - DA AMAZÔNIA À UFRRJ: ANCESTRALIDADE E TRAJETÓRIA DE UMA


SERINGUEIRA E RIBEIRINHA ESTUDANTE DA LICENCIATURA EM EDUCAÇÃO DO
CAMPO.....................................................................................................................................................................................228

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APRESENTAÇÃO

O presente livro é fruto das inúmeras atividades de ensino, pesquisa e extensão desenvolvidas
pelos bolsistas, professores, pesquisadores e colaboradores do Programa de Educação Tutorial
– PET Educação do Campo e Movimentos Sociais, na UFRRJ – Universidade Federal Rural
do Rio de Janeiro, além da Licenciatura em Educação do Campo. Ele apresenta um breve
debate acerca de algumas temáticas relacionadas às políticas públicas de educação do campo,
movimentos sociais, educação popular, agroecologia e reforma agrária popular, no cenário
brasileiro.
Este livro dá ênfase a relevância dos sujeitos, individuais e coletivos, nas lutas dos
movimentos sociais camponeses, universidades, secretarias municipais e estaduais de educação,
privilegiando os aspectos identitários das políticas públicas de educação do campo. Conhecer
esse percurso é extremamente necessário. Nessa conjuntura de resistências, os movimentos
sociais afirmam que o campo é mais que uma concentração espacial geográfica. O campo é o
cenário de uma série de lutas e embates políticos. É ponto de partida numa série de reflexões
sociais. É espaço culturalmente próprio, detentor de tradições, místicas e costumes singulares.
O homem e a mulher do campo, nesse contexto, são sujeitos historicamente construídos.
O PET Educação do Campo e Movimentos Sociais tem a intenção de contribuir com a
formação dos diversos atores do campo, privilegiando as histórias de vida, memórias, lutas sociais
e reconhecimento identitário na formação de novos sujeitos sociais, numa perspectiva popular,
histórica e emancipatória, aproximando a produção acadêmica dos anseios comunitários, por
meio de debates e eventos artístico-culturais com os movimentos sociais.
Nesse contexto, a luta por educação do campo, a formação continuada dos educadores do
campo e a denúncia contra o fechamento de milhões de escolas do campo no Brasil, fazem parte
das nossas preocupações. Sendo assim, nos encontros semanais do Grupo PET, decidimos que
o livro teria a seguinte configuração, com uma breve apresentação dos artigos.
O primeiro deles é de Salomão Mufarrej Hage e Hellen do Socorro de Araújo Silva, A
escola do campo não é uma escola multisseriada, nucleada, ciclada... É uma escola em
movimento, que possui o jeito do campo. Os autores afirmam que a Educação do Campo é
um Movimento recente, tem pouco mais de 20 anos de existência, criado com o protagonismo
dos movimentos e organizações sociais e sindicais populares do campo em articulação com
universidades públicas e organizações governamentais e não governamentais que afirmam o
Direito à Educação dos povos do campo e lutam pela efetivação de políticas e práticas educativas
sintonizadas com a vida, o trabalho e os territórios dos povos tradicionais e camponeses.
O texto Base nacional comum curricular e a formação continuada dos professores
do campo, de Cláudia Batista da Silva e Arlete Ramos dos Santos, é parte da dissertação de
mestrado do Programa de Pós-graduação PPGED/UESB da linha de pesquisa Políticas Públicas
Educacional. A pesquisa analisou as políticas públicas para formação continuada de professores
do campo e sua efetividade, no que diz respeito às contradições existentes entre as políticas
instituídas pelo PAR conjugadas com as prescrições da BNCC. As reflexões tiveram o suporte
metodológico no materialismo histórico dialético, e os resultados apontaram que a relação
das acepções das formações continuadas para os professores do campo que vão de encontro às
prescrições da BNCC estão exatamente relacionadas à submissão da lógica das avaliações em
larga escala.
A Contribuição Histórica do MST para a Educação do Campo, de Anna Esteves,
Isabella Silva de Melo e Pedro Lucas Cuzatis de Oliveira, afirmam que o golpe empresarial-
militar de 1964 sustou violentamente o fio da meada com os movimentos de educação e cultura
popular. No âmbito educacional, o sistema ditatorial consolidou a incorporação da educação
rural ao conjunto da educação brasileira, subordinando-a à cultura urbana e aos mecanismos
de controle ideológico do Estado Militar. Sem alocação de recursos financeiros, materiais e

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humanos, as escolas rurais tornaram-se responsabilidade dos seus respectivos municípios e as
atividades de profissionalização atendiam às exigências do mercado urbano-industrial. A partir
do surgimento do Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra – MST, ganha força a importância
de se construir uma pedagogia voltada para os sujeitos do campo como forma de dar continuidade
à luta pela Reforma Agrária. O MST é o que mais contribuiu e tem contribuído na discussão
e efetivação de experiências de processos não formais, a chamada formação política, e de uma
nova educação e uma nova escola, que resgatam os esboços centrais da educação popular. A
Educação do Campo é expressão da conquista e do exercício de direitos dos setores populares
rurais por meio de seus movimentos sociais, em perspectiva contrária à nossa história repleta de
desigualdades.
A utilização do transporte escolar no campo, de Sarah Nery da Silva Pedro e Julyanne
Coutinho, apresenta as dificuldades que os estudantes do campo enfrentam para chegar até a
escola. Analisam os obstáculos que perpassam os discentes do campo em relação à acessibilidade
às instituições de ensino, como: o estado precário dos transportes públicos, a baixa estrutura das
estradas e o longo percurso que enfrentam até à escola. Entre outros aspectos, discorrem acerca
das consequências da má acessibilidade e apontam o que a legislação brasileira expõem sobre o
assunto. A metodologia utilizada nessa pesquisa foi a qualitativa e a bibliográfica, por meio da
leitura de artigos, da Constituição Federal, do Fundeb, dos PCNs e do PNATE.
Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária e suas potencialidades durante
os governos Lula (2033-2010), de Bruno César de Carvalho Rizzo, afirma que tal Programa foi
criado em 1998 pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso. Mesmo sendo uma época
em que o neoliberalismo parecia dominar todas as esferas nacionais, o povo, através de muita
luta, conseguiu que o Estado contemplasse a população rural brasileira com algo que jamais
nenhum outro governo o tinha feito. O autor entendeu como algo essencial para que acontecesse
o primeiro encontro de educadores da reforma agrária (I ENERA) em 1997 no estado de Goiás,
que contava com o apoio da UNB (Universidade de Brasília). Durante a pesquisa realizada, em
função da pandemia de covid-19, resolveu optar pela revisão bibliográfica ao invés da pesquisa
de campo.
Interface entre educação do campo e educação popular, de Marcus Gabriel Inácio de
Freitas e Ramofly Bicalho, é uma pesquisa caracterizada pela abordagem sobre as conexões entre
Educação do Campo e Educação Popular. Tem como principal objetivo a discussão sobre os
marcos históricos, conceitos, metodologias e as políticas públicas que envolvem estes importantes
projetos libertadores e emancipadores. Tem como metodologia, predominantemente, a pesquisa
bibliográfica. Os resultados apontam que a formação dos sujeitos, individuais e coletivos, na
perspectiva emancipadora, confunde-se com as lutas estabelecidas pelos movimentos sociais
camponeses.
Grupo temático agroecologia: experiência do curso de Licenciatura em Educação do
Campo da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, texto de Jarlane S. Lima, Valdinere
S. M. de Morais, Eliane M. Geraldino e Fabiana de Carvalho Dias Araújo, tem por objetivo
apresentar a experiência do curso de Licenciatura em Educação do campo na discussão sobre
agroecologia. Foram realizadas pesquisas bibliográficas, documental, observação participante
e entrevista. O grupo temático Agroecologia (GT Agroecologia) foi pensado para contribuir
com os educandos/as numa formação pedagógica crítica e pautada na sustentabilidade. Possui
como viés principal a Agroecologia e suas questões sociais, econômicas, ambientais e agrícolas.
Tem como ferramentas pedagógicas, visitas guiadas, pesquisas, escrita orientada e construção
coletiva (Trabalho Integrado) e individual, realizadas durante o Tempo Comunidade. Ao
longo dos 10 anos de curso, este Grupo Temático passou por várias composições, formatos e
participações. Já foi o GT mais populoso do curso em 2018 e 2019 e ainda se mantém como um
dos mais procurados pelos/as educandos/as da Educação do Campo.
Formação continuada de professores de escolas multisseriadas: do Programa Escola
Ativa ao Programa Escola da Terra, de Pedro Clei Sanches Macedo, apresenta algumas reflexões

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acerca das políticas públicas em educação do campo a partir do estudo do Programa Escola da
Terra, criado pela Portaria nº 579 de 02 de julho de 2013, no âmbito do Programa Nacional de
Educação do Campo (PRONACAMPO), com o objetivo de promover a formação continuada
de professores que atuam em escolas localizadas em comunidades rurais e quilombolas, para
atender as necessidades específicas das turmas multisseriadas. O intuito é traçar um breve
histórico sobre a implantação das políticas de formação continuada para os professores de
escolas multisseriadas realizadas no âmbito do Ministério da Educação em parcerias com os
estados e municípios, desde a sua gênese com a implementação do Programa Escola Ativa até a
proposição de um novo programa, neste caso, o Escola da Terra. Os resultados apresentam uma
análise macro relacionada ao contexto de reformulação e redirecionamento dessas políticas,
evidenciando o processo de resistência de diferentes grupos de interesses, com destaque ao
Movimento por uma Educação do Campo que propõe mudanças significativas que foram sendo
incorporadas nos projetos de formação docente implementados pelas universidades federais
com apoio dos movimentos sociais campesinos, pesquisadores, professores da educação básica,
fóruns, sindicatos, entre outros.
O direito social e a educação nas constituições brasileiras: Breve Recorte Histórico,
de Bruna Lameira Chagas e Sérgio Luiz Lopes, pontuam os caminhos percorridos pela população
por meio de muitas árduas lutas, em movimentos sociais e mobilizações, para que houvesse o
direito social, fundamental e constitucional à educação para todos os povos na atual conjuntura
brasileira. No contexto das legislações oficiais brasileiras, trabalhou com sete promulgações de
constituições, as quais, em meio à demanda em questão, são importantes de serem evidenciadas.
O estudo contou com a pesquisa bibliográfica e documental enquanto procedimentos técnicos.
O trabalho teve como objetivo abordar o recorte das lutas sociais em prol do direito à educação
nas constituições brasileiras e o direito à educação no atual ordenamento jurídico brasileiro,
incluindo a Constituição de 1824, a Constituição de 1891, a Constituição de 1934, a Constituição
de 1937, a Constituição de 1946, a Constituição de 1967 e a Constituição de 1988, temática
que envolve um longo caminho de avanços e desafios. Utilizou nos documentos legislativos,
as definições relativas à educação, especificamente aquelas que atendem às populações dos
contextos rurais da sociedade brasileira, fruto de intensas lutas sociais, que, consequentemente,
trouxeram vitórias e avanços sobretudo nas últimas décadas.
História da Educação do Campo na UFRRJ, de Jean Moura, Roberta Lobo e
Suelen Estevam, tem por objetivo apresentar o processo histórico do surgimento do curso
de Licenciatura em Educação do Campo na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro
– UFRRJ. A argumentação parte da experiência piloto da LEC PRONERA: turma Oséias
Carvalho/UFRRJ 2010-2013, e tem como ponto central o processo de regularização do
curso na universidade, culminando no cenário atual. Para tal, foram realizadas entrevistas
semiestruturadas com discentes, tanto da LEC PRONERA, quanto das turmas seguintes, bem
como, alguns professores envolvidos no processo de construção do curso. Foi possível, através
desse material, observar as tensões existentes entre as demandas dos movimentos sociais, povos
tradicionais e suburbanos, e a realidade institucional da UFRRJ.
Educação do campo no âmbito da política educacional: a formação de educadoras/es
nas Licenciaturas em Educação do Campo e no Programa Escola da Terra, de Ana Cristina
Hammel e Alex Verdério, está voltado para reflexões acerca da formação inicial e continuada de
professoras/es do campo compreendendo-as como ações que, no marco da política educacional
brasileira, são sustentadas e dão concretude ao Decreto Presidencial nº 7.352, de 4 de novembro
de 2010, que dispõe sobre a política de Educação do Campo e o Programa Nacional de Educação
na Reforma Agrária (PRONERA) (MEC; SECADI, 2012). Para tanto, ao voltar-se para a
formação de educadoras/es do campo, são tomados como referências o Programa de Apoio à
Formação Superior em Licenciatura em Educação do Campo (PROCAMPO) e o Programa
Escola da Terra.
Reflexões na Interface entre Educação do Campo e Reforma Agrária Popular, de Isa

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Lyrion Murro P. De Carvalho, Marcelly Santos, Priscila de Queiroz S. Gusmão e Fabrina Pontes
Furtado, observam que a história política e econômica do Brasil, possuem evidências de ações
de expropriação da terra e a escravização da mão de obra de povos indígenas e africanos, que
por consolidar-se influenciam os modos de produção que operam até a contemporaneidade.
As marcas históricas deixadas pelos colonizadores no território brasileiro não foram limitadas à
fase do Brasil Colônia. Elas se perpetuam até hoje e têm grande reflexo na zona rural brasileira,
como também na urbana. Defendem a necessidade de compreender como na realidade brasileira
o campo é um espaço de disputa por territórios e como os seus habitantes são expropriados de
direitos fundamentais para sobrevivência digna. Refletem sobre a presença dos movimentos
sociais campesinos, tendo como referência, o MST, a relevância da Educação do Campo, em
diálogo com a Reforma Agrária Popular.
Interfaces entre educação do campo, educação quilombola e saberes dos povos
tradicionais, de Guilherme Goretti Rodrigues, Dileno Dustan Lucas de Souza e Beatriz Souza
Barral. Os autores sinalizam que em seus escritos políticos, o marxista italiano Gramsci (1976,
p.121) diz que “a indiferença é o peso morto da história” e complementa: “vivo, tomo partido”.
Essa formulação atualiza-se no presente e convida-nos para a mobilização, organização e luta
da classe trabalhadora frente a um capitalismo que historicamente é destrutivo na sua gênese,
condenando milhões de pessoas ao pauperismo, assim como aniquilando a biodiversidade pela
incessante acumulação do capital. Para os que permanecem indiferentes, que “deem licença do
caminho”.
O fechamento das escolas multisseriadas no Amazonas, de Iraci Carvalho Uchoa,
Arminda Rachel Botelho Mourão e Edilberto Moura dos Santos, tem como objetivo discutir
o fechamento das escolas multisseriadas no campo do Amazonas. Utilizou-se para a coleta
de dados as pesquisas de Campo e Documental. O método para apreciação e análise foi o
Materialismo Histórico-dialético. O contexto da pesquisa é o município de Alvarães/Am. Os
resultados obtidos são: a) o menor índice da população permanente no campo de Alvarães
varia entre os jovens de faixa etária de quinze a dezessete anos; b) 19% da população com idade
escolar concluiu o Ensino Fundamental nesse município; c) 76 pesquisas encontradas entre
teses e dissertações, nenhuma discutiu o fechamento das escolas multisseriadas no Amazonas. A
contribuição deste texto é discutir no âmbito do Amazonas o fechamento das escolas do campo,
uma vez que essa temática não tem sido debatida no Estado.
Pedagogia da Alternância: ação coletiva produtora de educação e de permanência
no campo, de Ana Paula Barbosa Neves Arsenio, Lais Braz, Thailane do Carmo Oliveira
Mariotti de Lima e Edilene Santos Portilho, busca entender a Pedagogia da Alternância no
Brasil como ação coletiva produtora de permanência nos territórios, considerando todas as suas
variações e diversidades quanto à dinâmica educativa ligada a um espaço e a um tempo específico.
A metodologia desenvolvida foi o estudo em grupo dos autores considerados clássicos sobre o
tema e dos artigos encontrados na Internet. Discutiu-se que, desde sua origem, a Pedagogia da
Alternância se apresentou como uma ação coletiva com expressão em todo o território nacional.
As ferramentas que ela desenvolveu, e que dialogaram com os sujeitos no seu cotidiano, foram
capazes de gerar os conhecimentos, saberes, relações e estruturas para que cada sujeito ou núcleo
familiar pudesse produzir a sua identidade social a permanência em seu território.
Desafios teórico-práticos da aplicação da pedagogia da alternância: aproximações a
partir de um estudo de caso nas Efas de Olivânia, Vinhático e Garrafão/ES, de Leonardo
Rauta Martins. Segundo o autor, as Escolas Família Agrícola – Efas, fundadas no estado do
Espírito Santo, no fim da década de 1960, são reconhecidas como as pioneiras a utilizar a
pedagogia da alternância no Brasil. Os instrumentos pedagógicos que dão vida a essa forma
particular de Alternância são responsáveis por integrar dois diferentes tempos/espaços de
formação: o tempo escola e o tempo comunidade. O objetivo com este texto é discutir como se
dá, no âmbito das Efas capixabas, a aplicação desses instrumentos e as contradições que emergem
no interior desse dispositivo educacional. Este é um trabalho de inspiração etnográfica que, em

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diálogo com a literatura especializada, integra tanto nossa experiência enquanto professor da
Efa de Olivânia (2013) quanto um trabalho de campo de três meses realizado por ocasião da
nossa tese de doutorado (2017). O esforço de pesquisa mostra que as transformações estruturais
pelas quais passou o mundo rural nas últimas décadas, associadas a correlata mudança no perfil
dos alunos que integram as Efas, trouxeram inúmeros desafios ao funcionamento das Efas, entre
os quais produzir confluências entre as diferentes expectativas que pais, alunos, monitores e
parceiros alimentam em relação ao trabalho das Efas.
Da Amazônia à UFRRJ: ancestralidade e trajetória de uma seringueira e ribeirinha
estudante da Licenciatura em Educação do Campo, de Maria de Fátima Nascimento de
Oliveira Silva, Sidney da Silva e Igor Simoni Homem de Carvalho, contam a história de uma
estudante da Licenciatura em Educação do Campo (LEC) da UFRRJ: filha de seringueiros, mãe,
missionária, mulher lutadora, residente em Seropédica-RJ. Traz a trajetória dessa militante, que
denuncia a indiferença que sofrem por gerações os povos, especialmente, os ribeirinhos e, em
cuja cultura, está enraizada sua família. Os autores abordam suas vivências evidenciando uma
realidade que, por muitas das vezes, é invisibilizada.

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CAPÍTULO 1 - A ESCOLA DO CAMPO NÃO É UMA ESCOLA
MULTISSERIADA, NUCLEADA, CICLADA... É UMA ESCOLA EM
MOVIMENTO, QUE POSSUI O JEITO DO CAMPO

Salomão Mufarrej Hage 1


Hellen do Socorro de Araújo Silva2

A Educação do Campo

Do povo agricultor

Precisa de uma enxada

De um lápis, de um trator…

Não é mais possível aos livros de História de Educação no Brasil

Não acrescentar mais um capítulo à sua periodização:

A construção da Educação do Campo!

O protagonismo dos Movimentos Sociais Populares e Sindicais do campo,

Aliado aos realizados pela Educação Básica e Superior de todo o país,

Juntos na luta pelo direito à educação dos camponeses,

Foi capaz de construir um imenso patrimônio de práticas educativas,

Que não pode mais ser apagado,

Porque fincou raízes dentro de nós: construímos juntos uma nova forma de educar.

(Carta manifesto dos 20 anos da Educação do Campo e do Pronera, 2018)

(...) Dessa história

Nós somos os sujeitos

Lutamos pela vida

Pelo que é de direito

As nossas marcas

Se espalham pelo chão

A nossa escola

Ela vem do coração

(Gilvan Santos)

1 Salomão Antônio Mufarrej Hage é professor do Instituto de Ciências da Educação da Universidade Federal
do Pará (ICED/ UFPA). Professor Permanente do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGED) do ICED
da UFPA Campus Belém e do Programa Linguagens e Saberes da Amazônia (PPLSA) da UFPA Campus Bragança.
Doutor em Educação e Currículo pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) - 2000. Possui
Doutorado Sanduíche pela Universidade de Wisconsin-Madison (1999). Bolsista Produtividade do CNPq. Coordena
o Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação do Campo na Amazônia (GEPERUAZ). Integra a Coordenação do
Fórum Paraense de Educação do Campo (EDUCAMPO Paraense). salomao.hage@yahoo.com.br
2 Professora da Universidade Federal do Pará – UFPA, Campus Universitário de Cametá/PA, do Programa
de Pós-Graduação em Educação e Cultura e da Faculdade de Educação do Campo. E-mail: hellen.ufpa@gmail.com.
ORCID: 0000-0002-5443-2373.

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Resumo

A Educação do Campo é um Movimento recente, tem pouco mais de 20 anos de


existência, criado com o protagonismo dos movimentos e organizações sociais e sindicais
populares do campo em articulação com universidades públicas e organizações governamentais
e não governamentais que afirmam o Direito à Educação dos povos do campo e lutam pela
efetivação de políticas e práticas educativas sintonizadas com a vida, o trabalho e os territórios
dos povos tradicionais e camponeses.

Introdução

Importante destacar que sem movimento social, sem luta e mobilização pela afirmação
do projeto territorial dos povos tradicionais e camponeses não existe Educação do Campo; esse
conceito, essa práxis foram construídos para confrontar as narrativas hegemônicas que circulam
na sociedade brasileira e disseminam o entendimento de que o campo é um território atrasado,
sem cultura, sem perspectiva e que vai acabar com o aumento do êxodo rural.
Historicamente, os grupos com maior poder na sociedade, de orientação mercadocêntrica,
eurocêntrica, patriarcal, racista, antropocêntrica e urbanocêntrica têm ocupado o imaginário
social, com um processo arbitrário de colonialidade, dominação e exploração que penetra a
estrutura social e as subjetividades dos sujeitos a partir da colonialidade do poder, do saber e
do ser (QUIJANO, 2005) com ideias que discriminam os povos tradicionais e camponeses,
tratando-os de forma preconceituosa, como se fossem primitivos, sem cultura, não civilizados,
e até mesmo não humanos.
O Movimento da Educação do Campo desde suas origens vem combatendo essas narrativas
visibilizando o protagonismo e as alianças que os povos indígenas, tradicionais, quilombolas,
extrativistas, ribeirinhos e camponeses têm construído, valorizando os saberes e experiências
desses povos, de tradição ancestral, e afirmando a diversidade de territórios e territorialidades
que configuram o campo no Brasil.
Se nas origens desse movimento, a disputa entre a “educação rural” e a “educação do
campo” polarizou a discussão, associando a primeira a uma concepção de educação precarizada,
empobrecida, com professores pouco qualificados e contratados temporariamente, limitada os
anos iniciais de escolarização ofertados em turmas multisseriadas... Para muitos, sinônimo de
fracasso escolar; na atualidade, a tensão se complexifica muito mais com as disputas dos agentes
do negócio (agro/hidro/mineral/carbono-negócio) com os coletivos e povos que lutam para
que se cumpra a função social da terra com a produção cooperada, de base agroecológica e
sustentável de todas as formas de vida, humanas e não humanas.
Transformar o campo, a natureza e todas as suas riquezas em mercadoria é o grande objetivo
dos agentes do negócio, que querem lucrar a qualquer preço e se apropriar dos territórios dos
povos tradicionais e camponeses e de toda a riqueza material e imaterial produzida coletivamente
pela humanidade, não importando se para o alcance desses objetivos tenham que explorar até
esgotar todas as riquezas da natureza, barrar ou poluir os rios até aniquilar as áreas pesqueiras,
derrubar e queimar a floresta até extinguir muitas espécies animais e vegetais e, aplicar agrotóxicos
e pesticidas até acabar com a saúde de todos os seres vivos.
Mais preocupante ainda, é ver o Estado, que deveria fortalecer a esfera pública para
proteger a vida humana e não humana, apoiando em grande medida, em suas várias instâncias:
nacional, estadual e municipal, os agentes do negócio, com seu modelo de desenvolvimento
destrutivo do meio ambiente, que se concentra na produção da monocultura, de commodities
para exportação, com a intensificação do uso de agrotóxicos, adubos químicos e sementes
transgênicas.

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Como resultado assistimos o desvio do fundo público para o financiamento dos
grandes produtores rurais, liderados pelos ruralistas, e as consequências do modelo perverso
implementado por esses agentes, que afeta cada vez mais as populações que vivem nos grandes
centros urbanos, com a contaminação e escassez de água, envenenamento de alimentos por
agrotóxicos, mudanças climáticas e os inchaços nas grandes cidades, evidenciando a intrínseca
relação entre as questões agrária e urbana na atualidade
Os povos tradicionais e camponeses, organizados em seus movimentos sociais e sindicais
populares, como: MST, CONTAG, MPA, FETAGs, MMC, MAB, UNEFAB...; por sua
vez, assumem a agricultura familiar camponesa, diversificada, de base agroecológica visando
fortalecer a soberania alimentar, o uso social e coletivo da terra e do território, e a reforma
agrária popular, que na visão do MST (2021), implica numa mudança estrutural na relação com
o acesso à terra, os bens da natureza, modos de produção e organização comunitária camponesa;
seguindo a máxima de “Terra, é mais que Terra!”
O último Censo Agropecuário brasileiro, realizado em 2017, revelou que 1% dos grandes
proprietários de terras controlam quase 50% da área rural, enquanto os pequenos produtores,
que possuem estabelecimentos com áreas menores de 10 hectares, representam apenas 2% da
área total. Essa realidade inclui o Brasil entre os países que possuem a maior concentração de
terras do mundo e grandes latifúndios, e tem provocado os movimentos sociais populares a exigir
a democratização do acesso à terra e de todos os bens da natureza: água, bio e sociodiversidade,
sementes crioulas, minérios e fontes de energia, como bens públicos, acessíveis a toda a população,
do campo e da cidade, e não como mercadoria ou objetos de apropriação privada, como querem
os agentes do negócio.
Assim, a mobilização e luta dos povos tradicionais e camponeses quando referenciada
com a bandeira da Reforma Agrária Popular, extrapola a democratização da terra e as questões
produtivas, articulando-as à necessidade de assegurar e preservar todos os bens da natureza, com
a garantia de sua função social e do direito à demarcação dos seus territórios, como exigência
para a sustentabilidade de sua existência e para a sustentabilidade da existência do planeta.
O Movimento da Educação do Campo sob a liderança do Fórum Nacional de Educação
do Campo (Fonec), com os Fóruns e Comitês Estaduais de Educação do Campo, e suas frentes
de intervenção: Pronera, Licenciatura em Educação do Campo, Defesa da escola do campo,
Institutos Federais e Comunicação; se insere nesse contexto, advertindo que no horizonte
dessas lutas e mobilizações dos povos tradicionais e camponeses, a construção de novas relações
humanas, sociais e de gênero são fundamentais, e necessárias para que possamos enfrentar o
machismo, o feminicídio, a misoginia, o patriarcado, a lgbtfobia, a intolerância religiosa, as
múltiplas expressões de racismo, o capacitismo, o etnicídio, o culturicídio, o negacionismo, o
fascismo e todos os ataques à democracia que vivenciamos na atualidade, no Brasil e no mundo.
O Movimento da Educação do Campo atua no sentido de transformar os territórios
do campo, das águas e das florestas em lugares de bem viver, livre de violências, assassinatos,
emboscadas, chacinas, assegurando aos povos tradicionais e camponeses condições de vida
digna, em que os direitos humanos e sociais sejam assegurados para garantir a afirmação de seus
modos de vida e a permanência em seus territórios com a possibilidade de produzir alimentos
saudáveis, com suas formas próprias de trabalho e geração de renda familiar ou cooperado, de
preservar a natureza e de fortalecer a soberania nacional.
Nesse processo de mobilização e luta, protagonizado pelos povos tradicionais e
camponeses, Educação também é mais que Educação, entendida como estratégica ao oportunizar
o acesso a informações e conhecimentos que ampliam a compreensão e apropriação dos sujeitos
com relação ao padrão de poder existente na sociedade, incluindo o papel do Estado na formação
de alianças e as disputas para assegurar ou alterar a hegemonia.
A Educação oportuniza aos povos tradicionais e camponeses, o domínio dos meios
de comunicação e de suas ferramentas, para posicioná-las em favor da afirmação da cultura
camponesa, indígena, ribeirinha, extrativista, quilombola a partir de suas vozes e memória

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coletiva, buscando a superação de preconceitos e discriminações.
Assegurar aos povos tradicionais e camponeses o Direito à Educação Pública de Qualidade
e Gratuita em todos os níveis em seus territórios é uma das exigências para as transformações
sociais que esses povos almejam com a Reforma Agrária Popular, pois a Educação oportuniza
a formação humana, técnica, científica e política das pessoas, necessária para a construção
de formas autônomas de cooperação entre os sujeitos, coletivos, etnias e povos que vivem e
trabalham no campo, com perspectivas críticas de sua realidade e lugar social; assim como, com
as relações políticas que eles estabelecem com os sujeitos e coletivos que vivem nos territórios
urbanos.
O Movimento da Educação do Campo, desde sua criação no final dos anos 1990,
tem lutado pela construção da Escola Pública do Campo, inserida nessa pauta de demandas
mais abrangentes, que articula a luta pela terra com a democratização do Direito à Educação.
Fundamentalmente, uma escola que se compromete com a produção e reprodução sustentável
da vida nos territórios dos povos tradicionais e camponeses. Uma escola que dialoga com as
realidades e projetos de futuro dos povos que vivem nesses territórios, onde as práticas educativas
nela efetivadas, se ainda orientadas pela perspectiva da Educação Rural, sejam alteradas com as
condições que emergem da efetivação de práticas sob a perspectiva da Educação do Campo.
A Educação do Campo, segundo o Fonec (2022), nasceu das experiências de luta pelo
Direito à Educação e por um Projeto Político Pedagógico vinculado aos interesses da classe
trabalhadora do campo, na sua diversidade de povos indígenas, povos da floresta, comunidades
tradicionais e camponesas, quilombolas, agricultores familiares, assentados, acampados à espera
de assentamento, extrativistas, pescadores artesanais, ribeirinhos e trabalhadores assalariados
rurais.
Nesse processo o Movimento da Educação do Campo tem assumido os princípios da
Educação do Campo como estruturantes da formação dos sujeitos camponeses, imprescindíveis
para o reconhecimento e afirmação da diversidade e da complexidade da vida, do trabalho, da
cultura, da natureza e das relações sociais de mobilização e luta que configuram seus territórios
e territorialidades existentes no país, nos estados e municípios.
Nos vários Cadernos da Coleção Por uma Educação Básica do Campo é possível encontrar
aspectos importantes da memória coletiva do Movimento da Educação do Campo, na qual são
explicitados os princípios, intencionalidades e referências teórico-práticas definidas com sua
historicidade. Eles ajudam a esclarecer que a escola do campo que se quer fortalecer com esse
processo de construção coletiva não é necessariamente uma escola nucleada, polarizada, anexa,
seriada, multisseriada, multietapa, isolada, ciclada, ou de outra natureza de organização do
ensino qualquer. Numa perspectiva diferenciada, O Movimento entende que:

(...) A Escola do Campo,


Não é um tipo diferente de escola,
É a escola em movimento,
Reconhecendo e ajudando a fortalecer os povos do campo como sujeitos
sociais,
Que também podem ajudar no processo de humanização do conjunto da
sociedade,
Com suas lutas, sua história, seu trabalho, seus saberes, sua cultura,
Seu jeito próprio de ser, de viver e de se reproduzir socialmente.

(...) A Escola do Campo,


É aquela que trabalha desde os interesses, a política, a cultura e a economia
dos diversos povos do campo,
Ela possui o jeito do campo,
E inclui neste jeito as formas de organização, de vida e de trabalho dos
povos do campo,
Porque são construídas política e pedagogicamente pelos sujeitos do
campo;

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Porém, ela somente será construída nessa perspectiva,
Se os povos do campo, em sua identidade e diversidade, assumirem este
desafio,
Não sozinhos, mas também não sem sua própria luta e organização.
(Texto base CN, Coleção Por uma EBC n.º 1, 1999)

Importante esclarecer que todas as escolas, independente do território que ocupam,


campo ou cidade, estão sempre em movimento, sempre em marcha, elas nunca estão paralisadas
como muitas vezes nos tentam fazer crer. A questão a ser pautada, então, passa a ser: as escolas
do campo se movimentam em que sentido? Rumo a possuir o jeito do campo, de ser, de viver e de
se reproduzir socialmente?
Em grande medida, o movimento que as escolas do campo realizam nem sempre toma
a sentido do fortalecimento dos povos do campo como Sujeitos de Direitos, conforme assegura
a Constituição Federal de 88. Tão pouco, o sentido do movimento que as escolas realizam
promove a valorização das lutas dos povos tradicionais e camponeses, de suas histórias, de seus
trabalhos, de seus saberes, de suas culturas e de seus projetos sociais, como demanda o Movimento
da Educação do Campo com suas ações coletivas de pressão sobre o Estado e de aliança com as
universidades e redes de ensino.
No cenário atual marcado por contradições e conflitos intensos nos territórios do campo,
dos povos indígenas, extrativistas e quilombolas que emergem das disputas de projetos de
sociedade, com suas perspectivas de produção e reprodução da vida, Roseli Caldart (2020),
liderança histórica do MST e do Movimento da Educação do Campo, com suas sábias
reflexões nos adverte que, nessa nova realidade que se desenha nos territórios do campo, há um
reposicionamento nas finalidades da educação e se projeta ao mesmo tempo a reconstituição e o
redesenho da função social das escolas do campo.
As escolas do campo encontram-se, portanto, numa encruzilhada, e Caldart nos diz que
há uma escolha radical a fazer, que pode imprimir o sentido do movimento que queremos que
essas escolas tomem:

Colocar a escola a serviço das demandas de produção e reprodução do


capital na agricultura, conforme sinaliza insistentemente o agronegócio
com suas manifestações na grande mídia, que sempre apequenam o
horizonte formativo e fomenta o fechamento das escolas no campo;

Ou inserir a escola na construção da vida humana e social das comunidades


camponesas, fortalecida com a relação entre agroecologia e a luta pela
transformação do sistema social, construção que exige/possibilita trabalhar
pelo desenvolvimento multilateral do ser humano. (2020)

O Movimento da Educação do Campo nos convoca para a construção das escolas


públicas do campo e, nesse processo, demanda nossa intervenção para que as escolas do campo:
aquelas que estão localizadas nas pequenas comunidades do campo ou que estejam localizadas
nos territórios urbanos atendendo os sujeitos do campo (Brasil, 2010), com as suas práticas
educativas, se coloquem em movimento no sentido dos interesses, das políticas, das culturas e
da economia dos diversos povos do campo. O Movimento da Educação do Campo vem lutando
para que as escolas do campo se coloquem em marcha para possuir o jeito do campo, e com isso
afirmar em suas dinâmicas e ações: Projeto Político Pedagógico – PPP, currículo, metodologias
e avaliações, os modos de vida e de trabalho e as formas de organização dos povos do campo.
Buscando compreender com mais abrangência o sentido do movimento que queremos
que as escolas do campo protagonizem, para que sejam compreendidas como um ambiente
educativo que alinha seus espaços, tempos e relações sociais cotidianas com as comunidades
onde se inserem, território de disputa ideológica; encarnando o entendimento de que “Escola é

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mais que Escola!”, Roseli Caldart, assim, se manifesta:

As escolas do campo podem ajudar muito no cultivo de ações coletivas e


relações sociais de igualdade, de participação democrática, de respeito à
diversidade e valorização da vida, em suas múltiplas dimensões;

Elas farão isso melhor se conseguirem captar e potencializar


pedagogicamente as diversas formas de trabalho, de produção e de
sociabilidade que têm sido cultivadas nos territórios do campo, com as
lutas sociais e o trabalho de resistência das comunidades camponesas.

E se problematizarem as tradições de dominação e de conservadorismo


presentes nessas comunidades, pelo cultivo da liberdade fraterna de crítica
e pela familiarização com o desenvolvimento cultural da humanidade, em
suas diferentes expressões: estéticas, artísticas, filosóficas, científicas, em
suas contradições e sua riqueza histórica. Caldart (2020)

De todo modo, também é preciso lucidez para compreender que o sentido do movimento
que as escolas do campo realizam historicamente é marcado por conflitos e contradições, em
meio às relações de poder que se manifestam em suas múltiplas relações e condicionantes que
constituem seus territórios e territorialidades. Predominantemente se visibiliza um quadro
dramático de precarização e abandono que tem sido imposto a essas escolas, reflexo do
descaso com que tem sido tratada a escolarização obrigatória ofertada aos povos tradicionais e
camponeses.
Da mesma forma, se invisibiliza as resistências e possibilidades construídas coletivamente
por educadores e gestores em diálogo e interação com os camponeses, indígenas, quilombolas,
ribeirinhos e extrativistas, no cotidiano das ações educativas, que evidenciam inúmeras situações
criativas e inovadoras que desafiam suas condições adversas e configuram a realidade existencial
dessas escolas e sua sustentabilidade.
O Movimento da Educação do Campo pretende incidir no sentido do movimento das
escolas do campo para justamente confrontar com a visão hegemônica de nossas representações
sociais negativas, pejorativas e depreciativas da “escola rural”, das “classes multisseriadas”, que
induz os sujeitos que ensinam, estudam, investigam ou se envolvem com a educação no campo
e na cidade a compreender as escolas das pequenas comunidades do campo como responsáveis
pelo fracasso escolar dos estudantes; reforçando o entendimento “naturalizado” de que a
solução para essa problemática seja o fechamento dessas escolas com a implantação da política
de nucleação vinculada ao transporte escolar, assumindo o modelo seriado urbano de ensino.
Nos estudos que realizamos no âmbito do Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação
do Campo na Amazônia – GEPERUAZ desde 2002, temos recorrentemente afirmado que é
justamente o modelo seriado urbano de ensino que define o sentido hegemônico do movimento
que as escolas do campo historicamente assumem. Em um aspecto mais visibilizado, o sentido
da precarização, do empobrecimento e de sua extinção prevalecem no movimento que as escolas
do campo vêm realizando rumo à nucleação e à oferta de turmas seriadas, justificado pela
necessidade de modernização da dinâmica educacional existente no campo.
Contudo, o sentido mais pujante do movimento que as escolas do campo realizam sob
a imposição do modelo seriado urbano de ensino conduz à cultura do negócio, padronizada,
homogeneizadora, empreendedora, meritocrática, exatamente como prescreve a Base Nacional
Comum Curricular e seus defensores, sob a liderança do Todos pela Educação, integrada a um
projeto neoconservador e neotecnicista de educação, que ocupa as instâncias de decisão no
campo das políticas educacionais, com uma lógica de fragmentação e sedimentação que define
a agenda de reforma mundial.
Esse modelo hegemônico, de caráter urbanocêntrico, mercadocêntrico, eurocêntrico,
antropocêntrico, patriarcal e racista, constitui o pilar que referencia e ao mesmo tempo

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condiciona, ideologicamente inclusive, as políticas e ações de nucleação escolar defendidas e
implementadas pela maioria dos gestores educacionais que atuam nos sistemas e redes de ensino
municipais, estaduais e federal, e é por eles apresentado como solução para os graves problemas
que enfrentam as escolas do campo, especialmente as multisseriadas.
Entretanto, na visão do Fórum Paraense de Educação do Campo (2021), a nucleação, ao
promover o uso intensivo do transporte escolar para o acesso à escola pelos estudantes, obriga as
crianças e jovens a acordar muito cedo e percorrer longos caminhos diariamente, de ônibus ou
em embarcações, para chegarem à escola. Ela também distancia geograficamente os estudantes
das suas comunidades, apartando as crianças, jovens e adultos de seus modos de sentir-pensar,
de fazer e de viver, com práticas educativas que afastam os sujeitos de suas vivências diárias, e
impõe novos valores culturais e situações que ajudam a negar suas próprias identidades e não
enxergar suas comunidades e territórios como possibilidade de vida.
De fato, a implementação do modelo seriado urbano de ensino tem resultado em
consequências muito perversas à existência dos povos tradicionais e camponeses e à
sustentabilidade de seus territórios e territorialidades, com o fechamento crescente e abusivo das
escolas localizadas nos territórios dos povos tradicionais e camponeses, prática criminosa que
tem violado um direito humano básico desses povos, já assegurados nas legislações educacionais
vigentes: o Direito à Educação Pública, de Qualidade Sócio Referenciada.
O mais preocupante é que o fechamento das escolas do campo tem ocorrido com
a conivência dos conselhos de educação municipais, estaduais e federal, quando deveriam
justamente realizar o controle social e assegurar o cumprimento da legislação educacional,
resultando na extinção de 151.785 escolas em todo o Brasil nos últimos 21 anos (2000-2021),
segundo dados do Censo Escolar do INEP, sendo 104.385 nos territórios rurais e 47.400 nos
territórios urbanos. Nesse mesmo período foram fechadas 8.268 escolas no Estado do Pará,
6.809 rurais e 1.459 urbanas. E somente no ano de 2021, foram fechadas 86 escolas no estado,
sendo 57 nos territórios rurais e 29 nos territórios urbanos (FPEC, 2022).
A adoção do modelo seriado urbano de ensino também contribui para a afirmação de uma
visão “escola-centrista”, que fortalece a apartação e a desigualdade entre os processos e instituições
educativas existentes na sociedade, hierarquizando-os ao apresentar a escolarização como
superior aos demais processos educativos que se realizam outros em espaços e ambientes sociais,
como por exemplo: na família, nas relações de vizinhança e comunitárias, nas práticas culturais,
nas atividades de trabalho, nas ações coletivas protagonizadas pelos movimentos e organizações
sociais, etc., discriminando os Tempos/Espaços/Conhecimentos próprios e diversos, assim como
as experiências educativas desses múltiplos espaços, já legitimadas pela própria LDB/1996, em
seu Art. 1º, quando reconhece que “A educação abrange os processos formativos que se desenvolvem
na vida familiar, na convivência humana, no trabalho, nas instituições de ensino e pesquisa, nos
movimentos sociais e organizações da sociedade civil e nas manifestações culturais”.
Na visão escola-centrista, somente a educação escolar é validada e passa a ser a educação que
conta como significativa e que é legitimada na sociedade e, por isso, tem sido recorrentemente
nomeada de “educação formal”, justamente porque a educação escolar certifica a “mão de obra”
com suas ações formativas, e suas credenciais são incorporadas no capital humano que constitui
a empregabilidade, requerida pelo mercado na atualidade (HAGE, 2018).
Essa visão escola-centrista é muito perversa. Ela promove a intensificação das desigualdades
educacionais e sociais, das desigualdades entre o campo e a cidade, e, por conseguinte, entre a
educação do campo e a que se realiza nos territórios urbanos quando fortalece o darwinismo
social, a meritocracia, a discriminação dos saberes, experiências e senti-pensares dos povos
tradicionais e camponeses.
Ela se torna ainda mais nociva porque promove a segregação entre os próprios processos
de escolarização, quando associa o Tempo/Espaço/Conhecimento Escolar Seriado a um “Sistema
Regular de Ensino”, denominando com a expressão “Ensino Regular” somente os processos de
escolarização que assumem como critério de enturmação dos estudantes a aplicação da relação

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convencional de idade-série, reconhecida pela legislação educacional.
No âmbito do setor educacional e mesmo da sociedade, é muito recorrente a presença de
narrativas que discriminam os Tempos/Espaços/Conhecimentos Escolares que não se orientam
exclusivamente pela seriação, naturalizando-se o entendimento que considera como de “segunda
categoria” todas as experiências escolares e educativas que não assumem a relação idade-série na
enturmação dos estudantes, desqualificando sua eficiência e seus resultados, e tratando-as como
inferiores quando comparadas aos processos escolares que se referenciam pela seriação stricto
sensu (ensino regular).
Isso é muito comumente visto nas Modalidades de Educação Básica: Educação de
Jovens e Adultos, Educação Especial, Educação do Campo, Educação Escolar Indígena,
Educação Escolar Quilombola, ou com experiências educativas que se organizam em períodos
semestrais, ciclos, alternância ou grupos não-seriados. Elas são recorrentemente discriminadas
e deslegitimadas por não se assumirem estritamente o critério de correspondência idade-série
na organização do ensino que ofertam aos estudantes; e, especialmente, quando consideram
o “respeito aos educandos e a seus tempos mentais, sócio-emocionais, culturais e identitários
como um princípio orientador de toda a ação educativa [...] [que], com sua diversidade, tenham
a oportunidade de receber a formação que corresponda à idade própria de percurso escolar”
(Brasil. CNE, 2010, Art. 20).
Essa visão “escola-centrista” é cruel com os professores e professoras das redes básicas
de ensino quando assume a referência de qualidade da educação assentada nos padrões de
produtividade global. Arroyo (2017) esclarece como o trabalho docente e sua qualificação são
avaliados, ranqueados e classificados como trabalho social merecedor ou não de reconhecimento
social como trabalhadores e sujeitos de direitos do trabalho por que vem lutando. Por meio
da aplicação da Epistemologia da Prática e da lógica das Competências, com imposição de
sequências didáticas, metodologias ativas, pedagogias de projetos, etc..., os educadores/as vão
sendo forçados cada vez mais a cumprir metas estatísticas, sendo conformados a uma concepção de
caráter subordinado, meramente instrumental, e sendo responsabilizados pelo êxito ou fracasso
dos alunos, sem considerar os condicionantes sócio-econômicos e culturais dos processos de
aprendizagem. Assim, o avanço de critérios de produtividade-qualidade da educação avaliada se
sobrepõe ao avanço social-político de vincular os direitos do trabalho ao trabalho.
Essa visão “escola-centrista” também é desumana, ao submeter milhões de estudantes -
crianças, adolescentes, jovens e adultos – com pertencimento a coletivos sociais, raciais, sexuais,
das classes trabalhadoras a esse padrão conservador de qualidade, de educação e de avaliação, o
qual redefine não apenas a qualidade da educação, mas também o sentido político-pedagógico-
ético do percurso escolar (Arroyo, 2017). Ele adquire novas conotações sociais e políticas,
quando utiliza-se da aprovação-reprovação para avaliar percursos-destinos individuais dos
sujeitos e termina por predefinir a qualidade social de seu viver, do seu sobreviver. Ele pré-define
seu lugar/não-lugar na sociedade, seu presente-futuro no emprego-desemprego estrutural, sua
renda social, seu destino na pobreza extrema, nos lugares marginais de moradia e na garantia dos
direitos humanos e na ordem econômica globalizada... enfim, reproduz a segregação coletiva
social, racial, de gênero do padrão globalizado de trabalho que as avaliações conservadoras
buscam legitimar.
O Movimento da Educação do Campo, com sua práxis, vem buscando esclarecer, formar
e mobilizar os coletivos, povos, organizações, universidades e redes de ensino a intervirem nesse
cenário excludente, segregacionista e conservador, pautando a demanda do Direito à Educação
dos Povos Tradicionais e Camponeses como crucial para o avanço da Reforma Agrária Popular,
articulando as lutas pelo direito à terra e à Educação com estratégia para o enfrentamento das
desigualdades históricas no atendimento aos direitos humanos e sociais dos povos tradicionais
e camponeses.
Importante compreender que o Movimento da Educação do Campo não luta pelo Direito
a qualquer Educação para os povos tradicionais e camponeses. As referências de Educação

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Rural com processos educativos precários, empobrecidos e distanciados das dinâmicas de vida
e de sustentabilidade de seus territórios e territorialidades, não atende aos interesses e não tem
serventia aos seus propósitos e projetos sociais. Tampouco interessa as referências de Educação
mercadocêntrica, colonialista (eurocêntrica), antoprocêntrica, urbanocêntrica, patriarcal,
racista e escola-centrista, assentadas no modelo seriado urano de ensino e capitaneada pelos
agentes do negócio, face ao desserviço que prestam à emancipação e sustentabilidade da vida
com dignidade a esses povos.
Neste sentido, consideramos maniqueístas e descabidas as propostas educacionais que
apresentam para a melhoria da qualidade da Educação nos territórios dos povos tradicionais
e camponeses, que assumem como referência o modelo seriado urbano de ensino, a exemplo da
seriação das escolas rurais (multi)seriadas, substituindo-as por turmas seriadas, o que em grande
medida vem ocorrendo com a implantação da política de nucleação vinculada ao transporte
escolar. Ao fim e ao cabo, essas proposições são responsáveis pelo fechamento das escolas nos
territórios dos povos tradicionais e camponeses, conforme explicitado anteriormente.
No caso das escolas rurais (multi)seriadas, pautadas nos estudos do GEPERUAZ desde a
sua criação em 2002, as aproximações que realizamos com a realidade educacional nos territórios
Amazônicos, o diálogo e convivência com movimentos sociais diversos de povos tradicionais e
camponeses, educadores, gestores e estudantes nos permitem considerar problemática a atitude
de seriar as escolas rurais (multi)seriadas, transformando-as em escolas seriadas, para a obtenção
da melhoria da qualidade do ensino.
De fato, a proposta de seriar as escolas rurais (multi)seriadas é considerada por nós
problemática e desnecessária, justamente porque com nossos estudos constatamos que as escolas
(multi)seriadas) já são seriadas, uma vez que a (multi)série não se opõe à série, não elimina a série,
ao contrário, ela junta as séries em situações adversas à existência da seriação para viabilizar sua
implantação e hegemonia, nas comunidades e territórios do campo, por exemplo, onde o número
de estudantes não é suficiente para realizar a enturmação em cada uma das séries, cumprindo os
critérios da relação custo/benefício quando adotados no atendimento educacional.
Com essa constatação e participação no Movimento da Educação do Campo, o
Geperuaz tem apresentado algumas pistas para fortalecer a construção da Escola Pública do
Campo, assumindo como eixo central a Transgressão do modelo seriado urbano de ensino como
possibilidade de alteração da matriz sócio-territorial-cultural-educacional que configura as
identidades das turmas e escolas rurais (multi)seriadas e que, em última instância, fortalece o
padrão de poder hegemônico e seus desdobramentos com relação à educação e escola do campo,
anteriormente explicitados.
Sendo mais explícito com relação à Transgressão aqui proposta, esclarecemos que as
mudanças em relação às turmas e escolas rurais multisseriadas, para se tornarem efetivas e
provocarem desdobramentos significativos na construção e fortalecimento da escola pública
do campo, devem convergir para o rompimento e superação do modelo seriado urbano de ensino
que, em sua versão precarizada, se materializa hegemonicamente nos territórios do campo por
meio das turmas e escolas (multi)seriadas.
Em um aspecto, a Transgressão exige a compreensão da maneira rígida como o modelo
seriado urbano de ensino opera com os seus condicionantes impostos aos Tempos/Espaços/
Conhecimentos escolares, que pautam-se por uma lógica “transmissiva” que organiza todos os
tempos e espaços dos professores e dos estudantes em torno dos “conteúdos” a serem transmitidos
e aprendidos, transformando os conteúdos no eixo vertebrador da organização dos níveis de
ensino, das séries, das disciplinas, do currículo, das avaliações, da recuperação, da aprovação ou
reprovação (Brasil, 1994).
Em outro aspecto, a Transgressão estimula os educadores e educadoras a desenvolverem
atividades educativas e metodológicas no cotidiano de suas escolas e salas de aula que contribuam
para “minar os Pilares da Seriação”, fazendo com que a efetivação dessas atividades possa
convergir para superar a fragmentação, a hierarquização e a padronização dos Tempos/Espaços/

21
Conhecimentos no interior das escolas, das salas de aula, determinadas e impostas pelo modelo
seriado urbano de ensino.
Na verdade, a Transgressão ao modelo seriado urbano de ensino é um processo, que se
materializa e avança quando as professoras e professores que atuam nas turmas e escolas do campo,
(multi)seriadas ou não, desenvolvem com os estudantes práticas educativas que reconhecem e
afirmam múltiplos e diferentes tempos/espaços/conhecimentos como formativos dos sujeitos
do campo, promovendo a interação e o diálogo entre eles, compreendendo a importância e
a especificidade de cada um, e de complementaridade destes como constitutiva da formação
social-cultural-identitária dos povos tradicionais e camponeses.
As práticas educativas efetivadas na perspectiva da Transgressão ao modelo seriado
urbano de ensino, quando efetivadas, colaboram também com a afirmação de valores outros que
circulam na escola e na sociedade, que estimulam relações de horizontalidade e de aproximação
entre os processos formativos escolares e sociais, assim como na relação campo-cidade, e
que problematizam a superioridade ou a inferioridade, a formalidade ou a informalidade, e
a regularidade ou a irregularidade entre eles confrontando, portanto, com a hierarquização,
invisibilização e apartação entre os processos educativos, que se consubstancia na perspectiva
escola-centrista, defendida pela seriação.
Em nosso entendimento, a Transgressão do modelo seriado urbano de ensino é um processo
permanente de construção da contra hegemonia nas salas de aula, nas escolas, nas políticas
educacionais, na formação dos educadores e educadoras, como também, nas comunidades
e territórios dos povos tradicionais e camponeses e da sociedade como um todo; processo
inconcluso e inacabado, conforme nos ensina Paulo Freire, que não se limita à obtenção de
um produto educacional em si, com a substituição da (multi)seriação pela seriação nas escolas
rurais, ou com a implantação dos ciclos de desenvolvimento ou de outras propostas alternativas
de organização do ensino nas escolas do campo.
A Transgressão que propomos é muito mais abrangente, implica em movimentar a escola
do campo para que, com sua práxis, fortaleça os povos tradicionais e camponeses como sujeitos de
direitos; possua o jeito próprio de ser, de viver e de se reproduzir socialmente desses povos; trabalhe
desde os interesses, a política, a cultura e a economia dos diversos povos do campo; valorize suas
histórias, memórias, saberes e suas formas próprias de organização, de vida e de trabalho.
De fato, a Transgressão ao modelo seriado urbano de ensino inclui a dimensão educativa
propriamente, mas transcende os limites de seu alcance, uma vez que implica com o seu avanço,
a alteração da matriz social, econômica, cultural, territorial e educacional hegemônica, assumida
pela (multi)série e, portanto, pelo modelo seriado urbano de ensino, defendido pelos agentes do
negócio como crucial para o avanço de seu projeto educativo e social.
Ela assume contornos mais amplos de Transgressão ao padrão de poder hegemônico
de base capitalista, eurocêntrico, antropocêntrico, urbanocêntrico, patriarcal, racista e escola-
centrista como um caminho para o enfrentamento dos desafios da Educação nos territórios
dos povos tradicionais e camponeses, para ultrapassar as fronteiras, os limites e condicionantes
impostos por esse poder hegemônico, que tanto mal, dor, opressão, exploração, expropriação,
segregação... vem causando aos povos/etnias/nacionalidades/grupos/classes sociais em situação
de subalternização, no campo e na cidade, no Brasil, na América Latina e no mundo inteiro.
Um passo importante para avançar com a transgressão a esse padrão de poder hegemônico,
seja na escola, na sala de aula, na educação ou na sociedade, consiste em tomar proveito de
um princípio fundamental, quando queremos ultrapassar as fronteiras e superar os limites e
condicionantes impostos sobre a Educação; e utilizá-lo sempre, em todas as ações, propostas,
reflexões e produções que realizamos, trata-se da Contradição que sempre se manifesta na
dinâmica desse padrão de poder.
Essa lição aprendemos nos diálogos e convivências com os povos tradicionais e camponeses
em suas lutas e mobilizações para demarcar e afirmar seus territórios e territorialidade nas
Amazônias, onde as implicações devastadoras e perversas, resultantes de um padrão de

22
ocupação territorial que domina e destrói a natureza e invisibiliza e segrega seus povos/etnias/
nacionalidades/grupos/classes sociais e suas territorialidades, avançam ao mesmo tempo em
que esses mesmos coletivos em condição de subalternidade se mobilizam e formam seus blocos
de poder para lutar pela Vida, pela Dignidade e pelo Território.
Com as resistências e r-existências dos povos tradicionais e camponeses das Amazônias
aos genocídios, etnicídios e culturicídios; com suas sabedorias ancestrais, seus senti-pensares,
epistemologias e cosmogonias pluriversas; temos aprendido e compreendido que a Transgressão
ao padrão de poder hegemônico e seus condicionantes e desdobramentos, seja na escola, na
educação, nas políticas educacionais ou e qualquer outro espaço social no qual a disputa pela
hegemonia ocorra, não se constitui num produto ou resultado simples e rápido de ser alcançado,
mas num processo contínuo, permanente e não determinado de acúmulo de forças e energias,
de mudança de valores e de convicções, de diálogos e tensões, de disputas e formação de alianças
para a construção da Contra Hegemonia, que exige paciência histórica, sabedoria, esperança,
amorosidade e muito tesão.

Transgressão é processo, contradição,

Entre precarização, protagonismo e regulação,

Na educação, nos territórios e na sociedade,

Transgressão é desobediência, insubordinação, rebeldia,

Transgressão é ruptura, interrupção, superação, transcendência,

Transgressão significa ultrapassar; ir além dos limites.

Transgressão ao modelo seriado urbano de ensino

Minar os pilares da seriação

Superar a fragmentação, padronização e hierarquização

Dos tempos, espaços, conhecimentos na escola

Afirmar a diversidade de espaços educativos

Consolidar a igualdade na diferença.

Transgressão implica valorização,

De saberes e experiências dos povos tradicionais e camponeses,

De suas atividades culturais, religiosas e de lazer,

Da agricultura familiar, pesca artesanal e extrativismo,

Da militância, marchas, ocupações e movimentos sociais,

Que transformam as comunidades do campo em territórios de direitos.

(Hage, 2022)

23
REFERÊNCIAS

ARROYO, Miguel G. O direito à formação humana como referente da avaliação. IN: SORDI,
Mara Regina Lemes de; VARANI, Adriana; MENDES, Geisa do Socorro Cavalcanti Vaz.
(Org.). Qualidade(s) da escola pública: reinventando a avaliação como resistência – Uberlândia:
Navegando Publicações, 2017.
BRASIL. Decreto n. 7.352, de 04 de dezembro de 2010. Dispõe sobre a política de educação do
campo e o Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária - PRONERA. Diário Oficial
da União, Brasília, DF, 05 nov. 2010. p.1.

______. CNE/CEB. Resolução º 4, de 13 de julho de 2010. Define Diretrizes Curriculares


Nacionais Gerais para a Educação Básica. Brasília, DF. 2010.

______. Secretaria de Educação Fundamental/MEC. Escola Plural: proposta político-


pedagógica. Brasília: SEF. 1994.

CALDART, Roseli Salete. Função social das escolas do campo e desafios educacionais do nosso
tempo. Texto preparado para Aula Inaugural do semestre do curso de Licenciatura em Educação
do Campo, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Campus Litoral, realizada em 9 de
março 2020. (Digitalizado)

Fórum Nacional de Educação do Campo – Fonec. Quem Somos? IN: https://fonec.org/o-


fonec/ . Acesso em 08/09/2022.

FPEC. V Seminário de Combate ao Fechamento de Escolas do Campo, Indígenas e Quilombolas


no Estado do Pará – Documento Base. UFPA - Castanhal - Abril – 2022. (digitado)

HAGE, Salomão Mufarrej; SILVA, Hellen do Socorro de Araújo; ARAÚJO, Maria de Nazaré
Cunha de & FONSECA, Joel Dias da. Programa Escola Da Terra: Cartografia da Diversidade
e Complexidade de sua execução no Brasil. Curitiba, Editora CRV, 2018.

HAGE, Salomão Mufarrej & REIS, Maria Izabel Alves. Tempo, espaço e conhecimento nas
escolas rurais (multi)seriadas e transgressão ao modelo seriado de ensino. Em Aberto, Brasília,
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MST. O que é o Programa de Reforma Agrária Popular do MST? Notícias Reportagens


Especiais. 16 de julho de 2021. IN: O que é o Programa de Reforma Agrária Popular do MST?
- MST. Acesso em 05/09/2022.

KOLLING, Edgar J.; NÉRY, Irmão & MOLINA, Mônica C. (Orgs.). Por uma Educação
Básica do Campo (Memória). Brasília, DF: Articulação Nacional Por Uma Educação Básica do
Campo, 1999 (Coleção Por Uma Educação Básica do Campo, n.º 1).

QUIJANO, Anibal. Dom Quixote e os moinhos de vento na América Latina. Dossiê Estudos
Avançados, 2005.

24
CAPÍTULO 2 - BASE NACIONAL COMUM CURRICULAR E A FORMAÇÃO
CONTINUADA DOS PROFESSORES DO CAMPO

Cláudia Batista da Silva3


Arlete Ramos dos Santos4

Resumo:

O artigo apresentado é parte da dissertação de mestrado do Programa de Pós-graduação


PPGED/UESB da linha de pesquisa Políticas Públicas Educacional; a pesquisa analisou as
políticas públicas para a formação continuada de professores do campo e sua efetividade, no que
diz respeito às contradições existentes entre as políticas instituídas pelo PAR conjugadas com as
prescrições da BNCC. As reflexões tiveram o suporte metodológico no materialismo histórico
dialético, e os resultados apontaram que a relação das acepções das formações continuadas
para os professores do campo que vão de encontro às prescrições da BNCC estão exatamente
relacionadas à submissão da lógica das avaliações em larga escala; o foco na prática pedagógica
sem unidade com a teoria; a invisibilidade das questões ligadas à identidade e diversidade de
gênero; a responsabilização do professor pela não aprendizagem do aluno e o recuo do apoio das
universidades públicas na formação dos professores da educação básica.

Palavras-chaves. Base Nacional Comum Curricular. Formação Continuada. Educação do


Campo.

Introdução

A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) foi aprovada no dia 22 de dezembro


de 2017, por meio da Resolução nº 2 do Conselho Nacional de Educação. A BNCC é um
documento de caráter normativo que define o conjunto orgânico e progressivo de aprendizagens
essenciais que todos os alunos precisam desenvolver ao longo das etapas e modalidades da
educação básica (BRASIL, 2019). Sua proposta começou a ser formulada ainda na gestão da
presidente Dilma, em 2015, com a participação de representantes das universidades públicas, do
Conselho Nacional dos Secretários de Educação (Consed), da União Nacional dos Dirigentes
Municipais de Educação (Undime), entre outras instituições, o que reforça a ideia da BNCC
discutida com representações muito próximas a realidade vivida pela educação básica.
Todavia, é preciso estar ciente que a BNCC foi aprovada em sua terceira versão, após o
golpe sofrido pela presidente Dilma, e essa terceira versão não foi debatida com os educadores,
a BNCC foi revisada por instituições internacionais baseadas no Common Core americano
(CAETANO, 2018). Sendo documento que propõe diretrizes para educação básica do campo e
da cidade, sua construção já aponta indícios de desalinhamento com os princípios da Educação
3 Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB), Bom Jesus da Lapa, Brasil. Mestre pela Universidade
Estadual do Sudoeste da Bahia(UESB). Pesquisadora pelo grupo de estudos e pesquisas em movimentos sociais e
educação do campo e da cidade GEPEMDECC. Coordenadora da secretária municipal de educação de Bom Jesus da
Lapa.
4 Pós-doutorado em Educação e Movimentos sociais (UNESP), Doutorado e Mestrado em Educação (FAE/
UFMG), Professora do Departamento de Ciências Humanas, Educação e Linguagem (DCHEL), Professora do
Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB) e do Programa
de Pós-graduação em Educação Mestrado Profissional em Educação Básica (PPGE) da Universidade Estadual de
Santa Cruz (UESC). Coordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisas Movimentos Sociais, Diversidade e Educação
do Campo e Cidade (GEPEMDECC/CNPq), Coordenadora da Rede Latino Americana de Educação do Campo
- Movimentos Sociais (REDE PECC-MS) e Coordenadora do Programa Formacampo. Orcid: https://orcid.
org/0000-0003-0217-3805

25
do Campo que apoia a educação construída na coletividade, no diálogo com seus pares, educação
dos povos do campo construída no campo.
Para sua implementação os estados e municípios passaram a elaborar novas diretrizes
políticas para orientar o processo de construção/reformulação dos currículos das escolas
públicas à luz dos princípios políticos e pedagógicos direcionados pela BNCC, as quais são
consideradas ideias neoliberais a serviço do capital. Causa de grande preocupação para com as
escolas do campo, que com visão acrítica será submetida a processos de revisão que desencadeiam
projetos de formação continuada de professores para materializar a implementação da BNCC
nas salas de aulas em todo território nacional. Sendo assim, fez necessário constituir diretrizes
para a formação continuada com vieses em justaposição com os propósitos da Base Nacional
Curricular e garantir sua implantação nas escolas brasileiras. Uma base nacional para a formação
continuada dos professores da educação básica.
É pertinente observar que a BNC-formação continuada foi construída com referência na
Resolução CNE/CP nº 2/2017, que instituiu a BNCC, e na Resolução CNE/CP nº 2/2019
que dispõe sobre a Base Nacional Comum para Formação Inicial de Professores da Educação
Básica. Esses documentos são denunciados pelas Universidades, pesquisadores e instituições a
exemplo da ANFOPE, ANPED, FORUMDIR, ANPAE, que foram aprovados sem o debate
com os professores da educação básica e Universidades, foram elaborados por um grupo de
consultores vinculados a empresas e assessorias educacionais privadas. (GONÇALVES, MOTA,
ANADON, 2020).
Partindo do princípio de que são os professores que estão na sala de aula das escolas
brasileiras, estes são os principais interessados na construção de políticas educacionais que vão
direcionar seu trabalho docente, estes são os principais sujeitos a serem ouvidos. Em contradição,
estes foram convocados apenas para executar a política, dessa forma, Caetano (2018, p. 247)
enfatiza que

isso leva o professor, muitas vezes, a dedicar-se exclusivamente à sua função,


não se envolvendo com o funcionamento geral da educação, o que implica
em saber fazer algo específico sem que tenha uma visão de conjunto e que
se reflete na escola, com a perda da visão geral da educação, bem como suas
implicações com o contexto social mais amplo.

Essa forma de conduzir a construção das políticas que conduzem a formação continuada
do professor faz parte de um projeto de sociedade que visa conservar o sistema capitalista
em prol de seu bem-estar. De forma velada, a prática é posta nos documentos oficiais como
suficiente para o desenvolvimento do trabalho docente. Notamos então, que a formação do
professor precisa ser sustentada no conhecimento para além da educação imposta pela sociedade
capitalista, educação sob viés ideológico dominante, conforme se verifica nos pressupostos da
Base Nacional Comum Curricular. Contudo, isso só será possível se este for um projeto de
sociedade, assim sendo, Mészáros (2008, p. 47) adverte: para isso é preciso “romper com a lógica
do capital”, caso contrário a educação será desenvolvida em meio a reformas paliativas.
No caso da Educação do Campo, pode-se notar que esta vem sendo construída com os
esforços dos movimentos sociais, com a concepção de que o campo não é apenas um espaço de
trabalho para produção de mercadorias, o campo é um espaço de cultura e de formação social,
sua diversidade precisa sair do silêncio imposto pela sociedade capitalista, que para acumular
capital não mede esforços em anular os sujeitos das classes subalternas, neste caso, o trabalhador
do campo. Esse é um dos motivos da Educação do Campo ser resistência, luta e persistência.
Diante deste contexto, os educadores precisam compreender quais as contradições na
implementação dos princípios ideológicos e políticos da BNCC com seu modelo educacional
autoritário; o que está sendo colocado em jogo? a permanência de um projeto de educação
comprometido com a transformação social, construído a partir das lutas dos povos do campo

26
com o apoio dos movimentos sociais e universidades com o objetivo de contrapor a propostas
que manipulam as vidas dos povos do campo?
Em meio a essas discussões, este artigo foi construído com o intuito de compartilhar
as análises e reflexões desenvolvidas pelos educadores do campo das cidades de Bom Jesus da
Lapa, Serra do Ramalho, Paratinga e Sitio do Mato acerca do foco na Base Nacional Comum
Curricular para a formação continuada dos professores do campo, sendo a formação continuada
o ponto forte para sua implementação nas escolas campesinas.

Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação Continuada de Professores da


Educação Básica e Base Nacional Comum-BNC Formação Continuada

As Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação Continuada de Professores da


Educação Básica, instituídas pela Resolução CNE/CP nº 1, de 27 de outubro de 2020 e com
fundamento no parecer do CNE/CP nº 14/2020, homologado pela portaria do MEC nº 882,
de 23 de outubro de 2020, direcionam a formação continuada dos professores da educação
básica em seus aspectos pedagógicos e políticos.
Para melhor entendermos seus apontamentos é preciso analisar seu processo e contexto
de elaboração chamando atenção para as contradições que ficam evidentes. A pandemia da
Covid-19, originada do Coronavírus, tem trazido ao mundo novas experiências relacionadas aos
mais diversos setores da vida humana, entre essas experiências temos o isolamento social, fruto
da necessidade de conter o avanço do contágio. E neste contexto de distanciamento social das
pessoas com possibilidades bastante reduzidas para o debate que foi instituída e aprovada pelo
CNE, a Resolução 1/2020 que estabelece a BNC – formação continuada. Dessa forma, analisar
o conteúdo da Resolução CNE/CP nº 1 de 27 de outubro de 2020 envolve a expressão da
realidade contraditória em que se insere a observação nas relações sociais, como estas articulam
e materializam o discurso pedagógico.
Nas DCNs (2020), por meio de seu art. 8º, a formação continuada para educação do
campo é de responsabilidade das regulações do Conselho Nacional de Educação, como vemos:

Art. 8º A Formação Continuada para docentes que atuam em modalidades


específicas, como Educação Especial, do Campo, Indígena, Quilombola,
Profissional, e Educação de Jovens e Adultos (EJA), por constituírem
campos de atuação que exigem saberes e práticas contextualizadas, deve
ser organizada atendendo as respectivas normas regulamentadoras
do Conselho Nacional de Educação (CNE), além do prescrito nesta
Resolução (BRASIL, 2020, p. 5).

As Diretrizes Curriculares Nacionais para Formação Continuada de Professores da


Educação Básica, instituídas pela Resolução CNE/CP nº 1/2020 ao indicar que a formação
continuada dos professores do campo seguirão as normas e regulações do CNE, colocam a
formação continuada dos professores do campo com fundamento nas proposições das Diretrizes
Operacionais para a Educação Básica nas Escolas do Campo instituídas em 2002, que reconhece a
diversidade sociocultural e o direito à igualdade e à diferença. No Entanto, a BNCC, documento
de referência para a BNC-formação continuada que deve ser implementada em todas as ações
e modalidades de cursos e programas destinados a formação continuada da educação básica,
não tem dado ênfase a discussão de diversidade, conforme aponta Santos; Nunes (2020, p.57),
diversidade

como bandeira de luta de diversos movimentos sociais, que buscam a


defesa do binômio que conjuga igualdade e diferença, normatizada nas
legislações que viabilizam a igualdade de direitos e oportunidades, mas

27
que no contexto econômico e social que vivenciamos vem sendo negados
para muitos sujeitos.

A educação do campo tem Diretrizes específicas que demarcam este debate com
possibilidade de ressignificar a formação continuada dos professores do campo com a práxis,
e assim resistir sobre o que vem prescrito na Resolução CNE/CP 01/2020, a insistência dos
neoliberais na tese de controle, do que se ensina e como se ensina, nas escolas públicas negando a
característica específica que convém a educação do campo, assim, “[...] as críticas sobre a discussão
da diversidade na BNCC devem-se ao fato, principalmente de a sua omissão ter sido entendida
como uma perda de direitos, uma vez que as modalidades de ensino não são enfatizadas na base”
(SANTOS; NUNES, 2020, p.55)
As críticas que envolvem as implicações da BNCC materializadas nas BNC - formação
continuada perpassa pelas Universidades, pelo Fórum Nacional de Educação do Campo
(FONEC) e também, já esteve no âmbito do Conselho Nacional de Educação, que vem debatendo
sobre a formação continuada de professores para educação básica desde sua constituição em
1995.
Cientes do poder emancipatório dos indivíduos por meio da educação, a formação
continuada dos professores do campo tem posição importante nesse processo, o autor insiste “que
o papel da educação é de importância vital para romper com a internalização predominante nas
escolhas políticas circunscritas à legitimação constitucional democrática do Estado Capitalista
que defende seus próprios interesses” (MÉSZÁROS, 2005, p.44)
Neste sentido, analisando o contexto histórico de produção da BNCC e da BNC –
formação continuada/ 2020, logo após o golpe de 2016 com o impeachment da presidenta
Dilma, esta segue uma série de retrocessos no campo dos direitos sociais. Numa correlação de
forças entre o Estado e a sociedade civil, podemos citar a extinção da Secretaria de Educação
Continuada, Alfabetização e Diversidade (SECADI) por meio do Decreto nº 9.465 em 2 de
janeiro de 2019, a qual podemos considerar uma das estratégias de ataques à educação com
propósitos de inclusão, refletindo direto na educação ofertada ao campo brasileiro.
Outrossim, a homologação da Base Nacional Comum Curricular corresponde a outra
estratégia de desmonte da educação, pois a BNCC, com seu enquadramento de conteúdos
totalmente voltados para avaliações externas, nega principalmente às escolas do campo trabalhar
com afinco as suas especificidades na parte diversificada. A contradição é vista ao indicar que
o professor deve “analisar, sistematicamente, os dados das avaliações internas e externas para
replanejar as ações didático-pedagógicas e aprimorar suas práticas” (BNC – FORMAÇÃO
CONTINUADA, 2020, p.11), o que induz a escola e professores, fortalecidos pela formação
continuada orientada por documentos oficiais, a focar seu trabalho nos conteúdos que atendem
a avaliação em larga escala. Como salienta Freitas (2014),

a reforma empresarial costuma argumentar que a ‘base’ pode ser modificada nos estados,
incluindo outros conteúdos, no entanto, isso é enganoso. Primeiro, porque não há
educação de tempo integral cuja escala permita aos estados irem além do básico em
escala significativa de escolas, segundo, porque há um sistema de avaliação nacional que é
construído sobre o que está definido como ‘básico’, e dessa forma o que for acrescentado
pelos estados não é incluído nas avaliações nacionais. (FREITAS, 2014, p. 84)

Como forma de resistência às políticas negacionistas e acentuando a não conformação


com o modelo de educação que retira a autonomia pedagógica, política e ética dos professores
do campo, tomamos como exemplo as proposições críticas dos autores Nunes e Santos (2020)
o que diz respeito às políticas públicas.

28
Quadro 8— Resistência às políticas negacionistas

NEGAÇÃO APROPRIAÇÃO IMPLEMENTAÇÃO

momento no qual está compreender depois de nos apropriarmos


contido todo esse processo e analisar dos objetivos e conteúdos
de análise histórica e crítica detalhadamente subjacentes às propostas,
para compreender o real – as políticas seremos capazes de
como síntese de múltiplas propostas, de absolvê-las de maneira
determinações – sobre o modo que ao serem concreta e aprofundada,
que está sendo proposto, implementadas, compreendendo as
superando, assim, a visão possamos ser múltiplas determinações
ingênua da realidade, e, capazes de refletir que as originaram.
por isso mesmo, sendo e ressignificá-las in Assim, será possível
possível negar as formas loco, de acordo com pensar de forma crítica, e
ingênuas e conservadoras os interesses da classe implementá-las tendo como
que fundamentam a trabalhadora. parâmetro a práxis, ou seja,
legitimação e consolidação ação-reflexão-ação, a partir
do sistema capitalista dos interesses de classes
subjacente nessas defendidas criticamente.
propostas, por meio dos
enfrentamentos necessários
e das disputas políticas e
ideológicas de classe.
Fonte: SANTOS; NUNES (2020)

Os três momentos são imprescindíveis para análise das políticas públicas e de extrema
importância para descortinar a realidade aparente dos fenômenos em suas múltiplas
determinações. Não negar as formas aparentemente ingênuas e conservadoras é colocar
a educação em sua totalidade dentro de uma realidade linear e mecânica. Como prescreve a
BNCC e a BNC-formação continuada sem considerar seu movimento histórico dentro da
realidade objetiva. Neste sentido “a categoria totalidade justifica-se enquanto o homem não
busca apenas uma compreensão particular do real, mas pretende uma visão que seja capaz de
conectar dialeticamente um processo particular com outros processos e, enfim, coordená-lo
com uma síntese explicativa cada vez mais ampla” (CURY, 1985, p.27).

Políticas de Formação Continuada na Resolução CNE/CP nº1/2020 e as Prescrições


da BNCC

A Resolução CNE/CP nº 1 de 27 outubro de 2020 está organizada em cinco capítulos,


dos quais tratam dos seguintes aspectos: Do objeto; Da política de formação continuada de
professores; dos cursos e programas para formação continuada de professores; Da formação ao
longo da vida e das Disposições finais. Esta dispõe sobre as Diretrizes Curriculares Nacionais
para a Formação Continuada de Professores, que atuam nas diferentes etapas e modalidades da
Educação Básica, e institui a Base Nacional Comum para a Formação Continuada de Professores
da Educação Básica (BNC-Formação Continuada) (BRASIL, 2020).
A partir dessas deliberações, as políticas públicas educacionais são construídas com vistas a
efetivar as orientações explícitas e/ou implícitas nesse documento, as quais serão implementadas
em todas as modalidades dos cursos e programas designados à formação continuada de professores
da Educação Básica alimentados pela plataforma de planejamento do PAR. A proposta da Base
Nacional Comum (BNC- Formação Continuada 2020) tem como objetivo adequar a formação

29
continuada de professores a BNCC, como apresenta a LDBEN 9394 em seu § 8º “Os currículos
dos cursos de formação de docentes terão por referência a Base Nacional Comum Curricular”
(LDBEM, 1996).
A Resolução CNE/CP nº 2/2017, que institui e orienta a implantação da Base Nacional
Comum Curricular a ser respeitada obrigatoriamente ao longo das etapas e respectiva modalidade
no âmbito da Educação Básica, em seu escopo apresenta “Art. 2º As aprendizagens essenciais são
definidas como conhecimentos, habilidades, atitudes, valores e a capacidade de os mobilizar,
articular e integrar, expressando-se em competências” (BRASIL 2017, p. 4).
É mister pontuar que a BNCC propõe as aprendizagens essenciais no sentido de garantir
o desenvolvimento das 10 competências gerais consolidadas nos direitos de aprendizagem.
Nesse referencial curricular, competência é conceituada como a “mobilização de conhecimentos
(conceitos e procedimentos), habilidades (práticas, cognitivas e socioemocionais), atitudes e
valores para resolver demandas complexas da vida cotidiana, do pleno exercício da cidadania e
do mundo do trabalho” (BRASIL, 2017, p. 10).
Logo, esse modelo de educação por competência não é novo, Sacristán citado por
ALBINO E SILVA (211, p7) entende que é muito fácil disseminar por meio de “linguagens
e metáforas que nos levam a denominar de forma aparentemente nova aquilo que, até então,
reconhecíamos de outra forma”, a educação por competência. Neste sentido, complementa
Marsiglia (2010, p.19) que o “saber fazer passa a sobrepor a qualquer outra forma de saber,
apresentando-se travestido, também, sob a forma de competência”. Como apresenta Derisso
(2010, p.60),

a força da pedagogia das competências advém do fato de que o Estado


brasileiro assumiu essa orientação pedagógica e a oficializou com a Lei de
Diretrizes Bases da Educação Nacional em 1996, e os estados e municípios
vieram em sua esteira.

Como dito, o referencial pedagógico apontado pela BNCC demarca para o estudante
o ensino por competência, nessa mesma direção está a formação continuada dos professores,
como podemos ver no relatório da 3ª versão do parecer do Conselho Nacional de Educação, que
trata das Diretrizes Curriculares Nacionais e Base Nacional Comum para Formação Inicial e
Continuada de Professores da Educação Básica, para tornar efetivas as aprendizagens essenciais
que estão previstas nos currículos da Educação Básica, os professores terão que desenvolver um
conjunto de competências profissionais que os qualifiquem para uma docência sintonizada com
as demandas educacionais de uma sociedade cada vez mais complexa (BRASIL, 2019).
Em seus fundamentos pedagógicos, a BNC deixa claro que a Base Nacional Comum
Curricular “indica que as decisões pedagógicas devem ser orientadas para o desenvolvimento
de competências” (BNCC, 2017, p. 11). Podemos observar que a unidade entre estes dois
documentos já está assegurada, visto que um dos pontos comuns é a perspectiva da ação por
competências, revelando assim o alinhamento da BNC para formação continuada de professores
e BNCC.
Esses documentos indicados para orientar as políticas públicas para a formação docente,
“depreende, que o trabalho do futuro professor será basicamente o de traduzir e ter os atributos
necessários para colocar em prática o que já está definido na BNCC”, (GONÇALVES, MOTA,
ANADON, 2020).
No Brasil os parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) foram os responsáveis pela
introdução de conceitos como gestão, flexibilidade, competências, habilidades, valores,
atitudes, projetos, metas e indicadores (LIMA, SENA, 2019, p.12). Analisando os conceitos
apresentados na BNCC e BNC é nítido que estes foram referências na constituição de tais
documentos regulatórios.
No processo de análise, a Resolução CNE/CP 1/2020 em seu artigo 3º apresenta “as

30
competências profissionais indicadas na BNC – Formação Continuada, levando em conta o que
é exigido do professor sólido conhecimento dos saberes constituídos em torno das estratégias
de ensino aprendizagem em três dimensões que são fundamentais e se complementam na ação
docente no âmbito da Educação Básica:” I -conhecimento profissional; II -prática profissional; e
III -engajamento profissional. (Artigo 2º, inciso I, II e II). Ao analisar as competências da BNC-
Formação, em suas três dimensões estas são centradas no saber fazer como mostra o quadro nº
13

Quadro 9 — Dimensões do conhecimento, da prática e do Engajamento Profissional da


BNC-Formação Continuada

CONHECIMENTO PRÁTICA PROFISSIONAL ENGAJAMENTO

PROFISSIONAL
PROFISSIONAL

PRÁTICA PRÁTICA

PROFISSIONAL- PROFISSIONAL -

PEDAGÓGICA INSTITUCIONAL
Aquisição de Prática Prática profissional Comprometimento
conhecimentos profissional referente à cultura com a profissão
específicos de sua referente aos organizacional docente assumindo
área, do ambiente aspectos didáticos das instituições o pleno exercício de
institucional e e pedagógicos de ensino e suas atribuições e
sociocultural e de do contexto responsabilidades
autoconhecimento sociocultural em
que está inserido
Fonte: Resolução CNE/CP 1/2020.

Analisando as dimensões do quadro 9, é possível observar que há um vasto controle do


trabalho docente. A BNC-formação continuada em suas dimensões retira toda importância
da teoria, transformando o professor em tarefeiro. Essa condição é nítida na BNC- formação
continuada (2020, p. 11) ao explicitar que o professor necessita “conhecer pesquisas e estudos
sobre como obter sucesso e eficácia escolar para todos os alunos” deixa claro o papel da pesquisa
a serviço de encontrar práticas exitosas. Com isso, a autora Kuenzer (1998) enfatiza que esse
professor necessita apenas cumprir tarefas e procedimentos preestabelecidos, correspondentes a
uma educação de pouca qualidade. E assim, retira- se a dimensão crítica intelectual do trabalho
do professor.
O Ministério da Educação detalha cada Dimensão, a qual denomina de eixo, no que diz
respeito ao:

conhecimento, o professor deverá dominar os conteúdos e saber como


ensiná-los, demonstrar conhecimento sobre os alunos e seus processos
de aprendizagem, reconhecer os diferentes contextos e conhecer a
governança e a estrutura dos sistemas educacionais. Prática, o professor
deve planejar as ações de ensino que resultem na aprendizagem efetiva,
saber criar e gerir ambientes de aprendizagem, ter plenas condições de
avaliar a aprendizagem e o ensino, e conduzir as práticas pedagógicas
dos objetos do conhecimento, competências e habilidades previstas no
currículo. Engajamento, é necessário que o professor se comprometa
com seu próprio desenvolvimento profissional, com a aprendizagem
dos estudantes e com o princípio de que todos são capazes de aprender.

31
Também deve participar da elaboração do projeto pedagógico da escola e
da construção de valores democráticos. Além de ser engajado com colegas,
famílias e toda a comunidade escolar. (MEC, 2020)

Concordamos que o professor deve se comprometer com seu desenvolvimento


profissional, todavia, é preciso atentar-se que este não pode se responsabilizar sozinho por tal
desenvolvimento como propõe a BNC- formação continuada. O professor

deve assumir a responsabilidade de seu autodesenvolvimento e


aprimoramento da sua prática, partindo de atividades formativas e/ou
desenvolvendo outras atividades consideradas relevantes em diferentes
modalidades, presenciais e/ou com uso de recursos digitais (BRASIL,
2020, p. 12)

Nesta perspectiva, Freitas completa que no quadro da responsabilização individual


pelo aprimoramento da formação, esta deixa de fazer parte de uma política de valorização do
magistério para ser entendida como um direito do Estado e um dever dos professores (FREITAS,
1999).
As três dimensões citadas na BNC- formação continuada incidem das prescrições da
BNCC quando deixa claro que neste novo cenário mundial,

reconhecer-se em contexto histórico e cultural, comunicar-se, ser


criativo, analítico-crítico, participativo, aberto ao novo, colaborativo,
resiliente, produtivo e responsável requer muito mais do que o acúmulo
de informações. Requer o desenvolvimento de competência para aprender
a aprender [...] (BRASIL, BNCC, p. 12)

A BNCC representa o esvaziamento da função social da escola e privilegia a pedagogia do


aprender a aprender. Portanto, a defesa por uma escola pública no campo, que trabalhe educação
do campo, perpassa pela reconstituição da função social da escola. Este modelo de função social
imposto pela sociedade do capital às escolas públicas é voltado para transformação da educação
em mercado e acumulação flexível.
Neste sentido, Caldart (2020, p.5) adverte que esta sociedade impõem: “um modelo de
trabalho pedagógico que aparta a educação das necessidades humanas básicas de convivência,
de liberdade de expressão e criação”. E para vencer essa lógica de formar pessoas sensíveis pouco
dispostas a transformar a sociedade em que vive, é que é preciso colocar em evidência a função
social da escola do campo vinculada a reflexão sobre a função social da terra.

Percepções dos professores em relação às prescrições da BNCC: consensos e dissensos

Buscamos aqui investigar a percepção dos professores sobre a BNCC e seu posicionamento
quanto as suas prescrições para o trabalho pedagógico desenvolvido nas escolas do campo,
fundamentado por meio das formações continuadas. Em 2018, o Programa de Apoio à
Implementação da Base Nacional Comum Curricular — ProBNCC dá início ao processo de
implantação da BNCC em colaboração entre os entes federados. Essa ação envolveu diretamente
as secretarias de educação do estado, dos municípios e a União Nacional dos Dirigentes
Municipais de Educação (Undime). Com o modelo de formação multiplicadora, em comum
acordo com a secretaria de educação estadual, promoveu estudos com técnicos das secretarias
municipais e estes repassaram para os professores.
Ao responderem à pergunta sobre a participação em formação continuada fundamentada
na BNCC, 14 professores apontaram que participaram e 2 não tiveram acesso aos estudos

32
com foco na Base Nacional Comum Curricular ofertado pelas secretarias municipais de
educação. Com esta afirmativa, entendemos que mesmo com a escassez de iniciativas no PAR
para financiamento de formação continuada para os municípios, após o golpe em 2016, eles
envolveram seus professores em estudos e debates sobre a BNCC e sua aplicabilidade na sala de
aula.
Ao responderem perguntas sobre a formação continuada e como as proposições da
BNCC contribuem para o desenvolvimento crítico da sua prática pedagógica, ou mesmo ao
tecerem opinião sobre a BNCC, relatarem se há possibilidade de transformação da realidade,
ou avaliarem as prescrições da Base para prática pedagógica na escola do campo, notamos que
quase a totalidade das respostas selecionadas têm acepções positivas sobre a BNCC. Porém, com
um adendo, três professores com posições contrárias ao que propõe a Base Nacional Comum
Curricular.

33
Quadro 01 — Acepções sobre a formação continuada de professores do campo com
fundamento na BNCC

Professores Formação Proposição da BNCC Opinião sobre a BNCC BNCC e Avaliação


continuada para o desenvolvimento transformação da das
fundamentada crítico da prática realidade proposições
na BNCC da BNCC
para sua
prática
pedagógica
na escola do
campo
Ponto SR1 Importante SR 1 A formação SR1 É um trabalho SR1 As Muito
de vista para aprimorar com base na BNCC voltado para estabelecer competências importante
favorável a prática capacita o professor para diretrizes para o ensino, e habilidades
pedagógica nortear a ensino, com levando em consideração caminham para
base em competências as particularidades de cada a formação de
P1 É de grande e habilidades para a região, que procura unificar um ser humano
relevância as sociedade como um todo. os conteúdos de forma que ativo, crítico e
proposições da em cada ano de ensino os consciente da
BNCC para conteúdos caminhem juntos realidade em que
desenvolvimento P1 As compatibilidades em diversas localidades do está inserido.
da nossa prática desenvolvidas nessas país.
pedagógica. questões da BNCC
têm um papel muito P1 Sabemos que a BNCC
P2 Confesso que importante dentro da trabalha a competência P1 Sabemos
no início achei nossa prática pedagógica, como mobilização do que a BNCC
complicado e pois trabalhamos conhecimento e dentro se volta para o Muito
confuso, mas as habilidades e dessas questões, temos desenvolvimento importante
com o passar do competências dos que levar em questão as das habilidades
tempo muitas nossos alunos buscando habilidades dos nossos e competências
dúvidas estão sempre um trabalho alunos. dos nossos
sendo sanadas. que atende as questões alunos, com
multidisciplinares. isso, podemos
É importante ressaltar P2 A proposta é muito entender e
que essas ações são boa pois visa diminuir desenvolver a
aplicadas a partir do as desigualdades de aprendizagem
desenvolvimento de um aprendizagem existentes dos nossos
conjunto de habilidades. no Brasil, onde apresenta alunos com mais
habilidades e competências eficiência dentro
P2 Por se tratar de a serem desenvolvidas da sala de aula.
algo novo, é claro que e alcançadas, visando
temos muitas lacunas, garantir direitos iguais de Muito
perguntas, e por mais aprendizagem para todos P2 a BNCC importante
que lemos existem os alunos, tanto de escolas vem dar ao aluno
muitos trechos que não públicas quanto privadas, não só a questão
entendemos. Ainda mas há muito a ser discutido, de direito, mas
temos muito a conhecer pois existem muitas de equidade ao
sobre a BNCC. Essas dúvidas, muitas perguntas conhecimento.
informações nos dão que não achamos repostas,
suporte de como planejar, principalmente as escolas
como compreender e situadas na zona rural, que
executar nossos planos tem uma realidade diferente
seguindo a BNCC. da cidade.

34
Ponto BJL1 BJL1 Suas propostas BJL1 É excludente pois BJL1 Vejo a Indiferente
de vista Impositiva com não favorecem o ignora a modalidade de BNCC como
contrário e pouco espaço trabalho a partir das Educação do Campo e a impositora,
meio termo para reflexão e especificidades de EJA. pois define as
criação. cada escola, impõem a competências
homogeneidade. que julgam
necessárias,
obriga as escolas
a referenciarem.

BJL 2 BJL 2 BJL 2 Possibilita o BJL 2 Pouco


Não respondeu professor planejar De forma importante
Focada na prática e na suas aulas a serem parcial pois
participação dos alunos trabalhadas com os alunos precisamos
no desenvolvimento parcialmente. Sem atenção de outros
dos estudos, pesquisas ao multisseriado. elementos Muito
de campo e trabalho para ajudar no importante
coletivo. planejamento
dos planos de
aulas.

BJL 3 Focada BJL 3 aperfeiçoando o BJL 3 Sem muito BJL 3 Sem


na prática. professor para a redoma envolvimento com a perspectiva de Pouco
e educação da sala de aula, não educação do campo. transformação, importante
bancária. há como ser crítico e me sinto
nem formar estudantes desanimada
críticos. com tanta
cobrança.

Fonte: Pesquisa de campo - questionários respondidos por professores 2020/2021.

A tabulação dos resultados obtidos por meio dos questionários possibilitou observar a
forte presença da epistemologia da prática como fator condicionante na formação continuada,
com fundamento na BNCC. Com a epistemologia da prática, a forma de orientação da
formação continuada é no saber prático elaborado pelo professor que organiza seu trabalho
com a construção da teoria sobre a prática docente por meio da ação-reflexão-ação, defendida
por Schôn (2000) e Tardif (2002) com a teoria do professor reflexivo. Orientação confirmada
na BNC – formação continuada 1/2020, na segunda competência geral determina que é
necessário: “2-Pesquisar, investigar, refletir, realizar análise crítica, usar a criatividade e buscar
soluções tecnológicas para selecionar, organizar e planejar práticas pedagógicas desafiadoras,
coerentes e significativas” (BNC-FC, 2020, p. 8).
No Quadro 01, anteriormente apresentado, é possível perceber a ênfase dada à prática
pedagógica por 70% dos professores colaboradores da pesquisa. Essa lógica que a prática
solitária pode resolver todos os problemas vivenciados por estudantes e professores do campo é
um pensamento ingênuo, o qual se contrapõe à visão de formação no movimento da dialética. É
notório que “a prática, ou seja, a atividade intencional humana é, com certeza muito importante,
pois é ela quem determina a consciência, porém a transformação da realidade advém de um
momento dialético que envolve teoria e prática” (SILVA; CURADO, 2018, p. 60). Em seus
estudos, Cheptulin (1982, p. 104) sinaliza que

a consciência é, por natureza, ideal, ela é o reflexo, a fotografia, a cópia da


realidade existente e a representação, repousando sobre esse reflexo (sob a
forma de um sistema de imagens ideais e de relações), da realidade futura,
que atualmente ainda não existe.

35
A consciência do professor do campo será formada de acordo com suas atitudes e ações na
sua classe social, ou seja, com a sua prática na relação entre o trabalho e a comunidade. Seus atos
condicionam resultados que serão sempre confrontados pela consciência. Sendo assim, a prática
sem unidade com a teoria não constitui transformação de acordo com as necessidades dos homens
do campo, devido ao seu foco no saber fazer, que o impede de analisar esse direcionamento
da técnica pedagógica e os vínculos com a sociedade capitalista, o que reflete as contradições
reificadas na boa intenção da oferta de educação de qualidade para todos. A prática pedagógica,
por si só, assume o papel de racionalizar ações e, por meio da responsabilidade voltada para
instrumentação, qualificar a eficiência do ensino, tornando-o limitado e sem construção crítica
da realidade concreta vivida pelos povos do campo.
Neste sentido, Silva e Curado (2018, p. 26) salientam que essa proposta “apresenta uma
epistemologia baseada em uma subjetividade que anula a realidade objetiva e sua tensão dialética
com a realidade”. A ênfase dada à subjetividade docente fortalece a responsabilização pela não
aprendizagem do estudante ou pelo sucesso. Situação clara na Resolução CNE/CP 1/2020,
no inciso IV do artigo 5º, como princípio norteador da formação continuada, o qual prevê
o “IV – Reconhecimento e valorização dos docentes como os responsáveis prioritários pelo
desenvolvimento cognitivo, acadêmico e social dos alunos a partir de uma formação sólida que
leve em conta o conhecimento profissional; a prática profissional; e o engajamento profissional”
(BNC- FC, 2020, p.3).
Esse pragmatismo transforma a formação continuada de professores do campo em
laboratório de formatação humana, ou seja, forma professores com visão pragmatista com
foco em aprender a ensinar e aprender a aprender, aprender a ser flexível e adaptar-se, como
consequência, estudantes com os mesmos moldes conforme preconiza os pilares da educação da
Unesco. Por este viés, os professores colaboradores da pesquisa avaliam perfeitamente a formação
continuada fundamentada na BNCC, pois em suas falas deixam claro que suas prescrições são
importantes para “[...] aprimorar a prática; [...] nortear o ensino com base em competências e
habilidades; [...] para o desenvolvimento da prática; [...] eficiência dentro da sala de aula; [...]
unificar conteúdos; [...] planejar, compreender e executar planos segundo a BNCC” (SR1, P1,
P2, 2021). Ficam explicitadas, além das citadas pela pesquisa documental para esta dissertação,
quais são as prescrições da BNCC para formação continuada de professores do campo.
Não foi possível encontrar nas exposições dos professores apontamentos para o
desenvolvimento do trabalho intelectual docente nas formações fundamentadas pela BNCC,
bem como a criticidade sobre a real situação vivida por estudantes, docentes e comunidade.
Isso porque essa criticidade precisa estar ancorada na construção histórica dos conhecimentos
científicos construídos ao longo dos anos, fundamentados em pesquisas acadêmicas e nas lutas
e resistências dos movimentos sociais contra projetos de sociedade excludente e opressor.
É evidente o alinhamento dos professores com a BNCC, a qual em seu documento
introdutório trata de valores e estímulo a ações que contribuem para a transformação da
sociedade e orienta que os sistemas, as redes de ensino e as instituições escolares devem planejar
com um claro foco na equidade e no reconhecimento de que as necessidades dos estudantes
são diferentes (BRASIL, BNCC, 2017, p 8-15). É pertinente observar que as prescrições
para transformação social e equidade, mediante práticas pedagógicas inclusivas, têm foco em
habilidades e competências para o pleno exercício da cidadania e do mundo do trabalho.
Não temos dúvida que a educação tem a incumbência de preparar seus estudantes para,
com competência crítica, inserirem-se no âmbito do trabalho. Ao pensar na educação da classe
trabalhadora a contradição é a preparação centrada no tecnicismo, na meritocracia, no estímulo
à competição, na resiliência, na fragmentação científica que reduz a educação à formação de
competência, dado o “empobrecimento que incide sobre os fins educacionais, convertidos em
meios para uma, cada vez maior, adaptação passiva dos indivíduos às exigências do capital”
(MARTINS, 2020, p. 47). Neste sentido, seria uma alternativa viável a implementação da
BNCC para educação do campo? aos estudantes do campo, qual seria a adaptação necessária

36
ao enfrentamento de situações adversas? aceitar a oferta de educação desvinculada de sua
realidade cultural, geográfica e econômica? estabelecer como coerente o descontrole do uso de
agrotóxicos de modo a agredir e condenar a natureza? receber educação bancária sem interrogar
o latifúndio?
Todavia, 30% dos professores do campo que responderam ao questionário não acreditam
na possibilidade de transformação social com foco apenas na BNCC. Seus relatos demarcam a
desmotivação, o cansaço com as cobranças por resultados do IDEB, por desenvolver o trabalho
na sala de aula sempre focado nas dez competências gerais da Base Nacional Comum Curricular.
É fato que está cada vez mais difícil resistir, pois a obrigatoriedade de adesão aos
indicativos da BNCC ganha reforço com a Lei 14.113/2020 do Novo FUNDEB, que estabelece
condicionantes para que estados e municípios recebam complementação financeira do valor
anual por aluno (VAAR),

[...] II - participação de pelo menos 80% dos estudantes de cada ano escolar
periodicamente avaliado em cada rede de ensino por meio dos exames
nacionais do sistema nacional de avaliação da Educação Básica; ... V -
referenciais curriculares alinhados à Base Nacional Comum Curricular,
aprovados nos termos do respectivo sistema de ensino (BRASIL, MEC,
2021, p. 18).

De acordo com o MEC (2021), a complementação VAAR será distribuída às redes


públicas de ensino que cumprirem as condicionalidades e apresentarem melhoria dos
indicadores referidos da Lei nº 14.113/2020. Para efeito da distribuição do VAAR, cabe a
participação de Instituições Comunitárias, Confessionais ou Filantrópicas Sem Fins Lucrativos
com atendimento na Educação Infantil e Educação do Campo.
Neste contexto, para destruição da “pseudocriticidade” da realidade e dos seus processos
de imposição, os professores apontam a necessidade de conhecer mais, conhecer melhor, tirar
dúvidas (KOSIK, 1976). Para isso, propomos intervenção acadêmica, de modo a desvelar o que
está por trás das intenções da BNCC para formação continuada de professores. Enfim, desviar-
se com o esforço direto para descobrir a estrutura da coisa e a “coisa em si” (KOSIK, 1976, p. 13).
E com isso responder a indagação posta na introdução deste artigo, reafirmando a importância
da compreensão sobre as contradições na implementação dos princípios ideológicos e políticos
da BNCC em contraposição da permanência de um projeto de educação comprometido
com a transformação social, construído a partir das lutas dos povos do campo com o apoio dos
movimentos sociais e universidades.

Considerações Finais

A BNCC, do ponto de vista do capital, apresenta como indutora para melhoria da qualidade
da educação fundamentada no desenvolvimento de competências a partir de orientações das
reformas educativas ocorridas na década de 1990, em um processo correspondente a política
econômica guiada pelos organismos internacionais, que apontam um novo projeto para formação
de professor, com objetivo de construir um novo perfil desse profissional que é visto como um
agente capaz de prover transformações, e “[...] como agente de mudança, é o responsável pela
realização do ideário do século XXI” (EVANGELISTA; SHIROMA; MORAES 2002, p. 68).
Suas primordiais atribuições seriam competência e obediência aos ditos ditames da educação
mercadológica.
A relação das acepções das formações continuadas para os professores do campo, aqui
citadas, que vão de encontro às prescrições da BNCC são exatamente a submissão à lógica das
avaliações em larga escala; o foco na prática pedagógica sem unidade com a teoria; a invisibilidade

37
das questões ligadas a identidade e diversidade de gênero; a responsabilização do professor pela
não aprendizagem do aluno e o recuo do apoio das universidades pública na formação dos
professores da educação básica.
E por fim, o engajamento profissional, o foco na experiência docente, uma série de apontamentos
que retornaram com força para educação e estão sendo intensificadas nos documentos
construídos a luz da BNCC.

38
REFERÊNCIAS

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TARDIF, Maurice. Saberes docentes: formação profissional. Petrópolis (RJ): Vozes, 2002.

40
CAPÍTULO 3 - A CONTRIBUIÇÃO HISTÓRICA DO MST PARA A
EDUCAÇÃO DO CAMPO

Anna Esteves5
Isabella Silva de Melo6
Pedro Lucas Cuzatis de Oliveira7

Resumo

O golpe empresarial-militar de 1964 sustou violentamente o fio da meada com os


movimentos de educação e cultura popular. No âmbito educacional, o sistema ditatorial
consolidou a incorporação da educação rural ao conjunto da educação brasileira, subordinando-a
à cultura urbana e aos mecanismos de controle ideológico do Estado Militar. Sem alocação de
recursos financeiros, materiais e humanos, as escolas rurais tornaram-se responsabilidade dos seus
respectivos municípios e as atividades de profissionalização atendiam às exigências do mercado
urbano-industrial. A partir do surgimento do Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra - MST,
ganha força a importância de se construir uma pedagogia voltada para os sujeitos do campo
como forma de dar continuidade à luta pela Reforma Agrária. O MST é o que mais contribuiu
e tem contribuído na discussão e efetivação de experiências de processos não formais, a chamada
formação política, e de uma nova educação e uma nova escola, que resgatam os esboços centrais
da educação popular (CALDART, 2000). A Educação do Campo é expressão da conquista e
do exercício de direitos dos setores populares rurais por meio de seus movimentos sociais, em
perspectiva contrária à nossa história repleta de desigualdades.

Palavras-chave: Educação do Campo. Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra. Educação Popular. Teatro.
.

Considerações iniciais

A escola se desenvolve na sociedade ocidental como instrumento de homogeneização


de conhecimentos e, consequentemente, de sujeitos. Assim, configura-se a educação como
fomentadora de atos políticos e ideológicos, pois ao se estabelecer um currículo escolar define-
se, em grande medida, como os indivíduos são formados: por meio dos conteúdos selecionados,
decide-se o que as pessoas devem ou não devem saber. Igualmente a forma de apresentação
desses conteúdos determina a maneira como esses indivíduos vão se habituar a pensar e agir, a
viver em sociedade. Nesse contexto, os processos educativos cumprem um papel fundamental.
E nessa sintonia, a Educação do Campo pode ser compreendida como construção própria
dos grupos sociais rurais de extração popular. Obviamente, não foi assim que ela nasceu. Nossos
grupos sociais hegemônicos responderam ou se anteciparam às demandas populares propondo
uma concepção específica de “projetos para o campo” em oposição a uma Educação do Campo.

5 Doutora em Artes Cênicas pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro e Doutora em Letras,
Línguas e Espetáculos pela Université Paris Ouest Nanterre la Défense, França, sob regime de cotutela (2012). Professora
do Instituto de Educação da UFRRJ, vinculada ao Departamento de Educação do Campo, Movimentos Sociais e
Diversidade (DECMSD).
6 Graduanda em Ciências Sociais pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro e bolsista do Programa de
Educação Tutorial - PET Educação do Campo e Movimentos Sociais no Estado do Rio de Janeiro.
7 Graduando em História pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro e bolsista do Programa de Educação
Tutorial - PET Educação do Campo e Movimentos Sociais no Estado do Rio de Janeiro.

41
O “pano de fundo” econômico, político e cultural dessa concepção foi um Estado
nacional que buscou perpetuar o latifúndio escravocrata e a monarquia, com uma Constituição
liberal, outorgada em 1824. Com a declaração da “independência”, em 1822, o Brasil passou por
mudanças. Porém, a estrutura econômico-social formada ao longo da exploração colonial saiu
quase incólume. Tratou-se, portanto, de uma reposição do “atraso”, sincronizada com o compasso
mais atual (até então) da modernização burguesa. Partindo desse fio condutor de análise, é
possível diagnosticar que a modernização brasileira foi marcada, em geral, por mudanças pelo
alto (costuradas por acordos das elites dominantes) para manter “tudo como está”, ou seja, a
modernização preservou o caráter conservador, contando, para tal, com várias tentativas de
golpe de Estado, ao longo da história republicana, e duas longas ditaduras consumadas. Atento a
isso, Oliveira (2003) assinalou que na formação social brasileira o “atraso” serviu de combustível
para o desenvolvimento do “moderno”, e não exatamente como um entrave à nossa ascensão ao
nível de “progresso” do seleto grupo de países centrais.
Campos (2011) aponta que ao longo do século XX, no processo lento de constituição
da educação escolar em nosso país, as propostas de escolarização para a população trabalhadora
rural se constituíram em projetos para o campo a partir de uma perspectiva urbanocêntrica,
compreendendo este segmento da população como “atrasado” e, portanto, como alvo de
“colonização” e de “adaptação” desses trabalhadores como mão de obra necessária à reprodução
do grande capital e à expansão do desenvolvimento capitalista (urbano-industrial e financeiro
no campo e na cidade). Estes projetos de constituição de uma “educação rural” foram sendo
paulatinamente implementados na sucessão de diversas conjunturas marcadas por processos
de modernização – quer sob a forma conservadora através da implementação de governos
autoritários tais como 1930 (governo de Getúlio, em especial Estado-novo, 1937-1945) e a
ditadura empresarial-militar de 1964 a 1985; quer sob a forma de projetos desenvolvimentistas
durante períodos democráticos tal como aquele que se estendeu do governo Juscelino Kubistchek
ao governo João Goulart (1955 – 1964).
A ênfase nos “projetos para o campo”, em oposição a uma Educação do Campo, remete
à dominação do campo pela cidade inaugurado pelo capitalismo moderno industrial e depois
mantido pelo capitalismo contemporâneo de viés financeiro e globalizado. Dominação esta
que se constitui em mais uma faceta da dominação maior exercida pela burguesia sobre os
trabalhadores. A integração de grupos sociais rurais – muitas vezes partícipes de outras
modalidades societárias (trabalhos comunais tradicionais, campesinato, agricultura familiar e
tantas outras) – aos modos de vida moderno e contemporâneo implica em processos pedagógicos
e sistemas educacionais nos quais se efetiva a subordinação dos trabalhadores do campo ao
modus operandi capitalista.
Independente das diferentes características que as políticas de escolarização rural
apresentam nessas diversas conjunturas, elas tiveram em comum alguns aspectos dos quais
somos herdeiros até os dias atuais: a implementação de rede de ensino precária, marcada por
infraestrutura insuficiente; concepção de escola e de currículo referenciados nos parâmetros da
escola urbana, desconhecendo e rejeitando os repertórios culturais e identitários dos sujeitos
trabalhadores do campo; formação de professores deficiente e não adequada à realidade, acrescida
de ausência de materiais didáticos contextualizados; perspectiva educacional de adaptação desses
indivíduos à formação de mão de obra, tendo em vista a necessidade da reprodução capitalista.
As premissas da Revolução Verde para a produção no campo e a perspectiva tecnicista na
área educacional marcantes nos anos 1970-1980 reforçaram o quadro esboçado aqui.
A ruptura com essas premissas começou a se desenvolver com a atuação dos Movimentos
Sociais do Campo – em especial o Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra (MST) – no
contexto da redemocratização (pós-1985) e da década de 1990, quando os referidos movimentos
lideraram diversas ocupações como forma principal de luta pela terra e pela reforma agrária
no Brasil. Obviamente, estes novos movimentos sociais do campo possuem, no seu horizonte
histórico, a herança dos movimentos de luta pela terra que se desenvolveram do pós-1945 até o

42
golpe de 1964, tais como as ligas camponesas, os sindicatos rurais, bem como os movimentos
de educação e de cultura popular que tinham as áreas rurais como espaços privilegiados de
atuação. No processo de luta dos anos 1980-1990, junto com os acampamentos – em muitos
casos, depois transformados em assentamentos – vieram as experiências educacionais, tais
como as desenvolvidas pelo MST sob a forma de escolas itinerantes, propostas pedagógicas
para escolas partindo de projetos pedagógicos voltados para as lutas dos homens e das mulheres
trabalhadores(as) do campo, dentre outras.
Arroyo (2015) diz que essas lutas dos movimentos sociais – e também sindicais - do
campo trazem, além do empoderamento dessas formas de organização e do protagonismo desses
sujeitos do campo, a expressão da efetiva contribuição dos movimentos para a constituição de
políticas públicas e de novas formas de direito (e de sujeitos de direito). Gohn (2009) reitera
que a relevância do papel dos movimen­tos sociais aparece na luta para a construção da Educação
do Campo, quando protagoni­zam a defesa de uma educação destinada aos sujeitos que mantêm
consigo valores, costu­mes, identidade e cultura singulares. Nessa perspectiva, a Educação do
Campo preconiza o desenvolvimento huma­no em todas as suas dimensões, o respeito aos saberes
da experiência e à cultura dos sujeitos do campo, e entende o contexto e a realidade camponesa
como base, como pon­to de partida e de chegada de suas ações e reflexões. Pode-se dizer que
tais sujeitos aprofundam uma percepção concentrada no seguinte diagnóstico: a educação que
lhe servirá em termos de sua emancipação social – ou, ao menos, em termos de afrouxamento
dos grilhões a eles impostos – deverá ser construída sob influência das classes populares do
campo. A Educação do Campo será obra dos próprios trabalhadores do campo, por meio de
seus movimentos e de suas lutas, que envolvem também trabalhadores – e intelectuais – das
cidades.
Uma das expressões dessa transição entre educação para o campo e Educação do Campo,
entre uma educação formulada por setores dominantes da sociedade capitalista brasileira e uma
educação construída pelos grupos sociais rurais desprivilegiados, é a Pedagogia da Alternância
(Gimonet, 2007). Buscando levar em conta temporalidades e espacialidades distintas do
mundo urbano, para o qual se forjou o sistema educacional majoritário no Ocidente moderno,
os movimentos desenvolvem a chamada “pedagogia da alternância”, que combina um tempo na
escola com um tempo de volta à comunidade. As tarefas escolares são desenvolvidas levando em
conta estes “tempos”. A pedagogia da alternância também vincula mais diretamente o currículo
dos cursos com as demandas concretas de formação das participantes, à medida que implica na
dialética constante entre a prática e a teoria, entre a escola e a comunidade.
É inegável que os movimentos sociais do campo como o MST tiveram um papel crucial
na consolidação da formação dos cursos de licenciatura em educação do campo e das políticas
públicas que visam a continuidade e valorização da docência do campo. A atuação do MST é de
suma importância para alavancar as demandas dos sujeitos do campo e valorizar seus aspectos
político-pedagógico-culturais, assim como abrir espaços de resistência contra as diversas frentes
de violências a que são submetidos, rompendo com estereótipos pejorativos atribuídos aos
camponeses e ressignificando memórias e vivências.

O surgimento do MST e sua proposta político-pedagógica

Antes de abordar o impacto do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) na


Educação do Campo no Brasil, se faz necessário um maior entendimento da vida dos camponeses,
bem como a conjuntura histórica em que o movimento surge. Tais fatos se fazem importantes
para um maior entendimento de suas reivindicações e da luta pela cidadania, que vai desde a
política de reivindicação da terra quanto o seu ideário educacional.
O campesinato brasileiro é resistência desde os primórdios da história do Brasil. Os
planos econômico-políticos da modernização agrícola brasileira impuseram uma nova forma

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de vida para os sujeitos do campo, marcados por uma agricultura que manteve seus traços
fundamentados na grande propriedade monocultura e no trabalho escravo, mesmo após o
fim do período colonial. Evidencia-se no plano dessas ações os impactos responsáveis por uma
extrema desigualdade.
A modernização agrícola caracterizada por fortes traços conservadores dominou a
agricultura nos anos de 1960 e 1970 e marcou a subordinação da atividade agrícola dos setores
dominantes da indústria e do capital financeiro. Esse processo não foi oriundo de uma simples
imposição e sim de uma consequência de pacotes de novas tecnologias que estavam em ascensão.
Adotadas em escala internacional, como ocorreu na década de 1950 e 1960 nos Estados
Unidos, os novos pacotes agrícolas consistiam em novos insumos, na época rotulados como
defensivos agrícolas e posteriormente mais conhecido como agrotóxicos, adoção de máquinas
e equipamentos. É justamente quando esse avanço tecnológico atinge o Brasil, culminando no
desenvolvimento da agroindústria brasileira, que a desigualdade entre o latifundiário e o pequeno
camponês se acentua. Isto porque não houve sequer um amparo do governo à população que
vivia no campo e sentia na pele o resultado dessas mudanças.
Desta forma, a modernização da atividade agrícola excluiu de seu projeto os camponeses,
negligenciando pela violência do neoliberalismo a produção desses sujeitos que se organizavam
familiarmente para sua subsistência. O projeto em questão abria então um espaço para os setores
dominantes ocuparem e investirem, enquanto a população do campo vivenciava os novos
conflitos pela terra em seus territórios.
Devido a esse feito, as grandes propriedades expulsaram os trabalhadores que residiam
em seu interior, passando a contratá-los apenas nos momentos em que fossem cabíveis seus
trabalhos. Os camponeses negligenciados pelo Estado e submetidos a um trabalho de servidão
tiveram que traçar novas medidas para manter a sobrevivência de suas famílias. É assim que
emerge um impulso da migração desses camponeses para as periferias urbanas. No entanto, esse
processo de migração dos trabalhadores é acompanhado de precarização, pois o que eles tinham
para manter seu modo de vida e sua vivência lhes foi tirado pelo projeto político que apostava
na agricultura dirigida pela elite dominante.
Pode-se afirmar que esse projeto político não contempla as demandas econômico-culturais
dos camponeses em seus territórios, isto é, não se encontra a participação dessas famílias no projeto
de modernização do campo, excluindo o protagonismo dessas relações sociais e negligenciando
seus espaços de ações, enquanto o meio urbano também não se encontra preparado para recebê-
los, oferecendo-lhes desagregação familiar, empregos precarizados e desemprego.
Contudo, a migração desses trabalhadores para a periferia urbana foi um fato contundente,
mas a atividade desses trabalhadores não se resumiu somente a uma migração. Os camponeses
não aceitaram os impactos desses processos passivamente e os efeitos foram justamente o
surgimento dos movimentos sindicais. É exatamente nesse período que surge em Pernambuco as
primeiras organizações das ligas camponesas, que se espalharam por diversas regiões expressando
demandas por uma reforma agrária.
É justamente essa integração econômica das fronteiras agrícolas ao modelo econômico
dominante que resultou no surgimento do movimento sindical em resistência aos violentos
conflitos pela terra. Sendo assim, entrando na estrutura do MST, pode-se compreender seu
surgimento na esteira da formação social brasileira marcada por fortes traços conservadores
que impulsionaram a modernização agrícola ao mesmo tempo em que se fazia força contrária
pela potência do conjunto de experiências organizativas acumuladas pelos trabalhadores rurais
dentro da conjuntura em que ocorria a ditadura empresarial militar de 1964.
A importância do movimento se torna ainda mais significativa e importante quando se
considera que no plano internacional os movimentos sindicais e políticos foram marcados pelo
declínio dos sindicatos e dos partidos políticos da classe operária por conta da perseguição da
ditadura que se perpetuava por toda a América latina. É exatamente durante esse regime de
crise ditatorial que o MST assume uma de suas mais expressivas ações; a ocupação de terras

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improdutivas e desreguladas pelo Estado com objetivo de reivindicar a reforma agrária.
Faz-se importante apresentar a estrutura do movimento. É possível separar dois pontos
que consistem na cooperativa do MST; o ponto de vista econômico e o político. Entende-se
como ponto de vista econômico da cooperativa o fato do movimento ser gerido e organizado
em estratégias de um modo que garanta o desenvolvimento do padrão de vida dos assentados,
isto é, a concessão de moradias dignas, terras produtivas e trabalho. O segundo ponto trata-se
da organização política dos assentamentos, sua batalha pela conscientização e politização da
base em que se entende como necessária para gerar uma transformação social a longo prazo.
A dialética entre esses dois pontos é atravessada pela formação educacional a que o MST se
propõe. Sendo assim, pode-se afirmar que a luta pela reforma agrária se atualiza e se desdobra
em pautas que fundamentam as bases do referido movimento social.
O MST compreende que a luta pela Reforma Agrária não se resume à conquista da
terra para que nela os camponeses possam plantar. A Reforma Agrária se complexificou com
a nefasta presença dos capitais estrangeiros e grandes grupos econômicos que controlam a
agricultura brasileira. Importante ressaltar que a concepção clássica da Reforma Agrária como
um meio de desenvolvimento do mercado interno através da democratização do acesso à terra
não corresponde às formas atuais de acumulação capitalista, posto que o centro da acumulação
se transferiu para o mercado financeiro e o capital internacional. A agricultura brasileira está
dentro da lógica econômica de uma aliança política entre o capital financeiro e a monocultura
monopolista para exportação.
O MST tem como objetivo conquistar um novo modelo de sociedade e foi preciso
construir uma proposta pedagógica que atendesse às particularidades e anseios do campo, dos
assentados e acampados, além de refletir uma educação pensada a partir da demanda por uma
Reforma Agrária, recuperando matrizes pedagógicas recusadas e desvalorizadas pela sociedade
capitalista.
Dentre seus objetivos, explicitados no Caderno de formação n°13 (2005), o MST busca
uma educação que forme homens e mulheres que aprendam a importância do trabalho coletivo
e da organização popular. A base desses objetivos é construída a partir de princípios filosóficos
e pedagógicos.
Dos princípios filosóficos, compreende-se a visão de mundo do MST que orienta um
projeto de Reforma Agrária que reestruture a totalidade da produção da vida social, o que
implica novos valores, novos significados e o enfrentamento à hegemonia do capital, a saber:

1. Educação para a transformação social.

Educação de classe, massiva, orgânica ao MST, aberta para o mundo, voltada para a ação,
aberta para o povo.

2. Educação para o trabalho e a cooperação.

3. Educação voltada para as várias dimensões da pessoa humana.

4. Educação para/com valores humanistas e socialistas.

5. Educação como um processo permanente de formação/ transformação humana. (Caderno


de educação n°8, 1996, p. 10)

Já os princípios pedagógicos, referem-se ao jeito de fazer e pensar a educação para


concretizar estes princípios filosóficos, a saber:

1. Relação entre prática e teoria.

2. Combinação metodológica entre processos de ensino e de capacitação.

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3. A Realidade como base da produção do conhecimento.

4. Conteúdos formativos socialmente úteis.

5. Educação para o trabalho e pelo trabalho.

6. Vínculo orgânico entre processos educativos e processos políticos.

7. Vínculo orgânico entre processos educativos e processos econômicos.

8. Vínculo orgânico entre educação e cultura.

9. Gestão democrática.

10. Auto-organização dos/das estudantes.

11. Criações de coletivos pedagógicos e formação permanente dos educadores/ das


educadoras.

12. Atitudes e habilidades de pesquisa.

13. Combinações entre processos pedagógicos coletivos e individuais.


(Caderno de educação n°8, 1996, p. 24)

A escola tem o papel de valorizar, na perspectiva horizontal da educação popular, o


trabalho manual e o trabalho intelectual e de ensinar aos educandos a “ler” a realidade em
que estão inseridos, na esteira das conquistas advindas da luta popular. Deve-se criar, a partir
de projetos e práticas pedagógicas, uma identidade das escolas do campo fortalecendo novas
formas de desenvolver o campo baseando-se na justiça social, cooperação agrícola, respeito à
vida e a valorização da cultura camponesa.
O horizonte que define a educação para o MST é aquela em que o processo pedagógico
se assume como político relacionando os processos sociais que visam a transformação de uma
sociedade e ajude a formar uma nova ordem social que tem como pilares a justiça social, a
radicalidade democrática e os valores humanistas e socialistas.
De um modo geral, a proposta educacional do Movimento dos Trabalhadores Sem
Terra busca a transformação social na contramão da lógica capitalista e figura como principal
referência para a Educação do Campo, que resultou de projetos educacionais vinculados às
lutas por reforma agrária e produção ecologicamente sustentável construídas por movimentos
sociais, nas décadas de 1980 e 1990. Referenciando essas lutas e projetos educacionais encontra-
se a herança de movimentos pela terra, tais como as Ligas Camponesas, os sindicatos rurais e os
movimentos de cultura e de educação popular.

A criação da Educação do Campo e o MST nesse processo

O Brasil sempre teve a maior parte de suas terras voltadas para agroexportação, baseada em
grandes propriedades monocultoras que visavam suprir o mercado europeu. Essa situação não
difere muito da realidade latifundiária atual. Além desse fato, a educação voltada aos sujeitos do
campo sempre foi negligenciada. Conforme relembra Breitenbach (2001), a educação no Brasil
nunca foi uma prioridade, visto que para realizar os trabalhos agrícolas não seria necessário saber
ler e escrever. A situação começa a mudar a partir dos anos 30, com o processo de urbanização
das cidades, no qual muitos camponeses passaram a almejar que seus filhos estudassem como
meio de garantir uma ascensão social. No entanto, os camponeses que permaneceram no campo
ainda eram excluídos do processo educativo.
Esse discurso urbanizador era muito forte na época e, posteriormente na década de 50,
considerava-se necessária a fusão do campo com as cidades para assim garantir o desenvolvimento
industrial do Brasil. Boa parte dessa educação voltada para o campo não abrangia as necessidades

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do campo, não existia um projeto que respeitasse as particularidades do campo. Esse modelo de
educação importava valores do meio urbano em detrimento dos valores do campo que eram
estigmatizados na sociedade brasileira.
E com esse mesmo discurso de desenvolvimento do país, foram realizadas diversas
campanhas de alfabetização no Brasil com o intuito de colocar o Brasil como uma potência
exemplar durante a ditadura empresarial-militar de 1964. Somente com o processo de
redemocratização e com a criação de uma nova Constituição Federal promulgada em 1988,
começa-se a transformar de fato o olhar da educação dos sujeitos do campo.
As propostas de escolarização para os trabalhadores rurais foram pautadas numa
perspectiva “urbanocêntrica” (Campos, 2011), na medida em que conceberam este segmento
da população como “atrasado”, suscetível, portanto, à “adaptação/colonização”, às exigências
do desenvolvimento capitalista urbano-industrial e à subordinação do campo à cidade,
uma característica inerente à emergência da “grande indústria” (Marx) e reproduzida (com
metamorfoses) ao longo do desenvolvimento capitalista, incluindo a atual fase financeirizada e
mundializada. Esses projetos de “educação rural” foram sendo paulatinamente implementados
na sucessão de diversas conjunturas engendradas pelos projetos desenvolvimentistas da
modernização conservadora do país.
A resistência frente às premissas postas pela “educação rural” começou a se desenvolver
com a atuação dos Movimentos Sociais do Campo – em especial o Movimento dos Trabalhadores
Sem-Terra (MST) – no contexto da redemocratização (pós-1985) e da década de 1990, quando
os referidos movimentos lideraram diversas ocupações como forma principal de luta pela terra
e pela reforma agrária no Brasil. As experiências educacionais vieram junto com os processos de
luta popular das ocupações, tais como as fecundas experiências desenvolvidas pelo MST sob a
forma de escolas itinerantes.
Com o fim da ditadura empresarial militar (1964-1985), houve a formulação da
Constituição de 1988, na qual foram debatidos os direitos sociais dos camponeses. O MST
teve um papel crucial na elaboração de uma educação do campo. Em 1996, houve a edição de
uma nova Lei de Diretrizes e Bases, a lei 9.394/96, que diferiu as escolas do campo das escolas
urbanas, propondo novos rumos para o campo assim como a oferta educacional específica para
o campo, permitindo currículos e metodologias apropriados aos alunos do campo.
A data atribuída ao nascimento da educação do campo é julho de 1997, quando ocorreu
o I ENERA (Encontro Nacional de Educadores e Educadoras da Reforma Agrária), que contou
com a presença do MST, UnB, Unicef, Unesco e CNBB. Nasce a partir de um contexto de lutas
sociais realizadas pela classe trabalhadora do campo organizada, que levava em consideração
as suas vivências no campo cuja produção do conhecimento se mantenha em um processo
inseparável das experiências culturais e valorativas dos sujeitos históricos que se constroem
e reconstroem em relações sociais e territoriais. Territórios estes marcados pela dinâmica da
desterritorialização imposta pelo capital, mas também por lutas e resistências que se materializam
em diversas formas sociais
Com os resultados obtidos nesse primeiro encontro, foi realizado e organizado, de 27 a
31 de julho de 1998 em Luziânia (Goiás), a Primeira Conferência Nacional ‘Por uma Educação
Básica no Campo’ que pretendia a formulação de políticas públicas e a criação de um projeto
educativo voltado para o campo. Dentre as metas estabelecidas nesse encontro, há a mobilização
do camponês na construção de práticas educativas que pensem na formação de um sujeito do
campo, além de priorizar a valorização das culturas do campo.
Com a consolidação da Educação do Campo, era necessário a formação de educadores
formados em educação do campo, com isso houve a criação de políticas públicas para formação
desses educadores, como a criação de cursos de licenciatura em educação do campo e pós-
graduação em educação do campo, do PRONERA (Programa Nacional de Educação na Reforma
Agrária), que apoia projetos de ensino voltados na área de Reforma Agrária, o PROCAMPO
(Programa de Apoio à Formação Superior em Licenciatura em Educação do Campo), que apoia

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a criação de cursos de licenciatura em educação do campo nas instituições de ensino pelo Brasil
e o PRONACAMPO (Programa Nacional de Educação do Campo), que busca valorizar de um
modo geral a vivência cultural dos residentes do campo.
O MST e demais movimentos sociais do campo foram protagonistas na ressignificação
de novos espaços de produção de conhecimento, resgatando memórias, identidades e histórias
vividas pelos sujeitos do campo (SANTOS, 2017), além de desenvolverem um papel ativo na
criação das políticas públicas educacionais do campo e fiscalização dos seus direitos conquistados.
A Educação do Campo extrai potencialidade das intersecções orgânicas entre produção
de conhecimento, prática comunitária e formação humana. Além do mais, atualiza sua
condição de “educação contextualizada” porque ancora os princípios político-pedagógicos e
as práticas de educação escolar no estudo continuado da realidade cotidiana dos sujeitos do
campo. Na mesma perspectiva, renova a característica de “educação diferenciada” na medida em
que promove diálogos entre os diversos saberes que formam as diversidades desses sujeitos do
campo. É importante ressalvar que o registro da diversidade aqui evocado não é “culturalista”,
pois não desvincula produção e reprodução de identidades culturais da produção e reprodução
das condições materiais de existência. O fio condutor das lutas contra a espoliação capitalista
segue constituindo um terreno comum de articulação da unidade entre a pluralidade de formas
e conteúdos de intervenções críticas, no plano econômico, político e cultural.
Assim, a Educação do Campo cumpre um papel importante na atualização da educação
popular, reconstruindo e ressignificando as experiências das décadas de 1950 e 1960, em “um
país curiosamente inteligente e criativo” (SCHWARZ, 1978), embalado pela ampliação do
protagonismo político popular. Como exemplo, tem-se a proposta da Pedagogia do Oprimido,
eixo principal do Movimento de Cultura Popular - MCP, coordenado por Paulo Freire, e os
Centros Populares de Cultura - CPCs - que se espalharam por todo o país por meio da parceria
da União Nacional dos Estudantes - UNE - com artistas, movimentos sindicais e camponeses.
Um dos atos pioneiros do golpe empresarial-militar de 1964 foi a interrupção dos laços políticos
entre os segmentos operário, camponês e estudantil, que viabilizava a troca de experiências e
fortalecia a consciência política de classe dos participantes, tornando possível a transferência
dos meios de produção de diversas linguagens artísticas.
A Educação do Campo carrega esse grande desafio de (re)criar o fio da meada violentamente
sustado pelo golpe empresarial-militar entre teorização da vida social, experiência de autoformação
estética e prática comunitária. Nesse caminho, importante trazer as experimentações político-
pedagógicas com o teatro dentro do MST e, consequentemente, sua relevância para a Educação
do Campo. O teatro como ferramenta pedagógica para formação de militantes sociais do
campo e da cidade parte da dinâmica da realidade dos territórios dos educandos (sujeitos
coletivos e não sujeitos abstraídos, isolados, de seus territórios. É tão somente com os pés neste
chão que se experimenta organicamente a autoformação estética relacionada a um processo
de transformação das condições objetivas e se faz frente aos efeitos perniciosos propagados
pela cultura hegemônica, que dispõe do monopólio simbólico dos meios de representação da
“realidade”.

MST, Teatro e Educação do Campo

Nessa perspectiva enfocada, a função social do teatro deve se pautar na direção contra-
hegemônica de representação da realidade e na incorporação de um caráter eminentemente
popular – “fazer teatro popular porque queremos que o mundo inteiro seja popular”, conforme
enunciara Augusto Boal. A adjetivação popular, ao mesmo tempo estética e política, deve ser
compreendida também como uma dimensão educativa que resgata elementos importantes
da concepção de educação popular e, ao mesmo tempo, os atualiza, repolitiza e avança nas
formulações e práticas direcionadas a públicos específicos da Educação do Campo. Aqui, a

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adjetivação popular nada tem a ver com estetizações do “popular” e seus territórios que conseguem
encontrar nichos de mercado cultural pós-moderno (demarcados pela indústria cultural),
fomentando o (auto)empreendedorismo da classe trabalhadora e, com isso, fortalecendo (pelo
menos ideologicamente) os fundamentos da propriedade privada dos meios de produção, da
exploração do trabalho e de seus valores (ideológicos) básicos, como a “livre-iniciativa” e a
“livre-concorrência”. Logo, não se trata, em hipótese alguma, da “valorização cultural” daquilo
que também é tratado, ou melhor, etiquetado como “popular”, comercializado, por exemplo, em
uma peça de teatro cujo conteúdo é a favela, mas esvaziado da função social de participar das
reivindicações por reforma urbana, ou seja, comercializado em uma forma de teatro apartada de
um processo efetivo de luta contra a espoliação urbana.
Um grande desafio, assim, que cabe ao trabalho teatral nessa chave pedagógica é o de
potencializar a imaginação criativa para construção estética e política de respostas coletivas a
problemas, conflitos, contradições inerentes à lógica da mercadoria e a sua sustentação por meio
do Estado. Costa (2006) afirma que o MST já desenvolve há anos a luta mais sistematizada
na frente cultural, da organização das brigadas de teatro (e suas pautas específicas), pois seus
militantes entenderam que o seu combate exige a construção de suas próprias formas de
representação estético-política da experiência social e a invenção de suas próprias formas de
ação cultural contra-hegemônica. Suas intervenções artísticas vêm na esteira da experiência
brasileira do Teatro de Arena, do CPC, do MCP e, no âmbito internacional, as experiências
latino-americanas, culminando com a força do teatro épico-dialético de Brecht.
Nesse caminho, é importante registrar a formação e atuação da Brigada Nacional de Teatro
do MST Patativa do Assaré. Nascida em 2001, por meio de uma construção coletiva em parceria
com Augusto Boal e o Centro do Teatro do Oprimido - CTO, pautou-se pelo pressuposto da
socialização dos meios de produção teatral, compreendendo que o potencial político de sua
intervenção artístico-cultural depende da apropriação das formas críticas de representação da
realidade. A Brigada, com isso, contribuiu muito para o MST assumir e ampliar as formas de
luta no âmbito cultural, tratando-as como indispensáveis para a qualificação política e técnica
dos militantes, visando a construção coletiva de imaginários descolonizados e críticos da lógica
da mercadoria. Contra o monopólio dos meios de representação da realidade, um projeto de
transformação precisa se contrapor com técnicas e linguagens capazes de colocar em xeque as
formas de dominação, gerar alternativas coletivas, apontar caminhos para outras formas de
organização social.
Villas Bôas (2013) analisa dois momentos da fecunda interlocução de Augusto Boal e
o CTO com o MST e as Ligas Camponesas. O autor ressalta a coerência do militante-artista
quando compara que o mesmo Boal, empenhado em colaborar com o processo de conscientização
das massas populares e com a pesquisa e produção de peças de agitação e propaganda de caráter
épico, é aquele que décadas depois se reaproxima do MST com a posição política de não mais
fazer teatro para os camponeses, mas nos termos da educação popular, de fazer teatro com os
trabalhadores rurais, visando à apropriação crítica da linguagem teatral e à autonomia no campo
da produção.
Schwarz (1978) e Costa (2016) apontam que, antes do golpe de 1964, estava em curso
um processo de transferência dos meios de produção de linguagens artísticas para a classe
trabalhadora que, com suas lutas e o avanço das formas organizativas, promovia de modo
acelerado o estreitamento dos elos entre as esferas política, econômica e cultural. As experiências
de teatro político organizadas pelo CPC e pelo MCP apontaram o caminho da possibilidade
das classes populares construírem suas próprias formas de representação política e estética. Villas
Bôas (2013) identifica no teatro épico um elemento fundamental para a criação e proliferação do
teatro de agitação e propaganda por meio da atuação do CPC. Com o golpe empresarial-militar
e o acirramento da repressão, o teatro épico foi colocado em xeque. Augusto Boal, impedido
de atuar no teatro profissional, revigora os vínculos com as classes populares por intermédio
do Teatro do Oprimido, concebido como uma ferramenta a mais na luta contra as ditaduras na

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América Latina, que se alimenta de um exercício de (auto)crítica das derrotas da esquerda e de
possíveis limites e equívocos de seus projetos de transformação da realidade, visando revigorar e
qualificar o ímpeto coletivo de transformação social.
Logo, o Teatro do Oprimido se empenha em viabilizar a retomada da socialização dos meios
de produção da linguagem teatral, buscando fomentar autonomia de produção e organização da
classe trabalhadora. Na medida em que o TO é situado como articulação entre teatro político
e educação popular, na esteira do fio da meada interditado pela ditadura empresarial-militar,
cumpre um papel importantíssimo para a reconstrução do processo organizativo das lutas
populares. Nesse sentido, Villas Bôas defende que a crítica de seus resultados formais não deve
ser o centro da questão: não se trata de colocar no centro do debate a obra fechada, produto
resultante do teatro profissional, mas a experiência das pessoas, mediadas e transformadas em
cena pelas técnicas teatrais.

Considerações finais

Há imensos desafios postos pela atual conjuntura marcada pelo avanço da pilhagem
de recursos naturais e culturais (isto é, de saberes-fazeres) perpetrados pelo agronegócio, pela
manutenção da criminalização das lutas e violência contra os lutadores. Há que se apontar
também na atual conjuntura para o aumento da mercantilização da estética e da estetização da
economia, nos rastros da financeirização/ficcionalização do capital, que reforçam a identidade
de consumidor nos processos de subjetivação dos indivíduos atomizados. O enfrentamento
desses desafios requer o aprofundamento das formações políticas e estéticas de educadores
populares, da construção cotidiana da dialética entre a forma estética e a forma social. O que está
em jogo, fundamentalmente, é a possibilidade de rompimento com os padrões hegemônicos de
representação da realidade em sintonia com a luta coletiva por transformação das condições
materiais de vida social.
Pode-se perceber que a partir das primeiras mobilizações do campo para garantir direitos
e modos de viver dos seus sujeitos, a organização em coletividade como meio de resistência
se faz fundamental. A educação popular, em sua origem, indica a necessidade de reconhecer
o movimento das classes populares em busca de direitos como processo formador, e também
de voltar a reconhecer que a vivência organizativa e de luta é formadora. Nessa perspectiva, o
trabalho educativo, tanto na escola quanto nos espaços não formais, visa formar sujeitos que
interfiram na realidade não somente para compreendê-la, mas para transformá-la. Deste modo,
a Educação Popular se constituiu, ao mesmo tempo, como uma ação cultural, um movimento
de educação popular e uma teoria da educação (FREIRE, 2001; 2005).
A partir do surgimento do MST, ganha força a importância de se construir uma pedagogia
voltada para os sujeitos do campo como forma de dar continuidade à luta pela Reforma Agrária
e atualizações de suas pautas. O protagonismo do MST merece destaque, pois esse movimento,
sem dúvida, é o que mais contribuiu e tem contribuído na discussão e efetivação de experiências
de processos não formais, a chamada formação política, e de uma nova educação e uma nova
escola, que resgatam os lineamentos centrais da educação popular (CALDART, 2000).
Pensando as concepções pedagógicas envolvidas nas experiências formativas e educativas
estimuladas pelos movimentos sociais rurais, uma prática pedagógica centrada na mera transmissão
de conhecimentos – entendidos enquanto prontos, ainda que estranhos às experiências dos povos
do campo – casa-se facilmente com a finalidade de subordinar estes mesmos povos ao mundo
capitalista e urbano. Em oposição, uma prática pedagógica capaz de incluir as experiências do
MST, do movimento indígena, dos pequenos produtores, dos quilombolas, dos pescadores, das
populações ribeirinhas, tornando-se uma educação do campo (e não para o campo) de forma
que esses sujeitos se tornassem os protagonistas da criação do seu próprio projeto educativo,
provavelmente tenderá a formar militantes-educadores numa perspectiva mais crítica.

50
Desde que se iniciou um projeto de construção da Educação do Campo, a discussão
principal desta articulação nacional estava centrada na garantia de uma educação de qualidade
para as populações do campo organicamente ligada à estratégia de um projeto de transformação
da realidade do campo, de empoderamento e de emancipação desses sujeitos coletivos. Gohn
(2010) analisa que o movimento da Educação do Cam­po levantou e expôs ao Estado os
diferentes problemas vividos pela população do cam­po, presentes desde a iniciação na escola até
a formação superior universitária.
Observa-se a importância que o MST teve na formulação de políticas públicas que
priorizasse a continuidade das práticas educacionais do campo como o PRONACAMPO,
PROCAMPO e o PRONERA, pensando sobretudo nas suas particularidades e não mais
impondo os valores urbanos que antes eram a base dos projetos educacionais existentes. As
Licenciaturas em Educação do Campo são o resultado do processo histórico de luta dos
movimentos sociais para o reconhecimento das experiências pedagógicas dos sujeitos do campo
e a inclusão destas nas políticas públicas. Este processo teve início em meados da década de
1990 e se estendeu ao longo da primeira década do século XXI com a crescente e definitiva
institucionalização destas experiências pelo Ministério da Educação.
Contudo, a Educação do Campo é expressão da conquista e do exercício de direitos
dos setores populares rurais por meio de seus movimentos sociais, em perspectiva contrária à
nossa história repleta de desigualdades. Portanto, a Educação do Campo que adentra nossas
universidades públicas se pretende originalmente elemento de transformação e emancipação
social de nossas classes tradicionalmente subalternizadas.

51
REFERÊNCIAS

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história: o MST e as lutas sociais contra o neoliberalismo. In: Lutas Sociais. Volume 5. Dez/1998.
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em Revista, [S.l.], v. 31, n. 55, p. p. 47-68, fev. 2015. ISSN 1984-0411.

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CONTEMPORÂNEO – INCLUSÃO E CONTRADIÇÕES NO DIÁLOGO ENTRE
MOVIMENTOS SOCIAIS E SISTEMAS DE ENSINO. Revista Teias, [S.l.], v. 12, n. 24, p.
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52
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WANDERLEI, Maria de Nazareth Baudel (2015), O campesinato brasileiro: uma história de


resistência, Revista de Economia e Sociologia Rural, vol. 52, supl. 1.

53
CAPÍTULO 4 - A UTILIZAÇÃO DO TRANSPORTE ESCOLAR NO CAMPO

Sarah Nery da Silva Pedro8

Julyanne Coutinho9

Resumo

O presente artigo tem por objetivo apresentar as dificuldades que os alunos do campo enfrentam
para chegar até a escola. Analisando os obstáculos que perpassam os discentes do campo em
relação à acessibilidade às instituições de ensino, como: o estado precário dos transportes
públicos, a baixa estrutura das estradas e o longo percurso que os alunos enfrentam até chegar à
escola. Entre outros aspectos, discorrer acerca das consequências da má acessibilidade e apontar
o que a legislação brasileira expõem sobre o assunto. A metodologia utilizada nessa pesquisa
foi a qualitativa e a bibliográfica, por meio da leitura de artigos, da Constituição Federal, do
Fundeb, dos PCNs e do PNATE. Dessa maneira, o artigo busca evidenciar a importância do
transporte escolar para os alunos do campo, sendo fundamental para o acesso à educação.

Palavras-chave: Transporte escolar, Nucleação e Educação do Campo.

Introdução

Com a evolução de leis voltadas para a educação, espera-se um olhar mais cuidadoso
para toda a população que está na escola, com direito à acessibilidade e educação para todos.
Acontece que, através das pesquisas feitas neste presente artigo em seu decorrer, as controvérsias
se tornam evidentes pois é visto como há uma negligência com a população do campo.
Dessa forma, de acordo com Paulo Freire (1981), seria uma atitude ingênua esperar que
as classes dominantes desenvolvessem uma forma de educação que proporcionasse às classes
dominadas perceberem as injustiças sociais de maneira crítica. Por isso, após pesquisas feitas, fica
claro como essa falta de acessibilidade é causada e, por mais que haja leis a favor dos estudantes,
falta executar de fato sua obrigatoriedade.
Reconhecer a real necessidade do transporte escolar para facilitar o acesso e oportunidades
de aprendizagem para estudantes que vivem em áreas rurais é poder fortalecer a sua identidade
rural e a identidade cultural de um povo vivo que constrói e muda vidas. Por isso, é importante
que o presente artigo possa evidenciar toda sua problemática para que a população do campo,
nas escolas rurais, tenha as mesmas oportunidades que o resto da sociedade.

Desenvolvimento

O Transporte Escolar Rural é o deslocamento dos alunos da rede pública de educação que
residem e/ou estudam em áreas rurais, ocorrendo a partir de suas residências ou um ponto de
embarque, possibilitando o acesso às unidades de ensino, por meio de veículos escolares. Dessa
forma, realizando o deslocamento dos alunos no trajeto casa-escola-casa facilitaria o acesso e a
permanência destes nas escolas, melhorando as condições da oferta do ensino público.
Com base nos dispositivos legais, o Governo Federal instituiu o FUNDEB e criou

8 Integrante do Grupo PET Educação do Campo e Movimentos Sociais da UFRRJ – Universidade Federal do
Rio de Janeiro.
9 Integrante do Grupo PET Educação do Campo e Movimentos Sociais da UFRRJ – Universidade Federal do
Rio de Janeiro.

54
programas para contribuir com Transporte Escolar, que é fundamental para garantia do acesso
dos estudantes à educação, como o:

• Programa Nacional de Apoio ao Transporte do Escolar (PNATE);


• Programa Caminho da Escola;
• Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Pro-
fissionais da Educação (FUNDEB).

Todos são executados pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE)


e tem uma característica suplementar, sendo que o PNATE e o Caminho da Escola visam,
especialmente, o atendimento do estudante de zona rural (FNDE, 2018).
A partir dessa análise, a Constituição Brasileira assegura a pessoas em idade escolar o
direito de acesso e de permanência nas instituições de ensino, entretanto, tal direito se mostra
inacessível aos discentes do campo. Uma vez que seu acesso à escola é negado ou em sua maioria
precário, devido à falta de transporte escolar e a baixa infraestrutura das estradas, o que torna a
escola inacessível para essa parcela da população. Negando assim um direito garantido por lei.
O processo de nucleação escolar se torna um fator relevante para o acesso à educação,
entretanto, se torna um desafio para os moradores do campo. Pois nesse processo os alunos de
escolas desativas são realocados para outra instituição, em sua maioria as escolas do campo que
são fechadas e os alunos são reunidos nas escolas situadas na cidade. Concentrando assim a maior
quantidade de alunos em uma única escola. No entanto, esse processo não leva em consideração
a distância entre a escola e a casa dos alunos que moram no campo, que as vezes levam horas
para chegar à escola, isso quando o transporte não quebra no caminho; tornando assim o acesso
à escola desigual. Desse modo, indo contra a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional em
seu Art.3° inciso I que garante igualdade de condições para o acesso à escola.
Ademais, outro grande desafio para os educandos rurais é a perda de aulas devido à falta
de transporte e das estradas em péssimas condições. No período de chuva, os alunos ficam
impossibilitados de ir à escola, pois a estrada fica intrafegável devido à falta de pavimentação.
O que gera um déficit na educação desses alunos. Por conseguinte, tais dificuldades de
acesso e de estrutura tornam-se fatores desmotivantes para a permanência dos alunos nas escolas.
Corroborando assim para o aumento da evasão escolar dos discente do campo.
Para exemplificar bem o problema do transporte público, foi realizada uma pesquisa com
o FNDE que mostrou através de um gráfico a idade média dos veículos utilizados no transporte
escolar do campo.

Portanto, como se pode notar através do gráfico, existem diversos veículos que estão em
condições insalubres. Veículos com tantos anos de utilização são facilmente quebrados por causa

55
da estrada em má condição de uso, colaborando para a falta de oferta necessária de transporte
para essa parcela da população.
Existem diversas ações políticas no Brasil referentes à educação escolar, de forma que é de
se esperar que a educação do campo receba as mesmas condições previstas por lei. A Constituição
Federal é a principal prova de que há direitos e deveres para esses alunos, pois segundo a Lei nº
9.394/96, mais conhecida como LDB (1996), é previsto o direito do aluno no uso do transporte
escolar, mediante a obrigação de estados e municípios, conforme transcrição abaixo: Art. 208.
O dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de: VII – atendimento
ao educando, em todas as etapas da educação básica, por meio de programas suplementares de
material didático-escolar, transporte, alimentação e assistência à saúde (Emenda Constitucional
nº 59, de 2009).
Além disso, há outros instrumentos legais que ratificam a necessidade do transporte
escolar, como PNATE, estabelecido pelo MEC e desenvolvido pelo Fundo Nacional de
Desenvolvimento Escolar (FNDE), que a partir de 2004 estabelece a Lei nº 10.880/04 em seu
artigo 2º afirmando que:
Art. 2º. Fica instituído o Programa Nacional de Apoio ao Transporte
do Escolar – PNATE, no âmbito do MEC, a ser executado pelo Fundo
Nacional de Desenvolvimento da Educação - FNDE, com o objetivo
de oferecer transporte escolar aos alunos da educação básica pública,
residentes em área rural, por meio de assistência financeira, em caráter
suplementar, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, observadas
as disposições desta Lei (redação dada pela Lei nº 11.947, de 2009).

Para mais, o documento Referências para uma Política Nacional de Educação no Campo
(BRASIL, 2003, p. 30) nos mostra que:

[...] até 2002 o transporte escolar público era ofertado para cerca de 3 557
765 alunos do ensino fundamental e do ensino médio residentes na zona
rural. Desse total, 67% são transportados para escolas localizadas na zona
urbana e apenas 33% para escolas rurais.

Em um único parágrafo, a Resolução n° 2/2008 (Brasil,2008b) diz que “quando se fizer


necessária a adoção do transporte escolar deve ser considerados o menor tempo possível no
percurso residência-escola e a garantia de transporte das crianças do campo para o campo”. Além
disso, garante que o transporte escolar deve estar de acordo com as normas do Código Nacional
de Trânsito. Entretanto, é possível notar que tal resolução não vem sendo cumprida, uma vez que
os alunos do campo ainda precisam enfrentar horas dentro da condução para chegar à escola.
Ainda sob esse olhar, a Resolução nº 2/2008 (BRASIL, 2008b) perpetua que o
“eventual transporte de crianças e jovens portadores de necessidades especiais, em suas próprias
comunidades ou quando houver necessidade de deslocamento para a nucleação, deverá adaptar-
se às condições desses alunos, conforme leis específicas”. Dessa maneira, é possível compreender
que a escola e o meio de transporte devem se adaptar ao aluno com deficiência, entretanto,
essa realidade se apresenta utópica, uma vez que o transporte escolar em sua maioria está em
péssimas condições de uso, fazendo com que os alunos portadores de deficiência não consigam
entrar no transporte escolar e por consequência não conseguem chegar à escola.
Ademais, com bases em pesquisas investigativas, análise de textos e matérias jornalísticas,
não foi difícil perceber que tais leis não são efetivadas no campo. Os alunos são postos a condições
insalubres de transporte e muitas vezes nem sequer têm a alternativa de ir estudar por falta de
condução. O que gera uma defasagem no ensino dessa parcela da população, uma vez que estes
chegam a ficar semanas sem conseguir ir à escola quando o transporte escolar quebra, algo que é
frequente, pois a maioria dos ônibus destinados a levar os alunos do campo para a escola já estão
sucateados quando são realocados para o campo.

56
É possível perceber, nesse processo investigativo, as desigualdades sociais que essa parcela
da população sofre. Quando é feito uma comparação em escolas de cidades maiores, com asfalto,
ônibus circulando de forma eficiente e instituições de ensinos de qualidade, logo fica clara a
desigualdade. Já nas escolas do campo a realidade é diferente, pois os discentes, toda a gestão
escolar e o resto da população não podem ter o mesmo benefício.
A comunidade de estudantes camponeses e as escolas de campo são submetidas a
verdadeiros impasses no que se desrespeito a chegada nas instituições. A qualidade de ensino,
dessa forma, se torna precária e de pouco aproveitamento já que a infraestrutura e os professores
mal preparados inferem diretamente no processo, assim como diz Furtado (2008. p.15):

A qualidade de ensino ministrado no meio rural pode ser analisada do


ponto de vista da precariedade da oferta: instalações, materiais didáticos
e principalmente a formação precária e o acompanhamento quase
inexistente dos professores em exercício; bem como se considerando o
capital socio-cultural em jogo, consequência do isolamento e desamparo
histórico a que tem sido submetida a população do meio rural, o que é
claramente visível pelo auto índice de analfabetismo.

Além disso, na área rural, existe somente oferta para o atendimento de 29,9% das crianças,
em idade de 4 a 6 anos e de 4,5% dos jovens de 15 a 17 anos (MEC,2001). Ou seja, a maior
parte da população do campo não consegue estudar no campo, devido à baixa demanda de vaga.
Entretanto, é necessário considerar as consequências dessa baixa demanda como o aumento de
discentes indo estudar em escolas situadas em outras cidades, e que necessitam do transporte
escolar para chegar. Porém, da mesma forma que o Governo não oferece mais vagas em escolas
do campo, não oferece transporte público de qualidade para que esses estudantes consigam
chegar em suas escolas de maneira adequada.
Estudos do Ministério da Educação apontam que na área urbana 50% das crianças que
frequentam escola estão com atraso escolar, já na área rural esse contingente é ainda maior: 72%
dos alunos. Com isso, infere-se que talvez essa realidade possa ser efeito do longo percurso que
os alunos que não conseguiram vaga enfrentam até chegar às escolas localizadas na cidade, da
baixa estrutura das estradas que torna o trajeto mais insalubre e o péssimo estado das conduções,
que por muitas vezes não consegue nem chegar até às escolas. Tais fatores corroboram para o
desânimo dos alunos que, em muitos casos, acabam desistindo dos estudos, gerando assim um
grande aumento no número de evasão escolar dos alunos que residem no campo.
Outro fator que corrobora para o desinteresse dos discentes do campo é “a inadequação
da escola ao meio, faz com que as populações rurais não sintam sua necessidade” (PRETTI,
1987, p 14). Indo contra os Parâmetros Curriculares Nacionais, que estabelece “as adaptações
curriculares previstas nos níveis de concretização apontam a necessidade de adequarem objetivos,
conteúdos e critérios de avaliação, de forma a atender a diversidade existente no país” (BRASIL,
2001, p.96).
Seguindo esse raciocínio, é indispensável o papel da escola na formação de um
pensamento cognitivo de um indivíduo e da sociedade. Nesse contexto, se falta o mínimo para
que as crianças do campo tenham acesso à educação, quanto mais a uma educação de qualidade.
Logo, fica evidente a negligência educacional no Brasil, uma vez que a escola deve fornecer uma
escolarização que permita que os alunos se enxerguem como sujeitos de uma sociedade e que os
mesmos se tornem emancipados.
Ademais, é evidente que as partes que precisam ainda mais de atenção da sociedade, como
pessoas com deficiência, são afetadas mais ainda com a falta adequada de transporte público
de qualidade no campo. A interface entre a educação especial e a educação do campo aparece
em legislação específica da educação do campo, conforme a Resolução nº 2/2008 (BRASIL,
2008b), em que se afirma:

57
§ 5º - Os sistemas de ensino adotarão providências para que as crianças
e os jovens portadores de necessidades especiais, objeto da modalidade
de Educação Especial, residentes no campo, também tenham acesso à
Educação Básica, preferentemente em escolas comuns da rede de ensino
regular.

Com isso, é bastante perceptível como as lutas dessa parcela da sociedade têm se mostrado
eficiente. Se nos tempos anteriores estes viviam sem poder ir a escolas, nos dias atuais as leis
garantem seus direitos e deveres. Ao tratar da Educação do Campo, a CONAE (2010) cita a
questão do transporte escolar a partir da interface da educação especial, e diz que

Garantir a oferta e permanência e ampliar o acesso à escola do campo,


de crianças, adolescentes, jovens, adultos e idosos/ as, de pessoas com
deficiências, transtornos globais do desenvolvimento, altas habilidades/
superdotação, entre outras, residentes nas zonas rurais, em todas as etapas
da educação básica e na superior, observando-se que o atendimento
infantil deve ser oportunizado na própria comunidade, e garantindo-se,
para os demais casos, o transporte escolar intracampo (CONAE,2010, p.
135).

Contudo, pouco se fala e se produz sobre a relação entre as desigualdades sociais e as


escolares que assolam também as famílias de trabalhadores do campo. Nessas lutas, faltam
apoios governamentais como o de transporte adequado que possibilite o acesso desses alunos à
escola, dessa forma, o discurso de educação inclusiva e inclusão social acabam por ser uma farsa,
um mero slogan que é propagado pelo Governo, uma vez que os alunos com deficiência não
conseguem chegar à escola, devido à falta de transporte ou à sua precariedade.
No campo, as pessoas com deficiência ainda são invisíveis (MARCOCCIA, 2011). Há
silêncio sobre elas nos documentos dos movimentos sociais que lutam pela reforma agrária
no país, há silêncio sobre elas na produção do conhecimento na área da educação especial
(CAIADO; MELLETI, 2011). Com isso é possível analisar como essa parcela da população se
mantem excluída até mesmo por parte de quem deveria lutar por seus direitos.
Nesses casos, a educação acaba por ser considerada uma inclusão excludente e, por isso,
deve-se promover um olhar mais atento a essa parte da população pois toda a sua luta não pode
ser em vão e nem seu processo histórico longo até os dias atuais.

Conclusões

No que tange a educação, verifica-se os percalços que os alunos do campo passam no que
se refere ao transporte escolar. É possível analisar como as estradas precárias e o transporte em
péssimas condições corroboram para que a educação se torne inacessível para essa parcela da
população.
Ademais, compreende-se como a utilização do transporte público escolar é uma ferramenta
fundamental para a permanência da educação, uma vez que sem ela grande parte da população
do campo não consegue acessar a instituição de ensino. Outro fator observado foi a posição da
nucleação escolar e como ela se liga ao transporte escolar, pois os alunos são redirecionados para
escolas localizadas na cidade, não levando em consideração a localização de suas casas e o longo
trajeto até a escola. O bem-estar dos alunos pouco foi levado em consideração.
Ao longo desta pesquisa foram apresentadas diversas leis e resoluções que versam a
manutenção da educação, a manutenção do transporte escolar com a criação do Programa
Nacional de Apoio ao Transporte do Escolar e outras diversas leis que apoiam a acessibilidade
ao ensino. Entretanto, foi possível observar que tal leis não são seguidas na prática, diversos
alunos ficam semanas sem ir para escola devido à falta de transporte.

58
Por conseguinte, é necessário destacar como a utilização do transporte também afeta o
rendimento escolar dos alunos do campo. Os dados apresentados ao longo do texto apresentam
como a população do campo possui uma defasagem na relação idade série ao se comparar com
os alunos que residem nas cidades.
Compreende-se, portanto, como o transporte escolar é de suma importância para os
discentes do campo e para o acesso à educação. Desse modo, percebe-se a necessidade de mais
transportes públicos escolares e a melhoria das estradas para que assim os alunos consigam ter
uma educação de qualidade, como garante a Constituição Federal.

59
REFERÊNCIAS

BRASIL. Ministério da Educação. FNDE. FUNDEB: Manual de orientação.


2008.

BRASIL. Constituição (1988).

BRASIL. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, LDB. 9394/1996.

FREIRE, Paulo. Ação cultural para a liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981.

FURTADO, Eliane Dayse Pontes. PhD, professora e pesquisadora da Faculdade de Educação


da Universidade Federal do Ceará – Brasil.

60
CAPÍTULO 5 - PROGRAMA NACIONAL DE EDUCAÇÃO NA REFORMA
AGRÁRIA E SUAS POTENCIALIDADES DURANTE OS GOVERNOS LULA
(2033-2010).

Bruno César de Carvalho Rizzo10

Resumo

O Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (PRONERA) foi criado em 1998


pelo então presidente brasileiro Fernando Henrique Cardoso, mesmo sendo uma época em
que o neoliberalismo parecia dominar todas as esferas nacionais, o povo, através de muita luta,
conseguiu que o Estado contemplasse a população rural brasileira com algo que jamais nenhum
outro governo o tinha feito. Entendemos como algo essencial para que acontecesse o primeiro
encontro de educadores da reforma agrária (I ENERA) em 1997 no estado de Goiás, que
contava com o apoio da UNB (Universidade de Brasília). Durante a pesquisa que realizamos,
tivemos um forte impacto não só no Brasil, mas em todo o mundo, que foi a pandemia de
covid-19, assim sendo, resolvemos optar por revisões bibliográficas ao invés de uma pesquisa de
campo. Escolhemos trabalhar neste breve artigo um histórico social antecedente a criação do
PRONERA no Brasil.

Introdução

O Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (PRONERA) é para o Brasil


algo ímpar na história educacional, pois, foi a primeira vez que os habitantes do campo tiveram
algo voltado para eles na forma verdadeira no que tange à educação. Criado em 1998 ainda no
governo do tucano Fernando Henrique Cardoso que, curiosamente estava alinhado com uma
11

agenda econômica neoliberal, e mesmo assim, escolheu realizar uma transformação no ensino
básico na zona rural e que sem dúvida foi um grande sustentáculo para garantir a estabilidade de
seu segundo mandato presidencial.
Salientamos que as pressões externas de órgãos super influentes como a Organização das
Nações Unidas (ONU), Fundo Monetário Internacional (FMI) e Banco Mundial também
auxiliaram os governantes brasileiros a adotarem políticas sociais mais veementes, porém, as
manifestações internas em nosso país foi uma espécie de “cereja” no bolo para que os programas
saíssem do papel e fossem colocados na prática, logicamente com muitas falhas.
Devemos regressar um ano antes, em 1997, quando educadores rurais se reuniram em
Luziânia, no estado de Goiás, para discutirem os rumos que a educação rural deveria seguir
nos próximos anos. Foi formado assim o I ENERA (Educadores na Reforma Agrária) com a
presença do MST (Movimento dos Trabalhadores Sem Terra) e contando com o apoio de uma
das mais conceituadas universidades brasileiras, a UNB (Universidade de Brasília). Nessa reunião
diversos assuntos foram debatidos sobre os caminhos que o ensino rural estava caminhando (ou
não), e um dos principais pontos abordados nesse histórico encontro foi justamente críticas a
uma educação voltada apenas para o mercado e que havia um esquecimento a respeito do campo
que não havia sido contemplado com uma instrução competitiva e de qualidade.
Logicamente que a história brasileira é marcada por conflitos envolvendo camponeses e
senhores de terras e que a aceitação por uma educação de qualidade e transformadora assusta
os interesses elitistas no Brasil. Durante a realização deste artigo resolvemos citar alguns desses
conflitos que levaram à morte dezenas de pessoas que apenas desejavam mais dignidade para sua
vida e /ou os mesmos direitos de ter um espaço para produzir, estudar, trabalhar.
10 Mestrado em Educação no PPGEA – Programa de Pós-Graduação em Educação Agrícola, na UFRRJ –
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.
11 Referente ao Partido Social Democrático Brasileiro - PSDB

61
Fizemos um breve levantamento sobre a história educacional do povo brasileiro para
elucidar o leitor sobre as lutas sociais que existiram e ainda existem no Brasil desde a colonização,
passando pelo império e chegando a nossa república com fragilidades na democracia.
Este artigo traz um resumo sobre os principais eventos que ocorreram antes da criação
de um planejamento que tinha como principal foco a população rural que não se encontrava
inserido no contexto educacional brasileiro.

A FORMAÇÃO DO PRONERA (PROGRAMA NACIONAL DE EDUCAÇÃO


NA REFORMA AGRÁRIA) NO BRASIL

Breve histórico do PRONERA.


No Brasil, especificamente, as conquistas sociais são frutos que surgem de lutas internas
travadas entre grupos que sempre foram colocados de lado pelas autoridades. Falar sobre
educação no campo é revisitar esse passado de esquecimento e abandono de um povo que
majoritariamente fez parte da construção de nosso país.
Não obstante a isso, os anseios da comunidade rural foram relatados no I ENERA
(Encontro Nacional de Educadores na Reforma Agrária), realizado na cidade de Luziânia no
Estado de Goiás, autores como Bezerra, Neto e Santos, sobre a influência do PRONERA,
dizem:

Nesta direção a ação e atuação coletivas empreendidas pelos movimentos


e organizações sociais da classe trabalhadora do campo, universidades
públicas, instituições internacionais, organizações da sociedade civil e
órgãos do poder público podem e têm colaborado para o fortalecimento
da luta para assegurar o reconhecimento da educação para as populações
do meio rural como direito, a “educação do campo” como política pública
nacional, traduzida e materializada em programas governamentais que vem
sendo implantados em nosso país desde o final da década de 1990, mais
especificamente, após a ocorrência do I Encontro Nacional de Educadores
da Reforma Agrária (ENERA), realizado na cidade de Luziânia, Estado de
Goiás, em julho de 1997. (2016, p. 91).

Ações coletivas, como a movimentação de grupos sociais envolvidos diretamente nessas


propostas de lutas por uma educação realmente transformadoras, fazem valer suas conquistas,
quando em 1998, o governo federal lança oficialmente um programa social que contemple
verdadeiramente a parcela da sociedade camponesa realmente esquecida.
O PRONERA nasceu em 1998 da luta das representações dos movimentos sociais e
sindicais do campo. Desde então, milhares de jovens e adultos, trabalhadores das áreas de Reforma
Agrária têm garantido o direito de alfabetizar-se e de continuar os estudos em diferentes níveis
de ensino. Essa ação significa o empenho do governo brasileiro na promoção da justiça social
no campo por meio da democratização do acesso à educação na alfabetização e escolarização
de jovens e adultos, na formação de educadores para as escolas de assentamentos e na formação
técnico-profissional de nível médio e superior. Pelo PRONERA, afirma o compromisso com
a educação como meio para viabilizar a implementação de novos padrões de relações sociais
no trabalho, na organização do território e nas relações com a natureza nas áreas de Reforma
Agrária. (MANUAL DE OPERAÇÕES, 2011, p. 11)
Anteriormente ao lançamento do PRONERA, no governo de FHC, movimentos rurais
deram a tônica de como seria essas reivindicações, como escreve Costa e Lomba (2017):

O aumento das ocupações de terras provocou muitos conflitos no campo.


O governo de Fernando Henrique Cardoso estabeleceu, então, o Plano

62
de Reforma Agrária em 1995, cuja finalidade definida no documento,
era assentar duzentas e oitenta mil famílias, mas ao lado disso, o Estado
também atendia aos interesses dos latifundiários, aumentando os conflitos
com os trabalhadores rurais, principalmente, os sem terra, uma vez que o
referido plano não conseguiu atingir a meta estabelecida (p. 227).

Notamos que os habitantes do campo na década de 1990 não estavam mais tendo tanta
cumplicidade com as autoridades, em outras palavras, a luta fica mais intensa após a chegada
ao poder de um governo neoliberal que não escondia de ninguém que iria adotar um tipo
de governo que iria priorizar o agronegócio e as privatizações iniciadas ainda no governo do
afastado Fernando Collor de Melo (1990-1992) em detrimento do povo do campo.
Outra questão a salientar a respeito da citação acima é que além da política da reforma
agrária não ser atendida e, diga-se de passagem, nunca foi, apenas acirrou os ânimos de todos os
envolvidos. No Brasil, nunca tivemos reforma agrária e sim práticas reparadoras, que inclusive o
próprio PRONERA é um exemplo destas políticas que visam amenizar os problemas e não os
resolver de fato.

Lembramos que o PRONERA foi uma conquista, resultado da pressão


dos movimentos sociais e sindicais, que já conta com 17 anos sob
responsabilidade do INCRA. Enquanto política pública possibilita a
participação da sociedade civil organizada na articulação da demanda
e na discussão do projeto pedagógico do curso. (MANUAL DE
OPERAÇÔES, 2017, p. 9).

Em destaque, podemos comentar a respeito do massacre de El dourado dos Carajás no


estado do Pará no dia 17 de abril de 1996, no qual 19 trabalhadores rurais foram assassinados por
latifundiários. Mortes essas relacionadas com a exigência por parte da população de melhores
condições de vida num modo geral. Historicamente sabemos que fatos como esse são mais
corriqueiros que podemos imaginar. Foram 155 policiais envolvidos diretamente nesse conflito,
todavia apenas dois militares foram condenados e após 25 anos do acontecimento citamos a
reportagem abaixo.

Medo. A sensação sufocante, combinada com as lembranças, persiste 25


anos depois. Raimundo dos Santos Gouveia e Maria Zeuzuíta Oliveira de
Araújo são sobreviventes de um dos mais sangrentos episódios da história
brasileira contemporânea: o massacre de Eldorado dos Carajás.

Em 17 de abril de 1996, Gouveia e Zeuzuíta eram alguns dos integrantes


do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) que ocupavam
a chamada curva do S, na BR-155, na região Sudeste do Pará. Protestavam
contra a demora da reforma agrária na região. Ali, viram a execução de 19
pessoas e sofreram pela morte de outros dois companheiros no hospital.

A luta de Gouveia e Maria Zeuzuíta era por direitos. Pleiteavam a


desocupação de um latifúndio improdutivo, a fazenda Macaxeira, para
transformar em roça para a família. E apesar do clima tenso que já havia
na área, foram surpreendidos por uma tropa de 155 policiais militares que
chegaram atirando. (Agência Brasil, 2021.)

Atualmente o senhor Gouveia possui própria roça no estabelecimento chamado 17 de


abril, dona Zeuzuita também está assentada na mesma área e trabalha como cozinheira na escola
Oziel Alves Pereira; dentro do assentamento conquistado sobre os seus sonhos, ela retrata que
muitos foram interrompidos devido aos assassinatos cometidos por esses criminosos. Ainda
sobre a chacina no Pará em 1996 e a sua contribuição para a criação de um planejamento próprio
para a educação agrícola no Brasil, Diniz e Lerrer (2018) observam:

63
Ocorrido no dia 17 de abril de 1996, que tiveram alcance internacional.
Esse contexto de grande visibilidade pública do descaso do Estado para
com as políticas agrárias e de violência no campo favoreceu a criação
do PRONERA e também do próprio Programa de Fortalecimento da
Agricultura Familiar (PRONAF), criado por um decreto assinado pelo
presidente FHC dois meses depois do massacre que resultou no assassinato
de 19 sem-terra em uma rodovia do Pará pela Polícia Militar daquele
estado2. O PRONERA nasce da grande visibilidade da luta pela terra e
pela Reforma Agrária no país, protagonizada por diferentes movimentos
sociais, mas com grande destaque do MST e de docentes e pesquisadores
vinculados a universidades federais brasileiras. É a partir desse contexto que
o PRONERA vem contribuindo para a inclusão no cenário educacional
do país de uma nova modalidade de pensar a educação em suas práticas e
finalidades, ou seja, ao materializar a educação do campo como política
pública aplicada via gestão participativa por parte do público que delas
fará uso e, assim, colocando uma nova ordem do discurso para as práticas
da gestão pública no interior do Estado e ampliando as possibilidades dos
espaços em que se podem figurar práticas de democracia participativa – na
sociedade civil e no interior do próprio Estado. (p. 4).

Sobre a dificuldade de colocar o PRONERA para acontecer, Costa e Lomba (2017),


citam:

Na fase de implantação, o Pronera enfrentou dificuldades na liberação de


recursos financeiros para que as turmas iniciassem as aulas, mas a pressão
dos movimentos sociais e a intensa mobilização nos assentamentos
contribuíram para dar início aos projetos de Educação de Jovens e Adultos
(EJA). Além disso, enfrentou-se inúmeras divergências de interesses
políticos. (p. 227)

Observamos que no início da criação do programa e com essa citação acima, sempre
ocorreram inúmeras desconfianças para a realização do projeto, basta lembrar também que foi
idealizado durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, que outrora se definia como
um militante da esquerda e durante os seus dois mandatos presidenciais se caracterizou por ser
adepto do neoliberalismo das escolas inglesa e norte-americana. A chegada efetiva do programa
se dá através de uma portaria realizada em 1998, como escreve Diniz (2015):

O PRONERA foi regulamentado em 16 de abril de 1998, por meio da Portaria Nº.


10/98 vinculado ao extinto Ministério de Política Fundiária e posteriormente transferido
para o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), para viabilizar
a regionalização. Definido como programa do governo federal para promover ações
educativas nos assentamentos de reforma agrária. Interessou-me investigar a maneira em
que o PRONERA, por meio de gestão participativa, vem regulamentando a participação
dos movimentos sociais do campo ao longo dos seus 17 anos de existência. Ou ainda,
se a participação dos movimentos sociais parceiros está institucionalmente garantida no
âmbito da regulamentação do programa. (p.1).

Detectamos uma organização dentro da proposta bastante interessante, pois a princípio


entendemos que grande parte da comunidade seria contemplada com essa portaria, contudo é
fato que em muitas regiões brasileiras o programa ainda não passa de uma utopia. Ressaltamos
neste trabalho que ao longo de sua existência o PRONERA apresentou cinco manuais de
normalização para sua aplicação no Estado Brasileiro, como escreve Diniz (2015):

Ao longo de sua atuação o PRONERA contou com 5 (cinco) Manuais normalizadores.


O primeiro editado no ano de sua criação, 1998. O segundo publicado no ano de
2001 em função de sua incorporação ao INCRA. O terceiro, data do ano de 2004, e
foi marcado pela ampliação do programa O quarto manual foi publicado em 2011 em
atendimento às determinações do TCU fruto de ações judiciais contra o programa, bem

64
como as atualizações legislativas que instituiu e regulamentou o PRONERA como uma
política pública de educação do campo. O quinto foi reeditado no ano de 2014 numa
versão abreviada do Manual (2011. p. 3-4).

Para este projeto, resolvemos não nos ater aos cinco, mas sim aos manuais de 1998, cujo
foi a portaria que criou o objeto de nosso estudo, e o de 2011 que por sua vez transformou-o em
política de Estado. Diniz (2015) sobre esta portaria de 2011 coloca:

De um modo geral o Manual de 2011, em relação aos anteriores, tem o


mérito de explicitar a história e os resultados auferidos pelo programa
até o ano de 2010. Contudo, mudanças legais tais como o Acórdão
TCU – Plenário n.º 3.269/2010 e o Decreto n.º 7.352/2010 que institui
o PRONERA como uma política pública para educação do campo;
ampliando a caracterização dos povos do campo trouxeram novidades
quanto a dois itens do Manual: o da operacionalização e do capítulo
segundo que trata dos projetos atendidos pelo PRONERA e dos seus
critérios de aprovação.
O item que trata da operacionalização do PRONERA faz referência ao art.
14 do Decreto 7.352/2010 que institui que os instrumentos de execução
das ações do programa a ser celebrado junto ao INCRA ocorrerão na
modalidade contrato, convênios, termo de cooperação e deixa em aberto
outras possibilidades de instrumentos que couber às instituições de ensino
públicas e privadas sem fins lucrativos, bem como órgãos e entidades
públicas. (p. 13)

Necessário salientar que essa portaria torna uma obrigatoriedade as parcerias públicas
privadas, todavia, como uma observação crítica, devemos citar que o PRONERA tinha que
estar em uma atmosfera totalmente pública, pois entendemos que esse tipo de acordo pode
beneficiar alguns grupos e segregar outros, principalmente àqueles que são excluídos a tempos
em nosso país.
Logicamente que oferecer educação para um povo ávido por mudanças sociais não iria
cair bem para alguns governantes, pois muitas críticas apareceram durante o início da educação
verdadeiramente do campo. É sabido por todos nós que muitos políticos são latifundiários e
que um povo letrado começaria a atrapalhar seus status quo. Por isso, várias brigas políticas
aconteciam devido à falta de recursos para a realização do projeto e que o país deveria ter outras
prioridades.
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva chega ao poder após três tentativas (1989,
1994, 1998) de se tornar presidente da República Federativa do Brasil. Ainda com bastante
desconfiança de boa parte da sociedade brasileira, Lula inicia com programas voltados para
diminuir a pobreza em nosso país. A educação no campo é uma conquista das comunidades que
sempre sofreram injustiças no Brasil. A luta é árdua demais, segundo Santos (2013):

A educação do campo é uma conquista dos movimentos sociais e o reconhecimento


identitário é fortalecido nessa conjuntura de novos embates, de participação,
experiências e cooperação, rompendo com o tradicional isolamento e individualismo
imposto pela sociedade neoliberal. Essas experiências podem ser transformadas em
ferramentas de lutas na implementação das diretrizes nacionais por uma educação do
campo. Importante ressaltar que esses embates e lutas políticas são essenciais, quando
possibilitam aos envolvidos, o ser sujeito da própria história, criando e recriando espaços
de reconhecimento e resistência. (p. 6)

A educação no campo como conquista social reflete a necessidade dos grupos que
necessitam de uma atenção especial, as lutas políticas e sociais travadas por pessoas imbuídas
em realizar a melhora não só individualmente, mas também a melhora de um grupo de um
povo que necessita de atenção. A escola rural é sem dúvida a maior exclamação de uma classe tão
subtraída de atenções dos governos brasileiros. Ser o agente de sua própria história é reconhecer

65
a importância da educação na formação de qualquer cidadão, e o rural é por si só um grande
espaço de resistência contra o sistema. Diniz e Lerrer (2018) corroboram:

A história das políticas públicas no Brasil foi marcada pela ausência


da participação, da proposição e da consulta às reais necessidades do
público atendido ou por iniciativas exclusivas do Estado com o fito de
manter o privilégio de setores sociais específicos, reforçando o seu caráter
oligárquico. (p.270).

Visto que antes de uma lei específica sobre a educação no campo, o governo nunca atentou
de fato para uma questão tão importante, parece que as autoridades esqueceram que o Brasil
surgiu do agrário e que a urbanização / industrialização são relativamente recentes em nosso
país. Em relação ao passado de esquecimento da educação e na formação de educadores em áreas
rurais, Molina e Rocha (2014) definem:

De 1940 a 1970, observa-se o que Paraíso (1996) denomina de “campo


do silêncio” nas políticas públicas e na produção acadêmica no que diz
respeito à educação escolar e à formação docente no contexto rural. É
importante registrar que exatamente nesse período, eram implantadas
as políticas “modernizadoras” da agricultura. A concentração de terras,
o crédito para grandes empreendimentos, a mecanização das práticas
agropecuárias e a implantação de todo o pacote associado à chamada
“Revolução Verde” ampliavam seus índices na mesma medida em que se
configurava o cenário de precariedade física, administrativa e pedagógica
das escolas rurais. (p. 240).

Ainda sobre resistência na educação do campo, incluímos o fato de que sempre os


movimentos serão contestados pela elite brasileira, pois, as junções de grupos minoritários
chamarão atenção deste grupo exclusivista, e historicamente também são marginalizados por
aqueles que detêm o monopólio financeiro. SANTOS (2013) faz uma importante análise sobre
esse fato, com sabedoria quando escreve:

A conquista da educação do campo pelos movimentos sociais é um projeto


em disputa pela hegemonia, e inscreve-se como um dos componentes
indispensáveis de estratégia das forças políticas em luta pelo alargamento
da democracia na sociedade brasileira, nos campos e cidades. (SANTOS,
2013, p.9).

A história da educação urbana e principalmente do campo brasileiro está marcada pela


truculência e/ou violência dos grupos mandatários. Em relação a alguns conflitos que ganharam
destaque na mídia, Costa e Lomba (2017) complementam:

Entre os conflitos que marcaram esse período, os massacres de Corumbiara,


estado de Rondônia (1995) e de Eldorado dos Carajás, no Pará (1997),
ganharam notoriedade devido à forte violência contra trabalhadores do
campo e isso conduziu o governo a criar o Ministério Extraordinário de
Política Fundiária. (p. 227).

O massacre de Corumbiara vitimou 12 pessoas, 9 destas eram assentadas, 2 militares e


um homem que não foi identificado, descaso ficou conhecido mundialmente e foi uma guerra
travada entre as forças do estado Rondônia contra um grupo de pessoas que lutavam para
conseguir sua terra, ao todo eram 18.000 ha, e foi ocupada no dia 15 de julho de 1995; esse
grande conflito completou 27 anos. Foram 194 policiais militares contra aproximadamente
2.300 pessoas. Desde 2011 tramita na Câmara dos deputados, em Brasília, um projeto de lei (PL

66
2000/11) que tem como principal função avaliar a situação e conceder anistia aos trabalhadores
rurais punidos no episódio de 1995, entretanto, em 2013 o texto foi aprovado pela Comissão de
Constituição e Justiça (CCJ) mas não avançou e segue na fila para ser votado pelos constituintes.
Ainda em vinculação à educação no campo que juntamente com o PRONERA, nosso
maior foco deste estudo, pode considerar-se um grande avanço social, criado também para ajudar
a combater esse tipo de situação de extrema violência que camponeses são tratados no Brasil,
diante disso, com a mídia divulgando essas notícias, não restou as autoridades em conceber o
Ministério exclusivo para uma política fundiária.
Os anos de 1980 e 1990 foram marcados por muitos ataques às comunidades rurais.
Tivemos e temos um panorama bastante difuso no Brasil, e em se tratando do ensino público
isso fica bem mais latente, como afirma Jesus (2015):

No Brasil, a luta pela educação pública de qualidade tem sido uma


constante, pois a crise da educação é na realidade a crise da instituição
pública em meio a um processo violento de privatização na “oferta” dos
serviços, conjugado com o processo de concentração de riquezas nas mãos
de poucos. (p. 168)

Importante também é reconhecer que a educação no campo não pode possuir uma definição
comparada com as escolas urbanas, o espaço rural navega por suas próprias especificidades, e
deve ter um capítulo especial por aqueles que cuidam da formação e letramento da população.
Para Caldart:

Pelo nosso referencial teórico, o conceito de educação do campo tem raiz


na sua materialidade de origem e no movimento histórico da realidade a
que se refere. Essa é a base concreta para discutirmos o que é ou o que não
é Educação do Campo. Educação do campo é um conceito em movimento
como todos os conceitos, mas ainda mais porque busca apreender um
fenômeno em fase de constituição histórica; por sua vez, a discussão
conceitual também participa deste movimento da realidade (CALDART,
2008, p. 69 – 70).

Ainda sobre o reconhecimento do rural como espaço de criação de conhecimento e


espaço democrático de pensamento, entendemos:

A democratização do acesso ao conhecimento é também reconhecida


pela Educação do Campo como uma questão estratégica, por considerar
que o conhecimento potencializa as classes populares na busca por
alternativas de vida mais digna e humana. Entretanto a luta pelo acesso ao
conhecimento não pode está separada do debate sobre que conhecimentos
são considerados necessários conhecer, quem tem interesse na socialização
de determinados conhecimentos, quem está produzindo tal conhecimento.
(CARVALHO; SANTOS, 2014, p. 6).

Entendemos que os governos Lula obtiveram ganhos substanciais no que tange a educação
no campo, mesmo assim, níveis de crimes às pessoas no ambiente rural tiveram um salto em
relação aos anos anteriores no Brasil, separamos outros dados que embasam os problemas
encontrados nas escolas e regiões rurais:

Quanto à violência, o número de assassinatos recuou em 28, em 2008,


para 25, em 2009. Outros indicadores, porém, cresceram, alguns
exponencialmente. As tentativas de assassinatos passaram de 44, em 2008,
para 62, em 2009; as ameaças de morte, de 90, foram para 143; o número
de presos aumentou de 168, para 204. Mas o que mais choca é o número
de pessoas torturadas: 6, em 2008, 71, em 2009. O número de famílias
expulsas cresceu de 1.841, para 1.844, e significativo foi o aumento do

67
número de famílias despejadas de 9.007, para 12.388, 36,5%. Também
elevou-se o número de casas, de roças destruídas 163%, 233%. Em 2009,
registrou-se 9.031 famílias ameaçadas pela ação de pistoleiros, contra
6.963, em 2008, mas de 29,7%. (CANUTO; LUZ; GONÇALVES,
2010).

Interessante é que também atentamos a inquietação social das camadas tidas como
“inferiores” com o desprezo que sempre foram julgadas nesse país. Com o passar dos anos e
a chegada de mais pessoas de origem humilde na política brasileira, ficou notório que novos
estudantes chegariam às salas de aulas e iriam se levantar contra esse erro. Dansa, Freitas e
Moreira (2016, p. 207) escrevem: O que incomoda essas pessoas é o tratamento agressivo e jocoso
que a sociedade lhes reserva, assim como a ausência de valor social que acompanha sua condição e a
exclusão de processos que exigem a leitura e a escrita. Pessoas pobres tendem a incomodar o status
quo que essa nação, desde os tempos coloniais, proporcionou aos despossuídos: o não acesso à
terra.
Ainda hoje, observamos que o acesso à terra tem sido algo bem distante da maioria da
população rural, e que causa calafrios nos latifundiários brasileiros. É preciso realizar em nosso
país uma política veemente com foco em “desmarginalizar” o pequeno produtor brasileiro com
informações em mídias que se preocupam em ofertar a verdade para seu público. Atualmente as
Fake News ganharam espaço em nossa realidade e estão cada vez mais fortes.
Em nosso entendimento, as propostas educacionais perpassam por esses caminhos, ou seja,
de informações que coloquem os brasileiros como atores de suas vidas exercendo a democracia
com toda a responsabilidade possível.

Considerações finais

A proposta de educação no campo brasileiro nunca foi desenvolvida pelo Estado de


forma assertiva, pois, em se tratar da educação num todo, observamos falhas enormes com
esse assunto. No Brasil, a população campesina sempre encontrou dificuldades para conseguir
obter um diploma devido a fatores estruturais como as longas distâncias até a escola, falta de
transporte, falta de alimentação, escassez de professores ambientados com a realidade rural.
A criação do PRONERA em 1998 objetiva a superação de todos os empecilhos citados
acima e outros que pudessem aparecer. Com uma proposta definida para os habitantes de longe
dos centros urbanos, o programa seria o dínamo necessário para a ampliação do acesso à escola e
às informações que só a educação é capaz. A democratização do ensino se tornaria uma verdade
irrefutável em nosso país.
Antes da nossa última Constituição federal tivemos outras sete constituições, seis delas na
já na fase republicana e uma em 1824, quando obtivemos a nossa aguardada independência junto
a Portugal e o Brasil se transforma exatamente numa espécie de cópia de sua antiga metrópole.
Forma de governo monárquica, economia agroexportadora, manutenção da escravidão aliada a
falta de participação do povo na esfera política e/ou melhorias sociais.
Logo, com essas nuncias não conseguimos enxergar dentro do plano de governo uma
estratégia eficaz para traçar um planejamento que possa contemplar a educação brasileira.
A primeira Carta Magna que citou mais diretamente a questão educacional foi a de
1934 durante o segundo governo de Getúlio Vargas. Por ela, tornava dever do Estado garantir
a educação básica em escolas públicas, todavia, jamais relatou como a população rural iria se
beneficiar dessa lei. Sabemos que nossa nação, surgiu dos ambientes rurais e somente nos anos
de 1970 é que a população das cidades passou a ser maior do que a do campo.
Infelizmente nossa educação por vezes foi atrelada a questões políticas, e letrar com muitas
informações um povo pode acarretar futuros problemas para a classe dominante, uma vez que

68
pensadores são questionadores e questionar é causar temor.
Assim esperamos que nos próximos anos a educação possa atender de forma real todos,
sem exceção, independentemente do governo federal que estiver cumprindo seu mandato,
exigimos que se façam cumprir as obrigatoriedades tanto nas zonas urbanas quanto no campo,
uma vez que sabemos, sempre foi esquecido em nossa república.

69
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RODRIGUES, Sônia da Silva. A gestão do PRONERA no Estado de São Paulo a partir do


curso da Pedagogia da terra. III Seminário de estudos e pesquisas de educação no campo, V
Jornada de Educação especial no campo, XIII Jornada Histerdbr. UFSCAR. São Carlos. 2015.

71
CAPÍTULO 6 - INTERFACE ENTRE EDUCAÇÃO DO CAMPO E
EDUCAÇÃO POPULAR

Marcus Gabriel Inácio de Freitas12


Ramofly Bicalho13

Resumo

A presente pesquisa está caracterizada pela abordagem sobre as conexões entre a Educação
do Campo e a Educação Popular e tem como principal objetivo a discussão sobre os marcos
históricos, seus conceitos, metodologias, políticas públicas, as pedagogias que envolvem estes
importantes projetos, com vistas na busca por meios que levem às possibilidades da Educação
de qualidade e libertadora, apontando definições sobre a verdadeira educação emancipadora,
participativa, democrática e aplicável socialmente, de modo a justificar os debates, tendo como
metodologia a pesquisa bibliográfica e a busca em documentos com características qualitativa,
para finalmente considerar que a formação do sujeito, na perspectiva emancipadora, confunde-
se com os processos de formação nela presentes, de modo que os sujeitos nela envolvidos sejam
capazes de apresentar pensamentos e reflexões sobre suas decisões, construindo outros meios
para adaptar suas ações às diversas realidades sociais.

Palavras Chaves: Educação do Campo - Interface - Educação Popular

Introdução

A educação do campo é um conceito ainda em desenvolvimento, que remete à realidade


do Brasil atual, realizada pelos trabalhadores rurais e suas organizações, que visam influenciar
a política educacional no interesse social das comunidades carentes. O reconhecimento
institucional do termo educação do campo é visto nas discussões realizadas no âmbito das
Diretrizes Operacionais da Educação Básica nas Escolas do Campo (BRASIL, 2001), que
respeitam o trabalho das organizações de agricultores e sindicatos relacionados à educação do
camponês. A educação é entendida como todos os processos sociais de formação de pessoas
como sujeitos de seu futuro, relacionados à cultura, aos valores, no modo de produzir a formação
profissional e a participação social.
Em 2010, foi instituído o Fórum Nacional de Educação do Campo (Fonec), em um esforço
para reiniciar a referida ação de diversos órgãos públicos, sindicatos e outras instituições, agora
enfatizando a ampla participação de universidades e instituições públicas de ensino. À época,
a publicação do Decreto nº 7.352, de 4 de novembro de 2010, sobre a política de educação do
campo e o Pronera, foi aceito como um sucesso pelas organizações do fórum, como ferramenta
que impulsiona a mudança na situação da educação. A luta das organizações sociais do campo,
da silvicultura e da água teve resultados diversos, inclusive na educação do campo.
Dentre elas, podemos listar três políticas públicas: Programa Nacional de Reforma
Agrária (Pronera), em que Cursos avançados em diversas áreas do conhecimento são oferecidos

12 Professor licenciado em educação do campo pela UFRRJ


13 Professor Associado III na UFRRJ - Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Campus Seropédica.
Lotado no Departamento de Educação do Campo, Movimentos Sociais e Diversidade. Docente na Licenciatura em
Educação do Campo, no PPGEA – Programa de Pós-Graduação em Educação Agrícola e no PPGEduc – Programa
de Pós-Graduação em Educação, Contextos Contemporâneos e Demandas Populares. Atua com as seguintes
temáticas: Políticas Públicas de Educação do Campo, Movimentos Sociais e Educação Popular. E-mail: ramofly@
gmail.com

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em colaboração com universidades públicas. Programa de Residência Agrária (PRA). Cursos
especiais para formação de agrônomos para trabalhar com a agricultura familiar. Programa de
Apoio ao Ensino Superior em Cursos de Educação do Campo (Procampo). Programa Nacional
de Educação do Campo (Pronacampo), ou seja, um conjunto de ações que garantem a melhoria
da qualidade do ensino nas redes existentes.
Assim, na educação do campo, o campo torna-se o lugar de vida e resistência dos
camponeses, que lutam para ter acesso e viver na terra, lugar de produção material e simbólica
das condições de vida e de construção da identidade. Nesse caso, busca-se uma educação que
possa ser construída e uma temática rural, considerada como um direito que advém de certos
detalhes e do contexto de seus estudos, que é considerada uma formação humana em todos
os seus sentidos sociais, culturais e econômicos. Para isso, o conhecimento científico deve ser
discutido com o conhecimento popular e os métodos de produção dos agricultores. Sem esse
diálogo nas propostas educativas, não é possível desenvolver uma educação pertinente à situação,
o que acaba dificultando que os sujeitos pensem sobre sua cultura, seus saberes, seus modos de
vida.

Desenvolvimento

Paulo Freire, pesquisador e grande pensador no campo da educação, nascido em Recife-


PE, deu uma grande contribuição ao campo da educação ao propor uma nova forma de ensinar
e aprender. Sua proposta incluía trabalhar com palavras e temas gerados a partir das experiências
e da história dos próprios alunos. O estudo desta palavra estava diretamente relacionado ao
estudo de uma pessoa sobre o mundo. Essa estratégia de ensino incluiu uma coleção de livros e
reflexões que levaram alguns pesquisadores a chamá-la de método Paulo Freire. Esse professor
também se preocupava com a verdade de seus alunos, e o ensino poderia ajudá-los a melhorar
sua própria situação. Por isso, seus saberes (conhecimentos trazidos pelo próprio aluno) devem
ser respeitados e, a partir deles, devem ser construídos e reconstruídos diferentes saberes.
Ou seja, para Paulo Freire, não há mais consciência ou menos consciência; eles têm
informações diferentes. Esse pensamento possibilitou a criação e o desenho de um método
de educação popular que, ao mesmo tempo, é um conceito teórico-prático e um método de
educação que revela saberes e processos diferenciados, a importância da cultura e dos direitos
humanos e o compromisso com o diálogo e o protagonismo das classes populares nas reformas
sociais. Antes de entrar nos espaços institucionais, integrou-se como ferramenta criada no
campo da organização e das lutas populares no Brasil, responsável por muitos avanços e sucessos
em nossa história.
Mas afinal de contas, o que isso tem a ver com a educação do campo? Neste sentido, é
importante destacar que a discussão sobre a educação do campo não é nova, mas abre caminho
para abordar o modelo de educação colocado no campo como forma de oposição à educação
do campo, que se dá aos agricultores ao longo da história do Brasil. Esta é vista como uma
extensão da educação urbana, considerada na perspectiva desenvolvida em outro contexto social
e cultural, político, econômico e histórico, com um currículo desvinculado da cultura, valores,
princípios e conceitos dessa população. Portanto, a educação do campo parece contradizer toda
essa ideia, apontando para a criação de um novo paradigma.
O agricultor pensa o campo como um lugar de vida e resistência, rico e com muitas
oportunidades, desenvolvimento social, econômico e cultural, o que faz com que seus sujeitos
queiram se afirmar como sujeitos de direito, lutando por políticas públicas, ao que, para Martins
(2009), as políticas da chamada “educação rural” sempre foram voltadas para a articulação com
o emprego rural no país. Dessa forma, o conteúdo da educação do campo está a serviço do
projeto agrícola e do campo, onde a máquina e a introdução do controle químico das plantas
são os principais fatores que prejudicam as condições de vida das pessoas (p.07).
Uma ampla discussão sobre a educação no campo brasileiro foi promovida pelo Programa

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Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera), em 1998, com o debate e amadurecimento
de um contraponto de natureza e conteúdo, denominado Educação do Campo no Brasil. Vale
destacar que a frase “Educação do Campo” apareceu na elaboração da Conferência Nacional de
Educação Básica do Campo em 1998, e foi confirmada e aprovada nas discussões da Conferência
Nacional de Educação do Campo, em 2004. Os personagens dessa conferência eram trabalhadores
rurais e suas organizações, voltadas para o movimento de educação popular de Paulo Freire e as
lutas sociais da classe trabalhadora rural (II CNEC, 2004). A educação do campo é um conceito
ainda em desenvolvimento, que remete à realidade do Brasil atual, realizada pelos trabalhadores
rurais e suas organizações, que visam influenciar a política educacional no interesse social das
comunidades carentes.
Falar em educação popular sem falar em Paulo Freire, independentemente dos valores
atribuídos a tantos outros autores e protagonistas dessa modalidade de educação, é quase tornar
sem efeito qualquer trabalho científico ou não. Vale dizer que as buscas realizadas, no sentido de
tornar efetiva a presente pesquisa, não mostrou outro caminho a partir do qual teria se originado
tal debate, senão a partir da implementação pela busca da valorização do conhecimento originário
do povo brasileiro, ao mesmo tempo, denominando-os de educação pelo patrono desta.
Entende-se, portanto, que Paulo Freire moveu uma alavanca para tornar pública, notória
e efetiva toda sabedoria ocultada por uma cortina de fumaças que o camponês, o ribeirinho, o
pescador, os quilombolas, os povos nativos, assim como tantas outras comunidades e as diversas
regiões do país, detém, inclusive, com potencial de transmissão e ensinamentos, para outros
seguimentos da sociedade, tais como: engenheiros, advogados, professores, políticos, médicos,
juízes, servidores de quaisquer unidades da federação. Sobre essa perspectiva, o renomado mestre
Carlos Rodrigues Brandão, ao lembrar Paulo Freire, em sua grandiosa obra: PAULO FREIRE
O MENINO QUE LIA O MUNDO uma história de pessoas, de letras e de palavras, assim se
refere:

Ora, toda a criança que um dia fica “grande” e vira “uma pessoa adulta”,
carrega pela vida afora a menina ou o menino que ela foi antes. E pela
vida afora a gente esquece tanta coisa! Será que esquece mesmo, ou será
que “aquilo esquecido” fica apenas guardado em algum lugar da gente,
esperando o lugar e a hora de voltar, de ser lembrado de novo? De ser
vivido outra vez, revivido? Mas quem é que consegue esquecer a criança
que foi um dia? Quanta saudade do “menino Paulo” o Paulo Freire
professor haveria de sentir, para falar desse jeito. Para falar de bichos e de
mangueiras, quando o que ele queria mesmo era contar por escrito como
foi que ele aprendeu a ler as palavras ante de ir para a escola! Vejam bem.
Como é que Paulo Freire lembra os lugares onde ele foi criança? (p. 06).

Portanto, sabe-se que sem os ideais e as propostas apresentadas por Freire, poucas seriam
as contribuições para o campo da educação, não obstante as contribuições também propostas
e efetivadas, por tantos outros autores, entre eles, Brandão (2006), Fávero (1983) e Beisiegel
(1974). Em belíssimo trabalho denominado “Entre um século e o outro a cultura e da educação
popular desde os anos sessenta até os dias de hoje” Carlos Rodrigues Brandão, ao se referir a
“um pesquisador finlandês” que chega ao Brasil em 2000 com o objetivo de pesquisar sobre a
educação, assim se expressa:

Chegando aqui em julho de 2000 e iniciando um trabalho de busca de


livros e de artigos a respeito o seu espanto haveria de aumentar bastante.
Depois, indo de visita a educadores e a estudiosos da educação com
entrevistas programadas e horários marcados, ele acabaria por descobrir
que o nome escrito em livros e em artigos, sugerindo algo tão importante,
tão presente e, mesmo hoje em dia, tão atual, não correspondia a siglas ou
a títulos colocados em programas de estudos ou sobre a porta de salas de

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faculdade de educação de seus departamentos, e mesmo de algum curso.
Estas duas palavras: educação popular não correspondia sequer a alguma
disciplina perdida em algum currículo de curso, a não ser, aqui e ali, em
raros momentos de exceção. (p. 02).

Para o grande pesquisador e atual patrono da educação brasileira, uma educação inovadora
tanto para o ensino como para tornar efetiva a aprendizagem, necessário se faz considerar,
valorizar e ouvir as palavras e as temáticas trazidas pelos alunos, a partir de suas histórias,
práticas e vivências. Neste sentido, a leitura e o conhecimento do mundo, antecede a leitura e o
conhecimento da palavra, tornando então melhor as condições de vidas dos estudantes, a partir
do ensino baseado em suas realidades, bem como o compartilhamento dessas realidades que
cada um traz, ao que nas palavras de BRANDÃO (2005), assim define:

Daquele contexto faziam parte igualmente os animais: os gatos da família,


a sua maneira manhosa de enroscar-se nas pernas da gente, o seu miado,
de súplica ou de raiva; Joli, o velho cachorro negro de meu pai, o seu
mau humor toda a vez que um dos gatos incautamente se aproximava
demasiado do lugar em que se achava comendo e que era – “estado de
espírito” o de Joli, em tais momentos, completamente diferente do de
quando quase desportivamente perseguia, acuava e matava um dos muitos
timbus responsáveis pelo sumiço de gordas galinhas de minha avó. Daquele
contexto – o do meu mundo imediato – fazia parte, por outro lado, o
universo da linguagem dos mais velhos, expressando as suas crenças, os
seus receios, os seus valores. (estes escritos do professor Paulo Freire estão
nas páginas e3 e 14 do livro) p.05.

Logo, os valores se entrelaçam tornando-os conexos, valorizados, senhores de seus próprios


conhecimentos que a tal cortina de fumaças pretende e até esconde, tornando-os invisíveis,
mudos e/ou ignorantes, à margem de sua dignidade e autoestima. Então, para o grande mestre,
“não há saber mais ou saber menos; são saberes diferentes”. Então, afinal de contas, o que será
a educação popular, baseada no método Paulo Freire? para os autores/organizadores do livro
“Metodologia do Trabalho Científico e Popular” CEGRAF UFG 1ª edição Goiânia, 2020:
Amone Inácia Alves; Karla Emmanuela Ribeiro Hora e Katia Alcione Kopp

A educação popular a um só tempo é uma concepção prático-teórica e


uma metodologia de educação que articula os diferentes saberes e práticas,
as dimensões da cultura e dos direitos humanos e o compromisso com o
diálogo e o protagonismo das classes populares nas transformações sociais.
Antes de inserir-se em espaços institucionais, consolidou-se como uma
ferramenta forjada no campo da organização e das lutas populares no
Brasil, responsável por muitos avanços e conquistas em nossa história (P.
14).

Feitas algumas considerações acerca da educação popular, a busca agora será no sentido
de como essa modalidade de educação dialoga ou se conecta com a educação do campo. Neste
seguimento, importante entender que os sujeitos e o objeto do estudo é a população do campo
no sentido amplo, porque nessa população, estão os camponeses, os ribeirinhos, os quilombolas,
os nativos, sem terras, comunidades tradicionais e tantos outros, alcançados pelos movimentos
sociais, da mesma forma em sua total amplitude, o que vale dizer, alcançando florestas, rios,
águas e até mesmo o sertão, na busca pelos direitos, igualdades e justiça social que lhes foram
negados por séculos.
Essa população, alvo fácil do sistema opressor, por consequência, posta à margem e
excluída da sociedade ao longo da história tornou-se o marco principal das discussões sobre a
educação popular, portanto inerente a ela, desde seus nascimentos e que passa dos ascendentes

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aos descendentes mas como dito antes, desprezada, desvalorizada e até mesmo ridicularizada, e a
educação do campo que surge a partir dos movimentos sociais para tornar efetiva uma educação
com suas especificidades e o mais importante, dirigida à população do campo dando visibilidade
aos conhecimentos, práticas, linguagens, usos e costumes, de acordo com cada povo e região,
tornando aquilo que a sociedade dominante denominou ao longo da história de atraso e de
pouco valor, algo de sucesso, valores e conhecimentos que hoje extrapolam as fronteiras do pais,
o que tornou-se possível, a partir da educação, antes negada sendo vista como discriminação
da população do campo, ao que LEITE (1999), assim nos ensina: “(...) elitismo acentuado
do processo educacional aqui instalado pelos jesuítas e a interpretação político-ideológica da
oligarquia agrária, conhecida popularmente na expressão gente da roça não carece de estudos.
Isso é coisa de gente da cidade” (p. 14).
Esse desrespeito aos direitos, a igualdade e por consequência a exclusão do sujeito do
campo por iniciativa das classes dominantes geraram a degradação de toda estrutura das escolas
com base no meio rural gerando perdas incalculáveis, sem reversão, não obstante os esforços
no sentido de “plantar” no campo, os conhecimentos adquiridos nas cidades sem considerar,
portanto, as especificidades de cada lugar, bem como das comunidades tradicionais, dos povos
ribeirinhos, dos quilombolas e demais habitantes no meio rural, o que levou às iniciativas
dos movimentos sociais para buscar mudanças significativas com foco à construção de uma
modalidade de educação que levasse em consideração todos os valores, conhecimentos e
práticas dos povos do campo, a partir daquele contexto em que a educação popular, a partir
das propostas freireana dos anos sessenta, tornar-se a base dos debates, na busca de valorizar a
cultura, promovendo políticas públicas junto aos movimentos e aos sujeitos da opressão, ou seja:
pelo “fato de nos anos 60, os movimentos de educação popular e, especificamente a educação
de Paulo Freire, focar como centro de debate a cultura e o engajamento ético-político com os
segmentos sociais oprimidos” (OLIVEIRA, 2015, p.20).
Dessa forma, percebe-se que a conexão entre a educação do campo e educação
popular decorre da união social organizada dos povos, bem como a mobilização no sentido
de fortalecimento de uma educação que atenda aos anseios de todos e de qualidade, além de
específica, independentemente do lugar onde quer que ocorra mas que considere os sujeitos do
campo detentores de direitos e obrigações correlatas, construindo formação digna que tenha
como bandeira a igualdade e a justiça social, além dos direitos inerentes à cidadania e, neste
mesmo sentido, entende-se que a educação popular possui bases que são correlatas, portanto
ativas na educação do campo, tornando-se sólida a relação entre as duas modalidades de ensino,
quer seja praticando ou teoricamente falando, e o marco dessa relação decorre de lutas no/do
campo e por meio dos movimentos sociais, que tem como objetivo primário a educação como
ferramenta de transformação das realidades.
Verificamos, assim, que as educações se vinculam a partir dos movimentos coletivos e no
sentido de alcançar e atender as demandas sociais que são as bases desses movimentos, relevantes
para conquistas por uma educação qualificada, igualitária e para todos, em qualquer território,
urbano ou rural, ou seja, educação popular e educação do campo apresentam propostas
semelhantes e conexas, para tornar visíveis, relevantes e aplicáveis os saberes populares baseados
na cultura e nas experiências vividas pelos sujeitos do campo os quais, historicamente foram
excluídos e por que não dizer, desvalorizados. Estes são motivos que sustentam a discussão em
torno da interface entre as referidas educações, acreditando que desta forma tornará possível a
amplitude e as contribuições com outras no mesmo sentido, enriquecendo os debates, criando
novas e melhores perspectivas no campo da educação no Brasil e quem sabe no mundo.
Para além disso, busca-se nesta pesquisa, possíveis e profundo saber teórico, sobre uma
compreensão acerca da conexão entre educação popular e educação do campo como metodologia
para formar os sujeitos que por anos foram excluídos de um sistema educacional dirigido
apenas ao homem da cidade ou às elites latifundiárias, opressoras ou sociedades dominantes.
Para tanto, esclarece-se que as bases teóricas serão construídas a partir de escolhas das obras;

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consequentemente leituras e reflexões sobre estas, descrevendo e analisando-as de forma crítica.
Comungando com os métodos educacionais freireano, entende-se que a escola, de modo
geral, deveria ir além do que ela de fato é, vale dizer que ela deveria crescer em qualidades no ensino,
além de criar espaços para que os alunos praticassem suas criatividades, visto que atualmente os
problemas que são presentes estão voltados para criar competências e transmissão de saberes,
quando deveria permitir a intercomunicação entre as pessoas, fundindo ciência, cultura, arte,
criatividades, diversidade de saberes, experiências e vivências que cada aluno traz em suas origens,
afastando, assim, a ideia da sala de aula como simplesmente oficinas de transmissão daquilo que
vem pronto e enlatado para ser copiado, decorado e devolvido sob a forma de provas, como
se fosse um curso qualquer preparatório para exercer determinada profissão ou aprendizado
(BRANDÃO, 2020).
De acordo com os consagrados autores, presentes neste debate, a educação popular,
assim como a escola ideal, a partir de uma união harmônica, considera ou pelo menos deveria
considerar o acervo de sabedoria dos alunos, suas vivências, o que pode tornar-se possível a partir
da incorporação de todas as pessoas, incluído o seu corpo docente, funcionários, alunos que a
ela chegam, em qualquer período, seja ele grande ou pequeno, mas que traz para as discussões
diversidade de ideias, experiências, acontecimentos, percepções e criatividades que ocorrem
para além dos muros escolares, sendo o que atualmente acontece com o sistema de alternância
implantado a partir da educação do campo, permitido a criação de atividades alternativas e a
interatividade com outras pessoas por via de consequências, transgredindo na escola um modelo
ultrapassado e historicamente excludente.
Percebe-se, portanto, que o conceito de educação ainda carece de elementos adicionais
e necessários, tais como a cultura, a arte, a ciência, os saberes, as diversidades e as realidades
existentes em cada região, visto que não é possível defini-la como solta em si mesma, mas sim
incorporada às suas dimensões estruturais, cujas dimensões também estão incorporadas em
quase todos os seguimentos da sociedade como no teatro, na religião, na relação familiar, na
política e em cada profissão, como a cultura por exemplo.
A educação é uma dimensão múltipla e complexa da cultura; como seres humanos,
estamos “condenados” a aprender por meio dela, ja que nascemos totalmente despreparados,
ao contrário dos animais que nascem prontos para a vida, lhes restando pouco aprender para
se entenderem como tais; como seres humanos e carentes de preparos para seguir a vida em
seus aspectos primários, ou seja, na educação, no trabalho, na integração e na ascensão social,
na política e assim por diante, estamos sempre sujeitos ao aprendizado e suas inovações caso
queiramos avançar, nos aprimorando cada vez mais. (op.cit.).
Para os autores renomados, a educação que se aprende na escola corresponde apenas a
uma fração daquilo que de fato pode se dizer aprendizado, já que a criança, o adolescente, o
jovem e o adulto, por exemplo trazem em seu bojo de conhecimentos e aprendizagens e, na
maioria das vezes, foram adquiridos sem se quer passar pelos bancos escolares, portanto, por
meio da “leitura do mundo” em que viveram ou que vivem, tendo como base fundamental a
natureza e seus jeitos naturais de vê-la, vivenciá-la, experimentando-a, ao que o educador Paulo
Freire diz, referindo-se ao educador(a) “progressista, ainda quando, às vezes, tenha de falar ao
povo, deve ir transformando o ao em com o povo. E isso implica respeito ao ‘saber de experiência
feito’ de que sempre falo, somente a partir do qual é possível superá-lo” (Freire, 2011, p. 38-39).
Segundo Freire, as perspectivas da educação popular vão conectar com a política, a partir
da prática, ao mesmo tempo que ao lado das comunidades e dos movimentos populares se
adquire e distribui conhecimentos em um processo no qual se aprende para devolver aquilo que
aprendeu, ou seja, historicamente esse diálogo se faz presente com várias áreas do conhecimento,
inclusive e especificamente com a educação do campo e vice-versa.
No mesmo sentido das perspectiva freireana, a autora da grandiosa obra “O estado da
arte sobre juventude na pós-graduação brasileira”, Marilia Pontes Spósito (2009) ensina que
a busca pelo aprendizado seja no campo, na cidade, na profissão, qualquer que seja ela, ou em

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qualquer outro campo de conhecimento, não dispensa a reflexão sobre tudo que aprendemos
e vivenciamos ou experimentamos ao longo de nossas trajetórias de vida, ainda que em certos
períodos caminhamos mais e em outros menos nesse mesmo propósito; até mesmo parando,
sendo o caso, refletindo, nos reorientando e reavaliando os objetivos para continuar ou não com
ou sem mudanças de rumo, ou seja,

A produção de conhecimento, qualquer que seja o campo do saber, não


pode prescindir do esforço sistemático de inventariar e fazer balanço
sobre aquilo que foi produzido em determinado período de tempo e área
de abrangência. Isso é o que se convencionou denominar de “estado do
conhecimento” ou “estado da arte”. Esta é a denominação que foi adotada
nos dois volumes deste livro que temos a satisfação de apresentar. Para
tratar do inventário de determinado campo do conhecimento, podemos
utilizar a imagem de alguém que iniciou uma caminhada e num certo
ponto faz uma parada, olha para trás, toma fôlego, reavalia os objetivos do
caminhar e se coloca em posição de retomar o percurso, podendo mesmo
reorientar o seu rumo em função da “refl exão” e da recuperação que o ato
de interromper a marcha possa ter promovido. (Sposito, 2009, p. 7)

Para aqueles autores, como FALEIROS, 2005, que entendem a educação popular como
parte integrante da profissão por exemplo, ela decorre da aproximação dessa modalidade no
sistema educacional com os ideais freireanos em momentos que se busca um novo conceito para
cada uma das profissões ou reconceituando-as, ou seja, quando se começa a compreender que
o desgaste destas passa pela interrupção das “prisões” do imperialismo e do sistema capitalista,
portanto, importante observar “a influência, na formulação de um paradigma crítico, da
pedagogia da conscientização elaborada por Paulo Freire” e que na perspectiva freireana é
fundamental levar em conta a cultura do povo em qualquer processo de mudança, estabelecendo
com ele um diálogo problematizador”. (p. 25)
No universo do sistema educacional, segundo SOUZA (2006, p. 24), apud MELO
(2015, p. 62), é preciso refletir sobre qual currículo atenderá os anseios dos povos do campo, suas
especificidades, por exemplo, já que a escola e a educação do campo estão além de uma simples
localização, mas devem guardar estreitas relações com as práticas envolvendo a participação
dos sujeitos do campo, “isso porque a localização da escola não é a questão central, mas sim os
conteúdos da identidade e da cultura dos camponeses e dos trabalhadores rurais”. Ou seja:

A educação do campo vem sendo discutida seriamente como política


pública. Diante desta natureza é importante pensar: Qual o projeto
educativo que se deseja para os sujeitos do campo? Será que um currículo
disciplinar daria conta das especificidades dos sujeitos do campo? Vale
mencionar que, a educação do campo necessariamente não é somente
a escola situada no espaço geográfico da zona rural, mas também, uma
prática pedagógica participativa direcionada pelos próprios sujeitos
do campo, isso porque a localização da escola não é a questão central,
mas sim os conteúdos da identidade e da cultura dos camponeses e dos
trabalhadores rurais (P. 62).

CALDART (2004), em belíssima discussão sobre a escola do campo, defende que esta deve
se caracterizar pela diferença e que atenda aos objetivos das demandas, de acordo com a época
em que é discutida, especialmente, considerando-se as experiências e as vivências dos sujeitos,
principalmente as crianças dos assentamentos sem-terra, observando-se, ainda, os diferentes
modos de vida entre elas e outras crianças, o que poderia se efetivar através da maneira como
lhes ensinar. Sendo assim, essas crianças aprenderiam a valorizar e a lembrar sempre das lutas e
conquistas, desde que vencidos os preconceitos, o despreparo dos educadores e das educadoras
e a desestruturações das escolas (p. 157-158).

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Corroborando os ensinamentos de DOWBOR (2007), entendemos que uma educação
que pretender promover o “desenvolvimento local” precisa ter em seu projeto educativo o dever
de formar o sujeito de modo que ele participe da gestão de sua localidade, opondo-se a quaisquer
ideais que não considerem as dinâmicas construtivas para o entorno de sua localidade, o que
na maioria das vezes, verifica-se nas iniciativas do poder local, cuja oposição nem sempre tem
sido percebida pela população, por absoluta falta de informação e de formação dos sujeitos,
habitantes de determinadas regiões, que permita tal reflexão, sendo percebido ainda, que se
alguns, se quer, conhecem o porquê do nome de seus logradouros, bem como da capacidade do
solo e do subsolo de suas regiões, por exemplo, ou seja,

A ideia da educação para o desenvolvimento local está diretamente


vinculada a essa compreensão e à necessidade de se formarem pessoas
que amanhã possam participar de forma ativa das iniciativas capazes
de transformar o seu entorno, de gerar dinâmicas construtivas. Hoje,
quando se tenta promover iniciativas desse tipo, constata-se que não só
as crianças, mas mesmo os adultos desconhecem desde a origem do nome
da sua própria rua até os potenciais do subsolo da região onde se criaram.
Para termos cidadania ativa, temos de ter uma cidadania informada, e
isso começa cedo. A educação não deve servir apenas como trampolim
para uma pessoa escapar da sua região: deve dar-lhe os conhecimentos
necessários para ajudar a transformá-la (p. 76).

A educação do campo, portanto, traz em sua essência um projeto de lutas e vai buscar
educação específica, legislação, diretrizes curriculares, tanto a nível nacional como estadual,
projetos pedagógicos e direitos legais, focados nos sujeitos do campo, enfatizando-se a contestação
sobre o projeto de escola rural no campo, trazendo para o debate a necessidade de uma educação
do campo no espaço rural, valorizando assim, os sujeitos, suas experiências, vivências e saberes,
além de resgatar a autoestima dos povos camponeses, afastando a ideia de que não é necessário
estudar para permanecer no campo, ou seja, entre seus direitos legais, encontra-se o direito à
escola, em todos os níveis, inclusive universitário, formação política em educação, bem como
tantos e quantos cursos queiram fazer.
Não há dúvidas que a partir das lutas que surgem nos movimentos sociais do campo
das águas e das florestas, dos encontros desses movimentos, nasce o direito à licenciatura em
educação do campo, a partir de instituição da escola pertinente - do campo; portanto, popular
porque, repita-se, nasce a partir do saber popular, dos sujeitos do campo e de suas mobilizações
para tanto, decorrentes da insatisfação com o não estudar ou estudar para atender determinações
das classes dominadoras, a partir de uma educação imposta “de cima para baixo” e que tem suas
bases nas cidades, transmitida por educadores que desconhecem as realidades do campo, bem
como dos saberes, vivências e experiências de seus povos. Assim, a escola do campo se torna
também o espaço ideal para o desenvolvimento da educação freireana e popular, que vem do
povo e em nome dele é praticada.
O surgimento da educação do campo a partir dos implementos dos movimentos sociais
do campo, mostra um atrelamento entre os debates sobre a educação popular e um novo
modelo de educação que genuinamente, bem como em suas finalidades e fundamentos, afasta o
entendimento de que todo ensino que se encontra no campo, tem a ver com o campo, sendo que
na maioria das vezes são inúteis para os povos que nele têm suas raízes; que contesta os ideais
capitalistas, como o agronegócio, a monocultura e as concentrações de terras em poder de grandes
latifúndios. Ao contrário, lutando por respeito, igualdade, valorização da educação informal e
da reforma agrária, sendo esse campo, da reforma agrária, da agroecologia da desconcentração
de terras e de outros modelos populares que atendam aos anseios dos povos nele residentes e
dele oriundos.
Decorre dessa perspectiva que o meio mais adequado de aprender refletindo, criticando,

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valorizando saberes e distribuindo conhecimentos será sempre os espaços proporcionados
pela educação do campo (SOUZA, 2006, p. 24), já que permissivos da interdisciplinaridade,
haja vista suas características, diversidades e especificidades, dentre as quais, a agricultura de
subsistência ou familiar, os sem-terra e as demandas por reforma agrária, a disputa por territórios,
como no caso dos povos nativos, dos quilombolas, dos grandes ou pequenos arrendamentos
rurais, das terras com títulos de posses, bem como dos posseiros, do trabalho análogo à condição
de escravos ou boias-frias, ou seja, cada categoria, bem como suas culturas, dotadas de saberes,
vivências e experiências diferenciadas, formando identidades próprias, suscetíveis de debates e
inclusão no espaço próprio conquistado pelos movimentos desses povos, repita-se com base na
educação popular e seus anseios que é a escola do campo.
A intertransdisciplinaridade, segundo MELO (2015), “engloba processos educativos
diferenciados no contexto escolar, pois vai para o além de ensinar as primeiras letras e a aquisição
aditiva. Entender esta necessidade requer que se leve em consideração as matrizes pedagógicas
do campo. Especificidades, que estão arraigadas nas relações sociais da comunidade, na gestão
coletiva e nos interesses formativos que estão intimamente ligados nos princípios pedagógicos
da educação do campo.”(p. 64). Neste sentido, Souza (2006, p.34) apud Melo (2015) afirma
que:

Os princípios pedagógicos são compostos por: relação entre teoria e


prática; combinação metodológica entre processos de ensino e capacitação,
a realidade como base da produção do conhecimento; conteúdos
formativos socialmente úteis; educação para o trabalho e pelo trabalho,
vínculo orgânico entre processos educativos e processos econômicos;
vínculo entre educação e cultura; auto-organização dos estudantes (sic);
criação de coletivos pedagógicos e formação permanente dos educadores
(sic); atitudes e habilidades de pesquisa; combinação entre processos
pedagógicos coletivos e individuais.

Corroborando com as assertivas anteriores, podemos dizer que a educação significante


para o homem do campo, independentemente de sua posição social, precisa ser do jeito que
aborda o máximo e o melhor que existe em cada categoria o que significa dizer, suas expectativas,
seus saberes, suas experiências, suas especificidades e diversidades em sua amplitude, pois se o
contrário acontecer, veremos nesse homem, evidentemente no sentido amplo, o “instituto”
da alienação e do objeto, a partir das crenças (mitos) ou fantasias construídas sobre algo ou
alguém, mas que não se sustentam, por serem criadas por dominantes do poder (as elites), como
se importantes para determinados povos, o que no pensamento freireano (FREIRE, 2000):

Uma das grandes, senão a maior, tragédia do homem moderno, este em


que é hoje dominado pela força dos mitos e comandado pela publicidade
organizada, ideológica ou não, e por isso vem renunciando cada vez, sem o
saber, sua capacidade de decidir. Vem sendo expulso da órbita das decisões.
As tarefas de seu tempo não são captadas pelo homem simples, mas a ele
presentadas por uma “elite” que as interpreta e lhas entrega em forma de
receita, de prescrição a ser seguida. E, quando julga que se salva seguindo
as prescrições, afoga-se no anonimato nivelador da massificação, sem
esperança e sem fé, domesticado e acomodado: Já não é sujeito. Rebaixa-se
a puro objeto (p. 51).

De acordo com o autor, não haverá superação dos conhecimentos existentes sem que seja
incorporada à prática educativa a necessária reflexão crítica, sob pena de estarmos praticando a
convicção mitológica de que sabemos e dominamos suficientemente todos os conhecimentos
necessários à formação do homem, especificamente dos sujeitos do campo, disseminando,
assim, discursos, por consequências, reproduzindo a alienação desses sujeitos. O destaque,

80
portanto, está no exercício das pesquisas como forma de capacitação profissional, viabilizando a
integração social, além de despertar nos sujeitos e na aprendizagem, a busca pelo que ainda não
está esclarecido ou oculto de modo que sua curiosidade ultrapasse a ingenuidade e o bom senso,
para procurar encontrar quais as condições necessárias e suficientes para o resultado de uma
afirmação específica, ou seja, à “curiosidade epistemológica”(FREIRE, 2003, p.29).
A educação do Campo, portanto, surge a partir dos movimentos sociais do campo, através
de um ou de vários processos voluntários ou não, mas que oferece àqueles que estão vivenciando
uma situação de conflito a oportunidade e o espaço adequados para conseguir buscar uma solução
que atenda a todos os envolvidos, ou seja, mediada pela Educação Popular que surge nos anos
60 a partir dos métodos propostos por Paulo Freire, não obstante os movimentos anteriores, no
sentido de uma educação nova, que fosse acessível aos povos do campo, dos espaços rurais, dos
excluídos da educação, do proletariado e, finalmente, das classes subalternas ou das pessoas que
se sentem inferior a outra pessoa ou a outras coisas; que se sentem obrigadas a realizar os desejos
de uma outra pessoa; de outras classes, portanto, submissas.
Ao discorrer sobre a comunicação entre as duas modalidades de educação, entendemos
merecer destaque a obra “Educação do Campo no Agreste de Pernambuco: um Estudo no
Município de Canhotinho” em que a contribuição da autora Melo (2015) tem sido de grande
relevância quando, citando Morin (1998, p.32), nos ensina que “ a educação do campo,
especialmente mediada pela educação popular é complexa e envolve seus vários níveis de
especificidades que devem ser consideradas”, ou seja:

Seguindo esta lógica, compreende-se o quanto que a educação do campo,


especialmente mediada pela educação popular é complexa e envolve seus
vários níveis de especificidades que devem ser consideradas. Neste sentido,
Morin, (1998, p.32) contribui na perspectiva, de que “necessitamos
civilizar nossas teorias, ou seja, desenvolver nova geração de teorias abertas,
racionais, críticas, reflexivas, autocríticas, aptas a se auto-reformar”.
Então, é isto que falta no contexto da educação do campo a civilidade e a
educação popular traz a humanização que vai para além da civilidade em
uma perspectiva transdisciplinar pedagogicamente falando. Sendo assim,
a educação do campo e popular se tornam complexas diante dos contextos
sendo de natureza essencialmente transdisciplinar (p. 64).

Outro aspecto relevante na questão conectiva entre as duas modalidades - Educação


Popular x Educação do campo, segundo ARROYO (1999), é que por um dever necessário,
elas precisam estar presentes nos momentos em que as matrizes culturais são chamadas em
determinado contexto, promovendo a formação dos sujeitos; em especial nas relações “da
criança, do homem, da mulher com a terra; a celebração e transmissão da memória coletiva;
o predomínio da oralidade.” (p. 28). Nem sempre estão presentes, quando realizada uma
inspeção minuciosa no interior dos espaços escolares; observa-se, portanto, a eterna reprodução
conteudista, no sentido de enfatizar tão somente a leitura, a escrita e os cálculos, ao mesmo tempo
em que despreza-se os currículos específicos de forma organizados e por via de consequências
o abandono das matrizes culturais, a diversidade múltipla existente entre os sujeitos do campo,
bem como suas dimensões no sentido amplo que envolve culturas e posições econômicas e
sociais.
A educação que se busca a partir do currículo adequado será aquela em que os
sujeitos se encontrem representados como cidadãos e cidadãs de direitos, estando presente a
intertransculturalidade, como seguimento bem como ferramenta promotora da cidadania
possibilitando a concretização da vontade do povo, suas demandas, seus sonhos e a busca por
emancipação, ou seja, é preciso que “o currículo intertranscultural como caminho possível para
a promoção de uma educação cidadã, que concretize os nossos sonhos e possa estar sempre
a serviço da emancipação humana” (PADILHA, 2004, p. 42); sendo assim, as bases que

81
alimentam a educação do campo do ponto de vista da educação popular e suas perspectivas,
para ter como destaque e inclusão social os sujeitos de direito é necessário permear-se criando
currículo intertranscultural, cujo processo permita a união entre os sujeitos com vistas a superar
desafios como o monoculturalismo, bem como as anomalias da percepção cultural, além das
dificuldades para distingui-la.
Neste sentido, tem-se que o lugar onde ocorre o compartilhamento de conhecimentos
quer seja na escola ou qualquer outro, deverá promover inovações, tornando-se o processo
educativo atraente, senão saboroso, colorido, acessível, agradável e que, de fato, proporcione
a educação dos sujeitos de direitos e também de obrigações, a partir de projetos pedagógicos e
currículos que envolvam a participação da comunidade a qual se destina e que contemplem a
educação em sua amplitude e organização, aplicáveis em qualquer ambiente educacional.

Considerações finais

Através da presente pesquisa, referente ao tema Interface entre a Educação do Campo e a


Educação Popular, na perspectiva desta e suas relações, foi possível confirmar a importância da
implementação de algumas políticas públicas de Educação do Campo, não obstante a existência
de outras, que respalde todas as políticas relacionadas a esta modalidade de educação, bem como
ser necessário criar uma proposta que faça essa prática de forma efetiva também, de modo que
leve em consideração os direitos já garantidos pela lei aplicável.
A pesquisa tem contribuído para que possamos colocar em contexto as discussões acima
mencionadas, que estimulam o pensamento diversificado e a análise crítica estão relacionadas ao
assunto em questão.
A investigação nos permitiu ampliar as informações relacionadas às Exigências da
Educação do Campo quanto aos seus detalhes, especialmente às políticas e serviços comunitários
relacionados à educação escolar, orientados pelo currículo da Educação do Campo como um
direito adquirido.
Por isso, entendemos que é preciso conscientizar a luta de classes, na busca da efetivação dos
direitos da Educação, para que haja uma mudança social, no sentido de aumentar a compreensão
teórica e examinar a situação econômica e social, na criação de um projeto educacional que pode
ser “mais que dinheiro”.
Também é importante ressaltar a importância da leitura, debates, participação em
seminários, conferências que incluam esse tema para entender o significado das políticas
públicas direcionadas à Educação do Campo e como elas podem fortalecer o movimento social
de campo.
No decorrer do artigo, descobrimos que a definição popular e a busca por informação foi
e continua a ser um dos maiores desafios para a garantia dos direitos da educação rural.
Porém, ao final da pesquisa, descobrimos que é uma luta que não termina com a combinação
do direito recebido, então tivemos um entendimento de que a luta continua, sempre buscando
confirmar a proposta do currículo, conforme o artigo 28 da Lei de Diretrizes e Bases, de 1996.

82
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85
CAPÍTULO 7 - GRUPO TEMÁTICO AGROECOLOGIA: EXPERIÊNCIA DO
CURSO DE LICENCIATURA EM EDUCAÇÃO DO CAMPO DA
UNIVERSIDADE FEDERAL RURAL DO RIO DE JANEIRO

Jarlane S. Lima14

Valdinere S. M. de Morais15

Eliane M. Geraldino16

Fabiana de Carvalho Dias Araújo17

Resumo

Este trabalho tem por objetivo apresentar a experiência do curso de Licenciatura em Educação
do campo na discussão sobre agroecologia. Para tanto, foram realizadas pesquisa bibliográfica,
pesquisa documental, observação participante e entrevista. O grupo temático Agroecologia
(GT Agroecologia), este pensado e elaborado para propor ao educando/a uma formação com
uma construção pedagógica crítica e pautada na sustentabilidade; tendo o viés principal voltado
para a Agroecologia, analisando suas questões sociais, econômicas, ambientais e agrícolas;
tendo como ferramentas pedagógicas, visitas guiadas, pesquisa, escrita orientada e construção
coletiva (Trabalho Integrado) e individual; que são realizadas durante o Tempo Comunidade.
Ao longo dos 10 anos do curso, completados no ano corrente; este Grupo Temático passou por
várias composições, formatos e participações; contando com a ajuda de educadores/as da área.
Já chegou a ser o GT mais populoso do curso em 2018 e 2019; e até hoje se mantém como um
dos mais procurados pelos/as educandos/as da Educação do Campo.

Palavras-chave: Pedagogia da Alternância. Estudo da Realidade. Tempo Comunidade.

Introdução

A Educação até aqui foi construída ao longo do tempo deixando sempre em segundo
plano o homem do campo. Embora as políticas públicas estejam caminhando a passos
lentos tanto no campo como na escola; precisamos buscar uma alternativa para a divulgação,
disponibilização e manutenção dessa proposta de agricultura que é antes de tudo do pequeno
agricultor, sabidamente mais saudável, mais rentável e sustentavelmente mais positiva.
A agricultura familiar corresponde produtiva e economicamente com mais de 23% do
valor de produção agrícola nacional, ocupando uma área de 80,89 milhões de hectares, ou
seja, 24% da área total. Embora não tendo a disponibilidade de terras agricultáveis que são
dispensadas para esse tipo de produção, em comparação com o resto do mundo, esse modelo
mostra-se o mais viável, sustentável e produtivo em relação sobretudo a sua área ocupada e a
disponibilidade de um universo muito maior de sortimentos agrícolas (IPEA).
Como pensar dentro dessa perspectiva, global e inclusiva, de todos os povos brasileiros,
em um formato de educação eficiente, atual e que atenda às necessidades e demandas locais de
produção e sobretudo econômicas e sustentáveis; não só da cidade, mas sobremaneira da família
campesina e dos povos tradicionais, sem afetar ou desfalcar sua produção agrícola?

14 Discente do curso de Licenciatura em Educação do Campo da UFRRJ, jarlaneagronoma@gmail.com


15 Discente do curso de Licenciatura em Educação do Campo da UFRRJ, nere-xand@hotmail.com
16 Discente do curso de Licenciatura em Educação do Campo da UFRRJ, elianemoreirageraldino@gmail.com
17 Docente do Departamento de Educação do Campo, Movimentos Sociais e Diversidade/Instituto de
Educação/UFRRJ, prof.fabiana.araujo@gmail.com

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A agroecologia, defendida por diversos atores do mundo rural, é vista como uma
proposição científica, como um conjunto de práticas sociais e técnicas e como um movimento
social (WEZEL et al., 2009). Para Altiere (2012), a ciência da agroecologia, a qual se define
como a aplicação de conceitos e princípios ecológicos ao desenho e manejo de agroecossistemas
sustentáveis, proporciona um marco para valorizar a complexidade dos agroecossistemas.
Assim como a Agroecologia, que tem por princípio a valorização do conhecimento
oriundo dos agricultores, a Educação do Campo busca a partir das especificidades dos povos
do campo uma ressignificação das práticas pedagógicas (KUSNIEWSKI et al., 2019). Neste
sentido, a Agroecologia e a Educação do Campo são meios de possibilitar às populações do
campo alguns de seus direitos, os quais foram negligenciados por muito tempo, conforme Rossi
(2015):

Durante décadas, a agricultura convencional tem negado a natureza,


sendo a agroecologia, por sua vez, a afirmação da vida, por isso é a negação
da negação. O mesmo se pode dizer da educação no espaço agrário, pois as
elites sempre negaram o campo como um local de vida e, agora, por meio
da educação do campo, essa visão é negada e, mais do que nunca, o campo
é afirmado como local de saber, cultura, vida e trabalho (ROSSI, 2015, p.
172).

Para Caldart (2009, p. 39), “a educação do campo nasceu como crítica à realidade da educação
brasileira, particularmente à situação educacional do povo brasileiro que trabalha e vive no/do
campo”. É fruto de uma intensa mobilização dos movimentos camponeses, com uma proposta
para desenvolver novas metodologias de ensino e propor políticas públicas diferenciadas para as
populações dos espaços rurais.
A educação do campo tem suas bases na concepção da Agroecologia. Sousa (2017) diz
que:

o movimento da educação do campo vem construindo as bases pedagógicas e


operacionais da concepção de uma educação profissional em Agroecologia,
com ênfase: na crítica radical ao modelo de desenvolvimento hegemônico;
na busca da ruptura epistemológica com a ciência dominante; numa
concepção pedagógica que valorize os territórios e a sabedoria dos povos
do campo, garantindo os diferentes tempos e espaços de formação; bem
como numa proposta de formação que consiga dialogar com a realidade
do campo, não simplesmente procurando conhecê-la, mas também
transformá-la (SOUSA, 2017, p.645).

Surge, no cenário acadêmico contemporâneo, a Educação do Campo e a Pedagogia da


alternância como soluções para as questões práticas e pedagógicas dos povos do campo e do
campo em si como território. Associando dentro desta modalidade o pensar e o executar de
uma nova educação, uma que agregue não só o território camponês, mas que abrace a cidade
e sobretudo as pessoas distantes dessa realidade. Pensando, analisando e construindo uma
educação planetária, global, para além das filosofias educacionais, como solução também para as
questões agrícolas, sociais e ambientais que a contemporaneidade e as modernidades nos trazem
como desafios de desenvolvimento e sobrevivência planetária. Uma educação que não é mais do
campo ou da cidade e sim “glocal” como bem define Gadotti.
A educação para a cidadania planetária implica uma revisão dos nossos
currículos, uma reorientação de nossa visão de mundo e da educação como
espaço de inserção do indivíduo não numa comunidade local, mas numa
comunidade que é local e global ao mesmo tempo. Tornando-se “glocal”.
Educar não seria, como dizia Émile Durheim, a transmissão da cultura de
uma geração para outra, mas a grande viagem de cada indivíduo no seu
universo interior e no universo que o cerca (GADOTTI, 2000, 142).

87
Os objetivos deste trabalho são delinear a construção e formação do Grupo Temático
de Agroecologia no curso de Licenciatura em Educação do Campo da UFRRJ; identificar as
ferramentas pedagógicas e metodológicas utilizadas pelo Grupo Temático de Agroecologia.
Para o desenvolvimento desta pesquisa, seguiu-se a metodologia qualitativa que possui
características de um estudo de caso. As técnicas utilizadas foram: pesquisa bibliográfica,
pesquisa documental, observação participante e entrevista.
Para elucidar e revisar temas e conceitos envolvidos com o estudo, houve aplicação da
pesquisa bibliográfica. A pesquisa documental correspondeu à leitura do Projeto Político
Pedagógico do curso. A observação participante se manifesta na vivência experienciada pelas
autoras deste trabalho. Realizou-se, também, entrevista com os professores coordenadores do
GT Agroecologia.

A pesquisa qualitativa responde a questões muito particulares. Ela se


preocupa, nas ciências sociais, com um nível de realidade que não pode ser
quantificado. Ou seja, ela trabalha com o universo de significados, motivos,
aspirações, crenças, valores e atitudes, o que corresponde a um espaço mais
profundo das relações, dos processos e dos fenômenos que não podem ser
reduzidos à operacionalização de variáveis (MINAYO, 2001, p. 6).

Educação do Campo

Educação do Campo é uma modalidade de ensino formal idealizada para atender a demanda
da população campesina, e sobretudo de seu território, compreendendo-o como protagonista
de sua realidade e de sua forma (modo) e formação de vida no campo. Segundo Caldart (2004),
a Educação do Campo pode ser compreendida como fenômeno social constituído por aspectos
culturais, políticos e econômicos. Desta forma, os processos educacionais do campo precisam
ser significativos e precisam ter sua construção pautada na realidade dos sujeitos que o integram,
buscando constantemente consolidar e sobretudo valorizar os princípios, valores, modos de ser
e de viver das populações que vivem no campo.

Uma escola do campo é a que defende os interesses, a política, a cultura


e a economia da agricultura camponesa, que construa conhecimentos e
tecnologias na direção do desenvolvimento social e econômico dessa
população. A sua localização é secundária, o que importa são suas
proximidades política e espacial com a realidade camponesa (ARROYO,
1988)

A discursão para a construção da nova escola, agora “do campo”, não mais “rural”, iniciou-se
a partir da década de 1990; o termo Escola do Campo surgiu pela primeira vez em público no 1º
Encontro Nacional de Educadores da Reforma Agrária (ENERA) e contou com a participação
fundamental e relevante do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), os quais
buscaram construir uma proposta que caminhasse na direção de resolver a grande maioria das
problemáticas relacionadas a vida e sobrevivência no campo brasileiro.

Importante sinalizar que a experiência acumulada pelo Pronera, nos mais


diversos âmbitos de abrangência, influenciou a concepção e a elaboração
de novas políticas públicas, tendo em vista o desenvolvimento do campo
através de ações educativas que ajudem na formação dos sujeitos, como por
exemplo: o Programa de Apoio à Formação Superior em Licenciatura em
Educação do Campo (Procampo). Este programa apoia a implementação
de cursos regulares de licenciatura em educação do campo nas instituições
públicas de ensino superior de todo o país, preocupado, especificamente,
com a formação de educadores para a docência nos anos finais do ensino
fundamental e ensino médio nas escolas rurais. Foi criado em 2007,

88
através do Ministério da Educação, com a iniciativa da então Secretaria
de Educação Continuada Alfabetização e Diversidade (Secad). Surge
por meio de parcerias com as Instituições Públicas de Ensino Superior
viabilizando a criação das Licenciaturas em Educação do Campo, a fim de
promover a formação de professores da educação básica para lecionarem
nas escolas localizadas em áreas rurais. (SANTOS, 2017, p. 217).

Atualmente, a Educação do Campo é amparada pela promulgação da Lei 12.960 de 27


de março de 2014, a partir da qual passou a ser estabelecida as diretrizes e bases da Educação
Nacional para a normatização do ensino e das escolas do campo, indígenas e quilombolas;
inserida na Lei de Diretrizes de Base da Educação Nacional (LDB) como “modalidades” comuns
curriculares de ensino; trabalhando e divulgando todos os seus respectivos conceitos (LDBEN,
Lei 9.394/96), embora não tenha se desenvolvido ou nascido com a boa vontade ou visão dos
órgãos públicos executivos e sim através de uma grande e contínua luta dos movimentos sociais e
do campo, que buscaram durante muito tempo o reconhecimento de seus territórios, valoração
dos conhecimentos ancestrais e que dialogassem com suas realidades em meio aos conflitos do
uso da terra e pela reforma agrária.

Agroecologia

O movimento Agroecológico no país deu-se no início em 1970, com debates que incluíam
pesquisadores, membros da sociedade civil organizada, Organizações Não Governamentais
(ONGs), professores e estudantes Universitários, populações tradicionais, campesina,
movimento de luta pela terra (MST), agricultores, técnicos de campo, movimentos sindicais e
populares. Todos interessados em resolver a crise instalada pelas consequências da agricultura
cartesiana advinda da Revolução Verde18 no pós 2ª Guerra Mundial, inserida nos países do
terceiro mundo e em nosso país, desde então. Elementos como a destruição ambiental, aumento
de pragas e doenças na agricultura, uso exagerado de agrotóxicos em pequenas e médias lavouras,
a mecanização excludente da lavoura, alimentos com resíduos excessivos de pesticidas e outras
moléculas usadas como defensivos, desapropriação de terra dos agricultores pelo excesso de
impostos e taxas bancárias, degradação ambiental, êxodo rural da agricultura familiar, descrença
e descrédito político e econômico na produção do campo pela cidade eram temas presentes em
todos os círculos de debate.
Os primeiros encontros deixavam claro os principais objetivos dessa “nova” agricultura
que urgia por se recuperar e manter, em territórios onde já existiam; construir-se, reconstruir-
se e crescer onde não existiam. Era preciso superar os danos causados à biodiversidade com o
emprego da transgenia, dos fertilizantes químicos, dos agrotóxicos, da monocultura e à saúde
da sociedade como um todo, não mais apenas a diretamente afetada nos locais de implantação.
Urgia pela construção de um conhecimento multidisciplinar que fosse “socialmente justo,
ecologicamente sustentável e economicamente viável”.
Para Altiere (2004), essa construção só se daria vencendo todos os desafios que são tanto
maiores e mais complexos quanto maior for o número de limitações impostas pela natureza. E
que, para vencê-los, faz-se necessário um profundo conhecimento sobre o meio ambiente a que
se está inserido, não só sob o ponto de vista agronômico, edáfico, físico, biológico ou químico e
ambiental como um todo; mas sobretudo sob o aspecto humano. Para o autor fazia-se necessário
construir uma nova Agricultura, que precisaria ter como base o processo produtivo que leva
em consideração a saúde do solo que sustenta a produção agrícola, o crescimento de plantas
e animais; considerar todo o funcionamento do ecossistema terrestre entendido sobretudo a
18 A expressão Revolução Verde refere-se à invenção e disseminação de novas sementes e práticas agrícolas que
permitiram um vasto aumento na produção agrícola a partir da década de 1960 nos Estados Unidos e na Europa e, nas
décadas seguintes, em outros países. É um amplo programa idealizado para aumentar a produção agrícola no mundo
por meio do uso intensivo de insumos industriais, mecanização e redução do uso de mão-de-obra.

89
longo prazo como saudável e todos os processos produtivos que envolvem os componentes
sociais, econômicos, políticos e culturais, considerando como pilar primordial a compreensão
de que a Terra não é um reservatório ilimitado de recursos e que, a longo prazo, a sociedade do
planeta jamais será indenizada pelos danos ambientais e pelos desperdícios de recursos naturais.
Para Caporal (2009) surge o debate da construção de uma “nova ciência”, para atender essa
demanda. A Agronomia como era difundida não caberia mais nas necessidades que emergiam
nos debates e construções sociais, acadêmicas, políticas e sobretudo ambientais. Para atender a
construção da “nova ciência” definida como Agroecologia precisaríamos dos agroecólogos.
Indivíduos preparados para trabalharem no tecer linear do debate de muitas opiniões,
visões, experiências e posicionamentos; e na construção coletiva de ideias a serem compartilhadas
de igual para igual, inseridos sempre no viés das multifaces da transdisciplinaridade.

Agroecologia pode ser agrupados em três dimensões: a) ecológica


e técnico agronômica; b) socioeconômica e cultural; e c) sócio-
política. Estas dimensões não são isoladas. Na realidade concreta elas se
entrecruzam, influem uma à outra, de modo que estudá-las, entendê-las e
propor alternativas supõe, necessariamente, uma abordagem inter, multi e
transdisciplinar, razão pela qual os agroeecólogos e seus pares lançam mão
de ensinamentos da Física, da Economia Ecológica e Ecologia Política, da
Agronomia, da Ecologia, da Educação e Comunicação, da História, da
Antropologia e da Sociologia, para ficarmos em alguns dos aportes dos
diferentes campos de conhecimento (Caporal, 2009, p. 8).

Educação do CAmpo x Agroecologia

Entendendo a Educação do Campo como a ciência que oportuniza ao cidadão do campo


acessar conhecimento teórico de novas técnicas agrícolas e pensamentos socioeconômicos e
ambientais sustentáveis para o correto uso em seu território, propiciando assim a oportunidade
justa de luta e manutenção da educação do campo contra hegemônica e de sobrevivência nessas
áreas junto ao crescente mercado do agronegócio e suas investiduras; a Agroecologia como
a nova ciência inter, multi e transdisciplinar, que consegue resolver as demandas agrícolas e
ecológicas presentes e propor soluções viáveis e sustentáveis para o futuro das localidades e do
planeta como um todo, inserido em seu sistema, que é único, requer grande aprofundamento
teórico e vasta experiência técnica e de vida não só no campo como nas salas de aula para atender
aos vários níveis de exigências que cada território e seus componentes de ensino trazem ao chegar
na Universidade.
Segundo Araújo (2022), não tem como se discutir a Educação do Campo desvinculada
da Agroecologia; pois estes discutem e lutam por uma agricultura social-econômica-
ambientalmente sustentável. Uma precisa embasar a outra na resistência contra o avanço das
políticas, propagandas e práticas das Commodities na busca pela resistência e sobrevivência da
agricultura familiar e da soberania alimentar no campo e na cidade.
Como bem afirma Caporal (2009), a Agroecologia, como matriz disciplinar, se encontra
no campo do “pensar complexo”, em que o pensamento complexo é o pensamento que se esforça
para unir, não na confusão, mas operando diferenciações”.

A Agroecologia, logo, não se emarca no paradigma convencional, cartesiano


e reducionista, no paradigma da simplificação (disjunção ou redução),
pois, como ensina Morin, este não consegue reconhecer a existência do
problema da complexidade. E é disto que se trata, reconhecer que nas
relações do homem com outros homens e destes com o meio ambiente,
estamos tratando de algo que requer um novo enfoque paradigmático,
capaz de unir os conhecimentos de diferentes disciplinas científicas, com
os saberes tradicionais (CAPORAL, 2009).

90
Educação do Campo na UFRRJ

O curso de Educação do Campo na UFRRJ surge a partir da demanda de escolarização


dos sujeitos das áreas rurais do Estado do Rio de Janeiro, garantindo assim não apenas uma
política pública voltada para o desenvolvimento econômico dos Assentamentos da Reforma
Agrária e do desenvolvimento intelectual e cultural desses trabalhadores e de seus filhos a partir
de sua visão de mundo, materializada na ampliação do acesso à escolarização de ensino médio
e superior. Em função dessa demanda dos sujeitos populares do campo e da dívida histórica
por parte do Estado na oferta de educação, ocorreu a criação do curso da LEC no âmbito da
UFRRJ no ano de 2010, constituída pelo convênio da UFRRJ com o INCRA a partir de Edital
PRONERA/2009 elaborado em parceria com os movimentos sociais e sindicais do campo e a
representação dos povos tradicionais. Em 2014, o curso de Licenciatura em Educação do Campo
é institucionalizado, tornando-se um curso regular.
O Curso de Licenciatura em Educação do Campo tem sua construção curricular a
partir da Pedagogia da Alternância e, atualmente, tem em sua composição 500h de disciplinas
e atividades acadêmicas (Laboratórios) de Agroecologia, porém outras disciplinas dialogam
direta ou indiretamente com a Agroecologia.

Com duração de 4 anos, o curso terá 3520 horas formando o egresso para
atuação na área de Ciências Sociais e Humanidades (Sociologia e História).
Além dessa formação para a Educação Básica, o estudante tem disciplinas
nas áreas de: AGROECOLOGIA, QUESTÕES AMBIENTAIS,
DIVERSIDADE E DIREITOS HUMANOS. Estes eixos se justificam,
por um lado, por conta da importância da Agroecologia no contexto
atual do Brasil e do mundo no que se refere à qualidade ambiental, à
estrutura fundiária, à alimentação, ao desenvolvimento local e ao acúmulo
da UFRRJ neste âmbito, bem como, por outro lado, da relevância dos
Direitos Humanos materializada na Resolução n. 1 de 30 de maio de
2012 (Diretrizes Nacionais para a Educação em Direitos Humanos). Estes
dois temas sociais – Agroecologia e Direitos Humanos – expressam a
crise do modo de vida da contemporaneidade, alicerçada na perspectiva
do uso instrumental e de consumo irracional da natureza e na crescente
regressão social que assola o Brasil e diversos lugares do mundo, traduzida
no extermínio ampliado dos pobres e da violação recorrente dos direitos
individuais e sociais, políticos e civis (UFRRJ, 2014, p.3).

Além das disciplinas e atividades acadêmicas do curso, existe o Grupo de Temático


Agroecologia (GT Agroecologia), o qual desenvolve atividades de extensão e pesquisa nas
diferentes comunidades, as quais fazem parte os/as educandas do curso.

O SAF da LEC UFRRJ

O curso de Licenciatura em Educação do Campo tem uma área experimental para


desenvolver aulas práticas de Agroecologia, a qual pretende-se que se torne um Sistema
Agroflorestal. Essa área é conhecida como “SAF da LEC” e está localizada dentro do campus da
UFRRJ. É uma área de 5 hectares, que fica próxima aos alojamentos e ao restaurante Universitário.
Atualmente, na área tem poucas árvores desenvolvidas, mas algumas em desenvolvimento,
visto a época de plantio, e há também espaço para desenvolver aulas de práticas agrícolas, nas
quais são discutidas temáticas do campo, suas problemáticas e possíveis soluções sustentáveis
e agroambientais (Figura 1). O SAF da LEC também é um espaço para discussões, atividades
referentes a semanas de integração e festas realizadas pelo curso, assim como oficinas, cursos e
eventos como lançamento de livros.

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Figura 1 – Aula do GT Agroecologia do curso de Licenciatura em Educação do Campo da UFRRJ no SAF
da LEC/UFRRJ. 2022. Seropédica-RJ.

Fonte: Arquivo pessoal

Perfil dos/a educadores/a do GT Agroecologia

O professor Tarci Gomes Parajara é professor da UFRRJ desde 1995, formado em


Licenciatura em Ciências Agrícolas, Mestre em Educação também por essa Universidade.
Compõe o grupo dos docentes fundadores do Departamento de Educação do Campo
Movimentos Sociais e Diversidade (DECMSD); tendo atuado no Departamento de Teoria e
Planejamento do Ensino (DTPE) em seus primeiros anos como docente. Engajado em questões
políticas, tem larga experiência em administração pública e docência; já atuou como chefe de
departamento e atualmente coordena o curso de Licenciatura em Ciências Agrícolas. Em suas
aulas, discute com os estudantes temas baseados em Paulo Freire, Libâneo e Ana Primavesi.
O professor Tarci atua nas disciplinas da área de Agroecologia para o curso de Educação do
Campo e Ciências Agrícolas. Porém, antes de qualquer disciplina, ele orienta o aluno a escolher
em ser, tornar-se ou não, um educador ou um professor. Após desenvolver esse momento de
reflexão ao longo da graduação, o referido professor discute Agroecologia e Sustentabilidade. Em
muitas aulas e práticas acadêmicas, usa o espaço do sistema agroflorestal (SAF) como elemento
didático, pedagógico e educativo para aproximar os alunos.
A professora Fabiana de Carvalho Dias Araújo é técnica em Agropecuária pela EAFCatu-
BA, atualmente IFBA campus Catu; Licenciada em Ciências Agrícolas, mestre e doutora em
Agronomia - Ciência do Solo pela UFRRJ. Em 2015, iniciou sua carreira como docente na
UFRRJ, atuando nos cursos de Licenciatura em Educação do Campo e de Licenciatura em
Ciências Agrícolas na área de Agroecologia. Coordena o curso de Especialização em Educação
do Campo – Programa Escola da Terra e também coordena projeto de pesquisa sobre resíduos
orgânicos e projetos de Extensão sobre hortas agroecológicas como recurso pedagógico em
escolas do município de Seropédica-RJ, além de participar de atividades de extensão no Museu
de Solos do Brasil/UFRRJ. Afirma que sua motivação a escolher a área é toda a reflexão crítica,
a ciência e a prática envolvida. Costuma dizer que a “Agroecologia é Vida e está relacionada
com todas as áreas da nossa vida”. Além de poder colaborar com a luta por uma Educação de
qualidade para os povos do campo, sabe que tem muito para ser feito e decidiu fazer parte dessa
luta. “(...) Sempre estudei em escola urbana, mas tinha um olhar diferenciado para as escolas
do campo, refletindo sobre o descaso com a educação do campo. Minha mãe foi merendeira e
minha irmã foi professora em escolas do campo e conversávamos, na época sobre o cotidiano
das escolas. (...)”
Um de seus focos de interesse mais atuante é o uso adequado e sustentável do solo e a
formação continuada de professores e professoras das escolas do campo. Autores como Ana

92
Primavesi, Paulo Freire e Miguel Altiere, Caporal, Stephen Gliessman e Eduardo Sevilla Guzman
ajudam a construir sua docência em sala de aula.
O professor Igor Simoni Homem de Carvalho atua na área de Agroecologia e Educação
do Campo. É Bacharel e Licenciado em Ciências Biológicas pela Universidade de Brasília
(UnB, 1998-2003); Mestre em Política e Gestão Ambiental pelo Centro de Desenvolvimento
Sustentável (CDS-UnB), com a dissertação “Potenciais e limitações do uso sustentável da
biodiversidade do Cerrado: um estudo de caso da Cooperativa Grande Sertão no Norte de
Minas”; Doutor em Ambiente e Sociedade pelo Núcleo de Estudos e Pesquisas Ambientais
(NEPAM), da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), com a tese “Campesinato e
biodiversidade no Cerrado: uma análise do Assentamento Agroextrativista Americana (Grão
Mogol-MG) à luz da agroecologia”; e realizou, em 2021, um pós-doutorado no Programa de
Pós-Graduação em Geografia da Faculdade de Formação (FFP) de Professores da Universidade
Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), com a pesquisa “Agroecologia em Assentamentos da Baixada
Fluminense: territórios e resistências camponesas”. Trabalhou em organizações da sociedade
civil como o Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN), a Fundação Pró-Natureza
(Funatura) e o Centro de Agricultura Alternativa do Norte de Minas. Lecionou as disciplinas
Educação Ambiental, Gestão Ambiental e Análise de Impacto Ambiental na Faculdade de Saúde
Ibituruna (Montes Claros, 2007-2008); e as disciplinas “Sociologia e Associativismo Rural”,
“Extensão Rural” e “Administração, Economia Rural, Associativismo e Comercialização” na
Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM), em 2013-2014.
Em 2015, passou no concurso da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ),
para a vaga de Agroecologia e Educação do Campo. Em julho de 2016, foi nomeado Coordenador
da Licenciatura em Educação do Campo (LEC) desta universidade, permanecendo nessa vaga
até outubro de 2018, quando me tornou-se vice-coordenador e assim permaneceu até outubro de
2020. Em 2017, ingressa como docente no Programa de Pós-Graduação em Educação Agrícola
(PPGEA) da UFRRJ. Em 2018, associa-se à AFOJO – Associação dos Produtores Rurais e
Artesãos da Microbacia do Fojo, de Guapimirim-RJ, passando a apoiar a produção agrícola, o
beneficiamento, a comercialização e a representação política da Associação.
Nesse período, passa também a contribuir com a AARJ – Articulação de Agroecologia do
Rio de Janeiro, integrando sua Coordenação Política como um dos representantes da Regional
Metropolitana, entre o final de 2020 e 2021. Compõe também a Comissão Pedagógica do
Projeto Sertão Carioca, executado pelo Programa de Agricultura Urbana da AS-PTA com
financiamento do Programa Petrobras Socioambiental. Este professor considera que atua na
Agroecologia desde o início da graduação (1998). (...) “Tendo como motivação na Agroecologia
a busca constante de respostas concretas para solucionar as crises que estamos vivendo:
ambiental, climática, social, econômica, de valores” (...). É o professor voltado para a Ecologia,
Questões Socioambientais, Política Agrária e Territórios, Feminismo Rural e Sustentabilidade,
Movimentos Sociais, Agroecossistemas e Desenvolvimento Territorial como pegada central da
Agroecologia. Cursos, dias de campo, debates, encontros e articulações, visitas guiadas, aulas
com visitas externas são a sua metodologia de ensino.
O professor Igor integrou o GT Agroecologia até o seu afastamento para o pós-doutorado,
ou seja, até 2021. Em 2022, após retornar do pós-doutorado, o professor Igor opta por um novo
GT o qual é denominado Agroecologia Política, Reforma Agrária e Territórios Camponeses
passando a atuar separado do grupo original, que é o de Agroecologia.

Perfil do/a educando/a do GT Agroecologia

A maioria dos/as educandos/as que opta por fazer parte do GT Agroecologia é o indivíduo
que já conhece a temática e deseja desenvolver um tema dentro da linha de pesquisa ou extensão.
Independente de algum conhecimento anteriormente adquirido, todos querem aprender sobre

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agroecologia, educação ambiental, feminismo rural, agroecologia política, entre outros.
Para o professor Tarci G. Parajara, o perfil do/a educando/a que busca esse GT é antes
de tudo um curioso e com vontade de arriscar a conhecer algo novo e inovador, diferente de
tudo o que tenha visto anteriormente em outras disciplinas dentro da Universidade. São, em sua
maioria, estudantes da Baixada Fluminense, do primeiro ao sexto período, quando finalizam a
atividade acadêmica Núcleo de Ensino, Pesquisa e Extensão (NEPE).

Educação do Campo e o grupo temático Agroecologia

No início, os GT’s eram divididos por territórios. Em 2016, com os cortes de verbas
públicas para a educação, o GT passa a ser configurado com a conformação que possui até hoje;
seguindo a linha de pesquisa e/ou extensão e interesse de cada professor/a orientador/a.
Com isso, em 2016, foi criado o Grupo Temático Agroecologia, o qual teve como
orientadores: Tarci Gomes Parajara, Fabiana de Carvalho Dias Araújo e Igor Simoni Homem
de Carvalho, no qual os discentes escolhiam seus temas e local a ser desenvolvida a pesquisa
ou o trabalho de extensão durante o Tempo Comunidade (TC) e apresentado no Trabalho
Integrado (TI). Esse trabalho partia dos conhecimentos que os discentes adquiriam e trocavam
no TE (Tempo Escola), para assim expandir sua pesquisa. Alguns discentes escolhiam aplicar
horta nas escolas, outros procuravam temas específicos para ampliar os conhecimentos, outros
desenvolviam atividades e projetos no próprio SAF da LEC.
Os grupos são formados por linhas de interesses que seguem a formação de seus
orientadores. Os/as docentes que atuam no curso dividem-se em 6 Grupos Temáticos que
irão compor o trabalho de pesquisa e/ou extensão durante o Tempo Comunidade. Entre esses
grupos temáticos está o de Agroecologia, o qual tem como metodologia os encontros semanais,
a pesquisa, a execução do trabalho de pesquisa e/ou extensão e a escrita e apresentação coletiva,
a qual culmina no Trabalho Integrado, que é descrito no Projeto Político Pedagógico como:
O trabalho integrado articula através dos momentos pedagógicos
freireanos – Estudo da realidade, organização do conhecimento e aplicação
do conhecimento – os conhecimentos específicos trabalhados nas
disciplinas e a pesquisa como princípio pedagógico. Os estudantes durante
o Tempo-Comunidade realizam o estudo da realidade que é apresentado
no início de cada etapa, articulando os diversos conhecimentos específicos
trabalhados em cada disciplina. O trabalho integrado será realizado no
espaço curricular da atividade acadêmica Núcleo de Ensino, Pesquisa e
Extensão (NEPE) (UFRRJ, 2014. p.17).

Alguns projetos foram realizados no período 2018.2, como a colocação de um ponto de


água no SAF da LEC, a implantação de um barracão construído com o auxílio da bioconstrução,
a instalação de uma caixa d’água para armazená-la. No SAF foram plantadas diversas culturas,
dentre elas árvores frutíferas, como abacateiro, bananeiras, mangueiras, amoreiras e outras
árvores ornamentais. Construíram e produziram uma horta Mandala para cultivo de hortaliças
e plantas medicinais.

Alguns exemplos de pesquisa no GT de Agroecologia

As pesquisas escolhidas permeiam vários temas como: o uso de hortas escolares como
ferramenta pedagógica para as várias modalidades de ensino, hortas residenciais, hortas para
idosos, educação ambiental e agroecologia, plantas alimentícias não convencionais (PANC);
plantas medicinais, agricultura urbana, oficinas com geotinta, tintas naturais; a bioconstrução
como o domo geodésico ou compoteiras; e/ou minhocário de bambu, até mesmo o barracão

94
de ferramentas feito de barro e garrafas recicláveis. Esses temas podem se relacionar com outros
GT´s, devido a complexidade. Como exemplo, as plantas medicinais e o conhecimento ancestral.
Os trabalhos são construídos metodologicamente seguindo preceitos de Paulo Freire, em
que existe um primeiro momento de escuta por parte dos docentes sobre as linhas de pesquisa
e interesse dos alunos. Após definido o estudo de interesse, são propostas e sugeridas leituras
textuais, observações, análises e experimentações de campo, para serem trabalhados tanto no
Tempo Escola, como no Tempo Comunidade. Bem como a contínua escrita criativa e pessoal e
a correção do trabalho, como um todo, ao longo do período e mais intensamente ao final do TC
para apresentação durante o TI, que é um espaço pedagógico, onde são apresentados oralmente
todas as pesquisas de todos os GT´s que compõe a LEC.
Segundo Pinho (2008), ao alternar períodos na escola e na vivência de
sua comunidade, o jovem constrói conhecimentos no diálogo entre o
saber cotidiano, a prática, o trabalho passado de gerações a gerações
e o saber escolarizado. Essa relação pode possibilitar a apropriação de
saberes historicamente defendidos e o acesso às técnicas cientificamente
comprovadas. Assim, a pedagogia da alternância pode contribuir com
a formação dos jovens da seguinte maneira: desenvolvendo a reflexão
crítica, a responsabilidade individual e coletiva e fortalecendo as famílias
do campo na tentativa de envolver os sujeitos na busca de um mundo mais
solidário, justo, humano e ético.

Até meados de 2015 aceitava-se a formação individual dos grupos por linha de pesquisa.
Porém a partir de 2021, por conta da grande quantidade de alunos que procuravam o GT, este
passou a ser construído de forma coletiva, passando a compor grupos de 3 até 5 educandos/
as por tema de interesse (Quadro 1). Desta forma, a cada semestre são apresentados em média
15 pesquisas e/ou trabalhos de extensão nesse GT, sendo alguns posteriormente publicados
em eventos acadêmicos e científicos e alguns educandos/as continuam a investigação até a
monografia.
Os municípios de abrangências dos trabalhos estão relacionados com os/as educandos/
as que vivem em seus territórios, sendo estes estudantes residentes nos municípios: Seropédica,
Jaceruba ( Japerí), Nova Iguaçu, Santa Cruz (RJ), Duque de Caxias, Angra dos Reis, Paraty,
Mangaratiba, Marapicú, Serra do Piloto, Sepetiba, Rio de Janeiro e Seropédica.

Quadro 1. Temas de Pesquisas e de Extensão do Grupo de Agroecologia

Temas Quantidades de Contribuem para as Seguintes Questões

Trabalhos
Feira de Agricultura da UFRRJ/ 3 Soberania Alimentar

Japerí
Educação Ambiental 4 Educação Ambiental

Política e Agroecologia 14 Saberes Populares


Associação de Mulheres 3 Segurança Alimentar e Nutricional

Êxodo Rural 1 Reforma Agrária

Projeto Agroecológico na 1 Educação Ambiental e Social

comunidade Campo Belo


Hortas Medicinais – Sistema 1 Saúde

Mandala
Horta na Escola 5 Soberania Alimentar

Horta Comunitária 1 Soberania Alimentar

Projetos Agroecológicos 3 Educação e política

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Reconhecimento da Região 11 Educação e política

Assentamentos 9 Reforma Agrária

Agricultura Familiar 2 Segurança Alimentar e Nutricional

Bioconstrução 4 Educação Ambiental e Social

Plantas Alimentares não 3 Segurança Alimentar e Nutricional

Convencionais (PANC)
Alporquia 1 Meio Ambiente

Floresta Nacional Mário Xavier 1 Meio Ambiente

Projeto Terrapia 1 Educação Ambiental e Social

Permacultura 1 Educação Ambiental e Social

Criação de galinhas 1 Educação Ambiental e Social


Hortas Mandalas 1 Soberania Alimentar

Projeto de Implantação de esgoto 1 Educação Ambiental e Social

ecológico
PAA – Programa de Aquisição de 1 Soberania Alimentar

Alimentos
Plantas Medicinais 7 Saúde

Jardim dos Sentidos 2 Educação e política

Arborização 1 Educação Ambiental e Social

Período Pandêmico para os 4 Soberania Alimentar

agricultores
Compostagem 2 Meio Ambiente

Proposta de Turismo Pedagógico 1 Educação Ambiental e Social

após Pandemia
Jardim Residencial 1 Meio Ambiente

Reconstrução de área de pastagem 1 Meio Ambiente

Sistema Integrado de Produção 2 Educação Ambiental e Social

Agrícola
Programa Nacional de Alimentação 1 Educação Ambiental e Social

Escolar (PENAI)
Reciclagem na Escola 1 Meio Ambiente

Sistema Agroflorestal (SAF) da 5 Educação Ambiental e Social

LEC
Conhecimento Tradicionais 1 Saberes Populares

Quintais 3 Saberes Populares

Os orientadores incentivam a apresentação de trabalhos em eventos e a sua publicação.


Desta forma, alguns trabalhos foram apresentados em eventos a partir da pesquisa ou atividade
de extensão realizada no GT Agroecologia, tais como: Cinasama (LIMA et al., 2022; SILVA
et al., 2022), (Andrade e Martins, 2021); Congresso Brasileiro de Agroecologia (Oliveira et al.,
2020), Esperançar Juventudes: experiências agroecológicas de jovens do campo, das florestas,
das águas e das cidades (Silva et al., 2021).
Alguns trabalhos realizados no GT Agroecologia, tornaram-se trabalhos de conclusão

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de curso, tais como: Hortas e quintais agroecológicos em espaços escolares e não escolares no
bairro Jardim Maracanã, Seropédica-RJ (SILVA, 2021); Projetos agroecológicos: estudo de
caso no Ciep Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda no município do Rio de Janeiro – RJ
(AZEVEDO, 2022); A Rede Agroecológica de Saquarema -RJ (OLIVEIRA, 2020); Horta
escolar como recurso didático pedagógico na educação do campo (SANTOS, 2021), entre
outros.

O grupo temático de Agroecologia e a pandemia de Covid-19

Durante a Pandemia de Coronavírus (COVID-19), que é uma doença infecciosa causada


pelo vírus SARS-CoV-2, entre 2020 e 2021, ocorreram 3 períodos de forma remota. Nesse
momento, optou-se por trabalhos de pesquisa realizados em suas residências ou entrevistas via
whatsApp.

Considerações finais

O GT Agroecologia é o elo entre o saber popular e o saber acadêmico e científico. O


grupo desenvolve atividades de extensão e/ou pesquisa em suas comunidades, dialogando até
mesmo com outros grupos temáticos.
A Agroecologia dialoga com várias áreas da Educação do Campo e não seria diferente
com o GT, ou seja, o GT Agroecologia dialoga com outros grupos temáticos e há educandos/as
que participam de atividades de outros GT´s como forma de contribuir com a sua discussão.
O GT Agroecologia colabora para a formação de educandos/as e educadores com diversos
temas que são discutidos e desenvolvidos nas comunidades, considerando que o Educador é
também educando e o Educando é também educador. O GT Agroecologia é sempre um dos
maiores do curso, ou seja, há grande procura pelos educandos/as para discutir e vivenciar a
Agroecologia.
Os coordenadores do GT Agroecologia compreendem que não há como discutir
Educação do Campo sem trazer a Agroecologia para a discussão. E que a Agroecologia é prática,
movimento, ciência, política, educação, saúde, diversidade, ou seja, Agroecologia é Vida!

97
REFERÊNCIAS

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101
CAPÍTULO 8 - FORMAÇÃO CONTINUADA DE PROFESSORES DE ESCOLAS
MULTISSERIADAS: DO PROGRAMA ESCOLA ATIVA AO PROGRAMA
ESCOLA DA TERRA

Pedro Clei Sanches Macedo19

Resumo

A presente pesquisa apresenta algumas reflexões acerca das políticas públicas em educação do
campo a partir do estudo do Programa Escola da Terra, criado pela Portaria nº 579 de 02 de
julho de 2013, no âmbito do Programa Nacional de Educação do Campo (PRONACAMPO),
com o objetivo de promover a formação continuada de professores que atuam em escolas
localizadas em comunidades rurais e quilombolas, para atender as necessidades específicas
das turmas multisseriadas. Nosso intuito é traçar um breve histórico sobre a implantação das
políticas de formação continuada para os professores de escolas multisseriadas realizadas no
âmbito do Ministério da Educação em parcerias com os estados e municípios, desde a sua gênese
com a implementação do Programa Escola Ativa até a proposição de um novo programa, neste
caso, o Escola da Terra. Os resultados apresentam uma análise macro relacionada ao contexto
de reformulação e redirecionamento dessas políticas, evidenciando o processo de resistência de
diferentes grupos de interesses, com destaque ao Movimento por uma Educação do Campo que
propõe mudanças significativas que foram sendo incorporadas nos projetos de formação docente
implementados pelas universidades federais com apoio dos movimentos sociais campesinos,
pesquisadores, professores da educação básica, fóruns, sindicatos, entre outros.

Palavras-chave: Educação do Campo. Formação Docente. Classe Multisseriada. Escola Ativa.


Escola da Terra.

Introdução

A necessidade de políticas de formação continuada de professores para as escolas do


campo com classes multisseriadas é evidenciada no cenário nacional com a implementação do
Programa Escola Ativa e, logo em seguida, com o Programa Escola da Terra, como importantes
políticas públicas para as escolas campesinas. No entanto, é urgente refletir o caminho percorrido
por essas políticas, compreendendo que a formação de educadores do campo é um espaço
de disputa hegemônica que também apresenta tensões e contradições, como a influência de
organismos internacionais na implementação de políticas educacionais e a atuação das frações
da classe dominante com bases neoliberais, contrapondo aos ideais do movimento de Educação
do Campo que defende uma formação alicerçada na construção dialética com as universidades
federais, na autonomia dos estados e municípios, na construção coletiva, no diálogo com
os movimentos sociais, na troca de saberes, na diversidade das experiências, na alternância
pedagógica, na humanização do processo educativo e no respeito a cultura e a diversidade.
A pesquisa é de abordagem qualitativa e foi realizada a partir de um levantamento
bibliográfico acerca da temática, seguida de uma pesquisa documental (legislações, portarias,
decretos, manuais, projetos e relatórios). O artigo é um recorte da Tese de Doutorado em
Educação da UFRRJ que tratou do estudo do Programa Escola da Terra na Amazônia
Amapaense. Como resultado, contextualizamos historicamente os principais marcos para a
19 Doutor em Educação no Programa de Programa de Educação, Contextos Contemporâneos e Demandas
Populares da UFRRJ; Mestre em Ciências no Programa de Pós-graduação em Educação Agrícola (PPGEA) da
UFRRJ. Graduado em Pedagogia pela Universidade Federal do Amapá (UNIFAP). Email: pedroclei@hotmail.com.

102
consolidação das políticas de formação continuada para professores de escolas multisseriadas,
evidenciando o protagonismo dos movimentos sociais campesinos através do Fórum Nacional
de Educação do Campo (FONEC) na crítica construtiva do Programa Escola Ativa, mesmo
depois de ressignificado, e a proposição de um novo modelo de formação continuada, que
estivesse fundamentado politicamente nos princípios que compunham o Movimento por uma
Educação do Campo, com vista à superação de uma visão enviesada e distante da realidade social,
política e econômica e de um currículo desfocado da cultura popular.
É neste contexto de mudança, que precisamos compreender como se deu a implementação
do Programa Escola da Terra, em substituição ao Programa Escola Ativa, criado como uma das
ações do Programa Nacional de Educação do Campo – PRONACAMPO, pela Portaria nº
579 de 02 de julho de 2013, para dar apoio técnico e financeiro aos Estados, Distrito Federal
e Prefeituras Municipais, na implementação da política de Educação do Campo, através de
ações de melhoria na infraestrutura das redes públicas de ensino, formação inicial e continuada
de professores, produção e disponibilização de material específico aos estudantes do campo e
quilombolas.
Vale ressaltar que muitas propostas de formação continuada de professores da Educação
Básica encaminhadas pelas secretarias estaduais e municipais de educação apresentam modelos
padronizados para todas as escolas, sem considerar as especificidades das escolas do campo,
predominando currículos distantes dos princípios emancipadores da educação e de uma
estreita relação com os sujeitos do campo, principalmente para as séries iniciais do ensino
fundamental, que trabalham com classes multisseriadas. Por esse motivo, necessitamos defender
a obrigatoriedade de construção e manutenção de escolas do campo, a partir de projetos
que viabilizem a formulação de propostas pedagógicas e políticas de formação continuada
para professores, coadunados aos princípios norteadores da Educação do Campo, enquanto
concepção humana e dialógica, que defende a vida do sujeito do campo em todas as dimensões
(política, social, econômica, cultural), não somente garantindo sua permanência na terra, mas
dando condições dignas de sobrevivência, com direito à educação, saúde, alimentação, moradia,
reforma agrária, previdência social, entre outros.

O Programa Escola Ativa e a perspectiva crítica do Movimento por uma Educação do


Campo

Com a aprovação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDB 9.394/96,


ocorre um processo de reformulação do ensino brasileiro, entre eles, destacamos a criação
do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental de Valorização do
Magistério (FUNDEF), em 1998, e o fortalecimento institucional do Fundo Nacional de
Desenvolvimento da Educação (FNDE) nos anos 2000. Esses fundos fortaleceram as políticas
educacionais estabelecendo critérios para a transferência de recursos financeiros às escolas
públicas que atuam com o Ensino Fundamental, tendo como consequência a aceleração do
processo de municipalização para esta etapa de ensino em todo o território nacional.
A construção inicial de um projeto de qualificação de professores das escolas multisseriadas
nasce num contexto de profundas transformações na lógica de acumulação do capital no campo,
representada pelo modelo agrícola baseado no agronegócio, que diz respeito a uma aliança entre
os grandes proprietários de terra, o capital estrangeiro e o capital financeiro. Nesta conjuntura,
vários países latino-americanos empreenderam mudanças para responder ao novo contexto
econômico, político e cultural que se configurava. Para Gonçalves (2009, p. 23)
Tais mudanças foram, em grande parte, induzidas pelas agências
multilaterais de fomento, como o Fundo Monetário Internacional (FMI),
o Banco Mundial (BM) e o Banco Interamericano de Desenvolvimento
(BID), que proveram, por meio de empréstimos, os recursos para realizar a
reforma do Estado, bem como para o desenvolvimento e reformulação de

103
programas sociais e políticas públicas, desde que estivessem de acordo com
os seus preceitos, ou seja, atendessem às condicionalidades cruzadas com o
FMI e seu programa de ajuste estrutural para os países muito endividados.

Com isso, novas formas de organização dos sistemas educacionais brasileiros são
desenvolvidas como consequência de uma série de programas implementados com o objetivo
de expandir o acesso à educação, definida, em grande parte, pelos organismos multilaterais que
financiavam sua implementação através de políticas de financiamento, de avaliação, currículo e
formação de professores compreendidas entre os teóricos da educação como a versão neoliberal
da globalização (GONÇALVES, 2009).
Uma das primeiras iniciativas de política pública implementada pelo Estado brasileiro
para as escolas com classes multisseriadas no Brasil foi o Programa Escola Ativa (PEA),
desenvolvido a partir de 1997, no marco de um convênio com o Banco Mundial (BM), com
o objetivo de melhorar o rendimento de alunos de classes multisseriadas rurais, a partir da
formação de professores e da melhoria da infraestrutura das escolas. O PEA foi elaborado a
partir da experiência do Programa Escuela Nueva (PEN), desenvolvido na Colômbia na década
de 1970 e replicado em diversos países da América Latina na década de 1980. A experiência
na Colômbia foi parâmetro para a construção da proposta no Brasil, em 1996, por meio do
Fundo de Fortalecimento da Escola (Fundescola). A proposta metodológica deste programa foi
fundada nos princípios escolanovistas, consolidando-se como modelo internacional de reforma
para educação no meio rural, exclusivamente para as classes multisseriadas (ANTUNES-
ROCHA e HAGE, 2010; D’AGOSTINI et al, 2012).
Os princípios pedagógicos básicos do PEN desenvolvido na Colômbia foram inspirados
nas obras de Pestalozzi, Herbart, Dewey, Freinet, Makarenko e Montessori, que utilizam
estratégias para propiciar ao aluno um aprendizado ativo. Baseado nestes princípios básicos,
o PEN trabalha com recursos pedagógicos específicos: (1) os Guias de aprendizagem, os (2)
Cantinhos de aprendizagem, a (3) Biblioteca escolar, o (4) Governo escolar e a (5) Promoção
flexível. Na década de 1990, enquanto modelo sistematizado para a educação de escolas
multisseriadas rurais na Colômbia, “o PEN passou a refletir a orientação do BM para o alívio
da pobreza e para a reforma educacional na América Latina: foco na educação dos mais pobres
entre os pobres, ou seja, a população rural dos países latino-americanos, com baixos índices de
escolarização” (GONÇALVES, 2009, p. 30).
As primeiras discussões para implantação do PEA ocorreram em maio de 1996, quando
técnicos do Projeto Educação Básica para o Nordeste (Projeto Nordeste) do MEC e dos estados
de Minas Gerais e Maranhão foram convidados pelo BM a participar, na Colômbia, de um curso
sobre a estratégia “Escuela Nueva - Escuela Activa”, que tratava da socialização da experiência
formulada por um grupo de educadores colombianos. Após essa iniciativa, em agosto de 1996,
foi realizado em Brasília, um seminário, coordenado por um representante da “Fundación
Volvamos a la Gente” – instituição que foi responsável pela implementação da metodologia na
Colômbia – que reuniu a partir do Projeto Nordeste todos os secretários de educação e diretores
de ensino dos estados da região nordeste a fim de conhecerem e decidirem sobre a adesão da
proposta (AZEVEDO, 2018; D’AGOSTINI et al, 2012).
Segundo as definições do MEC, o PEA foi criado para auxiliar o trabalho educativo nas
classes multisseriadas das escolas rurais, com o objetivo de aumentar nível de aprendizagem
dos alunos; reduzir a repetência e a evasão; e elevar as taxas de conclusão das séries iniciais
do Ensino Fundamental (1ª a 4ª série), a partir da formação de professores e melhoria na
infraestrutura dessas escolas. A implantação estratégica do PEA no Brasil ocorreu em 1997 em
escolas da Região Nordeste, cujas primeiras experiências foram implementadas nos estados da
Bahia, Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte, Ceará, Maranhão e Piauí, com assistência
financeira do Projeto Nordeste/MEC e, posteriormente, o programa foi ampliado para as
demais regiões no marco de um convênio com o BM. As principais estratégias eram: garantir

104
a formação continuada em serviço das equipes escolares sobre a metodologia do Programa;
assessorar, técnica e pedagogicamente, os educadores das escolas do campo; fornecer os cadernos
de ensino-aprendizagem e kits pedagógicos que estimulem a construção do conhecimento do
aluno (MEC, 2010).
O PEA é uma estratégia metodológica implementada inicialmente pelo Governo
de Fernando Henrique Cardoso e que continuou no Governo de Luiz Inácio Lula da Silva,
destinado às escolas com classes multisseriadas, ou escolas de pequeno porte, em local de difícil
acesso, com baixa densidade populacional, com apenas um professor, nas quais todas as séries/
anos estão agrupadas numa mesma sala de aula. Quanto à sua operacionalização, o programa
consiste em formação, multiplicação e monitoramento, organizados da seguinte maneira:
a Secadi oferece formação e orientação para os professores-pesquisadores e
os formadores das IES e para os técnicos responsáveis pelo monitoramento
das secretarias de Educação dos estados; as IES oferecem formação e
orientação para os multiplicadores (técnicos das secretarias municipais de
Educação). Esses, por sua vez, multiplicam a formação para os professores
de escolas multisseriadas. Os técnicos das secretarias estaduais realizam
monitoramento e supervisão de todo o processo. Isso se dá a partir de seis
módulos de formação dos professores da IES capacitados pela equipe da
Secadi. As consequências são a reprodução de conteúdos desconexos da
realidade do campo e, muitas vezes, a dificuldade para replicar na escola
do campo os conteúdos tratados com os formadores dos formadores. A
proposição das IES foi a alteração dos conteúdos do processo de formação,
com ênfase na formação de professores para trabalhar coletivamente
e construir o projeto político-pedagógico, os currículos e os programas
escolares de forma autônoma, adequada a cada realidade; [...] O programa
dispõe de financiamento para kits escola, livros didáticos, formação, bolsas
e supervisão (D’AGOSTINI, 2012, p. 317).

A formação de professores das classes multisseriadas ocorreu num processo gradativo de


estruturação ao longo dos anos. Entretanto, foi passível de inúmeras críticas por estudiosos, por
ser sido considerada, por muitos, como uma ação isolada desde sua origem e apresentada aos
estados e municípios como um pacote educacional com pouquíssimos diálogos entre o contexto
das escolas multisseriadas e os sujeitos, individuais e coletivos, do campo. (ANTUNES-ROCHA
e HAGE, 2010). Em decorrência, especialmente, das referências de base neoliberal, com raízes
no pragmatismo e nas concepções escolanovistas e neoconstrutivistas, o Programa Escola Ativa
teve dificuldades em atender as necessidades de base teórica do trabalho pedagógico nas escolas
do campo.
Em 1999, quando o Projeto Nordeste chega ao final, o PEA se vincula ao Fundescola,
e suas ações de implementação foram disseminadas nas regiões que compunham a Zona de
Atendimento Prioritário (ZAP) do referido programa. Esse processo foi dividido em cinco
fases. A primeira fase: implantação e testagem - momento de formulação, implementação,
acompanhamento do programa e seu amoldamento à realidade brasileira, na observância de sua
efetividade e execução - compreendeu o período de 1997 a 1998 em estados da região Nordeste.
Na segunda fase, a partir de 1999, houve uma expansão do PEA, em razão das solicitações por
parte de estados e municípios do Nordeste e do Centro-Oeste. A terceira fase foi caracterizada
pela consolidação do PEA, com a criação da rede de formadores (multiplicadores), com o
envolvimento de estados e municípios nas ações de formação e de monitoramento.
Na quarta fase, denominada expansão II, o programa foi ampliado para as áreas que não
compunham o ZAP, o que ocasionou uma “expansão autônoma”, atribuindo aos municípios
responsabilidades como realizar a formação dos professores, dotar as escolas de estrutura física
e de kit pedagógico. Por este motivo, coube ao Fundescola a distribuição dos materiais para a
formação dos professores e dos Guias de aprendizagem para os alunos. Por fim, na quinta fase
– disseminação e monitoramento -, a implantação e o monitoramento do PEA se vincularam

105
às ações educacionais da Coordenação Geral de Fortalecimento Institucional (CGFOR/
Diretoria de Programas Especiais/FNDE/MEC), composta por uma rede de gestores, técnicos,
professores, alunos e pais, objetivando apoiar e garantir a sustentabilidade do programa nos
Estados e Municípios (AZEVEDO, 2018).
De agosto de 2004 até setembro de 2006, mesmo com a criação da Secretaria de
Alfabetização e Diversidade SECAD/MEC, o PEA permaneceu na estrutura do FNDE
– agência que faz a gestão dos recursos do MEC advindos do Banco Mundial. Somente no
decorrer de 2007, o PEA passou a ser gerido pela SECAD20, momento em que foram encerradas
as transações com o Banco Mundial, e o MEC assume o programa com recursos próprios,
expandindo-o a todas as regiões do país. Neste período, o MEC chegou a solicitar uma avaliação
com vistas a redirecionamentos, mas esta avaliação, feita pela Universidade Federal do Pará
(UFPA), nunca chegou a ser considerada (D’AGOSTINI et al, 2012). Sobre esse período de
execução do programa e a ausência de avaliação institucional, já no Governo Luís Inácio Lula da
Silva, Antunes-Rocha e Hage (2010, p. 237) fazem a seguinte crítica:
A mudança de governo na esfera federal a partir de 2003 gerou a expectativa
de que processos mais democratizantes pudessem ser desencadeados em
relação ao Programa, consoante aos princípios que nortearam a política
educacional no país a partir de então. No entanto, o processo de expansão
permaneceu sem avaliação institucional e controle social, o Programa teve
seus Guias de Formação reformulados, principalmente para atualização
da legislação educacional; os Guias de Aprendizagem foram reimpressos
eivados de equívocos, preconceitos com o campo, conteúdos desatualizados
e descontextualizados.

Em 2008, com o término do Fundescola, o PEA é transferido para a Coordenação Geral


de Educação do Campo (CGEC/SECAD), incorporando-o às ações da Política Nacional de
Educação do Campo, diante da necessidade de avaliação e reconfiguração do programa, uma
vez que as diretrizes propostas pela CGEC expressavam uma proposta de política pública
construída com a participação coletiva de diferentes sujeitos, situados em diferentes lugares
na dinâmica social. A CGEC foi criada a partir da luta de movimentos sociais, universidades,
organizações não governamentais e religiosas no contexto da Articulação “Por uma Educação
do Campo”. Esta articulação estava enraizada em uma proposta político-pedagógica construída
por meio do diálogo com os sujeitos envolvidos na luta pelos direitos fundamentais de acesso,
da permanência e do direito à escola pública de qualidade no campo (ANTUNES-ROCHA e
HAGE, 2010).
Neste sentido o PEA foi assumido pela SECAD, como ação prioritária para a educação
básica no campo, e as IES foram convidadas a participar das iniciativas nos estados e municípios,
juntamente com as secretarias de Educação, o que possibilitou um aprofundamento das críticas
à proposição teórico-metodológica do Programa. Assim, a partir de 2008, o PEA é reformulado,
em meios aos debates e críticas ocasionados pela incorporação dos princípios, conceitos,
metodologias e práticas da articulação que estavam sendo construídas nas Conferências
Nacionais “Por Uma Educação Básica do Campo” (1998) e “Por uma Educação do Campo”
(2004), Conferências Estaduais, criação de fóruns e redes estaduais e municipais, publicações e
instalação de comissões nos órgãos públicos para acompanhar, discutir, avaliar e propor ações no
âmbito das políticas públicas para a educação do campo no Brasil. Com uma nova configuração,
o PEA passou a ser disponibilizado para todos os municípios brasileiros na perspectiva de apoiar
os sistemas estaduais e municipais na melhoria das escolas multisseriadas, com o fornecimento de
recursos pedagógicos e de gestão. As universidades foram convidadas a atuarem como parceiras
na execução do processo formativo (ANTUNES-ROCHA e HAGE, 2010).

20 Em maio de 2011, via decreto, acrescentou-se o eixo “inclusão” à SECAD, introduzindo em seu leque de
ações as atribuições antes alocadas na Secretaria de Educação Especial (SEESP). Assim, a SECAD torna-se SECADI.

106
Por conseguinte, o PEA é incorporado em todos os municípios brasileiros a partir do
Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE), na perspectiva de apoiar os sistemas estaduais
e municipais, com o objetivo de melhorar a educação nas escolas do campo com classes
multisseriadas, fornecendo recursos pedagógicos e de gestão. Nesse contexto, os municípios
deveriam aderir ao programa por meio do Plano de Ações Articuladas (PAR), e as universidades
foram convidadas a atuarem como parceiras na execução do processo formativo (ANTUNES-
ROCHA e HAGE, 2010). Vale ressaltar que, apesar das IES terem assumido o compromisso
com a formação Escola Ativa – Adesão 2008, somente em 2009 receberam as informações
reais acerca da quantidade de municípios e de escolas que aderiram ao Programa e a própria
operacionalização do programa foi sendo apresentada nos módulos de formação dos formadores
no decorrer dos anos 2009 e 2010. Apesar da aprovação dos projetos pela SECAD e pelo FNDE
o recurso é liberado sempre com um ano de atraso (FONEC, 2011).
Sobre este período em que o PEA passou a ser coordenado pela antiga SECAD a partir
das ações do PDE e do PAR, Azevedo (2018, p. 42) esclarece

[...] o MEC adotou uma política de expansão do Escola Ativa para todos
os estados e para o Distrito Federal, reconfigurando o material didático-
pedagógico e os módulos de capacitação dos profissionais que atuam com
a metodologia. Cabe frisar que os técnicos das Secretarias Estaduais e
do Distrito Federal que atuavam no Programa e que trabalhavam com a
metodologia, assim como alguns professores das universidades públicas,
foram envolvidos nesse processo. Esses profissionais assumiram ainda a
formação dos supervisores pedagógicos e dos professores que trabalhariam
com o Escola Ativa em seus respectivos estados.

Em 2009, foram distribuídos cadernos de ensino e aprendizagem do 1º ano de todas


as disciplinas para os educandos com 6 (seis) anos de idade, além do caderno de orientações
pedagógicas para formação de educadores e o projeto base do Programa Escola Ativa, elaborados
conforme os fundamentos, princípios e concepções da educação do campo. Em 2010 todos os
educandos do 1º ao 5º ano receberam os cadernos de ensino e aprendizagem reformulados na
perspectiva da educação do campo (MEC, 2010, p. 45).
Em 2011, o Fórum Nacional de Educação do Campo (FONEC) publica uma nota técnica
sobre o Programa Escola Ativa. Esta nota apresenta uma análise crítica com o objetivo de avaliar
a continuidade do Programa, a partir das diferentes posições sobre multisseriação e o contexto
da sua implantação na América Latina (FONEC, 2011). Esse relatório foi fundamental para
o redimensionamento de novas propostas construídas no contexto de institucionalização do
Programa Nacional de Educação do Campo (PRONACAMPO) e, consequentemente, da
criação do Programa Escola da Terra, em substituição ao Programa Escola Ativa.
Oliveira (2013), ao fazer uma análise comparativa da experiência na Colômbia e no
Brasil, destaca que o Programa “Escuela Nueva” teve êxito devido às diferentes condições no
processo de implantação da proposta para as escolas multisseriadas. Na Colômbia, o sucesso
ocorreu principalmente em regiões povoadas por famílias rurais de classe média, verificando-se
a existência de escolas com infraestrutura adequada, além de se apostar fortemente no trabalho
docente e na mobilização e execução do programa. O resultado foi promissor, ao alcançar os
objetivos da promoção ao acesso à educação e a diminuição da evasão escolar. Enquanto no
Brasil apresentou-se uma outra realidade, que perpassam pelas situações no processo de gestão,
no cotidiano escolar e no âmbito da ação dos professores. Outros percalços referem-se à estrutura
física das escolas, ao atraso do material didático-pedagógico, à compreensão dos conteúdos e às
atividades dos cadernos de ensino e aprendizagem.
Portanto, as críticas apontadas nos relatórios do FONEC (2011) e em pesquisas sobre as
experiências desenvolvidas em instituições de ensino superior revelam problemas e dificuldades
na implementação do programa, mesmo ainda no Governo Lula, conforme sintetizamos no
quadro a seguir:

107
Quadro 1: Críticas ao Programa Escola Ativa21

Crítica quanto ao/à Problemas e Dificuldades


Devido ao financiamento com o BM como política compensatória, via or-
Origem do Programa ganismos multilaterais e por ter um perfil de política focal e assistencialista
viabilizado pelo Governo FHC no início de sua implantação.
Não sintonia com os pressupostos teóricos da Educação do Campo, tendo
Base teórica em vista a sua base teórica com raízes no pragmatismo e nas concepções
escolanovistas e neoconstrutivistas.
A regulamentação via decreto não o assegurou como uma política pública
permanente.
Financiamento
Atraso na aprovação, liberação e repasse de recursos, prejudicando o cum-
primento dos compromissos e prazos assumidos pela SECAD.
A hierarquização do programa, desconsiderando a necessidade de autono-
mia na sua gestão local. A relação entre governo federal, universidades e
Gerência do Programa pelo MEC
secretarias era burocratizada, por interferir diretamente na autonomia da
escola e dos professores.
Falta de condições necessárias às IES e na Coordenação Estadual para
execução do PEA; dificuldades na comunicação com municípios (falta de
Descentralização linha telefônica, serviço de correio computadores, etc.).
Falta de logística nas secretarias estaduais de educação (técnicos especiali-
zados, logística de distribuição do material, espaços para a formação, etc.).
Em algumas instituições, a falta de pessoal técnico-administrativo e de
Recursos Humanos professores-pesquisadores do quadro efetivo que aceitem assumir a forma-
ção;
Voltadas somente para a técnica de ensino, para a gestão restrita e para a
dimensão pedagógica técnica; ausência de autoavaliação;
Preparação e formação dos educadores A alta rotatividade dos professores e os contratos temporários se apresen-
tam como uma dificuldade para a continuidade e desenvolvimento do
programa;
Participação dos movimentos sociais A não incorporação das experiências acumuladas dos movimentos de luta
campesinos social do campo nas suas diretrizes.
Falta de infraestrutura nas escolas multisseriadas para o desenvolvimento
Infraestrutura
da metodologia proposta pelo PEA.
É um programa fechado, de cima para baixo, que fere a autonomia univer-
sitária. A constatação é que a preparação dos formadores está sendo pro-
Participação das Universidades posta somente do ponto de vista técnico-pedagógico, faltando dimensão
científica consistente e dimensão política, bem como a explicitação dos
dados concretos do balanço realizado nos quinze anos do Programa.
Material de orientação pedagógica defasado, de base neoliberal e escola-
novista, o que fragiliza a formação e a alfabetização dos estudantes; erros
conceituais e com pouco conteúdo escolar nos livros didáticos do progra-
Material Pedagógico ma; defeitos e erros de fabricação nos kits pedagógicos entregues às escolas
municipais; municípios que receberam material com quantidade insufi-
ciente; e defasagem dos dados pelo atraso de anos na liberação de materiais
e recursos.
A não conceituação do programa em sua nova versão com reformulações
Reformulação do Programa
elaboradas em 2008.

Fonte: elaborado pelo autor (MACEDO, 2022) a partir dos estudos de Azevedo (2018), D’Agostini et al
(2012, Oliveira (2013), Antunes-Rocha e Hage (2010) e Gonçalves (2019).

O processo de reformulação do PEA aconteceu em confronto com as concepções


apresentadas nas Diretrizes Operacionais para a Educação Básica nas Escolas do Campo
(Resolução CNE/CEB nº 1, de 03 de abril de 2002) e nas Diretrizes Complementares, Normas
e Princípios para o Desenvolvimento de Políticas Públicas de Atendimento à Educação Básica
do Campo (Resolução CNE/CEB nº 2, de 28 de abril de 2008). Nessa mudança, são levadas
em consideração formulações de autores que integram o movimento de articulação “Por
uma educação do Campo”, como KOLLING et al (1999), MOLINA e JESUS (2004), entre
outros. No entanto, embora o programa avance em suas formulações, encontra dificuldade para
21 Muitas críticas foram expressas pelos participantes dos processos de formação, em documentos divulgados que permitem
localizar as reivindicações dos professores do campo no que diz respeito às responsabilidades do Governo Federal, Estadual, Municipal e da
Universidade para garantir efetivamente a implementação de diretrizes da Educação do Campo nas escolas multisseriadas (FONEC, 2011).

108
incorporar o referencial teórico e metodológico da Educação do Campo (D’AGOSTINI et al,
2012). Antunes-Rocha e Hage (2010, p. 53) afirmam que

[...] não é possível ignorar que as novas configurações do Programa são


produto de mais de uma década de funcionamento nas regiões Norte,
Nordeste e Centro-Oeste, em que ele foi pivô de debates e alvo de críticas
de movimentos sociais e de alguns setores da academia, passando por
mudanças em seus textos-base, como tentativa de incorporação dessas
críticas. Assim como também é importante enfatizar que a incorporação
das universidades como parcerias das Secretarias Estaduais e Municipais
de Educação na formação dos professores provocará a elaboração de
pesquisas, artigos e debates, o que certamente contribuirá para uma maior
movimentação nas reflexões de conceitos, princípios, procedimentos e
resultados do programa.

Embora existam críticas no que diz respeito à implementação do PEA como política
pública, é possível considerar seus pontos fortes, sobre um novo prisma, ressaltando as
experiências das práticas cotidianas de professores e alunos, conduzindo a novas reflexões
para além da dimensão metodológica. O desafio agora é construir novas mediações a partir da
implementação das políticas públicas voltadas para a formação de professores para as escolas
com classes multisseriadas que fortaleçam e ampliem as possibilidades de reflexão, de diálogo e
teorização em torno das experiências já desenvolvidas pelos professores.
Segundo Costa (2016) a reformulação do PEA foi uma tentativa de adequá-lo às diretrizes
legais e pedagógicas da educação do campo no Brasil. Mesmo que tenha o embasamento
da legislação educacional brasileira no Projeto Base, foi difícil perceber a participação dos
movimentos sociais nas discussões e elaboração da nova proposta, deixando espaço para as
críticas no tocante ao movimento de Educação do Campo, que defende uma construção mais
democrática que considere as diversidades de cada região e as experiências junto às comunidades
rurais e movimentos sociais.
Portanto, a continuidade do PEA não foi assegurada frente à fragilidade das políticas
públicas educacionais do Governo e à profunda crise que vive os Estados em decorrência do
sistema capitalista. A regulamentação via decreto não assegurou o programa como política
pública permanente. Tanto a SECADI, quanto as IES participantes, cientes destas consequências,
propuseram reformulações na base teórico-metodológica do PEA, buscando fundamentação
nas teorias críticas da educação, evitando a reprodução de conteúdos desconexos da realidade
do campo. Além do mais, o PEA não atingiu um grau de reformulação nacional capaz de
identificá-lo com os fundamentos da Educação do Campo que tem sua identidade relacionada
às lutas sociais pela reforma agrária e por outro modelo de desenvolvimento econômico no
campo (FONEC, 2011). Na análise de Azevedo (2018, p. 121):

Para se constituir como uma política pública de educação rural na


perspectiva de transformação da realidade – e não apenas com um pacote
educacional -, entendemos que o Programa deveria ter se revestido de outros
conteúdos e concepções, como fundamentado pelas Diretrizes operacionais
para educação básica nas escolas do campo, bem como a superação de uma
iniciativa conjuntural que apenas focou o caráter metodológico. O
Programa Escola Ativa deveria desfrutar de uma concepção mais ampla do
ponto de vista político-pedagógico que, envolvendo e ouvindo os sujeitos,
se articulasse a outras ações governamentais e às experiências acumuladas
dos movimentos sociais e sindicais, visando superar as condições precárias
de organização e de funcionamento, bem como do trabalho docente em
escolas rurais com turmas multisseriadas.

Neste sentido, destaco os principais encaminhamentos apontados pelo FONEC (2011)

109
para universalizar a educação básica no campo e melhorar a qualidade do desempenho escolar
em classes multisseriadas das escolas do campo após as críticas feitas ao PEA: 1) faz-se necessário
uma política global, articulada, permanente, com financiamento adequado e gestão pública
transparente, simplificada e com controle social e, fundamentalmente, com a participação
dos povos do campo e com os movimentos que articulam suas lutas; 2) a formação inicial e
continuada deve ser enfatizada, priorizada e elaborada de forma consistente pelas IES, em
sintonia com as propostas mais avançadas para a formação de professores desenvolvidas no país,
como os cursos de Pedagogia da Terra e os cursos de Licenciatura em Educação do Campo,
entre outras experiências desenvolvidas no âmbito das políticas públicas de educação do campo;
3) Faz-se necessária outra fundamentação teórica do Programa, dentro de uma tendência crítica
da educação, visando a alteração das práticas pedagógicas para a elevação do padrão cultural de
professores e estudantes no Brasil; 4) Os materiais didáticos elaborados para uso nacional não
devem conter erros e devem ser utilizados de maneira a favorecer o planejamento do professor
e auxiliar no desenvolvimento das funções psíquicas superiores das crianças do campo, devendo
chegar rapidamente nas escolas e não ficar dependente de logísticas que não funcionam; 5) O
aporte financeiro deve ser adequado para garantir condições concretas de trabalho, de produção
de ciência e tecnologia, de implementação e manutenção desta proposta no campo e para
assegurar a permanência do estudante no campo; 6) É imprescindível uma forte relação com
os Movimentos de Lutas Sociais do Campo (sem-terra, ribeirinhos, quilombolas, indígenas,
caiçaras, atingidos por barragem, fundo de pasto, extrativistas) e demais povos do campo, que
produzem as suas condições materiais de existência a partir do trabalho no meio rural, para que
o programa possa se caracterizar como uma política de educação básica do campo.
Diante do exposto, o FONEC (2011) propõe que a SECADI realize encontro de
avaliação e redimensionamento do PEA com os responsáveis implicados, ampliando a base de
diálogo com os que realmente representam as populações do campo e os Movimentos de Luta
Social no Campo. Assim o Manifesto destaca:

Que as alterações no programa levem em conta os argumentos aqui


expostos, as diferentes experiências e avaliações dos executores do
programa e, principalmente, a alteração da base teórica que fundamenta
o Programa, na perspectiva de uma fundamentação crítica da educação,
uma fundamentação, como expressa o FONEC em sua Carta de Criação,
de matriz histórica da Educação Socialista. Também apontamos para
um redimensionamento e uma reconceptualização do Programa frente à
aprovação do Decreto nº 7.352, de 4 de novembro de 2010, que dispõe
sobre a política de Educação do Campo e o Programa Nacional de
Educação na Reforma Agrária (Pronera) com a finalidade de avançar para
uma política pública efetiva e ampliada de formação inicial e continuada
de professores do campo para a educação básica e que abranja todos os
tipos de escolas do campo em sua real demanda no Brasil (FONEC, 2011).

Como evidenciamos nesta avaliação, houve a necessidade de redimensionamento e


reconceituação do programa. As primeiras mudanças começaram a ser discutidas a partir da
aprovação do Decreto nº 7.352, de 4 de novembro de 2010, que dispõe sobre a Política Nacional
de Educação do Campo e o PRONERA, com a finalidade de avançar para uma política pública
efetiva e ampliada, de formação inicial e continuada de professores do campo da educação
básica em sua real demanda enquanto conjunto articulado de ações de apoio aos sistemas de
ensino para a implantação da Política Nacional de Educação do Campo. O que ocasionou, por
conseguinte, com a criação do “Programa Escola da Terra” como uma de suas ações.

110
A implementação do Programa Escola da Terra enquanto ação do PRONACAMPO

A construção do PRONACAMPO teve como ponto de partida a aprovação no Decreto


7.352, de 4 de novembro de 2010, que dispõe sobre a política de educação do campo e o
Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (PRONERA). O Decreto 7.352/2010
é um importante instrumento de definição da concepção do Estado em relação a garantia do
direito à educação que contempla as especificidades da vida no meio rural, pois trata da garantia
do direito à educação básica e educação superior no campo, uma vez que prevê a ampliação
do investimento no sistema público para a educação do campo, assim como a ampliação e a
qualificação desta oferta.
O PRONACAMPO constitui-se de um conjunto de ações voltadas ao acesso e à
permanência na escola, à aprendizagem e à valorização do universo cultural das populações do
campo, sendo estruturado em quatro eixos: Gestão e Práticas Pedagógicas, Formação Inicial e
Continuada de Professores, Educação de Jovens e Adultos e Educação Profissional e o eixo de
Infraestrutura Física e Tecnológica. Neste sentido, interessa-nos analisar aqui o primeiro eixo
(Gestão e Prática Pedagógicas) que resulta de ações que visam a disponibilização de materiais
pedagógicos e didáticos específicos para as populações quilombolas e do campo e apoio às escolas
com turmas multisseriadas e escolas quilombolas. Foi a partir dessa proposta elencada nesse eixo,
que criou-se o Programa Escola da Terra, pela Portaria nº 579 de 02 de julho de 2013, com umas
das ações do Pronacampo, que se desenvolve mediante regime de colaboração: União (MEC/
SECADI) e Universidades Federais, Estados e Municípios (secretarias de educação) e Escolas
(diretores e professores), considerando os demais setores e agentes envolvidos diretamente no
processo. O manual do Programa Escola da Terra traz a seguinte definição:

A Escola da Terra é ação constante do Eixo nº 1 do PRONACAMPO e busca promover


o acesso, a permanência e a melhoria das condições de aprendizagem dos estudantes
do campo e quilombolas em suas comunidades. O atendimento às escolas do campo
e escolas localizadas em comunidades quilombolas incluídas na ação Escola da Terra se
dá em turmas compostas por estudantes de variadas idades e dos anos iniciais do ensino
fundamental (Classes Multisseriadas), fortalecendo a escola como espaço de vivência
social e cultural [...] A participação de cada ente federado dar-se-á mediante o aceite ao
Termo de Adesão à Escola da Terra (MEC/SECADI, 2013)

De acordo com a proposta do Programa Escola da Terra, seus objetivos são: 1) promover
a formação continuada específica de professores para que atendam às necessidades de
funcionamento das escolas do campo e das localizadas em comunidades quilombolas; e 2) oferecer
recursos didáticos e pedagógicos que atendam às especificidades formativas das populações do
campo e quilombolas. Em relação aos componentes do Escola da Terra, o programa apresenta a
seguinte estrutura:

Quadro 2: Estrutura organizacional do Programa Escola da Terra

Componentes Descrição
A formação continuada de profissionais da Escola da Terra constitui-se em fortalecer o
desenvolvimento de propostas pedagógicas e metodologias adequadas às comunidades
atendidas, no sentido de elevar o desempenho escolar dos estudantes dos anos iniciais do
I - Formação Continua-
ensino fundamental que compõem suas turmas. A implementação da formação continu-
da de Professores
ada ocorrerá com a oferta de curso de aperfeiçoamento, com carga horária total mínima
de 180 horas, organizadas em períodos formativos: tempo-universidade e tempo escola-
-comunidade;

111
O material didático e de apoio pedagógico será disponibilizado pelo MEC/FNDE e
distribuído em kits compostos por jogos, mapas, recursos para alfabetização/letramento
e matemática, para uso em turmas dos anos iniciais do ensino fundamental, compostas
II - Material didático e por estudantes de variadas idades e anos escolares, em unidades de ensino do campo e de
pedagógico comunidades quilombolas, objetivando contribuir com o processo de ensino-aprendiza-
gem. Os kits serão distribuídos para todas as escolas passíveis de adesão à Escola da Terra,
conforme Censo Escolar/INEP.
O acompanhamento pedagógico e gestão da formação continuada serão realizados por
equipe a ser constituída por meio de seleção pública entre servidores das redes estadual e
distrital de ensino, composta de:
- coordenadores estaduais e distrital, responsáveis por realizar a sistematização, acom-
panhamento e orientações para a articulação entre a proposta de formação da Escola da
Terra e a prática operacionalizada pelos tutores nos municípios de sua abrangência;
III - Monitoramento e
Avaliação: - tutores estaduais e municipais participam da formação e são os assessores pedagógicos
responsáveis pelo acompanhamento pedagógico do professor cursista no tempo escola-
a) da Formação: -universidade, assim como pelas orientações para articulação entre a proposta pedagógi-
ca e a prática operacionalizada pelos docentes;
- A coordenação da Instituição Formadora, Instituição Pública de Ensino Superior,
designará o coordenador do curso, o supervisor, professores pesquisadores, professores
formadores e tutores para a execução e acompanhamento da formação continuada, no
âmbito da instituição.
- visitas de acompanhamento pedagógico às escolas do campo e quilombolas partici-
pantes, realizadas pelo menos uma vez ao mês pelos tutores responsáveis pela assessoria
pedagógica, para acompanhar o desenvolvimento do trabalho dos professores junto às
III - Monitoramento e turmas, a evolução da aprendizagem dos estudantes, o uso dos materiais, bem como para
Avaliação: contribuir para o aperfeiçoamento das estratégias de ensino articuladas com os conheci-
a) da Ação Escola da mentos adquiridos no tempo-universidade; e
Terra: - produção de relatório mensal de acompanhamento pedagógico referente a cada uma
das turmas da Escola da Terra, de acordo com modelo oferecido pelo MEC

A gestão, controle e mobilização social se constituem em arranjo institucional para


gestão das ações, articulando a Comissão Nacional de Educação do Campo e a Coor-
denação Nacional das Comunidades Negras Rurais Quilombolas, com as instâncias
IV - Gestão, Controle e colegiadas dos estados, do Distrito Federal e dos municípios no acompanhamento e de-
Mobilização Social senvolvimento das atividades e ações vinculadas à Escola da Terra. A gestão ocorrerá em
nível local em parceria com os estados, o Distrito Federal e os municípios;

Fonte: elaborado pelo autor (MACEDO, 2022) a partir Manual de Gestão do Programa Escola da Terra
(MEC/SECADI, 2013).

Visando atender essa estrutura organizativa proposta pela Portaria nº 579 de 02 de julho
de 2013 e pelo Manual de Gestão (MEC/SECADI, 2013), o Programa Escola da Terra iniciou
efetivamente suas atividades em 2014 quando ocorreu a primeira edição em 10 estados brasileiros.
A segunda edição foi em 2015, a terceira em 2016 e a quarta em 2017. As Universidades que
aderiam a primeira pactuação foram: Universidade Federal do Amazonas (UFAM) Universidade
Federal do Pará (UFPA), Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Universidade Federal
do Espírito Santo (UFES), Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Universidade Federal
do Maranhão (UFMA), Universidade Federal do Ceará (UFC), Universidade Federal da Bahia
(UFBA), Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e Universidade Federal de
Santa Catarina (UFSC). Mas por questões administrativas, o início da execução do projeto foi
postergado, mas a referência de aprovação do projeto é 2014. Em 2015, mais três universidades
públicas aderiram e tiveram projetos aprovados, a saber: Universidade Federal de Alagoas (UFAL),
Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e Universidade Federal Fronteira Sul
(UFFS-PR). Em 2016 não houve ingresso de novas universidades oficialmente no projeto, mas
houve continuidade das ações já pactuadas. No período de 2017 a 2019, diversas IES e secretarias
de educação procuraram o MEC para aderir ao projeto de formação de professores no âmbito do
Escola da Terra (HAGE et al, 2018).

112
A execução do Programa Escola da Terra, em cada um dos estados, foi gestada por coletivos
de sujeitos, constituídos sob a coordenação de uma universidade pública federal que possuiu
uma articulação com o Movimento de Educação do Campo, em parceria com a secretaria
estadual e secretarias municipais de educação. Como forma de compartilhar as primeiras
experiências construídas com a ação Escola da Terra nos anos de 2014 e 2015, realizou-se, nos
dias 26 e 27 de outubro de 2016, o primeiro “Seminário Nacional do Programa Escola da Terra”,
no centro da CONTAG, em Brasília, com a temática: “Programa Escola da Terra: Cartografia
da Diversidade e Complexidade de sua execução no Brasil”. O evento tinha como objetivo
realizar uma cartografia do programa no país, que expressasse suas proposições, singularidades
e produções nos 13 estados brasileiros em que o programa se encontrava em execução. A
proposta era promover o diálogo entre os participantes constituídos por: coordenadores das
universidades, coordenadores das secretarias estaduais, formadores, tutores e cursistas, além de
técnicos da SECADI/MEC e representantes da UNDIME e CONSED, da coordenação do
FONEC e de organizações e movimentos sociais campesinos (HAGE et al, 2018).
A cartografia apresentada no I Seminário Nacional do Programa Escola da Terra e
publicada por Hage et al (2018) sistematiza resultados/produções que refletem as múltiplas
perspectivas teóricas que convergem na constituição dos processos de formação continuada
de educadoras e educadores do campo que atuam em escolas com classes multisseriadas, assim
como, os relatos de experiências e trocas de saberes que se condensam em propostas e atividades
políticos pedagógicas e metodológicas que são efetivadas pelos estados que executam o programa
(idem, 2018).
Ainda, de acordo com Hage et al (2018, p. 16) essas produções e experiências da primeira
etapa de implantação do programa Escola da Terra expressam

a materialização do princípio da unidade na diversidade, assumido pelo


coletivos nas ações que protagonizam a execução do Programa como
estratégia de valorização da heterogeneidade que configura as dimensões
sociopolítica, pedagógica, cultural e administrativa específicas que resultam
das relações e interações conflitivas e consensuais que se estabelecem nas
universidades, os entes federados nas esferas federal, estadual e municipal, e
os movimentos sociais e sindicais populares do campo, durante a execução
do Programa em cada um dos estados brasileiros.

Até 2018, durante o levantamento feito na Reunião Técnico-Pedagógica realizada


em Brasília, nos dias 26 e 27 de novembro de 2018, com os representantes da SECADI e os
coordenadores do cursos de aperfeiçoamento das IES, com o objetivo de analisar diferentes
experiências, foi possível identificar que Programa Escola da terra já estava presente em 22
estados e no Distrito Federal, totalizando 23 unidades federativas, e em 24 universidades
públicas federais abrangendo aproximadamente 500 professores formadores entre mestres
e doutores ligados à educação, majoritariamente do campo, principalmente pertencentes ao
Colegiado dos cursos de Licenciaturas de Educação do Campo e Pedagogia das IES. Com isso,
o Escola da Terra atendeu aproximadamente 20 mil professores das escolas campesinas. Cada
estado que integrou o Programa elaborou uma proposta de formação continuada que retratasse
a realidade de suas escolas e de seus professores, que foi construída e gestada por coletivos sob a
coordenação de uma instituição pública federal em articulação com o movimento de Educação
do Campo em parceria com a secretaria estadual e as secretarias municipais de educação que
aderiam ao Escola da Terra por meio do PAR.
Na implementação do Escola da Terra em cada Universidade Pública Federal, houve a
necessidade da construção de um projeto específico para o curso de formação continuada que
pudesse atender as necessidades locais e regionais. Os projetos eram elaborados pela equipe de
formação composta por professores vinculados à área de educação do campo, em articulação
com as redes estaduais e movimentos sociais. Para a realização da formação continuada junto aos

113
educadores/as das escolas do campo, cada instituição organizou um curso de aperfeiçoamento,
com carga horária total mínima de 180, divididos em períodos formativos, denominados: Tempo-
Universidade (TU) que se constitui em encontros presenciais executados pelas instituições
formadoras, com exigência de frequência ao curso, ministrado em carga horária entre 90 a
120 horas; e Tempo-Comunidade (TC) que são períodos formativos, realizados em serviço e
acompanhados pelos tutores, com carga horária entre 60 e 90 horas. A soma da carga horária
dos dois períodos formativos deve totalizar, no mínimo, 180 horas. Para o acompanhamento
pedagógico e gestão, a SECADI/MEC, nos termos da Lei nº 11.273 de 6 de fevereiro de 2006,
concede bolsas de estudo e pesquisa para o coordenador estadual e/ou distrital e para os tutores
(assessores pedagógicos) que acompanham e orientam os demais professores no tempo escola-
comunidade (MEC/SECADI, 2013).
Assim, destaco de forma resumida algumas atribuições dos entes federados, estaduais,
municipais e universidades públicas federais, para implementação/execução do Programa
Escola da Terra de acordo Manual de Gestão (MEC/SECAD, 2013):

• À SECAD/MEC, cabe coordenar o desenvolvimento, a atualização e manutenção de um


sistema informatizado para a gestão da Escola da Terra, que possibilite o monitoramento da
oferta da formação; a implementação dos cursos desenvolvidos pelas IES; avaliar o desenvol-
vimento da formação continuada dos professores, no sentido de acompanhar o quantitativo
de participantes e da carga horária desenvolvida; garantir os recursos orçamentários e finan-
ceiros necessários para o desenvolvimento dos cursos da formação continuada dos professo-
res pelas Universidade Públicas Federais; e pactuar o calendário dos cursos da formação con-
tinuada, em articulação com as secretarias estaduais, distrital e municipais de educação dos
entes federados e com as instituições públicas de ensino superior que aderirem à ação; dentre
outras atribuições.

• Ao FNDE compete elaborar, em comum acordo com a SECADI/MEC, os atos norma-


tivos relativos ao pagamento de bolsas da Escola da Terra; efetivar o pagamento das bolsas de
estudo e pesquisa para o coordenador estadual e distrital, bem como para os tutores, durante
o período em que prestam assessoria pedagógica aos professores e às turmas (tempo-comu-
nidade); enviar à SECADI/MEC relatórios sobre a execução dos pagamentos das bolsas de
estudo; adquirir os kits de materiais didáticos e pedagógicos e providenciar a entrega confor-
me relação fornecida pela SECADI.

• Às Secretarias de Educação dos Estados e do Distrito Federal compete, coordenar, acom-


panhar e executar as atividades do Programa Escola da Terra em sua área de abrangência;
designar oficialmente o coordenador estadual e/ou distrital da Escola da Terra; selecionar os
tutores (assessores pedagógicos) da Escola da Terra de sua rede, que participarão do curso de
formação continuada e serão responsáveis pela assessoria e pelo acompanhamento pedagógi-
co dos professores das escolas do campo e escolas quilombolas de sua rede; responsabilizar-se
pelos custos de transporte dos tutores (assessores pedagógicos) de sua rede e do coordenador
estadual e/ou distrital para que participem dos cursos de formação; realizar a gestão e moni-
toramento da Escola da Terra, mantendo atualizados no sistema de gestão e monitoramento
da SECADI/MEC os dados relativos às ações desenvolvidas; dentre outras ações;

• Às Prefeituras Municipais, compete assinar e encaminhar à SECADI/MEC o Termo de


Adesão à Escola da Terra; coordenar, acompanhar e executar as atividades em sua área de
abrangência; selecionar os tutores (assessores pedagógicos) da Escola da Terra, os quais serão
responsáveis por, acompanhar, e monitorar o tempo-comunidade, de modo a garantir as
condições adequadas ao desenvolvimento das ações e atividades; designar um interlocutor
que será responsável, no âmbito do município, pela comunicação com o coordenador esta-
dual e/ou distrital; garantir a participação dos tutores (assessores pedagógicos) e dos profes-
sores cursistas em todas as atividades de formação continuada da Escola da Terra; realizar a
gestão, o acompanhamento e o monitoramento das ações, mantendo atualizados os dados
e as informações dos tutores (assessores pedagógicos), professores e turmas junto a coorde-
nação estadual e/ou distrital e no sistema de gestão e monitoramento da Escola da Terra da
SECADI/MEC;

• Às Instituições Públicas de Ensino Superior, compete participar da Rede Nacional de

114
Formação Continuada dos Profissionais do Magistério da Educação Básica Pública; enca-
minhar à SECADI/MEC a proposta pedagógica do curso, a planilha financeira, bem como
a previsão de bolsas, conforme critérios estabelecidos pelo FNDE; c) solicitar o pagamento
das bolsas devidas aos seus professores; apresentar relatório parcial e final da execução da
formação e a frequência dos cursistas; e) enviar mensalmente à SECADI/MEC, o relatório
das atividades desenvolvidas no período; dentre outras atribuições.

Para a realização da formação continuada de educadores e educadores do campo, o


Programa Escola da Terra apresenta como ponto de destaque: a autonomia dada às Universidades
Federais para a construção da proposta pedagógica do curso, pois esta era uma das maiores
críticas impostas ao Programa Escola Ativa, que apresentava uma proposta pedagógica e materiais
didáticos de maneira uniforme para todos os estados e municípios, cabendo aos formadores e
tutores apenas dar encaminhamento ao que previa as diretrizes do Programa. Neste caso, cada
Universidade construiu de maneira única uma proposta que estivesse alinhada às diretrizes
nacionais de Educação do Campo, bem como atendendo as normativas da Portaria nº 579 de
02 de julho de 2013 e do Manual de Gestão (MEC/SECADI, 2013), mas com um olhar mais
regionalizado. Em muitas experiências, como na Amazônia, optou-se inclusive por apresentar
um nome específico para o projeto de curso, como foi o caso do Amapá e do Pará, que ampliaram
o conceito de “Escola da Terra” para “Escola da Terra, das Águas e das Florestas”, por entender
que os sujeitos do campo são diversos e pertencentes a diferentes territórios.22

Considerações finais

A formação continuada de educadores e educadoras do campo tem adquirido um


impulso de uma política pública por parte do Estado, das secretarias de educação, universidades,
sindicatos, escolas e associações, frente aos desafios que o exercício da docência tem enfrentado
no contexto contemporâneo, ocasionados principalmente pelas recentes reformas educacionais
realizadas nas últimas décadas e as mudanças nos processos educacionais para acompanhar as
novas pautas em educação, seja do campo ou da cidade.
Entendemos que toda política pública ao longo de sua construção, como é o caso da
formação continuada de professores de escolas do campo com classes multisseriadas, desde
o Escola Ativa até o Escola da Terra, tem seus percalços e dificuldades, e somente quando há
um processo contínuo de avaliação/autoavaliação consciente e crítica por parte dos gestores,
educadores, instituições e movimentos sociais que essas políticas buscam se afirmar com uma
política pública permanente ou então sua descontinuidade, seja como iniciativa governamental,
ou como iniciativa dos próprios movimentos sociais e instituições de formação.
Por este motivo, defendemos a continuidade de políticas públicas permanentes que
contemplem as especificidades da Educação do Campo nas condições de democratização e
permanência dos estudantes das escolas do campo por atender a real necessidade desses sujeitos
a partir da valorização da história, cultura e do espaço campesino, permitindo o diálogo entre os
saberes das experiências vividas no cotidiano da vida no campo e os conhecimentos selecionados
pela escola multisseriada para o avanço na construção e apropriação do conhecimento por parte
dos estudantes e professores.
Para tanto, é preciso pensar na formação de educadores/educadores do campo, como um
dos principais meios para transformação da educação e da melhoria da qualidade do ensino nas
escolas campesinas. Segundo Libâneo (2004), a construção e o fortalecimento da identidade
profissional precisam fazer parte do currículo e das práticas de formação inicial e continuada.
Assim, os cursos de formação inicial e continuada têm um papel muito importante na construção

22 Ver pesquisa de MACEDO (2022) sobre a experiência do Programa Escola da Terra na Amazônia
Amapaense.

115
dos conhecimentos, atitudes e convicções dos futuros professores necessários à sua identificação
com a profissão.
Neste sentido, construir um projeto de formação na perspectiva de Educação do Campo
como o Programa Escola da Terra significa formar educadores e educadoras do campo para
atuarem em diferentes espaços educativos, com diferentes sujeitos e diferentes histórias. É preciso
reconhecer que todo conhecimento é uma produção social, pautada em experiências sociais e
que toda experiência social produz conhecimento, como forma de superar as visões distanciadas,
segregadoras de experiências, de conhecimentos e de coletivos humanos e profissionais. Isto é,
reconhecer que há uma “pluralidade e diversidade e não uma hierarquia de experiências humanas
e de coletivos, que essa diversidade de experiências é uma riqueza porque produzem uma rica
diversidade de conhecimentos e de formas de pensar o real e de pensar-nos como humanos”
(ARROYO, 2013, p. 117).

116
REFERÊNCIAS

ARROYO, Miguel G. Currículo, território em disputa. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013.

BRASIL, Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as Diretrizes e Bases da


Educação Nacional. Brasília, 1996.
BRASIL. Ministério da Educação. Decreto nº 7.352, de 4 de novembro de 2010. Dispõe
sobre a política de educação do campo e o Programa Nacional de Educação na Reforma
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BRASIL, Ministério da Educação. Conselho Nacional de Educação. Resolução CNE/CEB nº
1, de 3 de abril de 2002. Institui diretrizes operacionais para a educação básica nas escolas do
campo: Brasília, 2002.
BRASIL. Ministério da Educação. Conselho Nacional de Educação. Resolução CNE/CEB nº
2, de 28 de abril de 2008. Estabelece diretrizes complementares, normais e princípios para o
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2008.
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117
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do Programa Escola Ativa em Marcelino Vieira/RN. 2013. 149 f. Dissertação (Mestrado em
Educação). UERN, Mossoró, RN, 2013.

118
CAPÍTULO 9 - O DIREITO SOCIAL E A EDUCAÇÃO NAS CONSTITUIÇÕES
BRASILEIRAS: BREVE RECORTE HISTÓRICO

Bruna Lameira Chagas23


Sérgio Luiz Lopes24

Resumo

Neste artigo, pontuam-se os caminhos percorridos pela população por meio de muitas árduas
lutas, em movimentos sociais e mobilizações, para que houvesse o direito social, fundamental
e constitucional à educação para todos os povos na atual conjuntura brasileira, tal questão que
norteou o estudo. No contexto das legislações oficiais brasileiras, temos sete promulgações de
constituições, as quais, em meio à demanda em questão, são importantes de serem evidenciadas.
O estudo contou com a pesquisa bibliográfica e documental enquanto procedimentos
técnicos. O trabalho teve como objetivo abordar o recorte das lutas sociais em prol do direito
à educação nas constituições brasileiras e o direito à educação no atual ordenamento jurídico
brasileiro, incluindo a Constituição de 1824, a Constituição de 1891, a Constituição de 1934,
a Constituição de 1937, a Constituição de 1946, a Constituição de 1967 e a Constituição de
1988, temática que envolve um longo caminho de avanços e desafios. Interessa-nos, nesses
documentos legislativos, as definições relativas à educação, especificamente aquelas que atendem
às populações dos contextos rurais da sociedade brasileira, fruto de intensas lutas sociais, que,
consequentemente, trouxeram vitórias e avanços sobretudo nas últimas décadas. Apresentamos
uma síntese da trajetória histórica contando sempre com o engajamento de movimentos sociais,
responsáveis pelos êxitos até então obtidos.

Palavras-chave: Movimentos Sociais; Direito Social; Educação.

Introdução

O objetivo do estudo foi abordar o direito social a educação nas constituições brasileiras,
através de um breve recorte histórico, com lutas sociais em prol do direito à educação nas
constituições brasileiras e o direito à educação no atual ordenamento jurídico brasileiro, incluindo
a Constituição de 1824, a Constituição de 1891, a Constituição de 1934, a Constituição de
1937, a Constituição de 1946, a Constituição de 1967 e a Constituição de 1988, temática que
envolve um longo caminho de avanços e desafios. Interessa-nos, nesses documentos legislativos,
as definições relativas à educação, especificamente aquelas que atendem às populações dos
contextos rurais da sociedade brasileira fruto de intensas lutas sociais, que, consequentemente,
trouxeram vitórias e avanços, sobretudo nas últimas décadas. Apresentamos uma síntese da
trajetória histórica contando sempre com o engajamento de movimentos sociais, responsáveis
pelos êxitos até então obtidos.
O objeto estudado justifica-se como relevante e fundamental para o mundo acadêmico
e para a sociedade, especialmente ao abordar a respeito da trajetória histórica brasileira que deu
ênfase ao atual ordenamento jurídico brasileiro, sendo a Constituição de 1988, a qual retrata e
23 Mestre em Educação pela UERR. E-mail: bruna.chagas@uerr.edu.br
24 Professor na Universidade Federal de Roraima (UFRR) da Licenciatura em Educação do Campo e do
Programa de Mestrado Acadêmico em Educação da UFRR e da Universidade Estadual de Roraima (UERR) em
colaboração com o Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Roraima (IFRR). Professor do Mestrado
em Educação da Universidade Federal de Roraima. Líder do Grupo de Pesquisa Formação de professores, práticas
pedagógicas e epistemológicas do professor do/no campo (FPEC). Doutor em Educação pela Universidade Federal
de Sergipe (UFS). E-mail: sergio.luiz@ufrr.br

119
assegura os direitos individuais, sociais e de coletividade e consequentemente visa o respeito e a
dignidade a todos que compõem a sociedade brasileira.
A pesquisa teve a seguinte questão-problema: Quais os caminhos percorridos pela
população por meio de muitas e árduas lutas, em movimentos sociais e mobilizações, para
que houvesse o direito social, fundamental e constitucional à educação para todos os povos
na atual conjuntura brasileira? Quanto à metodologia, o trabalho contou com a pesquisa
bibliográfica e documental enquanto procedimentos técnicos, os quais foram fundamentais
para o desenvolvimento a aproximação com a temática abordada.

O Direito Social a Educação nas Constituições Brasileiras: Um Longo Caminho de


Avanços e Desafios

Constituição Brasileira de 1824

No ano de 1824, foi instaurada a primeira Constituição do Brasil, denominada também


de Constituição Política do Império do Brasil, a qual foi instaurada pelo Imperador Dom Pedro
I. Nesse contexto, pela primeira vez, o direito à educação foi “disponibilizado” aos cidadãos
brasileiros, dos quais foram excluídos os negros, os indígenas e grande parte das mulheres. O
reflexo dessa exclusão é o percentual de 82% da população analfabeta, a qual possui mais de
5 anos (HADDAD; DI PIERRÔ, 2000 apud ANGELO; KUHN; ALMEIDA, 2017). Se
analisarmos os contextos anteriores a essa Constituição, veremos que,

Até meados do século XVIII, o único ensino formal existente no Brasil foi
oferecido pelos jesuítas, sobretudo no nível secundário e com o intuito de
formação sacerdotal; no ano de sua expulsão do País (1759), seminários
e missões da Companhia de Jesus não alcançam 0,1% da população
brasileira. De fato, nos séculos XVI e XVII, ler e escrever não era exigência
ou condição da vida social; em nenhum momento, a educação popular
esteve entre as ações prioritárias da Coroa Portuguesa (RANIERI, 2018,
p. 18).

No que tange à educação, a Constituição de 1824 estabelece, no inciso XXXII, a instrução


primária gratuita a “todos” os cidadãos.

Da colônia (1500) à independência de Portugal (1822), porém, e ao longo


do século XIX, a instrução primária pública no Brasil não passou de um
arremedo de ensino, devido à sua estreiteza (ler, escrever e fazer contas),
precariedade das instalações físicas e baixa qualidade dos professores,
mal preparados e mal pagos. Tal padrão não atendeu às necessidades de
instrução popular, nem mesmo dos restritos grupos das classes dominantes
que eram educados em casa. Além disso, as meninas, até 1827, não foram
expressamente incluídas entre os que poderiam frequentar as escolas;
mesmo depois disso, sua presença nas escolas é ínfima e apenas nas grandes
cidades (RANIERI, 2018, p. 18).

Nesse contexto, entendemos que o mesmo documento real que teve o poder de expulsar
os jesuítas de Portugal (país no sul da Europa) e do Brasil (país sul-americano) foi o que
implantou o ensino público nas localidades em questão. Nesse âmbito, o ensino leigo e gratuito,
que atendia os níveis primário e secundário, limitava-se somente a ler, escrever e fazer contas.
Frente a essa questão, o ensino primário implantado no Brasil não teve êxito em meio ao seu
processo de ensino, tendo em vista também a precarização das acomodações físicas do local,
a desvalorização salarial dos professores e o desprezo por essa classe profissional. O formato
educacional instaurado não atingiu as expectativas da população, que permanecia fragilizada

120
pelo analfabetismo.
O País torna-se independente com, praticamente, toda a população
analfabeta. Foi Pedro I quem introduziu o tema da instrução pública na
Assembleia Constituinte de 1823, ressaltando a necessidade de que fosse
promovida por uma legislação especial, editada em 1827, sob inspiração
da lei votada pelas Cortes Constituintes de Portugal, para diminuir o
controle da Coroa sobre o ensino privado. O Imperador, porém, com a
outorga da Carta de 1824, reduziu o escopo e a abrangência do ensino
público, tal como previsto originalmente pela Assembleia Constituinte
(RANIERI, 2018, p. 18-19).

Considerando o fato de que, no contexto da independência e, particularmente, da


Constituição de 1824, eram nomeados como cidadãos brasileiros apenas os sujeitos livres (ou
libertos) nascidos no Brasil, “[...] apenas por exclusão sócio étnica, 40% dos habitantes não
teriam acesso à educação como também não eram considerados cidadãos” (CURY, 2016 apud
RANIERI, 2018, p .18).

No entanto, surpreendentemente, mesmo dentro do sistema escravocrata,


excludente e oligárquico, os filhos de escravos, em toda a primeira metade
do século XIX e até a Lei de 1854, e os filhos ilegítimos foram admitidos
nas aulas públicas de primeiras letras e com eles os “expostos”, que se
situavam na mais baixa categoria livre da sociedade. A situação é tão mais
surpreendente quando consideramos que a instrução primária foi incluída
no capítulo das Disposições Gerais e das Garantias dos Direitos Civis e
Políticos dos Cidadãos Brasileiros, sendo que os escravos, as mulheres e
todos os homens que não atendessem às exigências do voto censitário não
se incluíam, formalmente, neste rol (CURY, 2016 apud RANIERI, 2018,
p. 18-19).

Diante disso, embora a Constituição de 1824 seja conhecida, historicamente, como o


documento legal do império que implantou a educação básica, ainda assim, não constituiu
uma intervenção séria, responsável e inclusiva. Grande parcela da população (os/as negros/as
escravizados/as e os/as indígenas) não tinha vez e voz, já que os sujeitos que a compunham não
eram considerados cidadãos.
A instituição da República no Brasil, em 1889, sistema de governo que prometia grandes
avanços para o país, não conseguiu superar o problema do analfabetismo. Vejamos, então, se a
próxima carta legislativa, isto é, a Constituição de 1891, conseguiu estabelecer maior seguridade
à população no que diz respeito à educação.

Constituição de 1891
No contexto da proclamação da República, que ocorreu em 1889, a expectativa era de
que se constituísse um marco legal para a consolidação da educação básica e pública, o respeito
às especificidades de cada estado, a defesa intransigente dos direitos do sujeito para o exercício
da cidadania, as intervenções significativas para o fim da escravidão e a promoção de dignidade
humana e a inclusão de todas as pessoas quanto ao direito de votar (o voto permanecia sendo um
direito negado às mulheres, aos religiosos e aos analfabetos). Pelo contrário, houve a eliminação
do texto no documento constitucional que preconizava e assegurava a gratuidade, o propósito
da liberdade ao espaço público e a livre expressão de pensamento (RANIERI, 2018).
Observa-se que a Constituição de 1891 não prevê a gratuidade da
instrução primária para todos. A República silenciou-se sobre o tema
acerca do qual o Império se pronunciara. Tal omissão fez com que aquela
instrução permanecesse a cargo dos Estados e Municípios, mantendo-se na
linha do Ato Adicional nº 16 de 1834. A constituição também se omitiu
sobre a obrigatoriedade da educação e manifestou-se a favor da permissão

121
da atuação da iniciativa privada em todos os níveis educacionais (art. 72, §
17) (SOARES, 2018, p. 57).
O regime político por meio do qual os sujeitos passam a ser governados por figuras públicas
eleitas, sendo o chefe maior chamado de presidente, no âmbito do Executivo, é denominado de
República Federativa.
No decorrer dos anos entre a Proclamação da República, em 1889, e a instauração da
segunda Constituição da República Federativa do Brasil, em 1891, houve algumas mudanças
que atingiram a educação de maneira direta e indireta. Elas foram: estabeleceu-se o fim do
voto censitário; atribuiu-se como critério de votação e exercício da cidadania a exigência de ser
alfabetizado; e se tornou obrigação dos Estados a implantação do ensino público em todos os
níveis educacionais.
Em 1889, com a Proclamação da República, dá-se a necessidade de um
novo ordenamento jurídico. Estabelecida a nova forma de governo e de
Estado (torna-se uma República Federativa, com regime representativo e
presidencialista), inicia-se uma nova fase para o Direito Constitucional
Brasileiro. No período interconstitucional, de 1889 a 1891, foram exarados
alguns Atos normativos que começaram a disciplinar a República e
trataram, de forma direta ou indireta, da educação. Por exemplo, o Decreto
nº 6, de 19/11/1889, extinguiu o voto censitário e impôs como condição
para o exercício da cidadania a alfabetização dos indivíduos. Já o Decreto
nº 7, de 20/11/1889, atribuiu aos estados a obrigação da instrução pública
em todos os graus. Por fim, o Aviso nº 17, de 24/04/1890, tornou laico o
currículo do Instituto Nacional, ex-Pedro II (SOARES, 2018, p. 56).

A Constituição de 1891 interveio minimamente em meio à demanda educacional


e o pouco que desenvolveu atingiu apenas sujeitos políticos. Esse documento ratificou o
pragmatismo elitista e excludente, promovendo um federalismo com viés liberal e centrado no
Estado mínimo (CURY, 1996 apud SOARES, 2018).

Constituição de 1934

A terceira Constituição Federal foi promulgada em 1934, quatro anos após o período
conhecido como “Política do Café com Leite”25 (SOARES, 2018). Essa foi a primeira
Constituição que, de fato, fez menção à educação, garantindo-a como direito de todos. A
obrigação de torná-la acessível era dos poderes públicos.
Nesse contexto, é assegurado o direito à educação nos âmbitos rurais, de maneira que o
parágrafo 4 do artigo 117 preconiza: “[...] Procurar-se-á fixar o homem no campo, cuidar da sua
educação rural e assegurar ao trabalhador nacional a preferência na colonização e aproveitamento
das terras públicas” (BRASIL, 1934, Art. 117, p. 1). Especialmente no parágrafo único do
artigo 156, ressalta-se que, “Para a realização do ensino nas zonas rurais, a União reservará,
no mínimo, vinte por cento das cotas destinadas à educação no respectivo orçamento anual”
(BRASIL, 1934, Art. 156, p. 1), acontecimento que evidencia um ponto de vista financeiro
em relação ao que necessitaria ser empregado na proposta educacional campesina, ratificando a
função do Estado (SANTOS, 2018).

O contexto histórico da época dá conta de que a sociedade se recuperava

25 “Política do café com leite” é o nome que se dá ao processo de alternância de poder entre os estados de Minas Gerais e São Paulo,
que ocorreu durante a chamada “República Oligárquica”, a fase da “República Velha” (1889-1930), a qual teve início em 1898, sob a
presidência de Campos Sales. Foi chamado de “política do café com leite”, exatamente porque o café representava a oligarquia paulista e
o leite, a mineira (FERNANDES, s/d).

122
dos movimentos sociais da década anterior, como: fundação do Partido
Comunista do Brasil (1922) e das Revoltas Tenentistas (1922 e 1924),
que traduzem insatisfações contra as oligarquias e o sistema republicano
vigente. Na Revolução de 30, o Estado Nacional se fortalece, tornando-se
intervencionista em várias áreas (SOARES, 2018, p. 58-59).

Nessa questão, entendemos que a classe trabalhadora vinha organizando sua recuperação
em decorrência das lutas dos movimentos sociais, as quais foram difíceis e árduas. Havia
instituições e segmentos que lutavam a favor dos seus direitos contra as oligarquias e o sistema
republicano instalado na época, tendo em vista que eles sempre vinham sendo violados. No
entanto, com a chegada dos anos 1930, em que houve a Revolução, o Estado iniciou intervenções
em distintos âmbitos, visando a economia, porém, ele não desempenhava o trabalho cogitando
uma política de desenvolvimento totalmente inclusiva.

Com a ascensão de Getúlio Vargas ao poder, a efervescência política se


materializa, culminando na Revolução Constitucionalista de 1932,
capitaneada pelo estado de São Paulo. No campo econômico, em reação à
crise de 1929 (culminando com o crash da Bolsa de Nova Iorque), o Brasil
busca a substituição de importações como alternativa ao desenvolvimento
industrial. Nesse aspecto, o país procurou afastar-se do ideário liberal e se
filiar aos princípios das Constituições Mexicana (1917) e Alemã (1919),
que traziam disposições relativas aos direitos sociais. Na área da educação,
podemos pontuar que: a) vários estados deflagram reformas (Ceará,
Pernambuco, Bahia, Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais); b) cria-se o
Ministério de Educação e Saúde (1930), tendo o jurista e político mineiro
Francisco Campos como o primeiro titular dessa pasta; c) orienta-se a
reforma do ensino superior e secundário; e d) o campo pedagógico sofre
forte influência do escolanovismo, traduzido no Manifesto dos Pioneiros
da Escola Nova (1932), marco referencial importante do pensamento
liberal com repercussões sobre ideias e reformas propostas em momentos
subsequentes (SOARES, 2018, p. 59).

Conforme o percurso histórico em questão, entendemos que nesse período a um retorno


significativo junto às inquietações da demanda da educação, tendo em vista que na ocasião surge
intervenções no campo da educação, tais quais: reforma educacional superior e secundário, a
reforma educacional ocorre em diversos Estados, surge o Ministério de educação e de saúde
ainda nos anos 1930, forte influência do escolanovismo denominado também como  Escola
Nova, a qual tem sua essência no respeito e acompanhamento das transformações na conjuntura
da sociedade, o qual vem de encontro com o manifesto dos pioneiros26 que possuía sua essência

26 “MANIFESTO DOS PIONEIROS DA EDUCAÇÃO NOVA: Manifesto lançado em 1932 por um grupo de 26 educadores
e intelectuais propondo princípios e bases para uma reforma do sistema educacional brasileiro. Redigido por Fernando de Azevedo, foi
assinado, entre outros, por Anísio Teixeira, M. B. Lourenço Filho, Heitor Lira, Carneiro Leão, Cecília Meireles e A. F. de Almeida Júnior.
Antecedentes: A origem do movimento em prol de uma educação nova remonta à década de 1920, com a reforma de Sampaio Dória,
em 1920, a Semana de Arte Moderna, em 1922, e a criação da Associação Brasileira de Educação, em 1924. Nessa associação, através de
conferências e debates, os educadores apresentavam críticas e alternativas para os problemas educacionais do país. Com a vitória da Revolução
de 1930, o Governo Provisório de Getúlio Vargas propôs-se a reformar o ensino em todos os seus níveis. Em 1931, a Associação Brasileira
de Educação promoveu um congresso em Niterói com o objetivo de apresentar ao governo sugestões relativas às mudanças que deveriam
ser introduzidas. Foi nesse congresso que surgiu a ideia de lançar um manifesto expondo os novos princípios. O Manifesto: O esboço de
programa educacional contido no Manifesto dos pioneiros da educação nova previa um sistema completo de educação, destinado a atender às
necessidades de uma sociedade que ingressava na era da técnica e da indústria. Esse sistema deveria atender a toda a população, e não apenas
a uma minoria privilegiada, constituindo um instrumento de libertação não só da ignorância, como também da miséria. Os encargos do
sistema educacional deveriam ser assumidos pelo Estado, com a cooperação de todas as instituições sociais. O manifesto propunha o ensino
obrigatório e gratuito até a idade de 18 anos, custeado pelos estados da Federação e coordenado pelo Ministério da Educação. Defendia
também a criação de fundos escolares ou fundos especiais constituídos de uma percentagem sobre as rendas arrecadadas pela União, os
estados e os municípios. Sugeria que fossem criadas no país universidades encarregadas de fazer e transmitir ciência e, finalmente, reivindicava
a ‘reconstrução do sistema educacional em bases que [pudessem] contribuir para a interpenetração das classes sociais e a formação de uma
sociedade humana mais justa desde o jardim da infância à universidade’. A divulgação do manifesto teve grande repercussão, sobretudo,
porque ele significou uma cisão entre os educadores que vinham participando do movimento de renovação da educação. Contra os defensores

123
para a efetivação de uma educação destinada a todos, independentemente da classe social e
com respeito às diferenças. Ainda nesse cenário, destaca-se que o Brasil partiu do princípio da
relevância de tomar distanciamento das ideias liberais e ter uma maior aproximação com os
direitos sociais.
Com base na questão acima, torna-se evidente o início da valorização e do juízo de valor
para a educação escolar, a qual passa a ser gratuita, pública e compulsória no ensino primário
em toda a nação brasileira. O campo educacional passou a ter, inclusive, um Plano Nacional de
Educação, responsabilidade de todas as esferas de governo, para que, assim, cada uma pudesse
assumir seu papel frente às mudanças ocorridas no corrente período e país.

Será apenas com a Constituição Federal de 1934 que a educação se


revestirá da natureza de direito social e dever do Estado, garantido
a todos pelo seu art. 149, sob os influxos da ampliação dos direitos
sociais. Nesse sentido estabeleceu, de forma pioneira, a organização dos
sistemas de ensino mediante subordinação às diretrizes e bases fixadas
pela União (art. 5º, XIV), acompanhada da atribuição, aos Estados, de
competências legislativas concorrentes e encargos administrativos, sob
regime de vinculação excepcional de receitas tributárias para a educação
(arts. 156 e 157) e de isenção tributária para os estabelecimentos privados
de ensino (art. 154). Ademais, foram previstos, entre outras medidas, o
ensino primário integral obrigatório e gratuito (art. 149); a proibição de
ingresso no mercado de trabalho para menores de 14 anos e de trabalho
noturno para os menores de 16 anos (art. 121, § 1º, “d”); a garantia de
educação rural, acompanhada de outras medidas de apoio ao trabalhador
rural (art. 121, § 4º). O art. 148, ao inaugurar o Capítulo da educação
e cultura, garante a assistência do Estado ao “trabalhador intelectual”,
ademais da proteção trabalhista que lhe é garantida mercê do art. 121, cujo
§ 2º equipara o trabalho manual, o técnico e o intelectual para fins de sua
aplicação (RANIERI, 2018, p. 20).

De acordo com o exposto, ressaltamos que foi somente a partir da Constituição Federal
Brasileira de 1934 que a educação passou a ser entendida como um direito e dever do Estado.
Manteve-se significativamente o contexto educacional como direito social, fundamental e com
uma expressiva função social, pública e sem distinção de conjuntura social em virtude de níveis
econômico ou social.
Desse modo, entendemos que a Constituição de 1934 proporcionou conquistas em
relação a alguns avanços e progressos junto à demanda educacional de responsabilidade do
Estado. Elas foram: constituiu o sistema educacional e o ensino primário integral obrigatório
e gratuito, destinados, inclusive, aos adultos analfabetos; impediu que menores de 14 anos
ingressassem no mercado de trabalho e que menores de 16 anos trabalhassem no turno noturno;
garantiu a educação rural, seguida de diferentes intervenções de apoio ao trabalhador rural e
afins, expressas na presente Constituição.
Diante disso, fica evidente que a Constituição de 1934 tornou-se um marco no percurso
histórico de sua existência quando deu destaque e sentido ao direito à educação. Desse modo,
Cury (2005 apud SOARES, 2018, p. 60) ratifica abaixo as indagações quanto à importância da
referida Constituição no contexto da educação.

[...] pela primeira vez, um dispositivo constitucional estabelece a

do ensino leigo, ligados ao manifesto, colocaram-se os que lutavam pelo ensino religioso obrigatório. Os dois grupos tentaram levar suas
posições aos constituintes de 1933. Através da Associação Brasileira de Educação, os signatários do manifesto conseguiram introduzir na
Constituição de 1934 alguns dos princípios que vinham defendendo. Secretário de Educação do Distrito Federal no período de 1932 a 1935,
o educador Anísio Teixeira introduziu várias reformas no sistema educacional, chegando a criar a Universidade do Distrito Federal. Em São
Paulo, sob a inspiração dos mesmos princípios, foram criadas em 1934 a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras e a Universidade São Paulo.
Em outros estados, como Rio de Janeiro e Pernambuco, foram também introduzidas mudanças inspiradas nos princípios do manifesto”
(AZEVEDO, F. Manifesto; ENTREV. VENÂNCIO FILHO, A).

124
competência privativa da União em traçar as diretrizes da educação
nacional (art 5º, XIV). Contudo, permite que as leis estaduais venham
a “suprir lacunas ou deficiências da legislação federal, sem dispensar as
exigências desta” (art 5º, XIX, § 3º). A organização e manutenção de
sistemas educativos permanecem com os Estados e o Distrito Federal
e dispõe que o Plano Nacional de Educação deve estabelecer o ensino
primário integral e gratuito. Também, vislumbra-se uma tendência à
gratuidade do ensino ulterior ao primário, a fim de torná-lo mais acessível.

Conforme o exposto, entendemos que a essência da Constituição Federal de 1934 é


fazer valer as perspectivas e os desejos por justiça social no âmbito do direito à educação da
população brasileira. Incluem-se, assim, as pessoas que sempre foram desvalorizadas, excluídas e
discriminadas em razão de nível econômico e social, em especial, do contexto educacional.
Por fim, a Constituição Federal de 1934 deixou, no contexto histórico brasileiro, sua
marca de quebra de paradigmas no que tange ao direito à educação para todos, como dever do
Estado. No entanto, com base em Ranieri (2018), foi em razão da instauração do Estado Novo,
em 1937, três anos após a Constituição de 1934, que passaram a existir as intenções ditatoriais.
Com isso, o direito à educação preconizado no documento de 34 não se concretizou, nem
mesmo seus os princípios e regras. Diante dessa questão, posteriormente, estarão em destaque
menções quanto ao regime do Estado Novo, o qual dispõe de uma nova Constituição Federal, a
de 1937.

Constituição de 1937

Em 1937, surgiu a Constituição Federal do Estado Novo, concedida por meio de um


Governo ditador. Denominada também de “Polaca”27, teve como base os regimes fascistas do
contexto europeu. Com Getúlio Vargas no comando, a sociedade brasileira sofreu retrocesso
diante do surgimento desse atual modelo da era autoritária da época.
No entanto, esse contexto deu início a um procedimento de transformações que tinha uma
visão maximizada. Por meio delas, constituíam-se meios adequados, levando em consideração a
atualização da conjuntura do Estado brasileiro. Ainda que a Constituição Federal de 1937 tenha
surgido em solo e período autoritário, ela não deixou de expressar ação em favor da qualidade de
ensino, da gratuidade e da responsabilidade do poder público, tendo em vista que preconizou
o tema da educação nos artigos 15, IX, 16, XXIV, e 124 a 134. Ainda em meio a essa realidade,
surgiram e foram instituídos os Ministério do Trabalho, a Indústria e Comércio, em 1931, a
Companhia Siderúrgica Nacional, em 1941, assim como foram assegurados direitos trabalhistas
por meio da Consolidação das Leis do Trabalho, em 1943 (CURY, 2005 apud SOARES, 2018).

No campo da educação, o Estado Novo corresponde a uma retomada


da centralização. Nesse período, a concepção de educação pública é a de
que esta seria destinada aos pobres que não podem arcar com o ensino

27 “A Constituição Brasileira de 1937 (conhecida como Polaca), outorgada pelo presidente Getúlio Vargas em 10 de novembro


de 1937, mesmo dia em que implantou o período do Estado Novo, é a quarta Constituição do Brasil e a terceira da república, de conteúdo
pretensamente democrático. Será, no entanto, uma carta política eminentemente outorgada, mantenedora das condições de poder do
presidente Getúlio Vargas. A Constituição de 1937, que recebeu apelido de “Polaca” por ter sido inspirada no modelo semifascista
polonês, era extremamente centralizadora e concedia ao governo poderes praticamente ilimitados. Foi redigida pelo jurista Francisco
Campos, ministro da Justiça do novo regime, e obteve a aprovação prévia de Vargas e do ministro da Guerra, general Eurico Gaspar Dutra.
A Constituição de 1937 foi a primeira que atendeu interesses de grupos políticos desejosos de um governo forte que beneficiasse o povo, que
consolidasse o domínio daqueles que se punham ao lado de Vargas. A principal característica dessa constituição era a enorme concentração de
poderes nas mãos do chefe do Executivo. Seu conteúdo era fortemente centralizador, ficando a cargo do presidente da República a nomeação
das autoridades estaduais, os interventores. A esses, por sua vez, cabia nomear as autoridades municipais. O Governo Vargas caracterizou-se
desde o início pela centralização do poder. Mas ela foi ao extremo com o período de 1937-1945. Com ela, Getúlio implantou um regime de
liderança que durou até o fim da Segunda Guerra Mundial. E consolidou o seu governo, que começara em 1930” (Wikipédia, a enciclopédia
livre. Fonte: Constituição Brasileira de 1937).

125
na rede privada. Mesmo na rede pública, institui-se a contribuição para
o caixa escolar aos que podem pagar. Ou seja, a educação gratuita é, pois,
a educação dos pobres, desprovidos de recursos financeiros (SOARES,
2018, p. 62).

Em meio a esse contexto da educação no Brasil, entendemos que o regime complexo e


não democrático adotado nessa conjuntura com a nomenclatura de Estado Novo possuiu uma
postura de ações fragmentadas e pontuais. Em outras palavras, torna-se evidente que a essência
da educação pública nesse cenário é um processo educacional que teria os sujeitos em extrema
pobreza como protagonistas no acesso a esse direito de forma gratuita. Porém, ainda na rede
pública, havia uma cobrança simbólica junto à população pobre, a qual, ao possuir recursos
financeiros, mesmo que mínimos, já poderia contribuir para o caixa escolar.

A política educacional no Estado Novo estaria inteiramente orientada para


o ensino profissional, para onde seriam dirigidas as reformas encaminhadas
por Gustavo Capanema. O início dos anos 1940 responde por reformas
educacionais desencadeadas pelo poder central, especificamente as
chamadas Leis Orgânicas de Ensino, concebidas durante a administração
de Capanema no Ministério da Educação, composta por seis decretos-
leis, efetivados de 1942 a 1946. A Reforma Capanema compreendeu o
ensino industrial (Lei Orgânica do Ensino Industrial) corolário disso foi
o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai) e o comercial
(Lei Orgânica do Ensino Comercial) – cria- -se o sistema “S” (Senai, Sesi,
Senac). A Reforma atingiu também o ensino secundário (Lei Orgânica
do Ensino Secundário). Contudo, com a Reforma Capanema, o sistema
educacional brasileiro não só mantém como acentua o dualismo que
distingue a educação escolar das elites daquela ofertada para 63 as classes
populares. As diretrizes dessa reforma vão orientar a educação nacional
até a criação da primeira Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional
(LDB – Lei nº 4.024/61) (SOARES, 2018, p. 62-63).

Diante das indagações acima, entendemos que a política em educação no contexto do


Estado Novo encontrava-se encaminhada integralmente para o ensino profissional, o qual
receberia uma atenção a mais em relação à atualização para o seu processo de ensino. A partir
do ano de 1940, surgiram reformas no campo educacional. Sua efetivação passou a acontecer
em meados de 1942 e 1946, período esse que surgiram as reformas educacionais profissionais,
por meio das denominadas Leis Orgânicas de Ensino, e instalou-se o sistema “S” (SENAI, SES,
SENAC). Essa reforma atendeu, ainda, o ensino secundário, por meio da Lei Orgânica do
Ensino Secundário.

Não se pode dizer que essa medida tenha sido uma ação afirmativa
inaugural no sistema jurídico educacional brasileiro, mas, antes, mais
uma forma de assegurar a participação de todos no projeto da ditadura de
Getúlio Vargas, expressa pelos deveres para com a economia e a defesa da
Nação, e pelo controle ideológico da infância e juventude, como podemos
notar em face das exigências de ensino cívico e disciplina moral (art. 131).
Por outro lado, é significativo que a área da educação tenha acompanhado
o crescente interesse do governo Vargas na industrialização do País,
como nos faz notar Fausto (1994:367). Daí a edição da Lei Orgânica
do Ensino Industrial, com o objetivo de preparar mão de obra fabril
qualificada, e a criação do Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial
– SENAI, subordinado ao Ministério da Educação, mas sob a direção da
Confederação Nacional da Indústria – CNI, dada a aproximação entre o
governo e a burguesia industrial desde a derrota da Revolução Paulista de
1932 (FAUSTO, 1994 apud RANIERI, 2018, p. 21-22).

126
Essa intervenção no percurso histórico em meio ao sistema educacional com viés jurídico
no Brasil, no que tange às ações do plano do regime de Getúlio Vargas, destaca-se inclusive
quanto às exigências de cumprimento do ensino cívico e da disciplina moral. Contudo, em meio
aos interesses do governo pelo campo da educação e pelas transformações da sociedade, tendo
como enfoque o sistema S, mediante a Lei Orgânica do Ensino Industrial, criou-se o Serviço
Nacional de Aprendizagem Industrial (SENAI), conduzido pelo Ministério da Educação,
conforme mencionado anteriormente.

Outro retrocesso da Constituição de 1937 foi a supressão da organização federativa dos


sistemas de ensino, tal como prevista em 1934, e da vinculação de receitas tributárias
para sua manutenção (arts. 15, IX e 16, XXIV). Mas, se a atuação supletiva da União,
por sua vez, fez-se em favor do ensino privado e não do público (arts. 125 a 129), não
se pode negar que a proteção instituída ao menor intelectualmente abandonado e o
estabelecimento de normas sancionatórias aos responsáveis negligentes tenham sido um
avanço na universalização do direito à educação pública (art. 130) (RANIERI, 2018, p.
22).

O contexto acima passa a ideia de que a Constituição de 1937 causou, inclusive,


retrocessos, como a eliminação de um avanço que era assegurado com a Constituição de 1934:
a exclusão da organização federativa dos sistemas de ensino. Diante disso, reforça-se que o
documento constitucional de 1937 faz referência à educação de valores cívicos e econômicos.
Após a conquista da certificação, a educação passou a ser opcional e livre para o exercício. Em
meio a isso, houve uma grande influência na centralização das normas educacionais e exigências
para o exercício do fazer profissional no campo da educação.

A Constituição de 1937 revogou a vinculação constitucional de recursos


financeiros para a educação. Em seu art. 128, prevê que “a arte, a ciência
e o ensino são livres à iniciativa individual e à de associações ou pessoas
coletivas públicas e particulares”. O dever do Estado para com a educação
fica em segundo plano: tem apenas função compensatória na oferta escolar
destinada à “infância e à juventude, a que faltarem os recursos necessários
à educação em instituições particulares” (art 129). O primeiro dever do
Estado é prover o “ensino pré-vocacional e profissional destinado às classes
menos favorecidas”. O ensino gratuito é, pero no mucho. Isso porque o
art 13 prevê que “o ensino primário é obrigatório e gratuito”, porém, a
gratuidade é parcial. O mesmo artigo “não exclui o dever de solidariedade
dos menos para com os mais necessitados; assim, por ocasião da matrícula,
será exigida aos que não alegarem, ou notoriamente não puderem alegar
escassez de recursos, uma contribuição módica e mensal para a caixa
escolar” (SOARES, 2018, p. 63).

Diante do exposto, no contexto da Constituição Federal de 1937, o papel do Estado


referente à proposta da educação, de forma ampla, era visto como mais acessível, de maneira que
tornou evidente e possível a existência de uma modalidade de ensino oriunda de origens distintas,
tendo como exemplo as associações e os grupos específicos. No entanto, ainda existindo outras
ações educacionais, tornou-se ainda mais visível a necessidade de comprometimento e obrigação
da União de cooperar em tal propósito, defendendo e incentivando o mútuo desenvolvimento
para uma sociedade desprovida de um regime autoritário (SANTOS, 2018).

Art. 129 – À infância e à juventude, a que faltarem os recursos necessários


à educação em instituições particulares, é dever da Nação, dos Estados e
dos Municípios assegurar, pela fundação de instituições públicas de ensino
em todos os seus graus, a possibilidade de receber uma educação adequada
às suas faculdades, aptidões e tendências vocacionais (BRASIL, 1937, p.
1).

127
Conforme o artigo 129, entendemos que, nesse processo, há duas vertentes de atendimento
junto às classes sociais. Em outros termos, o documento de 1937 faz distinção entre a educação
destinada à elite e a educação voltada à população pobre.
Por fim, em meio a esse cenário, houve a efetivação e a manutenção do ensino primário
gratuito, o estabelecimento do caráter facultativo do ensino religioso e a obrigatoriedade da
educação física, dos ensinos cívicos e dos trabalhos manuais nas escolas, tendo como base o
artigo 131 da Constituição de 1937. Diante dos longos caminhos da história do direito à
educação, no ordenamento jurídico brasileiro, faz-se necessário prosseguir o estudo abordando
a Constituição Brasileira de 1946.

Constituição de 1946

No ano de 1946, nasceu e foi promulgada a nova Constituição Federal. Em seu artigo
166, ela expressa e reforça a importância da educação como direito de todos, mas que precisa ser
acessada por meio do lar e da escola. Necessita ser inspirada através de princípios que pregam a
liberdade e de idealizações de solidariedade junto à humanidade. Nesse contexto, entendemos
a decisão de a educação ser acessada por todos, porém, não fica em evidência a inclusão da
população camponesa.
Entretanto, o que se torna mais próximo dessa conjuntura é o que está preconizado no
inciso III do artigo 168, o qual aborda a realidade das empresas industriais, comerciais e agrícolas.
Estas possuem centenas de trabalhadores e precisam seguir rigorosamente com a obrigação de
incentivar a permanência de seus servidores e seus filhos no ensino primário gratuito. Já o inciso
IV do presente artigo reforça que as empresas industriais e comerciais possuem a obrigatoriedade
de fornecer, em colaboração, aprendizagem aos seus trabalhadores menores, em razão da maneira
que subornam os direitos dos professores (SANTOS, 2018). A Constituição Brasileira de 1946
sugere transformações para o campo da educação, as quais estão expressas nos artigos 166, 167
e 168, conforme o exposto abaixo:

A educação é direito de todos e será dada no lar e na escola. Deve inspirar-se nos princípios
de liberdade e nos ideais de solidariedade humana. O ensino dos diferentes ramos será
ministrado pelos Poderes Públicos e é livre à iniciativa particular, respeitadas as leis que
o regulem. A legislação do ensino adotará os seguintes princípios: I – o ensino primário
é obrigatório e só será dado na língua nacional; II – o ensino primário oficial é gratuito
para todos; o ensino oficial ulterior ao primário sê-lo-á para quantos provarem falta ou
insuficiência de recursos; III – as empresas industriais, comerciais e agrícolas, em que
trabalhem mais de cem pessoas, são obrigadas a manter ensino primário gratuito para os
seus servidores e os filhos destes; IV – as empresas industrias e comerciais são obrigadas a
ministrar, em cooperação, aprendizagem aos seus trabalhadores menores, pela forma que
a lei estabelecer, respeitados os direitos dos professores; V – o ensino religioso constitui
disciplina dos horários das escolas oficiais, é de matrícula facultativa e será ministrado de
acordo com a confissão religiosa do aluno, manifestada por ele, se for capaz, ou pelo seu
representante legal ou responsável (BRASIL, 1946, p. 1).

Nesse sentido, ressalta-se que, ao término dos anos de 1945, o poder do regime do governo
Vargas teve uma queda, em razão de alguns motivos, dentre eles: o contexto, que foi afetado por
meio da 2ª Guerra Mundial; os descontentamentos em meio a militares que lutam contra o
governo; e as manifestações de várias categorias profissionais contra o governo. Diante disso,
destacamos que os anos de 1945 e 1946 carregaram trajetos históricos de muita luta e greves,
por meio das quais muitas outras categorias foram beneficiadas, por exemplo os bancários e
portuários, o que contradizia as guias de instituições do Partido Trabalhista do Brasil (PTB) e
do Partido Comunista (PC) (OLIVEIRA, 2001 apud SOARES, 2018).

[...] aos poucos vão se consolidando as condições que levariam o país à


redemocratização. Assim, Vargas e a ditadura do Estado Novo caem

128
no final de 1945, entretanto, a ordem getulista se mantém. O general
Eurico Gaspar Dutra, eleito presidente da República, de início, revela-
se um moderado. Assume o poder em janeiro de 1946 e, em setembro,
promulga a nova Constituição, orientada por princípios liberais e
democráticos. Restabelece o estado de direito e a autonomia federativa.
Mas, tal ordem inicial é rompida pouco depois quando, em 1947, ocorre
a intervenção em centenas de sindicatos, seguida pela decretação da
ilegalidade do Partido Comunista Brasileiro (PCB) (OLIVEIRA, 1996
apud SOARES, 2018, p. 63-64).

No contexto da educação, conforme o exposto, passamos a entender que houve o processo


de redemocratização, o qual teve sua gênese bastante repercutida inclusive no âmbito do campo.
Contudo, perpetuaram-se também uma contradição e a democracia limitada, a qual teve ideias
pedagógicas que circularam no corrente período. Nesse cenário, determinadas finalidades
conservadoras e liberais foram especificidades bem marcantes em relação ao debate expresso na
Constituição de 1946.
Desse modo, entendemos que a Constituição de 1946 continuou expressando a educação
como direito de todos; prosseguiu com a obrigatoriedade do oferecimento do ensino gratuito
e primário por meio das empresas que possuem mais de 50 colaboradores; constituiu como
alçada da União a responsabilidade de “legislar sobre as diretrizes e bases da educação nacional”
(art. 5º, XV); detalhou as atribuições dos Poderes Públicos para o desenvolvimento do ensino
em várias áreas, dando atenção, inclusive, à iniciativa privada, levando em conta as legislações
que as regulamentam; restituiu o ensino primário com viés gratuito a todos, no entanto, o
ensino ulterior tornou-se gratuito somente aos sujeitos que comprovassem falta de recursos
financeiros. Em outras palavras, o presente documento nos repassa uma visão de possibilidades
de existir um ensino oficial gratuito, expressão que aparece pela primeira vez em um documento
constitucional (SOARES, 2018).

Muito embora a Constituição Federal de 1946 tenha mantido a natureza


jurídica individual e social do direito à educação e adotado inúmeras
medidas para a ampliação do acesso ao ensino primário, o fato é que os
direitos sociais, e em particular a educação pública, pouco avançaram em
benefício da cidadania, a despeito da ampliação dos direitos políticos, em
ambiente democrático, e a retomada de diversos preceitos da Constituição
de 1934. São assegurados os princípios de liberdade e solidariedade no
oferecimento da educação, assim como a sua oferta, obrigatória e gratuita,
no nível primário (art. 166 a 168). Retoma-se a organização federativa dos
sistemas de ensino, desta feita, com maior liberdade de organização para
os Estados, sob atuação supletiva da União na medida das necessidades
locais e regionais (art. 170 e 171) (RANIERI, 2018, p. 24-25).

Em meio a esse contexto, destacamos que a Constituição de 1946 extinguiu a exigência


que vedava os analfabetos de se alistarem para atender normas eleitorais; conservou o mesmo
caráter jurídico com viés individual e social, no que tange ao direito à educação; seguiu diferentes
estratégias, com o intuito de que prevalecesse o acesso ao ensino primário; garantiu, no contexto
educacional, os princípios individuais (liberdade), de coletividade (solidariedade) e o ensino
primário e gratuito; seguiu com a atuação destinada ao aparelhamento federativo das normas
de ensino e com os Estados sendo mais livres para desenvolver seus trabalhos juntamente com
a União, a qual vedava os analfabetos de respeitarem as especificidades das regiões e demais
localidades (RANIERI, 2018).
Por fim, a Constituição de 1946 foi significativamente restaurada no que tange à sua
essência a partir do golpe de 1964, que deu origem à ditadura militar. Tentou-se, dessa forma,
implantar um novo sistema tributário para aumentar um centralismo econômico e político da
União e abolir a conexão junto à questão educacional. Nesse contexto, destinam-se à nação os

129
atos Institucionais, por meio dos quais as garantias constitucionais em vigor foram paralisadas.
Diante disso, o Congresso em exercício passou a ter a atribuição de organizar outra
Constituição, ajustada com base no modelo de regime político autoritário e econômico, com o
intuito de concentrar a renda do período histórico em questão. Desse modo, a ideia de ordem
ganhou poder, enquanto a liberdade e a justiça social perderam força em meio a esse contexto,
tendo em vista que o país retomou um modelo autoritarista (SOARES, 2018).
Conforme o exposto, faz-se necessário, nesse contexto, abordar o novo documento
Constitucional brasileiro, de 1967. Ele passou a ser mais um marco legal no processo histórico
das Constituições Federais no país.

Constituição de 1967

O direito à educação, na Constituição de 1967, é preconizado como universal, gratuito


e obrigatório entre os sete e os quatorze anos de idade para o acesso ao ensino primário. Foi
ampliado o acesso ao ensino secundário e gratuito às pessoas que comprovassem não possuir
meios de subsistência, aumentando a percentagem de contribuições destinadas ao financiamento
e à manutenção da educação e implantando uma norma de financiamento para o ensino primário
mediante empresas comerciais, industriais e agrícolas, por meio da qual garantiam o direto a
seus empregados e filhos ou contribuíam com dinheiro para o acesso à educação (RANIERI,
2018).
Anos após a divulgação da primeira LDBEN, foi promulgada a Constituição Federal
de 1967, no período em que a sociedade brasileira se encontrava implantada na conjuntura
da ditadura militar. Esse documento, ao ser analisado, no inciso XIV do artigo 8º, garante
que é responsabilidade da União constituir planos nacionais em relação ao direito à educação
e à saúde, no entanto, teve zero intervenção no que tange à atenção junto à educação rural,
demonstrando, além disso, os aspectos e a essência inferior destinados a essas áreas. Leva-se em
consideração a totalidade ditatorial da época, que cooperava também para a sustentação das
ideologias da elite (SANTOS, 2018).
No ano de 1967, em meio ao período da Ditadura Militar, nasceu o Movimento Brasileiro
de Alfabetização de Adultos (MOBRAL). Primeiramente, ele executou os trabalhos mais
pedagógicos possíveis e começou a ser tratado como um programa com dois vieses: um lado tinha
como propósito dar respostas aos excluídos do aparelho escolar, e o outro acatar-se aos desígnios
dos políticos que eram militares e faziam parte dos governos. Em face a essa questão, o Mobral
ainda era percebido como algo positivo, tendo em vista que era uma forma de alfabetização de
jovens, adultos e idosos em meio ao campo de violação de direitos (HADDAD; DI PIERRÔ,
2000 apud ANGELO; KUHN; ALMEIDA, 2017).

Somente depois da Constituição de 1967 é que são encaminhadas as principais propostas


de reforma do período. Cabe, porém, uma breve referência a elas, já que marcam de
forma decisiva o cenário dos anos subsequentes. Primeiro, é concebida a reforma do
ensino superior (Lei nº 5.540/68). A reforma universitária tem por objetivo oferecer
resposta às demandas crescentes por ensino superior. Busca, ao mesmo tempo,
formar quadros desse nível de modo a dar substância ao crescimento econômico
gerado pelo “milagre brasileiro”. Depois toma corpo a reforma da educação básica,
que fixa as diretrizes e bases para o ensino de 1° e 2° graus (Lei nº 5.692/71). Essa
reforma, por sua vez, pretende atingir um duplo objetivo: de um lado, conter a
crescente demanda sobre o ensino superior; de outro, promover a profissionalização
de nível médio (o conhecido tecnicismo). Finalizando, cabe ressaltar que, talvez em
nome do planejamento de orçamentos plurianuais, da “teoria do capital humano”, da
racionalização dos recursos ou mesmo em nome da ordem moral e cívica, o referido
texto constitucional expresso no seu artigo 65, III, que, “ressalvados os impostos únicos
e as disposições desta Constituição e de leis complementares, nenhum tributo terá a sua
arrecadação vinculada a determinado órgão, fundo ou despesa” (SOARES, 2018, p. 67,
grifo nosso).

Por fim, nesse contexto, entendemos que as Constituições Federais Brasileiras de 1824,

130
1891, 1934, 1946 e 1967 foram pontos de partida para o surgimento de novos documentos28
atualizados, visando as melhorias educacionais. Além disso, encararam obstáculos educacionais
em relação às possibilidades de executar atendimentos respeitando a igualdade, a prestação de
serviço, a promoção e a qualidade no ensino, para que não houvesse limitação na execução dos
termos legais junto a essa demanda.
O presente formato constituiu-se somente com as atualizações por meio da Constituição
Federal de 1988, a qual estabeleceu a manutenção do direito ao acesso à escola gratuita e
obrigatória, de maneira que assegurasse a todos os sujeitos sociais os níveis básicos (1º ao 5º ano
do ensino fundamental) e secundário (6º ao 9º ano do ensino fundamental e ensino médio).
Ainda que os procedimentos para aperfeiçoamento no contexto social apresentassem avanços
expressivos, levando em consideração os distintos momentos históricos da nação, entendemo-
nos como inacabados e possuidores de extensas áreas a progredir, principalmente em relação ao
ensino inicial (RANIERI, 2018).
A partir do exposto, torna-se essencial prosseguir com os caminhos históricos das
Constituições Federais Brasileiras, as quais foram fatores primordiais em nossa sociedade que
visavam o bem comum. Essa questão, posteriormente, terá como enfoque um pouco de diálogo
em relação à Constituição Federal Brasileira de 1988.

Constituição de 1988

Esse documento surge como um carro chefe para novas possibilidades, avanços e conquistas,
inclusive, novas perspectivas na Educação do Campo. Há muitos anos, o campo não era tratado
com primazia pelos governos brasileiros, existindo escassez de políticas públicas, alto índice do
analfabetismo e ausência de educação de qualidade, o que acarretava o analfabetismo funcional
em massa. Frente a essa questão, entendemos que o Estado tomou como responsabilidade
pra si, exclusivamente, o aparelho escolar urbano. Já as iniciativas privadas, a comunidade, os
sindicatos e os movimentos sociais passaram a ser responsáveis pela Educação do Campo, já
que o poder público se opôs a garantir o direito à educação, que, inclusive, é sua obrigação
constitucionalmente (FACCIO, 2012).
Entendemos que, na época, houve a retração do Estado, o qual deixou de exercer sua

28 “A Emenda Constitucional nº 1/1969: Em 17 de outubro de 1969, os mesmos ministros militares, invocando o uso de
atribuições que lhes conferia o artigo 3º do AI-16, combinado com o parágrafo 1º do artigo 2º do AI-5, considerando o recesso do Congresso
Nacional (Ato Complementar nº 38, de 13/12/1968), e considerando ainda que, com esse recesso, o “Poder Executivo Federal fica autorizado
a legislar sobre todas as matérias”, entre elas se incluindo “a elaboração de emendas à Constituição” (considerando inicial da Emenda
Constitucional nº 1 e tese, diga-se de passagem, evidentemente inaceitável), promulgaram a Emenda Constitucional nº 1, de 17 de outubro
de 1969, publicada no Diário Oficial de 20 de outubro de 1969. Essa emenda teve publicação de duas corrigendas no Diário Oficial de 21 de
outubro de 1969: a primeira, referente ao parágrafo 1º do artigo 97, para corrigir “provas e títulos” em vez de “provas de títulos”; a segunda,
para corrigir “irreelegibilidade”, no artigo 151, parágrafo único, alínea a, em vez de “inelegibilidade”. E foi republicada, na íntegra, em 30
de outubro de 1969, data prevista para o início de sua vigência. Desde logo, note-se que enquanto a Constituição de 1967 se encimava pelo
título “Constituição do Brasil”, a Emenda nº 1/69 denominou-se “Constituição da República Federativa do Brasil”. A Constituição de 1967,
fugindo à tradição anterior, que foi iniciada com o Decreto nº 1, de 15 de novembro de 1889, repetida no Decreto nº 510, de 22 de junho
de 1890 e perfilhada por todas as nossas constituições, denominando nosso país de “Estados Unidos do Brasil”, passou a referir-se apenas a
“Brasil”. Já a Emenda nº 1/69 veio a denominar o país “República Federativa do Brasil”, conforme a Lei nº 5.389, de 22 de fevereiro de 1968,
em nosso entender sem força para fazê-lo, porque atentando contra o nome indicado pela Constituição de 1967, votada pelo Congresso
Nacional. Note-se também que, embora alterando, às vezes substancialmente, o texto de 1967, sem a participação do Congresso Nacional, a
Emenda nº 1/69 tinha a forma inicial: “O Congresso Nacional, invocando a proteção de Deus, decreta e promulga...”, o que, evidentemente,
não correspondia à realidade. A fim de que se possam conhecer as linhas gerais do texto constitucional na redação que lhe deu a Emenda
nº 1/69, vale acompanhá-lo com observações relativas às modificações mais importantes introduzidas no texto da Constituição de 1967, e
com brevíssima análise de seu alcance (quando indispensável). Para isso, mais conveniente se faz obedecer à própria disposição da matéria
constitucional, assinalando, nessa ordem, as alterações havidas, e, quando necessário, introduzindo sucinta nota sobre as consequências
das modificações. Para maior facilidade, referir-nos-emos à Constituição de 1967 apenas como “Constituição” e à Emenda Constitucional
nº 1/69 apenas como “Emenda”. Além disso, não mencionaremos todas as alterações (o que pode ser visto na publicação Constituição da
República Federativa do Brasil, que organizamos, publicada pela Editora Alba, Rio de Janeiro, 1970). De passagem, também indicaremos as
modificações introduzidas pelas emendas constitucionais posteriores, cuja indicação pormenorizada se fará na parte seguinte” (CORREIA,
2009).

131
responsabilidade, que era executar as políticas sociais públicas e as transferir para a sociedade civil
organizada. Na atual conjuntura, o cenário é bem parecido no que diz respeito aos desmontes
dos direitos sociais e da precarização das políticas públicas.
No entanto, a Constituição de 1988 abarca e anuncia um cuidado quanto à necessidade
e à importância do acesso a uma educação de qualidade, sobretudo sobre a garantia da equidade
no acesso à educação.

Art. 206. O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios:
I - igualdade de condições para o acesso e a permanência na escola;
II - liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o
saber;
III - pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas, e coexistência de
instituições públicas e privadas de ensino;
IV - gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais;
V - valorização dos profissionais do ensino, garantindo, na forma da lei, planos
de carreira para o magistério público, com piso salarial profissional e ingresso
exclusivamente por concurso público de provas e títulos, assegurado regime
jurídico único para todas as instituições mantidas pela União;
VI - gestão democrática do ensino público, na forma da lei;
VII - garantia de padrão de qualidade (BRASIL, 2010, p. 123).

Nesse contexto, torna-se relevante reforçar que o documento Constitucional brasileiro


de 1988 é um marco histórico e estabelece em seu artigo 205 a seguinte questão: “A educação,
direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração
da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da
cidadania e sua qualificação para o trabalho” (BRASIL, 2010, p. 123).
Dessa forma, entendemos que o sentido e a significativa força que o movimento social
possui na luta e na resistência em prol de toda população campesina ganhou ainda mais
poder e respaldo através da Constituição Federal de 1988. Por meio dela, os movimentos,
as mobilizações e as lutas são fatores que contribuíram para que o Estado passasse a assumir
mais responsabilidades, ainda mais se tratando do contexto educacional e das demais áreas que
necessitam de atenção conforme suas especificidades. Em meio esse diálogo, destacamos os
Artigos 211 a 214, que enfatizam, também, as exigências e as normas no campo da educação.
Esses artigos, expressos na Constituição de 1988, possuem uma função social e necessitam
que todos os cidadãos da sociedade brasileira sejam atingidos no que tange às exigências para
o âmbito educacional de forma hierarquizada e regionalizada em cada esfera de governo. Cada
artigo possui uma particularidade e dispõe de distribuição de responsabilidades diversas, visando
os diferentes níveis de ensino.
Ainda nesse último documento, conseguimos entender que ele foi, de fato, um grande
marco na história das Constituições brasileiras, em especial, da educação nesse contexto. Esta
torna legítimas as exigências do sujeito por melhorias e avanços voltados ao direito social a uma
educação de qualidade e que atenda a todos com respeito e valorização. Os direitos de segunda
geração, isto é, os direitos sociais, estão expressos no artigo 6 da Constituição de 1988. Este
comprova que “são direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia,
o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a
assistência aos desamparados” (BRASIL, 2010, p. 18).

132
Essa situação começa a ser revertida com a criação do Fundo de
Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização
do Magistério – Fundef, pela Emenda Constitucional nº. 14 de 1996, que
permitiu o equacionamento das questões relativas ao financiamento e à
expansão da educação fundamental por parte dos Estados e Municípios,
alcançando, em muitos casos, a sua universalização. Após dez anos, a
Emenda Constitucional nº. 53, de 19 de dezembro de 2006, ampliou
o escopo do Fundef de forma a incluir a educação infantil e os demais
profissionais da educação. Alcançou, dessa maneira, todos os níveis da
educação básica educação infantil (0 a 5 anos), ensino fundamental (6
a 14 anos) e ensino médio, assim como assim como os profissionais do
magistério da educação (docentes) e os profissionais que oferecem suporte
pedagógico direto ao exercício da docência: direção ou administração
escolar, planejamento, inspeção, supervisão, orientação educacional e
coordenação pedagógica, segundo o art. 22, II da Lei nº 11.494/2007.
A instituição do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação
Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação – Fundeb, com
vigência até 2020, pretende garantir padrão nacional mínimo de qualidade
(cf. Lei nº 11.494, de 20/06/07). Entre a legislação ordinária do período,
também merecem destaques o Estatuto da Criança e do Adolescente
– ECA (Lei nº 8.069/1990) e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional – LDB (Lei nº 9.394/1996). Desde então, são expressivos os
avanços alcançados: o direito educacional brasileiro incorporou princípios
e diretrizes nacionais, definiu metas, vinculou recursos para a educação
obrigatória e estabeleceu mecanismos de financiamento (RANIERI,
2018, p. 29).

Por fim, por meio da Constituição de 1988, muitos outros documentos que defendiam
e valorizavam a educação puderam ser concretizados, destacando especificidades e normas que
seriam de grande importância. Com base nessa questão, temos como ênfase o diálogo abaixo a
respeito do direito e dos avanços no âmbito da educação.

Considerações Finais

A Constituição Federal de 1988 nos trouxe uma esperança a mais no que tange às
expectativas de justiça social, em especial no campo do direito à educação. A educação que
possuímos na atual conjuntura é resposta de muitas lutas coletivas e dos movimentos sociais
ao longo da história do Brasil, contudo, entendemos que, em meio a esse avanço, não podemos
parar de buscar e lutar por melhorias e valorização para o contexto educacional brasileiro.
Diante do exposto, compreendemos que possuímos avanços e melhorias em nossa
sociedade, mas não podemos nos acomodar, tendo em vista que, no decorrer da história do mundo
pós-moderno, nos deparamos com muitos retrocessos, inclusive muitos inconstitucionais. O
século XXI não tem sido fácil para o campo da educação pública em todos os níveis de saberes,
nem para muitos professores, os quais assumem sua função com muita responsabilidade e
passam por situações delicadas no âmbito de sua atuação. Tais indagações são situações reais
presenciadas e expressas pelas mídias na atual conjuntura.

133
REFERÊNCIAS

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educação de jovens e adultos do campo na atuação do Pronera e Pronacampo. In: Educação
do Campo: diálogos com a extensão universitária: publicação do programa institucional de
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BRASIL.  Constituição  (1937).  Constituição  dos Estados Unidos do Brasil. Rio de
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BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil, 1988.


Brasília, DF: Senado, 2010.
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leg.br/legin/fed/lei/1960-1969/lei-4024-20-dezembro-1961-353722-publicacaooriginal-1-
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CORREIA, Oscar Dias. Emenda nº 19, de 6/8/1981, que “altera o artigo 151 da Constituição”,
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134
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TRIVIÑOS, Augusto Nibaldo Silva. Introdução à pesquisa em ciências sociais: a pesquisa
qualitativa em educação. São Paulo: Atlas, 1987.

135
CAPÍTULO 10 - HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO DO CAMPO NA UFRRJ

Jean Moura29
Roberta Lobo30
Suelen Estevam31

Resumo

Este artigo tem por objetivo apresentar o processo histórico do surgimento do curso de
Licenciatura em Educação do Campo na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro -
UFRRJ. A argumentação parte da experiência piloto da LEC PRONERA: turma Oséias
Carvalho/UFRRJ 2010-2013, e tem como ponto central o processo de regularização do curso
na universidade, culminando no cenário atual. Para tal, realizamos entrevistas semiestruturadas
com discentes, tanto da LEC PRONERA, quanto das turmas seguintes, bem como alguns
professores envolvidos no processo de construção do curso. Pretende-se através desse material
observar as tensões existentes entre as demandas dos movimentos sociais, povos tradicionais e
suburbanos, e a realidade institucional da UFRRJ.

Palavras-chave: História da Educação do Campo; Movimentos sociais; Universidade Pública.

Introdução

Existe um debate importante sobre a qualidade do ensino que era e é oferecido nas
áreas rurais do país. Esse debate foi conduzido principalmente pelos movimentos sociais do
campo, como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra/MST, a Via Campesina, a
Federação dos Trabalhadores da Agricultura/FETAG, entre outros. O movimento nacional
da Educação do Campo e luta por políticas públicas de Educação do Campo surgiram em
contraponto à Educação Rural no final dos anos de 1990 e início dos anos 2000. A Educação
Rural, fundamentada no conservadorismo da contrarrevolução dos anos de 1960, teve como
objetivos diluir os processos de educação popular da época, bem como estimular a lógica da
“cidade grande” no campo, traduzindo todas as ruralidades em sinônimo de atraso.
A Educação do Campo, no contrapelo desta história, possui como princípio os sujeitos
e a dinâmica de seu território. O território é o princípio epistemológico por excelência, ponto
de partida para os processos de formação da Pedagogia da Alternância, valorizando os saberes
populares, a ancestralidade e as contradições vivenciadas pelos sujeitos dos povos e comunidades
tradicionais, sujeitos da reforma agrária e da imensa periferia que compõe o desterro das classes
populares no Estado do Rio de Janeiro.
Nessa perspectiva, a escola rural é radicalmente diferente da escola do campo, na
qual a comunidade local, suas lutas e suas tradições estão dentro do Currículo. Deste modo,
os profissionais que irão atuar nas escolas precisam compreender os diferentes processos
pedagógicos em que Currículo e Territórios não se separam. As Licenciaturas em Educação
do Campo surgem para atender essa necessidade dos movimentos sociais de capacitar seus
educadores populares. Por isso, inclusive, que a primeira experiência de um curso superior em
Educação do Campo na UFRRJ contou com discentes que foram indicados pelos movimentos
29 Jean Moura Licenciado em Educação do Campo - UFRRJ, Mestrando em Ciências Sociais – UFF.
30 Roberta Lobo. Professora Titular da UFRRJ. Graduação e Mestrado em História (UFRJ). Doutorado em
Educação (UFF). Pós-doutorado em Música (UNIRIO).
31 Suelen Pereira Estevam da Silva Licenciada em Educação do Campo – UFRRJ, doutoranda em Educação -
UFRRJ

136
sociais rurais e urbanos.
Tratava-se dos sem-terra, sem-teto, dos quilombolas, indígenas, caiçaras, pretos e pobres
adentrando um espaço conhecido como o “latifúndio do saber”. Essa experiência, como veremos
à frente, foi um grande desafio, tanto para os estudantes quanto para os professores. No entanto,
foi a partir dela que se pode consolidar a Licenciatura em Educação do Campo enquanto um
curso regular da UFRRJ. Agora, quase dez anos depois da formação da primeira turma “Oseias
de Carvalho” – que recebeu o nome de um importante líder da luta pela terra assassinado em
19 de maio de 2009, pai de uma educadora formada na LEC/PRONERA, Suellen Santos de
Carvalho – podemos observar não só o processo de construção do Curso, mas algumas tensões
existentes entre as necessidades dos movimentos sociais e a realidade institucional de uma
Universidade Pública.
Essas tensões existem, pois, como bem observou a professora Roberta Lobo, uma das
coordenadoras do LEC/PRONERA/UFRRJ, a LEC é um sujeito coletivo, que luta e reconstrói
a memória social das classes populares, que projeta no sentir, no agir e no refletir a busca de
uma forma de vida humana (CAMPOS, 2014, p. 11). Nas instituições de ensino superior deste
Brasil, nos deparamos com uma realidade totalmente diferente. Em sua maioria, os estudantes
são formados enquanto sujeitos individuais, tendo como principal objetivo o mercado de
trabalho.
Nas entrevistas a seguir, apresentaremos as dificuldades que esses jovens militantes
enfrentaram ao adentrar na universidade. Desde a ausência de infraestrutura até discriminação
racial, tendo, além disso, que lidar com problemas de convivência e de organização enquanto
protagonistas de sua própria formação. Entretanto, apesar das dificuldades, a luta deu frutos,
inclusive nós só estamos escrevendo esse texto graças a todos que batalharam pela implementação
da LEC na UFRRJ. Como veremos, nem tudo saiu como planejado, e o potencial de fato
político e social desse Curso se tornou um ponto de discussão. Entretanto, é notável e deve
ser reconhecido que a LEC é um dos cursos que mais coloca estudantes pretos e periféricos de
Campo Grande e Seropédica dentro da UFRRJ.
Muitos desses novos estudantes, apesar de não terem ligação direta com movimentos
sociais, estão se redescobrindo enquanto sujeitos históricos. Conhecendo e construindo a sua
própria história através das metodologias pedagógicas presentes na LEC, como o Estudo da
Realidade e as Narrativas de Formação. Os “lequianos” podem se interessar e manter acesa a
chama por uma Educação do Campo, que caminhe lado a lado com os movimentos sociais
deste Brasil, alargando o pertencimento por suas comunidades e territórios. Assim, justifica-se
o presente exercício de apresentar o histórico da construção da LEC na UFRRJ.
Para além da experiência da LEC/UFRRJ, as Licenciaturas em Educação do Campo têm
como objetivo formar educadores para a valorização das populações que vivem e trabalham
no campo, considerando temas relevantes como reforma agrária, agroecologia, descolonização
dos saberes. A construção de um curso com tais características se dá na perspectiva da luta
social. Trata-se da ocupação do latifúndio do saber frente ao modelo de conhecimento das
universidades públicas que silenciam seus estudantes. Na Educação do Campo, herdeira da
Educação Libertária e da Educação Popular, a fala é compartilhada, as formas pedagógicas são
inventivas e os saberes transitam entre os sujeitos. Como é apresentado em um dos primeiros
PPPs deste Curso:

Requerendo dos docentes características que os permitam articular os


conhecimentos científicos populares e escolares, assumindo uma postura
pedagógica pautada nos princípios da dialogicidade e da circularidade dos
saberes (SILVA, 2017).

Atualmente, a Licenciatura em Educação do Campo na UFRRJ tem 8 anos de existência


enquanto curso regular e 12 anos desde a primeira turma da LEC/PRONERA. Cabe ressaltar

137
que, para esta composição, dois elementos foram de extrema importância: a Pedagogia da
Alternância, como filosofia, metodologia e sistema acadêmico que possibilita a compreensão
dos tempos e espaços educativos diferenciados, as especificidades dos seus educandos e suas
realidades plurais. E a Mística, que tem sua importância como herança da teologia da libertação
dos anos de 1970 e da pedagogia do MST dos anos de 1990 e anos 2000, sendo uma ferramenta
pedagógica que faz emergir a formação cultural dos sujeitos da educação do campo, bem como
seu histórico de luta no passado e no presente.
Nos capítulos seguintes, as argumentações partirão de um breve histórico da luta por
uma Educação do Campo no Brasil, para que o leitor possa se situar e perceber que, para além
de um Curso de Licenciatura em Educação, a Educação do Campo é uma luta travada pelos
movimentos sociais desde a metade do século passado. Posteriormente, apresentaremos os
processos de construção da LEC/PRONERA na visão dos professores, para então adentrarmos
na visão dos estudantes da primeira turma e das turmas seguintes.
A relação educação e movimentos sociais do campo nos últimos anos sofre um declínio,
apresentando um distanciamento da LEC/UFRRJ dos movimentos sociais do campo e dos
movimentos dos povos e comunidades tradicionais. Resta saber os consequentes prejuízos da
dinâmica social desta realidade nesta segunda década do século XXI, bem como o potencial
transformador que a LEC/UFRRJ assume a partir do momento em que começa a receber os
estudantes da periferia urbana do Rio de Janeiro, independente da ligação com a agricultura e os
movimentos sociais.
Como dito, nosso objetivo é apresentar o processo histórico de construção da LEC/
UFRRJ, apresentar o debate e deixá-lo aberto, convidando outros pesquisadores (em especial
estudantes da LEC) para compor os desdobramentos desses processos. Repensando a LEC/
UFRRJ, e principalmente, mantendo viva a história de sua formação, pretende-se garantir a
manutenção desse Curso de Graduação na Universidade Rural a partir de seu caráter crítico e
seu potencial transformador na vida desses sujeitos do campo e da periferia das cidades.
Sobre o formato do presente texto: pretende-se fazer breves apontamentos teóricos
e metodológicos nos capítulos a seguir para guiar a leitura. Entretanto, daremos mais ênfase
nas falas dos entrevistados, para ilustrar de forma prática o que foi apresentado. As falas serão
organizadas no sentido de uma narrativa fluida, que remontará o histórico da formação da
LEC na UFRRJ e suas transformações de uma forma mais atraente ao leitor, colocando os
protagonistas desse processo em um lugar de destaque nesta pesquisa.

Histórico da Educação do Campo

A Educação do Campo surge a partir da luta dos movimentos sociais do campo, esse
é um argumento central. Entre os anos de 1996 e 1998, consolidou-se uma articulação entre
os movimentos sociais do campo e instituições nacionais e internacionais, em especial o MST
(LOBO, 2014, p.1). A partir dessa mobilização ocorreu o primeiro ENERA (Encontro Nacional
de Educadoras e Educadores da Reforma Agrária) em Luziânia-GO, em julho de 1997. Nesse
encontro “foi inaugurado o debate a respeito do tipo de educação que os modelos hegemônicos
de desenvolvimento rural já estabeleciam” (MOURA, SALLES, OLIVEIRA, 2019, p. 64).
Como resultado desse encontro se inicia em 1998 o PRONERA (Programa Nacional
de Reforma Agrária/INCRA/MDA), bem como o surgimento da Articulação do Movimento
Por Uma Educação Básica do Campo composta por MST, CNBB, Unicef, Unesco e UnB.
Esses programas tinham como objetivo propor e apoiar projetos de educação voltados para o
desenvolvimento das áreas de reforma agrária, formando professores para atuarem nas escolas
do campo.
Posteriormente, surge o Programa de Apoio à Formação Superior em Licenciatura em
Educação do Campo/PROCAMPO, que apoia a implementação de cursos de licenciatura

138
em educação do campo nas instituições públicas de ensino superior de todo o país, voltados
especificamente para a formação de educadores para a docência nos anos finais do ensino
fundamental e ensino médio nas escolas rurais. Demais momentos importantes seguem na
tabela abaixo:

TABELA I: Momentos importantes da luta institucional por uma Educação do Campo.

2002 I Conferência do Movimento Por Uma Educação Básica do Campo e a criação, ainda no Governo
de Fernando Henrique Cardoso.
2004 II Conferência Por Uma Educação Básica do Campo e a criação, já no Governo Lula, da
Coordenadoria de Educação do Campo dentro do MEC.
2005 I Encontro Nacional de Pesquisa sobre Educação do Campo, articulando o MDA/INCRA/
PRONERA e o MEC/SECAD/Coordenadoria Geral da Educação do Campo.
2006 Criação do Parecer CNE/CEB no.11/2006, que refere-se à aplicação da Pedagogia da Alternância
nos Centros Familiares de Formação por Alternância (CEFFAS).
2005 - 2007 Criação no MEC do PROCAMPO/Programa de Apoio às Licenciaturas em Educação do
Campo e surgimento das Experiências-Piloto da Licenciatura em Educação do Campo na UnB,
UFMG, UFSE, UFBA.
2008 II Encontro Nacional de Pesquisa sobre Educação do Campo com participação da CAPES, INEP,
criação dos Observatórios da Educação do Campo.
2010 Criação do Decreto 7352/2010 que institui a Política Nacional de Educação do Campo.

Criação da Resolução CNE/CEB no.1/2010, em que a Educação do Campo torna-se uma


modalidade da educação básica. ( Julho 2010)

Criação do Decreto 7.352/2010 que torna o PRONERA uma Política Permanente. (Novembro
2010)

Em 2010, ocorre a construção do Fórum Nacional de Educação do Campo/FONEC,


fortalecendo a articulação movimentos sociais do campo, universidades e institutos federais.

2012 Criação do PRONACAMPO. Programa do MEC que tem como objetivo implementar a
política de Educação do Campo, atendendo às escolas rurais e quilombolas, com apoio técnico
financeiro aos estados e municípios. Ainda em 2012, o MEC lança Edital para a abertura de novas
40 Licenciaturas em Educação do Campo como curso regular com abertura de 2 turmas por ano
(2013/2014/2015).
Fonte: (LOBO, 2014).

Só a partir desses movimentos citados acima foi possível implementar o Curso de


Licenciatura em Educação do Campo na Universidade Federal do Rio de Janeiro/UFRRJ. Este
começa a ser projetado em 2008 a partir do convênio da Universidade com o Ministério do
Desenvolvimento Agrário/MDA e o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária/
INCRA que criaram o Edital PRONERA. Esse edital foi elaborado em parceria com os
movimentos sociais, sindicais do campo, representação dos povos tradicionais e das ocupações
urbanas. A partir desta construção coletiva do Projeto Político Pedagógico nasce a primeira
turma de Licenciatura em Educação do Campo do Estado do Rio de Janeiro na UFRRJ,
atualmente conhecida como: LEC PRONERA.

Não existe separação entre educação e vida, entre educação, cultura e


comunidade, onde as escolas são as praças abertas, onde a educação se dá no
convívio, do afeto, da vida em trabalho. Não podemos deixar de falar que
se formos mais fundo numa educação popular e numa educação libertária
nesse país, hoje a gente não pode desconsiderar a cosmovisão africana e
indígena, pois para esses povos, também não há separação entre educação,
vida e comunidade (Entrevista concedida pela professora Roberta Lobo)

139
Na LEC PRONERA, a existência do sujeito coletivo, a habilitação em agroecologia e
segurança alimentar, além da habilitação em ciências humanas, bem como a intencionalidade
pedagógica, criada pelas Coordenadoras e professoras Marília Campos e Roberta Lobo,
possibilitaram a criação de um cenário diferenciado referente ao diálogo real entre os movimentos
sociais, os territórios dos estudantes e a universidade. Entretanto, a presença desses sujeitos do
campo e da cidade em luta na universidade pública não agradou a todos.

LEC PRONERA

Um dos primeiros desafios da LEC PRONERA na UFRRJ diz respeito à dificuldade


de se organizar um curso com militantes de diferentes movimentos sociais. Organizados por
regionais, estes sujeitos dividiam-se em:

TABELA II: Regionais da LEC PRONERA

Regional Metropolitana: Campo Alegre – Nova Iguaçu; Terra Prometida – Caxias; Marapicu – Nova Iguaçu; São
Bernardino – Nova Iguaçu; Cachoeira Grande – Magé; Quilombo das Guerreiras – Rio de Janeiro; Japeri; Sindicato
dos Trabalhadores Rurais – Caxias.
Regional Médio Paraíba: Assentamento Cantagalo – Rio das Ostras; Assentamento Celso Daniel – Macaé;
Assentamento Zumbi dos Palmares – Campos dos Goytacazes; Assentamento 13 de Maio – Espírito Santo;
Assentamento Cambucaes – Silva Jardim.
Regional Sul Fluminense: Quilombo Santa Rita do Bracuí – Angra dos Reis; Aldeia Sapukay – Angra dos Reis; Praia
do Sono – Paraty.
Regional São Paulo: Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra do Vale do Ribeira.
Fonte: (CAMPOS, 2014)

Alguns desses estudantes já participavam de um curso chamado “Campo-Campus”


que era coordenado pela professora Lia Maria. Ela relatou que Ana Dantas, enquanto vice-
reitora, foi questionada pelo Ministério da Educação sobre o porquê da UFRRJ, enquanto uma
universidade de referência na questão agrária ainda não tinha criado o curso de Licenciatura em
Educação do Campo. Acontece que colocar diversos jovens de diferentes movimentos sociais
dentro de uma das universidades mais antigas do Brasil não era tão simples.
A LEC PRONERA foi um “Curso Ocupação”. Ele só foi possível no momento em que
os estudantes ocuparam salas, e até quartos de um alojamento, onde os estudantes das turmas
seguintes puderam morar. Outra questão importante é que LEC era um curso malvisto dentro
da universidade. Inclusive, professores de outros cursos como filosofia e história, chegaram a
escrever uma cara questionando a habilitação dos estudantes que se formavam em Educação do
Campo, que nesse caso era em Ciências Sociais e Humanidades, habilitando-os a dar aula de
sociologia e história.
Além desses desafios, e como o curso era construído coletivamente, os estudantes
precisavam se organizar para estipular pautas, demandas de ações dos movimentos etc. Ao longo
do Curso, muitas diferenças de organização dos movimentos sociais foram se apresentando, em
especial diferenças entre o MST, a FETAG e o movimento urbano com prática anarquista. No
entanto, as formas organizativas eram experimentadas e avaliadas fluindo entre a organicidade
dos núcleos e a prática das assembleias. A autoconstrução do curso passou por esse desafio
organizacional. Foram diversos os conflitos de convivência, afinal, o curso possuía uma carga
horária extensa, que ia de manhã até a noite. Entretanto, os problemas e desavenças se resolveram
ao longo do curso, e o que resultou foi realmente uma construção coletiva, na qual os estudantes
puderam aprender uns com os outros através do processo de auto-formação.
Outro ponto importante a ser frisado foi a dificuldade de adaptação dos militantes dos
movimentos sociais, bem como dos povos tradicionais indígenas, quilombolas e caiçaras à

140
realidade de uma universidade que não levava em consideração suas especificidades. Nesse ponto,
podemos destacar questões centrais como moradias, alimentação, até a questão psicológica e
moral do estudante. Uma das demandas dos movimentos sociais, principalmente dos povos
tradicionais, era a garantia da moradia, pois precisavam se fortalecer enquanto um coletivo
dentro de uma universidade que os negava. Caso esses estudantes fossem distribuídos pelo Setor
de Residência Estudantil em quartos com estudantes de outros cursos, com outras realidades,
provavelmente os preconceitos e repressões seriam piores do que já foram.
Todos esses desafios enfrentados pelos estudantes e professores da LEC PRONERA
deram origem às turmas regulares que surgiram posteriormente que, por sua vez, não tiveram que
passar por tantas dificuldades. Mauriceia Tani, caiçara de Paraty e estudante da primeira turma
regular, afirma que esses quartos ocupados pela LEC PRONERA ajudaram a garantir a luta
pela permanência dentro da universidade. Nesse alojamento coletivo, os comunitários tinham a
possibilidade de realizar trocas de saberes e conhecimentos, entendendo que a universidade não
só tem a oferecer, mas também a aprender.
Deste modo, entendemos que a LEC PRONERA foi fundamental para a consolidação
da Educação do Campo dentro da Universidade Rural e que, até certo ponto, algumas das
características fundamentais dessa turma se mantiveram nas turmas seguintes através da
pedagogia da oralidade e do espaço físico que deixaram como legado no alojamento estudantil.
A reconstrução do processo histórico nos ajuda a garantir um fio da meada das lutas da Educação
do Campo, na perspectiva dos movimentos sociais do campo, dos povos e comunidades
tradicionais, mesmo em um Curso Regular que agora atinge outro público de estudantes.

A LEC Regular

Nossa pesquisa notou que o caminho que a LEC trilhou após a experiência piloto do
PRONERA foi bem diferente. Os entrevistados, tanto da primeira turma como das turmas
seguintes, apontaram que a partir de sua regularização o curso foi perdendo suas características
fundamentais, que basicamente dizem respeito à relação que mantinham com os movimentos
sociais e os povos tradicionais, além da importância dos territórios para a Pedagogia da
Alternância. São vários os fatores que apontam as camadas desse processo. No entanto, há outros
processos que apresentam o potencial que ainda existe, apesar dos militantes sociais não serem
a maior parcela dos estudantes do curso. Mas afinal, o que muda de fato com a regularização da
licenciatura em educação do campo?
Existem dois momentos da regularização da LEC na UFRRJ. Diferente das experiências-
piloto da Licenciatura em Educação do Campo que se regularizam através do REUNI
(Reestruturação e Expansão das Universidades Federais), a LEC na UFRRJ se regulariza através
do Edital de 02/2012 do MEC. Nesse edital, a LEC conquistou 15 vagas de professores adjuntos,
03 de técnicos e 04 milhões de reais para implementar o Curso durante os 04 primeiros anos.
A partir daí, já era esperado que quando esse recurso acabasse a UFRRJ assumiria a LEC como
Curso Regular.
Segundo a professora Roberta, esse primeiro momento foi ótimo, pois conseguiram
garantir a entrada do sujeito coletivo, a pedagogia da alternância, bolsas, xerox e recursos para
fazer as vivências pedagógicas e orientação no território durante o tempo-comunidade. Já no
segundo momento, quando o dinheiro acabou, os professores tiveram diversas dificuldades
como: acompanhar os estudantes nos territórios, realizar provas de ingresso em outros
municípios como Angra dos Reis, Campos dos Goytacazes e Nova Iguaçu, polos de inscrição
e de provas que garantiam a presença dos sujeitos do campo. Com esses elementos houve uma
alteração do perfil dos estudantes, que deixaram de ser os militantes de movimentos sociais
ou mesmo os sujeitos que vivem em comunidades, passando a figurar o sujeito individual da
periferia de Seropédica e de Campo Grande.

141
Entretanto, segundo professor Ramofly Bicalho, que participou do processo de construção da
LEC PRONERA, isso não foi totalmente um problema. Segundo ele, o perfil dos estudantes
da primeira turma, que era predominantemente de agricultores familiares, lideranças do MST,
do movimento quilombola, Central Pastoral da Terra (CPT) etc. mudou nas turmas seguintes.
Mas ele afirma estar animado, pois esses novos estudantes que não tinham ligação direta com
movimentos sociais, se descobriram na LEC e até se tornaram lideranças na luta pela Educação
do Campo.
Fabrícia do Nascimento, formada na primeira turma da LEC regular, afirma que a
educação, assim como os sujeitos, é mutável. Portanto, realmente o perfil da LEC se transforma
nas turmas seguintes, entretanto, o potencial se mantem, pois, atendendo sujeitos originais de
contextos urbanizados, como nas favelas e periferias, a Educação do Campo pode retomar a
memória e ancestralidade desses sujeitos.
Podemos afirmar que a Educação do Campo na Universidade Rural cumpre ainda
o seu papel social frente às classes populares do Estado do Rio de Janeiro. Entretanto, faz-se
necessária uma autocrítica autoformadora: compreender que sem a pedagogia da alternância
nos territórios, sem a vivência de professores e estudantes dentro dos territórios no tempo-
comunidade, a Educação do Campo corre o risco de ser uma precarização do ensino superior
para as classes populares. Com a ausência da interdisciplinaridade, do acompanhamento e da
troca de saberes dentro dos territórios que são a alma da educação popular, a LEC foi perdendo
as ferramentas pedagógicas diferenciadas, bem como a construção de um sujeito coletivo capaz
de narrar a dívida social e histórica deste país com as classes que vivem e trabalham no campo.

Histórico da LEC na UFRRJ na voz dos protagonistas desse processo

Como dissemos no início, este é um texto que tem como objetivo incitar pesquisas
futuras, pois percebemos nas entrevistas que são vários os temas e desdobramentos presentes
nesse processo. Numa perspectiva crítica, e autocrítica, não acreditamos ser interessante apenas
mencionar os fatos históricos desse processo, mas as tensões presentes nele, para assim compor
o debate por melhorias não só na LEC/UFRRJ, mas na Educação do Campo como um todo.
Portanto, apresentaremos agora alguns dos protagonistas desse processo e trechos de suas
entrevistas. Organizamos esses trechos de acordo com a argumentação teórica exposta acima,
para que o leitor consiga visualizar nas “vozes” desses sujeitos, o que foi, o que é e o que pode
vir a ser o Curso de Licenciatura em Educação do Campo na UFRRJ. Posteriormente faremos
alguns apontamentos finais, entretanto a “conclusão” não diz respeito ao que foi ou ao que é ou
ao que será a LEC na UFRRJ, mas sim à sistematização de narrativas que poderão ser utilizadas
por pesquisadores futuros a fim de estimular esse debate.
Quando se trata da Educação do Campo, a construção ocorre sempre de forma coletiva,
e para este capítulo escolhemos ouvir esses atores que aceitaram dividir suas experiências. Na
potência dessas falas vemos a luta pela Licenciatura em Educação do Campo na UFRRJ. Por
vezes a vida fervilha através das trocas, e em momentos de partilha. Construído na dinâmica
da Educação do Campo, o indivíduo constrói a sua individualidade no contexto do coletivo,
desapegando aos poucos do individualismo, da forma cognitiva do fetichismo na nossa
consciência.
E como ouvir sem apresentar esses protagonistas, como estar diante do diálogo e sermos
apenas ouvintes? Não havia como ser apenas uma coisa, somos o resultado da nossa construção
e das interrelações entre esses “nós” que são conscientes e julgam (BAKHTIN, 2008). Diante
disso, apresentaremos aqui estas personalidades de construção tanto da perspectiva histórica do
Curso como da luta através das suas vozes.
As narrativas a seguir são fruto de entrevistas semiestruturadas mediadas por algumas
questões centrais que porventura desdobraram-se em outras questões. São elas: Por que a

142
Educação do Campo? Como se deu o processo de construção da LEC? O que você pensa sobre
a regularização da LEC na UFRRJ?

OS PROTAGONISTAS:

“Escreverás meu nome com todas as letras. Com todas as datas


– e não serei eu. Repetirás o que me ouviste, o que leste de mim, e mostrarás meu
retrato
- e nada disso serei eu. Dirás coisas imaginárias, invenções sutis, engenhosas teorias
- e continuarei ausente. Somos uma difícil unidade, de muitos instantes mínimos -
e isso seria eu. Mil fragmentos somos[...]” (Cecília Meireles/Biografia)

TABELA III: Entrevistados e suas ligações com a LEC:

Entrevistado/a Ligação com a LEC

Lia Maria Teixeira, Roberta Lobo, Ramofly Professores da Lec Pronera e Lec Regular
Bicalho
Lucas do Amaral, João Sávio Monção LEC Pronera
Emerson Ramos (Mec), Mauriceia Tani, Turma 2014
Fabricia Nascimento
Laiz Brás Turma 2018

Fonte: Os autores 2022.

EMERSON RAMOS (MEC)


Quilombola, Jongueiro de Tradição, agricultor, gay e Babalorixá da Comunidade Negra
Rural Quilombola de Santa Rita do Bracuí, Angra dos Reis - RJ. Formado na UFRRJ pela
Licenciatura em Educação do Campo. Diretor de Cultura na Associação dos Remanescentes
de Quilombo de Santa Rita do Bracuí (ARQUISABRA). Coordenador Geral do Polo
de Educação quilombola Aiê Eletuloju (Terra Fértil), sob os eixos temáticos: Quilombo,
Candomblé e Agroecologia.

ROBERTA LOBO
Historiadora com doutorado em Educação e Pós-Doutorado em Música. Atualmente pesquisa
Educação e Etnomusicologia nas Comunidades Quilombolas. Professora Titular da UFRRJ.

JOÃO SÁVIO MONÇÃO FIGUEIREDO


Eu me chamo João Sávio, as pessoas me conhecem como Sávio, moro no assentamento zumbi
dos Palmares localizado no norte fluminense, desde os 5 anos de idade, desde então vivo em
concomitância com as bandeiras de lutas dos movimentos sociais e pastorais sociais do campo.
No Campo Campus tive a oportunidade de conhecer mais sobre a agroecologia o que me
motivou ainda mais a buscar alternativas de cultivo com intuito de ajudar principalmente os
meus pais no seu meio de vida. Em 2013 me formei em Educação do Campo na UFRRJ onde
me tornei educador popular e me apaixonei pela área da educação e pela ciências sociais e
humanidades, retornei para meu local de origem para pôr na práxis meus conhecimentos.

MAURICEIA TANI
Mauriceia Pimenta Tani caiçara da comunidade de São Gonçalo, município de Paraty/

143
RJ. Graduada em licenciatura em educação do campo pela UFRRJ atualmente curso a pós-
graduação Teresa “gestão de territórios e saberes” pela UFF de Angra dos Reis.

LUCAS DO AFONSO DO AMARAL


Meu nome é Lucas, mais conhecido pelo meu apelido de Dudu, sou educador popular e
sociólogo, formado pela primeira turma da LEC Pronera.

LAÍS EDUARDA BRAZ DA SILVA


Meu nome é Laís Braz, eu sou aluna da Licenciatura em Educação do Campo, tô no oitavo
período agora e sou da turma de dois mil e dezoito.

RAMOFLY BICALHO DOS SANTOS


Meu nome é Ramofly sou da rural desde 2008, no concurso para dar aula no curso de história
e a disciplina de educação do campo no curso de Pedagogia, logo de cara peguei essa disciplina
e estou com ela até hoje, do departamento de educação do Campo e Movimentos Sociais da
Rural de Seropédica.

FABRÍCIA DO NASCIMENTO SILVA DE OLIVEIRA


Eu sou Fabrícia, moradora da baixada, município de Nova Iguaçu mãe, filha, esposa, tia,
sobrinha também, e amiga de muita gente.

LIA MARIA TEIXEIRA


O Narrador retira da experiência o que ele conta: sua própria experiência ou a relatada
por outros e incorpora as coisas narradas às experiências de seus ouvintes. (BENJAMIN,
1994; p.201). Assim me compreendi em toda a minha trajetória docente. O que ficou no
ambiente institucional incorpora essa visão. Chegando no último patamar da minha carreira,
me aposentei ao fazer a promoção à titular. Saindo da UFRRJ eu hoje percebi claramente
que basta me apresentar como Lia Teixeira e professora 33 anos com trabalhos diversos na
formação de professores/as no ensino agrícola e na Licenciatura em Educação do Campo.
Assim, hoje me identifico!

Primeiro ATO: Como surgiu?

Professora Roberta Lobo


A Educação do Campo é fruto de muita luta social dos movimentos sociais do campo, que
se consolidou a partir dos anos 2000. Mas, nós não podemos falar de Educação do Campo sem
falar de suas verdadeiras raízes, que é a Educação Libertária e a Educação Popular. A Educação
Libertária pode ser situada a partir do século XVIII e XIX, onde não existe separação entre
educação e vida, entre educação, cultura e comunidade, onde as escolas são as praças abertas, onde
a educação se dá no convívio, do afeto, da vida em trabalho. Não podemos deixar de falar que
se formos mais a fundo numa educação popular e numa educação libertária nesse país, a gente
não pode desconsiderar a cosmovisão africana e indígena, pois para esses povos, também não há
separação entre educação, vida e comunidade.

Professor Ramofly Bicalho


Então, em dois mil e oito, a professora Lia e professora Ana Dantas convidaram a professora
Roberta Lobo e professora Marília para pensar a possibilidade de concorrer a um edital no ano

144
de 2009 que o Ministério do Desenvolvimento Agrário havia lançado via PRONERA para
gente pensar a Licenciatura em Educação do Campo. Aí, foi quando essas meninas Lia, Marilia,
Roberta e Ana Dantas me convidaram para participar desse processo, e a gente ganhou o edital e
Roberta e Marília assumiram a coordenação durante três anos, de 2010 a 2013. Então foram os
anos que modificaram completamente a minha vida, porque eu tinha uma certa experiência com
essas coisas, mas não tinha necessariamente uma Licenciatura em Educação do Campo. Então
agregou muito na minha formação.

Professora Roberta Lobo


As experiências piloto da Educação do Campo começaram em 2007, e em 2008 eu já estava
na rural, quando teve uma convocação do reitor na época Ricardo Miranda e a vice-reitora Ana
Dantas, na qual o MEC questionou “como assim uma Universidade Federal Rural não tem
um curso de Educação do Campo?” Então a partir de 2008 que nós construímos e pensamos o
currículo, o que seria esse curso, suas habilitações e os sujeitos.

Professora Lia Teixeira


Ana Dantas, como vice-reitora, foi quase que convocada na época que o Lula foi presidente
e foi questionada por que a Rural como uma das Universidades importantes que quebra
paradigmas, principalmente nessa questão agrária ainda não tinha criado o curso de Licenciatura
em Educação do Campo. Aí ela me chamar junto com Roberta Lobo, Marília - que tá voltando
da Paraíba - aí a gente junta o grupo para essa conversa. E nisso eu já estava coordenando o curso
chamado Campo Campos: jovem rurais e quilombolas na agroecologia, então a gente não hesitou
e disse que agora com os contatos com os movimentos sociais vamos criar esse curso de Educação do
Campo.

Segundo ATO: Por que a Educação do Campo?

Mauricéia Tani
Pelo fato de dar oportunidade de falar para o povo do campo. Pelas pessoas que lutam pelo
acesso e permanência à terra. Pelos grupos que tentam se manter nos seus territórios tradicionais,
grupos foram expropriados pelo processo de especulação imobiliária, de colonização, e lutam até
hoje pelo acesso à terra. Percebendo e entendendo que o afastamento dessas populações da educação
foi o que negou a eles esses direitos, de igualdade, de liberdade, de reprodução de saberes, de
permanência de resistência e foi responsável pelo apagamento das identidades dos povos desse país.
A Educação do campo é de fato a oportunidade que o povo do campo tem para poder falar, para
poder estar se instrumentalizando, e garantir seus direitos de forma institucional, porque no nosso
país a gente só consegue alcançar nossos direitos quando estamos nos espaços institucionais, porque
esses são os espaços de domínio, então a gente precisa de uma educação que nos abra essa porta.

Emerson Ramos (Mec)


A educação do campo para mim é uma educação onde as pessoas respeitam o tempo, os
saberes e a troca que existe no campo. Na verdade eu nunca tive uma perspectiva de cursar uma
universidade, principalmente uma universidade federal. Na minha cabeça isso era para gente
extremamente inteligente, o que eu acreditava na época que era uma pessoa que passou a vida
inteira estudando em escola particular.

145
Lucas do Amaral
Afinal, fazer uma universidade nunca foi uma questão para mim. Eu não vim para a
universidade para fazer universidade, eu vim para a universidade para melhorar o meu trabalho
como educador popular. A LEC me ajudou a me ver em um local onde eu nunca me vi, que é esse
espaço acadêmico.

Lais Braz
Acho que a parte de um compromisso social de dar conta de uma demanda de fazer parte
de cumprir um propósito social mesmo. Que a gente tá se formando enquanto futuros educadores
do campo para atuar com turmas de assentamento, turmas em comunidades tradicionais, é uma
demanda social em si.

Fabrícia do Nascimento
Certa vez eu conversando com minha orientadora, e hoje amiga, ela me disse que a
educação, assim como os sujeitos, é mutável nada é estático e por isso a proposta da Educação do
Campo ela surge e nasce fruto dos movimentos da educação popular dos movimentos sociais do
campo da Luta Pela Terra por moradia do Bem Viver da plenitude da humanidade.

Terceiro ATO: Principais desafios

Professora Roberta
Primeiramente, podemos dizer que foi um “curso ocupação”. Houve uma reação muito
grande de setores da Universidade, apesar de ter todo apoio da reitoria, que achava fundamental
ter esse contraponto, pensando a pequena agricultura, a agricultura familiar numa universidade
que sempre pensou o latifúndio, que sempre pensou o agronegócio na sua tradição das ciências
agrárias. Nós da Educação vínhamos com esse contraponto “vamos pensar o mundo agrário a
partir do pequeno agricultor, a partir das populações tradicionais do campo, que tem uma outra
perspectiva da terra, da produção orgânica e agroecológica.

Emerson Ramos (Mec)


Quando eu chego na universidade em 2014, o que ficou marcado foi que a minha prima
Fabiana falou que eu tinha que levar um monte de mala, pois eu ficaria 2 meses lá, no tempo
escola, e para mim tinha um alojamento para isso. Quando eu chego lá eu fico em frente ao M1
com as minhas malas, nessa ocasião eu conheço de fato o Dudu (Lucas do Amaral), que fez a
LEC PRONERA com o pessoal aqui do quilombo, e ele era do MST, ele que me acolheu naquele
momento. Daí eu descobri que a gente não tinha alojamento, e eles me abrigaram em um dos
quatro quartos que estavam sendo ocupados pela residência agrária. Sem comida, o Lucas
arrumava umas quentinhas e me dava, então eu já cheguei lá tendo esse choque de realidade. Daí
eu me organizei com as caçaras, a Mauriceia, Raquel, Aline e Michele, que ocupamos esses quatro
quartos da residência agrária para a educação do campo. E nesse processo a gente brigou por ter
um quarto só para tradicionais, porque a gente acreditava que os povos tradicionais deveriam ficar
juntos, até porque a gente passa por diversas pressões e preconceitos, com trotes, chamando agente
de bicho, e a gente não achava legal passar por isso, e a gente queria ficar junto, trocando saberes.

Mauriceia Tani
A gente conseguiu ocupar um alojamento, a partir da ocupação da LEC PRONERA,
quando eles saíram eles possibilitaram que a gente estivesse ali ocupando aquele espaço

146
inicialmente ocupado por eles. A gente conseguiu garantir um quarto para povos e comunidades
tradicionais, que era o nosso caso. Entendendo que outros quartos também foram garantidos para
outros alunos de outros espaços, mas esses quartos ajudaram a garantir a luta pela permanência
dentro da universidade, no qual neste alojamento coletivo, os comunitários tinham a possibilidade
de realizar trocas de saberes e conhecimentos, entendendo que a universidade não só tem a
oferecer, mas também a aprender.

Sávio Figueiredo
Esse curso foi fundamental na vida de todos que o fizeram, principalmente a primeira
turma. Porque eram pessoas que eram militantes dos movimentos sociais, tinham um vínculo com
o seu território, vieram para cá para aprender e dar um retorno para o seu território. A ocupação
de um latifúndio que é o latifúndio do ensino, em uma universidade de elite, que não aceitavam
o pessoal que era sem-terra, ou porque era quilombola, ou por que era indígena, e que não tinham
direito garantido de estar dentro da universidade. Então era uma ocupação do ensino e do saber,
trazendo também a nossa cultura para dentro da universidade.

Emerson Ramos (Mec)


Tanto é que tem uma frase na rural que diz “a rural forma em deformar”. Ai se você pega
um tradicional e joga lá dentro, sem dar um mínimo de embasamento do que é aquilo lá, ou
um acompanhamento, esse quilombola ele pode se deformar lá dentro, sair de lá com vários
traumas. Eu mesmo já fui pego no primeiro período pela guarda que alegaram que eu tinha cara
de bandido, perguntaram meu número de matrícula, e eu não sabia, eu só estava levando uma
menina do assentamento no ponto de ônibus.

Professora Roberta Lobo


O segundo desafio foi nos próprios setores das ciências humanas da universidade. Como
por exemplo o curso de Filosofia e de História que negaram a LEC. Achavam que se era para
fazer formação política dentro da universidade, esse era um papel dos movimentos sociais, não da
universidade, e que a LEC seria um curso de formação desqualificado. Outra questão seria que
os estudantes de Educação do Campo iriam competir com a formação dos demais cursos, já que
um aluno tradicional que entra individualmente na universidade, ele fica quatro anos para ter
habilitação em história, em filosofia, em sociologia.
No caso da perspectiva da Educação do Campo a gente se depara com duas concepções:
1) o sujeito é coletivo, não é um sujeito individual abstrato, esse sujeito já entra representando
a comunidade. 2) para a realidade da Educação do Campo, não é uma realidade que
precisa da fragmentação disciplinar dentro da escola, se trabalha com áreas de conhecimento,
nessa perspectiva nossas habilitações eram Agroecologia e segurança alimentar, história e
sociologia. Pensando sempre “qual é a realidade do campo? Desses sujeitos do campo, dessas
escolas do campo?” Portanto é um sujeito que vai dar conta da área de conhecimento, da
interdisciplinaridade, de toda metodologia, toda filosofia da pedagogia, que é a pedagogia da
alternância. Que é a reatualização da educação libertária, da educação popular, com o princípio
de atender de fato a dinâmica da vida, da comunidade e também as suas necessidades do mundo
do trabalho. Então esse foi um grande desafio, a universidade entender que a gente não atua em
um campo disciplinar, mas interdisciplinar

Lucas do Amaral
Foi uma experiência de diversidade muito grande, aprendi muito como trabalhar com
militantes que tinham experiências de movimentos sociais diferentes. A princípio eu tive uma

147
rejeição, e não conseguia lidar muito bem com isso, depois eu fui me abrindo para outras formas
de organização, uma delas foi a assembleia. Como eu atuava junto ao MST, nós tínhamos alguns
vícios de organização social, então eu aprendi bastante com a assembleia. A partir da assembleia
como forma de organização geral do curso, eu entendi a importância de se experimentar novas
formas de organização.

Fabrícia Nascimento
Só teve uma turma do edital do PRONERA que foi de 2010 a 2013 e depois dela os
sujeitos foram chegando na universidade, mas sujeitos diferentes, sujeitos outros, sujeitos que ainda
não tinham se mostrado para o mundo, e eu faço parte dessa mudança também. E aí é muito
interessante a gente pensar uma educação do campo e dos seus sujeitos, já que existem muitas
mulheres negras em territórios tidos como não tradicionais, indígenas não aldeados no contexto
de favela no contexto urbanizado e esses sujeitos estão no processo formativo e são convidados a
compor essa Educação do Campo, a difundir essa educação outra, a resgatar também memória,
ancestralidade. Então o sujeito não são os mesmos e essa mudança também nos atores que também
são pertencentes à Educação do Campo.

Laís Braz
A minha turma é de 2018.2 então a divisão do tempo comunidade e tempo escola se dava: o
tempo escola são dois meses e o tempo comunidade é um mês e agora o tempo comunidade se divide
por GT, diferente da primeira turma que era turma do Emerson-mec de 2014 que a divisão se
dava por território. A turma da LEC PRONERA a divisão era diferente também, não só pelo
que era feito no tempo comunidade, mas no período de tempo mesmo. Como a minha turma foi
de 2018.2 passamos pelo processo de pandemia aí o curso entrou no período que não estava nem
um pouco programado, o ensino remoto. E aí a divisão de tempo comunidade e tempo escola não
aconteceu mais e mesmo assim a gente teve que dar conta das demandas e entregar os trabalhos
integrados (T.Is) e foi isso, a gente mesmo tendo dificuldade de acesso à internet, dificuldade de
várias coisas tanto de saúde mesmo quanto financeiros a gente teve que dar “conta” e cumprir com
a demanda do curso em formato remoto.

Quarto ATO: Regularização

Professora Roberta Lobo


O primeiro curso, a LEC PRONERA, foi de fato uma construção coletiva com uma coordenação
política pedagógica pautada no conhecimento dos professores universitários e nos conhecimentos dos
movimentos sociais. Então foi de fato uma construção coletiva, coisa que se perdeu nos processos de
regularização.

Sávio Figueiredo
O processo começa desde que o acampamento Zumbi dos Palmares teve uma ocupação nas
terras da antiga Usina São João dia 12 de Abril em 1997. E ali se tinha uma organicidade e
dentro dessa organicidade tinha-se os setores e um os setores era o setor de educação que fazia parte
do acampamento ligado ao MST e da Pastoral da Terra. Esse coletivo de educação criou o setor
de Educação do campo do Norte do Estado do Rio de Janeiro que começou a levantar a bandeira
da educação do campo no município levando isso para o estado. Minha irmã e eu também
participamos de algumas formações oferecidas pela secretaria de educação enquanto pessoas que
moravam na área rural, junto com esses professores e aí começou o debate com os movimentos

148
sociais para fazer uma turma de Educação do Campo uma das turmas era no ISEPAM. Foram
chamadas as pessoas que tinham perfil vinculadas ao MST e a Pastoral da Terra pra fazer esse
curso em 2008 2009 na universidade Federal Rural do Rio de Janeiro chamado Campo Campos
esse curso juntou jovens tanto de áreas rurais, indígenas, quilombolas do Estado do Rio de Janeiro
assim como as pessoas diárias urbanas também e fez uma formação na área de sociais agroecologia
Educação do Campo, a professora Marília foi uma das professoras que deu aula no Campo
Campos organizado pela professora Lia Teixeira que ajudou na construção da licenciatura em
educação do campo da Rural que começou em 2010, e depois na turma institucionalizada.

Professora Lia Teixeira


Importância do curso para mim é que foi um momento de mudança de vida de descoberta o que
nós não conseguimos com a LICA (Licenciatura em Ciências Agrícolas), porque o MST vinha
pedindo desde 2004 a proposta de oferecer o curso de LICA para o MST e a proposta não passou
no colegiado e a proposta do colegiado era para que fosse oferecido um curso de extensão mas nós
não aceitamos, a ideia era uma graduação já que a LICA tinha áreas de concentração como fio de
condição do currículo e aí depois se dividia essas áreas de concentrações e a ideia era que uma dessas
áreas fosse a Educação do Campo, aí imagina um colegiado com 21 departamentos presentes
tendo agronomia que nunca criou nem no seu curso que dirá para gente, então foi negado. Quando
Roberta que vinha chegando na UFRRJ entre 2006 e 2008 e eu fui da banca da Roberta Lobo eu
vi a experiência que ela tinha com Paulinho Chinelo e que ela trabalhava questão agrária no Rio
de Janeiro e a experiência dela à frente da escola Florestan Fernandes do MST aí falei com a Ana
e a Ana conversou com ela. E essa história é de encontro de pessoas, a gente foi se encontrando. Já
que o curso de LICA não quis, então vamos criar o curso que o PRONERA e o PRONACAMPO
estavam com edital aberto e a partir disso criamos o curso de Licenciatura em Educação do Campo
e o MEC já vinha pedindo para Universidade criar o curso e Ana Dantas banca a criação do curso
na universidade.

Professor Ramofly Bicalho


Talvez até por isso depois a gente tenha tomado coragem e tentado a concorrer um outro
edital em 2012 com o Ministério da Educação que foi o PROCAMPO, e aí foi quando a gente
também ganhou este edital e definitivamente tornou a LEC não mais uma turma uma única
turma de uma parceria de um projeto, mas o curso regular na Universidade Federal Rural do Rio
de Janeiro que iniciou oficialmente no ano de 2014. No ano de 2012 a gente ganhou edital e no
ano de 2013 a gente organiza todas as tarefas e oficialmente o curso inicia em 2014.

Professora Roberta Lobo


A institucionalização do curso foi importante porque, em primeiro lugar, diferente das
experiências piloto que entraram já via REUNE, e pegaram essa bocada em 2009, nós na UFRRJ
entramos mais tarde, mas fomos muito originais no seu público e nas suas habilitações. Então
como nós não fomos REUNE, nós participamos do edital de 2012 do MEC para regularizar o
curso dentro da universidade. Neste Edital nós ganhamos, 15 vagas de professor, 3 de técnicos
e 4 milhões de reais para implementar o curso. Com a ideia de que, quando esse recurso
acabasse, a universidade assumiria o curso. O que que aconteceu? Nós implementamos o curso,
e nesse momento foi ótimo, na primeira turma nós garantimos a entrada do sujeito coletivo,
o acesso especial, com memorial, prova de conhecimentos gerais, e conseguimos a construção
de um departamento para o curso. Fazendo com que as 15 vagas, que é uma grande disputa
nas universidades, fossem concentradas em um departamento, para garantir a pedagogia da
alternância. Os alunos que entraram nas primeiras turmas tinham bolsa, tinham xerox, a gente
ainda tinha valor de transporte para fazer as vivências pedagógicas, para orientar no território.

149
Professor Ramofly Bicalho
Mudou o perfil dos estudantes, se a gente pega aquela primeira turma de estudantes da
LEC PRONERA, uma turma predominantemente de agricultores familiares, uma meninada
vinculada em peso as lideranças do MST, do movimento quilombola, da CONTAG, CPT e hoje
não é isso. Mas eu continuo muito animado mesmo tendo nas minhas turmas uma meninada que
não tenha este acúmulo que estas primeiras turmas tiveram, mas é uma meninada boa. Suelen,
Janaina, Fabrícia, são meninas que não tem esse acúmulo de ter sido lideranças do movimento
social, não moram em área rural, nunca trabalharam essas questões diretamente, mas hoje estão aí
lideranças. Nossa Janaína que hoje é uma liderança da CPT, que não tinha vínculo nenhum com
isso, Suelen esteve a frente do movimento estudantil nacional de Educação do Campo, Fabrícia
uma referência no movimento negro e tantas outras que concluíram a nossa Licenciatura em
Educação do Campo e hoje estão aí na luta defendendo a Educação do Campo, defendendo as
escolas do Campo e isso me move. É claro que se tiver alguém aqui com este acúmulo é muito bom,
mas a universidade pode contribuir para plantar a semente de um amor eterno pela Educação do
Campo.

Fabrícia Nascimento
A construção da LEC para mim foi um período muito marcante na minha trajetória
de vida, discente e docente. A educação do campo não foi apresentada a mim pelos movimentos
sociais, eu conheci a Licenciatura em Educação do Campo pesquisando nos sites, vestibular, cursos
e aí eu achei o vestibular da Educação do Campo e me inscrevi e fui olhar no edital não tinha taxa
de inscrição, enfim, fui nesse nessa pegada que eu precisava, me inscrevi sem saber de fato o que era
Educação do Campo, fiz uma pesquisa muita rápida muito genérica e saiu Educação do Campo
no estado do sul. Saiu em Santa Catarina. Eu falei, nossa vou fazer esse curso e vou atuar no Rio
Grande do Sul. E aí na primeira semana formativa da Educação do Campo a professora Marília
Campos disse que Nova Iguaçu é uma região campesina, é uma região do campo. Falei, acabou os
meus planos de ir para sul, então preciso atuar aqui no meu município e entender essa educação.

Professora Roberta Lobo


Estamos no segundo momento da regularização onde os professores que entraram não professores
tiveram dificuldades de acompanhar os alunos nos territórios. O dinheiro antes a gente aplicava
prova em Campos, Angra e nova Iguaçu, além de Seropédica, agora as provas de ingresso só
são realizadas em Seropédica, portanto houve uma alteração do perfil dos estudantes. Nós não
conseguimos mais trazer pessoas desses antigos polos, e quem está sendo nosso público agora? O
sujeito individual da periferia de Seropédica e de Campo Grande. Então, o curso perdeu o seu
caráter do sujeito coletivo, mas ainda cumpre o seu papel social importante porque é o único
curso que coloca massivamente gente da periferia, mas que muitas das vezes não tem experiência
de movimento social ou movimento comunitário. Chegam muitas pessoas do EJA, portanto a
Educação do Campo na Rural cumpre ainda o seu papel social, mas as ferramentas estão capengas.
Sem a alternância de fato, sem a vivência de docentes e discentes dentro dos territórios a educação
do campo corre o risco de ser uma precarização do ensino superior para as classes populares,
porque falha na interdisciplinaridade, falha no acompanhamento e na troca de saberes dentro
dos territórios que é a alma da educação popular, que é a alma da pedagogia da alternância.
Então, na minha opinião a LEC se tornou um curso regular precário. Mas sempre resta a nossa
capacidade de sonhar e ter esperança que ainda é um curso para as classes populares.

150
Lucas do Amaral
Eu entendo os movimentos sociais enquanto processos de institucionalização também, mas a
vinculação do curso burocratizado, dentro da universidade com todos os direitos que todos os cursos
têm, aí vamos chamar isso de processo de burocratização, que a gente chamava também de processo
de institucionalização. Isso era visto de uma maneira positiva e negativa. Era positivo porque os
próximos alunos da Educação do Campo não vão precisar, por exemplo, ocupar alojamentos, que
foi o que a gente fez, nós ocupamos alojamentos, salas, enfim. Se não fossem as ocupações, o curso
não teria sido possível. O negativo seria essa coisa de professor concursado “departamentizado”,
ou seja, tem toda uma estrutura de forma que limita. Como diria Adorno, toda forma limita o
conteúdo. Isso estava evidente, que o processo de institucionalização iria limitar algumas potências
que o curso tinha. Por exemplo, nós queríamos ter uma aula sobre quilombos, então a gente ia ter
uma aula com um representante ou um militante de quilombo. Hoje eu tenho a impressão que,
para a gente saber sobre quilombo, isso tem que estar na grade curricular, na proposta do curso ou
então fazer algo por fora do curso. Esse é um viés bem negativo quando a gente pensa em um curso
de educação popular, no qual a autonomia é um dos principais elementos, se a nossa autonomia
enquanto sujeitos que estão se formando é precarizado, o resultado foi ser precarizado e afetado de
uma forma negativa também. São limites que a institucionalização impõe.

Emerson Ramos (Mec)


A partir dali, foi um momento de luta dentro da universidade. Eu passei a graduação
inteira pensando em estudar, me formar e lutar pelos meus direitos dentro da universidade, aí que
eu fui entender o que que era o processo de institucionalização do curso dentro da rural. Quando
o pró- reitor chegou e falou “mas vocês são ruralinos, vocês são iguais a qualquer estudante daqui”
e eu nunca concordei com essa fala. Os tradicionais têm suas questões específicas, principalmente
quando se fala de quilombola. A população indígena e quilombola está na constituição
especificamente, então a gente não pode ser tratada com qualquer pessoa. A gente tem vivências
diferentes. Era como se eles quisessem jogar essas pessoas dentro de um balde com um monte de
gente e dizer que é tudo igual e tentar diluir isso.

Quinto ATO: Principais parceiros

Fabrícia Nascimento
As mulheres! Eu tenho uma satisfação uma felicidade assim muito grande em dizer que eu
fui muito privilegiada de estar no meu período formativo com mulheres educadoras, com mulheres
do campo, com mulheres quilombolas, com mulheres caiçaras, com mulheres de movimento de
mulheres negras, com mulheres de terreiro. Então eu fui formada através das mulheres, mulheres
que me formaram na Educação do Campo no movimento social e na vida.

Professora Roberta Lobo


As figuras fundamentais se chamam Lia Maria Teixeira e Marília Campos. É óbvio que
a professora Ana Dantas enquanto reitora também apoiou os nossos processos, mas sem Lia e
Marília, nós não teríamos conseguido. Era uma atuação de 80 horas semanais, nós nos dedicamos
completamente, eram apenas duas professoras liberadas para organizar todo o curso. Um curso
que não tinha departamento, nós éramos ligados totalmente à pró- reitoria de graduação. E essas
pessoas eram o eixo central do curso. E a partir da professora Lia e da professora Marília, e eu
mais na organização política com os movimentos e com a universidade, nós fomos tendo o apoio de
outros professores que atuaram voluntariamente no curso. Como por exemplo o professor Trogui
das ciências sociais, a professora Elisa Guaraná, a professora Flávia e o professor André Videira.

151
Nós tivemos no DTPE também, Professor Ramofly, professor Luiz Fernandes, professora Fabrícia
Velasques. Alguns professores da história. Houve uma mobilização de fato da área das ciências
humanas, principalmente das ciências sociais, já que a filosofia e a história negaram o curso. O
Professor Robledo também nos ajudou. E nós contamos com muito apoio também dos educadores
populares para a constituição dos seminários. Outra pessoa fundamental foi o professor Jaime
Rodrigo, professor Casé e Robert da zootecnia, professora Lorenzon. Então assim, foram muitos
professores (professora Ana Fonseca, fundamental também nos apoiando)

Professora Lia Teixeira


A protagonista nesse naquele momento dentro da Universidade tinha que ser uma
pessoa que tivesse uma posição política muito definida numa universidade onde o agrarismo
predominava, que a gente sabe que era, e até hoje que é, o curso de agronomia agrícola então
esse protagonismo para que tivesse uma posição política da gestão da universidade em bancar a
presença dos movimentos sociais e da educação quilombola é Ana Dantas que era a vice-reitora.
E aí depois quando a gente aprovou a LEC regular ela já era reitora. E com certeza Marília
Campos e Roberta Lobo que fizeram toda essa costura com a gente e aí depois elas a gente reuniu
pessoal e muitos da universidade se sentirem incomodados de trazermos os movimentos sociais
para dentro da universidade e nós ocupamos a sala 8 em Seropédica, antes nós tentamos no
Instituto Multidisciplinar, mas não tivemos retorno, então o curso aconteceu em Seropédica
mesmo.

Sávio Figueiredo
Os protagonistas somos todos, por que essa licenciatura ela trabalha com várias pedagogias.
A pedagogia do trabalho é uma delas então todos os educandos quanto os coordenadores e
professores constituíam curso, ajudavam na construção do curso, eu fui coordenador de turma
durante algum tempo e eu ia para as reuniões junto com os coordenadores da FETAG, povos
tradicionais, MST e o pessoal da Rural para discutir sobre as licenciaturas do campo e como
estavam caminhando, discutir situações de alunos, por exemplo. Então tudo se discutia dentro de
uma coordenação política pedagógica.

Laís Braz
Cito alguns nomes de alguns professores que fizeram parte dessa construção do curso e
da fundação do curso: professora Lia, professora Marília, Ramofly, Tarci e também algumas
comunidades tradicionais. A comunidade Quilombo Santa Rita do Bracuí foi muito importante
também alguns assentamentos aqui da Baixada também, e, sujeitos dos movimentos sociais como
o MST e CPT.

Considerações Finais

De acordo com os depoimentos acima, podemos perceber que: o curso de Licenciatura em


Educação do Campo na UFRRJ foi construído a partir de demandas coletivas dos movimentos
sociais do campo e urbanos. Portanto, A LEC/UFRRJ surge como resultado de toda militância
desses movimentos e dos decretos e políticas públicas conquistadas a partir dessa luta. A primeira
turma (2010), conhecida como LEC PRONERA, foi uma turma composta por estudantes
indicados pelos movimentos sociais aos quais faziam parte, configurando assim um sujeito
coletivo que, para além da formação teórica, tinha como objetivo formar sujeitos críticos para
atuarem dentro das suas comunidades.

152
Os professores que participaram do processo de construção desse curso, em especial
Marília Campos, Lia Teixeira e Roberta Lobo, se depararam com diversos desafios nesse processo.
Muitos deles diziam respeito à infraestrutura e à convergência da realidade institucional de
uma universidade federal com a realidade dos povos tradicionais e movimentos sociais. Por
esse motivo, podemos afirmar que a LEC/UFRRJ, principalmente na experiência da turma
PRONERA, foi um “Curso Ocupação”, não só no que diz respeito à estrutura física, como no
exemplo das ocupações de salas e alojamento, mas também no sentido de ocupar o “latifúndio
do saber”, colocando dentro da universidade pessoas que foram historicamente excluídas dos
projetos de educação.
A partir da regularização da Educação do Campo (2014), o cenário estudantil e
institucional muda gradativamente. Como vimos, existem dois momentos sequentes da
regularização: o primeiro no qual, através de um edital, os coordenadores conseguem verba para
garantir o acesso ao território através da pedagogia da alternância e das vivências pedagógicas.
E o segundo momento da regularização: quando esse recurso acaba e o curso passa a ser gerido
pela UFRRJ, o que resultou em uma descaracterização da LEC no que diz respeito às suas
potências pedagógicas. O segundo momento foi marcado pela mudança significativa do perfil
dos estudantes, que em maioria já não são mais militantes, agricultores familiares ou povos
tradicionais, mas sim os sujeitos periféricos de Seropédica, Baixada Fluminense e de Campo
Grande.
Apesar disso, ainda existe potência no curso de Licenciatura em Educação do Campo
na UFRRJ, pois, mesmo não atraindo em sua grande maioria esses sujeitos militantes, a LEC
se tornou um dos cursos que mais absorve estudantes pretos e suburbanos. Como vimos, nesse
novo cenário surge a possibilidade de formar jovens, adultos e até idosos que se redescobrem
enquanto sujeitos históricos, tornando-se inclusive lideranças na luta por uma Educação do
Campo. Assim sendo, podemos afirmar que a LEC/UFRRJ ainda cumpre seu papel social.
Para finalizar, cabe ressaltar que a maior perda nesse processo foi a noção de “sujeito
coletivo”, explanada nas palavras da professora Roberta Lobo e da professora Marília Campos.
Mas, para estimular um possível debate futuro mais teórico, sugerimos pensar essa perda frente à
um processo mais amplo, no qual a economia capitalista tende a nos tornar sujeitos individuais
e objetivos, afastando-nos assim de própria materialidade sensível da vida, que só existe, por
enquanto, nos nossos sentimentos e subjetividades.
Para finalizar, relembramos que, hoje, não é possível pensar a Educação do Campo sem os
desafios postos após a pandemia de 2020-2022 e das consequências nas relações entre educação,
agroecologia e sensibilidade, saúde mental e barbárie social.

153
REFERÊNCIAS

BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. In: Estética da Criação Verbal. 2. ed. São Paulo: Martins
Fontes, 1997. cap. p. 279-326.
CAMPOS, Marília. Percursos formativos dos educandos da licenciatura em educação do campo.
Turma Oseias de Carvalho/UFRRJ 2010-2013. Rio de Janeiro: Gráfica F & F, 2014.
LOBO, Roberta, Diagnóstico da Educação do Campo, UFRRJ, Seropédica, 2014.
MOURA, Jean, SALLES, Luciana, OLIVEIRA, Luiz Fernandes de. A Educação do Campo
e suas contribuições para o ensino de Sociologia. In: BODART, Cristiano das Neves (Org.) O
Ensino de Sociologia no Brasil, Maceió, Café com Sociologia, 2019.
SILVA, S.P.E. Licenciatura em Educação do Campo da UFRRJ: transformando Identidades.
Monografia do curso de Licenciatura em Educação do Campo/ UFRRJ - Seropédica 2017.

154
CAPÍTULO 11 - EDUCAÇÃO DO CAMPO NO ÂMBITO DA POLÍTICA EDU-
CACIONAL: A FORMAÇÃO DE EDUCADORAS/ES NAS LICENCIATURAS
EM EDUCAÇÃO DO CAMPO E NO PROGRAMA ESCOLA DA TERRA

Ana Cristina Hammel32


Alex Verdério33

Resumo

A presente elaboração está voltada para reflexões acerca da formação inicial e continuada de
professoras/es do campo compreendendo-as como ações que, no marco da política educacional
brasileira, são sustentadas e dão concretude ao Decreto Presidencial nº 7.352, de 4 de novembro
de 2010, que dispõe sobre a política de Educação do Campo e o Programa Nacional de Educação
na Reforma Agrária (PRONERA) (MEC; SECADI, 2012). Para tanto, ao voltar-se para a
formação de educadoras/es34 do campo, são tomados como referências o Programa de Apoio
à Formação Superior em Licenciatura em Educação do Campo (PROCAMPO) e o Programa
Escola da Terra.

Introdução

Contudo, antes de adentrar na análise das duas ações, é importante registrar que a luta
por uma Educação do Campo tem sido produzida e apresentada como reivindicação coletiva
dos povos do campo, das águas e das florestas há mais de duas décadas no Brasil. Sendo que a
Educação do Campo só passa a ser considerada na agenda educacional brasileira a partir desse
processo coletivo de reivindicação, luta e organização.
A inauguração categórica da Educação do Campo se dá com a realização do I Encontro
Nacional de Educadores e Educadoras da Reforma Agrária (I ENERA), organizado pelo
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), em 1997. Na esteira do I ENERA foi
calcada a necessidade de realização da I Conferência Nacional Por uma Educação do Campo,
ocorrida em 1998, posta na perspectiva de articular práticas e sujeitos impulsionadores da luta
por uma Educação do Campo que passa a se constituir como:

[...] expressão da articulação de diversos sujeitos comprometidos com


a educação dos povos trabalhadores do campo no Brasil, tendo como
elemento central os sujeitos a que se refere como protagonistas na

32 Licenciada em Pedagogia e História pela Universidade Estadual do Centro Oeste (UNICNTRO), Mestra
em Educação e doutora em História pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE). Especialista em
Trabalho, Educação e Movimentos Sociais pela Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV). Especialista
em Educação do Campo ela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Docente da Universidade Federal da Fronteira
Sul (UFFS). Pesquisadora do Grupo de Pesquisa em Educação do Campo, Agroecologia e Cooperação (GECCA-
UFFS) e integrante da Rede Latino-americana de Estudos e Pesquisas Marxistas em Educação do Campo. E-mail:
ana.hammel@uffs.edu.br
33 Licenciado em Pedagogia para Educadores do Campo e Mestre em Educação pela Universidade Estadual do
Oeste do Paraná (UNIOESTE). Especialista em Trabalho, Educação e Movimentos Sociais pela Escola Politécnica de
Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV). Doutor em Educação pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Docente da
Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB). Pesquisador do Grupo de Pesquisa em Educação do Campo,
Agroecologia e Movimentos Sociais (GECA-UFRB) e integrante da Rede Latino-americana de Estudos e Pesquisas
Marxistas em Educação do Campo. E-mail: alexverderio@ufrb.edu.br
34 O uso do termo educadores é usado pelo Movimentos Sociais Populares do Campo, sobretudo pelo MST,
no sentido de demarcar uma outra postura das/os professoras/es no processo pedagógico, espera-se que as/os
educadoras/es assumam uma postura mais dialógica e próxima das/os estudantes, que entendam o conhecimento
de forma mais ampla e que sejam militantes das lutas que permeiam o cotidiano das Comunidades e da classe
trabalhadora como um todo, sem perder de vista a identidade de sujeitos que incidem na formação dos povos do
campo, das águas e das florestas.

155
proposição e na realização de uma educação que atenda seus interesses
e, estando conectada a processos educacionais contra-hegemônicos, se
coloca na perspectiva da transformação social e da emancipação humana.
Assim, a luta por uma Educação do Campo parte da própria diversidade
dos sujeitos trabalhadores do campo no Brasil e das práticas e perspectivas
educativas forjadas nas lutas sociais de tais sujeitos. A luta por uma
Educação do Campo se faz diversa na unidade de classe. Não é homogênea
e nem uniforme, mas possui uma materialidade de origem que a identifica
e lhe confere unidade (VERDÉRIO, 2018, p. 66-67).

No processo de sistematização, ao tomar a efetividade do PROCAMPO e do Programa


Escola da Terra como referências empíricas, evidenciou-se a luta pelo direito dos povos
trabalhadores do campo, das águas e das florestas à educação e a importância da formação de
educadoras/es nesse contexto. Deste modo, a reflexão assume como foco a luta pelo direito à
educação e a atuação efetiva dos povos trabalhadores do campo, das águas e das florestas para sua
concretização. Para tanto, verifica-se que isso se efetiva por meio da inscrição qualificada dessas
reivindicações na estrutura estatal (POULANTZAS, 2000), com a instituição de políticas
sociais (NETO, 2003), em especial a política pública de Educação do Campo.
Isso toma concretude na proposição e na efetividade do PROCAMPO e do Programa
Escola da Terra, estando sustentadas na relação entre Universidades, Movimentos Sociais e as
Organizações Populares do Campo e Unidades Mantenedoras das Escolas do Campo na esfera
pública – Secretarias Municipais e Estaduais de Educação – no sentido de propor e fazer a
formação inicial e continuada de educadores/as do campo de maneira articulada à luta por uma
Educação do Campo e a efetivação do direito à educação.
Por fim, é registrada a fragilização da política pública de Educação do Campo, em
especial da formação inicial forjada por meio do PROCAMPO e da formação continuada
existente a partir do Escola da Terra, ações essas que estão submetidas aos desmandos do projeto
ultraneoliberal e fundamentalista (LEHER, 2020) em andamento em nível nacional, e que tem
resultado em significativas limitações na manutenção e na continuidade das ações.
A elaboração e as análises que esta apresenta foram pautadas pela inserção prático-teórica
na luta por uma Educação do Campo, por meio da participação em processos formativos
diversos, em especial, a partir da inserção nos cursos de Licenciatura em Educação do Campo
– na Universidade Estadual do Oeste do Paraná, na Universidades Estadual do Centro-Oeste,
na Universidade Federal da Fronteira Sul e na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia – e
na atuação em processos formativos desencadeados no âmbito do Programa Escola da Terra no
Paraná – entre os anos de 2015 e 2022.
Os elementos de reflexão prático-teórica sistematizados na presente elaboração estão
amparados ainda no processo de pesquisa e de elaboração vinculados à pesquisa “Formação
de Professores e Organização do Trabalho Pedagógico na Educação do Campo: identidade
e processos educativos em escolas do campo” (UFFS, 2018), que juntamente com a inserção
prático-teórica já mencionada está sustentada na interface entre Educação do Campo e Educação
Superior.

As Licenciaturas em Educação do Campo e a formação inicial de professoras/es no


PROCAMPO

A formação de professores/as para as escolas do campo faz parte da emblemática e


conturbada história da Educação Rural no Brasil. Por muito tempo, as aulas eram ministradas por
professoras leigas, sobretudo, as escolhidas por meio de alguma indicação política (THERRIEN,
1991). Essas escolhas, sustentadas em processos de indicação efetivados pelas elites políticas
locais, se dava entre as que possuíam mais instrução na comunidade. Essas professoras, em suma,

156
tinham pouco acesso à materiais pedagógicos e, por vezes, também assumiam as funções de
zeladoras, de merendeiras e de secretárias escolares. Nascimento (2018) corrobora com essa
análise e aponta que

A docência feminina ganha tendência, na história da educação rural, e


a maioria era mulheres moradoras das próprias comunidades, dentre as
que sabiam lê e escrever. Essa disponibilidade foi uma construção, pois
as mulheres se desdobravam em suas funções e, por mais que fosse uma
rotina cansativa, elas não desanimavam, embora muito dos seus direitos,
sequer fossem reconhecidos (NASCIMENTO, 2018, p. 49).

Além da pouca formação, da pouca assistência pedagógica, não havia políticas públicas que
garantissem à formação inicial e continuada dessas profissionais, esse quadro de triste realidade
se constituiu historicamente como uma constante em todo país, sendo mais intensa no meio
rural. O quadro gravíssimo de analfabetismo, de abandono e descaso com a escolarização dos
povos trabalhadores do campo, das águas e das florestas e por desdobramento com as condições
de formação e de atuação profissional de professores/as no campo começa a ter repercussão a
partir da interferência de organizações sociais e populares que promovem algumas iniciativas de
alfabetização e escolarização vinculadas a essas populações de forma voluntária ou em parcerias
com igrejas e instituições preocupadas com esse triste quadro. Contudo, o professorado que
participava dessas ações era, sobretudo, composto por voluntárias/os, ligados aos Movimentos
Sociais, às Instituições de caráter filantrópico e sociais e às Universidades (BRITO, 2011).
Em âmbito nacional, no que tange a formação de professoras/es, apenas os anos de
1920/1940 alguns estados brasileiros passam a desenvolver ações no âmbito da formação
inicial. Tanuri (2000) descreve alguns desses processos que tratam a inserção da formação de
professoras/es na política e na ação educacional, mas que ainda não se vinculavam diretamente
ou especificamente à formação de professoras/es do campo.

A medida adotada inicialmente pelo Distrito Federal e por São Paulo,


no sentido de excluir o conteúdo de formação geral das escolas normais,
substituindo-o pela exigência do curso secundário fundamental como
condição para ingresso, já estava instituída, por volta de 1940, nos estados
de: Alagoas, Bahia, Ceará, Espírito Santo, Maranhão, Mato Grosso, Pará,
Paraíba, Paraná, Pernambuco, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Rio
Grande do Norte, Santa Catarina e Sergipe. Com isso, a preocupação
central do currículo da escola normal deslocava-se dos “conteúdos” a
serem ensinados – o que caracterizou os primórdios da instituição –
para os métodos e processos de ensino, valorizando-se as chamadas
“Ciências da Educação”, especialmente as contribuições da Psicologia e da
Biologia. Encontra-se nos documentos legais dessas reformas a presença
de dispositivos indicadores de ideias da escola renovada, relativas ao
atendimento às possibilidades biopsicológicas da criança, à adequação
do currículo às características do meio social, ao tratamento das matérias
escolares como instrumentos de ação e não como fins em si mesmas, à
importância dos processos intuitivos, da observação direta, da atividade
do aluno, do método analítico para o ensino da leitura. Observações de
alguns pesquisadores sugerem discrepância entre a prescrição legal e aquilo
que foi realmente implementado (TANURI, 2000, p. 05).

Para o campo, embora algumas iniciativas realizadas, sobretudo por iniciativa popular e
solidária, a formação de professoras/es continua sendo uma incógnita denunciada amplamente
pelos Movimentos Sociais e Organizações Populares do Campo, com mais ênfase nos Encontros
Nacionais dos Educadores de áreas de Reforma Agrária (ENERA) e nas Conferências Nacionais/
Estaduais Por uma Educação do Campo a partir do final dos anos de 1997/1998.
A II Conferência Nacional Por uma Educação do Campo, realizada em 2004, em

157
Luziânia no Distrito Federal, registra com ênfase que dentre a pauta dos Movimentos Sociais
e Organizações Populares do Campo está a reivindicação de uma política pública que assegure
condições de trabalho, formação inicial e continuada, plano de carreira e piso salarial. Junto a
isso, a II Conferência denunciava, uma vez mais, as precárias condições de trabalho e as condições
adversas enfrentadas nas escolas do campo:

Em comparação aos profissionais urbanos, (os professores do campo)


recebem menos formação acadêmica e informação cotidiana, percebem
menor remuneração, trabalham com menos infraestrutura e materiais
didáticos e, consequentemente, concentram maiores índices de doenças do
trabalho, a exemplo do bornout – a síndrome da desistência do educador.
Além das dificuldades já conhecidas no meio urbano – porém agravadas
nas zonas rurais - os educadores do campo ainda precisam lidar com as
excepcionalidades oriundas da convivência com alunos de múltiplas
carências, dentre as quais destacam-se a fome e as atividades laborais para
complementação da renda familiar. (II CNEC, 2004, p. 18-19)

No âmbito da política pública e do direito à escolarização dos povos trabalhadores do


campo, sobretudo, os camponeses Sem Terra assentados e acampados em áreas de Reforma
Agrária, o Programa Nacional de Educação em Áreas de Reforma Agrária (PRONERA), criado
em 1998, a partir dos altos índices de analfabetismo entre crianças, jovens e adultos, passa a ter
importante incidência nesse quadro, com ações concretas na formação de professoras/es. Com
o objetivo de ser um agente que supere os efeitos da falta de escolarização nas áreas de reforma
agrária de todo país, o PRONERA, em 2004, já incorpora de maneira oficializada a formação
inicial e continuada das/os educadoras/es. Conforme estabelecido no Manual do Programa,
que foi reeditado em 2004, o objetivo do PRONERA é

garantir a alfabetização e educação fundamental de jovens e adultos acampados


(as) e/ou assentados (as) nas áreas de reforma Agrária; garantir a escolaridade
e a formação de educadores (as) para atuar na promoção da educação nas
áreas de reforma Agrária; garantir formação continuada e escolaridade média e
superior aos educadores (as) de jovens e adultos – EJA e do ensino
fundamental e médio nas áreas de reforma Agrária; garantir aos assentados
(as) escolaridade/formação profissional, técnico-profissional de nível médio)
e superior em diversas áreas do conhecimento; organizar, produzir e editar
materiais didático-pedagógicos necessários à execução do programa e
promover e realizar encontros, seminários, estudos e pesquisas em âmbito
regional, nacional e internacional que fortaleçam a Educação do Campo (BRASIL,
2004, destaques nossos).

Já em 2016, com nova reedição do Manual do PRONERA, a formação de educadoras/


es é reafirmada e se amplia também para cursos de pós-graduação. Agora, dentre os objetivos do
Programa, são estabelecidos:

Garantir o acesso a escolaridade e a formação de educadores(as) para atuar


na promoção da educação fundamental nas áreas de Reforma Agrária;
Garantir o acesso a formação continuada e escolaridade média e superior
aos educadores (as) de jovens e adultos - EJA - e do ensino fundamental e
médio nas áreas de Reforma Agrária; [...] Garantir o acesso aos cursos de
especialização, residência agrária e pós graduação stricto sensu/mestrado
nas áreas de Reforma Agrária; (BRASIL, 2016, p. 18-19).

Como resultado tem-se a criação de vários cursos de graduação em Pedagogia, História,


Serviço Social, Agronomia e tantos outros demandados pelos camponeses e quilombolas, com
financiamento viabilizado pelo Programa e tendo o regime de alternância como elemento
estruturante, o qual é realizado na articulação entre Tempo Universidade – realizado nas

158
Universidades e instituições parceiras – e Tempo Comunidade – realizado nos locais de origem
dos estudantes.
A Pesquisa Nacional de Educação em Áreas de Reforma Agrária (II PNERA), realizada de
2011 a 2014, levantou importantes dados em relação ao PRONERA que foram aprofundados
recentemente por Molina et al (2020).

O Pronera já proporcionou o acesso à educação a mais de 190 mil


estudantes jovens e adultos das áreas de Reforma Agrária e quilombolas,
que se formaram em cursos que vão da alfabetização até a pós-graduação.
O Programa tem articulação com mais de 100 instituições educacionais,
entre universidades e institutos federais envolvidos na oferta de cursos em
mais de 1.000 municípios do país. De 1998 a 2018, conforme dados do
Incra, o Pronera garantiu a realização de 512 cursos, formando jovens e
adultos em diferentes áreas do conhecimento. A maior parte dos cursos
compreendeu a alfabetização e escolarização dos anos iniciais do Ensino
Fundamental. No nível médio, destacam-se as modalidades Técnico
Concomitante e Integrado. No âmbito da Educação Superior, já foram
ofertados pelo Pronera 100 cursos de graduação e 89 de pós-graduação
em diferentes especializações e um mestrado profissional, garantindo,
no total, a formação de aproximadamente 5.347 estudantes em nível
superior. Os cursos superiores foram ofertados em diversas áreas de
conhecimento: Pedagogia da Terra; Pedagogia das Águas; Licenciaturas
em História, Letras, Geografia, Ciências Sociais e Artes; Jornalismo da
Terra; Agronomia; Agroecologia; Direito; Enfermagem; Serviço Social;
Medicina Veterinária e Zootecnia (MOLINA et al, 2020, p. 5-6).

Assim, verifica-se que o PRONERA está colocado como um importante marco na política
de formação em áreas de reforma agrária e a sua experiência tem embasado outras frentes de lutas
e avanços na própria política pública, a exemplo do Programa de Apoio à Formação Superior em
Licenciatura em Educação do Campo (PROCAMPO).
O PROCAMPO foi criado em 2007, com objetivo de “apoiar a implementação de cursos
regulares de LEDoC nas IES de todo país, com intuito de promover a formação de professores
por área do conhecimento para atuarem em escolas do campo” (MEDEIROS et al, 2020, p.
07). De acordo com Verdério (2021, 79), o PROCAMPO, “[...] já em sua gênese, afirmou duas
prerrogativas que embasariam a realização dos cursos de Licenciaturas em Educação do Campo
no Brasil, sejam elas: a organização em regime de alternância e a formação de professores do
campo por áreas de conhecimento”.
A partir da experiência piloto com cursos ofertados em quatro universidades, sendo elas a
Universidade Federal da Bahia (UFBA), Universidade de Brasília (UnB), Universidade Federal
de Sergipe (UFS) e Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)35, outros três editais foram
ofertados pela Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (SECAD/
MEC/2008 e SECAD/MEC/2009) e o edital nº 02/2012 pela SECADI36/MEC.
No Quadro 1, a partir dos estudos de Medeiros, Moreno e Batista (2020) são sistematizados
os dados das ofertas a partir dos editais do PROCAMPO:

35 Em novembro de 2006, o Ministério da Educação (MEC) decidiu convidar as universidades para realização
de projetos-piloto do curso Educação do Campo, as referidas universidades apresentaram projetos e foram escolhidas
para oferta das primeiras turmas.
36 A SECAD em 2011, passa a se chamar Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e
Inclusão (SECADI), passando a assumir também a política de inclusão do MEC.

159
Quadro 1: Ofertas de Cursos de Graduação - Licenciatura em Educação do Campo

EDITAIS REGIÕES UNIVERSIDADES ESTADOS


UFPA, IFPA, UNIR, Pará, Rondônia, Amapá e
Norte
UNIFAP, UFRR Roraima
Centro-
UNB Distrito Federal
Oeste
UFS, UFPI, UNEB, UFBA,
UECE, URCA UFPE, Sergipe, Piauí, Bahia, Ceará,
Nordeste AESET, Pernambuco, Maranhão, Paraíba
2008/2009
UNIVASP, CESA, UFMA, e Alagoas
IFMA, UFCG, UNEAL
SES, UFES, UNIMONTES,
Espírito Santo, Minas Gerais,
Sudeste UFMG, UFVJM, INFNET,
Rio de Janeiro e São Paulo
UNITAU
UNICENTRO,
Sul UNIOESTE, UTFPR e Paraná e Santa Catarina
UFSC
UFPA, UNIR, UFRR,
Pará, Rondônia, Amapá,
Norte UNIFAP, UFT e
Roraima e Tocantins
UNIFESSPA
Centro- UNB, UFG, UFMS e Distrito Federal, Goiás, Mato
Oeste UFGD Grosso do Sul
UFPI, UFRB, IFMA, Piauí, Bahia, Maranhão, Rio
Nordeste
02/2012 UFMA e UFERSA Grande do Norte
UFF, UFES, UFRRJ, Rio de Janeiro, Espírito Santo e
Sudeste
UFVJM, UFTM Minas Gerais
UFRGS, FURG, UFSC,
UFPR, UNIPAMPA, UFFS Paraná, Santa Catarina e Rio
Sul
e Grande do Sul
IFFarroupilha

Fonte: Organizado pelos autores a partir de Medeiros, Moreno e Batista, 2020

Os dados demonstram uma ampliação nas Instituições de Educação Superior que passaram
a ofertar a partir de 2012, em todas as regiões do país, o curso de Licenciatura em Educação
do Campo, fomentado pelo PROCAMPO. Além do número de vagas para estudantes e do
financiamento para realização da formação sob o regime de alternância, o edital de 2012 previu
a liberação de códigos de vagas para docentes e técnicos para as Universidades selecionadas.
Como resultado, foram selecionadas 27 Universidades e Institutos Federais de 20 estados
brasileiros com a aprovação de 42 cursos em todo o país (MEDEIROS; MORENO; BATISTA,
2020).
Do ponto de vista da política educacional para o campo, a instituição do PRONERA
e do PROCAMPO sem dúvida impactou na possibilidade de avançar na oferta e na entrada
dos camponeses nas Universidades, e também qualificar o quadro docente das instituições para
trabalhar nas Licenciaturas em Educação do Campo. Ao todo, com o desdobramento do edital
do PROCAMPO de 2012, foram contratados por meio de concursos públicos mais de 600
professoras/es de Educação Superior e mais de 130 técnicos em educação. Os demais recursos
financeiros alocados eram destinados à entrada e à manutenção das turmas das Licenciaturas em
Educação do Campo. Cada Universidade assumiu o compromisso de ofertar 120 vagas anuais
por três anos, período em que foram depositados os recursos. Os projetos receberam entorno
de R$ 450.000,00 por entrada de cada turma e mais valores acrescidos para manutenção e
consolidação das turmas (UFFS, 2016).
Os desafios que vêm sendo sistematizados no coletivo das Universidades que seguem com
a oferta das Licenciaturas em Educação do Campo revelaram que muito precisa ser feito no
âmbito da política de formação de educadoras/es do campo. Santos e Garcia (2020) elencam
algumas questões, tais como

160
A falta de articulação dos movimentos, desafios de ordem pedagógica, estrutural e
financeira, dificuldades provenientes da insuficiência de profissionais para atender as
demandas dos cursos e da falta de transporte para realizar e acompanhar atividades externas,
logística nem sempre assegurada no orçamento das universidades para o provimento de
diárias, transporte, alimentação e aquisição de material para experimentação e outros
(SANTOS; GARCIA, 2020, p. 22).

Esses desafios expressos nas experiências efetivadas em muitas Universidades se somam as


limitadas condições de permanências durante o Tempo Universidade, uma vez que sem recursos
para manutenção de alojamentos, as entradas a partir da terceira e última turma viabilizada pelo
PROCAMPO têm sofrido com a falta de recurso. Mesmo que integradas ao quadro de cursos
permanentes das Universidades com a oferta regular das Licenciaturas em Educação do Campo
nas instituições, a falta de orçamento para realização do regime de alternância e a precariedade
na oferta de moradia estudantil têm sido os principais desafios enfrentados cotidianamente.
Sem os recursos financeiros do PROCAMPO, as Universidades e os Institutos Federais têm
muitas dificuldades para manter as condições básicas para a realização dos cursos com recursos
próprios. Esse quadro foi asseverado com o movimento conservador e excludente reafirmado
por parcelas da sociedade brasileira, sobretudo, a partir de 2013 e que foi impulsionado pelo
golpe de 2016, pela Emenda Constitucional n. 95/2016 e incidiu no resultado das eleições
presidenciais de 2018.
Considerando esse fortalecimento paulatino das forças conservadoras, Leher (2020)
adverte que o núcleo dirigente do governo eleito em 2018 tem total convicção de que o projeto
ultraneoliberal e fundamentalista ao qual adere, somente será viável com o total silenciamento
das Universidades e, junto a isso, a expulsão das parcelas populares que ali adentraram, nas quais
estão consideradas/os as/os ingressantes dos cursos de Licenciatura em Educação do Campo.
No âmbito pedagógico a alternância e a área do conhecimento também são desafios
constantes tanto para os acadêmicos, como para os docentes formadores, muitos desses formados
disciplinarmente para assumir sua cátedra na Universidade. A falta de formação continuada do
corpo docente das Universidades e a pouca disposição para novos aprendizados são alguns dos
problemas enfrentados. Do ponto de vista dos acadêmicos/egressos, a insegurança em relação ao
estágio obrigatório, as possibilidades de participação das aulas durante o Tempo Universidade
e a inserção no mundo do trabalho são alguns dos limitadores. Várias são as denúncias feitas em
relação à negação dos diplomas e das dificuldades na contratação pelas redes de ensino das/os
egressas/os dos cursos de Licenciatura em Educação do Campo.
Caso emblemático ocorreu no Paraná em 2013, quando três egressas/os formadas/os
em Educação do Campo pela UNICENTRO, turma 2009, foram impedidas/os de assumir o
concurso público por conta do diploma que não constava a disciplina de formação e sim a área
do conhecimento que as/os egressas/os tinham cursado. O caso ganhou repercussão nacional e
vários pareceres foram emitidos inclusive pela SECADI. Ao analisar esse caso, Verdério e Lima
(2020, p. 315) verificam isso como uma expressão da “[...] negação do direito ao exercício da
profissão docente às licenciadas e aos licenciados em Educação do Campo no Paraná”, apontando
“[...] para a necessidade de mobilização junto aos Movimentos Sociais e às Organizações
Populares do Campo, para que tal reivindicação tome fôlego e seja considerada pelo Estado”.
Como já anunciado, em 2018, com o resultado da eleição para Presidente da República e com
a ascensão de um governo ultraneoliberal, conservador e fundamentalista (LEHER, 2020) a
situação se agrava. Nesse quadro, as ações de formação inicial de professoras/es do campo por
meio do PRONERA e do PROCAMPO têm sofrido vários revezes. Reflexo disso é que

a política de financiamento, enfrenta várias medidas de


desinstitucionalização, de modo que o PRONERA teve sua atuação
paralisada, cujas perspectivas de financiamento reduziram-se à quitação
de parcelas de pagamento aos cursos em vigência, sem perspectiva de

161
implementação de nenhum dos mais de cem projetos já aprovados[...]. Em
igual sentido, no processo de desmonte do Estado brasileiro e da política
educacional, o ônus que coube à Educação do Campo é alto: inclui extinção
de organismos, como a Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização,
Diversidade e Inclusão [...], além, da extinção da Coordenação Geral de
Educação do Campo no INCRA (SILVA et al, 2020, p. 05).

Dados os avanços e os desafios acumulados no período de dez anos, contados a partir do


último edital do PROCAMPO de 2012, que criou 42 cursos em 20 estados brasileiros e colocou
muitos camponeses e quilombolas nas escolas públicas do campo, é preciso recuperar a pauta de
luta dos Movimentos e Organizações Sociais Populares do Campo e fortalecer as articulações
regionais e o Fórum Nacional de Educação do Campo (FONEC), assumidos como espaços
incontestes de aglutinação, articulação e luta para não permitir retrocessos.
A situação posta revela que apesar do financiamento ser um dos principais gargalos
dos cursos de Licenciatura em Educação do Campo no Brasil, ele não é o único. O perfil, a
inserção e a permanência dos sujeitos à que se destinam os cursos no contexto da Universidade
pública; o conteúdo/forma que alimentam a dimensão pedagógica dos processos formativos
desencadeados; e a inserção profissional das/os egressos/as; tudo isso, frente às inúmeras
mudanças e as reformas empresariais da educação (FREITAS, 2018) impulsionadas pelos
grandes conglomerados educacionais e que vêm sendo impetradas na última quadra histórica,
são questões que intensificam a necessidade de destacar a importância do PROCAMPO e de
tudo que ele agrega na luta, na construção e na consolidação de uma política pública de Educação
do Campo no Brasil.

O Programa Escola da Terra e a formação continuada de educadoras/es do campo

Como foi mencionado anteriormente, a formação de educadores/as que atuam nas escolas
do campo sempre foi negligenciada pela política educacional brasileira e, apesar das mudanças
apresentadas desde a luta por uma Educação do Campo, muitos desafios ainda estão colocados,
fazendo-se necessária a continuidade de ações concretas para que de fato seja garantida uma
formação que atenda as demandas dos povos trabalhadores do campo, das águas e das florestas
e das escolas à que se vinculam.
Quando abordada a formação continuada das/os professoras/es do campo, o histórico
apresentado em nível nacional é de submissão e de assistencialismo, quando não de negação do
conhecimento e da cultura camponesa. Exemplo disso são os programas que ganham corpo a
partir dos anos de 1910 e 1920 (LEITE, 1999) com o Ruralismo Pedagógico “que pretendia uma
escola integrada às condições locais, objetivando assim fixar o homem no campo” (ANTONIO;
LUCINI, 2007, p. 179) e desenvolver a vocação do homem rural com um currículo centrado
em ensinar a ler, escrever e aprimorar técnicas agrícolas.
Para além do Ruralismo Pedagógico, outro programa que ganhou destaque nacional na
formação continuada de educadoras/es que atuam nas escolas do campo foi o Programa Escola
Ativa que, proposto em 1997, atendeu a mais 10 mil escolas multisseriadas até 2010, em todo o
território nacional (KNIJNIK; WANDERER).
Knijnik e Wanderer (2013), em uma análise sobre o Programa Escola Ativa, observaram
que este

Abrangeu um conjunto de ações que envolvem a produção de materiais


para alunos e professores, a promoção de cursos de formação continuada
aos docentes e a implementação, em cada município participante, de um
microcentro que oportunize a criação de grupo de estudos. Os materiais
distribuídos às escolas são endereçados aos alunos (cadernos de ensino e

162
aprendizagem de diferentes áreas do currículo escolar) e aos professores
(um caderno de orientações pedagógicas para formação de educadoras e
educadores - que passaremos a denominar COP - e outros com foco nas
diferentes áreas do currículo). Além disso, o programa distribui kits com
materiais para uso em sala de aula (KNIJNIK; WANDERER, 2013, p. 3).

As autoras destacam, ainda, o vínculo do Programa Escola Ativa com a ações do


Banco Mundial, que assumiu o financiamento dessa ação por determinados períodos. Outro
elemento apontado pelas autoras passa pelo distanciamento das proposições em relação as reais
necessidades dos estudantes, dos docentes e das comunidades camponesas.
Mesmo consideradas tais controvérsias, o Escola Ativa acumulou experiências importantes
no âmbito da formação continuada de professoras/es do campo, tais como a distribuição de
materiais pedagógicos e a melhoria das estruturas físicas das escolas. Porém, como destacaram
as autoras, as realizações do Programa Escola Ativa estiveram “[...] radicalmente distantes de
qualquer perspectiva que se contraponha à hegemonia da lógica neoliberal, na qual impera o
agronegócio, uma lógica que se configura, do ponto de vista social, econômico, político – e
também educacional –, na contramão das demandas dos movimentos sociais camponeses”
(KNIJNIK; WANDERER, 2013, p. 3). Soma-se a isso o fato de que

O PEA [Programa Escola Ativa] pode ser pensado como parte dessa
estratégia homogeneizadora. Os cadernos endereçados aos alunos
instituem essa homogeneização: tanto no que diz respeito ao conteúdo,
quanto no que se refere ao modo como este é apresentado (incluindo-
se aí as ilustrações). Tais materiais se parecem com os livros didáticos
que circulam nas escolas urbanas regulares. A continuada referência
aos Parâmetros Curriculares Nacionais, presente no COP e no CEM, é
mais um elemento que contribui para a homogeneização. Mesmo que se
enfatize que as especificidades culturais, políticas, econômicas e sociais
precisam ser garantidas pedagogicamente para que a escola no campo seja
também a escola do campo, as condutas dos professores são conduzidas de
modo a não contemplar tais especificidades (KNIJNIK; WANDERER,
2013, p. 7).

No ano de 2008, com o rompimento do financiamento internacional (KNIJNIK;


WANDERER, 2013), o Programa Escola Ativa passa a ser gestado pela SECAD e a se constituir
como mais uma ação na política nacional de Educação do Campo.
Nesse período, adjacente à luta por uma Educação do Campo, já se verificava um
importante acúmulo no âmbito da política educacional brasileira desde a institucionalização
do PRONERA e também com a instituição das Diretrizes Operacionais para a Educação Básica
nas Escolas do Campo, promulgadas em 2002, o que corroborava para definições de princípios
e fundamentos políticos, pedagógicos e filosóficos sobre a Educação do Campo, também no
marco normativo legal (MEC; SECADI, 2012).
Como dito, na prática teórica-metodológica, a alternância, já amplamente vivenciada
nas Escolas Famílias Agrícolas (EFAs), nos Centros Familiares de Formação por Alternância
(CEFAS) e no próprio PRONERA e a formulação por áreas do conhecimento passam a ser
colocadas como importantes balizadores nas formulações e na reorganização dos Programas
propostos no período (2008 a 2015) no contexto da constituição da política pública de Educação
do Campo, tais como, PROCAMPO e no redimensionamento do Escola Ativa, que passa a ser
denominado como Programa Escola da Terra.
É neste contexto que, em 2013, a SECADI, estando ancorada nas Diretrizes Curriculares
Operacionais para a Educação Básica nas Escolas do Campo (MEC; SECADI, 2012) e nas
reinvindicações dos Movimentos Sociais e Organizações Populares do Campo, demandou e
promoveu junto com um grupo de professoras/res das Universidades parceiras a revisão teórica-

163
metodológico do Programa Escola Ativa, no “sentido de construir procedimentos conceituais
capazes de atender às especificidades das demandas em torno da formação de professores que
atuavam nos anos iniciais do ensino fundamental, com especial ênfase nas classes multisseriadas”
(MARTINS; MELO, 2022).
Deste modo, é constituído o Programa Escola da Terra, criado pela Portaria 579,
de 2 de julho de 2013, como um dos eixos do Programa Nacional de Educação do Campo
(PRONACAMPO). Já no momento de sua implantação, o Escola da Terra selecionou sete
Universidades Federais para executar a formação continuada de professores/as do campo
(MELO, 2018). Além da ampliação, a estimativa da coordenação nacional do Escola da Terra é
que, desde 2013, o Programa tenha atingido mais de 10 mil cursistas em 26 estados da federação
(NETO, 2019).
Em relação a organização pedagógica do Escola da Terra, a Pedagogia da Alternância é
assumida como um princípio do Programa. Junto a isso, colocam-se como princípios orientadores
a necessidade de considerar a natureza e a especificidades das escolas e das comunidades
camponesas. Assim,
o trabalho pedagógico é articulado em dois períodos formativos: tempo
na universidade caracterizado como tempo escola e tempo de estudo
e aprofundamento em seus locais de trabalho denominado tempo
comunidade. No primeiro tempo, os professores-alunos do curso são
orientados pela equipe de formadores das Universidades, durante os
módulos formativos. Já no tempo comunidade, os professores-alunos são
acompanhados pelos tutores. Estes últimos são professores do quadro das
secretarias municipais de educação (MELO, 2018, p. 136).

As experiências acumuladas no Programa Escola da Terra nos diferentes contextos


territoriais têm produzido um vasto referencial das escolas do campo no país, como pode
ser verificado na elaboração coletiva de Hage et al. (2018) que delineia uma cartografia da
diversidade e da complexidade da execução do Programa Escola da Terra no Brasil. Por sua vez,
alguns estados têm a experiência de trabalhar também com escolas e docentes indígenas, como
é o caso do Paraná, que foi analisado por Hammel e Gehrke (2022).
Essas realidades falam de um campo diverso e trazem as perspectivas teórico-metodológicas
relacionadas à formação por área de conhecimento, desafio assumido pela luta por uma Educação
do Campo como forma de superação da visão linear e fragmentada dos currículos hegemônicos.
Para Bicalho et al, o Programa Escola da Terra, que toma materialidade na realização da formação
continuada de educadoras/es do campo, por meio da oferta de cursos de aperfeiçoamento, tem
privilegiado,

[...] as políticas públicas de educação do campo na interface com a história


dos movimentos sociais de luta pela terra. Os princípios filosóficos tiveram
a intenção de aprofundar as concepções mais gerais em relação à educação,
ao trabalho e à emancipação humana, com possibilidades de avançar
para além da sociabilidade do capital. Trabalhou-se na organização dos
componentes curriculares, por área de conhecimento, dando destaque
especial aos conteúdos formativos socialmente relevantes para as
comunidades camponesas (BICALHO et al, 2021, p. 294).

A relação com a comunidade e a sistematização dos conhecimentos locais têm sido outras
contribuições do Programa para a Educação do Campo a nível regional e nacional. Recentemente
o grupo de coordenadores e pessoas ligadas ao Programa assumiram o desafio de produzir um
conjunto de cadernos com temáticas pertinentes às escolas do campo e à luta por Educação do
Campo e que se constituirá num vasto acervo com um retrato nacional das escolas do campo no
Brasil.
Do ponto de vista da política educacional, o Programa Escola da Terra tem se configurado

164
como uma resistência, dada a desestruturação sofrida desde o golpe de 2016 e o desmonte da
educação pública no atual Governo Federal. No campo a redução das matrículas e o fechamento
das escolas pelas Unidades Mantenedoras – Secretarias Estaduais e Prefeituras Municipais – são
denunciadas constantemente pelas articulações regionais e nacional de Educação do Campo.
Um levantamento do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas (INEP), no ano de 2019,
apresentou dados em relação ao fechamento das escolas e do registro das matrículas na Educação
Básica brasileira. Entre 1997 e 2019 foram fechadas 82 mil escolas no campo. Já em relação as
matrículas, entre 2014 e 2019 houve uma redução de 1,9 milhões, sendo que das 49.771.371
matrículas existentes em 2014, foram registradas 47.800.000 em 2019 (BICALHO et al, 2021).
De modo geral, o Programa Escola da Terra tem problematizado a importância do
fortalecimento das escolas nas comunidades e a necessidade de repensar a forma de organização
político-pedagógica delas, o que implica em considerar outras possibilidades de ofertas das
turmas e das aulas. Contudo, essa problematização e os mínimos avanços alcançados necessitam
vir acompanhados do necessário investimento em formação inicial, continuada e na qualificação
e valorização do plano de carreira para as/os educadoras/es. Passa também, pela garantia de
infraestrutura às escolas, pelo acesso à internet e à tecnologia, dentre outras questões estratégicas
que qualifiquem a existência das escolas do campo e a sua vinculação com os sujeitos que as
integram: estudantes, educadoras/es e comunidades.
Dentre as questões apontadas nesses anos de realização do Programa Escola da Terra em
âmbito nacional, as experiências concretas têm apontado a necessidade de ações dessa envergadura
abordar questões como a história socioeconômica, política e cultural que constituem a realidade
camponesa, e as formas de abordá-las junto aos conhecimentos escolares nos diferentes níveis e
modalidades. Conectado a isso, verifica-se também a gritante necessidade de investimentos em
remuneração e carreira das/os profissionais que atuam nas escolas, a produção e disponibilização
de materiais didático-pedagógicos adequados e processos perenes de formação continuada que
abordem as contradições vivenciadas no cotidiano escolar. Sem isso, pouco é possível fazer em
relação ao atendimento das reais necessidades das escolas e educadoras/es do campo.

Considerações

Ao considerar a efetividade do PROCAMPO e do Programa Escola da Terra na formação


inicial e continuada de educadoras/es do campo, compreendendo-as como ações sustentadas e
que dão concretude à política de Educação do Campo no país, e que passam a ser produzidas
no contexto da luta por uma Educação do Campo no Brasil, são verificadas sua efetividade no
âmbito das políticas sociais e como uma inscrição da luta de classes na ossatura institucional do
Estado.
Neste aspecto, ao analisar a luta por uma Educação do Campo, bem como a constituição
de uma política pública nesse contexto, que tem como uma de suas expressões a formação inicial
e continuada de professoras/es é crível a consideração de que sua efetividade não se dá apenas
na forma institucional do Estado e no marco das políticas educacionais. Essa ações, estando
conectadas à luta por uma Educação do Campo, são processadas de uma maneira específica.
Não é o Estado que, por uma disposição aleatória no interior da sociedade, propõe a política
pública de Educação do Campo e dentro dela a formação inicial e continuada de educadoras/
es, mas esta é colocada como resposta, produzida de maneira tensionada e mediatizada pela
luta organizada dos afetados pela questão social, nesse caso em especial, os povos trabalhadores
do campo, das águas e das florestas, que na luta pela garantia de seu direito à educação passam
a vislumbrar e reivindicar a formação inicial e continuada de suas/seus educadoras/es como
ponto importante dessa luta e construção.

165
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168
CAPÍTULO 12 - REFLEXÕES NA INTERFACE ENTRE EDUCAÇÃO DO CAM-
PO E REFORMA AGRÁRIA POPULAR

Isa Lyrion Murro P. De Carvalho37


Marcelly Santos38
Priscila de Queiroz S. Gusmão39
Fabrina Pontes Furtado40

Resumo

Observando a história política e econômica do Brasil, encontramos evidências de ações de


expropriação da terra e a escravização da mão de obra de povos indígenas e africanos, que por
consolidar-se influenciam os modos de produção que operam até a contemporaneidade. As
marcas históricas deixadas pelos colonizadores no território brasileiro não foram limitadas
à fase do Brasil Colônia; se perpetuam até hoje e têm grande reflexo na zona rural brasileira
como também na urbana. Nas formas de trabalho, na educação escolar encontramos vestígios
de um período. Diante da necessidade de compreender como na realidade brasileira o campo é
um espaço de disputa por territórios e de como os seus habitantes são expropriados de direitos
fundamentais para sobrevivência digna. Numa proposta de refletir a presença dos movimentos
sociais campesinos, tendo o como referência o MST, discutiremos a relevância da Educação do
Campo em diálogo a Reforma Agrária Popular.

Palavras-Chave: Educação do Campo; Reforma Agrária Popular e MST.


Introdução

Este trabalho pretende levantar reflexões que possam contribuir na identificação do


percurso de formação da Política Agrária no Brasil e seus desdobramentos na sociedade brasileira
até a atualidade e percebendo suas implicações para os povos do campo, os mais prejudicados
com um sistema de exclusão beneficiando os que detém o poder.
Através da Educação que os direitos e reivindicações são elucidados e os quais levam
o sujeito a reconhecer a importância do posicionamento político e sua participação nas lutas
sociais. A Educação é um instrumento para luta, principalmente quando se trata de Educação
do Campo, um projeto que incorpora o conhecimento dos camponeses numa reflexão acerca do
trabalho, da educação e garantia dos seus direitos no campo
A relação Educação do Campo com a Reforma Agrária Popular é intrínseca, na qual
destacamos a luta dos movimentos sociais, fazendo referência ao MST- Movimento dos
Trabalhadores Sem Terra, cuja presença nos territórios brasileiros é expressiva quando se trata
do debate abordado neste trabalho.
37 Discente do Curso de Licenciatura em Educação do Campo, na Universidade Federal Rural do Estado do Rio
de Janeiro (UFRRJ), Campus Seropédica, integrante do Grupo PET, (Programa de Educação Tutorial) de Educação
do Campo e Movimentos Sociais. Integrante do grupo PRONERA EJA: Alfabe em EJA nos Assentamentos do
Norte e Noroeste Fluminense. E-mail: lyrionlyrion@gmail.com.
38 Discente do Curso de Licenciatura em Educação do Campo, na Universidade Federal Rural do Estado
do Rio de Janeiro (UFRRJ), Campus Seropédica, integrante do Grupo PET, (Programa de Educação Tutorial) de
Educação do Campo e Movimentos Sociais.E-mail: marcellyufrrj@gmail.com
39 Discente do Curso de Licenciatura em Educação do Campo, na Universidade Federal Rural do Estado do Rio
de Janeiro (UFRRJ), Campus Seropédica, integrante do Grupo PET, (Programa de Educação Tutorial) de Educação
do Campo e Movimentos Sociais.E-mail: queiroz28.pq@gmail.com
40 Orientadora deste artigo - Professora do DDAS/CPDA - UFRRJ. E-mail: f.furtado7@gmail.com

169
Metodologia

Este trabalho teve como base: literaturas, dados, sites, revistas, pesquisas bibliográficas de
caráter qualitativo, de estudos de pensadores e publicadores que abordem a temática Educação
do Campo e Reforma Agrária Popular, buscando discutir a intercessão entre Questão Agrária
e Educação do Campo, a fim de caracterizarmos como ocorrem essas relações.

Breve histórico do contexto agrário no Brasil



Voltando na história, analisamos que os processos de “declarar a terra” (1822) tidos nos
finais das “Sesmarias”, sendo o fator principal a terra, o modelo não deixou de priorizar aqueles
que tinham condições e acúmulos onde pudesse caracterizar-se vigente a grande necessidade
de se concentrar “bens”(SECRETO,2007). Ao retornar em 1850, mesmo ano da abolição do
tráfico de escravos, o Império decretou a Lei de Terras, que consolidou a perversa concentração
fundiária, dando início às grilagens de terras, à exoneração rural e consequentemente a um
modelo fundiário baseado em grandes extensões de terras para um único proprietário. Mesmo
tendo a oportunidade de irem por outros caminhos ao criarem legislações embora modernas,
elas não foram eficientes para democratização das terras. Esse processo é elucidado por Maria
Verónica Secreto, no trecho em destaque a seguir:

Entendemos que não foi “a herança colonial”que determinou a forma


de propriedade da terra. Os Estados nacionais sul-americanos tiveram
a possibilidade de romper com o passado e criar legislações modernas.
E de fato o fizeram; exemplo de modernidade são suas constituições,
e a consagração da propriedade privada, o que não quer dizer que dessa
modernidade tenha decorrido a “democratização” do acesso à terra.
(SECRETO, 2007, p.13)

A concessão de terras no território que compreendia a América Portuguesa era dada pela
Coroa Portuguesa, no entanto essa normativa não era uma regra, muitos posseiros preferiam ter
posse das terras e depois a concessão; com o fim das sesmarias em 1822 deu-se início ao Império
e às inúmeras contradições que ocorriam neste contexto. Ficou um vácuo e, nesse meio tempo,
a posse das terras esteve intimamente ligado a quem tradicionalmente atuava nesse cenário
da posse e não houve legislações para impedir as apropriações de terra (SECRETO, 2007).
Segundo Maria Verónica Secreto, esse momento de “liberdade legislativa” apenas beneficiou
quem já tinha o poder, como podemos identificar a seguir:

A hipótese geralmente aceita de que a lei de terras tinha por objetivo por
um preço à terra para evitar que os imigrantes tivessem acesso a ela, e desta
forma obrigá-los a vender sua força de trabalho, incorre em anacronismo.
Os grandes proprietários não necessitavam de uma lei para evitar que
os pequenos se tornassem proprietários. Pelo contrário, utilizavam e
continuaram a utilizar mecanismos extra-jurídicos para esbarrar o acesso à
terra, como violência direta, clientelismo, paternalismo, etc. Mas este sim
foi um dos efeitos que teve a lei. (SECRETO, 2007, p.15)
Percebe-se, nesse texto em destaque, uma das principais causas do problema agrário
que existe no Brasil, com elementos concretos que a posse de terra sempre esteve associada ao
poder majoritário de quem já tinha uma “tradição” e como as frágeis legislações beneficiam
o latifúndio e geram a propagação da violência contra os que eram considerados indignos da
posse, os pequenos proprietários; percebe-se que daí vem uma herança dos conflitos agrários
(SECRETO, 2007). Criando uma dicotomia entre os mais e menos favorecidos. O que foi
chamado de “linha abissal” por (SANTOS, 2009; pp.8, 23-57).
Trazendo para um outro recorte histórico mais recente, durante o governo de João Goulart,

170
em 1960, a reforma agrária foi um assunto presente na política de reformas de base, a qual se
desejava o ajuste do problema agrário no país, que passava por diversas disputas e conflitos no
campo e crescente mobilização dos movimentos campesinos, mas o seu governo ainda estava sob
regime parlamentar, o qual lançou essa proposta de mudança constitucional ao Congresso, porém
não teve avanços. Após o plebiscito de 1963, com o retorno do presidencialismo, as medidas
de reforma agrária se tornaram a prioridade para Goulart, mas devido a uma base de governo
frágil, e que tinha muita divergência, a ideia da reforma agrária estava sendo interpretada como
impositiva no seu processo de regulação, o que gerou um enfraquecimento e uma temeridade de
como estava sendo encaminhada. Diante deste cenário, mobilizações contra o governo de João
Goulart levaram a interferência militar, o que paralisou a possibilidade de reforma agrária no
país ( DE SALIS, 2008, p.14).
Segundo De Salis (2008, p. 17), com o golpe militar de 1964, apoiado pelo Congresso
Nacional, em que Humberto Castelo Branco, declarado presidente após atos institucionais,
tomou posse em 15 de abril de 1964, em suas propostas de atuação pela melhoria econômica e o
fim dos conflitos no campo, trouxe como principal medida a aprovação do Estatuto da Terra,
que já era um documento que estava para ser aprovado antes mesmo do golpe; foi a primeira
lei da Reforma Agrária do Brasil, aprovada no governo militar. Conforme podemos identificar
no Artigo 1, em seu primeiro parágrafo: O conjunto de medidas que visam promover melhor
distribuição da terra, mediante modificações no regime de sua posse e uso, a fim de atender aos
princípios de justiça social e ao aumento de produtividade. (BRASIL, 1964, p.01)
Neste artigo fica definido que reforma agrária se configura como a redistribuição das
terras que não cumprem o dever estabelecido na lei. O Estatuto da Terra esclarece as funções
sociais que as propriedades rurais devem cumprir com a terra, entre elas estão: o aproveitamento
racional e adequado; utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do
meio ambiente; observância das disposições que regulam as relações de trabalho; exploração
que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores. (BRASIL,1964)
No entanto, a aprovação do Estatuto da Terra, justamente no governo militar, foi um
evento para amenizar os ânimos dos movimentos campesinos, que estavam a fazer pressão
para aprovação da reforma agrária. Essa medida foi realizada às pressas para desmobilizar os
movimentos sociais e apesar de na estrutura do documento ser apontada a garantia de função
social da terra para todos, a real intenção era garantir uma estabilidade política (DE SALIS
2008 p. 18).
Nesse percurso histórico, é percebido que o Estatuto da Terra foi uma lei que poderia
contribuir para possibilidade de Reforma Agrária no Brasil, no entanto a legislação passou por
problemas de efetivação devido à discordância de opositores a nova proposta de estrutura agrária
(DE SALIS, 2008, p. 181).
Prosseguindo para uma legislação mais recente, adentramos na Constituição Federal,
no Título VII, Capítulo III, que trata da Política Agrícola e Fundiária e da Reforma Agrária,
definido a partir do Artigo 184 a 191 (BRASIL,1988). Destacamos o artigo 184, o qual salienta
que a União é responsável por conduzir o processo de reforma agrária.

Compete à União desapropriar por interesse social, para fins de reforma


agrária, o imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social,
mediante prévia e justa indenização em títulos da dívida agrária, com
cláusula de preservação do valor real, resgatáveis no prazo de até vinte
anos, a partir do segundo ano de sua emissão, e cuja utilização será definida
em lei (BRASIL,1988, p.113).

De acordo com Pereira (2015), o reconhecimento da reforma agrária na Constituição
Nacional, ao declarar que a terra tem sua “função social”, é relevante, no entanto ficam
incompletas as informações de como ocorrem as desapropriações de terra. Além de ser um

171
processo jurídico lento e dificultoso para que se tenha a integralização da reforma agrária. Os
meios de garantia para uma reforma agrária que realmente contemplasse os povos do campo,
pois não são prioridade nas decisões políticas e judiciais. Sendo expropriados de seus direitos
na espera de serem assentados. Trazemos como destaque o que percebemos com o seguinte
argumento:

Todavia, a definição dos critérios de cumprimento da função social


permaneceu bastante ambígua, com exceção do que se refere à legislação
trabalhista.O texto apagou qualquer referência ao “latifúndio”, não
estabeleceu o limite máximo de propriedade da terra, não adotou o
dispositivo da perda sumária e não definiu os assentados da reforma
agrária como público prioritário da política agrícola, como reivindicavam
os movimentos populares do campo. Além disso, manteve no Judiciário
a decisão sobre a imissão de posse para fins de desapropriação, dando
margem à lentidão jurídica e ao atraso na implantação de assentamentos
(PEREIRA, 2015, p.387).

Diante das situações de morosidade, uma das formas mais eficientes para resistir diante das
adversidades, destacamos que somente a participação junto aos movimentos sociais campesinos
pode auxiliar nesta luta para reconhecimento do direito dos povos do campo. Assim, destacamos
a relevância do debate, reflexão para fortalecer a reivindicação, para que a reforma agrária seja de
fato concretizada. Com isso, trazemos como referência o Movimento dos Trabalhadores Sem
Terra - MST.

MST na relação com acesso à Terra: os bens da natureza, modos de produção,


organização camponesa e o panorama da reforma agrária no Brasil

Contudo, é impossível debater sobre Reforma Agrária e não mencionar os movimentos


sociais campesinos, um dos quais destacamos o MST (Movimento dos Trabalhadores Sem
Terra), que iniciou na região Sul, ainda durante o período da ditadura militar no Brasil, onde
as desigualdades e opressões sociais se aprofundaram, marcado pela deposição de João Goulart
da presidência e a invasão dos militares. Concentrando as decisões políticas ao militarismo
autoritário, que resultou em censura à imprensa, violência, perseguição e ameaça à oposição
e muitas mortes. Foi um período em que se agravaram as injustiças e exclusões sociais, pois
a ditadura implantou um modelo agrário mais concentrador, o que acarretou a exclusão do
trabalho dos pequenos agricultores, impulsionando ainda mais o êxodo rural e a utilização de
agrotóxicos na produção dos alimentos. Este processo é chamado de modernização conservadora
da agricultura (CARTER, 2010).
No livro Combatendo a Desigualdade Social de Miguel Carter (2010), são abordadas
as mobilizações promovidas pelo MST ao longo dos anos, a começar pela década de 1950 na
região Nordeste do Brasil, onde os grupos se juntavam para reivindicar o acesso e o direito à terra
e para explicitar oposição às decisões políticas tomadas na época. O MST nasce da necessidade
de oposição política e pela democratização das terras e liberdade de produção. Os direitos
que foram freados durante o regime militar impulsionaram os grupos sociais a se juntarem e
unificarem, assim, originaram o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra, no ano de 1984, no
estado do Paraná, durante o Encontro Nacional dos Trabalhadores Sem Terra.
Desde então, se empenham na luta por acesso e direito à terra e a condições dignas de
trabalho, de estudos, e é através das mobilizações e ocupações que esta luta social é funcionalizada.
É por meio da política dos assentamentos e acampamentos que o MST se posiciona contra a
política latifundiária. A bandeira vermelha reflete o brilho do suor que é referente à jornada de
luta e resistência, ficando claro como esse movimento tem sua importância para proposição de
uma nova sociedade.

172
O MST não é só um fenômeno rural. Assomando por trás das suas marchas
disciplinadas e o brilho das suas bandeiras vermelhas, há um fantasma que
desafia as desigualdades seculares do Brasil. Apesar de muitos exageros,
os temores provocados pelo Movimento não são infundados. O MST
subverte percepções, normas e costumes tradicionais. Ele perturba a ordem
natural das coisas”. Ele expõe, dá voz a, e canaliza as tensões subjacentes
na sociedade brasileira. Alguns consideram essa agitação um anátema
nacional. Outros simpatizam com seu impulso de ruptura com a ordem
existente. Entre os últimos, muitos veem no Movimento um poderoso
símbolo e uma fonte de inspiração na luta por concretizar a promessa da
igualdade de direitos e a plenitude da cidadania, (CARTER, p. 37)

Com isso, o papel do MST é fundamental para manter de pé a luta pela Reforma Agrária
Popular, optando por utilizar estratégias que preservem a natureza e os que utilizam dela,
de forma consciente e agroecológica, de forma a questionar o uso e a promoção de políticas
públicas para a garantia da qualidade de vida e permanência no território, como um direito.
“Uma sociedade livre, justa e igualitária” (MST) é o que faz o MST ter um caráter político
de busca por transparência dos setores governamentais, soluções de transformação social para
as populações; O MST estabelece seus acampamentos em terras irregulares - que não estão
cumprindo sua função social41 (de retorno à sociedade; não há produção; está parada e sem
uso;). Assim, ele pressiona o governo e reivindica o direito à moradia como uma das estratégias
iniciais de promoção da igualdade de direito.

A gênese desses movimentos perpassa necessariamente pela transformação


da sociedade, e foi justamente a partir deste elemento que foi gestada uma
cultura política e organizativa entre as famílias sem-terra que amadureceu
na concepção de reforma agrária popular (MST,2021).

Uma ocupação pode durar anos, e um acampamento só se torna assentamento quando


as famílias acampadas ganham o direito à terra pelo governo, e isso pode levar muito tempo,
geralmente, leva anos. Quando as famílias se instalam em um terreno, elas começam a plantar
e a produzir alimentos, de onde vem o sustento da família e o retorno financeiro - Segundo o
site Politize (agosto de 2022), atualmente, o MST organiza-se em 24 estados por todo Brasil,
sendo composto por mais de 350 mil famílias, possuindo mais de 2 mil escolas públicas em
seus acampamentos. E tendo destaque na produção de arroz orgânico, em matéria publicada
no site do MST (Março de 2022), em que destaca o movimento como responsável pela maior
produção de arroz orgânico da América Latina e, de acordo com o Instituto Rio Grandense
do Arroz (Ingra), há 10 anos ocupa essa posição, resultado obtido a partir de todo um esforço
das famílias assentadas e das cooperativas organizadas no estado do Rio grande do Sul. São
referência na produção, o que demonstra como o movimento é de promover ação revolucionária
sem ocasionar prejuízo à natureza ou a saúde de quem produz, pois não fazem uso de quaisquer
venenos na produção.
Desse modo, o MST é um dos movimentos sociais que concentra em seus ideais de
luta por terra, que propõe melhorias sociais e transformação nacional através de uma reforma
agrária popular, em que campo e cidade dialoguem e o direito ao alimento, educação, saúde

41 Art. 186. A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo
critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos: I - aproveitamento racional e adequado;
II - utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; III - observância das
disposições que regulam as relações de trabalho; IV - exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos
trabalhadores.” (Constituição Federal, 1988) https://www.jusbrasil.com.br/topicos/10656942/artigo-186-da-
constituicao-federal-de-1988

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e moradia alcance a todos os cidadãos e cidadãs. Buscando promover a desconcentração do
poder de território, político e econômico. O Movimento dos Sem Terra enfatiza que as relações
com a terra são fundamentais para o desenvolvimento de um país. Pois, quando falamos de
terra, falamos de controle dos bens naturais, econômicos, com implicações sociais e culturais, é
importante a democratização dos direitos para que a reforma agrária popular seja concretizada
( MST, 2021).

(...) a função social da terra representa na própria Constituição brasileira,


em linhas gerais: o aproveitamento racional e adequado da terra; a
utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e a preservação
do meio ambiente; o cumprimento das leis que regulam as relações
trabalhistas; a exploração que favoreça o bem-estar de proprietários(as) e
trabalhadores(as) (MST, 2021).

A representação dos movimentos sociais do campo e principalmente do MST, no senso


comum, sempre esteve muito atrelado a sujeitos que “invadem terras”. No entanto, Caldart
(2001) salienta que a participação ativa e persistente dos seus militantes é uma marca registrada,
e sua identidade está ligada ao sentido histórico e subjetivo de que a terra é primordial para sua
sobrevivência. O Sem Terra é um sujeito social ativo, crítico e capaz de produzir uma reflexão
concreta de sua realidade em que a cultura de resistência, a capacidade de reconhecimento dos
seus direitos, a articulação entre os seus participantes vem sendo seus instrumentos de luta. Um
modo de pensar, um novo sujeito social, plural, ativo e consciente dos processos que impulsionam
a exclusão dos povos do campo.

O fato é que há no Brasil, hoje, um novo sujeito social que participa


ativamente da luta de classes, com sua identidade e seu nome próprio:
Sem Terra. Neste sentido Sem Terra é mais do que sem-terra, exatamente
porque é mais do que uma categoria social de trabalhadores que não têm
terra; é um nome que revela uma identidade, uma herança trazida e que já
pode ser deixada aos seus descendentes, e que tem a ver com uma memória
histórica, e uma cultura de luta e de contestação social (CALDART, 2001
p.211).

Percebendo-se como projeto de resistência, o MST se caracteriza pela vivência coletiva


e compartilhada em conscientizar em formação os participantes, de forma a compreender o
seu questionamento principal: a Reforma Agrária; sua bandeira de luta que se amplia para
necessidades urgentes a partir de cada contexto em que se insere. As relações são pontos chave
na formação protagonista dos militantes, no seguinte trecho de Caldart (2001), elucida-se esse
princípio.

Os sem-terra do MST estão sendo sujeitos de um movimento que acaba


pondo em questão o modo de ser da sociedade capitalista atual e a cultura
produzida e consolidada por ela. Fazem isto não porque professem idéias
revolucionárias,nem porque este seja o conteúdo de cada uma de suas
ações tomadas em si mesmas. Contestam a ordem social pelo conjunto
(contraditório) do que fazem nas ocupações, nos acampamentos, nos
assentamentos, nas marchas, na educação de suas crianças, jovens e
adultos; pelo jeito de ser de sua coletividade, que projeta valores que não
são os mesmos cultivados pelo formato da sociedade atual; fazem isto,
sobretudo, pelo processo de humanização que representam, e pelos novos
sujeitos que põem em cena na história do país.(Caldart, 2001 p. 210)

Esse princípio emancipador que Caldart (2001) nos apresenta, demonstra como o MST
tem como norte indagar o modelo de produção capitalista, que aprofunda as desigualdades,

174
através das formas de controle, contribuindo para barbárie. É um movimento que entende que
quanto mais pessoas têm seu senso crítico abalado pela miséria, pela desigualdade e pelas falsas
promessas, a sua capacidade coletiva se fragiliza e os valores que devem ser reproduzidos no dia
a dia se findam. Por isso é muito importante estar articulado em rede, para que não se desvie do
caminho, e ter bem claro o objetivo ao estar inserido no Movimento dos Sem Terra.
O MST é um dos movimentos sociais que concentra em seus ideais de luta pela terra
melhorias sociais e transformação nacional, através de uma reforma agrária que alcance todos
os cidadãos e cidadãs. Buscando promover o desenvolvimento de uma relação coerente com a
terra é fundamental falarmos sobre o controle dos bens naturais, econômicos e suas implicações
socioculturais. Reforma Agrária Popular é uma urgência para o Brasil, baseado em experiências
de diversas organizações de trabalhadores a nível internacional, conforme identificamos na
Cartilha do Programa Agrário do MST (2013).
A construção da Reforma Agrária Popular só pode ser conquistada por
um amplo leque de forças populares representadas pelo conjunto dos
trabalhadores do campo e da cidade. E assume também uma perspectiva
necessariamente internacionalista porque a luta dos trabalhadores contra
a ordem do capital é internacional no atual estágio de hegemonia do
capital financeiro e das empresas transnacionais que atuam em todo
mundo. O modelo de agricultura popular e camponesa tem sido também
a construção a partir das experiências dos trabalhadores de muitos países,
culturas, organizações e lutas (MST, 2013, p.34).

Na Cartilha do Programa Agrário do MST, percebemos que se inspirar em outras
experiências e movimentos é uma forma de fortalecer suas discussões para ampliar o projeto
de Reforma Agrária Popular, de forma em que compreende que o modelo econômico imposto
pelo capital internacional é o fator principal que perpetua a injusta distribuição de terra.
O seguinte trecho de Caldart (2001) elucida como o projeto de resistência do MST se
caracteriza por uma vivência coletiva e compartilha o seu questionamento principal sobre a
Reforma Agrária, mostrando que sua bandeira de luta se amplia para necessidades urgentes
que estão atreladas à sua luta. Dessa forma, percebe-se o quanto as relações são pontos-chave na
formação protagonista dos militantes.
Os sem-terra do MST estão sendo sujeitos de um movimento que acaba
pondo em questão o modo de ser da sociedade capitalista atual e a cultura
produzida e consolidada por ela. Fazem isto não porque professam ideias
revolucionárias, nem porque este seja o conteúdo de cada uma de suas
ações tomadas em si mesmas. Contestam a ordem social pelo conjunto
(contraditório) do que fazem nas ocupações, nos acampamentos, nos
assentamentos, nas marchas, na educação de suas crianças, jovens e
adultos; pelo jeito de ser de sua coletividade, que projeta valores que não
são os mesmos cultivados pelo formato da sociedade atual; fazem isto,
sobretudo, pelo processo de humanização que representam, e pelos novos
sujeitos que põem em cena na história do país (Caldart, 2001 p. 210).
Sendo um dos movimentos que mais contribuem para o questionamento sobre o modelo
de sociedade vigente, suas ações são baseadas na valorização do sujeito em coletividade fazendo
dos espaços por eles ocupados lugares de formação, onde a educação é a base primordial para
enaltecer e vivenciar os valores e princípios que não estão presentes numa sociedade que possui
um formato de disputa (CALDART, 2001).
Conscientizando-se que há uma imposição de um novo direito positivo no sentido da
necessidade de estar escrito na lei, que se modifica para atender os interesses escusos e não
atende às famílias que precisam , dificultando a posse e contribuindo com processos de grilagem
e licenciamento para empresas. Contribuindo para que muitas famílias acabem por vender
suas propriedades e solicitar recursos; na maioria dos casos empréstimos que saem do seu
orçamento com o objetivo de permanência na terra. Sem condições de sustentarem a situação,

175
acabam obtendo muitas dívidas. Por não ter ajuda necessária de projetos voltados à garantia
de permanência na terra e se veem obrigados à trabalhar nas terras que passaram a ser de um
“outro proprietário” explorando cada vez mais a mão de obra do trabalhador, que agora tem
que trabalhar nas terras alheias para se sustentar e sobreviver (FASE,2022); Segundo a pesquisa
realizada, o que acontece é que muitas leis não apoiam as famílias regulamentadas “não podem
participar de programas de apoio a terra ( de auxílio a terra) pelo governo caso seja decretada
sua posse de terra, porém isso inviabiliza a sua permanência; porque o que faz sua permanência
na terra é o que é feita dela. (FASE, 2022, p.4). Visto isso:
O caso brasileiro é um exemplo do uso da Constituição como instrumento
dos conflitos distributivos. Por um lado, as demandas por redistribuição
foram acolhidas no texto constitucional sob a forma de uma abrangente
regulação dos direitos sociais e das políticas que lhe correspondem, o que
conferiu ao Poder Público diversas competências e vários instrumentos
para atuar nesse campo. Por outro lado, as elites econômicas também
conquistaram vitórias na Constituinte, aprovando normas que protegem
seus interesses ao impor limites às ações do Estado na ordem econômica e
tributária (Maués, 2022, p.197-198.).
Assim, segundo o levantamento citado pela pesquisa, o processo de posse não se faz
pelo estudo da produção da terra, dificulta saber se é um agricultor familiar, pequeno, grande
proprietário ou agronegócio. Não veem os sujeitos, ou seja, acaba-se empurrando a terra para
quem já tem condição de se “auto manter”, pois quem tem condição de se manter na terra
continua produzindo. Por exemplo, trabalhadores que necessitam extrair matéria-prima em
locais de RESEX (Reservas extrativistas)42, acabam disputando espaço com terras particulares,
o que em geral no processo de regulamentação dá direito aos proprietários de usarem parte das
terras como área pública e este meio termo de espaço público e privado acarretam conflitos. Por
isso, enfatiza-se a importância de regulamentar as terras e garantir permanência.
Conforme a memória versada, entre os inúmeros efeitos produzidos
pela legislação das sesmarias, destaca-se, o fato de que, haviam um
grande número de famílias pobres, perambulando, sem rumo certo, sem
casa, sem um pedaço de terra para se estabelecer, enquanto inúmeros
monopolizadores de terras, possuíam até 20 léguas de terreno, e raramente
algum deles cediam um espaço para que tais famílias pudessem transformar
em moradia fixa. Sendo assim, quando algum possuidor de larga escala
de terra concedia a permissão para que famílias sem posses pudessem se
estabelecer em sua área, era por um tempo curto, ou seja, temporário,
quase nunca permanente. (Marques. e col. ; pp.3; 7)

A atual estrutura fundiária tem grande correlação com a história da terra no Brasil. São
infindas as evidências da colonização, e as marcas desse período ainda influenciam grandemente
na nossa estrutura social e econômica. Impulsionando um questionamento: Terra pra quem?
Outro exemplo quanto às dificuldades de regulamentação das terras para uso coletivo, ou seja,
conseguir uma assinatura de todos os moradores da comunidade e dar direitos iguais sobre o
uso das terras; as superficialidades nas etapas do licenciamento na parte do EIA/Rima - Estudo
de Impacto Ambiental e Relatório de Impacto Ambiental, Lei estadual nº 1.356/1988 (INEA),
42 “A área das RESEX pertence ao domínio do poder público, com uso concedido às populações extrativistas
tradicionais. As áreas particulares incluídas em seus limites devem ser desapropriadas, de acordo com o que dispõe
a lei. A visitação pública é permitida, desde que compatível com os interesses locais e com o disposto no plano de
manejo da unidade, assim como a pesquisa científica, que é permitida e incentivada, desde que autorizada pelo órgão
ambiental responsável (...) introduzidas pela Lei 9.985/00, que criou o Sistema Nacional de Unidades de Conservação
da Natureza (SNUC), por sua vez regulado pelo Decreto no 4.340/02.”.(ISA - Instituto Socioambiental) visto em
setembro de 2022.
https://uc.socioambiental.org/pt-br/noticia/153468#:~:text=As%20Reservas%20Extrativistas%20(RESEX)%20
s%C3%A3o,dos%20recursos%20naturais%20da%20%C3%A1rea.

176
são totalmente um compressor sob os espaços, desrespeitando a diversidade e especificidades das
famílias. Retirando o direito das famílias sobre a terra; ou seja, se tratando do direito à terra, de
forma legal, sua integridade no sentido sustentável, natural, qualidade de vida e sua promoção, é
necessário também repensar sobre como os licenciamentos estão sendo feitos e como impactam
na posse de terras das famílias pelo interesse econômico.
A princípio, a autonomia para os agricultores e agricultoras possibilita gerar uma
autocirculação e condição externa tanto de produção em diversidade, quanto na forma
econômica, de qualidade. Esse processo revela o trabalho do MST de ocupar terras consideradas
improdutivas para tornar produtivas em prol da sociedade, se organizando e tendo como base
a legislação para que se tenha o laudo da terra para o assentamento das famílias. Segundo o
programa de Reforma Agrária desenvolvido pelo MST, não podemos construir uma sociedade
livre; justa e igualitária sem dar atenção aos seguintes 7 (Sete) fatores: A terra; a natureza;
Sementes; Produção; energia; educação e cultura; Direitos Sociais; (MST,2021)

Educação do Campo: uma conquista dos povos do campo, das águas e florestas

Entretanto, falar de Reforma Agrária também é falar de educação. Enfoque da Licenciatura


em Educação do Campo, que é um curso de graduação de docentes presente em 43 instituições
Federais espalhadas pelo Brasil (PET, 2022, p.34). Sua metodologia pedagógica diferenciada
está diretamente presente na transformação social. A educação do campo é o resultado da luta
incisiva dos Movimentos Sociais junto aos designados povos do campo (agricultores familiares;
camponeses; comunidades tradicionais; indígenas; caiçaras; quilombolas;) que queriam
a efetivação das leis; o acesso a educação do campo; oportunidade de alcançarem e estarem
também em outros espaços sociais, assim como decidirem e condições de se manterem e querer
estar no Campo sem que tivesse que haver um “êxodo rural” para tal melhoria. A Licenciatura
em Educação do Campo busca promover o acesso ao ensino superior aos povos campesinos.
Ou seja, modificar a visão sobre o estereótipo do sujeito e do espaço “campo”; assim como seus
conhecimentos culturais, a serem respeitados e assegurados em lei. Entendendo que o campo
tem sua identidade e ela precisa ser respeitada; entendendo que essa identidade também é plural.
Assim, a educação do campo, como uma ferramenta política e norteadora, conscientiza e
desenvolve o pensamento autônomo, crítico sobre a história do/junto do sujeito e a necessidade
do campo em direcionar-se para estratégias de melhoria, cobrando dos setores governamentais,
políticas públicas que se fazem diretamente presentes na efetivação de uma Reforma Agrária
consciente. O quer dizer,que, ao criar, pensar e questionar sobre formas de mudança, para quem,
quem pode pôr em ação, mobilizamos uma consciência coletiva de mudança. A qual coloca o
sujeito como agente de reconhecer que a mudança de um todo parte da mudança dele como um
ser reflexivo, racional; e que o coletivo fortalece pela dialogicidade; e é pelo diálogo de ideias
que se funda a educação do campo; assim, conseguinte deste mesmo processo, a fundação dos
diversos Movimentos Sociais que vão se construindo pelas demandas necessárias que iam se
apresentando pelos sujeitos e suas visões de mundo sobre um contexto que também se fazia
plural diante diversidade de fatores (culturais; econômicos; crenças; raças; sexo; biomas); sendo
assim, sobre a análise de uma redistribuição de terras na busca por essa reforma agrária que,
como bem vimos, não está ligada apenas a essa redistribuição de terras, mas aos sujeitos e tudo
que rodeia as diversas ações de mudanças e alteração aos estilos de vida e principalmente ao que
atinge a saúde dos indivíduos.
Para compreender as políticas públicas para agricultura, é necessário entender os
referenciais globais e setoriais. Que seriam enxergar o problema, entendê-lo e encontrar
formas de resolvê-lo atendendo a todas as demandas e leis préestabelecidas em direito. Dessa
forma, surge a ideia de mudança com as políticas francesas em 1950/60 para trazer de forma
mais modernizada a agricultura que era realizada para alimentar a produção e reduzir gastos.

177
Isso levava a reduzir o número de trabalhadores, agricultores de uma forma mais eficiente.
Consequentemente, aumenta o tamanho das propriedades rurais e sua forma de dar conta de
todo o espaço (GRISA, 2018; pp.36-47).
Assim, estas referências formam em conjunto um diálogo de mudança nas formas de
ação. Menor choque internacional econômico, força o Estado desempenhar sua função social,
econômica, (...). Alguns programas como: Programa Nacional de Fortalecimento da agricultura
Familiar (PRONAF); PROGRAMA LINHA MAIS ALIMENTOS, 2008, Confederação
Nacional da Agricultura (CNA), Ministério do Desenvolvimento Agrário (SEAD), Assessoria
Técnica, Social e Ambiental à Reforma Agrária (ATES); Programa de Assistência Técnica e
Extensão Rural (ATER); Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (PRONERA)43.
Programa Nacional de Habitação Rural (PNHR); ação de redução da pobreza rural; promoção
da cidadania; oportunidade de financiamento à organização da agricultura familiar; manutenção
do recurso para se produzir; são algumas movimentações de transformação pela criação de
políticas públicas em ação por estes programas (GRISA, 2018; pp.36-47).
Outro exemplo disso, podemos falar sobre a Jornada Universitária deste ano de 2022,
que tem o objetivo de discutir o projeto de Reforma Agrária Popular ( JURA), que ocorreu
no dia 24 de março deste ano e propôs em um ato democrático ampliar os debates acerca desta
temática, assim como, o acesso às universidades (MST, JURA; 2022).
Dessa forma, a crítica histórica às ações do grande capital desenvolvimentista afeta
diretamente não só os fatores ambientais de preservação em sua implementação, como a proteção
das terras, do território ancestral de famílias originárias e produtoras; o que nos mostra que
no decorrer da história, dos contextos ocorridos, como extraídos no artigo como um recorte
histórico desde a época colonial, é notório que esses conflitos agrários e ambientais ainda
prossigam mesmo depois de imposições legais trazidas em Constituição Federativa. Na qual,
por uma educação conscientizadora junto aos movimentos sociais, além de fortificar afirmando
que são lutas que andam de mãos dadas, não entre elas apenas, mas com a sociedade em um
todo, tanto no território nacional ou internacional, como é o caso das ações realizadas pelo
MST que também está presente em outros países, afirmar que: “Não há fronteiras, geográficas
ou étnicas, que venham a limitar as lutas contra a exploração do ser humano pelo ser humano”,
por conseguinte refletimos: A terra não vive sem a preservação; não há preservação sem os povos
originários, sujeitos; os sujeitos não vivem sem um lugar de identificação e no qual consigam
sobreviver; sobreviver requer qualidade de vida. E é por onde caminha a luta também pela
Reforma Agrária.

Conclusão

A proposta de reflexão sobre Educação do Campo e Reforma Agrária Popular é um tema


eminente e urgente quando se trata da realidade do Brasil, onde percebemos a complexidade
de um assunto que precisa ser difundido. Para que se tenha clareza da proposta, é necessário
difundir que Reforma Agrária Popular vai além de uma redistribuição de terras, mas se trata
de uma política pública em que o direito à terra proporciona direitos básicos garantidos por lei
em que destacamos como primordiais: terra, habitação, saúde e educação. Entendemos estes
direitos como direitos fundamentais para a efetivação de uma vida digna em sociedade.
Contudo, compreendemos que esses direitos só podem ser conquistados e efetivados se
houver uma consciência coletiva dos sujeitos do campo. A Educação do Campo, por sua vez,
tem papel primordial para a trajetória dessa luta, é uma ferramenta de transformação social,
pois sua pedagogia contribui para o desenvolvimento do pensamento crítico, influenciando
incisivamente a mobilização social em prol da luta por direitos. Ela preza, em sua metodologia,

43 Este projeto possibilitou que houvesse a criação nos Institutos Federais o projeto de educação do
campo; foi o estopim do que hoje conhecemos como Licenciatura em Educação do Campo;

178
o princípio emancipador e a valorização da cultura, experiências e práticas vividas.
Em suma, podemos afirmar que a Reforma Agrária ainda não foi efetivada por um
todo, ainda está lutando para se concretizar, mesmo diante de um cenário desanimador
da compulsoriedade do produzir além do que precisamos, sem qualidade; dos cortes aos
orçamentos públicos para educação; por uma tendência a encaminhar que os indivíduos não
pensem além da individualidade; por lógica de mercado; não se deixar levar pela ilusão de que
todo desenvolvimento gera retorno para a sociedade, em especial, as comunidades no entorno.
Exemplo disso, foi o Estatuto da terra lei nº 4504 de 30 de novembro de 1964; objetivo dos
militares de frear as reivindicações populares, deslocando o foco do conflito migrando da
sociedade para o próprio Estado; Projeto grande Carajás (1964) com o objetivo de incentivar
a chegada de novas empresas mineradoras e ainda se faz presente como fator acelerador dos
problemas ambientais;
É necessário e urgente que seja repensado como é cobrado o pertencimento a terra e quais
são os grupos que realmente necessitam a sua permanência, também além do direito como
estratégia de preservação; um real exercício de democracia; pensar em estratégias que levem
uma assistência ao campo, uma infraestrutura que preserve as culturas; estabeleça não apenas
recursos financeiros; mas boas condições de trabalho; minimizar e transcender os danos causados
pela dicotomia de uma linha abissal estabelecida pelos os mais ricos sob os mais desfavorecidos,
isso causa a reflexão a partir dos trabalhadores assalariados que estão em constante disputa por
sobrevivência que mal tem tempo de discutir melhorias, por isso ela tem que ser lutada e debatida
para despertar a consciência crítica e pôr em ação conjunta aqueles que lutam pelo seus próprios
interesses. É um cenário que muda, porém, que continua a ser repetido.
A trajetória de concentração da riqueza produz o esvaziamento das
condições materiais de sobrevivência para uma fração expressiva da
sociedade. Dessa maneira, recai sobre o Estado a urgência de ofertar
serviços essenciais ou mesmo transferir renda em estágios mais críticos,
a exemplo da incapacidade do próprio sustento por idade avançada,
incapacidade física ou desemprego involuntário por período muito longo
(Pochmann; e col 2020; p.7).

Pelo qual a educação do campo, como uma nova metodologia, valoriza a relação Homem
X Natureza que estabelece o “bem viver” e que, junto com a agroecologia também como uma
nova forma de fazer consciência, vai contra as formas de produção do agronegócio; estabelece
que diferentes grupos sociais e de diferentes classes sociais consigam viver em equilíbrio. Pois
é através da Educação que os direitos e reivindicações são elucidados e a qual leva o sujeito a
reconhecer a importância do posicionamento político e sua participação nas lutas sociais.

179
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da-america-latina/ visto em setembro de 2022 ;
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https://mst.org.br/2022/03/23/jornada-universitaria-deste-ano-discute-projeto-de-reforma-
agraria-popular-para-o-pais/

181
CAPÍTULO 13 - INTERFACES ENTRE EDUCAÇÃO DO CAMPO, EDUCAÇÃO
QUILOMBOLA E SABERES DOS POVOS TRADICIONAIS

Guilherme Goretti Rodrigues44

Dileno Dustan Lucas de Souza45

Beatriz Souza Barral46

Resumo

Em seus escritos políticos, o marxista italiano Gramsci (1976, p.121) diz que “a indiferença é o
peso morto da história” e complementa: “vivo, tomo partido”. Essa formulação atualiza-se no
presente e convida-nos para a mobilização, organização e luta da classe trabalhadora frente a um
capitalismo que historicamente é destrutivo na sua gênese, condenando milhões de pessoas ao
pauperismo, assim como aniquilando a biodiversidade pela incessante acumulação do capital.
Para os que permanecem indiferentes, que “deem licença do caminho”.

Introdução

“Quem tá cansado dê licença do caminho

Quem acredita dê as mãos e vamos embora

Pois quem tropeça no primeiro desatino

É pouca força na construção dessa história

Não adianta inventar outros caminhos

Porque jamais vão conseguir nos convencer

Capitalismo nunca foi de quem trabalha

Nossos direitos só a luta faz valer”

(Zé Pinto – Só a luta faz valer)


A realidade enfrentada pelos povos e comunidades tradicionais no Brasil nunca foi


facilitada pelo capital. E, por isso, assim como Gramsci (1976), tomamos partido na trincheira
da nossa classe em defesa dos indígenas, camponeses e quilombolas. Nesse sentido, nos cabe
uma breve advertência e contextualização histórica acerca das particularidades do capitalismo
brasileiro, que para Fernandes (1976) é dependente e autocrático. Diferente das revoluções
clássicas burguesas, em que se rompe com uma ordem social, política e econômica anterior (a
via radical-jacobina), o Brasil vivencia uma revolução passiva, em que se conserva os elementos
de uma ordem anterior. Gramsci (2002, p. 210) assim sintetiza a revolução passiva: “países que
modernizaram o Estado através de uma série de reformas ou de guerras nacionais, sem passar
pela revolução política de tipo radical-jacobina”. E, nesse processo, expurga qualquer tentativa
44 Doutor em Educação pela UFRRJ. Professor de Geografia. E-mail: guilhermegoretti.geografia@gmail.com
45 Doutor em Educação pela UFRGS. Professor Titular da UFJF. E-mail: dilenodustand@gmail.com
46 Doutoranda em Educação pela UFRJ. Professora de sociologia. E-mail: bsbarral@gmail.com

182
de inclusão e participação popular.
Nesse sentido, ao menos duas particularidades emergem para pensarmos o capitalismo
brasileiro: uma burguesia que combina o atrasado e o moderno, o velho e o novo, com elementos
autocráticos, mandonistas, patriarcais e escravocratas; ao passo que um substrato econômico
dependente, que se vale da ampliação e intensificação da exploração e expropriação da classe
trabalhadora, rebaixando suas condições objetivas de vida. Parafraseando Oliveira (2018, p.
32), trata-se do “truncamento brasileiro” e, da combinação de suas particularidades, o que há de
mais incivilizado e brutal. E a história brasileira atesta essa afirmação: uma burguesia que se vale
de golpes de Estado, ditadura, coerção e violência para manter seus interesses de classe. A atual
conjuntura, aberta pelo golpe político-parlamentar no ano de 2015, que vai da perversidade do
discurso da extrema-direita fascista ao desmonte dos direitos da classe trabalhadora, é reflexo
dessa estrutura político-econômica autocrática.
O truncamento brasileiro também expõe uma questão agrária dramática. Em junho
de 2022, ficamos estarrecidos com o assassinato de Bruno Pereira e Dom Phillips na Terra
Indígena do Vale do Javari (AM), que sofre com a ação de garimpeiros, madeireiros, grileiros e
narcotraficantes, aprofundada pelo desmonte de importantes órgãos de controle e fiscalização
nos governos Temer (2016 a 2019) e Bolsonaro (2019 a 2023). E esse caso conecta-se com
a perversa estatística levantada pela Comissão Pastoral da Terra: no ano de 2021, ao menos
35 casos de assassinatos foram registrados no Brasil, representando um aumento de 75% se
comparado a 202047.
Apesar de sua complexidade – que não se esgota neste trabalho – as raízes da estrutura
agrária brasileira sintetizam-se em três períodos históricos distintos: a política de Sesmarias; a
Lei de Terras de 1850 e o Estatuto da Terra de 196448. Mas, o que elas tiveram em comum? A
consolidação do latifúndio, por meio da propriedade capitalista da terra; a expropriação dos
camponeses e a dificuldade do acesso à terra; a ampliação e reprodução da acumulação capitalista,
ratificando uma economia agrário-exportadora de commodities49, favorecendo a mineração, o
agronegócio e a agropecuária. Com isso, empurra-se a fronteira agrícola a um desmatamento
desenfreado, destruindo a biodiversidade, ameaçando povos e comunidades tradicionais e
colocando em risco a saúde humana, por meio do uso irrestrito de fertilizantes e agrotóxicos.
Ainda há um componente indissociável: tratar a terra como uma questão militar, por meio da
repressão e violência direta a qualquer organização popular que defenda a Reforma Agrária ou
os direitos de povos e comunidades tradicionais.
Desse modo, retornamos à epígrafe para reafirmar que “não adianta inventar outros
caminhos, porque jamais vão conseguir nos convencer” que o modo de produção capitalista
possa assegurar a vida em geral. E essa assertiva ganha contornos ainda mais radicais frente
a especificidade brasileira. Assim, torna-se candente traçarmos caminhos de mobilização,
organização e luta na construção de um novo projeto de sociedade e de produção da nossa
existência, verdadeiramente popular e democrático. Sem dúvida, os povos do campo, da floresta
e das águas têm nos indicado esses caminhos, por meio de suas experiências políticas e educativas.
Portanto, o objetivo deste trabalho está em articular os saberes dos povos tradicionais e a ação
dos movimentos sociais populares na luta pela Educação do Campo e Educação Quilombola,
duas importantes modalidades da educação básica que, embora se consolide como política
educacional, apresenta inúmeros desafios para a sua plena consolidação. Trata-se tanto da defesa
das escolas nos territórios quilombolas, em áreas rurais ou de assentamento, quanto em uma
47 Ver em: <https://cptnacional.org.br/publicacoes-2/destaque-2/destaque/6073-nota-publica-no-feriado-de-
corpus-christi-a-amazonia-e-o-brasil-em-luto>. Acesso em: 04/07/2022
48 Há uma ampla literatura sobre a questão agrária brasileira. Contudo, tomamos como referência as obras de
Martins (1985, 2010), Mendonça e Stédile (2010), Panini (1990) e Palmeira (1989). Optamos por colocar tais obras
nas referências bibliográficas.
49 Mercadoria de origem agropecuária ou de extração mineral em estado bruto ou pouco industrializada
destinada exclusivamente ao mercado externo. Seus preços são negociados em dólar e determinados pela procura
internacional.

183
educação que traduza os saberes, fazeres e princípios éticos, políticos, filosóficos, culturais e
educativos das comunidades. Com isso, pretendemos traçar um breve panorama, balanço
histórico e perspectivas da Educação do Campo e Educação Quilombola, sem nos furtar da sua
fundamental importância para a luta da classe trabalhadora no Brasil.

Quem acredita dê as mãos e vamos embora: os saberes dos povos tradicionais e o


levante dos movimentos sociais populares

De antemão, façamos uma breve retomada acerca das formidáveis formulações de Marx
(2017) quanto a uma categoria central: o trabalho. Marx (2017, p. 255) afirma que “o trabalho
é, antes de tudo, um processo entre o homem e a natureza, processo este em que o homem, por
sua própria ação, medeia, regula e controla seu metabolismo com a natureza”, ou seja, é por meio
do trabalho que o homem se humaniza, produz a sua existência, constrói suas sociabilidades e
se constitui como ser social dotado de uma consciência. Contudo, esse processo não é estático,
afinal, “agindo sobre a natureza externa e modificando-a por meio desse movimento, ele
modifica, ao mesmo tempo, sua própria natureza” (MARX, 2017, p. 255). A relação homem-
natureza é repleta de mediações com a realidade concreta, cuja transformação coloca-se em um
infindável caráter processual e dialético.
Isso nos ajuda a entender que o modo de produção capitalista é um processo historicamente
constituído, isto é, não é fruto de um fatalismo teleológico, fadado a ser expressão máxima do que
a humanidade pode alcançar. Pelo contrário, os interesses de uma classe (a burguesia) tornam-
se universais e dominantes por meio do processo de fetiche e alienação (munida de coerção e
consenso), tais como: a separação do trabalhador dos seus meios de produção, o surgimento
de duas classes fundamentais (trabalhadores e burguesia), a divisão entre trabalho manual e
intelectual, a divisão social e territorial do trabalho por meio da exploração, expropriação e
acumulação do capital pela mais-valia. No profícuo diálogo com István Mészáros, Antunes
(2009, p. 24) formula isto como o metabolismo social do capital, que tem por núcleo o “tripé
capital, trabalho e Estado”.
Por isso, defender e dizer sobre os saberes dos povos e comunidades tradicionais é tão
ameaçador para o capitalismo, pois partem justamente de outras relações e formas de metabolismo
ou transformação social. Camponeses, indígenas e quilombolas constroem suas existências por
meio da relação umbilical com a natureza e a terra, espaço de produção da vida, da partilha, da
solidariedade e do trabalho coletivo. Em sua contribuição, Brandão (2004, p. 129) fala do ethos,
isto é, “um modo de ser que se traduz numa ética de reciprocidade entre pessoas e a natureza,
pessoas que são do mesmo ciclo do cosmo e essas pessoas e o mundo “dos outros”.
Nesse sentido, os saberes são produzidos pelo trabalho humano, encontrando aí as suas
dimensões objetivas e subjetivas, cuja base é a relação entre homem-natureza e entre os próprios
homens Por meio de suas experiências, os povos tradicionais nos contam sobre distintos modos
e possibilidades de viver, estar e sentir o mundo e com o mundo. São saberes e ethos que os
povos originários, de existência e resistência milenar no continente latino-americano; os povos
africanos, de múltiplas origens desde África que, na condição de escravizados, encontram no
quilombo o espaço de vida e luta; e camponeses, de conjunto tão diversificado (pescadores,
ribeirinhos, caiçaras, assentados, acampados, agricultores familiares, entre outros), trouxeram
de contributo para o processo civilizatório brasileiro.
Entretanto, tais saberes não só foram violentados historicamente nos aspectos subjetivos,
por meio do silenciamento e opressão de suas expressões educativas, culturais, artísticas e religiosas
– ou, quando lembradas, munidas de preconceitos e estereótipos –, como tiveram seus modos
de viver e produzir expropriados pelo avanço brutal do capitalismo no campo. Porém, frente
aos conflitos a que foram expostos, teceram caminhos de resistência, organização e mobilização
popular. Não aceitaram a injustiça, a violência, a morte de tantos/as companheiros/as e a perda

184
da terra enquanto sinônimo de vida. Como afirma Thompson (1981, p. 16), a experiência entra
sem ser anunciada, “surge espontaneamente no ser social, mas não surge sem pensamento. Surge
porque homens e mulheres (e não apenas filósofos) são racionais e refletem sobre o que acontece
a eles e ao seu mundo”. A resposta histórica dos povos e comunidades tradicionais têm sido os
movimentos sociais populares, que se colocam em um constante fazer-se político e educativo.
Utiliza-se de “populares” porque são movimentos organizados pela classe trabalhadora, homens
e mulheres que, como bem aponta Ribeiro (1999, p. 130), são empurrados pelo capitalismo “à
não-terra, ao não-teto, à não-instrução, à não-especialização, à não-saúde, à não-habitação, ao
não-trabalho, à não-vida”. Como tal, enfrentam as condições mais paupérrimas, miseráveis e
agonizantes de vida.
Não é de nosso objetivo traçar um panorama histórico dos movimentos sociais populares,
mas cumpre citar as experiências de luta contra o capital acumuladas por vários movimentos,
tais como o próprio MST, expressão orgânica, no sentido gramsciano, do alcance da ação e
organização popular – o que não anula as possibilidades e potencialidades dos movimentos
que atuam em caráter regional, a exemplo da própria Coordenação Nacional de Articulação
das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ), que se desdobra nas coordenações
estaduais, atuando diante das especificidades políticas, econômicas, sociais e culturais de
cada região e comunidade quilombola. De todo modo, são experiências fundamentais que
se desdobram nas reivindicações por terra, trabalho e educação, portadora das energias mais
radicais para a construção de um novo projeto de sociedade. Para Ribeiro (2013),

A dimensão educativa, formadora das classes populares, pode ser


captada no processo histórico de organização dos movimentos sociais
populares. Entendemos que as formas através das quais os trabalhadores
e trabalhadoras se organizam, dando origem aos movimentos sociais
populares, enquanto sujeitos políticos coletivos de transformação social e
de educação popular, conferem conteúdo a essa realidade histórica e social
(RIBEIRO, 2013, p. 46).

Assim, a Educação do Campo e a Educação Quilombola nascem da dimensão educativa


em que passam os movimentos sociais populares, sendo sempre relacional e processual, ou seja,
não brota instantaneamente, mas é resultado do próprio fazer-se das classes populares ao longo
do processo histórico-social. Se a terra e o território são elementos viscerais, enquanto “matrizes
formadoras dos seres humanos na totalidade de sua condição biológica, corpórea, cultura,
identitária” (ARROYO, 2014, p. 209), a luta por escola e educação tem aberto uma importante
trincheira de mobilização e resistência para os povos e comunidades tradicionais.
Para Arroyo (2014), camponeses, indígenas e quilombolas sempre foram destinatários das
pedagogias hegemônicas, isto é, tiveram seus saberes silenciados, invisibilizados e estereotipados.
Por exemplo, como não lembrar do personagem “Jeca Tatu”50, criado por Monteiro Lobato, que
difundiu na sociedade brasileira o imaginário do sujeito camponês como atrasado, preguiçoso
e sem a cultura “modernizante” da urbanização e industrialização? Imaginário esse que ainda
se faz presente nas escolas, recheada de uma visão folclórica e romantizada do campo. Como
não lembrar das políticas educacionais, tais como o MOBRAL, encampada durante a ditadura
empresarial-militar que, ao pretender ser um grande movimento de alfabetização, fracassa por
desconsiderar os sujeitos e os seus saberes? A mesma realidade se verifica para quilombolas e
indígenas. O quilombo, visto como lugar perigoso para a sociedade é tratado como algo do
passado, negando a sua existência étnica no presente. Ainda nas escolas os intelectuais negros são
silenciados pela literatura branca e europeia – isso sem contar a violência com que é abordada as
suas expressões religiosas e culturais, tais como o congado, o jongo, a umbanda ou o candomblé,
tidas como profanações. Por sua vez, os povos originários, além de todo o saque histórico de suas
terras pelos colonizadores, são taxados por um viés homogeneizante e de atraso. O estigma da
50 Uma importante discussão a esse respeito aparece em Daltrozo Ilha (2018).

185
“nação brasileira” jamais se assumiu pelo seu caráter pluriétnico, cultural e linguístico.
Nesse sentido, os movimentos sociais populares vão exigindo o recontar dessa história
(ARROYO, 2014). Passaram a disputar o campo da educação e as políticas educacionais,
trazendo importantes contribuições e concepções políticas, filosóficas e educativas. Por um lado,
o necessário debate para o conjunto da sociedade brasileira, afinal, os silêncios e estereótipos
têm resultado em opressão e violência histórica a camponeses, indígenas e quilombolas. Por
outro lado, o próprio fortalecimento das comunidades tradicionais em suas lutas, por meio da
formação de crianças, jovens, adultos e lideranças, sistematizados em princípios gestados pelas
próprias comunidades e movimentos populares.
Apesar de suas profundas interfaces e diálogos, a Educação do Campo e a Educação
Quilombola são oriundas de movimentos e trajetórias distintas. De forma sintética51, a “I
Conferência Nacional Por uma Educação do Campo”, realizada no ano de 1998 e, posteriormente,
o Decreto n°7.352/2010, que dispõe sobre a política de Educação do Campo e o Programa
Nacional de Educação na Reforma Agrária (PRONERA), demarcam a organicidade alcançada
pelas lutas populares, pois refletem o acúmulo histórico das lutas camponesas no confronto entre
distintos projetos de campo e de produção. Mais do que uma política educacional reconhecida
pelo Estado, têm-se ali fundamentos que carregam “implicações no projeto de país e de sociedade
e nas concepções de política pública, de educação e de formação humana” (CALDART, 2012,
p. 257). Mencionado anteriormente, o MST tem dado importantes contribuições para o
fortalecimento da Educação do Campo, tanto do ponto de vista teórico e acadêmico, quanto no
chão de assentamentos e acampamentos, articulando, mobilizando e formando trabalhadores/
as na defesa por Reforma Agrária, assim como por trabalho, educação, escola e produção na
perspectiva da agroecologia.
Por sua vez, as comunidades quilombolas também se organizaram para fazer valer o seu
reconhecimento no âmbito das políticas educacionais. Violentados, expropriados e explorados
pelo sistema colonial-escravocrata, negros/as jamais aceitaram essa condição imposta. A
experiência concreta do quilombo dos Palmares, formado no século XVII na Serra da Barriga,
estado do Alagoas, conecta-se às milhares de comunidades quilombolas existentes pelo Brasil
atualmente52. Trata-se de uma resistência e existência que atravessa séculos, faz-se junto à
formação social, política e econômica do Brasil.
Os quilombos possuem formas próprias de produção das condições de sua existência,
apesar das especificidades de cada comunidade. Para os quilombolas, a terra e o território
tornam-se “um conjunto de relações vividas; é trabalho concreto; é trabalho de uma memória
que se fabrica conjunturalmente; é experiência pessoal e coletiva, relação cotidiana, organização
e resistência” (GUSMÃO, 1995, p. 124). Ou seja, a oralidade, a relação com o sagrado, a figura
dos griots como portadores da memória do quilombo, o uso coletivo da terra, os saberes e
fazeres transmitidos de geração a geração, são elementos de um território que conforma as suas
territorialidades, isto é, articulam os elementos materiais, subjetivos e as formas particulares de
ser e estar no mundo. Assim como indígenas e camponeses, os quilombolas, negros/as, trazem
contribuições e marcos civilizatórios fundamentais que recuperam a dimensão intrínseca entre
homem-natureza, além de valores éticos, humanos e filosóficos de partilha, solidariedade e
coletividade.
Ainda que recente, a Resolução n° 8, de 20 de novembro de 2012, que estabelece as
Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Quilombola na Educação Básica,
resulta de uma extensa ação do movimento quilombola. Para termos uma dimensão histórica, o
51 Mencionaremos brevemente o histórico da Educação do Campo, por considerarmos as diversas publicações
e pesquisas relacionadas ao tema. Contudo, sugerimos, para uma primeira aproximação à discussão, o “Dicionário da
Educação do Campo”, que se encontra nas referências desse trabalho.
52 De acordo com a CONAQ, existe cerca de 2.847 comunidades certificadas pela Fundação Cultural
Palmares (FCP), 1.533 com processos abertos no INCRA para demarcação e titulação dos territórios, além de 154
comunidades já tituladas – sendo que 80% desse quantitativo foram regularizadas pelos governos estaduais. Ver em:
<conaq.org.br/coletivo/terra-e-territorio/>. Acesso em: 11/07/2022.

186
direito ao território quilombola só foi reconhecido pelo Estado no processo de redemocratização
brasileira, por meio do artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias
(ADCT). Contudo, isso não interrompeu a lentidão nos processos de demarcação e titulação
dos quilombos, nem mesmo com o Decreto 4.887/03 que, apesar de fundamental por garantir
o critério de autoatribuição, sofre constantemente com a interpelação dos ruralistas.
Desse modo, se ter a terra – como lugar material-simbólico de vida – é uma condição
visceral para os quilombos, o direito à educação tornou-se fundamental para a afirmação
e promoção da identidade quilombola53, da valorização étnico-racial e da luta antirracista.
Antes mesmo da Resolução n°8/2012, já se tinha importantes conquistas, tais como: a Marcha
Zumbi dos Palmares contra o racismo, pela cidadania e pela vida, realizada no ano de 1995
em Brasília – DF; a Marcha Zumbi +10, no ano de 2005, em que se denuncia a ausência de
políticas públicas, bem como a realidade de vulnerabilidade, desigualdade e violência a que são
submetidas a população negra; a Lei 10.639/03 e 11.645/08, que estabelece a obrigatoriedade
do ensino de história e cultura afro-brasileira e indígena na Educação Básica, fundamentadas no
Parecer CNE/CP 01/2004 e 03/2004, que definem as Diretrizes Curriculares Nacionais para
a Educação das Relações Étnico-Raciais para o Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e
Africana.
Portanto, a partir do momento que as comunidades e povos tradicionais se organizam
e mobilizam para reivindicarem seus direitos de acesso à educação e à escola, quando
formulam seus princípios educativos e formam suas próprias lideranças, passam a incomodar
a estrutura político-econômica e social da classe dominante. Com isso, também enfrentam os
mais diversos particularismos do arcaico-moderno brasileiro, isto é, de formas oligárquicas,
coronelística, clientelistas e patriarcais ainda presentes, resultando em ameaças e violências
para as comunidades. Isso revela o inevitável contraditório: não basta conquistar as políticas
educacionais e esperar que o Estado cumpra a sua responsabilidade pública, pelo contrário, é
preciso colocá-la permanentemente em pauta, marcha e luta nas comunidades.
Assim, apresenta-se a seguir o panorama da Educação do Campo e da Educação
Quilombola, debatendo os principais desafios colocados para as comunidades e os movimentos
sociais populares. Por outro lado, busca-se conectar tais desafios frente a uma conjuntura
histórica de retrocessos e ultraconservadorismo no Brasil, em que há o desmonte por completo
de órgãos de proteção e defesa dos povos tradicionais – tais como a Fundação Nacional do
Índio (FUNAI), a Fundação Cultural Palmares (FCP) e o Instituto Nacional de Colonização e
Reforma Agrária (INCRA) –, ratificando as práticas genocidas e a destruição da biodiversidade.
Contudo, mesmo em uma realidade desfavorável e agonizante, percebe-se como as lutas
populares têm tecido seus caminhos de resistência.

Nossos direitos só a luta faz valer: panorama e desafios da educação do campo e


quilombola

Façamos uma breve retomada acerca da conjuntura brasileira nos últimos anos e a
ofensiva da classe dominante contra os povos e comunidades tradicionais. Como apresentamos
anteriormente, trata-se dos particularismos do arcaico-moderno brasileiro, de uma classe
dominante autocrática que não tolera qualquer elevação das condições objetivas de vida do
conjunto da classe trabalhadora. Desde o golpe de 2016, tem-se acentuado a corrosão das
políticas públicas conquistadas pelos povos do campo, no âmbito do território, da cultura, da
educação e do trabalho.
Durante o governo de Temer e Bolsonaro, tivemos a extinção de importantes órgãos criados

53 Isso implica tanto o reconhecimento legítimo das múltiplas formas de se afirmar, expressar e ser no mundo,
quanto a produção intelectual, artística, literária e cultural dos povos quilombolas, historicamente invisibilizadas e
silenciadas pelos padrões e visões de mundo ocidental, branca e europeia.

187
no Estado54, tais como a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR) e a
Secretaria de Alfabetização, Diversidade e Inclusão (SECADI), fundamentais na condução das
políticas de Educação do Campo, Quilombola e Indígena. Concomitante, acompanhou-se o
desmonte da FCP, da FUNAI e do INCRA. Ressalta-se que o INCRA, por meio do Decreto
n°9.660, de 1° janeiro de 2019, teve a sua estrutura transferida para o Ministério da Agricultura
(MAPA), que historicamente representa os interesses dos ruralistas – tanto que a ex-ministra
do MAPA, Tereza Cristina, e o atual ministro, Marcos Montes, foram ex-presidentes da Frente
Parlamentar da Agropecuária (FPA).
Para termos uma dimensão objetiva do que isso representou, se entre os anos de 2004
e 2008 chegou-se à uma dotação orçamentária de aquisição de terras para Reforma Agrária
ultrapassando a casa de 1 bilhão de reais, em 2017, no governo de Michel Temer, reduziu-se
para cerca de 41 milhões de reais. No ano de 2019 e 2020, no governo Bolsonaro, chegou-
se respectivamente a ínfimos 21 e 12 milhões de reais respectivamente55. Com isso, valida-se
uma política e discurso em prol dos interesses patronais, dos ruralistas e das grandes empresas,
atuando em detrimento das comunidades camponesas, indígenas e quilombolas, que convivem
ainda mais com a insegurança em seus territórios, ampliando os conflitos, as violações de direitos
e as ameaças de expulsões de suas terras.
Recorda-se, inclusive, que o governo Temer foi responsável por encaminhar uma
Portaria (MTB 1.129/2017) descarada e reacionária que restringia o conceito e flexibilizava
a fiscalização das condições de trabalho análogo à escravidão. Essa portaria expressa o caráter
da classe dominante e burguesa no Brasil, que se assenta nas bases escravocratas e explora o
trabalhador à exaustão. Por outro lado, adere-se às contrarreformas trabalhista e previdenciária,
além do congelamento dos investimentos em saúde e educação, impactando nas condições de
vida de milhões de pessoas.
A classe dominante, em especial os ruralistas, foram implacáveis na proposição de projetos
que atacam os direitos de povos e comunidades tradicionais. Por exemplo, destaca-se o Projeto
de Lei 490/2007, que institui o marco temporal para a demarcação de terras indígenas, ferindo
o preceito Constitucional da responsabilidade pública do Estado no processo de proteção e
demarcação das terras indígenas, enquanto um direito ancestral e originário. O mesmo aconteceu
com os quilombos, por meio da Ação Direta de Inconstitucionalidade n° 3239, que questiona
o critério de autoatribuição expresso no Decreto n°4.887/03. Projetos como a PEC 215, que
transfere a decisão de demarcação e titulação dos territórios indígenas e quilombolas para o
Congresso Nacional estão sempre na ordem do dia. Frente a uma extensa bancada ruralista no
Congresso, a aprovação da PEC 215 representaria um duro golpe e retrocesso inestimável para
as comunidades tradicionais. A isso se soma a liberação constante de agrotóxicos no Brasil,
causando severos danos para o meio ambiente e a saúde humana56.
Entretanto, há um outro flanco que precisamos apreender. Além de todo o retrocesso
verificado, cacifando o avanço devastador do agronegócio, da mineração, da pecuária, dentre
outros, ameaçando a terra, o território e a soberania de povos e comunidades tradicionais, a classe
dominante também disputa seus projetos de educação no campo. Por exemplo, a Associação
Brasileira do Agronegócio (ABAG), que reúne diversas empresas e bancos associados, difunde o
seu próprio material educativo denominado programa “Agronegócio na Escola”57, com penetração
nas redes e secretarias municipais e estaduais de educação. Por meio desse programa, atua-se

54 Vale ressaltar que esses órgãos amenizaram e até mesmo serviram como amortecedores da luta do trabalho
contra o capital enquanto políticas públicas, mas que foram importantes para a classe trabalhadora completamente
vilipendiada pelo capital. Nesse sentido nos cabe esclarecer que ao criticar esses governos pela extinção dessas políticas
não há de nossa parte uma defesa do Estado e sim demonstrar a crueldade desses governos.
55 Tais informações foram obtidas por meio do Sistema de Informação ao Cidadão (e-SIC), da Controladoria-
Geral da União (CGU). A tabela com a dotação orçamentária pode ser encontrada na pesquisa de Rodrigues (2022).
56 Para essa questão, ver o importante estudo e dossiê publicado pela Associação Brasileira de Saúde Coletiva
(ABRASCO). Disponível em: <https://abrasco.org.br/dossieagrotoxicos/>. Acesso em: 21/07/2022.
57 Ver em: <https://abag.com.br/tag/educacao/>. Acesso em: 18/07/2022.

188
para a formação de intelectuais orgânicos em prol da hegemonia dominante e a manutenção do
consenso dos dominados (LAMOSA, 2014). Até mesmo propagandas amplamente difundidas
na grande imprensa, tais como o “agro é pop, agro é tech, agro é tudo”, da Rede Globo, difundem
um certo consenso com relação aos supostos benefícios do agronegócio. Percebe-se que a classe
dominante possui estratégias para além da coerção e da violência direta, atuando também por
meio da propagação ideológica de determinado consenso ou visão de mundo que educam o
pensar das massas populares.
Nesse sentido, essa breve retomada nos indica que é preciso estar atento às movimentações e
ações que ocorrem no âmbito do Estado e da sociedade civil, fortalecendo as nossas trincheiras
de mobilização e organização. Por isso, consideram-se que “nossos direitos só a luta faz valer”, ou
seja, é por meio da resistência encampada por povos e comunidades tradicionais, através dos
seus movimentos sociais populares, que faremos frente aos retrocessos e construir uma outra
hegemonia. Tanto a Educação do Campo, quanto a Educação Quilombola são fundamentais para
a construção desse processo, pois confrontam e desafiam diretamente os interesses dominantes.
Assim, façamos uma reflexão acerca do que significam as escolas do campo, entendendo-
as como a totalidade tão diversa de escolas localizadas em territórios de povos e comunidades
tradicionais. Ela cumpre uma função que vai muito além de um espaço físico dentro de cada
comunidade, pois relaciona-se intrinsecamente com o projeto de campo encaminhado pelas
classes e movimentos sociais populares. Vejamos as formulações de Molina e Sá (2012) a esse
respeito:

Assim, a concepção de escola do campo a ser tratada aqui se enraíza no


processo histórico da luta da classe trabalhadora pela superação do sistema
do capital. O acesso ao conhecimento e a garantia do direito à escolarização
para os sujeitos do campo fazem parte desta luta. A especificidade desta
inserção se manifesta nas condições concretas em que ocorre a luta
de classes no campo brasileiro, tendo em vista o modo de expansão do
agronegócio e suas determinações sobre a luta pela terra e a identidade de
classe dos sujeitos coletivos do campo. (MOLINA E SÁ, 2012, p. 325).

Ou seja, são projetos de campo em disputa, que opõem a terra enquanto mercadoria,
destinada aos interesses da acumulação e reprodução destrutiva do capital, e a terra enquanto
produção da vida, do trabalho e da cultura, atendendo as reais necessidades humanas, sem
dissociar a relação visceral entre homem-natureza. Desse modo, a escolarização e a formação dos
sujeitos do campo têm caminhado para perspectivas omnilaterais, isto é, “com sua base unitária
integradora entre trabalho, ciência e cultura, tendo em vista a formação dos intelectuais da
classe trabalhadora” (MOLINA E SÁ, 2012, p.325). Ao contrário da alienação produzida pelo
capitalismo que divide o trabalho manual do intelectual, a visão omnilateral busca a formação
humana em sua integralidade ou organicidade, que possibilite a apropriação do patrimônio
cultural gerado pela humanidade (escola humanista), ao passo que não a desvincule do mundo
do trabalho, da técnica e da ciência, isto é, das novas condições de produção e reprodução da
existência humana.
Seja de forma embrionária, por meio de comunidades que iniciam o seu processo em
torno de princípios políticos, filosóficos e educativos referenciados em suas lutas, ou de forma
orgânica, caso do MST com a Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF), destinada a
formação política e teórica de militantes e dirigentes dos movimentos populares, as escolas do
campo são portadoras de experiências novas e transformadoras. De acordo com Molina e Sá
(2012, p. 325), a escola do campo coloca o desafio de construir uma outra hegemonia, isto é,
“de executar um projeto de educação integrado a um projeto político de transformação social
liderado pela classe trabalhadora, o que exige a formação integral dos trabalhadores do campo,
para promover simultaneamente a transformação do mundo e a autotransformação humana”.
Nesse sentido, qual o panorama das escolas do campo e quilombola no Brasil, seus desafios e

189
implicações no que tange à disputa por um outro projeto de campo e sociedade? Apesar de não
retratar a realidade em sua totalidade, apresenta-se a seguir a Tabela 1, em que se compilam o
número de escolas localizadas em áreas quilombolas e de assentamento entre os anos de 2013
e 2021. Tais dados estão sustentados no Censo Escolar divulgado pelo Instituto de Estudos
e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP), se justificando por dois motivos centrais.
Primeiro, a própria nomenclatura adotada pelo INEP, que estabelece como variável a “localização
diferenciada” de uma escola, bem como suas quatro categorias, que se dividem entre “escolas que
não estão em localização diferenciada”, “áreas de assentamento”, “terra indígena” e “área onde se
localiza comunidade remanescente de quilombos”. Segundo, estabeleceu-se como parâmetro
o ano de 2013 por referir-se ao ano posterior da aprovação da Resolução n°8/2012, acerca das
Diretrizes Curriculares da Educação Escolar Quilombola58, apesar da Educação do Campo ter
sido consolidada enquanto política educacional nas décadas de 1990 e 2000.

Tabela 1- Escolas localizadas em áreas quilombolas e de assentamento (por ano*)

Total de escolas Total de escolas Escolas Escolas em áreas


Ano em atividade quilombolas de assentamento
(Brasil)** (Brasil)
(urbanas e rurais)
2013 242.680 192.678 2.183 4.065
2014 242.929 190.553 2.381 4.256
2015 237.879 188.689 2.279 4.498
2016 237.506 187.891 2.318 4.440
2017 236.481 185.925 2.414 4.414
2018 236.460 183.746 2.421 4.328
2019 228.521 182.468 2.556 4.549
2020*** - - -
2021 224.229 180.057 2.552 4.578
Fonte: INEP. Elaborado por Beatriz Souza Barral.

*Foi utilizado o software “R” para fazer o levantamento do total de escolas, assim como
quantas delas marcaram a opção na variável descrita como “Localização Diferenciada”.
**Engloba as escolas que se encontram paralisadas ou extintas.
***Desconsiderou-se os dados do Censo de 2020, pois somente 50.868 escolas responderam.
Ressalta-se que foi um ano de gravidade da pandemia e isolamento social devido a
COVID-19.

Algumas considerações podem ser feitas a partir da Tabela 1. Primeiro, o número total de
escolas no Brasil não avança para a ampliação e universalização do atendimento, pelo contrário,
entre os anos de 2013 e 2021 perderam-se aproximadamente 18 mil escolas, resultado do
fechamento e da nucleação escolar59. Isso não só viola o direito Constitucional à educação,
como pode apontar para as dificuldades de acesso e permanência dos educandos nas escolas,
intensificando as desigualdades educacionais e sociais – ainda mais em um país cuja taxa de
analfabetismo atinge 6,6% da população com 15 anos ou mais60. Por exemplo, no que tange
a nucleação, ainda há carências na disponibilidade de transporte escolar de forma adequada

58 Reconhecemos as limitações dessa escolha, afinal, o INEP passa a especificar as escolas localizadas em áreas
quilombolas a partir do ano de 2004, de acordo com os microdados disponibilizados. Entretanto, isso não inviabilizou
a discussão dos resultados obtidos, sobretudo, no aumento do reconhecimento de escolas localizadas em comunidades
quilombolas.
59 Ver a pesquisa de Barral (2018), que toma como referência de estudo as comunidades camponesas da Zona da
Mata Mineira.
60 Consultar em: <htpps://painel.ibge.gov.br/pnadc/>. Acesso em: 18/07/2022.

190
para os estudantes para que sejam respeitadas as condições de acessibilidade e tempo de
deslocamento. Por outro lado, muitas comunidades possuem formas de organização social e de
trabalho específicas, em que todo o núcleo familiar se envolve, o que não só demanda uma escola
que respeite essas particularidades, como se adeque em termos de calendário escolar e mesmo
nas concepções pedagógicas, afinal, quando não há diálogo com os sujeitos em sua diversidade
e identidade, levam-se a processos de evasão ou desistência escolar.
Segundo, percebe-se um crescimento de escolas em áreas quilombolas e de assentamentos.
Apesar do aparente descompasso e contratendência frente aos números da realidade nacional, há
a possibilidade de que não se tenha tido a construção de escolas em quilombos e assentamentos
– ou seja, um crescimento no número absoluto –, mas o reconhecimento das escolas existentes,
através de processos de mobilização e reivindicação das comunidades quilombolas e camponesas.
Isso não excluí, inclusive, o fechamento das escolas do campo, conforme constata o MST61,
mesmo com a aprovação da Lei n° 12.960, de 27 de março de 2014, que altera a Lei de Diretrizes
e Bases da Educação Nacional (LDB), estabelecendo que o fechamento de escolas do campo,
indígenas e quilombolas deverá levar em consideração a manifestação da comunidade escolar.
Porém, adverte-se que o reconhecimento de uma escola como sendo do campo ou quilombola
não significa que tenham práticas pedagógicas e educativas referenciadas, mobilizadas e
sistematizadas pelas comunidades, tais como: gestão democrática escolar, projeto político-
pedagógico, concepções de currículo e formação humana, material didático específico,
alimentação na perspectiva da agroecologia e voltada para o fortalecimento da agricultura
familiar; profissionais oriundos das próprias comunidades, dentre outros. Reconhecer a escola é
um passo importante, mas ainda insuficiente se não traz como referência os sujeitos camponeses
e quilombolas. E esse tem sido um dos principais desafios enfrentados pelas comunidades.
Para Arroyo (2013, p. 17), “todo território sacralizado está exposto a profanações”.
Aqui, entende-se território no seu sentido ampliado, isto é, não só a dimensão material –
que historicamente tem se sacralizado em uma estrutura capitalista fundiária absolutamente
desigual –, mas nos aspectos subjetivos e simbólicos, que envolve a cultura, a educação, a arte, o
conhecimento, o saber ou o currículo. Quando os povos e comunidades tradicionais passam a
questionar e a dessacralizar todo um passado de segregação, opressão, violência e silenciamento,
abre-se uma “tensa história de suas emergências”, justamente “por se tornarem presentes, visíveis
em tantas ações coletivas e em movimentos sociais e exigindo seu reconhecimento” (ARROYO,
2013, p. 156).
Daí decorre que a emergência, por meio de um intenso processo de mobilização dos
sujeitos, questiona toda uma estrutura e relação de poder estabelecida. E a classe dominante, que
historicamente ocupa e se privilegia dos cargos de poder e prestígio, reage de diversas maneiras. A
nossa experiência concreta tem mostrado as facetas da tensa luta por reconhecimento, das quais
podemos citar algumas: lentidão ou enviesamento nos processos de consolidação da Educação
do Campo e Quilombola, na tentativa de desmobilizar as ações coletivas; a ação de órgãos
municipais e estaduais ou gestores que acham que estão promovendo a Educação do Campo
e Quilombola, mas no fundo atuam para o próprio enfraquecimento conceitual e político
do que significa as escolas do campo e quilombola para os movimentos sociais populares; a
reprodução dos estereótipos, do preconceito, do racismo estrutural e institucional, que taxa os
sujeitos do campo como atrasados e incapazes de assumir o protagonismo e a serem dirigentes
da Educação do Campo e Quilombola; a insuficiência ou mesmo a ausência de qualquer diálogo
público, assentado em uma classe dominante que não tolera os direitos das classes populares; as
ameaças de morte ou as tentativas de cooptação de lideranças daqueles que, em total desapreço
pela democracia, atuam contra os direitos de povos e comunidades tradicionais (ruralistas,
fazendeiros, grandes empresas no ramo do agronegócio e mineração, dentre outros).
61 No ano de 2019, o MST divulgou que aproximadamente 80 mil escolas do campo foram fechadas em um
período de 21 anos. Ver notícia em: <https://mst.org.br/2019/11/28/80-mil-escolas-fechadas-no-campo-brasileiro-
em-21-anos/>. Acesso em: 18/07/2022.

191
Entretanto, mesmo diante de tais desafios e de uma conjuntura histórica dificílima, a reflexão
central está no fato de que os povos e comunidades tradicionais, por meio dos seus movimentos de
luta popular, têm conseguido colocar a Educação do Campo e a Educação Quilombola na ordem
do dia – conforme indica-nos a Tabela 1. São experiências construídas e tecidas cotidianamente
com o exercício da luta, no chão dos quilombos, assentamentos, acampamentos, dentre outros,
mas que carregam potencialidades radicalmente transformadoras e revolucionárias. Trata-se de
uma luta política e pedagógica (ARROYO, 2014) que, por níveis distintos de ação e consciência
crítica, revelam as estratégias e as concepções em torno da defesa da terra, do território, do
trabalho, da vida, da memória, da cultura, da arte, do saber, enfim, de valores emancipatórios:

É evidente que não são todos os movimentos sociais que chegam a


desembocar num projeto político de classe. Mas esta é a potencialidade
de cada nova ação grupal que se organiza. Alguns grupos não ultrapassam
o estágio inicial de mobilização. Outros, à medida que conquistam suas
reivindicações imediatas, se desintegram e retornam ao tipo de vida anterior.
A trajetória, aqui apenas brevemente descrita, é longa e entrecortada, com
avanços e recuos constantes, sempre obstaculizada pela própria tradição
individualista e alienada em que vivemos. O amadurecimento político do
grupo e sua capacidade de racionalizar a utopia concreta que o cotidiano
da organização apenas esboça se coloca como o grande desafio para os
novos movimentos sociais, que se multiplica em nosso país e continente
(CALDART, 1986 apud SOUZA, EVANGELISTA, RIBEIRO, 2019).

Dessa maneira, percebe-se as múltiplas formas de organização popular frente às


demandas, especificidades e arranjos de cada localidade. O próprio amadurecimento político
coloca-se enquanto processo e relação histórica, isto é, não nasce pronto e acabado, tampouco
se reduz ao campo das ideias, mas se constrói cotidianamente com o exercício da luta e das
mediações com a realidade concreta. Como afirma Arroyo (2014, p. 249), “dos movimentos
sociais vêm ressignificações mais radicais, repolitizações do tradicional direto à escola quando
atrelado a lutas por direito a espaços, terra, territórios”. Desse modo, a escola é muito mais do
que escola para essas comunidades, pois liga-se a um novo projeto de vida, campo e sociedade.
Para além, recupera a dimensão omnilateral, a formação integral de homens e mulheres em suas
potencialidades e diversidades, assentadas em valores filosóficos, humanos e éticos não mais
orientados para a alienação, a opressão e a exploração.
Portanto, abre-se uma permanente tarefa para fortalecermos a luta de povos e comunidades
tradicionais e em defesa das escolas do campo, desde os sujeitos camponeses, quilombolas e
indígenas, até aqueles que se juntam organicamente a essas lutas e exercem uma importante
função política e educativa – militantes, pesquisadores, acadêmicos, trabalhadores/as em geral.
Na sua visceral contribuição para a classe trabalhadora, Gramsci (1978, p. 12) adverte como
a classe dominante, por meio de seus processos de coerção e consenso para a consolidação da
hegemonia, deixa uma infinidade de traços nas classes subalternas “sem benefício no inventário”.
Aqui, entende-se o inventário no seu sentido ampliado, isto é, que tem como centralidade as
dimensões materiais e subjetivas produzidas por determinado grupo ou classe. Historicamente,
a classe dominante consolidou uma visão de mundo, um determinado padrão de ser, poder
e saber que inviabilizou, pelos processos de silenciamento e violência (tendo como uma das
pontas o próprio genocídio, vide o que tem passado os povos originários desde a colonização),
outras possibilidades de se viver e relacionar com mundo.
Assim, nos nossos processos de resistência, torna-se essencial realizar o próprio inventário
das classes subalternas (GRAMSCI, 1978). Para os povos e comunidades tradicionais, está em
registrar e difundir suas práticas, saberes, fazeres, suas formas de organização do trabalho e da
cultura, assim como em apontar as contradições e violações em que passam cotidianamente, de
um modo de produção capitalista destrutivo e que viola constantemente o direito à existência

192
no seu sentido integral. Ao mesmo tempo, ampliar e elevar essas experiências de luta política
à uma organicidade ou unidade da classe trabalhadora, reforçando os laços de solidariedade e
encaminhando, com maior potência e capacidade de mobilização, uma nova hegemonia, um
novo projeto político-econômico e social.

Considerações finais

Refletir sobre as interfaces entre Educação do Campo, Quilombola e saberes dos povos
e comunidades tradicionais é compreender os atravessamentos, as organicidades, os diálogos
e as possíveis unidades frente a realidades tão diversas, que caminham para o fortalecimento
das lutas populares. Ao traçarmos o panorama das escolas do campo e do seu significado
político e teórico, buscamos não só refletir sobre o que os números têm nos indicado, mas
tencioná-las frente a realidade e as particularidades de formação social, política e econômica
do Brasil. Ou seja, considera-se fundamental desvelar os mecanismos de poder e dominação da
classe dominante, o que de certa forma oxigena e estabelece novas estratégias de mobilização,
organização e enfrentamento dos movimentos sociais populares.
Por outro lado, mantém viva a memória dos saberes e fazeres dos povos camponeses,
quilombolas e indígenas, bem como as suas experiências políticas e educativas. Trata-se da defesa
permanente do seu inventário e de sua inestimável contribuição civilizatória, ainda mais em um
tempo histórico de retrocessos, discurso de ódio, destruição socioambiental e práticas genocidas
– agravadas pela propagação e descontrole da pandemia do COVID-19, impulsionada pelo
discurso negacionista e anticientífico, atingindo sempre as camadas mais pobres e vulneráveis.
Entretanto, o que fazer ou quais os desafios colocados para nós? Por um lado, fortalecer as
políticas públicas, sociais e educacionais, abrindo um potente e sensível diálogo com as
comunidades e povos tradicionais, reconhecendo-os em sua diversidade e pluralidade. Tivemos
importantes conquistas sociais que foram solapadas, mas que precisam ser retomadas, defendidas
e ampliadas. Isso requer entender que tipo de projeto de sociedade queremos e como vamos
mobilizar o conjunto da classe trabalhadora, ainda mais na atual conjuntura, em que há o risco
de corrosão da esparsa democracia e o constante flerte com o golpismo e a ditadura, proferida
por setores da extrema-direita.
Contudo, na longa marcha histórica, torna-se candente reconhecer a insustentabilidade
ética, moral, social, política e econômica do modo de produção capitalista. Cada vez mais
acirra-se o caráter destrutivo do capital, pela lógica de uma acumulação incessante que amplia as
desigualdades sociais, gera a guerra e a fome, não interrompe as opressões (de classe, raça e gênero),
aprofunda o pauperismo e a miséria das classes populares e coloca em risco a biodiversidade em
geral. Ou seja, há de se encontrar outros e novos caminhos, que passa pela luta política, educativa
e cultural, que eleve a consciência crítica direcionada para a práxis, emancipação e libertação. E
estamos convictos de que os povos e comunidades tradicionais são portadores das energias mais
radicalizadas e transformadoras, nos indicando caminhos e pressupostos fundamentais para a
construção de um outro projeto de vida e de mundo.

193
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195
CAPÍTULO 14 - O FECHAMENTO DAS ESCOLAS MULTISSERIADAS NO
AMAZONAS

Iraci Carvalho Uchoa62

Arminda Rachel Botelho Mourão63

Edilberto Moura dos Santos64

Resumo

O artigo tem como objetivo discutir o fechamento das escolas multisseriadas no campo do
Amazonas. Utilizou-se para a coleta de dados as pesquisas de Campo e Documental. O método
para apreciação e análise foi o Materialismo Histórico-dialético. O contexto da pesquisa
é o município de Alvarães/Am. Os resultados obtidos são: a) o menor índice da população
permanente no campo de Alvarães varia entre os jovens de faixa etária de quinze a dezessete anos;
b) 19% da população com idade escolar concluiu o Ensino Fundamental nesse município; c)
76 pesquisas encontradas entre teses e dissertações, nenhuma discutiu o fechamento das escolas
multisseriadas no Amazonas. A contribuição deste texto é discutir no âmbito do Amazonas o
fechamento das escolas do campo, uma vez que essa temática não tem sido debatida no Estado.

Palavras-chave: Amazonas. Alvarães. Fechamento de Escolas Multisseriadas.

Introdução

O texto parte da problematização de uma pesquisa de Mestrado realizada em 2016 pelo


Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Amazonas.
Essa pesquisa se assentou no tema que analisou o Trabalho e Educação do Campo no contexto
Amazônico. A análise foi importante pois emergiu a categoria: “fechamento de escolas no campo
do Amazonas” e permitiu investigar os processos produtivos locais, bem como as interfaces
destes processos no Modo de Produção Capitalista em campos amazônicos.
A pesquisa de mestrado resultou na hipótese de tese que sustenta que, no Amazonas, o
fechamento das escolas multisseriadas alinha-se a internacionalização da Amazônia; nega os
processos formativos, acentua a desigualdade social e potencializa a privatização do transporte
escolar; por consequência, a mediação entre capital e trabalho, é a nucleação das escolas.
Nesses termos, este artigo investiga o fechamento das escolas multisseriadas no contexto
amazônico, especialmente no estado do Amazonas. Essas escolas reúnem estudantes de várias
séries em uma mesma sala de aula com apenas um/uma professor/a (HAGE, 2005). Em função
do fechamento dessas escolas, ocorre o desenraizamento cultural, a privatização do transporte

62 Doutora em Educação. Universidade Federal do Amazonas, Manaus, Amazonas, Brasil. E-mail:


irauchoa100@outlook.com; Lattes http://lattes.cnpq.br/0565932748535945; ORCID: 0000-0003-1794-924X.
63 Doutora em Educação. Universidade Federal do Amazonas, Manaus, Amazonas, Brasil. E-mail: arachel@uol.
com.br; Lattes http://lattes.cnpq.br/3864748731992379; ORCID: https://orcid.org/0000-0002-1940-9477.

64 Doutor em Educação. Universidade Federal do Amazonas, Manaus, Amazonas, Brasil. E-mail:


esm11beto@yahoo.com.br; Lattes: http://lattes.cnpq.br/9786921280591056; ORCID: 0000-0002-9729-3377.

196
escolar e o distanciamento dos estudantes de seus territórios (SOUZA, 2014). Esse movimento
caminha na contramão de que o sujeito do campo tem o direito a uma educação pensada
por ele e para ele (FERNANDES, OLIVEIRA, DUARTE, MICHELOTTI, MOLINA &
CALDART, 2008).
É importante registrar que o Movimento dos Trabalhadores sem Terras (MST), desde
os anos de 1990 (FERNANDES, et al, 2008), reivindica um projeto de educação de acordo
com a realidade dos sujeitos do campo. É uma realidade singular, que se manifesta por meio das
diferentes culturas, crenças, costumes, identidades e da própria diversidade geográfica. Nesse
cenário, a Educação do Campo é uma conquista legítima que se faz por meio da luta de classe.
Significa dizer que o estudante tem o direito à escolarização a partir do território onde vive; que,
no Amazonas, é o campo das águas, das terras e das florestas, e, as relações sociais ocorrem em
conformidade com a subida e descida dos rios.
Este estudo de natureza documental e empírica procurou levantar dados sobre o processo
de extinção das escolas multisseriadas no estado do Amazonas, uma vez que “o fechamento
das escolas do campo vem sendo denunciado como um crime contra uma nação e sua classe
trabalhadora, em especial aos povos do campo, da floresta e das águas” (TAFAREL &
MUNARIM, 2015, p. 48).

O Fechamento das escolas multisseriadas como uma das facetas do capitalismo no


contexto Amazônico

A educação escolar é um direito conquistado e legitimado na Constituição Federal e


nos marcos regulatórios das diretrizes educacionais. A Lei 9.394/96 enfatiza que a política de
educação escolar deve assegurar o acesso e permanência de todos e todas, bem como respeitar
as particularidades culturais geográficas e socioeconômicas dos/as trabalhadores/as do campo.
Entretanto, nos últimos anos há um movimento de retirada dos direitos da classe trabalhadora
do país que se manifesta em âmbito nacional e regional cujo objetivo é frear o avanço das
conquistas históricas dos trabalhadores/as, que no Amazonas se manifesta pelo fechamento das
escolas multisseriadas.
Diante disso, é necessário evidenciar à sociedade que o fechamento das escolas de classes
multisseriadas é uma das facetas do Grande Capital em função de sua expansão, e essa faceta
se legitima nos territórios periféricos quando há retirada de determinadas políticas públicas
que, segundo Tafarel & Munarin (2015), se acentua frente às políticas recessivas e de cortes
orçamentários, nestes termos, representa perdas de direitos da classe trabalhadora brasileira e
consequentemente dos/as amazonidas.
O silenciamento sobre o fechamento dessas escolas no Amazonas foi a mola propulsora
de uma tomada de posição para investigar o fechamento das escolas multisseriadas no estado.
Diversos silêncios e novos horizontes podem ser pensados quando discutimos questões históricas
vinculadas às escolas multisseriadas no contexto nacional (SOUZA & SANTOS, 2014). Esse
silenciamento se relaciona no processo de exploração da classe trabalhadora em função do
desenvolvimento do Modo de Produção Capitalista.
Picoli (2006, p. 12) corrobora quando afirma que “o homem da floresta foi brutalizado
e expulso através de verdadeiros genocídios, em muitas oportunidades ignorados pelo Estado
e suas organizações”; “nesse clima de terror, o projeto governamental de colonização oficial e
particular concretizou-se como uma contrarreforma agrária, as famílias dos posseiros têm as
suas casas abandonadas e as suas roças ocupadas por gados” (IANNI, 1978, p. 209), nesse
sentido, compreendemos que a extinção dessas escolas no Amazonas é o reflexo da colonização
de exploração com interconexões na internacionalização da Amazônia.
A política educacional dos sujeitos que residem nas terras, nas florestas e nos rios
do Amazonas foi marcada pelo abandono em função das concepções imperialistas, as

197
quais caracterizam esse território no âmbito do atraso. Essa problemática do abandono, do
silenciamento e da ausência de políticas públicas está presente na educação dos trabalhadores
desde o período do Brasil colônia, influenciado pelo pensamento escravista e latifundiário.
A ausência da efetivação das políticas educacionais que atendam às especificidades do
campo contribui para que a educação escolar dos sujeitos sejam a imitação e a extensão da urbana
(SOUZA & SANTOS, 2014). O território do estado do Amazonas é diversificado, lugar em
que emerge sua própria organização do trabalho, seus processos produtivos e suas manifestações
culturais que evidenciam a dialética da subida e descida dos rios que formam o conjunto das
singularidades amazônicas.
Os calendários escolares, o regime de organização das turmas e do ensino (seriação),
as disciplinas e os conteúdos, os métodos e as técnicas inspiram-se no modelo escolar urbano
(SOUZA & SANTOS, 2014). Essas perspectivas influenciam na construção de posicionamentos
negativos sobre as escolas multisseriadas que, ao serem pensadas fora do âmbito das prioridades
das políticas públicas, potencializam a discussão de que a solução possível é a sua erradicação; é
importante registrar que essa concepção se alinha ao projeto de classe dominante burguês.
O município de Alvarães situa-se no estado do Amazonas, e o primeiro projeto com
objetivo de garantir a educação escolar aos sujeitos do campo data do ano de 1989. Esse projeto
era concebido como núcleos rurais nos quais funcionavam as escolas de classes multisseriadas.
Em 1996, com o advento do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental
e de Valorização do Magistério (FUNDEF), o transporte municipal foi intensificado, mas a
prioridade da educação pública municipal continuava a ser a educação urbana (UCHOA &
MOURÃO, 2018).
A educação escolar dos amazônidas relaciona-se com uma concepção de Estado que
compreende a educação em contextos amazônidas “como um resíduo do sistema educacional
nacional urbano” (ARROYO, CALDART & MOLINA, 2004), sendo consideradas como
“alternativas para os problemas relacionados ao êxodo rural e estratégia contra o crescimento
das favelas, das doenças causadas pela falta de saneamento básico e da violência” (SOUZA,
2014, p.105).
Segundo Borges (2017), a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional é uma política
pública efetivada que possibilitou avanços para a construção do Plano Municipal de Educação.
Assim, por meio da elaboração de metas e estratégias para a Educação do Campo, o município
de Alvarães constrói suas ações em articulação com os marcos legais, deste modo, a meta de
nº 7 do Plano Municipal de Alvarães apresenta o fechamento das escolas multisseriadas como
prioridade até o ano de 2024, período de vigência do atual PME (UCHOA & MOURÃO,
2018).
Ao nos posicionarmos contra o fechamento das escolas do campo, não significa a defesa de
“fixar o sujeito no campo, mas criar oportunidades de desenvolvimento e realizações pessoais e
sociais (ARROYO et al., 2004). Trata-se, pois, de trabalhar sobre as demandas e necessidades de
melhorias sobre vários aspectos: acesso, permanência, organização e funcionamento das escolas
rurais, propostas pedagógicas apropriadas, transporte escolar, reflexão e aperfeiçoamento das
classes multisseriadas (BRASIL, 2013, p.288). Ou seja, “educar as pessoas que trabalham no
campo, para que se encontrem, se organizem e assumam a condição de sujeitos da direção do seu
destino” (ARROYO et al., 2004, p. 18).

O fechamento de escolas do campo: Alvarães em pauta

Discutir o fechamento das escolas no contexto amazônico é preciso considerar o


Materialismo Histórico-dialético como método que permite analisar a materialidade concreta
das relações sociais, para isso, é necessário esclarecer que a Dialética se pauta nas principais Leis:
a) Lei da Unidade e Luta dos Contrários; b) Lei da Transformação de mudanças Quantitativas

198
em Qualitativas; c) Lei da Negação da Negação (BRITO, 2016).
Ao discutir o elo tratado na pesquisa, explana-se que a Lei da Unidade e Luta dos
Contrários ocorre quando a Educação do Campo é estabelecida pelas políticas públicas, por
exemplo, o artigo de nº 28 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional Brasileira assegura
que a educação do sujeito deve ser ancorada à natureza do trabalho na zona rural, contudo, o
projeto de educação para as zonas rurais é mais uma extensão da educação escolar urbana e pouco
dialoga com os processos produtivos e com a realidade dos sujeitos. Tal movimento reflete na
formação dos camponeses que não compreendem o porquê desse ensino e, por consequência,
silenciam- se quando o Estado retira seus direitos historicamente conquistados.
Para a Lei da Transformação da Quantidade em Qualidade, à medida que é instaurada uma
nova concepção de Educação do Campo, pautada na valorização do trabalho como princípio
educativo que dialogue com os saberes locais e com os saberes escolares, os trabalhadores têm como
dar sentido àquela educação, já que é alicerçada na sua realidade tanto social quanto geográfica
e histórica. Esses sujeitos ressignificam a educação escolar e potencializam a permanência de
direitos.
No que se refere a Lei da Negação da Negação, necessita-se que os sujeitos reconheçam
que o fechamento das escolas multisseriadas se configura como perda de direito educacional.
Dada as diversidades geográficas do Amazonas, cuja extensão territorial é de 1.571.000km² e
uma densidade demográfica de 2,62 habitantes por quilometro quadrado, Uchôa e Mourão
(2018) registram que o fechamento de escolas nesse território configura-se como desserviço à
população.
Ao dialogar sobre o fechamento das escolas do campo no Amazonas, é preciso considerar
as fontes empíricas, documentais e bibliográficas, em decorrência das significativas pesquisas
que no Amazonas situam a educação do campo como um território de lutas e coletividades
históricas. O fechamento das escolas do campo no Amazonas, especificamente no território do
município de Alvarães, ocorre em função da expansão e concentração do modo de produção
cujo objetivo é invadir os lagos, os rios e as terras do estado.
A função social das escolas do campo configura-se em importantes espaços de diálogos
que potencializam a construção de uma sociedade mais justa e humana. Com tudo, em Alvarães
essas escolas têm sido reiteradamente atacadas pelo Estado, e um dos resultados é a expulsão dos
sujeitos do campo.
Nos pressupostos de Uchôa e Mourão (2018), o menor índice de população permanente
no campo de Alvarães varia entre os jovens de faixa etária de quinze a dezessete anos; de dezoito
a vinte quatro anos e de vinte cinco a trinta e quatro anos. Das informações extraídas dos
dados obtidos, um total de 70% dos sujeitos migram para a cidade de Alvarães à procura de
“trabalho” para si e educação escolar para seus filhos, pois não encontram políticas públicas
educacionais que contribuem para a permanência no campo (UCHOA & MOURÃO, 2018).
É um movimento que não ocorre por acaso, pois à medida que o camponês migra para a cidade,
as suas terras tornam-se disponíveis para a entrada do Capital. Seria esse um dos interesses da
classe “opressora” no território, haja vista que “os pensamentos da classe dominante são também,
em todas as épocas, os pensamentos dominantes” (MARX & ENGELS, 1986, p. 24).
Acrescenta-se que, no ano de 2008, existiam em Alvarães 60 escolas multisseriadas.
Em 2016, esse quantitativo reduziu para 36, se comparar o primeiro ano, de 2008, ao último,
totalizam aproximadamente 24 escolas fechadas, em ritmo acelerado. Os dados do Educa –
Censo de 2016 – evidenciam 11 escolas municipais que se situam às margens dos rios e lagos
de Alvarães paralisadas pelo Poder Público, contrapondo-se os pressupostos da Constituição
Federal Brasileira de 1988 quando trata do direito a todas e todos o acesso e permanência a
política educacional.
Nesse cenário, o baixo índice de pessoas que concluíram o Ensino Fundamental no
município é problemático. Os dados divulgados pela Pesquisa Nacional por Amostra de
Domicílios – PNAD/2013 – evidenciam que apenas 19,70% da população com idade de

199
dezesseis anos concluiu o Ensino Fundamental do primeiro e segundo segmento. A mesma
pesquisa indica que apenas 3,4% da população que reside no campo de Alvarães concluiu o
Ensino Médio (UCHOA & MOURÃO, 2018).
Os dados apresentam que o fechamento das escolas multisseriadas contribui para o
deslocamento cidade-campo e retira do sujeito o direito ao acesso à educação escolar a partir
do seu território. O campo amazônico é o palco daquele que se reconhece como agricultor, que
entre as águas e as terras percorre os labirintos amazônicos, cenário dos processos produtivos,
tais como o extrativismo, o artesanato e o plantio. É um campo que se contrapõe ao Campo do
latifúndio caracterizado pela monocultura – significa que as terras, as águas e as florestas são
assinadas pelas múltiplas culturas, oriundas do trabalho coletivo da família.
A particularidade amazônica, em vista a outros territórios brasileiros, configura-se pelas
distâncias entre os territórios. O trabalhador percorre por horas ou dias de viagens com a
finalidade de acessar determinadas comunidades que são cenários de existência dos sujeitos.
Esses sujeitos têm seus costumes, tradições, educação escolar e processos de desenvolvimento
locais singulares e ao mesmo tempo encontram-se na totalidade da dinâmica social, histórica e
econômica.
Com a crescente evidência de que as escolas multisseriadas estão sendo fechadas pelo
Poder Público do Brasil (HAGE, 2005) e de que o fechamento dessas escolas se configura em
retirada dos direitos dos sujeitos ao acesso a política educacional brasileira, buscou-se identificar
que no campo do Amazonas há um silenciamento do processo de fechamento das escolas
multisseriadas. Deste modo, no Brasil, os movimentos sociais da classe trabalhadora assumem o
protagonismo de reivindicar a sua permanência em âmbito nacional, entretanto, no Amazonas
as discussões sobre esse processo deleitam-se no âmbito da incipiência.
No território do município de Alvarães/Amazonas, onde há processos sobre o fechamento
das escolas multisseriadas, pouco mais de 19% da população com idade escolar concluiu o Ensino
Fundamental, fato que pode ser atribuído ao corrente fechamento das escolas nos anos de 2008
a 2016. Consideramos que, quando se fecha uma escola na comunidade, os trabalhadores têm
dificuldades de manter seus filhos nas cidades em função de suas condições econômicas, motivo
pelo qual autores como Hage (2005), Borges (2017), Souza (2014) e Tafarel & Murinan (2015)
atribuem a esse processo cometido pelo Poder Público em detrimento dos sujeitos do campo.
Nestes termos, registra-se que o fechamento dessas escolas está relacionado com o
desenvolvimento do Modo de Produção Capitalista e permite um clima de insatisfação por
parte daqueles que lutam por uma educação pública socialmente referenciada. Segundo
Dourado & Oliveira (2009), a educação pública socialmente referenciada ocorrerá a partir do
momento em que os governantes brasileiros entenderem que a educação deve ser prioridade
das políticas públicas. O estudo realizado no banco de dados do Programa de Pós-Graduação
da Universidade Federal do Amazonas revelou que das 76 pesquisas encontradas, entre teses e
dissertações, nenhuma discutiu o fechamento das escolas multisseriadas no Amazonas. É um
dado importante visto a complexidade da ausência das escolas do campo em detrimento dos
direitos dos trabalhadores, assim, é necessário que esse tema no Amazonas ocupe espaços de
debates e decisões.
O impacto social das escolas de classes multisseriadas é altamente relevante para os
trabalhadores das zonas rurais do Amazonas. A maior complexidade encontrada é a ausência
dos governantes frente às políticas públicas que possibilitam melhores condições de vida dos
trabalhadores e trabalhadoras que residem na imensidão amazônica. Desse modo, é essencial
investigar sobre as ações governamentais que promovem o fechamento dessas escolas, bem
como apresentar medidas emergenciais que permitam a paralisação do fechamento das escolas
no campo do Amazonas.
O fechamento de escolas no campo do Amazonas é um problema, pois se considerarmos o
levante coletivo “nenhum a menos”; reafirmamos que o fechamento de escolas em comunidades
rompe as aspirações de conquistas por melhores condições de vida de crianças, de jovens, de

200
adultos e de idosos. É importante registrar que a permanência das escolas, a infraestrutura das
escolas, a formação adequadas dos professores do campo, o saneamento na comunidade, o
entretenimento, a segurança, o acesso ao serviço público de saúde, a seguridade social, a política
de escoamento para os produtos cultivados, a valorização da cultura dos/das trabalhadores/as,
a democratização dos instrumentos tecnológicos desenvolvidos a todos e a todas; se configuram
em melhores condições de vida no campo, parece utópico, mas temos que esperançar.
Assim, quando refletimos sobre as políticas públicas efetivadas em campos de águas,
terras e florestas precisamos nos despir de algumas construções sociais; por exemplo, há críticas
em torno da democratização da televisão; pois interfere nos aspectos culturais da comunidade.
Ora, o/a trabalhador/a do campo, não tem o direito ao acesso aos instrumentos desenvolvidos?
É possível que esse exemplo seja considerado irrelevante, entretanto, quando refletimos sobre
essa questão, percebemos que, quem adota essa concepção, adota também, o posicionamento de
que não são necessárias escolas em todas as comunidades do Amazonas. Como diria Marx, se o
trabalhador tudo produz, tudo pertence a ele.
É necessário ação profunda de reflexões nas quais se movimentam entre: conhecer o
Amazonas, o quanto não conhecemos o Amazonas, o quanto precisamos conhecê-lo, e o quanto
determinadas políticas não dialogam com a nossa realidade; quem conhece bem a realidade do
contexto amazônico sabe que as diversidades perpassam pelas dimensões geográficas, históricas
e culturais. As cidades adjacentes da capital, bem como suas inúmeras comunidades, podem
não ser parâmetros para uma análise profunda dessa realidade; pois quanto mais distante
geograficamente de Manaus, mais difícil é a efetivação de acesso e permanência de determinadas
políticas públicas.
Essas questões se entrelaçam nas mais diversificadas formas de existência da vida no e do
campo. Vida que tem como protagonistas os/as trabalhadores/as. É o campo da circulação de
pessoas, de gestos, de costumes, de tradições e de histórias; movimentando-se pelo trabalho
vivo da função social e ambiental da terra como intercâmbio entre os/as trabalhadores/
as e a natureza. Vidas que têm a sua religiosidade de matrizes africanas, indígenas, católicas,
espíritas e protestantes. Os rios são as estradas e cumprem a função de aproximar e distanciar as
comunidades; é um território diverso; é o campo do Amazonas em constante movimento.

Conclusões

Nesse contexto é importante questionar a realidade dessas escolas, a relevância de sua


permanência e as implicações de seu fechamento para os/as trabalhadores/as do campo do
Amazonas. Escolas no campo do Amazonas estão sendo fechadas. Entretanto, cabe aqui
destacar que esse processo se acentua sobre as escolas multisseriadas. As escolas multisseriadas
localizam-se nas comunidades, essa nomenclatura se dá em função de que crianças de idades
e níveis educacionais diversos são instruídas por um único professor ocupando a mesma sala
de aula. Dada as dimensões sociais, culturais e históricas desse território, o fechamento dessas
escolas é um problema, entretanto, ao mesmo tempo que acontece o fechamento de escolas
multisseriadas; ocorrem a nucleação de escolas nas comunidades com maior índice populacional.
A nucleação é viabilizada por meio do uso intensivo do transporte escolar, bem como o
deslocamento de crianças de suas comunidades para as escolas situadas em comunidades com
maior índice populacional. Nas escolas nucleadas, as crianças são reunidas em classes de acordo
com sua faixa etária, ou seja, é a transplantação de um modelo urbano para o campo. Em 2018,
foi capa de matéria do Jornal Acrítica contratos de transportes escolares sem licitações e as
condições precárias desses transportes em âmbito regional. Há uma relação dialética entre o
fechamento de escolas multisseriadas, a nucleação e o transporte escolar.
O fechamento de escolas, bem como a realidade por trás desse movimento, apresenta
múltiplas faces que precisam ser pesquisadas. Deste modo, não basta somente o entendimento

201
de que essas escolas estão sendo fechadas, precisamos transformar essa realidade no sentido de
anunciar ou denunciar que a retirada dessas escolas é um crime contra os sujeitos amazônicos,
por isso é necessária uma ampla discussão sobre esse tema no estado do Amazonas, uma vez que
em outros estados do Brasil esse tema ocupa os mais diferentes espaços. Nesse sentido, os dados
do Censo Escolar divulgado pelo Instituto Nacional de Pesquisas Educacional Anísio Teixeira
(INEP) apontam que só em 2018, 25% das escolas situadas no campo do Amazonas foram
fechadas. É importante registrar que o território com maior índice de escolas multisseriadas
fechadas é o da região norte do Amazonas.
O fechamento das escolas multisseriadas relaciona-se com os ditames do capital uma
vez que a engrenagem desse movimento desconsidera a realidade do sujeito do campo em suas
múltiplas dimensões; dimensões históricas, políticas, econômicas e socais. Diante da expansão
do capital propomos sustentar que o processo de fechamento dessas escolas não considera os
processos formativos das relações construídas historicamente e desconsidera os interesses dos/
as trabalhadores/as; estreita-se a internacionalização da Amazônia, relaciona-se aos cortes
orçamentários, acentua as desigualdades sociais ao mesmo tempo que efetiva a privatização do
transporte escolar.

202
REFERÊNCIAS

ARROYO, Miguel Gonzalez. MANÇANO, Fernandes Bernardo. A educação básica e o movimento social
do campo. (Coleção Por Uma Educação Básica do Campo, nº 2). Brasília, DF: 1999. Articulação Nacional
Por Uma Educação Básica do Campo.
ARROYO, Miguel Gonzalez. MOLINA, Mônica Castagna. Contribuições para a Construção de um
projeto de Educação do Campo. Brasília. (Coleção Por Uma Educação Básica do Campo nº 5). Brasília,
DF: Articulação Nacional Por Uma Educação Básica do Campo, 2004.
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Conhecimento. In M.G. S. Pinheiro, & N.M. Falcão (Orgs.), Políticas Públicas, Educação Básica e Desafios
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MARX, Karl. Friedrich Engels. A Ideologia Alemã (5rd ed.). (B.C. José, Trad.). São Paulo: HUCITEC,
1986.
MOURÃO, Arminda Rachel Botelho. A fábrica como espaço educativo (1a ed.). São Paulo: Editora
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São Paulo: FFLCH, 2007.
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crime continua. Revista Pedagógica, Chapecó 35(17).41-51, 2015. Recuperado de https://bell.unochapeco.
edu.br/revistas/index.php/pedagogica/article/view/3053/174.
UCHOA, Iraci Carvalho. MOURÃO, Arminda Rachel Botelho. Trabalho e educação do campo no
contexto amazônico: um estudo em uma comunidade camponesa do médio Rio Solimões (Dissertação de
mestrado). Faculdade de Educação, Universidade Federal do Amazonas, Amazonas, Manaus, Brasil, 2018.

203
CAPÍTULO 15 - PEDAGOGIA DA ALTERNÂNCIA: AÇÃO COLETIVA
PRODUTORA DE EDUCAÇÃO E DE PERMANÊNCIA NO CAMPO

Ana Paula Barbosa Neves Arsenio65

Lais Braz²

Thailane do Carmo Oliveira Mariotti de Lima³

Edilene Santos Portilho4

Resumo

Este texto busca entender a Pedagogia da Alternância no Brasil como ação coletiva produtora
de permanência nos territórios, considerando todas as suas variações e diversidades quanto à
dinâmica educativa ligada a um espaço e a um tempo específico. A metodologia desenvolvida foi
o estudo em grupo dos autores considerados clássicos sobre o tema e dos artigos encontrados na
Internet. Discutiu-se que, desde sua origem, a Pedagogia da Alternância se apresentou como uma
ação coletiva com expressão em todo o território nacional. As ferramentas que ela desenvolveu,
e que dialogaram com os sujeitos no seu cotidiano, foram capazes de gerar os conhecimentos,
saberes, relações e estruturas para que cada sujeito ou núcleo familiar pudesse produzir a sua
identidade social a permanência em seu território.

Palavras Chaves: Pedagogia da Alternância; Movimento Social; Permanência.

Introdução
Dança para invocar o aliado
(BOURRE, 1997)

Depois de um largo período de lutas e conquistas, surge uma fase de resistência e de


necessária resiliência por parte da Pedagogia da Alternância e dos povos que a criaram aqui
no Brasil. O período pandêmico e um governo conservador e violento produziram uma crise
generalizada que a todos vem afetando. No mínimo, faz-se necessário utilizar a dança, como na
epígrafe acima, além de outras línguas e linguagens na contínua busca pelos diretos sociais, pela
reforma agrária, pela demarcação dos territórios tradicionais e pela educação.
Como consequência de uma verdadeira jornada histórica que gerou e nutriu o movimento
de práxis da Educação Popular, o Art. 28 da Lei de Diretrizes e Bases – LDB/1996 – expressou
a conquista de uma educação diferenciada no Brasil, na qual a Educação do Campo foi o

65 1
Discente do Curso de Licenciatura em Educação do Campo, na Universidade Federal Rural do Estado
do Rio de Janeiro (UFRRJ), Campus Seropédica, integrante do Grupo PET (Programa de Educação Tutorial) de
Educação do Campo e Movimentos Sociais. Integrante do grupo PRONERA EJA, IFF Bom Jesus de Itabapoana.
2
Discente do Curso de Licenciatura em Educação do Campo, na Universidade Federal Rural do Estado do Rio de
Janeiro (UFRRJ), Campus Seropédica, integrante do Grupo PET (Programa de Educação Tutorial) de Educação do
Campo e Movimentos Sociais. Integrante do grupo PRONERA EJA, IFF Bom Jesus de Itabapoana.
3
Discente do Curso de Licenciatura em Educação do Campo, na Universidade Federal Rural do Estado do Rio de
Janeiro (UFRRJ), Campus Seropédica, integrante do Grupo PET (Programa de Educação Tutorial) de Educação do
Campo e Movimentos Sociais. Integrante do grupo PRONERA EJA, IFF Bom Jesus de Itabapoana.
4
Docente do Departamento de Educação do Campo, Movimentos Sociais e Diversidade (UFRRJ).

204
principal ganho. Nessa trajetória, a Pedagogia da Alternância, comprometida com a valorização
e a emancipação dos povos do campo, apresentou-se como parte das vitórias dos movimentos
sociais a partir de suas reivindicações. As experiências educativas em alternância foram ampliadas
nas cinco regiões brasileiras, ao mesmo tempo em que significaram uma recusa e contestação à
Educação Rural, um modelo conservador que ainda vigora no país.
O s períodos ditatoriais alavancaram o projeto de industrialização e o êxodo rural. A crise
do latifúndio, gerada pela nova fase do capitalismo, hipervalorizou o urbano e a indústria,
gerando pressões maiores sobre os povos do meio rural, que foram instigados a deixar o campo.
Essa dinâmica da reprodução capitalista sobre o espaço (HARVEY, 2005) no Brasil possui suas
origens no período colonial e ao longo do tempo determinou na sociedade brasileira as relações
de desigualdades sociais e de opressões (FREIRE, 1974).
A partir do exposto, este texto busca entender a Pedagogia da Alternância no Brasil como
ação coletiva produtora de permanência nos territórios. Ela é percebida como valorizadora
de todas as variações e diversidades presentes na dinâmica educativa, ligada a uma maneira
específica de vivenciar e gerar aprendizados no espaço-tempo. Esse espaço é o familiar, comunitário,
territórios de vida e de proteção. O tempo é aquele em que se dá as trocas de saberes e experiências,
a produção de elementos materiais e imateriais, e no qual é possível vivenciar a ancestralidade.
Nessa dinâmica espaço-temporal, os povos ocuparam, resistiram e produziram seu ambiente de
relacionamentos, coabitados por seres criadores de estruturas e de agroecossistemas em que é
notável a biodiversidade e a conservação dos bens naturais. Em seus espaços, vivenciaram conflitos
por minerais, árvores, rios e espécies de todos os reinos, motivados pelo ganho econômico,
próprio do domínio de capitalistas (fazendeiros, madeireiros, mineradores, milicianos entre
outros grupos de poder financeiro político e bélico), que devastaram a terra e seus bens naturais,
a partir de empreendimentos governamentais e empresariais.
Essa dimensão temporal de existência da Pedagogia da Alternância (PA) permite
aprender a despertar sentidos e memórias, construir linguagens de acordo com a cultura local e
materializar outros modos de viver e de compreender a relação humano-natureza (PORTILHO,
2008). É nesse tempo em que o sujeito pode vivenciar o aprendizado de si, da sua família, da sua
comunidade, do tempo livre, do trabalho, da criação, da invenção. A Pedagogia da Alternância
como proposta educativa se expande como consciência histórica, social, política, cultural e
econômica na formação integral e humanística para o desabrochar do sujeito e das subjetividades.
Foi excelente no diálogo com os jovens, mas também se voltou para pessoas de diferentes idades
e de fases da vida. Dessa forma plural, fez-se capaz de produzir estruturas, interações, relações
e saberes que orientaram e que tornaram possível a permanência das pessoas nos locais que
viviam.

A Pedagogia da Alternância nos CEFFAS

A Pedagogia da Alternância foi gerada nas primeiras Maisons Familiales Rurales – MFR´s
– que surgiram em meio a profundas transformações e tensões no espaço rural. A criação da
primeira MFR ocorreu em Lauzun, no ano de 1937, no bojo de longas discussões e reflexões no
meio camponês francês. A partir delas, surgiram outras experiências de educação escolar que
utilizam a Pedagogia da Alternância como método. Elas assumiram uma terminologia genérica
que são os Centros Familiares de Formação por Alternância (CEFFAs). Ao longo de 80 anos
foram instituídos mais de mil CEFFAs, distribuídos em 40 países, entre os cinco continentes:
África, América, Ásia, Europa e Oceania envolvendo em torno de 150 mil famílias. A França
possui o maior número de CEFFAs, 460, seguida do Brasil, com cerca de 263. Em terceiro lugar
está a Argentina, com cerca de 114, seguida da Guatemala, com 104, e da Espanha, com 55
(ANTUNES 2014).
O Brasil contou com 243 CEFFAs, como as Escolas Famílias Agrícolas (EFAs) e as Casas

205
Familiares Rurais (CFRs) (UNEFAB, 2007). Os CEFFAs brasileiros estão distribuídos em vinte
estados, sendo 145 EFAs e 118 CFRs. As Escolas Famílias Agrícolas (EFAs) estão nos seguintes
estados: Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro, Espírito Santo, Minas Gerais, Goiás, Mato Grosso
de Mato Grosso do Sul. Já as Casas Familiares Rurais (CFRs) estão presentes nos estados do
Paraná, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Amazonas, Pará e Maranhão. Na região Sul são 61
Casas, sendo: 43 no Paraná, 12 em Santa Catarina (sendo 02 Casas Familiares do Mar) e 06
no Rio Grande do Sul. As experiências brasileiras mais conhecidas têm suas origens no modelo
italiano, com as Escolas Família Agrícola (EFAs), disseminado na Bahia e no Espírito Santo,
e no francês, com as Casas Familiares Rurais (CFRs), disseminado no Sul e no Norte do país
(ANTUNES 2014).
Todos os documentos ressaltam a primeira experiência brasileira de Pedagogia da
Alternância como tendo ocorrido em 1969. O Movimento de Educação Promocional do
Espírito Santo (MEPES) fundou as instituições que se denominam atualmente: Escola Família
Rural de Alfredo Chaves, Escola Família Rural de Rio Novo do Sul e Escola Família Rural de
Olivânia, essa última no município de Anchieta. (TEIXEIRA et. al, 2008).
Os CEFFAS, que atendem a educação em seu nível fundamental e técnico-profissional, foram
os precursores dessa pedagogia que se disseminou em todo o Brasil com experiências em escolas
municipais e estaduais de nível fundamental e médio e em diversas modalidades, até os cursos
de graduação e de pós-graduação, nas instituições estaduais e federais de nível superior.

Pedagogia da Alternância na Amazônia: uma ação coletiva

Os movimentos iniciais que deram origem à Pedagogia da Alternância surgiram às margens


da rodovia Transamazônica, que foi construída durante o período da ditadura civil-militar com
a promessa de desenvolver a região a partir de outros grandes projetos como a mineração e
o agronegócio. Logo, seu surgimento na região Norte está relacionado ao Movimento pela
Sobrevivência na Transamazônica MPST (Foto 1). Desde a década de 1970, esse movimento
mobilizou pessoas que habitavam um conjunto de municípios que viviam em situação de
abandono.

Foto 1 - Movimento pela Sobrevivência na Transamazônica MPST, 1970. Fotografia fornecida pela
ARCAFAR Norte/Nordeste.

No decorrer das lutas por um desenvolvimento diferente, que mantivesse a floresta em pé

206
e o livre curso do rio Xingu, o nome foi transformado em Movimento pelo Desenvolvimento
da Transamazônica e do Xingu. Esse movimento envolveu pastorais sociais alinhadas com o
movimento da Teologia da Libertação, inspirada nos princípios da educação libertadora. Após
visitas às Maisons Familiales Rurales, os participantes desse movimento entraram em contato
com as concepções teórico-metodológicas das Pedagogia da Alternância do modelo francês,
que oferece educação em especial aos jovens do campo e da cidade em regime de formação
integral básica e técnica (PORTILHO, 2008). A partir daí, iniciou-se uma efetiva e ampla ação
coletiva para instalar as Casas Familiares Rurais na Transamazônica. Em 1995, foi fundada a
primeira Casa Familiar Rural, no município de Medicilândia, no Pará. Posteriormente, dezenas
de CFR’s foram construídas na região Norte.

Essa é uma interrogação que a gente faz para o pessoal: ter uma Casa
familiar Rural para quê?” (Se os agricultores respondem) - Ah! A gente
quer uma Casa Familiar Rural para nossos filhos para nossos filhos
estudar! (Eu respondo): Então pra isso não precisa! Existe escola aí para
estudar, porque se for só pra isso, não precisa fazer organização de família,
criar uma associação de família, fazer isso tudo. Tá fazendo reunião só
para oferecer estudo? Isso já tá posto nas escolas que tem aí...tenho uma
recusa pelo nome escola. Porque eu acho que essa questão é muito um
diálogo entre quatro paredes (...) no máximo, a escola é um espaço de
formação escolar e não um espaço de formação humana. A originalidade
do nome CASA vem de um local, uma casa onde você aprende, mas que
você está para conhecer o que é a natureza; o que é um setor, um ramo de
produção. Mas também para estudar a história da humanidade. Estudar
sobre a formação humana -Leônidas Martins - presidente da ARCAFAR
NORTE/NORDESTE (PORTILHO, 2008).

Com muito afinco Leônidas Martins dirigiu a Associação das Casas Familiares Rurais
da região Norte. A Comissão Pastoral da Terra (CPT) também esteve junto com associações,
sindicatos e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) no estudo para a criação
das CFRs e outras instituições, que reuniram-se e mobilizaram pescadorxs, seringueirxs,
campesinxs, ribeirinhxs, dentre outros povos, na formulação de um projeto de Educação do
Campo.
Vale ressaltar que essa luta pela Educação do Campo no estado do Pará se fez ao mesmo
tempo em que se reivindicou outras políticas públicas para o campo, como a reforma agrária.
Evidentemente, essas conquistas não foram fáceis. Houve massacres, assassinatos e emboscadas
nas quais muitas vidas foram perdidas... uma delas foi a missionária Dorothy Stang, uma das
tantas pessoas comprometidas com a luta pelos povos da floresta e pela Amazônia. Apesar disso,
as pessoas continuaram a confiar na Pedagogia da Alternância e nos projetos dos assentamentos
que mantêm a defesa da floresta em pé.
Infelizmente, os campesinxs e os povos da floresta dessa região da Transamazônica viveram
as injúrias do medo e da violência:

Dezessete anos depois de despontar como o local onde foi assassinada a


freira americana Dorothy Stang, o município paraense de Anapu viveu
um novo ataque no início de 2022. Em 11 de maio, cerca de 10 invasores
fortemente armados e encapuzados invadiram uma área conhecida como
Gleba Bacajá. O grupo expulsou as quase 54 famílias que ali viviam e, e em
seguida, queimou as casas.
Desde 2005, ano marcado pelo assassinato da irmã Dorothy, os conflitos
agrários nos assentamentos em Anapu aumentaram e cerca de 22 pessoas
foram assassinadas no município, de acordo com o registro do Centro
de Documentação Dom Tomás Baldino da Comissão Pastoral da Terra
(CPT, 2022)
Dentro de contexto de ausências de estruturas básicas e marcado pela violência foi que

207
as CFRs cresceram na Amazônia. Todos esses espaços-tempos acolheram milhares de jovens, que
em sua maioria não teria o mínimo de acesso à escola. Vale ressaltar que o modelo clássico coloca
a família como parceira do processo educativo e o jovem ainda é visto como um sujeito que
precisa ser acompanhado pelos pais e dirigentes. De certo modo, esse modelo aqui no Brasil
se transformou em um movimento emergente dentro das complexidades de ausências e de
conflitos no campo. A associação da CFR significa a busca de uma identidade comunitária,
a consciência de um pertencimento que se traduz em resistência frente à opressão. Desde sua
origem, a Pedagogia da Alternância se apresenta como uma ação coletiva, toda essa trajetória
confirmou que a luta tem sempre objetivos instrumentais, mas em primeiro plano está o reforço
da solidariedade do grupo, a busca por trocas simbólicas e afetivas (MELUCCI, 2001), a
experiência educativa é território no qual se dá esse tipo de relacionamento.

A permanência dos jovens motivada pela prática pedagógica da alternância

A questão da permanência no contexto das novas ruralidades foi, segundo autores


como Brumer (2007), Carneiro (2007) e Wanderley (2000; 2004), considerada a questão
que implicaria novos horizontes para melhor entender os dilemas das juventudes brasileiras.
Estudos de dezenas de autores colocaram a importância da Pedagogia da Alternância como um
dos elementos que geram permanência no ambiente rural.
São muitos motivos que levam à saída de jovens e de famílias inteiras, ou parte delas,
do meio rural. São as dificuldades de sucessão em que se encontram os jovens que os tornam
desprotegidos, com a expropriação dos bens naturais e a falta de acesso à terra e às estruturas
básicas (PORTILHO, 2015).
Brumer (2007) cita estudos que demonstram a continuidade do processo migratório e
a visão relativamente negativa dos jovens sobre a atividade agrícola, porém, este desinteresse
é apenas uma faceta de um conjunto de elementos que completam o quadro de adversidades
frente ao conjunto de demandas das juventudes. Esses estudos ressaltam os aspectos negativos
da migração, pois quando os jovens migrantes não possuem um nível escolar adequado, nem
condições materiais para enfrentar a vida na cidade possuem.
Há diversos fatores que buscam explicar a saída, como os fatores estruturais que envolvem
as decisões sobre migração tomadas por indivíduos que variam nas avaliações dos fatores de
atração para a cidade (que apresenta oportunidade de trabalho remunerado e de escolarização)
e os fatores de expulsão (que consistem na dificuldade da vida no meio rural). Brumer (2007)
confirma que a decisão pela migração se faz como resposta primeiramente aos fatores de expulsão
e depois aos fatores de atração.
Depois de algumas décadas que Paulo Freire (1983) publicou seu livro: “Extensão ou
Comunicação?”, as experiências em Alternância colocaram em prática uma Extensão Rural que
passou a dialogar diretamente com o universo das famílias, tornando-se engajada no aprendizado
gerado nos espaços-tempos de construção dos saberes. Essa proposta de educação-extensão gerou
uma formação que transformou e se expressou diretamente na melhora das condições de vida
dos educandos.
Santos conclui sua pesquisa com a afirmação de que a experiência em alternância
“desempenha um importante papel que contribui para a permanência do jovem no campo
através dos conhecimentos técnicos que lhes são ensinados, tendo como ponto de partida uma
educação que articula teoria e prática e como princípio a reflexão crítica e cidadã” (SANTOS,
2020).
As experiências em alternância se apresentaram como espaços-tempos de lutas-conquistas-
resistências que ressignificaram a educação. Uma educação composta por instrumentos
pedagógicos que vivificam a extensão rural. Desenvolvida ao longo do tempo, produziu
permanência, principalmente, nos territórios mais adversos.

208
Portilho (2015) mostrou em um estudo de territórios de povos tradicionais (ribeirinhos) em
que não há a Pedagogia da Alternância, nem experiências educativas politicamente engajadas
com os princípios da educação do campo, que o tema da permanência foi compreendido na
lógica da Educação Rural.

Alguns professores apontaram que os ‘jovens permanecem’, ‘levando a


vidinha igual à dos pais’. Para minha surpresa, a permanência dos jovens,
aos olhos destes professores, é uma forma de fracasso, vergonha. Pois de
acordo com uma professora: ‘fora dali ele poderia ter toda uma vida pela
frente’; permanecer no Lago (território tradicional) implica na interrupção
dos estudos e na reprodução do modo de vida ainda visto como ‘atrasado’”
(PORTILHO, 2015, p.61).

Infelizmente, a Pedagogia da Alternância como proposta de Educação do Campo segue


como uma política pública insuficiente para atender todos os segmentos que precisam acessá-
la. Pois grande parte das comunidades tradicionais - especialmente indígenas, quilombolas,
ribeirinhos e povos da floresta - seguem excluídos do acesso à educação escolar de nível básico
em suas localidades.
Paulo Freire refletiu sobre o papel de reprodução da lógica de exploração dos técnicos
na relação com os sujeitos do campo. Foi dentro de um processo histórico, que tratou o campo
e seus sujeitos como subalternos das lógicas e dos valores urbanocêntricos e capitalistas, que
se gestaram as resistências dos sujeitos sociais em função de uma educação transformadora e
emancipatória (FREIRE, 1974; 1983). A Pedagogia da Alternância significou essa resistência
elaborada e vivenciada nas experiências em todos os níveis e modalidades, desde o ensino
fundamental até a pós-graduação. Tornou-se uma mandala de saberes no diálogo espaço-
tempo, em que as vivências e as interlocuções se projetam como linguagens e como recursos
no cotidiano protagonizado pelos movimentos sociais juntamente com famílias, docentes e
discentes engajados por uma educação de melhor qualidade.
A Extensão Rural na perspectiva libertadora incorporou sociabilidades e a cultura dos
sujeitos campesinos ou dos sujeitos de culturas tradicionais. Essa valorização da cultura e da
diversidade permitem ativar o currículo ampliando sua compreensão para além das formas
peculiares de cultivo da terra, da preservação e da conservação dos solos, das águas, das florestas
e da biodiversidade.
Não resta dúvida de que é no cotidiano que se manifestam as demandas das pessoas pela
permanência e pela sua mobilidade, em que se misturam os temas do trabalho, família, educação
e lazer como suas principais manifestações (PORTILHO, 2015). As ferramentas da Pedagogia
da Alternância, que dialogaram com os sujeitos no seu cotidiano, foram capazes de gerar os
conhecimentos, saberes, relações e estruturas para que cada sujeito ou núcleo familiar pudesse
produzir a sua identidade social e sua permanência em seu território.

Resiliência da PA como ação coletiva

Em um país que foi o último do Ocidente a abolir a escravidão (SCHWARCZ, 2018),


a Educação Rural mediou os interesses do Estado capitalista quando concretizou nas escolas
a reprodução de um triste cenário conservador que priorizou o discurso pelo moderno
(KOLLING; NERY; MOLINA, 1999), a centralidade dos valores urbanos e privilegiou
a ideologia do racismo e da discriminação social e cultural. Em contraponto, a Pedagogia
da Alternância construiu pontes e diálogos entre as famílias, as comunidades e o mundo do
trabalho, ao mesmo tempo em que possibilitou o protagonismo dos mais diversos sujeitos do
campo.
Se a formação na alternância possibilitou a educação em tempo integral, envolveu as

209
famílias na educação dos filhos, fortaleceu a prática do diálogo entre os diferentes atores que
participam dos processos de formação dos educandos e proporcionou qualificação técnica aos
estudantes com o intuito de fortalecer a permanência. Enquanto via popular, construiu-se como
um novo projeto para a sociedade brasileira ( JESUS, 2011). Miguel Arroyo (2012) nos diz que
o conhecimento que é relevante é aquele conhecimento para saber-se. Este, incontestavelmente
fez o real sentido da educação e da escola, por isso considerá-lo o norteador no cotidiano da
Pedagogia da Alternância a partir das perspectivas e concepções existentes nas realidades dos
grupos sociais que as experienciaram.
Uma gama de instituições foi criada para atender os povos com diversas combinações
possíveis, a partir de parcerias entre pessoas, instituições/movimentos sociais e o Poder Público.
Sua pedagogia, direcionada pelo tempo-escola e tempo-comunidade, utiliza ferramentas
distintas para cada momento, permitindo a produção de conhecimento pelos educandos em
cada ambiente específico. Essas ferramentas pedagógicas foram ressignificadas dentro de uma
nova episteme.
Nas escolas do Brasil, em especial nas escolas em que os atores sociais estão presentes
enquanto protagonistas do processo educativo, as ferramentas pedagógicas servem como
metodologia, recurso didático e pedagógico de apoio para a reflexão e a sistematização das
atividades educativas. Na educação voltada para a emancipação e a autonomia dos estudantes
- produtores e artífices em seu próprio cotidiano -, os intercâmbios de conhecimentos são
construídos a partir do que o educando traz do seu convívio familiar e comunitário para a escola
e do conhecimento que leva da escola.
A investigação autônoma é sugerida e incentivada em todos os tempos educativos, sendo
a escola o espaço de maior destaque para em conjunto gerar indagações e interesse. O educador,
em algumas experiências visto como um monitor, um coordenador, não é tido como o senhor
do conhecimento, e sim um amigo, uma amiga, um facilitador do processo de ensino e de
aprendizagem. Portanto um educador que tem consciência de seu papel educador-educando
(FREIRE, 1974).
Realizada essa reflexão sobre a Pedagogia da Alternância, necessariamente foi natural
evocar a pedagogia libertadora que reconhece o território como lugar onde não apenas se
reproduz, mas que também é capaz de pensar e produzir metodologias. Uma educação como
processo que ocorre de forma dialógica num ambiente ampliado de construção coletiva e
formação social. Para vencer barreiras, procurando ir além do latifúndio da terra, precisamos
vencer o analfabetismo e a exclusão educacional dos povos e sujeitos dos campos, das águas e das
florestas.
Dentre as ferramentas pedagógicas, uma delas é de grande importância para a
emancipação dos educandos: o “Projeto do jovem” ou o “Projeto do educando”. Essa ferramenta
articula as concepções, as ideias, as experiências, as indagações e inquietudes dos educandos
em um processo formativo próprio, valorizando o futuro como dimensão importante para os
jovens. Esta forma de ser ator e autor de seus conhecimentos, de sua consciência política, social
e histórica, articulada ao seu reconhecimento e identidade cultural, representa um momento
culminante em sua trajetória escolar. Desta forma, a Pedagogia da Alternância não percebe a
formação humana como algo isolado na instituição de poder como a universidade e a escola. Ela
percebe a formação humana em seu espaço de criatividade, das artes, dos saberes populares, das
sociabilidades, do trabalho…
Os aspectos da origem, da ancestralidade, dos modos de vida e dos espaços educativos são
determinantes para moldar a permanência. Os diferentes espaços como as roças, o campo de
futebol, o banho de rio, a cozinha, o terreiro, a floresta, entre outros, são espaços educativos de
bem-estar e de experimentações de linguagens e afetos, dizem muito para a formação humana
para a permanente luta-conquista do direito à educação comprometida com a emancipação dos
povos.
Para isso é essencial o protagonismo dos movimentos sociais que produziram outros

210
currículos, na medida em que defendem ocupar o latifúndio do saber, as escolas, as universidades,
os currículos para plantar e afirmar outros conhecimentos, para se afirmarem produtores de outras
culturas e valores (ARROYO, 2015). De acordo com Candau e Moreira (2007:18), o currículo
associa um “conjunto de esforços pedagógicos desenvolvidos com intenções educativas”. Esse
currículo é construído na Pedagogia da Alternância dentro de um mundo concreto, dialogando
com diferentes concepções e trazendo fatores sociais e econômicos que interferem nas decisões
sobre: conteúdos, experiências de aprendizagens entre os alunos, os planos pedagógicos que
integram todos os responsáveis e corresponsáveis pela educação, orientam os objetivos a serem
alcançados dentro do processo educativo e definem a respeito dos processos de avaliação.
A pedagogia da Alternância foi e será o território das diferentes cores, vozes e identidades
na construção de saberes e de conhecimento dos diversos povos. Os diversos saberes são
arquitetados, ritualizados, produzidos e reproduzidos no contexto das trocas, dos modos de
vida, das tradições e no cotidiano das lutas e na convivência familiar e comunitária, na qual foi
continuamente realizada a agroecologia, a soberania alimentar, as artes e as diferentes linguagens.

Considerações Finais

Dentro de uma realidade de carências ou de extrema dificuldade, a Pedagogia da Alternância


foi abraçada por toda a diversidade dos povos do Brasil, desenhando na sua trajetória o direito
à terra, aos modos de vida e ao território do saber. Para além de uma decisão pedagógica, as
experiências em alternância, compreendidas como uma ação coletiva ampla e efetiva, dialogou
com uma gama de complexidades, articulou ferramentas e recursos pedagógicos específicos,
inspirados na pedagogia libertadora.
Nitidamente, as experiências de educação em alternância se revelaram como instituições
populares e insurgentes, de excelência da Educação do Campo, para os jovens de diversas origens e
identidades sociais. E, para além disso, expressaram também sua excelência quando promoveram
a extensão rural, como instrumento de mediação da permanência e base do modelo pedagógico.
Absolutamente recente na história do Brasil, a Pedagogia da Alternância foi um dos mais notáveis
modelos de educação diferenciada na tentativa de compensar centenas de anos de apagamentos,
silenciamentos e violações dos oprimidos. Pois essa proposta de Educação do Campo trouxe
em seu bojo toda uma concepção de luta por uma consciência ampla e autônoma pela defesa
do território e pela defesa dos direitos sociais daqueles segmentos que sofreram exploração,
escravização, genocídio...
Um projeto de educação efetivo para a emancipação dos povos do campo se desenvolveu e
floresceu, os frutos foram incontáveis, o principal deles é a capacidade do indivíduo de produzir
sua permanência em seu território, o qual cada vez mais deve ser protegido das lógicas destrutivas
do capital.

211
REFERÊNCIAS

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Comissão Pastoral da Terra: Projeto Dorothy Stang: Incra cria assentamento em região
ameaçada por grilagem e violência no Pará. Disponível em <https://www.cptnacional.org.br/
publicacoes/noticias/geral/6096-projeto-dorothy-stang-incra-cria-assentamento-em-regiao-
ameacada-por-grilagem-e-violencia-no-para>> Consultado em 09/09/2022.

213
CAPÍTULO 16 - DESAFIOS TEÓRICO-PRÁTICOS DA APLICAÇÃO DA PEDA-
GOGIA DA ALTERNÂNCIA: APROXIMAÇÕES A PARTIR DE UM ESTUDO
DE CASO NAS EFAS DE OLIVÂNIA, VINHÁTICO E GARRAFÃO/ES66

Leonardo Rauta Martins67

Resumo

As Escolas Família Agrícola – Efas, fundadas no estado do Espírito Santo, no fim da década de
1960, são reconhecidas como as pioneiras a utilizar a pedagogia da alternância no Brasil. Os
instrumentos pedagógicos que dão vida a essa forma particular de Alternância são responsáveis
por integrar dois diferentes tempos/espaços de formação: o tempo escola e o tempo comunidade.
Nosso objetivo com este texto é discutir como se dá, no âmbito das Efas capixabas, a aplicação
desses instrumentos e as contradições que emergem no interior desse dispositivo educacional.
Este é um trabalho de inspiração etnográfica que, em diálogo com a literatura especializada,
integra tanto nossa experiência enquanto professor da Efa de Olivânia (2013) quanto um
trabalho de campo de três meses realizado por ocasião da nossa tese de doutorado (2017). Nosso
esforço de pesquisa mostra que as transformações estruturais pelas quais passou o mundo rural
nas últimas décadas, associadas a correlata mudança no perfil dos alunos que integram as Efas,
trouxeram inúmeros desafios ao funcionamento das Efas, entre os quais produzir confluências
entre as diferentes expectativas que pais, alunos, monitores e parceiros alimentam em relação ao
trabalho das Efas.

Palavras-chave: Pedagogia da Alternância; Escolas Família Agrícola; Educação do Campo.

Introdução

As Escolas Família Agrícola-Efas do estado do Espírito Santo constituem-se as experiências


pioneiras no uso da pedagogia da alternância no Brasil e sua história se entrecruza com o cenário
de transformações do mundo rural brasileiro ao longo das últimas 5 décadas. A despeito da
relevância social das Efas e do alcance externo da sua ação pouco se discute sobre os instrumentos
que dão vida e sentido a essa pedagogia.
O objetivo deste texto é discutir como se dá, na prática, a aplicação dos instrumentos da
pedagogia da alternância e as contradições presentes nesse dispositivo educacional (Efa). Para
tanto, recuperamos parte da discussão presente na tese de doutorado deste autor, cujos alicerces
são o trabalho etnográfico68 realizado nas Escolas Família Agrícola de Vinhático, Garrafão e
Olivânia – situadas no estado do Espírito Santo –, e a experiência deste autor como professor
na Efa de Olivânia69, em diálogo com a literatura sobre pedagogia da alternância.
Para efeitos de organização, dividimos o texto em três seções, para além desta introdução
e das considerações finais: na primeira, recuperamos os principais tipos de alternância, com
destaque para as particularidades da pedagogia da alternância praticada pelas Efas e sua forma de
estruturação; na segunda, abordamos os principais instrumentos pedagógicos utilizados pelas

66 Esse texto é uma versão modificada de um dos capítulos da minha tese de doutorado, intitulada “Permanecer
no campo como projeto de vida de jovens rurais: experiências de formandos e egressos de Escolas Família Agrícola no
estado do Espírito Santo”.
67 Professor da Licenciatura em Educação do Campo na UFRRJ – Universidade Federal Rural do Rio de
Janeiro
68 O trabalho de campo foi realizado no primeiro semestre de 2017, quando permaneci 1 mês em cada uma das
Efas, convivendo e compartilhando o dia a dia de alunos e professores.
69 Atuei como professor (monitor) da Efa de Olivânia durante o ano letivo de 2013, nas disciplinas de história,
geografia e sociologia.

214
Efas para possibilitar a integração entre os diferentes espaços de aprendizagem (o tempo escola e
o tempo comunidade), com destaque para o plano de estudo, o caderno da realidade, o internato
etc.; em seguida, tratamos dos agentes internos (monitores) e externos (parceiros) responsáveis
pelo processo de formação dos alunos e a relação de cumplicidade que estes estabelecem com
as Efas; Por fim, a título de considerações finais, elencamos alguns dos principais desafios
enfrentados pelas Efas do ponto de vista dos atores que integram essas escolas.

Alguns elementos para a compreensão da alternância realizada nas Efas

A utilização da alternância em processos formativos não se constitui propriamente uma


novidade e pressupõe a integração entre os diferentes elementos que estruturam a formação em
alternância, a saber: a escola, o espaço social e o trabalho (BOUGEON, 1979). Do período pré-
industrial até os dias atuais, diferentes iniciativas formativas/educacionais empregaram algum
tipo de alternância, como as escolas fabris e as escolas católicas na Inglaterra (Idem). Todas
essas experiências diferem-se uma das outras em função de particularidades sócio-históricas e
geográficas e do nível de integração entre os diferentes elementos do processo de formação em
alternância.
Segundo Gimonet (2007), os tipos de alternância pedagógica mais comuns são a
justaposta, a aproximativa e a integrativa, esta última praticada nas Efas. Ainda segundo esse
autor, a alternância justaposta ou falsa alternância faz com que o alternante viva períodos de
estudo na escola e de prática em empresas sem que haja nenhuma ligação manifesta entre esses
dois tempos da formação. Já a alternância aproximativa “associa os dois tempos de formação
em um único conjunto coerente” sem que haja, contudo, uma verdadeira interação entre as
dimensões do estudo e do trabalho (teoria e prática); nela, os alternantes “permanecem em
situação de observação da realidade sem ter os meios de agir sobre a mesma” (Idem, p.120).
Por fim, a alternância integrativa ou real caracteriza-se pela “sucessão de tempos de formação
teórica e prática” conectados entre si e em interação e por um trabalho reflexivo a partir da
experiência dos alternantes (Idem). Essa capacidade reflexiva está no cerne da produção
de conhecimentos, influindo na formação de disposições acionadas pelos jovens quando
confrontados a situações do cotidiano e quando instados a pensar o seu próprio futuro. Do
mesmo modo que está relacionada a uma das finalidades estratégicas atribuídas às Efas, qual
seja: a transformação do meio social onde estão instaladas, ou seja, das realidades de agricultura
familiar.
Neste modelo educativo a experiência do aluno constituiu o ponto de partida do processo
formativo, postura que em simultâneo valoriza esses indivíduos (suas trajetórias) e a agricultura
familiar, ou seja, o meio de vida de onde provém. As Efas, ao intentar desenvolver uma pedagogia
da alternância integrativa localizada na intersecção de três espaços sociais fundamentais no
processo de socialização das novas gerações – a escola, a família e o meio socioprofissional- se
aproxima da concepção deweyana de educação, sobretudo, conferindo centralidade ao papel
da experiência na produção do conhecimento e na formação de atitudes que incentivem os
indivíduos a continuarem aprendendo (DEWEY, 2010).
A representação gráfica a seguir, de autoria de Gimonet (2007), pode ser um guia para se
pensar o funcionamento das Efas e a complexa rede de relações que integra os alunos (alternantes)
e o dispositivo educacional (Efa) e vice-versa; alternantes e outros atores do mundo rural; e Efas
e demais dispositivos de fortalecimento da agricultura familiar.
No centro do dispositivo (a Efa) situam-se os jovens na condição de sujeitos em
formação, também chamados de alternantes em razão de não serem apenas alunos, mas, “atores
socioprofissionais estudando, se formando, se educando em alternância” (GIMONET, 2007, p.
126).

215
Figura 1. Elementos constitutivos do sistema-alternância

Fonte: GIMONET (2007, p. 128).


A formação por alternância praticada nas Efas ao colocar a experiência do jovem no


centro do seu processo de ensino-aprendizagem produz, simultaneamente, ganhos pedagógicos
e políticos para a juventude, suas famílias e a agricultura familiar. Em termos pedagógicos, já
está provado que a busca por uma “aprendizagem significativa”, centrada na experiência do
aluno, facilita o processo de formação de jovens, confere sentido aos conteúdos ministrados em
sala de aula e ao mesmo tempo insta os jovens a refletirem sobre seus conhecimentos prévios
ressignificando-os (MOREIRA, 2010). Em termos políticos, partir do conhecimento prévio dos
alunos – e por extensão de suas famílias – significa valorizar a agricultura familiar, reconhecendo
saberes de sujeitos historicamente excluídos dos processos de educação formal, restituindo-lhes,
portanto, a dignidade roubada em vista dos séculos de abandono por parte do Estado. Trata-
se também de reconhecer a artificialidade da separação entre trabalho manual e intelectual,
utilizada historicamente como fundamento para a manutenção e reprodução de uma estrutura
de classes desigual, uma vez que, como ponderou Gramsci (1982, p. 07), “em qualquer trabalho
físico, até mesmo no mais degradante e mecânico, existe um mínimo de atividade intelectual”, ou
seja, “não existe atividade humana da qual se possa excluir absolutamente alguma participação
intelectual: não é possível separar o homo faber do homo sapiens”.
A prática das Efas pressupõe a existência de um projeto educativo composto das “ações de
formação e da implementação da alternância, atribuindo-lhes sentido, tanto do ponto de vista
de cada alternante quanto da instituição”, ele contém ainda as “finalidades visadas, as metas e os
objetivos perseguidos, os valores subjacentes determinam o funcionamento da alternância, sua
orientação e suas modalidades” (GIMONET, 2007, p. 126).
Nas Efas, o projeto formativo elaborado pela equipe pedagógica conta com a participação
dos demais atores envolvidos no processo de formação (parceiros, a associação etc.). A
condensação dessas discussões integra a proposta pedagógica elaborada por cada escola. O
trabalho dessas instituições escolares se sustenta sobre quatro pilares, dois são finalidades (a
formação integral do aluno e o desenvolvimento sustentável das regiões onde vivem) e dois são
meios (a pedagogia da alternância e a associação local), conforme ilustração a seguir:

216
Figura 2. Escolas família Agrícolas e seus pilares de sustentação

Fonte: Pedro Puig-Calvó, extraído de Gerke de Jesus (2011), p.71.

Esses pilares foram construídos ao longo do tempo e espelham um determinado estágio


de desenvolvimento da pedagogia da alternância desenvolvida pelas Efas. Muito provavelmente,
quando da implementação da iniciativa, não se tinha tão claro esse conjunto de elementos,
tampouco a visão de como eles se integrariam e conformariam esse experimento educativo . 70

Trata-se, portanto, do desenho do dispositivo educacional com suas finalidades e meios,


conectado aos projetos de vida da juventude a partir da experiência escolar/de vida produzida/
sistematizada a partir da mediação da Efa.
A formação integral e o desenvolvimento do meio devem ser encarados como dois grandes
objetivos das Efas (CALIARI, 2013). Essa formação integral pressupõe o desenvolvimento de
capacidades e habilidades que transcendam a simples formação escolar ou técnica. O jovem é
visto, nesse caso, como um agente de desenvolvimento e de transformação do seu meio de vida,
por isso, é instado a refletir sobre a sua realidade e com isso desnaturalizar processos sócio-
históricos tidos como imutáveis, como a distribuição da terra, a divisão sexual do trabalho (os
papéis de gênero), a relação campo e cidade, as formas de cultivo de alimentos e criação de
animais, o acesso a mercados etc. (MARTINS, 2021). Em resumo: o interesse é que os jovens em
formação percebam que seu modo vida e toda a realidade que os cerca decorrem de construções
sócio-históricas e, portanto, são passíveis de serem alterados a partir do seu engajamento em
lutas sociais.

Instrumentos da pedagogia da alternância e sua relação dialética com a realidade


O trabalho da Efas, relacionado ao desenvolvimento do meio, passa pelo questionamento
das atuais formas de produção agropecuária. Por isso, já há alguns anos, incorporou à sua
prática educativa a dimensão da agroecologia enquanto forma de produção que preserva o meio
ambiente e valoriza a cultura e os saberes locais. Exemplo dessa postura são as propriedades
utilizadas na experiência de ensino nas Efas, nelas se observam os princípios agroecológicos
como o não uso de agrotóxicos, a diversificação produtiva, o resgate das sementes crioulas etc.
Para além de contribuírem para formação de técnicos em agropecuária que manejam tecnologias
alternativas e em muitos casos defendem a bandeira da agroecologia , a propriedade escolar em
71

70 Bougés (2014) ao citar Daniel Chartier (1986) comenta que até 1945, ou seja, quase 10 anos após o início das
Maisons, os monitores ainda ensinavam de acordo com o método tradicional, com a ajuda de um manual. Do mesmo
modo, nos primeiros anos das Efas não havia ainda a crítica contundente aos agrotóxicos, a alternância era de 15/15
dias e não 7/7 como atualmente,
71 São múltiplos os engajamentos percebidos na experiência de campo e no relato dos jovens ex-alunos em
relação a colegas seus, em experiências agroecológicas ou de produção orgânica tocadas por ex-alunos em propriedades
das famílias, bem no engajamento desses jovens e a defesa da agroecologia/produção orgânica no âmbito de
associações locais, sindicatos e movimentos sociais. No caso de Santa Maria de Jetibá, os casos de experiências
exitosas em produção orgânica ou agroecológica existentes no município são em parte atribuídos (por monitores e
atuais alunos da Efa) a ex-alunos da Efag. Em conversas informais e mesmo entrevistas realizadas com esses agentes
a opção pela produção sem agrotóxicos tem um viés “pragmático”: preserva as condições de saúde do grupo familiar
(o adoecimento pelo uso excessivo de agrotóxicos é uma preocupação constantemente manifestada); possui valor
agregado, sendo melhor recebida nos mercados (sobretudo aqueles de venda direta para o consumidor), possibilitando

217
plena produção também mostra para as famílias dos alunos que é possível produzir sem o uso de
venenos.
Aprender e praticar princípios agroecológicos no espaço escolar não necessariamente
leva à formação de sujeitos politicamente engajados com essa forma de produzir e existir.
Encontramos na pesquisa de campo ex-alunos com graus variados de interesse nessa questão,
por exemplo: (1) ex-alunos de assentamento, defensores da agroecologia, utilizada, nesse
caso, como uma bandeira política; (2) ex-alunos que são defensores não praticantes, ou seja,
defendem a agroecologia e reconhecem seu valor, mas por prestarem serviços técnicos ao
agronegócio, operam sob a lógica da agricultura convencional; (3) ex-alunos que admitem
preferir trabalhar de forma convencional, com os devidos cuidados (na dosagem, na aplicação,
no intervalo entre aplicação e consumo dos produtos, etc.) e que quando estudantes seguiam
a agroecologia por ser esta a forma de trabalho da escola . Como aponta Gimonet (2007, p.
72

135), “o ensino não é outra coisa senão a transmissão de informações, sendo que algumas estão
sendo captadas de maneira diferente segundo os alunos, em função do sentido que fazem, de
uma luz trazida por uma prática, por uma experiência”. Logo, as condições efetivas encontradas
pelos jovens para colocarem esses aprendizados em prática, de realizarem a experimentação,
são tão importantes quanto os ensinamentos adquiridos nas Efas, o que atesta a importância da
articulação e compartilhamento de valores entre a família e a escola, sem os quais a proposta de
ensino defendida por essas escolas não se materializa por completo.
A alternância integrativa, como a realizada pelas Efas, associa diferentes espaços-tempo
na aprendizagem escolar, sendo a escola e o meio sociofamiliar os dois principais tempos da
73

formação. As Efas partem do pressuposto de que a vida ensina, gera experiências e conhecimentos
e que é dentro da comunidade que as pessoas se educam para vida inteira. “A escola é, antes
de tudo, local de diálogo com os saberes (...). Quando a escola pretende unicamente ensinar
apresenta ao sujeito uma realidade artificial e empobrecida” (EFA Bley, 2016, p.22). Por isso,
segundo um dos fundadores da Efav, nessa escola “o aluno vai lá e aprende a aprender, quem
aprende a aprender é fácil, depois qualquer coisa ele já sabe” (PANCIERI, 2017).
Para integrar escola e ambiente socioprofissional, as Efas lançam mão de diferentes
instrumentos condensados no “caderno da realidade” , considerados a síntese da vida do aluno
74

nos diferentes espaços-tempo da aprendizagem. Do caderno da realidade destaca-se o plano


de estudo - P.E, uma espécie de inquérito (pesquisa) realizado pelos estudantes junto a suas
famílias, cujas questões orientam aplicação dos conteúdos curriculares. A temática pesquisada,
definida pela escola a partir dos temas geradores , é previamente trabalhada pelos alunos sob
75

maior lucratividade em menor quantidade de área plantada. Em Vinhático, as justificativas para a adoção de uma
produção agrícola sem agrotóxicos se assemelham em parte aos argumentos referenciados em Santa Maria de Jetibá,
acrescidos de um componente político da defesa da agroecologia, sobretudo, entre os jovens que possuem alguma
vinculação com o MST ou o MPA. Assim, além de elementos “pragmáticos” a agroecologia reveste-se de um papel
de contraposição ao agronegócio, ao defender e praticar uma agricultura baseada na pequena propriedade, na mão de
obra familiar, no não uso de agroquímicos, no uso de suas próprias sementes e na integração campo e cidade por meio
da venda direta dos produtos sem veneno em feiras locais.
72 Nesse último caso, alguns jovens admitem que o trabalho com agricultura convencional ganhou em qualidade
e segurança por força da agroecologia e dos debates acerca do impacto do uso de agroquímicos.
73 Diferentemente da experiência francesa em que as empresas ocupam um papel de destaque enquanto espaço-
tempo formativo, no Brasil, as unidades produtivas dos pais dos alunos é que ocupam esse espaço. De modo que o
ambiente sociofamiliar se compõe do conjunto das relações vivenciadas no âmbito da família e da comunidade.
74 O caderno da realidade “é o documento que confere unidade, coerência ao conjunto dos estudos, das
pesquisas, das descobertas, das reflexões e relatos” do período em que o aluno está em formação, constituindo-se,
desse modo, “peça mestra da pedagogia da alternância, porque permite considerar e utilizar o espaço-tempo da vida
socioprofisisonal como componente real da formação” (GIMONET, 2007, p.33-40).
75 Os temas geradores são relativamente comuns a todas as Efas, muito embora sofram variação a depender do
caso analisado. Do 1º ao 4º ano do ensino técnico 8 temas são trabalhados. Considerando a autonomia pedagógica
de cada uma das Efas e seus diferentes interesses, cada um desses temas geradores pode dar origem a até 3 planos
de estudo. Em Olivânia, por exemplo, no início do 1º ano o tema gerador é “O homem e a terra” e os planos de
estudo são, respectivamente: “o homem e o solo” e “a distribuição e legislação da terra”. No 2º semestre o tema é “a
alimentação”, sendo 3 os planos de estudo: “alimentação das plantas, dos humanos e dos animais”. Em Vinhático

218
a mediação dos monitores. Nessa fase, ocorre a problematização do tema com a construção
coletiva de uma espécie de guia de investigação da realidade, utilizado pelos alternantes para
extrair das famílias informações/saberes acerca do tema em estudo. A aplicação do plano de
estudo ocorre durante a estadia do jovem no meio socioprofissional, no retorno à escola esse
material é socializado em grupo em um momento chamado de “colocação em comum”. Nela, os
alunos são confrontados com a diversidade de pontos de vista, situações e de arranjos produzidos
pelas famílias com objetivo de lidar com determinada questão – por exemplo, pontos de vista e
práticas relacionadas à alimentação das plantas, dos animais etc.
A aplicação do plano de estudo também auxilia a construção da noção de processo
histórico dos fenômenos analisados, na medida em que os agricultores ao tratarem de um tema
inevitavelmente teçam comparações entre a realidade pregressa e a atual (MELO; DA SILVA,
2014). Após socialização das informações, os alternantes são orientados a produzir uma síntese
e indicar os elementos que necessitam ser aprofundados pelas distintas áreas de conhecimento.
Esses subsídios, ao mesmo tempo que embasam as aulas, delineiam os pontos passíveis de
intervenção da escola junto à comunidade, por meio das “atividades de retorno” realizadas pelos
alternantes .76

Essa pedagogia da experiência e do exemplo conta com o apoio fundamental da


Associação de pais. A Associação é uma estrutura jurídica encontrada em todas as Efas e reúne
essencialmente os pais de alunos, contando ainda com representantes dos docentes e discentes
(CALIARI, 2013). Sua composição, responsabilidades e grau de importância na vida escolar
varia de acordo com o caso analisado.
Desde a origem das Maisons Familales, na França, a Associação desempenha um papel
de destaque na articulação de forças em torno do projeto dessas escolas e no provimento dos
recursos humanos e materiais necessários à inciativa. Até hoje, a despeito do lugar que essas
instituições (Maisons) ocupam dentro da estrutura oficial de ensino francês e o significativo
aporte de recursos que recebem do Estado, as associações continuam a ser um elemento central
da vida dessas escolas, fornecendo as suas principais diretrizes . 77

No caso das Efas, o protagonismo da Associação varia de acordo com o caso analisado.
Em Vinhático, por exemplo, desde o princípio, a Associação comanda e conduz os rumos da
Efa . Trata-se de uma instância de caráter “diretivo”, a forma institucional responsável por
78

abrigar o conjunto dos atores inicialmente envolvido na fundação dessa escola e manter ativa a
mobilização destes. Sua posição contrasta grandemente com o caráter “consultivo” que parece
espelhar a atuação dessas mesmas institucionalidades nas Efas de Olivânia e Garrafão . Sem 79

dúvida, o dinamismo vivido em Vinhático resulta também das experiências de democracia


direta colocadas em curso no interior dos assentamentos da reforma agrária, da qual provém
muitos dos alunos dessa escola e, por consequência, de pais que passaram a atuar nessa

e Garrafão, na mesma série repetem-se os temas geradores, com a diferença de que são apenas 2 planos de estudo
aplicados no segundo semestre (alimentação das plantas e dos animais). Apenas no 3º ano em diante é que se nota
diferença entre os temas geradores, acentuando-se as particularidades contextuais de cada uma das escolas.
76 A atividade de retorno consiste em uma “intervenção” realizada pelo aluno junto ao meio socioprofissional
e pode tanto ser “espontânea”, ou seja, realizada a partir da interação natural do aluno com o meio a partir de
intervenções fruto dos saberes adquiridos na escola, como também programada, como no caso daquelas atividades já
previstas no plano de estudo onde o aluno exercita sua capacidade de articulação, a oralidade e a capacidade de síntese
ao abordar junto a família e a comunidade determinado tema (ex: preservação de nascentes, compostagem, etc.).
77 Para tratar das associações no caso francês utilizamos uma entrevista que realizamos com Phillipe Ristord
(coordenador geral de centro nacional pedagógico das maisons familiales) em janeiro de 2018.
78 Nos que se refere ao quadro atual da associação, as informações são derivadas de observação participante;
quanto ao tempo pretérito, as informações ancoram-se em entrevista, realizada no ano de 2017.
79 Nestas escolas a direção dos trabalhos parece mais relacionada a uma dinâmica interna coordenada pelo corpo
docente em consonância com o Mepes central, do que algo nascido no âmbito da associação. Advém daí a impressão
de que as associações nestas escolas possuam caráter mais consultivo se comparado com Vinhático onde praticamente
tudo é decidido pela associação. Tanto em Olivânia, quanto em Garrafão, a Associação de pais foi fundada tempos
após a fundação das Efas. Sendo evidente nestas, o suporte que receberam, respectivamente, do Mepes e da Igreja
Luterana para o desenvolvimento de suas atividades.

219
Associação, influenciando-a. Outro elemento explicativo do protagonismo dessa Associação
pode estar relacionado à distância geográfica entre essa escola e a sede do Mepes, em Anchieta
(aproximadamente 420 km), o que somado a um contexto político hostil, exigiu dos pais de
alunos tomar as rédeas e conduzir todo o processo sob pena de ver fracassada a iniciativa.
O comprometimento da família com a escola se inicia ainda no processo de seleção, quando
a família pleiteia uma vaga junto à Efa. No primeiro contato, realizado presencialmente ou por
telefone, a família manifesta o desejo de que seu filho/a estude na Efa, sendo-lhe solicitadas
informações pessoais como endereço, profissão dos pais ou responsáveis, idade do aluno e série
pretendida . De posse dessas informações, a escola filtra aqueles indivíduos aptos para seguir no
80

processo seletivo, priorizando filhos de agricultores familiares da região, indivíduos com algum
vínculo com a agricultura e alunos na idade escolar . Realizada a primeira etapa da seleção , uma
81 82

equipe de monitores submete a família a uma entrevista na qual a escola apresenta seu modo de
funcionamento e a família seus motivos para escolher a Efa. Nessa reunião são apresentados os
termos do “contrato de formação” entre a Efa e a família, deixando claros os compromissos de
cada uma das partes em relação ao processo de formação do alternante . 83

A relação entre a família e a escola também é mediada pelo “caderno de acompanhamento”,


um instrumento pedagógico no qual a escola relata à família como se deu a estadia do aluno na
instituição - os principais elementos de aprendizado e experiências educativas a que teve contato
(visitas, palestras, minicursos, mutirões, etc.), bem como o comportamento do alternante
durante o internato -, e na volta à sessão escolar, a família anota nesse caderno os elementos que
julga relevantes na estadia (a colheita de algum produto, a visita a algum ponto religioso, alguma
festa ocorrida na comunidade, etc.), dificuldades que teve em relação a alguma atividade escolar
(a aplicação de um plano de estudo, a realização de uma experiência, etc.), entre outros assuntos
que queira comunicar à escola (GIMONET, 2007). O caderno de acompanhamento serve
igualmente como ferramenta de avaliação da postura do aluno nos dois ambientes formativos, a
escola e a família. Ele funciona como um termômetro para saber quando a família do alternante
deve ser chamada na escola e cobrada por sua parte no contrato de formação . 84

O fato de as Efas atenderem poucos alunos em comparação a uma escola de nível médio
tradicional, com 500 ou 1000 alunos por turno, também contribui para um acompanhamento
mais personalizado da situação dos educandos . O modelo do internato, igualmente, aproxima
85

os monitores dos alunos, das suas dificuldades em sala de aula e colateralmente dos seus dramas
pessoais e familiares. Em vários momentos se percebe uma certa tensão entre o que seria
atribuição das famílias e aquilo que compete à escola. Proibições e sansões, mesmo que acordadas

80 Vinhático, por exemplo, realiza as pré-inscrições online.


81 Ser da agricultura familiar ou ter algum tipo de vínculo é algo importante, pois, o plano de estudo depende
da relação da família com terra, de sua vivência. Igualmente, as experiências a serem realizadas em casa (compostagem,
horta etc.) dependem da disponibilidade, ainda que mínima, de área de terra. Quanto a idade escolar, o aluno fora
da idade indica de imediato possíveis problemas de aprendizado, de comportamento etc. No geral, o aluno também
está presente na entrevista e pesa na avaliação a sua motivação para ingressar na Efa. Esse conjunto de saberes,
procedimentos, é fruto da prática dos monitores. Não está escrito em lugar nenhum como devem proceder, à exceção
do perfil pró-agricultura familiar. A forma como conduzem todo o processo, as habilidades que demonstram, tudo
isso é fruto da sua prática e da experiência adquirida em anos.
82 O processo de seleção em algumas escolas é bastante concorrido, Garrafão, por exemplo, possui uma lista de
espera por vaga. Isso se dá porque essas escolas atendem no máximo 250 alunos, uma quantidade maior de alunos
inviabilizaria a execução de certos instrumentos como, por exemplo, a visita às famílias realizada anualmente.
83 As assembleias de pais e alunos realizadas ao menos duas vezes, bem como a visita anual as famílias são
momentos que aproximam esses parceiros do processo de formação.
84 No período que lecionei em Olivânia duas anotações negativas nesse caderno, em um curto espaço de tempo,
eram suficientes para que a família fosse chamada na escola para uma reunião. Igualmente, o aluno que esquecia o
caderno ou o trazia sem preencher ou assinar não era autorizado a permanecer na escola. Alguns pais se queixavam
com que consideravam excesso de regras e quando chamados muitas vezes na escola optavam por pedir a transferência
dos filhos.
85 As Efas analisadas atendem em geral quatro turmas de alunos por sessão escolar, algo entre 100 e 130 alunos,
no máximo.

220
coletivamente , em relação a vestimentas, namoro, uso de celular, saída da escola etc., fazem
86

com que a equipe escolar adentre em um domínio que por convenção pertence às famílias. Por
outro lado, se não houvesse controles rígidos sobre esses temas muitas famílias não se sentiriam
87

confiantes em deixar seus filhos no internato e a manutenção de 90 adolescentes internos, sob a


supervisão de um único monitor, ficaria insustentável . 88

O internato, embora atualmente em “crise” , constituiu-se historicamente um elemento


89

fundamental da pedagogia da alternância, possibilitando o convívio e a troca de experiências


entre os alternantes, o exercício da colaboração, do estabelecimento de limites e da mediação de
conflitos realizados entre os próprios internos e a constituição de um “sentimento de família”,
relatado de forma unânime, pelos ex-alunos em momentos de conversação informal . 90

Esse “sentimento de família” atribuído à dinâmica do internato é reforçado pela criação


de laços de interdependência decorrentes da forma de organizar as atividades do dia a dia da
escola, exigindo respeito e colaboração de todos os seus membros. Apenas o almoço e o jantar
são produzidos por funcionários, todo o restante (limpeza de quartos, áreas comuns, fazer café
da manhã, servir almoço e jantar, cuidar das louças e panelas, guardar e dar o destino adequado
a sobras de alimentos, o trabalho no setor agropecuário etc.) é realizado por alunos organizados
em equipes. As tarefas passam por um sistema de rodízio, de modo que todos tenham a
oportunidade de realizar/aprender todas as tarefas (da limpeza dos banheiros à pocilga, do
jardim ao curral), independente do sexo do alternante. A cada semana uma dupla de alunos
é responsável pela supervisão do trabalho dos demais, sendo estes os colaboradores diretos do
monitor responsável do dia.

Agentes internos e externos responsáveis pela formação dos alternantes



Além dos pais/responsáveis, outro conjunto de coformadores importantes são os
técnicos de instituições públicas, as lideranças vinculadas a movimentos sociais, sindicatos de
trabalhadores rurais e associações de produtores/moradores rurais e alguns empreendedores
parceiros das escolas. Estes atuam em diversos momentos do processo formativo dos alunos:
ministram palestras e minicursos, conduzem visita de estudos ou mesmo responsabilizam-se
pela supervisão em estágios.
86 As regras gerais de convivência no espaço escolar estão previstas no regimento interno das Efas, há ainda
espaço para a construção de normas por parte dos alunos sobre sua estadia na escola - a chamada “vida de grupo”- e
também temas que são deliberados pelos pais em assembleia.
87 A fama de escolas que “consertam” alunos indisciplinados acompanha todas as Efas, de modo que é comum
famílias com “alunos problema” procurarem a escola, não sendo as mesmas atendidas se não se enquadrarem nos
critérios de elegibilidade já descritos. Situação extrema ocorreu recentemente em Vinhático, quando em face a recusa
da escola em atender a um aluno do centro da cidade, a juíza emitiu decisão obrigando a matrícula.
88 Quando fui monitor da Efa-O, a cada 15 dias era o “responsável do dia”, encarregado do controle de todas as
tarefas realizadas na escola naquele dia: da limpeza do pátio e do prédio escolar à distribuição de todas as refeições,
passando pelo atendimento de alunos doentes, autorização para aluno entrar em contato com família, guarda de todas
as chaves e equipamentos da escola e mais a carga horária de aula. À noite o trabalho continuava, dormia na escola
junto aos alunos, garantindo que todos estariam na cama às 21: horas. Durante o dia ainda podia-se contar com o
apoio dos demais monitores, mas à noite, em Olivânia, só havia o “responsável” e um vigia. Somente pela introjeção
das normas de conduta da escola e dos rígidos controles estabelecidos sobre os alunos é que se conseguia manter a
disciplina, variável, é verdade, a depender do perfil de cada monitor responsável do dia.
89 Quando dos primeiros anos da pedagogia da alternância todas as escolas funcionavam sob o regime de
internato e ele mesmo reveste-se de função educativa/pedagógica ao trabalhar a disciplina, a colaboração com os
colegas, o senso de responsabilidade, liderança etc. Entretanto, para o internato funcionar há um custo que em geral
recai como sobrecarga de trabalho sobre monitores já ocupados em diversas tarefas além das de ensino e monitoria
de alunos (o trabalho na propriedade agrícola, a manutenção de equipamentos e estruturas prediais, a arrecadação
de recursos financeiros para manutenção das escolas etc.). Nos últimos anos, o avanço nos programas de transporte
escolar e mesmo melhoria nas condições de vida dos agricultores fez com que se adotassem em muitas escolas o
regime de semi-internato, com alunos internos e externos (casos de Vinhático, Garrafão e Olivânia) e escolas que já
funcionam apenas em externato.
90 Além dos alunos entrevistados baseio-me na observação e conversas realizadas durante o III Encontro de ex-
alunos da Efa de Olivânia, atividade que reuniu 71 ex-alunos de diferentes turmas (2017).

221
Em relação aos agentes públicos, sindicatos e movimentos sociais, deve-se considerar a sua
condição de operadores de políticas públicas (Pronaf, previdência, bolsa família etc.), engajados
ou eles próprios como parte de diferentes dispositivos de fortalecimento da agricultura familiar.
A relação estabelecida entre as Efas e esses agentes deve ser encarada como uma relação entre
dispositivos que atuam numa mesma ambiência (o mundo rural), sendo a existência de um
conjunto de finalidades comuns o que torna possível a parceria entre essas instituições.
Esses parceiros também fornecem apoios de outra ordem, sobretudo políticos. As boas
relações e o envolvimento da escola com atores estratégicos das prefeituras, dos órgãos de
assistência técnica, dos sindicatos locais são fundamentais para viabilizar parcerias e amealhar
os recursos humanos e materiais indispensáveis ao funcionamento dessas escolas . A “costura” 91

dessas relações não é função apenas dos monitores, pais e alunos assumem responsabilidades e
participam por diferentes maneiras desse processo. Não é incomum, por exemplo, grupos de
pais se articularem junto a vereadores para pressionarem secretários de educação e prefeitos
e garantir a oferta de transporte público até às Efas . Quanto aos estudantes, a sua condição
92

permanente de representantes das escolas, “vitrine” da formação ofertada pelas Efas e do “êxito”
desse sistema educativo, se sobressai.
Os alunos das Efas devem se comportar exemplarmente e são cobrados por isso , sobretudo, 93

quando deixam a escola para participar de atividades externas: apoio em feiras agropecuárias,
animação de festas comunitárias e celebrações religiosas, intercâmbio, participação de seminários
ou de algum outro evento organizado pela rede de parceiros . 94

Completam as invariantes desse sistema educativo os profissionais chamados “monitores”,


responsáveis por animar esse processo e por acompanhar os alunos em todas suas atividades. São
chamados de monitores e não professores porque suas tarefas vão muito além do ensino em
sala de aula, são profissionais generalistas capazes de “gerir uma pedagogia da complexidade”
(GIMONET, 2007, p. 127).
Os primeiros monitores das Efas de Vinhático, Garrafão e Olivânia podem ser
considerados cofundadores dessas iniciativas, pois, junto com as famílias foram os responsáveis
por viabilizar as condições mínimas necessárias ao funcionamento dessas escolas. A realidade
lhes impôs, antes de serem educadores, atuar como construtores, pedreiros, pintores das salas de
aula onde atuariam.
Em Vinhático, por exemplo, os primeiros monitores quando chegaram à escola não
encontraram alojamento pronto para abrigá-los, tiveram que passar as primeiras semanas
hospedados na casa paroquial na sede do município de Montanha enquanto se montava uma
estrutura de acolhimento na escola . Em Garrafão, logo nos primeiros anos, a perseguição
95

política à Efa ocasionou o corte de recursos e a escola teve que lançar mão de monitores

91 Em todas as escolas visitadas os parceiros externos ocupam um lugar central. Todas as escolas para se manter
realizam festas e outras ações para arrecadar recursos, além disso investem em convênios com as prefeituras locais
(principal fonte de manutenção de suas estruturas). Neste último caso, além do nível de arrecadação do município,
influi no valor do convênio o peso político da escola no município, de modo que ter uma boa rede de apoiadores, de
formadores de opinião e de contatos passa a ser algo estratégico para a sobrevivência de cada escola.
92 Olivânia e Vinhático, por exemplo, atendem alunos de outros municípios, se o município já possui uma escola
de ensino médio ele só é obrigado a ofertar transporte dentro do seu território, de modo que o envio de alunos para
fora do município é facultativo e assim depende de articulação política dos pais junto os prefeitos. Todos os anos ou
em toda troca de prefeito ou secretário o mesmo movimento de articulação se faz necessário.
93 O padrão de comportamento deve ser a observância das regras da escola (o regimento interno), o jovem deve
conduzir-se por elas, lembrar que está em exercício de representação. Qualquer conduta considerada “inapropriada”
e que chegue aos ouvidos na direção da escola significa sanções, a mais evidente o bloqueio desse jovem em relação à
participação em outros espaços (feiras, viagens de intercâmbio, etc.).
94 Garrafão, por exemplo, possui um grupo de dança holandesa que se apresenta por toda a região. No ano
passado esse grupo passou três semanas se apresentando na Alemanha a partir de um convênio firmado entre a escola
e uma entidade alemã. Os alunos de Olivânia, por exemplo, foram essenciais no apoio e execução das 6 edições da
Semana da Agricultura Familiar de Anchieta e todos os anos tem um papel de destaque no concurso leiteiro da festa
da banana e do leite do município vizinho, Alfredo Chaves.
95 Tema explorado em entrevista com um dos fundadores da Efav, 2017.

222
voluntários para não fechar as portas. Em Olivânia, nos idos de 1997, os monitores estavam
com o salário atrasado havia seis meses, então a associação plantou 12 mil pés de café clonal
para cobrir futuras emergências (GAIGHER, 2017). Esses são alguns dos muitos exemplos
de problemáticas vivenciadas por esses monitores ao longo do tempo, situações que exigiram
maleabilidade e resistência.
Mas, o que motivava os primeiros monitores a enfrentar esses desafios? O quadro de
motivos pode estar relacionado à socialização familiar e comunitária desses agentes, processada
em difíceis contextos de agricultura camponesa, também em alguns casos às suas experiências
enquanto ex-alunos de Efas. Para além disso, algumas experiências profissionais confrontaram
esses atores a situações limite que exigiram destes uma “posição militante” ante a situações
concretas. À título de exemplo, expõem-se dois trechos de entrevistas com indivíduos que
estavam na fundação das Efas de Vinhático e Garrafão.

(...) ir para o Norte do estado e fundar uma escola, do zero, no meio do


matagal, com quatro pilares, um refeitório só- que era refeitório, nosso
alojamento, onde ficam os monitores- e mais um prediozinho pequeno e
começar do zero foi o maior desafio da minha vida, para falar a verdade.
No meio da dificuldade, uma região muito diferente. Eu estava vindo
do Nordeste para uma região de conflito[agrário], no Norte do estado.
Quando nós chegamos lá estavam fazendo a frente que era o refeitório,
eles, os fazendeiros, tinham derrubado as paredes. Eu falei: gente, nós
vamos morrer aqui! (GAIGHER, 2017).
[Na alternância entre grupos políticos locais concorrentes e a ascensão
de um prefeito contrário à EFAG] nós perdemos todos os professores
monitores, eles saíram porque não tinha como pagar e aí a gente foi
buscar heróis, verdadeiros heróis. Por exemplo, vou citar uma pessoa, a
Cláudia, que você conhece, ex-aluna da Associação Diacônica Luterana,
secretária de educação [de Anchieta]. Ela estava em Santa Maria de Jetibá
trabalhando na paróquia Luterana e eu cheguei para ela e disse: “Cláudia,
nós temos a escola família agrícola, expliquei todo o sistema, a motivação,
o nosso sonho com escola de mudança local e aqui está uma proposta para
você. Durante seis meses você vem e trabalha com a gente, me ajuda a levar
a escola adiante, o que eu posso te garantir: comida, casa, energia e água se
você ficar doente eu dou cobertura porque eu sou pastor da Paróquia, eu
te dou cobertura com médico e remédio e durante 6 meses eu vou brigar
por salário para você. Se eu não conseguir eu vou me ajoelhar na sua frente
e dizer: olha, desculpa eu fiz uma cagada muito grande, é direito seu ter um
emprego e tal, mas eu preciso de alguém que me ajude a levar a proposta
adiante, mas eu não tenho como oferecer salário. Ela disse: eu posso te
dar a resposta daqui a 2 dias? Eu disse, pode. Dois dias depois recebo
um comunicado de que ela queria falar comigo no telefone, fui no posto,
esperei a ligação e ela ligou dizendo eu topo. Essa foi uma das heroínas,
que salvou da perseguição política a Efa de Garrafão. Ficaram [lecionando]
então Kátia, minha esposa e eu, só, mais ninguém (BERGER, 2017).

Quando iniciamos o trabalho de campo, em abril de 2017, os monitores estavam com os
salários de dezembro e o décimo terceiro de 2016 atrasados. Atrasos na remuneração ocorrem
com relativa frequência, em especial entre o fechamento e o início de um novo ano letivo, quando
da assinatura do convênio de repasse de recursos do Governo do Estado ao Mepes . Ao conversar 96

com monitores a mais tempo em sala de aula, descobrimos que a situação já foi bem pior e que
a melhora de cenário reduziu em muito a rotatividade desses profissionais. Algo que pode estar
em risco atualmente. Deve-se considerar que a redução do número de monitores, decorrente

96 Os recursos para pagamento de monitores advêm de um convênio firmando entre o Mepes e o Governo do
Estado do Espírito Santo. A trajetória ascendente dos valores repassados foi abruptamente interrompida no final de
2016. O ano de 2017 começou com um corte de verbas de mais R$1.600.000 (um milhão e seiscentos mil reais) de
recursos utilizados essencialmente no custeio da folha de pagamento dos professores, o que impôs ao Mepes demissões
e reduções de carga horária.

223
da reestruturação realizada recentemente, em 2017, pelo Mepes, aumentou o trabalho dos
monitores. Isso porque esses profissionais são responsáveis por inúmeras outras tarefas além
de sala de aula, todas elas indispensáveis ao funcionamento da Escola. A redução de monitores
ou da carga horária de alguns deles prejudicou serviços de manutenção de prédios, o rodízio
entre os “responsáveis do dia”, a condução de atividades no setor agropecuário (a propriedade),
a dinâmica de visita às famílias, entre tantas outras atividades indispensáveis à consecução da
pedagogia da alternância.
Na sua prática diária, esses monitores assumem também a sua condição de militantes
da educação do campo e isso os impõe a manter todas as atividades planejadas e garantir o
funcionamento das escolas, mesmo diante de redução de equipe e atrasos salariais. Porém,
precarização das condições de trabalho não escapa à crítica desses atores que são além de
militantes, profissionais da educação. Ainda que esses monitores acreditem no projeto das
Efas e se identifiquem com as famílias de agricultores atendidas, - sentindo-se a eles vinculados
pelas experiências comuns de privação de direitos que atravessam e interligam um conjunto
significativo de agricultores de base familiar no Brasil -, não podem esquecer da sua própria
condição de trabalhadores e com isso renunciar a seus direitos. O fato de boa parte dos monitores
das Efas serem ex-alunos ou terem algum tipo de vínculo com a agricultura familiar complexifica
ainda mais a questão . Nesses momentos críticos, a condição de militante e a de trabalhador se
97

chocam, e os monitores se dividem entre auto explorar-se para garantir a continuidade das
98

atividades da Efa e lutar para reivindicar seus direitos.


A insegurança em relação ao futuro e a sobrecarga de trabalho são sinalizados pelos
monitores (Professores) como os elementos mais negativos do seu trabalho nas Efas, sendo essa
situação reflexo de uma questão problemática vivida pelo Mepes desde sua fundação: a ausência
de uma fonte segura de recursos que garanta a sustentabilidade financeira das suas ações. Questão
que, a médio prazo, aparenta estar longe de ser definitivamente solucionada.

Considerações finais

As Efas se organizam atualmente buscando atender duas finalidades básicas: a formação


integral de seus alternantes e o desenvolvimento sustentável do seu meio de vida. As críticas e
contradições assinaladas em relação ao modelo e atuação dos atores, observadas em diferentes
momentos da pesquisa de campo, são fragmentárias (parciais), ou seja, longe de serem
contundentes e sistematizadas, elas (as críticas) manifestam-se em uma gama de micro espaços
e situações do dia a dia dessas escolas e nem sempre são verbalizadas, podendo transparecer
inclusive em um olhar de desaprovação.
Quando da fundação das Efas, no final da década de 1960, havia uma relativa confluência
entre as expectativas nutridas por diferentes atores em relação a esses dispositivos. A oferta do
curso de “agricultor técnico” (na época, exclusivamente ofertada a rapazes) objetivava resolver
a questão do analfabetismo e melhorar o conjunto de técnicas agrícolas utilizado à época pelas
famílias de pequenos agricultores. Ao atingir parcialmente este objetivo, as famílias e jovens
passaram a demandar a ampliação do nível de ensino, bem como a inserção das mulheres por
meio da instituição do ensino misto (homens e mulheres). Essas são alterações estruturais
processadas no dispositivo (Efa), resultantes do questionamento das suas finalidades por parte
de atores que o compunham.
Atualmente, parece haver duas grandes expectativas sociais em relação ao papel dessas

97 Em Garrafão, por exemplo, nove dos doze professores são ex-alunos da EFAG ou de outra Efa. Nas outras
unidades esse número de ex-alunos é maior, mas a maioria dos professores tem parentes próximos vinculados à
agricultura familiar.
98 Utiliza-se o termo auto-explorar porque são os próprios monitores que controlam uns os outros no que se
refere a sua carga horária e tarefas na escola. Poderiam reduzir seu ritmo, deixar de fazer tarefas, mas não o fazem.
Subsiste na prática destes também um controle moral intenso alimentado pelas características e disposições do grupo.

224
instituições: (1) dotar os jovens dos instrumentos necessários a uma boa inserção no mercado
de trabalho, seja na condição de empregados, seja na condição de agricultores familiares donos
de seus próprios negócios; (2) possibilitar o ingresso dos jovens no ensino superior.
Acerca da primeira expectativa, é importante sinalizar as posições divergentes da escola
e de certas famílias. A Efa, como demonstrado, possui um viés pró-permanência dos jovens no
campo, entretanto, muitas famílias não desejam que seus filhos sigam na agricultura familiar.
Isso ocorre fundamentalmente (mas, não exclusivamente) no caso de famílias empobrecidas,
com pouca ou nenhuma terra, que não querem que seus filhos reproduzam sua condição de
subalternidade. O interesse da família em relação a saída do jovem do campo pode também
compor parte de uma estratégia familiar mais ampla envolvendo a mobilização de recursos
externos com vistas a garantir a renda necessária para dinamizar a unidade produtiva familiar.
A segunda expectativa, embora possa estar associada à primeira, como estratégia para a
conquista de uma melhor posição no mercado de trabalho, está no horizonte de um conjunto
mais amplo de pais, como um projeto familiar (da família e do jovem) bem mais estruturado. Sem
dúvida, as políticas de acesso ao ensino superior implementadas nas últimas décadas (Prouni,
Reuni, Fies, Nossa Bolsa , etc.) colocaram no horizonte da juventude rural essa possibilidade
99

e desejo de cursar o ensino superior. Os ex-alunos que entrevistamos, muitos deles envolvidos
na atividade agrícola, demonstravam a alegria e o orgulho de terem sido os primeiros das suas
famílias e comunidades rurais a concluírem um curso universitário, uma conquista que é ao
mesmo tempo pessoal e coletiva.
Nesse contexto de valorização do ensino superior, como garantir, simultaneamente, uma
formação integral do sujeito (essencialmente qualitativa e calcada na prática e na experiência)
e o conjunto dos conteúdos indispensáveis para o ingresso no ensino superior por meio do
vestibular?
Os monitores (professores) se veem posicionados nesse desafio e, em geral, buscam atender
essas expectativas dos alternantes (alunos) adaptando o plano de formação e adotando como
estratégia a abordagem de conteúdos recorrentes nas provas oficiais, a aplicação de exercícios
formulados por bancas de vestibular etc. Do ponto de vista de alguns ex-alunos, essa estratégia
nem sempre funciona como esperado. Alguns deles, inclusive, sinalizam como aspectos negativos
das Efas a pouca atenção à gramática e a expressão escrita da língua portuguesa (fundamentais
100

no vestibular) e também o ensino de matemática. Em paralelo, ressaltam positivamente as


habilidades desenvolvidas em relação ciências humanas, à oralidade, a expressão em público, a
capacidade de elaborar um bom projeto – habilidades/competências ligadas à formação integral
e que os colocam, do seu ponto de vista, em vantagem quando adentram na universidade ou no
mercado de trabalho.
A capacidade da escola em promover a integração da dimensão da formação integral e a
preparação para o ingresso na universidade também pode ser condição para que uma família
matricule ou não seu filho em uma determinada Efa. Não por acaso, de forma recorrente,
resultados exitosos de ex-alunos em vestibulares aparecem fixados nos murais de aviso dessas
escolas e em suas redes sociais, sustentando o discurso de que a Efa fornece as ferramentas
para que o aluno possa ser aquilo que ele quiser, ou seja, atuando para alargar o “campo de
possibilidades” desses jovens.
Do ponto de vista prático, promover a integração entre essas dimensões não é tarefa
fácil, em geral, realizada apenas parcialmente. Isso porque, de um lado, tem-se a aplicação dos
instrumentos da pedagogia que exigem tempo para reflexão, do outro, tem-se um currículo base
obrigatório, acrescido das disciplinas do curso técnico. Essas atividades e conteúdos, apesar
de previstos no plano de formação, sofrem inúmeras intercorrências. São obrigatoriamente
executados, mas cada qual recebe maior ou menor atenção em razão dos objetivos considerados

99 Programa de bolsas no ensino superior implementado pelo governo capixaba.


100 Essa mesma crítica aparece em ex-alunos das três unidades pesquisadas.

225
estratégicos por aqueles que estão conduzindo o processo (a coordenação pedagógica e os
monitores). Há, portanto, um risco real de comprometimento da alternância integrativa
colocada em prática nas Efas, caso não haja uma reflexão profunda acerca das novas demandas
formativas/curriculares trazidas pelos jovens e suas famílias. O contexto de reforma do ensino
médio pode complexificar ainda mais esse processo.
A propriedade das escolas é outro ambiente elucidativo das diferentes expectativas e
avaliações formuladas pelos atores em relação ao dispositivo Efa e das contradições instaladas.
Criada na origem para ser o local de experimentação de novas técnicas produtivas, uma espécie
de laboratório, se encontra atualmente no centro de várias controvérsias. A primeira delas é
se essa propriedade deve ser encarada como uma fonte de renda para suprir o caixa sempre
deficitário das escolas ou se deve ser entendida prioritariamente como laboratório de ensino
e experimentação dessas instituições. Escolas como a Efa de Olivânia, por exemplo, tem se
estruturado cada vez mais para serem, no futuro, autossuficientes e, por isso, tem investido na
produção de banana e no gado de leite. A Efa de Garrafão, com bem menos terra agricultável,
tem gerado recursos financeiros a partir da venda de leitões. Já a Efa de Vinhático entende que
não é função prioritária da propriedade gerar a renda necessária à manutenção da escola, por
isso tem centrado sua ação apenas no campo da experimentação. Esse último caso, não escapa à
crítica de alguns de seus alunos e também de ex-professores que consideram ser a propriedade
escolar uma vitrine daquilo que a escola pode produzir de inovação e desenvolvimento nas áreas
rurais.
As escolas que decidem produzir para se autossustentar são colocados diante de outro
dilema, com implicações éticas, qual seja: a centralidade do trabalho dos alunos na manutenção
e rentabilidade dessas propriedades. Diante de uma ausência crônica de recursos de manutenção,
as escolas contam com um número bastante limitado de trabalhadores braçais, em geral reduzido
a um vaqueiro. Todas as demais tarefas são realizadas pelos monitores junto com os alunos em
momentos de ensino-aprendizagem. O “trabalho prático” faz parte da grade curricular e consiste
em uma hora de atividade realizada pelo aluno, sob a supervisão de um monitor, em algum dos
setores da propriedade (pastagens, fruticultura, pocilga, viveiro de mudas, hortaliças, prédio
escolar, jardim etc.). Muitas vezes, devido à quantidade de trabalho atribuída aos monitores,
incapacidade ou desinteresse, essas aulas práticas ocorrem sem o devido planejamento, compondo
mais um momento de trabalho que de aprendizado sistemático.
Não há pretensão em esgotar os exemplos de momentos de contradição vividos no interior
das Efas, mas, sobretudo, destacar o processo de reflexão produzido pelos atores, ancorado nas
expectativas que estes nutrem em relação tanto ao dispositivo Efa quanto à ação daqueles que o
integram.

226
REFERÊNCIAS

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formandos e egressos de Escolas Família Agrícola no estado do Espírito Santo. Tese (doutorado)—
Universidade de Brasília, Instituto de Ciências Sociais, Departamento de Sociologia, Programa
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formação por alternância. Itinerarius Reflectionis, Goiânia, v. 10, n. 1, 2014.

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de Pós-Graduação em Ensino de Ciências Naturais, Instituto de Física, Universidade Federal do
Mato Grosso, Cuiabá, MT, 23 de abril de 2010.

PANCIERI, César Entrevista concedida a Leonardo Rauta Martins. Acervo pessoal. 2017.

RISTORD, Phillipe. Entrevista concedida a Leonardo Rauta Martins. Acervo pessoal. 2018.

227
CAPÍTULO 17 - DA AMAZÔNIA À UFRRJ:

ancestralidade e trajetória de uma seringueira e ribeirinha estudante da Licenciatura em


Educação do Campo

Maria de Fátima Nascimento de Oliveira Silva101

Sidney da Silva102
Igor Simoni Homem de Carvalho103

Introdução

O objetivo central deste capítulo é contar a história de uma estudante da Licenciatura


em Educação do Campo (LEC) da UFRRJ: filha de seringueiros, mãe, missionária, mulher
lutadora residente em Seropédica-RJ. Traremos aqui a trajetória dessa militante, que denuncia a
indiferença que sofrem os povos, em especial os ribeirinhos, que sofreram e sofrem por gerações,
e em cuja cultura está enraizada sua família. Abordaremos suas vivências evidenciando uma
realidade que, por muitas das vezes, é invisibilizada.
A LEC-UFRRJ nos dá a oportunidade de conhecer e conviver com educandos e educandas
de diferentes origens, com ricas trajetórias de vida. Dentre as amizades que tive a oportunidade
de fazer ao longo destes anos na LEC, tenho especial carinho por Maria de Fátima Nascimento
de Oliveira Silva que, ao lado de seu companheiro, o historiador Sidney da Silva, vem dando
valiosa contribuição ao curso, tanto nos ensinamentos que carrega a partir de sua ancestralidade
e trajetória de vida, quanto pela liderança que exerce no desenvolvimento de atividades diversas
– valendo aqui mencionar sua paixão incondicional pelo “SAF da LEC”, terreno da Rural
ocupado pela Educação do Campo para o desenvolvimento de nossas atividades práticas em
Agroecologia.
Fátima é filha de seringueiros do Acre; cresceu no coração da floresta amazônica,
teve contato com Chico Mendes e Marina Silva, morou em Manaus e veio morar na região
metropolitana do Rio de Janeiro, ainda jovem. Em Seropédica, constituiu família, se tornou
professora, e hoje engrandece nosso curso de Licenciatura em Educação do Campo. Neste
artigo, trazemos um pouco da trajetória de Fátima, sua família, sua ancestralidade e o contexto
no qual ela nasceu e cresceu. Afinal, na LEC buscamos partir de histórias de vida individuais
para estabelecer pontes e conexões com a realidade de nosso país, em especial a do campo, de
modo que educandos, educadores e toda sociedade possa beber dessa fonte de conhecimento
infinita chamada... vida.

A Amazônia e o movimento dos seringueiros

A ditadura empresarial-militar que se instalou no Brasil em 1964 e perdurou até 1985


teve, como uma de suas principais “marcas”, o avanço sobre a floresta amazônica e seus povos.
Os seringueiros, povo de origem miscigenada (principalmente nordestina) que passou a habitar
a região amazônica a partir do início do século XX, estiveram no centro da luta pela defesa da
floresta a partir dos anos 1970, quando “a expansão maciça da rede de estradas de rodagem abriu
uma via para a penetração de colonos e de empresários embasados por um enorme movimento
101 Estudante da Licenciatura em Educação do Campo na UFRRJ – Universidade Federal Rural do Rio de
Janeiro.
102 Mestrado em História na UFRRJ – Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.
103 Docente da Licenciatura em Educação do Campo na UFRRJ – Universidade Federal Rural do Rio de
Janeiro.

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de cercamento de terras”, e “os pecuaristas queimaram vastas áreas de floresta primária”, alçando
a destruição da cobertura vegetal no Brasil a patamares nunca antes vistos (MARTÍNEZ-
ALIER, 2009, p.174).
Para defender a floresta, os seringueiros promoviam os “empates”: homens, mulheres e
crianças marchavam de mãos dadas, desafiando as máquinas de destruição dos madeireiros e
fazendeiros. Em 1987, junto aos povos indígenas, os seringueiros formaram a Aliança do Povos
da Floresta, tendo sido fundamentais na demarcação de milhares de hectares de terras indígenas
e na concepção das Reservas Extrativistas, que até hoje salvaguardam grandes extensões de
floresta e dos modos de vida de povos e comunidades tradicionais, na Amazônia e também em
outros biomas (MARTÍNEZ-ALIER, 2009).
Chico Mendes foi assassinado brutalmente em 22 de dezembro de 1988, na porta de
sua casa. Oito anos antes, Wilson Pinheiro, ativista sindical do Acre, também fora assassinado
por criadores de gado e seus capangas. Essa luta, entretanto, não foi em vão. Muitos lutadores e
lutadoras até hoje se inspiram neste legado, valendo mencionar Marina Silva, que foi ministra
do Meio Ambiente entre 2003 e 2008 e é uma das mais importantes figuras políticas do Brasil
(MARTÍNEZ-ALIER, 2009). Muitas lutas seguem sendo travadas na Amazônia. Dema,
Dorothy, Paulino e Erisvan Guajajara, Maria Trindade, Bruno e Dom, José Cláudio e Maria do
Espírito Santo… a cada lutador ou lutadora que tomba, outros tantos surgem. Pois eles e elas
não morrem – são semeados. E aqui, na LEC-UFFRJ, vamos colhendo um pouco das frutas e
raízes de sementes plantadas pelos nossos ancestrais, lutadores e lutadoras do povo, das águas e
das matas.

De seringueira e ribeirinha à universitária: a luta pela inclusão social e escolar

Este artigo expressa a trajetória de uma seringueira e ribeirinha. Filha de Chico, não de
Chico Mendes, mas de um Chico que lutou lado a lado com ele. Uma análise na tessitura, das
relações de vínculos entre as gerações de seringueiros e ancestralidades – herança de um ativista
– com vista nas reflexões de uma licencianda, de cunho qualitativo e caráter participativo.
Conhecer a natureza é privilégio de poucos, conviver com ela lado a lado é contemplar
o ecossistema em sua plenitude. Nascida e criada à beira de ribeiros, para ela um universo de
descobertas e encantos, conheceu a floresta amazônica muito cedo, aprendeu a andar e viver
dentro dela, rompendo medos e barreiras – ali crescia com seus pais e irmãos. A experiência
dentro da vivência.
Analisar essa tessitura é voltar à ancestralidade, remetendo a um passado remoto,
resgatando as memórias, extraindo daquilo que parecia ser cotidiano e corriqueiro, a matriz para
a produção de um projeto de vida – fato manifesto na ação de ribeirinhos e seringueiros na luta
por um desenvolvimento político, social e econômico que, mesmo à sombra de outros, refletem
e são refletidas por gerações.
Quando falamos de um símbolo de ativismo falamos de Chico Mendes; ao expressarmos
sua continuidade política, falamos de Marina Silva; quando falamos de trabalhador seringueiro,
falamos de Francisco Oliveira; para unirmos esses vínculos de lutas e reivindicações, falamos de
nossa personagem. Intercalando essas vivências com foco na ancestralidade, transcendemos as
reivindicações dos Povos e Comunidades Tradicionais.
Esse recorte começa em 1970, quando nascia nossa personagem em Cruzeiro do Sul,
Acre – ano que delimita o objeto desta pesquisa: as vivências de nossa personagem, o antes e o
depois. Viveu até os quinze anos em Guajará-AM, município localizado na divisa entre os dois
estados – Amazonas e Acre – à beira do rio Juruá, afluente do Solimões. Em 1985, aos quinze
anos, se mudou para Manaus, capital do Amazonas. No decorrer de uma década, vivenciou as
lutas e barreiras do povo tradicional ribeirinho e seringueiro, que, na cumplicidade entre pares,
ancestrais e descendentes, estabelecem relações, vínculos e interdependência.

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Ser um ribeirinho, viver como ribeirinho, é estar constantemente próximo de novidades
que surgem ao longo do dia ao nosso redor, a descoberta de algo novo, por exemplo, um tuiuiú,
que vem e pousa bem ao seu lado como se você fosse um velho conhecido, ou uma lontra que ao
ver você com um peixe na mão, acha que é para ela, vindo logo buscar.
Nas palavras de nossa personagem: “sentar à margem de ribeiros, para uma criança de
cinco anos da cidade, é correr risco de vida; para uma criança nascida e criada às margens desse
ribeiro, é diversão e descobertas. Avistar as margens do outro lado do rio e imaginar chegar a
nado é extremamente emocionante e, ao mesmo tempo, assustador. Nadar neste rio é certamente
desafiador, com as cobras sucuris, mais conhecidas como anacondas, imensas cobras que vivem
às margens sempre esperando uma presa, como animais ou até mesmo pessoas. Ver meu cachorro
ser engolido por uma dessas cobras, no meio do rio, foi chocante. Em época de seca e com o rio
baixo, atravessamos a nado e nosso cachorro Rex – todo pobre tem um cachorro chamado Rex
– ele era valente e levava quem chegasse na minha casa ao topo da árvore, só pegava no bumbum
do cidadão. Foi triste ver Rex sendo engolido por uma sucuri no meio do rio, no momento em
que ela veio nos atacar e ele tentou nos defender. Se não conhecêssemos aquele rio não seríamos
quem somos.”
Dentro da conjuntura e grandeza desse ecossistema, pudemos vivenciar ações
governamentais, ainda que indiretamente, aplicadas sobre a nossa sociedade. Nesse ponto,
afirmamos na fala de nossa personagem que: “apesar de não ter tido uma educação primária
com professores licenciados, consegui aprender o básico para uma formação primária, para que
mais tarde pudesse cursar um supletivo, chegando hoje a Universidade.”
Há um porquê no vácuo do primário ao supletivo – explicou: “ao mesmo tempo que um
ribeirinho estuda, ele trabalha; já cedo nossas crianças conhecem o trabalho, muitas das vezes
de forma exaustiva, de maneira que estes possam ajudar e aprender desde cedo que o trabalho
enobrece o homem, e assim eu crescia, na certeza de que estava no caminho certo com meus pais
e irmãos.”
“Em comunidades como essas, as crianças buscam muito cedo imitar os pais e os irmãos
mais velhos, se embrenhando na floresta adentro ou rio abaixo nas canoas, seja pescando,
plantando, colhendo frutos ou no seringal. Na mata temos que estar sempre atentos a animais
peçonhentos e outros que podem ser agressivos como: cobras, escorpiões, macacos do tipo
guariba, jacarés, onças etc. Nos rios, encontramos de tudo um pouco, principalmente quando
se sai a pescar pelas madrugadas com nossos pais. Buscar o alimento todos os dias requer força,
coragem e disposição – exatamente o que me faltava, principalmente nas madrugadas quando
ainda ia dormindo, arregalando os olhos somente quando dava de cara com os jacarés me
olhando com água na boca.
Em nossas pescas nem sempre tínhamos resultados positivos, alterando um pouco o
ditado – “hoje o rio não está para peixe” – o que ocorre principalmente em épocas da desova,
não podemos pescar, como nossos ancestrais nos ensinaram. Ao olharmos aqueles jacarés com
olhos grandes avermelhados, temos a sensação de que ele vai nos devorar, mas ele nos olha e
vai embora: já comeu os peixes todos que íamos pescar. Uma madrugada de trabalho perdida;
voltamos para casa sem nada para alimentar tantas bocas, que nos olham com um olhar triste
como se nos perguntassem: onde está o peixe? Onde está a comida? Esses eram meus irmãos e
avós.
Começava ali mais um dia de trabalho árduo. Apesar do peixe não ter chegado em sua
casa, vão para a roça colher mandioca para tomar café, se alimentar e alimentar aqueles que
dependem dos mais velhos. Naquele dia de pesca, o que foi com o pai não vai colher seringa, vão
outros, pois o que saiu pela madrugada seria o mesmo horário de saída para a colheita da seringa.
Nove irmãos, quatro primos divididos, uma parte com seu pai e outra com nossa mãe; fosse na
roça, no seringal ou na pesca, viviam a cada dia daquilo que o meio ambiente lhes oferecia.”
Diante de tudo que apresentou nossa personagem, com respeito ao que é ser um ribeirinho/
seringueiro... a fantasia que envolve a floresta fala: “foram diversas vezes que ouvi de minha mãe

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que a mãe-da-lua iria me levar se eu não chegasse em casa logo após as aulas, que ocorriam a mais
de três quilômetros de distância, onde tínhamos sempre que atravessar um grande rio – meu
desespero em chegar em casa antes do pôr do sol era grande: era só dar seis horas e ouvia-se
“sango sau foi, foi e nunca mais voltou” e eu olhava para o lado lá estava aquela ave, disfarçada
como um tronco de árvore seca. Cada susto era uma sarda, talvez por isso eu seja cheia delas.
Quanto a namorados, de forma nenhuma, fosse no caminho da seringa, onde ia levar a comida
de meu pai, só havia os macacos pregos e guaribas, muito obscenos por sinal, fato que eu resolvia
com um porrete maior que eu.”
“Nas festas, que foram poucas, meu outro medo se somava. Mais uma vez minha mãe
acrescentando seus contos, que revelavam mais do que simples fábulas, dizia: cuidado com o
boto-rosa, eles também vão à festa, pegam as mocinhas, dançam com elas, levam elas para o rio
e depois acabam grávidas e sozinhas. Cruzes! por isso até hoje não gosto de ir a festas.”
Realidades cheias de fábulas, que por causa do descaso e genocídio da floresta acabam
hoje por se converter em mitos.

Vínculos e Vivências

Com respeito às origens contidas na ancestralidade, comparemos seus vínculos a uma


rede de interdependência, que partem de Chico Mendes a outros ativistas e por consequência a
seus familiares, fato que se revela na tese de Mary Allegretti (2002):

Em janeiro de 1989 a repercussão internacional continuou. Dentre outras


autoridades, o Presidente do Banco Interamericano de Desenvolvimento,
Henrique Iglesias, disse que Chico Mendes não era uma pessoa
desconhecida do Banco e solicitou ao governo brasileiro que preservasse
suas idéias. No dia 3 de janeiro, o Senador Republicano Robert
Kasten fez um pronunciamento no Congresso Norte-Americano em
homenagem a Chico Mendes, referindo-se a ele como um amigo pessoal
e um herói mundial. Nos dias 13 e 14, uma comitiva de parlamentares
norte-americanos, incluindo o então senador Al Gore, visitou o Acre,
exercendo pressão sobre as investigações do assassinato. E no dia 25 um
ato ecumênico lotou a catedral de Washington, reunindo as maiores
entidades ambientalistas norte-americanas, autoridades de instituições
multilaterais, toda a imprensa e representantes da Embaixada Brasileira,
para ouvir Raimundo de Barros, seringueiro, sindicalista e primo de
Chico... (ALLEGRETTI, 2002, p.20).

Fato que marcou o mundo ainda mais que sua própria morte em 23 de dezembro de
1988, expondo que não se corta uma árvore plantada em ribeiros sem deixar suas raízes.
Durante esse fato, Francisco de Oliveira, pai de nossa personagem central, já estava
trabalhando no garimpo em Porto Velho, pressionado cada dia mais pelas autoridades,
manipuladas pelos grandes fazendeiros, que queriam a todo momento impedir a extração de
látex nos seringais aprisionados em as suas terras. Protegido muitas vezes por seu patrão e amigo
Chico Mendes, declara sua filha: “foi por volta de 1980, eu tinha dez anos, meu pai foi preso na
cidade de Guajará (AM), divisa com o Acre. Meu pai contou que estava retirando a seringa onde
exatamente toda sua vida de seringueiro retornava de tempos em tempos, não havia marcação
era somente a floresta nativa como sempre. Após ter sido levado para uma delegacia na cidade
no papel de presídio, sem julgamento, era só mais uma “raiz descartável”; não sei se por algumas
intervenções de seu patrão e amigo ou pelas noites que passávamos, eu, minha mãe e irmão,
conseguimos ver meu pai sair da prisão depois de dois anos, agora acometido de tuberculose.”
“Minha mãe explica que, em conversa com sua patroa e amiga Delha, como assim se
chamava a esposa de Chico Mendes, todas as autoridades ali estavam compradas e submissas

231
aos grandes fazendeiros. Eu tinha cinco anos, mas me lembro como se fosse hoje. Cercamos em
uma corrente humana, onde estavam minha mãe, irmãos e outros ribeirinhos, além de homens
que lideravam todo o ato tentando impedir que aqueles tratores avançassem destruindo toda
floresta, unicamente para a criação de gado. Estávamos fazendo um “empate” - ação coletiva
desenvolvida pelos seringueiros para impedir o avanço das máquinas que desmatam a floresta.”
Com um processo pinçado nos vínculos e relações que se estendem no tempo, o que
vivenciamos adiante vai além de uma ancestralidade genealógica, concentrando sua relevância
em uma cultura, deixando sempre suas raízes, revelando um povo ribeirinho, que tem na
floresta Amazônica sua verdadeira ancestralidade. Ligados por vínculos familiares, trabalhistas,
religiosos, ambientalista, políticos, educacionais, ou ainda afetivos, no que se refere ao coração
do mundo – as memórias ancestrais se conectam quando este último é afetado (CASTRO et al.,
2009).

Cultura Ancestral

Assim como tantos outros povos do Amazonas, lutas e discriminações de um povo como
os ribeirinhos incitam ainda hoje levantes, de quem viveu e vive na intimidade com a natureza.
Revelando essa intimidade com a construção de casas em palafitas; o respeito do tempo para o
plantio nas praias dos rios; a utilização de madeiras adequadas tanto para a construção de canoas
como casas; o respeito a fauna e a flora; o convívio com grupos indígenas, em harmonia (LIMA;
ANDRADE, 2010). Pontos que transcendem no tempo e espaço uma identidade viva em nossa
personagem.
Deixe-nos que fale nossa ribeirinha, não como todo, mas como parte do todo presente
no tudo: “em 1985 com a morte de Tancredo Neves, não sei se por ironia do destino, creio
que não, toda a porção de terra ganha por minha mãe foi retirada dela, assim como de outros
trabalhadores. Me lembro como se fosse hoje, era quase tudo denso em floresta nativa, as
propriedades eram grandes lotes, medindo aproximadamente cem mil metros quadrados,
restando, logo que chegamos lá, apenas terra batida – não havia nem sombra de alguma árvore
ou mesmos dos marcos que havíamos colocado. Reclamações e lutas foram muitas, porém, de
minha mãe, só me lembro do choro.”
“Durante os períodos de enchentes, ouvia minha mãe dizer: ‘minha filha, vai se
acostumando, nós somos piores que gado; eles, pelo menos, são levados para as terras altas da
Amazônia, enquanto nós somos jogados aqui em barracas do exército’. Assim que dava para
voltarmos, éramos enviados para nossas casas, que na maioria das vezes nem mais existiam.”
“A falta de assistência financeira das autoridades não permitia que pudéssemos nos
recuperar de um plantio perdido com a cheia. Isso, somado as perseguições nos seringais, foi um
dos motivos que fizeram com que meu pai fosse parar no garimpo em Porto Velho, deixando
minha mãe e irmãos vivendo na extrema miséria, tendo que saquear as plantações nas praias e
até mesmo esmolar nas cidades. Apesar da caça e pesca, não é todo dia, como já houvera dito,
que “o rio está para peixe”, ou ainda que ‘a floresta nos permite ser o caçador’.”
“De toda a cultura que me foi passada, é tudo muito bem aproveitado dentro do cotidiano
da minha casa, na Universidade, como estudante da Licenciatura em Educação do Campo, e no
meu trabalho. Capacidades como a de construir canoas e remos, que aprendi com meu pai, uso
hoje para construção de utensílios domésticos, como: fazer de simples galho de árvore uma
concha de feijão, uma colher de pau, um modelo similar a uma faca de açougueiro. Lembro o
dia em que meu esposo resolveu cercar as crianças ainda pequenas para que não fossem para rua.
Naquele dia, pus meus dons em prática: teci a rede com cordas de varal de roupas, com uma
agulha de tecer redes de madeira, feita por mim mesma.”
A cultura que se aperfeiçoa ao longo do tempo, age e reage no contato, como vimos
nas palavras acima. Todo aprendizado adquirido se aperfeiçoa e pode ser reutilizado, ou ainda

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aperfeiçoado a tal ponto de sairmos da posição daquele que luta na frente de um combate, para
a posição de um militante intelectual.

Militância Intelectual

De todos os povos tradicionais, destacamos a alteridade dos ribeirinhos da floresta


Amazônica, dado por nossa personagem, que tem na sua origem o alerta de um genocídio sem
precedentes, que ocorre hoje em toda a floresta: as queimadas e a mineração predatória têm
seus mandantes. A forma mais rápida de matar uma árvore, sem dúvida, é matando suas raízes;
contudo, alguns brotos, alguma das vezes, germinam, retornando às suas origens e, assim como
da natureza faz parte o homem, memórias que acordam os vínculos ancestrais existentes nos
acordam.
Quando nos referimos à intelectual, mencionamos aquele que conseguiu fugir sem se
desligar de uma ancestralidade oprimida. Nessa condição, acrescentamos os casos de Marina
Silva e Maria de Fátima Silva, com semelhança nos nomes, são também ambas ribeirinhas e
filhas de pais seringueiros. Professoras que hoje conseguem, através da política ou da academia,
denunciar o que antes sofriam na pele.
Em seu desabafo, expõe nossa ribeirinha: “hoje dificilmente pesco ou caço. Contudo,
voltei a militância desde 2018. Ver meus irmãos e mãe ainda vivendo como ribeirinhos, diante
das propostas de pesquisas dentro da Licenciatura em Educação do Campo, me alertaram que,
mesmo a distância, posso lutar. E, ainda que parte dos meus antepassados sofram em condições
semelhantes às que outrora houvera passado, há esperança para o que aconteceu com Chico
Mendes e com meu pai e tantos outros como meus familiares que têm sido expulsos, hora pelo
garimpo, hora pelas queimadas, hora por indústrias.”
Os pontos citados acima por nossa personagem nos revelam seu elo ainda hoje com a
floresta Amazônica, no qual a ancestralidade mantém suas raízes; para isso basta deixarmos
que fale um pouco mais: “quando me referi a indústrias, falava de um dos meus irmãos que
vive no Estado do Pará há muitos anos, e vivenciou e até hoje compartilha comigo o retrato
dos ribeirinhos como ele e outros povos com as ações tomadas com a construção da Usina de
Belo Monte, instalada no rio Xingu, no Estado do Pará. Em suas palavras, desabafou para mim:
‘estamos ali só pela misericórdia de Deus, e essa empresa tenta nos indenizar pelas perdas em
nossas plantações e com nossas criações’. Não só o caso de meu irmão, mas também o de minha
mãe, faço digno de denúncia – com mais de vinte e cinco anos cultivando terras e atuando na
construção de casas, realizadas no corte permitido pelo sindicato dos madeireiros e fiscalizada
pelo Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis),
somente há alguns meses atrás é que essas conseguiram receber o documento de posse de suas
terras no estado do Amazonas, já não mais no Acre.”
Cientes desses fatos, sem nos aprofundarmos, acrescentamos a essas denúncias, pesquisa
feita por jornalistas da Universidade do Estado do Pará. O que se revelou foi um total descaso
das autoridades e indiferença dos próprios colegas de jornalismo: os indígenas foram tirados
das próprias terras e das relações que construíram com a natureza, foram reportados pela
imprensa nacional como baderneiros, causadores da desordem, intrusos nos próprios territórios
ao reivindicarem as terras que são suas por direito. Surpreendentemente negativa foi a função
dos jornais brasileiros ao enfatizarem Belo Monte como proposta de crescimento econômico e
solução para os problemas de energia no país... (PAES; SARMENTO; PONTES, 2018, P.17).
Vergonhosa situação para nossa imprensa.
A reportagem comentou somente sobre os indígenas. Porém, como vimos no relato de
nossa personagem, muitos foram os que sofreram e sofrem com todo esse descaso, fazendo
dessa formação intelectual fornecida pela Licenciatura em Educação do Campo um preparo
transcultural aos grupos diversos atendidos pelo curso.

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Reflexos de fatos que não se revelam pela ignorância, mas sobretudo pela indiferença e descaso.
Remontando casos que insistem em se repetir, com a destruição da mata amazônica e exploração
dos povos tradicionais, relembramos como há algumas décadas seringueiros foram expulsos da
floresta, ocupadas pelo agronegócio ou pela criação de gado. Hoje são as queimadas e o garimpo
ilegal que ainda torturam a mata e aqueles que nela habitam.

Considerações Finais

A necessidade de uma militância que possa vencer a indiferença mascarada por parte dos
governantes, faz de exemplos de vida como a de nossa personagem um relatório incriminador,
em que a ancestralidade é testemunha passiva no sofrer e ativa na resistência.
A capacidade de tecer os vínculos educacionais aos culturais se reflete em vínculos
trabalhistas, como foi no caso de nossa ribeirinha: tudo o que ela detinha de conhecimento
pôde ser direcionado e, portanto, aperfeiçoado. Seja no garimpo, que como um câncer perfura
os leitos dos rios, sangrando o mercúrio, tomando as veias do pulmão do mundo; seja nas
queimadas, que de primeira não poriam fim a floresta, frente ao seu grande poder de resiliência,
contudo um crime doloso como esse transforma a paisagem em pastagem de gado ou mesmo em
lavouras ou garimpos. Tudo isso precisa ser denunciado. Cenário que faz reviver as sementes, ou
melhor, que faz rebrotar as raízes que sempre tiveram seu vínculo de ligação ancestral.

Maria de Fátima Nascimento de Oliveira Silva – Professora Doc.2-Licenciando em Educação


do Campo- LEC e bolsista do Programa de Extensão- PET pela Universidade Federal Rural do
Rio de Janeiro- UFRRJ. Mariadefatiman.osilva@gmail.com

Sidney da Silva- Professor de História – Mestre pela Universidade Federal Rural


do Rio de Janeiro- e Colaborador do Programa de Extensão Tutorial- PET pela
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro- professorsidneysilva244@gmail.com

Igor Simoni Homem de Carvalho- Biólogo, Mestre e Doutor em Ciências Ambientais, professor
de Agroecologia e Educação do Campo. igorshc@ufrrj.br

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REFERÊNCIAS

ALLEGRETTI, Mary H. A construção social de políticas ambientais: Chico Mendes e o


movimento dos seringueiros. Tese de Doutorado, Centro de Desenvolvimento Sustentável,
Universidade de Brasília, 2002, 826p.
CASTRO, Albejamere; FRAXE, Therezinha; SANTIAGO, Jozane; MATOS, Raimundo;
PINTO, Ilzon. Os sistemas agroflorestais como alternativa de sustentabilidade em ecossistemas
de várzea no Amazonas. Acta Amazônica, n.39, vol.2, jan/2009.
LIMA, Maria Aldecy R.; ANDRADE, Erika R.G. Os ribeirinhos e sua relação com os saberes.
Revista Educação em Questão, Natal, v. 38, n. 24, p. 58-87, maio/ago. 2010.
MARTINEZ-ALIER, Joan. O ecologismo dos pobres: conflitos ambientais e linguagens de
valoração. São Paulo: Contexto, 2009, 379p.
PAES, Renata C.; SARMENTO, Priscila S.M.; PONTES, Altem N. Belo Monte: a visibilidade
internacional e nacional da Usina Hidrelétrica nos principais jornais do continente americano,
europeu e asiático (2018). Visitado em < https://www.e-compos.org.br/e-compos/article/
view/1625/1931> Acesso em setembro de 2022.

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Publicado em 2023

Fonte: Garamond Premier Pro, 15 pt - Regular

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