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ALASDAIR MACINTYRE

Coleção FILOSOFIA
1. Para ler a Fenomenologia do Espírito
Paulo Meneses
2. A vereda trágica do Grande Sertão: Veredas
Sônia M. V. Andrade
3. Escritos de Filosofia I
Henrique Lima Vaz
4. Marx e a natureza em O Capital
JUSTIÇA DE QUEM?
Rodrigo A. de P. Duarte
5. Marxismo e liberdade QUAL
Luiz Bicca
6. Filosofia e violência
Marcelo Perine
RACIONALIDADE?
7. Cultura do simulacro
Hygina B. de Me10
8. Escritos de Filosofia 11
Henrique Lima Vaz Tradução
9. Filosofia do mundo PIMENTA
MARCELO MARQUES
Fillippo Selvaggi
10. O Conceito de religião em Hegel
Marcelo F. de Aquino
11. Filosofia e método no segundo Wittgenstein
Werner Spaniol
12. Filosofia Política
Eric Weil
13. O caminho poético de Parmênides
Marcelo P. Marques
14. A filosofia na crise da modernidade
Manfredo A. Oliveira
15. Antropologia filosófica I
Henrique Lima Vaz
16. Religião e história em Kant
Francisco Javier Herrero
17. Justiça de quem? Qual racionalidade?
Alasdair MacIntyre
FILOSOFIA
Coleçáo dirigida pela Faculdade de Filosofia do CES-SJ
Diretor: Marcelo Perine, S.J.
Av. Cristiano Guimarães, 2127 (Planalto)
31710 - Belo Horizonte - MG

Título original:
Whose justice? Which rationality? A
8 1988 by Alasdair MacIntyre
Ediçáo brasileira contratada com a Scott Meredith Literary Agency Inc. Antonia Mary Pietrosanti, Jean Catherine MacIntyre,
845, Third Avenue. Nova Iorque, NY 10022
Direitos reservados. Esta edição náo circulará em Portugal Daniel Eneas MacIntyre e Helen Charlotte MacIntyre.

Ediçáo de texto
Marcelo Perine
Marcos Marciuonilo

Edições Loyola
Rua 1822, 347 - Ipiranga
04216 - São Paulo - SP
Caixa Postal 42.335
04299 - São Paulo - SP

ISBN: 85-15-00431-3
O EDIÇÓES LOYOLA, Brasil, São Paulo, 1991
Em 1981, publiquei a primeira edição de After Virtue. Neste livro
concluí que "n6s, apesar dos esforços de três séculos de filosofia moral
e de um século de sociologia, ainda carecemos de uma formulação
coerente e racionalmente defensável de um ponto de vista individua-
lista liberal" e que "a tradição aristotélica pode ser reformulada de
modo a restituir a racionalidade e a inteligibilidade às nossas atitudes
e compromissos morais e sociais". Mas também reconheci que essas
conclusões exigiam o apoio de uma visão do que é a racionalidade, à
luz da qual as avaliações conflitantes e incompatíveis dos argumentos
de Afier Virtue pudessem ser adequadamente compreendidas. Prometi
um livro no qual tentaria dizer o que faz com que seja racional agir de
um modo e não de outro, e o que faz com que seja racional propor e
defender uma concepção da racionalidade prática e não outra. Eis aqui
o livro.
Em 1982, pronunciei as Conferências Carlyle na Universidade de
Oxford sobre "Algumas transformações da justiça". Ao preparar o ma-
terial dessas conferências para a publicação, reconheci que é carac-
terístico de concepções diferentes e incompatíveis da justiça estar in-
timamente vinculadas a concepções diferentes e incompatíveis da ra-
cionalidade prática. Conseqüentemente, o trabalho de elaborar as dis-
cussões das visões de justiça defendidas por Aristóteles, Gregório VI1
e Hume revelou-se inseparável da tarefa de explicar as crenças sobre
a racionalidade prática pressupostas ou expressas nessas visões da jus-
tiça. Aquilo que originalmente tinha sido concebido como duas tarefas
distintas tornou-se uma única.
Isso me permitiu preencher uma outra lacuna de After Virtue, que
foi destacada por vários críticos que não compreenderam esse livro ao
representá-lo como uma defesa "da moralidade das virtudes", como
uma alternativa "à moralidade das regras". Esses críticos não perce-
beram o modo no qual qualquer moralidade das virtudes foi consi-
derada como exigindo, em contrapartida, "uma moralidade de leis"
(After Virtue, segunda edição, pp. 150-152), uma moralidade tal que
"saber como aplicar a lei só é possível para alguém que possui a virtude
da justiça" (p. 152). Uma preocupação central dessa seqüência a After
Virtue é a natureza da conexão entre justiça e leis.
8 Prefácio Prefácio 9

Entretanto, embora seja uma seqüência a After Virtue, à medida que fundamental para que este livro fosse possível, e eu Ihes agradeço
responde questões ali levantadas, este livro foi escrito de modo a ser profundamente.
lido por quem não tiver ainda lido o primeiro e, espero, de modo a Tenho uma dívida especial para com os muitos leitores e críticos de
suscitar o seu comprometimento. Em After Virtue, tentei me dirigir tanto After Virtue, cujas intuições e comentários contribuíram para a redação
aos filósofos acadêmicos como ao leitor leigo. O perigo dessas tenta- deste livro. Embora haja tantos, um se destaca: Herbert McCabe, O. P.,
tivas é que deixam ambas as audiências insatisfeitas; é um risco que cujas críticas pertinazes a minhas Conferências Carlyle tiveram um
considerei que valia a pena correr, uma vez mais, pelo menos pela impacto consistente sobre minhas concepções. Sou também especialmente
convicção de que a concepção da filosofia como uma pesquisa autônoma, grato, pelos seus comentários aos rascunhos e por outros tipos de discussão,
essencialmente semitécnica e quase-científica, a ser conduzida por a meu colega Henry A. Teloh, a Mark D. Jordan e Ralph McInerny da
especialistas profissionais é, no fim das contas, estéril. Há, de fato, em Universidade de Notre Dame, e a meus ex-alunos, Donald R. C. Reed,
filosofia, um lugar amplo e legítimo para a tecnicidade, mas apenas à Eric Snider e Pamela M. Hall. Minha esposa, Lynn Sumida Joy, me
medida que ela serve aos fins de um tipo de pesquisa, no qual o que apoiou ao longo deste trabalho, apresentando não só as virtudes da
está em questão é de importância crucial para todos, e não apenas para justiça e da razoabilidade, mas também da caridade e da paciência.
os filósofos acadêmicos. A tentativa de profissionalizar o pensamento
sério e sistemático teve um efeito desastroso sobre nossa cultura. No entanto, nada disso teria resultado num livro, não fosse o tra-
balho de datilografia final do texto de Chris Bastian e Stella Thompson.
Os leitores deste livro que também leram Afier Virtue observarão que Sem seu trabalho consciencioso e sua atenção inteligente, a ajuda de
reconheci mais de um erro em After Virtue, mas não nas suas teses todos os outros não teria resultado em nada. Eles, portanto, merecem
principais. Penso agora, por exemplo, que minha crítica anterior às um agradecimento muito especial.
teses de Sto. Tomás sobre a unidade das virtudes estava simplesmente
errada devido, em parte, a uma leitura equivocada do Aquinate. Mas
não me referi a After Virtue nas passagens relevantes, não para dissi- ALASDAIR MACINTYRE
mular minha capacidade de errar, mas para enfatizar o fato de que este Nashville, Tennessee
livro pode ser lido e avaliado sem qualquer conhecimento do anterior. Abril de 1987
Minhas dívidas para com outras pessoas são imensas. Sou profun-
damente grato à Universidade de Oxford, pela oportunidade de pronun-
ciar as Conferências Carlyle, ao diretor e professores do Nuffield College,
por sua hospitalidade naquela ocasião e, mais especialmente, a Nevil
Johnson, cuja atenção e gentileza foram notáveis, numa série de pre-
parações. Eles, portanto, ampliaram a dívida que tenho para com o
Nuffield College, desde quando eu era um pesquisador nessa insti-
tuição. Devo também registrar minha dívida irresgatável para com o
National Endowment for the Humanities que, ao me conceder uma
bolsa em 1979-1980, permitiu que eu preparasse a base para o meu
estudo da cultura escocesa de Hume, nos capítulos XII-XIV, e à Fundação
Guggenheim, cuja bolsa, em 1984-1985, permitiu com que eu fizesse
O trabalho fundamental sobre as visões do raciocínio prático propostas
por Aristóteles e Hume. Mas eu não teria podido usar essas opor-
tunidades, como partes de um esquema sistemático de pesquisa, sem o
apoio ininterrupto do Departamento de Filosofia e do College of Arts
and Science da Universidade de Vanderbilt. O diretor, Jacque Voegeli,
o diretor David L. Tuleen e Dr. Charles E. Scott tiveram um papel
Capítulo I

JUSTIÇAS RIVAIS,
RACIONALIDADES EM COMPETIÇÁO

Comecemos considerando a assustadora variedade de questões rela-


tivas Aquilo que a justiça exige e permite, às quais indivíduos e grupos
opostos nas sociedades contemporâneas propõem respostas alternativas
e incompatíveis. A justiça permite grande desigualdade de renda e
propriedade? A justiça exige ação compensatória para remediar
desigualdades resultantes de injustiça passada, mesmo se aqueles que
pagam os custos de tal compensação não tenham tomado parte na injustiça?
A justiça permite ou exige a imposição da pena de morte e, se sim,
para que ofensas? É justo permitir o aborto legal? Quando é justo
entrar em guerra? A lista de tais questões é longa.
Se se prestar atenção às razões apresentadas para se propor respostas
diferentes e conflitantes a tais questões, fica claro que, subjacente a
esta grande diversidade de julgamentos sobre tipos particulares de assuntos,
está um conjunto de concepções conflitantes de justiça, concepções
surpreendentemente em desacordo umas com as outras, de vários modos.
Algumas concepções de justiça consideram central o conceito de mérito,
enquanto outras não lhe atribuem relevância alguma. Algumas concepções
apelam para os direitos humanos inalienáveis, outras para alguma noção
de contrato social, e ainda outras para algum padrão de utilidade. Além
disso, as teorias conflitantes de justiça que expressam estas concepções
opostas também externam discordâncias quanto à relação entre a justiça
e os outros bens humanos, o tipo de igualdade que a justiça exige, a
variedade de transações e de pessoas para as quais as considerações sobre
a justiça são relevantes e quanto à possibilidade de um conhecimento
sobre a justiça sem um conhecimento da lei de Deus.
Justiças rivais, racionalidades em competição Justiças rivais, racionalidades em competiç,ão 13

Portanto, aqueles que esperavam descobrir boas razões para fazer Um dos fatos mais surpreendentes nas ordens políticas modernas é
este ou aquele julgamento de algum tipo particular de problema - que elas não possuem foros institucionalizados nos quais as discordâncias
saindo das arenas nas quais, na vida social de todos os dias, grupos e fundamentais possam ser sistematicamente exploradas e mapeadas, e
indivíduos discutem sobre o que é justo fazet em casos particulares, muito menos fazem qualquer tentativa de resolvê-las. O próprio fato da
para o domínio da pesquisa teórica, onde concepções sistemáticas de discordância frequentemente não é reconhecido, sendo escamoteado
por uma retórica do consenso. E quando, em uma única e complexa
justiça são elaboradas e debatidas - descobrirão que, uma vez mais,
questão, como nas disputas sobre a guerra do Vietnam ou nos debates
entraram num cenário de conflito radical. O que esse fato pode revelar
sobre o aborto, as ilusões de consenso sobre questões de justiça OU de
para eles é não apenas que nossa sociedade não é uma sociedade de racionalidade prática são momentaneamente rompidas, a expressáo da
consenso, mas de divisão e conflito, pelo menos no que concerne à discordância radical é institucionalizada de maneira tal que essa questão
natureza da justiça; mas também que, em certa medida, essa divisão e única é abstraída dos contextos de fundo de crenças diferentes e in-
esse conflito estão dentro deles próprios. Pois muitos de nós são leva- compatíveis dos quais as discordâncias surgiram. Isso serve para impedir,
dos, através da educação, a adotar não um modo coerente de pensar e na medida do possível, que o debate se estenda aos princípios fundamentais
julgar, mas uma visão construída a partir de um amálgama de fragmen- que informam as crenças de fundo.
tos sociais e culturais herdados tanto de diferentes tradições das quais
nossa cultura originalmente proveio (puritana, católica, judaica), como Os cidadãos particulares são assim, na sua maioria, abandonados
de diferentes estágios e aspectos do desenvolvimento da modernidade aos seus próprios recursos no que tange a essas questões. Aqueles que,
(o Iluminismo francês, o Iluminismo escocês, o Liberalismo econômico muito compreensivelmente, não abandonam toda e qualquer tentativa
do século XIX, o Liberalismo político do século XX). Portanto, de compreender tais questões de maneira sistemática são geralmente
frequentemente, nos desacordos que emergem dentro de nós mesmos, capazes de descobrir apenas dois tipos mais importantes de recursos:
assim como naqueles que são objeto de conflito entre nós e os outros, os fornecidos pelas pesquisas e discussões da filosofia acadêmica moderna
somos forçados a enfrentar a seguinte questão: como devemos escolher e os fornecidos por comunidades mais ou menos organizadas em torno
entre visões opostas e incompatíveis de justiça que porfiam por nossa de crenças comuns, tais como igrejas ou seitas, religiosas ou náo-religiosas,
adesão moral, social e política? ou certos tipos de associações políticas. O que.estes recursos podem
Seria natural tentar responder a esta questão perguntando qual visão fazer, de fato?
sistemática de justiça aceitaríamos se os padrões pelos quais nossas A filosofia acadêmica moderna consegue, em geral, oferecer meios
ações são guiadas fossem os padrões da racionalidade. Aparentemente, para uma definição mais exata e melhor informada da discordância do
para saber o que é a justiça devemos primeiramente aprender o que a que para um progresso na direção de sua resolução. Professores de
racionalidade exige de nós na prática. Entretanto, alguém que tente filosofia que se preocupam com as questões referentes à justiça e à
descobrir isso imediatamente encontra o fato de que as discussões sobre racionalidade prática acabam por discordar entre si tão radicalmente e
a natureza da racionalidade em geral e sobre a racionalidade prática em de maneiras tão variadas e, pelo que parece, tão irremediavelmente
particular são aparentemente tão múltiplas, diversas e difíceis de tratar sobre como tais questões devem ser resolvidas quanto qualquer outra
e de tão difícil solução quanto as discussões sobre a justiça. Ser ra- pessoa. Eles de fato conseguem articular os pontos de vista opostos
cional na prática, um grupo afirma, é agir baseado em cálculos de com maior clareza, maior fluência, e com uma maior variedade de
custos e benefícios, para si mesmo, de todos os cursos de ação possíveis argumentos do que a maioria das pessoas, mas aparentemente con-
e suas conseqüências. Ser racional na prática, afirma um grupo contrário, seguem fazer pouco mais do que isto. E, pensando bem, talvez náo
é agir sob restrições tais que qualquer pessoa racional, capaz de uma devêssemos nos surpreender com esse fato.
imparcialidade que não concede nenhum privilégio particular aos interesses
Consideremos, por exemplo, uma tese filosófica sobre como deve-
próprios, concordaria que devem ser impostos. Ser racional na prática,
mos proceder nestas questões se quisermos ser racionais, tese, à primeira
diz um terceiro grupo, é agir de maneira a alcançar o último e ver-
vista, muito plausível. A racionalidade exige, argumentam alguns filósofos,
dadeiro bem dos seres humanos. Assim um terceiro nível de diferença
que devamos primeiro nos desinvestir da adesão a qualquer uma das
e conflito aparece.
14 Justiças rivais, racionalidades em competição Justiças rivais, racionalidades em competição 15

teorias em debate e também abstrair de todas as particularidades da sido bem-sucedido, e eu acredito que o tenha sido, em mostrar que
relaçáo social em cujos termos fomos acostumados a compreender nossas nenhuma pessoa que compreenda as leis da lógica pode permanecer
responsabilidades e nossos interesses. Só assim, sugere-se, chegaremos racional no momento mesmo em que as rejeita, a observância das leis
a um ponto de vista genuinamente neutro, imparcial, e, deste modo, da lógica é uma condição apenas necessária, mas náo suficiente para a
universal, livres do partidarismo, da parcialidade e do unilateralismo racionalidade, seja ela teórica ou prática. É em relaçáo ao que deve ser
que de outra forma nos afetam. E só assim poderemos avaliar acrescentado à observância das leis da lógica na justificação de atribuições
racionalmente visões conflitantes de justiça. de racionalidade - seja para si próprio ou para os outros, seja para
Um problema é que aqueles que concordam com esse procedimento modos de pesquisa ou para justificações de crenças, ou para cursos de
logo passam a discordar sobre qual concepção precisa de justiça deve açáo e sua justificaçáo - que a discordância surge no que concerne à
ser considerada racionalmente aceitável. Mas mesmo antes de este natureza fundamental da racionalidade e se prolonga na discordância
problema surgir, deve-se perguntar se, adotado tal procedimento, questões sobre como é racionalmente adequado proceder perante essas dis-
cordâncias. Portanto, os recursos fornecidos pela moderna filosofia
centrais não foram consideradas verdadeiras antes de serem provadas
acadêmica nos tornam capazes de redefinir, mas náo parecem eles próprios
como tais. Pois pode-se argumentar, e jd se argumentou, que esta
resolver os problemas daqueles que enfrentam argumentos contrários,
explicaçáo da racionalidade é ela mesma controversa de duas maneiras
invocados por protagonistas de explicações conflitantes da justiça e da
relacionadas entre si: sua exigência de ausência de interesse, na verdade,
racionalidade prática.
secretamente pressupõe um tipo partidário particular de explicaçáo da
justiça, o do individualismo liberal, para cuja justificaçáo ela será mais O único outro tipo de recurso geralmente disponível em nossa so-
tarde usada, de modo que sua aparente neutralidade náo é mais que ciedade, para tais pessoas, é o que é oferecido pela participação na
uma aparência, enquanto sua concepção da racionalidade ideal consistindo vida de cada um desses grupos, cujo pensamento e açáo são informados
em princípios aos quais um ser socialmente desencarnado chegaria, por alguma profissão distintiva de convicção estabelecida e específica,
ilegitimamente ignora o caráter inevitavelmente limitado pelo contexto com relação à justiça e à racionalidade prática. Aqueles que recorreram
histórico e social que qualquer conjunto substantivo de princípios de ou recorrem à filosofia acadêmica esperavam ou esperam adquirir, através
racionalidade, teórica ou prática, necessariamente implica. dela, um conjunto de argumentos sólidos através dos quais pudessem
assegurar, para si mesmos e para outros, a justificação racional de seus
Discordâncias fundamentais sobre o caráter da racionalidade sáo pontos de vista. Aqueles que recorrem, por outro lado, a um conjunto
necessariamente difíceis de resolver. Pois já ao proceder inicialmente de crenças incorporadas na vida de um grupo depositam sua confiança
de uma maneira, e não de outra, ao abordar uma questáo em disputa, em pessoas, náo em argumentos. Ao fazer isto, eles não conseguem
aqueles que assim procedem terão suposto que estes procedimentos evitar a acusaçáo de uma certa arbitrariedade nos seus compromissos,
particulares são o que é racional seguir. É impossível eliminar um uma acusaçáo, entretanto, que tende a ter pouco peso junto àqueles
certo grau de circularidade. Assim, quando as discordâncias entre visões contra quem é dirigida. Por que essa acusaçáo tem tão pouco peso?
conflitantes são suficientemente fundamentais, como no caso das
Por um lado, trata-se de um cinismo generalizado em nossa cultura
discordâncias sobre a racionalidade prática nas quais a natureza da
quanto ao poder ou mesmo à relevância do argumento racional em
justiça está em questão, tais discordâncias se estenderão mesmo às
questões consideradas suficientemente fundamentais. O fideísmo tem
respostas à questão de como proceder para resolver essas mesmas
um corpo grande, nem sempre articulado, de adeptos, náo apenas entre
discordâncias.
os membros das Igrejas e movimentos protestantes que o proclamam
Aristóteles argumenta no livro Gama da Metafísica que qualquer abertamente; há muitos fideístas seculares. E, por outro lado, por causa
um que negue a lei básica da lógica, a lei da não-contradição, e que de uma forte e às vezes justificada suspeita por parte daqueles contra
esteja preparado para defender sua posição partindo para um debate quem a acusaçáo é dirigida de que aqueles que acusam fazem a acusaçáo,
argumentativo, será na verdade incapaz de evitar o recurso à lei que se não tanto porque eles próprios sejam genuinamente movidos pelo
propõe refutar. E pode ser que, para outras leis da lógica, defesas argumento racional, mas porque, ao se utilizarem de argumentação,
paralelas possam ser construídas. Mas mesmo que Aristóteles tenha tornam-se capazes de exercer um tipo de poder que favorece seus próprios
16 Justiças rivais, racionalidades em competição Justiças rivais, racionalidades em competição 17

interesses e privilégios, interesses e privilégios de uma classe que se racional deveria lançar mão de princípios inegáveis a qualquer pessoa
arroga o uso retoricamente efetivo da argumentação para seus próprios racional e, portanto, independentes de todas as particularidades sociais
propósitos. e culturais que os pensadores do Iluminismo consideravam mera roupagem
Os argumentos, é preciso dizer, passaram a ser compreendidos em acidental da razão em lugares e épocas particulares. E ainda, a idéia de
alguns círculos, não como expressões de racionalidade, mas como armas, que a justificação racional era justamente aquilo que os pensadores do
técnicas de exposição que constituem uma parte decisiva das habilidades Iluminismo tinham dito que era passou a ser aceita, pelo menos pela
profissionais de advogados, acadêmicos, economistas e jornalistas que, grande maioria das pessoas cultas, nas ordens sociais e culturais do
através delas, dominam aqueles que não têm fluência ou articulação pós-Iluminismo.
dialética. Há, portanto, uma concordância notável na maneira como Entretanto, os pensadores do Iluminismo, assim como seus sucessores,
tipos de grupos sociais e culturais, aparentemente muito diferentes, mostraram-se incapazes de entrar em acordo sobre quais eram precisa-
vêem os compromissos uns dos outros. Para os leitores do New York mente os princípios que seriam considerados irrecusáveis por todas as
Times, ou pelo menos para o segmento que compartilha os pressupostos pessoas racionais. Um tipo de resposta foi dado pelos autores da En-
daqueles que escrevem este jornal local do iluminismo liberal, afluente
cyclopédie, um segundo por Rousseau, um terceiro por Bentham, um
e autocongratulatório, as congregações do fundamentalismo evangélico quarto por Kant, um quinto pelos filósofos escoceses do senso comum
parecem anacronicamente não-iluminadas. Mas para os membros dessas e seus discípulos franceses e americanos. A história subsequente não
congregações, os leitores do New York Times parecem uma comunidade diminui a extensão de tal divergência. Pelo contrário, ela se tem ampliado.
de fé pré-racional assim como eles próprios, mas uma comunidade Conseqüentemente, o legado do Iluminismo é a provisão de um ideal
cujos membros, diferentemente deles, não se reconhecem pelo que são,
de justificação racional que se mostrou impossível atingir. É daí
e portanto não estão em posição de dirigir acusações de irracionali-
principalmente que decorre a inabilidade, dentro de nossa cultura, de
dade, nem contra eles nem contra ninguém.
unir convicção e justificação racional. Dentro do tipo de filosofia
Habitamos, portanto, uma cultura na qual a inabilidade de se chegar acadêmica, herdeiro das filosofias do Iluminismo, a pesquisa sobre a
a conclusões comuns e racionalmente justificáveis sobre a natureza da natureza da justificação racional tem continuado com refinamento e
justiça e da racionalidade prática coexiste com a utilização, por parte divergência crescentes. Na vida cultural, política, moral e religiosa a
de grupos sociais em oposição, de conjuntos de convicções rivais e convicção pós-iluminista adquiriu efetivamente uma vida própria,
conflitantes não-embasadas na justificação racional. Nem as vozes da independente da pesquisa racional.
filosofia acadêmica, nem aliás, no que concerne a este assunto, as de
Vale a pena perguntar se o Iluminismo não contribuiu para nossa
nenhuma outra disciplina acadêmica, nem as das subculturas partidárias condição atual por uma segunda via, não apenas através do resultado
têm sido capazes de prover os cidadãos comuns de um modo de uni-
da propagação de suas diferentes doutrinas, mas também pelo que ele
ficar suas convicções, em cada assunto, pela justificação racional. As
conseguiu excluir de nossos horizontes. Há algum tipo de compreensão,
questões disputadas concernentes à justiça e à racionalidade prática,
que não encontrou lugar na visão de mundo do Iluminismo, que possa
são, portanto, tratadas no domínio público, não como um assunto de
nos oferecer os recursos conceituais e teóricos para recuperar a convicção
pesquisa racional, mas como exigindo a afirmação e a contra-afirmação
no que tange a assuntos tais como a justiça, por um lado, e a pesquisa
de conjuntos de premissas alternativas e incompatíveis.
e a justificação racionais, por outro? Será importante, ao tentarmos
Como isso ocorreu? A resposta tem duas partes, cada parte tendo a responder a essa questão, não nos deixar aprisionar, talvez
ver com o Iluminismo e com sua história subsequente. Era uma aspi- inadvertidamente, pelos próprios padrões do Iluminismo que pretendemos
ração central do Iluminismo - aspiração cuja formulação foi por si só recusar. Já temos a melhor das razões para supor que aqueles padrões
uma grande realização - prover o debate público de padrões e méto- não podem ser atingidos, e sabemos antecipadamente, portanto, que do
dos de justificação racional através dos quais cursos de ação alterna- ponto de vista do Iluminismo e de seus sucessores, qualquer visão de
tivos, em cada esfera da vida, pudessem ser julgados justos ou injustos, um modo alternativo de compreensão será inevitavelmente tratado como
racionais ou irracionais, esclarecidos ou não-esclarecidos. Assim, esperava- mais um ponto de vista em contenda, incapaz de se justificar
-se, a razão tomaria o lugar da autoridade e da tradição. A justificação conclusivamente perante seus rivais iluministas. Qualquer tentativa de
Justiças rivais, racionalidades em competição Justiças rivais, racionalidades em competição 19
18

oferecer um ponto de vista alternativo radicalmente diferente será sobre as quais teorizam. Burke teorizou precariamente, Newman
certamente considerado racionalmente insatisfatório numa variedade intuitivamente, mas ambos o fizeram com a consciência de uma antítese
de modos, do ponto de vista do próprio Iluminismo. Portanto, é inevitável radical entre a tradição e algo mais, uma antítese que não era acessível
que tal tentativa seja inaceitável e rejeitada pelos adeptos dos modos aos primeiros habitantes do tipo de tradição para o qual me volto.
culturais e intelectuais dominantes na ordem presente. Ao mesmo tempo, O conceito de um tipo de pesquisa racional que seja inseparável da
uma vez que o que será introduzido é um conjunto de argumentos que tradição social e intelectual na qual está incorporado será malcom-
concernem à justificação racional e suas exigências, aqueles cujas preendido, a menos que tenhamos em mente quatro considerações. A
convicções não-racionais desrespeitam algumas destas exigências poderão primeira já foi mencionada: o conceito de justificação racional que
ser igualmente ofendidos. melhor se conforma ao tipo de pesquisa é essencialmente histórico.
Tal tipo alternativo de compreensão existe, então? Do que o Iluminismo Justificar é narrar como o argumento chegou ao ponto em que está. Os
nos privou? O que pretendo mostrar é que aquilo para o que o Ilumi- , que constroem teorias, dentro de tal tradição de pesquisa e justificação,
nismo nos cegou, e que agora precisamos recuperar, é uma concepção frequentemente dão a essas teorias uma estrutura, em cujos termos
da pesquisa racional incorporada numa tradição; uma concepção de certas teses têm o estatuto de primeiros princípios; outras alegações
acordo com a qual os próprios padrões da justificação racional avultem dentro de tal teoria serão justificadas por derivação a partir destes
e façam parte de uma história na qual eles sejam exigidos pelo modo primeiros princípios. Mas o que justifica os próprios primeiros princípios,
como transcendem as limitações e fornecem soluções para as insuficiências ou melhor, toda a estrutura teórica da qual são parte, é a superioridade
de seus predecessores, dentro da história dessa mesma tradição. Nem racional da estrutura particular em relação a todas as tentativas anteriores,
todas as tradições, obviamente, têm a pesquisa racional incorporada dentro da tradição particular, de formular tais teorias e princípios; não
como uma parte constitutiva de si; e os pensadores do Iluminismo que é, de maneira alguma, uma questão de esses primeiros princípios serem
dispensaram a tradição, por considerá-la a antítese da pesquisa racional, aceitáveis a todas as pessoas racionais - a menos que incluíssemos na
estavam, em alguns casos, certos. Mas, ao fazê-lo, obscureceram para condição de pessoa racional a capacidade de apreensão e identificação
si mesmos e para outros a natureza de pelo menos alguns dos sistemas com o tipo de história cujo ponto culminante é a construção desta
estrutura teórica particular, como talvez Aristóteles, por exemplo, de
de pensamento que tão veementemente rejeitaram. Mas isto não foi
algum modo o tenha feito.
inteiramente culpa deles.
Em segundo lugar, não só o modo de justificação racional dentro de
Para aqueles que habitam uma tradição social e intelectual em bom tais tradições é muito diferente daquele do Iluminismo. Aquilo que
funcionamento, os fatos da tradição, pressuposto de suas atividades e deve ser justificado é bem diversamente concebido. O que está em
pesquisas, podem muito bem permanecer apenas isto, pressupostos oposição, de acordo com as teorias do Iluminismo, são doutrinas rivais,
inarticulados que não são objeto de atenção e pesquisa. De um modo doutrinas que podem, de fato, ter sido elaboradas em épocas e lugares
geral, apenas quando as tradições falham, se desintegram ou são desafiadas diferentes, mas cujo conteúdo e cuja verdade ou falsidade, cuja posse
é que seus seguidores se tornam realmente conscientes delas como ou falta de justificação racional é relativamente independente de sua
tradições e começam a teorizar sobre esse substrato. Portanto, o argumento origem histórica. De acordo com essa visão, a história do pensamento
de que a maioria dos mais importantes pensadores morais e metafísicos em geral, e da filosofia em particular, é uma disciplina distinta das
do mundo antigo, medieval, e mesmo do início do mundo moderno só investigações preocupadas com as chamadas questões atemporais acerca
podem ser compreendidos adequadamente quando situados no contexto da verdade e da justificação racional. Esta história tem a ver com quem
das tradições, das quais a pesquisa racional era uma parte central e disse ou escreveu o quê, que argumentos foram de fato aduzidos a
constitutiva, não envolve de maneira alguma o argumento de que estes favor ou contra certas posições, quem influenciou quem, e assim por
pensadores escrevessem preocupados com tais tradições ou oferecessem diante.
explicações adequadas de sua natureza. Os pensadores que estão
explicitamente preocupados com a tradição como assunto são geralmente Em contraposição, do ponto de vista da pesquisa constituída pela
pensadores tardios, tais como Edmund Burke e John Henry Newman, tradição e constitutiva da tradição, o que uma doutrina particular reiv-
que de uma maneira ou de outra, são ou já foram alienados das tradições indica é sempre uma questão de com que precisão ela foi apresentada,
20 Justiças rivais, racionalidades em competição Justiças rivais, racionalidades em competição 21

das particularidades lingüísticas de sua formulação, do que naquela independentemente de suas exemplificações, algo que considero verdadeiro
época e lugar tinha de ser negado; se era para ser afirmado, era uma em relação a todos os conceitos, mas que é mais importante não
questão do que, naquela época e lugar, era pressuposto nessa afir- negligenciar em alguns casos do que em outros. As quatro tradições
mação, e assim por diante. Doutrinas, teses e argumentos, todos devem que neste livro são usadas para exemplificar este conceito são importantes
ser compreendidos em termos de contexto histórico. O que não quer por mais de uma razão. Cada uma é parte do substrato histórico de
nossa própria cultura. Cada uma traz consigo um tipo distinto de visão
dizer, obviamente, que a mesma doutrina ou os mesmos argumentos
da justiça e da racionalidade prática. Cada uma entrou em relação de
não possam reaparecer em diferentes contextos. Nem que reivindicações
antagonismo ou de aliança ou mesmo de síntese, ou de ambas
da verdade atemporal não estejam sendo apresentadas. Isto quer dizer sucessivamente, com pelo menos uma das outras. Ao mesmo tempo,
que reivindicações são feitas em nome de doutrinas cuja formulação é entretanto, elas apresentam padrões de desenvolvimento muito diferentes.
determinada temporalmente e que o conceito de atemporalidade é um
conceito com uma história, um conceito que, em certos tipos de contexto, Assim, a visão aristotélica da justiça e da racionalidade prática emerge
não é de forma alguma o mesmo conceito que em outros. dos conflitos da pólis antiga, mas é em seguida desenvolvida por Tomás
de Aquino de um modo que escapa às limitações dapblis. Assim a versão
Portanto, a própria racionalidade, teórica ou prática, é um conceito agostiniana do cristianismo estabeleceu, no período medieval, complexas
com uma história: realmente, desde que há uma diversidade de tra- relações de antagonismo, posteriormente de síntese, e depois de continuado
dições de pesquisa com histórias, há, como veremos, racionalidades e antagonismo, com o aristotelismo. Assim, num contexto cutural poste-
não racionalidade; assim como ficará claro que há justiças e não justiça. rior bastante diferente, o cristianismo agostiniano, agora numa forma
É neste ponto que uma terceira consideração deve ser levantada, pois calvinista, e o aristotelismo, agora numa versão da Renascença, entraram
é a isto que os adeptos do Iluminismo compreensivelmente se apegarão. numa nova simbiose na Escócia do século XVII, gerando uma tradição
Vocês criticam, assim dirão esses adeptos, nossa incapacidade de re- que no ápice de sua realização foi subvertida a partir de dentro por
solver as discordâncias entre argumentos opostos envolvendo princípios Hume. Assim, finalmente, o liberalismo moderno, nascido do antagonismo
com os quais qualquer pessoa racional deve concordar. Mas vocês vão com toda tradição, transformou-se gradualmente em algo que é agora
confrontar-nos com uma diversidade de tradições, cada uma com seu claramente reconhecível, mesmo por alguns de seus adeptos, como mais
modo específico de justificação racional. E certamente a conseqüência uma tradição.
deve ser uma igual incapacidade de resolver a discordância radical. É inegável que há outros corpos de pesquisa constituídos pela tradição
A esse tipo de afirmação, aquele que propõe a racionalidade das que não apenas merecem atenção por si só, mas cuja omissão tornará
tradições tem uma resposta dupla: uma vez que a diversidade de tra- minhz argumentação significativamente incompleta. Três, em particu-
dições tenha sido devidamente caracterizada, teremos uma explicação lar, devem ser mencionados. A derivação do cristianismo agostiniano
da diversidade dos pontos de vista melhor que as propostas pelo de suas fontes bíblicas é uma história cujo contraponto é a história do
Iluminismo ou seus herdeiros; e o reconhecimento da diversidade de judaísmo, dentro da qual a relação do estudo devoto da Torá com a
tradições de pesquisa, cada uma com seu modo específico de justifi- filosofia gerou mais de uma tradição de pesquisa. Mas, de todas as
cação racional, não implica necessariamente que as diferenças entre histórias de pesquisa, esta é uma que deve, talvez mais do que qualquer
tradições rivais e incompatíveis não possam ser racionalmente outra, ser escrita por seus próprios adeptos; em particular, para um
solucionadas. Como e sob que condições elas podem ser resolvidas é cristão agostiniano, como eu próprio, tentar escrevê-la, assim como me
algo que só pode ser compreendido depois que uma compreensão prévia senti capaz de escrever a história de minha própria tradição, seria uma
da natureza de tais tradições tiver sido alcançada. Do ponto de vista grande impertinência. Os cristãos precisam muito escutar os judeus. A
das tradições de pesquisa racional, o problema da diversidade não é tentativa de falar por eles, mesmo em nome da infeliz ficção, a chamada
abolido, mas transformado, de maneira a viabilizar sua solução. tradição judeu-cristã, é sempre deplorável.

Finalmente, é crucial que o conceito de pesquisa racional, constituída Em segundo lugar, tentei atribuir a Hume o que lhe é devido com
pela tradição e constitutiva da tradição, não possa ser elucidado respeito a suas visões da justiça e ao lugar do raciocínio na gênese da
22 Justiças rivais, racionalidades em competição

ação. Se eu tivesse tentado fazer o mesmo com Kant, este livro teria
se tornado inexequivelmente longo. Mas toda a tradição prussiana na
qual a lei pública e a teologia luterana foram fundidas, uma tradição
que Kant, Fichte e Hegel tentaram universalizar, mas não conseguiram,
é claramente da mesma ordem de importância que a tradição escocesa
Capítulo I1
aqui exposta. De modo que sempre resta o que fazer.
Em terceiro lugar, pelo menos tão importante quanto os outros, o
pensamento islâmico exige tratamento não apenas por si só, mas também JUSTIÇA E AÇÁO
devido à sua grande contribuição à tradição aristotélica. Mas tive de NA IMAGINAÇÁO HOMÉRICA
omitir também isso. E, finalmente, o tipo de história que tentarei contar
exige como complemento não apenas as narrativas judaicas, islâmicas
e outras narrativas pós-bíblicas, mas também as narrativas de tradições
de pesquisa tão contrastantes como as geradas na fndia e na China. O
reconhecimento de tal incompletude em nada contribui para corrigi-la,
mas pelo menos esclarece as limitações de meu empreendimento. Heráclito disse que justiça é conflito e que tudo vem a ser de
Este empreendimento, por sua própria natureza, tem de assumir, acordo com o conflito. John Anderson, que compreendeu Heráclito à
pelo menos inicialmente, uma forma narrativa. O que uma tradição de luz da visão de John Burnet em Early Greek Philosophy, argumentou
pesquisa tem a dizer, tanto para os de dentro como para os de fora dela, que a intuição heraclitiana oferece a chave para a compreensão da
não pode ser revelado de outro modo. Ser adepto de uma tradição é natureza das instituições e ordens sociais. Elas são milieux de conflito,
sempre encenar algum estágio posterior do desenvolvimento de sua arenas nas quais modos opostos de crença, de compreensão e ação se
própria tradição; compreender uma outra tradição é tentar oferecer, nos contrapõem, entram em discussão, debate e, em casos extremos, guerra,
melhores termos imaginários e conceituais disponíveis - e mais tarde como o notou acertadamente Heráclito. Mas o conflito não é apenas
veremos que problemas podem surgir daí - o tipo de visão que um meramente divisivo. Ao fazer com que as partes conflitantes entrem
adepto daria. E uma vez que, dentro de qualquer tradição de pesquisa em relações contínuas, cambiantes, mas às vezes estáveis, ele se torna
bem-desenvolvida, a questão de exatamente como sua história até esse integrado e integrador das formas de vida social e civil dentro das
ponto deve ser escrita é caracteristicamente uma das questões às quais quais, assim como no universo como um todo, a transgressão das
respostas diferentes e conflitantes podem ser dadas dentro da tradição, medidas da justiça implica retribuição (fragmentos XLIV e LXXXVII
a própria tarefa narrativa geralmente envolve participação no conflito. em Charles Kahn, The Art and Thought of Heraclitus, Cambridge, 1979,
Conseqüentemente, devo começar enfatizando o necessário lugar do 49 e 69). A história de qualquer sociedade é, portanto, porção funda-
conflito dentro das tradições. mental da história de um extenso conflito ou grupo de conflitos. E o
que ocorre com as sociedades ocorre também com as tradições.
Uma tradição é uma argumentação, desenvolvida ao longo do tempo,
na qual certos acordos fundamentais são definidos e redefinidos em
termos de dois tipos de conflito: os conflitos com críticos e inimigos
externos à tradição que rejeitam todos ou pelo menos partes essenciais
dos acordos fundamentais, e os debates internos, interpretativos, através
dos quais o significado e a razão dos acordos fundamentais são expressos
e através de cujo progresso uma tradiçáo é constituída. Tais debates
internos podem ocasionalmente destruir o que tinha sido a base do
acordo fundamental comum, de modo que ou uma tradição se divide
em dois ou mais componentes em conflito, cujos adeptos são
24 Justiça e ação na imaginação homérica Justiça e ação na imaginação homérica 25

transformados em críticos externos de suas respectivas posições, ou a pensamentos atuais sobre justiça e racionalidade prática não poderiam
tradicáo ~ e r d toda
a .
e coerência e não sobrevive. Pode também acontemr sequer ser expressos.
que duas tradições, até então independentes e mesmo antagônicas, pas-
sem a reconhecer certas possibilidades de acordo fundamental e se Desde que os poemas homéricos foram pela primeira vez traduzidos,
reconstituam como um debate único e mais complexo. a palavra homérica 'díke' tem sido traduzida por 'justiça'. Mas as
mudanças que ocorreram nas sociedades modernas, no que concerne ao
Apelar para a tradição significa insistir que só podemos identificar modo como a justiça deve ser compreendida, tornaram esta tradução
adequadamente nossos próprios compromissos e os de outros nos conflitos cada vez mais enganosa. Este não é de modo algum o único aspecto em
argumentativos do presente se os situarmos dentro das histórias que os
relação ao qual os poemas homéricos se tornaram gradualmente menos
fizeram ser o que são. E, à medida que os conflitos argumentativos do
presente concernem à natureza da justiça, do raciocínio prático e de traduzíveis, mas é um dos mais importantes. Pois o uso da palavra
sua mútua relaçáo, as histórias relevantes só se tornam inteligíveis se 'díke', tanto por Homero como por aqueles que retratava, pressupunha
soubermos reconhecer até que ponto são uma extensáo e uma continuação que o universo tinha uma única ordem fundamental, uma ordem que
de uma história de conflito encontrada na ordem social e cultural ateniense estruturava a natureza e a sociedade, de modo que a distinção que nós
nos séculos V e IV a.C. Obviamente, esta não é a única história precedente fazemos ao contrastar o natural e o social não podia ainda ser expressa.
da qual esses conflitos são extensáo e continuação. O que aconteceu Ser díkaios significa conduzir as próprias ações e negócios de acordo
sob o rei Josias em Jerusalém no século VI1 - com a redefiniçáo do com essa ordem.
relacionamento do povo do reino de Judá para uma história cujo evento
central foi a entrega da lei divina a Moisés no Monte Sinai - é também É a essa ordem que Zeus, o pai dos deuses e dos seres humanos,
parte inevitável do passado sem o qual nosso presente não pode se preside; e são comunidades particulares dentro dessa ordem que os reis
tornar adequadamente inteligível. Mas mesmo a compreensão da lei presidem, dispensando, se são justos, a justiça que Zeus lhes confiou.
divina foi, em certos episódios importantes, parcial, mas crucialmente Dos usos de díke na Zlíada, todos se referem ou a um julgamento por
determinada por modos de .argumentação e de interpretação derivados um juiz numa disputa ou a uma reivindicação por um participante numa
dos debates atenienses. disputa. Uma díke particular é reta se está de acordo com aquilo que
Dos conflitos da ordem social e cultural da pólis ateniense, her- thémis exige; errada, se se desvia disso. Thémis é o que é ordenado, o
damos uma variedade de tradições mutuamente incompatíveis e an- que é estabelecido como a ordenação das coisas e das pessoas. Um rei
tagônicas no que se refere à justiça e à racionalidade prática. As duas julga com retidão quando julga de acordo com as thémistes, as ordenações
tradições das quais tratarei receberam suas formulações clássicas de dadas por Zeus. O reinado, o governo divino e a ordem cósmica são
Tucídides, assim como de certos sofistas e professores de retórica, e de noções inseparáveis, e as palavras 'díke' e 'thémis' são substantivos
Aristóteles, respectivamente. Mas nenhuma das duas pode, para propósitos derivados de dois dos mais básicos verbos da língua grega: 'díke' vem
de exposição, ser abstraída do contexto geral do debate dentro do qual da raiz de 'deiknumi', 'eu mostro' ou 'eu indico', 'thémis' vem da raiz
cada uma se definiu por oposição a todo um conjunto de outras. E os de 'zíthemi', 'eu ponho' ou 'eu estabeleço'. 'Díke' é o que se indica
termos desse debate foram determinados por um corpo de material oral
fora; 'thémis' é o que se estabelece dentro. E esses substantivos estão
e escrito que oferecia aos atenienses cultos as compreensões comuns
ligados aos verbos, de modo que aquilo com o que estamos lidando não
básicas, sem as quais desacordos e conflitos claramente articulados são
é etimologia morta, mas o modo no qual a natureza da ordem cósmica
impossíveis. A Ilíada e a Odisséia eram centrais nesse corpo de mate-
é pressuposta em grande parte do discurso cotidiano.
rial oral e escrito. Os atenienses, portanto, tinham de começar por
Homero. E nós, que reconhecemos uma das duas mais importantes de Zeus e os reis, a cujo controle Zeus confiou as thémistes, exercem
nossas origens, no que se refere à justiça e à racionalidade prática, nos díke punindo aqueles que a violam. Se, portanto, o súdito de um rei é
conflitos dos atenienses, não temos outra alternativa a não ser também prejudicado, é ao rei que deve apelar para um julgamento reto a seu
começar por ele. Esse começo requer a descoberta de algum modo de favor. E assim também com Zeus. Zeus protege especialmente aqueles
expressar em nossa língua aquilo que deve ser aprendido de um poeta cujo lugar na ordem estabelecida está indefinido ou ameaçado: o
que fala o grego homérico, no qual, feliz ou infelizmente, muitos de nossos estrangeiro e o suplicante.
26 Justiça e ação na imaginação homérica Justiça e ação na imaginação homérica 27

A ordem sobre a qual Zeus e os reis humanos reinam estrutura-se deixado só no campo de batalha. Ele conduz um diálogo consigo mesmo,
em termos de regras sociais hierarquicamente ordenadas. Saber o que OU melhor, com seu thymos: "...o que vai acontecer comigo? Se eu
se exige de você é saber qual é o seu lugar dentro da estrutura e fazer fugir assustado por eles, será um grande mal; mas se for agarrado só,
aquilo que o seu papel exige. Privar um outro daquilo que é devido a será mais terrível ... Mas por que meu thymos me diz estas coisas? Pois
qualquer um no desempenho do seu papel ou usurpar o papel de um eu sei que os maus (kakói) abandonam a batalha, mas aquele que é
outro significa não apenas violar díke; significa infringir a timé, a honra excelente (aristeyesi) na luta deve resistir corajosamente ..." (XX, 404-
do outro. E se eu sou desonrado, como Aquiles por Agamenon, devo 410). Ulisses lembra a si mesmo, ou melhor, a seu thymos, aquilo que
buscar reparação. sabe: quem é agathós como guerreiro, e não kakós, resiste firmemente;
e seria bastante natural para nós dizer que ele se dá uma boa razão para
Fazer aquilo que o meu papel exige, fazê-lo bem, utilizando as
habilidades necessárias para fazer aquilo que alguém naquela posição agir como age. Mas isto seria enganoso se sugerisse que Homero atribui
deve aos outros, é ser agathós. 'Agathós' se traduz por 'bom' e 'areté', a Ulisses um processo de raciocínio. Ulisses não faz inferências. O que
o substantivo correspondente, por 'excelência' ou 'virtude'; mas uma faz é trazer à mente aquilo que sabe, a fim de enfrentar o efeito de uma
vez que originalmente ser agathós é ser bom naquilo que o próprio paixão perturbadora, o medo, sobre seu thymos. O que diz a si mesmo
papel exige, e uma vez que o papel primário e mais importante é o do está para a ação que então realiza, não como uma premissa para uma
rei-guerreiro, não é de surpreender que 'areté' nomeie originalmente a conclusão, mas como uma afirmação daquilo que é exigido está para a
excelência deste rei. Alguém que faz aquilo que é próprio a um rei realização da exigência.
fazer, preservando sua timé como rei, pode, entretanto, agir de um modo O que significa o termo 'thymos' neste contexto? Traduzi-lo por 'alma'
não adequado à preservação da díke. Agamenon, ao desonrar Aquiles, ou 'espírito', como sugerem Liddel e Scott pelo menos para alguns
não deixou de ser agathós (Ilíada I, 275). exemplos de seu uso, ou por 'mens' ou 'animus', como fez Henricus
O termo 'areté', obviamente, é usado para se referir não apenas às Stephanus, é aceitável se desinvestirmos estas palavras de muitas de
qualidades dos reis-guerreiros, mas nos poemas homéricos ele ainda suas conotações atuais. O thymos de alguém é aquilo que o move para
nomeia apenas as qualidades que tornam um indivíduo capaz de fazer a frente: é o seu eu como um tipo de energia; e não é por acidente que
aquilo que seu papel exige. Entretanto estas são qualidades valorizadas passa a ser usado não apenas como a sede da raiva, mas como a própria
não apenas porque permitem que um indivíduo possa fazer aquilo que raiva. Paixões como o medo, a raiva ou o desejo sexual inflam o thymos
seu papel exige, mas também porque o tornam capaz tanto de agir de e levam à ação, frequentemente de tipo destrutivo. Tais paixões são
acordo com aquilo que seu papel exige como de preservar e restaurar infligidas nos; ao experienciá-las podemos ser visitados por áte, possessão
a ordem que é díke. Assim, na Ilíada, Nestor é eu phrenéon (I, 253) cega. Os deuses, para seus próprios propósitos ou para punir-nos, podem
por falar com o propósito de pôr fim à querela entre Agamenon e Aquiles, ser os autores de tais aflições e visitações, e também eles podem,
e na Odisséia, Euricléia considera que Telêmaco agiu com sophrosyne igualmente, nos prevenir quanto a ceder a elas, assim como Atena
(XXIII, 30) por não revelar prematuramente os planos de seu pai; a previne Aquiles quando ele é tomado pelo impulso de matar Agamenon.
mesma qualidade foi-lhe atribuída anteriormente (IV, 158), quando estava
na corte de Menelau. Em ambos os casos, o que foi atribuído a ele foi Essa concepção da relação das paixões com o thymos nos impede
saber agir efetivamente em seu papel e de modo a sustentar e não de compreender as paixões como provedoras de razões, para não dizer
violar a ordem geral das coisas. E o conselho de Nestor aos outros visa boas razões, para que alguém possa agir de um modo particular. As
produzir o mesmo controle que Telêmaco exerce em relaçáo a si mesmo. paixões são, nessa visão, causas que, ao inflar o thymos, desviam alguém
daquilo que ele faria em outras circunstâncias, daquilo que seria apro-
Pensar bem (eu phrónein) ou solidamente (sophrónein) é uma questáo
priado fazer. Quando Ulisses invoca aquilo que sabe ser o melhor modo
de lembrar-se a si mesmo ou a outro o que areté e díke exigem. Mas,
nos poemas homéricos, o que está mais frequentemente em questáo é de agir, a fim de inibir os efeitos do medo, ele não está pesando duas
apenas a areté. O que significa considerar as exigências de areté ao decidir razões alternativas para a ação. O que é apelar para que sua firmeza
como agir? Na Ilíada (XI, 400ss.) há um momento no qual Ulisses é de propósito para vencer a paixão.
28 Justiça e ação na imaginação homérica Justiça e ação na imaginação homérica 29

E, na versão de Robert Fitzgerald, publicada em 1974, a mesma


Assim, a questão não t apenas que os preceitos que encarnam as
passagem transformou-se no seguinte:
injunções de areté e díke não estão para as ações que prescrevem como
razões, mas que as paixões não devem ser pensadas como provedoras A pain like grief weighed on the son of Peleus,
de um conjunto alternativo de razões para a ação. Obviamente, quando and in his shaggy chest this way and that
mais tarde os poemas homéricos são lidos por pessoas que habitam the passion of his heart ran: should he draw
tipos bastante diferentes de cultura, é fácil lê-los equivocadamente deste long sword from hip, stand off the rest, and kill
e de vários outros modos a ele relacionados. Assim, leitores posteriores in single combat the great son of Atreus,
retroprojetam sobre os poemas homéricos formas de deliberação que o r hold his rage in check and give it time?
são preparatórias para a ação, tipos de processo de decisão, padrões de
raciocínio prático que eles mesmos empregam. A essa luz, consideremos Chapman tinha sido educado em Cambridge e lá teve de ler a Ética
os versos do livro I da Ilíada (189-192), nos quais Homero descreve a a Nicômaco no auge do aristotelismo renascentista. Portanto, atribui a
resposta de Aquiles ao discurso demissório de Agamenon, nos quais Aquiles uma "parte discursiva" e "pensamentos" rivais em sua "mente".
ele reivindica o prêmio de Aquiles, a escrava Briseida, "para que você De acordo com Pope, Aquiles está dividido, ao modo do século XVIII,
possa saber o quão mais poderoso que você eu sou...". Aquiles encontra- entre razão e paixão. E Fitzgerald retrata Aquiles no estilo psicológico
se, por um momento, entre puxar a espada para matá-lo e controlar seu atual como sujeito a impulsos alternantes de paixão. Cada tradutor usa
thymos. um idioma familiar a seu próprio tempo, pressupondo alguma visão
contemporânea, bem-articulada, dos fatores que determinam a ação e
George Chapman, que publicou sua tradução em 1598, escreveu: da psicologia correspondente atribuída ao agente. O grego homérico,
Thetis'son a t this stood vext. His heart entretanto, não diz nada a respeito de parte discursiva ou de razão
Bristled his bosome and two waies drew his discursive p a r t - competindo com paixão ou mesmo de qualquer "paixão de seu coração"
num sentido moderno. Homero fala de coração (étor) e, algumas linhas
If, from his thigh his sharpe sword drawne, he should make
room about abaixo, de diafragma (phrén) como orgãos físicos. Em Homero, toda
Atrides' person slaughtring him, o r sit his anger out And c u r b psicologia é fisiologia. Quando utilizamos este vocabulário fisiológico
his spirit. While these thoughts striv'd in his blood and mind...' para expressar o que para nós agora são noções psicológicas distintas,
só podemos falar figurativamente, pelo menos a maior parte do tempo.
Alexander Pope na sua Ilíada de 1715, por outro lado, traduziu: Mas Homero, ao utilizar esses termos, não falava figurativamente.
Portanto, num sentido crucial, os poemas homéricos, apesar de podermos
Achilles heard, with Grief and Rage opprest, compreendê-los com a oportuna ajuda da erudição filológica e histórica,
His Heart swell'd high, and labour'd in his Breast. . não podem ser traduzidos, nem mesmo através de uma reconstituição
Distracting Thoughts by turns his Bosom rul'd, palavra-por-palavra. Pois se estas palavras forem compreendidas como
Now fir'd by Wrath, and now by Reason cool'd: palavras do inglês contemporâneo, sem glosa ou paráfrase - e não faz
That promps his Hand to draw the deadly Sword,
diferença se estamos tratando dos contemporâneos de 1598, de 1715 ou
Force thro' the Greeks, to pierce their haughty Lord;
This whispers soft his Vengeance to controul, de 1974, ou se a língua-alvo for inglês, francês, alemão ou português
- não significarão aquilo que as palavras de Homero significam; só
And calm the rising Tempest of his Soul.
através de glosa e paráfrases adequadas, e não simplesmente das próprias
palavras, elas serão compreendidas no seu sentido homérico genuíno.
1. Optei por manter as citações de Homero em inglês porque o sentido da argumen-
tação de Maclntyre fica perfeitamente claro ao longo do texto, tomando dispensável a E isto não é uma questão apenas da transição da fisiologia para a
complexa e ousada tarefa de manter numa tradução para o português as diferenças psicologia; nem é algo que possa ser remediado por traduções mais
sintáticas e semânticas entre traduções inglesas de épocas tão diversas, de modo a acuradas. (Quem poderia traduzir melhor que Chapman, Pope e
sustentar a argumentação do autor, que parte das projeções feitas pelos tradutores dos Fitzgerald?). Compreender alguém à medida que está suspenso entre
pressupostos da teoria da ação vigente em sua época e que visa, em última análise, cursos alternativos de ação, de modo adequadamente determinado, exige
mostrar como é impossível traduzir Homero (N. do T.).
30 Justiça e ação na imaginação homérica Justiça e ação na imaginação homérica 31

compreender sua situaçáo, de um modo tal que não possa ser neutro em muito recursos). E quando generalizações causais são invocadas nos
relação a modos radicalmente diferentes de conceber as relações entre poemas homéricos, o interesse nelas é sempre o interesse prático de
aquilo que os seres humanos fazem e os fatores determinantes de suas algum agente tentan-do agir efetivamente. Não há nenhum pretenso
ações. Cada tradutor deve, se pretende ser inteligível para seu público, teórico na Zlíada ou na Odisséia. No entanto, mesmo o raciocínio meio-
fundir o idioma de Homero com o de sua própria época, e quanto fim nos poemas homéricos tem, comparado com épocas e locais
melhor o tradutor, mais sutil será a transposição das remotas pré- posteriores, uma função restrita.
concepções homéricas para pré-concepções mais familiares. fi por isso
O que diferencia o raciocínio meio-fim, nos poemas homéricos, do
que cada ambiente cultural particular necessita de suas próprias traduções
raciocínio posterior atribuidor de razões, é que, a não ser de modo
de Homero, e é também por isso que o caminho para a compreensão
secundário, d e não responde à questáo do agente "Que devo fazer?".
de Homero passa pela compreensáo das limitações específicas de cada
O agente ja entrevê a açáo que deve realizar; seu raciocínio é uma
traduçáo, assim como de seus achados.
advertência de que deve refrear seu thymos, uma vez que deve realizar
Meu argumento é que, nos poemas homéricos, o preâmbulo para a determinada açáo ou então sofrer consequências funestas (por exemplo,
açáo não deve ser representado, a não ser onde haja uma justificação os deuses não ouvem suas súplicas) ou uma conclusão de que deve
clara, em termos de concepções posteriores, e que o fato pelo qual isso realizar tais outras ações se pretende fazer o que é exigido (assim, por
ocorre deve-se a uma má compreensáo gerada pela falta de firmeza do exemplo, como Ulisses raciocina que deve possuir o arco se quiser
ato de traduçáo. Mas pode-se sugerir não apenas que eu, no mínimo, matar os pretendentes, e Penélope, que deve desfazer seu tecido se
exagerei a diferença entre Homero e nossa época, mas também que isso quiser livrar-se dos pretendentes). Se visam fazer aquilo que acham se
pode ser facilmente mostrado através da leitura dos versos 109 a 205- exige deles, devem antes fazer certas outras coisas. Assim, num sentido
218. Pois aí Atena exige que Aquiles se contenha, em favor de Hera secundário, extraem conclusões sobre a próxima coisa a fazer, mas só
e de si mesma, dizendo-lhe que se ele se controlar receberá presentes são capazes de fazê-lo porque já sabem, independentemente de seu
três vezes mais valiosos do que aqueles de que está sendo privado. E raciocínio, qual a ação que devem realizar.
Aquiles responde que é necessário atender às palavras de duas deusas,
Isso toma o raciocínio dos agentes representados nos poemas homéricos
"mesmo que haja raiva em seu thymos; pois assim é melhor (ámeinon).
significativamente diferente, em sua funçáo, do raciocínio de agentes
Quem obedece aos deuses é por eles ouvido". Aqui Aquiles fala de
representados por teóricos posteriores do raciocínio prático, seja na
dois modos de fazer aquilo que Atena propõe. Ele é lembrado por
Atenas dos séculos V e IV, seja em outras sociedades subseqüentes.
Atena, assim como Ulisses faz a si mesmo, de que faz parte de ser
Pois tais teóricos nos ofereceram, caracteristicamente, compreensões
ágathos (ámeinon é simplesmente o comparativo de ágathon) não permitir do raciocínio prático nas quais um ou mais dos seguintes três tipos de
que o thymos inflado de paixão dite suas ações. Mas também raciocina
raciocínio são representados. Em algumas visões antigas e medievais,
em termos de uma generalização meio fim, assim como fazemos: fazer
o agente raciocina a partir de premissas sobre o que é o bom para
o que os deuses ordenam agora garante mais tarde seu favor. E ao
agentes do seu tipo, juntamente com premissas sobre sua situaçáo,
pensar assim certamente faz uma inferência quanto ao que deveria
chegando a conclusões que são ações; em algumas visões modernas, o
fazer, assim como nós.
agente raciocina a partir de premissas sobre o que quer, juntamente
Além disso, fazer inferências que apelam para generalizações causais com premissas sobre como o que quer pode ser obtido, chegando a
é, evidentemente, lugar-comum nos poemas homéricos: Euríloco aponta conclusões que são decisões ou intenções de agir de modo particular;
para as consequências de se navegar à noite (Odisséia XII, 286-290); e em algumas visões do início da era moderna, o agente, movido a
Ulisses mostra as consequências de se matar os rebanhos de Hélios satisfazer algum desejo, seleciona, de acordo com algum critério racional,
(XIV, 320-323); e Eumeu, Telêmaco, Euricléia e de fato, implícita ou uma açáo como um meio de satisfazer aquele desejo. Em todos os três
explicitamente, quase todos os eersonagens em Homero raciocinam e tipos, a questáo que o agente enfrenta, à qual o seu raciocínio prático
devem raciocinar similarmente. E a habilidade de raciocinar assim que oferece uma resposta, aparece porque o agente não sabe o que fazer. Só
constitui grande parte da astúcia característica distintiva de Ulisses, depois que a questáo: "Que devo fazer?" foi respondida, através de
que faz com que mereça o epíteto que lhe é atribuído, 'poly-métis' (de algum tipo de raciocínio prático, o agente racional sabe que ação ou
Justiça e ação na imaginação homérica Justiça e ação na imaginação homérica

Inclinamo-nos a supor, sob a influência desse tipo de visão moderna,


ações são exigidas dele agora ou num futuro previsível. E isso torna
que os desejos são itens psicologicamente básicos e, em grande parte,
todos esses tipos de raciocínio mais recentes muito diferentes dos
senão completamente, invariáveis em sua função, considerando as
raciocínios dos personagens de Homero.
diferentes culturas. Isso é um erro. O papel e a função dos desejos na
Há, certamente, maneiras de redescrever episódios nos poemas autocompreensão dos seres humanos variam de cultura Dara cultura em
" - -
homéricos de modo a fazê-los se encaixar num desses padrões. É isso função do modo como seus projetos e aspirações, expressões de
que fazem Chapman, Pope e Fitzgerald. Mas fazer isso implica sempre necessidade e exigências em relação aos outros são organizados e
algum grau de equívoco anacrônico. E geralmente a tentação para o articulados no mundo social público. Quando alguém se move rumo a
erro é mais perigosa quando vem incorporada no uso de expressões que um objetivo, deliberada e intencionalmente, não é sempre ou
podem aparentemente ser aplicadas correta e intuitivamente As ações e necessariamente verdade que isso ocorra porque esta pessoa está sendo
personagens dos poemas homéricos e que também encontram aplicação movida por um desejo, ou mesmo, num sentido mais amplo, por uma
nas transações contemporâneas, mas que só são capazes de realizar paixão. Isto vai depender, em grande parte, do modo pelo qual, na
ambas as funções em virtude de mudanças nos significados e critérios cultura em questão, a s relações entre o mundo interior dos propósitos,
de aplicação. Consideremos o "auto-interesse". Agentes, nos poemas necessidades sentidas, dores, prazeres, emoções, desejos etc. e o mundo
homéricos, podem certamente ser considerados como quem sempre age social público das ações, demandas, desculpas, apelações, deveres e
em seus próprios interesses tal como eles os compreendem, mas O obrigações são organizadas. O mundo interior pode espelhar, respon-
interesse de um indivíduo é sempre seu interesse enquanto esposa ou der, compensar ou reagir contra os elementos constitutivos do mundo
enquanto anfitrião ou algum outro papel. E, uma vez que o que é social público. Mesmo a posse de algum conceito de um eu interior
exigido de alguém no seu papel é dar o que é devido a outros ocupando unificado não é cuturalmente necessária, e uma cultura que funcionava
papéis que se põem em relação determinada com o seu próprio, rei para muito bem sem ele foi retratada nos poemas homéricos.
nobres ou súditos, guardador de porcos para senhor ou outro servo,
Hugh Lloyd-Jones (The Justice of Zeus, 1971) sugere que se os ar-
esposa para esposo e outro parente, anfitrião para hóspede e assim por
gumentos de Hermann Frankel para a conclusão de "que Homero não
diante, não há o mesmo contraste entre o que é para o interesse próprio
tinha uma visão articulada e coerente do eu" fossem sólidos, isto
e o que é para o interesse de outros, como há nas concepções veiculadas
"descartaria a possibilidade de a Ilíada ser um poema no qual a justiça ...
pelos usos modernos de 'auto-interesse' e termos cognatos.
tenha algum papel significativo" (pp. 8-9). E despreza a tese de Bruno
Nos nossos usos modernos de tais expressões, frequentemente Snell (Die Entdeckung des Geistes, 1964) de que os personagens homéricos
pressupomos alguma visão da natureza humana na qual as ações são a eram incapazes de um processo de decisão genuíno devido à falta de
expressão de desejos ou são causadas por desejos, e segundo a qual as coerência na psicologia homérica. Lloyd-Jones tem obviamente razão
cadeias de raciocínio prático sempre terminam em algum "eu quero" em sustentar que a conclusão de Snell é falsa; mas algumas das premissas
ou "isto me agrada". Deste ponto de vista, toda razão para ação é uma de Snell são verdadeiras e a tese de Frankel também é verdadeira, mas
razão para um indivíduo particular, e é, portanto, um erro supor que não tem a conseqüência drástica que Lloyd-Jones lhe atribui.
poderia haver boas razões para alguém fazer alguma coisa independen-
temente de sua motivação. E consideramos os desejos que fornecem tal Ser capaz de tomar decisões e de mover-se de ação em ação no
motivação como capazes de serem organizados de modo a servir aos modo específico como o fazem os personagens de Homero requer o
propósitos de realizações socialmente cooperativas ou de modo a produzir, reconhecimento, por parte destes personagens, apenas dos três tipos de
ao contrário, uma competitividade mutuamente frustrante. Neste contexto, elementos constituintes do seu mundo social que já identifiquei: as
exigências de díke e areté, as incursões e distrações de thymos, e a verdade
encontram facilmente o seu lugar, tanto o contraste entre o indivíduo
altruísta que reconhece os desejos de outros e o indivíduo egoísta que e a relevância prática de certas generalizações causais. Nada mais do
não o faz, como o contraste entre as qualidades cooperativas de um e que isso é necessário; não é necessário que os personagens de Homero
as qualidades competitivas do outro. Mas utilizar esses mesmos contrastes compreendam seu próprio processo de decisão nos termos de uma
para elucidar atitudes e ações homéricas, como alguns acadêmicos fazem, psicologia coerente do eu. O fato de que careçamde uma tal psicologia
significa correr o risco de cometer graves distorções. Por quê? põe rigorosas limitações ao tipo de processo de decisão que possam
34 Justiça e ação na imaginação homérica Justiça e ação na imaginação homérica 35

empreender e ao tipo de raciocínio que possam elaborar sobre ele. permite identificar duas características das concepções homéricas de
Além disso, seria tão difícil para nós desenvolver uma explicação díke e do raciocínio dos agentes transmitidas aos seus sucessores pós-
inteiramente consistente, nos termos dos sentidos que atribuímos àquelas -homéricos. A primeira é uma questão de como cada uma dessas
palavras, do que constitui voluntariedade e responsabilidade nos poemas concepções está incrustada no esquema conceitual mais amplo no qual
homéricos, quanto seria construir uma teologia inteiramente consistente está alojada e de como retira parte de seu caráter distintivo desse esquema.
a partir do que Homero diz sobre os deuses. Mas, mesmo tentar qualquer A questão não é apenas o inter-relacionamento da concepção de díke
um desses exercícios já seria equivocado. A responsabilidade em Homero e do raciocínio prático; nenhuma das duas pode ser adequadamente
é um conceito socialmente definido e socialmente estabelecido. Você compreendida independentemente de vários outros conceitos. E assim
é responsável por tudo aquilo que seu papel exige que seja considerado também, compreender a história subsequente desses conceitos homéricos
responsável. Querer acrescentar a isso condições derivadas de uma e de seus sucessores é igualmente inseparável da compreensão, pelo
explicação da causalidade psíquica é impossível e desnecessário. menos até certo ponto, da história mais ampla destes esquemas conceituais
Portanto, Hermann Frankel estava certo, mas Lloyd-Jones também, sucessivos e cambiantes em cujos termos passam a ser articulados.
em sua argumentação essencial. E é crucial, para a defesa do ponto de Em segundo lugar, o que quer que o termo 'justiça' nomeie, é certo
vista que adoto do modo pelo qual a ação e o processo de decisão são que nomeia uma virtude; e, independentemente do mais que o bom
concebidos nos poemas homéricos, que ambos estejam certos. Mas o raciocíno prático possa exigir, é certo que requer certas virtudes daqueles
que é particularmente importante é que a conexão entre as formas do
que o exibem. Esta história subsequente será então inevitavelmente
processo de decisão e a ordem de díke, que Lloyd-Jones enfatiza, seja
uma história da relação entre, por um lado, o raciocínio prático e a
claramente percebida. É central a toda cultura um esquema comum de
justiça e, por outro lado, as virtudes e, num plano mais geral, as concepções
maior ou menor complexidade através do qual cada agente seja capaz
de tornar as ações dos outros inteligíveis, de modo que saiba como do que é o bem humano. O fato de que, no estágio homérico, a elucidação
responder a elas. Esse esquema não é necessária nem explicitamente tanto de díke como da natureza da reflexão sobre a açáo prospectiva
articulado pelos próprios agentes, e mesmo quando o é, eles podem tenha exigido também a discussão de areté e de ágathos acaba por nos
enganar-se quanto ao que fazem, exatamente ao compreender os outros. mostrar que ela era necessária não apenas por si só, mas também como
Mas um observador externo, especialmente alguém vindo de uma cultura um momento preliminar à história posterior; uma história que, ao mesmo
estranha, só pode esperar compreender a ação e a transação nos termos tempo em que questiona e transforma o que foi herdado de Homero,
de tal esquema interpretativo. E assim ocorre conosco enquanto obser- ainda preserva, num grau considerável, características da posição homérica.
vadores da sociedade arcaica representada nos poemas homéricos, e o Realmente, chegamos num ponto em que é importante pensar em termos
que a construção de um esquema homérico preciso revela é que é a não tanto do ponto de vista homérico, mas dos pontos de vista homéricos.
conjunção das limitações de díke e de areté com as incursões e desvios
Os poemas homéricos foram, evidentemente, compostos durante um
do thymos que, em grande parte, tanto definem como oferecem uma
classificação de tipos de ação, de tal modo que uma açáo particular longo período, e para certos propósitos seria crucial contrastar não
possa ser identificada e respondida por outros. O processo de decisão apenas o ponto de vista da Ilíada com o da Odisséia, mas também os
tem de ser o que é essencialmente porque a justiça é o que é. A diferentes estágios distinguíveis dentro de cada poema e entre si. Por
caracterização da açáo e dos preâmbulos para a açáo torna imprescindível enquanto, entretanto, posso deixar de lado os problemas que estes
a referência à ordem cósmica de díke. A ordem cósmica pode ser contrastes apresentam. É suficiente, para meus propósitos imediatos,
transgredida, mas as conseqüências da transgressão são sinais da própria fazer notar o modo pelo qual certos temas e conceitos homéricos
ordem. dominantes ofereceram um substrato para o pensamento e a açáo dos
séculos V e IV atenienses, e mais especialmente, sobre o modo pelo
Os poemas homéricos não são tratados filosóficos. O esquema con-
ceitual no qual se forjam só nos é revelado no seu âmbito de aplicações qual, nestes séculos, expressões, respostas e reações contra esses temas
concretas. A conexáo entre suas partes diferentes não é rigorosamente e conceitos homéricos ofereceram tanto partes essenciais como aspectos
articulada. Entretanto, a coerência da Weltanschauung homérica nos dos materiais e dos contextos do raciocínio e deliberação práticos.
36 Justiça e ação na imaginação homérica Justiça e ação na imaginação homérica 37

Para entender estes temas e conceitos como homéricos, mesmo quando lidade de algum tipo de julgamento ainda não formulado quanto à
através de transformações sucessivas foram desenvolvidos e elaborados adequação das razões para se fazer aquilo que a estrutura usual prescreve.
de uma maneira bastante estranha à sua origem homérica, é preciso E, assim, um raciocínio que justifica exigências particulares dessa estrutura
entendê-los em seu todo. O pensamento e a prática atenienses eram, pode emergir a partir de um raciocínio que questiona. Mas é apenas
entre outras coisas, diálogos com vozes homéricas. E mesmo aquilo neste sentido secundário que os agentes encontram razões para fazer
que, nesse diálogo, é dito por vozes não-homéricas ou anti-homéricas aquilo que é normalmente prescrito. Realmente, uma das funções da
só se torna genuinamente inteligível quando interpretado em termos de estrutura da normalidade é que, ao tornar desnecessário para quase
sua relação com as vozes homéricas. Mas este é apenas um dos modos todo mundo dar razões para aquilo que estão fazendo ou vão fazer
pelos quais os argumentos e os conflitos atenienses começam em Homero. quase o tempo todo, nos aliviam de algo que, de outra forma, seria uma
carga intolerável. Mas isso não significa que as estruturas da normalidade
Todo raciocínio prático desponta quando alguém pergunta: "Que
não possam ser entendidas, independente e anteriormente ao raciocínio,
devo fazer?" Formular esta questáo só faz sentido se alguma razáo se
como dignas de respeito; e quando são assim compreendidas, é geralmente
apresentou ou foi apresentada ao agente para que faça algo diferente
porque as estruturas da vida normal são consideradas a expressáo local
daquilo que faria em seguida, no curso normal das coisas. Boas razões
da ordem do cosmo.
para a açáo, quando são eficientes para guiar a açáo, são causas, e uma
causa é sempre algo que modifica um resultado. No caso da ação humana, Assim, os gregos clássicos, da mesma forma que os gregos do período
a maior parte do tempo e na maioria das circunstâncias, os processos arcaico, na sua maioria entendiam as formas e estruturas de suas
e procedimentos que as boas (ou más) razões para a ação impingem comunidades como exemplos da ordem de díke; e o que deu expressáo
causalmente são processos e procedimentos do dia normal, com seu literária a essa compreensáo foi, acima de tudo, a recitaçáo, a escuta e
programa de atividades rotineiras e cessação da atividade. Esta concepção a leitura dos poemas homéricos. Na Atenas dos séculos V e IV, esses
do dia normal, do mês normal, do ano normal e assim por diante é da poemas tiveram um lugar importante nas estruturas da normalidade;
maior importância para se entender a ação e o raciocínio sobre a açáo, não só eram sistematicamente ensinados aos meninos atenienses, mas
em qualquer cultura..A estrutura da normalidade provê a sua estrutura sua recitaçáo no festival das Panatenéias reforçava a identidade entre
mais básica para a compreensáo da açáo. Agir de acordo com essas a Atena que segura a mão de Aquiles no começo da Ilíada e que traz
estruturas não requer razões, exceto em certos tipos excepcionais de a paz e a reconciliação no final da Odisséia, e a Atena cujo culto é o
circunstâncias nos quais essas estruturas são questionadas. As refeições cerne da religião ateniense e cuja estátua mostra de quem é o Partenão.
são tomadas em certas horas e com certas companhias prescritas, sem E Atena, a filha favorita de Zeus, agiu em nome dele quando, na versão
que alguém tenha de apresentar razões para si mesmo ou para os outros; de Ésquilo da história, estabeleceu a justiça específica dapblis ateniense
da mesma forma, o trabalho específico de certas pessoas que desempenham na instituição original dos tribunais de júri. A "díke igualmente votada"
certos papéis em certas posições na sociedade é designado para certos (Eumênides 795) que absolve Orestes exibia "o luminoso testemunho
períodos predeterminados; os rituais tanto são parte da rotina diária de Zeus" (797). Portanto, a institucionalizaçáo da justiça em Atenas é,
como reforçam os hábitos de atividade estruturada; e ainda, tanto o . de um modo muito claro, considerada como sendo a expressáo local da
jogo sério como os empreendimentos casuais têm estrutura própria e justiça de Zeus. E ao se compreenderem dessa forma, assim como à
seu próprio lugar em estruturas maiores. estrutura de sua vida cotidiana, os atenienses necessariamente
compreendiam-se, pelo menos parcialmente, em termos homéricos; apenas
Portanto, agir a partir de razões específicas é geralmente excepcional
parcialmente, não só porquemais do que a poesia informava essa
e em circunstâncias normais só se torna inteligível nos termos das
compreensáo, mas também porque os sucessores poéticos de Homero
estruturas da normalidade e contra o pano de fundo formado por elas.
tinham feito suas contribuições adicionais, como a referência a Ésquilo
É o abandono daquilo que estas estruturas prescrevem que requer ter
nos mostrou.
ou dar razões. E uma boa razáo para a açáo é, portanto, em primeira
instância, uma razáo suficientemente boa para fazer algo diferente daquilo Além disso, a questáo não é que os sucessores de Homero elaborem
que a normalidade prescreve. Naturalmente, quando se julga que uma novos modos de compreender o esquema homérico; é importante agora
razáo excede as exigências da estrutura usual, há no fundo a possibi- retomar o ponto, que deixei de lado há pouco, de que os próprios
38 Justiça e ação na imaginaçáo homérica Justiça e açáo na imaginaçdo homérica 39

poemas homéricos, nas várias camadas cronológicas ali representadas, não é a única nem a mais importante fonte de desacordo pós-homérico
expressam úma história contínua de mudança conceitual. Já na Ilíada subseqüente.
há tensões entre aquilo que areté exige e aquilo que díke exige. O O próprio Homero percebeu muito claramente que a noção de reali-
desenvolvimento pós-homérico move-se no sentido de tornar a relação zação expressa em areté incorpora duas dimensões distintas, apesar de
entre elas problemática, de modo a finalmente gerar os problemas de intimamente relacionadas. Conseguir realizar significa ser excelente,
raciocínio prático com que Sócrates, Platão e Aristóteles sucessivamente mas significa também vencer. Qual é a relação entre realização com-
se confrontaram. Temos de compreender a herança homérica funcionando preendida como excelência e realização compreendida como vitória? O
de dois modos distintos na cultura e na vida social atenienses. Essa contexto no qual esta relação deve ser compreendida é o do agón. O
herança homérica é parcialmente constitutiva da ordenação cotidiana agón é uma competição formal regida por regras, e as regras são feitas
das estruturas pressupostas da vida e da cultura, e ainda fornece alguns, para oferecer a cada competidor a justa oportunidade de exibir sua
talvez a maior parte, dos conceitos e modos de compreensão que, ao excelência numa atividade de algum tipo particular. Sob as condições
serem problematizados, questionam aspectos essenciais dessa ordenação de uma competição justa controlada por regras, o competidor que for
e dessas estruturas. O que tornava problemáticos conceitos e modos de excelente será também o que vence e recebe os prêmios e, acima de
compreensão originalmente homéricos? tudo, o kydos, a glória de vencer porque é excelente. A luz dessa visão,
Consideremos inicialmente o modo como conceitos individuais as- um aspecto da relação entre excelência e vitória é crucial: os padrões
sumem uma vida própria, de modo que no seu desenvolvimento suas pelos quais a excelência é julgada e aqueles pelos quais se determina
relações com outros conceitos mudam. 'Areté7, em usos pós-homéri- quem venceu numa certa ocasião são diferentes. Sob condições máximas
cos, tem sua aplicação às vezes restringida, às vezes ampliada. De de justiça, o competidor mais excelente será geralmente o vencedor, e
forma que, às vezes - em inscrições funerárias, por exemplo - sig- nessa compreensão dos conceitos de excelência e de vitória esta é uma
nifica o mesmo que 'andréia': coragem, masculinidade. E em tais verdade conceitual. Se sob tais condições eu normalmente perco, minha
inscrições aparece frequentemente combinada com 'sophrosyne', onde pretensão a ser o mais excelente deve ser falsa. Mas, mesmo sob tais
esta palavra significa "cautela prudente". Nesta combinação, areté é a condições, o menos excelente pode ocasionalmente derrotar o mais
virtude da afirmação, de saber como e quando ousar; sophrosyne, a virtude excelente, devido, por exemplo, à sorte (o sol cegou o competidor mais
do controle, de saber quando parar ou retirar-se. Mas areté e aretái excelente num momento crucial) ou a um raro momento de erro da
passam a ser usadas com relação a todo o âmbito das virtudes humanas, parte do competidor mais excelente. De modo que por "mais excelente"
e a discordância radical sobre em que consiste a virtude só pode ser não queremos significar "vitorioso"; "mais excelente, mas derrotado"
expressa como discordância quanto ao que é areté e concomitante- não é uma contradição, como reconheceu Heitor quando, tendo afirmado
mente quanto ao que é bom e melhor. sua própria preeminência como guerreiro, prevê entretanto sua própria
derrota (Ilíada VI, 440-465).
Bom (agathós), como já indiquei, é usado primeiramente em relação
a todos aqueles que são bons naquilo que é exigido de cada papel Qual a relação deste contraste .entre excelência e vitória com os
particular, à medida que são excelentes nos tipos de tarefas exigidas. tópicos centrais de nossa pesquisa? Dois pontos são imediatamente
Se faço o que é bom que eu faça, serei aprovado por aqueles que óbvios. Primeiramente, ao darmos mesmo a mais elementar explicação
querem que os seres humanos façam aquilo que é exigido deles, e estes deste contraste foi impossível dizer como a excelência é avaliada dentro
serão geralmente aqueles que sustentam a ordem de díke. De modo que, do contexto de um agón, sem fazer uso do conceito de uma certa justiça:
considerar alguém agathós, no seu uso original, significa não apenas o de eqüidade nas condições de competição, uma eqüidade que envolve
expressar aprovação; geralmente significa expressar o tipo de aprovação uma igualdade de tarefas e de padrões na avaliação dos competidores
característico daqueles que são bons e justos. Deve-se dizer "geralmente" rivais. E é também bastante óbvio que um certo tipo de injustiça,
porque em certas ocasiões alguém pode, por razões derivadas de algum inequidade em relação aos mesmos aspectos, não apenas irá impedir
contexto particular, desaprovar o comportamento de outro, como Nestor julgamentos avaliativos verdadeiros, mas poderá também fornecer um
faz com Agamenon em relação a Aquiles, e ainda ter de admitir que meio pelo qual, eventualmente, o menos excelente possa derrotar o
não agiu de modo a violar aquilo que é exigido de um agathós. Díke, mais excelente. Em segundo lugar, ambos os tipos de realização, o da
sophrosyne e areté são geralmente, não universalmente, concordantes excelência e o da vitória, requerem raciocínio prático efetivo; e será
nos poemas homéricos. Mas essa ausência de concordância universal importante aprender se o tipo de raciocínio prático necessário para a
40 Justiça e ação na imaginação homérica

realização da excelência difere do raciocínio necessário para a realização


da vitória, e se for o caso, como isso ocorre. Para ir além do óbvio, é
necessário explorar o modo no qual os usos mutantes de agathós e areté,
entre os gregos dos séculos V e IV, são informados pelos aspectos
deste contraste conceitual, de forma que as discordâncias sobre a justiça
e o raciocínio prático possam ser compreendidas como informadas por Capítulo I11
conflitos contínuos sobre a relação da excelência com a vitória. O agón
formal manteve seu lugar central na história grega dos séculos V e IV,
foi institucionalizado nos jogos olímpicos e píticos, nos concursos entre
poetas trágicos e cômicos em Atenas e em outros lugares, nos debates
políticos, nos julgamentos nas cortes de justiça e, mais tarde, nas disputas
filosóficas. Mas o conceito de agbn ainda encontrou aplicação fora dessas
instituições. Alguns eventos na história grega foram lembrados como
tendo oferecido ocasiões agonísticas nas quais a vitória tinha sido um
sinal da excelência grega: destacadamente, as derrotas dos persas para
os atenienses em Maratona e Salamina. Mas eventos históricos também
apresentam diferenças entre ser excelente e ser vitorioso, principalmente
no sacrifício espartano em Termópilas. Que padrões utilizavam os gregos pós-homéricos, e mais especialmente
os atenienses, para fazer julgamentos sobre a excelência humana? Era
Como então vitória e excelência se relacionam, ambas sendo com- parte de sua herança homérica acreditar que a excelência deve ser
preendidas do modo como os gregos as compreendiam? A que ponto e julgada em termos de padrões estabelecidos internamente e para algum
de que maneiras preocupar-se com uma implica preocupar-se com a tipo específico de atividade sistemática. Ser bom significa ser bom em
outra? A que ponto e de que maneira preocupar-se com uma exclui alguma atividade ou no desempenho de algum papel situado dentro de
preocupar-se com a outra? Uma dificuldade em responder estas questões tal atividade. Há pelo menos sete tipos de atividade sistemática nas
é a seguinte: se formos buscar respostas em eventos particulares da quais, nos mundos homérico e pós-homérico, tais padrões de excelência
história grega ou ateniense, teremos a vantagem de estar bem perto da são elaborados e aplicados: arte militar e de combate; náutica; atividade
evidência e diminuiremos os riscos de ignorar suas limitações; mas atlética e ginástica; épica, lírica e poesia dramática; agricultura e pecuária;
justamente porque o interesse de tais episódios particulares para a nossa retórica; e a produção e manutenção das comunidades de parentesco e
pesquisa está na medida na qual exemplificam e exibem o papel familiar, e, mais tarde, da cidade-estado. A esta lista seriam acrescentadas
desempenhado por um esquema conceitual geral na constituição da a arquitetura, a escultura e a pintura, assim como as investigações
vida social, nenhum grupo particular de estudos oferecerá respostas intelectuais da matemática, da filosofia e da teologia.
por si só. Portanto, procederei da seguinte maneira. No próximo capítulo
construirei uma teoria de um contraste conceitual em cujos termos - Tais tipos de atividade estão frequentemente interligados. Quali-
e nisso constituirá minha argumentação - os gregos pós-homéricos dades de corpo, mente e de caráter adquiridas em uma podem ter um
desenvolveram sua herança homérica. Esta compreensão deve ser lida papel útil e essencial para alcançar sucesso em outra. Além do mais,
inicialmente como uma hipótese ainda não testada; ela só tem valor à todas exigem o mesmo tipo de aprendizado disciplinado no qual, por
medida que possa subseqüentemente ser utilizada para oferecer uma não termos inicialmente as importantes qualidades de corpo, mente e
interpretação convincente das relações entre várias posições atenienses, de caráter necessárias tanto para o desempenho excelente como para o
práticas e teóricas, em conflito. Obviamente, ao construí-la, eu tinha julgamento exato e informado do desempenho, temos de nos pôr nas
em mente os conflitos e debates para os quais deve fornecer uma mãos dos que são competentes para nos transformar no tipo de pessoa
interpretação. Mas só pode funcionar do modo como eu espero que que será capaz tanto de ter um bom desempenho como de bem julgar.
funcione se for construída num nível de abstração conceitual que a O que é que temos de aprender com eles?
distancie, por enquanto, do pormenor das realidades atenienses. Temos de adquirir, tanto no desempenho como no julgamento, a
habilidade de fazer dois tipos diferentes de distinção: a distinção entre
42 A divisão da herança pós-homérica A divisdo da herança pós-homérica 43

o que meramente nos parece bom aqui e agora e o que realmente é bom maiores realizações em cada área, em cada momento, sempre apresen-
para nós aqui e agora, e a distinção entre o que é bom para nós aqui tam uma liberdade para violar as máximas presentes estabelecidas, de
e agora e o que é bom, ou melhor, sem mais. A primeira distinção modo que as realizações mantêm e quebram as regras. E nunca há
obviamente só pode ser aplicada retrospectivamente. É uma distinção regras que prescrevam quando se deve fazer uma ou outra coisa para
relacionada com a identificação de alguém em algum estágio posterior atingir a excelência.
de seus próprios erros anteriores, em termos de desempenho, ou em Ser excelente e vencer, é quase desnecessário repetir, não são a
termos de julgamento. É uma distinção que só informará os julgamentos mesma coisa. Mas, na verdade, é à vitória, e à excelência apenas quando
referentes aos erros anteriores de alguém de maneira racional e bem- de fato leva à vitória, que um certo tipo de recompensa está ligado,
-fundamentada se, depois, essa pessoa for capaz de explicar o que uma recompensa pela qual, pelo menos ostensivamente, a excelência
anteriormente a levou a cometer um erro. deve ser honrada. Recompensas desse tipo - vamos chamá-las de
O segundo tipo de distinção é entre o que é um bom desempenho recompensas externas - são bens tais como riquezas, poder, posição
- talvez o melhor possível - para alguém no seu estágio atual de social e prestígio, que podem ser e são objetos de desejo para os seres
desenvolvimento educacional, em relação aos seus talentos e capacidades humanos antes e independentemente de qualquer desejo de excelência.
particulares, e o que seria o melhor desempenho que pode agora ser Em sociedades e culturas, tais como as representadas nos poemas
imaginado por aqueles melhor qualificados para julgar; a distinção, por homéricos, nas quais a busca desses últimos bens e da excelência estão
exemplo, entre um excelente trabalho de aprendiz e uma obra-prima de em grande parte ligadas, dentro das instituições sociais dominantes,
suprema excelência. Mas é importante mostrar que o tipo de julgamento quaisquer incompatibilidades entre as qualidades humanas exigidas para
que fazemos, invocando o segundo tipo de distinção, é ele mesmo a busca de tais bens e as qualidades exigidas para a busca da excelência
sujeito a julgamentos posteriores que invocam o primeiro tipo de distinção. i tendem a permanecer latentes e não-reconhecidas, Mas quando a mudança
O que nos pareceu, em algum momento, um desempenho perfeito pode, social transforma as instituições, de modo que a busca sistemática de
mais tarde, ser reconhecido ou como imperfeito ou como menos perfeito excelência em algumas áreas torna-se incompatível com a busca de
do que alguma realização posterior. Isto é, em todas essas áreas há não bens tais como riquezas, poder, posição social e prestígio -, as diferenças
apenas progresso em termos de realização, mas também progresso em entre os dois tipos de busca e entre os bens que são seus objetos
nossa concepção e reconhecimento do que é a mais alta perfeição. tornam-se perfeitamente claras.
O conceito do melhor, do perfeito, provê a cada um desses tipos de Que qualidades de corpo, mente e de caráter são geralmente exigidas
atividade um bem em direçáo ao qual as pessoas empenhadas se movem. para se alcançar bens, tais como riquezas, poder, posição e prestígio?
O que os dirige rumo ao objetivo é tanto a história das sucessivas São aquelas que, nas circunstâncias nas quais uma pessoa se encontra,
tentativas de transcender as limitações da melhor realização naquela a tornam capaz tanto de identificar quais meios serão eficazes para
área particular, até agora, quanto o reconhecimento de que certas adquirir tais bens, quanto de ser eficaz na utilização desses meios para
realizações definem permanentemente aspectos da perfeição em direção mantê-los. Chamemos essas qualidades de corpo, mente e de caráter as
à qual aquele tipo específico de atividade se move. Essas realizações qualidades da eficácia, e os bens que propiciam tais qualidades, com
adquirem um estatuto canônico dentro da prática de cada tipo de atividade. seu objetivo e justificação, de bens de eficácia.
Aprender o que têm a ensinar é central ao aprendizado de cada tipo
particular de atividade. Fica imediatamente claro que algumas das qualidades característica
e geralmente necessárias para alcançar a excelência e algumas das
O que nunca pode ser feito é reduzir o que teve de ser aprendido, qualidades característica e geralmente necessárias para adquirir os bens
a fim de ser excelente em tal tipo de atividade, à aplicação de regras. de eficácia são as mesmas: firmeza de propósito, por exemplo. Mas
Certamente haverá, em algum momento do desenvolvimento histórico fica igualmente claro que esses dois grupos de qualidades são também
de um certo tipo de atividade, um acervo de máximas que será usado surpreendentemente diferentes, de modo que o que é considerado uma
para caracterizar o que, naquele momento, é considerado a melhor virtude na perspectiva proporcionada pelos bens de eficácia será,
prática até então. Mas saber como aplicar essas máximas é já uma frequentemente, muito diferente do que é considerado uma virtude do
capacidade que não pode ser especificada por regras posteriores, e as ponto de vista dos bens de excelência. Consideremos, sob esse aspecto,
A divisáo da herança pós-homérica 45
44 A divisão da herança pós-homérica

nomes de 'díke' e 'dikaiosyne' deve ser, a expressão de uma ordem


o que cada perspectiva compreende por justiça, temperança, coragem unitária que informa e estrutura a vida humana. Mas como se poderia
e amizade. estabelecer tal padráo?
Tanto em relação aos bens de excelência como aos bens de eficácia, O Único tipo de comunidade que pudesse proporcionar a si mesma
uma disposição para obedecer a certas regras de justiça será considerada tal padráo seria uma cujos membros estruturassem sua vida comum em
uma virtude, mas a justificação das regras, o seu conteúdo e a natureza termos de um tipo de atividade cujo objetivo específico fosse integrar
da força coercitiva que as regras possuem, para aqueles que aceitam à medida do possível, todas as outras formas de atividade praticadas
sua autoridade, são diferentes nos dois casos; e essas diferenças se por seus membros, e assim criar e manter, como seu objetivo específico,
enraízam no contraste fundamental entre excelência, por um lado, e o tipo de vida no qual os bens de cada prática pudessem ser usufruídos
eficácia, por outro, ambas definidas em termos de desempenho no agón. ao máximo, assim como os bens que constituem as recompensas externas
O excelente é aquele que ganha em condições justas, como vimos da excelência. O nome dado pelos gregos a esse tipo de atividade era
anteriormente. Além disso, alguém que é genuinamente excelente tem 'política', e a pólis era a instituição cuja preocupação era não com este
de impor as obrigaçóes da equidade sobre si mesmo, ao menos porque ou aquele bem particular, mas com o bem humano como tal, e não com
saber como julgar a si mesmo e aos outros como excelente - o que o merecimento ou a realizaçáo em práticas particulares, mas com o
faz parte da excelência - envolve equidade no julgamento. Os mesmos merecimento e a realizaçáo como tais. A constituiçáo de cada pólis
padrões devem ser aplicados a desempenhos submetidos às mesmas particular podia, portanto, ser compreendida como a expressão de um
condições-padrão; concessões apropriadas devem ser feitas para um conjunto de princípios sobre como os bens devem ser ordenados de
desempenho feito em condições mais difíceis ou mais fáceis do que as maneira a constituir um modo de vida. O bem para os seres humanos
condições-padrão, e tanto o iniciante como o veterano devem ser julgados seria o tipo de vida que fosse o melhor para eles; desfrutar do que é
de modos apropriadamente diferentes. As obrigaçóes são expressas em o melhor é desabrochar, ser eudaímon; e o que tanto a constituição
fórmulas usadas para definir a justiça: a cada pessoa e a cada desempenho como a vida de um Estado particular expressam é um julgamento sobre
deve ser concedido aquilo que lhe é devido em termos de mérito, casos qual modo de vida é o melhor e em que consiste o desabrochar humano.
semelhantes sendo julgados em termos iguais, casos distintos com o
grau adequado de proporcionalidade. A ordenação de bens numa pólis era não apenas uma questáo de
classificar hierarquicamente os bens, compreendendo alguns bens como
O conteúdo da justiça é assim definido em termos de mérito e válidos apenas em si mesmos, outros como válidos tanto por si mesmos
merecimento. Ser injustiçado é ser o receptor de um mal não merecido, quanto por algum bem futuro, e outros ainda válidos apenas como
infligido intencionalmente por outra pessoa; ser desafortunado, ao con- meios para algum bem futuro. Essa ordenaçáo era também uma questão
trário, é ser o receptor de um mal natural, por acidente. Reparar um de identificar o lugar de cada bem dentro dos padrões do dia, do mês
erro é restaurar a ordem na qual os bens apropriados, quaisquer que e do ano normais, de modo que haveria em algumas cidades pelo menos
sejam, são distribuídos de acordo com o merecimento. Mas aqui surge uma época do ano adequada para a poesia trágica, assim como para a
um problema. Se a excelência é sempre a excelência específica de comédia; e também era uma questáo de identificar tanto a qual setor
algum tipo particular de atividade, então o merecimento será pre- dos cidadzos cada bem particular era peculiar - o bem de excelência
sumivelmente também específico, e haverá uma multiplicidade de padrões no combate militar era peculiarmente o bem dos jovens -, quanto qual
de merecimento, cada um independente dos outros. Assim, surge a setor dos cidadãos era responsável pela realizaçáo de cada bem particular
questáo: como devem os bens de honra e os de recompensa externa por - os bens da agricultura estavam sob a responsabilidade dos camponeses
excelência ser distribuídos entre os diferentes tipos de realizaçáo? Como e os bens da saúde sob os cuidados da corporação dos médicos, os
deve o merecimento do bom soldado ser comparado ao do bom camponês
I
I ou ao do bom poeta? A incapacidade de fornecer algum padrão, em asclepíadas.
cujos termos a realizaçáo relativa e o merecimento relativo possam ser A que princípios racionais pode-se apelar, em tal ordenaçáo geral
I
avaliados, deixaria os membros de uma comunidade na impossibilidade dos bens, de modo que essa ordenaçáo possa ser racionalmente justi-
I
de qualquer padráo geral compartilhado para determinar a divisão justa ficável? h, obviamente, essa questáo que deve ser respondida por qualquer
ou o justo reconhecimento. Essa incapacidade privaria a comunidade teoria do raciocínio prático que aspire demonstrar ao cidadão da pólis
I
de qualquer padrão que pudesse ser aquilo que qualquer candidato aos
46 A divisão da herança pós-homérica A divisão da herança pós-homérica 47

enquanto cidadão - o cidadão que age de acordo com a ordenação de reconhecimento era frequentemente feito de maneira tal que mantinha
bens estabelecida na sua pólis particular - o que é agir racionalmente. indeteterminada a adesão fundamental dos cidadãos daquela específica
Evidentemente, só à luz de tal teoria a justiça de uma pólis particular, ordem social. Isso também ocorria, como já sugeri, na ordem social
compreendida desse modo, poderia ser justificada. Pois a justiça de retratada nos poemas homéricos, assim como na Atenas de Péricles.
uma pólis, tanto na divisão de bens como na correção de faltas, é Foi apenas quando certos tipos de problemas práticos e teóricos - nos
expressa nas ações de seus cidadãos, à medida que eles, em distintos quais diferentes adesões fundamentais referentes aos bens exigem respostas
sistematicamente diferentes e incompatíveis com questões práticas
modos e graus de dedicação e sucesso, perseguem os bens de excelência
fundamentalmente importantes - chamaram a atenção de um grupo
e raciocinam quanto ao que fazer para alcançar tais bens. social particular, que descobriram por si mesmos que tipo de adesão já
Entretanto, devemos imediatamente ressaltar que este era apenas tinham feito ou, pela primeira vez, aderiram claramente a um conjunto
um modo no qual a justiça da pólis e a racionalidade prática de seus de bens e não a outro.
cidadãos vieram a ser compreendidos. Noutra perspectiva, contrastante O que tornou essa indeterminação possível foi o fato de que um
e antagônica, a justiça da pólis, como qualidade dos cidadãos individuais mesmo conjunto de regras e procedimentos institucionalizados na ad-
e como ordenação da cidade, foi compreendida como direcionada não ministração da justiça pôde, em muitos casos, ser igualmente com-
para os bens de excelência, mas para os bens de eficácia. Para entender patível com a busca de qualquer um dos dois conjuntos de bens, enquanto
adequadamente esta concepção alternativa de justiça é necessário enfatizar, uma retórica política ambígua pôde ocultar durante muito tempo, tanto
preliminarmente, a complexidade das relações entre os bens de excelência para os que a proferem como para os que a recebem, o fato de que
e os bens de eficácia. escolhas decisivas entre tipos de bens devem ser feitas. Não obstante,
Grande equívoco seria supor que a adesão a um tipo de bens neces- há questões recorrentes que tornam difícil evitar tais escolhas, e essas,
com o tempo, revelam o caráter radical da diferença entre uma justiça
sariamente excluiria a adesão a outro. Pois, por um lado, as formas de
definida em termos de bens de excelência, isto é, uma justiça baseada
atividade dentro das quais unicamente é possível ter acesso aos bens de no mérito, e uma justiça definida em termos de bens de eficácia. O que
excelência só podem ser mantidos através de quadros institucionali- distingue esse último tipo de justiça?
zados. E a manutenção das formas institucionais e organizacionais
pertinentes requer sempre a aquisição e retenção de algum grau de Em condições normais de vida nas sociedades humanas, cada pessoa
poder e de algum grau de riqueza. Assim, os bens de excelência só podem só pode esperar ser eficaz em tentar obter o que quer, seja o que for,
ser sistematicamente cultivados se pelo menos alguns dos bens deeficácia se estabelecer algum tipo de cooperação com outras pessoas, e se essa
puderem ser buscados. Por outro lado, na maioria dos contextos sociais, cooperação permitir a todos em geral ter expectativas racionalmente
é difícil perseguir bens de eficácia sem cultivar bens de excelência, ao bem-fundadas, uns em relação aos outros. Assim, será necessário um
menos em alguma medida, e isso se dá por, pelo menos, duas razões. tipo de vida social governado por regras, e será importante, se a obediência
Alcançar poder, riqueza e fama frequentemente exige como meio alcançar às regras deve ser um meio para alcançar os bens de eficácia, que a
algum tipo de excelência genuína. E, além disso, uma vez que os bens desobediência acarrete a aplicação' de penalidades. Uma penalidade
de eficácia são bens que permitem ao seu possuidor ter ou ser o que bem-concebida deve associar à desobediência às regras um custo avaliado
quiser, dentro dos limites das possibilidades contingentes, sempre que em termos de bens de eficácia, de forma que para a maioria das pessoas,
alguém, cuja adesão fundamental é aos bens de eficácia, simplesmente a maior parte do tempo, a penalidade pese mais que qualquer benefício
quiser, por alguma razão, ser genuinamente excelente de alguma forma, que possa advir da desobediência.
os bens de eficácia serão postos a serviço dos bens de excelência. As regras da justiça terão de prescrever a reciprocidade, e o que se
Entretanto, é sempre possível para um indivíduo ou grupo social deve entender por reciprocidade, assim como o que é intercambiável
particular subordinar os bens de um tipo aos bens de outro, e os conflitos em relação a que, dependerá do que cada parte trouxer para a situação
fundamentais entre diferentes pontos de vista em grande parte da vida de barganha que resulta das regras de justiça. Quando falo de uma
grega, especialmente da ateniense, foram levantados por pessoas que situação de barganha nesse contexto, não estou sugerindo que tenha
assim procediam. Nas ordens sociais efetivas das cidades-estado, não havido de fato um episódio histórico no qual as regras da justiça da
apenas havia reconhecimento de ambos os tipos de bens, mas o eficácia cooperativa foram produzidas através de negociação. O que
48 A divisão da herança pbs-homérica A divisão da herança pbs-homérica 49

acontece é que, num dado estágio da história de uma ordem social injustiça ser punido e não escapar à punição. E este não é, notada-
particular, as interaçóes entre os vários grupos e indivíduos exercerão mente, o caso da justiça definida em termos de bens de eficácia
diferentes graus de influência sobre como as regras de justiça devem cooperativa.
ser construídas e aplicadas. Assim, onde quer que a justiça da eficácia Definir as regras da justiça a partir dos bens de eficacia implica que
cooperativa prevaleça, será sempre como se a justiça fosse o resultado desrespeitá-las ofende aos outros e não a si mesmo. Cometer injustiça
de um contrato, um episódio de negociação explícita, e os vários grupos pode trazer às vezes, e em certas circunstâncias quase sempre trará,
e indivíduos se comportarão adequadamente. Os menos vulneráveis a desvantagens para si mesmo, mas apenas porque a pessoa tenderá tanto
serem frustrados por outros na busca de seus próprios fins estarão em a antagonizar com os outros como a fazer com que seja menos provável
posição de exigir mais e dar menos, em relação às regras que governam que as regras da justiça sejam respeitadas nas muitas ocasiões em que
a distribuição de poder e de outros recursos; os mais vulneráveis estarão seria de seu interesse que fossem. Dessa forma, a pessoa terá menos
em posição de exigir menos. Mas as regras deverão ter, pelo menos, chances de conseguir a cooperação dos outros quando essa lhe for
um mínimo de aceitação para quase todos, de modo que possam funcionar necessária. Entretanto, esses danos a si mesmo serão uma conseqüência
como regras de justiça por uma extensão qualquer de tempo, e isso não dos atos de injustiça em si, mas de tais atos à medida que forem
implicará caracteristicamente que algumas das mesmas obrigações sejam acompanhados de um reconhecimento, da parte dos outros, de que se
impostas tanto aos que são relativamente ricos e poderosos, como aos é culpado por eles. Portanto, alguém que for capaz de cometer uma
que são relativamente fracos e sem poder. injustiça, de tal modo que os outros não tomem consciência de seus
O contraste entre as duas concepções de justiça, no que se refere atos, beneficia a si mesmo e não incorre em dano algum. Dessa forma,
tanto ao conteúdo como à justificação, praticamente já não precisa de uma pessoa s6 pode ser considerada um agente racional determinado
explicitação. A justiça, tanto como o que se deve à excelência, como pelas regras de justiça à medida que não puder cometer uma injustiça
o que se exige pela reciprocidade da cooperação eficaz, frequentemente e permanecer impune.
exigirá regras iguais ou similares, como já enfatizamos. Mas haverá Quanto aos bens de excelência, aqueles que administram e fazem
claramente grandes áreas nas quais não apenas os padrões de referência, cumprir a justiça terão eles próprios de ser justos; pois se não tivessem
mas também os veredictos de cada tipo de justiça serão diferentes em respeito pela justiça, só poderia ser porque não conseguiram compreender
cada caso particular, e isso precisamente por causa dos diferentes tipos como as regras da justiça funcionam em relação aos bens que elegeram
de justificação que cada um terá de invocar. A essas diferenças corresponde como seus e, portanto, seriam incompetentes para avaliar mérito e
uma diferença no tipo de força coercitiva que cada conjunto de regras merecimento. Realmente, a administração das regras da justiça estará
possui para aqueles que as reconhecem. Alguém que infringe as regras presente nas relações entre mestre e aprendiz dentro de qualquer atividade
da justiça de excelência prejudica principalmente a si mesmo, cujo objetivo seja a excelência, uma vez que a puniçáo justa, no contexto
independentemente do fato de outros serem ou não prejudicados. Prejudicar da justiça do merecimento, tem uma função primariamente educacional.
a si mesmo significa privar-se, de algum modo específico, da oportunidade Por oposição, a função mais importante da puniçáo numa justiça definida
de alcançar os bens aos quais almeja. Entretanto, nem sempre será
em termos dos bens de eficácia é o impedimento, e o que é exigido
claro que uma infração das regras da justiça corresponde de fato a tal
daqueles que administram as regras da justiça é que sejam eficazes em
prejuízo, mesmo para aqueles que genuinamente buscam um bem de
excelência, e, portanto, essa justiça terá de ser imposta, especialmente impedir a injustiça. Para tal, precisam não só ser hábeis em aplicar o
àqueles que estão nos estágios iniciais de aprendizado na busca de conjunto adequado de generalizações verdadeiras sobre que tipos de
excelência. A disciplina de punição dentro de um tal esquema, entretanto, causa têm tal efeito de impedimento, mas também precisam ter um
só é justificável porque e à medida que a puniçáo educa aqueles que grande interesse em manter e, em relação a si próprios, observar as
I a recebem; deve ser um tipo de punição que sejam capazes de reconhecer regras da justiça, um interesse que pode ser garantido através de medidas
1 como sendo para seu próprio benefício. Assim, um indício de que uma institucionais que propiciem benefícios maiores do que aqueles
concepção local de justiça particular é um exemplo de justiça definida conseguidos através da má administração da justiça. Mas, em relação
1
em termos de bens de excelência é que os protagonistas terão de manter, a eles, podemos afirmar, assim como não podemos afirmar em relação
I se são consistentes, que é sempre para o bem de quem comete uma àqueles que são bem qualificados para administrar a justiça do
50 A divisáo da herança pós-homérica A divisáo da herança pós-homérica 51

merecimento, que se não tivessem tal interesse não seriam justos. Não justiça não será mais do que a disposição para obedecer a essas regras.
deve surpreender-nos, conseqüentemente, que a resposta h questão "quem Assim, a virtude da justiça será, nesta segunda visão, secundária em
deve governar?" seja muito diferente, se pensarmos em termos de bsns relaçáo às regras da justiça e definível apenas em seus termos.
de eficácia ou em termos de bens de excelência. Pois as pessoas que Entretanto, apesar de a relação da virtude da justiça com as regras
perseguem um ou outro tipo de bem concebem o sentido e o propósito da justiça diferir nas duas concepções, é verdade para ambas não apenas
da política e dapólis de modos muito diferentes. Aqueles que subordinam que a justiça como virtude é uma entre várias virtudes, mas também
os bens de excelência aos bens de eficácia, se forem consistentes, que a manutenção da justiça, na ordem social e como virtude para os
compreenderão a política como uma arena na qual cada cidadão busca indivíduos, exige o exercício de um conjunto de outras virtudes além
ao máximo alcançar o que quer, dentro das limitações impostas pelos da justiça. Exemplos de tais virtudes, suportes da justiça, são a temperança,
vários tipos de ordem política, e a resposta à questão "quem deve a coragem e a amizade. E cada uma dessas é concebida de modo diferente
governar?" será: "Quem quer que tenha habilidade e interesse em manter em cada um dos dois pontos de vista.
ou promover cada tipo de ordem". O tipo de ordem que alguém vai
promover dependerá, obviamente, dos seus próprios interesses. Deste As diferenças entre o modo no qual a temperança deve ser com-
ponto de vista, a política como um estudo teórico tratará primariamente preendida como virtude em relaçáo aos bens de excelência e o modo
de até que ponto interesses rivais podem ser promovidos e ainda no qual é compreendida em relação aos bens de eficácia são exatamente
reconciliados e contidos por uma única ordem. Em oposição, para aqueles paralelas às diferenças que surgem quando tratamos da justiça. O que
que elegem fundamentalmente os bens de excelência, a política como é prescrito pela temperança, em relação aos bens de excelência, é uma
um estudo teórico tratará primariamente de como o respeito pela justiça disciplina dirigida e uma transformação dos desejos, aversões e disposições
concebida de modo adequado pode ser promovido, de modo a ampliar do sujeito, de modo que alguém incapaz de excelência, tanto no seu
uma compreensão partilhada, assim como uma adesão aos bens dapólis, julgamento como no seu desempenho, torne-se, à medida do possível,
e apenas secundariamente tratará dos conflitos de interesses, especialmente capaz de ambas. Logo, a temperança é uma virtude que transforma
à medida que possam ser destrutivos do movimento em direção a tal tanto o que eu julgo ser um bem como o que me move enquanto bem.
compreensão e adesão compartilhadas. Em contrapartida, em relação aos bens de eficácia, a temperança é uma
As duas concepções rivais de justiça diferem ainda num outro ponto virtude apenas porque e à medida que me torna capaz de alcançar mais
fundamental. Para a justiça definida em termos de bens de excelência, eficientemente bens reconhecidos e antecipadamente desejados como
a justiça como virtude individual só pode ser definida independente- tais. A temperança é a virtude que ultrapassa a frustração em mim
mente de e anteriormente ao estabelecimento de regras de justiça que mesmo, na busca de minha própria satisfação, assim como a justiça é
possam ser postas em prática. A justiça é uma disposição para dar a a virtude que ultrapassa a frustração nos outros.
cada pessoa, incluindo a si mesmo, aquilo que merece e para tratar a No caso da coragem, as diferenças são de outro tipo. Em ambos os
todos de um modo que não seja incompatível com seus merecimentos. pontos de vista, a capacidade de resistir e a capacidade de enfrentar
As regras de justiça, quando funcionam bem, nos termos desta concepção uma variedade de danos e de perigos devem ser valorizadas. Mas tanto
de justiça, são regras concebidas da melhor maneira possível para garantir a série de danos e perigos relevantes como aquilo que alguém deve
esse resultado, se forem observadas por todos, incluindo justos e injustos. sacrificar ao enfrentá-los e por que fazê-lo diferem significativamente.
Assim, alguém pode obedecer às regras de justiça e, no entanto, ser É uma característica comum a ambos os pontos de vista o fato de a
uma pessoa injusta que obedece às regras, apenas, por exemplo, por série de danos e perigos relevantes ser compreendida como variando de
medo de ser castigado. Mas para a justiça concebida com o propósito acordo com o bem ou bens visados. Assim como os danos e perigos
de servir aos bens de eficácia, uma pessoa perfeitamente justa é, nem que têm de ser enfrentados e superados para que se seja um excelente
mais nem menos, alguém que sempre obedece às regras da justiça; até poeta são totalmente diferentes dos que têm de ser enfrentados e superados
que exista um conjunto aplicável de regras que definam o que é exigido para que se seja um excelente soldado, também os danos e perigos que
das relações de cada pessoa para com as outras, na busca de seus se põem para alguém tentando aumentar sua riqueza são
objetivos particulares, o conceito de justiça permanece sem qualquer caracteristicamente diferentes daqueles que se põem para alguém tentando
conteúdo. Quando tais regras lhe derem um conteúdo, a virtude da aumentar seu poder político. Além disso, o risco para si mesmo, implícito
52 A divisão da herança pós-homérica A divisão da herança pós-homérica

na coragem, torna-a importante de outro modo. O quanto cada um de eficácia pode, ele mesmo, gerar o tipo de relações nas quais haja uma
nós importa-se ou preocupa-se com alguém, com uma instituição, uma sociabilidade maior e mais profunda. Assim, o próprio processo de
prática ou um bem, é medido - e só pode ser medido - pelo quanto tentar obter aquilo que alguém valoriza pode mudar exatamente aquilo
estaríamos preparados a nos arriscar e a enfrentar danos e perigos por que alguém valoriza. Mas, obviamente, a sociabilidade assim valori-
sua causa. E a afirmação de que uma pessoa, grupo, instituição ou zada será valorizada pelo prazer e pela utilidade que proporciona àqueles
prática são portadores de um grande bem, de um modo ou em um grau que dela participam. E assim, do ponto de vista da eficácia cooperativa,
que não sou, sempre, no mínimo, levanta a questão de se não devo a amizade é uma virtude precisamente à medida que é fonte de prazer
àquela pessoa, grupo, instituição ou prática, o estar preparado para e utilidade.
morrer, se uma condição para que tal portador do bem seja preservado
e defendido é que eu o esteja. Do ponto de vista dos bens de excelência, entretanto, a amizade
implica mais que prazer e utilidade, apesar de poder envolver a ambas.
Com relação a alguns dos bens de excelência, é bastante óbvio que, É um tipo de relação de respeito mútuo que emerge de uma adesão
de tempos em tempos, alguém ponha sua vida em risco. Uma pessoa comum a um único e mesmo bem, ou a um único e mesmo conjunto
não pode ser excelente na prática da guerra se não estiver preparada de bens. Os afetos e as satisfações afetivas dos relacionamentos intervêm
para tal, ou ainda, não se consegue fundar e manter uma forma estabe- nesse sentido, e é característico dos amigos serem úteis uns aos outros.
lecida de comunidade humana sem que se resolva o problema de sua
Mas o mais importante nesse tipo de relacionamento é que cada um
defesa, defesa que exige, para o bem da comunidade, que algumas
importa-se com o outro principalmente devido à sua relação individual
pessoas estejam dispostas a arriscar suas vidas. Mas isso também é
exigido, em algumas circunstâncias, em relação aos bens de eficácia. com o bem.
Consideremos, por exemplo, o modo no qual o prestígio pode fun- Nos poemas homéricos, a distinção entre esses dois tipos de ami-
cionar como um tal bem. zade ainda não tinha sido e não podia ter sido formulada. Dentro do
Era característico dos heróis homéricos, e de alguns dos seus her- esquema conceitual arcaico dos poemas homéricos, a amizade é ou
deiros gregos posteriores, valorizar, acima de tudo, a forma de prestígio uma relação de parentesco ou uma relação baseada em votos passados
que consiste em ser honrado e famoso tanto durante a vida como depois que impingiram a dois ou mais homens as mesmas obrigações que as
da morte. Alguém que considerasse a honra como tão grande bem teria oriundas do parentesco. Ser amigo, consequentemente, significa dever
de estar disposto a arriscar-se a morrer bravamente, pois esse tipo de e reconhecer que se deve a outro, em virtude de uma relação social
honra só era concedido àqueles que estivessem dispostos a tal. E na estabelecida. E o que ocorre com a amizade, também ocorre com as
reciprocidade que governa as relações definidas nos termos dos bens outras virtudes, mais notadamente com a justiça. Nos poemas homéri-
de eficácia cooperativa, certos privilégios podem ser concedidos ape- cos, a distinção entre tipos de bem e tipos de virtude ainda não emergira.
nas àqueles que estiverem preparados para morrer corajosamente em Mas no mundo pós-homérico da vida social ateniense do século V,
batalha. Assim, Homero nos mostra Sarpedon conclamando Glauco a apesar de os modos homéricos de imaginar-se e compreender-se a si
unir-se a ele num momento de perigo na batalha, lembrando-lhe que mesmo ainda deterem grande poder, as transformações sociais e políticas
honra e posses principescas lhes são concedidas pelos lícios, exatamente da ordem ateniense tornavam impossível evitar questões para as quais
porque esperam que arrisquem suas vidas desse modo. A coragem, Homero não tinha resposta, precisamente porque essas questões resultavam
neste tipo particular de ordem social, deve consequentemente ser da dissolução da visão homérica em elementos díspares e incompatíveis.
considerada uma virtude muito importante, tanto por aqueles que valorizam Assim, ali onde Homero integrava imaginariamente concepções
os bens de eficácia como pelos que valorizam os bens de excelência. potencialmente conflitantes de bondade, justiça e outras virtudes, numa
I Querer ser bem considerado por outros e querer o prazer de estimar visão altamente coerente da vida social, os atenienses dos séculos V e
1 e ser estima. por outros pode vir a ter um papel central entre os bens IV tornavam reais esses conflitos potenciais, no processo de debater
I de eficácia. A medida que tais desejos ocupam esse lugar, um motivo entre si e com outros grandes questões da prática e da teoria. E a tese
adicional, acima daquele dos benefícios da reciprocidade, é oferecido que eu agora posso propor é que, quando esses conflitos tomaram-se
1 pela obediência às regras de justiça. E, realmente, o tipo de cooperação explícitos, as questões subjacentes são melhor compreendidas em termos
que é originalmente valorizado apenas como um meio para os bens de de uma divergência radical e sistemática quanto a se são os bens de
I
I
A divisão da herança pbs-homérica
A divisão da herança pbs-homérica

não uma s6, e, assim, num estágio posterior, deve surgir a questão de
excelência ou os bens de eficácia cooperativa que devem definir os se é possível ter boas razões para dar a um tipo de racionalidade
ojetivos da pblis e, com eles, o modo de vida ao qual os atenienses prática precedên-cia sobre a outra. Em que diferem esses dois tipos de
devem dar sua adesão fundamental. raciocínio prá-tico?
Obviamente, apenas em certas ocasiões, raras e excepcionais, ocor-
reu que alguma declaração clara e sem maiores qualificações, em favor
As razões para a ação que eu e os outros consideramos boas -e
cuja atribuição, pelos outros a mim e por mim aos outros, formará a
de qualquer um dos pontos de vista, fosse defendida ou questionada; e base para os julgamentos sobre nossas condutas, que serão cruciais
era ainda mais raro que tal ocasião produzisse uma confrontação entre para o progresso ou fracasso de nossa cooperação -, no caso dos bens
aqueles que advogavam uma deferência irrestrita aos bens de eficácia de excelência, serão tais que cada um de nós terá tido de aprender o
cooperativa e os que estavam comprometidos com uma defesa da que são e como julgar, considerando-as parte de sua educação para o
excelência, mesmo em circunstâncias nas quais a conseqüência de cada tipo específico de atividade que visa aos bens particulares. Tais razões
adesão fosse claramente incorrer em fracasso e humilhação não merecidos. terão valor para nós apenas à medida que nos importarmos com os bens
Frequentemente, ao contrário, era durante conflitos nos quais dois ou específicos daquele tipo de atividade e os compreendermos. Assim, as
mais seguidores de um mesmo ponto de vista discordavam radicalmente primeiras premissas de nosso raciocínio prático tratarão daqueles bens,
entre si quanto a como agir numa situação particular, que os pressupostos premissas em cuja formulação progrediremos gradualmente à medida
comuns de seu ponto de vista eram explicitamente articulados. Assim que melhor compreendermos o bem ou bens que perseguimos; serão o
ocorreu, por exemplo, no debate na assembléia ateniense sobre a revolta ponto de partida, a arché, de nosso raciocínio. Além disso, a fim de
de Mitilene, quando ambos os principais oradores a favor de dois pontos raciocinar bem, teremos de ter aprendido como reconhecer
de vista opostos, Cléon e Diódoto, supuseram que o único ponto fun- sistematicamente o mérito onde ele for devido, isto é, teremos de ter
damental em questão era como o poder ateniense poderia se tornar adquirido, no contexto do tipo específico de atividade, a virtude da
mais efetivo no futuro. Quando Diódoto argumentou que os democratas justiça, concebida em termos de merecimento.
mitilenos não mereciam ser mortos, foi como parte de um argumento
concebido para mostrar que um tratamento desse tipo faria com que A justiça concebida em termos tanto de eqüidade em relação às
Atenas perdesse amigos úteis em outras cidades, e foi à utilidade, e condições do agón como de respeito pelo resultado do agbn foi
apenas à utilidade daquela amizade que apelou. Assim, Cléon e Diódoto originalmente um conceito que só encontrou aplicação no contexto de
concordaram ao pressupor uma adesão fundamental aos bens de eficácia. formas particulares de atividade. Para que a justiça assim concebida
pudesse ter o papel atribuído a diké e a dikaiosyne nas ordens homérica
Quando essa adesão foi questionada, como defendo, por exemplo, e pós-homérica, foi necessário que seu âmbito se tomasse o de toda a
por Sófocles, tanto em Édipo Rei como no Filocteto, e por Sócrates, vida da comunidade de uma pólis. E alcançou esse ambito porque e à
foram naturalmente conflitos envolvendo a natureza da justiça que se medida que a condução sistemática da vida da pblis constituiu um tipo
tornaram centrais. Mas quando uma controvérsia fundamental sobre a de atividade de ordem mais elevada, integrativa, cujo télos era a realização
justiça torna-se explícita, o problema de como raciocinar prática e de uma vida comum estruturada, na qual os bens dos outros tipos de
teoricamente sobre a justiça toma-se inevitável. Quando isso ocorre, atividade foram ordenados, de modo que o télos particular dapblis não
I outro e mais surpreendente nível de divergência entre o ponto de vista era este ou aquele bem, mas o bem e o melhor como tal. E assim como
dos bens de excelência e o dos bens de eficácia cooperativa vem à luz. a justiça e as outras virtudes podem ser compreendidas como disposições
I
Pois vem à tona o fato de que aquilo que é considerado uma boa razão cujo exercício é necessário para garantir não apenas os bens deste ou
para a ação é muito diferente, para aqueles para quem o contexto do daquele tipo de atividade, mas também o bem geral da pblis, o bom e
I raciocínio prático é dado por um tipo de atividade especificado por um o melhor, também o raciocínio prático é ordenado tendo em vista o
I ou mais dos bens de excelência, daquilo que é considerado uma boa bem geral da pblis, o bom e o melhor.
I razão por aqueles para quem o contexto do raciocínio prático é dado
I Esse raciocínio prático se dará em dois estágios. No primeiro, o
por uma compreensão da vida social como uma arena, na qual cada sujeito do raciocínio deliberará, à luz de sua própria situação e
indivíduo e cada grupo de indivíduos busca maximizar a satisfação de circunstância, que bem próximo deve ser perseguido, se o télos último
seus desejos e necessidades. Essas são duas racionalidades práticas,
56 A divisáo da herança pós-homérica A divisão da herança pós-homérica

do bom e do melhor deve ser alcançado. No segundo, o sujeito do anteriormente, de quais regras tiveram de ser mutuamente observadas
raciocínio passará de uma premissa ou premissas sobre o bem próximo, para tornar possível e manter o próprio processo de negociação, de
juntamente com uma premissa ou premissas sobre o modo no qual suas modo que cada participante possa beneficiar-se dele ao máximo.
circunstâncias oferecem uma oportunidade para sua realização, a uma
conclusáo que será uma ação. Essas premissas serão boas razões para Portanto, os dois pontos de vista opostos que delineei envolvem,
a ação para qualquer pessoa cujo télos for o bom e o melhor, para qualquer pelo menos em suas versões extremas, concepções radicalmente in-
um, isto é, que não apenas age enquanto cidadão de uma pdlis, mas que compatíveis, náo apenas dos bens de justiça e de outras virtudes, mas
também compreende as atividades da pólis e suas próprias ações em também da política e da racionalidade prática. É na história moral e
termos da prossecução dos bens de excelência. Se uma pessoa em par- política da Atenas dos s6culos V e IV que essas incompatibilidades
ticular será ou náo levada à ação por esses bens dependerá não apenas adquirem expressão clássica, tanto na prática como na pesquisa teórica.
de uma tal compreensão, mas também de se essa pessoa, enquanto
sujeito do raciocínio, já progrediu o suficiente na sua educação moral
e intelectual para poder julgar corretamente sua verdade e relevância.
Assim, a solidez de um argumento prático em particular, expresso em
termos de bens de excelência, independe de sua força para uma pessoa
particular.
Em contrapartida, no que tange aos bens de eficácia cooperativa,
uma consideraçáo não conta como uma razáo a não ser quando de fato
motiva uma pessoa. E náo há padrões pelos quais uma razáo possa ser
julgada boa ou má, independentemente do fato de ser uma razão que
oferece a algum agente um motivo para a açáo. Os estados psicológi-
cos em virtude dos quais sou levado à açáo, quaisquer que sejam -
desejos, necessidades, aspirações, impulsos - constituem a arché de
minha ação. Meu raciocínio prático começa não a partir de um bem,
muito menos de um bem sobre o qual eu possa ainda não ter uma
concepção adequada, mas de mim mesmo compreendido como estando
dirigido para algo através da necessidade ou do desejo, cuja obtenção
ou alcance me satisfaráo. Portanto, a cooperação com os outros exige
o reconhecimento de suas razões para a ação como boas razões para
eles, náo como boas razões em si, e tal cooperação requer a criaçáo de
um esquema para a negociação, dentro do qual cada um pode oferecer
ao outro considerações concebidas simultaneamente, tanto para atrair o
outro em função do que quer ou visa como para promover seus próprios
objetivos. No caso dos bens de excelência, o bem que confere sentido
e propósito à cooperação entre indivíduos, numa oportunidade específica,
é um bem, anterior e independentemente da cooperação desses indivíduos
em particular; é por causa desse bem que se reúnem. No caso dos bens
de eficácia, qualquer bem comum visado pela cooperação é tanto derivado
dos objetos de desejo e aspiração que os participantes rivais trouxeram
para o processo de negociação como composto por eles. O tipo de
fidelidade que esses participantes mantêm com relaçáo às regras de
justiça e que regras de justiça reconhecem dependerão, como disse
I'
Capítulo IV

ATENAS EM QUESTÁO

O que pode ser depreendido da história política de Atenas sobre o


desenvolvimento das concepções de justiça e raciocínio prático será
talvez melhor compreendido em termos das relações entre quatro modos
atenienses diferentes e incompatíveis de compreender o papel de Atenas,
no final do século V, cada um tendo um papel importante na formulação
de discussões posteriores dos problemas da justiça e do raciocínio prático.
O principal, mas não o único, autor do primeiro desses modos foi
Péricles; seus co-autores foram todos aqueles seus concidadãos, na
época a grande maioria, para quem Péricles conseguiu articular, em
seus discursos e em suas políticas, uma imagem de si mesmos que
rapidamente reconheceram e aceitaram. Todos os outros três modos
envolviam algum tipo de reação ou pelo menos reflexão crítica à
interpretação de Atenas formulada por Péricles. Eles são encontrados
nas obras de Sófocles, Tucídides e Platão, todos membros da elite
governante de Atenas; os dois primeiros, como o próprio Péricles, tendo
ocupado o posto de general (stratégos) em momentos decisivos antes
ou durante a Guerra do Peloponeso. Uma vez que é a compreensão de
Péricles a evocar reações por parte dos outros, é por Péricles que devemos
começar. Mas começar por ele significa retornar ao nosso ponto de
partida, Homero.
Pois a compreensão de si mesmos que Péricles ofereceu aos atenienses
era surpreendentemente homérica. Estudiosos modernos amiúde e
corretamente chamam nossa atenção para o quanto Péricles, pelo menos
de acordo com o versão de Tucídides, exemplificava atitudes carac-
terísticas e específicas do final do século V (veja-se, por exemplo,
Lowell Edmunds, Chance and Intelligence in Thucydides, Cambridge,
60 Atenas em questão Atenas em questão 61

minha concordância com os argumentos de Donald Kagan em "The


Mass., 1975). Mas o que é notável é o grau em que esses elementos
Speeches of Thucydides and the Mytilene Debate", Yale Classical Studies
contemporâneos nos pronunciamentos de Péricles foram integrados numa
24, 1979). E a justiça que Isócrates atribui a Péricles o próprio Péricles
visáo amplamente homérica. Natu~almente,pode-se considerar implausível já atribuíra aos atenienses em geral, por sua prática de tratar os cidadãos
atribuir atitudes homéricas a Péricles, uma vez que enquanto líder do livres igualmente perante a lei, por seu temor respeitoso da lei,
partido democrático, frequentemente se opunha aos conservadores especialmente das leis que beneficiam os injustiçados. Voltaremos a
aristocratas para quem a referência a modelos e precedentes homtricos esse ponto.
era central. Mas ainda aqui, o que deve ser destacado nos pronunciamentos
e políticas de Péricles é o modo pelo qual pensamentos e atitudes É certo enfatizar que, neste período, não apenas 'sophrõn', mas também
homéricas adquiriram um novo conteúdo democrático, ao mesmo tempo outras virtudes como 'díkaios'e 'sophós' não mais significavam o mesmo
que mantiveram seu caráter distintamente homérico. Péricles pode ter que seus antecedentes homéricos, e que a concepção de lei na democracia
oferecido uma versão especificamente ateniense e típica do século V ateniense não era a mesma que a thémis homérica. Ser sophós tinha sempre
do ethos homérico, mas ainda era o ethos homérico. implicado saber como apelar a gnomé, mas quando Péricles apela para
a gnomé, não está mais apelando à tradicional sabedoria recebida, mas
Assim, o membro individual do demos ateniense teria, sem dúvida, ao aprendizado inteligente decorrente da experiência à qual também
considerado impossível compreender-se como um herói homérico, mas alguns dos sofistas e Eurípedes tinham apelado. Portanto, de modo
o que Péricles lhe oferecia era uma visão da própria cidade de Atenas geral, as palavras de virtude, tal como usadas por Péricles e sobre ele,
como figura heróica e de sua cidadania como algo que lhe proporcionava foram democratizadas de tal modo que é possível a Péricles reivindicar,
I
a sua parte naquela areté que outrora pertencera apenas aos reis. para o cidadão ateniense comum, virtudes que os antigos aristocratas
Consideremos, primeiramente, as virtudes que Péricles atribuiu a Atenas. gregos tinham tentado reservar para si. De que modo, então, esses
Elas parecem ser em grande parte as mesmas virtudes que seus seguidores apelos podem fazer parte de uma visáo autenticamente homérica?
atenienses atribuíam a ele, Péricles. Primeiramente, podem ser assim considerados pelo modo com que
Isócrates dizia de Péricles que ultrapassava todos os outros cidadãos Péricles, tanto no seu elogio dos atenienses na Oraçáo Fúnebre como
ao ser sophrõn, díkaios e sophós. 'Sophrosyne' tinha sido usada de vários em suas exortações a eles, ali e em outros discursos, reproduz a in-
modos na Grécia pós-homérica. Como nome de uma virtude aristo- junção homérica central de pai para filho. "Ser sempre o melhor e
crática, tinha sido usada para caracterizar um homem que tivesse se superior aos outros" era tanto a injunçáo de Hipóloco a Glauco como
elevado além do devido limite, mas que tivesse preferido limitar-se, a de Peleu a Aquiles (Ilíada VI, 208, e XI, 784). É também o que
deliberadamente, de modo a poder usufruir da hésychia, a paz de espírito Péricles diz que os atenienses são e devem continuar sendo.
na qual descansa merecidamente o vencedor depois do agón. Ela passou Em segundo lugar, assim como em Homero, ser supremamente ex-
também a significar a virtude mais geralmente associada com saber celente e vencer são tratados como tão intimamente ligados que parece
quem se é e qual o próprio lugar no mundo, de modo que o exercício não haver incompatibilidade alguma entre buscar os bens da virtude e
de restrições implicasse não exceder os limites determinados por esse buscar a própria virtude. É por sua areté que, em Atenas, alguém é
lugar. Mas isso não pode ser o que Isócrates quis dizer ao referir-se a considerado apto para um cargo público, diz Péricles (Tucídides 11,
I Péricles. Nesse caso tornou-se a virtude, não de estabelecer-se limites 37,l); e é parte da areté dos atenienses o fato de adquirirem amigos
em relação aos seus objetivos, mas de comportar-se com o cuidado por fazer algo em seu benefício. Mas o cultivo da areté, em casa e fora,
111
devido e deliberado na escolha dos meios. E, apesar de Péricles não ter não se justifica apenas pelo interesse de ser virtuoso: serve também à
usado a palavra 'sophrosyne', elogiou os atenienses, na Oraçáo Fúnebre, busca de riqueza e poder e sempre levou à sua conquista melhor que
I
por só agirem depois de se terem instruído no debate, sendo, entre qualquer outro meio.
I todos os homens, os mais dados à reflexão prévia à ação. Ao agirem
I
assim, eram também capazes de aprender. Assim, Péricles diz de si Em terceiro lugar, riqueza e poder não são buscados por si mesmos,
I
próprio e de seus companheiros atenienses que eram amantes da sabedoria. apenas. São também desejados pela honra e glória que proporcionam,
(Tucídides 11, 40,3, e 11, 40,l; o meu uso de Tucídides é resultado de e ao premiar a honra e a glória de Atenas, os atenienses agem em
!I
62 Atenas em questão Atenas em questão 63

relação a sua cidadania e cidade exatamente do mesmo modo que os reivindicação por justiça prevalecer sobre a vantagem; apesar disso, os
heróis homéricos. Assim, Péricles, na Oração Fúnebre, pode dizer aos atenienses tinham aceitado a igualdade com as outras cidades do seu
atenienses que não se esqueçam de que, na velhice, aquilo de que vão império em processos judiciais, mesmo em condições desvantajosas
recordar-se com satisfação será a honra e não o lucro (11, 44,4); e no para eles; e aquelas cidades, em vez de mostrar gratidão, ressentiam
seu discurso destinado a acabar com a insatisfação ateniense com a sua desigualdade, seja quando uma decisão legal era contra eles, seja
guerra, depois da praga e da segunda invasão espartana da Atica, pode quando Atenas tinha simplesmente imposto sua vontade imperial (I,
lembrá-los de que aqueles que como eles quisessem realizar algo seriam 77,l-4).
movidos pela idéia de que seriam lembrados para sempre como a melhor Essa resposta era irrelevante em relação àquilo que os aliados es-
das cidades gregas (11, 64,3-4). partanos consideravam crucial: tudo o que as cidades sujeitas a Atenas
Finalmente, em quarto lugar, assim como o herói homérico tratava tinham ou gozavam nunca era mais do que o que Atenas permitia que
aquilo que percebia como tentativa, por parte de outros, de impor limites tivessem ou gozassem. Subjacente a todos os argumentos atenienses,
a suas realizações como desafio que devia ser repelido, também entre estava a orgulhosa convicção de Péricles de que os atenienses faziam
os atenienses, na visão de Péricles: "... se fosse necessário escolher o bem a seus amigos, em vez de recebê-lo, e, na verdade, todos os bens
entre ceder imediatamente aos ditames de nossos vizinhos ou preservar que foram concedidos às cidades submetidas foram impostos, sem que
nossa superioridade, aceitando correr riscos, aquele que evitasse o perigo elas optassem por eles. Mas, havia algum bem? E o que era?
seria mais censurável do que aquele que o aceitasse" (11, 59,l). Os A Liga de Delos tinha primeiramente existido em função daquilo
ditames aos quais Péricles se refere eram os dos espartanos e de seus que seus membros tinham reconhe6do como sendo um bem genui-
aliados, e é instrutivo lembrar a semelhança entre as palavras de Péricles namente comum, proteção naval contra o império persa, uma proteção
e os comentários dos enviados atenienses à assembléia dos espartanos assegurada por todas as cidades que se aliavam, através de contribuições
e de seus aliados, que ocorreu logo antes do início da guerra. Os atenienses feitas por todos os membros, seja na forma de navios, seja na forma de
tinham aprendido a falar com a voz de Péricles. dinheiro. Os atenienses, em 454, tinham unilateralmente transferido o
A imagem que Péricles tinha de Atenas era, portanto, nesses diver- tesouro da Liga de Delos para Atenas, recusado pela força permitir que
sos sentidos, homérica. Obviamente, um Homero transposto e utilizado as cidades rompessem com a Liga, e usado recursos do tesouro para
para novos fins, mas Homero ainda. E assim como na visão poética que projetos de seu interesse exclusivo, tais como o da construção do Partenão.
Homero tinha da ordem social heróica, apesar de o valor da excelência Assim, em nome do bem da proteção naval permanente, agora de
e o valor da vitória serem distintos, não há nenhuma indicação de que necessidade duvidosa - Atenas tinha feito a paz com a Pérsia em 449
a busca dos dois seja incompatível ou que possa ser necessário optar -, Atenas transformou a Liga num império.
entre eles, o mesmo é verdadeiro para a visão retórica que Péricles A resposta final de Atenas às acusações dos aliados espartanos, no
tinha da ordem social ateniense. Péricles elogia os atenienses pela sua
busca de vários bens; não há na sua visão de Atenas a menor sugestão que concerne ao imperialismo ateniense, foi convidar os espartanos a
de que o sucesso em relação a um tipo de bem possa ser destrutivo em aceitar um julgamento, diké. A resposta espartana foi que os atenienses
relação ao outro. A visão de Péricles é épica, não trágica. já tinham cometido injustiça (adikein) (I, 79) e, baseados nisso, votaram
pela guerra.
Entretanto, a implementaçáo de políticas especificamente pericli-
I
anas, mesmo feita pelos seus sucessores, que não tinham o seu con- O que emerge dessa troca é o modo pelo qual, no pensamento ateniense,
trole, apontava para a inadequação da sua visão. Péricles tinha elo- o lugar da justiça na relação entre cidadãos é uma coisa, e na relação
II
giado a autonomia de Atenas e de seus cidadãos. Mas a reclamação entre a pblis e os de fora é outra. Dentro da pdlis, a igualdade de posição
I contra Atenas era geralmente de que, ao transformar a Liga de Delos perante a lei especifica o tipo de participação a que cada cidadão tem
I
num império, Atenas negara às outras cidades a autonomia que exigia direito. Um posto público e suas recompensas devem ser atribuídos
I
para si própria. Os atenienses, em resposta, propunham três motivos: àqueles que os merecem, por habilidade ou por feitos realizados. Cada
há muito se estabelecera que o mais poderoso devia prevalecer sobre cidadão é livre para, não apenas participar da vida da cidade, mas
I também para perseguir seus próprios objetivos, e cada um será mais
I
o mais fraco e ninguém, antes dos atenienses, tinha permitido uma
64 Atenas em questão Atenas em questüo 65

capaz de fazê-lo com sucesso devido a essa mesma participação. Esses a Esparta, mas foi forçada a entregar-se devido h falta de grãos. Os
objetivos podem ser bens de excelência, riqueza ou poder. Na visão de atenienses aceitaram a capitulação, mas em termos que punham a solução
Péricles, não há nada na busca desses fins que possa ser considerado do caso de Mitilene inteiramente nas mãos da assembléia ateniense. A
destrutivo para o bem da cidade ou de algum outro cidadão individual. assembléia inicialmente votou pela execução de todos os homens adultos
e pela venda de todas as mulheres e crianças como escravos, uma
Conseqüentemente, ser injustiçado enquanto cidadão implicaria a
interferência deliberada e desnecessária de outros nas atividades de política defendida por Cléon, o sucessor de Péricles, como principal
alguém. Na visão de Péricles, as leis devem ser respeitadas e temidas porta-voz dos democratas atenienses. Mas os atenienses foram depois
porque protegem contra esses males. Mas na relação da pólis com os persuadidos por Diódoto de que uma política mais flexível seria mais
outros de fora, tal concepção da injustiça não estaria garantida. Não é vantajosa para eles.
que não haja espaço para a aplicação de regras de justiça. Quando dois
Uma terceira cidade-estado, da ilha de Melos, não era uma cidade-
poderes aproximadamente iguais se confrontam, e nenhum dos dois
pode ter expectativas racionalmente fundadas de ser capaz de impor membro e era neutra na guerra. Mas em 416, os atenienses enviaram
sua vontade ao outro, a necessidade pode compelir ambos a concordar uma frota para exigir a submissão dos mélios. Tucídides registrou um
com um julgamento feito de acordo com um padrão justo, o tipo de diálogo entre os líderes mélios e os enviados da expedição ateniense,
arbitragem que os atenienses convidaram os espartanos a aceitar. Mas no qual os atenienses afirmam com a maior clareza o princípio que
esse é o caso-limite na aplicação da regra geral aceita pelos atenienses: define a justiça da eficácia: "Que, nos conflitos humanos, só se entra
os mais fortes podem impor e sempre impõem sua vontade sobre os em acordo quanto à justiça quando a necessidade é igual; enquanto os
mais fracos. E importante observar como essa regra é tanto interpretativa que têm supremacia de poder exigem tudo o que puderem, os mais
como referência para a açáo. Ela justifica nossa compreensão dos motivos fracos cedem às condições que forem impostas" (V, 89, tradução de
dos outros de um modo particular, independentemente do que os outros Hobbes). Tanto nessa passagem como em outras, especialmente no
possam dizer em contrário; realmente, se aplicarmos essa regra, discurso que Eufemos faz aos siracusianos no livro VI, o porta-voz
reconheceremos naquilo que os outros dizem em contrário um mecanismo ateniense representado por Tucídides rejeita a idéia de que qualquer
através do qual tentam impor sua própria vontade. E o uso dessa regra, tipo de justiça de merecimento recíproco possa vigorar entre os povos.
tanto como guia para a açáo quanto para a interpretação, é sucessivamente Eufemos diz: "Não faremos discursos excelentes sobre como é justo
incorporada às decisões e ações dos atenienses em relação a três cidades- que governemos, porque nós sozinhos derrotamos os bárbaros ou porque
-estado que se recusam a se submeter à vontade de Atenas. corremos mais riscos em nome da liberdade desses homens (isto C, os
A primeira dentre elas, Samos, um dos membros principais da Liga peloponésios) do que pela de todos os gregos, inclusive a nossa" (VI,
de Delos, estava reagindo a uma intervenção ateniense. Em 441, Samos 83). E, realmente, quando os mélios respondem aos atenienses, eles .
entrara em disputa com Mileto, outra cidade-membro, quanto à posse também são representados como argumentando que os atenienses deveriam
de Priene. Mileto apelou para os atenienses, que mandaram uma expedição respeitar princípios que beneficiam aos mélios assim como a eles próprios,
naval a Samos, onde forçaram uma alteração da constituição, levaram . precisamente porque será mais vantajoso para eles (isto é, os atenienses)
cem reféns, que foram deixados na ilha de Lemnos, e deixaram uma se assim o fizerem. Pois, observam os mélios, a conseqüência de se
guarnição. Com a ajuda de Pissutnes, o sátrapa persa de Sardis, os aplicar o princípio do direito do mais forte, sem maiores qualificações,
samianos revoltaram-se, resgataram os reféns e entregaram a guarnição será que outros se sentirão no direito, em outras circunstâncias, de
ateniense aos persas. Os atenienses controlaram a revolta ocupando Samos, apelar para o mesmo princípio nas suas relações com você. Isto C, os
até que os samianos fossem induzidos a fazer um acordo, que implicava mélios sugeriram aos atenienses uma concepção mais sofisticada da
não apenas a destruição de suas defesas e a entrega de sua frota aos justiça da eficácia, que os atenienses, naquela ocasião, rejeitaram -
atenienses, mas também a entrega de outros reféns e o pagamento de Melos, depois de um longo cerco, foi forçada a render-se, todos os
uma indenização pelo custo da guerra. O stratégos que comandou a homens adultos foram mortos, as mulheres e crianças, escravizadas
expedição a Samos foi Péricles. -, mas que, mais de dez anos mais tarde, nos últimos meses da Guerra
Em 428, durante a primeira fase da Guerra do Peloponeso, Mitilene, do Peloponeso, iria informar o medo dos atenienses de que, se derrotados,
também uma cidade-membro, revoltou-se contra Atenas e pediu ajuda poderiam ser tratados da mesma forma com que tinham tratado os mélios.
Atenas em questão 67
66 Atenas em questão

das rotinas costumeiras do dia, do mês e do ano normais. Só mais


Assim, os bens de eficácia têm supremacia na relaçáo dos atenienses tarde, quando essas rotinas tiverem sido mais ampla e radicalmente
com as outras cidades-estado. E o lugar, muito limitado, atribuído à abaladas, é que a questão de se não teria sido melhor seguir
justiça, assim m o O tipo de justiça visado são aqueles que a supremacia irrefletidamente os costumes antigos poderá ser posta; e quando os
dos bens de eficácia cooperativa exige. Mas esses bens são também conservadores oferecem a seus contemporâneos boas razões para voltar
valorizados, em parte, pelo que tornaram possível, por exemplo, a a um tipo de vida social anterior, menos refletido, os próprios meios
construção do Partenão: a eficácia cooperativa pode servir também à que utilizam para defender suas idéias evidenciam o quanto aquilo que
excelência. Mas a natureza da relação entre os dois tipos de bens não recomendam já não é mais possível. Assim, nas comédias de Aristófanes,
pode nunca emergir, enquanto as imagens da retórica de Péricles as figuras conservadoras retratadas são, em parte, vítimas cômicas porque
continuarem a vigorar. Pois o que a atitude de Péricles nos impede de são forçadas a utilizar os modos retóricas que abominam para argumentar
ver, como disse anteriormente, é qualquer sugestão de que a supremacia contra esses mesmos modos. E o próprio Aristófanes é tão claramente
da eficácia, nas relações externas, possa talvez vir a prejudicar a busca simpatizante do conservadorismo que isto já é uma evidência significativa
da excelência interna; e oculta, igualmente, a possibilidade de a aspiração do poder da imaginação de Péricles.
individual à excelência ou à eficácia vir a prejudicar o bem da cidade.
No centro da retórica de Péricles está a suposição, nunca discutida ou Essa visão imaginária de Atenas foi sistematicamente comunicada,
claramente pormenorizada, de que todos os bens que os atenienses mas nunca defendida, nos discursos de Péricles. Realmente, não poderia
buscam podem ser alcançados em harmonia uns com os outros, e, acima ter sido defendida dentro das limitações da retórica de Péricles. E as
de tudo, que o cidadão individual pode buscar seu próprio bem, seja de limitações dessa retórica não são acidentais; derivam do modo como a
excelência, riqueza ou poder, e ao mesmo tempo buscar o bem da retórica era até então compreendida enquanto technt!.
cidade. Por isso, a concepção de Péricles daquilo que Lowell Edmunds
(op.cit., 84) chamou "a primazia da pólis" não é apresentada como sendo Plutarco, na sua obra sobre a vida de Teseu, fala do cultivo em .
incompatível com uma multiplicidade de pontos de vista dos cidadãos Atenas de uma deinotés politiké (habilidade em política), que inclui a
individuais, quanto ao modo como compreendem sua prosperidade. São, habilidade de falar com eficácia. A assembléia e os tribunais tinham,
realmente, os sucessos tanto dapólis como dos indivíduos que, nas palavras obviamente, alimentado uma prática de debate, de produção de discursos
de Péricles, fazem de "nossa cidade como um todo a escola da Grécia", rivais, uma prática que é então refletida nos grandes debates interiores
que não "precisa dos elogios de Homero ou de qualquer outro poeta" aos dramas trágicos, a partir de Esquilo. O que importa nesses debates
(Tucídides 11, 41,l e 4). Atenas é não apenas um herói épico; é também é que o orador eficaz é aquele que é bem-sucedido em conseguir fazer
seu próprio poema épico. Portanto, Atenas, na visão de Péricles, oferece com que os outros aceitem suas conclusões sobre o assunto em questão,
ao resto da Grécia aquilo que a Ilíada e a Odisséia ofereciam à educação começando não pelas dele, mas pelas premissas da audiência. E, uma
dos moços atenienses. vez que tal debate visa produzir a ação conjunta e cooperativa, as
premissas relevantes incorporarão um apelo àquilo que a audiência
Talvez essa apropriação da imagem homérica por Péricles explique, considera desejável. Ao apelar para tais premissas, o orador eficaz terá
em parte, por que os políticos aristocratas e conservadores considera- de reconhecer qual das duas abordagens diferentes deverá adotar.
vam tão difícil responder a Péricles e a seus sucessores. Pois eles,
acima de tudo, tratavam os textos homéricos como canônicos. Mas Se as premissas, a partir das quais sua audiência está preparada para
tambCm encontraram um outro tipo de dificuldade. Aqueles que rea- argumentar, permitirem ao orador chegar à conclusão que é seu ob-
gem a períodos de mudanças rápidas e ameaçadoras, apelando para a jetivo fazer com que aceitem, uma vez que também aceitem premissas
manutenção ou retorno aos modos do passado, ao costumeiro, ao adicionais quanto aos meios necessários para garantir aqueles objetivos
tradicional, sempre têm de enfrentar o fato de que, numa ordem social que já consideram desejáveis, então o orador s6 terá de convencê-los
estabelecida, aqueles que seguem suas regras não necessitam de boas da verdade daquilo que tem a dizer, quanto à relação meio-fim rele-
vante naquelas circunstâncias. E Péricles, nos seus apelos àquilo que
razões para fazê-lo. A questão do que constitui uma boa razão para a
gnomé e empeiria podem ensinar (11, 62,s e I, 142,5), exemplifica esse
ação é jogada sobre eles apenas quando já enfrentam alternativas, e, tipo de raciocínio. Mas também dá exemplo de um tipo bastante difer-
caracteristicamente, os primeiros usos do raciocínio prático servirão para ente de apelo.
justificar a busca de algum bem que não possa ser alcançado através
68 Atenas em questüo Atenas em questão 69

Ocasionalmente, uma audiência pode, inicialmente, estar num es- pressuposição deve estar subjacente a toda política democrática, mas
tado de espírito tal que, a partir das premissas sobre o que acreditam foi na sua forma peculiar fojada por Péricles que tal pressuposição,
que seja desejhvel, não se pode construir uma argumentação cuja conclusão pela primeira vez, teve claramente um papel na vida grega. O que foi,
seria aquilo que o orador visa alcançar. Nesse caso, o orador tem de desse modo, excluído da argumentação e pesquisa racionais?
alterar as atitudes de sua audiência e também seu julgamento quanto ao A resposta é a seguinte: aquele substrato comum de crenças relativas
que é desejável; tem de mudar seus desejos, atenuando seus medos,
ao que é desejável e indesejável, que fornecia aos atenienses democra-
aumentando suas esperanças e o que quer que seja necessário para tas as primeiras e últimas premissas de suas argumentações. Portanto,
alcançar seus objetivos. E também nisso Péricles se sobressaía: "Sempre as questões que opõem tais atenienses àqueles que sustentam pontos de
que os encontrava inoportunamente confiantes, falava para amedrontá- vista ou concepções sistematicamente diferentes, quanto àquilo que é
-los, e, inversamente, sempre que estavam demasiado assustados, os
desejável ou não, não estão abertas ao debate ou à pesquisa racionais.
fazia recuperar a confiança", narra Tucídides (11, 65,9), depois de destacar
que Péricles era capaz de se fazer ouvir pelos atenienses mesmo quando Elas devem ser tratadas, dentro do esquema de Péricles, como um
dizia coisas que não queriam ouvir, devido à sua reputação de honestidade irracional, um dado. Conseqüentemente, as questões que dividem aqueles
e sua recusa em lisonjear a assembléia. cuja adesão fundamental é aos bens de eficácia cooperativa e a uma
concepção de justiça daí derivada, daqueles cuja adesão fundamental é
A retórica de Péricles tinha de ser, então, argumentativa e aos bens de excelência e à concepção de justiça correspondente, eram
manipuladora. Os padrões de argumentaçáo mostram uma sofisticação racionalmente indiscutíveis, dentro de um esquema pericliano, e,
dedutiva que deve tanto ao uso da evidência em contextos forenses realmente, não podiam ser decifradas explicitamente antes dos estágios
quanto às formas de inferência usadas pelos filósofos da natureza dos finais - vinte anos depois da morte do próprio Péricles - da vida da
séculos VI e V, principalmente os eleatas. Mas a argumentação dedutiva Atenas de Péricles. Pois aquilo que chamo de ponto de vista de Péricles
garante apenas uma conclusão quando há razão adequada para se acreditar não era e não podia ser articulado do mesmo modo que uma teoria
que suas premissas são verdadeiras, e a argumentação dedutiva prática filosófica pode e deve ser. A importância da retórica para esse ponto
efetiva exige pelo menos uma premissa que caracterize alguma ação, de vista não era simplesmente que essa retórica provia a maioria de
objeto ou estado de coisas como algo que, de fato, é desejado. Quando seus contemporâneos atenienses dos parâmetros para a deliberação pública;
todos concordam quanto ao que é desejável ou vantajoso, em alguma
a visão de Péricles era, em si mesma, inseparável da retórica através da
situação particular, a apresentação da premissa relevante não causa
qual era expressa; o trabalho de uma imaginação que adquiriu forma
problemas. Quando, na Ilíada, as alternativas se apresentam, aquilo que
nas construções e nas esculturas do Partenão assim como em palavras.
é vantajoso não causa problemas, justamente nesse sentido. Portanto,
As imagens eram mais fundamentais do que conceitos ou argumentos,
Deífobo considera que se deve lutar sozinho ou junto com algum outro
para o ponto de vista de Péricles.
troiano, "e ao seu pensamento lhe pareceu mais vantajoso ir atrás de
Enéias" (Ilíada XIII, 458-459), pois é a vantagem que traz a vitória e Vico afirmava que a compreensão humana, no processo de passar
a vitória é sempre desejável. Assim, no debate sobre Mitilene, Cléon, da idade dos deuses, pela idade dos heróis, à idade dos homens, é
o sucessor de Péricles na liderança do partido democrático, e Diódoto transformada de um plano poético, no qual o universal imaginário é
conseguem argumentar a favor de políticas alternativas a partir de central, a um plano racional, no qual o universal imaginário é substi-
premissas compartilhadas pelos dois oradores e pela audiência, quanto tuído pelo universal inteligível. Essa transformação conceitual é re-
àquilo que é vantajoso para Atenas. Mas quando tais premissas almente a que ocorreu na passagem de Homero a Platão. E quando
compartilhadas não existem, que recursos tem o orador? Uma chamo a visão pericliana da Atenas homérica, estou pensando não apenas
pressuposição, apesar de não-reconhecida, subjacente à retórica no seu conteúdo homérico - a própria Atenas vista como um herói
efetivamente praticada por Péricles, era que apenas formas não-racionais homérico, guiada por Atena assim como Aquiles -, mas também no
de persuasão estavam disponíveis. Portanto, uma tese sobre onde se fato de que na sua auto-articulação ainda estava intimamente ligada à
deve traçar o limite entre aquilo que pode estar sujeito à argumentação poesia mais do que à filosofia. Entretanto, o reconhecimento, por parte
racional e aquilo que não pode já estava pressuposta nas práticas de de seus contemporâneos, de que Péricles distinguia-se por sua
debate de Péricles. Platáo viria a argumentar que exatamente essa racionalidade e por seus apelos à racionalidade é também muito acertado.
.
;
i

70 Atenas em questão Atenas em questão 71

O que Sófocles atacava em Édipo Rei era a hybris de Péricles e de


O que Péricles fet, ao traduzir uma perspectiva homérica nos termos Atenas, aquela violência que expressava o orgulho que o coro de Sófocles
concretos da metade e do final do século V, foi também expandir considerava como a causa do poder tirânico. E atacava esta hybris
aquela visáo de maneira tal que a tornou disponível h crítica racional particular de Atenas devido a uma confiança ímpia na eficácia do uso
posterior, num nível mais fundamental do que o imediatamente disponível habilidoso do poder, uma confiança que tinha tomado o lugar do cuidado
para ele mesmo ou para seus contemporâneos políticos. e do respeito adequado pela relação da cidade com a lei divina. Mas
Tucídides e Platáo, embora de modos muito diferentes, iriam propor- se Édipo Rei era de fato uma peça política (a posição de Knox), sua
-se tal tarefa. Mas a crítica radical das atitudes e crenças de Péricles mensagem náo foi ouvida, ou, se foi, foi rejeitada. A trilogia à qual
iniciou-se de um modo muito mais próximo da própria retórica de pertencia Édipo Rei náo conseguiu o primeiro prêmio quando foi produzida
Péricles. O orador pericliano era um ator no drama público de Atenas, em 427 ou 426, embora a peça viesse a ser considerada por Aristóteles
e a poesia dramática tinha recursos imaginários e relativamente racionais como exemplar, enquanto drama trágico, e os sucessores de Péricles
perfeitamente adequados para oferecer antíteses dramáticas às teses 1 mantiveram todos os aspectos da política de Péricles que sugeriam a
retóricas, apesar de que nem o drama trágico nem o drama cômico acusação de hybris.
fossem capazes de oferecer uma solução racional às questões levantadas Quando Sófocles apresentou sua penúltima peça, o Filocteto, em 409,
nas críticas às posições de Péricles e de seus sucessores. Mas foi, de Atenas vivia condições bastante diferentes. A destruição da expedição
fato, no drama trágico e no drama cômico que algumas de suas limitações a Siracusa e a revolução dos Quatrocentos tinham abalado a democra-
mais importantes e a necessidade de transcendê-las foram pela primeira cia ateniense, mas a sua retomada do poder dos oligarcas e uma série
vez identificadas. O mais importante comentador dos sucessores de de vitórias navais tinham-lhe dado, pelo menos por um certo tempo,
Péricles foi Aristófanes. O do próprio Péricles foi Sófocles: "As renovadas possibilidades de se preservar. Era, portanto, oportuno e
semelhanças entre Édipo e Péricles, apesar de terem sido frequentemente urgentemente necessário voltar a levantar as questões do que era a
exageradas e super-interpretadas, ainda sáo notáveis e não devem ser justiça dentro da comunidade política, do que era a justiça em relaçáo
facilmente abandonadas", escreveu Bernard M. W. Knox no seu Oedipus àqueles que não pertenciam a ela, e a relaçáo de ambas as concepções
ar Thebes (New Haven, 1957, 63). As duas semelhanças com o Édipo com o que era propício e vantajoso. E essas são as questões abordadas
de Édipo Rei que Knox enfatiza - e Édipo Rei é afinal de contas uma pelo Filocteto.
peça sobre uma cidade que sofre de uma peste, apresentada aos atenienses
A ação se desenrola na infecunda ilha de Lemnos, onde Filocteto
numa época em que sua própria cidade tinha recentemente sido vítima
foi abandonado pelos gregos quando estava a caminho para Tróia. No
de uma peste - sáo o modo no qual Péricles combinava um tipo de
santuário da deusa Crisis, foi picado por uma cobra. O ferimento, que
autoridade inquestionada, característica de um tyranos (e era isso que
os rivais políticos de Péricles diziam que era), com uma grande deferência o levava a gritos intermitentes de agonia, fazia com que se tornasse um
pela opinião pública e o fato de que Péricles pertencia a uma família fardo desnecessário à expedição. Durante nove anos sobreviveu sem
que estava sob uma maldição hereditária, por causa de um assassinato nenhum contato humano nas condições mais precárias. Seu único recurso
sacrílego cometido por um ancestral. Mas Knox dá grande ênfase, não sáo seu arco e suas flechas mágicas. Filocteto tinha sido - e de fato
às semelhanças entre o próprio Péricles e Édipo, mas às semelhanças ainda seria -um grande arqueiro, e quando ajudou a Héracles moribundo,
entre Édipo e a Atenas de Péricles. o filho semimorta1 de Zeus, acendendo a pira funerária que iria livrar
Héracles de sua agonia, Héracles presenteou-o com o arco e as flechas.
O próprio Péricles descrevera o império ateniense como uma tirania,
Durante os nove anos que Filocteto permanecera em Lemnos, os gregos
e foi ainda Péricles que não apenas se vangloriou da riqueza e da
techné dos atenienses, no seu exercício de poder, mas que também não tinham conseguido tomar Tróia. Foi quando ouviram de uma profecia
afirmou ser por causa disso que os atenienses eram invejados por outros. do vidente troiano Helenos que apenas com as armas de Filocteto iriam
conseguir dominar Tróia. Então, Ulisses, experiente e astuto, e o fi-
Assim também &ipo diz, ao explicar o ressentimento invejoso de Creonte:
lho de Aquiles, o jovem e inexperiente Neoptólemo, sáo enviados a
"6 riqueza e tyrannis e techné que sucede a techné na competição da Lemnos.
vida, quanta inveja guardada em ti ..." (380-383).
72 Atenas em questão Atenas em questão 73

O conteúdo político da peça é claro. O grande problema que se põe consegue ser e fazer o que deve. No início, Neoptólerno é apresentado
para os gregos em Tróia é o mesmo grande problema que se põe para como alguém que, como todo jovem ateniense bem-educado, respeita
os atenienses em 409: como fazer com que uma guerra que durou o honroso e despreza o vergonhoso; mas também, como todo jovem
tantos anos encontre solução satisfatória? Os atenienses não podem ateniense bem-educado, quer não apenas ser excelente, mas sobressair-
evitar a derrota nas mãos de Esparta sem a cooperação de alguns daqueles se perante os outros, vencendo. A isso Ulisses é capaz de apelar quando
a quem prejudicaram injustamente no passado; os gregos não podem persuade Neoptólemo da necessidade de enganar habilmente se quiserem
ter esperança de derrotar os troianos sem a ajuda de Filocteto. Mas não obter o arco para os gregos. Ulisses é o que é na Odisséia: astuto, cheio
é apenas nesse sentido geral que Sófocles relaciona a ação da peça à de recursos, um mestre dos estratagemas, cujo comportamento é con-
situação de Atenas. Se os atenienses tivessem compreendido Édipo Rei trolado por um objetivo predominante, o de garantir a vitória aos gregos,
do modo que Knox sugere, poderiam tê-la percebido como, em parte, garantindo primeiro a posse do arco. Os bens de eficácia são reconhecidos
um ataque partidário à democracia de Péricles. Mas, no Filocteto, Sófocles como predominantes. Mas também para Filocteto, mesmo se de um
tem o cuidado de deixar claro que a peça é, não sobre as ações de um modo diferente.
partido, mas sobre o modo como todos os cidadãos atenienses, inclusive Filocteto foi reduzido, pelo extremo de sua privaçãq, a dedicar-se
ele, devem enfrentar as questões suscitadas por sua história comum. à sobrevivência por quaisquer meios disponíveis. No primeiro momento
Ele chega a isso através do modo como alude, na peça, ao seu próprio em que tiver oportunidade, está determinado a escapar da privação.
passado na vida pública anteniense. Seu único objetivo, além desse, é vingar-se dos que o fizeram sofrer.
Para ser um dramaturgo trágico ou cômico em Atenas era necessário, Filocteto é tão indiferente às necessidades dos gregos, quanto Ulisses
de qualquer forma, ser uma figura pública e política, mas Sófocles às suas.
tinha tido papéis adicionais. A peça é sobre um exilado deixado, contra Neoptólemo tem duas razões para concordar em fazer o que Ulisses
sua vontade, em Lemnos. Quem tinham os atenienses forçado a ficar ordena que faça. Ele deseja conquistar Tróia e também foi enviado a
em Lemnos? Os reféns de Samos em 441. E que stratégoi atenienses Lemnos por generais gregos que têm autoridade legítima sobre ele.
tinham feito isso? Péricles era seu líder, mas um de seus colegas era Entretanto, no início, diz que preferiria perder, tendo desempenhado
Sófocles, eleito, segundo diziam, devido a seu sucesso com Antigona. bem seu papel, a vencer, tendo tido um desempenho ruim. Há, por-
E, apesar de isso ter ocorrido muito tempo antes de 409, Sófocles tinha tanto, um reconhecimento inicial de que alguém pode ser kakós (mau
sido, em 413, um dos delegados especiais eleitos depois que a notícia - o oposto de agathós) e vencer. Mas se tivesse de ser agathós e kakós
do desastre em Siracusa alcançou Atenas. Assim, Sófocles, mesmo aos e perdesse, no que teria sido excelente? Talvez por não ter uma resposta
oitenta e sete anos, fala não contra os que estão no poder, mas como clara a essa questão - seus padrões são não mais do que os padrões
um dos que dividem o poder, que precisam saber como o poder deve periclianos convencionais de um jovem ateniense de classe alta, o tipo
ser usado. Mas não é apenas situando a ação da peça em Lemnos que de padrões pelos quais um Alcibíades teria sido educado - é que
a relaciona com a sua própria vida, enquanto figura pública. No final Neoptólemo hesita durante toda a peça, primeiro numa direção depois
da peça, os asclepíadas, os descendentes e seguidores de Asclépio na na outra. E a primeira evidência disso é o discurso com que Ulisses
arte da cura, prometem a Filocteto uma cura para sua chaga. O culto consegue vencer seus escrúpulos quanto a enganar Filocteto, um ato de
a Asclépio tinha sido estabelecido em Atenas antes de o santuário- persuasão que Ulisses confirma ao invocar três deuses: Hermes, o deus
templo na Acrópole ficar pronto para receber o deus; até que ficasse das rusas; Niké, Vitória concebida como um ser divino; eAtena Polias,
pronto, a casa de Sófocles tinha sido escolhida para ser a casa do deus, a Atena guardiã da cidade. Ulisses, assim, identifica os bens de eficácia,
e Sófocles, portanto, encontrou-se numa relação singular com os os bens da vitória com a causa de Atenas teologicamente entendida. E
asclepíadas. uma vez que o Filocteto é um drama essencialmente teológico, isso
não é irrelevante.
Já devemos ter aprendido com Karl Reinhardt (Sophocles, trad. H.
e D. Harvey da terceira edição alemã de 1947, Oxford, 1979) que a Quando, depois de enganar Filocteto pela primeira vez, Neoptólemo
tragédia central é a de Neoptólemo, que enfrenta dois conjuntos incom- muda de opinião (metanoia) em face do espetáculo do sofrimento de
patíveis de demandas e que, ao ceder a cada um por sua vez, não Filocteto, ele se torna um instrumento dos propósitos de Filocteto,
74 Atenas em questão Atenas em questüo 75

assim como antes tinha servido aos de Ulisses Neoptólemo agora vencional por volta de 409. A trama exige, não um desfecho arbitrário,
reconhece que, ao tomar o arco que merecidamente pertence a Filocteto através da intromissão do sobrenatural, mas a descoberta de um padrão
- foi uma recompensa de Héracles por suas virtudes de coragem e para a ação que os recursos meramente humanos foram incapazes de
amizade e um reconhecimento de sua excelência como arqueiro - agiu oferecer. O padrão ao qual Neoptólemo foi incapaz de apelar, ao longo
injustamente com relação ao merecimento. Assim, a justiça do mereci- de toda a peça, mas do qual precisava imensamente, revela-se um padrão
mento, a justiça concebida em termos de bens de excelência, por enquanto divino, e não apenas o padrão de um deus qualquer. "O deus -Héracles,
é devidamente reconhecida. Essa justiça exige que Neoptólemo devolva o deus cuja presença fundamental foi sentida ao longo da peça -
o arco. Mas ele e Ulisses não conseguem ir além de trocar afirmações aparece como o padrão visível em relação ao qual o homem é medido"
sobre suas visões da justiça, agora rivais e incompatíveis. Nenhum dos (pp. 190-191). E Héracles vem para conduzir Filocteto, Neoptólemo e
dois é capaz de apoiar suas afirmações em argumentos. Neoptólemo mesmo Ulisses de volta ao caminho planejado para eles por Zeus. É à
não pode argumentar, e não parece ter a intenção de fazê-lo, que é para justiça de Zeus que Sófocles apela para fornecer o padrão que os seres
o bem dos gregos como um todo que a justiça do merecimento não humanos não conseguem estabelecer por conta própria. E a justiça de
deveria ser violada e que os erros cometidos ao exilar injustamente Zeus, díke, é a ordem subjacente do universo, unicamente dentro da
Filocteto em Lemnos e ao tentar roubar seu arco deveriam ser agora
qual a justiça humana encontra sentido, propósito e justificação.
reparados.
Péricles, como observei anteriormente, disse na Oração Fúnebre Sófocles apela a essa concepção homérica fundamental da ordem
que os atenienses têm uma consideração especial por "aquelas leis que cósmica divinamente ordenada, para responder às questões que nem
são promulgadas em benefício dos que sofreram injustiça e pelas leis Homero nem seus personagens conseguiram sequer suscitar. Mas ao nos
não-escritas cujo transgressor incorre em desonra e vergonha" (II,37,3), remeter ao esquema homérico, Sófocles nos oferece uma reação, não
exatamente o tipo de desonra que Neoptólemo reconhece em seu uma resposta. A reconciliação de Filocteto, Ulisses e Neoptólemo depende
comportamento anterior em relação a Filocteto. De modo que não é do comando ad hoc de Héracles: neste esquema nada é ou pode ser
apenas Ulisses que é capaz de apelar para elementos da visão pericli- aprendido, quanto ao grau de generalidade em que devem ser avaliadas
ana; Neoptólemo também o faz. E o que o diálogo entre eles destaca as alegações rivais da justiça de eficácia ou da justiça do merecimento.
é a incoerência potencial dessa visão, que abriga modos potencialmente O fato de que essas alegações só podem ser avaliadas corretamente
incompatíveis de conceber as relações dos gregos entre si e os laços dentro de um esquema teológico faz, realmente, parte daquilo que Sófocles
que unem os atenienses. Mas, assim como uma das limitações da retórica diz aos seus concidadãos. E talvez o que ele queria que os atenienses
pericliana é que concepções rivais do que a justiça exige não encontram
avaliação racional dentro de seus parâmetros, essa também é uma das
- e nós - aprendêssemos é que não podemos tratar tais alegações em
geral, mas que devemos levar em consideração a voz de algum ser
limitações da tragédia sofocliana, isto é, uma limitação percebida a
divino. Entretanto, mesmo que tenha sido isso o que Sófocles quis
partir do nosso ponto de vista, e não do de Sófocles.
dizer, uma outra possibilidade deve ser investigada: a reação de Sófocles
Pois Sófocles oferece a Péricles o que, na perspectiva homérica, é inerentemente defectiva, não devido àquilo que diz, mas porque o
seria uma réplica conservadora, uma restauração de uma versão mais drama trágico não é o tipo de gênero que pode fornecer respostas
antiga da visão homérica. Ele, de fato, nos permite ver na transmutação adequadas ao tipo de questões sobre a justiça que o Filocteto põe, e
que Péricles faz de Homero a incoerência da imagem pericliana de apenas quando as questões sobre a justiça e o raciocínio prático são
Atenas e o modo como ela põe aos atenienses questões hs quais não postas conjuntamente, o que só pode ser feito dentro dos gêneros da
pode responder. Mas o próprio Sófocles trata essas mesmas questões pesquisa filosófica, é que qualquer um dos dois tipos de questões pode
como não tendo e não podendo ter resposta racional; a única solução ser respondido. Essas seriam as alegações de Platáo, mas apesar de a
só pode vir da aparição de um deus. crítica da poesia dramática ser essencial ao projeto platônico, ele não
Eurípides tinha popularizado o deus ex machina como recurso dirigiu seu ataque fundamentalmente contra a poesia dramática, mas
dramático. Mas Karl Reinhardt mostrou que, no Filocteto, o que se nos contra o cultivo sistemático dos bens de eficácia. Os oponentes que
apresenta não é apenas mais um exemplo desse dispositivo já con- escolheu para si eram alguns professores de retórica e alguns sofistas.
76 Atenas em questão
Atenas em questão 77

do partido oligárquico, que passaram a ser conhecidos como os Trinta


E tanto para compreender as argumentações de Platáo, como para Tiranos. O centro da resistência aos Trinta Tiranos era o Pireu, e é lá
compreender as teses sofísticas que têm sua própria importância que a conversa representada na República ocorre, uma conversa na qual
independente para a minha exposição, num sentido mais amplo, é os argumentos centrais de Sócrates implicam que é da natureza da
necessário que não passemos diretamente de Sófocles a Platão, mas que democracia preparar o caminho para a tirania. Dentre os personagens
antes consideremos mais um aspecto crucial do contexto no qual Platáo presentes: Céfalo, o velho rico, tinha sido amigo de Péricles; seus
conduziu sua disputa com os sofistas, isto é, a conduta dos atenienses filhos Lísias e Polemarco estavam, como democratas, condenados à
na Guerra do Peloponeso e sua subseqüente derrota. morte pelos Trinta Tiranos, e Polemarco foi de fato morto, sendo que
Platão, não apenas nos primeiros diálogos, mas também em tra- Lísias se tornou um líder na restauração da democracia; os irmãos mais
balhos mais maduros como o Menon e a República, retratou conversas velhos de Platáo, Glauco e Adamanto, que já tinham servido no exército
entre Sócrates e uma variedade de interlocutores, conversas que são em Megara, eram sobrinhos de Crítias, o autor de um poema em louvor
representadas como tendo ocorrido durante a Guerra do Peloponeso e da constituição de Esparta, sendo ele próprio o mais influente e o mais
que, na ocasião, tinham uma relação direta como os eventos da guerra extremo dos Trinta Tiranos; e Sócrates, que tinha obtido permissão dos
em curso. Assim, a crítica sistemática das posições dos professores de Trinta para permanecer em Atenas, tinha-se recusado a obedecer as
retórica é feita contra Górgias de Leontini no diálogo que leva o seu ordens ilegais de prender Leon de Salamina, arriscando-se a ser executado,
nome. Que papel teve Górgias na história de Atenas? Foi ele que veio e tendo sido executado em 399 com base nas acusações de líderes da
a Atenas em 427 como membro de uma embaixada de Leontini, a fim democracia restaurada. A República é, portanto, em parte, um diálogo
de persuadir os atenienses a intervir na Sicília, um pedido que foi atendido. entre aqueles que deveriam sofrer mortes injustas nas mãos dos
A primeira expedição à Sicília foi a precursora da expedição de 415 protagonistas tanto da oligarquia como da democracia; e deve ser lida
cuja derrota fragorosa fatalmente enfraqueceu o poder ateniense. Portanto, como um diálogo sobre por que a oligarquia e a democracia são, por
num sentido muito importante, a habilidade retórica de Górgias foi sua natureza, regimes políticos injustos. Mas de que maneira esses
uma das causas da derrota de Atenas. Quem eram os generais que fatos estão relacionados com os temas tratados por Tucídides, assim
inicialmente comandaram a primeira expedição? Caríades, que foi logo como o Górgias e o Laques estão, de modo tão palpável? Para re-
morto numa batalha naval, e Laques. Quem eram os generais que sponder a esta questão é necessário identificar o ponto de vista do
inicialmente comandaram a segunda expedição? Lâmaco, que morreu próprio Tucídides em relação aos eventos sobre os quais escreveu sua
logo, e Nícias. Portanto, num sentido muito importante, Laques e Nícias história.
contribuíram para a derrota de Atenas. E quem, no Laques, são os Três aspectos desse ponto de vista são cruciais. Primeiro, Tucídides
interlocutores de Sócrates, representados por Platão como incapazes de separa areté e inteligência, uma separação visível nas carreiras opostas
compreender não só a areré da coragem, mas também a relação daquela de Nícias e Alcibíades. O veredicto de Tucídides sobre Nícias, depois
areté com a areté como tal, sendo portanto deficientes em termos de de contar como se entregou aos siracusanos e foi executado por eles,
areté? Laques e Nícias.
foi que ele era, entre todos os gregos, o que menos merecia tal in-
Como no Górgias, Platão está propondo sua explicação daquilo que fortúnio "porque em toda sua vida, sua conduta tinha sido regulada
causou a ruína de Atenas. Em ambos os casos, as teses que questiona pela areté" (Tucídides VII, 86,5). Nícias tinha sido contra o projeto da
são teses propostas por Tucídides. Não estou querendo dizer, obvia- segunda expedição à Sicília, mas não teve a inteligência necessária
I mente, que estivesse referindo-se explicitamente à história de Tucídides, para convencer a assembléia do mesmo modo como Péricles tinha feito.
I apesar de essa possibilidade não poder ser excluída. O que eu quero Alcibíades tinha a habilidade de persuadir audiências difíceis de serem
dizer é que estava se situando diante de uma visão da história de Atenas, persuadidas, assim como Péricles, e Tucídides retrata-o exercitando
durante a Guerra do Peloponeso, que encontrou em Tucídides sua sua habilidade ao persuadir os soldados em Samos a não retomar a
I expressão lúcida e pormenorizada. E isso vale não apenas para diálogos Atenas e derrubar os Quatrocentos em 411 (VIII, 86,s-6). Mas Al-
I
tais como o Górgias e o Laques, mas também para diálogos posteriores cibíades não tinha as aretai de Péricles, que o tornariam capaz tanto de
como a República. A derrota de Atenas, em 404, tinha sido acompanhada exercitar um controle cauteloso, um respeito pelos limites, quanto de
pela queda da democracia e pelo governo dos extremistas pró-espartanos
'78 Atenas em questão Atenas em questão

reconhecer como sua realização individual se relacionava com a da


lr
a:+
apenas os que são derrotados. Tucídides, obviamente, traduziu esta
cidade. A falha dos líderes que sucederam Péricles, disse Tucídides, parte da Weltanschauung homérica em termos inteiramente seculares.
foi que visavam vantagens para si mesmos e não para a cidade. Péricles i
O que essa tradução nos oferece é uma concepção da justiça inteiramente
tinha combinado uma inteligência prática, que podia usar na manipu- j ' a serviço da eficácia, uma justiça para a qual o merecimento é irrelevante,
laçáo retórica ou na concepção de políticas, com aretai apropriadas. Mas a não ser quando aqueles que têm o poder, num certo momento, decidem
no retrato apresentado por Tucídides, essas características são apresentadas considerá-lo relevante. Náo há como apelar para além das realidades
como independentes, e o fato de Péricles possuir ambas não passa de
uma contingência. I
Em terceiro lugar, Tucídides estava principalmente preocupado com
Em segundo lugar, no mundo social, assim como Tucídides o repre- o lugar da retórica no mundo social e político. Ele considerava Péricles
senta, há e s6 pode haver a justiça que os fortes julgam de seu interesse o máximo em termos de realizaçáo retórica, e a retórica com a qual
sustentar. E isso vale para as cidades-estado, internamente, assim como estava envolvido era a retórica manipuladora empregada com tanto
para suas relações entre si. Quando aqueles que têm poder para fazê- sucesso por Péricles e sem qualquer sucesso por Nícias. Marc Cogan
10 consideram de seu interesse derrubar o regime de governo existente (The Human Thing, Chicago, 1981, especialmente capítulo 6) argu-
na sua própria pólis, partem para a guerra civil. Quando membros da menta com convicçáo que quando Tucídides afirmou que com sua história
mesma facçáo política têm o poder e o desejo de sobrepujar líderes o leitor poderia aprender náo apenas que eventos realmente aconteceram,
rivais, partem para a luta de facçáo. Náo é surpreendente que Hobbes mas também que tipo de evento acontecerá, de acordo com a realidade
tenha concluído de suas leituras de Tucídides que ou a justiça tem de humana (kata to anthropinon) (Tucídides I, 22,4), o que estava
ser imposta pelo poder ou não haverá justiça. Mas isso não implica que identificando como realidade humana subjacente era a conexão entre a
I o próprio Tucídides tenha sido um hobbesiano prematuro. Plutarco (Nicias
deliberaçáo retórica e a açáo política. Cogan sugere que é através dessa
29) conta-nos que, depois da derrota ateniense em Siracusa, alguns dos conexão, do ponto de vista de Tucídides, que a relação entre ações
atenienses escravizados conseguiram sua liberdade recitando passagens individuais e os projetos da pólis como um todo devem ser compreendidos.
das peças de Eurípedes. Em algumas dessas peças, principalmente as
Se isso é verdade, então é nessas deliberações públicas nas quais os
Troianas e Hécuba, a visão de justiça é notavelmente similar à de
indivíduos exigem, ou de seus concidadãos ou dos cidadãos de uma
Tucídides. E Peter Green comentou como as palavras finais do coro,
nas Troianas, seriam um epitáfio adequado à narrativa de Tucídides outra cidade, a adoçáo de uma política e náo de outra, que a forma do
i

dos episódios finais do desastre ateniense em Siracusa. Mas a dura raciocínio prático, tal como Tucídides o compreendeu, toma-se manifesta.
necessidade de que Eurípedes fala naquele coro é a necessidade da Através dos recursos da retórica, compreendida do modo como Péricles
ordem cósmica. Escrevendo sobre as Troianas, Hugh Lloyd Jones disse e Tucídides a compreendiam - retórica, isto é, de acordo com os
"...os gregos váo longe demais na sua vingança ... nós sabemos desde ensinamentos de Górgias -, os indivíduos fazem com que um tipo de
o começo que váo acabar em desgraça, como ocorre na tradição épica. açáo e não outro seja realizado. Uma vez que tal retórica deve excluir
A justificação de Zeus é, desde o começo, dura ..." (The Justice of Zeus, de seu âmbito qualquer avaliaçáo racional de fins ou de concepções
153). E Tucídides também pode ser lido como apresentando-nos uma rivais de justiça, como argumentei ao discutir o próprio Péricles, segue-
visão da ordem cósmica na qual aqueles que se permitem perseguir seu se que a conexáo fundamental que um retórico habilidoso tem de
t
próprio engrandecimento, sem o devido respeito pelos limites, encontram estabelecer entre si e sua audiência deve ser náo-racional. Ele não pode
I
o mesmo tipo de destino que infligiram aos outros. Assim, a natureza i oferecer à sua audiência qualquer explicaçáo racionalmente defensável
das coisas aparece, náo numa intervenção divina, como em Sófocles - f dos fins que, no seu ponto de vista, ele e eles devem, se forem racionais,
I
Tucídides sempre despreza os apelos à intervenção divina -, mas na L
perseguir; deve apelar a fins que ele e eles de fato já compartilham e
própria ordem dos fatos; e tal teologia era, a seu modo, tanto parte da i
a esperanças e temores definidos nos termos desses fins. Como membro
herança homérica como as crenças de Sófocles. Ela reflete uma intuição de uma comunidade sustentada por sentimentos compartilhados e pela
do Homero da Ilíada, mas não de seus personagens, de que ninguém coincidência de interesses, o retórico apela para os outros membros da
~
11
I
1
vence e continua vencedor. A longo prazo, seremos todos derrotados,
e a perspectiva de morte infame ou escravidáo aguarda a todos, não
mesma comunidade. Dentro desse contexto, obviamente, o retórico
raciocinará sobre meios, argumentando que, dado que tal fim comum
80 Atenas em questão

é seu e da audiência, eles deveriam adotar tal meio (como Alcibíades


argumentou ao conclamar a aprovação da expedição siciliana) ou que,
dado que tais são os fins limitados que a audiência possui, deveriam
perseguir seu fim comum apenas em tal modo limitado (como os atenienses
foram forçados a argumentar depois de suas grandes perdas na Sicflia). Capítulo V
A preocupação do próprio Tucídides com as questões humanas é,
obviamente, uma preocupação que o leva a reforçar as diferenças entre
aquilo que o orador, assim como a audiência, tinha a intenção de realizar,
através da implementação de suas decisões deliberativas, e o que realmente PLATÁO E A PESQUISA RACIONAL
aconteceu. Aqui a fortuna (tyché) e especialmente a má-fortuna (dystychia)
começam a fazer parte das questões humanas. Mas o que ele também
nos mostra é como uma compreensão particular do papel da deliberação
nos assuntos humanos pode oferecer uma explicação causal das ações
humanas e de seus resultados.
Atribuí a Tucídides três teses: areté é uma coisa e inteligência prática
Ao fazer isso, Tucídides propôs uma versão paradigmática da expli- outra bem diferente, e sua conjunção é mera coincidência; o grau e o
cação da ordem social e das relações humanas, que deve ser pressuposta tipo de justiça que pode haver na ordem social são aqueles que os
por qualquer exposição e defesa racional do que está implicado na fortes e poderosos permitem que haja; e a deliberação retórica, tal
adesão aos bens de eficácia cooperativa e à concepção correspondente como praticada por aqueles que aprenderam com Górgias e seus discípulos,
de justiça. Defensores posteriores dessa adesão apelaram para outra é o melhor modo para os seres humanos responderem às questões relativas
versão, mais tarde historiadores e defensores modernos da mesma adesão ao que se deve fazer. O objetivo dominante da filosofia política madura
frequentemente apelam para o que consideram ser as descobertas das de Platão é negar todas essas três teses através de uma teoria que
ciências sociais. Mas duvido que algum historiador posterior ou cientista revele tanto as conexões entre elas como as conexões com as teses
social moderno tenha alguma contribuição substancial para acrescentar, pelas quais deseja substituí-las. O que liga as teses de Tucídides é uma
nesse domínio, Aquilo que podemos aprender com Tucídides. Assim, a única pressuposição: os bens de eficácia devem prevalecer sobre os
visão de Tucídides da ordem social e das relações humanas deve ser bens de excelência e esses serão valorizados apenas à medida que os
discutida por qualquer um que empreenda o questionamento das alegações que valorizam os bens de eficácia permitirem que o sejam. Platão nega
implícitas na adesão aos bens de eficácia cooperativa. Portanto, não é esse pressuposto, propondo pela primeira vez uma teoria bem-articulada
surpreendente que a extensa argumentação de Platão na República possa sobre o que realmente é a excelência humana, e porque é racional, à
tão facilmente ser lida como réplica a Tucídides. luz dessa teoria, sempre subordinar os bens de eficácia aos bens de
excelência.
A negação de Platáo da primeira tese de Tucídides, que a areté é
uma coisa e a inteligência prática outra bem diferente, baseia-se em
argumentos concebidos para mostrar que sem areté não se pode ser
racional nem em termos teóricos nem em termos práticos, e que sem
racionalidade não se pode ter areté. Portanto, a concepção que Tucídides
tem de Nícias, como alguém que genuinamente possui areté, era
simplesmente um erro, um erro identificado no Laques, quando Nícias
aparece em confusão, não apenas quanto à virtude da coragem, mas
Quanto à natureza da virtude em geral. E uma parte fundamental da
visáo de Platão é que não compreender o que é a virtude impede alguém
de ser virtuoso.
Platão e a pesquisa racional
82 Platão e a pesquisa racional

. fim, derivadas da empeiría. Do ponto de vista de Platão, ninguém pdde


Obviamente, não apenas Nícias falha, de acordo com os padrões de dominar uma techné se não compreender de que modo o fim a que essa
Platão. Platão também argumentou que Péricles e seus predecessores
na construção do império ateniense, tais como Temístocles, Miltíades
/ techné específica serve é um bem, e essa compreensão exige um
conhecimento dos bens e do bem em geral. Como pode tal conhecimento
e Cimon careciam de virtude; mais especificamente, careciam de ser adquirido?
sophrosyne e dikaiosyne (Górgias 503c, 515-517 e 519a). Qual era então
a justiça, a dikaiosyne, que eles não tinham? A rejeição de Platão da Ao responder essa pergunta, Platão tinha tanto de se apoiar naquilo
visão de Tucídides, de que a justiça não é nada mais do que aquilo que que tinha aprendido de Sócrates como transcender as limitações do
os fortes fazem dela, preserva em grande parte a concordância com método socrático. De Sócrates, herdou um uso negativo da argumen-
Tucídides quanto ao que realmente acontece. O que as pessoas geralmente tação dedutiva, assim como desenvolvida no seu método de refutação
consideram ser a justiça é, na verdade, aquilo que os fortes pensam que (elénchos), mas também um padrão de verdade. Como Sócrates,
seja. E a justiça, retamente entendida, requer um tipo de pdlis acreditava que o primeiro passo para a verdade tinha de ser o uso de
extremamente improvável de poder ser construída. De forma que, na elénchos para mostrar a insustentabilidade de nossas crenças preexis-
visão de Platão, a justiça está ausente do mundo social e político, de tentes. Pois, ao envolver seus interlocutores em inconsistências em
maneira muito mais radical do que em Tucídides. Entretanto, o ponto relação à natureza da coragem, da piedade, da justiça ou do que quer
de vista de Tucídides de qual é o lugar da justiça no mundo expressa que fosse, Sócrates mostrava-lhes que não apenas nem tudo que acredi-
uma ilusão, de um ponto de vista platônico. tavam em relação àquele assunto podia ser verdade, mas também que
não tinham meios para decidir que partes daquilo que acreditavam
Em primeiro lugar, aqueles que carecem de justiça não apenas falharão eram falsas e que partes, se alguma, eram verdadeiras. Sócrates, assim,
em termos de excelência, pelo padrão da virtude genuína, mas também evitava a exigência imposta sobre o retórico pericliano de só ser capaz
em termos de eficácia, uma incapacidade que eles próprios serão inca- de argumentar a partir de premissas previamente aceitas pela audiência,
pazes de compreender corretamente. Políticas injustas, oligarquias uma exigência que reaparece na história posterior, tanto da retórica
timocráticas ou plutocráticas, democracias ou tiranias são arruinadas como da filosofia, numa variedade de formas, a última sendo o apelo
devido à sua injustiça e à injustiça de seus governantes. Aí reside a a intuições comuns, tão básica para certos tipos recentes de filosofia.
causa do tipo de fracasso que Tucídides atribuíra à tyché. Dessa forma,
a justiça e a virtude têm uma eficách causal no mundo social e político, Entretanto, se não podemos começar, sem questionamentos, a partir
de uma maneira bastante incompatível com a visão de Tucídides. daquilo que já acreditamos, como podemos começar? A resposta so-
crática é a seguinte: pela tese de qualquer um, nossa própria ou de
A terceira negação de Platão envolve tanto a natureza da retórica de qualquer pessoa indiferentemente, contanto que seja rica o suficiente
Péricles como a alternativa a ela. Porque a retórica de Górgias é um em conteúdo e formulada de modo a suscitar tentativas sérias de refu-
tipo de manipulação não-racional, seu uso torna os cidadãos piores. O tação. Qualquer tentativa de refutação, a partir de qualquer ponto de
retórico tem de apelar para sua audiência; tem de conseguir sua aprovação vista, deve ser conduzida tão longe e tão sistematicamente quanto os
para o que quer. Assim os lisonjeará e jogará com suas esperanças e participantes da pesquisa forem capazes. A tese que melhor resistir às
temores, de modo a fortalecer sua irracionalidade. Qual é a alternativa? tentativas de refutação - caracteristicamente, é claro, tal tese terá de
É a retórica usada por aquele orador que é, ele próprio, um homem ser modificada e reformulada à medida que enfrentar uma variedade de
bom, e cuja retórica é uma techné genuína (Górgias 506d), diferentemente objeções -é a tese que merece nossa adesão racional. O que é verdadeiro
da mera empeiría (Górgias 500e) da retórica pericliana. Quando Platão em relação a uma tese verdadeira é que ela é capaz de resistir a qualquer
contrasta techné e empeiría, através desse contraste mesmo, ele critica tipo de objeção -e considerar uma tese verdadeira significa comprometer-
a assimilação dessas duas noções não apenas pelo próprio Péricles se em sustentar que ela nunca será refutada. Portanto, "é verdadeiro",
(Tucídides I, 162,5-9), mas, em termos mais gerais, pelos oradores se predicado verdadeiramente, é verdadeiro para todos os tempos e
relatados por Tucídides (Lowell Edmunds, Chance and Zntelligence in lugares: "É verdadeiro" é um predicado atemporal. Assim Sócrates diz
Thucydides, 26-27). Platão e Péricles diferem em suas concepções de a Cálicles, argumentando que a razão está do seu lado (Gdrgias 509a-
techné. Do ponto de vista de Péricles, a techné é uma habilidade, ou b): "Se você, ou alguém ainda mais vigoroso, não for capaz de romper
um conjunto de habilidades, baseadas em generalizações do tipo meio-
84 Platão e a pesquisa racional Platão e a pesquisa racional

(as cadeias de argumentaçáo que sustentam minha posiçáo), entáo ninguém Assim, o livro I define aquilo a que Platáo se opõe basicamente. O
poderá falar corretamente sobre esse assunto de um modo diferente foco das conversas entre Sócrates e Trasímaco é a concepção de rechné.
...
daquele com que falo agora assim como nesta ocasião, eu nunca Para Trasímaco, assim como para Péricles, uma techné é uma habili-
encontrei alguém que fosse capaz de afirmar uma posiçáo alternativa dade ou um conjunto de habilidades igualmente disponível para servir
e não cair no absurdo. Portanto, suponho que as coisas sejam como eu aos interesses de qualquer pessoa inteligente e experiente o suficiente
disse ..." Entretanto, é de se observar que Sócrates consegue conciliar para empregá-la. Para o Sócrates platônico, como observei anteriormente,
essas afirmativas com uma confissáo nada irônica de que "eu náo sei a techné é uma habilidade ou conjunto de habilidades dirigidas, em seu
qual é a verdade sobre estes assuntos" (509a5, uma frase inserida entre exercício, ao serviço de um bem, um bem do qual o agente tem de ter
as duas primeiras seções citadas acima). Ele não argumenta que sabe, conhecimento e compreensáo genuínos. Mas, no livro I, o que Sócrates
supostamente porque considera que uma alegação de conhecimento afirma tem de desenvolver contra a agressão retórica de Trasímaco é nada
ou implica que a tese em questáo está acima de qualquer possibilidade mais do que aquilo que a dialética do elénchos oferece, e, por duas razões
de refutação, e nenhuma tese estabelecida através dos métodos da dialética diferentes, essa versáo da dialética náo dá a Sócrates o que ele precisa
socrática, tal como compreendida no Górgias, pode jamais ser posta no seu encontro com Trasímaco. A primeira é que não há, para as
acima de qualquer possibilidade de refutaçáo (sobre isso, veja-se Gre- partes em oposição, pontos de contato verdadeiros, padrões comuns
gory Vlastos, "Introduction: The Paradox of Socrates", The Philosophy aos quais apelar. Cada um, em sua prática conversacional, exemplifica
of Socrates, ed. Gregory Vlastos, Notre Dame, 1980, 1-21, esp. 10-11). sua própria concepçáo de sua própria techné e é correspondentemente
Se, portanto, Platão não tivesse avançado mais do que o Sócrates do indiferente ao que é dito pelo outro. A segunda razão é que a dialética
Górgias (e eu suponho, apesar da polêmica acadêmica sobre o assunto, do elénchos é inerentemente incapaz de oferecer aquilo que o Sócrates
que o Górgias é um dos Últimos diálogos nos quais Platáo nos dá uma platônico agora precisa oferecer, isto é, uma concepçáo racionalmente
visão histórica precisa dos pontos de vista de Sócrates), também deveria fundada dos bens e do bem que pode ter o estatuto de conhecimento.
ter posto o conhecimento genuíno, por contraposiçáo 2 crença Não é surpreendente que o livro I termine sem chegar a uma conclusáo,
racionalmente fundada, como estando além do âmbito da dialética. O e, realmente, chegar a uma conclusáo decisiva era, evidentemente, o
que faz, entáo, com que Platáo, na República, considere o conhecimento propósito de Platáo ao escrever o livro.
um estado da alma que pode ser alcançado através da prática da dialética?
Uma primeira diferença entre o livro I e o episódio dramático dos
A República desenvolve-se dramaticamente. Em sua estrutura livros 11-V é a diferença de caráter entre Trasímaco, por um lado, e
dramática, há quatro episódios sucessivos, três dos quais recebem sua Glauco e Adamanto por outro, nas suas reações a Sócrates. No Górgias, .
forma do agón. O primeiro desses ocupa o livro I. Onde Tucídides Platão tinha deixado claro que o sucesso no empreendimento dialético
tinha retratado encontros agonísticos entre retóricos rivais, Platáo re- exige certas virtudes iniciais de caráter, virtudes que tornam alguém
trata um encontro entre Sócrates e os protagonistas sucessores do ponto capaz de questionar e refutar honesta, cândida e cuidadosamente. Glauco
de vista pericliano: Céfalos, o amigo de Péricles, Polemarco, que reitera e Adamanto satisfazem a essas exigências, mas Trasímaco não. Os
a posiçáo de Ulisses no Filocteto de que a justiça consiste em fazer o livros 11-IV contam a história da refutação por Sócrates da visáo da
bem aos seus amigos e mal aos inimigos; e, finalmente, Trasímaco, um justiça que esboçam e defendem, na primeira parte do livro 11, uma
sofista e professor profissional de retórica da Calcedônia. O único de visáo que náo apenas parece ter sido a mesma pressuposta por Trasímaco,
seus trabalhos que sobreviveu foi a abertura de um discurso escrito, mas que fornece uma justificação racional para a visão da justiça adotada
para ser pronunciado na assembléia ateniense (por uma outra pessoa - por Tucídides, de acordo com a qual os fortes se livrariam da justiça
náo sendo um cidadáo, Trasímaco não poderia se dirigir à assembléia) se pudessem; apenas suas limitações de força obrigam-nos a entrar em
que é pericliano e tucididiano no modo como contrasta competência acordo com outros e a concordar com um conjunto de regras que fornece
prática e acaso. E Lowell Edmunds (op. cit., 14-15) mostra o quanto o a cada um a melhor maneira de garantir o que quer, de um modo
que Platáo diz sobre a habilidade retórica de Trasímaco no Fedro Compatível com uma proteçáo adequada contra ser vitimizado por outros
assemelha-se ao que Tucídides diz dos próprios talentos retóricos de empenhados em satisfazer seus próprios desejos. A justiça inicialmente
Péricles. defendida por Glauco e Adamanto é a justiça da eficácia.
Platão e a pesquisa racional Platão e a pesquisa racional 87
86

como tal padrão é ou deve ser construído, a partir de materiais tirados


Contra isso, Sócrates desenvolve as noções paralelas de uma pólis
das necessidades, satisfações e preferências humanas, mas todas essas
e de uma psyché em boa ordem. A pólis que está em boa ordem é aquela
discordâncias requerem a rejeição da visão de que há ou poderia haver
na qual cada cidadão pode aperfeiçoar-se fazendo o tipo de atividade
algum padrão de ação correta que poderia ser contrário Aquilo que os
para a qual sua alma é particularmente apropriada. A psyché que está
seres humanos desejam em geral. Um contraponto a essa negação é a
em boa ordem é aquela que consegue aperfeiçoar-se na sua atividade,
crença de que as necessidades, as satisfações e as preferências humanas
porque a razão fornece-lhe o conhecimento de seus bens, e o amor que
fornecem uma base empírica para a moralidade. Sendo elas anteriores
a motiva é o amor pelos objetos da razão - segundo Platáo, a razão
a qualquer conjunto de julgamentos e discriminações morais e
tem o poder de levar à ação - e não pelos objetos da paixão ou do
independente deles, fornecem boas razões para adotar um tipo de padrão
apetite. O conceito subjacente de bondade tem como foco uma concepção
para fazer tais julgamentos e discriminações e não outro.
de excelência aperfeiçoada num tipo de atividade específica, de um
tipo particular de pessoa. Uma virtude é uma qualidade de caráter Utilitaristas, positivistas, pragmatistas e seus herdeiros contemporâneos
necessária para a realização de um certo bem. E a justiça é a virtude procedem, a partir desses pontos iniciais, de uma maneira muito dife-
central porque, tanto na psyché como na pólis, apenas ela pode conferir rente do modo como os sofistas do século V procediam - e, cer-
a ordem que permite com que as outras virtudes possam fazer seu tamente, não concordam uns com os outros. Mas há dois aspectos desses
trabalho. O que é a desordem na psyché? pontos de partida comuns que são igualmente cruciais para o encontro
É a busca da satisfação dos apetites e das emoções em função da entre Platáo e os sofistas, assim como para as controvérsias modernas.
própria satisfação, em vez da satisfação disciplinada pelas virtudes da O primeiro desses pontos nos remete à retirada rancorosa, maliciosa e
temperança, da coragem e da justiça, de forma que os apetites e as mau-humorada de Cálicles da discussão com Sócrates no Górgias e ao
emoções sejam apropriadamente transformados. Ao caracterizar essa quase absoluto silêncio de Trasímaco durante nove livros da República.
busca como incompatível com a realização do bem, que é a perfeição Sócrates, de fato, de um certo modo, refutou as teses centrais de Cálicles
dos agentes humanos enquanto agentes, Platáo não apenas propõe um no Górgias e de Trasímaco nos livros I1 a IV da República, mas o fez
esquema da primeira justificação teórica sistemática dos bens de ex- argumentando a partir de premissas e baseado em pressuposições que
celência, por oposição aos bens de eficácia, mas também define a diferença Cálicles e Trasímaco não apenas rejeitam, mas que também nem eles
mais fundamental entre si e Sócrates, por um lado, e todo o movimento nem qualquer seguidor do movimento sofístico poderia ter boas razões
sofístico por outro. para aceitar. As premissas e pressuposições da visão platônica certamente
implicam a falsidade de qualquer visão sofística e vice-versa. Mas
O movimento sofístico teve duas reputações diferentes no mundo nenhuma das duas visões consegue fornecer razões suficientes para que
moderno. Até o início do século XIX, as visões de Platão dos ensinamentos algum partidário sofisticado da visão oposta pudesse admitir que uma
dos sofistas individuais e seu veredicto sobre suas argumentações e sua refutação foi feita. Platão não dá qualquer evidência - exceto talvez
influência predominaram amplamente. As conotações negativas de pelos ambíguos e prolongados silêncios de Trasímaco -de que reconhecia
'sofismas', na linguagem corrente, refletem essa predominância a partir este aspecto dos argumentos dos livros I1 a IV. Mas ele é de importância
do sCculo XIV. Mas com a publicação da History of Greece, de George fundamental para a avaliação do método dialético desses livros,
Grote, que apareceu em dez volumes entre 1846 e 1856, uma perspectiva compreendidos como uma exemplificação e extensão dos argumentos
bastante nova sobre a história do pensamento e da política gregas foi
do Górgias referentes à verdade e à justificação.
proposta. Grote era um discípulo do velho Mil1 e amigo do mais novo,
um utilitarista e um partidário da democracia liberal, e uma série de A tese que sustenta aqueles argumentos é a de que devemos nossa
utilitaristas, positivistas e pragmatistas reconheceu nos sofistas seus adesão racional à afirmação ou conjunto de afirmações que melhor
predecessores. Pelo menos em dois sentidos estavam certos. resistem à refutação, até o momento. Mas o que acontece se, em re-
lação a um mesmo assunto, encontramos dois conjuntos de afirmações
Os sofistas anteciparam seus apologistas modernos ao negar que se
mutdamente incompatíveis, cada um sendo capaz de resistir à refutação
possa encontrar qualquer padrão de ação correta que seja independente
em seus próprios termos, nenhum dos dois conseguindo refutar o outro,
das necessidades, satisfações e preferências dos seres humanos individuais.
Há, certamente, espaço para um grande número de discordâncias sobre em termos que seriam aceitáveis para o protagonista do outro? Esta é
88 PIatão e a pesquisa racional Platão e a pesquisa racional

uma questão que nunca foi posta por Platão, mas 6 importante inves- emoções e desejos, considerá-los apropriados ou inapropriados, em um
tigar que elementos para uma resposta, se C que há algum, são propos- tipo de situação e não em outra, significa sempre revelar um compromisso
tos nos livros finais da República. E é importante, ao caracterizarmos com um conjunto de normas de justificação e não com outro. Mas tal
a filosofia moral contemporânea, reconhecer como a inabilidade de compromisso é sempre com alguma posição moral avaliativa distinta e
Sócrates e Platão, por um lado, e dos sofistas, por outro, em produzir não com outra. Pois as normas de justificação que governam as emoções
aquilo que seus oponentes pudessem reconhecer como uma refutação e os desejos e sua interpretação encarnam ou pressupõem uma ordenação
de sua posição espelha-se na inabilidade dos partidários de filosofias hierárquica de bens e males. Portanto, num estágio particular do desen-
morais opostas contemporâneas em resolver suas discordâncias. volvimento histórico de uma cultura particular, os padrões estabeleci-
dos de emoção, desejo, satisfação e preferência só serão adequada-
Um segundo aspecto da discordância entre Platáo e os sofistas, que mente compreendidos se forem vistos como expressão de alguma posição
é igualmente relevante para as disputas contemporâneas, refere-se ao moral avaliativa distinta. As psicologias, assim compreendidas, expressam
apelo às necessidades, satisfações e preferências. Quando descrevi e pressupõem moralidades.
brevemente a psicologia homérica da ação humana no capítulo 11, observei
que em culturas diferentes os desejos e as emoções são organizados Disso não se segue que tais padrões de emoção, desejo, satisfação
diferentemente e que, portanto, não há uma única psicologia humana e preferência, seja em indivíduos ou em grupos sociais ou culturais,
invariável. Agora devo acrescentar que formas diferentes de organização não possam ser tratados separadamente de seus fundamentos avaliativos,
psicológica da personalidade pressupõem julgamentos avaliativos e morais como algum tipo de dado não-moral, natural, pré-cultural. As paixões,
diferentes. Necessidades, satisfações e preferências nunca aparecem na assim entendidas, tornam-se aquilo em cujos termos as normas e as
vida humana como itens meramente psicológicos, pré-morais, aos quais avaliações são justificadas, elas mesmas estando além da justificação,
podemos nos referir como se nos fornecessem informações neutras em porque vistas como parte da natureza. E os bens podem, então, ser
meio a alegações morais rivais. Por que não? definidos em termos da satisfação do desejo, seja de cada indivíduo
particular, seja do povo em geral. É assim que muitos filósofos morais
Em todas as culturas, as emoções e os desejos são governados por tipicamente modernos compreendem a avaliação, e foi assim que seus
normas. Aprender as normas, aprender como reagir às emoções e desejos ancestrais sofistas a compreenderam. O que os membros de nenhum
dos outros, e aprender o que esperar dos outros, se apresentarmos certos dos dois grupos compreenderam, entretanto, é que ao conceitualizar e
tipos e graus de emoção ou desejo, são três partes de uma única e compreender as paixões de um modo e não de outro, ao tratar as paixões
mesma tarefa. Aquilo que as normas governam é um conjunto de relações como parte da natureza, definidas independentemente da cultura e não
de três termos: um tipo ou grau particular de reaçüo emocional ou de como parte da cultura, já estavam adotando uma posição avaliativa
aspiração por satisfazer um desejo é justificado em tais situações quando particular, derivada da compreensão da natureza que sua cultura tinha.
apresentado por tal tipo de pessoa exercendo determinado papel social.
Se não sei como essas relações são governadas por normas, não Por causa disso, as questões que separavam Platão e os sofistas não
compreenderei, por exemplo, por que os outros reagem como reagem podem ser resolvidas através do recurso a considerações psicológicas
àquilo que julgam ser minha raiva injustificada ou o que é que torna empíricas. O Sócrates platônico e os sofistas alegam que sua própria
sua indignação justificada diante de minha raiva e, portanto, aceitável, concepção da justiça está de acordo com a natureza (katá physin). Mas
para as pessoas em geral, de um modo em que minha raiva não o é. do ponto de vista platônico a natureza de cada tipo de coisa deve ser
Tampouco poderei compreender por que certas aspirações a satisfazer especificada de acordo com o bem na direção do qual ela se move, de
certos desejos serão consideradas justificadas, se expressas por pessoas forma que a caracterização adequada da natureza humana e das paixões,
que exercem certos papéis sociais, mas não por outras. Isto quer dizer como parte da natureza, requer a referência àquele bem; enquanto, do
que, quando os desejos e as emoções são compreendidos nos contextos ponto de vista sofístico, a natureza à qual se refere é como as coisas
de interação e de interpretação constituídos por culturas particulares, são independentemente e antes de toda avaliação. Do ponto de vista
torna-se evidente que só podem funcionar como funcionam, se platônico, a natureza deve ser conceitualizada a partir da perspectiva
caracterizados pelos termos fornecidos por um conjunto específico de do melhor que a cultura humana consegue alcançar; do ponto de vista
normas de justificações. Portanto, apresentar um padrão particular de sofístico, a cultura deve ser compreendida como parte da natureza física.
90 Platão e a pesquisa racional Platão e a pesquisa racional

Ao caracterizar os pontos de vista opostos dessa maneira, nos termos Empenhaar-se na pesquisa intelectual náo significa simplesmente
da antítese moderna entre natureza e cultura, em vez de, ou melhor, propor teses e aderir racionalmente às teses que até agora resistiram à
assim como nos termos da antítese grega entre natureza e costume, refutaçáo; significa compreender o movimento que leva de uma tese a
entre physis e nómos, eu obviamente incorro no risco de ser outra, como um movimento rumo a um tipo de lógos que revelará como
anacronicamente malcompreendido. Mas basta apontar o perigo para as coisas sáo, não em relaçáo a algum ponto de vista, mas em si mesmas.
evitá-lo, e vale a pena fazê-lo, a fim de enfatizar a continuidade dos E a concepçáo do que cada tipo de coisa é como tal não apenas dá uma
debates dos séculos V e IV em relaçáo aos conflitos que são seus herdeiros direçáo à pesquisa, uma direçáo de que ela careceria se náo a tivéssemos,
modernos. Em ambos os casos, a dificuldade em resolver tais dis- mas também nos dá um recurso para corrigir e reformular nossas teses
cordâncias racionalmente surge de seu caráter sistemático e abrangente. sucessivas, à medida que aspiramos passar das hipóteses à afirmaçáo
incondicional. Portanto, o termo e o télos da pesquisa do que é a justiça
Desse modo, a dificuldade que se põe para o método dialético, tal
como elaborado no Górgias e praticado nos livros I1 a IV da República, têm de ser uma pesquisa da justiça em si, do eidos de todas
se acentua. Independentemente do sucesso com que um conjunto de exemplificações e elucidações parciais e unilaterais. A teoria das formas
afirmações - uma visão da justiça, por exemplo - resiste à refutaçáo, é fundamentalmente uma teoria da pesquisa, uma teoria cujo
parece que só consegue fazê-lo baseado em suas próprias suposições desconhecimento, por parte dos que se empenham na pesquisa, leva
particulares; e, como já vimos, baseado num conjunto alternativo de necessariamente ao fracasso, porque não compreenderáo adequadamente
suposições, um conjunto de afirmações rivais e incompatíveis pode o que estáo fazendo. Como isso ocorre?
igualmente resistir à refutaçáo. Para transcender essa limitação do método Uma asserçáo central, de pelo menos alguns sofistas, era: o que é
dialético, tal como foi elaborado até aqui, Platáo teria de propor um verdade é simplesmente o que parece ser verdade para alguém. '6' e
modo de chegar a conclusões que as libertasse da dependência de qualquer 'é verdadeiro' devem sempre ser reinterpretados redutivamente como
grupo particular de suposições. E é assim que ele próprio define sua
querendo dizer nada mais do que 'parece ser assim para tais pessoas'
tarefa no final do livro VI (511b-c), e com isso um novo âmbito para
a dialética. A dialética deve ser a ciência do inteligível e como tal deve ou 'parece ser verdadeiro para tais pessoas7. Toda afirmaçáo é feita de
fornecer uma nova fonte de racionalidade. algum ponto de vista, e qualquer tentativa de falar de modo a superar
a relatividade e a unilateralidade está predestinada ao fracasso. Assim
O novo ponto de partida para a dialética, construído de modo a náo também argumentam alguns pragmatistas e nietzschianos modernos.
deslocar seu antigo ponto de partida para um emaranhado de discordâncias Um tipo de resposta começaria por conceder, imediatamente, que pode
e refutações, mas de modo a complementá-10, é uma concepçáo do muito bem ser que não haja como isentar-se das parcialidades e
objetivo da pesquisa. Tal como compreendido no Górgias, o fracasso unilateralidades de momentos, lugares e posições sociais e culturais
na dialética seria de dois tipos: alguém pode falhar se propuser uma particulares, que toda tese s6 pode ser proposta a partir de um ponto
tese que já sucumbiu à refutaçáo; ou pode ainda falhar se defender sua de vista particular. Mas a resposta deve ainda acrescentar que, se náo
tese de tal modo que ela, e ele, s6 consigam escapar à refutaçáo, fechando-
houvesse mais nada a dizer sobre a questão, seríamos incapazes de
-se sobre si mesmos, presos num círculo estreito de consistência, do
distinguir entre dois modos distintos de proceder na pesquisa.
qual são excluídos todos os contra-exemplos e objeções possíveis, através
de alguma definição inicial. Para evitar esse último risco, é necessário Consideremos dois resultados possíveis diferentes do exame
estruturar suas teses de modo que permaneçam táo abertas à refutaçáo retrospectivo de uma pesquisa em curso. Pode ser que tal exame revele
quanto a adequaçáo da formulaçáo o permita: isto é, de modo que que, apesar de várias teses terem sido propostas e defendidas em várias
possamos ter tantas oportunidades quantas for possível para descobrir formulações e reformulações, em seguida refutadas e abandonadas, para
se são falsas ou náo. E o que queremos saber é realmente se sáo falsas serem substituídas por outras, nenhuma direção geral ainda tenha emergido.
ou náo, e não simplesmesnte se sáo falsas ou não deste ou daquele A passagem de uma tese ou grupo de teses a outra não resulta em
ponto de vista, ou nesta ou naquela circunstância, ou se exemplificadas progresso algum. Mas pode também ocorrer que, ao contrário, um exame
deste ou daquele modo. Essa concepçáo do falso como tal é fundamen- retrospectivo mostre náo apenas um movimento sem direçáo, mas um
tal na concepçáo platônica da racionalidade, justamente porque contraponto progresso apontando para um objetivo. Que características deveria o
da concepçáo da verdade como tal. último possuir e o primeiro náo? Quatro parecem ser cruciais.
92 Platão e a pesquisa racional Platão e a pesquisa racional 93

Primeiramente, os últimos estágios da pesquisa teriam de pressupor estágios fosse tomado pelo termo da pesquisa. Pois cada um desses
as conclusões dos estágios iniciais. Com isso, não quero dizer que nos estágios terá sido marcado tanto por uma intuição cada vez menos
estágios finais, aquilo que inicialmente tinha sido considerado como parcial como, no entanto, por uma unilateralidade contínua. Tal
conclusão teria sempre de ser confirmado. Mas que pelo menos alguns unilateralidade s6 será ultrapassada quando atingirmos o ponto de vista
dos estágios finais nos permitiriam uma posição, a partir da qual do término da pesquisa, isto é, uma concepção final e completamente
pudéssemos identificar e caracterizar as conclusões dos estágios iniciais, adequada da arché. Adotar essa visão do progresso na pesquisa racional
de um modo tal que não teria sido possível naquele momento. E seriam implica, necessariamente, sustentar que alguém pode finalmente isentar-
essas conclusões, assim caracterizadas, que o estágio final teria de -se da unilateralidade de um ponto de vista? De modo algum. Essa
pressupor para poder avançar na pesquisa. compreensão do progresso na pesquisa racional é consistente tanto com
a visão de que, ao atingirmos o ponto de vista de uma concepção
Em segundo lugar, onde, num estágio inicial, não se conseguiu re- completamente adequada da arché, podemos realmente atingir a isenção
solver um impasse que então era realmente insolúvel, deve ser possível, final de tal unilateralidade ou parcialidade, como com a visão oposta
em algum estágio posterior, propor uma explicação tanto de por que o e incompatível segundo a qual isso não é possível. Se a última é ver-
impasse ocorreu quanto de por que ocorreu naquele momento e com os dadeira, segue-se que, apesar de alguém poder definitivamente progre-
recursos então disponíveis. Assim, os estágios finais fornecem uma dir em direção ao acabamento final da pesquisa racional, esse termo se
teoria do erro e da falsidade que explica a insuficiência dos estágios situa num ponto que não pode ser alcançado. Desse modo, seríamos
iniciais. salvos da unilateralidade de todo ponto de vista, pelo progresso da
Em terceiro lugar, deve tornar-se possível propor, em estágios pos- pesquisa; seríamos ainda guiados por uma concepçáo do que seria
teriores, uma concepção do bem da pesquisa sucessivamente mais compreender as coisas tal como são absolutamente, e não apenas tal
adequada. Não compreendo por "mais adequada" simplesmente uma como são em relação a um ponto de vista, mesmo se tal compreensão
caracterização conceitualmente mais rica e mais pormenorizada, mas final não é, de fato, atingida.
também uma caracterização que permita à pesquisa ser melhor dire-
Voltemos a Platão. A negação, pelos sofistas, de que possamos
cionada. Assim, exames retrospectivos sucessivos da pesquisa forneceriam
dizer o que é a justiça, em vez daquilo que ela parece ser para tais
compreensões mais completas d o seu objetivo, e, por sua vez,
pessoas (de modo que a justiça em Atenas é aquilo que parece ser para
caracterizações sucessivas desse objetivo ofereceriam bases mais seguras
os atenienses, e a justiça em Esparta é o que parece ser para os espar-
para se direcionar a pesquisa de um modo e não de outro.
tanos), exige a rejeição da possibilidade desse tipo de pesquisa racional
Em quarto lugar, essa concepção gradualmente enriquecida do ob- com relação à justiça. Pois ela implica a negação de qualquer concepção
jetivo final é uma concepção do que seria já ter completado a pesquisa. de justiça, compreendida em termos de uma verdade atemporal, impessoal
Dar à pesquisa o seu télos e ao tema da pesquisa sua explicação são e não-perspectiva, que pudesse funcionar como a arché de tal pesquisa
uma única e mesma concepçáo. De modo que chegar a essa concepçáo da natureza da justiça. É, então, a possibilidade desse tipo de pesquisa
envolveria ser capaz de dar uma explicação única e unificada do tema que Platáo precisa defender. Até que ponto a argumentação da República
e, obviamente, da pesquisa desse tema. Chamemos a concepção que realiza essa defesa? Só poderemos abordar a tarefa de responder a essa
fornece essa explicação de arché: adequadamente especificada, tal como questão se, primeiramente, reconsiderarmos a estrutura da argumentação
só pode ser no momento em que a pesquisa estiver substancialmente geral de Platão na República.
completa, será possível deduzir dela toda verdade relevante referente
ao tema da pesquisa; e explicar as verdades inferiores significará, Já dei a notar que a República pode ser dividida em quatro seções,
precisamente, especificar as relações dedutivas, causais e explicativas três das quais agonísticas, os principais adversários de Sócrates sendo,
que as ligam à arché e que mostram que, dada a natureza da arché, não no livro I, Trasímaco, nos livros 11-V (até 473b) , Glauco e Adamanto,
seriam diferentes do que são. Mas a arché também permitirá uma e no livro X, Homero e os demais poetas e contadores de histórias.
Mas a partir de 473c no livro V, Sócrates não prossegue a pesquisa
compreensão de por que cada um dos estágios sucessivos, através dos
através da troca agonística, dialética, mas expõe e ensina diretamente,
quais se chegou até ela, era distinto dela, assim como uma caracterização
do tipo específico de erro que teria sido cometido, se cada um desses apesar de o estilo conversacional pergunta-resposta ser preservado. O
94 Platão e a pesquisa racional Plazdo e a pesquisa racional 95

que a argumentação, assim desenvolvida, conclui é que apenas aqueles padrões [standards] que podem ser invocados e aplicados apenas por
educados ao longo de muitos anos em matemática e dialética podem aqueles capazes de fornecer o lógos exigido. Nesse ponto, minha visão
alcançar uma compreensão adequada (epistéme) do objeto de pesquisa. deriva da visão de R. C. Cross , 'Logos and Forma in Plato', Mind
Assim surge o paradoxo central aparente da República. O tipo de educação, LXIII, 252, 1954:433-450.) Os estágios dessa construção proposta
cujo prólogo é descrito nos livros I1 e I11 e o término no livro VII, é satisfazem, até certo ponto, as quatro condições para uma pesquisa que
necessária se e somente se a epistéme das formas é aquilo que Sócrates apresentam um progresso racional em direção a um télos, apresentadas
afirma ser; mas ninguém é capaz de saber se isso é verdadeiro ou não, anteriormente. Pois as discordâncias do livro I tornam-se inteligíveis,
a não ser quem tenha tido esse tipo de educação. E nenhum dos de uma nova maneira, quando caracterizadas de novo nos termos do
participantes dos diálogos da República teve tal treinamento. Portanto, que subseqüentemente aprendemos sobre tais discordâncias, especialmente
nem Glauco nem Adamanto, ou qualquer outro participante, recebeu na nos livros VI11 e IX. Agora podemos reconhecer Trasímaco como tendo
República o conhecimento de que necessitam. Assim, a terceira parte uma alma democrática; Polemarco e Céfalo, almas plutocráticas. A
da República (livros V, 373c - VII) é uma descrição de como completar argumentação dos livros I1 a V já revelou o caráter sistemático das
a pesquisa e chegar à sua arché, uma compreensão da forma da justiça diferenças entre Sócrates e Trasímaco melhor que o livro I. Assim, em
à luz da forma do Bem, mas ela não é o bem em si e não pode ser
estágios posteriores, os argumentos iniciais são caracterizados de novo
termo dessa pesquisa. Isso significa que a República é, intencionalmente,
e até certo ponto corrigidos, exatamente como a primeira e a segunda
um livro radicalmente incompleto. Ele nos revela qual estrutura e qual
condições exigem.
conteúdo uma teoria, que pudesse racionalmente justificar sua com-
preensão da justiça, teria de possuir. Mas ele mesmo não fornece essa No livro I, o bem perseguido na pesquisa é mostrar, de uma maneira
teoria. É então menos surpreendente do que poderia parecer que, quando ou de outra, o que é deficiente em diversas visões da justiça. Nos livros
o Sócrates platônico volta ao agón com suas disputas contra Homero 11 a IV, o bem significa oferecer uma definição adequada da justiça,
e os outros poetas no livro X, depois de argumentar contra a poesia compreendida nos termos da pólis e dapsyché tripartidas. Uma vez dada
mimética, ele diga que os amigos dos poetas devem poder responder a essa definição, aquilo que não podia ser resolvido no livro I passa a sê-
seu favor e muda de tópico, passando para a imortalidade da alma. -10. Mas acontece que o tipo de definição oferecida não é racionalmente
Quanto à imortalidade da alma, Platão conta novamente o mito de Er. adequada por si só. E no livro VI1 aprendemos o que deve ser fornecido
Esse mito viola duas das proibições educacionais propostas no livro 11: para tomá-la adequada, o tipo de progresso exigido pela terceira condiçáo.
inclui discursos diretos (61%-616a e 617d-e), sendo assim, um exem-
Outros exemplos poderiam ser acrescentados para fortalecer o argu-
plo da mímesis que acabou de ser condenada; também fala do mundo
mento de que as três primeiras condições, que devem ser satisfeitas por
do Hades, precisamente da mesma maneira que foi condenada anteri-
uma pesquisa que faz progresso racional rumo ao seu termo, são, pelo
ormente (compare 387b com 616a). Nada poderia tornar mais claro que
menos até certo ponto, satisfeitas pela representação ue Platão faz de
Sócrates está renunciando ao estatuto de alguém que fala do ponto de
vista da epistéme final: ele continua sendo aquele que lança mão de 8
tal pesquisa na República. Mas e a quarta condição? a condiçáo que
se refere à função da arché na direção da pesquisa e que a concepção
imagens e diagramas, e, portanto, alguém que ainda não apreendeu as
formas. platônica de pesquisa não pode satisfazer, justamente porque a epistéme
que daria o alcance exigido da arché é necessariamente não disponível
A República deve, então, ser compreendida como apresentação, não a pessoas como Sócrates, Glauco, Adamanto e aos outros que ainda
de uma teoria acabada das formas, e sim de um programa para a construção não ultrapassaram os domínios das imagens e diagramas, aqueles que
de tal teoria. (Porque eu assumo essa posição em relação ao que é dito ainda não saíram da caverna. Portanto, o que Platão nos oferece é
sobre as formas na República, minha argumentação não exige que eu radicalmente incompleto. E o que temos de aprender com a República,
opte por nenhuma das visões conflitantes dos problemas fundamentais finalmente, é tanto uma questão do caráter incompleto do projeto de
que tratam da natureza das formas, debatidos desde a publicação de H. Platão como das alegações feitas sobre a natureza da justiça. Apenas
F. Cherniss, "The Philosophical Economy of the Theory of Ideas", com uma especificação adequada de uma arché para a compreensão da
American Journal of Philology 57, 1936: 445-446, exceto no que se justiça teria a compreensão de Platáo da justiça sido racionalmente
refere a uma questão crucial: quanto ao caráter das formas enquanto justificada contra a visão sofística. Reconhecer que tal especificação
96 Platão e a pesquisa racional Platão e a pesquisa racional 97

não é dada na República é crucial para compreender a contribuição de para discussões cujas origens históricas eram não simplesmente não
Platão aos conflitos sobre a justiça: não uma doutrina, mas um dilema, homéricas, mas bastante estranhas à imaginação homérica. É por isso
e um dilema que dá uma forma definitiva aos debates subsequentes. que a leitura e a constante releitura da República permanece indispensável
para a educação moral e cultural. Não quero com isso sugerir
O dilema é o seguinte: ou provamos que a vida do ser humano
que temas de grande importância e desconhecidos de Platão não se-
racional tem sua arché, no sentido já definido, ou prevalece a visão dos
sofistas e de Tucídides sobre a realidade humana. Observe que é a rão introduzidos, tanto na discussão da justiça como na do raciocínio
forma da argumentação de Platão, mais do que seu conteúdo preciso, prático.
que levanta o dilema. Platáo, na República, tem sua própria visão dos Esta não é a única razão pela qual frequentemente não se leva em
bens de excelência e da justiça da excelência, envolvendo as estruturas consideração a importância do dilema levantado pela República, mais
tripartidas do Estado e da alma. Mas a conexão entre o que é específico especialmente quando interpretado tendo em vista a história de Tucídides
da visão platônica da justiça e sua compreensão de como alguém deve (um tipo de leitura definido para as gerações recentes pela obra de
investigar se a epistéme da justiça é o seu télos nunca é posta em termos -
David Green, Man in His Pride, Chicago, 1950 que mais tarde recebeu
rigorosos e precisos. E o que Platáo consegue estabelecer são as condições o equívoco título: Greek Political Theory ). Pois as questões postas por
que toda defesa racional dos bens de excelência e de uma justiça definida esse dilema tanto em relação à justiça como ao raciocínio prático
nesses termos terá de satisfazer. transformaram-se de várias maneiras ao longo de sua história subsequente.
Neste ponto, leitores conscientes da variedade do debate filosófico E quando essas questões reaparecem com outras aparências conceituais,
posterior podem objetar questionando se estas são, afinal de contas, as pode-se muito facilmente não reconhecer a proximidade dos protagonistas
únicas alternativas. Não poderia haver outras bases para rejeitar a visão de uma ou outra alternativa com Platáo, Tucídides ou algum adversário
dos sofistas e de Tucídides? A essa questão, a resposta deve ser: o que sofista de Platão. Uma outra fonte de equívoco são as errôneas leituras
estamos perseguindo é uma verdadeira história da argumentação e do de Aristóteles, que têm em comum o fato de representarem o pensamento
debate e que, dentro dessa história, as alternativas se apresentaram de Aristóteles como se sua relação com o pensamento de Platão fosse
dessa forma. Mais tarde, obviamente, ainda no mundo antigo, novos mero acidente histórico. Segundo essa visão, Aristóteles pode ter aprendido
modos de pensar a justiça e o raciocínio prático emergem, como o alguma coisa com Platáo, à medida que criticava e rejeitava certas
estoicismo, por exemplo. Mas qualquer terceira via posterior tem de doutrinas platônicas, mas sua filosofia era independente da de Platáo e
pressupor que o projeto platônico, assim como Platáo o esboça na que podemos nos apropriar dela independentemente da de Platáo. O
República, mostrou-se incapaz de um acabamento bem-sucedido. Aristóteles que vou apresentar é, ao contrário, um Aristóteles cujo
projeto fundamental era completar e, ao fazê-lo, corrigir o projeto de
O dilema com que a República finalmente confronta os seus leitores
Platáo. A Ética a Nicómaco e a Política devem, no meu ponto de vista,
é, num sentido importante, o resultado da história das concepções de
ser compreendidas como seqüências da República, nas quais a arché,
justiça e de sua relação com as concepções do raciocínio prático e
teórico até então. Se começarmos com uma sociedade informada pela cujas características adequadas Platáo não foi capaz de propor, é
imaginação homérica e tentarmos responder às questões levantadas a especificada de modo a fornecer o télos último da atividade prática e
cada estágio, para os membros de uma tal sociedade, através da elabo- a justificação e especificação das virtudes, incluindo a justiça. As questões
ração da compreensão de si mesmos oferecida por essa imaginação em que Aristóteles responde são questões platônicas.
termos históricos reais, seremos levados inevitavelmente aos proble- A importância central da filosofia moral e política de Aristóteles é
mas postos pela República. Pois esses problemas, finalmente, dão clara oriunda, nessa visão, da alegação de que, na sua essência, ela resolve
definição filosófica aos conflitos entre os bens de excelência e os bens O problema posto pelo dilema da leitura da República. E a importância
de eficácia que foram articulados, alternadamente, nos termos da retórica de outras filosofias morais e políticas subsequentes aparecerá, quer
e da política de Péricles, do drama trágico e da história de Tucídides. impugnem, defendam, corrijam ou complementem as respostas de
Platáo transformou os sofistas em seus parceiros, ao pôr esses problemas Aristóteles às questões de Platáo, ou não. Entretanto, obviamente, tal
de um modo que fornecia, como viria a ser confirmado mais tarde, uma visão da história da filosofia moral e política deve parecer excêntrica,
parte permanente do esquema para toda a discussão subsequente e mesmo no contexto de uma cultura como a nossa, definida pelo Iluminismo e
98 Platão e a pesquisa racional Platão e a pesquisa racional

Isócrates examinava a derrota catastrófica de Atenas na Guerra do


seus herdeiros, assim como teria parecido no século IV e em muitos
Peloponeso e a compreendia de um modo muito diferente do de Tucídides
outros períodos. No século IV, era importante que os verdadeiros
ou Platáo. O que tinha levado os atenienses àquela guerra, e àquela
sucessores de Platáo parecessem ser os que continuaram na Academia,
derrota, era a desunião grega. O que os gregos precisavam era a restauração
sob a liderança do sobrinho de Platáo, Espêusipo. E, de fato, uma
da unidade, da unidade forjada nas guerras contra os persas. E uma vez
concepçáo, derivada de Espêusipo, daquilo que é específico do platonismo
que, apenas sob uma monarquia a ordem e a unidade poderiam ser
(uma concepção que compreende o conhecimento das formas em termos
instauradas, ele tornou-se o protagonista de um ataque grego unido
de um tipo particular de construto matemático), contribuiu grandemente
contra a Pérsia, sob a liderança de algum rei que teria a hegemonia
para que a continuidade entre os pensamentos de Platáo e Aristóteles
sobre as pbleis. Mas o que importava na influência duradoura de Isócrates
fosse ocultada.
e no sistema de educação que fundou não eram as políticas particulares
Aiém do mais, nem Platáo nem Aristóteles deram o ponto focal que advogava, mas o modo pelo qual deu forma canônica à retórica
para a discussão das questões morais e políticas na Atenas do século como um meio de educação, cujo objetivo predominante é a eficácia na
IV. Se alguma pessoa isolada o fez foi Isócrates. Isócrates, nascido persuasão e não a verdade através da pesquisa. Ele decididamente rompeu
oito anos antes de Platão, em 436, sobreviveu a ele dez anos, morrendo os laços entre o discurso prático e o discurso teórico. E, ao fazê-lo,
em 338. Isócrates, mais do que qualquer outro, não apenas perpetuou obviamente pôs-se mais uma vez contra Platáo, cujo projeto exige que
a retórica dos períodos de Péricles e imediatamente pós-Péricles, mas o discurso prático dependa do resultado da pesquisa teórica. Isócrates
transformou a retórica num sistema educacional. Os historiadores da não era um Cálicles ou um Trasímaco, mas justamente os modos pelos
filosofia tendem a dar a Isócrates uma atenção meramente marginal, e, quais Isócrates diferia deles, sua suposição amena e inquestionada de
se o que é importante sobre Isócrates devesse ser medido através do que a virtude e a justiça podem ser compreendidas sem a dialética são
rigor argumentativo ou da penetração conceitual, estariam certos. Mas muito mais perigosos para a cultura e a sociedade do que o questionamento
a importância de Isócrates está no fato de ele ter oferecido uma alternativa rude de Cálicles ou Trasímaco. Os sofistas tiveram descendentes
à filosofia, compreendida tal como Sócrates, Platão e Aristóteles a filosoficamente muito mais eminentes do que Isócrates. Mas é através
definiam. Isócrates exaltava areté e dikaiosyne e afirmava que seus da influência de Isócrates no mundo antigo e de seus herdeiros modernos
ensinamentos de retórica as promoviam. Mas ele eram contrário à dialética, que eles se tornaram protagonistas efetivos dos bens de eficácia
e quando elogiava Atenas por suas realizações filosóficas, eram claramente cooperativa. O dilema posto pela leitura da República deve, portanto,
os mestres da retórica que tinha em mente. O ensino deve ser feito ser compreendido por nós como um desafio em dois níveis. No nível
através de exemplos daquilo que é bom e honroso. Ao dizer isso, Isócrates da teoria, as alternativas são melhor definidas nos termos das teses de
estava questionando diretamente o Sócrates platônico do Menon, que Platáo e das contrateses de Tucídides e dos sofistas, mas no nível da
argumentava: exemplos não nos podem dar o tipo de conhecimento da prática política, a alternativa para Platáo naquela época e agora foi
virtude de que precisamos, assim como, no elogio a seu professor, dada por Isócrates.
Górgias, Isócrates estava criticando diretamente o Sócrates platônico
do Gdrgias. No entanto, se Isócrates desprezava um tipo de pesquisa
e argumentação dialéticas, que considerava danosamente obscuro, por
que deveríamos dar qualquer atenção a ele?
A resposta é que, se a alternativa sofística resulta verdadeira, então
não há quaisquer padrões objetivos e independentes de justiça, ou mesmo
mais fundamentalmente, de verdade, aos quais possamos nos referir
contra os padrões de facto propostos e defendidos por grupos particu-
lares. Mas se isso é verdadeiro, as discordâncias sobre esses padrões de
facto só podem ser resolvidas através da persuasão não-racional; e O
meio mais eficaz de persuasão não-racional é o tipo de retórica ensi-
nado e praticado por Isócrates.
Capítulo VI

Duas imagens dominantes da vida humana emergem da reflexão


pós-homérica. Ambas são imagens de busca e luta. Segundo uma, os
seres humanos buscam a excelência. Alguns podem conceber errone-
amente o que é a excelência e muitos podem não conseguir alcançar
aquilo a que visam. Mas todos, independentemente do quanto con-
sigam realizar, são medidos por um padrão que não foi feito por eles,
mas que descobrem, primeiro nas várias téchnai às quais se dedicam e
depois no projeto da busca do bom e do melhor. Platão considera parte
desse projeto substituir, à medida do possível, as imagens e narrativas
do poeta e do contador de histórias pelos conceitos e argumentos do
filósofo. Mas mesmo ele, como fica claro na República, não consegue
descrever o projeto filosófico descartando completamente a imagem e
o mito. A tarefa de atravessar os estágios finais da viagem viconiana
do universal imaginário ao universal conceitual permanece por ser

Segundo uma outra imagem, oposta à primeira, os seres humanos


visam a um tipo particular de poder, o poder de refazer o mundo social
e natural, à medida do possível, de acordo com seus próprios desejos.
O exercício desse poder pode ser frustrado devido a erros de julgamento
derivados tanto de uma inteligência inadequada como de uma inabili-
dade em resistir à tentação da hybris, ou devido à falta de firmeza de
opósito. A correção do julgamento é particularmente importante quando
trata de formar alianças, a fim de vencer os obstáculos levantados
ntra algum projeto. E também importante para garantir a contribuição
queles cuja excelência pode permitir vencer e contornar uma série de
stáculos e frustrações. Esta imagem, assim como a que se lhe contrapõe,
originalmente homérica e, neste ponto, tanto quanto ela, recebe
102' Aristóteles herdeiro de Platão Aristóteles herdeiro de Platdo 103

elaboração final como imagem no século IV. Mas enquanto a primeira Uma vez que as concepções de atividade, excelência e da relação
é apresentada através do contraste que Platáo estabelece entre o ideal entre elas, que Aristóteles expõe e defende, são precisamente as que
e o real, a imagem da vida humana enquanto batalha pelo sucesso, no foram expressas nos tipos particulares de atividade nos quais os gregos
que quer que alguém deseje fazer, é finalmente exemplificada nas ações buscavam tipos específicos de excelência física e intelectual - não é
e realizações de Alexandre da Macedônia acidental que Aristóteles tenha desempenhado um papel importante nos
jogos píticos assim como na Academia e no Liceu -, o que emerge é
É importante lembrar que Aristóteles foi aluno de Platão e tutor de
uma defesa dos bens de excelência e das virtudes, mais particularmente
Alexandre. Nesse último papel - talvez também em virtude da posição
da justiça, compreendida nos termos desses bens. É o projeto de Platáo
de seu pai como médico de um outro rei da Macedônia, e certamente
que Aristóteles sustenta e completa, como sugiro a seguir; é o projeto
em virtude de sua amizade com Antipater, o vice-rei de Alexandre na
de Alexandre que ele desabona. E, uma vez que Aristóteles está empenhado
Grécia - foi identificado com a elite governante macedônica que
em fornecer-nos uma visáo de um tipo de vida humana no qual os
enfrentava três alegações bastante diferentes. Não apenas as instituições
vários bens específicos estão integrados; uma vez que são apenas as
e os costumes macedônicos eram ameaçados pelo tipo de vida da pólis
formas institucionalizadas da pólis que, não apenas na visáo de Aristóteles,
grega, de modo que ser tanto macedônico como grego implicava escolhas
mas também na visão comum aos gregos cultos, oferecem tal tipo integrado
difíceis. Mas também os costumes macedônicos e a política grega eram de vida, a compreensão aristotélica do bom e melhor só pode ser uma
cada vez mais rejeitados por Alexandre na sua adoção autoglorificadora compreensão do bom e melhor tal como se expressa numa pblis. Assim,
do estilo e da substância da monarquia persa. Calístenes, sobrinho de mais uma vez, é ao lado de Platáo e contra Alexandre que Aristóteles
Aristóteles e seu colaborador na execução da lista dos vencedores dos luta.
jogos píticos, pelo que ambos foram honrados em Delfos, acompanhou
Alexandre na expedição contra a Pérsia, como historiador dos feitos de Seu segundo argumento, entretanto, implica uma rejeição parcial
Alexandre. Calístenes compreendeu sua tarefa como um grego: deveria ou, pelo menos, uma correção de Platáo. Ele certamente concorda com
ser o Homero a narrar os feitos do novo Aquiles. Não surpreendia que Platáo ao fazer um julgamento negativo da democracia ateniense, o que
estivesse entre os do círculo de Alexandre que foram hostilizados com sem dúvida era reforçado por suas simpatias macedônicas. Pois foram
a transformação de Alexandre de hégemón grego em monarca persa. os democratas atenienses, liderados pelo falso, corrupto e eloqüente
Demóstenes, que se opuseram às ambições de Filipe da Macedônia
Alexandre mandou executá-lo.
@ara uma avaliação excelente da influência das simpatias macedônicas
Aristóteles não podia, portanto, ter evitado a questão, posta no nível sobre Aristóteles ver H. Kelsen, "Aristotle and Hellenic-Macedonic
da política prática por Antipater e Calístenes, sobre se o tipo de vida Policy", Ethics 48, 8, 1937). E seriam os democratas atenienses que,
da pólis grega poderia ser justificado contra seus opositores e sobre com a morte de Alexandre, tornariam arriscada a permanência de
como isso poderia ser feito. Aristóteles forneceu as bases para uma Aristóteles em Atenas. Mas Aristóteles estava, não obstante, comprometido
resposta a essa questão construindo duas argumentações originais in- com a defesa da efetividade da pólis, à diferença de Platáo. Nenhuma
ter-relacionadas, cada uma com sua complexidade. A primeira é con- pblis real, no seu ponto de vista, exemplificava completamente o melhor
cebida para mostrar que só o bom e melhor pode oferecer uma arché tipo possível de pólis, mas alguns aspectos desse melhor possível tinham
para os seres humanos quando são completamente racionais e também efetivamente sido exemplificados. E o segundo fato mais importante
só ele, ao fornecer o télos para a açáo humana, dá o conceito-chave sobre o melhor tipo possível de pólis era que ele era viável. Aristóteles
para um esquema de explicação teórica através do qual os vários resul- não era um utópico. Quando Demétrio de Falero, um aluno ateniense
tados da açáo humana podem ser bem-explicados, à medida que de- do discípulo de Aristóteles, Teofrasto, tornou-se o governante de Atenas,
pendem do exercício ou da incapacidade de exercício dos poderes e de 317 a 307, como resultado da intervenção militar de Cassandro, ele
habilidades humanas, e não acontecem por acaso ou acidente. A prática introduziu um tipo de oligarquia cuja inspiração constitucional e legislativa
racional e a explicação teórica da prática são informadas pelos mesmos era a Política de Aristóteles. A Política podia ser usada como um manual
conceitos. ara a prática de um modo bastante diverso do espírito da República.
104 Aristóteles herdeiro de Platdo Aristbteles herdeiro de Piatdo 105

Assim, a posição de Aristóteles sobre a pólis separava-o não apenas de Aristóteles considera a epagogé parte da dialética (processo no qual
Alexandre, mas também de Platão. uma tese ou teoria particular justifica-se contra suas rivais através de
sua habilidade superior em resistir às objeções mais irrefutáveis, de
Platão e Tucídides estavam de acordo - e Sócrates e Trasímaco pontos de vista diferentes). E aí novamente é o no& que atinge a
tinham sido representados por Platão como estando de acordo - que conclusão. Noas, isto é, o exercício de uma capacidade de compreender
a justiça, tal como definida e caracterizada pelo Sócrates da República, o que é a conclusão de um modo não-demonstrativo de argumentação
não pode ser encontrada em nenhuma pólis real. A justiça da qual e pesquisa. Os princípios que o nods apreende são aqueles a partir dos
Aristóteles oferece uma visão no livro V da Ética a Nicômaco, em quais argumentamos ao desenvolver argumentações dedutivas sólidas
contrapartida, expõe a justiça-assim-como-deve-ser-compreendida como que têm o estatuto de demonstrações. A demonstração, portanto, depende
implícita na prática da justiça-tal-como-ela-é. A justiça das póleis reais da dialética para a aquisição das premissas que lhe oferecem um ponto
é considerada deficiente em vários aspectos, mas é estudando os princípios de partida. E isso, como sugeri anteriormente, é verdadeiro tanto em
implícitos nessas formas mutantes que discerniremos como todas as relação à pesquisa teórica como ao raciocínio prático, o que talvez não
insuficiências emergem de um tipo de justiça que seria a melhor justiça deva nos surpreender, uma vez que os primeiros princípios da pesquisa
do melhor tipo de pólis ou como não conseguem atingi-lo. Assim, o teórica quanto à natureza do raciocínio prático e do raciocínio prático
método aristotélico de pesquisa política era fazer uma coleção de que leva à ação são uma única e mesma coisa.
constituições - do mesmo modo em que nos seus estudos zoológicos
fazia coleções de animais da terra e do mar -, a fim de descobrir que Aristóteles distingue epistéme, conhecimento científico, que envolve
tipo de constituição podia ser tratado como o paradigma em relação ao os universais, de phrónesis, inteligência prática, que se ocupa também
qual todos os desvios pudessem ser classificados, nos termos dos vários dos particulares. Mas a inabilidade para exercer a phrbnesis pode ter
tipos de erros de compreensão e de fracasso que encarnavam. duas fontes diferentes. Podemos ser incapazes de identificar as
Aristóteles chamava o método de ir de um grupo de particulares a características de um particular que são relevantes para as ações que
um universal, ao conceito da forma que esses particulares, em graus vamos realizar, ou por falta de experiência com o conjunto relevante
diferentes, exemplificam, de epagogé. A tradução moderna usual de de particulares ou por ter uma epistéme inadequada, de modo que não
'epagogé' por 'indução' não causa maiores danos, contanto que compreendemos o universal, o conceito da forma que este particular
distingamos cuidadosamente aquilo que Mil1 e outros escritores modernos exemplifica (Ética a Nicômaco 1131a11-25). Alguém com muita
chamam de 'indução' do que Aristóteles chamava de 'epagogé'. Epagogé experiência com os particulares, mas que, devido à sua falta de epistéme,
envolve inferência, mas é mais do que inferência; é o método científico é incapaz de recorrer à argumentação (lógos), pode julgar melhor o que
através do qual as exemplificações particulares, impuras ou distorcidas é verdadeiro ou o que fazer corretamente do que alguém cuja epistéme
de uma única forma, podem ser compreendidas em termos daquela lhe dá os argumentos, mas que não tem uma experiência adequada dos
forma - assim como exemplos particulares impuros de carbono podem particulares (Metafísica 981a23-24). Entretanto, se alguém está julgando
ser compreendidos pelos químicos como exemplificando a estrutura corretamente, apesar de estar baseado apenas na experiência, os princípios
atômica singular que torna cada um deles um exemplo de carbono - da ação correta estarão implícitos no que ele faz. Esses princípios
, de modo que o conceito daquela estrutura ofereça - dentro da teoria fornecerão as premissas principais desarticuladas que, juntamente com
atômica e molecular - a arché tanto para sua classificação como para o seu julgamento quanto a aspectos particulares de diferentes situações,
sua explicação. Aristóteles chama de nods o modo de apreensão no qual levam necessariamente à ação que é a conclusão correta da argumentação
a mente capta tal arché.
Não é apenas através da epagogé que o nods atinge sua com- É exatamente por isso que podemos, através da epagogé resultante
preensão das archái, dos primeiros conceitos e princípios. Quando alguém os juízos e ações de tais pessoas, caminhar na formulação de archái
propõe que a arché de alguma ciência particular ou de algum tipo particular erdadeiras, completando essa epagogé com uma pesquisa dialética na
de atividade é tal, ou quando há debate envolvendo várias propostas 1 avaliamos as opiniões mais bem fundamendatas quanto às archái
conflitantes desse tipo é através de um outro tipo de argumentação antes propostas até então. E é, obviamente, porque há uma grande
dialética que se chegará a uma conclusão quanto a qual é a arché - dade de opiniões rivais e conflitantes, opiniões que dirigem a
106 Aristbteles herdeiro de Platão Aristbteles herdeiro de Platão 107

pesquisa e guiam a ação de modos diferentes e incompatíveis, que é aos dois trabalhos de Henry Teloh, "Aristotle's Metaphysics Z",Ca-
crucial não permanecer no nível da ernpeiria, experiência dos particulares nadian Journal of Philosophy 9,1979, e "The Universal ia Aristotle",
- O tipo de experiência ao qual Péricles e Tucídides recorreram - ou Apeiron 13, 1979, e a A. C. Lloyd, Form and Universal in Aristotle,
da gnomé, mas devemos, ao contrário, atingir o conhecimento das archái, Liverpool, 1981).
noh.
Eis, portanto, o mais íntimo dos paralelos entre a revisão que
Essas archái, se formuladas corretamente, nos fornecerão os pri- Aristóteles faz de Platão, quanto à sua compreensão da relação dos
meiros princípios para a explicação de como e por que os projetos e universais e das formas com os particulares, e sua filosofia política e
atividades humanas são melhores ou piores para alcançar os bens que moral. Onde Platão contrasta a forma e o domínio dos particulares,
lhes oferecem seu télos, e só serão capazes de fazê-lo com precisão enfatizando sua disparidade, Aristóteles compreende a forma como s 6
através da formulação adequada de uma compreensão desses bens e de podendo ser confrontada nos particulares, apesar de ser amiúde assim
seu lugar ou de sua relação com o bom e melhor. Elas também fornecerão, imperfeitamente exemplificada; onde Platão contrasta a política ideal e
desse modo, o tipo de visão desse télos que os seres humanos precisam o domínio das pbleis reais, enfatizando sua disparidade, Aristóteles
para visá-lo em suas ações, oferecendo assim a premissa maior última compreende o melhor tipo de pólis como conformando-se a um padrão
de tal raciocínio prático: "Inferências dedutivas sobre o que deve ser que já está implicitamente encarnado e reconhecido, frequentemente de
feito têm como arché, 'uma vez que o télos e o melhor é tal"' (EN maneira importante, nas práticas da política grega efetiva. E é por isso
1144a31-33). que as conclusões da pesquisa política, assim como Aristóteles as
O Noos, portanto, apreende os primeiros princípios sem os quais a compreende, podem ser consideradas relevantes nas escolhas entre o
pesquisa teórica e a atividade prática são cegas, guiadas inadequadamente costume macedônico, a prática política grega e a sedução de Alexandre
e propensas ao erro: "...por um lado, nas demonstrações, o noiis apreende pelo despotismo persa.
as definições imutáveis e primárias, por outro lado, nos raciocínios Entretanto, ao enfatizar o contraste entre Aristóteles e Platão a esse
práticos, apreende o que é último e contingente, a segunda premissa. ponto, corro o risco de obscurecer a importância igual ou mesmo maior
Pois estas são as archái daquilo por que agimos, uma vez que é dos da unidade e continuidade de seus projetos. É muito fácil cair na visão,
particulares que os universais são derivados. Conseqüentemente, deles há muito estabelecida e altamente enganadora, que apresenta Platão e
devemos ter percepção, e isto é noús" (EN 1142b1-5). O que o no& Aristóteles como representantes de alternativas filosóficas fundamen-
fornece como contrapartida à sua compreensão do universal como tal, talmente distintas e opostas, um lugar comum durante séculos, e que
do conceito da forma como tal, é o caráter fundamental, que não requer ainda conquista seguidores. Mas o tipo de interpretação acadêmica, de
justificação ulterior, da alegação que este particular é de tal tipo, a Platão e de Aristóteles, invocada no século passado por Thomas Case
compreensão da forma que está expressa neste particular. Pois, e, neste século, por Werner Jaeger, para sustentar esta visão, não
compreender a forma como tal é apenas compreendê-la como estando sobreviveu ao trabalho de G. E. L. Owen (ver especialmente "The
expressa em particulares, incluindo este particular. Logo, apesar de Platonism of Aristotle", Proceedings of the British Academy 50, 1965).
Aristóteles realmente contrastar a epistéme dos universais com a O que atualmente sustenta esse tipo de concepção é a recuperação de
particularidade das preocupações phronéticas, as duas estão claramente uma visão essencialmente neoplatônica de Platão, numa versão de John
ligadas. (Apesar de discordar de Norman O. Dahl quanto à sua tradução Findlay e noutra de Iris Murdoch. A visão que adotarei encontra-se no
desta passagem em particular, sua discussão de como as posições de p6lo oposto do espectro de interpretações. Pois, como já observei,
Aristóteles devem ser interpretadas, no seu Practical Reasoning, Aristotle compreendo Aristóteles como estando empenhado em tentar completar
O trabalho de Platão e corrigi-lo precisamente à medida que isto era
and Weakness of Will, Minneapolis, 1984, 41-48.277-872, é realmente
necessário para completá-lo. Isso é, parcialmente, uma questão de seguir
a mais esclarecedora em toda a literatura, e espero que eu tenha aprendido Owen e outros ao reconhecer tanto como as críticas de Aristóteles a
o suficiente com suas visões gerais, com as quais estou amplamente de algumas das posições iniciais de Platão são substancialmente indênticas
acordo. Devo minha compreensão também a Daniel T. Devereux, Bs próprias críticas que Piatão faz a essas posições ou um desenvolvimento
"Particular and Universal in Aristotle's, Conception of Practical posterior das mesmas, e ainda, quanto como as construções originais
Knowledge", Review of Metaphysics 39, 1986, e mais fundamentalmente de Aristóteles ainda são informadas por objetivos platônicos e fazem
108 Aristóteles herdeiro de Platão Aristdteles herdeiro de Platão 109

uso de materiais platônicos. Mas é também, parcialmente, uma questão Miltíades e Temístocles, todos são atacados. E a República fornece
de ir um tanto mais longe, e compreender alguns dos principais argumentos justamente a base teórica necessária para sustentar essas condenações.
de Aristóteles como tentativas de resposta às questões postas por Platáo Mas na época em que Platão escreveu as Leis, sua atitude tinha modificado.
ou a questões às quais Platáo tinha dado respostas insatisfatórias. No livro I11 (698a9-701b3), Platáo atribui aos atenienses da época das
Há, certamente, áreas específicas nas quais Platáo e Aristóteles, em Guerras Persas uma constituição bem-ordenada, na qual a divisão
qualquer ponto de vista plausível, são radicalmente opostos - em re- hierárquica em quatro classes garantia que as relações entre governantes
lação à natureza das verdades matemáticas, por exemplo. Mas na ética e governados e de ambos com as leis eram o que deviam ser. E fica
e na política, Aristóteles está não tanto se opondo ao trabalho da República, claro que está se referindo à constituição de Atenas anterior a 462,
mas refazendo-o. O próprio Platáo refez aquele trabalho, à sua maneira, quando Efialtes privou o Areópago da maior parte de seus poderes. Na
nas Leis, e vale a pena observar os paralelos íntimos, em alguns pontos- Constituição de Atenas, era exatamente a esse período que Aristóteles
-chave, entre a direção tomada por Platáo ao passar da República para se referia com aprovação: "Durante este período os atenienses eram
as Leis e o pensamento de Aristóteles. Onde, na República, Platáo usa bem-governados" (XXIII,2), e, em nítido contraste com o Górgias,
'eidos' de modo que um conhecimento das formas implica voltar as Temístocles é elogiado por sua dikaiosyne (XXIII,3). (Certamente não
costas ao mundo da experiência, nas Leis usa 'eidos', assim como estou preocupado com a verdade das crenças de Platão ou Aristóteles
Aristóteles, para significar 'espécie', e a experiência tem um papel em relação à história ateniense.) Só não quero enfatizar excessivamente
crucial na aquisição da habilidade para discriminar racionalmente as as semelhanças e continuidades. Seria tanto um exagero como um excesso
espécies, que é o que um conhecimento das eidé agora significa. Onde, de simplificação dizer que Aristóteles tenha permanecido, de algum
na República, 'epistéme' é a palavra para o tipo de conhecimento modo, sempre platônico, ou que Platão se tenha tornado gradualmente
necessário para um governante, as palavras normalmente usadas para o um aristotélico, mas qualquer uma das duas afirmativas seria o exagero
sábio e o governante culto, nas Leis, são phrónimos e seus cognatos, simplificado de uma verdade complexa. A parte dessa verdade que é
as mesmas palavras usadas por Aristóteles para referir-se aos que são importante para minha própria discussão é o quanto e o modo pelo qual
inteligentes de modo prático. E assim como Aristóteles na Política, Platão, os escritos de Aristóteles sobre ética e política devem ser compreendidos
nas Leis, está preocupado com considerações práticas tais como o quanto como explicitando ou resolvendo os problemas postos pela República.
injustiças excessivas em relação à propriedade podem perturbar a vida Há, entretanto, um aspecto crucial no qual Aristóteles, à primeira
da pólis, uma discussão à qual Aristóteles se refere explicitamente na vista, parece estar tão radicalmente em desacordo com o Platáo da
Política. República que ameaça essa compreensão da relação entre eles. Pois
Estas não são as únicas continuidades entre o pensamento tardio de apesar de Platáo, na República, inicialmente definir a justiça em ter-
Platáo e as doutrinas políticas e éticas de Aristóteles. Aristóteles, na mos das relações dentro da pólis tripartida, no livro IV, ele atribui as
Ética a Nicômaco (1137b13-14) e na Retórica (1374a25-b3) reconhece características de uma pólis às características das pessoas individuais
a necessidade de um tipo de exercício de julgamento prático que não que a compõem - De onde mais, pergunta, poderiam derivar as carac-
pode ser guiado por regras, porque se refere a uma situação cujos terísticas da pólis? (435e2). Uma tese central da República é que a justiça
particulares relevantes não podem ser apreendidos pelas regras mais bem na psyché individual pode existir e ser para o bem daquela psyché,
formuladas até então disponíveis, e também reconhece que é da natureza independentemente de quáo injustamente aquele indivíduo seja tratado
dos conjuntos de regras que, independentemente de quáo bem formuladas pelapólis. Logo, Platáo parece acreditar que a justiça como uma virtude,
sejam, não possam prever todas as eventualidades. Mas isso também já ou melhor, como o elemento-chave na virtude do ser humano indi-
tinha sido sugerido no Político (294a-c). r vidual, é independente da justiça que ordena a pólis e a antecede.
Além disso, as atitudes de Platão em relação ao desenrolar da história Poderíamos muito bem pensar que esta seja uma caracterização
ateniense, originalmente muito diferentes das que Aristóteles viria a adequada da visão de Platáo, sustentada pela lembrança das próprias
tomar, mostram as mesmas tendências, nos seus escritos tardios, a I experiências políticas mais importantes de Platão. Platão, afinal de contas,
aproximarem-se das posições de Aristóteles. Inicialmente, sua atitude realmente abandonou a perspectiva de participar da política ateniense
é de condenação ampla e quase universal. No Górgias, Péricles e Cimon, 1 devido à injustiça da morte de Sócrates. E suas experiências nas cortes
110 Aristdteles herdeiro de Platão Aristóteles herdeiro de Platão 111

de Dionísio I e Dionísio 11, durante suas visitas a, e o subseqüente uma norma que não tem aplicação fora da pólis. Portanto, a primeira
destino de seu amigo Dion teriam certamente reforçado uma visão negativa resposta à questão do que está privado um homem separado da pólis é:
da possibilidade de transformar qualquer pólis efetiva. dikaiosyne. Mas estar privado de dikaiosyne envolve outras privações.
Aristóteles, entretanto, representa uma tradição de pensamento na Na Ética a Nicômaco (Livro V171144a7-1145all), Aristóteles dis-
qual é precedido por Homero e Sófocles e segundo a qual o ser humano cute a interdependência entre a inteligência prática e as virtudes de
separado de seu grupo social é também privado da capacidade de justiça. caráter. Porque Aristóteles acreditava que a posse de cada uma dessas
Assim, Homero, numa passagem que Aristóteles cita (Política 1253a6), virtudes exige a posse das outras, usa tanto o singular areté como o plural
faz Nestor dizer a respeito do homem que não tem um clã (aphrétor) aretái para referir-se a elas. Para que haja uma escolha correta de
que ele também carece de thémis (Ilfada IX,63). Sófocles faz Filocteto ações é necessária a virtude, e é a phrdnesis que leva à ação correta;
declarar que, quando privado de amigos e de.uma pdlis, tornou-se "um logo, não há phrdnesis sem areté. Mas, da mesma forma, não pode
cadáver entre os vivos" (Filocteto, 108) e é em conseqüência disso que haver areté sem phrónesis. A pessoa cujas ações são formadas tanto
é incapaz de responder com justiça a Neoptólemo. Portanto, Aristóteles por areté como por phrónesis, segundo a discussão da Política,
está articulando, no nível da pesquisa teórica, um pensamento herdado desenvolveu originalmente capacidades biologicamente dadas que
dos poetas, quando argumenta no livro I da Política (1252b28-1253a39) poderiam, entretanto, ser desenvolvidas inversamente de modo a serem
que um ser humano separado da pólis fica privado de alguns dos atributos usadas a serviço da injustiça. E é assim que teriam se desenvolvido
essenciais a um ser humano. Essa é uma passagem cuja importância num ser humano privado da lei e da justiça que apenas a pólis pode
para a interpretação de tudo o que Aristóteles escreveu sobre a vida oferecer. Portanto, a pólis é necessária para que haja areté, phrdnesis
humana não pode ser menosprezada, e é também particularmente crucial e dikaiosyne. Separado dapólis, o que poderia ser um ser humano torna-
para a compreensão de suas afirmações sobre a justiça, o raciocínio -se um animal selvagem.
prático e a relação entre eles.
Há, portanto, o mais acentuado contraste, nesta visão aristotélica,
Aristóteles usa duas analogias para apresentar seu ponto central. entre o ser humano disciplinado e educado pela justiça da pólis e o ser
Um ser humano está para a pólis assim como a parte está para o todo, humano privado desta disciplina e educação, no que diz respeito tanto
de um modo análogo tanto àquele no qual u'a mão ou um pé estão para à virtude da justiça como à habilidade de empenhar-se no raciocínio
o corpo do qual são parte, quanto àquele no qual uma peça num jogo prático.. As regras da justiça não podem ser compreendidas como a
de tabuleiro (podemos pensar em xadrez ou damas - o jogo grego ao expressão dos desejos daqueles ainda não educados na justiça da pólis,
qual Aristóteles se refere assemelha-se ao último) está para um jogo no nem servirão para satisfazê-los. Dessa forma, a compreensão das re-
qual é utilizada. Separe u'a mão de seu corpo: falta-lhe tanto a função gras da justiça, proposta por Trasímaco e elaborada por Glauco e
específica como a capacidade específica de u'a mão; não é mais u'a Adamanto, deve ser rejeitada e com ela, não apenas a compreensão dos
mão, no mesmo sentido. Abstraia um peça de sua utilização no jogo; herdeiros posteriores de Trasímaco, como Hobbes, mas também toda
ela fica também privada de função e capacidade. Do que é que um ser compreensão da justiça ou do direito que prescreva que os desejos de
humano fica privado se separado radicalmente da vida da pblis? todos os indivíduos devem igualmente ser levados em consideração ao
Díke é a ordenação da pblis, declara Aristóteles, mas compreende decidir-se o que é correto fazer. Portanto, todas as doutrinas utilitaris-
isso de modo a relacionar sua afirmação com o uso homérico de 'díke'. tas que prescrevem que todos devem valer por um, que os desejos de
Pois a pdlis é a comunidade humana aperfeiçoada e concluída através todos devem ser igualmente considerados ao se calcular a utilidade e,
da realização de seu télos, e a natureza essencial de cada coisa é o que com ela, o direito, de Bentham aos utilitaristas e igualitaristas contem-
é quando atinge o seu télos. Portanto, é nas formas da pblis que a natureza porâneos, são profundamente incompatíveis com o ponto de vista de
humana como tal se expressa, e a natureza humana é o mais elevado Aristóteles. Pois o que aqueles que são privados da justiça da pólis
tipo de natureza animal. A visão homérica de díke, como a ordem do querem não pode oferecer nenhuma medida para a justiça.
1
cosmo, reaparece, assim, na visão aristotélica de díke como a ordenação Sugeri anteriormente que Platão, em contrapartida, numa leitura
do que é mais elevado na natureza. Díke ordena fazendo julgamentos , altamente plausível da República, não considera a justiça do indivíduo
justos e a justiça (dikaiosyne) é a norma através da qual apblis é ordenada, i como dependente da justiça da pólis, e sim o contrário. Mas essa leitura
112 Aristbteles herdeiro de Platão Aristbteles herdeiro de Platão 113

ignora uma das teses centrais de Platão, cuja força total só emerge nos prática, podem ser encontradas em formas de ordem social diferentes
livros VI e VII: apenas uma educação dentro de uma comunidade guiada, das da pólis, os argumentos que sustentam essa irrelevância deixam de
disciplinada e ensinada por filósofos dará o conhecimento das formas, ter sentido. E eu sugeri que na visão da comunidade filosófica
inclusive a forma da justiça, sem a qual não se pode ser virtuoso. Para institucionalizada que Platão nos oferece na República -presumivelmente
o Platão da República, a comunidade filosófica tomou o lugar da pblis uma visão idealizada da Academia - temos exatamente um exemplo
como a sociedade dentro da qual alguém pode tomar-se justo e inteligente desse tipo de ordem social.
de modo prático, assim como na própria vida de Platão a liderança e Não há, portanto, nenhuma incompatibilidade entre dois dos meus
a participação na comunidade da Academia tinham sem dúvida conseguido propósitos ao propor uma compreensão daquilo que Aristóteles tem
suprir aquilo que, de outro modo, teria recebido através da participação para nos ensinar sobre justiça e raciocínio prático. Um desses objetivos
na atividade política. Mas a isso pode-se retrucar: e Sócrates? é insistir, na interpretação geral do pensamento de Aristóteles, na
importância de sua visão de que é dentro de um tipo específico de
Para Platão, Sócrates era, afinal de contas, o paradigma do ser humano contexto social que as virtudes intelectuais e morais dos seres humanos
justo e inteligente de modo prático. Entretanto, Sócrates certamente devem ser caracteristicamente exercidas e que, a não ser por certos
não aprendeu sua justiça e sua inteligência prática na pólis ateniense e aspectos desse tipo de contexto social, o conceito dessas virtudes deve
passou sua vida em desacordo com aqueles que representavam o que os na sua maior parte carecer de aplicação. O outro objetivo é alegar que
atenienses educados consideravam como justiça. Há duas respostas a as argumentações de Aristóteles são não apenas o resultado - o resul-
essa objeção. Devemos, primeiramente, lembrar como, no Crítias, Sócrates tado final para ele, o resultado provisório para mim - de uma seqüência
expressa seu senso de gratidão por uma dívida que é mais do que pode de pensamento que começa com Homero, mas que fornecem um esquema
ser pago à pblis e às suas leis, pela parte que tiveram na sua educação baseado no qual e através do qual pensadores posteriores podem estender
formal e informal. Mas mesmo que, diferentemente do próprio Sócrates, e continuar as pesquisas de Aristóteles de maneiras imprevisivelmente
o considerássemos como alguém cujas virtudes morais e intelectuais inovadoras e genuinamente aristotélicas.
não tivessem sido formadas através da participação na vida dapblis, não
precisamos tratá-lo como um contra-exemplo em relação à tese de Minha tese é, obviamente, que os debates e conflitos pós-homéri-
Aristóteles no livro I da Política. cos, na sociedade ateniense dos século V e IV, geraram não apenas
uma tradição subseqüente, mas duas. Mas a tradição não-aristotélica,
Aristóteles, como a maioria dos gregos, reconhecia a existência de anti-aristotélica, cujos fundadores são os sofistas e Tucídides, deve
pessoas excepcionais que, elas próprias sendo habitantes de comunidades agora, para os propósitos de minha argumentação imediata, ser posta
num estado de relativa desordem, conseguiram exercer o papel de de lado. O que esta argumentação exige é que atentemos a dois outros
legisladores, oferecendo à sua pólis uma nova constituição e assim aspectos da filosofia de Aristóteles que mais tarde foram importantes
puderam .estabelecer ou restabelecer possibilidades de virtude numa para que fosse capaz de gerar uma tradição de pensamento e pesquisa.
pblis que até então dela carecia. Assim tinham sido Sólon em Atenas O primeiro desses aspectos é uma característica da dialética tal como
e Licurgo em Esparta. E Sócrates pode ser considerado analogamente Aristóteles a compreendeu. Descrevi anteriormente como é que, através
como o fundador, em certo sentido, de uma comunidade filosófica cuja da argumentação dialética, chegamos à formulação dos primeiros
estrutura Platáo institucionalizou na Academia. Reconhecer que a princípios, as archái de toda pesquisa ou corpo de pensamento científico.
Academia ou o Liceu podiam, em certa medida pelo menos, cumprir as E é também através do uso da argumentação dialética que construímos
funçóes que Aristóteles atribui apenas à pólis não é irrelevante. Pois, as estruturas dedutivas que ligam as archái às verdades subordinadas,
justamente porque a compreensão de Aristóteles da natureza da justiça
; derivadas delas, numa hierarquia explicativa.
e do raciocínio prático enraíza-os tão completamente no contexto das
práticas da pblis, seria demasiadamente fácil concluir que nas sociedades A estrutura acabada de uma ciência completa é, portanto, uma ar-
como as nossas, que não só não são organizadas na forma de uma ! gumentação demonstrativa desenvolvida, que vai das primeiras verdades
pblis, mas para cujas culturas o conceito de umapblis é bastante estranho, k fundamentais, que devem sempre ser verdadeiras em relação ao as-
o que Aristóteles tem a dizer sobre justiça e raciocínio prático deve ser sunto da ciência particular, às suas últimas conseqüências no domínio
irrelevante. Mas se pelo menos as características da pblis, que são dos fenômenos. Os comentadores que não atribuíram importância
minimamente necessárias para o exercício da justiça e da racionalidade suficiente ao fato de que a compreensão de Aristóteles desse tipo de
114 Aristóteles herdeiro de Platão Aristbteles herdeiro de Platão

estrutura, nos Analíticos Posteriores, por exemplo, é uma compreensão A questão de se essa concepção do caráter do universo foi refutada
do que uma ciência seria na sua forma acabada, na qual os resultados ou não tem frequentemente sido equacionada com a questão de se a
finais da pesquisa fossem apresentados, e não uma explicação do que mecânica que os físicos medievais tardios derivaram de Aristóteles foi
é uma ciência em processo de construção, uma ciência compreendida
refutada por Galileu e Newton ou não. Mas a justificação para esse
como um tipo de pesquisa, tendem a apresentar o próprio pensamento
de Aristóteles como se fosse ou reivindicasse o estatuto de um sistema equacionamento, tal como alguns pensadores escolásticos tardios o
compreenderam, está longe de ser óbvia. O que é claro é que o esquema
completo ou quase completo.
aristotélico fornece uma ligação entre a ciência e o tipo de explicação
É de crucial importância o fato de Aristóteles nos apresentar descrições última oferecido pela teologia racional e que esse tipo de ligação, apesar
de ciências que ainda estão em processo de construção, a hierarquia de estar ainda presente na ciência de Galileu e Newton, desapareceu na
explicativa e dedutiva ideal fornecendo uma concepção do telos em direção ciência dos séculos XIX e XX. Mas se isso tornou o pensamento de
ao qual a pesquisa científica move-se, mas também o é que os Aristóteles menos digno de confiança nos séculos recentes, por outro
procedimentos dialéticos através dos quais essas tarefas de construção lado, foi precisamente o fato de que forneceu uma garantia para a
são levadas a cabo nunca nos apresentem uma conclusão que não esteja teologia racional, ao ligar tal teologia com o resto das ciências, que
aberta a revisão, elaboração, reparos ou refutação futuros. A dialética tornou possível sua assimilação pelos pensadores islâmicos, judeus e
é essencialmente inacabada, em qualquer ponto de seu desenvolvimento.
Se persistimos numa conclusão alcançada através da argumentação
dialética, é apenas porque nenhuma experiência nos levou a revisar O que importa para minha argumentação é a alegação de que não
nossa crença de que, em nossas epagogai até agora, o no& tenha realmente é meramente a pólis, mas o próprio kósmos, a própria ordem das coisas,
apreendido os conceitos universais necessários para a fundação de nossas que fornece o contexto no qual a justiça e a racionalidade prática estão
archái e que nenhuma opinião alternativa proposta tenha sido capaz de relacionadas. O significado dessa alegação só pode emergir na dis-
resistir melhor às objeções do que a opinião à qual já chegamos. Mas cussão dos aristotélicos posteriores, para quem era tão crucial. A maioria
deles leu os textos políticos e morais de Aristóteles como partes do
a possibilidade de desenvolvimento dialético posterior fica sempre aberta,
tecido do sistema geral de pensamento de Aristóteles. O defeito
e é isso que torna possível o trabalho de uma tradição que elabora,
característico de suas exposições, nos seus piores momentos, foi tratar
revisa, corrige e mesmo rejeita partes do próprio trabalho de Aristóteles,
esses trabalhos a-historicamente, não vendo o desenvolvimento de
enquanto continua sendo fundamentalmente aristotélica.
Aristóteles de uma obra para a outra, como se já houvesse um sistema
Um segundo aspecto da filosofia de Aristóteles foi importante na completo desde o início, na mente de Aristóteles, que tivesse apenas de
formação das tradições aristotélicas particulares que floresceram nas ser transcrito parte por parte. O defeito característico de nossas exposições
comunidades islâmicas, judaicas e cristão-medievais. É central, na minha C exatamente o contrário. Nossas divisões curriculares, assim como
argumentação, o fato de que apólis, e na verdade uma concepção particular nossos hábitos mentais acadêmicos, levam-nos a tratar a Política como
da pólis, forneceu o esquema no qual Aristóteles desenvolveu sua objeto de interesse de um tipo de estudioso, os Analíticos Posteriores
compreensão da justiça, do raciocínio prático e da relação entre eles. como de outro, e assim por diante. Mesmo o próprio comentário de
Mas isso não pode ocultar o fato de que Aristóteles compreendeu o Aristóteles, de que a ética é um ramo da política, é ignorado por aqueles
movimento da potencialidade humana para sua atualização dentro da que discutem a Ética a Nicômaco independentemente da Política. Será
pólis como exemplo do caráter metafísico e teológico de um universo uma das tarefas centrais de minha exposição sugerir que isso não pode
perfectível. O seu universo é um'universo hierarquicamente estruturado ser feito sem distorcer nossa compreensão da Ética a Nicômaco.
- é por isso que a estrutura hierárquica das ciências é apropriada para
uma compreensão realista de tal universo - e cada nível da hierarquia Finalmente, é talvez necessário dizer que estarei principalmente
fornece a matéria na qual e através da qual as formas do próximo nível preocupado com a compreensão da Ética a Nicômaco. As tradições antiga
superior se atualizam e aperfeiçoam. O físico fornece o material para e medieval concordam em tratá-la como o trabalho no qual Aristóteles
a formação biológica, o biológico, o material para a formação humana. nos apresenta suas opiniões mais maduras e melhor desenvolvidas, em
contraste com a Ética a Eudemo, que é quase universalmente considerada
As causas eficiente e material servem às causas final e formal.
como uma obra anterior. Os comentadores modernos concordam quase
116 Aristbteles herdeiro de Platão

universalmente com seus predecessores. Mas recentemente Anthony


Kenny (The Aristotelian Ethics, Oxford, 1978) argumentou, mais
convincentemente do que já havia sido feito, que a Ética a Eudemo tem
tanto direito quanto a Ética a Nicômaco, e talvez mais, de ser considerada
a obra na qual o pensamento de Aristóteles adquire sua forma madura
e final. Capítulo VI1
É claro que a Ética a Eudemo ilumina certas posições de Aristóteles
de um modo e a um ponto que a Ética a Nicômaco não o faz, e a
argumentação de Kenny deixa todos os leitores de Aristóteles obrigados A VISÃO DE ARISTÓTELES
com relação a ele pelo que diz. Mas há dificuldades substanciais em
aceitar a posição de Kenny de que aqueles livros da Ética a Eudemo, SOBRE A JUSTIÇA
que não são comuns a ela e à Ética a Nicômaco, são posteriores e melhores
que os livros correspondentes da Ética a Nic6maco. Elas foram expostas
por T. H. Irwin numa revisão do livro de Kenny (The Journal of
Philosophy LXXVII,6,1980), e eu considero que fornecem bases adequadas
para sustentar que os argumentos de Kenny não devem sobrepujar o
testemunho da tradição. As explanações de Aristóteles sobre a justiça fazem pouca ou ne-
nhuma referência à sua compreensão do raciocínio prático; e as discussões
de Aristóteles sobre o raciocínio prático, ou sobre a teoria da ação de
um modo mais geral, tendem a não dizer nada sobre a justiça. Mas uma
vez que minha tese central será a de que o pensamento de Aristóteles
sobre cada um desses tópicos só é inteligível à luz do que diz sobre o
outro, e ambos apenas à luz do que diz sobre a pblis, não posso ex-
plicar por que, do ponto de vista de Aristóteles, a justiça é uma virtude
e o que implica ser justo sem discutir o papel essencial que o raciocí-
nio prático exerce para que alguém seja justo, ou dizer o que o raci-
ocínio prático é, sem explicar por que, do ponto de vista de Aristóteles,
ninguém pode ser racional de modo prático sem ser justo.
Numa pblis de cidadãos livres, o bom cidadáo deve ter o conheci-
mento e a habilidade para governar e para ser governado. Ser bom para
governar requer o mesmo tipo de excelência exigida do homem bom.
E não podemos ser bons para governar sem saber como ser um bom
cidadão sob o governo de outros. Portanto, o bem na pblis (e já vimos
que a excelência humana exige a pblis) exige a habilidade de exercer
, virtudes específicas no modo de ser governado e no modo de governar.
C
Exemplos de tais virtudes necessárias são sophrosyne e dikaiosyne. Assim,
i
a justiça enquanto uma única e mesma virtude, entretanto, impõe
i exigências um tanto quanto diferentes sobre os cidadãos em cada um
k desses diferentes papeis sociais (Polfrica 111, 2, esp. 1277b12-21).
O cidadão enquanto cidadáo deve não apenas obedecer, mas tam-
bém respeitar a lei. E a palavra 'dikaiosyne' é usada, segundo Aristó-
teles, em um de seus sentidos, para referir-se a tudo o que a lei exige,
118 Visdo de Aristóteles sobre a justiça Visão de Aristóteles sobre a justiça 119

isto C, o exercício de todas as virtudes por cada cidadão em seus re- Os leitores modernos de Aristóteles amiúde e compreensivelmente
lacionamentos com os outros cidadãos. Essa exigência ampla e geral discordam dessas exclusões por parte de Aristóteles, assim como dis-
deve ser diferenciada do que é exigido por 'dikaiosyne' empregada num cordam da exclusão da mulher da cidadania (Aristóteles acreditava que
sentido mais restrito, como o nome de uma virtude particular. Nesse as mulheres não podiam exercer o controle necessário sobre suas emo-
sentido a dikaiosyne é de dois tipos, distributiva e corretiva. A justiça ções) e de sua justificação da escravidão (Aristóteles acreditava que
corretiva tem a função de restaurar, na medida do possível, a ordem algumas pessoas são, por natureza, incapazes de se governar e, por
justa que foi parcialmente destruída por alguma ação ou ações injustas. isso, naturalmente escravas). A questão crucial é: que tipo de erro
estava implícito nessas exclusões e a que ponto elas comprometem as
A justiça distributiva consiste na obediência ao princípio de distribuição posições de Aristóteles? Parte do erro de Aristóteles pode muito bem
que define a ordem protegida pela justiça corretiva. ter surgido de um tipo de raciocínio falacioso típico de ideologias de
Os princípios que de fato governam a distribuição dos bens em cada predominância irracional. Suas premissas são, frequentemente, em parte
pólis particular, segundo Aristóteles, variam de um tipo de constituição verdadeiras e tornam-se de fato verdadeiras pelos efeitos da predomi-
política para outra. E quando atribuímos justiça a uma ação ou a um nância irracional. As pessoas reduzidas à condição de escravas real-
mente tomam-se em grande parte irresponsáveis, sem iniciativa, ansiosas
agente, em virtude de um ato ou de uma disposição, de acordo com o
por evitar o trabalho e incapazes de exercer autoridade. As mulheres,
princípio de distribuição constitucionalmente estabelecido. na pólis pressionadas por exigências incompatíveis com seu papel social e privadas
particular dessa pessoa, tudo o que estamos fazendo é atribuir uma de educação - determinadas, por circunstâncias variadas, a ser tão
justiça relafiva àquele princípio. A justiça atribuída absolutamente - mansamente complacentes quanto Ismene ou Crisótemis e tão desem-
isto é, sem qualificações - é a justiça que está de acordo com o baraçadamente leais à família como Antígona ou Electra - frequente-
princípio de distribuição que está ou estaria estabelecido no melhor mente apresentarão emoções fortes e indisciplinadas. O erro de Aris-
tipo de pólis (Política VII, 1238b 36-39). Que tipo de pólis? tóteles, e o de outros que raciocinaram da mesma maneira, foi não
Não é de surpreender que a justiça esteja naquilo que os melhores compreender como um certo tipo de dominação de fato causa essas
cidadãos determinam enquanto governantes e naquilo que é dado em características no dominado, que são então invocadas para justificar
retribuição. Todos, diz Aristóteles, concordam que a justiça na dis- uma dominação injustificada.
tribuição deve estar de acordo com algum tipo de merecimento; eles 6, portanto, importante perguntar se tais afirmações podem ser ex-
discordam quanto ao tipo de merecimento. Tipos diferentes de pólis e tirpadas do pensamento de Aristóteles sem negar suas teses centrais
partidos diferentes numa mesma pblis têm visões correspondentemente sobre o melhor tipo de pólis. E parece claro que sim (mas para outro
diferentes no que concerne ao merecimento. A democracia favorece ponto de vista veja-se o capítulo 4 de Susan M. Okin, Women in Western .
distribuições iguais entre todos os cidadãos livres, e a oligarquia favo- Political Thought, Princeton, 1979). Pois a alegação de que no melhor
rece uma restrição na distribuição de certos bens, os bens dos cargos tipo de pblis a distribuição de cargos públicos e o reconhecimento da
públicos, às classes privilegiadas por riqueza ou por nascimento. Mas ação honrosa serão feitos de acordo com a excelência, isto é, a virtude,
o tipo de constituição defendida por Aristóteles, e que é chamada por C independente de qualquer tese sobre que tipos de pessoas são ou não
ele de 'aristocracia', recompensa de acordo com a virtude (EN V, 1131a24- capazes de excelência. Os argumentos inválidos de Aristóteles chamam
29). A descrição de Aristóteles desse tipo de constituição depende em nossa atenção para o fato de que no melhor tipo de pólis, a participação
parte, infelizmente, de sua crença de que a participação em certos tipos da mulher ou dos artesãos exigiria um tipo de reestruturação de seus
de cargos - artistas, mercadores e camponeses - impede o exercício papéis ocupacionais e sociais inconcebível para o próprio Aristóteles,
exigido da virtude necessária para a participação na vida ativa do melhor apesar de vislumbrada, no caso das mulheres pelo menos, por Platão.
tipo de pólis (Política VII, 1328b34-1329a2). Apesar de membros desses Além disso, pode muito bem ser que haja realmente ocupações parti-
grupos desempenharem funções necessárias à sobrevivência da pólis e % cularmente adequadas ao exercício da virtude cívica -Thomas Jefferson
serem parte da pólis, não devem ser cidadãos. Um dos erros da demo- , pensava que a vida de uma camponesa era desse tipo - ou que, por
cracia, do ponto de vista de Aristóteles, é que é não-seletiva na admissão visar objetivos contrários aos do melhor tipo de pólis, são particular-
dos membros de todas as classes à cidadania; o erro da oligarquia é que ) mente inimigos da virtude - Dante pensava que isso valia para a
seleciona através de critérios irrelevantes em relação à virtude. 3 atividade bancária.
e:
120 Aristóteles herdeiro de Platão Aristdteles herdeiro de Platão 121

O que, portanto, permanece intocado, até agora pelo menos, na sem possuir essa virtude, parece necessário que alguém que faz julga-
visão de Aristóteles do melhor tipo de pólis é a tese de que uma mentos justos seja não apenas justo, mas também moderado, corajoso,
constituição política concebida para promover o exercício da virtude generoso e assim por diante. Talvez por isso, na passagem central da
na vida política deverá preocupar-se com a estrutura ocupacional da Política que citei anteriormente (1253a31-37), Aristóteles relacione a
pdlis. Fica também claro que, apesar de Aristóteles apoiar sua compre- ausência de dikaiosyne à ausência da própria areté.
ensão da ordenação hierárquica do melhor tipo de pólis em alguns erros, A justiça distributiva consiste na aplicação de um princípio de
o melhor tipo de pólis terá uma ordem hierárquica. Isso se deve ao fato merecimento a uma variedade de situações. Mas os princípios de me-
de que a pólis terá de treinar seus cidadãos no exercício das virtudes. recimento só têm aplicação em contextos que satisfaçam duas condi-
A hierarquia do melhor tipo de pólis implica ensinar e aprender, não ções. Deve haver algum projeto comum para a realização de cujos
a dominação irracional.
objetivos os que são considerados mais merecedores contribuíram mais
Aristóteles pensa a vida humana no melhor tipo de pólis em termos do que os que são considerados menos merecedores; e deve haver uma
de estágios: da infância à puberdade, da puberdade aos vinte e quatro visão comum de como tais contribuições devem ser medidas e como as
anos, a vida do adulto em pleno vigor e a vida do adulto experiente, recompensas devem ser classificadas. Essas condições são ambas satis-
mais velho. Nos dois primeiros estágios, o jovem deve receber edu- feitas na vida da pólis. É um empreendimento que visa à realização do
cação em ambas as virtudes de caráter e de inteligência. Quando jovem bem humano como tal, e ocupações diferentes e postos públicos dife-
o cidadão deve à cidade seu serviço como soldado. Mais tarde deve a rentes contribuem de modos diferentes e em graus diferentes para esse
ela seu serviço em postos públicos, incluindo magistraturas administra- empreendimento comum. Portanto, essa realização deve ser medida
tivas, serviço como jurado nas cortes e como legislador na assembléia. considerando-se a importância do papel ou da posição de algum cida-
A medida que passa de papel a papel, como governante e como governado, dão particular e como ele o desempenhou. A estrutura da pólis também
terá, se deve merecer honra, de aprender como exercer toda uma série
expressa um acordo quanto a como o feito deve ser medido, não apenas
de virtudes. Mas em todas elas deverá principalmente aprender a
na sua classificaçáo dos bens realizados no desempenho de diferentes
compreender o princípio da justa distribuição e a ser movido por uma
disposição a conformar-se a ele. Para tal terá de vir a reconhecer que papéis e postos oficiais - general, poeta trágico, camponês, orador,
bens são devidos a certas pessoas numa variedade de situações, algo pedreiro etc. - e pela importância das honras conferidas, mas também
que na visão de Aristóteles requer experiência e hábito, assim como negativamente por sua escala de punições e privações.
uma razão reta. Esses acordos socialmente expresso, parcialmente constitutivos de
A justiça, portanto, ocupa uma posição central entre as virtudes. uma pblis, conseguem integrar e ordenar os bens específicos dos tipos
de atividade nos quais os gregos pós-homéricos vieram a reconhecer
Devido aos tipos diferentes de realização nos diferentes tipos de situ-
adrões impessoais e objetivos de excelência: guerra e combate, de-
ação, devido ao caráter diferente dos bens em questão nos diferentes
mpenho atlético e ginástica, poesia de vários tipos, retórica, arquitetura
tipos de situação, será impossível julgar com justiça e, consequente-
mente, impossível agir com justiça, a não ser que se possa também escultura, agricultúra e uma série de outras technai, e a organização
manutenção da própria pólis. Assim, o bom nível de um cidadão é em
julgar corretamente em relação a toda uma série de virtudes. A cora-
rande parte constituído por sua qualidade enquanto cavaleiro, soldado
gem e a habilidade necessárias nas ações militares, a temperança exi-
gida com relação aos prazeres, a liberalidade ou munificência que merece u poeta dramático, e o bom nível de alguém que é artesão é em grande
arte sua qualidade enquanto fabricante de flautas ou de freios. As
ser bem-tratada pela pólis devido à provisão de recursos para uso público,
tividades são hierarquicamente ordenadas em função de suas relações:
a excelência intelectual e estética que faz com que este dramaturgo OU
excelência em fabricar flautas justifica-se pela excelência em tocá-
poeta lírico mereça o prêmio e não outro, tudo isso pode, em momen-
ias, a excelência em fabricar freios justifica-se pela excelência em
tos diferentes, ter de ser julgado corretamente se se deve fazer um
ontar cavalos que, por sua vez, justifica-se pela excelência militar, e
julgamento justo. Mas uma vez que, segundo Aristóteles, é geralmente
impossível julgar consistentemente com justiça uma virtude particular ssa pela excelência política.
Aristóteles herdeiro de Platão Aristóteles herdeiro de Platão 123

A excelência política e, acima de tudo, a excelência do legislador vantagem devem ser tratados como predominantes é induzir à resposta:
consistem em ser bom em ordenar bens tanto em geral como em situ- vantagem e conveniência para que tipo de pessoa?
ações particulares. O que não significa, tampouco em Aristóteles, que
Do ponto de vista de um protagonista dos bens de eficácia - um
os únicos bens a que a cidade visa sejam políticos. A pdlis, pelo menos
Cálicles ou os delegados atenienses em Melos - essa réplica não tem
o melhor tipo de pólis, visa alcançar todos os bens de seus cidadãos,
força alguma. Pois a sua concepção de eficácia ou vantagem é tal que
e para os seres humanos o mais alto bem a ser alcançado, o que numa
deve ser definível independente e anteriormente a qualquer estudo par-
vida individual é aquilo em função do que tudo mais é feito, é a theoria,
ticular das virtudes e das excelências, como o de Aristóteles, uma vez
um certo tipo de compreensão contemplativa. As atividades virtuosas
que essa definição deve oferecer o padrão pelo qual tais explicações
que capacitam alguém para servir à pólis culminam e são aperfeiçoadas
devem ser julgadas. Portanto, no núcleo dessa concepção está uma
numa realização intelectual interna à atividade do pensamento (Política
noção do indivíduo humano como tal, cujas medidas de valor são dadas
VII,1325b14-23).
por quaisquer desejos ou bens que possa ter, um indivíduo ainda inocente
Portanto, não há qualquer incompatibilidade entre a busca da vir- quanto a determinadas crenças sobre o bem humano ou sobre regras
tude cívica e a da virtude individual. A virtude com que o homem bom morais, uma vez que é esse indivíduo que tem de decidir que crenças
desempenha seus papéis sociais projeta-o finalmente para o aper- é racional adotar, a partir de seus desejos e objetivos. Do ponto de
feiçoamento de sua própria alma na atividade contemplativa. E os bens vista de Aristóteles, isto significa tornar o padrão de açáo correta na
internos à atividade contemplativa, bens alcançados quando a inteligência pblis, não o que o homem bom faria, mas-o que qualquer um que
humana apreende aquilo em função do que tudo o mais no universo consultasse seu próprio interesse faria, sendo virtuoso ou não; é preci-
existe e assim completa sua própria atividade, são tais que, à sua luz, samente o erro das oligarquias e das democracias permitir que tais
as excelências alcançadas no exercício das outras virtudes - as virtudes pessoas participem das deliberações e processos de decisão políticos.
da vida política, principalmente dikaiosyne e phrónesis - são consi- Do ponto de vista dos protagonistas dos bens de eficácia, a pólis é sempre,
deradas secundárias (EN 1178a9). A felicidade alcançada na vida política basicamente, uma arena de interesses rivais, seja esse fato reconhecido
é puramente humana; a felicidade da atividade contemplativa leva a um
ou não, e pode-se esperar que cada tipo de pólis expresse os interesses
nível mais alto, "divino em comparação com a vida humana" (EN
particulares do tipo de pessoas que a dominam, como Trasímaco argu-
1177b32).
menta na República, livro I. Desse modo, a discordância fundamental
Temos agora condições de situar as afirmações de Aristóteles sobre entre as duas posições não está na classificação comparativa dos bens
a justiça no debate grego que caracterizei em termos de rivalidade de eficácia em relação aos bens de excelência, mas, mais fundamen-
entre os protagonistas dos bens de excelência e os dos bens de eficácia. talmente, na questão de como e em que esquema conceitual devemos
Aristóteles diz que, em nossas atividades, podemos visar ao ótimo ou compreender tanto a excelência como a eficácia.
ao nobre (tò kalbn), ao oportuno ou ao prazeroso, e o homem bom de
fato visa ao ótimo, que valoriza em si, assim como pela sua parte na Segundo Aristóteles, a posição dos protagonistas dos bens de eficá-
constituição da eudaimonia. Mas isso não significa que o homem bom cia impede a açáo racional. Pois é verdade - e aqui devo adiantar a
não vise, em certas ocasiões, ao oportuno, assim como não significa compreensão de Aristóteles do raciocínio prático - que, para Aristó-
que não reserve um lugar adequado ao prazer na sua vida. A diferença teles, ser virtuoso é um pré-requisito para tal racionalidade. Mas até
entre a pessoa virtuosa e as outras está, ao contrário, no fato de que o mesmo dizendo isso sem maiores elucidações, fica claro que para
que é oportuno para a pessoa virtuosa, assim como o que lhe dá prazer, Aristóteles o conteúdo da noção de decisão racional deve ser muito
é muito diferente daquilo que é oportuno tanto para a pessoa má como diferente do que é para os protagonistas dos bens de eficácia. Para eles
para a pessoa que apenas tem o desejo indisciplinado. O que alguém p a ação racional só pode ser baseada num cálculo racional de que meios,
considera vantagem para si depende do que visa, e os objetivos do com o menor custo para a satisfação de seus desejos, alcançarão os fins
homem bom são muito diferentes dos objetivos seja do mau seja do I propostos a eles por seus desejos dominantes, quaisquer que sejam.
indisciplinado (akratés). De modo que, a partir do esquema de Aristóteles, Entretanto, de um ponto de vista aristotélico, tal cálculo não pode ser
até mesmo levantar a questão sobre se os bens de conveniência ou racional. Por que não?
h
124 Aristóteles herdeiro de Platdo Aristóteles herdeiro de Platão 125

As virtudes são, segundo Aristbteles, disposições para agir de mo- Aristóteles o apresenta. Os imaturos são excluídos desta audiência,
dos específicos por razões específicas. Educar para a virtude implica o porque não são ainda suficientemente experientes ou disciplinados em
controle, a disciplina e a transformação dos desejos e sentimentos. suas paixões (EN 1095a2-8), enquanto os que não pertencem à pólis
Essa educação permite a uma pessoa exercitar as virtudes de modo que terão tido o tipo errado de educação. E, certamente, há exemplos da
não apenas valorize cada virtude em si mesma, mas que também com- pólis nos quais erros fundamentais sobre o télos da vida e sobre as virtudes
preenda o exercício das virtudes como sendo também necessário para como meios para esse télos resultam na educação falha mais ou menos
ser eudaimon, para que se possa desfrutar o tipo de vida que constitui sistemática dos cidadãos. Como ficamos n6s, leitores modernos de
a vida boa e melhor para os seres humanos. E o conhecimento que Aristóteles? É claro que, no mínimo, devemos, em primeira instância,
permite a alguém compreender por que esse tipo de vida é de fato o nos identificar imaginariamente com o ponto de vista do cidadão de
melhor só é alcançado como resultado de se ter tornado uma pessoa uma pdlis bem-ordenada. Um eventual crítico moderno de Aristóteles,
virtuosa. Mas sem esse conhecimento, o julgamento e ação racionais que necessariamente teve uma educação política e cultural muito diferente
são impossíveis. Não ser educado nas virtudes é precisamente ser ainda da pressuposta por Aristóteles em seus leitores, será incapaz de com-
incapaz de julgar corretamente o que é bom ou melhor para si mesmo. preender, e muito menos de criticar, as teses de Aristóteles, se não
descartar, pelo menos temporariamente, o ponto de vista da moder-
Há uma analogia importante entre como uma capacidade para o nidade. Pois nem mesmo o vocabulário de Aristóteles pode ser corre-
julgamento correto em relação à vida boa para os seres humanos como tamente traduzido numa língua que pressupõe as crenças características
tal se desenvolve no contexto fornecido pela pólis, e como capacidades da modernidade. Consideremos, por exemplo, a diferença entre a re-
para tipos mais particulares de julgamento correto se desenvolvem no sposta de Aristóteles à questão sobre em que consiste a injustiça e
contexto de todas aquelas formas mais particulares de atividade, nas respostas caracteristicamente modernas.
quais são reconhecidos padrões de excelência. Assim como é necessário
um aprendizado em escultura ou arquitetura, a fim de se poder reco- Já observamos que a justiça, como as outras virtudes, é valorizada
nhecer o desempenho excelente nessas artes, assim como é necessário tanto por ela mesma como pelo télos, o tipo de vida que é melhor para
treinamento em habilidades atléticas para que se possa reconhecer os seres humanos viver, porque a justiça, como as outras virtudes,
adequadamente a excelência na atividade atlética, também a capacidade permite-nos evitar os estados viciosos de caráter, incompatíveis com a
para identificar e ordenar os bens da vida boa, cuja realização implica efetivação desse tipo de vida. A cada virtude correspondem dois estados
a ordenação de todos esses outros conjuntos de bens, exige um treinamento viciosos de caráter. Agir virtuosamente significa agir de acordo com
de caráter em e para essas excelências, um tipo de treinamento cujo uma média, um estado médio entre os dois extremos de vício. Os dois
sentido emerge apenas ao longo do processo. Esse tipo de aprendizado, extremos, no caso da dikaiosyne, são agir de modo a engrandecer a si
como outros, é o que os que não tiveram acesso à educação, se deixados mesmo, independente de seus méritos, e agir de modo a sofrer injustiça
a si mesmos, não querem e não podem querer: "Os que estão aprendendo voluntariamente, isto é, submeter-se a danos não-merecidos ou aceitar
não estão brincando; aprender implica dor" (Política VIII,1239a29). um bem inferior ao que merece. O primeiro, comenta Aristóteles, é um
vício mais importante do que o último, e às vezes escreve como se
Segue-se que, para aqueles que ainda não foram educados nas vir- simplesmente fizesse a injustiça corresponder a esse vício. Seu nome
tudes, a vida das virtudes parecerá necessariamente sem justificação é pleonexia (1129b9), e Hobbes pode ter sido o primeiro escritor de
racional; a justificação racional da vida virtuosa dentro da comunidade língua inglesa a explicar 'pleonexia' como sendo "desejar mais do que
da pólis só está disponível àquel,es que já participam mais ou menos sua parte" (Leviatã, 15). Mas embora quando alguém comete injustiça
completamente daquela vida. A Etica a Nicômaco e a Política devem, por causa desse traço de caráter a injustiça implique tentar tomar mais
portanto, ser lidas como dirigidas a um tipo particular de audiência, do que a sua parte, o que é devido a alguém, o próprio traço de caráter,
composta pelos cidadãos maduros da pólis. Só eles terão tido o tipo de pleonexia, é, nada mais nada menos, que mera cobiça, isto é, agir de
experiência que os tornará capazes de compreender os padrões e valores modo a ter mais.
implícitos na vida de qualquer pólis toleravelmente bem-ordenada, padrões
e valores que, quando explicitados, fornecem os princípios de ordem Na sua discussão do lugar do dinheiro na vida humana, no livro I
para a constituição e instituições do melhor tipo de pólis, tal como da Política, Aristóteles identifica os erros cometidos por aqueles que
126 Aristóteles herdeiro de Platão Aristóteles herdeiro de Platão 127

exemplificam uma versão desse traço de caráter, os que buscam ad- dá prazer a tais pessoas lhes será significativamente negado por tal
quirir mais e mais dinheiro, sem limites: "A causa dessa condição é o distribuição de bens. O encrático é aquele que já aprendeu a controlar
zelo pela vida, mas não pela vida boa" (1257b41). Tal busca de riqueza seus desejos, de modo que a realização de atos virtuosos não é impos-
sem limites pode ocorrer ou por ela mesma ou pelos prazeres corporais sibilitada por esses desejos, mas os próprios desejos ainda não foram
ilimitados que, acredita-se, podem ser conseguidos com a riqueza ili- transformados pelas virtudes. Assim, até certo ponto pelo menos, pes-
mitada. Em qualquer dos casos, o traço de caráter exibido e desen- soas encráticas agem virtuosamente apesar de seus desejos, e não por
volvido por tal atividade não estará dirigido de acordo com a média causa deles. E tais pessoas farão a experiência do exercício das virtudes
que guia em direção ao télos da vida boa para os seres humanos. em geral, e da justiça em particular, como uma questão de limites
psicológicos negativos. Mas isso não ocorrerá com os virtuosos, que
Assim como a tradução de Hobbes de 'pleonexia' é mais engana- diferem dos encráticos à medida que não mais têm prazer naquilo que
dora do que errada, e por essa razão tanto mais perigosa, também o é é contrário à virtude e têm real prazer no exercício das próprias virtudes.
a tradução recente de T. H. Irwin (que também cita Hobbes: The Ni- As ações justas estão entre aquelas que o virtuoso quer realizar por
comachean Ethics, Indianapolis, 1985,331.413), que usa a palavra inglesa elas mesmas, assim como pelo papel que desempenham na constituição
'greed' (ganância, avidez). Mas 'greed' é, como observa Irwin, o nome e efetivação da vida boa para os seres humanos.
de um tipo de desejo, enquanto 'pleonexia' denomina uma disposição
para se empenhar num tipo de atividade; e em inglês tratamos 'greed' Dizer que as ações justas devem ser buscadas por si mesmas é
como o nome de um motivo para atividades de aquisição, não como o dizer, não que nada pode superar as exigências da justiça, mas que toda
nome de uma tendência para se empenhar em tais atividades por elas a noção de avaliar as exigências da justiça a partir de algum outro
mesmas. O que tais traduções de 'pleonexia' escondem de nós é a extensão padrão é, do ponto de vista do virtuoso, um erro. Pois, que uma ação
da diferença entre o ponto de vista de Aristóteles sobre as virtudes e seja justa não C meramente uma entre as preferências da pessoa virtu-
vícios, e mais especialmente entre seu ponto de vista sobre a justiça e osa, competindo enquanto exigência com outras preferências. É que ser
o ponto de vista dominante nas sociedades peculiarmente modernas. justo é considerado uma condição para se alcançar qualquer bem e
Pois os seguidores desse ponto de vista reconhecem que essa cobiça é implica preocupar-se com e valorizar ser justo, mesmo se não levasse
um traço de caráter indispensável para o crescimento econômico contínuo a nenhum outro bem. É em parte nessa indiferença aristocrática em
e ilimitado, e uma de suas crenças principais é que o crescimento relação às conseqüências que reside a nobreza, a fineza do exercício de
econômico contínuo e ilimitado é um bem fundamental. Que um pa- tais virtudes. Foi esse traço, essa elegância de estilo que a virtude
drão de vida sistematicamente mais baixo deva ser preferido a um possui que os espartanos em Termópila apresentaram quando pentea-
padrão sistematicamente mais elevado é um pensamento incompatível, ram os cabelos antes de lutar até a morte (Heródoto VII, 207; o exem-
seja com a economia seja com a política de sociedades peculiarmente plo é meu, não de Aristóteles); e essa mesma fineza faz parte, propor-
modernas. Assim, preços e salários passaram a ser compreendidos como cionalmente, de toda ação justa realizada porque justa, simplesmente.
não tendo relação - e realmente numa economia moderna não poderiam L
A pessoa que viola a média da justiça, não por pleonexia, mas por
estar relacionados - com o merecimento em termos de trabalho, e a receber menos de algum bem do que merece, pode muito bem ter feito
noção de justo preço e justo salário em termos modernos não faz nenhum i algo que na verdade é injusto - apesar de Aristóteles observar que
sentido. Mas uma comunidade que fosse guiada por normas aristotélicas , pode ter agido assim porque teria obtido mais de algum outro bem
teria não apenas de compreender a cobiça como um vício, mas também C
(1136b21-22) -, mas não terá voluntariamente cometido injustiça contra
I
de estabelecer limites rígidos para o crescimento à medida que fosse si mesmo. Pois ninguém poderia fazer isso uma vez que ninguém poderia
necessário para preservar ou aumentar a distribuição de bens de acordo
com o merecimento. r
V conscientemente infligir um mal injustificado contra si mesmo, e co-
meter injustiça é fazer um mal injustificado. Realmente, é assim que
deve ser, uma vez que a justiça deve ser valorizada por si mesma.
A justiça, portanto, impõe constrições negativas, mas são constrições
contra o vicioso e o encrático, a pessoa que foi disciplinada, não contra Há, obviamente, uma distinção crucial entre uma ação justa reali-
o virtuoso. O injusto não poderá alcançar seus objetivos sem violar os zada porque justa, o tipo de ação realizada por uma pessoa genui-
cânones da distribuição de bens de acordo com o merecimento, e o que namente justa, e uma ação justa realizada por algum outro motivo. Há
128 Aristóteles herdeiro de Platão Aristóteles herdeiro de Platão 129

alguns tipos de ação que é sempre injusto realizar, ações injustas por dos conceitos e premissas básicos de uma ciência (aqueles anteriores
natureza. Mas o motivo para se abster de ações desse tipo não será em definição) tem de ser qualificada à luz de premissas independentes
sempre a justiça como um traço de caráter; o medo do castigo ou do adicionais que ela é menos simples e portanto menos exata (ver EN
opróbrio pode também motivar no mesmo sentido, e tal medo pode ser 1148a10-11, Metafisica VI1 1030a28-4, e a excelente elucidação dessa
expressão de um respeito virtuoso pelas leis e pela boa opinião do área do pensamento de Aristóteles no capítulo 4 de J. D. G. Evans,
virtuoso ou uma expressão de algum traço vicioso de caráter, tal como Aristotle's Concept of Dialectic, Cambridge, 1977, 85-89). Passando
a covardia. É realmente porque as ações justas podem ser realizadas dos casos mais simples aos casos mais complexos, portanto, ao aplicar
por aqueles que não são justos, ou que pelo menos ainda não são OS termos 'justo' e 'injusto7, devemos ser cada vez mais aptos a utilizar
justos, que a educação tem a estrutura que tem. as premissas independentes adicionais relevantes. O conhecimento dessas
Tornamo-nos justos, em primeiro lugar, ao realizar atos justos (EN premissas só pode ser adquirido através da experiência. É por isso que
1103a31-1103b2), atos que ex hypothesi ainda não são expressões do os jovens, que ainda não têm a experiência relevante necessária, não
traço de caráter da justiça e que não podemos ainda justificar racional- são capazes de empreender uma pesquisa ética, mas devem antes cultivar
mente. Como, então, sabemos que atos realizar e qual pode ser nossa os hábitos que os tomarão capazes não apenas de adquirir essa experiência,
motivação para fazê-lo? Simplesmente temos de aprender, com aqueles mas também de disciplinar suas paixões, despindo-as de suas outras
que já possuem a educação moral que ainda não temos, que atos devem desqualificações para a pesquisa ética (EN 1094b28-1095a8).
ser realizados enquanto atos justos, e é presumivelmente a fim de agradá- Podemos compreender melhor aquilo de que se trata aqui, se carac-
-los que agimos de acordo com seus preceitos. O que aprenderemos terizarmos esse processo de educação moral usando uma noção que o
com esses preceitos é que certas regras de distribuição devem sempre
próprio Aristóteles não usa nesse âmbito, a noção de regra. O que o
ser observadas e que, de acordo com isso, certos tipos de ação que
sempre violariam tais regras não devem nunca ser realizadas. iniciado aprende de seus instrutores é como aplicar uma regra relati-
vamente simples; certos tipos de ação são caracterizadas como justas,
Tendo aprendido como aplicar os predicados 'justo' e 'injusto' em outras como injustas, e o iniciado adquire a disposição de fazer o que
tais casos, devemos continuar a aprender como seu uso pode ser am- a regra prescreve, compreendendo como identificar o âmbito relevante
pliado para caracterizar casos nos quais tipos de ação, de outro modo de atos e realizando-os habitualmente. Em seguida o iniciado é capaz
e geralmente, mas não universalmente, prescritos ou proibidos como de aprender o lógos da justiça: como fornecer uma justificação racional
justos ou injustos, exigem um julgamento que leva em consideração as para a realização de atos justos e como encontrar aplicação para essa
circunstâncias que fornecem as bases para um julgamento que seria, na justificação numa série de casos não-incluídos na formulação original
ausência desse tipo de circunstância, falso. E ao aprender quando as da regra de justiça. O que a visão de Aristóteles requer aqui, no sentido
circunstâncias são relevantes ou não, estaremos aprendendo como passar de um aprendizado bem-sucedido, é exatamente o que o Sócrates pla-
de um julgamento em casos mais simples a um julgamento em casos t8nico mostrou repetidas vezes, através do uso de elknchos, que seus
mais complexos. Essa complexidade de julgamento que a justiça requer interlocutores ainda não tinham conseguido aprender. Tomemos um
é o tipo de complexidade que faz da pesquisa da natureza da justiça . exemplo platônico.
uma ciência menos exata do que a matemática, por exemplo. Aristóteles
classifica as pesquisas e os corpos de conhecimento, teóricos e práti- A formulação elementar da regra de justiça exige queeu, se estiver
cos, em termos do grau de exatidão (akribeia) adequado a cada um em posse de algo que, por direito, pertence a outro, devo restituí-10.
(1094b11-16). A política como um todo, a ciência à qual pertence a Mas o +e acontece se a outra pessoa passa a sofrer distúrbios mentais
pesquisa da natureza da justiça, cujo estudo leva à boa prática, à boa e o objeto em questão é uma faca? Como deve a regra de justiça ser
atividade e é expresso nelas, é classificada juntamente com as ciências formulada para ser aplicada neste caso? O que tem de ser encontrado
menos exatas. O que quer Aristóteles dizer com "exatidão"? f 6 um ldgos que forneça a mesma justificação fundamental tanto para a-
\ aplicação da formulação original da regra aos casos principais, aos
Uma ciência é exata à medida que "trata de coisas anteriores em quais se aplicava inequivocamente, como para o tratamento desse novo
definição e mais simples" (Metafísica XIII 1078a9-10), e em outro trecho /i tipo de caso. Não há objeções quanto a se considerar o resultado desse
Aristóteles deixa claro que é à medida que uma concepção derivada Processo de aprendizado em termos da aquisição de uma habilidade,
130 Aristóteles herdeiro de Platão Aristóteles herdeiro de Platão 131

cada vez mais sofisticada, de propor uma justificação racional para a and Practical Reason", Proceedings of the Aristotelian Sacies) 1975-1976,
aplicação de uma regra ou conjunto de regras cada vez mais complexo. reimpresso em J. Raz [ed.], Practical Reasoning, Oxford, 1978, 148).
Mas é também cmcial compreender que nem o movimento de sofisti- Aristóteles discute um problema paralelo em aritmética nos Analíticos
cação progressiva da habilidade de julgar como as regras de justiça se Posteriores (11, 96a33-bl) quando analisa o conceito de uma tríade nos
aplicam e de justificar esses julgamentos, nem o movimento corres- seus elementos, os conceitos do número, ímpar e primo em dois sen-
pondente que vai do uso de versões mais simples da regra de justiça ao tidos. Assim, também no raciocínio prático, a identificação dos ele-
uso de versões mais complexas são tipos de atividade governados por mentos particulares relevantes de uma situação não pode ser governada
regras. Como, então, são governados? por regras. Fica claro o fato de que deve haver, no juízo e na ação
O movimento do aprendizado consiste no desenvolvimento de pelo avaliativos, algum tipo de atividade não-governado por regras, e isso
menos dois conjuntos relacionados de disposições, duas virtudes, a da por uma razão que Aristóteles nunca discute, talvez porque não consi-
própria justiça e a da phrónesis, a inteligência prática. Phrbnesis é o derasse esses assuntos nos termos do conceito de uma regra. Suponha-
exercício de uma capacidade de aplicar verdades sobre o que é bom mos que a própria phrónesis devesse ser governada por regras, e, ao
para tal tipo de pessoa ou pessoas fazerem em geral e, em certos tipos exercê-la, aplicássemos regras a casos particulares não apenas ocasio-
de situação, a si mesmas em ocasiões particulares. O phrónimos é capaz nalmente, mas que teríamos de seguir regras ao aplicar regras. Então,
de julgar que verdades são relevantes para ele na sua situação particular ou essas regras de segunda ordem seriam aplicadas através do exercí-
e, a partir desse julgamento e de sua percepção dos aspectos relevantes cio de alguma capacidade não-governada por regras ou um outro conjunto
de si mesmo e de sua situação, agir corretamente. A virtude da justiça, de regras de terceira ordem seria necessário para saber como aplicar as
como qualquer outra virtude moral, não pode ser exercida sem que a regras de segunda ordem, e assim por diante. Confrontamo-nos então
phrónesis seja também exercida. Pois as verdades sobre o que é justo com as seguintes alternativas: ou temos de postular uma hierarquia
são uma subclasse de verdades sobre o que é bom, e a habilidade de infinita de regras ou há um tipo de atividade que pode envolver a
expressá-las na ação é a habilidade phronética de expressar essas aplicação de regras em instâncias diversas, mas que não é governada
verdades do modo como for necessário em casos particulares. por regras. E uma vez que há razões decisivas para rejeitar a primeira
É claro que Aristóteles não considerava a atividade phronética em conclusão, temos boas razões para aceitar a segunda. Mas se essa con-
si mesma como governada por regras - apesar de ela implicar, no clusão deve ser usada para fundamentar um ponto de vista aristotélico,
caso da justiça pelo menos, a aplicação e ampliação de regras. Pois, ao é importante poder dizer o que é que torna esse tipo de atividade não-
exercer a phrónesis, compreendemos por que esta situação particular governada por regras capaz de justificação racional.
faz com que o exercício de alguma virtude moral particular ou a apli-
cação de alguma regra de justiça particular, ao agir de algum modo Posso cometer erros ao tentar fazer julgamentos phronéticos sobre
particular, seja a coisa certa a fazer. E não há regras para gerar esse casos particulares. Meus julgamentos podem ser falsos ou verdadeiros.
tipo de compreensão praticamente efetiva dos particulares. Aristóteles Um julgamento falso será aquele que não identifica corretamente o
faz uma analogia com a geometria: "Ela (phrónesis) está no extremo bem ou os bens que estão em questão nessa situação particular, seja
oposto ao noiis. Pois o nois trata das definições para as quais não há porque compreendi mal a situação, seja porque minha compreensão do
explicações ulteriores, enquanto a phrónesis trata do que é último, não bem ou bens relevantes, a justiça por exemplo, é inadequada. Segue-
com respeito ao conhecimento, mas à percepção, não as percepções dos -se que os julgamentos verdadeiros serão os que fazem ou pressupõem
'
sentidos, mas a percepção através da qual percebemos que o elemento uma explicação correta do bem ou bens relevantes, de sua relevância
Último num problema matemático é um triângulo; pois também aí haverá para essa situação particular e da própria situação. Portanto, passar de
um termo final" (Ética a Nicômaco, 1142a25-29). A analogia é com o uma menor para uma maior habilidade em fazer julgamentos verdadeiros
geômetra que, para descobrir como construir um certo tipo de figura f 'nieirá uma concepção progressivamente mais adequada do bom e melhor
plana, tem de identificar os elementos básicos a partir dos quais deve c . ~ a . i os seres humanos e da série de bens, tal como a justiça, que são
rB Partes constitutivas do bom e melhor. O que, segundo Aristóteles, toma
começar, sendo que não tem nenhuma regra para orientá-lo (sou re-
conhecido B paráfrase esclarecedora de David Wiggin em "Deliberation 1 uma concepção mais adequada do que a outra?
132 Aristóteles herdeiro de Platão Aristóteles herdeiro de Platão 133

É impossível, neste estágio da argumentação, sequer esboçar uma nosso ponto de vista genérico é correto. Assim, a negação de Aristó-
resposta decisiva sem nos aprofundar não apenas na concepção aristo- teles de que a vida em-função-de-ganhar-dinheiro seja a vida boa para
télica do raciocínio prático, mas também na sua visão da relação entre os seres humanos, no livro I da Ética a Nicômaco, é reforçada por sua
o raciocínio prático e o raciocínio teórico. Mas podemos dizer o seguinte: visão de como a vida em-função-de-ganhar-dinheiro produz falsas crenças
o télos da pesquisa teórica em ética é elaborar uma concepção totalmente sobre o télos da vida humana, no livro I da Política.
adequada e racionalmente sustentável do bom e melhor; quanto mais
nos aproximarmos de tal concepção, maior será o espectro de fenômenos Mais importante ainda, o uso que fazemos da epagogé, indo de
políticos e morais - ações, julgamentos, disposições, formas de or- exemplos particulares daquilo que consideramos ações e julgamentos
ganização política - que se mostrarão suscetíveis de explicação dentro corretos para uma visão do que é o bom e melhor, é complementado
do esquema conceitual e teórico, cujo princípio básico último é a por outro recurso da dialética, a confrontação de opiniões alternativas
concepção do bom e melhor; e os métodos de argumentação que Aris- e opostas, especialmente das mais plausíveis e convincentes, de modo
tóteles usa, tanto para elaborar como para justificar tais explicações, que possamos chegar a uma conclusão quanto a qual delas resiste melhor
são em parte demonstrativos, em parte os tipos de argumentação dialética às mais fortes objeções que podem ser propostas a partir das outras.
discutidos nos Tópicos, incluindo a epagogé. Esse é o tipo de pesquisa, das opiniões rivais e conflitantes sobre a
Portanto, ao ampliar a série de julgamentos referentes, por exem- vida de eudaimonia, que Aristóteles conduz no livro I da Ética a
plo, à justiça, indo do mais simples ao mais complexo, o phrónimos Nicômaco, ilustrando sua tese (Tópicos 1,101a36-101b2) de que é no
não faz e não pode fazer uso de qualquer regra ou critério; não obstante, estudo dos primeiros princípios de toda ciência que a dialética encontra
há um ponto de vista do qual a adequação de seus juízos pode ser um de seus usos principais.
avaliada. Examinados retrospectivamente, os juízos e ações dophrónimos
- isto é, se o phrónimos está de fato julgando e agindo como um O phrónimos pode sempre esperar que seus juízos atuais sejam jus-
phrónimos deveria - se revelarão tais como seria exigido por uma tificados por estarem de acordo com a concepção do bom e melhor que
concepção adequada do bom e melhor. Como, então, deve uma con- a pesquisa dialética estabelece. Mas no momento em que tem de julgar
cepção do bom e melhor ser adquirida? um ato, pode não estar ainda em condições de invocar tal concepção e
pode muito bem não ter um padrão externo ao seu próprio juízo a o qual
Ao tentar responder a essa questão, confrontamo-nos com algo que possa referir-se. Não obstante, descobrirá, como observamos anterior-
pareceu, a alguns, um paradoxo. A fim de nos tornar adequadamente mente, que à medida que desenvolve a virtude da phrónesis, seus juízos
phronéticos em juízo e ação, é necessário ser guiado por uma con- serão cada vez mais informados pelo alcance cada vez maior de con-
cepção adequada do bom e melhor. Entretanto, para atingir tal concepção siderações circunstanciais e mutáveis que não informavam sua capaci-
adequada parece necessário, primeiramente, ser capaz de realizar a epagogé dade de julgar original, que era mais simples e governada por regras.
necessária sobre as experiências nas quais fizemos julgamentosphronéticos O que significa isso, no que concerne aos juízos sobre a justiça? A
corretos. Não podemos julgar e agir corretamente a não ser que visemos justiça é uma questão daquilo q u e é eqijitativo, isto é, td jsdn, o igual.
àquilo que de fato é bom; só podemos visar ao que é bom baseados na A igualdade da justiça consiste em casos semelhantes serem tratados
experiência de juízos e ações corretas. Mas as aparências dos parado- de forma semelhante e em diferenças proporcionais de mérito serem
xos e das circularidades são enganosas. Ao desenvolver tanto nossa tratadas de acordo com essa proporção. Desse modo, uma distribuição
concepção do que é bom como o hábito de julgar e agir corretamente 6 justa, se e somente se preserva entre dois casos, onde os receptores
- e nenhum pode ser desenvolvido corretamente sem o outro -
L

são desiguais em merito, uma distribuição proporcionalmente desigual


gradualmente aprendemos a corrigir cada um à luz do outro, cami-
nhando dialeticamente entre eles.
(EN 1131a10-1131b24). A aplicação desse tipo de proporcionalidade,
F em justiça djstributiva, obviamente pressupõe uma ordenação
Vale especialmente a pena destacar dois aspectos desse movimento
dialético. Um dos critérios de Aristóteles para a correção bem-sucedida
1 classificatória de ações, em termos de merecimento, e uma classificação
de bens a serem distribuídos, enquanto na justiça corretiva ela pressupõe
de uma visão falsa é, na prática, a condição de sermos capazes de 1 Uma classificação de danos e privações que podem ser impostos como
explicar por que deveríamos esperar que tal visão fosse produzida se 1 punições mais ou menos sérias.
134 Aristbteles herdeiro de Platão Aristbteles herdeiro de Platão 135

Um juiz que administra as leis que expressam e impõem essa con- Uma vez que a posse de qualquer virtude exige uma habilidade em
cepção de justiça é certamente, à medida que suas decisões e julgamen- distinguir entre o que é bom haplbs daquilo que é bom apenas relati-
tos são governados por essas leis, governado por regras na sua ativi- vamente a alguma situação particular ou algum conjunto particular de
dade; mas observe que essas regras, as leis, devem ter sido o trabalho pessoas,.-omo observei anteriormente, ser justo exige a habilidade de
de legisladores que, ao formulá-las, não tinham regras para guiá-los. E distinguir o que é justo haplbs do que é justo relativamente às dis-
um juiz, de tempos em tempos, enfrentará casos para os quais as leis posições de uma constituição particular. Para se captar essa distinção
existentes não fornecem respostas claras e talvez nenhuma resposta. mais adequadamente é necessário uma compreensão mais geral da
Nessas situações também o juiz carece de regras e deve exercer sua distinção entre os elementos natural e convencional da justiça. Há, de
phrbnesis, assim como o legislador originalmente fizera. A área na fato, justiça natural (EN 1134b18-1135a5), aquela que não varia de
qual o juiz transita, ao agir assim, é aquela que Aristóteles chama de uma cidade para a outra, e o padrão da justiça natural é a justiça do
epieikeiq do julgamento razoável, apesar de não ser governado por melhor tipo de pblis. Mas em toda cidade, inclusive a melhor, alguns
regras. No contexto especificamente legal da discussão aristotélica na elementos da justiça devem ser determinados pela convenção local, por
qual 'epieikeia' está relacionada com 'dikaiosyne' - Aristóteles diz exemplo, o resgate exato a ser dado por um prisioneiro ou o modo
que epieikeia não é o mesmo que justiça, mas também que não é ge- como o bom desempenho de uma função pública deve ser honrado.
nericamente diferente (EN 1137a33-34) - 'epieikeia' é geralmente Observe que dizer que certas punições ou recompensas são aplicadas
traduzida como 'eqüidade' (ver também Tópicos VI, 1141a16, para o de acordo com o merecimento, por convenção, não significa que seja
mesmo tipo de uso de 'epieikeia'). E uma vez que o termo "eqüidade" apenas uma questão de justiça convencional e não natural o fato de que
é utilizado na legislação inglesa para significar algo muito parecido os cidadãos de uma cidade particular devam obedecer às suas próprias
com o tipo de exercício de julgamento legal ao qual Aristóteles está se convenções. Aristóteles diz muito pouco sobre a distinção entre a jus-
referindo, é compreensível que os estudiosos ingleses o tivessem tra- tiça natural e convencional para podermos ser menos que cuidadosos
duzido dessa maneira. Não obstante, fica claro que "epieikeia" não ao fazer inferências a partir do que ele realmente diz. Mas seria con-
significa "eqüidade", não apenas pelo uso do termo por outros autores, sistente com suas teses sustentar que a justiça natural geralmente exige
mas também pelo uso do termo e de seus cognatos por Aristóteles em que os cidadãos de uma pblis constitucional obedeçam a suas próprias
outros contextos (e.g., Política 1308b27 e 1452b34 ou Ética a Nicômaco convenções. E Aristóteles certamente acreditava que os cidadãos são
1107bll), onde a tradução mais geralmente adequada é "razoável". obrigados, por sua consideração pela justiça, a respeitar os termos
Que importância tem isso? concordados em tratados comerciais ou de aliança militar entre a sua
Aristóteles observa que às vezes usamos "epieikés" como se fosse pblis e outras.
um sinônimo para "bom" (EN 1137a35-1137b1) e insiste que "epieikeia"
Aristóteles também diz que, apesar de haver justiça natural, tudo na
é adequadamente usada como o nome de um tipo de justiça que corrige
justiça é suscetível de variação (1134b29-30), seja natural ou convencional:
a justiça que consistiria na aplicação de regras já estabelecidas (1137bll-
isto é, na verdade, os seres humanos variam nas suas formulações das
24). Mas no livro VI Aristóteles também deixa claro que considera que
regras de justiça, de modo que não há nenhuma formulação de alguma
todo o domínio da vida ao qual se refere a phrbnesis pode ser carac-
dessas regras que seja universal - exceto entre os deuses. Mas aqui
terizado como aquele no qual a epieikeia é necessária (1143a19-24 e
ele presumivelmente não está desafiando sua própria visão de que há
28-32). Portanto, o que o juiz faz no caso em que não pode simples-
justiça natural, principalmente porque no livro I1 afirma bruscamente
mente seguir e aplicar uma regra fornecida por um legislador, mas tem
que certos tipos de ação e paixão são culpados como sendo maus em
de ir além da regra de alguma forma, exemplifica o que mais generi-
camente todo phrónimos deve regularmente fazer, não apenas para ser si mesmos (o adjetivo usado é pháulos). As paixões assim incondici-
; onalmente condenadas são Schadenfreude, impudência e inveja; os tipos
justo, mas para exemplificar qualquer das virtudes adequadamente. O
que é dito a respeito de epieikeia, em contextos puramente legais, é de ação condenados da mesma forma são adultério, roubo e assassinato
verdadeiro em relação à vida e ao raciocínio prático em geral. Assim, (1107a8-14). Esse é o tipo de ações que será proibido no seu código
a discussão de Aristóteles do raciocínio implícito em ser justo exemplifica de leis por qualquer legislador virtuoso; julgamentos baseados neles,
sua visão do agir racional em geral. E isso vale para alguns outros , seja de juízes ou de cidadãos comuns, serão aplicações dessas regras
aspectos de sua discussão da justiça. : que geralmente, pelo menos, podem ser feitas sem epieikeia. Mas é o
136 Aristóteles herdeiro de Platão Aristóteles herdeiro de Platão

que o jovem cidadão aprende com essas regras sobre o que são a A discussão de Aristóteles sobre a amizade volta a dirigir nossa
justiça e as outras virtudes, sobre os tipos de ação que são proibidos atenção para um aspecto crucial de sua compreensão das virtudes em
ou impostos como tais, que fornece o material tanto para o exercício geral e da justiça em particular, um aspecto que enfatizei no início. A
do julgamento - que, quando totalmente treinado, torna-se phrónesis justiça, tanto como virtude do indivíduo e como ordenação da vida
-, como para o processo de epagogé que leva à formulação dos social, só pode ser alcançada dentro das formas institucionalizadas
conceitos adequados das virtudes particulares e da virtude e da bonda- concretas de alguma pólis particular. As normas de justiça não têm
de em geral, de modo que a compreensão teórica pode vir a fornecer existência separadas da realidade efetiva de cada pólis particular. Mas
uma arché a partir da qual o raciocínio prático pode tirar suas premissas isso não significa que as normas de justiça não sejam mais do que
mais fundamentais. Mas antes de considerarmos a compreensão de aquilo que se considera que sejam em cada pólis particular em um dado
Aristóteles do raciocínio que faz uso de tais premissas, devemos co- momento. Exatamente porque a pólis é definida funcionalmente como
mentar alguns outros aspectos da sua concepção de justiça. o tipo de associação humana, cujo télos particular é a realização do
bem como tal, o tipo de associação, portanto, que inclui todas as for-
A justiça, no sentido mais completo e próprio, governa apenas as
mas de associação, cujos téloi sejam a realização deste ou daquele bem
relações de cidadãos livres e iguais dentro de uma pólis. Não é apenas
particular, os cidadãos de cada pólis têm os recursos racionais para julgar
que a pólis e suas instituições sejam necessárias para produzir pessoas
o sucesso ou fracasso de sua própria cidade em fazer e ser o que uma
justas e uma ordem justa; é também que o escopo da justiça, no seu
pólis nos seus melhores momentos faz e é.
sentido mais amplo e apropriado, é a pólis individual. Algumas outras
relações e transações podem de fato ser chamadas "justas" ou "injus- Assim, não há nenhum padrão externo à pólis através do qual uma
tas" por analogia: as relações entre marido e mulher dentro de casa, pólis possa ser racionalmente avaliada com relação à justiça ou a ne-
entre pai e filhos e entre senhor e escravos. E aqui novamente o que nhum outro bem. Apreender o que uma pólis é, qual é o bem que deve
Aristóteles diz é deformado por suas crenças sobre mulheres e escra- alcançar, e em que medida a sua própria pólis consegue alcançar esse
vos. Entretanto, mesmo Aristóteles reconhece que a justiça será vio- bem, tudo isso requer que se pertença a uma pólis. Sem tal partici-
lada numa casa se o marido simplesmente impuser sua vontade em áreas pação, como vimos anteriormente, alguém tende a não alcançar os
onde sua mulher deveria ter poder de decisão; ele estará governando de elementos essenciais da educação para as virtudes e da experiência da
modo contrário ao merecimento (EN VIII, 1160b36). vida das virtudes que sáo necessárias para essa apreensão. Mas, além
disso, alguém nessas condições tende também a não ter a capacidade
A compreensão que Aristóteles tem da família ideal reflete sua de raciocinar praticamente.
compreensão do melhor tipo de pólis, não apenas com relação ao tipo
de justiça envolvida - na qual merecimento ou mérito seja o princípio Espero que a argumentação precedente tenha deixado bastante claro
-, mas também ao tipo de amizade envolvida. E é importante reconhe- que não se pode ser justo, segundo Aristóteles, sem a capacidade de
cer que, segundo Aristóteles, as normas da justiça governam as rela- raciocínio prático, que dikaiosyne exige phrónesis. Mas uma vez que
ções daqueles que, de uma maneira ou de outra, são também e mais o raciocínio prático, tal como Aristóteles o compreende, implica a
fundamentalmente ligados uns aos outros por laços de amizade. Pois a capacidade de relacionar as premissas relevantes com relação a bens e
justiça nela mesma é insuficiente como vínculo (EN VIII, 1155a27). A virtudes a situações particulares, e uma vez que essa capacidade é
justiça propriamente dita e a amizade do tipo mais elevado fundam-se inseparável e, na verdade, uma parte das virtudes, inclusive a justiça,
numa adesão comum às virtudes em geral e ao bem pelo qual tais é também verdade que ninguém pode ser praticamente racional sem ser
virtudes são buscadas. Ao exercer as virtudes e perseguir o bom e melhor justo. E, por razões que são essencialmente as mesmas, chegamos à
precisamos de nossos amigos para nos ajudar, quando somos maduros, conclusão de que não se pode ser justo ou racional de modo prático
assim como precisávamos de professores quando éramos imaturos. O sem pertencer a algumapólis particular. Uma idéia conflitante com visões
tipo de dependência mútua é diferente da dos jovens, que são exces- ' caracteristicamente modernas da racionalidade é a de que a racionali-
sivamente movidos por sentimentos em suas amizades; o que a amizade dade de alguém não é meramente sustentada, mas parcialmente consti-
: tuída or sua inserção e integração numa instituição social de algum
de nível mais alto exige inclui sentimentos, mas também uma dispo-
sição fixa em relação à virtude e ao bem que é a virtude e o bem do d
tipo. portanto crucial perguntar que tipo de justificação Aristóteles
oferece para sua visão e como a elabora em pormenores. Volto-me
amigo assim como de si próprio.
agora para essas questões.
Capítulo VI11

A quem se dirige Aristóteles nas obras em que fala sobre o ra-


ciocínio prático? De modo geral, são obras nas quais estava empenha-
do enquanto ensinava no Liceu em Atenas depois de 338, apesar de
passagens relevantes do De Anima, livro 111, provavelmente pertence-
rem ã um período anterior. Devemos presumir que sua audiência ori-
ginária fossem os estudantes do Liceu, estudantes que Aristóteles tra-
tava como tendo consciência do questionamento feito por Platão das
crenças do ateniense culto comum sobre a pólis. E esses atenienses cultos
comuns, dentre os quais devem ter saído muitos dos estudantes de
Aristóteles, foram sua segunda audiência. O que Aristóteles oferece a
essa audiência tem três dimensões. Em primeiro lugar, fornece uma
compreensão do que significa para um agente culto agir racionalmente,
do ponto de vista desse agente. E para tal tem de identificar os tipos
de razão que devem mover um agente racional à ação e os padrões aos
quais devem se conformar para que sejam razões adequadamente boas.
Essa compreensão, portanto, tem uma significação tanto prática como
teórica e contribui para as tarefas práticas da ética, tal como Aristóteles
a concebe (EN 1103b27-29).
Em segundo lugar, a compreensão de Aristóteles do raciocínio prá-
tico fornece um modo de classificar e compreender os defeitos e fra-
cassos da racionalidade prática, de modo que fica claro como seria
adequado para uma pessoa racional reagir às ações dos que são menos
que racionais. Mais particularmente, Aristóteles permite à sua audiência
grega do século IV compreender como tipos diferentes de constituição
política facilitam ou limitam as atividades do agente racional, de modo
que a relação entre ser um bom cidadão - desta ou daquela pólis
t
140 A visão de aristóteles sobre a racionalidade prática A visão de aristóteles sobre a racionalidade prática 141

particular, com este ou aquele tipo particular de constituição - e ser A crença do indivíduo de que este é o bem específico a ser al-
um ser humano racional pode ser atingida. cançado por ele, nesta situação particular, s6 será racional se nada
A compreensão de Aristóteles do raciocínio prático tem ainda uma menos que cinco habilidades forem exercidas. Primeiramente, esse in-
terceira função, derivada principalmente de suas pesquisas mais pura- divíduo deve ter sido capaz de caracterizar a situação particular na qual
mente científicas. Assim como toda compreensão adequada do raciocí- se encontra, de modo que os aspectos dessa situação, relevantes para
nio prático, a sua visa oferecer uma explicação causal da gênese da a ação imediata, tenham sido destacados. Em segundo lugar, deve ter
ação racional e da ação menos que racional. Esse projeto explicativo sido capaz de raciocinar, através da epagogé e de outros modos di-
encontra lugar nas pesquisas puramente teóricas de Aristóteles quanto aléticos de raciocínio, partindo do conhecimento do que são os bens
à gênese do comportamento humano e animal; daí a importância dos para ele mesmo, para um conceito mais ou menos adequado do que é
textos do livro I11 do D e Anima (700b36-701bl) para complementar o o bem em geral. Em terceiro lugar, para poder raciocinar dessa forma,
que Aristóteles diz nos livros I, I1 e VI da Ética a Nicômaco, nos livros deve também ser capaz de compreender seus bens enquanto participando
I e I1 da Ética a Eudemo, e no livro I da Política. Entretanto, é im- de uma variedade de tipos de atividade apropriadas para alguém da sua
portante reconhecer a relevância prática e política dessas pesquisas idade, no seu estágio de desenvolvimento, empenhado na sua ocupação
sobre a causalidade. Pois só há agentes racionais à medida que boas particular, e assim por diante. E, em quarto lugar, deve ter sido capaz
razões são causas de ações e à medida que essas boas razões são cau- de raciocinar, partindo de sua compreensão do bem em geral, o bem
salmente eficazes, unicamente porque e à medida que são razões boas. sem mais, e chegando a uma conclusão sobre qual bem, dentre os bens
Qualquer compreensão da racionalidade prática que não consegue ser específicos que lhe são imediatamente acessíveis, deveria de fato propor-
uma compreensão causal fracassa totalmente. Como e através de que -se alcançar, enquanto aquilo que é imediatamente o melhor para ele.
deve alguém ser movido para poder ser considerado racional de modo
prático, tal como Aristóteles compreende a racionalidade prática? Cada uma dessas habilidades deverá ter sido desenvolvida através
de treinamento em contextos altamente específicos. Mas há uma quinta
Tal pessoa deve, antes de tudo, ser movida por uma crença sobre habilidade, a de desenvolver as outras quatro conjuntamente, que de-
que bem é melhor que realize aqui e agora. Mas para que o fato de ser verá também ter sido sistematicamente treinada. É a habilidade encon-
movido por essa crença seja algo racional, essa própria crença deve ser
trada no exercício da virtude da phrónesis, e se, por um lado, o phrónimos
racionalmente bem fundada; deve ser sustentada por razões adequada-
trata de suas próprias ações como tais, por outro, só pode aprender a
mente boas. Que tipos diferentes de razões terão de incluir? Segundo
Aristóteles, o indivíduo terá de raciocinar a partir de alguma concepção perseguir seu próprio bem em geral no contexto de uma família ou de
inicial do que é bom para ele, sendo o tipo de pessoa que é, circuns- uma pblis, pois "presumivelmente, ninguém tem seu próprio bem sem
tanciado de um modo geral, e avançar em direção à visão mais bem- participar da administração de uma família ou sem uma organização
-fundamentada que puder descobrir quanto ao que é bom como tal, política" (EN 1142a9-10). Portanto, é no âmbito da família e da pólis
para os seres humanos como tais; e aí terá de raciocinar a partir da - principalmente da pólis - que alguém deverá ter aprendido a exercer
compreensão do que é bom e melhor como tal, visando a uma conclusão essa quinta habilidade e a apresentar as disposições que evidenciam
sobre o que é melhor para ele realizar aqui e agora na sua situação sua posse.
particular. É o movimento duplo de pensamento que Aristóteles des- Entretanto, apesar de o exercício de todas essas 'habilidades, na
creve na Metafisica: "...em assuntos práticos, o procedimento consiste
em ir daqueles que são os bens para cada pessoa a como aqueles que
" formação de uma crença verdadeira e justificada sobre qual é o seu
próprio bem imediato, ser uma condição necessária para a gênese da
são bens em geral podem ser os bens de cada um ..." (2,1029b5-7). E
ação racional, é apenas uma condição necessária. Se os desejos de uma
no livro V da Ética a Nicômaco, adverte contra supor que o indivíduo
não precisa ir além de identificar o que é bom como tal, quando, tendo 1 pessoa não são de fazer aquilo que a razão mostra como o melhor para
distinguido bens que são bens apenas para certos indivíduos, em certas 1 ela, ou se suas disposições para agir não são organizadas e dirigidas
circunstâncias, dos bens não-qualificados, diz dos últimos: "Os seres sistematicamente para servir a tais desejos pelos fins propostos pela
humanos rogam por esses bens e os perseguem, mas não devem fazer razão, essa pessoa poderá ser movida por considerações que distraem
isso; devem desejar que o que é simplesmente o bem possa ser seu sua atenção ou fazem-na ignorar o que sabe ser o melhor, e assim o
bem, mas são seus bens que devem escolher" (1129b4-6). que faz não será o que é melhor nem mesmo o que é bom para ela. Assim,
142 A visão de aristóteles sobre a racionalidade prática A visão de aristóteles sobre a racionalidade prática 143

Aristóteles distingue, nos seus escritos anteriores, duas espécies de Há, entretanto, um outro tipo de falha que não é nem uma questáo
apetite (brexis), o desejo racional (boúlesis: sobre uma compreensão de crenças falsas sobre o bem, resultante de uma educaçáo inadequada
de boúlesis ver EN 1113a15-1113b2) e o que não é racional. Todo ou distorcida, nem uma questáo de simples imaturidade. Considere o
órexis tem como objeto algo considerado bom, mas o órexis pode ser caso de um indivíduo que aprendeu o suficiente para saber o que é o
distraído daquilo que é realmente bom por um desejo (epithymía), por bem, no sentido de que se essa questáo e outras relacionadas sobre por
aquilo que seria imediata e temporariamente satisfatório (De Anima que o bem é o que é são postas a ele, por ele próprio ou por outros,
433a23-30 e 433b7-10; EN llllb12-13). ele dá respostas corretas, compreendendo e realmente querendo dizer
o que diz. Isso implica que sua instruçáo intelectual deve ter sido
Aristóteles distingue uma série de fontes diferentes de erro na ação. suficiente para informá-lo adequadamente e que suas paixões e hábitos
Uma é a imaturidade. Os jovens, como observei anteriormente, podem foram pelo menos bons o suficiente para dar-lhe esse grau de instruçáo
raciocinar mal por falta de experiência, e mesmo se raciocinam bem, intelectual. No entanto, de vez em quando, em vez de fazer o que o
podem ainda ser guiados por paixões náo-disciplinadas, mas isso tam- bem e o seu bem exigem, o indivíduo cede a impulsos passionais e faz
bém vale para aqueles que, náo sendo mais jovens, nunca desenvolveram o que é contrário ao seu bem e ao bem. Tal indivíduo não é corrompido
maturidade de inteligência e caráter (EN 1093a2-10). Uma segunda fonte (EN 1146b22-24). A pessoa corrompida deliberadamente e em princípio
de erro é a falta de educaçáo, no desenvolvimento de hábitos apropri- propõe-se fazer aquilo que é contrário ao seu bem e ao bem, porque fez
ados e no treinamento da inteligência (EN 1095b4-6 e 1179b23-29; juízos falsos sobre em que consistem o seu bem e o bem em geral. Esse
Política, livro VIII). Os que náo tiverem a educação necessária erraráo tipo de indivíduo falha de um outro modo; suas paixões ainda não
de três modos. Seus hábitos e disposições para agir náo dirigirá0 sua estáo sob controle racional porque, de uma forma ou de outra, seu
atividade rumo ao seu télos verdadeiro, e as paixões os distrairáo. "Pois conhecimento do que é bom náo é conduzido de forma a atuar sobre
alguém que vive segundo as paixões náo escutaria um argumento que elas (EN 1146b31-1147a24). Ele é incontinente, acrático. O tipo de pessoa
visasse redirecioná-10, nem o compreenderia" (EN 1179b26-27). Por- que não sofre de akrasía, mas que controla bem suas paixões que, de
tanto, em terceiro lugar, também cometerão erros intelectuais e apre- outra forma, resultariam em situações de colapso acrático, a pessoa
sentarão limitações intelectuais para raciocinar sobre o que fazer. continente encrática, não é o mesmo que a pessoa virtuosa, assim como
o acrático náo deve ser identificado com o corrompido. A pessoa encrática
A imaturidade dos jovens é, obviamente, uma e a mesma em todas sabe o que é bom e racional fazer e o faz, mas suas paixões ainda náo
as póleis e ordens sociais. A adequaçáo da educaçáo que lhes for dada foram completamente transformadas, de modo que seus prazeres e dores
variará de pólis para pólis. Seu grau de adequaçáo em cada pólis particular sáo os mesmos da pessoa completamente virtuosa. De modo que a
dependerá do quanto os governantes têm crenças bem-fundadas sobre pessoa encrática faz o que a pessoa racional e virtuosa faz, mas suas
o bom e o melhor e do quanto apresentam a virtude da phrónesis ao motivações não sáo as mesmas da pessoa completamente virtuosa. É
agir. Numa cidade onde crenças falsas sáo inculcadas por leis básicas, apesar de suas paixões, pelo menos em algum grau, que faz o que faz
como em Esparta, os cidadáos como um todo seráo desviados e falha- ao julgar e agir corretamente, apesar de seu caráter ser suficientemente
ráo no que diz respeito à areté e ao seu bem, eudaimonia (Política formado para resultar em proáiresis, desejo racional (EN llllb14-15).
1333bll-31). Mas mesmo numa cidade na qual isso não ocorre, uma Na transiçáo da imaturidade para a racionalidade, as condições do
marca de fracasso educacional será a tendência, por parte dos cidadáos acrático e do encrático representam momentos de desenvolvimento
individuais, em identificar como o bom e o melhor algum bem que é incompleto. Mas desenvolvimento em direçáo a quê? Até agora resumi
meramente subproduto externo das atividades nas quais a excelência é O que Aristóteles tem a dizer sobre vários tipos de falha e inadequaçáo
alcançada -dinheiro ou honra, por exemplo (Política 1257b40-1258a14; com relação à racionalidade pratica; mas, obviamente, s6 à luz de uma
EN 1095b22-31). Tais erros são uma evidência do fato de um indivíduo compreensáo do que significa ser racional em termos práticos, adequa-
ter falhado em compreender o modo pelo qual os bens sáo classificados, damente, é que a natureza e o significado do fracasso e da inadequaçáo
uma falha que implica uma concepçáo errônea do caráter geral da melhor podem emergir. Mesmo assim, um ponto crucial emerge da discussáo
vida para os seres humanos tal como é estruturada no melhor tipo de até agora. A soluçáo para cada tipo de falha e inadequaçáo, com rela-
pólis. çáo à racionalidade prática, que Aristóteles cataloga, é, segundo ele, a
144 A visão de aristóteles sobre a racionalidade prática
A visão de aristóteles sobre a racionalidade prática 145

aquisição ou o exercício de uma ou mais virtudes. Alguém não pode


ser virtuoso de modo prático sem ser racional de modo prático. E o que qual o silogismo é construído, que Aristóteles chama de 'boulk' e
vale para as virtudes em geral vale mais especificamente para a justiça. 'euboulia' (EN 1112a18-1113b14). Um agente defectivo na sua raci-
A pessoa que geralmente cede aos impulsos pleonéticos, ou que só não onalidade pode muito bem não ter participado de nenhuma ativida-
cede a eles quando inibida pelo medo ou por um desejo de agradar, de prévia de construção racional. No entanto, esse indivíduo também
distanciar-se-á, desse modo, da tendência para o bem e seu bem que a será movido por aquilo que pode ser representado como uma conjunção
racionalidade exige; a pessoa que não exige de si o que é devido está de premissas -a primeira, expressão de seu desejo; a segunda, referência
dando ou terá dado uma atenção indevida ao que é o bem e, assim, às particularidades de sua situação. Assim, Aristóteles dá um exemplo
falhará no que diz respeito à racionalidade. A justiça é uma pré-con- de um silogismo no qual o agente é movido por epithymfa, nesse caso
dição para a racionalidade prática. Mas o que, afinal de contas, é a presumivelmente uma epithymía inspirada pela sede: "O que devo fazer
racionalidade prática? C beber; isto é uma bebida" (De Motu Animalium 701a32) - e o emissor
imediatamente bebe. Mas esse não é o silogismo prático da racionalidade:
Segundo Aristóteles, seu exercício em ocasiões particulares implica não foi considerada a questão de se se deve ou não ceder a uma epithymía
doii estágios. O que imediatamente precede ou gera a ação é o tipo de desse tipo, e não podemos esquecer que, no D e Anima, as determina-
raciocínio dedutivo que os comentadores chamam de "silogismo práti- ções da epithymía, que sempre reage imediatamente a um estímulo
co", apesar de Aristóteles nunca usar essa expressão. Tal silogismo presente, são contrastadas e representadas em conflito com as deter-
consiste em duas premissas ou conjuntos de premissas: uma primeira minações racionais do noiis (De Anima 433b5-10: aqui Aristóteles usa
premissa inicial (frequentemente chamada equivocamente de premissa o termo nous onde mais tarde usaria phrónesis).
maior), através de cuja afirmação o agente declara qual bem está em
questão ao agir ou não agir como deve; e uma segunda premissa O que distingue os animais não-racionais dos seres humanos, quan-
(correspondentemente chamada de premissa menor), através de cuja to à gênese do comportamento, à medida que são animais realmente
afirmação o agente declara em que situação, uma vez que este bem está racionais, é que os desejos e disposições dos seres humanos são orde-
em questão, a ação é exigida. A conclusão a que se chega a partir nados de acordo com o que verdadeiramente julgaram ser o seu bem,
dessas premissas é a ação exigida (De Anima 434a16-21, D e Motu e não pela epithymía desgovernada por tal julgamento. Que tal seja o
Animalium 701a7-25, EN 1146b35-1147a7 e 1147a25-31). bem desse indivíduo particular, ou desse tipo de indivíduo ou desse
grupo de indivíduos, é verdadeiro ou falso, independentemente de se
Todo silogismo prático é uma efetuação por parte de uma pessoa ele ou eles ou qualquer outra pessoa de fato deseja esse bem. O que a
particular numa ocasião particular. Ele está preso a essa ocasião par- premissa maior de um silogismo prático afirma é o julgamento de um
ticular pela referência ao aqui e agora das expressões referentes na indivíduo quanto ao que é o seu bem; o que tal premissa afirma, quando
premissa secundária e pelo fato de que é a pessoa particular que pro- o indivíduo é completamente racional, é um julgamento bem-fundado
fere o silogismo, cujo bem é especificado pela premissa inicial, e ainda e verdadeiro. Essa premissa, verdadeira ou falsa, só será eficaz em
pelo fato de que é através da pessoa particular que a ação, que é a gerar a ação se os desejos e disposições do indivíduo forem ordenados
conclusão do silogismo, deve ser efetuada. Desse modo, a solidez de adequadamente. Mas a própria premissa não diz nada sobre o desejo;
um silogismo prático depende de quem o profere e em que ocasião, e em todos os exemplos de Aristóteles, o que se afirma é que algo é
quanto a isso um silogismo prático difere radicalmente dos silogismos ! "bom para" ou "necessário" ou algo parecido. O predicado mínimo é
i o puro gerundivo "deve ser feito por mim". Assim, é um equívoco, por
teóricos de Aristóteles, nos quais não há espaço para expressões refe- I1 exemplo, traduzir o grego "poteon moi" por "eu quero beber" em vez
rentes singulares - é isso que torna os termos 'premissa maior' e
'premissa menor' relativamente inadequados no caso do silogismo prático. 1' de "beber deve ser feito por mim". O que dá força prática a um silo-
1 gismo prático, para o agente que o profere, não é mencionado num
Antes, entretanto, que as premissas de um silogismo prático possam silogismo.
ser afirmadas por um agente racional prático, o silogismo particular
tem de ser construído. O primeiro estágio no exercício da racionalidade O agente racional propõe-se a tarefa de construir uma premissa
prática, que precede a emissão de um silogismo prático, é aquele no maior que afirme verdadeiramente qual é o seu bem particular aqui e
agora. Como deve tal premissa ser construída? O bem especificado
A visão de aristbteles sobre a racionalidade prática 147
146 A visão de aristbteles sobre a racionalidade prática

seres humanos. De modo que apenas o supremo bem é valorizado por


nela dará à sua ação o télos imediato e, como sua primeira premissa si s6.
imediata, será a arché imediata da ação prestes a ser realizada. Mas o Portanto, em cada estágio do processo deliberativo, um indivíduo
bem especificado nela s6 será seu bem genuíno se for não apenas voltado para a açáo racional pergunta: se tal é o bem que constitui o
consistente com, mas também derivável da archk, o conjunto de prin- télos, que meios devo empregar para alcançá-lo? Se o bem deve ser
cípios e conceitos primeiros e supremos, que especifica o bom e o realizado apenas na participação adequada na vida da pblis e através
melhor para os seres humanos como tal. Completar essa derivação é a dela, e eu tenho dezoito anos, então o meio será prestar meu serviço
tarefa central da deliberação. militar. Devo então perguntar: se o bem a ser realizado é a prestação
Há aqui um problema inicial, sobre o qual Gilbert Ryle foi o pri- do serviço militar, que meios, dadas as minhas circunstâncias, precisa-
meiro a nos chamar a atenção (The Concept of Mind, Londres, 1949, rei empregar ou adquirir? E a resposta, dadas as circunstâncias, pode
67). Se toda açáo racional deve ser precedida por deliberação, sendo a ser: preciso adquirir e arrear um cavalo para servir na cavalaria. Eu,
deliberação um tipo de atividade racional, como certamente deve ser por minha vez, perguntarei: que meios preciso adotar para arrear o meu
na visão de Aristóteles, parecemos estar envolvidos num regresso vi- cavalo? E a resposta pode ser: devo fazer ou adquirir rédeas. Assim, os
cioso infinito. Pois qualquer ato particular de deliberação teria, para bens de fabricação de rédeas servem aos bens de equitação, e esses
ser racional, de ser precedido por outros atos deliberativos, e assim a d servem, entre outros, aos bens do serviço militar. É esse aspecto da
infinitum. Mas Aristóteles pode ser compreendido de modo a não ficar deliberação que Aristóteles caracteriza ao dizer que deliberamos sobre
exposto a tal ataque e, de fato, é mais razoável compreendê-lo a partir o que conduz aos fins, peri tbn prôs ta telé, e não sobre os fins (EN
de outras bases. O que torna a deliberação racional é o fato de ela 1112bll-12).
conformar-se a certos padrões. Se, em alguma ocasião particular, sur- Mais de um comentador já observou que o que conduz a um fim
girem questões, seja quanto a se esses padrões estão de fato sendo pode ser o que é comumente chamado de meio - isto é, uma atividade
seguidos, seja sobre quais são esses próprios padrões, é necessário para distinta do estado-fim, causalmente eficaz na produção do estado-fim,
a racionalidade que sejamos capazes de prosseguir essas questões, como a construção de uma parede pode ser um meio para proteger-me
deliberando sobre como deliberar. Mas não é uma condição necessária contra o vento - ou ainda, no sentido de uma parte constitutiva de um
da deliberação racional que nós sempre, em toda ocasião para a ação, fim que é um todo que inclui e requer aquela parte, como os movimen-
devamos continuar deliberando de tal forma. tos de abertura de um jogo de xadrez são um meio para o fim de jogar
Realmente, o que importa na ação racional não é que tenhamos uma partida de xadrez.
deliberado imediatamente antes de nos empenhar em alguma ação A tarefa deliberativa da construção racional é tarefa que leva a uma
particular, através da enunciaçáo de algum silogismo prático, mas que ordenação hierárquica de meios para seus fins, na qual o fim último é
devemos agir como alguém que tenha deliberado e que sejamos capazes especificado numa formulação que fornece o primeiro princípio, ou
de responder verdadeiramente à questão "por que agimos assim?", citando primeiros princípios, dos quais são deduzidas as afirmações dos fins
o silogismo prático e o ato de deliberação relevantes, mesmo se esses subordinados que são meios para o fim último. Uma hierarquia orde-
não tivessem sido feitos por nós nessa ocasião particular. Mas, obvi-
nada de relações "por causa de" levando à arché é também uma hie-
amente, para que isso seja verdade é necessário que também seja verdade rarquia dedutiva derivada da arché. Obviamente, s6 através de pre-
i
que tenhamos, com alguma freqüência, deliberado explicitamente e assim
efetuado as tarefas necessárias para construir um silogismo prático. i missas adicionais, independentemente fundamentadas, a deliberação pode
chegar a um produto final, no qual os tipos particulares de circunstân-
i: cia
A cadeia de derivações construída na deliberação é também uma deste agente particular podem ser compreendidos como fazendo
cadeia de relações "por causa de". O bem que devemos imediatamente / com que seja verdade que, para ele perseguir o bom e o melhor, é
realizar deve ser realizado, seja por causa dele mesmo, ou também ou [ necess5rio a busca aqui-e-agora desse bem altamente específico. E,
apenas por causa de algum outro bem. Se um bem particular imediato L como expliquei no capítulo anterior, uma das marcas da phrbnesis é
deve ser realizado em função de si próprio, é também sempre enquanto alguém ser capaz de identificar apenas quais circunstâncias são rele-
parte constitutiva da vida do bom e do melhor que é o télos para os
148 A visão de aristdteles sobre a racionalidade prática A visão de aristóteles sobre a racionalidade prática 149

vantes e, portanto, que premissas devem ser utilizadas na construção possibilidade da avaliação e da escolha racionais. E é precisamente
deliberativa. porque é o érgon, a tarefa específica dos seres humanos avaliar, esco-
lher e agir enquanto seres racionais que os seres humanos não podem
Portanto, a deliberação primeiramente busca um início, uma arché,
ser compreendidos separadamente de seu contexto social necessário, o
tendo em vista a construção de uma argumentação que conclui com um ambiente unicamente dentro do qual a racionalidade pode ser exercida.
produto final que Aristóteles chama de proáiresis. É importante exa-
minar, por sua vez, o caráter dessa arché, os tipos de argumentos que Esse contexto necessário, esse ambiente, é dado pela pblis, com-
ligam arché a proáiresis e a natureza da proáiresis. Como deve a arché preendida como o tipo de ordem social, cujo modo de vida comum já
ser compreendida? Aristóteles diz que não deliberamos sobre os fins, expressa a resposta ou as respostas coletivas de seus cidadãos à ques-
mas também acha, obviamente, que raciocinamos não-deliberativamente tão: "Qual é o melhor modo de vida para os seres humanos?" Unica-
mente de dentro de uma dada pdlis, que já tem uma ordenação dos
sobre os fins e sobre o fim primeiro que é a arché. Apenas à medida
bens, bens que devem ser alcançados através da excelência em tipos de
que tal raciocínio fornece uma concepção racionalmente fundada da atividade específicos e sitemáticos, integrados numa ordem classificatória
arché, podemos nos empenhar nas tarefas de deliberação com confian- geral pela atividade política desses cidadãos particulares, faz sentido
ça racional. Desse modo, a concepção de um bem supremo Único, embora perguntar: "A luz das avaliações e dos recursos do raciocínio dialético
talvez complexo, é central na compreensão aristotélica da racionalidade que possuímos agora, podemos construir uma compreensão melhor do
prática. Entretanto, é exatamente essa concepção que a maioria, senão bem supremo do que aquela sugerida até agora?" O que quer dizer, é
todos os filósofos morais recentes consideram bastante implausível. uma condição para perguntar e responder questões sobre a arché da
Aqueles, por exemplo, que identificam um bem com algum objeto de racionalidade prática que já sejamos participantes de algum tipo de
desejo - ou talvez com algum objeto que seria desejado, se a pessoa comunidade que pressupõe a existência de um bem humano supremo,
que deseja fornecesse informação factual adequada - não podem dei- embora complexo.
xar de reconhecer, se forem realistas - e geralmente reconhecem -
Pode ser esclarecedor considerar uma analogia com a ciência natu-
,a variedade, a heterogeneidade e a incomensurabilidade de tais objetos. ral moderna. De um ponto de vista exterior ao de qualquer comunidade
Obviamente Aristóteles, nas primeiras frases da Ética a Nicômaco,
científica estabelecida, baseado em dados não-caracterizados nos ter-
realmente identifica o bem com aquilo rumo a que tudo está direcionado, mos de alguma teoria estabelecida, não há nem pode haver razões
reconhecendo ao mesmo tempo uma variedade de bens e, portanto, de suficientemente boas para supor, com relação a qualquer assunto par-
objetivos. Mas essa variedade, tal como Aristóteles a concebia, é sus- ticular ou área de pesquisa, muito menos com relação à natureza como
cetível de um tipo de ordenação da qual as concepções tipicamente tal, que haja uma teoria explicativa fundamental verdadeira. Apenas
modernas de bens são incapazes. Assim, já foi argumentado, e convin- para os habitantes de tal comunidade, que já possua alguma teoria, ou
centemente do ponto de vista da modernidade, que não pode haver um teorias estabelecidas, e que até agora caracterizaram os dados nos seus
modo racional Único de ordenar os bens dentro de um esquema de vida, termos, pode a questão ser posta: à luz das normas de avaliação que
mas que há inúmeros modos de ordenação alternativos, na escolha possuímos agora, qual das teorias gerais em competição atualmente é
dentre os quais não há razões boas o suficiente para guiar-nos. E um a melhor, ou será que podemos conceber uma melhor? Que há uma
modo de compreender o ponto de vista de Aristóteles é considerar por teoria verdadeira para ser encontrada é um pressuposto da atividade
que teria tido de rejeitar esse tipo de visão moderna. contínua da comunidade científica; que há um bem supremo para os
Nesta visão, o ser humano individual enfrenta um conjunto alterna- ; seres humanos é um pressuposto da atividade contínua da pólis.
tivo de modos de vida, a partir de um ponto de vista externo a todos Portanto, não é de surpreender que no livro I da Ética a Nicômaco
eles. Esse indivíduo ainda não tem, ex hypothesi, nenhum compro- iE Aristóteles argumente sobre qual, se alguma, das visões atualmente
1
misso, e os desejos multifários e conflitantes que os indivíduos desen- conflitantes do bem supremo deve prevalecer ou se uma visão melhor
volvem não fornecem, por si mesmos, nenhuma base para escolher que todas elas pode ser construída, mas ele não oferece argumentos,
quais desses desejos seguir e ter como referência, quais inibir e frus- em qualquer momento, que levem à conclusão de que haja tal bem. (Já
trar. Do ponto de vista de Aristóteles, esse indivíduo foi privado da se alegou que EN 1094a18-22 seja tal argumento, e também já se le-
152 A visão de aristbteles sobre a racionalidade prática A visdo de aristdteles sobre a racionalidade prática 153

Portanto, não há racionalidade prática sem as virtudes de caráter. O relação com o bom e melhor. De modo que, assim como no último
vicioso argumenta incorretamente a partir de premissas falsas sobre o capítulo não pudemos evitar a conclusão de que, segundo Aristóteles,
bem, enquanto o acrático ignora os argumentos sólidos disponíveis. Só ninguém pode ser justo sem ser racional de modo prático, também aqui
o virtuoso consegue argumentar solidamente levando às conclusões a conclusão é, por razões correlatas, igualmente inevitável, que não se
que são suas ações, e isso ocorre devido a dois papéis distintos que as
pode ser racional de modo prático sem ser justo - ou, na verdade, sem
as outras virtudes fundamentais.
virtudes desempenham nas suas vidas. Na sua formação inicial, foi a
aquisição de hábitos virtuosos que capacitou o virtuoso a realizar as De que, então, há proáiresis, proáiresis informada pelas virtudes?
ações, através da reflexão sobre as quais formulou pela primeira vez, Ela é um desejo de quê? "Consideramos como objetos daproáiresis os
mesmo que inicialmente de forma esquemática, os princípios de açáo bens que sabemos com certeza serem bens" (EN 1112a7-8). A delib-
que definem a excelência humana, as várias virtudes e, realmente, o eração de um agente racional resulta numa conclusão quanto a que bem
bom e o melhor em si. Além disso, ao agir dessa maneira, tornou-se deve ser imediatamente realizado e num desejo racionalmente bem-
capaz de empenhar-se na pesquisa teórica da prática, assim como em -fundado desse mesmo bem. Desse modo, ela fornece uma premissa
pesquisas práticas, deliberações (Aristóteles considera a deliberaçáo inicial e motivadora de um silogismo prático. Ao identificar desse modo
um tipo de pesquisa, zétesis, EN 1112b21-3) nas quais não se poderia a premissa inicial, dita maior, de um silogismo prático com uma con-
empenhar se não tivesse as virtudes. Mas não é apenas no seu clusão resultando da deliberaçáo, estou, obviamente, outra vez seguin-
direcionamento geral, intelectual e praticamente, para o bom e o me- do Cooper. Mas Cooper apresenta o próprio silogismo prático como se
lhor que suas virtudes são cruciais, mas também no contexto da ação fosse apenas uma representação dos estágios através dos quais o agente
imediatamente prospectiva. passa a gerar uma ação, e não um raciocínio prático executado pelo
Sem as virtudes, os desejos não podem ser informados pela razão, próprio agente: "Na verdade, tais silogismos não devem ser considera-
não podem ser transformados ou ser eficazes como desejos do que a dos de modo algum como parte do raciocínio prático" (op.cit., 51). Se
razão prescrever. A própria existência da boulésis, o desejo racional, isso fosse verdade, o agente, cujo silogismo prático é inválido não teria
enquanto praticamente eficaz, depende da posse das virtudes, e é a falhado precisamente enquanto sujeito de um raciocínio, mas é exata-
força das virtudes que não apenas tira a influência das epithymíai, como mente assim que Aristóteles o apresenta. Consideremos, mais geral-
no caso da pessoa encrática, mas que também não as deixa ter peso mente, como, numa visão aristotélica, o agente, cujos silogismos prá-
para o agente plenamente racional. Assim, os julgamentos nos quais a ticos são válidos, age de tal modo que suas ações resultam de seus juízos
proáiresis está expressa são verdadeiros, bem-fundados e eficazes apenas de princípio e de percepção conjuntamente. Segue-se que a inconsis-
por causa da função desempenhada pelas virtudes tanto na sua gênese tência e a ininteligibilidade de alguém que afirma as premissas de um
como na formação de seu conteúdo. São as virtudes que capacitam o silogismo prático válido, e que depois não age quando tem o poder de
desejo, que é proáiresis, a tornar-se desejo racional. fazê-lo e o momento para tal açáo é adequado, são a inconsistência e
É evidente que cada uma das diferentes virtudes, ou pelo menos as ininteligibilidade relativas a alguém que afirma as premissas de um
mais importantes, tem sua própria função altamente específica, tanto silogismo teórico válido e, no momento apropriado para afirmá-lo, não
em formar inicialmente o caráter como em guiar e informar a proáiresis o faz ou mesmo nega a conclusáo. Mas nada disso seria necessário se
em ocasiões particulares. Não é difícil discernir essas funções a partir Cooper estivesse certo. Pois Cooper teria de argumentar, como o faz,
das descrições de cada uma das virtudes feitas por Aristóteles. O que que a linguagem do silogismo é para Aristóteles uma mera façon de
a descrição da justiça, no livro V da Ética a Nicômaco, deixa claro é parler.
que, sem a justiça, nossos julgamentos e ações com relação aos outros Além do mais, Cooper apóia-se nas partes da análise da ação de
não podem ser informados pelo princípio correto, isto é, pelo princípio Aristóteles que se aplicam a todos os animais e não são específicas dos
racionalmente justificável, em geral ou em ocasiões particulares. Não animais racionais, citandò De Motu Animalium 701a25-36. Mas o que
poderíamos cumprir nossos deveres corretamente na pólis exercendo é comum aos animais racionais e não-racionais são o desejo e a per-
funções públicas, seja como governantes ou como governados, nem na cepção que precedem as ações; o que é específico dos animais racio-
família ou com relação aos nossos amigos. Pois não discerniríamos, em
nais é o juízo que informa o desejo e o juízo de percepção. Assim,
cada caso, que bens estão em questão em situações particulares e sua
154 A visão de aristóteles sobre a racionalidade prática A visão de aristóteles sobre a racionalidade prática 155

quando Cooper argumenta, de fato, que o silogismo prático não é mais numa ocasião particular, na qual a ação que é a conclusão corresponde
do que uma representação da função desempenhada pelo desejo e pela h emissão de uma afirmação enquanto conclusão da exposição de um
percepção na geração da ação, ele oculta a diferença - crucial para silogismo teórico. O que tal ação, enquanto asserção, afirma ao con-
Aristóteles - entre animais racionais e não-racionais. cluir um silogismo prático é que a ação mesma, que responde à descrição
do que deve ser feito fornecida pela premissa inicial, deve ser feita.
O silogismo prático foi, portanto, denominado corretamente, pois é
realmente um silogismo. Do juízo do que é bom, ou necessário, ou A estrutura lógica de um silogismo prático é a seguinte. Na premis-
apropriado, e do juízo do que é verdadeiro, apoiados por uma percepção, sa inicial, o agente afirma, de um certo tipo de ação, um predicado que
segue-se uma conclusão que é uma ação (De Motu Animalium 701a8- tem força gerundiva: tal coisa deve ser feita enquanto boa. Na premissa
13, onde o paralelo é explicitamente feito entre a emissão de um silogismo secundária, o agente afirma que as circunstâncias são tais que oferecem
teórico e a realização de um silogismo prático racional, um paralelo a oportunidade e a ocasião para se fazer o que deve ser feito. Na
incompatível com a interpretação de Cooper, De Motu Animalium 701a20, conclusão, o agente, ao agir, afirma que esta ação, enquanto tal, deve
EN 1147a20-29). Anthony Kenny argumentou que a conclusão de um ser feita. Alguém que afirma as premissas conjuntamente e se recusa
silogismo prático é uma decisão de agir, e não uma ação (Aristotle's Theory a afirmar ou nega a conclusão, fazendo algo diferente da ação exigida,
of the Will, Londres,l979, 142-143), apoiando-se em parte num exemplo contradiz a si próprio, tal como alguém que afirma as premissas con-
dado por Aristóteles em De Motu Animalium 70la18-22, onde a con- juntamente num silogismo teórico e se recusa a afirmar ou nega sua
clusão parece ser uma decisão de fazer um casaco. Mas, como Dahl conclusão. Aristóteles, como observei anteriormente, afirma o parale-
observou (op.cit., 160-161), a asserção: "Eu devo fazer um casaco", no lismo dos dois tipos de silogismo, sob esse aspecto (De Motu Animalium
exemplo, pode ser tratado como uma conclusão intermediária dentro de 701a8-13), e de fato o mesmo conceito de vínculo necessário está sendo
um argumento complexo e não como a conclusão final de um silogismo aplicado. Assim, a ação concludente, no sentido apropriado, segue-se
prático. Kenny também observa (op.cit., 143-144) que Aristóteles re- necessariamente das premissas.
conhece que alguém pode ser impedido de agir, depois de afirmar as
premissas de um silogismo prático (De Motu Animalium 701a15-16), e, Segue-se que, uma vez as premissas afirmadas, e se são verdadei-
nesse caso, poderia parecer que o agente poderia ser impedido de agir, ras, a inferência é válida e o agente é completamente racional, logo as
mas não de extrair uma conclusão na forma de uma decisão, uma decisão premissas devem fornecer razões suficientes para a realização imediata
que o agente se vê impedido de implementar. A este argumento, pode- da ação. Não há nenhum espaço lógico para que outa coisa intervenha:
se responder (ver também a resposta de Dahl, op.cit., 161-162) que, à uma decisão, por exemplo. Para o agente completamente racional, não
medida que o agente impedido de agir de fato chega a uma conclusão, há nada mais a ser decidido. Portanto, quando um agente realmente
essa terá de ser a conclusão de um silogismo teórico sobre o que al- afirma as premissas verdadeiras de um silogismo prático válido, quando
guém, como ele, deveria fazer a não ser que fosse impedido. Seu silogismo nada ocorre para obstruir ou impedir o agente de agir, e o agente não
completo será sobre a prática, mas não será prático. Pois, a reiteração age imediatamente, segue-se que o agente não é, de certo modo,
que Aristóteles faz da tese de que a conclusão de um silogismo prático completamente racional. Algo contingente e acidental, do ponto de vista
é uma ação deixa claro que a considera uma das marcas que identifi- da racionalidade, deve ter intervindo.
cam esse tipo de silogismo.
Esse retrato do agente racional agindo imediata e necessariamente
Uma razão que algumas pessoas tiveram - este não é o caso de assim que afirma suas razões para agir é, novamente, muito contrário
Kenny - para negar que Aristóteles estivesse falando sério ao afirmar aos nossos modos caracteristicamente modernos de compreender o agente
que a conclusão de um silogismo prático é uma ação, é que lhes pare- racional. Inclinamo-nos a dizer que alguém pode repassar as boas razões
ceu óbvio que apenas uma frase ou um juízo pudessem ser a conclusão que tem para seguir um certo rumo na ação, e então, no mínimo, hesitar,
de uma argumentação, e, ao mesmo tempo, que uma ação não pode ser sem de forma alguma deixar de ser racional. Pode passar por sua cabeça
uma afirmação ou um juízo. Obviamente, estão certos pelo menos em que pode haver algum outro bem a ser buscado, ou que as sugestões de
supor que se uma ação é a conclusão de uma argumentação, deve ser algum desejo devessem ser ouvidas. Ou a pessoa pode simplesmente
devido ao fato de que expressa uma afirmação ou um juízo. O que não não se sentir disposta a agir do modo ditado pelas boas razões. Real-
perceberam é o caráter do silogismo prático enquanto um desempenho, mente, é por isso que tendemos a supor que entre a avaliação de nossas
. 156 A visão de aristóteles sobre a racionalidade prática A visdo de aristóteles sobre a racionalidade prática 157

razões para a ação e a própria ação, é necessário algum outro ato de Hií ainda um outro aspecto da concepção aristotélica da racionali-
decisão. Nenhum gmpo de razões práticas, independentemente de quão dade prática que é igualmente contrária às concepções modernas domi-
coercitivas possam ser, precisa ser tratado como conclusivo, na visão nantes. Numa visão tipicamente moderna, as exigências que um certo
moderna dominante. bem implica para um indivíduo podem ser inconsistentes com as exi-
gências de um outro bem, criando dilemas para os quais, ocasion-
Obviamente, isso mostra não que Aristóteles esteja errado, mas que almente, não é possível uma solução racional. Precisamente porque a
estava descrevendo um tipo de vida racional prática diferente e em lógica de Aristóteles, na argumentação prática, t a mesma lógica de-
conflito com a vida das ordens sociais características da modernidade. dutiva empregada na argumentação teórica, e precisamente porque s6
Mas pode ser instrutivo considerar os contextos sociais contemporâneos pode haver uma ação correta a ser realizada, num momento dado, as
nos quais ainda encontramos aplicação para algo muito similar às con- premissas de qualquer argumentação prática aristotélica devem ser
cepções aristotélicas da racionalidade prática. Um jogador de hockey, consistentes com todas as outras verdades. Não pode ser verdadeiro, na
nos segundos finais de um jogo crucial, tem a oportunidade de fazer visão de Aristóteles, que alguém, segundo as exigências de um deter-
minado bem, deva fazer tal coisa e que, segundo as exigências de um
um passe para um outro membro de seu time, que esteja melhor outro bem igual e incomensurável, não deva fazer a mesma coisa. A
posicionado para marcar um gol necessário. Necessariamente, podemos diferença entre Aristóteles e a visão moderna fica talvez mais aparente
dizer, se percebeu e julgou a situação corretamente, deve fazer o passe nas interpretações da tragédia, engendradas por cada ponto de vista.
imediatamente. Qual a força desse "necessariamente" e desse "deve"? Do ponto de vista moderno, a incompatibilidade entre as exigências de
Nela está a conexão entre o bem da pessoa enquanto jogador de hockey um bem e as de um outro podem ser reais, e é nos termos da realidade
e membro de um time particular e a ação de fazer o passe, uma cone- de tais dilemas que a tragédia deve ser compreendida. Pode, con-
xão tal que se não fizer o passe, estará falsamente negando que fazer seqüentemente, ser considerado verdadeiro que alguém deva fazer tal
o passe seria para o seu bem enquanto jogador de hockey, ou estará coisa (porque um bem o exige) e também que a mesma pessoa deva
sendo culpado de inconsistência, ou estará agindo como alguém que abster-se de fazê-lo (porque um outro bem exige tal abstenção). Mas se
não se preocupa com o seu bem enquanto jogador e membro daquele ambas essas afirmações podem ser consideiadas verdadeiras, o con-
time particular. Isto é, reconhecemos a necessidade e a imediaticidade ceito de verdade foi transformado: esta não é a verdade tal como
transmitida através de argumentos dedutivos válidos. É por essa razão
da ação racional, para alguém que desempenha um papel estruturado
que, do ponto de vista de Aristóteles, a existência aparente de um
num contexto no qual os bens de um tipo sistemático de prática estão
dilema trágico se deve a uma ou mais concepções errôneas ou má
inequivocamente ordenados. E ao fazê-lo, estamos aplicando a um setor compreensões. O conflito aparente e trágico do certo com o certo surge
de nossa vida social uma concepção que Aristóteles aplica à vida social das inadequações da razão, não do caráter da realidade moral.
racional como tal.
Seria então altamente paradoxal se os próprios escritos de Aristó-
Portanto, os padrões da ação racional dirigida para o bom e o melhor teles propusessem tal dilema. No entanto, algo bem semelhante a isso
só podem ser expressos nos tipos sistemáticos de atividade nos quais foi argumentado por alguns comentadores. Pois, assim afirmam, em
os bens estão inequivocamente ordenados e nos quais os indivíduos amplas passagens da Etica a Nicômaco, Aristóteles apresenta-nos uma
ocupam e transitam entre papéis bem-definidos. Ser.um indivíduo ra- concepção do bem supremo, da eudaimonia, como sendo expressa na
cional significa participar de tal tipo de vida social e conformar-se, à vida do dever cívico, mais especialmente na vida do bom governante
medida do possível, a esses padrões. É porque e à medida que a pólis que também é um bom homem. Mas, no livro X, argumenta que o bem
é uma arena de atividades sistemáticas exatamente desse tipo que ela perfeito é um tipo de atividade teórica na qual a mente contempla os
é o locus da racionalidade. E foi porque Aristóteles julgava a pólis como aspectos imutáveis e eternos das coisas, uma atividade na qual a mente,
a única forma de Estado que podia integrar as diferentes atividades em virtude daquilo que é divino nela, contempla de um modo a repro-
sistemáticas dos seres humanos num tipo de atividade geral, no qual a duzir a atividade de Deus. A vida política e a vida da virtude moral são
realização de cada tipo de bem era devidamente reconhecida, que tam- eudaimon apenas de modos inferiores e secundários (EN 1177a12-
bém julgou que apenas a pólis poderia ser esse locus. Não há racionalidade 1178b32). Assim, temos, segundo alguns intérpretes, duas visões rivais
fora da pólis é o equivalente aristotélico do extra ecclesiam nulla salus. e conflitantes do bem supremo, ambas recomendadas por Aristóteles.
158 A visão de aristdteles sobre a racionalidade prática
A visão de aristdteles sobre a racionalidade prática 159
É claro que Aristóteles compreendia que havia um problema em
como conciliar a vida da virtude política com a vida da atividade con- de pensamento no qual as realizações e as limitações de seus predeces-
templativa. Mas também deixa claro que a boa vida para os seres humanos, sores pudessem ser identificadas e avaliadas, e, em segundo lugar,
que constitui seu bem supremo, tem várias partes constitutivas diferen- dessa forma, transcender essas limitações.
tes e que cada uma dessas partes deve encontrar seu devido lugar
dentro do todo (J. L. Ackrill, Aristotle on Eudaimonia, Londres, 1974, Aristóteles forneceu os meios para explicar como as concepções
reimpresso em Essays on Aristotle's Ethics, ed. A. O. Rorty, Berkeley, errdneas de um Neoptólemo ou de um Ulisses, tais como apresentadas
1980, é a melhor e mais convincente exposição da visão de Aristóteles). por Sófocles, podiam ser corrigidas - e isso ele fez dando o padrão
No início do livro VI1 da Política, Aristóteles discute, resumidamente, para o phrbnimos; como os fracassos efetivos dos estados gregos, tais
como essas partes encontram seus lugares dentro do todo, em pas- como narrados por Tucídides, podiam ser identificados, definidos e
sagens cuja relevância intencional em relação à discussão da atividade explicados como desvios de uma possibilidade real do bom e do me-
teórica e contemplativa no livro X da Ética a Nicômaco fica evidente lhor na vida da pólis - e isso ele fez contrastando justiça e pleonexia;
pelo modo no qual repete e amplifica alguns pontos. e como a visão de Platão da relação da justiça e da racionalidade
prática com a estrutura da pólis podia ser corrigida e completada. E se
Precisamos, argumenta Aristóteles no início do livro VI1 da Poli- a bem-fundada alegação de Aristóteles, contra seus predecessores, é
tica, buscar os bens externos ao corpo, a fim de empenhar-nos nas que ele, através da pesquisa dialética, superou suas limitações, seu
atividades nas quais a alma se aperfeiçoa. Do mesmo modo, a vida da desafio para os que, subseqüentemente, tentarão substituir suas teses
virtude moral e política existe em função da vida de pesquisa contemplativa
filosóficas, seja estendendo-as e corrigindo-as ou rejeitando-as, será
e deve subordinar-se a ela. Mas a segunda é impossível para o indiví-
que também devem situar-se dentro da mesma história da pesquisa
duo, ou para um grupo de indivíduos, sem a primeira. Portanto, os dois
dialética e tentar identificar e superar suas limitações da mesma manei-
modos de vida devem ser combinados na vida geral da pdlis, que, por
sua vez, deve ser compreendida, a essa luz, como se existisse em fun- ra, mas agora através dos padrões de sua época.
ção daquilo que liga os seres humanos ao divino. Toda atividade O feito de Aristóteles, portanto, é erroneamente compreendido se se
prática racional tem como causa final última a visão, à medida que é supõe que nos ofereceu uma visão da justiça e da racionalidade prática
acessível aos seres humanos, daquilo que Deus vê. que pode ser considerada superior às propostas por outros pontos de
Portanto, uma história que começou, nos poemas homéricos, com a vista opostos, fundamentalmente diferentes, antigos ou modernos, atra-
justiça de Zeus, culmina, na filosofia de Aristóteles, numa compreensão vés de algum conjunto neutro de padrões, igualmente disponíveis e
da justiça e das outras virtudes, na qual estão a serviço de uma vida igualmente eficazes para os partidários de todos os pontos de vista.
movida, em sua atividade, pelo Motor Imóvel e em direção a ele. NO Como argumentei, ao estabelecer as bases para a discordância e o conflito
livro I da Metafisica, Aristóteles nos dá uma história das pesquisas que dividem os partidários dos bens de excelência e os partidários dos
sucessivas de seus predecessores sobre o assunto com o qual vai pre- bens de eficácia, as discordâncias entre pontos de vista fundamentais
ocupar-se, apresentando as aporiai, as dificuldades que surgem de suas referem-se, principalmente, a como caracterizar essas discordâncias.
discordâncias e dos problemas não-resolvidos de suas pesquisas, de tal Nesse nível, não há nenhum modo neutro de se pôr os problemas,
modo que lhe permita apresentar seu próprio sistema de pensamento muito menos as soluções.
como um modo mais adequado de lidar com essas aporiai. A alegação
a favor de seu próprio ponto de vista é que ele transcende as limitações Em termos de racionalidade, só há progresso a partir de um deter-
de seus predecessores. O que tentei construir nos capítulos anteriores minado ponto de vista. E ele só é alcançado quando os partidários
foi uma história paralela do mesmo tipo no que se refere ao pensa- desse ponto de vista conseguem, num grau significativo, elaborar for-
mento político e moral de Aristóteles, numa tentativa de mostrar que mulações cada vez mais compreensivas e adequadas de suas posições,
a expressão da visão homérica da ação e da justiça, na vida da Atenas através do procedimento dialético de propor objeções que identificam
de Péricles, propôs aos atenienses, e em certo sentido aos gregos em incoerências, omissões, falhas explicativas e outros tipos de falha e
geral, uma série de aporiai práticas e teóricas, sucessivamente enfren- limitação em elaborações anteriores; através também do procedimento
tadas por Péricles, Sófocles, Tucídides e Platão. Na minha visão, o de encontrar os mais fortes argumentos disponíveis para sustentar essas
feito particular de Aristóteles foi, em primeiro lugar, oferecer um esquema objeções, e, ainda, de tentar reelaborar a posição, de modo que não seja
mais vulnerável às objeções e argumentos específicos.
160 A visão de aristóteles sobre a racionalidade prática

Foi precisamente desse modo que Platão identificou as limitações


do procedimento de elénchos de Sócrates e, conseqüentemente, do tra-
tamento socrático das virtudes; portanto, o que conseguiu na República
foi uma reelaboração da posição socrática, enriquecida no que diz respeito Capítulo IX
às concepções de eidos e da teoria da dialética. E, do mesmo modo,
Aristóteles, concordando com Platão na sua autocrítica da separação do
eidos dos particulares que o exemplificam, foi capaz de propor uma
visão da justiça e da racionalidade prática - assim como de outras A ALTERNATIVA AGOSTINIANA
questões filosóficas essenciais - que lhe permitiu mostrar como ambas
pertencem fundamentalmente à pólis institucionalizada, de um modo
que o próprio Platão tinha tentado, mas não conseguido realizar con-
vincentemente nas Leis.
Toda teoria filosófica que pretenda um alto grau de abrangência Entre uma visão grega da justiça característica dos século V e IV
tem de incluir, naquilo que explica, as visões das pessoas inteligentes, e uma visão tipicamente moderna e liberal, não há contraste maior do
perceptivas e filosoficamente sofisticadas que discordam dela, assim que o que se refere ao âmbito de aplicação da justiça, à area definida
como a visão de Platão do que estava errado com a educação ateniense, como aquela na qual as normas da justiça devem ser aplicadas. Para
à luz dos padrões socráticos, explicava as atitudes, crenças e com- um liberal moderno, as normas da justiça devem governar as relações
portamento de Trasímaco. Também Aristóteles, como já observei, tem dos seres humanos como tais; o fato de as partes envolvidas numa
uma explicação convincente e mais abrangente dos tipos de erro e de transação virem de sociedades políticas diferentes, ou serem divididas
discordância. Mas seria um erro supor que é o tipo de explicação que por outros tipos de fronteira, não faz com que a justiça se tome irrelevante
seria convincente para os opositores e críticos de Aristóteles, antigos para essa transação. Para Aristóteles, pelo contrário, a justiça propri-
ou modernos. Se as visões de Aristóteles sobre a justiça e a racionalidade amente dita é exercida entre cidadãos livres e iguais de uma mesma
prática são verdadeiras, devem necessariamente ser consideradas falsas pólis, e embora a justiça possa estar em questão, de modos limitados,
e insuficientes por uma série de tipos de pessoas, filósofos e outros. E em outras relações - em tratados comerciais ou militares, ou nos
também quanto a isso, a verdade das teses centrais de Aristóteles foi relacionamentos com mulheres, crianças e escravos - de um modo
confirmada de modo impressionante. geral, o âmbito da justiça é definido pelas fronteiras desta pólis par-
ticular.
Mas esta posição não fazia de Aristóteles um excêntrico. Diferentes
pensadores gregos tinham posições convergentes. Antifonte, por exem-
plo, sofista do século V, propunha uma visão da justiça radicalmente
oposta à de Aristóteles: a justiça é contrária à natureza e prejudicial
aos seres humanos. Mas ele define a justiça como consistindo em não
transgredir as leis e costumes de sua própria pólis (DK 844) concor-
dando, desse modo, que é para as relações dentro da pólis que a justiça
é relevante. Quando, no mundo antigo, a justiça estendeu-se para além
das fronteiras da pólis, foi sempre como uma exigência da teologia. A
hospitalidade oferecida ao estranho de fora da comunidade era ordenada
por Zeus Xeinios. Quando Sócrates reconheceu uma justiça cujo âmbi-
to se ampliava para além da fronteira da pólis, de um modo distinto do
das leis escritas da pdlis, apelou às leis não-escritas feitas por Deus
162 A alternativa agostiniana A alternativa agostiniana 163

(Xenofonte, Memorabilia IV,4). E quando, mais tarde, no mundo ro- que vigorou "durante todos os séculos antes que qualquer lei escrita ou
mano, um tipo de justiça acima e além da justiça da respublica foi mais cidade-estado (civitas) existisse" (De Legibus 1,6,19). Os seres huma-
uma vez reconhecida, era também uma justiça divina. Portanto, era de nos compartilham essa lei porque todos têm razáo, e aqueles que têm
uma invocação ritual solene que os tratados com povos estranhos re- razáo têm a reta razáo como posse comum. E a reta razáo é a lei, algo
tiravam sua força coercitiva; violar tal tratado significava invocar a ira compartilhado com os deuses e com todos os seres humanos: "De modo
de Júpiter (Lívio I,24). que este mundo todo é uma cidade que deve ser concebida como inclu-
O deus invocado, no entanto, era, obviamente, um deus romano. E indo deuses e seres humanos" (1,7,23). A virtude em geral (virtus) é a
os laços entre a religiáo cívica e a comunidade política eram tais que natureza aperfeiçoada, e ius é definido como aquilo que está de acordo
frequentemente, senão sempre, estender a proteçáo dos deuses e de sua com a natureza. Assim, a realizaçáo da justiça é aquilo pelo que nascemos
justiça a algum estranho significava, pelo menos temporariamente, incluí- (1,10,28).
-10 nas fronteiras da comunidade política. Desse modo, não é surpre- Do modo como compreendeu essa lei, Cícero reproduziu fielmente
endente que, no mundo antigo, a ampliaçáo do âmbito da justiça para a doutrina estóica da oikeiosis, apropriaçáo, tornar algo propriamente
além de seus estreitos limites originais fosse, geralmente, não uma seu. Cada ser humano individual é um composto de apetite (hormé) e
rejeição da identificaçáo das fronteiras da justiça com as fronteiras da razão. A razão ensina e explica o que deve ser feito e o que deve ser
comunidade política, mas uma ampliação da concepçáo das fronteiras evitado. Portanto, é funçáo da razáo comandar, e do apetite obedecer
políticas. (De Oficiis 1,28,101). Entre outras coisas, a razáo instrui o apetite náo
apenas sobre a presewaçáo do eu, mas também sobre o cuidado de si,
A mais notável dessas ampliações foi a expressa na teoria e na
náo apenas enquanto eu individual, mas também enquanto membro de
prática estóicas. Os estóicos foram os primeiros pensadores no mundo
greco-romano a afirmar sistematicamente que o âmbito da justiça é a uma família, membro de outros tipos de associação e, em Última análise,
humanidade como tal, e o fizeram porque compreendiam todo ser humano, enquanto membro da raça humana, h qual a caritas do indivíduo será
emancipado enquanto cidadão de alguma sociedade política ou náo, dirigida (De Finibus III,5,16 e III,19,62-63). Desse modo, alguém
livre ou escravo, como membro de uma única e mesma comunidade reconhece a humanidade em si mesmo e como pertencendo a si próprio;
sob uma Única e mesma lei. Esse pensamento estóico fundamental recebeu o progresso da oikeiosis se completa.
sua expressão memorável em Marco Aurélio: "Minha pólis e minha patris A palavra 'caritas' pode, entretanto, enganar-nos se, por exemplo,
é Roma enquanto Antonino, mas enquanto ser humano é o cosmo" projetarmos no seu uso ciceroniano um significado cristáo. Ao lermos
(Solildquios VI,44). Mas Marco Aurélio náo foi o primeiro a tratar do a explicaçáo de Cícero sobre os deveres no De Offíciis, fica claro quão
problema relativo ao que implicava reconhecer tanto uma justiça em pouco o implica. Nossos deveres mais elevados sáo para com os pais
relação h qual todos os seres humanos são iguais, quanto a justiça de
e a terra natal (patria), o Estado no qual temos cidadania; em seguida
sua própria comunidade política - toda comunidade política antiga era
vêm as crianças e o resto da família imediata; depois familiares mais
ordenada em termos de hierarquias não-igualitárias; tanto a justiça do
remotos; e finalmente aqueles amigos que merecem nosso respeito (De
cosmo, quanto a justiça de Roma. O autor que propôs aquilo que se
Officiis I,17,5-9 e 55-56). E quanto ao estranho, nem parente nem
tornou a elaboraçáo clássica desse duplo reconhecimento, náo apenas
concidadão, alguém a quem devemos o que devemos meramente en-
para o mundo culto romano, mas também para muitos pensadores
quanto companheiro da raça humana? O que devemos a ele é uma parte
posteriores em situações culturais muito diferentes, foi naturalmente
daquilo que náo foi definido como propriedade de alguém pelas leis
Cícero, ele próprio um eclético, mas expressando, quanto a este assun-
positivas dos Estados. Cícero cita Ênio, dizendo: devemos indicar o
to, pelo menos algumas das teses centrais do estoicismo.
caminho ao viajante que se desviou, e comenta: o que Ênio ensina é
O pensamento de Cícero move-se entre dois pólos. Por um lado, que se deve a um estranho aquilo que pode ser dado, sem perda para
afirma a universalidade para todos os seres racionais da lei única que nós mesmos, dentre as coisas comuns a todos, isto é, náo designadas
tem igual poder coercitivo sobre todos e que prescreve que todos sejam como propriedade (1,16,51-52). Portanto a caritas náo é muito ampla.
tratados de acordo com ela. Justiça e injustiça (ius e iniuria) devem ser O que estabelece os seus limites é, principalmente, uma concepçáo
definidas em termos de obediência e desobediência a essa "lei suprema" da vida de deveres enquanto reciprocidades hierarquicamente ordena-
164 A alternativa agostiniana A alternativa agostiniana 165

das, na qual cada pessoa deve e recebe o que lhe é devido em termos realinente surgiu já tinha adquirido, não sua origem, mas sua forma
de expectativas fixas e coordenadas. Família, cidade e universo, todos definitiva, séculos antes, com os decretos do rei Josias do Reino de
são exemplos de tais sistemas de reciprocidade hierarquicamente orde- Judá, em 622 a.C. e depois.
nados, e viver segundo a natureza e a razão significa agir de modo a
não romper ou prejudicar os sistemas dos quais cada um faz parte. Que Assim como Homero fornece o horizonte para um limite último da
o universo seja tal sistema, pressupõe a verdade da metafísica estóica autocompreensão histórica das culturas pós-cristãs modernas, também
do cosmo e da ordenação divina expressa no cosmo, mas, uma vez que a história dos antigos hebreus fornece o horizonte para um outro limite.
o universo é o que os sucessivos fundadores do estoicismo ensinaram, Judeus e cristãos, naturalmente, reconhecem em Abraão o iniciador de
fica claro por que é racional que cada pessoa se comporte segundo as sua própria fé particular, mas os que rejeitaram aquela fé também
normas da reciprocidade sistemática; se assim não for, a pessoa frus- continuam sendo produtos de uma história precisa que começa com
trará ou romperá sua natureza enquanto parte do sistema. Quando Abraão. Essa história foi recontada várias vezes, de modo que as pr6-
confrontado com frustrações e rupturas do sistema de reciprocidades prias reiterações narrativas sucessivas tornaram-se parte da história
ordenadas, provocadas por outros, a tarefa do ser humano virtuoso será posterior, a unidade dessa história sendo restabelecida a cada estágio
corrigir e reparar o sistema através da ação moral e política. Con- I por alguma nova reiteração e uma nova ratificação da obediência aos
seqüentemente, a própria justiça exige a manutenção da justiça através 1 preceitos divinos na qual Abraáo, Isaac e Jacó tinham sido sucedidos
da defesa da civitas. Foi exatamente em função dessa defesa que Cícero i por Moisés, Josué e Davi. Quando essa história toda adquiriu o que
escreveu o De Oficiis nos seus últimos meses de vida, depois da morte viria a ser sua forma canônica final, no reino do rei Josias, foi na
de Júlio César. E foi exatamente em função dessa defesa que M. Pórcio versão do livro do Deuteronômio, então produzido -uma recriação de
Cato, o Jovem, tinha defendido a república romana contra César, pre- um livro muito mais antigo da lei dada por Javé, encontrado no templo
servando-lhe a soberania acima de sua própria vida, de acordo com o -, que toda a história de Israel e de Judá foi estruturada e focalizada,
preceito estóico, cometendo suicídio depois de sua derrota em Utica através de um processo de sucessivas narrações e recepções da mesma
em 46 a.C. lei que há muito tempo tinha sido dada por Javé a Moisés no Monte
Sinai. E, naturalmente, é a elaboração final da lei por Moisés que é o
As concepções estóicas de lei e justiça são, portanto, extensões
teologicamente fundadas da lei e da justiça que informam as relações assunto do Deuteronômio.
dos cidadãos livres, primeiro dentro da pólis, e mais tarde dentro da Alguns estudiosos modernos (ver um resumo em Norman K. Gottwald,
república e do império romanos, quando esses não estão desordenados "Deuteronomy", The Pentateuch, ed. Charles M. Layman, Nashville,
pela tirania. Quanto a isso, assemelham-se aos preceitos que, na lei 1983, 280-284; o principal trabalho de base é M. Noth,
romana, fornéciam o conteúdo do ius gentium, a parte da lei que pro- ~berlieferun~s~eschichte des Pentateuchs, Stuttgart, 1948) com-
tegia tanto os tratados entre os Estados como os contratos entre estrangeiros preenderam a composição do Deuteronômio, na sua forma presente, como
e cidadãos romanos. Entretanto, as normas do ius gentium eram, na emergindo de "uma liturgia de renovação da aliança" na qual a recita-
verdade, não mais do que uma extensão da lei romana. Aquilo que os
ção da lei era uma parte fundamental. Isso torna ainda mais significa-
romanos "compreendiam por ius gentium e aplicavam aos romanos e
tivo o fato de que o Javé que se dirige a Israel, em termos de uma
aos estrangeiros era, na realidade, lei romana tanto por natureza como
aliança especial entre Ele e Israel, aparece como aquele que é não
por origem" (Wolfgang Kunkel, An Introduction to Roman Legal and "
apenas o Deus de Israel, mas o Deus que fez todas as nações e esta-
Constitutional History, trad. J. M. Kelly, Oxford, 1973:77). Portanto,
beleceu as fronteiras de todos os povos (Deuteronômio 26,19 e 32,8),
o ius gentium ou as visões estóicas da lei e da justiça não fornecem,
i e que se preocupa particularmente com que a justiça seja estendida ao
em nenhum aspecto fundamental, as bases para um recurso contra as r

práticas e a ordem dominantes nas organizações políticas grega e ro-


mana. Uma concepção da justiça que não apenas tivesse um âmbito
que se estendesse para além dos cidadãos dessas ordens políticas a toda
a humanidade, mas que também fornecesse um padrão para avaliá-los
independentemente, tinha de vir de outro lugar. Quando tal concepção
I
i
1,
1r
estrangeiro residente não-hebreu (14,29;24,17;27,19). A lei, cujos preceitos
fundamentais são os Dez Mandamentos, foi entregue a Israel como o
povo escolhido, mas outros povos reconhecem que aquela lei expressa
a sabedoria e a justiça (4,6-9). E quando Israel é avisado de que a
desobediência à proibição da idolatria será punida através da destrui-
ção, o exemplo de outros povos já punidos por idolatria e, portanto,
166 A alternativa agostiniana A alternativa agostiniana 167

culpáveis perante a mesma lei é mostrado a eles (8,19-20). Assim, o O que foi expresso nessa e em outras distinções no Deuteronbmio
que foi prescrito pela Torá é, não uma justiça restrita a Israel, mas a era, naturalmente, uma compreensão da outorga da lei divina como
justiça como tal, não apenas uma lei em muitos de seus pormenores parte da realização da aliança que Javé tinha feito apenas com o povo
específica para Israel, mas também uma lei válida para todos os povos. de Israel. De modo que, quando um grupo de judeus, seis ou sete
Os Dez Mandamentos são preceitos sem exceção, prescrevendo e séculos mais tarde, continuou a reconhecer-se como membros do povo
proibindo certos tipos de ação independentemente das circunstâncias. ao qual Moisés dirigiu-se na narrativa deuteronômica, mas também
Viver de acordo com eles será agir para o seu próprio bem em todos compreendendo a si mesmos como os herdeiros da transformação da-
os tempos (6,24-25). A justiça consiste em viver na obediência a essas quela comunidade deuteronômica na ekklesía cristã - na qual toda a
leis que Deus ordenou. Os juízes que administram a lei devem fazê-lo espécie humana foi convocada à redenção e à obediência, para a qual,
sem distribuir favor ou aceitar suborno: "A justiça e apenas a justiça judeus ou não-judeus, a relação com a lei divina era uma parte crucial
devereis perseguir ..." (16,20). A recompensa da justiça será a terra de sua relação com Jesus Cristo -, a natureza desse conhecimento da
que Deus doou a Israel. O núcleo da desobediência é, portanto, a de- lei de Deus disponível a todo ser humano, bastante independente de
sobediência à lei, à lei divina e à lei humana, à medida que se confor- sua revelação no Monte Sinai, tornou-se uma questão crucial. Foi uma
ma à lei divina. questão tratada por S. Paulo na sua carta à Igreja de Roma.

O apelo à aceitação das exigências da justiça assim concebida seria Paulo declarou que todos os seres humanos podem ter acesso ao
continuamente reiterado ao longo da história de Israel. E a ampliação conhecimento da existência e dos atributos de Deus, o que a razão
desse apelo para além do povo de Israel seria ainda proclamada de um humana confirma, e ao conteúdo da lei divina; é apesar desse conheci-
modo novo no desenvolvimento da profecia judaica. O discípulo de mento e ignorando-o que os seres humanos desobedecem à lei de Deus
Isaías que escreveu os capítulos finais do livro de Isaías, no período (Romanos 1,18-23 e 32). "Quando os gentios que não têm a lei (i.é, a
lei mosaica revelada) fazem aquilo que por natureza são as exigências
posterior ao retorno do exílio na Babilônia permitido por Ciro, em 538,
da lei, eles, embora não tendo a lei, são a lei para si próprios ..." (2,14-
deixou claro que era parte da promessa de Deus que as recompensas da
15). "Aqueles que ouvem a lei não estão apenas perante Deus, mas
justiça, assim como suas exigências, deveriam ser estendidas para além aqueles que fazem o que a lei exige são justificados" (2,13). Portanto,
de Israel. Também os gentios serão convocados à obediência em Jeru- Paulo, ao reconhecer exatamente a soberania divina sobre todos os
salém (56,7 e 66,18). Assim, a soberania deuteronôrnica sobre Israel é povos proclamada nos capítulos finais do livro de Isaías, reconheceu
estendida a todas as sociedades humanas. também a existência de uma lei natural, promulgada por Deus como O
O Deuteronômio tinha-se preocupado especificamente com a pró- criador e senhor do universo, substancialmente idêntica em conteúdo
pria obediência de Israel à lei e com a lei tal como especificada para aos Dez Mandamentos e igualmente obrigatória para todos os seres
Israel. Alguns dos preceitos divinos, principalmente os dos Dez Man- humanos.
damentos, aplicam-se às ações de todo membro do povo hebreu em Pensadores cristãos posteriores identificariam as visões estóica e
relação a todo outro, hebreu ou não - e, realmente, uma vez que a especialmente ciceroniana da lei à qual a natureza e a razão exigem
justiça como tal está sendo definida, às ações de todo ser humano em conformidade, justamente como evidência do conhecimento natural da
relação a todo outro. Mas, na aplicação de algumas leis, fazia-se uma lei de Deus ao qual Paulo se referiu. A herança deuteronômica e profética
distinção entre o modo em que o povo de Israel deveria tratar o estran- do judaísmo e aqueles que foram consideradas pelos cristãos como os
geiro residente ou visitante temporário, que deveria ser tratado como maiores feitos na formulação das exigências da justiça no mundo greco-
um membro da comunidade, e o estrangeiro que ficava completamente -romano foram, a partir de então, compreendidos pelos cristãos como
fora das relações da comunidade. Assim, na relação de um membro da falando-lhes de uma única e mesma lei e justiça divinas. Consequen-
comunidade com outro, um irmão (I'ahika), a usura é completa e in- temente, uma das principais tarefas da teologia cristã foi fornecer um
condicionalmente proibida, mas "de um estrangeiro (nokri: a palavra esquema dentro do qual pudessem ser compreendidas dessa forma, uma
hebraica 6 usada para referir-se apenas a alguém bastante fora da co- tarefa para a qual muitos escritores patrísticos contribuíram. Mas toda
munidade; ver B. Nelson, The Idea of Usury, segunda edição, Chicago, a complexidade da tarefa só emergiu com Sto. Agostinho, quem me-
1969, 19-21) podem-se cobrar juros sobre um empréstimo ..." (23,20). lhor conseguiu realizá-la.
168 A alternativa agostiniana A alternativa agostiniana

Agostinho, na sua compreensão da lei e da justiça divinas, pôde aos pobres e oprimidos, tanto que suas exigências têm sido considera-
basear-se nos escritos e traduções de Mario Vitorino, que no século IV das, de tempos em tempos, como ainda tendo uma aplicação maior e
traduziu parte do Organon de Aristóteles e vários autores neoplatônicos mais radical ao longo da história subseqüente da Igreja. Mas não era
para o latim e produziu comentários sobre Cícero e Aristóteles. Depois apenas com relação ao âmbito de aplicação e ao conteúdo de suas
de sua conversão ao cristianismo, usou a terminologia filosófica do exigências que a concepção de Agostinho diferia da de Cícero.
platonismo, especialmente na versão plotiniana, para defender a ortodoxia Depois de citar Cícero, Agostinho cita Paulo: devemos ser justos
de Sto. Atanásio na teologia trinitária. Vitorino tomou possível a Agostinho "de modo a não dever nada a ninguém, mas a amar uns aos outros" (De
integrar o que tinha aprendido com Cícero numa visão platônica da Trinitate VIII,6; Romanos 13,8). Agostinho apelou a Paulo neste ponto
justiça, de modo tal que pôde então, por sua vez, integrar o platonismo porque enfrentava um problema para o qual seu platonismo não ofere-
na sua teologia cristã. cia nenhuma solução. Todos podem descobrir dentro de suas mentes a
Saber o que é a justiça significa familiarizar-se com a forma da forma atemporal ou concepção de justiça que é a medida da ação correta.
justiça, uma verdade sobre a justiça presente dentro da mente que não Mas não só é verdade que muitos indivíduos não exercitam suas ha-
pode ter sido oriunda da experiência sensível (De Trinitate VII1,ó). Essa bilidades para tornar-se intelectualmente conscientes desse padrão, algo
alegação é expressa por Agostinho numa formulação que lhe para o que Platão e os neoplatônicos ofereceram uma explicação; é
era familiar nos escritos de Cícero (De Finibus V,63 e De Inventione também inevitável, como Agostinho considerava ter descoberto na sua
II,160), segundo a qual a justiça consiste em dar a cada um o que lhe própria vida, tal como foi registrado nas Confissdes, e nas vidas dos
é devido, uma formulação que Justiniano deveria usar como a defini- outros, que a apreensão intelectual completa da forma da justiça não
ção da justiça na seção inicial dos Institutos. Portanto, ao investigar seja por si só suficiente para gerar a ação correta. E isso, do ponto de
dentro de si mesma, o que a mente encontra é uma concepção da justiça vista de uma psicologia platônica ou neoplatônica, é ininteligível.
já exemplificada na teoria e na prática da lei romana, mas inadequada- O que mais é necessário? Dirigir nosso amor (Agostinho usa tanto
mente exemplificada de dois modos fundamentais. 'amor7 e 'amare' como 'diligere' e 'dilectio') para a forma é algo que
A formulação de Cícero, como observamos anteriormente, sobre só podemos conseguir quando o nosso amor t dirigido para uma vida
sua visão da justiça em geral, pressupõe que a justiça é exercida dentro que expressa perfeitamente a forma nas suas ações, a vida de Jesus
de uma forma determinadamente estruturada de comunidade, na qual Cristo. Só as particularidades dessa vida podem evocar em nós a rea-
há uma hierarquia de posições e na qual as contribuições feitas para o ção de amor que é tanto o amor dirigido àquela pessoa particular como
bem geral da comunidade, por parte daqueles que ocupam esses postos, à forma da justiça. E Jesus nos dirige para aquela forma imutável da
assim como por parte dos membros individuais da comunidade, deter- justiça em Deus que apreendemos diretamente em nossas mentes, im-
minam o que é devido a quem por parte de quem, isto é, determinam pelindo-nos continuamente em direção a uma apreensão mais clara dela,
o merecimento. Sem o contexto de tal forma de comunidade, como à medida que passamos a amar Deus mais e mais, tal como Ele é
observamos anteriormente no caso de Aristóteles, e como ainda vere- revelado em Jesus Cristo (De Trinitate IX,13).
mos novamente no caso de Hume, qualquer justiça do merecimento ca- O amor, tal como Agostinho o compreende, não é o éros platônico.
rece necessariamente de aplicação coerente. Qual é, então, a forma Ele consiste, em primeira instância, na soma total de nossos desejos
determinada de comunidade pressuposta pela justiça de merecimento naturais e de nossos desejos de alcançar a felicidade através da satis-
de Agostinho? fação desses desejos. Temos de aprender, entretanto, que a satisfação
É bem diferente da pressuposta por Cícero, sendo nada menos do de todos os nossos desejos não levará por si só à felicidade. Apenas a
que a civitas Dei, a forma de comunidade divinamente ordenada, na satisfação do desejo daquilo que é certo desejar - aqui novamente
qual todo ser humano é convocado a encontrar seu lugar devido e Agostinho segue Cícero - é felicidade (De Beata Vita 2,lO). Portanto,
dentro da qual todo ser humano pode finalmente receber, não o seu nossos desejos precisam ser dirigidos para objetos diversos daqueles
merecimento, mas algo muito melhor. Tal como com os estóicos, o para os quais os vemos inicialmente inclinados e hierarquicamente
âmbito da justiça torna-se universal, mas essa universalidade requer ordenados. A direção e ordenação dos desejos humanos é trabalho da
muito mais do que a universalidade estóica, particularmente em relação vontade (voluntas), e porque os desejos humanos estão no estado que
170 A alternativa agostiniana A alternativa agostiniana 171

estão devido à inclinação da vontade ou ao fracasso em direcioná-la, Numa discussão do De Re Publica de Cícero, Agostinho aceitou a
eles, diferentemente dos desejos de outros animais, são voluntários (De definição de república posta na boca de Sípio, nesse diálogo, de acordo
Libero Arbitrio III,1,2). A psicologia agostiniana que, pelo lugar que com a qual uma república só existe onde os cidadãos concordam em
atribui à vontade, é surpreendentemente diferente não apenas do reconhecer um padrão do que é certo, cuja aplicação nos assuntos da
neoplatonismo, mas de qualquer psicologia antiga, fornece uma nova comunidade política resulta na justiça. Mas, segundo Agostinho, uma
compreensão da gênese da ação. Antes de considerar essa compreensão, vez que não há justiça na Roma pagã, "nunca houve uma república
é importante voltar à discussão de Agostinho sobre a justiça, a fim de romana" (XIX,21).
compreendermos como sua concepção da natureza da ação justa pres- A justiça só existe na república que é a cidade de Deus, da qual
supõe sua psicologia. Cristo é o fundador e na qual governa (II,21). Portanto, há duas cida-
des, cada uma com sua própria história: a Cidade do Homem, cujo
O padrão da justiça, como já vimos, é dado pela forma da justiça; primeiro fundador foi Caim e cuja exemplificação final era a Roma
e a ação justa, de acordo com esse padrão, é produzida por um amor pagã, e a Cidade de Deus. A primeira foi fundada e refundada sobre a
justo cujo objeto é, na verdade, a justiça divina. Mas nem toda ação vontade humana perversa, que dirige os desejos para outras coisas que
;
que está aparentemente de acordo com o padrão da justiça é genui- não sua verdadeira felicidade; a segunda foi fundada sobre o dom da
namente uma ação justa. Os seres humanos podem ser motivados a graça que permite à vontade escolher livremente o que, de fato, a
conformar-se a esse padrão, não pelo amor do justo, que só é possível levará à sua verdadeira felicidade. A concepção da vontade fundava a
como uma forma do amor por Deus, mas por orgulho, amor de si teoria política de Agostinho.
próprios. Agostinho caracteriza o orgulho (superbia) como "a falta que A concepção da vontade foi uma invenção de Agostinho? Ou des-
surge da confiança em si mesmo e de fazer de si mesmo a fonte da coberta dele? Aos seus olhos, pelo menos, foi uma descoberta, mas
própria vida" (De Spiritu et Littera 7), uma falta que Agostinho uma descoberta do que sempre tinha sido verdade. Albrecht Dihle, na
exemplifica com o elogio da autoconfiança feito por Pelágio. Ele tam- sua obra paradoxalmente chamada de The Theory of Will in Classical
bém considerou-a como o motivo para a virtude aparente, mas não real, Antiquity (Berkeley, 1982), por um lado, mostrou como os autores da
na história da Roma pagã. antiguidade clássica anteriores a Agostinho não tinham o vocabulário
O orgulho é concebido por Agostinho como o amor de si que aspira e, na sua maioria, qualquer concepção da vontade, por outro enfatizou
à autoglorificação. E Agostinho cita Salústio (Bellum Catilinae 7) para como foi a partir de sua própria experiência moral, tal como retratada
nas Confissões, que Agostinho elaborou esse conceito. A diferença entre
mostrar que o desejo de glória era a paixão dominante dos romanos.
Agostinho e seus predecessores clássicos, por oposição aos seus prede-
Isto os levou a refrear seus outros desejos, no interesse de alcançar e
cessores do Novo Testamento, pode ser descrita de dois modos intima-
preservar sua própria liberdade e de subjugar aos outros (De Civitate
mente relacionados. O primeiro refere-se a como deve ser explicada a
Dei V,12). O que a história da Roma pagã exemplificava, portanto, não incapacidade de alguém que sabe o que é melhor para fazer, mas que
era a justiça, mesmo quando as ações dos romanos se conformassem no entanto não age de acordo com o que sabe. Dentro do esquema
exteriormente àquilo que a justiça exige. Pois os romanos pagãos eram sucessivamente aprimorado por Sócrates, Platão e Aristóteles, tal in-
movidos por orgulho e não por amor a Deus. Conseqüentemente, quando capacidade deve ser explicável, como observamos anteriormente, por
sua autoglorificação só podia ser alcançada, ou era melhor alcançada alguma imperfeição no conhecimento da pessoa, naquele momento, daquilo
através da injustiça declarada, eram levados, pelo orgulho, a desprezar que é bom e melhor, ou por alguma imperfeição na educação e disci-
as exigências da justiça, principalmente na conquista e opressão de plina das paixões. Não há uma terceira possibilidade. Ao contrário,
outros povos. Agostinho mantinha que é possível que alguém saiba simplesmente o
que é melhor fazer, num certo momento, sem que haja qualquer deficiência
De fato, a justiça estava ausente da história da Roma pagã, o que,
nas paixões como tais, a não ser que sejam mal dirigidas pela vontade.
no entanto, pode servir como exemplo para os cristãos: "Consideremos
A vontade, por ser anterior à razão, não tem, no seu nível mais fun-
como desprezaram grandes coisas, como suportaram grandes coisas, damental, nenhuma razão para suas determinações. E isso nos leva a
...
que paixões controlaram em nome da glória humana e que isso nos uma segunda maneira de caracterizar a diferença entre Agostinho e
seja útil mesmo na supressão do orgulho ...". seus principais predecessores clássicos.
172 A alternativa agostiniana
A alternativa agostiniana 173

Tanto para Platão como para Aristóteles, a razão é independente- e psicológica e, como afirmava Aristóteles, pleonexia, mas a desordem
mente motivadora; tem seus próprios fins e inclina os que a possuem voluntária e a pleonexia são ambas efeitos e sinais de desobediência.
na sua direção, mesmo que seja também necessário que os desejos mais Devido à originalidade de sua visão da vontade, Agostinho teve de
elevados sejam educados para a racionalidade, e que os apetites corpóreos inovar lingüística e conceitualmente. Ao fazê-lo, como mostra Dihle,
sejam subordinados a ela. Para Agostinho, o próprio intelecto precisa foi capaz de trabalhar a partir de usos variados de 'velle' e 'voluntas'
ser movido à atividade pela vontade. É a vontade que guia a atenção do latim antigo, particularmente em contextos legais. Antecipações da
numa direção e não na outra. É a vontade que determina, fundamental- concepção agostiniana da vontade podem ser certamente encontradas
mente, o que é feito dos materiais fornecidos pela percepção sensorial em autores tão diferentes quanto Fílon e Sêneca. Mas esses fatos não
para a cognição, tanto na memória como no próprio ato de cognição devem ocultar aquilo que C radicalmente novo em Agostinho. Ele,
(para um resumo da visão de Agostinho sobre estes tópicos e para uma naturalmente, nas suas análises da propensão humana para o pecado e
lista abrangente de citações, ver Dihle, op.cit:231-244 e capítulo VI e a redenção, estava interpretando as Escrituras, mas a elucidação que
R. A. Markus, "Human Action: Will and Virtue", capítulo 25, The faz delas é distinta, à medida que é capaz de propor uma compreensão
Cambridge History of Later Greek and Early Medieval Philosophy, ed. da doutrina de Paulo em Romanos, por exemplo, usando um tipo de
A. H. Armstrong, Cambridge, 1967). vocabulário que não estava disponível ao próprio Paulo. Ao fazê-lo,
A vontade humana é o determinante último da ação humana, e a não há dúvida de que capta o significado de Paulo; não é um erro,
vontade humana é sistematicamente maldirecionada e de tal maneira portanto, imputar a Paulo uma concepção da vontade que ele próprio
que não está em seu próprio alcance redirecionar-se. Originalmente, a não poderia ter explicitado. Mas seria um erro imputar tal concepção
vontade era dirigida para o amor de Deus, mas, através do exercício de aos protagonistas de qualquer uma das escolas filosóficas antigas, mesmo
uma liberdade de escolher entre o bem e o mal, Adão escolheu dirigir aos escritores estóicos, que são, às vezes, erroneamente compreendidos
a vontade para o amor de si, e não para o amor de Deus. Ao agir desse exatamente nesse ponto.
modo, Adão restringiu sua liberdade de escolher o bem e, porque ou- Agostinho, portanto, realmente elabora uma versão genuinamente
tros poderes humanos precisam da direção da vontade, Adão, a partir nova da natureza da justiça e da gênese da ação humana. A racionali-
de então, não dispunha mais de recursos para recuperar a liberdade. dade da reta ação - e a reta ação realmente, segundo Agostinho,
Cada ser humano individual revela, na condição de sua vontade, sua conforma-se aos padrões racionais fornecidos pelas formas que o in-
solidariedade com Adão, independentemente da consciência que tem telecto apreende - não é seu determinante principal, mas uma con-
desse fato. Só a graça divina pode salvar a vontade dessa condição. seqüência secundária da reta vontade. Desse modo, a fé que inicialmente
Agostinho afirma tanto a necessidade da graça para o redirecionamento move e informa a vontade é anterior à compreensão; o que a compre-
da vontade como a necessidade de a vontade aceitar a graça divina ensão pode fornecer é uma justificação racional por ter inicialmente
livremente. E desnecessário, para meus objetivos aqui, investigar como acreditado ou feito o que a fé determinou, mas tal justificação deve
essas afirmações se ligam uma à outra. Mas é importante observar que sempre ser retrospectiva. A racionalidade prospectiva, compreendida
a virtude humana fundamental é uma virtude da vontade no seu retorno em grande parte como Platão a tinha compreendido, é possível para o
à liberdade, assim como o vício humano fundamental é o vício da intelecto informado pela fé, posteriormente informando a vontade que
vontade na sua condição de auto-escravidão. O vício humano fundamental a tinha dirigido a esse estado de fé (com o trabalho necessário da graça)
é, naturalmente, o orgulho. A virtude humana correspondente é a hu- e que continua a dirigi-la da mesma forma. Esse caráter secundário da
mildade (humilitas), fundamental à medida que, sem ela, não se pode 1 racionalidade prática é algo com que Agostinho estava necessariamen-
ter o amor de Deus e, portanto, nenhuma outra virtude. te comprometido, devido à sua psicologia da vontade.
A justiça, portanto, não pode informar o caráter de um indivíduo,
a não ser que seu caráter seja também informado pela humildade, e o
I A mesma psicologia continuou a funcionar em aliança com a mea-
ma doutrina teológica, através das teologias agostinianas da Europa
enraizamento da injustiça no orgulho implica que a injustiça consiste medieval. Novas meadas de doutrina, do Pseudo-Dionísio ou de João
na desobediência. Não é que a injustiça não seja também, como afir- Scoto Erígena, seriam trançadas para formar a tessitura do pensamento
mava Platão, uma falha no que diz respeito à ordem metafísica, política teológico. E a realização das implicações institucionais e outras impli-
174 A alternativa agostiniana A alternativa agostiniana 175

caçóes práticas do ponto de vista agostiniano foi feita, frequentemente, Sevilha, quando falou da Igreja como "universitas gentium" (De Fide
por pessoas que não eram teóricas, a não ser de um modo a d hoc, no Catholica II,7) e como "civitas regis magni" (Quaestiones in Vetus
curso dos debates e disputas sobre questóes práticas, mas cujas pa- Testamentum: In Primum Regum I). Deus reina como o rei de uma ci-
lavras e açóes emergem de um fundo de crenças estruturado pela te- dade, com soberania sobre todo o universo, e o papa é o vice-rei de Deus.
ologia de Agostinho. O mais notável de todos, na realização das di-
mensões prática e especialmente política dessa teologia, foi talvez o As reformas particulares de Gregório Vi1 visavam tomar as formas
organizacionais concretas da Igreja capazes de expressar mais ade-
monge Hildebrando, que tornou-se papa em 1073, com o nome de
quadamente essa universalidade e soberania. O fracasso generalizado
Gregório VII.
na manutenção do celibato entre os padres e na prevenção da simonia,
Gregório VI1 foi, ao menos em intenção, um verdadeiro teólogo assim como a tendência, por parte dos bispos, de valorizar os favores
teórico, se é que foi um teórico. Mas na sua teologia, como sugere A. conferidos pelos príncipes ao invés da autoridade papal, foram todos
J. Carlyle numa abordagem de Gregório VII, com referência específica compreendidos por Gregório VI1 como modos pelos quais sexo, di-
ao estoicismo (Medieval Political Theory in the West, vol. 111, Edinburgh, nheiro e poder político eram usados para subverter a independência, a
1970, 97), podem-se reconhecer teses e meadas argumentativas da fi- libertas, da Igreja. De modo que, na sua identificação dos pontos nos
losofia antiga e da lei romana, transmitidas por Agostinho e outros quais se sentiu forçado a entrar em conflito político, principalmente
escritores patrísticos. E, uma vez que Gregório VI1 estava empenhado com o imperador Henrique IV, o que está sempre em questão é uma
em fornecer respostas a questões que poucos, se algum, de seus pre- defesa da capacidade da Igreja de determinar sua própria estrutura de
decessores teológicos tiveram de estruturar do mesmo modo, não é de acordo com a soberania de Deus.
admirar que sua teologia, mesmo retomando às Escrituras e à Tradição Libertas, portanto, é uma condição para iustitia, e quando tanto as
nas suas justificaçóes, parta de um tipo de recurso conceitual de uso sociedades políticas como a Igreja universal forem ordenadas de acor-
não-característico entre os teólogos do seu século ou dos séculos do com a justiça, a libertas adequada de cada uma terá sido alcançada.
imediatamente anteriores. Ele também não teria herdeiros da mesma Ao afirmar a ordem de iustitia contra os governantes seculares osten-
estatura por muitos séculos. Quando a visão teocrática de Gregório VI1 sivamente cristãos, nos poderes estabelecidos da Europa, o Reich Saliano
reapareceu, foi em circunstâncias sociais, políticas e teológicas tão e os reis capetianos da França, cujo engrandecimento violava a ordem,
diferentes das suas que esses herdeiros nem sempre foram reconheci- Gregório VI1 desincumbiu-se de sua segunda responsabilidade. A or-
dos como tais. Refiro-me principalmente a João Calvino e a Pio IX. O dem de iustitia é uma ordem expressa na Igreja universal, uma ordem
que tinham em comum com Gregório VI1 era, acima de tudo, sua com- na qual cada ser humano tem lugar e deveres específicos. Ocupar esse
preensão de que a natureza da comunidade cristã e a das virtudes lugar e realizar bem suas funçóes significa ser justo. Recusar-se a ocupar
necessárias para a vida nessa comunidade devem ser explicitadas em esse lugar, desempenhar mal seus deveres ou rebelar-se contra a ordem
termos institucionais e organizacionais concretos. que define esse lugar significa falhar com relação à justiça.
Gregório VI1 articulou sua teologia política enquanto cumpria quatro Injustiça é inoboedientia. O vício que a desobediência expressa é a
responsabilidades papais distintas, mas relacionadas, em cujos termos superbia, orgulho. A virtude subjacente e exigida para a justiça é a
definia as tarefas de seu papado. A primeira era a da reforma interna humildade. Fica imediatamente claro que este, de fato, é o esquema de
da Igreja. Desse modo, seu foco imediato e necessário sobre questóes virtudes de Agostinho, pressupondo sua psicologia, que está sendo
particulares - tais como a de estabelecer o celibato dos padres, elimi- expresso em termos políticos. E Gregório VI1 continuou a usar o es-
nar o pecado de simonia (adquirir cargos eclesiásticos para si ou para
outros através de dinheiro ou de outros bens mundanos), melhorar o
i: quema agostiniano ao afirmar que apenas a iustitia garante a concordia
e que quando os fins da justiça não são atendidos, mais particularmente
sistema de aplicação da lei canônica e fundamentar a autoridade do i quando reis agem como tiranos, o resultado é a discórdia. O acordo que
bispo de Roma sobre outros bispos -não deve ocultar sua compreensão a justiça expressa é hierárquico. Reis e, acima de tudo, o sagrado im-
da Igreja como uma sociedade genuinamente universal. O que Gregó- perador romano ocupam lugares supremos, tanto em autoridade como
rio VI1 expressou nas formas lingüísticas e institucionais do século XI em responsabilidade, mas não estão mais protegidos pelo ius, a lei que
foi uma visão do lugar da Igreja, expresso muito antes por Isidoro de expressa o que iustitia exige, do que qualquer outra pessoa. Exata-
176 A alternativa agostiniana A alternativa agostiniana 177

mente porque o âmbito da justiça é universal, nenhum ser humano se julgar, censurar e, se necessário, depor governantes seculares, não poderia
encontra além de sua proteção, e as formas mais básicas de proteção assumir a função deles. Ele tampouco sugere que a autoridade secular
são estendidas a todos. Assim, a igualdade perante a lei divina e sob derive do papa ou que o papa tenha o direito de escolher governantes
ela pertence aos seres humanos enquanto seres humanos, uma igualdade (Brian Tierney, The Crisis of Church and State 1050-1300, Englewood
que deriva do fato de fazerem parte de uma comunidade universal, Cliffs, 1964, 53-57).
divinamente ordenada.
Não me interessam aqui os argumentos usados por Gregório VI1
A terceira responsabilidade papal de Gregório VI1 foi a formulação . para defender as alegações papais, argumentos fortalecidos, às vezes,
dos princípios da justiça, não durante os conflitos com as grandes potências I
por interpretações errôneas e anacrônicas de precedentes fornecidos
que ameaçavam o exercício da autoridade adequada por parte do papado, por Sto. Ambrósio e pelo papa Gelásio. O que importa é o fato de
mas nas homilias que dirigia aos governantes de potências não tão bem Gregório VI1 tomar consciência de que a teologia da justiça agostini-
estabelecidas que procuravam o papado em busca de orientação. Tais ana, assim como toda concepção substancial da justiça, s6 será com-
governantes podiam esperar ajuda do papado para suas reivindicações i pletamente articulada quando as conseqüências para a teoria da política
de libertas. A mensagem de Gregório VI1 para eles era que "esse poder , forem explicitadas. O que Gregório VI1 oferece é, portanto, uma con-
implicava responsabilidades" (K. J. Leyser, "The Polemics of the Papal i tinuação do pensamento de Agostinho na qual a relação das duas cida-
Revolution", Trends in Medieval Political Thought, ed. B. Smalley, 1 des, numa sociedade cristã, é compreendida em termos de diferença,
Oxford, 1965, 55; esta é a elaboração definitiva daquilo que estava em tanto de função como de origem, entre o papado e as instituições ecle-
questão entre Gregório VI1 e seus opositores e críticos), e essas res- siásticas em geral e as soberanias seculares.
ponsabilidades deveriam ser expressas numa lei que fosse reconhecida
As primeiras são inequívocas na sua significação; derivam direta-
por todos os poderes seculares, uma lei explicitada em todos os porme-
mente da instituição divina. Mas o governo secular se enraíza tanto no
nores necessários. Walter Ullmann refere-se à "percepção clara, por
pecado original como na instituição divina. Assim, A. J. Carlyle foi o
parte de Hildebrando, da necessidade de se ter uma lei com a qual
primeiro a observar que, em algumas passagens, Hildebrando "mantém
governar a societas christiana. Essa lei, pela qual repetidas vezes ex- que a origem da autoridade secular está ligada ao caráter corrupto e
pressou seu desejo, deveria mostrar a destilação da iustitia em ius, em pecador da natureza humana" enquanto, em outros momentos, "descre-
regras de conduta de poder coercitivo generalizado. Princípios
hierocráticos, desenvolvidos em tempos passados e em eventos histó-
ve a autoridade secular como derivada de Deus, ...
encontrando seu
verdadeiro caráter na defesa e manutenção da justiça"; Carlyle diz, em
ricos, constituem iustitia em sua totalidade, e esses princípios porme- seguida, que "essas duas concepções podem parecer, à primeira vista,
norizados devem ser postos à disposição do governo efetivo da societas inconsistentes e irreconciliáveis para aqueles que não estão familiari-
christiana" (The Growth of Papal Government in the Middle Ages, zados com a tradição estóica e patrística, mas isto é mera confusão.
Londres, 1955, 274-275). Portanto, a quarta responsabilidade específi- Pois, nessa tradição, o governo, assim como as outras grandes instituições
ca do papado de Gregório VI1 era dar instruções para se codificar as da sociedade tais como a propriedade e a escravidão, é resultado do
partes relevantes da lei da ecclesia, instruções que resultaram na pecado que repesenta a ganância e a ambição pecaminosas, e, no en-
compilação do Dictatus Papae, cujos capítulos, escreveu Ullmann, tanto, é também a solução necessária - e, na concepção cristã, divina
"expressam iustitia no molde de ius" (1oc.cit.). - para o pecado. Os homens, num estado de inocência, não precisa-
riam de um governo coercitivo, nem tentariam ser superiores aos ou-
A tutela da ordem da justiça é uma das funções específicas do papa, tros homens, enquanto no estado de pecado e ambição, desejam o domínio
e essa tutela impõe aos governantes seculares um dever de respeito e uns sobre os outros; mas, nesta condição, os homens também precisam
obediência. Gregório VI1 escreveu a Toirrdelbach ua Briain, rei de de controle e limitação se alguma medida de justiça e paz deve ser
Munster e pretendente ao alto-reino da Irlanda, que todo o mundo deve alcançada e preservada" (loc. cit.). O governo secular é, portanto, tanto
obedecer e reverenciar a Igreja Romana (ver A. Gwynn, "Gregory VI1 o resultado do pecado como divinamente ordenado. É devido ao modo
and the Irish Church", Studi Gregoriani, vol. 3, Roma, 1948), e reitera pelo qual o governo se enraíza no pecado que os governantes seculares
alegações similares a outros príncipes. Mas é importante, enfatizar que não podem ser os juízes finais de si próprios. E por isso Deus concedeu
o papa também está sujeito à ordem da justiça e que, embora possa a solução do papado.
178 A alternativa agostiniana A alternativa agostiniana 179

O desenvolvimento teocrático, feito por Gregório VII, da concepção razão, da paixão e do apetite, na qual não há lugar para uma concepção
agostiniana da justiça representou a mais alta realização da tradição da vontade. Mas, para a versão agostiniana do cristianismo, é através
agostiniana antes da reintrodução dos textos políticos e morais de da vontade má, mala voluntas, que nos distanciamos do bem, e é apenas
Aristóteles na Europa. A compreensão gregoriana da virtude da justiça através do redirecionamento da vontade que podemos alcançá-lo.
convergia com a de Aristóteles em dois ontos importantes, apesar de
P
ele não ter nenhum conhecimento sobre a fica ou a Política. Ele concebia
Em quarto e último lugar, a chave para a compreensão da con-
cepção agostiniana da justiça, e de tudo mais, é a compreensão bíblica
a justiça em termos daquilo que é devido a alguém com relação ao
de Agostinho da relação da alma com Deus, enquanto criada por Deus,
merecimento, e avaliava esse merecimento em termos do cumprimento
tendo de obedecer a sua lei justa e destinada à vida eterna em socie-
dos deveres específicos de um papel atribuído a alguém dentro das dade com ele. Mas na ética e política aristotélicas, assim como na sua
instituições de uma comunidade estruturada de modo determinado. Além cosmologia, não há lugar para um criador divino que conceda a lei,
disso, concebia as virtudes, em geral, e a justiça, em particular, como nem para um télos humano além daquilo que pode ser alcançado pelos
disposições cujo exercício encontra sentido e propósito na direção dos mortais antes da morte.
seres humanos rumo a seu télos, e não distanciando-se dele. Mas esses
aspectos convergentes entre o ponto de vista aristotélico e o gregoriano Não é de admirar que, quando os textos políticos e éticos de Aris-
são, talvez, menos significativos do que pode parecer a princípio, quando tóteles foram reintroduzidos na Europa, os protagonistas da teologia
também consideramos as grandes divergências entre eles. Elas se refe- agostiniana vissem em Aristóteles apenas assunto para condenação. E
rem a pelo menos quatro questões distintas, embora relacionadas. pode muito bem parecer que, de seu ponto de vista, devessem estar
certos, consideradas essas grandes diferenças. O que nos surpreende 6
Primeiramente, segundo Aristóteles, a institucionalização da justiça
se dá nas leis de umapólis, e o melhor tipo de pdlis aristotélica é muito que alguém considerasse possível combinar a filosofia aristotélica com
diferente da civitas Dei. Os cidadãos da pólis são muito diferentes, em a teologia agostiniana dentro de um único esquema de pensamento, por
capacidade moral, dos bárbaros incapacitados para a vida de uma pólis; mais complexo que fosse. No entanto, nas universidades do século
bárbaros que incluem a vasta maioria da humanidade; mulheres e es- XIII, o projeto de concretizar essa possibilidade viria a ser o ponto
cravos estão também excluídos da cidadania. A lei da civitas Dei, em central da pesquisa intelectual e moral, principalmente entre os profes-
todas as suas versões - deuteronômica, a do Sermão da Montanha, sores e estudiosos dominicanos.
paulina, agostiniana e gregoriana - é, pelo contrário, uma lei para
toda a humanidade, todos os seres humanos podem ser considerados
responsáveis pelo conhecimento de seus princípios básicos. E ninguém
está excluído da civitas Dei, a não ser por conta própria.
Em segundo lugar, o catálogo agostiniano das virtudes e o conteúdo
das virtudes, tal como especificado por Agostinho e Gregório VII, di-
ferem significativamente de seus equivalentes aristotélicos. Aristóteles
não inclui a humildade ou a caridade entre as virtudes. Agostinho e
Gregório VI1 afirmam que, sem humildade e caridade, não há a virtude
da justiça. A lei da civitas Dei exige um tipo de justiça para o não-
nascido que é negado por Aristóteles através das medidas propostas
para o controle da população. O tipo mais elevado de ser humano, para
Aristóteles, é o homem magnânimo. O ser humano mais elevado, em
qualquer visão cristã, incluindo a de Agostinho, é o santo.
Em terceiro lugar, a compreensão aristotélica da relação dos seres
humanos com o bom e melhor, assim como com o bem imediato par-
ticular de cada um, é especificada em termos de uma psicologia da
Capítulo X

SUPERAÇÁO DE UM
CONFLITO DE TRADIÇÓES

O leitor de Sto. Tomás de Aquino do final do século XX tem de


enfrentar quatro características da Summa Theologiae, cada qual com
seu devido peso (para a melhor abordagem geral ver R. McInemy, St.
Thomas Aquinas, Notre Dame, 1982). A primeira é que, em toda sua
: extensão, é uma obra apresentada aos leitores enquanto ainda em
, elaboração. Não quero dizer com isso apenas ou principalmente que
r ela, de fato, ainda não houvesse sido concluída no momento de sua
L morte em 1274, algo da terceira parte estando ainda por escrever e as
I partes iniciais ainda abertas para revisão. Mais importante ainda é o
modo como cada artigo, cada questão leva a argumentação tão longe
quanto necessário, à luz do que Sto. Tomás conhecia a respeito das
discussões de cada argumento particular até então, mas deixando-o aberto
a ser ulteriormente desenvolvido. Proporei adiante que esta é uma pista
importante para o método de pesquisa tomasiano.
Em segundo lugar, o trabalho de construção filosófica e teoló-
gica em Sto. Tomás de Aquino é sistemático, de um modo e em um
, grau que ultrapassa Platão, Aristóteles e Agostinho. É, portanto, im-
portante, quando tratamos das concepções desenvolvidas por Sto. To-
i más sobre tópicos ou questões particulares, como farei ao discutir suas
! concepções de justiça e racionalidade prática, não abstraí-las uma a
1 uma e tratá-las isoladamente do contexto oferecido por seu método e
/ ponto de vista gerais. O grau de interdependência entre o tratamento,
por Sto. Tomás, de um conjunto de tópicos e questões e seu tratamento
de outros varia, naturalmente, mas, às vezes, as relações são inesperadas,
pelo menos para os leitores modernos, como por exemplo, no modo
como desenvolve suas concepções de ação, paixão e movimento quan-
182 Superação de um conflito de tradições I Superação de um conflito de tradições

do trata das doutrinas da criação e da graça atual (veja B. Lonergan, quente, a variedade e heterogeneidade dos bens reconhecidos por
Grace and Freedom, Nova Iorque, 1971, principalmente cap. 4). Aristóteles (veja The Fragility of Goodness, Cambridge, 1985, e "The
Discemment of Perception: an Aristotelian Conception of Private and
Em terceiro lugar, Sto. Tomás admitidamente escreve a partir de Public Rationality", Boston Area Colloquium in Ancient Philosophy, vol.
uma tradição, ou melhor, de duas tradições, ampliando cada uma como 1, ed. J. C. Cleary, Lanham, 1986). Mas Sto. Tomas também reconhe-
parte de sua tarefa de integrá-las num único modo sistemático de pen- cia a variedade e a heterogeneidade dos bens e, nem mais nem menos
samento. Ele encontrou essas tradições, cada uma com seus próprios que Aristóteles, compreendia-os como bens à medida que e porque
textos autorizados e seus próprios comentários padronizados, não ape- constitutivos do tipo de vida voltado para o bom e o melhor. O que
nas nesses textos e comentários, mas também no seu ensino e debate oculta o quanto Sto. Tomás e Aristóteles são convergentes quanto a
cotidianos na Universidade de Paris, assim como nas questões que esse assunto é, pelo menos em parte, a incapacidade de reconhecer que
enfocavam os conflitos contemporâneos na Igreja e na sociedade secu- foi através da compreensão que Aristóteles tinha da integração dos
lar. Para Aristóteles, a ciência geral, dentro da qual as pesquisas sobre bens que a vida do melhor tipo de pólis proporciona e através de sua
a racionalidade prática e a justiça encontravam lugar, tinha sido apolítica, teologia que especifica a ordem teológica do cosmo - dentro da qual
e o ambiente necessário para sua experiência efetiva, a pólis; para Sto. essa vida política encontra acabamento - que ele pôde compreender
Tomás, as questões da política tinham de ser compreendidas no esque- a unidade do supremo bem humano do modo como compreendeu. Um
ma de uma teologia racional, e a civitas tinha de ser compreendida em Aristóteles cuja Ética é lida, em sua maior parte, separadamente de sua
relação à civitas Dei. Leitores modernos de Sto. Tomás, que não ado- Política, e ambas como se sua teologia não existisse, é muito mais
tam uma perspectiva teológica, podem tender a supor que suas dificul- distante de Sto. Tomás do que Aristóteles na verdade era.
dades em compreender a relação de Sto. Tomás com a tradição deve-
se ao seu distanciamento da teologia tomista. Na verdade, suspeito que No entanto, o trabalho de Sto. Tomás, especialmente na Summa
se dê exatamente o contrário. É porque a concepção de tradição é tão Theologiae, é informado por uma unidade de propósito dominante,
estranha à cultura moderna - e quando aparece, é geralmente na forma expressa tanto em sua concepçáo da unidade última do bem como no
bastarda que lhe confere o conse~adorismopolítico moderno - que modo como escreve sobre ela, que excede notavelmente mesmo a de
consideram difícil compreender a teologia metafísica de Sto. Tomás. Aristóteles. E talvez outra visão não o teria tornado capaz de enfrentar
as exigências aparentemente incompatíveis e conflitantes de duas tra-
Em quarto lugar, os leitores de Sto. Tomás têm de enfrentar a de- dições distintas e opostas, a aristotélica e a agostiniana, ambas em suas
terminação com que persegue um mesmo objetivo. "Pureza de coração versões do século XIII, consideradas irremediavelmente antagônicas
é desejar uma única coisa", disse Kierkegaard. Por outro lado, John por muitos de seus contemporâneos, mas às quais dava sua adesão
Rawls escreveu que: "Apesar do fato de subordinarmos todos os nossos simultânea. Como conseguiu fazer isso?
objetivos a um único fim não violar, estritamente falando, os princípios
da escolha racional ... ele ainda nos impressiona como algo irracional, Quando duas tradições intelectuais abrangentes e conflitantes são
quando não louco" (A Theory of Justice, Cambridge, Mass., 1971,554). confrontadas, um aspecto central do problema de se escolher entre suas
Sto. Inácio de Loyola e Sto. Tomás de Aquino são citados por Rawls asserções é, tipicamente, que não há um modo neutro de caracterizar,
como exemplos daqueles que submetem todos os seus objetivos a um seja o assunto sobre o qual propõem concepções opostas, seja os pa-
só fim dominante. O que Rawls diz é ilustrativo da distância cultural drões pelos quais suas asserções devem ser avaliadas. Cada ponto de
vista tem sua própria concepçáo da verdade e do conhecimento, seu
que separa os protagonistas da modernidade e Sto. Tomás. É interes-
modo próprio de caracterizar o assunto relevante. E a tentativa de descobrir
sante, entretanto, que esses protagonistas não considerem Aristóteles
um conjunto neutro e independente de padrões ou um modo de caracterizar
como igualmente alienado ou louco.
informações, que seja tal que deva ser aceitável por todas as pessoas
Desse modo, Rawls cita Aristóteles aprovando-o, e Martha Nuss- racionais e suficiente para determinar a verdade dos assuntos sobre os
baum contrasta radicalmente a concepção de Aristóteles do juízo prá- quais as duas tradições discordam, tem, geral e, talvez, universalmente,
tico com a visão tomista de Maritain (artigo 4 no seu comentário a De sido comprovada como sendo a busca de uma quimera. Como se pode
Motu Animalium, Princeton, 1978), enfatizando, em trabalho subse- proceder na controvérsia genuína? Em dois estágios.
184 Superação de um conflito de tradiçóes Superação de um conflito de tradições 185

O primeiro é o estágio no qual cada ponto de vista caracteriza as dos quais pareciam levar Aristóteles a uma posição irreconciliável com
argumentações de seu adversário em seus próprios termos, tomando a doutrina cristã, muito menos com a teologia agostiniana, em temas
explícitas as bases para rejeitar o que é incompatível com suas próprias tais como a imortalidade da alma e a eternidade do universo. Assim, os
teses centrais, embora às vezes permitindo que, de seu próprio ponto adeptos de Ibn Roschd, latinizado como Averróis, na Universidade de
de vista e h luz de seus próprios padrões de julgamento, o ponto de Paris e em outros lugares, viram-se empenhados num projeto filosófico
vista rival tenha algo a ensinar sobre questões marginais e secundárias. que aparentemente produzia conclusões incompatíveis com a teologia
Um segundo estágio é alcançado se e quando os protagonistas de cada h qual haviam aderido. Eles encontravam-se assim numa posição que
tradição, tendo considerado de que modos sua própria tradição, através viria a fortalecer a condenação dos opositores agostinianos de Aristbteles.
de seus próprios padrões de pesquisa, considerou difícil desenvolver
suas pesquisas além de um certo ponto, ou produziu antinomias inso- Foi providencial para o desenvolvimento intelectual de Sto. Tomás
lúveis em alguma área, perguntam se a tradição alternativa e oposta de Aquino o fato de, depois de seus estudos iniciais em Paris, ter sido
não pode ser capaz de fornecer recursos para se caracterizar e explicar discípulo de Alberto Magno, de 1248, aos vinte e três anos, até 1252,
os insucessos e falhas de sua própria tradição mais adequadamente do no novo studium generale dominicano em Colônia. Ele pode até mes-
que foram capazes de fazer com seus próprios recursos. mo, embora não o saibamos, ter estudado com Alberto Magno em
Paris. Três aspectos da grandeza de Alberto Magno foram cruciais para
Cada uma dessas tradições, num grau significativo, persiste ou decai o desenvolvimento de Sto. Tomás. O primeiro é o papel que desempe-
enquanto modo de pesquisa e tem dentro de si, em cada estágio, uma nhou para reviver a teologia agostiniana, recuperando seu conteúdo
problemática mais ou menos bem-definida, um conjunto de questões, filosófico, partindo, como o próprio Agostinho tinha feito, de fontes
dificuldades e problemas derivados de seus desenvolvimentos prévios neoplatônicas ou que tinham sido elas mesmas influenciadas pelo
na pesquisa. É característico, portanto, que tais tradições possuam medidas neoplatonismo. Desse modo, contribuiu para o renascimento da teolo-
para avaliar seu próprio progresso ou a falta dele, mesmo que tais gia filosófica agostiniana, ainda que - e este é o segundo aspecto de
medidas necessariamente estejam estruturadas nos termos da verdade sua grandeza que foi importante para a educação de Sto. Tomás -
das teses centrais a que a tradição se submete e a pressuponham. também insistindo, contra alguns agostinianos, na relativa autonomia
das ciências naturais, nas quais a pesquisa começa a partir dos particu-
Na controvérsia entre tradições opostas, a dificuldade de se passar lares.
do primeiro estágio para o segundo é que é necessário um raro dom de
empatia, bem como de intuição intelectual, para que os protagonistas Em astronomia, Alberto Magno era um seguidor de Ptolomeu, em
de uma tradição sejam capazes de compreender as teses, argumen- biologia, de Galeno. Ele mesmo fez e registrou observações de plantas,
tações e conceitos da outra, de modo tal que consigam ver a si próprios animais e fenômenos astronômicos, apontando, por exemplo, o erro de
a partir de outro ponto de vista e de voltar a caracterizar suas crenças Aristóteles sobre a freqüência dos arco-íris. Entretanto, essa disposição
de maneira apropriada, a partir da perspectiva da tradição oposta. Tais para corrigir Aristóteles, nas ciências naturais e em metafísica, era
dons raros não tinham sido evidenciados nas confrontações iniciais acompanhada de uma outra característica que viria a ser seminal para
Sto. Tomás, uma convicção de que o primeiro passo para compreender
entre as tradições agostiniana e aristotélica e, nas condições sociais e
os textos de Aristóteles, para poder ser capaz de posicionar-se em
intelectuais do final do século XII e início do século XIII, isso teria
relação a eles, concordando ou discordando; era deixar Aristóteles falar
dificilmente ocorrido. com sua própria voz, à medida do possível, sem as distorçóes dos
Na cultura européia do final do século XI e do século XII, a pes- comentários interpretativos. Assim, em seus principais comentários,
quisa filosófica não era muito sistemática e os estudos teológicos não Alberto Magno deixou claro que estava estendendo e esclarecendo as
muito filosóficos. Havia, naturalmente, figuras filosóficas excepcio- visões de Aristóteles, reservando suas próprias opiniões para serem
nais, como Anselmo e Abelardo, mas o clima intelectual nas gerações expressas em outros momentos (ver J. A. Weisheipl, Friar Thomas
seguintes é melhor representado por João de Salisbury. E quando, nas D'Aquino, Washington, DC, 1983, 41-43).
universidades recém-fundadas do século XIII, os textos metafísicos, Quando Sto. Tomás, como resultado de sua educação por Alberto
psicológicos, éticos e políticos de Aristóteles tornaram-se disponíveis, Magno, enfrentou as asserções de duas tradições filosóficas distintas e .
eram acompanhados de interpretações e comentários islâmicos, alguns incompatíveis em pontos importantes, estava treinado para compreen-
186 Superação de um conflito de tradiçbes Superação de um conflito de tradições 187

der cada uma a partir de dentro. Talvez ninguém mais na história da visão de Hegel-Green-Putnam, não é juiz de seu próprio caso, encon-
filosofia tenha jamais sido posto nesta situação, e as questões que, trando o conceito e os critérios de verdade dentro de si próprio, não
conseqüentemente, foi levado a formular apontavam para uma concepção estando, assim, garantido quanto à detecção de algum erro que não
da verdade, independente de qualquer uma das tradiçlks, que ele articulou possa, em princípio como alguns gostam de dizer, ser corrigido por
no seu primeiro Quaestiones Disputatae em 1256-1257, e uma con- seus próprios recursos.
cepção correspondente da realidade, cujos pontos essenciais expôs, um
pouco antes, naquele que foi provavelmente seu primeiro tratado, De Uma palavra-chave na formulação desse tipo de intemalismo a respeito
da verdade e da realidade, é "nós". A suposição subjacente ao seu uso
Ente et Essentia. A importância da situação intelectual inicial de Sto.
é que há uma e apenas uma comunidade geral de pesquisa, que compartilha
Tomás sobre suas razões para afirmar essas concepções particulares da
substancialmente um único e mesmo conjunto de conceitos e crenças.
verdade e da realidade pode, talvez, ser melhor compreendida se
Mas o que acontece se aparece uma segunda comunidade, cuja tradição
considerarmos porque alguns escritores modernos as rejeitaram.
e procedimentos de pesquisa estruturam-se em termos de conceitos e
Perguntam tais escritores: como pode toda a nossa rede de crenças crenças altamente incompatíveis e incomensuráveis, definindo a
e conceitos ser julgada verdadeira ou falsa, adequada ou inadequada, positividade garantida e a verdade em termos internos ao seu esquema
em virtude de sua relação com uma realidade externa a ela? Pois, a fim de conceitos e crenças? Cada uma dessas comunidades opostas de pesquisa
de compararmos nossas crenças e conceitos com essa realidade, devemos é capaz de caracterizar a outra como estando errada, a partir de seu
já ter crenças sobre ela e ter compreendido alguns de nossos conceitos ponto de vista, mas ao negar as asserções da outra, não faz mais do que
como aplicando-se a ela. Assim, concluem, uma compreensão de qualquer afirmar que o que a outra afirma é errado de seu ponto de vista. Mas,
realidade, em relação à qual a verdade e a falsidade, a adequação e a afinal de contas, isso não está em questão, pois é pelo menos algo
inadequação são julgadas, deve ser interna à nossa rede de conceitos e sobre o que ambas as partes podem concordar. O que os protagonistas
crenças; não pode haver nenhuma referência além dessa rede a algo de cada tradição oposta devem fazer, neste momento, é escolher entre
genuinamente externo a ela. Esse é um tema argumentativo comum à duas alternativas: abandonar qualquer pretensão de que o valor-verdade
crítica que Hegel faz do que pensou ser o ding-an-sich kantiano, ao
possa ser atribuído aos juízos fundamentais que sustentam seu modo de
idealismo do final do século XIX e à rejeição, por Hilary Putnam,
daquilo que chama de "realismo externo" (veja The Logic of Hegel, pesquisa, ou reivindicar uma verdade que tenha validade para além de
Encyclopedia Logic, trad. W. Wallace, Oxford, 1873, seções 44 e 124; seu próprio esquema particular de conceitos e crenças, apelando para
T. H. Green, Prolegomena to Ethics, Oxford, 1893, capítulo I; e H. algo exterior a esse esquema. A primeira dessas alternativas teria es-
Putnam, Reason, Truth and History). É típico dos que adotam essa visão, vaziado o conceito de pesquisa, expresso em ambas as tradiçlks aristotélica
quase sempre na prática e, amiúde, explicitamente na teoria, tratar o e agostiniana, de seu conteúdo específico. Pois ambas tinham conce-
conceito de verdade como nada mais do que uma idealizaçáo do con- bido a pesquisa em termos de um direcionamento para a verdade, in-
ceito de positividade garantida. Pois, nessa visão, não podemos ter dependente da mentepesquisadora. E, com efeito, é claro que o aban-
nenhum critério de verdade além das melhores garantias que pudermos dono completo da concepção clássica da verdade, por oposição à sua
oferecer de nossas afirmativas, e embora as melhores garantias possam modificação ou complementação, só é possível depois de uma história
não ser as que agora aduzimos, só podem ser aquelas que serão invocadas pós-hegeliana particular e à sua luz, na qual o pragmatismo de James
pelos melhores pesquisadores racionais entre nossos sucessores a longo e Dewey parecia, a alguns, ter aberto novas possibilidades.
prazo.
A necessidade, no século XIII, para aqueles que enfrentavam as
Assim, os conceitos de verdade e de realidade são definidos inter- asserções das tradições aristotélica e agostiniana, de seguir a direção
namente aos nossos esquemas de conceitos e crenças. Afirma-se, às que Sto. Tomás seguiu, fica clara se a abordarmos retrospectivamente.
vezes, que um dos benefícios desse ponto de vista é que, a partir dele, A nova concepção da verdade proposta por Sto. Tomás questionava o
qualquer ceticismo amplo deixa de ser coerentemente formulável. Pois que tinha sido a visão agostiniana prevalecente; não é de admirar que
tal ceticismo pressupõe que nosso esquema de conceitos e crenças pode apenas Sto. Tomás fosse capaz de compreender, naquele momento,
ser em grande parte, quando não totalmente, falso ou inadequado, e como elaborar as concepções que tanto a filosofia como a teologia
isso, por sua vez, pressupõe que ele, contrariamente ao que ocorre na exigiam. P. F. Mandonnet, num livro cujas teses centrais são agora
188 Superação de um conflito de tradiçóes Superação de um conflito d e tradiçdes

uniformemente rejeitadas (Siger de, Brabant et 17Averroisme latin au mente, portanto, ela é o que quer que seja e, na necessidade de seu ser
XIIIe siècle, 2 vols., Louvain, 1908 e 1911), atribuiu aos averroístas e de sua ação, contrasta com a contingência de todos os outros seres
latinos e, particularmente, a Siger de Brabant, uma solução contrária e ações.
para o problema enfrentado por Sto. Tomás, que invocava uma teoria Ela deve, portanto, fornecer um tt?los final para os outros seres, no
segundo a qual uma tese particular pode ser verdadeira na filosofia, que diz respeito à sua causalidade final. Mas o fato de que devem
enquanto uma tese logicamente incompatível pode ser verdadeira na perseguir este ou aquele bem particular, aqui e agora, a fim de ver-
teologia. Assim, na visão que Mandonnet atribuiu aos averroístas lati- dadeiramente entrar na relação que constitui seu bem final, será sempre
nos, o predicado 'verdadeiro' teria sido substituído pelo predicado uma questão de quão contingentes as coisas são. E a pesquisa dessas
'verdadeiro em ...'. contingências, enquanto caracterizáveis s6 pela razão humana e en-
De qualquer modo, o que teria impedido a maioria dos averroístas, quanto reveladas à fé pela revelação divina, é uma parte central da
senão todos eles, de sustentar uma teoria desse tipo era o fato de que tarefa do metafísico e do teólogo filosófico. O modo de proceder nessa
compartilhavam, com todos os outros aristotélicos, uma adesão ina- pesquisa é exemplificado na discussão do télos especificamente hu-
balável ao princípio de não-contradição, tal como formulado e defen- mano, feita por Sto. Tomás. Mas é esclarecedor, primeiramente, con-
dido por Aristóteles no livro N da Metafísica (ver F. Van Steenberghen, siderar de um modo mais geral a estrutura das pesquisas de sto. To-
Thomas Aquinas and Radical Aristotelianism, Washington, D.C., 1980, más, particularmente na Summa Theologiae, lembrando o que foi dito
e, para uma rejeição anterior da visão de Siger, E. Gilson, Études de anteriormente sobre o fato de ela ser uma obra ainda em processo de
philosophie médiévale, Estrasburgo, 1921). Mas Mandonnet, no entan- construção.
to, tinha uma intuição genuína de que os principais problemas intelec- Todo artigo na Summa põe uma questão cuja resposta depende do
tuais do século XIII s6 podiam ser resolvidos a partir de uma concep- resultado de um debate essencialmente incompleto. Pois um conjunto
ção sistemática da verdade que permitisse às teses aristotélicas e de argumentos disparatados e heterogêneos, contra quaisquer posições
agostinianas serem reformuladas dentro de um único e mesmo esque-
que as pesquisas de Sto. Tomás, até então, levaram-no a aceitar, estará
ma. A posição que Mandonnet impingiu a Siger é talvez a única alter- sempre aberto à complementação por algum argumento ainda não pre-
nativa à posição assumida por Sto. Tomás, para qualquer pessoa que
visto. E não há como, portanto, descartar antecipadamente a possibi-
simplesmente se recusasse a rejeitar seja o ponto de vista aristotélico lidade de que aquilo que até agora foi aceito possa ainda ter de ser
seja o agostiniano. modificado ou rejeitado. Nisso não há nada que seja peculiar aos pro-
Portanto, o que Sto. Tomás faz no De Ente et Essentia e nas dis- cedimentos de Sto. Tomás. É da natureza de toda dialética, tal como
cussões iniciais do Quaestiones Disputatae de Veritate é expandir um Aristóteles a compreendia, ser essencialmente incompleta.
grupo de distinções referentes à essência e à existência, por um lado,
No entanto, os procedimentos de Sto. Tomás davam-lhe o direito,
e à verdade, por outro, distinções cuja justificação reside naquilo que' em muitas ocasiões pelo menos, de depositar mais confiança racional
elas, então, permitem de realize ao reconstruir as posições aristotélica nas respostas que dava a questões particulares do que se pode extrair
e agostiniana, dentro do esquema de uma teologia metafísica unificada. dos argumentos particulares que aduz, e isso por duas razões distintas.
Não tratarei aqui da parte principal desse feito. Mas, dentro dos meus Em primeiro lugar, Sto. Tomás estava empenhado, na Summa, num
propósitos atuais, é impossível deixar de observar a função dessas trabalho geral de construção dialética no qual toda parte elementar
distinções que permitem que Sto. Tomás proponha uma compreensão encontra lugar dentro de uma estrutura maior que, por sua vez, contri-
da realidade, com referência à qual o termo de toda explicação e com- bui para a ordem do todo. Assim, conclusões em uma parte da estrutura
preensão intelectualmente adequada, seja teórica ou prática, tem de ser podem confirmar, e realmente o fazem, conclusões alcançadas em outra.
especificado, e em relação à qual a ordenação de toda explicação e Em segundo lugar, Sto. Tomás tinha o cuidado, em cada discussão, de
compreensão secundária tem de ser feita. Essa realidade, à medida que reunir todas as contribuições relevantes para a argumentação e a inter-
oferece o termo para toda compreensão ex hypothesi, não pode ser pretação que tivessem sido preservadas e transmitidas dentro das duas
explicada, quanto à sua natureza e características, por nada além dela tradições principais. Desse modo, fontes bíblicas são postas em diálogo
mesma. Nada pode fazer com que seja diferente do que é; necessaria- com Sócrates, Platão, Aristóteles e Cícero, e todos eles com pensadores
190 Superação de um conflito de tradições Superação de um conflito de tradições 191

árabes e judeus, assim como com escritores patrísticos e teólogos Há, naturalmente, primeiros princípios que se referem a tais re-
cristãos posteriores. A extensão e a minúcia da Summa não são ca- lações conceituais básicas, assim como a da parte com o todo, que
racterísticas acidentais, mas integram seu propósito geral e, mais par- qualquer ser racional deve considerar inegáveis de uma maneira ou de
ticularmente, o de fornecer tanto a si como a seus leitores a certeza de outra. Mas eles não são necessariamente imunes a variações de inter-
que os argumentos aduzidos para artigos particulares eram os mais pretação e, por si só, não podem fornecer os primeiros princípios de
sólidos produzidos, até então, por qualquer ponto de vista conhecido. nenhuma ciência substantiva. Os primeiros princípios que são capazes
de fornecer a substância de tal ciência devem sempre incluir premissas
Sto. Tomás estava então empenhado numa longa série de debates adicionais. E isso vale para o nível mais fundamental. Nós, realmente,
construtivos, tendo construído ou reconstruído uma representação da segundo Sto. Tomás, apreendemos o ser como o conceito mais funda-
ordem hierárquica do universo através de tais argumentações e con- mental da pesquisa teórica e explicitamos o que apreendemos no reco-
clusões. Como já sugeri, o que justifica suas teses fundamentais em nhecimento que nossos juízos concedem ao princípio da não-contradi-
ontologia e teoria da verdade é sua indispensabilidade para esse tra- ção. Do mesmo modo, apreendemos o bem como o conceito mais
balho de representação. O que justifica sua representação da ordem das fundamental ao constituirmos a atividade prática, e explicitamos o que
coisas contra seus rivais averroístas, neoplatônicos e agostinianos é sua apreendemos no reconhecimento que nossas ações concedem ao prin-
capacidade de identificar, explicar e transcender suas limitações e defeitos, cípio de que o bem deve ser feito e o mal, evitado. Mas para que cada
ao mesmo tempo que preserva tudo aquilo que sobrevive ao pessoa possa avaliar o que é bom e melhor fazer, algo mais é neces-
questionamento dialético, de modo que esses rivais sejam incapazes, sário.
com seus recursos filosóficos, de oferecer qualquer oposição. A atividade humana prática é informada por diferentes tipos de
Imediatamente, a seguinte objeção será feita. Certamente, a justifi- tendência (inclinatio). Há a tendência, de cada pessoa enquanto ser, a
cação racional, segundo Aristóteles e Sto. Tomás, é uma questão de persistir nesse ser, tendência à autopreservação. Há a tendência, de
dedutibilidade a partir dos primeiros princípios, no caso de afirmações cada pessoa enquanto animal, expressa na determinação de ter e educar
derivadas, e de auto-evidência desses mesmos primeiros princípios filhos, a participar das formas da vida humana. E há a tendência, de
enquanto verdades necessárias. De modo que a compreensão proposta cada pessoa enquanto ser racional e social, expressa na determinação
da justificação racional da visão geral de Sto. Tomás é bastante incon- de perseguir os bens racionais que incluem a busca do conhecimento
sistente com a compreensão da justificação racional do próprio Sto. e, acima de tudo, a busca do conhecimento de Deus. É importante que
Tomás. O que essa objeção não leva em consideração é a diferença essas inclinationes sejam ordenadas: educamos nossos filhos para que
entre a justificação racional dentro de uma ciência, a justificação raci- sejam capazes de participar da busca do conhecimento; 116s subordinamos
onal de uma ciência e a justificação racional exigida por uma concep- nossa necessidade de autopreservação se as vidas de nossos filhos ou
ção das ciências como um sistema completo, hierarquicamente ordena- a segurança de nossa comunidade estão seriamente em perigo. Obvi-
do. A justificação racional dentro de uma ciência acabada é, realmente, amente, não é que todas as pessoas sempre ordenem suas inclinações
uma questão de demonstrar como verdades derivadas decorrem das desse modo, mas que os padrões gerais do comportamento especificamente
verdades primeiras da ciência particular, em alguns casos complementadas humano evidenciam essas tendências de modo tal que são os fins a que
por premissas adicionais; e a justificação dos principios de uma ciência se dirigem que constituem nossas experiências primárias da busca de
subordinada por alguma pesquisa de ordem mais elevada será igual- bens particularizados (S.T. Ia-Ilae, 94 ,2).
mente demonstrativa. Os próprios primeiros princípios serão dialeticamente Cada indivíduo, inicialmente, enfrenta questões do tipo: como devo
justificáveis; sua evidenciabilidade consiste na capacidade de serem fazer para conseguir os bens que se me oferecem? Qual deles devo
reconhecidos, à luz de tal dialética, como referindo-se ao que é verda- tentar conseguir agora? Este bem é realmente bom ou apenas me pa-
deiro per se: que atributos, por exemplo, pertencem à natureza essen- rece sê-lo? E essa confrontação é inicialmente não-teórica, ocorrendo
cial do que constitui o assunto fundamental da ciência em questão no contexto das imediaticidades da prática. Há, naturalmente, como Sto.
(sobre os primeiros princípios ver Comentário sobre a Ética I, lect. 11; Tomás bem sabia, maneiras errôneas de responder a todas essas questões.
Comentário sobre os Analíticos Posteriores 11, lect. 20; e S. T. Ia, 85,8). Cada indivíduo tem dentro de si, segundo Sto. Tomás, a capacidade de
192 Superaçüo de um conflito de tradiçdes Superaçüo de um conflito de tradições 193

dar respostas certas, mas essa capacidade tem de ser elicitada. Elicitá- Naturalmente, essa concepção de como os primeiros princípios são
la adequadamente implica descobrir os princípios, formulados com graus compreendidos e de seu lugar na pesquisa é profundamente contrária
diferentes de explicitação em casos diferentes, que guiarão uma pessoa não apenas à concepção cartesiana e outras concepções racionalistas da
rumo aquilo que é bom e melhor para ela. Que existe aquilo que é estrutura da teoria filosófica e científica, mas também as teorias morais
melhor para alguém, é algo compreendido inicialmente ao articular-se de pensadores tão diversos quanto Hobbes, Hume, Bentham e Kant,
para si próprio a mera apreensáo do bem, mas a questão de como o fim para cada um dos quais há um modo de fundar adequadamente o pri-
de alguém deve ser compreendido adequadamente em pormenor re- meiro princípio ou primeiros princípios da açáo reta, através de consi-
quer, para ser respondida, uma atividade de questionamento dialético, derações que eles pensam estar igualmente disponíveis, no início da
de cogitar alternativas e de decidir entre elas. O que a pessoa indivi- pesquisa, a toda pessoa racional como tal. Por nenhum deles a vida
dual deve fazer aqui reflete o que, como teórico, o filósofo moral tem moral é concebida como um percurso rumo à descoberta dos primeiros
de fazer. E, assim como ocorre com o filósofo moral, não se trata princípios como um fim, cujo total desvelamento é, em ambos os sen-
simplesmente de ser capaz de deduzir a verdade, seja sobre o verda- tidos de "fim", o fim desse percurso, de modo que, num sentido estrito,
deiro fim dos seres humanos, seja sobre o que deve ser feito para é apenas no fim que sabemos se no início sabíamos, de fato, qual era
alcançá-lo. Assim como o filósofo moral, a pessoa individual que póe o verdadeiro início. Como observou Aristóteles, é difícil saber que se
a questão sobre o seu bem, seriamente, vê-se empenhada na construçüo sabe.
de um sistema dedutivo através do qual pode descobrir respostas ver-
Entretanto, nos últimos cem anos houve, naturalmente, tomistas
dadeiras para essas questões. Uma ciência prática completamente acabada
notáveis que teriam discordado dessa compreensão dos primeiros
será realmente, como outras ciências, um sistema de verdades
princípios tão energicamente quanto qualquer humiano ou kantiano,
demonstráveis, mas a realização dessa ciência ou da apreensão parcial
atribuindo a Aristóteles e a Sto. Tomás uma crença num conjunto de
de suas verdades, tal como é exigido por agentes comuns, é um traba-
primeiros princípios necessariamente verdadeiros que qualquer pessoa
lho de construção dialética (Comentário sobre a Ética I , lect. 12).
verdadeiramente racional C capaz de avaliar como tais. Para esse tipo
É um erro cartesiano, fomentado pela má compreensão da geome- de tomista, a superioridade racional do sistema geral de pensamento de
tria euclidiana, supor que, primeiramente, através de um ato inicial de Sto. Tomás não se encontra no fato de ter transcendido as limitações
apreensáo, podemos compreender o significado completo das premis- das tradições que o precederam, ao mesmo tempo preservando delas o
sas de um sistema dedutivo e então, apenas secundariamente, proceder que resistiu à objeção dialética, assim como no fato de tal sistema não
à pesquisa daquilo que decorre delas. Na verdade, é apenas à medida ter sido igualmente transcendido por nenhum sistema de pensamento
que compreendemos o que decorre dessas premissas que compreende- posterior, desde então; mas na sua habilidade argumentativa de enfren-
mos as próprias premissas. Se e quando começamos pelas premissas, tar seus adversários modernos no campo de debate escolhido por eles
nossa apreensão inicial será tipicamente parcial e incompleta, aumen- e de apresentar a superioridade racional de suas asserçóes referentes
tando à medida que compreendemos que essas premissas implicam ou aos primeiros princípios, sobre as deles. Entretanto, agora o resultado
não. desses debates fica claro.
Assim, na construção de qualquer ciência demonstrativa, argumen- Em filosofia moral, a questão central que os participantes desses
tamos tanto partindo daquilo que consideramos, amiúde corretamente, debates esperavam responder era a seguinte: quais são os princípios
serem verdades subordinadas em direção aos primeiros princípios que governam a açáo, aos quais nenhum ser humano racional pode
(Comentário sobre a Ética, loc.cit.), quanto partindo de primeiros negar seu consentimento? O apelo de Hume ao consenso, no que se
princípios em direçdo às verdades subordinadas (Comentário sobre O refere às paixões, as formulações de Kant do imperativo categórico e
De Trinitate de Boécio, q. VI, 1 a 3). E nesse trabalho de vir a com- do princípio de utilidade foram tentativas de propor uma resposta a
preender quais premissas afirmam o que é verdadeiro per se, de modo essa questão. No entanto, cada uma dessas respostas mostrou-se sus-
que possam funcionar como primeiros princípios, nós continuamente cetível de rejeição por parte dos adeptos de respostas opostas, cujas
aprofundamos nossa apreensão do conteúdo desses primeiros princípi- asserçóes quanto à justificação racional eram tão ou tão pouco con-
os e corrigimos os erros que todos tendem a cometer. testáveis quanto as de seus opositores. E o mesmo ocorre com os her-
194 Superação de um conflito de tradições Superação de um conflito de tradiçdes 195

deiros contemporâneos de Hume, Kant e Mill; também estão empen- isso, por sua vez, só pode ocorrer através da educação; entretanto, deve
hados numa batalha na qual ninguém é finalmente derrotado, simples- ser verdade que aqueles que ainda não foram educados e os privados
mente porque ninguém é jamais vencedor. Uma reação de interesse ao da possibilidade dessa educação possuem conhecimento prático sufici-
reconhecimento dessa situação, por parte daqueles que, de outro modo, ente para fazer e ser o que a justiça e a lei divina exigem.
estão de acordo com os herdeiros de Hume, Kant e Mill na sua adesão
Podemos compreender melhor a solução de Sto. Tomás se, primei-
aos ideais do Iluminismo, foi a recente redefiniçáo da tarefa da filosofia
ramente, considerarmos sua concepção de como os jovens devem ser
moral como a de tornar coerentes e sistemáticas "nossas" intuições
educados. Toda educação é a atualização de uma potencialidade. Logo,
sobre o que é certo, justo e bom, sendo que "nós" são os habitantes de
ser educável já significa ter uma potencialidade para aprender o que
uma tradição social, moral e política particular, a do individualismo
quer que seja, mas ainda há mais. Significa também ter a potenciali-
liberal. Assim, um conceito de tradição é reintroduzido como parte do
dade para atualizar a primeira potencialidade. Toda educação é, em
substrato de facto necessário à pesquisa normativa.
parte, auto-educação (Comentário sobre os Analíticos Posteriores 11, lect.
Esses tomistas que se empenharam nos estágios iniciais desse deba- 20). Tendo isso em vista, não nos surpreende o fato de que "um pro-
te participaram de seu resultado inconclusivo e insatisfatório. Eles nunca fessor conduza alguém ao conhecimento daquilo que era desconhecido,
refutaram seus opositores em nenhuma questão principal, de modo a do mesmo modo que alguém conduz a si próprio ao conhecimento do
persuadi-los, e isso ocorreu não apenas porque aceitaram os termos de que era desconhecido ao longo da descoberta" (De Veritate X1,l). A
um debate com um resultado predeterminado. O que também não fo- ordem do bom ensinamento é a ordem na qual alguém aprenderia por
ram capazes de estimar foi até que ponto a descrição, feita por Sto. si só. Que ordem é essa?
~ o m á s dos
, seres humanos no estado de natureza, no início do projeto
Duas considerações devem ser feitas. No processo de aprendizagem,
da pesquisa moral, difere das descrições correspondentes feitas pela
em geral, devemos ir daquilo que é mais facilmente apreendido, à luz
filosofia moral moderna.
do que já conhecemos, ao que é mais inteligível como tal, mas menos
Essas descrições modernas são de vários tipos. O que têm em co- facilmente apreendido por nós imediatamente. Mas, em alguns casos,
mum é a suposição de que a aquisição da habilidade de fazer juízos não podemos iniciar um tipo de pesquisa até que tenhamos dominado
morais corretos (eu uso, aqui, "correto" e não verdadeiro, devido à outro, porque o primeiro tem de se basear no segundo. Por isso a lógica
indisposição de alguns escritores modernos em concordar que juizos deve ser estudada primeiro, apesar de Sto. Tomás pensar que é a mais
morais possam ser verdadeiros ou falsos, a não ser talvez num sentido difícil das ciências. Pois toda pesquisa utiliza os recursos da lógica,
pickwickiano) não exige a aquisição substancial das virtudes como um inclusive, como ocorre na classificação de Sto. Tomás, tudo aquilo que
pré-requisito. Aristóteles, como vimos, negara essa suposição. O de- Aristóteles escreveu no Organon (Comentário sobre o De Trinitate de
senvolvimento de uma capacidade para o raciocínio prático sólido, que Boécio, 1oc.cit.).
levará a pessoa a julgar verdadeiramente e a agir corretamente é, na
Depois da lógica vem a matemática, e em seguida a física. Só então
sua visão, inseparável de uma educação no exercício das virtudes morais. o estudante terá alcançado um estágio no qual as duas condições, que
Desse modo, aqueles que foram mal direcionados ou cuja educação foi eram pré-requisitos para a pesquisa moral, terão sido satisfeitas: expe-
falha são incapazes de aprender como exercer o raciocínio prático sólido. riência suficiente na ação e no juízo e uma mente não distraída pelas
Portanto, Sto. Tomás não poderia ter adotado o ponto de vista moder- imediaticidades da paixão (Comentário sobre a Ética VI, lect. 7 ) . Qual
no, e fica claro em seu Comentário sobre a Ética (VI, lect. 7 ) que não será então o desenvolvimento do ensinamento moral introdutório? Ele
o fez. Mas, como também já observamos, os autores bíblicos, desde o está esboçado para nós na Prima Secundae da Summa, de modo que
escritor do Deuteronômio até Paulo, declaram que todo ser humano nos dirige para a ordenação da Secunda Secundae. Aqui as questões
tem um conhecimento suficiente das exigências da justiça, tal como têm uma seqüência na qual começamos perguntando qual é o fim ou o
definida pela lei de Deus, para ser considerado responsável à luz desse bem último dos seres humanos, uma questão de cuja resposta a maior
conhecimento. Assim, Sto. Tomás enfrentava um problema: a aquisi- parte das respostas subseqüentes depende. Perguntamos então o que
ção do conhecimento prático e o exercício do raciocínio prático bom são as ações humanas, de modo que possamos compreender que tipos
não podem ocorrer sem algum desenvolvimento das virtudes morais e de ação humana são dirigidos ao que é bom e melhor para nós e quais
196 Superaçdo de um conflito de tradições
Superação de um conflito de tradições 197

não são. Ocorre que isso exige que compreendamos a natureza das
paixões e os papéis diferentes que podem ter na gênese da ação, uma em mais de um modo. Uma cultura particular pode, no que conceme
à natureza essencial dos seres humanos e seu fim último, educá-los e
discussão que é introdutória a uma compreensão do que é o hábito ou
a disposição virtuosa e, correspondentemente, o que são vícios e peca- conduzi-los erroneamente de modos particulares, assim como Sto. Tomás,
dos (ver Mark Jordan, "Aquinas's Construction of a Moral Account of referindo-se à autoridade de Júlio César, acreditava que os germânicos
the Passions", Freiburger Zeitschrijl fur Philosophie und Theologie tinham sido malguiados no que se refere ao roubo (S.T. Ia-IIae, 94,4).
33,l-2,1986). Em tudo isso as conclusões da Prima Pars são pressu- Entretanto, todo ser humano tem dentro de si o potencial para formular
postas e, em pontos fundamentais, reintroduzidas na argumentação. O os princípios que constituem os preceitos mais fundamentais da lei
mais notável é que o fim último dos seres humanos s6 pode ser espe- divina, tal como apresentada à razão humana pela razão humana, e de
cificado por referência à existência e à bondade de Deus. atualizar esse conhecimento de tal modo e a tal ponto que todo indi-
víduo torne-se responsável por não agir de acordo com ela (S. T. Ia-IIae,
Por que Sto. Tomás seguiu Aristóteles ao sustentar que apenas os 94,1,3 e 6). Essa atualização da potencialidade é parte do desenvolvimento
que têm experiência e formação moral suficiente serão capazes de aprender de uma aptidão natural para a virtude, que precisa ser treinada (S. T. Ia-
o que se ensina na Prima Secundae? A resposta é que a seqüência da IIae, 95,l). Tal treinamento é geralmente dado aos jovens em casa; Sto.
argumentação, de maneira geral, recapitula, no nível da teoria, a se- Tomás chama-o de "paterno" (1oc.cit.) uma vez que, nas estruturas
qüência de questões e respostas que alguém envolvido na vida moral familiares que conhecia, todos agiam como subordinados ao chefe de
segue, à medida que torna o que está fazendo e julgando cada vez mais família masculino. Quais, então, são os recursos dos que são privados
inteligível para si próprio no processo de tentar, primeiro, especificar desse treinamento, os muitos que podem "imaginar que se não seguem
e, depois, realizar o tipo de excelência apropriada para os seres huma- a lei (da natureza), podem ser desculpados por serem ignorantes"? Seu
nos. E são apenas os indivíduos envolvidos dessa maneira, educados na recurso, diz Sto. Tomás, reside na inteligência, "que nos mostra o que
capacidade de fazer certos tipos de discriminação que os torna capazes devemos fazer e o que devemos evitar" (Introdução, De Duobus Praeceptis
de ordenar a expressão das paixões, à luz de um ordenamento de bens Caritatis). O que, então, a inteligência determina que essa pessoa faça?
- algo que numa primeira instância terão aprendido de seus mestres
- que serão capazes de compreender que os argumentos da Prima Em primeiro lugar, determina que a pessoa pergunte: "Qual é o meu
bem?" e "que preceitos devo seguir, a fim de aprender o que ele é?",
Secundae referem-se a eles mesmos, e ampliar o que já aprenderam de
modo que lhes permitirá aprender mais, prática e teoricamente. do modo mais persistente e inquisitivo possível. A tentativa de res-
ponder a essas questões no mínimo tornará claro para tais pessoas que
Alguém que não teve essa formação e essa experiência morais ini- não podem perseguir seus bens, quaisquer que sejam, isoladamente e
ciais poderia ainda, de alguma forma, compreender a visão da vida que as relações que estabelecem, a fim de atingir seus bens mais óbvios
moral transmitida pelas respostas seqüenciais às questões da Prima devem ser tais que lhes permitam aumentar seu conhecimento do que
Secundae, mas essa lhe pareceria a visão de uma vida humana estranha é o seu bem. Observe que, internamente a esse processo de questiona-
e desconhecida. Pois alguém que absolutamente não tivesse o tipo de mento, há uma tendência oriunda das inclinações e um movimento
formação e desenvolvimento que Sto. Tomás - e Aristóteles - con- partindo dessas inclinações para satisfazer as necessidades físicas e
sideram necessário desenvolveria a expressão de seus desejos de um biológicas, e, para o direcionamento da vida social (S.T. Ia-IIae, 94,2).
modo fragmentado e não coordenado, de forma que teria, na vida adul- O que a pessoa até então privada da educação moral adequada tem de
ta, desejos que lhe pareceriam essencialmente heterogêneos, visando descobrir é que precisa de um amigo que será também seu professor no
bens independentes uns dos outros e sem qualquer ordenação geral. Do aprendizado das virtudes. Pois os que ainda são moralmente imaturos
ponto de vista de tal pessoa, a unidade dos bens visada na vida moral, precisam, de qualquer forma, de amigos, se querem tornar-se virtuosos
tal como descrita por Sto. Tomás, só poderia aparecer como um sinto- (Comentdrio sobre a Ética VIII, lect.1); e assim, a primeira pesquisa
ma de algum tipo de monomania. Desse ponto de vista, alguém teria de tal pessoa deve ser como ela deve constituir relações de amizade
de considerar tal pessoa "irracional ou, mais provavelmente, louca", com outras, de modo que através desses relacionamentos possa apren-
como faz Rawls. der o que é o seu bem.
A teoria de Sto. Tomás do desenvolvimento humano é, portanto, Naturalmente, não podemos esperar inicialmente dessa pessoa uma
aberta à possibilidade de que os seres humanos possam se desenvolver compreensão acabada das implicações da amizade mútua. Mas deve
198 Superação de um conflito de tradições Superação de um conflito de tradições 199

ficar claro para qualquer pessoa quais são os preceitos básicos que devem ponder à questão: "Que ações é ruim que eu faça?", antes que tenha-
ser obedecidos, ao desejar-se o bem de outra pessoa como amigo, de mos, através da educação nas virtudes, aprendido a respondê-la mais
modo que o a d g o esteja garantido, no que toca à primeira pessoa, adequadamente. Assim como, segundo Aristóteles, a lei toma-se mani-
contra ameaças à sua integridade física, contra a perda de suas posses, festa ao cidadão no melhor tipo de pólis, também, segundo Sto. Tomás,
difamação, entre outras coisas. Mas obedecer a esses preceitos signi- a lei natural manifesta-se a todo ser humano na civitas Dei.
fica obedecer aos preceitos básicos da lei natural e aos preceitos que Há, no entanto, uma diferença crucial entre Sto. Tomás e Aristó-
decorrem imediatamente deles, e assim empenhar-se na educação das teles. Para Sto. Tomás, a experiência mais importante dos seres huma-
virtudes que é a preparação necessária para a pesquisa prática adequa- nos com relação à lei divina, seja na forma na qual a razão apreende
da. O que significa que as relações humanas, através das quais qual- seus preceitos enquanto lei natural, seja enquanto diretamente revelada
quer um pode esperar aprender a natureza de seu bem, são elas própri- por Deus nos Dez Mandamentos, é a da desobediência a ela, uma
as definidas, na prática e na teoria, pelos padrões determinados pela lei desobediência não erradicável nem mesmo pela melhor educação moral
natural. Portanto, a lei natural é revelada não apenas como um dos de acordo com a razão. Cada ato particular de desobediência é uma
objetos principais da pesquisa prática, mas como o pressuposto de toda conseqüência, seja de uma corrupção da razão pela força de alguma
pesquisa prática efetiva (compare o que Sto. Tomás diz sobre o tipo de paixão ou do mau hábito, seja de alguma tendência natural não disci-
amizade na qual o outro deseja o bem de alguém, o único tipo de plinada (S.T. Ia-IIae, 94,4). Mas nossa inabilidade em erradicar essa
amizade através do qual alguém pode confiar que aprenderá qual é seu tendência à desobediência, a partir de nossos próprios recursos naturais
verdadeiro bem, no Comentário sobre a Ética VIII, lect. 4, e na S.T. e racionais, aponta para um conluio da vontade com o mal moral, uma
IIa-IIae, 23,1, com o que diz sobre a necessidade de ser treinado na vontade que, sendo livre para escolher, pode não apenas escolher fazer
virtude pelo outro na S.T. Ia-IIae, 95,1, e como a caritas exige que o mal, mas pode dar a essa escolha uma resistência e um compromisso
participemos da formação de outros, em Quaestiones Disputatae de que não teria de outra forma (S.T. Ia-IIae, 20,4).
Correctione Fraterna).
A única solução é a graça divina, e não é por acidente que a seção
Ao derivar de uma série de textos essa compreensão do modo no da Summa que trata da lei divina, natural e revelada, é imediatamente
qual a confrontação com a lei natural é inevitável, para qualquer um seguida pela seção sobre a graça. Quanto a isso, embora não apenas
que persista na pesquisa do que é o seu bem - e qualquer um que não quanto a isso, a estrutura da Summa é paulina e agostiniana, e o tra-
persista nessa busca estará, obviamente, cometendo um erro - eu, tamento da tendência à desobediência, na natureza humana, em termos
naturalmente, propus uma interpretação que vai além desses textos, de mala voluntas, separa-a radicalmente do tratamento que Aristóteles
mas não conheço nenhuma abordagem convincente do pensamento de dá à akrasia. Assim, Sto. Tomás está comprometido, de um modo muito
Sto. Tomás sobre esses temas que não seja forçada a uma interpretação particular, em propor uma concepção da racionalidade prática que, mesmo
desse tipo. O que precisa ser enfatizado é que, segundo Sto. Tomás, os sendo aristotélica na sua estrutura geral, integra em si os temas centrais
preceitos da lei natural funcionam de mais de uma maneira na vida da psicologia agostiniana. E o que vale para a análise que Sto. Tomás
moral. Eles são a expressão da lei divina tal como apreendida pela faz da racionalidade prática vale também para seu tratamento das vir-
razão humana, e Deus, ao proferir esses preceitos para os seres huma- tudes. As virtudes compreendidas apenas em termos aristotélicos são
nos, é ao mesmo tempo legislador soberano e mestre. Sto. Tomás segue incapazes de aperfeiçoar os seres humanos, de modo a permitir que
Aristóteles (Comentário sobre a Ética a NicGmaco I, lect. I), ao sus- alcancem seu télos, parcialmente devido à compreensão inadequada que
tentar que só podemos ser justos se realizarmos ações justas, de modo Aristóteles tem desse télos, e parcialmente porque as próprias virtudes
que devemos ter um meio de identificar quais ações são justas anteri- naturais só podem ser aperfeiçoadas quando informadas pela caritas
ormente à nossa aquisição da virtude, meio esse que nos torne capazes que é um dom da graça.
de julgar e agir corretamente no que concerne à justiça. Entre aqueles
que nos proporcionam essa identificação está o legislador, à medida Portanto, a concepção de Sto. Tomás sobre as virtudes, em geral, e
que a lei positiva conforma-se à lei natural. Assim, essa lei também da virtude da justiça, em particular, também tem de sintetizar elemen-
tem uma função em nossa educação moral (S.T. Ia-IIae, 95,l) ao res- tos paulinos e agostinianos com elementos aristotélicos, embora quanto
Superaçáo de um conflito de tradições

a isso seja necessário falar da integraçáo daquilo que é aristotélico num


esquema paulino e agostiniano, e não o contrário. Conseqüentemente,
é essencial compreender as teses particulares de Sto. Tomás sobre a
racionalidade prática e a justiça, em termos das limitações impostas por
seu projeto geral. A avaliaçáo da verdade ou falsidade dessas asserções
é igualmente dependente, num sentido fundamental, da avaliaçáo desse
Capítulo XI
projeto, assim como a avaliação do projeto como um todo também
depende, num sentido fundamental, do sucesso do tratamento de pro-
blemas e questões particulares. A VISAO DE STO. TOMÁS SOBRE A
JUSTIÇA E A RACIONALIDADE PRATICA

O tipo de compreensão que os indivíduos têm de sua relação com


suas próprias ações e do modo como essas ações são geradas é, em
parte, uma questão da extedsão e da sutileza do vocabulário que lhes
é disponível para essa compreensáo e do tipo de discriminações que
esse vocabulário lhes permite fazer. O desenvolvimento desse vocabulário
e dessas discriminações depende das pressões de vários aspectos da
vida prática que visam à autocompreensão e à compreensáo dos outros.
Naturalmente, isso não significa que, antes que um conjunto particular
de palavras e conceitos estivesse disponível, tornando aqueles que os
adquirem capazes de compreender suas próprias mentes e ações de
novas maneiras, essas palavras e conceitos ainda não tivessem aplica-
ção. Desse modo, podemos estar certos em acusar a nós mesmos ou aos
outros, retrospectivamente, de termos sido até então cegos àquilo de
que poderíamos ter tido consciência. Agostinho tinha, exatamente nes-
se sentido, usado sua descoberta da vontade para acusar seus predeces-
sores romanos pagãos de terem deliberadamente ocultado de si própri-
os a mala voluntas que estava subjacente às suas realizações, corrom-
pendo-as.
O cristianismo agostiniano, conseqüentemente, exigia de seus adep-
tos um novo grau de autoconsciência assim como de responsabilidade
por desenvolvê-la. Tornou-se impossível, nos contextos pastoral e teo-
lógico, discutir os modos nos quais a má vontade pode ocorrer, sem
que houvesse uma pesquisa sobre o conhecimento da maldade de nos-
sas vontades. No primeiro, foram principalmente os escritores mo-
násticos que desenvolveram uma linguagem e uma doutrina da inten-
ção e da consciência, destinadas a tornar os indivíduos e seus confes-
A visão de Sto. Tomás sobre a justiça A visão de Sto. Tomás sobre a justiça
202 e a racionalidade prática e a racionalidade prática 203

sores capazes de alcançar a autoconsciência na ação e de avaliar a paulina da vontade humana falível feito por Agostinho, tem de integrá-
responsabilidade por sua ausência. -los numa Única compreensão, unificada e complexa, da ação humana
como tal, ele também não pôde evitar a tarefa - nenhum professor na
Assim, três palavras entram para o vocabulário moral latino me-
Universidade de Paris poderia tê-la evitado - de mostrar a função de
dieval: intentio, synderesis e conscientia, compreendidas com um grau
de especificidade negado às suas equivalentes modernas que são apli- expressões tais como intentio, synderesis e conscientia no seu esquema
cadas mais livremente, senão por outros motivos, ao menos por serem geral de conceitos da ação.
introduzidas como integrando teorias teológicas e filosóficas. Portanto, Discuti anteriormente a visão de Sto. Tomás da inevitabilidade dos
Abelardo, impressionado pela visão agostiniana de que uma única e preceitos básicos da lei natural. Synderesis é, na sua visão, a disposi-
mesma ação pode, no caso de uma pessoa, ser uma expressão de orgu- ção natural manifesta na nossa apreensão mais básica desses preceitos,
lho, mas, no caso de outra, expressão de humildade, argumentava que que nós não compreendemos como um resultado da pesquisa porque
as ações nelas mesmas são moralmente indiferentes e devem ser chamadas um conhecimento de sua verdade já está pressuposto em toda atividade
boas ou más dependendo da intentio do agente, que pode estar ou não prática. Ela deve talvez ser classificada como uma potencialidade par-
de acordo com a lei divina (quanto a essa questão, ver D. E. Luscombe, ticular da razão (Quaestiones Disputatae de Veritate 16,15; Sto. Tomás
"Peter Abelard and Twelfth-Century Ethics", Peter Abelard's Ethics, reproduz sua discussão anterior de synderesis resumidamente em S.T.
Oxford, 1971). E quando os comentadores discutiam aquele que se Ia, 79,12). Synderesis é infalível (Quaestiones 16,2). A alegação de
tornou o modelo de maxíual teológico na Universidade de Paris do Sto. Tomás nesse caso é: qualquer juízo moral ou prático falso, que
século XIII, Sententiae de Pedro Lombardo - o autor tinha, ele pr6- toma o bem pelo mal, se examinado suficientemente, acabará por se
prio, ensinado em Paris e sido arcebispo durante um curto período revelar derivativo, mesmo que inicialmente não aparente sê-10. Ele não
antes de sua morte por volta de 1160 - suas discussões das visões está apelando para a qualidade psicológica da evidência ou para a intuição,
opostas sobre de que modo a vontade pode ser má, frequentemente nem negando que a operação de synderesis, ao determinar a ação de
conduziam a discussões sobre synderesis e conscientia. alguém, possa ser prejudicada pela força distratora de alguma paixão,
Originalmente, 'conscientia' era a tradução latina de 'syneidesis'. A que nos conduz a ignorar o que, de fato, sabemos (16,3) (ver Mark
distinção entre 'conscientia' e 'synderesis' surgiu nos comentários sobre Jordan, Ordering Wisdom, Notre Dame, 1986, 139-141).
a interpretação de S. Jerônimo da história bíblica de Caim em Gn 4. A aplicação de princípios fundamentais a uma situação particular
Jerônimo propunha tanto que Caim, nas suas ações más, continuava exige um conjunto adicional de capacidades: não só a capacidade de
tendo uma consciência, isto é, que sabia que o que estava fazendo era deduzir, dos princípios fundamentais gerais e universais, princípios mais
errado, como também, entretanto, que em alguns casos as pessoas que específicos, com aplicação mais imediata a tipos específicos de situa-
fazem ações más são capazes de, com o tempo, obliterar a consciência ção, mas também a capacidade de fazer derivar, desses dois princípios,
de que o que estão fazendo é errado. Desse modo, os comentadores os juízos práticos particulares sobre o que deve ser feito aqui e agora
queriam uma palavra para aquilo que é indelével, que sobrevive mesmo ou em circunstâncias particulares que podem um dia existir, mas ainda
no pior ser humano, para distingui-lo da consciência do bem e do mal não existem aqui e agora. O nome 'conscientia' é aplicado a essas
que pode ser suprimida, 'synderesis' sendo utilizada para o primeiro, capacidades.
'conscientia' para a segunda (Timothy C. Potts, Conscience in Medi- A conscientia pode, de fato, errar (16,2 e 17,2) seja porque seu
eval Philosophy, Cambridge, 1980, 9-11, e de um modo mais geral, ao juízo foi deduzido de uma premissa verdadeira ou de um conjunto de
longo de toda a obra). premissas verdadeiras combinados com uma premissa falsa, que nesse
Diferentes teólogos compreendem e desenvolvem essa distinção de caso resultou numa falsa conclusão, seja porque seu juízo foi derivado
modos diferentes, nem sempre compatíveis, assim como distinguem a de premissas verdadeiras através de um raciocínio falacioso. Há, en-
intentio e a ação à qual está relacionada. Mas a partir do século XII, tretanto, casos nos quais a conscientia não pode errar, principalmente
todas essas expressões tornam-se fundamentais para a prática e para a quando a dedução de um princípio verdadeiro, afirmado através de
teoria. Conseqüentemente, quando Sto. Tomás, tendo aceitado a visão synderesis, é tão imediata que não há espaço para erro ao passarmos da
de Aristóteles do raciocínio prático e o desenvolvimento da doutrina premissa à conclusão, assim como, por exemplo, quando alguém infere
A visão de Sto. Tomás sobre a justiça A visáo de Sto. Tomás sobre a justiça
204 e a racionalidade prática
e a racionalidade prática 205

de "Deus deve ser amado por todos" que "Deus deve ser amado por conscientia será inconsistente com algum princípio afirmado pela
mim". Exceto nesses casos, nossa apreensão de juízos práticos ver- synderesis, ou com alguma conseqüência desse princípio. Mas sabemos
dadeiros básicos, enquanto verdadeiros, não implica compreendermos de um teorema primeiramente enunciado por um discípulo anônimo de
o que significa viver esses juízos, nas especificaçóes e particularidades Duns Escoto e, mais tarde, por C. I. Lewis que, de uma contradiçáo,
da vida prática. Ao compreender isso, gradualmente ampliamos nossa absolutamente qualquer coisa pode ser derivada. Tal pessoa, conse-
compreensão dos juízos fundamentais e de todo o sistema que constituem qüentemente, tenderá a descobrir-se afirmando o que não pode deixar
parcialmente. Há, portanto, mesmo para aqueles que não desviam sua de reconhecer como afirmativas contraditórias, mesmo se sua fonte original
atenção dos preceitos básicos da lei natural, possibilidades radicais de for, por sua própria natureza, como indica Potts, não-reconhecida.
erro, erro que pode assumir dimensões trágicas. Tais são, frequentemente, as pessoas que enfrentam os dilemas que
Sto. Tomás sustentava que a conscientia tanto pode errar como coagir constituem a tragédia. Segundo Sto. Tomás, tais dilemas sempre se
(17,3 e 4). Portanto, deve parecer ser verdade que pode ser simultanea- basearão num erro subjacente, mas nada na sua visão impede que seja
mente verdadeiro que alguém deva fazer tal coisa porque esta coisa é verdade que o reconhecimento desse fato pode, por enquanto, estar fora
determinada pela conscientia, e não verdadeiro que essa mesma pessoa de questão. Martha Nussbaum argumentou que a visáo de Sto. Tomás
deva realizar essa mesma ação porque é errado, sendo expressamente é incompatível com certa situação retratada na tragédia grega na qual,
proibido pela lei divina. Mas se isso fosse verdade, estaríamos nos ela sugere, a racionalidade completa é compatível com o reconheci-
comprometendo com a afirmação de uma contradição, o que é absurdo. mento da força coercitiva genuína, nos termos de Sto. Tomás, a força
A resposta de Sto. Tomás é que podemos distinguir entre os dois tipos coercitivaper se, de alegações morais conflitantes ("Practical Syllogisms
de "dever". Uma pessoa é coagida p e r se a fazer o que a conscientia and Practical Sciences", Essay 4, Aristotle's De Motu Animalum, Princeton,
determina, quando a conscientia julga corretamente, mas apenas p e r 1978, 168-173). Nussbaum desenvolveu suas posições (The Fragility of
accidens a fazer o que a conscientia julga erradamente (17,4). Desse Goodness, Cambridge, 1986) deixando claro que, na sua argumentação,
modo, quanto à pessoa que julga o que deve fazer, baseada num difere de Sto. Tomás quanto a, pelo menos, duas questões principais.
pronunciamento falso da conscientia, é verdade que é determinada e Em primeiro lugar, Nussbaum rejeita, e Sto. Tomás aceita, o que
deve agir de tal modo p e r accidens, mas não é verdade que seja de- ela chama de "a assimilação do conflito prático na discordância e das
terminada e deva agir per se. Não há contradiçáo. alegações práticas nas crenças" (op. cit., 36). Isto é, Nussbaum tenta
Timothy Potts criticou a conclusão de Sto. Tomás de que não é evitar atribuir contradiçáo seja às próprias figuras trágicas, seja às nossas
verdade que tal pessoa seja genuinamente coagida e que a solução para descrições delas, negando o valor verdade às suas afirmações. No entanto
essa pessoa é abrir mão de sua crença falsa, uma crença pela qual, em vai além, na mesma obra, argumentando que Aristóteles propõe uma
qualquer assunto de substância moral, é culpável, uma vez que poderia compreensão do pensamento prático que está aberta às intuições que ela
e deveria ter agido diferentemente (17,4). Potts responde que "a difi- considera centrais na tragédia, tal como a compreende. Mas Aristóteles,
culdade permanece, pois um homem que acredita estar sendo coagido que considera as teses práticas e morais como podendo ser expressas
a fazer algo não reconhecerá, simultaneamente, que é coagido a não enquanto premissas maiores de silogismos, não poderia tê-lo feito, sem
fazer a mesma coisa e, portanto, não se reconhecerá como estando num atribuir-lhes verdade ou falsidade. E, realmente, de um modo mais
dilema ..." (op.cit., 59). Esse argumento, de fato, é verdadeiro, mas não geral, é difícil compreender Aristóteles sem tal suposição.
vê que Sto. Tomás não está prescrevendo um modo de reconhecer e Em segundo lugar, Sto. Tomás e Nussbaum concordam que pode
eliminar dilemas, mas apenas explicando como alguém pode estar no parecer a alguém estar enfrentando alegações morais conflitantes; a
que é objetivamente um dilema, precisamente porque não o reconhece pessoa que segue uma conscientia errônea sabe que está sendo deter-
como tal. A importância disso pode ser destacada, se considerarmos minada pela conscientia (Quaestiones Quodlibetales I1,27) e será in-
sua relevância para certas críticas modernas de Sto. Tomás. capaz de evitar compreender-se como estando submetida a predicados
Segundo Sto. Tomás, alguém que aceitou como verdadeiro um falso contraditórios, embora de fato não o esteja. Um adepto de Sto. Tomás
pronunciamento da conscientia deve ter admitido uma contradiçáo no teria de afirmar, e Nussbaum, se discorda dele, teria de negar, que essa
seu conjunto de crenças e juízos morais, uma vez que o juízo falso da pessoa deve ser culpada de algum erro ou falha que é incapaz de ver.
A visão de Sto. Tomás sobre a justiça
A visão de Sto. Tomás sobre a justiça
206 'e a racionalidade prática
e a racionalidade prática 207

É interessante observar que, no desenrolar da ação dramática na tragé- I

dia grega, esse erro ou falha parece claro: a insistência arrogante de


Édipo quanto à sua capacidade de aprender e lidar com a verdade, e a
aceitação por Neoptólemo do plano injusto de Ulisses para defraudar
!
i
Temos, portanto, um esquema teológico dentro do qual se apresenta
uma concepção fundamentalmente aristotélica da gênese da asfio, na
qual estão integrados uma concepção agostiniana da vontade e conceitos
mais tardios, tais como intentio, synderesis e conscientia. Como isso
Filocteto, são bons exemplos. O que Sto. Tomás não pode aceitar é que
seja a natureza das coisas ou a vontade divina que gera a tragédia, e foi feito? Sto. Tomás aceitou de Aristóteles a substância do que Aris-
não a tendência humana para o pecado. tóteles tem a dizer sobre três questões fundamentais: a relação teórica
e prática dos bens secundários com o supremo bem; o processo de
Ao tratar as concepções de synderesis e conscientia, propostas por deliberação, através do qual a argumentação procede, a fim de identi-
Sto. Tomás, como integrando sua compreensão do conhecimento prá- ficar o melhor meio de alcançar um dado bem; e a organização do
tico, já estou desenvolvendo uma interpretação de Sto. Tomás que vai raciocínio, através da qual a afirmação do bem a ser alcançado e o
contra alguns comentadores. M. B. Crowe argumenta (The Changing reconhecimento perceptivo da situação do agente combinam para fornecer
Profile of the Natural Law, Dordrecht, 1977, 136-141) que o trata- ao agente premissas que, num agente atuando de acordo com a razão
mento inicial da synderesis tornou-se redundante, quando sua leitura reta, geram a ação reta como conclusão do raciocínio prático.
posterior da Ética a Nicômaco permitiu que atribuísse um lugar ade-
quado ao raciocínio na gênese da ação e que essa mudança representou As discussões fundamentais de Sto. Tomás estão no seu Comentário
um movimento de uma "filosofia moral neoplatonizante" para uma sobre a Ética, e é no uso que faz de certas palavras latinas, traduções
posição mais aristotélica. Mas, de um modo mais geral, é importante de expressões aristotélicas, que podemos ver mais claramente sua in-
compreender que Sto. Tomás, em cada estágio - e talvez principalmente trodução de elementos agostinianos no esquema aristotélico. A tradução
nos anos em que estava escrevendo seu comentário sobre a Ética a da Ética a Nicômaco utilizada por Sto. Tomás era uma edição revisada
Nicômaco e a Secunda Secundae - integra elementos neoplatônicos e da tradução de Roberto Grosseteste e, quando escreveu seu comentário
agostinianos a elementos aristotélicos e não descarta um em favor de em 1271-1272, estava ainda, em muitos aspectos, sob a influência do
outro. ensinamento de Alberto Magno sobre a Ética. Sto. Tomás pode muito
Minha posição, até agora, é também contrária à de alguns escritores bem ter escrito seu comentário como uma introdução imediata à redação
tomistas modernos no que concerne à lei natural, pois consideram possível de partes da Summa que tratam de teoria moral; os paralelos entre as
construir uma compreensão genuinamente tomista da lei natural e de duas obras, especialmente na Secunda Secundae, são evidentes (Georg
nosso conhecimento dela, "sem precisar alertar para a questão da exis- Wieland, "The Reception and Interpretation of Aristotle's Ethics", cap.
tência de Deus ou da natureza da vontade", como John Finnis, por 34, The Cambridge History of Later Medieval Philosophy, ed. N.
exemplo, argumentou contra Kai Nielsen (Natural Law and Natural Rights, Kretzmann, A. Kenny, J. Pinborg e E. Stump, Cambridge, 1982).
Oxford, 1980, 48-49). O que é interessante observar aqui é a diferença
entre o tratamento conseqiiente que Finnis dá aos bens da religião (op. Sto. Tomás retira de Alberto Magno e de Grosseteste a palavra
cit., 89-90 e 371-410) e o tratamento de Sto. Tomás (S.T. IIa-IIIae, 81). 'electio' como tradução do termo aristotélico 'proaíresis'. A palavra
Segundo Sto. Tomás, a religião é uma virtude moral, sendo a parte da 'escolha', com suas conotações modernas, é uma tradução equ ívoca de
virtude cardeal da justiça que se refere ao que devemos a Deus, em 'proaíresis', como já observei anteriormente. Mas quando 'proaíresis'
termos de honra, reverência e adoração. Uma vez que a obediência é traduzida por 'electio', nós nos aproximamos muito mais do termo
perfeita à lei natural exige a plena virtude da justiça (S.T. IIa-IIae, 79,1), moderno 'escolha'. 'Proaíresis' denomina aquilo que resulta da deli-
é difícil compreender como alguém que não acredita em Deus e que beração e expressa a conclusáo do agente quanto ao que é bom que
seus atributos tornam-no digno de honra, reverência e adoração, pudes- faça agora, como um meio imediato para o fim para o qual, através da
se ser perfeitamente obediente à lei natural. 6, portanto, importante, deliberação, está considerando os meios a adotar. Sto. Tomás segue
para minha interpretação das posições de Sto. Tomás, que eu compreenda Aristóteles ao caracterizá-la como desejo racional ou razão desejante,
suas posições sobre o conhecimento e o raciocínio prático, para não enfatizando (Comentário sobre a Ética VI, lect. 2) que apenas O dese-
mencionar a justiça, como sempre pressupondo o tipo de conhecimento jo, enquanto disciplinado e dirigido pelo hábito moral reto, entra em
racional de Deus exemplificado nas conclusões da Prima Pars. acordo com a razão; a verdade à qual a mente prática inquiridora chega
é a verdade que corresponde ao desejo reto, no julgamento quanto ao
A visão de Sto. Tomás sobre a justiça A visão de Sto. Tomás sobre a justiça
208 e a racionalidade prática e a racionalidade prática 209

que deve ser feito. Mas Sto. Tomás considera o componente da ação agente e adotados por causa dele ("Philosophical Progress and the Theory
que expressa a proaíresis, o desejo racional, como sendo um ato da of Action", 34). E o critica pelo que chama o erro crasso de supor que,
vontade. E a vontade é sempre livre, no sentido de que age baseada em quando a vontade exerce seu poder executivo, determinante, pode haver
julgamentos contingentes quanto ao que é bom ou mau e está sempre algo mais a ser feito ao qual o nome 'usus' pode ser dado ("Thomas
aberta a algum julgamento contingente alternativo proposto, por exem- Aquinas on Human Action", 652). Não estou certo de que o elogio e
plo, por uma paixão desordenada, pela qual pode ser movida, e não a crítica sejam merecidos, pelo menos nos termos propostos por Donagan.
pelo julgamento racional considerado. A vontade não é movida a um
fim pela necessidade (S. T. Ia-IIae, 10,2). Ao fazer da electio um ato da vontade e caracterizá-la do modo
como faz, mais do que traduzir 'proaíresis' para o latim, Sto. Tomás
Portanto, a voluntas de Agostinho é introduzida no esquema de
Aristóteles e não apenas no momento da proaíresis. A vontade é oferece um conceito alternativo. Para Aristóteles, a pessoa cujas con-
sempre movida à ação pelo intelecto; mesmo em seus momentos mais clusões quanto a que meios adotar não emergem do seu caráter é al-
instáveis pode ser comandada por algum julgamento. Quando o in- guém ainda moralmente não-educado ou, pelo menos, não completamente
telecto primeiramente julga algum fim bom, um ato de vontade com educado, aberto ao impulso acrático; como tal, essa pessoa ainda não
relação a esse fim é elicitado (Ia-IIae, 8,2), ato esse que Sto. Tomás entrou na maturidade da pesquisa moral. Sto. Tomás, ao contrário,
identifica pelo nome de 'intentio'; intentio pode ser dirigida seja para considera todo ser humano responsável por suas escolhas, desde rela-
aquilo que deve ser imediatamente escolhido como um fim, seja para tivamente cedo; mesmo antes que o caráter esteja adequadamente for-
esse fim como um meio para um outro fim, seja realmente para uma mado, devo fazer as escolhas que levarão a uma formação adequada do
variedade de fins. É a presença da intentio que distingue um ato ge- caráter. Mesmo uma racionalidade imatura é adequada para essa tarefa.
nuíno de vontade de um mero desejo (S.T. Ia-IIae, 12,l-4). A vontade Assim, não ocorre que Aristóteles tenha omitido algo na sua compre-
também deve consentir quanto aos meios julgados apropriados pelo ensão da proaíresis e que Sto. Tomás tenha corrigido essa omissão; ao
intelecto, através do processo de deliberação (S.T. Ia-IIae, 15,l). contrário, Sto. Tomás propicia uma perspectiva nova e ampliada da
A deliberação que determina o meio a ser escolhido para algum fim relação entre escolha, ação e caráter.
e que termina em electio é sempre, se for completamente racional, dirigida
Além disso, até onde consigo ver, é um erro supor que 'usus' de-
para esse fim, apenas à medida que 6 também um outro meio para o
nomine um ato da vontade sobre e acima do ato no qual a vontade
fim último dos seres humanos, o único fim que não pode ser também
exerce seu poder executivo; 'usus' denomina os componentes do ato da
um meio e, portanto, não é submetido à escolha (S.T. Ia-IIae, 13,3). Quando
vontade que na ocasião constituem seu esforço como, por exemplo,
a deliberação que leva à electio determina os meios, a vontade, ela
mesma um poder comandado pelo intelecto (S.T. Ia-IIae, 17,2 e 5), aceita quando tenho vontade de me levantar da cama, posso exercer essa
vontade dizendo insultos a mim mesmo, esses insultos sendo compo-
os meios e determina um ato que completa a ação, implementando a
nentes secundários do ato ou subato geral da vontade.
escolha através desse ato de determinação. A vontade pode ter de elaborar
dispositivos para tornar-se efetiva, utilizando os recursos do raciocíno A concepção de Sto. Tomás da vontade segue de perto a de Agostinho
para esses dispositivos (S.T.Ia-IIae, 16,l); Sto. Tomás chama isso de ao vincular vontade e amor; aquilo que queremos nos dá prazer, tanto
'USUS' pela vontade. no querer quanto na realização, e a formulação de Agostinho da fruição
de algo como "apegar-se a algo com amor pelo próprio amor" (De
Alan Donagan ("Thomas Aquinas on Human Action", cap. 33, The
Doctrina Christiana I,4) 6 citada por Sto. Tomás na Summa (Ia-IIae,
Cambridge History of Later Medieval Philosophy: esta é a abordagem
11,l). O prazer pelo que é possuído ou realizado excede o prazer de
mais útil e mais esclarecedora fornecida por qualquer ponto de vista;
querer, que fica apenas no nível da intenção e é apenas com a posse do
ver também seu artigo "Philosophical Progress and the Theory of Ac-
bem perfeito, na forma da visão beatífica, que o deleite da vontade é
tion", Proceedings and Addresses of the American Philosophical
tal que ela finalmente encontra repouso (S.T. Ia-IIae, 11,3). A vontade
Association, 55,1, Setembro 1981) elogia e critica Sto. T6más por sua
terá, então, atingido o fim último, para o qual o intelecto racional a
concepção da ação. Ele o elogia por "corrigir o erro de Aristóteles" de
direcionou originalmente e o tipo de satisfação que sobrevirá a esse
supor que a proaíresis é sempre de fins consistentes com o caráter do
fim será o maior dos prazeres.
A visão de Sto. Tomás sobre a justiça A visão de Sto. Tomás sobre a justiça
210 e a racionalidade prática e a racionalidade prática 211

Segundo Sto. Tomás, uma concepção da ação humana totalmente para fazê-lo, se apenas atentassem para isso, que ao serem movidos
desenvolvida e explicitada começa com o reconhecimento do fim últi- pelo amor de seu próprio bem estão sendo movidos pelo amor e desejo
mo dos seres humanos, um reconhecimento que, por sua vez fica, de Deus (S.T. Ia-IIae, 109,3).
frequentemente, distante de ser totalmente desenvolvido e explícito; o Isso significa que os seres humanos que não conseguem descobrir
termo imediato do raciocínio e da vontade está no juízo e na ação de no que consiste seu bem e felicidade verdadeiros serão perpetuamente
um indivíduo particular sobre que ação particular esse indivíduo deve paralisados e frustrados. Esse fato esclarece de modo importante a
realizar para alcançar seu bem particular em circunstâncias particu- relação entre as teorias da vida prática de Sto. Tomás e Aristóteles.
lares. No que se refere à natureza do fim último para os seres humanos, Pois, segundo Sto. Tomás, a vida das virtudes cívicas vivida na pólis
que fornece a primeira premissa de todo raciocínio prático completamente e a contemplação do eterno proporcionada pela theoria são nada mais
racional, assim como no que se refere à relação entre o conhecimento do que felicidade imperfeita. Se eliminarmos a bondade de Deus - tal
de verdades universais sobre o bem humano e os juízos sobre particu- como compreendida na Prima P a r s - da concepção de Sto. Tomás, o
laridades e ações particularizadas, Sto. Tomás prolonga a visão de que encontramos não é Aristóteles, mas uma versão radicalmente truncada
Aristóteles e, em certos pontos, expressa discordâncias, às vezes radi- da Ética a Nicômaco, na qual o conhecimento de que há um fim último
cais, com ela. para os seres humanos não se faz acompanhar do conhecimento sobre
Aristóteles argumentara que uma série de bens particulares não pode, L qual é esse fim. Na concepção de Sto. Tomás, a compreensão agostiniana
por uma ou outra razão, ser o télos da vida humana como tal. Assim, da doutrina cristã da natureza humana não mostra simplesmente que a
nem o dinheiro, nem a honra ou o prazer (por oposição à satisfação que i teoria de Aristóteles sobre a vida prática é incompleta, no sentido de
não é ela própria o bem, mas que sobrevém à realização do bem, de 1 que precisa ser complementada. Ela mostra que é radicalmente defec-
modo a ser uma parte dessa realização), nem uma vida de virtude i tiva (ver A. Donagan, Human Ends and Human Actions, Milwaukee,
moral podem ser esse télos. Sto. Tomás estendeu os argumentos de E 1985).
Aristóteles, não apenas de modo a excluir outros itens particulares Sto. Tomás segue Aristóteles ao sustentar que o conhecimento de
como o poder mundano (Summa Contra Gentiles, III,31), mas também nosso fim último, à medida que está dentro de nossos poderes racionais
de modo a excluir todo estado finito que possa ser alcançado na vida naturais alcançar, pertence à atividade prática do intelecto e não à
presente, chegando mesmo a encontrar alguma confirmação disso no atividade teórica: "Deve ser dito, portanto, que o intelecto prático real-
próprio Aristóteles (S.T. Ia-IIae, 5,4). Pois cada um desses estados será mente tem seu principium (a tradução de 'arché') numa consideração
menos um bem do que poderia ser; não exemplificará adequadamente universal e, quanto a isso, é o mesmo que o intelecto teórico em termos
a universalidade do bem ou sua auto-suficiência. Portanto, o fim últi- de conteúdo, mas sua consideração atinge seu termo numa coisa par-
mo dos seres humanos está fora e além dessa vida presente. ticular que pode ser feita" (Comentário sobre a Ética VI, lect. 2). O
que quer dizer que raciocinamos teoricamente na direção desse fim último
Segundo Sto. Tomás, apenas o estado de felicidade perfeita que e sobre esse fim último que é a arché da pesquisa e do raciocínio práticos,
consiste na contemplação de Deus na visão beatífica pode ser o fim mas, a partir dessa arché, é através do raciocínio prático que somos
último dos seres humanos, contemplação na qual toda a natureza hu- conduzidos a conclusões práticas quanto a como agir. Entretanto, mesmo
mana encontra sua completude (S.T. Ia-IIae, 3,7). Essa completude incluirá a melhor pesquisa teórica fornece um conhecimento inadequado de
o aperfeiçoamento do corpo humano ao qual, na ressurreição geral, as nosso fim último e mesmo a verdade revelada de que esse fim é O
almas se unirão novamente. Todos desejam a felicidade perfeita e to- prazer da visão beatífica implica uma referência a aspectos da natureza
dos têm como o fim verdadeiro de sua natureza aquilo por que todos divina dos quais só podemos ter a mais inadequada das apreensões.
se movem rumo a todos os outros bens, a bondade de Deus (S.T. Ia,
6,l). Esse movimento último rumo à causa final é compartilhado com É importante, no entanto, não exagerar quanto a essa inadequação
todos os outros seres criados, mas os seres não-racionais não podem, 1 (ver David Burrel, Knowing the Unknowable God, Notre Dame, 1986
naturalmente, conhecer ou reconhecer esse movimento. Os seres humanos : e Aquinas: God and Action, Notre Dame, 1979); é uma inadequação
podem, e antes da queda de Adão o faziam. No seu estado presente, que diz respeito à natureza daquilo que desfrutaremos se alcançarmos
frequentemente não reconhecem, apesar de possuírem todos os meios nosso fim último e não à sua incapacidade de especificar como deve-
A visão de Sto. Tomás sobre a justiça A visão de Sto. Tomás sobre a justiça
212 e a racionalidade prática e a racionalidade prática 213

mos agir. A vida prática, tal como Sto. Tomás a representa, é uma vida enquanto razões que nos motivam a realizar ações incompatíveis com
de pesquisa, por parte de cada um de nós, sobre qual é o nosso bem e eles; o que os preceitos podem fazer é oferecer-nos uma razão que
é parte do nosso bem atual realizar tal pesquisa. A descoberta final do possa superar as razões que nos levam a desobedecer a eles, isto é, nos
que é o nosso bem nos revelará, de fato, a inadequação de todas as mostram um bem mais perfeito do que o anterior. E, alem disso, sempre
nossas concepções anteriores, uma inadequação expressa de forma o fazem num contexto em que mais de um aspecto de nosso bem está
marcante no veredicto de Sto. Tomás sobre sua própria obra, nos dias em questão. Consideremos alguém que decide construir uma casa para
imediatamente anteriores à sua morte. Mas em cada estágio dessa pes- sua família. O primeiro modo no qual essa pessoa tem de julgar sua
quisa prática temos um conhecimento de nosso bem que é adequado atividade boa diz respeito ao tipo de atividade: sua bondade reside no
para nos conduzir adiante, de modo que o que synderesis e conscientia fato de ser bom para os seres humanos viverem juntos comodamente
fornecem inicialmente - se, mas somente se formularmos as questões em famílias e essa atividade de construção é um bem enquanto meio
que atualizam o conhecimento que elas proporcionam e focalizarmos dirigido para essa inclinatio fundamental. Em segundo lugar, C à medida
nossa atenção sobre as respostas - são os princípios necessários, cujo que essa pessoa usa apenas terra, materiais e mão-de-obra genuinamente
conteúdo e aplicação são cada vez mais adequadamente compreendidos Seus que a ação é moralmente boa, conformando-se ao preceito básico
ao longo de nossa educação e auto-educação nas virtudes. da lei natural de não tomar o que pertence a outro, garantindo, dessa
A vida moral começa com as regras concebidas para conduzir a forma, que a casa seja genuinamente resultado de seu trabalho e posse
vontade e o desejo ao seu bem, fornecendo um padrão de direção reta da família. Em terceiro lugar, a atividade é boa à medida que não
(rectitudo). Essa retidão é valorizada, não por si mesma, mas à medida ocorra nenhuma conseqüência danosa per accidens, como, por exem-
que conduz à vontade perfeita e aos desejos perfeitos exigidos pela plo, impedir que o terreno de alguém receba a luz do sol. E, em quarto
felicidade. Conseqüentemente, as regras devem ser valorizadas à me- lugar, a atividade é boa à medida que sua causa é o tipo relevante de
dida que constituem a vida que leva à felicidade perfeita e só podem bondade no indivíduo ou indivíduos que estão realizando a atividade,
ser compreendidas à medida que seu sentido e propósito são com- nesse caso a virtude da justiça.
preendidos. Além disso, o tipo certo de obediência às regras só é pos-
Sto. Tomás enfatiza que, para que uma ação seja boa, deve ser boa
sível através da educação nas virtudes morais, porque as ações que são
nos quatro sentidos; mas para que seja má, basta que seja falha em
governadas por regras só são genuinamente boas à medida que são
apenas um (S.T. Ia-IIae, 18,4). Tentei enfatizar que a obediência aos
expressões das virtudes, e porque o próprio fato de seguir regras exige
preceitos fundamentais da lei natural é apenas um dos componentes da
a virtude da prudência.
bondade das ações e que a força de tais preceitos como razões para a
É importante não compreender essa educação de um modo por demais ação deriva, principalmente, dos contextos nos quais são fatores
intelectualizado. A prática das virtudes morais é fundamental para que componentes. 'Não matar alguém gratuitamente' ou 'não tomar o que
possamos adquirir o conhecimento sobre elas e há um tipo de conheci- não é seu' não são, em si mesmas, descrições de ações.
mento que deve ser adquirido dessa forma que não é de modo algum
produzido pela pesquisa intelectual. Podemos aprender o que é Além disso, ao compreender a relevância dos preceitos da lei natural
numa situação particular, temos de identificar o tipo de relevância que
uma virtude através da experiência de ter nossa vontade direcionada
esses preceitos têm para essa situação e para fazer isso não há regras
por essa virtude (per inclinationem; Sto. Tomás chama a esse tipo de
universais. Os preceitos da lei natural são, eles próprios, divididos
conhecimento de conhecimento por conaturalidade -S.T. IIa-IIae, 45,2,
entre os primeiros princípios genuinamente universais e sem exceções
e ver também S.T. Ia, 1,6 e a discussão em J. Maritain, Antimoderne,
e as conclusões secundárias que derivam deles imediatamente, que não
Paris, 1922, 32-35). Portanto, a prática da virtude da justiça produz um
variam de cultura para cultura mais do que os primeiros, a não ser
conhecimento desse tipo, incluindo um conhecimento dos preceitos da
quando o vício e o pecado tiverem obliterado a consciência desses
lei natural.
princípios, mas que necessitam de complementação, em várias ocasiões
Obedecer aos preceitos da lei natural implica mais do que simples- particulares, para terem uma aplicação correta (S.T.Ia-IIae, 94,5). Portanto,
mente deixar de fazer o que esses preceitos proíbem e fazer o que devemos sempre respeitar a propriedade dos outros - um preceito
determinam. Os preceitos tornam-se operacionalmente eficazes apenas básico - e isso geralmente implica devolver a alguém O que nos foi
A visão de Sto. Tomás sobre a justiça A visão de Sto. Tomás sobre a justiça
214 e a racionalidade prática e a racionalidade prática 215

emprestado, mas se enquanto isso o outro tornou-se mentalmente in- morais (Quaestiones Disputatae de Caritate, 3) e que é a virtude moral
competente, aquilo que lhe é devido é posto em questão (S.T. IIa-IIae, sem a qual as virtudes intelectuais não podem ser exercidas (S.T. Ia-
47,2). IIae, 573). E o Comentário sobre o livro VI da Ética a Nicômaco
deixa claro até que ponto vai Sto. Tomás ao reproduzir o ponto de vista
Aristóteles, no livro I1 da Ética a Nicômaco, tinha argumentado que, aristotélico. Entretanto, há uma dimensão da discussão sobre aprudentia,
uma vez que em ética e política não temos o mesmo grau de exatidão
que temos na matemática - o que queria dizer, como observei ante-
feita por Sto. Tomás, que não é aristotélica. Aprudentia é exercida tendo
em vista o fim último dos seres humanos (S.T. IIa-IIae, 47,4) e
riormente, era que premissas relevantes contingentes devem ser
introduzidas em nossas argumentações éticas e políticas, de um modo corresponde, nos seres humanos, à ordenação das criaturas para seu
que não é regido por regras - não devemos tentar determinar o que fim último, que é a providência de Deus (S.T. Ia, 22,l). Deus cria e
deve ser feito em casos particulares, de um modo que pressuponha a ordena os particulares e os conhece precisamente enquanto aquilo que
fez e que continua fazendo. Nós, se agimos retamente, reproduzimos
aplicabilidade necessária de regras invariáveis. Sto. Tomás concordou:
essa ordenação.
"Uma vez que o discurso sobre assuntos morais, mesmo em seus as-
pectos universais, está sujeito à incerteza e à variação7' - refere-se Mais uma vez, Sto. Tomás segue Aristóteles ao classificar os tipos
aqui ao fato de não haver regras para a aplicação de regras - "é ainda de prudentia: a que trata do próprio bem de alguém, a que trata dos
mais incerto se alguém deseja fazer com que a doutrina seja relevante bens da família e a que trata do bem comum da comunidade social e
em pormenores específicos de casos individuais, pois isso não pode ser política (S.T. IIa-IIae, 47,ll). Assim como, para Aristóteles, o bom
tratado pela arte ou pelo precedente porque os fatores em casos indi- legislador deve exercer phrbnesis ao legislar para uma pólis, de modo
viduais são indeterminadamente variáveis. Portanto, o julgamento so- que suas relações possam ser informadas pela justiça, também, para
bre casos individuais deve ser feito pela prudentia de cada pessoa ..." Sto. Tomás, o bom legislador necessita daprudentia, mas ela é exercida
(Comentário sobre a Ética 11, lect. 2). de modo que a lei humana se harmonize com a lei divina, mais es-
pecialmente no que diz respeito aos princípios divinamente ordenados
Sto. Tomás prossegue estabelecendo dois pontos. A falta de certeza
da lei natural. Portanto, a prudentia sempre tem, para Sto. Tomás, uma
sobre como a regra universal é aplicada não implica que o julgamento,
em casos particulares, não possa ser infalivelmente correto; e aprudentia, dimensão teológica, mesmo quando exercida como uma virtude natural
embora seu âmbito seja o da particularidade, pode ser educada pela adquirida e não como uma virtude sobrenatural.
reflexão generalizada sobre o que a ética tem a dizer. Entretanto, prudentia A prudentia toma melhores aqueles que a possuem ao permitir o
(phrdnesis) é a virtude sem a qual o julgamento e a ação, em ocasiões tipo de controle sobre suas ações necessário a todas as virtudes
particulares, tornam-se incapazes de ir além do mínimo proposto por (Quaestiones Disputatae de Virtutibus Cardinalibus, 1). Ela se torna
synderesis. É através da prudentia que compreendemos a relevância manifesta no desenvolvimento do raciocínio prático e nas ações deri-
dos preceitos da lei natural para situações particulares (S.T. IIa-IIae, 47,3 vadas do raciocínio reto (S.T. IIa-IIae, 47,8). Seu exercício é incon-
e 6), e é também através dela que somos guiados à ação reta, no que sistente com a ação apressada, desrespeitosa, inconstante e negligente
diz respeito a todos os outros aspectos das boas e más ações, dos bons ou descuidada, e também com os simulacros da virtude da prudência
e maus projetos, do bom e do mau caráter, aspectos especificados pelas - o bom senso mundano, a cautela e a astúcia - que são vícios e
virtudes morais e intelectuais. pecados (S. T. IIa-IIae, 53-55).
Não há, portanto, nenhuma antítese radical e, certamente, nenhuma A virtude, diz Aristóteles, torna a proaíresis reta; e é claramente a
contradição entre a ênfase de Sto. Tomás à indispensabilidade das regras prudentia que dirige a electio retamente, mas a prudentia juntamente
enquanto tais e a ênfase igual, senão mais forte, às suas limitaç5es. com as outras virtudes e reforçada por elas. É interessante observar que
Toda situação prática particular tem aspectos que se submetem a regras Sto. Tomás segue Platáo e Cícero, e não Aristóteles, ao utilizar o es-
e outros que não; em alguns casos, a importância das últimas é mínima, quema das quatro virtudes cardeais como chave para a relação das
em outros é máxima. Cabe à prudentia saber qual é qual e como agir virtudes morais entre si, e isso é notável, uma vez que adotou a definição
convenientemente. Sto. Tomás seguiu Aristóteles ao sustentar que o de virtude de Aristóteles (Comentário sobre a Ética 11, lect. 7), inte-
exercício da prudentia é necessário para o exercício das outras virtudes grando-a à de Agostinho numa única concepção (S.T. Ia-IIae, 55,1,2 e
A visdo de Sto. Tomás sobre a justiça A visão de Sto. Tomás sobre a justiça
216 e a racionalidade prática e a racionalidade prática 217

6). Sto. Tomás expõe e explica o esquema das quatro virtudes morais tente independente e de maneira auto-suficiente; segundo Sto. Tomás,
cardeais, considerando como as virtudes podem ser classificadas, pri- estava certo em pensar que 'justiça' denomina a arché à qual todas as
meiro em termos do princípio formal de cada uma, o que cada uma é outras atribuições da justiça têm de se referir como seu modelo exemplar
e, em segundo lugar, em termos do assunto com o qual cada uma lida. (Prólogo do Comentário sobre o Livro de Dionfsio sobre os Nomes
As duas classificações acabam por coincidir. A prudência é um exercicio Divinos; S.T. Ia, 21,4). Naturalmente, isso não quer dizer que é por
da razão e trata de como a razão deve funcionar na prática. A justiça referência a esse modelo exemplar divino que nbs adquirimos o con-
é uma aplicação da razão à conduta e trata de como a vontade pode ser ceito de justiça; a teoria de sto. Tomás sobre a aquisição do conceito
racionalmente dirigida para a conduta reta. A temperança é o controle era aristotélica e não platônica, no seu ponto de partida, embora fosse
das paixões contrárias à razão e seu assunto é "o apetite concupiscente" além de Aristóteles. Mas o fato de que tal padrão atemporal de justiça
que nos leva a agir de modo contrário à razão, enquanto a coragem é existe é uma alegasão fundamentada, em última anáilise, numa compre-
o controle das paixões em função do que a razão exige, quando o medo ensão teológica da ordenação das coisas (para a discussão do uso que
do perigo ou da dificuldade nos pressiona em sentido contrário e seu Aristóteles faz de Platão ver Ralph McInerny, St. Thomas Aquinas, Notre
assunto é "o apetite irascível" (S.T. Ia-IIae, 61,2). Dame, 1982, cap. 4).
Alguém cuja razão e paixões são ordenadas retamente apresentará, Sto. Tomás inicia sua discussão do conteúdo da iustitia humana
portanto, cada uma das quatro virtudes cardeais. As outras virtudes são elucidando sua relação com ius; ius é aquilo que é corretamente devido
todas, de alguma forma, partes ou aspectos das virtudes cardeais e a alguém, seja de acordo com a lei natural, seja com a lei positiva.
alguém pode possuir uma das virtudes cardeais sem ainda ter aprendi- 'Ius', como na lei romana, é a palavra utilizada para referir as normas
do como deve ser exercida em todas as áreas particulares que são, cada que definem as relações de cada pessoa com as outras e, portanto,
uma delas, o território de alguma das virtudes subordinadas. A edu- 'iustitia' denomina tanto a virtude deviver segundo essas normas e,
cação em cada uma das virtudes cardeais exige as outras; Sto. Tomás desse modo, apresentar em suas disposições uma vontade constante e
cita S. Gregório Magno (S.T. Ia-IIae, 61,4) sobre como alguém não perpétua de dar a cada pessoa o que lhe é devido, como o padrão de
pode, por exemplo, ser prudente sem ser também justo, moderado e retidão exigido de cada um de nós. Todo ser humano deve a todo outro
corajoso. Mas cada virtude cardeal tem de ser desenvolvida como um ser humano e, de todas as virtudes, iustitia é a que trata particular-
conjunto específico e habitual de disposições e tal educação será de- mente das relações com os outros. Ao caracterizá-la dessa forma, Sto.
sigual enquanto estiver em progresso, de modo que a visão de Sto. Tomás unificou, numa única e complexa concepção, as definições da
Tomás não exclui a possibilidade de se possuir uma virtude em grau justiça propostas por Aristóteles, Cícero e Agostinho (S.T. IIa-IIae, 57
muito maior do que outras. A unidade das virtudes é manifesta naquilo e 58).
que é exigido para se aperfeiçoar cada uma delas. As exigências da justiça distributiva são satisfeitas quando cada
Qual é o lugar específico da justiça dentro desse esquema? Não pessoa recebe proporcionalmente à sua contribuição, isto é, recebe o
devemos começar pela discussão das virtudes feita por Sto. Tomás, que lhe é devido quanto ao que diz respeito à sua posição social, posto
mas por sua teologia metafísica. Pois assim como há uma dimensão e função, e a como essa pessoa o desempenha, contribuindo assim para
inevitavelmente teológica na prudência, mesmo enquanto virtude natu- o bem de todos. As exigências da justiça comutativa são satisfeitas
ral, há também a mesma dimensão na justiça. Na sua aplicação básica, quando a restituição é feita, à medida do possível, pela falta sofrida e
a 'Justiça' é um dos nomes de Deus. Agostinho seguira Platão ao quando as penalidades para as faltas são proporcionais às ofensas e
argumentar que o padrão da justiça é oferecido à mente através de uma administradas em função das ofensas cometidas. A própria justiça,
forma ideal da justiça que a mente humana apreende de dentro de si obviamente, exige que nenhuma falta seja cometida: nenhum assassi-
própria. Sto. Tomás aceitou as críticas de Aristóteles - algumas delas nato, nenhuma outra violência contra a pessoa e nenhum roubo com ou
sendo, de fato, também críticas do próprio Platão - à teoria das for- sem violência (S. T. IIa-IIae, 61-66).
mas enquanto teoria dos universais. Mas também sustentava que Deus A condenação do roubo pressupõe a legitimidade da propriedade
não apenas concebe a justiça perfeitamente, mas é a justiça perfeitamente. privada. Sto. Tomás, entretanto, herdou da tradição patrística uma vi-
Platão estava errado em supor que 'justiça' denomina uma forma exis- são da limitação do direito à propriedade que seria, como veremos,
A visão de Sto. Tomás sobre a justiça A visão de Sto. Tomás sobre a justiça
218 e a racionalidade prática e a racionalidade prática 219

veementemente rejeitada por autores posteriores, tais como Hume e pessoa emprestar dinheiro a juros a alguém de modo a, como teria dito
Blackstone. Se alguém necessita desesperadamente de algo ou tem outros, Aristóteles, esperar gerar dinheiro a partir de dinheiro e o fato de uma
por quem é responsável, que estão em situação de extrema necessida- pessoa estabelecer uma sociedade com outra, na qual ambas as partes
de, pode considerar como parte da propriedade comum dos seres huma- investem e dividem os lucros, os juros sobre o investimento original
nos qualquer coisa pertencente a outro, algo que impedirá que ele ou sendo, portanto, considerados não como usura, mas como retorno pela
as pessoas que dele dependem morram, algo que até então não tenha sociedade. O fato de não ter feito essa distinção não é sem importância,
sido igualmente necessário ao seu proprietário, sob a condição de que pois é bastante claro que qualquer retorno pelo investimento, que não
aqueles que desse modo convertem a propriedade particular em fosse um stipendium laboris, nem uma compensação por uma neces-
propriedade comum não possuam nenhum outro recurso (S.T. IIa-IIae, sidade não satisfeita por causa do investimento, teria sido considerado
66,7). A propriedade é limitada pelas necessidades da carência humana. por ele como usura. As práticas comerciais e financeiras típicas do
capitalismo são tão incompatíveis com a concepção da justiça de Sto.
Em seguida, Sto. Tomás considera a justiça da lei positiva. Na
Tomás quanto as práticas do tipo de sistema de adversários da justiça
administração da justiça, a justiça exige o respeito pela jurisdição,
legal, na qual os advogados frequentemente defendem pessoas que sabem
nenhuma discriminação irrelevante entre as pessoas, nenhuma acusação ser culpadas.
infundada, que a verdade seja dita por todos nos tribunais, que se uma
pessoa pobre só tem este advogado particular para defendê-lo aqui e É importante lembrar, nesse momento, não apenas que Sto. Tomás
agora, este advogado deve defender essa pessoa e que nenhum ad- afirmava que leis injustas não devem ser obedecidas (se exigem aquilo
vogado defenda conscientemente uma causa injusta. Taxas legais que é contrário ao bem divino, devem ser desobedecidas, sendo que se
exorbitantes, assim como todos os outros preços exorbitantes - Sto. são apenas desnecessariamente onerosas, não há obrigação de obedecê-
Tomás, como Aristóteles, defendia uma versão da teoria do valor tra- -las, embora possa ser prudente fazê-lo: S:T. Ia-IIae, 96,4), mas tam-
balho - são um tipo de roubo (S.T. IIa-IIae, 67-71). bém que concordava com Agostinho em que leis injustas não têm força
de lei e não merecem o nome de 'lei7 (S.T. Ia-IIae, 95,2; S.T. IIa-IIae,
A justiça proíbe discursos irados que abertamente insultem alguém, 104,5 e 6). E assim também, à medida que os regimes injustos apro-
assim como discursos calmos e insidiosos que espalhem calúnia e di- ximam-se de tiranias, perdem todo direito legítimo de exigir nossa
famação; proíbe boatos e fofocas, usar palavras que ridicularizem ou- obediência (S.T. IIa-IIae, 42,2; comparar com De Regno, 3). O que é
tros, desprezando-os e amaldiçoando-os de um modo que expresse um mau na tirania é que subverte as virtudes de seus súditos; o melhor
desejo de prejudicá-los (S.T. IIa-IIae, 72-76). regime é aquele cuja ordem conduz da melhor forma à educação nas
No que seria agora chamado de esfera econômica, Sto. Tomás dis- virtudes, no interesse do bem de todos. Portanto, a concepção liberal
tingue o valor de uma coisa do que ela vale para uma pessoa particular, moderna de governo, como aquele que garante um mínimo de ordem,
uma distinção que não tem aplicação na economia moderna de livre dentro da qual os indivíduos podem perseguir seus próprios fins livre-
mercado. A justiça de um preço não é apenas uma questão do valor de mente escolhidos, protegidos amplamente da interferência moral do
governo, é também incompatível com a concepção de Sto. Tomás da
uma coisa, mas na maioria dos casos sim. O comércio é uma atividade
ordem justa.
legítima, quando empreendida por alguém "em função da utilidade pública,
de modo que as coisas necessárias não faltem à pátria de alguém, e Sto. Tomás termina seus resumos argumentativos, na Summa, sobre
busca o dinheiro, não como um fim, mas como um pagamento pelo o que a justiça distributiva e a justiça comutativa exigem, mostrando
trabalho" (S.T. IIa-IIae, 77,4). O engano e os preços exorbitantes são como todas essas conclusões exemplificam os preceitos fundamentais
proibidos incondicionalmente, assim como a usura. Sto. Tomás cita a da lei natural (S.T. IIa-IIae, 79,l-4). Em seguida, identifica e caracte-
proibição deuteronamica, observando que os judeus eram proibidos de riza as virtudes, de modo tão próximo à justiça que chegam a participar
praticar a usura em relação aos seus irmãos, dizendo, em seguida, que de seu caráter, mantendo ainda características especiais e distintivas
devemos tratar todos como irmãos e vizinhos (S.T. IIa-IIae, 78,l). Sto. próprias. Sto. Tomás chama-as de "partes potenciais7' da justiça.
Tomás poderia ter feito a distinção que escritores posteriores, inte- A primeira e mais importante delas é o que, na justiça, é devido a
ressados na legitimação do capitalismo, fariam entre o fato de uma Deus através da observância religiosa. Sto. Tomás enfatiza que a vir-
A visão de Sto. Tomás sobre a justiça
A visáo de Sto. Tomás sobre a justiça e a racionalidade prática 221
220 e a racionalidade prática
dinária de tópicos que compreende dentro de seu próprio esquema de
tude específica da religião é uma virtude moral e não teológica (S.T. ordenação racional - algo que, espero, tenha sido ao menos sugerido
IIa-IIae, 81,4), exigindo de nós devoção, oração, adoração, sacrifício e através de meu próprio catálogo mínimo - assim como o tratamento
oferendas, apoiando as instituições de observância religiosa. Somos pormenorizado que cada tópico particular recebe, algo que só pode ser
também convocados a louvar a Deus com palavras e música. A supersti@o, apreciado se formos diretamente aos textos. Sobre um assunto, en-
o interesse na adivinhação, o desafio a Deus, o perjúrio, os atos de tretanto, é necessário fazer um comentário adicional, em função até
sacrilégio e a tentativa de adquirir bens espirituais com dinheiro são os mesmo da compreensibilidade limitada: Sto. Tomás tratara da justiça e
vícios correlativos à virtude da religião. da injustiça da guerra ao longo de seu tratamento inicial da caritas na
Summa e foi presumivelmente por isso que não remeteu a este assunto
Numa sociedade na qual a verdade da religião cristã foi reconhe- na discussão da justiça.
cida, a religião implica também o reconhecimento político; Sto. Tomás
tinha observado anteriormente: "O poder secular deve submeter-se ao Uma guerra justa exige que uma sociedade política tenha sido gra-
poder espiritual assim como o corpo deve submeter-se à alma e, por- vemente ofendida e que o inimigo tenha se recusado a oferecer indenização
tanto, a jurisdição não será usurpada se um prelado espiritual intervier ou restituição; é necessário que a guerra seja declarada por uma autoridade
nos assuntos temporais quando se trata de coisas que lhe foram cedidas soberana antes que as hostilidades tenham começado; e é necessário
ou em relação às quais o poder secular lhe é submisso" (S.T. IIa-IIae, que sejam impostas limitações rigorosas quanto aos meios que podem
60,6). Sto. Tomás explicitou o significado disso em outras obras: o ser empregados e ao espírito em que a guerra deve ser conduzida.
papa tem autoridade legítima sobre os governantes seculares; C, nesse Assim como em relação aos atos bons e maus, em geral, a bondade dos
mundo, "a cabeça da respublica de Cristo" (Contra Errores Graecorum atos de guerra exige que preencham a condição de ação justa em todos
11, 32) em virtude de sua posição na ecclesia (ver também Comentário os aspectos, enquanto a falha em qualquer um desses aspectos torna a
sobre as Sententiae II,44 e S.T. IIIa, 8,l). Quanto a isso, Sto. Tomás foi guerra injusta e más as ações dos nela envolvidos.
claramente o herdeiro da teologia política de Gregório VI1 e, como era
de se esperar, voltou a sustentar uma posição marcadamente contrária
A quem se dirigia Sto. Tomás nos seus comentários sobre a guerra
à da modernidade secular liberal.
e na sua discussão da justiça em geral? Ele era um mestre dos mestres
e conselheiro dos conselheiros. Tanto o âmbito geral como o particular
A discussão, na Summa, da virtude da religião é seguida por uma de suas discussões refletem a variedade de pessoas e problemas com os
discussão de outras partes potenciais da justiça, começando pelas vir- quais e através dos quais esses mestres e conselheiros eram convocados
tudes da piedade, da observância e da atribuição da honra. Em cada a realizar tarefas que exigiam julgamentos morais e políticos. A ordem
uma delas, o que devemos a Deus é acompanhado por um dever com dominicana era, na pessoa de Sto. Tomás e de outros, uma presença
relação aos outros; a piedade, por exemplo, implica o respeito ade- pedagógica, não apenas nas universidades e nos studia, e não apenas
quado não só a Deus, mas também aos pais, à família e à pátria, assim em inúmeras dioceses e paróquias, mas também nas cortes francesa e
como a observância exige o respeito pela excelência nos outros. Em papal, assim como nas instituições que administravam a lei, eclesiás-
seguida nos apresenta concepções da virtude da obediência aos supe- tica e secular. Sto. Tomás, como Aristóteles antes dele, tinha a tarefa
riores legítimos, da gratidão aos benfeitores, da reivindicação da jus- de instmir alguns dos participantes dos principais conflitos e divergências,
tiça para restaurar o que foi violado pelo malfeito, da veracidade, da institucionais e políticos, de sua época ou, pelo menos, de instruir seus
amabilidade e da generosidade (S.T. IIa-IIae, 101-119). Finalmente, Sto. instrutores.
Tomás relata a substância do que Aristóteles tinha dito sobre epieikeia,
Já enfatizei a extensão da discrepância entre sua compreensão da
acrescenta ao que já tinha dito sobre a piedade como virtude natural
justiça e as atitudes típicas da modernidade liberal contemporânea. 6
uma pequena explicação da mesma enquanto virtude sobrenatural, e
igualmente importante enfatizar o quanto os padrões que propunha a
conclui toda sua discussão sobre a justiça com uma demonstração de
seus contemporâneos do século XIII implicavam uma ruptura radical
como a justiça é completamente especificada nos Dez Mandamentos.
com os padrões convencionais da época e com as argumentações
O que diferencia a compreensão da justiça de Sto. Tomás de outras comumente utilizadas na sua justificação. Consideremos o rigorismo
compreensões filosóficas e teológicas, inclusive as de seus contem- de Sto. Tomás no que diz respeito a dizer a verdade e mentir. Segundo
porâneos ou quase contemporâneos, é, em parte, a variedade extraor-
A visão de Sto. Tomás sobre a justiça A visão de Sto. Tomás sobre a justiça
222 e a racionalidade prática e a racionalidade prática 223

Sto. Tomás, não devemos nunca afirmar qualquer coisa que não acre- mais fundamentalmente, não podia aceitar nada de nenhum deles que
ditemos verdadeiro. Não temos a obrigação de dizer tudo o que sabe- fosse inconciliável com as Escrituras.
mos; quando falar e quando não falar é uma questão relativa a outros
deveres e obrigações, à discrição e ao exercício da prudência. Mas não Consideremos o tratamento dado por Sto. Tomás à injustiça. Ao
podemos nunca mentir, nem visando ao lucro, nem por conveniência, concordar com Aristóteles que cada virtude é exercida de acordo com
nem por prazer, nem para causar dor ou problemas a alguém. Mentir, uma média (S.T. Ia-IIae, 64,2), ele, entretanto, não chega ao ponto de
em si mesmo, é um mal, e mentir com malícia é um pecado mortal compreender a justiça como uma virtude intermediária entre dois víci-
(S.T.IIa-IIae, 109 e 110). os, como Aristóteles. A injustiça é, por assim dizer, um vício com um
único propósito, o de estar deliberadamente disposto a opor-se aquilo
No terceiro artigo da Quaestio 110, Sto. Tomás relaciona seis ar- que é exigido pela justiça (S.T. IIa-IIae, 59). Pode-se opor à justiça
gumentos em favor da visão de que mentir é às vezes permitido, inclu- atribuindo a alguém mais ou menos do que lhe é devido e nisso o
sive o argumento de que uma mentira, enquanto mal menor, pode ser padrão da média pode ser discernido. Mas o modo particular no qual
usada para impedir um mal maior, tal como matar ou ser morto. Sua a justiça é desconsiderada é menos importante do que a vontade de
rejeição desses argumentos expressa a convicção de que os preceitos fazê-lo. E quanto a isso Sto. Tomás segue Agostinho e não Aristóteles.
da justiça não são meios concebidos para garantir um fim exterior, tal
como o sucesso político ou a segurança mundana, mas são elementos Entretanto, Agostinho considerara a injustiça fundamentalmente como
constitutivos das relações através das quais e nas quais vivemos a vida um sinal de orgulho, o pecado e o vício residindo no orgulho. Contra
justa, cujo fim é o nosso fim verdadeiro e último. A medida que minto, Agostinho, Sto. Tomás argumenta que a injustiça é um vício e um
torno-me o tipo de pessoa injusta incapaz de alcançar meu fim último. pecado distinto, não podendo ser simplesmente assimilado ao orgulho.
Disso derivam algumas considerações imediatas: minha responsabili- Suas razões para insistir nisso referem-se ao orgulho e à injustiça e
expressam sua preocupação com as estruturas particulares e diferenci-
dade por evitar, através de algum outro meio, o mal maior, em face do
adas da vida prática. O orgulho (superbia), na sua visão, está realmente
qual sou tentado a mentir, é tanto maior e, se o mal for grande o
ligado à injustiça, como o vício que dispõe alguém a fazer de si mesmo
suficiente, mesmo o sacrifício de minha própria vida pode ser exigido
ou a apresentar-se como sendo mais do que é. É a auto-estima exces-
para garantir que seja evitado. siva que informa a vontade de alguém, de modo a atribuir falsamente
O conjunto de argumentos contra essa posição, rejeitado por Sto. aos seus próprios poderes todas suas excelências genuínas, a fingir
Tomás, era, naturalmente, utilizado por muitos de seus contemporâneos possuir excelências que de fato não possui e arrogar-se uma posição
nas discussões do século XIII. Dizer aos poderosos que mentir lhes é em que possa desprezar os outros, justificando, assim, sua malícia em
proibido é umaatitude tão impopular no século XIII quanto no século relação a eles. É, acima de tudo, uma recusa deliberada em reconhecer
XX. Entretanto, o que falta à sociedade política do século XX, diferen- a Deus o que lhe é devido e submeter-se a ele. S. Gregório Magno
temente da sua equivalente do século XIII, é a existência, no seu meio, compreendeu o orgulho como estando presente em todos os vícios e,
de um corpo influente de protagonistas de uma proibição absoluta da portanto, não especialmente ligado a nenhum deles. E nisso Sto. Tomás
seguiu Gregório Magno (S.T. IIa-IIae, 162).
mentira; mais ainda, falta a apresentação dessa proibição enquanto parte
de um corpo de pensamento que reivindica merecer a adesão intelec- A importância da identificação e caracterização precisa dos vícios,
tual e a adesão moral dessa sociedade. feita por Sto. Tomás, não está apenas em seu esquema teórico. A ex-
periência humana central da lei natural, como observei anteriormente,
Essa última reivindicação era, naturalmente, um pressuposto do é a nossa inabilidade em viver de acordo com ela; e o que sabemos a
conjunto e do particular do tratamento da justiça feito por Sto. Tomás. respeito da justiça aplica-se à sua desconsideraçáo, tão frequentemente
Contra os aristotélicos contemporâneos, Sto. Tomás estava determina- quanto ou mais frequentemente do que, na sua observância. Portanto,
do a mostrar que, tanto naquilo que aceitou de Aristóteles, como no também como disse anteriormente, não é por acidente que a discussão
que retificou ou dispensou, chegou genuinamente a um acordo com as sobre a lei, feita por Sto. Tomás na Prima Secundae, conduz direta-
argumentações de Aristóteles. Da mesma forma, contra os agostinianos mente ao tratamento da graça, a Única solução para a desobediência da
contemporâneos, estava comprometido com um tratamento dos textos lei, e que a explicação das virtudes naturais na Secunda Sectlndae
patrísticos e agostinianos que reconhecia o que Ihes era devido. E, tivesse de ter seu prólogo numa pesquisa das virtudes sobrenaturais.
A visão de Sto. Tomás sobre a justiça A visão de Sto. Tomás sobre a justiça
224 e a racionalidade prática e a racionalidade prática 225

Pois, por ser continuamente vítima do vício e do pecado do orgulho, a deveriam ser resolvidas quando escritores autorizados entrassem ou
justiça não pode florescer e, na verdade, não pode sequer existir en- parecessem entrar em conflito. O primeiro gerou o conceito de distinctio;
quanto virtude natural, a não ser que e à medida que seja informada o segundo, o de quaestio. Ao mesmo tempo, os estudiosos inovavam,
pela virtude sobrenatural da caritas. A caridade é a forma de toda virtude; frequentemente a partir de heranças fragmentadas ou malcompreendidas,
sem a caridade, as virtudes não teriam o tipo específico de retidão de tratando da lógica, da dialética e da compreensão da lei e da autoridade
que necessitam. E a caridade não pode ser adquirida através da educa- política. Quando a redescoberta de tanto material da autoria de Aristó-
ção moral; é um dom da graça, originando-se da ação de Cristo através teles, até então não disponível, juntamente com seus intérpretes islâmicos
da mediação do Espírito Santo (S.T. IIa-IIae, 23 a 44). e judeus, assim como o renascimento da teologia agostiniana forneceram
Argumentei anteriormente que Sto. Tomás não apenas complementa os esquemas dentro dos quais podia-se tentar compreender a relação
Aristóteles, mas que mostra como a compreensão de Aristóteles da entre esses empreendimentos, foi na organização formal dos debates e
teleologia da vida humana é radicalmente insuficiente. Essa insuficiên- das discordâncias registradas como quaestiones disputatae e quaes-
cia radical da compreensão revela-se, à luz dessas seções da Summa, tiones quodlibetales, e na elaboração das distinctiones, teológicas e
segundo Sto. Tomás, como sendo não tanto uma insuficiência na con- seculares aí implícitas, que a pesquisa finalmente encontrou os meios
cepção de Aristóteles, mas uma insuficiência radical na ordem humana para tomar-se simultaneamente compreensiva e sistemática. O passado
natural da qual Aristóteles dá uma explicação. Uma tese forte sobre as tinha fornecido um conjunto de auctoritates, sagradas e seculares. As
inadequações e falhas da ordem humana natural emerge, de modo que primeiras podiam ser reinterpretadas, mas não rejeitadas. As últimas só
a relação do aristotelismo de Sto. Tomás com sua adesão a Agostinho podiam ser rejeitadas quando houvesse razão suficiente para tal. A
aparece sob uma nova luz. A compreensão agostiniana da natureza pesquisa, portanto, tinha de proceder através da contraposição de au-
humana decaída é usada para explicar as limitações das argumentações toridades, no que diz respeito a teses e argumentações.
de Aristóteles, assim como o pormenor de Aristóteles frequentemente
corrige as generalizações de Agostinho. Muitos dos contemporâneos e sucessores imediatos de Sto. Tomás
reagiram, seja rejeitando uma grande parte de sua herança intelectual
Entretanto, o que fica claro é que a compreensão de Sto. Tomás só em favor da coerência sistemática, seja voltando-se para a pesquisa,
é completamente inteligível e defensável, à medida que emerge de uma paCo a passo, de áreas particulares e elaborando soluções para proble-
ampla e complexa tradição de argumentação e conflito que inclui muito mas particulares, baseados num conjunto de perspectivas bem-delimitadas.
mais do que Aristóteles e Agostinho. A idéia de separá-la dessa tradi- A primeira reação caracterizou não apenas os agostinianos que rejeita-
ção e apresentar suas alegações, em termos de critérios supostamente
ram Aristóteles, com medo de aceitar o averroísmo, mas também os
neutros de uma racionalidade compreendida independentemente de
qualquer tradição teórica e prática, não faz nenhum sentido, pois o que discípulos de Alberto que desenvolveram um ou outro aspecto da sua
emerge desse fundo de tradição do qual Sto. Tomás tomou-se herdeiro obra em detrimento do resto. A última reação é apresentada pelos' que
e t justificado por ele é, justamente, uma concepção dos crittrios de compartimentaram, mais ou menos, suas pesquisas, de modo que os
racionalidade e do papel desempenhado pelas virtudes no exercício da estudos lógicos procediam independentemente das pesquisas em teologia
racionalidade. e, ambos, igualmente independentes dos escritos sobre ética e política,
de um modo que prenuncia a compartimentação da pesquisa posterior.
A reação de Sto. Tomás a essas tradições foi bem diversa da de seus
contemporâneos ou da de seus sucessores. Há uma história, apenas Nenhum dos dois partidos compreendeu completamente a idiossincrasia
parcialmente escrita, dos estágios que compuseram o contexto no qual do projeto de Sto. Tomás: desenvolver o trabalho da construção dialética
emergiu o empreendimento de Sto. Tomás. O renascimento dos estu- sistematicamente, de modo a integrar toda a história anterior da pes-
dos, nos séculos XI e XII, tinha gerado dois tipos diferentes de em- quisa, à medida que a conhecia, na sua própria. Sua contraposição de
preendimento, simultaneamente. Um tipo de empreendimento intelec- autoridades foi concebida para mostrar o que, em cada uma delas,
tual eram os comentários, especialmente das Sagradas Escrituras; o outro, resistia ao teste dialético de todos os pontos de vista até então desen-
produzido a partir do primeiro, era uma série de teses sobre os diversos volvidos, com o objetivo de identificar as limitações de cada ponto de
tipos e níveis de significado que poderiam ser encontrados num texto, vista e o que, em cada um deles, não podia ser impugnado nem mesmo
juntamente com uma série de problemas sobre como as divergências pelo mais rigoroso dos testes. Donde a reivindicação, implicitamente
A visdo de Sto. Tomás sobre a justiça
226 e a racionalidade prática

feita por Sto. Tomás, contra qualquer rival do passado, de que a par-
cialidade, a unilateralidade e as incoerências do ponto de vista desse
rival já teráo sido superadas no sistema não acabado apresentado na
Summa, enquanto seus pontos fortes e aquisições teráo sido incorpora-
dos e, talvez, reforçados. Contra qualquer rival do futuro, a reivindica-
ção correspondente seria que ele também poderia entrar na confronta-
Capítulo XII
çáo dialética em qualquer momento relevante e que o teste, do ponto
de vista de Sto. Tomás, estaria na sua habilidade de identificar as
limitações e de integrar as forças e as aquisições de cada rival na sua
estrutura geral. O SUBSTRATO
É típico da história intelectual, assim como da história social, en- AGOSTINIANO E ARISTOTÉLICO
tretanto, estar sempre sujeita a uma variedade de contingências náo DO ILUMINISMO ESCOCÊS
relacionadas. E assim ocorreu com o ponto de vista de Sto. Tomás que,
exceto na teologia católica romana, gerou principalmente mais uma
tradiçáo de comentários defensivos, em vez de uma habilidade de en-
frentar seus maiores adversários. O que efetivamente aconteceu foi que
esses adversários conseguiram determinar os termos do debate filosó-
fico público, nos séculos XV e XVI, de modo que os seguidores de A renovaçáo dos estudos aristotélicos, no século XVI, sem falar na
Sto. Tomás tiveram de enfrentar um dilema, embora nem eles nem seus renovaçáo dos modos de pensamento e açáo aristotélicos, tem sido
opositores o reconhecessem. Ou bem se recusavam a aceitar os termos objeto de pesquisas históricas apenas preliminares (ver especialmente
do debate contemporâneo e assim se isolavam e eram tratados como Charles B. Schmitt, Aristotle and the Renaissance, Cambridge, Mass.,
irrelevantes, ou cometiam o erro de aceitar esses termos e assim pareciam 1983). Seu florescimento contínuo em círculos protestantes e católicos,
ter sido derrotados. No século XIII, Sto. Tomás tinha insistido em durante o século XVII, é parte de uma história ainda quase totalmente
estabelecer os termos do debate e da pesquisa. O erro de seus herdeiros por ser escrita. O uso renovado da Ética a Nicômaco e da Política na
dos séculos XV e XVI foi, geralmente, senão sempre, náo ter percebido educação ensinava os jovens a continuar a pensar em termos de um
a necessidade de fazê-lo ou ter falhado nessa tentativa. ultimus finis da vida humana, no mesmo período em que os modos
Quando, portanto, o aristotelismo renasceu dramaticamente nas teológicos de pensamento estavam sendo sistematicamente rejeitados
universidades do século XVI, foi Aristóteles, sem Sto. Tomás, quem na física e metafísica ascendentes. E a concepçáo aristotélica das vir-
dominou parcialmente a cena intelectual. A Ética a Nicômaco e a Política tudes continuava a fornecer-lhes um padráo de excelência natural ao
novamente tomaram-se textos pedagógicos fundamentais. Mas Aristó- mesmo tempo em que teólogos luteranos, calvinistas e jansenistas,
teles, revivido dessa forma, teve de ser defendido num ambiente no ensinavam que o fim principal sobrenatural revelado dos seres huma-
qual os seus conceitos pareciam cada vez mais irrelevantes, prática e nos era um fim em cuja luz a imperfeição radical de toda excelência
teoricamente. O tipo de contexto de pesquisa que a universidade do meramente natural podia ser discernida.
século XIII tinha propiciado, no qual a relação dos textos de Aristóte- Era de se esperar que essa coexistência do aristotelismo na esfera
les com outros textos tinha sido elaborada, náo encontrou nenhum moral com uma variedade de teologias agostinianas e com modos de
equivalente adequado nos séculos XVI e XVII. Conseqüentemente, não teorizaçáo nas ciências cada vez mais anti-aristotélicos se revelasse
foi tanto a recuperação do aristotelismo, mas sua rejeiçáo que produziu frágil. Mas o que mais profundamente levou a maior parte das classes
novos modos de teorizar sobre a racionalidade prática e a justiça, numa cultas européias a rejeitar o aristotelismo como um esquema para a
época em que os novos modos da vida social tomaram tal inovação, compreensáo de sua vida moral e social comum foi talvez a descoberta
mais uma vez, praticamente importante. gradual, durante e após os conflitos selvagens e persistentes da época,
de que nenhum apelo a qualquer concepçáo comum do bem para os seres
humanos, seja no nível prático ou no nível teórico, era então possível.
228 O substrato agostiniano e aristotélico do iluminismo escocês O substrato agostiniano e aristotélico do iluminismo escocês 229

É, sem dúvida, verdade que durante muito tempo os projetos de recon- como a pólis, seja dentro de uma ordem teologicamente compreendida
ciliação religiosa e social que expressaram tal apelo foram mais ilusó- e divinamente legislada -, que alguém pode vir a ter razões adequa-
rios do que reais. Mas mesmo um pensador do porte e da capacidade damente boas para aceitar e valorizar as imposições feitas pela ordem
de percepção de Leibniz ainda era capaz de entrever este resultado social e política dentro da qual faz o que o seu papel exige. Pois em
prático como um dos objetivos realistas não apenas da negociação política, tais visões antigas e medievais, como argumentei, os bens que me
mas também de uma teologia racional que expressasse uma concepção proporcionam tais razões só devem ser apreendidos através da experiência
comum e decisiva do bem. do tipo de vida humana estruturado por tais papéis.
Todos esses projetos falharam, inclusive o de Leibniz, assim como Naturalmente, não era que tais pensamentos não pudessem mais ser
todas as tentativas de impor através de armas um tipo de acordo que considerados. Continuava a haver aristotélicos e tomistas, e entre eles
os moralistas racionais eram incapazes sequer de formular satisfatoria- até mesmo, ocasionalmente, o teórico político excêntrico que refletia a
mente, menos ainda de sustentar. As tarefas práticas principais da pesquisa partir de tais concepções antigas e medievais da organização política.
e da construção moral foram, conseqüentemente, transformadas a partir Mas seu pensamento era marginalizado e tornado irrelevante justamente
do final do século XVII. A partir de então era de se supor que uma porque ia contra os pressupostos da questão política dominante. O domínio
grande diversidade de concepções rivais e incompatíveis do bem ob- permanente dessa questão era garantido pela natureza das asserções
tivessem a adesão de uma variedade de grupos antagonistas. A questão das duas instituições dominantes, o Estado moderno emergente e a
prática tornou-se então: que tipo de princípios podem exigir e garantir crescente economia de mercado. Os governantes do Estado moderno
a adesão a uma forma de ordem social na qual os indivíduos que buscam alegavam ser capazes de justificar sua pretensão de autoridade e seu
concepções diversas e incompatíveis do bem possam viver juntos sem exercício de poder à medida que ofereciam aos governados o que podia
rebeliões e guerras internas? As respostas diferentes e conflitantes que ser identificado como benefícios e proteção contra os males, inde-
foram dadas a essa questão, assim como a própria questão, pressupunham pendentemente da concepção do bem humano que governantes ou !
a posse continuada de um acervo partilhado, embora mutável, de conceitos governados tivessem, se é que tinham alguma. Os promotores da economia
através dos quais as relações humanas deveriam ser descritas, explicadas de mercado, cujo novo domínio ampliado e;a tanto conseqüência como
e justificadas, juntamente com uma compreensão amplamente com- causa do modo no qual a família finalmente deixou de ser o locus
partilhada dos problemas implícitos em tal descrição, explicação e básico da produção, alegavam ser capazes de justificar a transformação
justificação. Certos aspectos desse acervo partilhado de conceitos e da terra, do trabalho e do próprio dinheiro em mercadorias à medida
i
dessa problemática partilhada emergiram como particularmente im- que o mercado oferecia benefícios àqueles que dele participavam, be-
portantes. nefícios que podiam ser compreendidos como tais, independentemente
Um desses aspectos refere-se à relação dos indivíduos com seus das concepções específicas do bem (ver Karl Polanyi, The Great
papéis sociais dentro de uma ordem social e política hierarquicamente Transformation,Nova Iorque, 1944, ainda a concepção mais esclarecedora
estruturada. "O indivíduo" era, a partir de então, concebido como uma do advento da modernidade institucionalizada; para avaliações mais
das categorias fundamentais, senão a mais fundamental, do pensamento recentes dessa obra ver Charles P. Kindleberger, "The Great
e da prática sociais. Os indivíduos são vistos como possuindo identi- Transformation by Karl Polanyi", Daedalus 103, 1, 1973, e Fred Block
dade e capacidades humanas essenciais independente e anteriormente à e Margaret R. Somers, "Beyond the Economistic Fallacy: The Holistic
sua participação numa ordem social e política particular. A questão Social Science of Karl Polanyi", Vision and Method in Historical
central posta aos indivíduos concebidos dessa forma é: o que lhes Sociology, ed. Theda Skocpol, Cambridge, 1984).
proporciona boas razões ou, pelo menos, motivação adequada para que Qualquer resposta à questão política dominante pressupunha res-
se submetam 21s imposições de uma ordem social e política particular? postas a duas outras questões intimamente relacionadas, e qualquer
A própria forma da questão impedia que aqueles que a formulavam tentativa sistemática de responder a essa questão dominante não podia
considerassem as concepções antigas e medievais, nominalmente aquelas evitar, implícita ou explicitamente, propor respostas a essas outras
concepções segundo as quais é apenas enquanto um habitante já auto- questões. A primeira delas referia-se à natureza do raciocínio prático;
-identificado de um papel social - seja dentro de uma instituição, tal a segunda, à da justiça. Se os indivíduos deviam, de um modo geral,
230 O substrato agostiniano e aristotélico do iluminismo escocês O substrato agostiniano e aristotélico do iluminismo escocês 231

aceitar como razoáveis as imposições de uma ordem social e política para servir a novos propósitos, ou alguma nova compreensão da justi-
sobre sua busca de uma variedade de objetivos heterogêneos, inspira- ça, especificamente concebida para as novas circunstâncias, teria de
dos por uma série de concepções diferentes e incompatíveis do bem ser elaborada. Desse modo, qualquer compreensão bem-articulada dessas
humano, esses indivíduos deviam também, de um modo geral, compar- ordens sociais e políticas que emergiram dos conflitos do século XVII,
tilhar padrões de iaciocínio prático através dos quais duas característi- estruturadas nos conceitos disponíveis àqueles que agora, no século
cas de seu raciocínio pudessem ser justificadas. Pois, de acordo com XVIII, as habitavam, tinha de oferecer uma compreensão racionalmen-
seus padrões, certos tipos de razão para a ação -razões que os levavam te defensável de três tópicos básicos inter-relacionados: a autoridade
a aceitar, endossar e reforçar as imposições da ordem social e política política, a racionalidade prática e a justiça.
- devem receber o estatuto de boas razões, independentemente de
qualquer relação com qualquer concepçáo particular do bem. A dis- Uma tal compreensão tinha de ser construída a partir de três tipos
cordância, mesmo a discordância radical, sobre o bem tinha de ser de elementos: uma concepção das paixões e dos interesses que moti-
compatível com o acordo em reconhecer a autoridade de tais razões. E vam a ação, uma concepção dos princípios compreendidos pela razão,
isso apenas seria suficiente para tornar tal modo de raciocínio prático aos quais pode-se recorrer em questões políticas e morais, e uma concepçáo
incompatível com o modo aristotélico. do lugar da ação humana na ordem do universo, tanto a ordem da
natureza como a ordem da providência divina, cuja crença ainda era
Além disso, essas razões que deviam ser consideradas razões ade- amplamente compartilhada por aqueles que, de outra forma, sustentavam
quadamente boas para se aceitar, endossar e reforçar as imposições da visões teológicas conflitantes. Surgem questões sobre cada um desses
ordem social e política devem ser tais que, de um modo geral, se elementos e sobre sua relação, às quais mais de um tipo de resposta
sobreponham, quando em conflito, às razões para a ação cuja autori- pode ser dado. As paixões são a força motivadora exclusiva da ação
dade e força derivaram de alguma concepção particular do bem. Assim, humana? Quando o cálculo racional mostra a alguém que a expressão
tinha de haver um modo de ordenar hierarquicamente as razões para a de uma paixão, sentida atualmente na ação, não for favorável ao seu
ação, que fosse novamente não apenas não-aristotélico, mas anti- interesse a longo prazo, como deve essa paixão ser inibida? A razão
-aristotélico. pode ser uma força independentemente motivadora? Que considerações
Um segundo grupo de questões referia-se à natureza da justiça. propostas pela razão podem produzir um motivo suficiente para o
Qualquer compreensão racionalmente defensável do que se tinha tor- comportamento justo, quando não é do interesse de alguém ser justo? I

nado ou deveria tornar-se o tipo dominante de ordem social e política H i uma ordem das coisas, natural ou providencial, tal que se os indivíduos
tinha de enfrentar a questão dos papéis respectivos a serem desempe- buscarem seus próprios interesses, o interesse de manter a ordem social
nhados, na manutenção dessa ordem pelo acordo, por um lado, e pela e política será atendido? (Para uma explicação da história da estruturação
coerção, por outro. A maioria dos Estados europeus garantira a ordem dessas questões ver Albert O. Hirschman, The Passions and the Interests,
interna, depois dos conflitos internos e externos dos séculos XVI e Princeton, 1977).
XVII, através de acordos impostos. Se o recurso à violência não fosse
Dois tipos opostos de resposta a essas questões tornar-se-iam par-
renovado, o acordo tinha de ser considerado pelo menos minimamente
ticularmente influentes, e cada um deles deveria apresentar seus pró-
aceitável, e sua aceitabilidade exigia uma resposta a questões tais como:
prios problemas particulares, sua própria vulnerabilidade prima facie
com que princípio de ordem social e política é razoável concordar? Até
às objeções. Por um lado, era possível compreender a obediência a
que ponto a obediência a tais princípios pode ser exigida? Que tipo de
princípios tais como os da justiça ou àqueles que determinam a legi-
força pode ser razoavelmente empregada para se forçar tal obediência
timidade da autoridade política como um meio de promover os inter-
quando não é alcançada voluntariamente?
esses de grupos e de compreender os interesses como a expressão coletiva
Essas eram versões de questões As quais respostas tinham sido até das paixões dos indivíduos. Os princípios, portanto, servem aos propósitos
então oferecidas através de crenças de justiça herdadas. E se agora tanto do interesse como da paixão, e reconhecer isso significa reconhecer
essas questões deviam ser postas a partir de novos pressupostos que também que é irracional obedecer a um princípio, quando fazê-lo não
conceitualizassem as realidades sociais de novas maneiras, alguma serviria ou não mais serviria aos propósitos do interesse e da paixão
concepçáo mais antiga da justiça teria de ser transformada o suficiente que oferecem àquele princípio universal sua justificação. Naturalmen-
232 O substrato agostiniano e aristotélico do iluminismo escocês O substrato agostiniano e aristotélico do iluminismo escocês 233

te, os indivíduos às vezes cometem erros, seja quanto à relação entre Esses dois modos rivais de compreender a relação entre os princí-
os princípios em geral e as paixões e interesses, seja quanto ao propó- pios e as paixões e os interesses enfrentou um outro, na primeira metade
sito atendido por um princípio particular, e, ao cometer erros, não do século XVIII, de dois modos bastante diferentes, como teorias filo-
conseguem reconhecer e reagir à sua própria motivação. Mas aqueles sóficas opostas competindo num debate acadêmico, mas também, e
que têm uma visão mais clara compreenderão que os seres humanos, mais fundamentalmente, como modos alternativos de moldar a existência
quer o reconheçam ou não, são inevitavelmente criaturas de paixão e social, enquanto crenças sistematicamente expressas em ações e tran-
interesse. sações da vida social e política institucionalizada e pressupostas por
ela. Que tipo de ordem social e política exemplificava cada uma dessas
No entanto, permanecia possível compreender os princípios, de um alternativas?
modo bastante diferente, como tendo autoridade independentemente
das paixões e dos interesses, de modo que o recurso ao princípio contra Uma sociedade na qual os princípios estabelecidos podiam ser
compreendidos como instrumentos a serviço das paixões e dos interesses
as paixões e interesses de alguém pudesse ser não apenas racionalmen-
teria de ser aquela na qual as paixões e os interesses fossem, ou melhor,
te justificável como também eficaz em levar alguém a fazer algo que,
fossem tidos como organizados de modo a proporcionar a reciprocidade
nos níveis da paixão e interesse, seria em detrimento de si próprio. O
na satisfação e no benefício. O acordo, em princípio, teria de pressupor
problema central enfrentado por essa última visão é óbvio: como é uma convergência mais fundamental de interesses e paixões, e uma
possível à apreensão racional do princípio funcionar como motivação, ordem social e pública estável exigiria uma vontade favorável a essa
ainda mais de modo a que a paixão e o interesse sejam, pelo menos convergência, por parte de muitos, senão de todos os participantes; ela
temporariamente, privados de seu poder? O problema central enfrentado também exigiria o exercício de sanções que produzissem a submissão
por seu rival é o de como alguém movido apenas pela paixão e pelo de indivíduos ou grupos real ou potencialmente perturbadores. As ações
interesse poderia ser motivado - assim como alguns são motivados - e transações seriam caracterizadas e avaliadas tanto como sendo pro-
a obedecer a princípios de justiça, cuja obediência, pelo menos em duzidas pela satisfação ou frustração de desejos e aversões, isto é, de
algumas situações, os privaria da satisfação no nível da paixão e do paixões, como conduzindo a elas. A classificação social dos indivíduos
benefício no nível do interesse. seria em termos do que consomem e gostam de fazer ou, pelo menos,
Cada uma dessas concepções adversas da relação dos princípios com aspiram consumir e desfrutar, e em termos do que proporcionam ao
as paixões e os interesses mostrou-se, durante o século XVIII, capaz de consumo e prazer dos outros. As relações fundamentais da ordem social
seriam definidas, em termos de quem fornece o que para quem, e, de
fazer aliança com algum tipo de teologia embora, frequentemente, uma
quem ameaça as perspectivas de prazer e satisfação de quem, pelos
teologia vulgarizada e atenuada. Assim, mesmo na versão mais rudi-
modos no quais buscam seu próprio prazer e satisfação.
mentar da visão de que os seres humanos só são movidos por suas
paixões e interesses, a versão segundo a qual são movidos apenas pela Na Europa do século XVIII, não eram raros os exemplos de meios
perspectiva de uma vantagem voltada para si mesmos, era possível nos quais uma certa medida desse tipo de vida social podia ser encon-
argumentar - e alguns o fizeram - que Deus tinha - nos oferecido trada, mas o exemplo primordial de tal ordem deveria ser encontrado
uma visão dos prazeres a serem desfrutados e das dores a serem sofridas na Inglaterra. Roy Porter escreveu sobre os problemas que os grandes
numa vida após a morte que permitia ao calculador racional do interes- proprietários de terra enfrentavam na Inglaterra do século XVIII: "Os
se próprio uma boa razão para a obediência à vontade divina. E alguns magnatas estavam num dilema criado por eles mesmos. A ganância
daqueles que sustentavam que a razão apreende princípios independen- levava-os a maximizar o lucro agrário, o orgulho levava-os a desfrutar
tes da paixão e do interesse não tiveram dificuldade em incluir entre os de um luxo particular imperturbável - ambos implicando uma aliena-
princípios alguns referentes ao ser e à vontade da divindade. No entanto, ção da comunidade. Quanto mais ricos ficavam, mais cultivavam gostos
o modo no qual cada visão foi elaborada e defendida era cada vez mais - paladianismo, modas francesas, boas maneiras e conhecimento das
em termos de uma racionalidade puramente secular, uma racionalidade artes - que os elevavam acima de seus homens de confiança naturais,
através da qual a teologia foi gradualmente excluída de qualquer parte da rude nobreza rural e dos proprietários livres. ... E, ainda assim, a
substancial nas arenas da vida moral e política. L popularidade era sua salvação. Sem exércitos privados, no final tinham
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de governar através da vã ameaça e da ostentação. A autoridade s6 Elas ligam, não os indivíduos como tais, mas os indivíduos identi-
podia ser mantida com acordos conseguidos através de negociações ficados em termos dos recursos que possuem e aos quais podem recor-
duvidosas de intenções e de interesses, concessões mútuas... O jogo da 1
rer para contribuir para as trocas que constituem a vida social. Por-
confraternização, apesar de repugnante e falso, tinha de ser jogado" tanto, o indivíduo como proprietado, como proprietário ou como sem
(English Socies, in the Eighteenth Century, Hormondsworth, 1982, 79- propriedade, 6 a unidade da vida social, e as regras que governam a
80). distribuição e a troca de propriedade integram as regras que constituem
A chave para esse tipo de ordem social reside no caráter recíproco o sistema de trocas sociais. Posição social e poder dentro do sistema
das paixões das quais, segundo se acredita, deriva o comportamento. dependem da posse da propriedade; ser sem propriedade é ter apenas
Se eu devo alcançar, enquanto possível, o que me agrada e, enquanto o direito de ser uma vítima do sistema, seja de sua opressão ou de sua
possível, ser protegido do que me prejudica, isso só pode se dar se for caridade. E simplesmente porque as regras de propriedade são tão
agradável aos outros que eu alcance o que me agrada e se lhes for integradas ao funcionamento do todo e porque todos os recursos a padrões
prejudicial que eu seja prejudicado. Isso só ocorrerá se me agradar que de julgamento e ação retos são internos a este mesmo sistema, funcionando
os outros sejam agradados e se o fato de serem desagradados me for como expressões de atitude dentro dele, não pode haver, do ponto de
prejudicial. Mas tal reciprocidade de satisfação e insatisfação só pode vista desse tipo de ordem social e política, nenhum recurso bem-fundado,
ser expressa imperfeitamente em ordenações sociais reais. Alguns in- contra as relações de propriedade do status quo, a um padrão de direito
divíduos considerar-se-ão excluídos da reciprocidade de benefícios, outros externo à ordem social e política, a um padrão expresso em princípios
1 cuja verdade, seria independente das atitudes e julgamentos daqueles
serão enganados, e, quanto menos poder os indivíduos ou grupos tive-
que participam da ordem.
rem para conseguir sua satisfação ou a insatisfação de outros, menor
será a consideração que lhes é devida. Portanto, as sanções devem Qualquer recurso a tal padrão será compreendido, do ponto de vista
restringir o rebelde e o dissidente. E na Inglaterra do século XVIII as do próprio sistema, como tendo duas características proeminentes. Ele
regras de justiça ofereciam justamente tais sanções. Assim, por exem- marcará aqueles que lançam mão de tal recurso como desviantes,
6
plo, "para lidar com a polarização rural autocriada ...os nobres encenaram marginais, cujas motivações não estão em harmonia com a ordem es-
um teatro de poder mais cuidadoso: ameaça (e misericórdia) manifesta tabelecida de trocas e que são, pelo menos potencialmente, perturba-
do banco do juiz; punição exemplar atenuada com aparências de doras dessa ordem. Mas também terá de haver, da perspectiva permi-
filantropia, liberalidade e condescendência seletivas; uma exibição re- tida por esse ponto de vista, uma confusão intelectual envolvida em tal
lutante e calculada de noblesse oblige" (Roy Porter, op.cit., 81). recurso. Pois, aqueles que recorrerem a tal padrão estarão agindo como
se pudesse haver um padrão de julgamento e ação práticos, cuja auto-
Os padrões dominantes aos quais se apela nesse tipo de ordem social ridade fosse independente dos propósitos a serem servidos pelas insti-
serão tais que expressá-los significa endossar o ponto de vista de re- tuições políticas e sociais na manutenção da troca de benefícios e
ciprocidade mútua na troca de benefícios. Condenar uma ação ou uma satisfações. Pondo as coisas de uma outra forma: nada pode ser con-
transação significará expressar-se em relação a ela através da reação siderado uma boa razão para o julgamento e ação práticos, pelos pa-
negativa apropriada ao fracasso, no que diz respeito a tal reciprocida- drões propostos para a avaliação das razões e do raciocínio prático
de. Portanto, até mesmo o recurso a padrões - padrões morais, estéticos estabelecidos dentro desse tipo de ordem social e política, a não ser
e políticos para o julgamento e a ação retos - significará um tipo de que se possa motivar aqueles cuja única preocupação é com o tipo de
participação nas transações comuns da troca social. Os próprios pa- satisfação e benefício que a ordem proporciona. Portanto, seria con-
drões funcionarão dentro desse tipo de ordem política e social e como cluído por um adepto adequadamente reflexivo de tal ordem estabe-
uma de suas expressões. O pronunciamento de um juízo que isto ou lecida, que não pode haver nenhuma boa razão para se recorrer a um
aquilo deve ser aprovado ou desaprovado será, ele próprio, mais uma padrão externo à ordem.
ação realizada e compreendida a partir da rede de relações constituídas Os nobres e senhores rurais da Inglaterra do século XVIII eram
por essas trocas que expressam os interesses e paixões dos participantes frequentemente bem-articulados, mas raramente reflexivos o suficiente
desse tipo de vida social. Essas relações vigoram entre que pessoas? 4 para formular essa visão por conta própria. Essa formulação seria feita
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para eles, mais tarde no século XVIII, por Edmund Burke, cuja retórica ainda mais radicais, os Levellers e Diggers, que tinham atacado as relaçóes
oferecia simultaneamente uma defesa da ordem estabelecida, que recorria de propriedade estabelecidas. Do ponto de vista dos princípios de jus-
apenas a valores já reconhecidos nas trocas de benefícios e satisfações tiça que expressavam a concordância dos interesses e as paixões dos
que parcialmente constituíam essa ordem, assim como um ataque a participantes da ordem estabelecida, tal dissidência, se expressa na ação,
qualquer recurso a princípios teoricamente fundados que pretendessem só podia resultar na injustiça do crime ou da rebelião.
ter uma autoridade independente daquela conferida internamente. Três
características da posição de Burke são esclarecedoras. A primeira é o Talvez não tenha sido por acidente que a ordem estabelecida ingle-
modo no qual Burke teve, primeiro, de se tornar um membro da ordem sa só pôde finalmente encontrar um campeão retórico eficaz recrutando
estabelecida inglesa para poder falar de dentro dela. Não lhe era permitido um irlandês renegado. Pois se Burke só foi capaz de expressar e endos-
defender essa ordem estando de fora, à medida que era irlandês; teve sar as avaliações internas à ordem social inglesa estabelecida tendo
de se transformar num proprietário inglês para imaginar-se ou reimaginar- entrado nela e se identificado, de dentro, com o ponto de vista dos
-se como um gentleman inglês. participantes proprietados, também tinha tido a vantagem de vê-la pri-
meiramente de fora, o tipo de visão da relação das partes de um sis-
Em segundo lugar, Burke chama nossa atenção para o fato de que tema social com o todo que é frequentemente negado aos que habitam
qualquer exemplo estável e duradouro desse tipo de ordem terá de ter esse sistema. Pois, afinal de contas, são, eles próprios, partes desse
sido capaz de adaptar-se bem às circunstâncias mutáveis, reprimindo sistema, encontrando outras partes, uma a uma, nos encontros cotidi-
um grupo, repelindo outro ou cooptando outro ainda, de modo que um anos, mas não tendo acesso à visão do todo como um todo. E assim
mesmo e único sistema possa, em momentos diferentes, aumentar ou ocorria com aqueles cuja causa Burke advogava. Mas o próprio Burke
diminuir os tipos de benefícios conferidos dentro dele e as posições tinha sido capaz de examinar o tipo de vida proporcionado pelo sis-
daqueles que a eles têm acesso. Essa história será também, inevitavelmente, tema social inglês dominante como uma alternativa ao tipo de vida que
uma história da adaptação do princípio às circunstâncias. Será uma
poderia ter desfrutado, se tivesse escolhido viver pelos princípios da
história na qual nenhum princípio terá sido isento de reavaliação e
família irlandesa de sua mãe católica ou pelos princípios de seus mes-
revisão periódicas, à luz de seu sucesso ou fracasso em servir aos
tres quakers.
propósitos de garantir benefício e satisfação dentro das trocas da vida
social. Essa habilidade de examinar o sistema social inglês dominante de
Em terceiro lugar, Burke, através da identificação de seus antago- fora não era, obviamente, privilégio apenas dos que não eram ingleses.
nistas na Inglaterra e na França, lembra-nos de que o recurso a prin- Cobbett, por exemplo, mais tarde, iria examiná-lo do ponto de vista de
cípios que reivindicam uma autoridade independente daquela conferida uma Inglaterra alternativa, uma Inglaterra ainda com raízes anteriores
a eles pela ordem política e social estabelecida tinha, na verdade, definido à Reforma; e ninguém foi melhor sucedido na destruição da visão ide-
a oposição de vários grupos à ordem estabelecida ao longo do século ológica que Burke legou a seus sucessores que Cobbett. No entanto, o
XVIII. Eu disse que o tipo de ordem política e social estabelecida, que que a Inglaterra realmente era, e o que exigia daqueles que aderiam à
descrevi, tem sua mais completa exemplificação na Inglaterra. Mas é sua ordem estabelecida, principalmente talvez no início do século XVIII,
igualmente importante assinalar que, na Inglaterra, sempre teve de coexistir podia ser visto de maneira particularmente clara por aqueles para quem
com uma variedade de dissidentes, geralmente dissidentes com uma a entrada naquela ordem enquanto indivíduos e, realmente, a possibilidade
teologia menos capaz de incorporação complacente ao estado de coisas da assimilação de suas instituições às instituições da ordem social inglesa
socialmente dominante do que a religião, tão cara a Burke, da maioria representavam uma das duas formas alternativas de vida social que se
dos dignitários anglicanos. Os antagonistas imediatos do próprio Burke lhes apresentavam. Essa era especialmente a situação de jovens esco-
tinham sido educados nas casas de reuniões e academias do tipo de ceses cultos, na primeira metade do século XVIII.
protestantismo inglês que reivindicava para si próprio o vaidoso nome
de "Antiga Dissidência". Mas a lista de outros dissidentes passados e Quando, em 1707, a Escócia perdeu a soberania, nominalmente para
presentes incluía jacobitas não-juramentados e católicos romanos, as- uma nova entidade, o Reino Unido, mas de fato para um parlamento
sim como os republicanos ingleses da Commonwealth, e os puritanos inglês permanente em Westminster, aumentado em apenas dezesseis
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escoceses, num total de quinhentos e sessenta e oito membros da Câmara da ordem social eram fundamentais. Essas tarefas surgiram em três
dos Comuns, a própria política tornou-se uma arena fechada a todos, níveis diferentes. Mais fundamentalmente, os adeptos das instituições
exceto a uns poucos escoceses, os que estivessem dispostos a tomar- escocesas estavam comprometidos com reivindicações no sentido de
-se quase totalmente subservientes aos propósitos da elite governante que suas instituições expressavam princípios que podiam ser defendidos
inglesa. "O govemo inglês exerceu o poder baseado num bloco sólido racionalmente contra qualquer acervo alternativo de princípios e insti-
de votos de bajuladores organizados por administradores experientes, tuições. Sua dívida em teologia com Genebra e em direito e, mais
que distribuíam lugares seguros com u'a mão e posições oficiais lucra- tarde, em educação com a Holanda, na visão da maioria desses adep-
tivas com a outra. Eles viam os escoceses recém-chegados à assem- tos, mostrava apenas que seus compatriotas estavam dispostos a apren-
bléia de Westminster como recrutas promissores: organizaram-nos sob der a verdade onde quer que ela estivesse. Portanto, fazia parte do
o comando de um dos seus até que, com um pouco de treinamento, éthos especificamente escocês considerar os princípios e instituições
tomaram-se quase tão bovinos em sua passividade à administração inglesa escoceses como os que podiam ser racionalmente defendidos numa
quanto seus antecessores tinham sido aos Lords of the Articles escoceses" comunidade internacional de civilidade protestante, na qual os padrões
(que, até 1689, tinham representado a Coroa no parlamento escocês e de justificação racional eram comuns. Não nos surpreende, portanto, o
controlado suas atividades) (T. C. Smout, A History of the Scottish People fato de o estudo dos fundamentos da lei internacional ter-se tornado
1560-1830, Londres, 1969, 218). uma parte importante da educação universitária.
Foi, portanto, através das instituições especificamente escocesas que Em segundo lugar, as tarefas específicas da justificação racional de
sobreviveram ao Tratado da União, e não através das estruturas for- crenças socialmente compartilhadas e de ações e arranjos institucionais
mais da política, que um tipo alternativo de existência civil e social, socialmente aprovados tinham de ser feitas dentro dos sistemas legal,
capaz de resistir melhor e por mais tempo às pressões no sentido de teológico e educacional escoceses, mostrando pormenorizadamente como
uma anglicização da cultura e da sociedade escocesas, foi mantido e conclusões particulares subordinadas podiam ser derivadas, através de
elaborado. Essas instituições eram de três tipos. Havia a Igreja da Escócia inferência dedutiva válida, a partir de princípios intermediários ade-
já estabelecida, de ordem presbiteriana, calvinista em seus-documentos quados que podiam, por sua vez, ser justificados através de dedução a
oficiais, a Profissão de Fé de Westminster e os Catecismos Maior e partir dos primeiros princípios. E, em terceiro lugar, cada indivíduo, ao
Menor. Havia as instituições da lei escocesa e da profissão legal, uma tomar essas decisões e empenhar-se nos projetos que determinariam o
lei informada por uma herança da lei romano-holandesa, principalmen- desenvolvimento futuro de sua vida, tinha também de enfrentar um
te na área de lei municipal, e muito diferente, na teoria e na prática, da esquema de princípios teológicos, legais e morais em cujos termos tais
Lei Comum inglesa. E havia o sistema educacional, concebido para decisões e projetos deviam ser justificados.
implementar a intenção dos Reformadores de que devia haver uma
O escocês de formação universitária também enfrentava um tipo de
escola em cada paróquia. Essa intenção tinha sido gradual, mas não
decisão ainda mais fundamental: quanto a continuar a viver na Escócia
uniformemente implementada, de modo que, no início do século XVIII,
o tipo de vida moldado pelas próprias instituições culturais e pelas
as paróquias da Lowland, em geral, tinham escolas e havia escolas
crenças institucionalizadas escocesas ou uma vida anglicizada seja
primárias nos principais burgos. No ápice do sistema estavam as três
transformando, à medida do possível, os modos escoceses em modos
universidades do período pré-Reforma, St. Andrews, Glasgow e o King's
ingleses, dentro da Escócia, seja emigrando para a Inglaterra. Isso
College, Aberdeen, e as duas fundações do período pós-Reforma,
implicava a escolha de, obviamente, que tipo de carreira seguir e onde
Edinburgh e Marischal College, Aberdeen.
fazê-lo, mas também implicava escolhas quanto a tipos de observância
O sistema oferecia uma educação homogênea para futuros pastores, religiosa, maneiras e hábitos, e ainda quanto ao modo de falar e escre-
advogados e professores. Os hábitos mentais que adquiriam eram os ver. Alexander Carlyle, pastor de Inveresk, escreveu que "para todo
hábitos adequados a uma cultura na qual as tarefas da justificação homem criado na Escócia, a língua inglesa era uma língua estrangeira",
racional através do recurso a princípios cuja autoridade é independente e mais de um grupo de jovens escoceses em Edimburgo reuniram-se
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para aprender a falar inglês de maneira anglicizada, talvez porque náo ingleses eram cada vez mais familiares aos escoceses no âmbito da
tenham levado em consideração o fato de que náo há uma resposta política, do comércio e da sociedade. Politicamente a rede de
unívoca para a questáo sobre quem fala o inglês-padráo, "o melhor" apadrinhamento, de dependência mútua, e do que, de um certo ponto
inglês, e quem fala um mero dialeto provinciano. de vista, era considerado corrupção - de outro, o uso hábil de recursos
para impedir a desordem - estendia-se a partir de Westminster, ad-
A tentativa, ao contrário, de preservar uma cultura independente e ministrada na Escócia, durante longos períodos, pelo segundo e tercei-
náo-anglicizada, cuja fala fosse ainda uma versão do inglês, implicava ro Duques de Argyll. Comercialmente, era importante que as recipro-
distinguir e sustentar uma identidade escocesa viável, ainda de uma cidades de interesse e paixáo, centrais ao modo inglês dominante, se
outra maneira. Os escoceses falantes do gaélico também tinham de ser adequassem tão bem às reciprocidades do mercado. E à medida que a
repudiados. A língua gaélica - denominada 'ersa' ou 'gaélico' pelos Escócia tornou-se, em grande parte, um país comercialmente bem-
falantes do inglês - era quase desconhecida fora das Highlands. A -sucedido, especialmente entre os mercadores de Glasgow, promoveu
Igreja da Escócia considerava grandes áreas das Highlands como regiões as mesmas reciprocidades e, assim, tornou-se ainda mais anglicizada.
para o serviço missionário. A propriedade da terra e as relações de Modas inglesas, maneiras inglesas, e, como já vimos, as expressões e
parentesco do sistema de clãs só tiveram reconhecimento legal nega- os sotaques ingleses eram cada vez mais invasivos. Náo nos deve sur-
tivamente através da liquidação, à medida do possível, de tudo o que preender, portanto, que dentro dos debates e conflitos internos escoceses
pertencia ao sistema de clás na legislaçáo draconiana que seguiu à do século XVIII uma variedade de pontos de vista ingleses e anglicizantes
sublevação de 1745. Os habitantes gaélicos das Highlands eram valo- não apenas aparecessem, mas aparecessem como fazendo parte daqueles
rizados como soldados, primeiro quando alguns dos clás protestantes que mais intensamente lutavam pela adesáo escocesa.
legalistas foram usados para conter e suprimir o resto dos clás e, a
partir de 1739, como tropas para servir à Inglaterra no estrangeiro. A vida intelectual e social escocesa, no século XVIII, constituiu-se
através do debate e do conflito. O ponto de partida desse debate foi
Era de se esperar, portanto, que muitos, senáo todos os jovens escoceses uma série de interpretações do acordo político e religioso de 1690 e
cultos vissem os habitantes das Highlands como estrangeiros e, até das possibilidades que foram então abertas. O esquema, assim como
certo ponto, estrangeiros inimigos. Quando, em novembro de 1745, um uma parte fundamental do assunto desses debates e conflitos, foi for-
exército, em grande parte jacobita, das Highlands aproximou-se de I necido pelas crenças religiosas, legais e educacionais institucionali-
Edimburgo, os Voluntários do Edinburgh College foram alistar-se no zadas da Escócia protestante. As alternativas enfrentadas no debate e
exército do General Sir John Cope, chegando, entretanto, apenas a
tempo de testemunhar a derrota de um exército tomado pelo pânico. E I no conflito foram gradualmente transformadas durante o século. Mas,
uma vez que foram o esquema institucionalizado e as crenças expres-
se aqueles jovens viram na Revolta de 1745 nada mais do que um
exército católico romano jacobita ameaçando sua causa protestante, ao
i
I
sas nele que determinaram as formas de debate, é por eles que devemos
começar.
invés de uma expressão de uma Escócia mais antiga, isso, por si só, era I

um sintoma do empobrecimento da identidade escocesa. A "Escócia" O tipo de sociedade que é compreendido pela maioria dos que o
tinha agora de ser vista em contraposição à Inglaterra e às Highlands integram como exemplificando, na sua ordem social e política, princípios
gaélicas. Era de se esperar que a tentativa de inventar e manter essa independentes e anteriores às paixões e aos interesses dos indivíduos
"Escócia" finalmente fracassasse - ela seria substituída pela conjunção e dos grupos que a compõem, exige, para sua manutençáo, a posse
da reinvençáo imaginária e romântica da "Escócia", feita por Sir Walter comum, em geral, de alguma compreensão do conhecimento desses
princípios e um acervo de meios institucionalizados para fazer com que
Scott com as realidades brutais do capitalismo industrial proprietário
de terras; o que é notável é que tenha sido mantida e enriquecida durante
4 esses princípios incidam sobre as questões da vida prática. Na Escócia
dos séculos XVII e XVIII, era quase um lugar-comum intelectual o
tantas décadas, produzindo e sendo produzida por uma cultura e uma
fato de que esses primeiros princípios, a partir dos quais juízos secun-
ordem social bastante diferentes das da Inglaterra. dários eram dedutivamente justificados racionalmente, tinham uma
Para tornar-se anglicizado, mesmo completamente anglicizado, náo evidência que os tornavam verdades reconhecíveis por qualquer um

I
era necessário, obviamente, ir à Inglaterra. Modos de vida tipicamente com mente saudável, que compreendesse os termos nos quais estavam
242 O substrato agostiniano e aristotélico do iluminismo escocês O substrato agostiniano e aristotélico do iluminismo escocês 243

formulados e cuja compreensão não estivesse subvertida por falsas através dos métodos da dialética, incluindo tanto a epagogé a partir de
doutrinas. Este não era, de modo algum, um lugar-comum apenas na particulares, como a refutação de teses opostas alternativas. No entanto,
Escócia. Quando encontramos versões filosoficamente sofisticadas dessa justamente porque a passagem de premissas afirmadas dialeticamente
visão, no contexto das teorias filosóficas de Locke, Leibniz ou na antiteoria a uma conclusão referente a algum primeiro princípio particular não é
filosófica de Shaftesbury, nem sempre reconhecemos que estamos uma inferência dedutiva, algo além da perspicácia lógica é necessário
encontrando, no nível da filosofia, um tipo de crença amplamente acei- para completar essa passagem, algo que forneça uma compreensão do
to na vida social não-filosófica de todo dia. O que diferenciava a Es- primeiro princípio relevante e que seja um "ver", algo que deva, talvez,
cócia era o quanto a vida social era organizada a partir de tipos de ser chamado de "intuição", ou de "discernimento". Mas é crucial que
justificação que pressupunham justamente essa crença. esse discernimento seja injustificado, independentemente do resultado
Essa crença comum num acervo de verdades substanciais evidentes da argumentação dialética prévia, não apenas no que concerne à fun-
tinha pelo menos duas fontes, uma das quais era realmente uma questão damentação racional do primeiro princípio em questão, mas também no
da influência da filosofia sobre a vida, a outra tinha muito pouco a ver que concerne ao seu conteúdo, uma vez que o significado dos termos
com filosofia. Essa Última deve ser encontrada na maioria, senão em principais utilizados na sua formulação lhes foi dado, em parte, pelas
todas as sociedades pré-modernas, onde havia e ainda há um acervo distinções e esclarecimentos que emergiram do processo de argumentação
comum de crenças cuja expressão na linguagem era, e ainda é, tratada dialética. A ciência aristotélica, tanto na formulação de Aristóteles,
como a enunciação da verdade evidente. Essas crenças fornecem a como na de Sto. Tomás, tinha sido portanto uma mistura inseparável de
pedra de toque para outras asserções. E se, em nossa sociedade, achamos demonstração e dialética. Mas a partir do aristotelismo medieval tar-
difícil nos imaginar de volta a um esquema mental para o qual a evidência dio, elas se separaram de um modo que, pela primeira vez, diminuiu a
é uma propriedade epistemológica importante, é não apenas devido à importância das discussões de Aristóteles nos Tbpicos, seja diminuindo
relativa ausência de tais crenças em nossa própria época e em nossas a importância da argumentação dialética, seja assimilando o estudo da
próprias sociedades, pelo menos entre aqueles que se consideram so- dialética ao estudo das consequentiae (ver Eleonore Stump, "Topics:
fisticados, mas também devido ao fato de estarmos conscientes de como their development and absorption into c o n s e q ~ e n c e s ~cap.
~ , 14, The
acervos de crenças diferentes e incompatíveis tiveram a mesma propriedade Cambridge History of Later Medieval Philosophy, ed. N. Kretzmann,
da evidência, em culturas diferentes. O problema que essa variedade e A. Kenny, J. Pingorg e E. Stump, Cambridge, 1982), e que, em segun-
incompatibilidade põe para os que acreditam na evidência era um problema do lugar, durante o Renascimento, permitiu a apresentação da dialética,
ou melhor, do que então passou a ser representado como dialética,
do qual os escoceses cultos tomaram consciência durante o século XVIII
como uma alternativa retórica rival à lógica aristotélica da demonstração.
e para o qual, como veremos adiante, Dugald Stewart deveria propor
uma solução engenhosa. O que importa para a minha argumentação, nessa história, entretanto,
O que aconteceu em algumas sociedades européias pré-modernas, não é a ascensão e queda da dialética ramista enquanto um desafio ao
tais como a escocesa, foi que crenças socialmente compartilhadas em aristotelismo. Na Escócia, o reformador Andrew Melville tinha intro-
verdades evidentes eram tanto reforçadas pela filosofia, como parcialmente duzido os métodos ramistas em Glasgow, depois de tomar-se reitor em
organizadas em termos derivados dela. Obviamente, fora crucial para 1574. Mas ainda, no ínicio do século XVII, a influência de Ramus já
toda a tradição platônico-aristotélica afirmar que há primeiros princí- tinha se tornado desprezível. O que importa à minha narrativa é não
pios e que a mente humana pode ser educada para compreender sua tanto a história do destino da dialética - embora essa história seja
verdade. Mas os primeiros princípios dessas hierarquias estruturadas crucial -, mas o modo pelo qual os primeiros princípios das ciências,
de argumentação demonstrativa que, numa visão aristotélica, constituem concebidos ainda em grande parte aristotelicamente, passaram a ser
as ciências, apesar de não poderem ser demonstrados - pois não se- tratados como evidentes e inegáveis em si mesmos, sem fundamen-
riam os primeiros princípios da demonstraçáo - não são, portanto, tação dialética ou qualquer outra fundamentação racional.
independentes da fundamentação racional. Como observei anteriormente, Ernan McMullin, ao observar como o próprio Galileu reteve a lin-
chegamos a esses princípios, na própria visão de Aristóteles, reafirma- guagem da demonstração aristotélica, apontou para o modo como "al-
da por Sto. Tomás no seu comentário sobre os Analíticos Posteriores, guns dos princípios da mecânica podem facilmente parecer tão plausí-
244 O substrato agostiniano e aristotélico do iluminismo escocês O substrato agostiniano e aristotélico do iluminismo escocês 245

veis a ponto de quase assumir o estatuto de verdades necessárias" ("The co Burgersdijk, professor em Leyden, cujo Institutionum Logicarum Duo
Conception of Science in Galileo's Work", New Perspectives on Galileo, Libri tomou-se um texto recomendado na Holanda pelos Estates em 1636,
ed. R. E. Butts e J. C. Pitts, Dordrecht, 1978, 229). E se por verdade
diminuindo assim a influência do ramismo (E. J. Ashworth, Language
necessária compreendermos apenas uma verdade que não C possível
and Logic in the Post-Medieval Period, Dordrecht/Boston, 1974, 18),
para nenhuma pessoa razoável negar - ao invés de definir "verdade
e cujas aulas sobre a ética e a física de Aristóteles foram reimpressas
necessária" nos termos de uma teoria filosófica da necessidade e da
em Oxford (F. C. Lohr, "Renaissance Latin Aristotle Commentaries:
contingência -, podemos retirar o "quase" da frase de McMullin e
dizer que para muitos, no século XVII, os primeiros princípios da A-B", Studies in the Renaissance; vol. 21, 1974).
mecânica, assim como os de toda ciência, tinham o estatuto de verdades O ensino do aristotelismo continuou nos últimos anos da graduação
necessárias. (Baillie, op. cit., 464). No terceiro ano, "o resto da Mgica, Ética e
Essa concepção de cada ciência, de cada tipo de conhecimento e Política" devia ser ensinado, e o quarto ano devia incluir metafísica e
compreensão, derivando de um acervo de primeiros princípios, princí- um estudo do De Anima. Ressaltou-se o ensino do grego desde o co-
pios cuja evidência é tal que não precisam de nenhum outro tipo de meço do curso de graduação, de modo que "o texto de Aristóteles seria
fundamentação racional e cujo estatuto, enquanto primeiros princípios, lido em grego", Baillie antecipou a história posterior do currículo es-
é tal que não podem ter outra fundamentação racional, reforça a crença cocês, em sua disposição de utilizar os recursos intelectuais proporci-
popular na evidência de certas verdades em algumas sociedades euro- onados pela Holanda protestante e na sua visão dos efeitos da anglicização
péias do início da modernidade. E essa crença era mantida pela versão sobre a Escócia, algo que aprendeu em primeira mão sob o governo de
do aristotelismo escolástico que dominou as universidades na Escócia, Cromwell (Hugh Kearney, Scholars and Gentlemen, Ithaca, 1970, 130).
em meados do século XVII. O protagonista mais notável daquilo que E ao ajudar a dar à Escócia uma mistura sistemática, mesmo que ins-
caracterizei anteriormente como uma aliança, em última análise, instável tável, de calvinismo e aristotelismo, também ajudou a fornecer o clima
entre o calvinismo e o aristotelismo foi, talvez, Robert Baillie, que intelectual no qual definições clássicas puderam ser dadas a certas
ensinou filosofia como regente na Universidade de Glasgow de 1625 a atitudes mentais que deviam ser o legado da escolástica do século
1631, e que mais tarde tornou-se professor de Teologia e, depois da XVII à Escócia que seria reinventada no início do século XVIII.
volta de Carlos 11, reitor da universidade. Entre os papéis de Baillie há Essas definições foram, na verdade, dadas pela obra The Institutions
um esboço de uma "aula magna" da universidade que foi provavelmen- of the Law of Scotland de Sir James Dalrymple of Stair, posteriormente
te apresentada à assembléia geral da Igreja da Escócia em agosto de nomeado Visconde Stair por Guilherme 111, publicada pela primeira
1641 (The Letters and Journals of Robert Baillie MDCXKXVII-MDCXLII vez em 1681, no primeiro mandato de Stair como Lord President da
A.M., ed. D. Laing, vol. 2, Edimburgo, 1842, 463-465). Court of Session, um posto do qual foi destituído devido à sua recusa
Na aula inaugural, Baillie argumenta que os estudantes de teologia em fazer o juramento exigido pelo Test Act de 1681 e ao qual, depois
deviam aprender a reagir "primeiramente axiomaticè e depois através do exílio na Holanda e da queda do rei James VI1 e I1 por Guilherme
de objeções silogísticas". Assim, a habilidade de remeter teses secundárias de Orange, foi reconduzido.
a primeiros princípios é explicitamente transformada em parte do trei- Durante esse segundo mandato como presidente, Stair publicou uma
namento de um pastor. A fundação dessa pratica seria estabelecida segunda edição revisada da sua obra Institutions em 1693. A obra de
mais tarde no ensino da lógica aristotélica, nos próprios textos de Stair fornecia uma elaboração compreensiva da natureza da justiça, da
Aristóteles -De Interpretatione e os Analíticos Anteriores devem ser lei e da conduta racional e reta, que articulava as pressuposições do
prescritos - e nos livros-textos escolásticos usados. Baillie foi influ- 1
que deveriam ser atitudes tipicamente escocesas. Ninguém na Escócia
enciado pela mistura de Aristóteles e Calvino que tinha passado a pre- do século XVIII podia abordar esses assuntos sem, de uma maneira ou
valecer pelo menos em algumas partes da Holanda. Ele correspondeu- de outra, enfrentar o esquema teórico e conceitual de Stair, um esquema
-se com Gisbert Voet, professor de teologia em Utrecht e, a partir de que expressava, nos termos da lei da Escócia, não apenas as doutrinas
1641, reitor dessa universidade, e defensor de Platão e Aristóteles contra legais, mas tambtm teológicas e filosóficas que tratavam da justiça, da
Descartes. Os autores dos livros-textos que recomendou incluíam Fran- lei e da conduta racional e reta.
246 O substrato agostiniano e aristotélico do iluminismo escocês O substrato agostiniano e aristotélico do iluminismo escocês 247

Enquanto exposição compreensiva da lei da Escócia, o livro de As obrigações fundamentais dos seres humanos são aquelas exigidas
Stair não tinha precedentes. O Instituições de Justiniano era seu mo- pela obediência a Deus e à sua lei. Essas obrigações secundárias, que
delo mais fundamental, e Stair faz muitas referências a comentadores surgem de convenções e instituições meramente humanas, servem ao
da lei romana. O jurista europeu moderno mais citado é Grotius, e Stair propósito de garantir os direitos que a obediência à lei divina garan-
também mostra ter tido conhecimento do tratado de Gudelinus sobre a tiria, e nisso reside sua utilidade. Desse modo, o Útil, o oportuno e o
lei nos Países Baixm, evidência da influência intelectual contínua de proveitoso são definidos em termos do que é justo, eqüitativo e certo.
escritores e instituições holandeses. Nenhum comentador legal inglês é Eles não podem, de modo algum, oferecer padrões independentes para
mencionado, nem qualquer caso ou estatuto inglês. A lei é definida, de a ação reta.
início, como "o ditame da razão, determinando todo ser racional a
fazer aquilo que é congruente e conveniente à sua natureza e condição Stair explicitamente distancia-se da ordenação que Justiniano faz
... Mesmo Deus todo-poderoso, embora não seja responsável perante do assunto da lei, no que concerne ao lugar que atribui à discussão das
ninguém ou controlável por ninguém, e tendo absoluta liberdade de obrigações. Onde Justiniano e a lei romana geralmente tinham cate-
escolha, determina invariavelmente a si próprio através de sua bon- gorizado as preocupações da lei em termos de pessoas, coisas e ações,
dade, retidão e verdade, que, portanto, fazem da lei divina o soberano Stair argumenta que "o objeto próprio" da lei "é o próprio direito, quer
absoluto" (Instituições I,1,1). A medida que os seres humanos compar- trate de pessoas, coisas ou açóes ..." (1,1,23). Portanto, a fundamen-
tilham dos atributos divinos, a lei que é racional que observem é aque- tação dos direitos, no caráter das obrigações primárias que os seres
la que expressa a natureza de Deus; à medida que têm atributos que os humanos têm, é um tópico que tem de preceder à exposição dos direitos
distanciam da divindade, a razão dirige-os conformemente. particulares das pessoas, nos quais os princípios mais fundamentais são
aplicados.
"E a razão realmente ainda determina a humanidade, partindo da
conveniência de sua natureza e de seu estado, a ser humilde, penitente, É esclarecedor contrastar o método de argumentação de Stair com
cuidadosa e diligente para a preservação de si própria e de sua espécie; o método que deveria ser seguido, muito mais tarde na Inglaterra, por
e portanto, a ser sociável e útil, e a fazer apenas aquilo que é conveniente Sir William Blackstone, o primeiro professor vineriano da Universidade
para a humanidade, que possa ser feito por todos na mesma condição" de Oxford, que publicou a parte principal de suas aulas sobre as leis da
(1oc.cit.). Inglaterra em 1765, com o título Commentaries on the Laws of England.
Blackstone, na sua aula inaugural, reimpressa no início dos Commentaries,
O que os seres humanos apreendem através da razão são os princí- afirmara a superioridade da lei inglesa sobre a lei romana, e nas seções
pios comuns da lei: "Os princípios da lei são tais que podem ser co- anteriores dos Commentaries dá uma explicação muito diferente da
nhecidos sem discussão, e aos quais o julgamento, que se segue à proposta por Stair, tanto dos primeiros princípios da lei como de sua
sua apreensão, dará consentimento imediato e completo; tais como, relação aos princípios secundários. Três pontos contrastantes devem
Deus deve ser adorado e obedecido, os pais devem ser obedecidos e ser destacados. Blackstone começa escrevendo como se também fosse
honrados, as crianças devem ser amadas e cuidadas. E tais são os deduzir os primeiros princípios da lei a partir de uma doutrina teoló-
preceitos comuns propostos na lei civil, viver honestamente, não fazer gica ou metafísica. Mas imediatamente aponta para a redundância de
mal a ninguém, dar a todo homem o seu direito (Instituições de Justiniano tal referência ao declarar, com relação a Deus, que "ele está tão satisfeito
1,1,3; Digest 1,1,10)'7 (1,1,18). A razão apreende dois tipos de pri- em projetar dessa forma a constituição e a estrutura da humanidade,
meiros princípios da lei, os da equidade ou direito e os do bem, do útil que não deveríamos querer nenhum outro estímulo para investigar e
ou do oportuno. Se não fosse pela queda do homem, os princípios da perseguir a regra do direito além de nossa própria auto-estima, o princípio
equidade seriam suficientes. Mas porque os seres humanos revoltam-se universal da ação. ... ele não complicou a lei da natureza com uma
contra Deus e os princípios da equidade, é proveitoso para os seres ...
multidão de regras e preceitos abstratos mas reduziu generosamente
humanos "encontrar expedientes e ajuda para tornar a equidade efetiva; a regra da obediência a um único preceito paterno, 'que o homem deve
e, portanto, fazer sociedades de homens, de modo que possam defen- perseguir sua própria felicidade verdadeira e substancial'. Essa é a
der-se mutuamente e conseguir realizar, uns para os outros, os seus fundamentação do que ele chama ética ou lei natural ..."(Commentaries,
direitos..." (loc. cit.). Introdução, seção 2).
248 O substrato agostiniano e aristotélico do iluminismo escocês O substrato agostiniano e aristotélico do iluminismo escocês 249

Segundo Blackstone, Deus constituiu os seres humanos de tal forma precedente não tem nenhuma força, a não ser como evidência de como
que nós efetivamente nem possuímos nem precisamos de nenhum pa- as regras de justiça foram aplicadas e da visão adotada pelo autor ou
drão exterior às nossas paixões, pois "a única base verdadeira e natural autores do precedente em questão, quanto a como, neste tipo de caso,
da sociedade são as necessidades e medos dos indivíduos" (Introdução, as regras devem ser aplicadas. Segundo Stair, devemos tratar o que
seção 2). Poucos dos princípios que expressam e guiam nossa auto- está estabelecido como costume e precedente com alguma deferência,
estima são imutáveis por causa do caráter imutável de nossos desejos; à medida que fornece tal evidência, mas não mais do que isso. Desse
tal é o caso da proibição do assassinato. E tais princípios são reforça- modo, as regras de justiça, segundo Stair, oferecem um padrão funda-
dos pela revelação divina. Mas, exceto por esses princípios que, sendo mental exterior a toda prática estabelecida, incluindo mesmo a prática
naturais a todos os seres humanos, compõem a lei natural, os ingleses do legislador, cujo trabalho pode ser considerado errôneo e ser corrigido
devem ser guiados pela prática passada de sua própria sociedade: "E é por um juiz, com base no apelo aos primeiros princípios da justiça.
uma observação antiga nas leis da Inglaterra que sempre que uma regra
Uma segunda diferença fundamental entre Stair e Blackstone fica
de lei válida, cuja razão não é mais lembrada ou discernida, é quebrada
clara na sua compreensão da propriedade. Já enfatizei como, dentro das
por estatutos ou resoluções novas, a sabedoria da regra acaba por
estruturas sociais dominantes do século XVIII inglês, é o indivíduo
manifestar-se, por oposição às incoveniências que seguiram a inovação.
enquanto proprietado ou sem propriedade que participa da mutualidade
A doutrina da lei é, portanto, a seguinte: que os precedentes e as regras
e reciprocidade da troca social. E Blackstone, como era de se esperar,
devem ser seguidos, exceto quando forem manifestamente absurdos ou
absolutiza os direitos de propriedade. Que obrigações os indivíduos
injustos: pois, embora a razão possa não ser óbvia à primeira vista, nós
têm, depende quase totalmente do seu lugar nas relações de propriedade
devemos tal deferência aos tempos antigos, não supondo que agiram
estabelecidas. Stair, ao contrário, considera o tratamento e o estatuto
completamente sem consideração" (Introdução, seção 3). Edward
das obrigações como anterior ao tratamento e ao estatuto da proprie-
Christian, professor de leis da Inglaterra, em Cambridge, que fez a
I dade. Desse modo, as obrigações são impostas e limitam o proprietário.
décima segunda edição dos Commentaries (1793-1795), afirmou que a
Peter Stein resumiu a visão de Stair: "Deus concedeu o domínio das
qualificação, "exceto quando manifestamente absurda ou injusta" devia criaturas da terra ao homem. Esse domínio era originalmente comum,
ser omitida. Mas, uma vez que os padrões pelos quais o absurdo ou a mas os frutos das criaturas e os produtos da arte e da indústria eram
injustiça deviam ser julgados eram, na verdade, derivados das práticas 'próprios' a certos indivíduos. Normalmente podiam ser apropriados à
cujas regras e precedentes estavam em questão, o que dividia Christian vontade; mas havia uma obrigação implícita de comércio e troca em
e Blackstone era, talvez, menos do que pode parecer à primeira vista. casos de necessidade e mesmo, quando não havia nada para receber em
Blackstone era, obviamente, a contrapartida legal de Burke. Na sua troca, uma obrigação de dar. ... Assim, a propriedade, aos olhos de
obra Reflections on the Revolution in France, Blackstone é elogiado Stair, estava sujeita a restrições definidas em favor do interesse públi-
como o último na linha sucessória que se inicia com Coke. E, como co" ("Law and Society in Eighteenth-Century Scottish Thought", Scotland
Burke, o que Blackstone propõe é uma visão das estruturas sociais in the Age of Improvement, ed. N . T . Phillipson e R. Mitchison,
inglesas dominantes, segundo a qual a justificação dessas estruturas é Edimburgo, 1970, 151).
interna a elas mesmas. Os padrões pelos quais a prática estabelecida
Um terceiro contraste entre Stair e Blackstone refere-se à relação
deve ser julgada são, numa qualificação mínima, os padrões já expres- entre a teologia e a lei. Ambos os irmãos de Blackstone que chegaram
sos na prática estabelecida. O contraste com Stair não podia ser maior, à idade adulta tornaram-se clérigos da Igreja da Inglaterra, e não há
e aparece claramente em três tópicos particulares. nenhuma razão para duvidar da importância que o próprio Blackstone
b
O primeiro deles é o lugar atribuído aos apelos à equidade. Para atribuía aos prolegômenos teológicos aos Commentaries. Entretanto, com
Blackstone, tais apelos são adequados apenas quando surge um caso a afirmação de que o fundamento da ética e da lei reside no preceito
que as regras estabelecidas não prevêem e quando não há precedentes. de que "o homem deve perseguir sua própria felicidade verdadeira e
Mas, para Stair, as regras de equidade estão entre os primeiros princípios substancial", a teologia torna-se redundante e, no máximo, pelo menos
da justiça, e pode-se sempre apelar a eles contra a regra e o precedente decorativa, devido ao que é afirmado e argumentado em bases inteira-
estabelecidos. Para a lei escocesa, segundo Stair, o apelo ao caso mente não-teológicas. Mas no Institutions de Stair, a teologia não pode
250 O substrato agostiniano e aristotélico do iluminismo escocês O substrato agostiniano e aristotélico do iluminismo escocês 251

ser extirpada sem prejuízo irreparável para o todo. A lei escocesa dos Se a palavra de Deus revelada, expressa na Bíblia, e pregada segun-
séculos XVII e XVIII, assim como a vida escocesa nessa época, é do as formulações da Igreja pelos pastores ordenados da Igreja, for a
universal e inevitavelmente teológica. única fonte confiável de esclarecimento sobre a ação reta, a Igreja tem
de ter superioridade sobre o Estado, e os magistrados têm de ser sub-
A teologia, obviamente, é a teologia das fórmulas presbiterianas: a
servientes aos tribunais eclesiásticos. A teocracia exige a eclesiocracia.
Profissão de Fé de Westminster, juntamente com os Catecismos Maior
Desse ponto de vista, a independência do Estado secular e de seus
e Menor, que eram compostos pela assembléia de teólogos que iniciou
tribunais de justiça é sempre uma ameaça à religião cristã, e qualquer
seu trabalho em Westminster em 1643. A assembléia geral da Igreja da
tentativa, por parte do Estado ou de seus tribunais, de controlar a Igreja
Escócia tinha adotado essas fórmulas em 1649, que a partir de então
t intolerável. Essa era a visão dos presbiterianos que se rebelaram
passaram a fornecer o padrão da doutrina e do ensinamento. Como
contra Carlos 11, enquanto Stair ainda era um de seus juizes. Stair, e os
qualquer documento teológico, são suscetíveis de interpretações alter-
presbiterianos igualmente, apesar de não aprovar as diversas facetas da
nativas. Talvez seja típico dos textos teológicos calvinistas, tais como
política real e mais especificamente a reintrodução do episcopado na
os de autoria dos teólogos de Westminster, serem particularmente Igreja da Escócia, não via nada de inconsistente na sua combinação de
abertos a interpretações contrastantes em duas áreas particulares. A lealdade às formulações de Westminster com o serviço ao Estado e
primeira delas refere-se à relação entre os poderes com que Deus seus tribunais e ao aprendizado secular em questões legais e morais.
originalmente dotou os seres humanos na Criação, especialmente sua Pois, quanto ao primeiro, a seção na Profissão de Fé de Westminster
razão e seu livre-arbítrio, e os efeitos corruptores do pecado e a ação intitulada "Do Magistrado Civil", declara que é Deus quem "ordenou
da graça. Nas versões calvinistas da teologia agostiniana, os seres humanos aos magistrados civis estarem sob o seu comando e comandando o
são caracterizados de dois modos. Por um lado, são vistos como tendo povo, para sua própria glória e o bem público...". Quanto ao último,
perdido, num certo sentido, sua liberdade tanto para reagir a Deus, aos embora a razão não nos possa dar o tipo de conhecimento de Deus que
seus mandamentos, como ao dom de sua graça, e toda habilidade racio- é necessário para a salvação, entretanto é verdade não só que "a luz da
nal de discernir a verdadeira natureza de Deus e de sua lei, de modo natureza e o trabalho da criação e da providência realmente manifes-
que todo bem é inacessível a eles, a não ser pela ação da graça divina tam a bondade, a sabedoria e o poder de Deus, de modo a tornar os
agindo sobre os seres humanos, independentemente de sua vontade. homens indesculpáveis ..." (Profissão de Fé de Westminster I,1), mas
Mas, por outro lado, são considerados culpados e responsáveis perante também que "a lei moral é a declaração da vontade de Deus para a
Deus, de um modo que pressupõe tanto um conhecimento da lei de humanidade, dirigindo e coagindo todos à conformidade pessoal, per-
Deus como a responsabilidade por desobedecê-la. E ambas essas posi- feita e perpétua a ela ..." (Catecismo Maior, Resposta à questão 93).
ções são afirmadas na Profissão de Westminster e nos Catecismos. A compatibilidade das Znstitutions de Stair com as Confissões e os
Catecismos é muito mais do que uma questão de princípios gerais.
Interpretações alternativas e opostas desse tipo de teologia surgem
Stair, em muitos pontos particulares, cita as Escrituras como confir-
quando uma dessas duas posições é enfatizada às custas da outra. Quando mação da lei moral. E no seu uso das Escrituras em questões particu-
é a primeira que é enfatizada, a revelação cristã, que só deve ser rece- lares de moral, segue a prática do Catecismo Maior, que subsume sob
bida pela graça, acaba por aparecer como a única fonte possível, seja cada um dos Dez Mandamentos um longo conjunto de deveres, obri-
de qualquer conhecimento da lei divina, seja de qualquer especificação gações e injunções mais particulares às virtudes, seguido de um con-
pormenorizada de como deve ser implementada. A pesquisa filosófica, junto igualmente longo de proibições. É importante observar que o
ou melhor, racional, sobre os fundamentos e conteúdo da lei moral recurso às Escrituras é essencial para a argumentação legal de Stair, e
t
aparece, sob essa luz, como um empreendimento vão e pecaminoso. Na não apenas uma peça numa superestrutura religiosa. A revelação divina
Escócia do século XVII não faltavam presbiterianos que adotavam essa nas Escrituras é não apenas a fonte na qual Deus concede-nos o co-
visão, e teriam herdeiros no século XVIII. Mas, obviamente, Stair não nhecimento "dos mistérios sagrados que só podem ser conhecidos através
estava entre eles. Ele poderia ser encontrado entre os membros do da revelação, uma vez que não podem ser deduzidos de nenhum princípio
partido oposto, numa segunda questão fundamental de interpretação na natureza, mas também, porque através do pecado e do mau hábito
teológica, diferente, mas intimamente ligada à primeira. a lei natural no coração do homem foi muito distorcida, desordenada
252 O substrato agostiniano e aristotélico do iluminismo escocês O substrato agostiniano e aristotélico do iluminismo escocês 253

e deduzida erroneamente, ele reimprimiu a lei da natureza num caracter Nova Experimentalis reflete, com grande precisão, a estrutura das
mais vivo, nas Escrituras, estabelecendo não apenas os princípios morais, Institutions, e é natural que isso ocorresse: podemos ler nessa obra a
mas também muitas das conclusões que decorrem deles" (Institutions afirmaçáo de Stair de que o estudo da natureza se subordina à teologia
I,1,7,). As Escrituras são necessárias para corrigir o erro, a confusão, natural, às disciplinas metafísicas que lhe fornecem os "principia p e r
no discernimento dos primeiros princípios que são realmente eviden- s e evidentia" de que necessita para seus próprios primeiros princípios,
tes, e a incapacidade de efetuar deduções. e também à filosofia moral "à medida que isso mostra a que ponto
devemos assentir com as verdades das nossas cognições de onde emerge
As teses filosóficas fundamentais de Stair, nas Institutions e nos seus
livros sobre física, Physiologia Nova Experimentalis, publicados em a certeza moral" (Seção 20, 11). Desse modo, o primeiro e o segundo
Leiden em 1686 durante seu exílio na Holanda, são propostas mais do postulados da ciência natural derivam da confiabilidade daquilo no que
que defendidas. Seu interesse maior era mais argumentar fundamentado os sentidos e a razão concordam, nas suas descobertas, a partir das
em seus primeiros princípios do que discuti-los. Ele escreve antes da perfeições divinas, da mesma maneira que nas argumentações iniciais
publicação do Ensaio de Locke e, portanto, trata nosso conhecimento das Institutions, Stair derivara a imutabilidade da lei natural a partir do
caráter imutável da vontade divina. As primeiras seções das Institutions
dos primeiros princípios como inatos, sem enfrentar as objeções que
são chamadas "De communibus Principiis naturalibus". Assim, diferentes
Locke apresentaria sobre as idéias inatas. A filosofia de Stair tinha
sido aprendida quando estudante em Glasgow, onde obteve o primeiro ramos de estudo são integrados numa hierarquia dedutiva unificada
lugar entre os formandos de Artes em 1637; mais tarde, ensinou lógica, com uma certa elegância e com uma certa generalidade. E sobre a pedra
moral, filosofia política e os elementos das matemáticas como regente fundamental do todo, nosso conhecimento natural e revelado da natureza
em Glasgow de 1641 a 1647. É tentador considerá-lo um autor filoso- de Deus, Stair publicou sua obra A Vindication of the Divine Power.
ficamente ingênuo (ver o comentário de Duncan Forbes, Hume's A segunda realização filosófica de Stair é ter compreendido, pelo
Philosophical Politics, Cambridge, 1975, 7), mas isso seria um erro menos em sua dimensão germinal, um dos problemas fundamentais que
que ocultaria o alcance da tríplice realização filosófica de Stair. qualquer doutrina que recorra a primeiros princípios auto-evidentes
I Seu mérito filosófico consiste no alcance e na generalidade da es- enfrenta. A quem devem esses primeiros princípios ser evidentes? Stair
trutura dedutiva que construiu. Ter fornecido tal estrutura para as leis recorre ao consenso dos filósofos e, à primeira vista, isso parece inútil.
da Escócia foi um feito considerável; tê-lo feito de modo que não apenas Pois, no que se refere às perfeições divinas, por exemplo, que constituem
os princípios fundamentais da teologia calvinista, mas também aquilo o assunto dos primeiros princípios fundamentais das Institutions e da
que Stair considerou as verdades da astronomia e da física pudessem Physiologia Nova Experimentalis, os filósofos são notórios por estar
ser incorporadas na mesma estrutura, foi um feito ainda maior. Pode- sempre em discordância radical uns com os outros. Realmente, Stair
-se afirmar sem dúvida que, desde o início, poucos leitores das Institutions revela-se consciente das dificuldades postas pelas doutrinas de três
também tenham lido a Physiologia Nova Experimentalis. Pois Stair teve desses filósofos dissidentes: Epicuro, Hobbes e Espinoza.
a infelicidade de publicar seu sistema físico e astronômico geocêntrico, Quando os filósofos defendem doutrinas incompatíveis com o que
no qual tentava dar conta das principais observações e descobertas
ele considera uma doutrina verdadeira das perfeições divinas, isso se
experimentais dos séculos XVI e XVII, um ano antes de Newton pu- deve a uma má percepção dessa incompatibilidade ou a alguma simulação.
blicar sua obra Principia. Stair tinha dedicado seu livro à Royal Society, Tal é a tese de Stair (PNE, Seção 25). Isto é, podemos identificar, em
e Bayle, que deve tê-lo visto antes da publicação, fez uma pequena qualquer filósofo que esteja contra aquilo que seria um consenso, uma
referência a ele no Nouvelles de lu République des Lettres, de dezembro falha intelectual ou uma falha moral. Stair nunca nos fornece boas
de 1685. +
razões pelas quais devêssemos aceitar essa asserção, mas s6 o fato de
Sua obra parece não ter tido nenhum outro impacto no mundo aca- propô-la mostra que está consciente do que uma doutrina de primeiros
dêmico, de modo que não se reconheceu que a visão de Stair tinha um princípios auto-evidentes exige para ser racionalmente defendida. É
único e mesmo acervo de princípios e que poderia, com premissas uma condição necessária para a verdade de uma doutrina desse tipo
adicionais mais especializadas em cada área particular, oferecer fun- que, com relação a qualquer primeiro princípio auto-evidente, suposta-
damentos para todo conhecimento humano. A estrutura da Physiologia mente identificado por essa doutrina, ou todo ser humano inteligente e
254 O substrato agostiniano e aristotélico do iluminismo escocês O substrato agostiniano e aristotélico do iluminismo escocês 255

adequadamente reflexivo concorde com ele ou que aqueles seres hu- to exigido - continuaram a ser tolerados depois de tê-lo feito. A
manos inteligentes e adequadamente reflexivos que não concordem possam comissão, portanto, concentrou-se não tanto na conformidade forçada,
ser apontados, através de razões adequadamente boas, como sendo mas em propor um currículo filosófico que educasse professores, ad-
culpados ou de erro intelectual ou de má fé. Como satisfazer a essa vogados, pastores e a pequena nobreza da Escócia para acreditar nos
exigência é o problema principal de qualquer doutrina como a de Stair. princípios apropriados. Eles, conseqüentemente, convidaram os professores
A incapacidade de Stair de enfrentar esse problema, a não ser de universitários de filosofia a dar sua opinião sobre o conteúdo que um
um modo grosseiramente inadequado, não diminui seu feito de mostrar conjunto-padrão de cursos de filosofia deveria ter e sobre os textos que
como os princípios fundamentais para os modos culturais e sociais deveriam ser utilizados nesses cursos. A resposta dos professores foi
especificamente escoceses, principalmente na esfera do direito, mas relatada no parlamento de 1695 da seguinte maneira: "Eles dizem aos
também em outras áreas, exigem, para serem estabelecidos, sua defesa membros da comissão parlamentar que é totalmente desonroso para as
na arena do debate especificamente filosófico. Isto é, a terceira realização universidades, e para a reputada educação da nação, que um curso de
de Stair é de ter mostrado que se a esfera da crença pública deve ser filosofia seja transformado num padrão de autoridade, que nenhum dos
compreendida do modo como é compreendida nas Institutions, o de- membros das universidades compôs. Eles criticam os livros e sistemas
de lógica e filosofia existentes. Os cursos de filosofia existentes são
bate filosófico terá de se tornar central na vida social e cultural.
inadequados e não se destinam aos alunos ou são em si mesmos passíveis
O fato de Stair, nas suas atitudes fundamentais, não expressar um de objeções. O curso mais satisfatório, 'Philosophia Vetus et Nova', foi
ponto de vista particular ou excêntrico fica claro, não apenas pela recepção escrito por um autor papista e tem as marcas daquela religião; mas a
de seu livro, quase desde a primeira publicação, como um texto de lógica é estéril, a ética, errônea e a física
autoridade, para a teoria legal e para a prática efetiva nas cortes escocesas prolixa demais. A ética de Henry Moir não pode ser aceita; é totalmen-
- dois séculos mais tarde, Lord Benholme diria: "Quando, em algum te armênia, principalmente na sua opinião sobre o 'de libero arbitrio'.
ponto da lei, constato que a opinião de Stair não foi contradita, eu a A determinação e a pneumatologia de De Vries são curtas demais. Le
considero estabelecedora da lei da Escócia" -, mas também pelo modo Clerc é meramente cético e sociniano. Quanto a Descartes, Rohault e
I
como as mesmas atitudes eram repetidamente expressas por outros. O outros do mesmo grupo, além do que pode ser dito contra sua doutrina,
todos sofrem da incoveniência de não terem uma compreensão suficiente
i reconhecimento mais notável da posição central do debate e da argu-
mentação filosófica na vida nacional escocesa pode ser encontrado no das outras hipóteses e da antiga filosofia, que não devem ser dispen-
trabalho de uma comissão apontada pelo parlamento escocês para sadas" (citado do vol. 37 do Parliamentary Papers, 1837, o relatório
sobre a universidade St. Andrews do Report of the Universities
examinar o estado das universidades durante o período em que Stair Commission, 1826-1830; as outras partes dessa rica fonte para a his-
era presidente. tória das universidades escocesas são o General Report, vol. 12, 1831;
O trabalho dessa comissão foi parte do acordo geral sobre questões sobre Edimburgo, vol. 35; sobre Glasgow, vol. 36; e sobre Aberdeen,
escocesas, no período que seguiu à derrubada do rei James VI1 por vol. 38, 1837).
Guilherme de Orange e seus aliados presbiterianos na Escócia. Essa Uma tentativa inicial, por parte dos membros da comissáo, de fazer
comissáo foi nomeada em julho de 1690, com a tarefa básica imediata com que os professores de filosofia em todas as quatro universidades
de garantir lealdade ao novo regime e de expurgar as universidades de concordassem com um programa comum e um texto comum, de modo
qualquer professor que pudesse ser identificado como oposicionista. que "num tempo vindouro os estudantes não gastem seu tempo escre-
Um juramento de adesão política e a aceitação da Profissão de Westminster vendo seus cursos de filosofia durante as aulas, mas, ao contrário,
foram exigidos. Mas William Carstares, secretário de Estado da Escócia haverá um curso impresso", frustrou-se devido às disputas entre os
para o rei Guilherme, e o próprio rei Guilherme favoreceram uma política filósofos. Os membros da comissáo, portanto, adotaram o artifício de
de moderação e de inclusão, destinada a tornar o acordo de 1689-1690 determinar que professores em cada universidade escrevessem um li-
o mais amplo possível. De modo que, não apenas uma ampla gama de vro-texto sobre uma seção da disciplina, evitando assim a necessidade
diferentes visões presbiterianas foi permitida, mas também os episcopais de chegar a um acordo com os seus colegas de outras instituições. É
- que tinham recebido permissão de seus bispos para fazer o juramen- notável que a manutenção de uma abordagem fundamentalmente aris-
totélica fosse pressuposta, apesar do reconhecimento da existência de
256 O substrato agostiniano e aristotc!lico do iluminismo escocês O substrato agostiniano e aristotélico do iluminismo escocês 257

varias visões diferentes. Assim, nas regras que foram concordadas pelas
em St. Andrews e, depois, em Edimburgo em 1674. O médico de
universidades antes da redação dos quatro livros-texto, estava estabe-
Edimburgo, Archibald Pitcairne, que foi professor em Leiden em 1692-
lecido "que na parte didática, a noção e a definição de tudo o que fosse
tratado fossem claramente estabelecidas, sendo dado um exemplo, os 1693 - John Pringle recebeu seu M. D. em Leiden - recebeu, jun-
exemplos da lógica e da metafísica, especialmente, devendo ser mais tamente com dois outros professores de medicina, o título de professor
adequadamente extraídos da filosofia peripatética ...". O livro-texto em Edimburgo em 1685.
sobre lógica e metafísica geral foi designado a St. Andrews, o de física A criação de cátedras de filosofia em Edimburgo seguiu-se uma
geral e específica às duas faculdades em Aberdeen, o livro sobre mudança similar no ensino do grego. Um ano de grego era de fato
pneumatologia a Edimburgo e o livro sobre ética geral e específica a exigido antes de se passar à filosofia, embora já em 1731 essa e-
Glasgow. Os textos foram submetidos à comissão em 1697, mas apenas xigência tivesse na verdade prescrito, e os estudantes de graduação
os livros sobre metafísica e lógica foram impressos, ambos tendo sido passavam a frequentar as aulas de lógica assim que entravam na uni-
publicados em Londres em 1701. E fica claro que os dois objetivos da versidade. Em filosofia devia haver três professores, cada um responsável
Comissão, elevar o nível de ensino de filosofia e garantir a uniformidade por uma parte da disciplina. Pneumatologia e filosofia moral eram
de conteúdo nos cursos, não foram alcançados. Coube ao Conselho classificadas juntas, e o regente senior, William Law of Elvington,
Municipal de Edimburgo, o orgão governante da Universidade de tornou-se professor de filosofia moral e de pneumatologia. Os outros
Edimburgo, tomar a primeira atitude efetiva e decisiva. dois regentes tornaram-se um o professor de lógica e outro o de filosofia
Na Escócia do século XVII, quase todo o ensino universitário e natural. Quando Law morreu, em 1729, a cátedra foi reivindicada, devido
todo o ensino de filosofia foi feito por regentes, jovens nomeados logo ao seu maior tempo de serviço, por William Scott, que tinha sido professor
após a graduação. Um estudante de graduação tinha o mesmo regente de grego desde 1708. A base da reivindicação de Scott é facilmente
durante toda a carreira universitária, e o regente geralmente ensinava compreendida. Em 1708, os regentes de filosofia parecem ter feito sua
todo o currículo de artes. Os regentes, portanto, não eram especialistas, escolha das cátedras por ordem cronológica; a suposição de Scott era
raramente excepcionais em alguma área, e não gozavam de autoridade que quando um professor morresse ou se aposentasse - os professores
na comunidade em geral. Eles ensinavam um currículo estabelecido eram nomeados "ad vitam aut culpam" -, a regra para a escolha do
para eles por outros. Foi, portanto, uma transformação da posição do professor por ordem cronológica voltava a valer. O Conselho Munici-
professor universitário, dentro da universidade e na comunidade em pal imediatamente deixou claro que não era bem assim. Eles, de fato,
geral, quando os regentes foram substituídos por professores que se nomearam Scott, mas apenas depois de examinar privadamente sua
especializavam em suas pesquisas, gozavam de autonomia para conceber competência na matéria - Scott tinha publicado em 1707 um compên-
seus próprios currículos e desenvolver sua disciplina, passando a ter dio anotado de Grotius - e um membro do Conselho, Bailie Fenton,
um novo prestígio. Ao substituir os regentes de filosofia por professores, pensava que até isso era inadequado.
o conselho municipal de Edimburgo, em 1708, deu um passo funda-
mental para tornar a filosofia ainda mais fundamental à vida nacional
É compreensível, portanto, que, quando em 1734 Scott pediu que
do que já tinha sido. sua cátedra fosse assistida por John Pringle, de modo que Pringle pu-
desse cumprir as tarefas de ensino que a má saúde de Scott impedia
Em Glasgow e em Edimburgo, já havia, obviamente, alguns pro- que realizasse, o Conselho Municipal avaliou a indicação de Pringle
fessores no século XVII. Andrew Melville teria desejado substituir os com grande rigor. Estabeleceram-se regras para garantir que as aulas
regentes por professores em 1580. Em 1620, por exemplo, uma cátedra de pneumatologia e filosofia moral fossem dadas. Além disso, todas as
de Matemática foi fundada em Glasgow, e uma de Humanidades foi segundas-feiras Pringle tinha de lecionar sobre a verdade da religião
concedida em St. Andrews, mas o primeiro prescreveu e o segundo cristã. Depois da morte de Scott, Pringle se manteve na cátedra.
teve uma história inconstante durante um quarto daquele século. Foi
,Glasgow seguiu o exemplo de Edimburgo em 1727, mas somente
apenas com a importância crescente da influência protestante continen-
tal, e no final do século mais especialmente de Utrecht e de Leiden, depois da interferência de um Çomitê de Visitação, dominado por re-
que o papel do professor recebeu o devido reconhecimento na Escócia. presentantes de Edimburgo. Novamente, os regentes escolheram que
O grande James Gregory foi primeiramente professor de Matemática cátedra de filosofia ocupar através do critério cronológico. Gerschom
Carmichael, regente desde 1694, educado em Edimburgo, que tinha não
258 O substrato agostiniano e aristotélico do iluminismo escocês O substrato agostiniano e aristotélico do iluminismo escocês 259

apenas editado Pufendorf, mas também publicado um manual de lógi- deveres de um professor de filosofia estava relacionado com o equilí-
ca, escolheu a cátedra de filosofia moral. Quando Carmichael morreu brio instável entre autoridade e poder entre as instituições eclesiásticas
em 1729, depois de publicar sua Synopsis Theologiae Naturalis naquele e seculares na Escócia do século XVIII. (Sobre a história da Univer-
ano, seu filho, um pastor mais tarde famoso por seus sermões, candidatou- sidade de Edimburgo, ver a obra de Sir Alexander Grant, The Story of
-se à cátedra do pai, mas Francis Hutcheson foi nomeado. Estava ainda the Universis, of Edinburgh, 2 vols., Londres, 1844, que ainda não foi
insuficientemente claro, entretanto, se o critério cronológico não seria ultrapassada, apesar de precisar de revisão em alguns pontos; a obra de
retomado, para que Hutcheson tivesse de demonstrar sua competência James Coutt, A History of the University of Glasgow, Glasgow, 1909,
para qualquer uma das cátedras de filosofia. Desse modo, teve de defender é igualmente valiosa e confiável; sobre o desenvolvimento histórico do
uma tese em lógica, uma em física e uma em filosofia moral. Em física professorado escocês do século XVIII ver Roger L. Emerson, "Scottish
sua dissertação intitulou-se De Gravitatione Corporum versus se mutua; universities in the eighteenth century, 1690-1800", Studies on Voltaire
em lógica, De Scientia, Fide et Opinione inter se Collatis; e em filo- and the Eighteenth Century, vol. 167, Oxford, 1977; e para uma visão
sofia moral, An sit una tantum Morum Lex Fundamentalis, vel si sint geral, às vezes idiossincrática, mas sempre brilhante, da história intelectual
plures, quaenam sint? Todas as três dissertações foram apresentadas do século XVIII escocês, ver G. E. Davie, The Scottish Enlightenment,
no dia 20 de fevereiro de 1730. Londres, 1981).
Não por acidente Hutcheson iniciou sua carreira como professor de
filosofia moral em Glasgow com uma pesquisa sobre a concepção de
uma lei moral fundamental, pesquisa à qual deu continuidade em seu
ensino e em seus escritos. Pois a tarefa de um professor de filosofia
moral na Escócia do século XVIII passou a ser fornecer uma defesa
desses princípios morais fundamentais, concebidos como anteriores a
toda lei positiva e a todas formas particulares de organização social,
que definiam as instituições e atitudes peculiarmente escocesas. E, ao
fornecer esse tipo de defesa, a filosofia, e particularmente a filosofia
moral, assumiu um tipo de autoridade na cultura escocesa raramente
desfrutado em outras épocas e lugares.
Era, portanto, necessário, na Escócia do século XVIII, que um professor
de filosofia defendesse certa visão em matéria de justiça e de natureza
do raciocínio prático. A justiça deve ser definível nos termos do tipo
de princípio fundamental que já caracterizei; agentes plenamente racionais
devem ser motivados por tais princípios ao agir, e devem recorrer a
eles para justificar suas ações, prospectiva e retrospectivamente. Essa
associação entre ocupar certa posição institucionalizada, ser professor
de filosofia moral e esposar um certo ponto de vista particular aparece,
pela primeira vez e paradigmaticamente, na carreira de Francis Hutche-
son. Mas a importância de Hutcheson como modelo emerge também no
trabalho de seus sucessores, não apenas em Glasgow e Edimburgo, mas
também mais tarde nesse século em Aberdeen e St. Andrews, onde a
mudança de regentes para professores foi muito mais lenta.
Compreender qual era o papel de um professor de filosofia moral é
uma tarefa preliminar, necessária para a compreensão dos conflitos e
debates escoceses sobre a justiça e o raciocínio prático. E isto, por sua
vez, exige uma certa compreensão do modo como o cumprimento dos
Capítulo XIII

A FILOSOFIA
NA ORDEM SOCIAL ESCOCESA

Toda sociedade na qual a vida prática é confessadamente e em


grande medida governada, de fato, pelo recurso a algum acervo de
princípos fundamentais, deve possuir meios institucionalizados através
dos quais aqueles que se desviam, questionam ou revoltam-se contra
esses princípios são chamados a prestar contas. Na Escócia do século
XVII, essa função era desempenhada, na maioria das vezes, quando se
tratava de crenças ou de ações, pelos tribunais eclesiásticos estabelecida,
especialmente pelas sessões das kirks locais, apoiados, quando ne-
cessário, pelos tribunais seculares.
As sessões das kirks locais, nas quais os anciãos de cada paróquia
eram jurados, eram tribunais que tratavam da moral e da lei, aplicando
multas por fornicação e adultério, mantendo a observância do Sabbath
e exercendo o controle social geral num grau elevado. Eram eles que
indicavam o reitor da escola paroquial. E era uma marca da crescente
secularização da Escócia do século XVIII o fato de o poder desses
tribunais eclesiásticos ter declinado gradualmente, enquanto o sistema
legal secular, correspondentemente, funcionava cada vez menos como
um reforço do poder e da autoridade da Igreja estabelecida, mas antes,
como u h a instituição independente (ver B. Lenman e G. Parker, "Cri-
me and Control in Scotland 1500-1800", History To-Day, vol. 30, ja-
neiro de1980).
Era, naturalmente, essencial para o funcionamento dos tribunais
eclesiásticos poder acusar não apenas aqueles que infringiam a lei ou
que eram suspeitos de terem infringido os padrões de conduta estabe-
lecidos na Profissão de Fé de Westminster e nos Catecismos, mas tam-
262 A filosofia na ordem social escocesa A filosofia na ordem social escocesa 263

bém e especialmeke aqueles que questionavam as doutrinas das quais Os pastores que viriam a constituir o partido Moderado tendiam,
esses padrões derivavam. A heresia e o ceticismo eram tão cruciais, e por interesse e ponto de vista, a resistir a isso. Eles poderiam concor-
mais fundamentais quanto o adultério e o desrespeito ao Sabbath. E, ao dar com os Evangélicos quanto à condenação do status quo do padroado,
traçar os padrões mutáveis das acusações de heresia e dos julgamentos tal como fora estabelecido em 1711. Mas se tivessem de manter ou
por heresia, destacamos a crescente importância do papel da filosofia avançar sua posição, não apenas como pregadores, mas como profes-
na vida escocesa. O que emerge é uma confrontação entre os membros sores de congregações frequentemente ainda não-esclarecidas, o direito
e ministros da Igreja que afirmam ser a fé salvadora a única solução de padroado deveria caber aos membros das classes instruídas, I? pe-
para a dúvida e a descrença, e que os poderes da razão natural estão quena nobreza, aos advogados e professores que Francis Hutcheson
aquém de prover bases seguras à crença em qualquer dos dogmas fun- convidou para participar de um acordo sobre essa questão em 1735, na
damentais da religião cristã, e os que, contrariamente, afirmam ser a sua obra Considerations on Patronages Addressed to the Gentlemen of
religião cristã não apenas congruente com a racionalidade autêntica e Scotland.
não-corrompida, mas também que seus dogmas fundamentais fazem
parte das conclusões sustentadas pela pesquisa racional. Ao escrever essa obra, Hutcheson estava defendendo os interesses
da filosofia, dentro da Igreja e na cultura escocesa como um todo. Pois,
Não que houvesse, naturalmente, desde o começo, duas posições
antagônicas, claramente definidas e apoiadas por grupos opostos. Ha- o que o direito ao padroado determinava, em última analise, era a
via, pelo menos na primeira metade do século XVIII, um espectro de participação dos tribunais eclesiásticos - a sessão da kirk paroquial local,
posições. Mas, a partir do final da década de 1740, as divisões dentro o presbitério, o sínodo, e finalmente a assembléia geral - através da
da Igreja transformaram-se em divisões entre duas facções, talvez in- qual a disciplina era imposta aos dissidentes, desviantes e heréticos, e
constantes, mais ou menos organizadas: o chamado partido Moderado ainda através da qual era decidido quem era um dissidente, um desviante
e os supostos Evangélicos, nomes talvez facilmente utilizados de modo ou um herético. O resultado dos julgamentos por heresia e a questão do
anacrônico no período precedente, mas que, utilizados dessa forma, padroado estavam, portanto, diretamente relacionados, e foi de um modo
adquirem uma certa justificação. O progresso através do qual essa divisão crucial, nos julgamentos por heresia, que as alegações em favor da
emergiu e cristalizou-se foi um processo no qual o conflito sobre uma filosofia, especialmente da filosofia moral, tornaram-se aparentes.
série de questões reforçou linhas divisórias anteriores. Quão importan- É importante reconhecer o quanto as pessoas envolvidas em contro-
te era que os ministros da Igreja participassem das aquisições culturais vérsias dentro da Igreja da Escócia, nos séculos XVII e XVIII, estavam
da época, tais como matemáticos, historiadores ou filósofos? Deveriam de acordo. No que se refere às doutrinas cristãs fundamentais, expressas
os estatutos contra bruxaria ser revogados? Era o teatro um lugar para na Profissão de Westminster e nos Catecismos, não havia disputas entre
cristãos ou obra do diabo? E, o mais importante: era tolertive1 que o os que ocupavam posições de pastores e os anciãos. Quando, em 1696,
direito de padroado, que permitia ao governo e a alguns poucos nobres um estudante de teologia de Edimburgo, Thomas Aikenhead, foi acu-
grandes proprietários de terras nomear o pastor em muitas paróquias, sado de várias heresias, inclusive de ter negado a autoridade das Es-
continuasse a existir e, se não, o que deveria substituí-lo? crituras e a divindade de Cristo, ele foi levado a julgamento em janeiro
A relação indireta das divisões sobre essa última questão com as de 1697 e enforcado publicamente pela autoridade civil (State Trials,
discordâncias quanto ao estatuto da filosofia é importante. Os minis- vol. XIII); e essa última execução por heresia na Escócia foi defendida
tros, que mais tarde passariam a constituir o partido Evangélico, que se em debates subseqüentes por clérigos de todas as facções. A questão
voltavam não apenas para a Confissão de Westminster e para os Cate- era o quanto e como as doutrinas da religião cristã podiam ou deviam
cismos, mas para a Liga e Convenção Solenes de 1643 e também para ser apresentadas com fundamento nas conclusões da pesquisa filosófica.
os que, nos reinados de Carlos I1 e James 11, tinham sofrido martírio, E, ao afirmar a impotência da razão natural em geral, e da filosofia em
devido à sua adesão persistente à Convenção, desejavam que permane- particular, os proto-Evangélicos forjaram uma aliança tácita entre sua
cesse o direito de nomear pastores em cada congregação paroquial. teologia e o ceticismo filosófico em questões metafísicas e morais. A
Tais congregações eram compostas, na sua maioria, por aqueles que, primeira declaração evangélica definitiva, estruturada nos termos dessa
não tendo propriedade, faziam parte dos menos instruídos e que ten- aliança, foi feita por Thomas Halyburton, que se tornou professor de
diam a reagir à pregação Evangélica. teologia em St. Andrews em 1710.
264 A filosofia na ordem social escocesa A filosofia na ordem social escocesa 265

O pai de Halyburton fora deposto do ministério paroquial por se Vale a pena observar a diferença de atitude entre Halyburton e
recusar a reconhecer a supremacia real em 1662, e fora denunciado ao Robert Baillie. A teologia de Halyburton visava representar a mesma
Privy Council por sua participação em reuniões secretas ilegais, em adesão à teologia teocrática não apenas da Profissão de Westminster e
1682. Thomas Halyburton fora educado no exílio, na Holanda, quando dos Catecismos, mas também à da Liga e Convenção Solenes, como
criança, e representava, por sua formação e ligações familiares, como sendo a mesma de Baillie. Mas se, por um lado, a estrita ortodoxia
por convicção, a tendência pró-convenção na Igreja da Escócia que, se calvinista de um Baillie, ou de um Voet, resultava na convicção de que
tivesse sido bem-sucedida na sua reivindicação de representar a orto- a argumentação filosófica falaciosa tinha de ser enfrentada por uma
doxia da Profissão e dos Catecismos, teria impedido a ascensão do argumentação filosófica sólida, assim como através da pregação, por
partido Moderado. Mas as convicções de Halyburton eram por demais outro lado, a mesma ortodoxia calvinista estrita, na versão de Haly-
pessoais, adquiridas na sua reação às crises de dúvida que o afligiam burton, levava não apenas a um ataque contra a filosofia como tal, mas
ainda em 1696, ano de sua formatura em St. Andrews. Nessas crises, em primeiro lugar contra, justamente, o tipo antigo de filosofia ao qual
Halyburton considerava que tinha descoberto duas coisas: perante o Baillie apelara. A visão de si mesmos, tomada por Halyburton e por
violento assalto da dúvida cética, apenas uma fé escriturística na reve- seus sucessores teológicos, como os autênticos defensores daquilo que
lação da obra salvadora do Cristo tinha eficácia, e o recurso à argu- a Igreja da Escócia representara na metade do século XVII implicava,
mentação racional era não apenas ineficaz, mas uma armadilha ilusó- portanto, uma concepção errônea do que tinha sido a ortodoxia e um
ria. novo modo de estabelecer os limites entre ortodoxia e heresia.
Um dos alvos específicos de Halyburton foi Aikenhead. Outro foi Não nos deve surpreender, portanto, que tenha havido, na primeira
Archibald Pitcairne, médico e professor de medicina, cujo deísmo metade do século XVIII, uma série de julgamentos por heresia nos
Halyburton atacou em sua aula inaugural: "A Modest Enquiry whether quais as questões principais eram a relação da pesquisa racional em
Regeneration or Justification has the Precedency in the Order of Na- geral com a revelação cristã dentro dos estudos teológicos e, mais
ture". Pitcairne era jacobita e inimigo de qualquer tipo de calvinismo. particularmente, das pesquisas do filósofo moral com esta mesma re-
Nunca frequentou cultos públicos e, pior ainda, atacava seus opositores velação, embora às vezes a ortodoxia do acusado com relação a alguma
111 com piadas e argumentos. A ele se atribuía a autoria de um panfleto doutrina cristã fundamental, tal como a da Trindade ou da obra de
,,, publicado anonimamente em latim, a Epistola Archimedis, que apare- intercessão de Cristo, estivesse em questão. Tais são os julgamentos
ceu em 1688, e foi este texto que Halyburton atacou. Mas Halyburton por heresia de John Simson, professor de Teologia em Glasgow, em
tratava os contemporâneos que atacava como meros exemplos locais de 1717 e em 1727; de Archibald Campbell, professor de História da
formas universais de pecado e erro. O que se apresentava agora, numa Igreja em St. Andrews e discípulo de Simson, em 1735-1736; de Francis
variedade de formas locais, era a recorrente pretensão infundada do Hutcheson, também discípulo de Simson, em 1738; e de William
raciocínio filosófico. Portanto, em sua obra principal: Natural Religion Leechman, professor de Teologia em Glasgow, amigo íntimo de Hutcheson
Insufficient and Revealed necessary to Man's Happiness (Edimburgo, e discípulo de William Law, o primeiro titular da cátedra de filosofia
I 1714), Locke, Hobbes e Espinoza são citados, mas ainda mais impor- moral em Edimburgo, em 1744. O primeiro desses três julgamentos foi
tante, a filosofia grega é impugnada por exibir a arrogância da razão feito perante Comissões especialmente constituídas da Assembléia Geral,
natural na ausência da revelação cristã. A admiração a Sócrates é enquanto os dois últimos nunca foram além do nível do presbitério ou
condenada, e ao fazê-lo, Halyburton toca num ponto reiterado em con- do sínodo.
trovérsias posteriores. Quando, muito mais tarde, o evangélico John Em ambos os julgamentos de Simson, o que estava em questão era
Witherspoon tentou contrapor-se ao que considerava a influência per- sua asserção de que os seres humanos eram levados a obedecer a Deus
niciosa de Hutcheson no seu panfleto satírico de 1753, Ecclesiastical a partir de uma perspectiva de felicidade futura, porém, mais funda-
Characteristics - que reúne o estilo debochado de Pitcairne e a subs- mental ainda era sua confessada máxima diretiva de que a razão é o
tância do pensamento de Halyburton -, o que foi ridicularizado foi princípio e o fundamento em teologia. Quando Simson foi absolvido
não apenas a admiração de Hutcheson por Shaftesbury, mas também em seu primeiro julgamento, os comissionários determinaram que cui-
seu elogio de Sócrates, Platão, Aristóteles e Marco Aurélio. dasse de distinguir o que podia ser conhecido pela razão do que só
266 A filosofia na ordem social escocesa A filosofia na ordem social escocesa 267

podia ser apreendido pela fé. No seu segundo julgamento, Simson foi sentido importante, os Secessores estavam certos. Náo quero, ao dizer
condenado, mas o grau de simpatia para com as suas visões mostra-se isso, tomar partido quanto às questões suscitadas por esses tribunais
no fato de que, embora impedido de lecionar a partir de então, teve a específicos de heresia. Quero, antes, apontar como a ascendência cres-
permissão de continuar ocupando a cátedra e recebendo o salário até a cente da filosofia marcou uma transformaçáo radical no modo de jus-
morte, em 1740. tificaçáo e utilizaçáo dos princípios fundamentais na cultura do
A resposta de Archibald Campbell à Comissão da Assembléia Geral presbiterianismo escocês. O que emergiu foi um período no qual as
responsável pelo seu caso é esclarecedora. Campbell não hesitou em asserçóes referentes aos primeiros princípios eram avaliadas, justifi-
conceder que a revelaçáo é necessária para qualquer conhecimento cadas e impugnadas, através dos padrões de debate e de pesquisa filo-
suficiente da natureza e da vontade de Deus. Mas os seres humanos sóficos. Num grau significativo, os julgamentos ocorridos nas arenas
devem julgar as asserções da revelaçáo "através da natureza das coisas, de controvérsias filosóficas usurpavam o lugar dos julgamentos pro-
ou a partir de máximas comuns ou princípios do senso comum que sáo postos pelos tribunais eclesiásticos, quando náo por outros motivos,
noções ou proposições auto-evidentes, não necessitando de prova...". pelo menos porque os clérigos e leigos que viriam a formar o partido
Aqui encontramos o mesmo recurso à evidência dos primeiros princí- Moderado agiam e votavam, nesses tribunais, de acordo com o que
pios utilizado por Stair, embora o autor citado por Campbell tenha sido consideravam ser as conclusóes do raciocínio filosófico. "Temo mui-
o deísta inglês Matthew Tindal (ver James K. Cameron, "Theological tíssimo que um tipo racional de religião esteja nascendo entre nós",
Controversy: A Factor in lhe Origins of the Scottish Enlightenment", Thomas Halyburton profetizara. Mas, por volta de 1729, Robert Wallace,
The Origin and Nature of the Scottish Enlightenment, ed. R. H. Campbell o pastor de Moffat, fez no Sínodo de Dumfries um sermáo que náo
e A. S. Skinner, Edimburgo, 1982). poderia ter sido interpretado por sua audiência como uma réplica ao
resultado do segundo julgamento de Simson, no qual disse à audiência
Entre os pronunciamentos com base nos quais Campbell foi acusa- que examinasse, à luz da razão, todo recurso à revelaçáo, antigo ou
do estava a reiteração da visão de Simson de que a perspectiva de recente. A razão é, realmente, insuficiente em matéria de religião; a
felicidade futura era a base da obediência cristã, uma visão que Campbell revelaçáo é feita por Deus para compensar essa insuficiência. Mas cabe
propôs baseado na teoria da auto-estima como a única motivaçáo para a nós escrutinar, criticar e interpretar todos os recursos à revelaçáo
a virtude; e quando, mais tarde, Hutcheson foi acusado de heresia, foi feitos pela pesquisa racional. Desse modo, Wallace endossava a defesa
por "ensinar, contrariamente à Profissáo de Westminster, as seguintes de Campbell da pesquisa filosófica (Cameron, op. cit., 23). E a filoso-
doutrinas falsas e perigosas: primeiro, que o padráo para a bondade fia era e devia ser o instrumento principal dessa pesquisa racional.
moral era a promoção da felicidade dos outros; e segundo, que pode-
mos ter um conhecimento do bem e do mal, independente e anterior- Como a filosofia passou a ter esse tipo de hegemonia cultural e
mente ao conhecimento de Deus" (citado por W. R. Scott, Francis quais eram as características do papel dos professores de filosofia moral,
Hutcheson, Cambridge, 1900). O ataque a Leechman, que era parte de em virtude das quais tinham um papel tão fundamental na sociedade?
Primeiramente, é importante observar como a discussão filosófica es-
uma tentativa de impedi-lo de assumir sua cátedra, parece ter sido
tendeu-se além das aulas da universidade. Os professores, ocasional-
motivado pelo medo de que a influência de Hutcheson aumentasse, o
mente, davam aulas particulares para quem não frequentava a universidade.
que, como os seus críticos corretamente acreditavam, seria uma conse-
qüência da indicação de Leechman. As aulas de Hutcheson eram frequentadas por "homens de negócios e
jovens da cidade" (Scott, op.cit., 63). Mais importante ainda, o dom
Todos os três - Campbell, Hutcheson e Leechman - foram ab- para o debate filosófico foi alimentado pelo modo como, no ensino
solvidos, e sua absolvição coincidiu com a época da separaçáo da Igre- universitário de filosofia, as aulas do professor eram complementadas
ja dos chamados Secessores, principalmente os pastores evangélicos por períodos de discussão, pelo exame oral dos alunos e, ocasionalmente,
Alexander Moncrieff, um crítico afiado da teoria da auto-estima de por debates. As sociedades total ou parcialmente voltadas para a dis-
Archibald Campbell, e os irmãos Ebenezer e Ralph Erskine, que ale- cussáo filosófica, que passaram a existir nas principais cidades uni-
gavam ter a Igreja da Escócia divergido, em vários sentidos cruciais, versitárias, ofereciam oportunidades para que as pessoas que tivessem
da sua Profissão de Fé. Base para essa asserçáo era a incapacidade da completado seus estudos de graduação pudessem exercer as capacida-
Igreja, segundo eles, de lidar adequadamente com a heresia. E, num des então desenvolvidas.
268 A filosofia na ordem social escocesa A filosofia na ordem social escocesa 269

A mais importante dessas sociedades, o clube rankeniano de Edim- religião cristã", ele "devia considerar sua cátedra como consistindo no
burgo, fundado por alunos de direito e teologia, por volta de 1708, ensino de teologia" (ver M. A. C. Stewart, "Hume, Wishart and the
tomou-se um fórum no qual as teses fundamentais de Locke e Berkeley Edinburgh Chair", Journal of tlre History of Philosophy). E, dentre os
foram introduzidas no debate escocês, paralelamente à introdução posterior candidatos sugeridos por Hutcheson para a cátedra de filosofia moral
dos escritos deístas de Tindal nas controvérsias teológicas. Em Glasgow, em Edimburgo em 1744, quando tomou consciência de que havia a
uma sociedade de estudantes semelhante à rankeniana foi fundada mais possibilidade de ela tornar-se vacante devido à demissão do sucessor
ou menos na mesma época. E, embora a Sociedade Literária da Faculdade de Law, John Pringle, uni deles, Robert Pollock, tornou-se professor de
de Glasgow tivesse sido fundada apenas em 1752, depois da morte de teologia logo depois. É claro que os professores de filosofia moral
Hutcheson, ela teve seus antecessores ainda durante sua vida (Smout, estavam, e deveriam estar, tão comprometidos com um ponto de vista
A History of the Scottish People, 39). O mais original foi o modo no particular quanto seu colegas de teologia.
qual, quando mais tarde a discussão filosófica começou a florescer nas Eles eram capazes, entretanto, na sua visão da justificação racional
faculdades de Aberdeen, naquele século, a Sociedade Filosófica local, e nos seus métodos, de utilizar os recursos derivados de amplos acor-
fundada em 1758, reuniu George Campbell, Thomas Reid, John Gre- dos entre os filósofos e os expoentes de outras disciplinas seculares.
gory e outros, naquilo que viria a ser uma refundação e reformulação Com eles - os professores de direito, matemática e física - compar-
sistemática da tradição filosófica escocesa. tilhavam a concepção da justificação racional herdada como derivação
As atividades dos membros dessas sociedades foram causa e con- dedutiva de conclusões subordinadas a partir de primeiros princípios
seqüência de uma expansão da leitura de textos filosóficos que trata- evidentes, uma concepção expressa de forma paradigmática na geome-
vam não apenas daqueles que hoje seriam considerados assuntos filo- tria euclidiana. Os professores de geometria e de matemática em geral
sóficos, mas também das áreas de teologia natural, ciências, direito e deviam apresentar sua matéria de modo a tornar clara sua relevância
pesquisa social, que eram ainda tratadas como filosofia. Hutcheson geral. Quando, no século XIX, Sir William Hamilton recordava-se dos
ajudou seu ex-aluno, Robert Foulis, a tornar-se primeiro livreiro e, em antigos catedráticos em matemática de Edimburgo, descrevia seu ensi-
1741, editor em Glasgow. O efeito foi o de criar um fenômeno raro, no como um tipo de ensino "que até hoje sempre deveu sua celebridade
um público culto, nesse caso, um público filosoficamente culto, que não mais à habilidade matemática do que à habilidade filosófica e ao
lu/ ensino variado de seus professores" (citado em G. E. Davie, The
compartilhava padrões de justificação racional e uma deferência a uma
I)I'll Democratic Intellect, Edimburgo, 1961, 120). E Glasgow não era dife-
autoridade de ensino, à autoridade dos professores de filosofia, prin-
rente de Edimburgo.
cipalmente de filosofia moral. Ser chamado para explicar suas crenças
e juízos, no que se refere, seja à sua justificação através da dedução Robert Simson, que se tornou professor em Glasgow em 1711, editou
dos primeiros princípios, seja à evidência desses próprios primeiros Papus, Euclides e defendeu a superioridade da geometria antiga contra
princípios, era uma questão, a partir de 1730, de ser chamado para os cartesianos. Em Edimburgo, Colin Maclaurin, filho de um ministro
defender-se nos fóruns de opiniáo filosoficamente culta e não nos tribunais paroquial em Glendaruel, graduado pela Universidade de Glasgow aos
eclesiásticos. quinze anos, conseguira a cátedra de matemática no Marischal College,
Aberdeen, aos dezenove anos, tendo sido indicado em Edimburgo em
O papel do professor de filosofia moral era, portanto, cmcial. Ele
1725, sob a recomendação de Newton, e fez da geometria o fundamen-
era o defensor oficial dos fundamentos racionais da teologia cristã, da to do ensino da matemática. O curso introdutório de matemática cobria
moral e da lei. E era também, necessariamente, o defensor, juntamente os livros I-VI de Euclides. Foi Maclaurin que, em 1742, refutou Berkeley
com seus colegas acadêmicos, na filosofia e em outras áreas, de um no seu Treatise of Fluccions, dando à matemática de Newton uma base
ponto de vista particular sobre o que a justificação racional e os mé- geométrica e, desse modo, ofereceu um exemplo clássico do que era
todos racionais de pesquisa e sobre o que suas conclusões proporcionam. considerado uma justificaçáo racional para um acervo particular de
William Wishart, reitor da Universidade de Edimburgo e, como Leechman, crenças, na Escócia do século XVIII.
aluno de William Law -quando em Glasgow ajudou a indicar Hutcheson
- afirmava que, porque o catedrático de filosofia moral devia ensinar Uma das preocupações fundamentais de Maclaurin, na resenha de
"os princípios da Religião Natural e da Moralidade e a verdade da seu livro, apresentada em duas comunicações à Philosophical Transactions
A filosofia na ordem social escocesa A filosofia na ordem social escocesa 271

da Royal Society, era enfatizar que uma volta aos padrões de rigor dos A filosofia moral era um tipo de pesquisa e um conjunto de conclu-
antigos geômetras era necessiria para evitar confusões filosóficas e sões intimamente relacionados a outros tipos de pesquisa e a suas
matemáticas. "Liberdades sem limites têm sido introduzidas ultima- conclusóes. O esquema estabelecido do conhecimento humano, na Escócia
mente, devido às quais a Geometria (na qual tudo deve ser claro) está dos séculos XVII e XVIII - e, até certo ponto, este esquema persistiu
cheia de Mistérios, e a Filosofia está igualmente perplexa. ... a Geome- no século XIX - era um esquema unitário, mais ou menos integrado,
tria sempre foi considerada nosso Baluarte mais seguro contra as Sutilezas cujas disciplinas implicavam umareferência contínua de umas às outras.
dos Céticos, que estão prontos para fazer qualquer uso de qualquer E tanto a unidade como a diferenciaçáo desse esquema foram duplicadas
Vantagem que lhes possa ser oferecida contra ela (aqui Maclaurin, em no currículo. Os professores que ensinavam esse currículo, portanto,
nota de rodapé, remete seus leitores ao artigo sobre Zenão no Dictionary
deviam ter um amplo conhecimento fora de sua própria disciplina,
de Bayle); e é importante, não apenas que as Conclusões em Geometria
sejam verdadeiras, mas que sua Evidência (isto é, evidenciabilidade) especialmente os professores de filosofia moral cujos ensinamentos e
seja sem exceções..." (Philosophical Transactions, n. 468, vol. 42, 20 pesquisas davam a esse currículo, em grande medida, seu foco central.
de janeiro - 3 de fevereiro de 1742-1743, 327). Já ressaltei que o professor de filosofia moral era um professor secular
de teologia, mas ainda tinha de conhecer outras áreas. Thomas Craigie,
O fato de a justificação racional adequada ser sempre formalmente cujo nome também estava na lista original de candidatos originalmente
dedutiva não implica,é óbvio que, que a pesquisa racional seja dedu- sugeridos por Hutcheson para suceder Pringle como professor de filo-
tiva, e nem Maclaurin nem seus colegas acadêmicos, em momento sofia moral em Edimburgo, era nessa época professor de hebraico em
algum, consideravam que o fosse. As particularidades históricas con- St. Andrews, e mais tarde, antes de finalmente suceder a Hutcheson em
tingentes da revelação divina invocada pelos teólogos, os experimentos Glasgow, foi candidato à cátedra de matemática em Edimburgo (Stewart,
físicos catalogados por Stair e as soluções de problemas matemáticos op. cit.). Mas Craigie não era, de modo algum, único em termos de
particulares propostos por Maclaurin oferecem-nos o conhecimento de polimatia. Hutcheson e Reid, por exemplo, interessavam-se profunda-
verdades que então confirmamos, ao descobrir seu lugar dentro da
mente por matemática contemporânea.
hierarquia geral da explanação dedutiva. Segundo Maclaurin (AnAccount
of Sir Isaac Newton's Philosophical Discoveries, Londres, 1748) um O papel institucionalizado do professor de filosofia moral, portanto,
"[II
aspecto fundamental da obra de Newton era ter evitado as ambições tornava-o um dos mais importantes sustentáculos de uma tradição in-
!ll~~ metodologicamente dedutivas de Descartes, Leibniz e Espinoza. É CN- telectual e cultural especificamente escocesa, que se definia nos termos
cial "que comecemos pelos fenômenos, ou efeitos, e a partir deles das concepções compreensivas da justificação e da explicação racional
investiguemos as potências ou causas que operam na natureza. ...
Uma que descrevi. Era uma tradição com origem em certos precedentes e
, vez em posse dessas causas, devemos então descer na ordem contrária; doutrinas medievais, transmitidos através dos comentadores escolásticos
e a partir delas, como princípios estabelecidos, explicar todos os fenô- de Aristóteles, dentro e fora da ~ s c ó c i a . ' ~ ela
a s só foi completamente
menos que são suas conseqüências, e provar nossas explicações ..."
(pp. articulada no século XVII. A partir de então, desenvolveu-se através da
8-9). confrontação com uma série de desafios postos por conflitos internos
I
I
É esse método que define a relação da física com a teologia. "De- e externos. Como todas as tradições, defendia-se do ponto de vista de
vemos nos esforçar por alcançar a causa suprema, partindo dos efeitos seus seguidores, à medida que era capaz tanto de reconhecer e dar a
através das causas intermediárias. Devemos buscar conhecer Deus a importância devida às objeções e dificuldades postas, através do encontro
partir de suas obras, e não fingir que identificamos o esquema de sua '
com pontos de vista opostos, ou dos conflitos sobre sua própria in-
conduta, na natureza, a partir das idéias muito deficientes que somos terpretação, por parte de seus seguidores, como de descobrir, dentro de
capazes de formar acerca do grande e misterioso Ser. esse modo, a si mesma, os recursos para avaliar tais objeções e dificuldades e para
filosofia natural pode tornar-se uma base segura para a religião natural, reagir a elas, quando necessário, através de revisões e extensões de
mas é um grande absurdo deduzir a filosofia natural de uma hipótese suas próprias doutrinas.
inventada para que nos possamos imaginar possuidores de um sistema
mais completo de metafísica, ou concebida talvez a fim de que, mais A partir de um ponto de vista externo a essa tradição, é fácil isolar
facilmente, possamos tornar mais óbvias algumas dificuldades em teo- cada uma de suas teses particulares e exigir uma justificação de cada
logia natural" (p. 90). uma, isoladamente das outras. Isso ocorre, por exemplo, no que diz
A filosofia na ordem social escocesa A filosofia na ordem social escocesa

respeito à objeção de que haja primeiros princípios e concepções evi- teorias abrangentes nas ciências físicas são justificadas, e não há ne-
dentes, tal como foi posta dentro da tradição escocesa dos séculos nhum outro modo de fazê-lo. Assim ocorreu, de fato, com as teorias
XVII e XVIII, a partir de um ponto de vista aristotélico, ou de qual- metafísicas e teológicas na Escócia dos séculos XVII e XVIII.
quer outro ponto de vista. Não há nenhuma afirmação não-trivial que
tenha parecido evidentemente verdadeira para todos os seres humanos Naturalmente, não foi assim que os defensores dessas teorias com-
de inteligência moderada. Até mesmo o princípio da não-contradição, preenderam a si mesmos e a seu trabalho intelectual. O fato de eles não
tal como formulado por Aristóteles, já encontrou pensadores geniais o terem percebido a particularidade, a historicidade, ou mesmo a reali-
suficiente ou suficientemente equivocados para negá-lo. Esse fato, por dade de sua própria tradição intelectual não nos deve surpreender por
si s6, pareceu dar a muitos pensadores bases suficientes para negar as duas razões bastante distintas. Em primeiro lugar, o tipo de compreensão
asserçóes escocesas ou aristotélicas, ou quaisquer outras, de que haja histórica que lhes teria permitido fazê-lo ainda não existia e s6 viria a
primeiros princípios e concepções evidentes. Seguidores de tradições e existir quando os filósofos alemães da história, do século XIX, nos
pontos de vista diferentes já responderam a essa negação de modos permitissem chegar a um acordo com Vico. Em segundo lugar, era tão
bastante diversos. Observei, por exemplo, como, a partir do século fundamental para os pensadores da tradição escocesa quanto o fora
XVII, as versões escocesas dessa argumentação apóiam-se na asserção para os pensadores de um aristotelismo anterior ou para o próprio
de serem capazes de propor explicações convincentes - convincentes Aristóteles, afirmar a uniformidade e a universalidade da natureza humana
do ponto de vista da tradição - de por que pessoas ou classes de a partir de seu próprio ponto de vista particular. Walter Bagehot iria
pessoas particulares não conseguem considerar evidente o que, de fato, brincar com Adam Smith, dizendo que, nas suas aulas em Glasgow,
o é. A evidenciabilidade é considerada como não sendo igualmente assim como na sua obra The Wealth of Nations, tinha-se proposto "a
aparente para todos. imensa tarefa ... de dizer como, sendo originalmente um selvagem, o
ser humano chegou a ser um escocês" (Collected Works, vol. 3, ed. N.
É importante, nesse momento, que haja uma forma mais geral de St. John-Stevas, Cambridge, Mass., 1968, 91). Mas este era, mutatis
defesa do recurso a primeiros princípios e concepções evidentes do que mutandis, o projeto de quase todo pensador escocês dos séculos XVII
as já de fato invocadas. Essa defesa implica três posições. A primeira: e XVIII: nessa visão geral das coisas, é a peculiaridade distintiva dos
apenas no contexto de uma tradição coerente, que fornece uma estrutura modos escoceses de pensamento e cultura que, na sua particularidade,
conceitual comum, uma concepção comum do que constitui um problema a universalidade se torne manifesta. Todos os seres humanos partilham
fundamental e uma visão comum de como as informações devem ser a mesma natureza humana, não apenas no que diz respeito às potências
identificadas, que as teorias conflitantes podem ser organizadas como de raciocínio e paixões, mas também no que se refere a, pelo menos,
estruturas dedutivas dependentes de primeiros princípios. Sem esses as bases para o julgamento moral. Pensadores escoceses de visões que,
pré-requisitos não pode haver nenhum procedimento através do qual sob outros pontos de vista, seriam totalmente divergentes, partilham
uma tal teoria possa ser justificada ou não, diante de seus opositores. essa crença, o que não nos surpreende, tendo em vista a doutrina cristã
A segunda: só com relação a alguma teoria oposta, ou grupo de teorias da natureza humana que herdaram. Conseqüentemente, como sugeri,
opostas, é que uma teoria particular pode ser considerada justificada ou tais pensadores também partilham o problema de como explicar as
injustificada. Não há uma justificação em si, assim como não há uma diferenças óbvias de cultura e as discordâncias referentes à moralidade,
justificação independente do contexto de uma tradição. E, em terceiro das quais os europeus tornavam-se cada vez mais conscientes, no final
lugar, os primeiros princípios de tal teoria não são justificados ou não- do século XVII e início do século XVIII. E um modo de avaliar pontos
justificados independentemente da teoria como um todo. É o sucesso de vista opostos, dentro dos debates escoceses, será perguntar quais
ou o fracasso da teoria como um todo, ante as objeções postas a partir recursos foram capazes de utilizar na tentativa de propor uma solução
de seu próprio ponto de vista ou de pontos de vista opostos, que sustenta convincente para esse problema.
ou deixa de sustentar os primeiros princípios aos quais essa teoria apela.
As características proeminentes do desenvolvimento da tradição
E a evidenciabilidade desses princípios é sempre relativa ao esquema intelectual escocesa devem estar claras agora. Podemos reuni-las em
conceitual que essa teoria particular expressa e que, através do seu quatro grupos, cada um deles definindo uma área de acordo socialmen-
sucesso ou fracasso, sustenta ou deixa de sustentar. É desse modo que te compartilhado e um conjunto de questões abertas à controvérsia
274 A filosofia na ordem social escocesa A filosofia na ordem social escocesa 275

efetiva ou potencial. Essa tradição era, antes de tudo, uma tradição de sua teologia; o primeiro significava que deviam enfrentar todos os
essencialmente teológica, cujos textos clássicos vinham da versão contra-argumentos que implicavam conclusões efetiva ou aparentemente
calvinista da teologia agostiniana. Um certo conhecimento da natureza incompatíveis com sua posição, de modo que tiveram de rever todas as
e da vontade de Deus era considerado a pedra de toque de toda pesqui- posições filosóficas possíveis que exigiam refutação apologética. Essas
sa, independentemente de quão secular fosse. Inicialmente, os proble- posições eram determinadas pela natureza de uma segunda área na qual
mas eram postos pelo deísmo e não pelo ateísmo. Até que ponto pode- o acordo intelectual entre os seguidores da tradição também exigia
se chegar, numa tentativa de acordo com os deístas sobre o caráter de conflito intelectual.
uma religião racionalmente fundamentada, sem pôr em questão o tipo
adequado de conhecimento de Deus? Mais tarde, formas mais radicais O tipo de esquema dedutivo hierárquico e a visão de como devia ser
de descrença tiveram de ser enfrentadas. Os teólogos moderados tive- construído e compreendido, fundamentais para essa tradição, puseram
ram de se identificar na luta contra duas posições opostas caracteriza- seus seguidores em conflito com o que consideravam as construções
das por George Campbell, que se tornou reitor do Marischal College metafísicas racionalistas excessivamente ambiciosas de Descartes, Leibniz
em 1754, quando aconselhava sua sobrinha: "Os dois extremos a serem e Espinoza e com o empirismo de Locke. Realmente, foi em parte a
evitados são o libertinismo e a beatice" (citado por J. McCosh, The Scottish necessidade de encontrar bases adequadas para a rejeição da metafísica
Philosophy, Londres, 1875, 244). O libertino desconhece as legítimas racionalista que levou a uma certa aceitação de Locke (Cleghorn, na
reivindicações da religião. E o libertino intelectualmente perigoso era sua graduação em 1739, defendeu uma dissertação na qual negava o
aquele que reforçava a indiferença à obediência a Deus na vida coti- inatismo de qualquer idéia, mas afirmava a existência de uma aptidão
diana, através da construção de argumentos filosóficos céticos. A be- inata para a formação de idéias), mas o nominalismo de Locke era, em
atice, por outro lado, era marcada por apegos sectários, pelo entusi- sentidos cruciais, incompatível com a exigência de um conhecimento
asmo, um recurso excessivo ao sentimento em vez da razão, e pelo dos princípios universais, tão fundamental para a tradição escocesa.
fanatismo. Portanto, encontramos Hutcheson incluindo Locke entre os autores
Os beatos prototípicos, aos olhos do clero moderado e de seus pre- modernos que recomendava aos estudantes, mas também o encontra-
decessores, eram os pastores e os leigos secessores que foram final- mos recomendando Platão, Aristóteles e Cícero.
mente expulsos da Igreja da Escócia em 1740, mas que tinham durante O que Locke, de fato, impôs aos estudiosos escoceses foi a consci-
muitos anos deixado claro que consideravam que o clero daquela Igreja ência da necessidade de complementar sua metafísica e filosofia da
havia apostatado. Ebenezer Erskine, talvez o maior pregador secessor, ciência com uma epistemologia. Era um projeto de Hutcheson propor
atacava o que chamava de "os discursos vazios de moralidade" e o essa epistemologia, à medida que era necessária à realização das tarefas
recurso à obediência à lei moral. "A tendência e o curso fortes da da filosofia moral e da política. A natureza dessas tarefas derivava de
natureza devem ser alterados, e a razão (que reina na alma) deposta de
uma terceira característica proeminente da tradição intelectual escoce-
sua soberania e inclinar-se como um servo aos pés da graça soberana ..." sa, a sua concepção da justiça como não fundada sobre, e sustentando-
("The law of faith issuing forth from Mount Zion", The Whole Works
of Mr. Ebenezer Erskine, Edimburgo, 1785, vol.I,531). Outro secessor -se independentemente, das paixões e dos interesses. Portanto, Hobbes,
tinha argumentado que "há tão pouco do Cristo na maioria dos discur- Mandeville e os outros expoentes das versões da visão de que os seres
sos dos pastores e pregadores quanto nos escritos morais dos filósofos humanos são motivados totalmente pela auto-estima tinham de ser
pagãos ..." (Adam Gib, The Present Truth, Edimburgo, 1774, vol.1, 44- rejeitados.
45, citado e discutido em B. J. Bullert, Ethical Individualism and Religious Mas o mesmo ocorreu com as visões de teólogos tais como Archibald
Divisions in Enlightenment Scotland, Oxford University M. Litt. Campbell, que argumentara: a auto-estima e a perspectiva de felicidade
dissertation, 1980). eterna eram os verdadeiros motivos da obediência cristã. Hutcheson,
Contra essa extrema desconfiança da razão e da lei moral, segui- portanto, só podia defender a moralidade com a qual estava compro-
dores da tradição intelectual escocesa principal estavam comprometi- metido, defendendo alguma visão da justiça que tomasse nosso co-
dos com fornecer argumentos em defesa dos dogmas fundamentais de nhecimento do que é justo e nossas razões para fazer o que C justo,
sua metafísica, teologia e ética, e argumentos a favor dos argumentos. independentes do que quer que seja proposto por nossas paixões e
Esse último compromisso era uma questão de interpretar as exigências interesses.
A filosofia na ordem social escocesa A filosofia na ordem social escocesa

Desse modo, não podia evitar a confrontaçáo com as questões le- Um segundo debate envolvia a preservação da especificidade das
vantadas pelas quatro características proeminentes da tradiçáo escoce-
instituições e da cultura escocesas. Quase ningutm da geração de
sa, sua crença de que a razáo deve ser senhora das paixões e de que ela
Hutcheson tinha qualquer inclinação para fazer campanha pela revogaçáo
própria era capaz de motivar os seres humanos a obedecerem a prin-
do Act of Union, o que era compreensível. Por um motivo a defesa do
cípios gerais. O indivíduo que fosse chamado a explicar o fracasso no governo do Reino Unido estabelecido coincidiu com a defesa da Su-
controle das paixões devia, presumivelmente, ter tido o poder de reunir
cessão Protestante e do que a Igreja da Escócia considerava serem os
boas razões para controlá-las, e a perspectiva por parte dos tribunais seus direitos. Hutcheson era tão hostil ao jacobitismo quanto Cleghorn.
eclesiásticos, assim como por parte dos tribunais civis, visava aumen- Além disso, nos debates sobre a questáo da independência escocesa, o
tar e reforçar essas boas razões. Portanto, tanto no domínio legal como único defensor dessa independência, que era completamente articulado
no domínio moral, o indivíduo era considerado responsável por não e que tinha princípios, Andrew Fletcher de Saltoun, vinculara a questáo
obedecer a princípios sólidos, mesmo quando esses princípios estivessem da independência política a um programa intelectual e social que fora
em conflito com as paixões e os interesses desse indivíduo. decididamente rejeitado.
Qualquer um que estivesse comprometido com a manutenção do "Andrew Fletcher de Saltoun", escreveu George Lockhart de Carn-
ponto de vista moral dessa tradiçáo presbiteriana escocesa, tal como wath (Memoirs Concerning the Affairs of Scotland from Queen Anne's
Hutcheson, estava também comprometido com a formulaçáo e a justi- Accession to the Commencement of the Union of the Two Kingdoms of
ficação de um tipo particular de visáo da justiça e de uma visáo congruente Scotland and England in May, 1707, Londres, 1714, 68), "na primeira
relacionada com aquilo em que consiste o raciocínio prático. A tarefa parte de sua Vida, desenvolveu-se muito através da Leitura e de Viagens:
de Hutcheson era tentar realizar essa formulação e essa justificaçáo, foi sempre um grande Admirador das Repúblicas Antiga e Moderna ..."
náo apenas para uma audiência filosófica, cujas leituras incluíam Descartes Os princípios derivados dessa admiração levaram-no a romper suces-
e Malebranche, assim como Locke e Berkeley, mas também para uma sivamente com os governos de Carlos 11, James VI1 e Guilherme 111.
audiência teológica, cujos padrões de crença eram ainda definidos pela Mesmo quando compartilhava posições amplamente aceitas, como na
Profissáo de Fé de Westminster e pelos Catecismos. Nessa tentativa, sua oposiçáo aos exércitos efetivos como instrumentos potenciais de
não podia deixar de definir sua posição em termos de duas controvér- despotimo real, seus princípios próprios emergiam nas alternativas que
sias, cuja importância já tinha emergido, e de uma terceira cuja impor- advogava. Desse modo, em vez de um exército efetivo, Fletcher argu-
tância cresceu ao longo do século XVIII. mentava em A Discourse of Government with relation to Militias
(publicado em duas versões, uma em Londres, dirigida aos ingleses,
Quanto à primeira dessas controvérsias, o debate teológico interno em 1697, outra em Edimburgo, dirigida aos escoceses, em 1698) que
ao presbiterianismo escocês, tudo o que resta para ser reforçado é sua o serviço militar universal para os rapazes deveria ser feito através de
inseparabilidade da pesquisa filosófica. As implicações de cada uma e treinamento num tipo de campo que seria "tanto uma grande escola de
de todas as teses em filosofia, para as afirmativas e negativas teológi- virtude como de disciplina militar7' (Selected Political Writings and
cas, eram aspectos fundamentais e não marginais dessas teses, não Speeches, ed. D. Daiches, Edimburgo, 1979, 24). O serviço militar
tanto por causa das crenças religiosas particulares de filósofos indivi- faria uso de "uma disciplina severa, e de um método correto de dispor
duais e de suas audiências quanto, por um lado, por causa da pressuposta as mentes dos homens, assim como de formar seus corpos para as
unidade de pesquisa e do lugar crucial das crenças sobre Deus na ações militares e virtuosas...". Desse modo superaria as repúblicas antigas.
estrutura das afirmações de conhecimento e, por outro lado, por causa A oposiçáo de Fletcher ao Act of Union unia um apelo aos princí-
das doutrinas específicas da teologia calvinista escocesa. Um exemplo pios a um apelo à experiência. Desde a união das coroas sob James VI
da relevância dessas últimas para a filosofia é o modo no qual a Profissáo e I, a Escócia, assim argumentava Fletcher no parlamento escocês,
de Fé de Westminster afirma a predestinação e a liberdade da vontade tinha sido governada apenas por aqueles que eram subservientes h
humana, afirmações para as quais praticamente qualquer teoria filosó- Inglaterra, com o resultado de "que, de tempos em tempos, parecemos
fica da causalidade exercida por agentes humanos e sobre eles deve ser ao resto do mundo mais como uma província conquistada do que como
relevante. um povo independente livre" (op.cit., 70). Fletcher náo estava, por-
278 A filosofia na ordem social escocesa A filosofia na ordem social escocesa 279

tanto, argumentando em favor de uma continuação do status quo po- Em contrapartida, o pressuposto dos continuadores de uma tradição
lítico. O que então defendia? Segundo Fletcher - e sua visão clara- cultural especificamente escocesa era que havia uma terceira via que
mente deriva de suas leituras de Platão, Aristóteles e da história da não era nem a de Fletcher nem a dos anglicizantes. A manutenção do
expansão de Roma -, nenhum Estado ou governo de grandes pro- papel do professor de filosofia moral tornou-se central ao seu projeto,
porções pode evitar a corrupção. "As cidades de tamanho razoável exatamente porque os princípios peculiares e distintivos da lei, da edu-
podem ser facilmente governadas e o exemplo e a autoridade de um cação e da teologia escocesas dependiam, para sua sobrevivência, da
homem virtuoso são frequentemente suficientes para manter a boa ordem elaboração de teorias e teses filosóficas que pudessem reforçar esses
e a disciplina, e delas temos vários casos na história das repúblicas princípios e promover sua defesa no debate público dentro da Escócia,
gregas, enquanto grandes multidões de homens são sempre surdas a com tanta eficácia quanto o aristotelismo calvinista de Baillie fizera,
todas as exposições de razões, e a freqüência de maus exemplos é mais mas que tivessem também chegado a bom termo com os debates filo-
poderosa do que as leis" (op.cit., 134). A partir daí, Fletcher era levado sóficos da modernidade do final do século XVII e do início do século
à conclusão de que a Inglaterra e a Escócia deviam ser dissolvidas XVIII. E foi Hutcheson quem tornou visível, dentro e fora da Escócia,
enquanto nações e substituídas por doze cidades-estado, cada uma a importância social e cultural desse papel, de uma maneira que seus
autogovernada, mas unidas numa federação de propósitos para defesa predecessores, tais como Law e Carmichael, não conseguiram, embora
mútua. tenham tido o mérito essencial de levar a tradição ao ponto em que
Hutcheson tornou-se sua figura central.
O lugar dos autores antigos no currículo ideal de Fletcher corres-
ponde ao das antigas repúblicas em sua teoria política (ver G. E. Davie, A obra de Hutcheson, portanto, deve ser compreendida em seu contexto
op. cit,, 8, para uma revisão da obra de Fletcher, Proposals for Schools num conjunto permanente de controvérsias teológicas e num debate
and Colleges, Edimburgo, 1704). A ciência moderna devia ser estudada, cultural no qual os pressupostos das instituições especificamente es-
mas não as vozes conflitantes da filosofia contemporânea. A filosofia cocesas estavam em jogo. Ao longo do século XVIII, um terceiro acervo
antiga seria ensinada no contexto dos estudos literários antigos e a um de questões, intimamente relacionadas, tornou-se mais fundamental.
grupo pequeno de estudantes, pois Fletcher discordava do efeito Para a Escócia, esta foi uma época de desenvolvimento agrícola e de
democratizador das bolsas de estudo, através das quais os presbiteri- expansão comercial. Os valores do mercado e da riqueza crescente
anos tinham aberto as universidades a um maior número de estudantes. iriam prevalecer cada vez mais, e os valores do parentesco e da co-
As propostas políticas de Fletcher eram tão obviamente utópicas e munidade local iriam ser paralelamente corroídos. Os valores distintivos
ofensivas a qualquer pessoa de senso prático que nós, como seus do sistema educacional escocês iriam ser questionados em nome da
contemporâneos, podemos não perceber a tese de real substância que utilidade comercial. Portanto, a partir de 1762, William Thom, o pastor
essas propostas ocultam. Quase sozinho entre seus contemporâneos, de Govan, publicou uma série de panfletos cujo assunto estava especi-
Fletcher compreendia o dilema enfrentado pela Escócia como implicando ficado no título do primeiro como "The Defects of an University Education
alternativas excludentes, mais radicais do que estavam dispostos a and its Unsuitableness to a Commercial People". A lógica e a metafísica
considerar. Pois, no seu ponto'de vista, no nível da ação política, ou gastam inutilmente o tempo dos estudantes; a filosofia moral deveria
a Escócia entrava para o mundo do Estado e da economia modernos de ceder lugar ao ensino da "moralidade prática". E Thom falava para
larga escala e deixava assim de ser a Escócia, ou deveria recriar dentro uma classe crescente, especialmente em Glasgow (ver Donald J.
de uma forma de governo mais local e mais moralmente homogênea do Withrington, "Education and Society in the Eighteenth Century", Scotland
que até mesmo os aristotélicos calvinistas da metade do século XVII in the Age of Improvement, ed. N . T. Phillipson e R. Mitchison,
tinham imaginado. E no nível da filosofia, ou as vozes conflitantes dos Edimburgo, 1970). A questáo, portanto, tomou-se inevitável: qual é o
modernos podiam ser estudadas, produzindo assim uma discordância efeito de uma economia em expansão sobre a vida moral e intelectual?
institucionalizada, ou poderia haver um retomo a uma educação baseada A relação dessa questão com a questão sobre se, ao entrar em relações
na Ética e na Política de Aristóteles. Mas nem no nível da ação po- mais amplas de comércio, a Escócia poderia evitar uma ruptura com
lítica, nem no nível da filosofia havia um terceiro conjunto de possi- sua herança cultural, é clara e já estava clara no século XVIII. Mas
bilidades. Hutcheson escreveu sua obra antes que essa questão se tornasse tão
280 A filosofia na ordem social escocesa

premente em Hume, Smith e Ferguson. No entanto, sua obra não deixa


também de ter implicações sobre esta controvérsia.
A questão a ser posta sobre a obra de Hutcheson é a seguinte: que
recursos filosóficos oferece para manter a tradição sustentada por Baillie
e Stair, em face dos desafios de novas filosofias e da necessidade de Capítulo XIV
a tradição preservar sua teologia, seus princípios legais e morais, sua
visão da justiça e sua visão do que significa para os indivíduos ser
racional de modo prático? Faz parte da grandeza genuína de Hutcheson
o fato de que quando compreendemos sua filosofia nessa perspectiva, A VISÁO DE HUTCHESON SOBRE A
também passamos a compreender o modo extraordinário pelo qual reuniu JUSTIÇA E A RACIONALIDADE PRÁTICA
todos os recursos disponíveis relevantes para sua obra. Aquilo que para
alguns comentadores pareceu mero ecletismo era, na verdade, um projeto
notável de síntese, embora não bem-sucedido.

Frances Hutcheson foi um presbiteriano irlandês, filho e neto de


pastores - seu avô, de Ayrshire, foi um dos escoceses das planícies
que se estabeleceram na região leste de Ulster no século XVII, durante
a expropriação forçada dos irlandeses nativos - tendo sido criado
margem da cultura presbiteriana escocesa. E, como geralmente ocorre,
a cultura da periferia era aquilo que a cultura dos centros metropoli-
tanos tinha sido uma ou duas gerações antes. Portanto, Hutcheson, na
sua Academia presbiteriana em Ulster, teve a vantagem de ter uma
iniciação no tipo de aristotelismo escolástico que não era mais ensi-
nado na Escócia: "Lá aprendeu", escreve Leechman na sua versão da
vida de Hutcheson, "a filosofia escolástica comum, em moda na época,
e à qual dedicou-se com rara assiduidade e diligência". O efeito dessa
formação sobre seus escritos filosóficos posteriores é notável.
Sua educação na Universidade de Glasgow, a partir de 1710, onde
estudou filosofia com Gerschom Carmichael, e teologia com John Simson,
também se evidencia em seus escritos. Com Carmichael, ele adquiriu
mais do que seu conhecimento de Pufendorf; ele diz na introdução a
seu Philosophiae Moralis Institutio Compendaria (Glasgow, 1747) que
Carmichael, no seu comentário sobre Pufendorf "complementou e cor-
rigiu tanto, que suas anotações têm muito mais valor do que o próprio
texto", e, no mesmo livro, cita não a visão de governo proposta por
Locke, mas a versão de Carmichael dessa visão (III,7).
A dívida de Hutcheson para com Simson é também evidente. A
filosofia de Hutcheson não inclui apenas uma teologia racional: t? uma
teologia racional do mesmo tipo que a filosofia que Simson ensinava.
282 A visão de Hutcheson sobre a justiça e a racionalidade prática A visão de Hutcheson sobre a justiça e a racionalidade prática 283

A revelação de Deus, nas Escrituras, tem um papel, mas papel muito partir do momento em que teve uma, não concede o menor espaço a tal
restrito, segundo Hutcheson. Ao referir-se a Deus como o governante tipo de pensamento.
do universo, Hutcheson escreve que "a única utilidade das palavras, ou
da escrita, nas leis, é revelar a vontade do governante. Na lei positiva, É significativo que Hutcheson aborde a teoria do conhecimento,
a vontade divina deve ser revelada dessa forma. Mas há outro modo principalmente do conhecimento em assuntos morais, sem a menor dúvida
primário através do qual Deus revela sua vontade, no que diz respeito cartesiana. Ele considerava que a importância de Descartes residia
à nossa conduta, e, da mesma forma, propõe os motivos mais interes- exclusivamepte na sua física, e não tinha a menor simpatia por nenhum
santes: através da constituição da natureza, dos poderes da razão e da outro tipo de ceticismo. Hutcheson parece nunca ter considerado pro-
percepção moral, que deu à humanidade, revelando assim uma lei com blemáticas a natureza da lei e a moralidade. A parte da moralidade
suas funções, efetivamente e através de palavras ou de escritos; e, que tinha a forma de lei era o que Carmichael e Pufendorf, e sobretudo
ainda, de um modo mais nobre e divino" (A System of Moral Phi- Grotius, de quem Carmichael e Pufendorf derivaram o seu pensamento,
losophy, Londres, 1755, vol.1: 268-269). Observemos que o contraste tinham dito sobre o assunto. Além disso, a tentativa de demonstrar que
está, não entre a razão e a revelação, mas entre os modos da revelação a obediência a essa lei é totalmente uma expressão de auto-estima,
divina. Além disso, mesmo na esfera da natureza, a imperfeição da tentativa atribuída por Hutcheson principalmente a Hobbes, já tinha,
razão humana, especialmente na "massa da humanidade", é tal que a segundo Hutcheson, sido demonstrada por Richard Cumberland no seu
perfeição do sistema das leis da natureza "não supera a utilidade da livro sobre as leis da natureza. E esses autores modernos já tinham sido
revelação das leis à humanidade através de palavras ou de escritos ..." antecipados, em grande parte, por Cícero no De Officiis.
(op. cit., 271-272).
A parte da moralidade constituída pelas virtudes era aquilo que
Hutcheson estava ligado por juramento às doutrinas da Profissão de Hutcheson compreendia que Platão e Aristóteles disseram sobre ela.
Fé de Westminster, como licenciado para pregar num presbitério, inde- No Institutio, dirigido principalmente a seus alunos, isso fica explícito.
pendentemente de seu papel de professor. E seu sucesso em refutar a No livro I, capítulo 3, Hutcheson estabelece o esquema platônico e
acusação de heresia levantada contra ele, diferentemente de Simson, ciceroniano das virtudes cardeais, atribuindo-o aos "antigos", e nos
mostra que sua filosofia podia ser compreendida pelo menos como capítulos seguintes discute virtudes particulares sob os títulos de deveres
congruente com as doutrinas da Profissão. Mas é difícil resistir à inferência para com Deus, os outros e nós mesmos. Essas discussões geralmente
de que isso ocorreu não tanto porque Hutcheson fosse mais ortodoxo seguem de perto o pensamento de Aristóteles, e Hutcheson remete seus
do que Simson, mas porque a concepção dominante de ortodoxia mu- leitores a "Aristóteles e seus seguidores" para uma "explicaçáo mais
dara bastante. É crucial observar, entretanto, que Hutcheson frequente- copiosa", mas há diferenças significativas na lista de virtudes, no de-
mente citava as Escrituras assim como as leis da razão para fundamen- lineamento de algumas virtudes particulares e na compreensão do que
tar suas argumentações, e não há dúvida de que acreditava num acordo seja uma virtude. Hutcheson acreditava que, às vezes, o excesso e a
perfeito entre as Escrituras, retamente compreendidas, e as conclusões falta, com relação a um meio, são marcas de vício, e que a harmonia
da razão referentes ao sistema da natureza, retamente compreendido. com esse meio é a marca da virtude, mas apenas no que diz respeito
Hutcheson, por exemplo, considerava que a crença em milagres era a alguns de nossos afetos. Há afetos tais que quanto mais extrema for
racionalmente justificada. E, na introdução a sua obra Institutio, de- sua ação em nós, mais virtuosos seremos: afetos tais como o amor a
clara que "somente as Sagradas Escrituras ... dão aos mortais pecadores Deus, a benevolência ou "a boa vontade extensiva a todos" e "o amor
a esperança segura de alcançar uma imortalidade feliz". pela excelência moral" (Institutio I, 3, 4 ) . E isso revela uma das
Segundo Hutcheson, o conhecimento da natureza e o conhecimento principais diferenças entre Hutcheson e Aristóteles: uma virtude é
de Deus são inseparáveis. E, uma vez que, ainda segundo ele, o conhe- considerada, primariamente, não uma disposição para agir de certo modo,
cimento de Deus é em grande medida impossível sem o conhecimento mas um afeto natural, e à medida que é uma disposição, "disposição do
da natureza, qualquer raciocínio puramente a priori sobre a existência coraçáo" (I, 3, 3). A expressão afeto foi tirada, naturalmente, de
de Deus e sobre a natureza fica excluído. Leechman nos relata que, por Shaftesbury, e é uma das duas noções-chave que Hutcheson utiliza
volta de 1717, Hutcheson escrevera a Samuel Clarke objetando contra para demonstrar como a moralidade é fundada na nossa natureza. Mas
tal raciocínio. E, realmente, a teoria do conhecimento de Hutcheson, a antes de examinarmos o uso que Hutcheson faz dela, é esclarecedor
284 A visão de Hutcheson sobre a justiça e a racionalidade prática A visão de Hutcheson sobre a justiça e a racionalidade prática 285

considerar duas outras partes de sua concepção das virtudes, nas quais da natureza, pois é a lei da natureza que dá as bases para que possamos
ele se afasta não só de Aristóteles, mas dos antigos em geral. fazer "qualquer demanda natural" uns em relação aos outros. O Institutio
t dividido em três livros. Todo o livro I1 é dedicado à lei da natureza
A primeira parte trata da veracidade, onde a discussão de Hutche- e o livro I11 trata da aplicação pormenorizada dessa lei à gerência dos
son mostra o impacto da casuística do século XVII, assim como das
lares e ao governo dos Estados. Quase cinco sétimos do texto tratam,
discussões escolásticas sobre a lei natural (11, 10 e 11, 16). Devemos
portanto, do conteúdo da justiça. Em A System of Moral Philosophy, que
usar nossos poderes da razão e da fala "da maneira mais condizente
é duas vezes mais longo e dirigido ao público geral e não a seus alunos
com o bem geral e adequada ?is nossas diversas obrigações na vida". de Glasgow, quase seis sétimos do texto tratam do mesmo assunto.
Hutcheson prossegue distinguindo entre os casos nos quais a veracida- Essas partes do trabalho de Hutcheson são quase totalmente ignoradas
de não nos é exigida, porque não entram genuinamente na regra que pelos filósofos morais modernos que escrevem sobre ele, mas são,
exige a veracidade, e os casos nos quais devemos, em nome do bem
claramente, o que justifica a epistemologia moral das partes anteriores
geral, abrir exceção à regra. Um exemplo dos primeiros é: "Se é sabido
desses dois textos - obviamente, é nessa epistemologia que os autores
por todas as pessoas envolvidas que em alguns casos certas pessoas modernos concentram sua atenção. O que então estava Hutcheson fa-
podem enganar ..." (11, 10, 3). Tal é o caso em "muitas digressões" e é zendo nessas partes de seu trabalho que tratam da lei natural e de sua
também essa compreensão que permite aos médicos não revelarem a aplicação pormenorizada?
verdade a certos pacientes.
A resposta é que estava, até certo ponto, refazendo de maneira
Exemplos do segundo tipo de caso ocorrem quando "leis mais ele- nova, para sua própria geração, o trabalho que tinha fora para uma
vadas cedem a necessidades singulares. ... Tullius Hostilius é conhe- geração anterior, pelas seções iniciais - e ainda partes do texto sub-
cido por sua presença de espírito ao fazer um relato falso pelo qual o seqüente - do Institutes de Stair. H á o mesmo recurso a Justiniano e
povo romano foi salvo" (11, 16, 2). É importante lembrar que Hutche- à tradição de comentário sobre a lei romana, a mesma concordância
son pensava que tais necessidades singulares ocorriam raramente e que substancial com Grotius, e há o mesmo método de citar as Escrituras
não era, de modo algum, um utilitarista. Como ficará claro, o "certo" para confirmar teses defendidas independentemente. Há o mesmo tipo
não é definível em termos do bem geral, embora seja determinado pela de débito para com as fontes holandesas. Hutcheson incluiu, numa lista
providência de Deus que é para o bem geral que cada pessoa deve fazer de autoridades, juntamente com os nomes de Grotius, Pufendorf, Locke
o que é certo. Desse modo, dois aspectos do tratamento que Hutcheson e Harrington, o nome de Cornelius van Bynkershoek, cuja obra, Ob-
dá à veracidade chamam nossa atenção. O primeiro é a relativa com- servationes Juris Romani (Leyden, 1710), era parte do projeto de
plexidade das considerações que devem, segundo ele, informar o jul- Bynkershoek de restaurar o sistema e a coerência das leis dos Países
gamento correto nas ocasiões em que a veracidade estiver em questão. Baixos, refundando-os a partir dos princípios da lei romana. Além do
O segundo é o modo pelo qual as discussões de Hutcheson são deve- comentário de Carmichael sobre Pufendorf, Hutcheson usou o de Jean
doras de várias tradições morais a partir das quais ele constrói seu Barbeyrac como fonte para as opiniões de outros autores (ver a nota
aos alunos que introduz o Institutio). Barbeyrac, embora de descen-
complexo amálgama.
dência francesa - seu pai era um pastor calvinista expulso da França
Um tópico ainda mais esclarecedor para a compreensão da posição depois do Édito de Nantes - era professor de direito público em
geral de Hutcheson é sua concepção de justiça. Hutcheson, assim como Groningen.
faz com as outras virtudes cardeais, seguiu o que considerava a visão Não há em Hutcheson, naturalmente, nenhuma discussão de casos
dos antigos, na sua definição inicial da justiça: "Um hábito sempre legais particulares ou qualquer menção a Stair. Isto é compreensível à
visando ao interesse comum, e submetido a ele, dando ou realizando medida que reconhecemos que o que Stair apresentara como as leis da
para cada um o que quer que lhe seja devido a partir de uma demanda Escócia, embora enquanto sistema legal racionalmente justificável,
natural" (I, 3, 3). Esse hábito inclui as "disposições ternas do coração Hutcheson apresentava como lei da humanidade. Além do mais, ele a
pelas quais uma relação amigável é mantida entre os homens, ou que apresentava, principalmente nas suas obras em inglês, a uma audiência
nos levam a contribuir com algo para o interesse comum". Mas o que que, por sua leitura, era supostamente parte de um público interna-
a justiça exige principalmente de nós é o respeito e a obediência à lei cional.
286 A visão de Hutcheson sobre a justiça e a racionalidade prática A visão de Hutcheson sobre a justiça e a racionalidade prática 287

Quatro aspectos dessa coincidência de pontos de vista (obviamente imparciais nos seus julgamentos sobre tais violações, seria por si s6
não total, mas muito básica para ser ignorada) entre Hutcheson e Stair suficiente (System 111, 4; Institutions I, 1, 15 e 18). Hutcheson devia
merecem um destaque especial. Cada um desses aspectos indica a adesão sua visão da natureza do governo a Locke e Grotius, Stair devia a sua
partilhada à mesma tradiçáo. O primeiro é o modo pelo qual as exigências apenas a Grotius e não se pode encontrar mais do que uma mera
da lei da natureza e, portanto, as exigências que o justo deve cumprir, congruência entre Stair e Hutcheson. Mas vale a pena observar que
envolvem, em muitos casos, ações que não são vantajosas ou do interesse Hutcheson, na sua visão do governo, demonstra estar atento a preocupações
dos indivíduos de quem são exigidas e não expressam as simpatias especificamente escocesas, ao considerar como depois "da coalizão de
particulares de tais indivíduos, nem qualquer paixão que ocorra inde- dois Estados independentes num só" (System 111, 7, I), "onde há leis
pendentemente da aprovação e do compromisso morais. Portanto, nosso fundamentais preservando a inalterabilidade de certos direitos, apenas
conceito de justiça e nossa obediência às regras da justiça não podem uma necessidade manifesta pode justificar qualquer passo além dos
ser explicados em termos de interesse, vantagem ou de tais paixões. De limites dessas leis; senão, perde-se toda a fé em tais tratados de coalizão".
fato, "quanto mais a perspectiva de vantagem própria levar um homem Hutcheson estava, aqui, respondendo a Fletcher de Saltoun, fosse essa
a ações que são por natureza boas, menor será sua beleza moral" (Institutio sua intenção ou não. Ele pode ser entendido do seguinte modo: a Escócia
11, 3, 6; comparar com A System of Moral Philosophy I, 4). Vale dizer, não é uma província conquistada, mas o rompimento com os artigos-
é justamente à medida que as ações são explicáveis por interesses e -chave do tratado de União, aqueles que mantinham inalterados os
vantagens que deixam de ter valor moral. Stair tinha dito: "Essa lei da direitos da Igreja da Escócia e do sistema legal escocês, poderia levá-
natureza racional do homem não é concebida ou adaptada em função la a ser. E se isso ocorresse, as condições que, segundo Hutcheson,
do interesse de ninguém, como o são muitas das leis escolhidas pelos fazem com que seja correto para o governado resistir e derrubar seus
homens ..." (Institutions I, 6 ) . governantes (System 111, 7, 3-6) seriam satisfeitas.
Em segundo lugar, Hutcheson e Stair concordam em suas atitudes Finalmente, apesar da diferença da natureza dos projetos dos dois
fundamentais referentes aos direitos de propriedade. Os seres humanos autores e dos tipos de audiência a que se dirigiam, há semelhanças
têm direitos independente e anteriormente à instituição da propriedade notáveis nas estruturas dedutivas construídas por Stair e Hutcheson.
e o exercício dos direitos de propriedade pode ser, ocasionalmente, Ambos, em vários pontos, complementam seus primeiros princípios
legitimamente limitado (Hutcheson, System 11, 7, 9; Institutions 11, 1, fundamentais, com premissas adicionais empiricamente fundamentadas,
34); quando, por exemplo, há a ameaça de escassez absoluta ou outras a fim de mostrar a aplicação pormenorizada dos princípios de direito
calamidades, os cidadãos carentes podem tomar a propriedade de ou- fundamentais (ius) em tipos particulares de relações e circunstâncias
tros pela força, se esse for o único modo de evitar a catástrofe (System sociais. Ambos invocam uma concepção da utilidade para justificar
11, 17, 5; Institutions 11, 1, 6 ) . A justiça antecede a propriedade, algo suas conclusões sobre essas aplicações pormenorizadas, mas, em am-
que Hume viria a negar; os direitos de propriedade não são o que bos os casos, é uma concepção que define a utilidade em termos de
Blackstone viria a pensar: "O único e despótico domínio que um ho- direito e não o contrário, de modo que a felicidade geral deve ser
mem reivindica e exerce sobre as coisas externas do mundo, com a promovida por cada pessoa que cumpra suas obrigações e seus deveres
exclusão total do direito de qualquer outro indivíduo no universo" definidos independentemente, e que garanta seus próprios direitos, assim
(Commentaries 11, 1, 2). Portanto, Hutcheson e Stair concordam ao como por sua busca de outras fontes de felicidade.
discordar da visão dominante na Inglaterra no século XVIII, mantendo,
Hutcheson era plenamente consciente da importância do caráter
ao contrário, uma parte da tradição escocesa derivada, em última análise,
dedutivo de suas argumentações. Na sua primeira obra publicada, An
através dos textos escolásticos do período pós-Reforma, da teoria so- Inquiry into the Original of our Ideas of Beauty and Virtue (Londres,
cial de Sto. Tomás.
1725), escreveu sobre "Ciências ou teoremas universais" (111, 6) e
Em terceiro lugar, Stair e Hutcheson concordam em que o governo comentou o prazer particular que experimentamos "quando um teorema
é instituído para reparar os danos aos direitos que surgem de brechas contém uma grande quantidade de corolários facilmente dedutíveis a
na lei da natureza, uma lei que, se os seres humanos fossem menos partir dele...". Ele era um crítico dos usos específicos de métodos dedutivos
propensos a violar os direitos uns dos outros e mais inclinados a ser feitos por Descartes, Pufendorf e Cumberland, porém o que criticava
288 A visão de Hutcheson sobre a justiça e a racionalidade prática A visão de Hutcheson sobre a justiça e a racionalidade prática 289

era, não o uso da dedução como tal, mas a tentativa de ser excessiva- Uma parte derivava de Shaftesbury. Hutcheson aprendera com ele
mente parcimonioso com relaçáo aos primeiros princípios, isto é, a que, primeiramente, as ações são expressões de afetos ou paixões e
tentativa de deduzir demasiado a partir de tão pouco. É compreensível deles resultam, e, em segundo lugar, que nenhum afeto (ou paixão
que suas cartas mostrem um vivo interesse e admiração pelo trabalho natural) é mau em si mesmo. Quando julgamos uma ação virtuosa ou
de seu colega Robert Simson em geometria. viciada, julgamo-la como expressão ou produto de alguma paixão; quando
fazemos um tal julgamento moral sobre nossos próprios afetos, nós o
Hutcheson, naturalmente, não poderia ter concordado com Stair quanto
fazemos à medida que os julgamos capazes de produzir certos tipos de
à doutrina da apreensão intelectual dos primeiros princípios, e isso por
ação e não outros. As ações vistas independentemente dos afetos e
duas razões. A primeira era que a única versão filosoficamente sofis-
paixões podem ser convenientes ou inconvenientes, vantajosas ou pre-
ticada de tal doutrina, da qual Hutcheson tinha consciência, era a ver-
judiciais para certas pessoas, mas não têm um significado moral, en-
são formulada por Samuel Clarke e outros, segundo a qual a conjunção
quanto virtuosas ou más, separadas das paixões. O que torna uma ação
de certas idéias revela, ao escrutínio racional, sua congruência ou in-
má é sua derivação de alguma paixão que recebeu importância excessiva
congruência necessárias, em matemática e moralidade. Mas Hutcheson,
com relação a alguma outra paixão ou acervo de paixões. Em nossos
quando jovem, já tinha rejeitado tal apriorismo com relação à teologia
julgamentos sobre virtudes e vícios, damos expressão às nossas próprias
natural em sua carta a Clarke e, quando seu primeiro livro foi criticado
paixões, enquanto favorecem ou não as paixões expressas nas ações
por Gilbert Burnet - cujo pai, enquanto pastor de Saltoun, tinha sido
que estamos julgando. A tarefa do filósofo moral torna-se, principal-
responsável pela criação e educação formal de Andrew Fletcher depois
mente, a de construir uma psicologia ou fenomenologia psicológica
da morte de seu pai -, ele, mais uma vez, explicou suas bases para a
introspectiva das paixões, a fim de julgá-las mais corretamente. A principal
rejeição. Assim como aquilo que é razoável de se acreditar sobre a
descoberta de tal psicologia ou fenomenologia é que há - pelo menos
causa primeira do universo depende do que pensamos ser a constitui-
e, talvez, no máximo - duas paixões ou afetos principais que produzem
ção da natureza - algo que Hutcheson deixou claro na sua discussão
do que pensava serem as propriedades da natureza projetadas de modo a ação, a auto-estima e "um sentimento social ou sentido de sociedade
evidente - e nunca simplesmente do conceito dessa causa primeira, com a humanidade."
também o que é razoável de se acreditar sobre o fim ou fins a serem O que havia nos escritos de Shaftesbury que tanto impressionou
perseguidos pelos seres humanos depende, segundo Hutcheson, daquilo Hutcheson e muitos outros da própria geração de Shaftesbury, assim
que, a partir de bases empíricas -ou de bases concebidas como empíricas como da geração seguinte? É evidente que Hutcheson realmente ficou
- pensamos ser a constituição da natureza humana. muito impressionado. Seu primeiro livro era uma defesa sistemática
Gilbert Burnet, usando um pseudônimo, defendera a visão de Clarke das idéias de Shaftesbury e foi dele que Hutcheson tirou a expressão
e criticara a de Hutcheson no London Journal(10 de abril de 1725). "sentido moral", embora viesse a dar-lhe um significado preciso que
Hutcheson, também sob pseudônimo, argumentou em réplica (12 de Shaftesbury nunca tinha dado. Além disso, algumas das doutrinas de
julho de1725) que aquilo que alguém, acreditando que os seres huma- Shaftesbury encaixavam-se muito bem com o que Hutcheson já acredi-
tava a partir de outras bases, principalmente a afirmação de que todas
nos eram capazes de perseguir apenas os fins propostos a eles pela
as pessoas comuns são capazes, sem nenhuma educação em teoria moral,
auto-estima, considerava razoável seria muito diferente daquilo que
de discernir entre virtude e vício. Mas em dois sentidos, as idéias de
alguém, acreditando que os seres humanos eram capazes de perseguir
Shaftesbury, como as delineei, eram novas para Hutcheson: Shaftesbury
o bem comum em si, considerava razoável. O que para nós é razoável foi um dos primeiros filósofos morais - tinha sido precedido por
fazer depende da natureza de nossa motivação. Portanto, Hutcheson Malebranche - a compreender a natureza humana como informada
concluía que a razão como tal não pode fornecer um padrão indepen- por dois grandes princípios contraditórios, um princípio egoísta, outro
dente para a ação e que não há um princípio de moralidade cuja ver- altruísta; e Shaftesbury mudou o foco central da filosofia moral para
dade nos possa ser assegurada através de sua inspeção, sem examinarmos uma nova atenção às paixões, abandonando o intelectualismo da maio-
os fatos empíricos da natureza humana. Quais eram esses fatos, segundo ria dos autores do stculo XVII, um intelectualismo cujo herdeiro principal
Hutcheson? Sua visão tinha duas partes. no século XVIII foi Clarke.
290 A visão de Hutcheson sobre a justiça e a racionalidade prática A visão de Hutcheson sobre a justiça e a racionalidade prática 291

Henry Sidgwick declarou que a nova visão daquilo que chamava "a esbury convincente era que articulava para seus leitores uma com-
dualidade dos princípios regulativos da natureza humana" - cuja for- preensão deles próprios que já tinham, mas para a qual ninguém havia
mulação clara, acreditava, foi primeiramente feita por Butler (que ainda fornecido uma conceitualizaçáo ou os elementos de uma com-
Hutcheson tinha lido e admirado), embora reconhecesse que Butler preensão teórica.
tenha sido ofuscado por Shaftesbury - marcava "a diferença mais
Já observei que o pensamento de Shaftesbury apresenta uma ruptura
fundamental entre o pensamento ético da Inglaterra moderna e o pen- e uma rejeição do intelectualismo da teoria moral do século XVII, seja
samento do velho mundo greco-romano7' (Outlines of the History of ela calvinista ou tomista, aristotélica ou platônica. Mas esse intelectualismo
Ethics, Londres, 1886, 197-198). Sidgwick também observou o quanto já tinha sido rejeitado, em grande parte e em outro nível, pelas práticas
essa diferença era marcante, uma vez que, na verdade, o pensamento da religião do século XVII. A pregação, a literatura devocional eram
de Butler era em grande parte derivado de fontes greco-romanas. E, caracterisiticamente apresentadas em estilos bem-calculados para le-
com Hutcheson, enfrentamos a mesma anomalia. Pois Hutcheson, as- vantar, estimular e guiar paixões, afetos e sentimentos. Ambas exortavam
sim como Butler, herdou de Shaftesbury a concepção distintivamente ao auto-exame introspectivo e exigiam uma classificação dos estados
moderna das duas paixões, contrastantes e geralmente conflitantes, da internos de sentimento, através dos quais o indivíduo poderia avaliar a
auto-estima e da benevolência em relação aos outros, e, no entanto, condição moral e religiosa da mente e do coração. Ambas exigiam para
publicou sua primeira exposição dessa concepção no primeiro dos dois
tal classificação a elaboração de uma nova linguagem das paixões,
tratados que compõem sua Inquiry, sendo o segundo uma defesa das afetos e sentimentos. E era à consciência interior daqueles cuja
idéias do bem e do mal, "segundo os Sentimentos dos Antigos Mora- autocompreensão tinha sido informada por uma linguagem originalmente
listas". E na obra An Essay on the Nature and Conduct of the Passions religiosa que a voz secular de Shaftesbury falava com tal eficácia (para
and Affections (Londres, 1728), Hutcheson afirma, no primeiro pará- uma visão de desenvolvimentos relacionados no contexto da Nova
grafo, que "os principais Princípios práticos, presentes nesse Tratado, Inglaterra, ver Norman Fiering, Moral Philosophy a t Seventeenth Century
têm a seguinte Pré-concepção a seu favor: foram ensinados e propaga- Harvard, Chapel Hill, 1981, cap. 6 e 7).
dos pelos melhores Homens em todos os tempos...".
Hutcheson, portanto, não via nenhum problema em reunir o que
Hutcheson, portanto, assim como Butler, não percebia as diferenças pensava ter aprendido da filosofia moral grega com o que tinha apren-
entre os antigos e Shaftesbury, mais especificamente entre Aristóteles dido de Shaftesbury. Mas, como observei anteriormente, apenas uma
e Shaftesbury. E isso esclarece suas leituras errôneas do texto de parte do que Hutcheson acreditava ser a verdade da constituição de
Aristóteles, parciais, mas muito importantes. Essas leituras errôneas nossa natureza humana derivava de Shaftesbury. A outra parte, tão
foram fundamentais para separá-lo do escolasticismo de sua educação importante quanto a primeira, Hutcheson aprendeu dos protagonistas
inicial e de algumas crenças básicas da tradição escocesa representada do que viria a ser chamado "o caminho das idéias". "Essas duas potên-
por Stair, por exemplo. A mais importante delas é a crença de que a cias da percepção, sensação e consciência, introduzem na mente todos
razão, a não ser corrompida pelo pecado, determina as paixões 2 luz do os materiais de conhecimento. Todas as nossas idéias ou noções primá-
conhecimento que proporciona o verdadeiro fim dos seres humanos. rias ou diretas derivam de uma ou outra dessas fontes" (System I, 1, 4).
Essa crença tinha sido sustentada pelo intelectualismo aristotélico do Desse modo, Hutcheson afiliou-se a Descartes, Malebranche, Arnauld,
século XVII. Mas, aparentemente, não era confirmada por Aristóteles, Locke e seus seguidores menos eminentes. O fundamental no "cami-
tal como ele era lido ou mal-lido por Hutcheson, que parece apenas ter nho das idéias" era, naturalmente, a primazia que seus seguidores atribuíam
visto no texto do primeiro aquilo que seus olhos, informados pela visão a uma posição epistemológica que incorporava um ponto de vista em
de Shaftesbury da vida moral, permitiam que visse. Como seu olhar de primeira pessoa. O-que-é deve ser construído a partir de, inferido de,
leitor foi informado desse modo? Qualquer leitor de Shaftesbury sabe ou, por outro lado, derivado de ou representado por, dependendo da
que não pode ter sido pelo rigor da argumentação ou pela exposição versão particular da teoria, aquilo-que-me-é-imediatamente-apresenta-
precisa, pormenorizada ou sistemática que Shaftesbury impressionou, do-como-idéia.
como de fato o fez, os leitores de sua época. O estilo e o conteúdo de Um problema crucial é o mesmo para todas as diferentes versões do
Shaftesbury não pretendem ter essas qualidades. O que tornava Shaft- caminho das idéias. Como pode alguém derivar de percepções particu-
292 A visáo de Hutcheson sobre a justiça e a racionalidade prática A visão de Hutcheson sobre a justiça e a racionalidade prática 293

lares imediatas, e de nada mais, qualquer conhecimento ou justificação Em terceiro lugar, os objetos do sentido moral são qualidades espe-
para propor uma asserção universal na forma e geral no conteúdo? Esse cificas desse sentido, só detectadas e discriminadas através de seu
problema aparece de várias formas, numa delas como um problema exercício. A percepção desses objetos causa prazer e dor, mas os próprios
sobre a percepção sensorial comum: alguém que profere um juízo do objetos não devem ser identificados com esses prazeres ou dores:
tipo "isto é vermelho'' faz uma asserção sujeita h correção por parte de "Sentimos prazer na contemplação porque o objeto é excelente e, por-
outras pessoas, à luz de padrões socialmente partilhados que regulam tanto, o objeto não é julgado excelente porque nos proporciona prazer"
os juízos de cor; no entanto, se todos os juízos perceptivos referem-se (System 1, 4, 1). Além disso, "a noção que faz com que defendamos a
apenas àquilo que-é-imediatamente-apresentado-como-idéuos- virtude não é sua tendência a proporcionar algum benefício ou recompensa
particulares e derivam disso seu conteúdo, como são possíveis tais ao agente ou àquele que a defende... é também óbvio que a noção que
padrões socialmente compartilhados? nos permite defender a virtude não é sua tendência a conferir honra ..."
O problema que surge para Hutcheson em conseqüência de sua adesão (I, 47 2).
ao caminho das idéias é análogo. Hutcheson estava, como já vimos,
Ser movido pelos objetos e distinções desvelados pelo sentido moral
profundamente comprometido com a crença de que os seres humanos
possuem padrões socialmente partilhados que regulam o que é certo e significa ter um modo de ordenar os outros afetos que nos movem à
justo. Segundo ele, esses padrões são expressos nas regras de justiça, ação, e ao refletir sobre essa ordenação, descobrimos que se conceder-
que incluem a lei da natureza, que são universais na sua forma e mais mos à auto-estima e à generosidade benevolente apenas aquilo que um
ou menos gerais em seu conteúdo. Entretanto, afirma em sua epistemologia respeito pela excelência moral lhes atribuiria, estaremos perseguindo o
moral, nosso conhecimento desses padrões e regras deriva de um re- modo de vida melhor concebido para garantir nossa felicidade. Será
curso àquilo que é discriminado em ocasiões particulares por um senso um modo de vida, assim acreditava Hutcheson, marcado justamente
moral, um modo de percepção sui generis e, em Última análise, esse pelas disposições para o afeto, cujo exercício apresenta as virtudes que
conhecimento é injustificável separadamente de tal modo de percepção Aristóteles classificara na Ética a Nicômaco. Portanto, começando com
que, entretanto, em certos aspectos fundamentais, é semelhante a todos Shaftesbury e o caminho das idéias, nós, de fato, segundo Hutcheson,
os outros. Há algum modo coerente, e mais ainda, racionalmente jus- chegamos a concordar com os antigos e especialmente com Aristóteles.
tificável, pelo qual Hutcheson pode combinar suas crenças de justiça e Mas, quanto a isso, Hutcheson estava, é claro, totalmente errado, co-
suas crenças do sentido moral? Qualquer resposta bem-fundamentada a metendo um erro que fica mais óbvio se considerarmos a diferença
essa questão exige uma compreensão do que Hutcheson quer dizer por entre as visões de Hutcheson e de Aristóteles sobre o lugar da razão na
sentido moral e de seu lugar dentro da estrutura de sua teoria geral. vida prática.
A primeira introdução de Hutcheson ao sentido moral, no Institutio Onde Aristóteles disse que não deliberamos sobre os fins, mas apenas
e no System, tem três aspectos principais. Em primeiro lugar, é um sobre aquilo que conduz à realização dos fins (EN 1112b 11-12), embora
sentido, e é a esse sentido de aplicamos o nome de 'consciência mo- n6s, de fato, raciocinemos sobre os fins, incluindo nosso télos último,
ral'. Enquanto sentido ele nos torna imediatamente conscientes de seus a visão de Hutcheson era de que "a compreensão, ou a potência de refletir,
objetos particulares, objetos que elicitam um tipo específico de apro- comparar, julgar", julga sobre os meios ou os fins subordinados; mas
vação ou desaprovação. Em segundo lugar, ao sermos movidos por não há raciocínio sobre os fins últimos. "Nós os acionamos através de
aquilo do que o sentido moral nos torna conscientes, somos libertos de uma disposição ou determinação imediata da alma, que, na ordem da
um tipo de dificuldade que o resto de nossa natureza nos imporia de ação, é sempre anterior a todo raciocínio; como nenhuma opinião ou
outra forma. Pois somos criaturas movidas por auto-estima e por afetos julgamento pode mover à ação, ali onde não há um desejo anterior de
generosos e, sem um sentido moral, não teríamos nenhum modo de algum fim" (System I, 3, 1). Nossos fins são, portanto, imediatamente
discernir as asserções do que Hutcheson chamou de "uma calma auto- dados por nossas propensões e desejos naturais, e não é pela referência
estima", das afirmações da benevolência altruísta. Não haveria resposta à sua tendência a promover nosso bem mais elevado que devemos
para a questão, seja de um modo geral seja em ocasiões particulares, decidir qual deles incentivar e fortalecer, qual deles enfraquecer ou
por qual motivo é melhor para nós sermos guiados. E é justamente a extirpar. É que, ao contrário, os fins em direção aos quais nos movem
essa questão que o sentido moral deve oferecer respostas. constituem nosso bem mais elevado.
294 A.visáo de Hutcheson sobre a justiça e a racionalidade prática A visão de Hutcheson sobre a justiça e a racionalidade prática 295

Observemos que o que é natural à natureza humana C o empirica- dos princípios garantidos pelo sentido moral são desenvolvidos. Em
mente dado; sob a influência de Shaftesbury, a concepção de Hutcheson segundo lugar, esses princípios, em conjunção com outras afirmativas
da natureza tinha-se tornado muito diferente da concepção de Aristó- sobre a natureza humana e aquilo que geralmente agrada ou causa dor,
teles. Mas era uma concepção cristã. Deus ordenou a natureza e a fornecem as premissas a partir das quais uma concepção da suprema
nossa natureza providencialmente, de modo que nossa felicidade suprema felicidade para os seres humanos é deduzida. Essa concepção, por sua
resultará, na verdade, da busca dos fins que nos forem propostos pelo vez, fornece premissas adicionais que, juntamente com as premissas
sentido moral. E a descoberta de que isso ocorre realmente assim 6 derivadas do sentido moral e com certas verdades empíricas, resultam
uma obra da razão, como a demonstração da existência e da natureza no que Hutcheson, no título do livro I1 do System, chamou de "uma
de Deus, essencial para nossa compreensão da relação entre os fins dedução das leis mais especiais da natureza e deveres da vida, anteriores
imediatos que nos são propostos pelo sentido moral, nossa felicidade ao governo civil e a outros estados futuros". Em terceiro e último
suprema e nossa obediência às leis da natureza. As pessoas comuns,
lugar, com o acréscimo de mais premissas, deduzem-se os direitos e
dotadas do sentido moral, n8o precisam temer que os julgamentos morais
particulares que fazem, baseadas naquilo que o sentido moral proporciona, deveres que constituem e governam as famílias, os lares, o governo e
possam ser questionados pelas conclusóes da argumentação racional. os estados de guerra.
Pois o sentido moral é capaz de ser corrigido e desenvolvido apenas Dentro dessa estrutura dedutiva, as crenças sobre Deus e sobre a
por seu próprio exercício mais extensivo, não pelo raciocínio. Hutcheson natureza divina têm um papel crucial. Descobrimos em Deus um ser ao
compara essa correção e esse desenvolvimento aos de nossos gostos qual devemos veneração e obediência. A razão assegura-nos a existência
musicais. "N6s nos concedemos o prazer da música; ficamos conhecendo e a natureza de Deus e, ao argumentarmos a favor da excelência divina,
composições melhores e mais complexas. Encontramos nelas um prazer empregamos uma analogia extraída de nosso próprio sentido moral.
muito maior e começamos a desprezar aquilo que inicialmente nos dava Deus deve discriminar de um modo análogo ao nosso. Foram, sem
prazer". E, do mesmo modo, à medida que ampliamos nossa experiência dúvida, os argumentos de Hutcheson sobre esse ponto que levaram -
do julgamento moral, "corrigimos quaisquer desordens aparentes nessa muito compreensivelmente - à acusação de heresia, à medida que
faculdade moral ..." (System I, 4 , 5). parecia recorrer a um padrão de bondade moral independente de nosso
O que o sentido moral proporciona é um conjunto de julgamentos conhecimento de Deus. Pois Hutcheson realmente afirmou que somos
confiáveis, mas não apenas julgamentos do que ocorre em casos par- conscientes daquilo que o sentido moral proporciona, independente-
ticulares de ação e afeto. Apreendemos, como evidencia a discussão de mente de qualquer raciocínio ou de quaisquer outras crenças, incluindo
Hutcheson, a ação e, mais fundamentalmente, o afeto como moralmente crenças teológicas. No entanto, segundo Hutcheson, o que a argumentação
excelentes ou não, à medida que um ou o outro são de um tipo parti- racional nos revela, no que concerne à natureza divina, é que julgamos
cular. Portanto, apreendemos afetos como virtuosos ou viciosos, no moralmente do modo como julgamos apenas porque Deus assim nos
que diz respeito à posse de uma qualidade que deve também ser aprovada criou, de maneira que nossos julgamentos morais não fossem discrepantes
em outras instâncias. O sentido moral, assim, fornece-nos não apenas dos dele. E, desse modo, não temos nenhum padrão moral independente
julgamentos morais singulares, mas também aqueles julgamentos mo- do padrão divino (System I, 9, 5).
rais singulares, expressões de princípios que, justamente por não serem Além disso, sem um conhecimento do que devemos a Deus e de sua
justificáveis ou corrigíveis por um recurso racional a quaisquer outros ordenação providencial do universo, não seremos capazes, segundo
princípios, são necessariamente primeiros princípios para o raciocínio
Hutcheson, de chegar a uma visão correta do que é a suprema fe-
moral e para o raciocínio prático em geral.
licidade para os seres humanos, e, portanto, falharemos em muitas de
A estrutura dedutiva do pensamento de Hutcheson e o lugar de tais nossas deduções subseqüentes no que concerne à ação reta e às leis da
princípios fundamentais dentro dela refletem-se na organização de seus natureza. Tanto é esse o caso que "o ateísmo direto ou a negação de
livros, não apenas, mas de maneira mais clara, em A System of Moral uma providência moral ou das obrigações das virtudes morais ou so-
Philosophy. Primeiramente, a existência e a natureza do sentido moral ciais, de fato, tendem a prejudicar diretamente o Estado em seus interesses
são apresentadas no contexto de um esboço da constituição da natureza mais importantes: e as pessoas que tornam públicos esses princípios
moral. Ao longo dessa exposição e na parte subseqüente, o conteúdo não podem simular obrigações de consciência ao fazê-lo. Portanto, o
296 A visão de Hutcheson sobre a justiça e a racionalidade prática A visão de Hutcheson sobre a justiça e a racionalidade prática 297

magistrado pode detê-los à força, legitimamente, como faria com qual- submeter um conjunto particular de alternativas para a ação ao concei-
quer alienado ou entusiasta que alegasse razões de consciência para to relevante de bem enquanto tal, na formação do julgamento prático
invadir os direitos de propriedade dos outros" (System 111, 9, 2). Tais correto. Portanto, a virtude intelectual e a virtude moral estão implicadas
pessoas não podem apelar à consciência, pois a consciência é outro em todo exercício da phrónesis. O recurso a regras estabelecidas de
nome do sentido moral e é o sentido moral que está sendo ofendido por justiça em casos particulares, se e quando for autorizado, é um recurso
tais pessoas. às regras que, à luz do reto raciocínio, geralmente produzem o juizo
É importante observar que, embora o sentido moral não nos forneça correto em tais casos. Logo, para Aristóteles, não havia e não podia
haver nenhuma garantia pré-racional ou não-racional para o julgamen-
qualquer dos argumentos racionais a favor da existência de Deus, ele
to moral verdadeiro, tal como Hutcheson considerava que o sentido
garante sua veneração como moralmente excelente, quando encontra-
moral garantiria. De fato, para Aristóteles, não havia e não poderia
mos uma concepção adequada desse ser. Assim, as pessoas comuns não
haver sentido moral.
precisam ser treinadas na argumentação racional para poder julgar ver-
dadeiramente que devem venerar a Deus. Se isso não fosse verdade, Conseqüentemente, em grande parte, a relação entre o caráter moral
pelo menos quanto a esse aspecto, o ateu seria culpado apenas de erro e a capacidade de fazer julgamentos práticos verdadeiros deve ser di-
intelectual, e não de erro moral. Mas quanto a outros aspectos, os erros ferente nos dois sistemas de pensamento. Para Aristóteles, a capacidade
intelectuais do ateu podem, eles próprios, ser a causa de outros erros de fazer julgamentos verdadeiros é inseparável da posse das virtudes e
morais. Pois muito do que deduzimos da felicidade suprema dos seres a educação para essa capacidade procede pari passu com a educação
humanos e muito do que ainda deduzimos da lei da natureza, em cuja nas virtudes. Para Hutcheson, há uma habilidade de fazer julgamentos
obediência respeitosa a virtude da justiça se apresenta, não pode ser verdadeiros que pode ser exercida anteriormente à educação dos hábi-
validamente derivado se as verdades referentes à existência e à natu- tos morais e do caráter. Até certo ponto, pelo menos, uma pessoa pode
reza de Deus são retiradas do sistema dedutivo. Quanto a esses as- saber o que significa ser justo sem realmente sê-10. Pois o que o sen-
suntos o raciocínio é indispensável e o ateu será inevitavelmente cul- tido moral proporciona, em primeira instância, é igualmente acessível
pado de raciocínio inadequado. a todos, embora os seres humanos difiram significativamente entre si
no modo como seguem aquilo que o sentido moral proporciona.
Esse duplo fracasso do ateu, no que diz respeito primeiro ao sentido
moral e depois ao raciocínio, mostra claramente a divisão dos juízos Ao descrever o catálogo de virtudes ostensivamente aristotélico de
morais em duas classes, feita por Hutcheson. Somos motivados apenas Hutcheson, já observei alguns sentidos no quais Hutcheson revisou
pelos afetos e somos corretamente motivados apenas quando afetados Aristóteles ou distanciou-se dele, e ainda mostrei como Hutcheson, no
pelo sentido moral, de modo a conferir-lhe sua devida importância que diz respeito aos fins, restringe o papel da razão mais do que Aristóteles.
entre os afetos. Até então a razão é impotente. Mas quando se trata de A essas diferenças, devemos acrescentar a diferença correspondente,
nosso conhecimento dos deveres e direitos que são secundários e de- mas talvez mais fundamental, expressa na discordância de Hutcheson
rivados dos deveres e direitos primários que nos são informados pelo com relação a Aristóteles sobre o raciocínio prático e derivada dela.
sentido moral, a razáo tem um papel essencial na vida moral. Temos, Pois, dentro do esquema de Hutcheson, não há lugar para a virtude da
portanto, uma estrutura dupla de deveres e direitos e a razão tem um phrónesis, que, segundo Aristóteles, é exercitada ao exercitarmos todas
papel apenas no segundo nível. Ao compreendermos esse esquema, as outras virtudes. A phrónesis tinha reaparecido no aristotelismo
compreendemos também a distância que separa a epistemologia moral cristão-medieval sob o nome de 'prudentia', e, como tal, é a primeira
de Hutcheson do Aristóteles com o qual erroneamente acreditava estar das quatro virtudes cardeais listadas por Sto. Tomás (ST Ia-IIae, 61,l).
concordando, principalmente no que diz respeito à natureza e à função Quando William Dunbar, poeta e moralista escocês renascentista (1465-
do raciocínio prático. c.1520), reproduziu o esquema de Sto. Tomás das virtudes cardeais e
teológicas no seu poema The Tabill of Confession, 'prudentia' tornou-
Para Aristóteles, como ficou claro na discussão anterior de suas se 'prowdence'. E 'prudência' reteve esse significado na Escócia e na
posições, todo julgamento prático correto tem de estar de acordo com Inglaterra ao longo do século XVII, embora paralelamente tenha apa-
a reta razáo, e todo julgamento correto particular implica saber como recido o significado moderno, ainda em tempo de superar completamente
298 A visáo de Hutcheson sobre a justiça e a racionalidade prática
P
A visão de Hutcheson sobre a justiça e a racionalidade prática 299

o outro, no qual 'prudência' significa "a habilidade de discernir a ação moral nos desse a certeza fundada na imediaticidade sensorial, mas,
mais adequada, política ou vantajosa" (Oxford English Dictionary, Oxford, como observei anteriormente, o que devemos alcançar não é uma mera
1933). particularidade, e sim o exemplo de uma verdade moral universal e
Hutcheson atribui aos "antigos" a definição de 'prudência' como geral, numa ocasião particular. E ao propor-se descobrir nas percepções
uma virtude cardeal: "O hábito de considerar e prever cautelosamente, e sensações particulares uma garantia para verdades universais e ge-
discernindo o que pode ser vantajoso ou prejudicial na vida" (Znstitutio rais, Hutcheson se pôs na mesma situação difícil em que se encontravam
I, 3, 3). Segundo Hutcheson, a prudência assim definida exige, para outros adeptos do caminho das idéias. Mas o caráter peculiar da moralidade
seu exercício, uma aquisição prévia e independente do que descreve que desejava sustentar, através de sua epistemologia, oferecia-lhe um
como "um alto sentido de excelência moral", de modo que possamos segundo tipo de dificuldade.
saber o que é verdadeiramente vantajoso para nós. Portanto, temos de As verdades morais que Hutcheson tinha herdado, em parte do
aprender o que é correto com o sentido moral antes de aprender como aristotelismo escolástico, em parte do calvinismo, expressavam uma
ser prudente e não ter primeiro de adquirir phrónesis ou prudentia, a visão do conteúdo da justiça especificivel somente por princípios cuja
fim de poder julgar corretamente. Phrdnesis foi realmente descartada verdade e cuja demanda por nossa adesão independem do interesse ou
e ao referir-se à 'prudência', Hutcheson está referindo-se apenas ao seu vantagem de qualquer pessoa ou grupo de pessoas particulares. Para
fantasma. perseguir a justiça, a pessoa deve ser capaz de transcender quanto a
leve a buscar seu interesse próprio e o que quer que a leve a consultar
O esquema moral global de Hutcheson, portanto, quanto ao con- o interesse de outros grupos, independentemente do tamanho desses
teúdo e para sua justificação, depende fundamentalmente da argumentação grupos. Fazer justiça significa distribuir de acordo com o merecimento,
que sustenta o sentido moral. E, conseqüentemente, é primordial nos não segundo os interesses: a justiça concebida dessa forma não pode
interrogar sobre a precisão da compreensão que Hutcheson tinha do aparecer como servindo ao interesse de alguém ou de todos, seja numa
conceito desse sentido. Há todo um espectro de interpretações opostas. visão hobbesiana, seja numa visão derivada da generosa concepção da
Num extremo desse espectro está a visão de Hutcheson como um natureza humana proposta por Shaftesbury. Hutcheson, como já indi-
cognitivista, apesar de ser um anti-racionalista, para quem o sentido quei, preservava grande parte do conteúdo dessa concepção tradicional
moral discrimina o virtuoso e o vicioso do mesmo modo que a percep- de justiça de um modo intimamente relacionado à versão particularmente
ção visual discrimina a luz e a escuridão. A interioridade do sentido escocesa elaborada por Stair. Mas ele desejava encontrar algum tipo de
moral, segundo essa visão, não o transforma numa sensação, em vez de razão motivadora, acessível a toda e qualquer pessoa, como fundamento
uma percepção. No extremo oposto do espectro, estão as interpretações e motivo para a adesão a uma concepção de direito da qual regras de
não-cognitivistas, segundo as quais o sentido moral é um sentimento justiça desse tipo pudessem ser derivadas, e, além disso, um tipo de
de aprovação, embora seja um sentimento característico que reage uni- raciocínio motivador que pudesse ser caracterizado em termos basicamente
formemente - exceto em casos desviantes - aos objetos oferecidos à consoantes com a compreensão da constituição da natureza humana
sua atenção (para um desdobramento esclarecedor recente do debate proposta por Shaftesbury.
entre esses dois pontos de vista, ver David Fate Norton, "Hutcheson's
Moral Realism", cap. 2 de David Hume, Princeton, 1982; Kenneth Winkler, Portanto, Hutcheson teve de inventar algo sui generis no qual essas
"Hutcheson's Alleged Moral Realism", Journal of the History of aspirações mutuamente incompatíveis pudessem todas parecer ter sido
Philosophy 23,2,1985 e David Fate Norton, "Hutcheson's Moral Realism", concretizadas. A concepção do sentido moral não podia evitar a incoe-
ibid. 23, 3, 1985). rência interna; ele consistia num artefato filosófico que visava servir a
um excesso de propósitos. Mas, naturalmente, ele não era visto assim
O que desejo fazer não é tanto participar do debate entre os pro- por Hutcheson ou pelo grande número de leitores e alunos, dentre seus
tagonistas desses pontos de vista opostos, mas sugerir que a concepção contemporâneos, que achavam suas teses fundamentais esclarecedoras
de Hutcheson do sentido moral iria certamente apresentar dificuldades e convincentes. Sua reação deixa claro que Hutcheson tinha conseguido
interpretativas. Pois é uma concepçáo na qual elementos incompatíveis identificar e oferecer uma concepçáo filosófica de um tipo de experiência
são unidos de pelo menos dois modos. Hutcheson queria que o sentido moral fundamental para suas vidas práticas.
300 A visão de Hutcheson sobre a justiça e a racionalidade prática !" A visáo de Hutcheson sobre a justilu e a racionalidade prótica 301

O que a concepção do sentido moral, elaborada por Hutcheson, a essa conclusão tinham claramente a força suficiente para explicar e,
fornecia a seus contemporâneos era uma racionalização para sua con- portanto, desencorajar a discordância com Hutcheson. Sua articulação
fiança na evidência do que era considerado verdade moral. Ao recorrer particular do papel do professor de filosofia moral, portanto, tomou-se,
ao material psicológico fornecido por Shaftesbury, Hutcheson propôs a t t certo ponto, um paradigma para outros professores, embora ne-
uma contrapartida secular ao recurso ao sentimento interno tão carac- nhum rivalizasse com ele, sobre até que ponto suas qualidades pessoais
terístico das doutrinas de conversão evangélica. Esse recurso e o consenso pareciam exemplificar e, portanto, reforçar, sua posição intelectual.
social que o expressava eram, naturalmente, vulneráveis à mudança e
Na época da sua morte, era reconhecido, nas palavras de Leechman,
ao conflito morais. Concordância de sentimento e naquilo que o sen-
timento apontava como evidente eram condições necessárias para sustentar como "um dos professores mais magistrais e mais envolventes que já
as atitudes e as crenças daqueles que consideravam a filosofia moral de apareceram em nossa época...". Os estudantes continuavam a freqiien-
Hutcheson imediatamente confiável. Pois se aquilo que uma pessoa ou tar suas aulas depois de já terem completado seu curso de filosofia
sociedade, baseadas no seu sentimento, consideram evidentemente moral. Quando, aos domingos à noite, Hutcheson falava sobre as
verdadeiro, uma outra pessoa ou sociedade, baseadas exatamente nos evidências da verdade da religião cristã, atraía uma audiência ainda
' maior. Quando seu filho publicou A System of Moral Philosophy
mesmos fundamentos, consideram evidentemente falso, tanto o teste-
munho do sentimento como o próprio conceito de evidência em assuntos postumamente, em 1755, a lista de interessados incluía não apenas
morais seria posto em questão. Portanto, era crucial que Hutcheson vários pastores da Igreja da Escócia, mas também um grande número
fosse capaz de mostrar que aqueles que pareciam ser exemplos justamente de comerciantes, advogados e de membros da pequena nobreza.
dessa discordância e desse conflito não fossem, de fato, nada do que Entretanto, a realização grandiosa de Hutcheson de fornecer novos
pareciam ser. Hutcheson identificava três fontes de discordância moral fundamentos para a teologia moral e para a filosofia do direito e da
aparente. A maioria dessas discordâncias, argumenta, "surge de conclusões justiça, preservando as características específicas da tradição social e
opostas da razão sobre os efeitos da ação no público, ou sobre os afetos intelectual presbiteriana escocesa, durou e só poderia ter durado pouco
que dele fluem. O sentido moral parece sempre aprovar e condenar
tempo. Hutcheson revelou-se uma figura de transição, cuja filosofia
uniformemente os mesmos objetos imediatos, os mesmos afetos e tinha uma instabilidade inerente. Ao fundamentar sua visão da lei da
..."
disposições (System I, 5, 7 ) .A maior parte das discordâncias, portanto,
natureza, em muitos sentidos tradicional, e de nossos deveres em re-
emerge do raciocínio falho sobre os efeitos das ações ou sobre suas lação a Deus sobre uma versão do novo caminho das idéias, que utili-
causas. Um segundo fator é a tendência a ver o seu próprio grupo
zava a linguagem e os argumentos de Malebranche, Shaftesbury e Locke,
social como o único no qual se podem encontrar indivíduos moralmente
Hutcheson parecia, então, ter conseguido defender a tradição filosófica
confiáveis. "Os diferentes consentimentos aqui surgem, novamente, das
escocesa contra as críticas dos estudantes ingleses educados na filosofia
diferentes opiniões sobre uma questão de fato". E o mesmo ocorre com
moderna por academias inglesas não-conformistas, muitos dos quais
a terceira causa de discordância moral: "As opiniões diferentes sobre
vieram para a Escócia para fazer sua educação universitária, a partir do
o que Deus ordena", opiniões que vão desde a esperança pela recom-
início do século XVIII, e contra os membros do clero calvinista que
pensa divina até o medo do castigo divino, podem levar os seres hu- seguiram Halyburton na condenação do uso da filosofia em assuntos
manos a "agir contra seu sentido moral ..." teológicos. Na verdade, o que preparou foi, quando não a expulsão da
É, portanto, apenas devido à inabilidade dos seres humanos para filosofia de tal área, pelo menos as bases para sua transformação ra-
raciocinar sempre correta e uniformemente que as discordâncias são dical.
geradas; o sentido moral produz apenas concordância, e se os seres O sentido moral deixou muito rapidamente de ser confiável como
humanos raciocinassem corretamente, a partir de premissas fornecidas um artefato filosófico; ou melhor, passou a ser reconhecido como
pelos consentimentos do sentido moral, concordariam com a lei da artefato meramente filosófico, e não um aspecto da natureza humana.
natureza e, portanto, com o que a justiça exige. Para muitos dos con- E aqueles que o reconheceram como tal e se propuseram a remover as
temporâneos de Hutcheson dentre as classes cultas da Escócia e, de incoerências da filosofia de Hutcheson tiveram de fazer uma escolha.
I
fato, até certo ponto entre outras pessoas, os argumentos que levavam Ou eles retinham a epistemologia moral de Hutcheson, adaptando-a
302 A visdo de Hutcheson sobre a justiça e a racionalidade prática

onde fosse necessário, e rejeitando sua visão dos princípios morais, da


lei da natureza, da justiça e dos deveres em relação a Deus; ou reti-
nham a posição moral e teológica fundamental de Hutcheson, rejei-
tando sua epistemologia. David Hume e Adam Smith representam a
primeira dessas alternativas; Thomas Reid e Dugald Stewart, a segun- Capítulo XV
da. Todos os quatro concordavam, implícita ou explicitamente, que era
possível concordar com Hutcheson quanto à justiça ou o raciocínio
prático, nunca quanto a ambos.
Hutcheson, portanto, gerou um novo tipo de conflito dentro da vida A SUBVERSÃO ANGLICIZANTE DE HUME
intelectual escocesa, e o fato de ter estabelecido os termos do debate
é uma indicação de sua importância. Justamente por isso, é fácil examinar
retrospectivamente o conflito como uma continuação dos debates internos
à tradição escocesa. Os participantes, afinal de contas, eram todos
escoceses. Mas foi, na verdade, um conflito no qual a existência continuada
da tradição escocesa foi posta em questão. O que Hume representou, A relação de David Hume com sua formação e educação escocesas
em quase todos os aspectos, o que, de fato, Smith viria a representar, foi tal que, ao longo de sua vida (1711-1776), consistentemente descar-
embora tenha sido o discípulo mais ilustre e respeitado de Hutcheson, tou tudo o que fosse especificamente escocês, em termos de atitudes e
foi o abandono de modos de pensamento tipicamente escoceses em crenças intelectuais, enquanto, com igual consistência, manteve e de-
função de modos de compreender a vida social e seu tecido moral senvolveu os laços mais íntimos com sua família, amigos e várias fi-
caracteristicamente ingleses e anglicizantes. guras proeminentes da vida escocesa. Sua obra publicada apresentou
uma série de profundos desafios e rupturas com as convicções funda-
mentais expressas na tradição escocesa dominante. Mas se em algum
momento esse fato teve algum impacto sobre sua vida pessoal, ele
tentou ao máximo minimizar e dissimular os desafios e as rupturas.
Esse aspecto duplo da vida de Hume apresenta-se continuamente numa
série de contextos. Consideremos alguns deles.
Morando na propriedade familiar de Ninewells, Hume foi criado na
paróquia de Chirnside onde os padrões da ortodoxia calvinista foram
mantidos no ensino e nas pregações. O pai de Ebenezer e Ralph Er-
skine, Henry Erskine, fora ministro daquela paróquia entre 1689 e 1704.
Ele foi sucedido pelo tio de Hume, Gèorge Home, cujo pai tinha sido
enforcado por suas atividades como membro do Covenant em 1682. A
mãe de Hume que, devido à morte de seu pai em 1713, responsabili-
zou-se totalmente por sua primeira educação, era uma crente devota e
segura. Tal como Hume quando criança. "Eu perguntei a ele se não era
religioso quando jovem", escreve Boswell no relato de sua conversa
com Hume moribundo. "Ele disse que sim, e que costumava ler o Whole
Duzy of Man; que fez um resumo do catálogo de vícios do final e que
se examinava através dele, deixando homicídio e roubo de lado, uma
vez que não tinha a menor chance nem a menor inclinação para cometê-
304 A subversão anglicizante de Hume A subversão anglicizante de Hume 305

-10s. Disse ser um trabalho estranho, por exemplo, verificar se, embora av8 materno de Hume, Sir David Falconer of Newton, sucedera Stair
sobrepujando seus colegas de escola, não tinha nenhum orgulho ou como presidente da Sessão do Tribunal, em 1682, e organizou uma das
vaidade7,. coleções das decisões desse tribunal, utilizadas por Stair na sua obra
Foi, pelo menos em parte, devido à leitura e à reflexão sobre os Instilutions. O pai de Hume fora admitido como advogado em 1705,
argumentos de Locke e Clarke que Hume, aos vinte anos, abandonou depois de ter sido estudante em Utrecht, onde talvez tenha estudado
a religião cristã. Mas Hume foi muito além da mera rejeição. Ele disse direito. O próprio Hume, em 1752, sucedeu a Thomas Ruddiman como
a Boswell "que a moralidade de toda religião era má" e mostra, em Conservador da Biblioteca dos Advogados em Edimburgo até 1757.
muitos de seus escritos, um desprezo irônico e calculado pela observância Foi também juiz-advogado numa expedição contra os franceses em
religiosa. Em 1739, escreveu numa carta a Hutcheson: "De um modo 1746. E quando terminou seus estudos de graduação na Universidade
geral, desejo retirar meu catálogo de virtudes do Officiis de Cfcero, não de Edimburgo, em 1725 ou 1726, foi estudar direito, seguindo uma
do Whole Duty of Man". Portanto, o calvinismo de juventude de Hume determinação de sua família. Mas nada disso deu a Hume mais do que
tinha sido completamente repudiado, assim como as teologias mais um conhecimento superficial do direito escocês ou de suas raizes na
maduras e sofisticadas dos seus contemporâneos presbiterianos cultos. tradição dos comentadores do direito romano.
Isso, naturalmente, não quer dizer que a formação religiosa de Hume Ele escreveria sobre seu período de estudos, depois de sua carreira
não tenha tido relevante efeito nas suas posições, mas foi um efeito universitária: "Minha Disposição para os Estudos, minha Sobriedade e
que ele mesmo só reconhecia nos aspectos negativos. minha Diligência deram à minha Família a Impressão de que o Direito
Em particular, portanto, assim como nas suas obras, Hume não hesitava seria uma Profissão adequada para mim: mas eu tinha uma Aversão
em confessar sua hostilidade pela religião. Ele disse no seu leito de insuperável por tudo o que não fosse Filosofia e Conhecimentos gerais;
morte, segundo William Cullen (Thomson-Cullen Papers, 161, Glasgow e, enquanto imaginavam que eu estava debruçado sobre Voet e Vinnius,
University Library, citado por Peter Jones em Hume's Sentiments, eu estava secretamente devorando Cícero e Virgílio". Em 1729, fi-
Edimburgo, 1982,2), que estava deixando inacabada "a grande tarefa" ...
nalmente abandonou até mesmo a pretensão de estudar direito: "O Direito
de liberar a Escócia "da superstição cristã". Mas na vida social apre- parecia-me nauseante", e dedicou-se, ao contrário, a tornar-se "um
sentava uma face diferente. Quando, em 1762, Geoge Campbell enviou Acadêmico e Filósofo."
a Hume, através de seu amigo comum, Hugh Blair, seu manuscrito que
A visão de Hume do estudo do direito como sendo totalmente di-
deveria ser publicado em pouco tempo, criticando a argumentação de
ferente do estudo da filosofia indica um segundo tipo de ruptura com
Hume contra a credibilidade dos relatos de ocorrências de milagres, a tradição escocesa dominante, que pode ser evidenciada pelo contraste
Hume reclamou numa carta a Blair: "Eu desejaria que seu amigo não entre Hutcheson e Hume no que se refere a esse assunto. Hutcheson,
me tivesse chamado de um autor infiel, por causa de dez ou doze na sua filosofia moral, remete os leitores em vários momentos à obra
páginas que lhe parecem provar essa tendência: sendo que já publiquei de Justiniano, Instituições. Hume nunca faz referências desse tipo.
tantos volumes sobre história, literatura, política, negócios, moral, que, Vinnius, de quem Hume fala tão respeitosamente, era Arnold Vinnen,
quanto a esse aspecto particular pelo menos, são totalmente inofensi- professor de direito civil em Leyden, cujo comentário sobre as Insti-
vos. Pode-se considerar um homem um beberrão porque foi visto bê- tuições de Justiniano, publicado em 1642, é citado por Hutcheson (System
bado uma vez na vida?" 111, 8, 4). E não era apenas que Hume zombasse do estudo dos juristas
Assim como esses protestos insinceros não devem ocultar-nos o romanos e romano-holandeses, mas também que, na sua visão da jus-
fato de que Hume tinha, já num estágio inicial, rompido com a tradição tiça, no Tratado, repudiou sumariamente a visão da justiça de Jan Voet,
mora1 e intelectual escocesa dominante, à medida que era uma tradição que era a visão escocesa tradicional da justiça (111, 3, 6). Jan Voet,
teológica, também as ligações pessoais de Hume com o mundo social também evitado por Hume, fora professor de direito civil em Leyden
do direito escocês não devem poder ocultar a que ponto Hume tinha, na mesma época em que Stair foi ali exilado, em 1682, e era neto do
correspondente de Robert Baillie, Gisbert Voet; seu Commentarius a d
muito cedo, repudiado ainda uma outra dimensão fundamental dessa
Pandectos (1698-1704) foi a única obra mais importante sobre o direito
tradição, sua filiação ao direito romano e a herança que recebeu dos romano na 6poca. Em 1759, Hume escreveria a Adam Smith numa
comentadores desse direito. As ligações pessoais eram bem reais. O crítica a Henry Home, Lord Kames: "Um homem pode muito bem pensar
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em fazer um molho misturando absinto e aloés, assim como uma com- artes agradáveis, "os desenvolvimentos em termos de razão e filosofia
posição agradável reunindo metafísica e direito escocês". são devidos a uma terra de tolerância e liberdade7', e fala, finalmente,
da "honra para o nosso país7' que daí decorre. Nenhum leitor contem-
Quando Hume abandonou Edimburgo e Ninewells pela Inglaterra,
porâneo deixaria de supor que o escritor anônimo era um inglês e todo
adotou, à medida que era capaz de fazê-lo, os modos de um inglês.
leitor teria de supor, a partir da nota de rodapé, na qual numa lista dos
Mais tarde viria a escrever que "a Escócia é um lugar muito limitado "últimos filósofos da Inglaterra" constava o nome de "Hutchinson"
para mim", e que "Londres é a capital do meu próprio país". Mas em escrito errado, que o escritor era um inglês curiosamente insensível A
Bristol mudou o seu nome de 'Home' para 'Hume', supostamente para própria existência da Escócia.
que fosse corretamente pronunciado pelos ingleses, cuja ignorância do
nome 'Home', afinal de contas, fazia parte de uma ignorância maior Naturalmente, é em parte devido à dívida óbvia do pensamento
sobre a Escócia. E tornou-se amigo de John Peach, um culto negoci- humiano para com o de Hutcheson que Hume é considerado um pen-
ante de tecidos, cujo conselho seguiu, a fim de eliminar toda formula- sador - na verdade o maior pensador - do Iluminismo escocês. Mas
ção e modos de expressão caracteristicamente escoceses da sua obra o que Hume extraiu de Hutcheson foi aquilo, em Hutcheson, que per-
História da Inglaterra. Em 1757, numa carta a Gilbert Elliot, chamou tencia ao "caminho das idéias" e de modo algum o que Hutcheson
a língua dos escoceses de "um dialeto muito corrupto da língua que derivara da tradição escocesa na qual as preocupaçóes principais da
utilizamos...". filosofia, do direito e da teologia presbiteriana eram inseparáveis. O
que Hume extraiu de Hutcheson tinha quatro dimensóes.
Os efeitos de sua pretensa anglicização não foram exatamente o que
Em primeiro lugar, aceitou de Hutcheson, fundamentalmente, a visão
Hume pretendia. Walter Bagehot escreveu sobre o estilo de prosa que
de que a razão é praticamente inerte. Ela não pode, por sua própria
resultou da eliminação consciente feita por Hume das expressóes esco- natureza, mover-nos à ação. Como observei anteriormente, ao discutir
cesas: "Hume é sempre idiomático, mas suas expressóes são consisten- a aceitação por parte de Hutcheson da visão de Shaftesbury e não de
temente erradas; muitas das suas melhores passagens são, por isso, Aristóteles do papel da razão na vida prática, esse era um ponto fun-
intrigantes e arranham curiosamente os ouvidos: você tem a impressão damental, em relação ao qual o próprio Hutcheson tinha-se distanciado
de que são muito parecidas com o que um inglês diria, mas, no entanto, radicalmente daquilo que tinha sido uma tese central da tradição esco-
de uma maneira ou de outra, são algo que um inglês nunca diria ..." (op. cesa do século XVII. De modo que, ao seguir Hutcheson neste ponto,
cit., 105-106). Além disso, Hume nunca conseguiu fazer com que os Hume também se pôs contra aquela tradição.
ingleses o reconhecessem como inglês. Seus traços escoceses remanes-
centes eram o suficiente para que, de tempos em tempos, fosse vítima Hume também utilizou Hutcheson em três outros sentidos relacionados.
do ódio pelos escoceses, tão comum em vários níveis da sociedade Seu catálogo das paixóes no início do livro I1 do Tratado da Natureza
inglesa no século XVIII. Conseqüentemente, Hume voltou a identifi- Humana, embora se distancie de Aristóteles mais do que Hutcheson,
car-se como escocês, a orgulhar-se da poesia de escritores escoceses parece depender de Hutcheson tanto quanto depende da introspecção.
inferiores, tais como Blacklock e Wilkie e, finalmente, quando voltou Hume, como todo mundo, aprendeu sobre muitas das paixóes, não em
para Edimburgo em 1769, construiu uma casa para si e escreveu ao seu primeira mão, experimentando-as, mas lendo sobre elas. Além disso,
editor, William Strahan: "Renunciei a Londres para sempre". Mas pro- Hume seguiu Hutcheson ao dividir os julgamentos morais em duas
cedeu assim apenas quando já tinha "gasto toda Ambição7'. A vida na classes: os anteriores a todo raciocínio - segundo Hutcheson, as de-
qual viveu sua ambição acadêmica e filosófica era, em grande parte, terminaçóes imediatas do sentido moral, segundo Hume, a expressão
um projeto de vida inglês, mesmo enquanto vivia na França. das virtudes naturais - e os julgamentos morais secundários, conclu-
sões de uma conjunção de julgamentos morais primários e julgamentos
O mais importante e interessante de tudo isso é a 'Introdução' ao dependentes do raciocínio referente a questóes de fato - segundo
seu Tratado da natureza humana, publicada anonimamente. Nela Hume Hutcheson, os que nos dizem o que é a lei da natureza, segundo Hume,
primeiramente refere-se a "alguns filósofos recentes na Inglaterra que a expressão das virtudes artificiais -, embora Hume não tivesse ne-
começaram a pôr a ciência do homem em novas bases" e, então, diz nhuma objeção quanto a falar de modo semelhante sobre "leis da na-
que, enquanto outras nações podem comparar-se a n6s em poesia e nas tureza" (Tratado 111, 2, 1 ) .
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Finalmente, Hume seguiu Hutcheson ao fundamentar sua concepção Quanto à inabilidade de Hume para assumir uma cátedra que, por
da moralidade numa visão da constituição da natureza humana uni- exemplo, exigia que fosse dada instrução sobre as verdades da religião
forme e invariante, em todo lugar e em toda sociedade. Qualquer um racional, de um modo pelo menos congruente e favorável h revelação
que sustente uma visão como essa tem de enfrentar o problema de cristã, não pode haver, retrospectivamente, a menor dúvida. Robert
como explicar a variação moral aparente entre culturas e a discordância Wallace, pastor da Nova Igreja do Norte em Edimburgo, que apoiava
moral aparente dentro delas. Hutcheson mal atentou para o primeiro a candidatura de Hume, argumentava que o Tratado, enquanto obra
problema, mas, como já vimos, tinha sua própria solução para o segundo. ani3nima e de juventude, não deveria ser admitido como evidência das
Hume era bem consciente de ambos os problemas e, à medida que crenças de Hume. A implicação é clara: se as crenças de Hume, na
reagiu a eles, o fez dentro do esquema das crenças sobre a natureza tpoca da sua candidatura, tivessem sido seguramente conhecidas como
humana que, em grande parte, compartilhava com Hutcheson. sendo as do Tratado, seus defensores teriam tido de concordar com
seus oponentes. Mas se, quanto a isso, a surpresa declarada de Hume
Mesmo apesar das áreas nas quais há grande coincidência de pontos com relação à oposição a ele nos dá mais evidência da sua insinceridade
de vista entre Hume e Hutcheson, resultante em parte das leituras do ao apresentar-se à sociedade escocesa, isso não vale para sua reação de
primeiro das obras do segundo, publicadas antes de 1730 e, em parte, perplexidade claramente genuína, ao saber da oposição de Hutcheson.
de sua adesão comum ao caminho das idéias, há diferenças importan- E foi na defesa an8nima de sua candidatura e nas visões expressas no
tes. A concepção de Hutcheson do sentido moral, como argumentei Tratado, publicado em maio de 1745 como Carta de um cavalheiro a
anteriormente, é suscetível de várias interpretações. Pode ser plausivel- seu amigo em Edimburgo, que Hume afirmou a concordância de sua
mente representada como cognitivista: discriminamos o virtuoso do filosofia moral, tal como tinha sido expressa no Tratado, com a de
vicioso, assim como discriminamos a luz da escuridão. E pode também Hutcheson.
ser plausivelmente representada como não-cognitivista: discriminamos Podemos ao menos suspeitar que Hutcheson pensava que o fato de
o virtuoso do vicioso, reagindo a estímulos causais com um tipo de Hume acreditar que estivessem fundamentalmente de acordo explica-
sentimento e não com outro. Hume não apenas adotou de maneira va-se pela má compreensão, por parte de Hume, do ponto de vista de
ambígua o segundo ponto de vista como seu, mas, ao fazê-lo, também Hutcheson. É esclarecedor considerar o quanto suas atitudes são dife-
acreditou não estar fazendo nada mais do que repetir o que Hutcheson rentes em relação a Cícero, especialmente com relação ao De Officiis.
dissera. Assim, ao tratar "as proposições da moralidade" como ex- Os escritos de Cícero eram textos cananicos para a educação escocesa
pressão das "sensações de nossos gostos e sentimentos internos", Hume nos séculos XVII e XVIII. Hume teria estudado Cícero em Edimburgo,
alegou que "nessa opinião concorda com todos os antigos moralistas, inicialmente no primeiro ano do seu curso de retórica e depois, se
assim como com o Sr. Hutcheson ..." William Law seguiu a prática escocesa comum, em suas aulas de filo-
sofia moral. E Hume mostrou em toda a sua vida, assim como em'toda
A ocasião para essa asserção foi a controvérsia que surgiu sobre a sua obra, não só um amplo conhecimento dos escritos filosóficos de
candidatura de Hume para a cátedra de filosofia moral em Edimburgo, Cícero, como também uma concordância básica com eles. O mesmo
em 1745 (para uma compreensão completa desse episódio, a obra in- ocorre com Hutcheson, e sua discordância da interpretação do De Ofjiciis
dispensável é M. A. C. Stewart, op. cit.). Em abril de 1745, a Câmara é, portanto, ainda mais significativa.
Municipal de Edimburgo tinha elegido Hutcheson para a cátedra vaga,
s6 descobrindo depois que sua falta de disposição de sair de Glasgow Em sua carta de 1739 a Hutcheson, Hume se referira ao De Offíciis
o impedia de aceitá-la. Hutcheson já tinha expressado sua indisposição, como catálogo de virtudes preferível ao apresentado pelo autor purita-
particularmente, numa carta a Lord Minto em julho de 1774, citada no do The Whole Duty of Man. Ele iria reiterar essa preferência na
Pesquisa sobre os Princípios da Moral (apêndice IV, nota do parágrafo
anteriormente, ao discutir os pré-requisitos exigidos de um professor
266). Fica claro, portanto, que Hume compreendeu que Cícero, no De
de filosofia moral. A lista de possíveis candidatos sugeridos por Hutcheson
Officiis, pretendeu fornecer o mesmo tipo de especificação prática
naquela carta incluía William Cleghorn, que viria realmente a ser nomeado, completa da vida moral que o autor do The Whole Duty of Man. Re-
mas não incluía Hume. E Hutcheson, quando a candidatura de Hume almente, a crítica de Hume, na Pesquisa, era precisamente que o refe-
foi proposta, parece ter utilizado sua influência contra Hume, para rido autor tinha restringido a expressão dos sentimentos morais a um
surpresa, espanto e indignação deste último. sistema excessivamente limitado.
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É quase certo que Hume não sabia que Hutcheson tinha uma visão Dictionnaire historique et critique (2 vols., Rotterdam, 1695 e 1697),
bastante diferente do D e Ofliciis. Pois Hutcheson não publicou nada uma fonte - especialmente na sua segunda edição ampliada (Rotter-
sobre esse assunto em toda sua vida. Foi apenas nas versões latina e dam, 1702) - para tantos autores do século XVIII. Cícero tinha,
inglesa do Institutio, publicadas postumamente, nas quais se encontra naturalmente, compreendido a lei da natureza como sendo totalmente
o essencial de suas aulas em Glasgow, que advertiu contra interpre- promulgada por uma razão que instrui e comanda as paixões da pessoa
tações errôneas do D e Officiis. E pode ser realmente que tenha sido a virtuosa, e essa visão é tão contrária à teoria de Hutcheson do sentido
visão de Hume sobre Cícero a provocar esta advertência: "A concepção moral que era de se esperar que Hutcheson discriminasse entre os con-
dos livros de Cícero, D e Officiis, que são tão justamente admirados por selhos práticos aos oficiais de fato e em potencial do De Ofllciis, que
todos, tem sido inconsideradamente malcompreendida por alguns ho- aceitava, e a epistemologia moral de Cícero, que rejeitava.
mens geniais, que falam desses livros como se pretendessem ser um Entretanto, uma vez que a epistemologia moral de Hume era mais
sistema completo de moral ou de ética". Mas, indica Hutcheson, Cícero, contrfiria à de Cícero do que a de Hutcheson, poderíamos esperar que
neste trabalho, segue confessadamente "os estóicos" que "faziam uma Hume repudiasse Cícero também nessa área. Mas Hume estava quase
distinção entre virtude, que consideravam o único bem, e os officia, ou certamente seguindo a Bayle, que, nos seus comentários sobre as po-
deveres externos da vida, que consideravam coisas indiferentes, nem sições de Cícero no seu artigo de dicionário sobre Ovídio (devo este
moralmente boas nem más". O D e Officiis não trata, portanto, segundo esclarecimento a Peter Jones, op. cit., 5), descreve Cícero como refe-
Hutcheson, da virtude ou das virtudes; visa às pessoas em postos mais rindo-se a "l'esclavage de lu raison" às paixões, numa frase que, na
elevados, já instruídas na virtude, a fim de ensinar-lhes como "condu- sua tradução inglesa de 1739 tornou-se: "A razão tinha-se tornado uma
zirem-se na vida, de modo que, em perfeita consistência com a virtude, escrava das paixões", uma antecipação surpreendente da visão do próprio
possam obter grande interesse, poder, popularidade, altos postos e glória" Hume. Nesse ponto, portanto, Hume é influenciado por Bayle e não
(Introdução, Institutio). por Cícero e, na perspectiva de Bayle, o contraste radical entre a visão
ciceroniana razão e a visão de Hume pode muito bem ter parecido
Não nos deve surpreender que Hume e Hutcheson tivessem com- menos importante do que de fato é.
preendido Cícero de modos bastante diferentes. Cícero já tinha mos-
trado, durante uma longa história, que seus escritos podiam ser sub- Hume, portanto, recorre a Cícero diversamente dos autores que
metidos a uma grande variedade de propósitos, por autores de pontos continuaram ou revisaram a tradição estóica no século XVIII. Nos quatro
de vista muito diferentes e incompatíveis. Sto. Agostinho, inicialmente ensaios que representam os pontos de vista filosóficos antigos - "O
inspirado pelo Hortensius de Cícero, na pesquisa filosófica que durou Epicurista", "O Estóico", "O Platônico" e "O Cético" - publicados
toda sua vida, tinha utilizado sua leitura de Cícero de tantas maneiras em 1742, é claramente o cético que melhor representa as próprias atitudes
que este se tornou um dos poucos autores antigos indispensáveis para de Hume, um cético com relação às conclusões do debate metafísico,
os acadêmicos medievais. Mas, na renascença dos séculos XV e XVI, não com relação aos fundamentos da moralidade. E nessa recuperação
Cícero tornou-se a fonte para um tipo de humanismo antagônico à do ceticismo acadêmico, Hume estava mais uma vez genuinamente
tradição agostiniana, embora seus escritos tivessem permanecido como próximo de Cícero, muito mais próximo, na verdade, do que Hutcheson
parte do acervo comum de textos aceitos por acadêmicos de todas as jamais esteve. Pois foi no modo como Hume foi capaz de combinar um
posições, inclusive os do agostianismo calvinista. ceticismo metafísico mitigado com uma ausência de ceticismo nos as-
suntos morais, que apareceu a maior diferença entre Hume e Hutcheson.
A formação presbiteriana de Hume, particularmente enquanto es- Essa diferença era devida, pelo menos em parte, às proporções dife-
tudante em Edimburgo, tinha feito com que se familiarizasse com o rentes nas quais cada um deles foi influenciado por sua adesão ao
recurso a Cícero, e Peter Jones identifica uma série de tópicos filosó- caminho das idéias. A adesão de Hume foi imediatamente mais pro-
ficos em cujo tratamento Hume recorreu a teses e argumentações de funda, mais filosoficamente sofisticada e resultante de uma leitura mais
Cícero (Hume's Sentiments: Their Ciceronian and French Context, ampla do que a de Hutcheson. Não foi, naturalmente, apenas uma questão
Edimburgo, 1982, 29-41). Mas, embora seja claro que Hume tenha lido de extensão da leitura, mas foi inicialmente e, pelo menos, uma questão
Cícero amplamente, sua primeira leitura dos textos foi complementada da extensão da leitura de cada um. Se por um lado, Hutcheson tinha
e influenciada pelo relato sobre Cícero feito por Pierre Bayle no utilizado não apenas Shaftesbury, mas também Locke e Malebranche,
312 A subversão anglicizante de Hume A subversão anglicizante de Hume 313

para seus próprios propósitos, Hume, por outro lado, aprofundou-se da doutrina das paixões no livro 11, mas para compreendermos essa
nesses dois últimos de um modo que Hutcheson nunca fizera, assim doutrina como uma solução para esse problema particular é necessário
como em Descartes e Berkeley. Ele também familiarizou-se com os
dizer um pouco mais sobre as dimensões do problema. Um modo de
autores originais de Port-Royal e com J. P. Crousaz, na sua tentativa
de modernização da lógica de Port-Royal, na sua obra La logique, ou fazê-lo é nos termos da questão que se punha para Hume sobre o
système de réflexions qui peuvent contribuer h Ia netteté et h l'étendue conceito de identidade pessoal.
de nos connaissances (1712). Sua visão da história da filosofia, o que A identidade é conferida socialmente. Ser uma única e mesma pessoa
quer que tenha sido quando completou seus estudos de graduação, tornou- significa satisfazer os critérios pelos quais os outros imputam a identidade,
-se, de um modo geral e não apenas com relação a Cícero, a visão e seus critérios de identidade governam e são expressos nas suas
proposta por Bayle. atribuições de responsabilidade. A responsabilidade de cada pessoa é o
que lhe pode ser imputado enquanto causa geradora, estendendo-se
Peter Jones, observando como apenas poucos dos autores utilizados
através do tempo durante o qual há uma verdadeira compreensão de
por Hume eram mencionados por ele (op. cit., 10), lembra que Locke
seus feitos e sofrimentos a ser feita em primeira pessoa, e ela pode ser
e Descartes citam ainda menos nomes. O que Jones não acrescenta,
considerada responsável por tal compreensão. Uma vez que a vida
mas poderia ter feito, é que a adesão consistente ao caminho das idéias,
prática e moral das sociedades sempre exige tal responsabilidade, e
por sua própria natureza, excluía o reconhecimento de dívidas inte-
uma vez que os conceitos morais e práticos de uma sociedade são
lectuais fundamentais para com os diversos escritos filosóficos. Todo
sempre articulados como partes de um acervo mais ou menos coerente,
o material utilizado por qualquer autor particular para dar conta da no qual o uso de uma série de julgamentos avaliativos e práticos pressupõe
percepção, do pensamento, do conhecimento, das paixões, da vontade
e das crenças que os expressam, quer este autor particular tenha uma a aplicabilidade do conceito de responsabilidade, não há nenhuma
versão cartesiana ou empirista do caminho das idéias, tem de ser ex- sociedade na qual a posse de uma concepção da identidade pessoal
traído de um acervo de impressões e idéias presentes na consciência de publicamente utilizável, em terceira pessoa e relativamente complexa,
uma única mente individual, a do autor. O ponto de vista na primeira não esteja pressuposta no discurso diário. Mas se mudarmos desse ponto
pessoa é não apenas, na perspectiva do caminho das idéias, aquele com de vista em terceira pessoa para o ponto de vista em primeira pessoa,
o qual começamos, mas também aquele no qual tudo, inclusive o que compartilhado pelos adeptos do caminho das idéias, as coisas se
sabemos dos outros, tem de ser compreendido como nada mais do que apresentam de modo bem diferente.
um aspecto manifesto de minhas impressões e idéias. Uma vez que do ponto de vista do caminho das idéias minha
Foi esse radical ponto de vista da primeira pessoa que Hutcheson, compreensão de mim mesmo só pode contar com aquilo que é apresen-
de fato, nunca adotou. Hume o assumiu sistematicamente com as frases tado a um ponto de vista em primeira pessoa e a partir dele, minhas
iniciais do livro I do Tratado. O autor do único comentário sobre o impressões e minhas idéias, e, conseqüentemente, uma vez que todas
Tratado, publicado numa revista de Londres - a History of the Works as concepções socialmente imputadas desaparecem de vista, aquilo que
of the Learned (Nov-Dez 1739) - criticou: "Este trabalho tem uma poderia constituir minha identidade pessoal necessariamente também
abundância de egoísmos. O autor dificilmente usaria mais freqüente- desaparece. Dentre os diferentes estados e episódios do eu, uma va-
mente esse tipo de discurso se tivesse escrito suas próprias memórias". riedade de relações pode ser discernida, mas nada além ou acima delas.
O que escapou à atenção do obtuso autor desse comentário foi o fato Desse modo, qualquer crença na identidade pessoal, que for mais do
de que todo trabalho filosófico feito por um adepto consistente do que uma crença nessas relaçóes, passa a ser uma ficção filosófica não
caminho das idéias só pode ser um relato de suas próprias memórias. fundamentada, como acontece com Hume na seção VI da parte IV do
livro I do Tratado. Portanto, a concepção dos julgamentos e relações
O problema fundamental de Hume ao estruturar o Tratado deve ter sociais e morais no livro 111, evidente e inevitavelmente, pressupõe, embora
sido o de como passar dos egoísmos do livro I às relaçóes sociais da nunca proponha sua elaboração explícita, uma crença na identidade
arena moral do livro 111, que só são suscetíveis de caracterização e pessoal; e, no entanto, a crença na identidade pessoal foi aparente-
explicação nos termos disponíveis e específicos de um observador em mente privada de justificação racional na argumentação do livro I.
terceira pessoa. A solução de Hume para esse problema é dada através Como pode ser feita a transição?
A subversão anglicizante de Hume A subversão anglicizante de Hume

Ela é feita na teoria das paixões proposta no livro 11. O livro I1 pelo orgulho e pela humildade: "Assim como o objeto imediato do orgulho
começa onde começa o livro I, com uma reafirmação de que "todas as e da humildade é o eu ou a pessoa idêntica, de cujos pensamentos,
impressões na minha mente podem ser divididas entre impressúes e idéias", ações e sensações somos intimamente conscientes, também o objeto do
e com a identificação das "paixões e outras emoções semelhantes a amor e do ódio é alguma outra pessoa, de cujos pensamentos, ações e
elas", tais como "impressões secundárias ou refletidas", que "procedem sensações não somos conscientes" (11, 2, 1).
de algumas das impressões originais, seja imediatamente, seja através
da interposição de sua idéia". As paixões, entretanto, têm uma propriedade As paixões de cada pessoa são, portanto, inevitavelmente caracteri-
que as diferencia das impressões primárias. Elas não são apenas estados zadas, em parte, como reações a outros que, por sua vez, reagem a nós
e ocorrências que, como tais, têm causas, mas algumas delas têm também mesmos. Desse modo, na reciprocidade das paixões, sejam harmonio-
uma tendência que lhes é interna, uma tendência para objetos intencionais sas ou antagônicas, cada eu se concebe como parte de uma comunidade
- Hume não usa a linguagem da intencionalidade, mas ela C totalmente de eus, cada um com uma identidade atribuída por outros. A identidade
apropriada - que são idéias especificas de tipos particulares de pai- pessoal, enquanto socialmente imputada, emerge da caracterização das
xão. Hume chama a essas paixões, nas quais uma idéia 6 um componente paixões, e, nessa medida, o caminho da idéias foi deixado de lado. E
essencial, de paixões indiretas, e são elas que têm um papel central na foi através do seu tratamento das paixões e de sua conseqüente adoção
geração das ações que constituem as trocas e as transações da vida de um ponto de vista que o caminho das idéias não podia oferecer por
social. si só, que Hume passou do ceticismo metafísico, embora mitigado, do
livro I, para as posições morais não-céticas do livro 111, um contraste
Segundo Hume, as paixões do orgulho e da humildade são funda- do qual, agora fica claro (em grande parte devido a David Fate Norton,
mentais entre as paixões indiretas, pois, "apesar de diretamente con- David Hume: Common-Sense Moralist, Sceptical Metaphysician,
trárias, têm o mesmo objeto. Esse objeto é o eu ..."
(Tratado 11, 1, 2). Princeton, 1982), toda interpretação de Hume tem de dar conta.
É verdade que Hume, na primeira introdução que faz do conceito,
caracteriza o eu nos termos retirados do livro I, logo, do caminho das Ao restituir o eu à sua identidade social no livro 11, através de sua
idéias: "Essa sucessão de idéias e impressões relacionadas, da qual concepção da complexa intencionalidade e causalidade das paixões,
temos uma mémoria e uma consciência íntimas". Mas esse eu, en- Hume acreditava-se um seguidor de Hobbes, Shaftesbury, Mandeville
quanto objeto intencional da consideração do orgulho e da humildade, e Hutcheson, ao propor uma concepção da constituição da natureza
é, a partir desse ponto, tratado como um objeto unitário e unificado. humana universal e da sociedade humana como tal, embora, naturalmente,
No entanto, esse eu, o meu eu, que é aquilo que minha idéia informa também acreditasse -e corretamente -que sua concepção fosse superior
às minhas paixões do orgulho e da humildade, não é o único eu que à de todos eles. Mas, na verdade, as relações sociais, cuja caracterização
estabelece uma relação crucial com as paixões. emerge na discussão das paixões, e que é então ampliada e mantida nas
Na visão de Hume, são as ações dos outros, compreendidas como discussões do julgamento moral e das virtudes e vícios do livro 111, são
signos ou sintomas de seus caracteres (111, 3, I), que estão entre as específicas a um tipo particular de ordem cultural e social, e talvez não
causas principais do fato de cada pessoa em particular sentir orgulho pudesse ser de outra forma. Pois o direcionamento das paixões, dentro
ou humildade. Pois o orgulho é intimamente ligado ao desejo de uma da vida social, geralmente tem de ser rumo a objetos particularizados
boa reputação (11, 2, 1). E as qualidades das quais nos orgulhamos são em alguma linguagem cultural e social específica. O que humilha nunca
exatamente as mesmas pelas quais buscamos a admiração dos outros e é o insulto geral, mas sempre um insulto específico, com um signifi-
eles a nossa. Assim, o orgulho provoca ou, pelo menos, busca provo- cado particular para os habitantes de uma cultura particular; o que
car, aqui10 que Hume chama de amor. E a humildade, correlativamente, causa orgulho nunca é uma boa qualidade geral, mas sempre um exemplo
provoca o ódio. O que valorizamos em nós mesmos é o objeto de nosso particular dessa qualidade desenvolvido, educado, apresentado e valorizado
orgulho; o que valorizamos em nós mesmos, quando apresentado como de modos culturalmente específicos e em circunstâncias socialmente
a mesma qualidade pertencente a outro, é o objeto de nosso amor. As específicas. A medida que não percebeu que o que pensava ser univer-
concepções de Hume de amor e ódio não são, portanto, independentes sal era, em grande parte, local e particular, Hume alinha-se à maioria
das suas concepções de orgulho e humildade. Amor e ódio, conseqüen- de seus contemporâneos, talvez, de fato, a todos os seres humanos na
temente, exigem a mesma concepção de identidade pessoal exigída maioria das vezes. O interesse reside não tanto no tipo de erro que
318 A subversüo anglicizante de Hume A subversão anglicizante de Hume 319

entes e dependentes. O que Hume apresenta como a natureza humana Paralelamente, na História da Inglaterra, condenou as ações e ins-
como tal revela-se como sendo a natureza humana inglesa do século tituições escocesas por serem diferentes das ações e instituições inglesas,
XVIII, e ainda, apenas uma variante dessa, embora a dominante (ver as ou melhor, por serem distintas das ações e instituições inglesas que, no
referências a Roy Porter, English Society in the Eighteenth Century, no seu espírito ou nos seus esforços, podiam ser compreendidas como
cap. XI acima). precursoras da ordem social cujo domínio foi completamente estabelecido
Hume, no Tratado, utilizou os materiais fornecidos pelo seu próprio pela revolução de 1688, de Guilherme de Orange, a mesma ordem social
desenvolvimento e transformação do caminho das idéias, na versão cujos aspectos fundamentais reaparecem na filosofia moral e política
mais filosoficamente sofisticada desse caminho jamais realizada, a fim de Hume como propriedades da natureza humana universal. Do ponto
de articular em termos filosóficos os conceitos e teses expressos no de vista superior, dado por uma narrativa construída para demonstrar
pensamento e na prática da'ordem social e cultural inglesa dominante. o progresso rumo a essa ordem social, os negócios da Escócia neces-
Foi a partir do ponto de vista proporcionado por essa articulação que sariamente aparecem como um acervo de episódios marginais, apre-
entrou em dois debates separados, o da arena filosófica internacional sentando paixões dissidentes reforçadas por compreensões sistematica-
mais ampla, na qual desafiou posições tão diversificadas quanto as de mente errôneas da relação entre as paixões e os interesses com os
Locke, Clarke e Wollaston na Inglaterra, de Pascal e Malebranche na princípios. Os presbiterianos da década de 1640 aparecem, no comen-
França, e de Berkeley na Irlanda; e o debate interno escocês entre os tário mais favorável de Hume, como "rígidos homens de Igreja", os
protagonistas remanescentes das tradições escocesas de pensamento, rebeldes da Covenant como "fanáticos" e "entusiastas". Os feitos ex-
ainda enraizadas no século XVII, e aqueles para quem a Escócia não traordinários de Stair em jurisprudência são invisíveis para Hume, sem
tinha mais nenhum futuro viável, a não ser através da integração e da dúvida porque não tiveram nenhum efeito na história da Inglaterra.
assimilação aos modos comerciais, financeiros, políticos, sociais e culturais O que está manifesto nos julgamentos da Histdria está latente nos
de um mundo mais amplo e essencialmente inglês. Hume, na sua teo- do Tratado. O ponto de vista subjacente que informa os próprios jul-
ria, assim como na sua própria vida, foi um profundo assimilador, gamentos particulares de Hume no Tratado e o tipo de julgamento
perdendo em influência apenas para Adam Smith. Uma luz importante avaliativo que descreve como expressivo das paixões é o ponto de vista
é jogada sobre isso, não apenas pelos ensaios nos quais Hume defendia pressuposto pelo vocabulário avaliativo comum da ordem social inglesa
políticas particulares nas esferas da economia e da política, mas também dominante, E é crucial à visão de Hume dos julgamentos avaliativos e
por duas outras expressões tardias do ponto de vista fundamental de práticos que os indivíduos dentro de tal ordem social sejam capazes de
Hume: seus julgamentos literários e sua História da Inglaterra. utilizar um único e mesmo vocabulário avaliativo. Como é possível um
E. C. Mossner (The Life of David Hume, 2a. ed., Oxford, 1980,386) tal vocabulário?
fala que a motivação de Hume em defender o poeta escocês William Todo julgamento prático e avaliativo particular é, naturalmente, a
Wilkie emerge de "impulsos patrióticos". Mas, na verdade, o trabalho expressão de alguma paixão particular de um indivíduo particular. Mas
de Wilkie - pastor da paróquia de Ratho em Midlothian -, elogiado o vocabulário comum no qual tais julgamentos são estruturados, e que
e defendido por Hume contra uma crítica hostil, eram os nove livros do nos permitem reagir aos julgamentos assim como às ações dos outros,
Epigoniad, um poema baseado no quarto livro da Ilíada, que nada mais em nossos julgamentos e ações, depende de e é ele próprio uma ex-
era do que uma imitação inferior de Pope. E a poesia do cego Thomas pressão do acordo e da convergência das paixões de cada um com as
Blacklock, também elogiado por Hume como um poeta escocês, con- dos outros, nos padrões de reciprocidade que constituem as transações
sistia em nada além de ressonâncias simplórias dos poetas ingleses que de uma sociedade. Julgamentos que desviam das normas socialmente
ouviu na infância, entre os quais figuravam Addison e Pope. Hume não estabelecidas são o resultado de paixões dissidentes, paixões que ten-
mostrou nenhum interesse por outro aspecto do trabalho de Wilkie, que dem a perturbar as harmonias da troca social. Cada um de nós é, oca-
levaria ao The Hare and the Partan, escrito no vernáculo escocês de sionalmente, capaz de ter alguma paixão dissidente, devido aos nossos
Midlothian, publicado num livro de fábulas, alguns anos depois da interesses particulares e à nossa parcialidade com relação aos nossos
morte de Hume. O que significa que Hume elogiava os poetas escoce- amigos, parentes e bens. Conseqüentemente, tendemos a expressar a
ses apenas à medida que se assemelhavam aos poetas ingleses. parcialidade interessada de nossas próprias ligações passionais, em vez
A subversão anglicizante de Hume A subversão anglicizante de Hume

de expressar o ponto de vista impessoal a partir do qual cada indivíduo mútuo são organizadas, enquanto a ordem social geral cuida, formal e
manifesta, nos seus julgamentos, a adesão à reciprocidade ordenada informalmente, para que as relações expressas em tais transações e
das paixões. Se essa tendência não fosse reprimida, dissolveria os acordos trocas possam ser mantidas e realizadas. O contexto social pressuposto
em paixão e ação que estão pressupostos pela linguagem comum da por Aristóteles é um contexto no qual a avaliação se dá primariamente
avaliação, pela linguagem das virtudes e dos vícios. Mas essa tendência em termos da realização dos fins da atividade; o contexto de Hume é
é, de fato, geralmente controlada, embora nem sempre, pela influência um contexto no qual a avaliação se dá primariamente em termos da
de regras gerais que corrigem nossa avaliações, de modo que falamos satisfação dos consumidores. O indivíduo visado por Aristóteles empe-
justamente a partir desse ponto de vista impessoal, com relação ao nha-se no raciocínio prático não apenas enquanto indivíduo, mas en-
tempo, lugar e ligações, e não de nossa própria perspectiva limitada e quanto cidadão de uma pólis; o indivíduo, tal como é visado por Hume,
parcial (Tratado 111, 3, 1). A palavra 'perspectiva' é adequada, uma empenha-se no raciocínio prático enquanto membro de um tipo de
vez que as regras gerais que governam nossas avaliações funcionam sociedade no qual a posição, a propriedade e o orgulho estruturam as
em grande parte do mesmo modo que as regras perceptivas, tais como trocas sociais.
as regras de perspectiva, através das quais fazemos julgamentos de
O paralelo entre a relação da teorizaçáo de Aristóteles com seu
forma, tamanho e distância, de modo que todos podem concordar nos
contexto social e a de Hume com o seu ainda pode ser levado a um
seus julgamentos, em vez de meramente julgar como forma, tamanho
e distância aparecem para cada indivíduo a partir de seu ponto de vista estágio posterior. Cada um estava argumentando numa situação em que
particular. os membros da sua sociedade enfrentavam grandes alternativas. Aristóteles
enfrentava a renovação simplista de Isócrates da visão de Péricles e o
Portanto, julgamentos práticos, segundo Hume, pressupõem uma impacto dos modos persas sobre macedônios e gregos. Hume, da mesma
reciprocidade ordenada das paixões, uma reciprocidade na qual os maneira, tinha de argumentar contra concepções da ordem social e de
momentos principais devem ser caracterizados em termos de orgulho, suas potencialidades derivadas da teologia e do direito escoceses do
humildade, amor e ódio, e das relações de propriedade, parentesco e século XVII. O Tratado era, portanto, um documento político, e não
hierarquia que têm um papel tão importante em fornecer os objetos e apenas naquelas partes em que questões de governo e de adesão política
as causas dessas paixões. As características de cada tipo específico de são discufidas explicitamente. Se tivesse sido lido amplamente na época
ordem social são, assim, pressupostas por esses julgamentos, e para
de sua publicação, e aceito dentro da Escócia - como de fato não foi
defender a visão de Hume seria necessário mostrar, com relação a cada
ordem social efetiva, que é desse tipo ou que desvia desse tipo apenas - teria.subvertido, entre as classes cultas do país, algumas das leal-
em modos que podem ser explicados pelos próprios princípios de Hume. dades fundamentais essenciais para a manutenção de uma identidade
A psicologia filosófica de Hume não oferece os fundamentos de sua cultural escocesa específica. E teria feito isso através de uma compre-
filosofia política, independentemente dela. As teses fundamentais da ensão da justiça e do lugar do raciocínio na gênese da ação, profundamente
filosofia política são, elas mesmas, pressupostas pela visão da inter- contrária não apenas à visão dos aristotélicos calvinistas do século
relação ordenada das paixões. Vale a pena comparar Hume a Aristóteles, XVII escocês, mas ainda mais contrária à visão do próprio Aristóteles.
quanto a esse aspecto. Passo agora aos pormenores dessa compreensão.
As concepções de Aristóteles do raciocínio prático e da justiça exigem,
como argumentei, um tipo específico de contexto, o de uma sociedade
estruturada nos termos de formas sistemáticas de atividade, dentro das
quais os bens específicos são reconhecidos e buscados, enquanto dentro
da ordem social geral, a atividade da política dá aos habitantes da pdlis
modos de compreender e buscar esses fins, de uma maneira integrada,
fazendo com que o bom e o melhor possam ser alcançados. As concepções
de Hume, ao contrário, exigem, como sugeri, um tipo muito diferente
de contexto, o de uma sociedade estruturada nos termos de modos de
satisfação do desejo, na qual as transações e as trocas para benefício
Capítulo XVI

A VISAO DE HUME SOBRE A JUSTIÇA E


A RACIONALIDADE PRÁTICA

Os elementos com os quais Hume construiu sua concepção do papel


do raciocínio na gênese da ação foram derivados, em grande parte, da
herança que recebeu de Hutcheson. O que precede, imediatamente, h
ação é um esforço da vontade (Tratado I, 1, 4). Hutcheson aceitara o
que chamava de "a antiga divisão das moções da vontade em quatro
espécies gerais: Desejo, Aversão, Alegria e Tristeza", referindo-se ao
terceiro e quarto livros das Tusculanas de Cícero (System I, 1, 5). Para
Hume, um esforço da vontade não é nada mais do que um efeito da dor
ou do prazer que dá origem, imediatamente, às paixões diretas: "Desse
tipo são desejo e aversão, tristeza e alegria, esperança e medo (Tratado
111, 3, 1).
O que constitui as paixões, diretas ou indiretas, são impressões de
um tipo determinado e são elas que geram a ação. Assim como nada
além de uma paixão pode produzir uma ação, nada pode inibir uma
paixão a não ser uma outra paixão. O tipo mais importante de conflito
que pode ocorrer entre paixões é o conflito entre uma paixão calma e
uma violenta. As paixões calmas são de dois tipos: "Certos instintos
originalmente implantados em nossas naturezas, tais como a benevo-
lência e o ressentimento, o amor pela vida e a gentileza com as cri-
anças, ou o apetite generalizado pelo bem e a aversão pelo mal, con-
siderados meramente como tais" (Tratado 11, 3, 3). Isto é, são paixões
dirigidas a certos tipos altamente gerais de bem, do tipo que os seres
humanos tendem a perseguir recorrentemente durante suas vidas. As
paixões violentas, ao contrário, são expressas em fortes reações ime-
324 A visão de Hume sobre a justiça e a racionalidade prática A visão de Hume sobre a justiça e a racionalidade prática 325

justificação racional para os rincípios morais e metafísicos constitutivos


diatas a situações particulares, tais como quando somos insultados por da ordem social e política. I! sabido que Hume visava privar a teologia
outros ou quando sofremos a ameaça de algum mal grave. Elas me de sua posição fundamental tradicional. Não é tão reconhecido o fato
tornam indiferente a "toda consideração pelo prazer ou por alguma de que, numa visão humiana, a própria filosofia se tome uma atividade
vantagem para mim mesmo". Logo, consideramos uma virtude, a vir- menos que fundamental.
tude da força da mente, cultivar e incentivar as paixões calmas, a fim
de que inibam as paixões violentas. Pois as paixões violentas são con- A razão, portanto, não nos pode motivar. E as paixões, que nos
trárias aos nossos interesses. motivam, não são nem razoáveis nem não-razoáveis. "Uma paixão é
uma existência original ou, se desejarmos, uma modificação da exis-
Portanto, fica claro que podemos raciocinar sobre as paixões e, de tência, e não contém nenhuma qualidade representativa que a torne
fato, o fazemos. Mas nenhum raciocínio, inclusive esse, jamais nos uma cópia de qualquer outra existência ou modificação" (Tratado II,3,
leva à ação. A razão é capaz, quando exercitada, de pronunciar-se 3). As paixões são, portanto, incapazes de verdade ou falsidade. Elas
sobre se as idéias têm ou não impressões correspondentes - isto é, não podem ter nem carecer de justificação racional, nem ser congruentes
para nos informar quanto a questões de fato - e é ainda capaz de ou inconsistentes com as exigências da razão. Os leitores ingleses de
mostrar a relação de uma idéia com outra - isto é, de nos informar Hume do século XVIII não questionaram esta tese, presumivelmente
sobre verdades matemáticas e sobre a validade das inferências. Mas porque reconheciam, na visão humiana das paixões, a estrutura de seus
mesmo o seu exercício, nesse último sentido, tem de ser motivado por próprios modos de sentimento. Os críticos modernos de Hume, entre-
uma paixao. De um ponto de vista platdnico ou aristotélico, como tanto, atacam justamente esse ponto, argumentando que as emoções
observamos anteriormente, a racionalidade é exercida nas suas formas pressupõem ou expressam julgamentos ou crenças de um modo que é
específicas de atividade com seus próprios bens, seus próprios fins excluído pela visão de Hume (ver, por exemplo, Jerome Neu, Emotion,
internos àquela atividade. Desse ponto de vista, as paixões devem, de Thought and Therapy, Berkeley, 1977, principalmente pp. 36-45). O
fato, ser educadas e redirecionadas, de modo que o ser humano, en-
erro aqui é supor que o que Hume ou outros autores do século XVIII
quanto ser racional, possa perseguir os fins específicos dessa racionali-
queriam dizer por "paixão" seja o mesmo que os autores do século XX
dade. Mas, segundo Hume, não há e não pode haver tais fins. Os fins
entendem por "emoção".
aos quais a atividade racional de qualquer tipo é dirigida são e devem
ser postos por alguma paixão. Na visão de Hume, as paixões são pré-conceituais e pré-linguísti-
cas. É isso que lhe possibilita falar da "correspondência das paixões
Segundo Hume, a verdade, nela mesma, não é um objeto de desejo, nos homens e nos animais" (Tratado 11, 1, 12). Os julgamentos e as
independentemente da utilidade de conhecermos certas verdades par- crenças podem, naturalmente, ser contingentemente unidos e associados
ticulares ou da satisfação de nossa curiosidade em circunstâncias par- às paixões, mas, como já observei, a paixão é bastante distinta do
ticulares. Mas como explicar a busca da verdade na filosofia? A res- julgamento ou da crença e tem propriedades bastante diferentes. Em
posta de Hume é que o prazer da filosofia e da pesquisa intelectual, contrapartida, o que n6s chamamos de emoção é uma complexa regu-
geralmente, "consiste principalmente na ação da mente e no exercício laridade padronizada de sentimentos, julgamentos e expressões, natu-
do gênio e do entendimento na descoberta ou na compreensão de algu- rais e recorrentes, em ação, de modo que cada elemento é uma parte
ma verdade" (Tratado II,3, 10). Resulta que a filosofia é como a caça: necessária do todo. Portanto, a relação do julgamento ou' da crença com
em ambas as atividades, a paixão encontra sua satisfação nos prazeres a emoção não é a associação puramente contingente do julgamento e
da perseguição. E essa visão da filosofia está plenamente de acordo da paixão descrita por Hume. A transição da linguagem das paixões
com o lugar que lhe é atribuído na ordem social e cultural dominante para a da emoções, nos dois séculos que nos separam de Hume, exigiu
inglesa e anglicizante. A filosofia é uma distração agradável para aqueles uma série de transformações na conceitualização da relação dos sen-
cujos talentos e gostos são do tipo adequado, assim como a caça é uma timentos com a ação, resultado, em parte, do trabalho dos grandes
distração agradável para aqueles cujos talentos e gostos são do tipo romancistas. Foram eles que nos ajudaram a passar da sociedade de
adequado. Nessa visão, o que falta à filosofia é algo semelhante ao sentimentos humianos - compreendidos como a simples conjunção do
lugar que lhe é conferido na antiga tradição escocesa, para a qual ela julgamento e da paixão, calmos ou violentos -, encarnados pelos
é, juntamente com a teologia, a disciplina cujas pesquisas oferecem a personagens de Sterne, Fielding e Henry Mackenzie, através da inte-
326 A visão de Hume sobre a justiça e a racionalidade prática A visão de Hume sobre a justiça e a racionalidade prática 327

gração padronizada de sentimento, julgamento e ação, realizada nas Passions and Reasons', Postures of the Mind, Minneapolis, 1985). Uma
descrições dos grandes romancistas do século XIX e no tipo de pessoa paixão não pode fornecer uma premissa para um raciocínio prático.
que, de fato, habitava o mundo social que descreveram, para o mundo Como, então, as paixões se relacionam com a emissão de juízos morais
ainda mais complexo da emoção sobre a emoção que, ao transformar ou de outros juízos avaliativos ou práticos?
os elementos desses padrões em objetos intencionais, desintegrou a emoção
padronizada em momentos ou segmentos de consciência, de um modo Tais juízos expressam alguma paixão. Ao julgar esta ou aquela ação
virtuosa ou viciosa, por exemplo, estou dando expressão à minha re-
no trabalho de Joyce, de outro no de Virginia Woolf.
ação Aquilo que causou, em mim, orgulho ou amor, num caso, ódio ou
Compreender essa história implica os distanciar de Hume e de seu humildade, no outro. Essa reação expressa uma paixão que me moverá
mundo. Essa compreensão nos torna capazes de discernir uma possível ? ação,
i a não ser que alguma outra paixão poderosa a iniba ou que as
tese humiana sobre a modernidade, segundo a qual a complexidade do circunstâncias externas impeçam os movimentos físicos necessários.
sentimento pós-humiano é vista como ocultadora dos elementos da vida Meu julgamento, conseqüentemente, não é uma razão que fundamenta
mental muito mais claramente internalizáveis pelos seguidores do ca- minha ação. É a paixão e não o julgamento que me move. Portanto,
minho das idéias, dos séculos XVII ou XVIII. E ela ainda salva a visão minha ação, segundo Hume, não tem uma relação lógica ou quase-
de Hume sobre as paixões da crítica anacrônica. Mas é também impor- lógica com meu juízo avaliativo ou minha paixão. As paixões estão
tante não nos enganar quanto à visão de Hume, ainda de uma outra para as ações como causas não-racionais para efeitos e, à medida que
maneira. o raciocínio tem algum papel na gênese da ação, esse papel é bastante
Anthony Kenny afirma que "Hume nega muito explicitamente a distinto do papel de uma paixão, calma ou violenta, direta ou indireta.
intencionalidade das paixões", citando a passagem do Tratado 111, 3, 3, Que papel cabe, então, ao raciocínio?
que citei anteriormente (Action, Emotion and Will, London, 1963, 25). O primeiro papel prático da razão é responder a um tipo de questão
Se isso fosse verdade, as paixões não poderiam ter objetos intencio- motivada pelas paixões. Essas questões referem-se à existência e à
nais, como claramente os têm na concepção de Hume. Como observei, natureza das coisas que as paixões levam os seres humanos a obter ou
Hume não tinha acesso ao vocabulário da intencionalidade, mas ter, e à possibilidade das ações ou características que as paixões levam
compreende os objetos de paixões particulares, em ocasiões particu- os seres humanos a querer fazer ou ser. Em segundo lugar, a razão
lares, como sendo internos às paixões, exatamente no modo exigido prescreve os meios para a realização dos fins propostos pelas paixões
pela intencionalidade. A paixão não é, ela mesma, uma representação, e julga tais meios como mais ou menos eficazes, em termos do fim
mas contém uma representação de seu objeto, que podemos caracterizar 'particular visado e de outros fins que o agente pode ser levado a perseguir.
por frases tais como "para obter, ter, fazer ou ser tal coisa", embora o
possuidor da paixão não necessite dizê-lo. As paixões são dirigidas a Se a visão de Hume é correta, na gênese das ações nas quais O
objetos e é somente porque e à medida que são dirigidas desse modo raciocínio tem um papel, a seqüência de eventos deve ser a seguinte:
que motivam as ações humanas de uma maneira e não de outra. uma paixão particular leva alguém a obter, ter, fazer ou ser algo. Essa
pessoa raciocina: obterei, terei, farei ou serei tal coisa se, ou se e
Os comentadores que reconheceram a intencionalidade das paixões somente se, ou apenas se tal coisa ocorrer; agir da seguinte maneira
humianas, entretanto, às vezes atribuem a Hume a visão de que há fará com que tal coisa ocorra. A pessoa então age, a paixão tendo sido
julgamentos internos às paixões. Mas essa compreensão é claramente guiada por esse tipo de raciocínio, de modo a produzir uma ação que
contrária ao sentido geral de sua concepção e não há nada no seu texto corresponda à ação-descrição da conclusão do raciocínio. Na premissa
que a justifique. Uma paixão não é um tipo de razão para a ação e não inicial, a descrição do que satisfará a paixão é, obviamente, fornecida
permite ou produz nenhum tipo de razão para a ação (para um exemplo pela própria paixão, e o conjunto adequado de condicionais será. de-
do tipo de visão do qual estou discordando, ver Donald Davidson, terminado pelas crenças do agente sobre a classe relevante de regularidades
'Hume's Cognitive Theory of Pride', em Essays on Actions and Events, causais. A conclusão especifica a ação exigida para satisfazer à paixão,
Oxford, 1980, 286; para uma discussão das visões de Davidson nelas mas não gera, ela própria, a ação. É a paixão originalmente motivadora,
mesmas e não como exegese de Hume, ver Annette Baier, 'Actions, agora mais adequadamente informada pela razão sobre o que deve fazer
328 A visão de Hume sobre a justiça e a racionalidade prática A visão de Hume sobre a justiça e a racionalidade prática 329

para se satisfazer, que produz a ação. Além disso, se seguirmos a e à ação. Mas, aqui, é crucial enfatizar a diferença entre as filosofias
concepção de Hume, deve ser verdade que o que moveu a própria razão morais emotivistas modernas que, frequentemente, e com certa razão,
à ação em tal caso foi a paixão, dando assim uma função prática à declaram-se herdeiras de Hume, e a posição do próprio Hume. Pois é
razão. Portanto, a razão age apenas sob o comando da paixão e as fundamental para a concepção humiana da prática e dos papéis respectivos
conclusóes às quais leva, movida dessa maneira, só têm força à medida da paixão e, nela, do raciocínio - e isso torna a concepção de Hume
que a paixáo lhes dá essa força. Não há nenhum exagero retórico com muito diferente da de Stevenson ou de Ayer - que o vocabulário da
relaçáo à sua própria visáo, quando Hume afirma: "A razáo é e deve avaliação, da aprovação e da desaprovação seja um vocabulário comum,
ser apenas uma escrava das paixóes e não pode nunca pretender algo através do qual a concordância quanto ao conteúdo dos julgamentos
além de servi-las e a elas obedecer" (Tratado 11, 3, 3). avaliativos expresse a convergência, as reciprocidades, a harmonização
das paixões, sem as quais não haveria nem moralidade nem ordem
Tal raciocínio tem a mesma forma lógica de qualquer outro ra- social. Ser movido por um desejo ou por qualquer outra paixão discrepante
ciocínio - e eu, obviamente, estou construindo o padrão geral de ou perturbadora dessa harmonia significa justificar a atribuição a mim
raciocínio posto a serviço da prática, a partir das passagens do Tratado mesmo, por mim ou por outros, de algum tipo de vício. E, à medida
anteriormente citadas. Segundo Hume, o raciocínio prático distingue- que sou movido por uma paixáo desse tipo, estarei tornando minhas
se do teórico, não por seu conteúdo ou por sua forma, mas apenas pelo paixões passíveis de frustração pelas ações dos outros.
propósito a que serve. Assim, um raciocínio prático humiano será
sempre um desempenho numa ocasiáo particular - e nisso, interessan- Portanto, a pessoa que aspira satisfazer suas paixões e desejos terá
temente, Hume está de acordo com Aristóteles, pelo menos por uma de incluir no seu raciocínio sobre fins e meios o raciocínio sobre suas
vez. Mas, além disso, Hume concorda com Aristóteles num outro sentido. próprias paixões e as regularidades que as ligam umas às outras e às
No raciocínio humiano, assim como no aristotélico, não há lugar para açóes, e, da mesma maneira, o raciocínio sobre as paixões dos outros
uma premissa do tipo "eu quero tal coisa". Por que não? e as regularidades que ligam suas paixões e ações às nossas próprias.
Esse raciocínio informa-nos que, como vimos anteriormente, seremos
Naturalmente, por razóes muito diferentes das apresentadas por mais frequentemente frustrados se não desenvolvermos as paixões calmas
Aristóteles. Segundo Aristóteles, o fato de eu ter prazer ou dor com às custas das violentas. E assim como ao fortalecermos as paixões
algo nunca será, nele mesmo, uma razáo para a ação, muito menos uma calmas tornamo-nos mais sociáveis, também a prática da sociabilidade,
boa razão, mesmo quando eu possa, de fato, ser movido à ação pela por sua vez, fortalece as paixões calmas. Ao compreendermos isso,
perspectiva de prazer ou dor. Só obtenho uma razáo para a ação à medida entendemos como, na visão de Hume sobre a natureza humana, a ra-
que considero que obter algum prazer ou evitar alguma dor me pro- zoabilidade, o atributo da pessoa cuja razão serve às suas paixões calmas,
porcionará algum bem. E aí minha razáo terá a seguinte forma: "Re- a sociabilidade e a amabilidade vão juntas. As experiências sociais e
alizar tal coisa é bom para tais pessoas". Segundo Hume, embora seja psicológicas nos ensinam que, como criaturas de nossas paixões, temos
realmente verdade que a perspectiva de prazer ou dor me mova à ação, um interesse na reciprocidade e na harmonia social e que o desen-
o que me move é a paixão relevante - em linguagem moderna, o volvimento da amabilidade e da solidariedade para com os outros membros
desejo relevante - e não sua expressão numa asserção do tipo "eu de nossa sociedade serve a esse interesse. Isso vale para todas as so-
quero tal coisa". Posso, de fato, expressar minha paixão através desse ciedades em todos os tempos e lugares. Portanto, na visão de Hume,
tipo de sentença, mas a afirmação em si e por si mesma, como observei meu respeito pela virtude romana antiga expressa a mesma aprovação
anteriormente, não tem nenhum papel na geração da açáo. Portanto, que também expresso com relação à virtude inglesa moderna; as qualidades
devemos compreender tais asserçóes como portadoras de uma função que aprovo em sociedades passadas e estrangeiras são aquelas que, no
expressiva e não assertiva. Elas sáo, em linguagem moderna, asserçóes meu próprio mundo, servem ao meu interesse.
emotivas. Entretanto, quando examinamos o que aprovamos, surge um problema
Justa e conseqüentemente, por constituírem sinais para outras pessoas não com relação às nossas reações naturais e de primeira ordem às
de paixóes que geralmente produzem certos tipos de ação, essas asserçóes ações e atitudes uns dos outros, mas com relação à nossa aprovação
podem provocar a reação de outras pessoas, movendo-as ao julgamento das instituições artificialmente projetadas e construídas que constituem
330 A visáo de Hume sobre a justiça e a racionalidade prática A visáo de Hume sobre a justiça e a racionalidade prática 331

e executam as regras da justiça, e daquelas que tratam de nossa leal- sobre as regras de propriedade e sua execução e, como já sugeri, ele
dade ao governo. Pois, ii primeira vista, nem o interesse nem a soli- concebia a propriedade de um modo extremamente particular. Pois o
dariedade parecem ser capazes de explicar por que cada um de n6s que se considera é que as regras da justiça devem impor um direito de
deveria aprovar as regras da justiça ou da administração dessas regras propriedade que não seja modificado pelas necessidades da carência
pelo governo. Não pode ser o interesse privado ou a auto-estima que humana. As regras da justiça devem ser impostas em toda instância
nos levam a tratar a justiça como uma virtude: "Pois digamos que a particular, não apenas em face das violações do interesse público e
preocupação com nosso interesse ou com nossa reputação privada seja privado, mas também diante da figura tradicional da pessoa que s6
o motivo legítimo de todas ações honestas; resultaria que, sempre que pode manter sua família, isto é, aqueles por quem tem responsabilidade
essa preocupação deixar de existir, não pode haver honestidade. Mas é imediata, através daquilo que, de outra forma, seria considerado um ato
certo que a auto-estima, quando age com liberdade, em vez de nos de roubo. A tradição de pensamento moral compartilhada por Sto. Tomás
levar a ações honestas, é a fonte de toda injustiça e violência; é tam- e pelos pensadores caracteristicamente escoceses não via nesse ato uma
bém certo que um homem não pode corrigir esses vícios sem corrigir violação da justiça, mas Hume, ao formular a pergunta retórica: "E se
ou restringir os movimentos naturais desse apetite" (Tratado 111, 3, 3). eu estivesse em necessidade e tivesse motivos urgentes para conseguir
Portanto, o tipo de relação entre as paixões e o respeito por uma regra alguma coisa para a minha família?", vê essa pessoa como alguém que
ou princípio exigido pela concepção de Hume, não pode ser estabelecido pode buscar a generosidade de "um homem rico", mas não como alguém
por nenhuma concepção da auto-estima. que constitui um exemplo à luz do qual devesse modificar sua concepção
da justiça. Portanto, Hume, como mostrei anteriormente, antecipa
O respeito pelo interesse público tampouco fornece o tipo necessário
Blackstone e não segue Stair. Mas esse não era o único modo no qual
de conexão. Apenas depois de termos estabelecido o respeito pela justiça,
definia sua atitude com relação à propriedade.
e à luz desse respeito, podemos fazer uma conexão entre a justiça e o
interesse público. Além disso, ocasionalmente, uma violação das re- Para Hume, a origem e a justificação fundamental da imposição de
gras da justiça pode não prejudicar o interesse público; no entanto, tais regras de propriedade reside nos efeitos, sobre a vida social, da
condenamos tais violações como injustas assim como condenamos ausência de tais regras e dos meios para sua execução. Pois são os bens
quaisquer outras. E, em terceiro lugar, a maioria de nós só raramente de propriedade, "o usufruto das posses que adquirimos através de nossa
age movida pelo respeito, pelo interesse público, enquanto a preocupação indústria e boas perspectivas" que, por sua própria existência, criam a
com a injustiça faz parte do tecido de nossa experiência cotidiana. instabilidade social, expondo-nos "à violência dos outros" que buscam
esses bens para si próprios. Pois, quanto a esses bens, "não há uma
A solidariedade que ocasionalmente sinto com relação a outros quantidade suficiente deles para satisfazer os desejos e necessidades de
indivíduos não constituirá um motivo para o respeito pelas regras da todos" (Tratado 111, 2, 2). Aqui Hume refere-se claramente não apenas
justiça, independentemente de quem possam proteger. "De modo geral, às situações humanas nas quais a pura escassez gera a competição
pode-se afirmar que não há tal paixão nas mentes humanas como o pelos bens necessários à sobrevivência mínima. Pois considera essa
amor pela humanidade, meramente como tal, independente de qualida- base para a justificação das regras de propriedade e essa explicação
des pessoais, de serviços ou da sua relação conosco" (Tratado 111, 2, para elas como válidas para todos os tempos e lugares, prósperos ou
1 ) . Entretanto, nos lembra Hume, sou obrigado a obedecer às regras da não, a partir de quando as regras foram pela primeira vez artificialmente
justiça mesmo quando é meu inimigo, ou uma pessoa má ou inútil, concebidas. E é sob essa luz que devemos considerar sua tese de que
quem será beneficiado. as regras de propriedade funcionam para efetivar a estabilidade social.
Ao formular seu problema dessa maneira, Hume conseguiu distan- Pois é possível que a instabilidade e a desordem sociais pareçam surgir,
ciar-se de todas as concepções da justiça que tinham estabelecido um em certas circunstâncias, precisamente a partir da imposição das regras
vínculo muito direto entre a adesão humana à justiça e o interesse de propriedade.
individual. Mas pelo modo como formulou seu problema, e pelo modo Uma tese fundamental da tradição da teoria política derivada de
como forneceu elementos para sua solução, fez muito mais do que isso. Platáo e Aristóteles era que desigualdades excessivamente disparatadas
Segundo Hume, o problema da justiça era fundamentalmente um problema quanto à propriedade geram, caracteristicamente, conflito social, que a
332 A visão de Hume sobre a justiça e a racionalidade prática A visão de Hume sobre a justiça e a racionalidade prática 333

injustiça na forma da cobiça, produz, de modo caracterisitco, tais de- dade nas transaçóes e trocas de reciprocidade social; assim como todos
sigualdades, e que a imposição de regras de propriedade que protejam os outros, entretanto, somos ocasionalmente movidos pelas imediati-
tais desigualdades e tal injustiça pode causar o rompimento da ordem cidades da particularidade e do interesse próprio a romper essa paz,
ou mesmo a revolu~ão.Hume, obviamente, era perfeitamente consci- ordem e estabilidade. Isto é, sofremos de paixões contrárias. Entretanto,
ente dessa tradição e dos exemplos, na antiga sociedade grega e romana, a razão nos garante que é dando primazia ao primeiro conjunto de
aos quais seus defensores recorriam. Sua visão desses exemplos foi paixões, controlando e, se necessário, frustrando o segundo, que nossa
exposta no ensaio Of Commerce, publicado em 1752. Hume reconhecia satisfação mais plena e duradoura será garantida, assim como a de
que "seu desejo de comércio e luxo" e "a grande igualdade das fortunas todos os outros. Assim Hume conclui que, "embora atos singulares de
entre os habitantes das repúblicas antigas" contribuíram para fortalecê- justiça possam ser contrários ao interesse público ou privado, é certo
las; e também que, embora, segundo seus próprios padrões, os habitantes que o plano ou o esquema como um todo conduz diretamente ou é
dessas repúblicas não tivessem a felicidade que supunham ser o resultado absolutamente necessário, tanto à manutenção da sociedade como ao
do crescimento econômico, o que é visto como oneroso pode ser avaliado bem-estar de todos os indivíduos" (Tratado 111, 2, 2).
de maneira diferente por "um povo dado às armas, que luta pela honra
e pela vingança mais do que paga por elas, e que está familiarizado Quando, conseqüentemente, alguém condena uma ação como in-
com o ganho e com a indústria assim como com o prazer". Mas quando, justa, ele está expressando o que nele é, de modo fundamental, o re-
à luz dessas considerações, Hume pôs a questão de se um governante sultado de seu raciqcínio. O respeito pela justiça não é um dos "sen-
do século XVIII não "voltaria às máximas da antiga política", ele timentos naturais da humanidade" (Tratado 111, 2, 5), e "as impressóes
respondeu "que me parece quase impossível; e isto porque a política que dão origem a este sentido de justiça não são naturais à mente
antiga era violenta e contrária ao curso natural e comum das coisas". humana, mas resultam do artifício e da convenção humanos" (Tratado
III,2,2). Como, então, surgem tais impressões? A conclusão factual de
O curso natural e comum das coisas é aquele no qual as paixões nosso raciocínio de que a justiça serve a um interesse cujo serviço nos
alcançam satisfação mais plena e duradoura. Raciocinar sobre as pai- proporcionará a satisfação mais plena e duradoura de nossa paixão só
xões - raciocínio que deve, obviamente, ser motivado por alguma pode nos mover, segundo a psicologia de Hume, se e à medida que for
paixão - torna-me capaz de identificar os tipos de situação nos quais, acompanhada por um sentimento da retidão da justiça e do erro da
ao satisfazer imediatamente uma paixão eu possa, na verdade, estar injustiça. Esse sentimento surge e é reforçado, em nós, pelo modo
impedindo a mim mesmo de alcançar a satisfação mais plena e dura- como nosso desprazer perante atos de injustiça, nos quais somos a
doura das paixões de que sou, de fato, capaz. Pôr as conclusões de tal parte lesada, estende-se, através da solidariedade, a um "desconforto"
raciocínio a serviço das paixões calmas me tornará capaz de calcular perante atos de injustiça, nos quais outros, mesmo distantes e não
onde reside o meu interesse, a longo prazo, assim como o daqueles relacionados conosco, são prejudicados. Se voltarmos aos argumentos
com quem interajo. Segundo Hume, é justamente esse raciocínio que do livro I do Tratado, compreenderemos que é a imaginação solidária
nos informa das vantagens das políticas de crescimento econômico que opera aí, associando o veredicto da razão com uma impressão que
sobre "as máximas da antiga política", quer tenham sido propostas no move à ação, e se expressa nos julgamentos sobre a virtude e o vício.
mundo antigo, quer pelos admiradores do mundo antigo nos séculos Assim, Hume explica tanto o que chama de "a obrigação natural para
XVII e XVIII, tais como Fletcher de Saltoun; e é justamente esse com a justiça, a saber, o interesse" como "a obrigação moral" (Tratado
raciocínio que Hume propôs para explicar e justificar as regras da 111, 2, 2).
justiça, concebidas tal como as concebia, e as obrigações impostas por
elas, compreendidas tal como as compreendia. Talvez tenha sido o reconhecimento de Hume dessas duas espécies
de obrigação que gerou a controvérsia, entre os seus leitores modernos,
As paixões subjacentes à concepção das instituições, artificialmente sobre a interpretação dos comentários com os quais conclui a primeira
construídas, da justiça e da propriedade, pensadas por Hume como seção do livro I11 do Tratado: "Em todo sistema de moralidade que já
intimamente imbricadas, são de dois tipos. Assim como todos os ou- encontrei, sempre observei que, durante algum tempo, o autor raciocina
tros, queremos, por um lado, ser capazes de perseguir nossos fins, de maneira usual e estabelece a existência de um Deus ou faz obser-
quaisquer que sejam, num esquema que nos dê paz, ordem e estabili- vações referentes aos assuntos humanos; subitamente me surpreendo
334 A visão de Hume sobre a justiça e a racionalidade prática A visão de Hume sobre a justiça e a racionalidade prática 335

ao descobrir que, em vez das cópulas usuais entre as proposições - t? the Moral Sense, impressa juntamente com o Essay, Londres, 1728,
e não é -, s6 encontro proposições ligadas com deve ou não deve. Essa especialmente p. 246, onde Hutcheson refere-se a "deve" como "uma
mudança é imperceptível, mas é, entretanto, da maior importância. Pois, outra palavra infeliz em moral"). Entretanto, isso não nos deve distrair
uma vez que este deve ou não deve expressa alguma relação ou afir- da tarefa de reconhecer o lugar fundamental que o raciocínio factual
mação nova, é necessário que seja observado e explicado e, ao mesmo sobre as paixões e o modo de satisfazê-las plena e duradouramente tem
tempo, que uma razão seja dada para algo que parece totalmente in- na construção e manutenção, tanto das próprias virtudes artificiais como
concebível, isto é, como essa nova relação pode ser uma dedução de dos artifícios secundários através dos quais esses artifícios primários
outras inteiramente diferentes dela" (Tratado 111, 1, 1). Hume acres- são reforçados.
centa que a atenção a esse ponto "subverteria todos os sistemas vulgares
de moralidade e nos permitiria ver que a distinção entre vício e virtude Esse artifício secundário é o govemo. O que toma o govemo necessário
não é se funda meramente nas relações entre os objetos, nem é percebida 6 que a virtude da justiça e a virtude de manter promessas, intimamente
pela razão". relacionada a ela - a instituição da promessa 6 também, obviamente,
um artifício - não são, por si s6, suficientes para garantir a obediência
A controvérsia sobre a interpretação dessa passagem centrou-se em adequada aquilo que Hume chama de "as três leis fundamentais da
duas questões. A primeira trata da substância da tese de Hume. Estava natureza" (Tratado 111, 2, 8): a que prescreve a estabilidade na posse
Hume negando que qualquer conclusão que exige um "deve" para a da propriedade, a que prescreve sua transferência de uma pessoa a
sua afirmação possa ser deduzida de premissas cuja cópula seja "é"? outra pelo consentimento, e, a que prescreve a manutenção de promessas.
Ou estava apenas afirmando que devemos tomar um cuidado extremo Tal obediência é ameaçada porque os seres humanos "são sempre muito
para não situar tais inferências em pontos da argumentação moral nos inclinados a preferir o interesse presente aos distantes e remotos; nem
quais não têm um lugar justificável? Os que argumentaram a favor da 6 fácil para eles resistir à tentação de alguma vantagem que possam
primeira posição reconheceram corretamente que as conclusões referentes obter imediatamente...". A ameaça que isso representa s6 é considerável,
ao que Hume chama "obrigação moral" não podiam ser validamente entretanto, quando as posses de alguém foram multiplicadas. A medida
deduzidas ou inferidas de premissas inteiramente não-morais. Os que que as "posses e os prazeres da vida são pouco^'^, as leis da natureza
argumentavam a favor da segunda reconheceram, também corretamente, que os seres humanos inventaram geralmente serão observadas - e
que a conclusão de Hume sobre o que chama "a obrigação natural para Hume sempre pressupõe que o aumento das posses implica o aumento
com a justiça" não s6 pode ser inferida como, de fato, foi, por Hume, dos prazeres, como de fato deve ocorrer com aqueles cuja cultura os
a partir de premissas factuais, incluindo premissas afirmando fatos sobre ensina a buscar o prazer, acima de tudo, nas posses. Mas quando se
as paixões humanas (para uma seleção de artigos sobre ambas as po- abrem as possibilidades para o exercício da cobiça, a ameaça à observância
sições, ver The Zs-Ought Question, ed. W. D. Hudson, Londres, 1964). das leis fundamentais da natureza torna-se tal que a invenção do go-
Uma segunda questão tratava do alvo das críticas mordazes de Hume. verno é exigida para garanti-la. Governos de qualquer tipo justificam-
Estava ele atacando os filósofos racionalistas, como claramente faz na se a si mesmos, à medida que protegem a vida e a propriedade e fazem
mesma seção do Tratado? Ou estava também atacando, quando se refere com que os contratos sejam cumpridos. Um governo bem-articulado é
aos "sistemas vulgares de moralidade", os sistemas de preceitos cris- aquele no qual esses propósitos são respeitados, independentemente de
tãos pelos quais desenvolvera tanta aversão? Já sugeri que a Última sua forma constitucional. Mas "nada é mais essencial ao interesse público
hipótese é a verdadeira ("Hume on 'is' and 'ought"', Philosophical Review do que a preservação da liberdade pública" (Tratado 111, 2, 10), e é
48, 1959, reimpresso em Hudson, op. cit.), e me inclino mesmo a num "governo misto", tal como o do Reino Unido, onde o poder é
acreditar que Hume tinha em mente The Whole Duty of Man. Mas os compartilhado pelo rei, pelos lords e pelos comuns, que a liberdade
argumentos do Professor D. D. Raphael ("Hume's Critique of Ethical pública é preservada, pois cada parte do todo constitucional tem um
Rationalism", Hume and the Enlightenment, ed. W. B. Todd, Edim- interesse em proteger certos direitos e privilégios contra o abuso por
burgo, 1974, especialmente pp. 26-27), de que a intenção principal de parte dos outros.
Hume era, aqui, expressar sua concordância com o ataque de Hutcheson Hume escreveu num artigo publicado em 1741: "Podemos atualmente
a Samuel Clarke, são decisivos (comparar a seção I1 do Zllustration on afirmar, a respeito das monarquias civilizadas, aquilo que antigamente
336 A visão de Hume sobre a justiça e a racionalidade prática A visão de Hume sobre a justiça e a racionalidade prática 337

se dizia apenas a favor das repúblicas: que são um governo de leis e Hume, sobre o governo e os assuntos econômicos deixa claro como,
não de homens. Elas são capazes de ordem, método e constância a um embora a razão realmente sempre sirva aos fins das paixões, esse próprio
ponto surpreendente. A propriedade permanece em segurança, a indústria fato oferece as premissas para um tipo de raciocínio sem cuja assistência
é incentivada, as artes florescem e o príncipe está seguro entre seus as paixões seriam continuamente baldadas e frustradas na sua busca de
súditos, como um pai entre seus filhos" ("Of Liberty and Despotism", satisfação.
reintitulado "Of Civil Liberty" a partir de sua republicação em 1758).
Além disso, embora não seja incondicionalmente verdade que "o co- Esse raciocínio, na sua forma mais elaborada e desenvolvida, é o
mércio só possa florescer sob um governo livre", ele tende mais a raciocínio do segundo e terceiro livros do Tratado. É por isso que Hume
decair em condições de falta de liberdade, "não porque nessas condições pôde argumentar a favor de seu trabalho que lê-lo e assimilar suas
ele seja menos seguro, mas porque é menos honroso". Mas aqueles que conclusões significaria não apenas expandir a capacidade de compre-
evitam o comércio abstêm-se também das riquezas e, dessa forma, ensão de alguém, mas também evoluir prática e moralmente. Portanto,
diminuem o âmbito de satisfações das paixões. Portanto, Hume argu- conclui sua obra afirmando que a relação do filósofo com a pessoa
menta a favor daquilo que favorece o crescimento econômico dentro do prática assemelha-se à do anatomista com o pintor. O anatomista, através
esquema de uma Grã-Bretanha anglicizada, remetendo-nos a algumas de suas dissecações e explicações exatas das partes do corpo, permite
das teses centrais de sua psicologia prática: "Em geral, podemos obser- ao pintor desenhar com mais elegância e correção. Assim, também "as
var que as mentes dos homens são espelhos umas para as outras, não especulações mais abstratas sobre a natureza humana, mesmo que frias
apenas porque refletem as emoções, mas também porque esses raios de e não divertidas, tornam-se subservientes à moralidade prática e po-
paixões, sentimentos e opiniões podem, frequentemente, ser reverberados dem torná-la mais correta em seus preceitos e mais persuasiva em suas
e decair insensatamente. Assim, o prazer que um homem rico obtém de exortações" (Tratado 111, 3, 6).
suas posses provoca, no observador, prazer e estima, sentimentos esses Entretanto, embora o Tratado desenvolva e elabore o raciocínio sobre
que, sendo percebidos e compartilhados, aumentam o prazer do possuidor a relação meio-fim, que informa as virtudes artificiais tais como a
e, sendo novamente refletidos, tornam-se um novo fundamento para o justiça e instituições como o governo, 6 importante para a argumen-
prazer e a estima do observador. Há, certamente, uma satisfação ori- tação de Hume como um todo que, fazendo isso, o que ele desenvolve
ginal nas riquezas derivadas desse poder, que elas conferem, de usu- e elabora, e, no fundo, o que duplica é a estrutura de raciocínio que
fruir de todos os prazeres da vida ... Mas o possuidor também tem uma informa as ações e adesões não-filosóficas das pessoas práticas comuns.
satisfação secundária com as riquezas resultantes do amor e da estima Segundo Hume, que tais pessoas não possam, normalmente, articular a
que obtém através delas, e essa satisfação não é nada mais do que um
cadeia relevante de raciocínios por si mesmas não é uma objeção para
segundo reflexo do prazer original que surgiu dele, do possuidor. Essa
imputar isso a elas. "Poucas pessoas conseguem desenvolver essa cadeia
satisfação secundária ou vaidade torna-se um dos motivos principais
de raciocínios: 'O governo é uma mera invenção humana no interesse
pelos quais as riquezas são recomendáveis e pelos quais nós as desejamos
da sociedade. Onde a tirania do governante remove esse interesse, ela
para nós mesmos ou as estimamos nos outros" (Tratado 11, 2, 5).
também remove a obrigação natural de obediência. A obrigação moral
A pleonexia, finalmente, criou para si um mundo social onde se funda-se na obrigação natural e, conseqüentemente, deve cessar onde
sentisse à vontade, conseguindo a estima que a timé antes conferia. Os a segunda termina; principalmente quando o assunto é tal que nos
valores de Hume e da sociedade inglesa e anglicizante, em nome da permite prever muitas ocasiões nas quais a obrigação natural pode cessar
qual fala, representam uma inversão surpreendente daquilo que foi e nos faz formar um tipo de regra geral para o controle de nossa
inculcado nas universidades escocesas, através da leitura da Ética a conduta em tais ocorrências'. Mas, embora esse curso de raciocínio
Nicômaco e da Política, no final do século XVII. E essa inversão não seja sutil demais para as pessoas comuns, é certo que todos os homens
poderia ter ocorrido sem as mudanças sociais e econômicas da "grande têm dele uma noção implícita, que são sensatos, que devem obediência
transformação" de Karl Polanyi. Mas ela não poderia ter sido apresentada ao governo unicamente em função do interesse público e, ao mesmo
de um modo intelectualmente convincente sem a elaboração, por Hume, tempo, que a natureza humana é de tal forma sujeita a fraquezas e
de um modo radicalmente novo de conceber a relação da razão com as paixões que pode facilmente perverter essa instituição e transformar
paixões, assim como a natureza das paixões. A discussão, feita por seus governantes em tiranos e inimigos públicos" (Tratado 111, 2, 10).
338 A visdo de Hume sobre a justiça e a racionalidade prática A visdo de Hume sobre a justiça e a racionalidade prática 339

Assim, Hume atribui à pessoa comum, incapaz de sutilezas, uma e práticas. Mas o problema era mais agudo para Hume do que para
compreensão a priori do raciocínio, mesmo que não seja explícita, idêntica Hutcheson, uma vez que nos trechos políticos do Tratado e nos que são
à sua, na seção anterior do Tratado, no que se refere à natureza das relevantes para as questões religiosas, o propósito confesso de Hume
obrigações para com o governo e, ainda, às condições sob as quais tais é refutar as visões errôneas propostas pelos protagonistas daqueles que
obrigações não mais prevalecem. As pessoas comuns concordam entre são ou foram pontos de vista significativamente, ou mesmo, perigosamente
si e com Hume ao raciocinar dessa maneira, mas essa concordância em influentes. Hume, assim, deve dissipar qualquer impressão de que sua
termos de raciocínio pressupõe e deriva de um acordo mais profundo, própria obra oferecia um conjunto importante de contra-exemplos para
no nível das aprovações e desaprovações fundamentais e naturais que sua alegação de que há um consenso universal moral e prático.
expressam as paixões daqueles que participam das trocas ordenadas da A primeira vista, Hume tem uma resposta simples e direta a essa
vida social. A concordância de paixão e sentimento está subjacente à
acusação. Os que aparentemente discordam do consenso universal são
concordância de raciocínio e a ela conduz e, conseqüentemente, aos aqueles que cometeram algum erro filosófico na compreensão do que
futuros acordos na identificação de interesses. Essas concordâncias são a virtude e o vício, a natureza e função do governo, ou a verdade
encontram expressão nos hábitos de julgamento informados pelas re-
em questões religiosas. Afinal de contas, logo antes da passagem há
gras gerais apontadas anteriormente, que atuam corrigindo as particu-
laridades idiossincráticas dos nossos julgamentos morais e práticos,
...
pouco citada, Hume diz que ninguém deve "admirar-se que eu agora
apele à autoridade popular e oponha os sentimentos da massa ao ra-
assim como as regras de perspectiva atuam na correção das idiossincrasias
ciocínio filosófico". E mais tarde, na obra A Dialogue, publicada
da percepção. De modo que a vontade de acordo com os outros e o juntamente com An Enquiry Concerning the Principies of Morals, em
hábito de realizá-lo, dentro do esquema social dominante, são fatores
1752, Hume estendeu sua tese, dos filósofos para culturas inteiras:
motivadores. Tal vontade e tal hábito exigem a adoção, por cada um,
"Vocês vêem, então... que os princípios sobre os quais os homens
do mesmo ponto de vista imparcial no seu uso da linguagem das virtudes raciocinam, em moral, são sempre os mesmos, embora as conclusões
e dos vícios, de modo que, em vez de dar expressão às parcialidades sejam frequentemente diferentes. Não constitui desafio para nenhum
diferentes e variáveis de cada pessoa, ele sirva para expressar certas moralista mostrar que todos raciocinam corretamente sobre esse assunto,
atitudes constantes, socialmente aprovadas. "A experiência logo nos mais do que sobre qualquer outro. É suficiente que os princípios ori-
ensina esse método de corrigir nossos sentimentos ou de, pelo menos, ginais de censura ou culpa sejam uniformes e que as conclusões errôneas
corrigir nossa linguagem ..."(Tratado 111, 3, 1). possam ser corrigidas por raciocínios mais sólidos e por mais experiência".
A declaração de Hume sobre a extensão dessas concordâncias é Quão adequada é essa explicação, enquanto diagnóstico da fonte de
muito surpreendente; ele, de fato, vai ao ponto de se comprometer com divergência daqueles que Hume classificava como desviantes e contra
a afirmação da infalibilidade geral do julgamento moral. Na seção do os quais argumentou no Tratado?
Tratado, em que argumenta que "a obrigação da submissão ao governo
Eles eram, de fato, adeptos de uma série de pontos de vista diferentes
não deriva de nenhuma promessa dos súditos", declara que o provará
e, se investigarmos para além do Tratado, na Pesquisa, no A Dialogue
"a partir da anuência universal da humanidade ..." (Tratado 111, 2, 8). e ainda em outras obras, veremos que eram ainda mais numerosos. No
Ele prossegue afirmando: "Deve-se observar que as opiniões dos ho-
caso de alguns deles, fica claro que a fonte de sua dissidência residia
mens, nesse caso, trazem consigo uma autoridade peculiar e são, em
no que Hume considerava um erro filosófico. E isso valia para sua
grande medida, infalíveis. A distinção do bem e do mal morais funda-
rejeição da definição de justiça proposta pelos adeptos da jurisprudência
se no prazer ou na dor, o que resulta da visão de qualquer sentimento
romana e romano-holandesa (Tratado 111, 3, 6) - isto é, entre outros,
ou caráter; e, como esse prazer ou dor não pode ser desconhecido para
os protagonistas do sistema legal escocês - e valia também para seu
a pessoa que o sente, segue-se que só há vício ou virtude em qualquer
ataque aos Whigs, que desejavam fundamentar a obediência legítima ao
caráter à medida que alguém ali o põe, e que é impossível, quanto a
governo em um ato original de consentimento (Tratado 111, 2, 8 e "Of
isso, que jamais estejamos errados". Nisso, obviamente, Hume fazia
the Original Contract", publicado em 1748). E valia ainda também para
eco a Hutcheson; e, como Hutcheson, dessa forma, tinha-se proposto a
seu ataque a algumas visões jacobitas sobre o direito de sucessão ao
tarefa de explicar o que pelo menos parecem ser discordâncias morais
trono. Pois, segundo Hume, a legitimidade de um governante particular
340 A visão de Hume sobre a justiça e a racionalidade prática A visáo de Hume sobre a justiça e a racionalidade prática 341

não tem absolutamente nada a ver com as origens da forma de governo Segundo os padróes da filosofia moral de Hume, os jacobitas tinham,
que lhe dão poder. O que torna um governo legítimo é, acima de tudo, de fato, cometido um erro filosófico. Suas conseqüências práticas pe-
"a posse duradoura": "Dificilmente encontraremos alguma raça de reis rigosas, entretanto, surgiram do fato de as paixÍ3es estarem, elas mesmas,
ou tipo de comunidade que não seja principalmente fundada na usurpação ligadas ao seu princípio errôneo, de modo que os jacobitas foram le-
e na revolta ..." (Tratado 111, 2, 10), mas o tempo confere legitimidade. vados a agir contrariamente ao interesse geral das instituiçóes da
Entretanto, a posse duradoura, embora suficiente, não é necessária. propriedade e do governo. O fato de serem movidos dessa forma, à
"Quando não há nenhuma forma de governo estabelecida através da primeira vista, cria um outro problema para a concepçáo de Hume,
posse duradoura, a posse atual é suficiente para justificá-la...". A essas mais especificamente, para sua concepção da relaçáo da razáo com as
fontes de legitimidade, Hume acrescentava o direito de conquista, o de paixóes. Pois agora fica claro que Hume tem de concordar que as
sucessão, geralmente pelo primogênito masculino, e o direito conferido paixbes daquelas pessoas intelectualmente convencidas da verdade de
por leis positivas. Mas foi à posse atual e recente que apelou para uma teoria filosófica particular, embora no caso jacobita tenha sido
justificar a revolução de 1688: "Embora o acesso do Príncipe de Orange uma teoria errônea, podem ser redirecionadas e reordenadas de acordo
ao trono possa inicialmente gerar muita disputa, e seu título ser con- com essa teoria. Devemos então concluir que a razão tomou-se o se-
testado, ele não deve nos parecer duvidoso agora, mas deve ter adquirido nhor e as paixóes, escravas?
autoridade suficiente daqueles três príncipes que o sucederam no mesmo
título". Além disso, a seguinte questão pode ser levantada: o que acontece
se a falsidade da teoria filosófica em questão não pode ser tão facil-
Hume, portanto, atribuía a legitimidade do acesso do rei Guilherme mente demonstrada a partir das premissas do próprio Hume, como ocorreu
I11 ao poder, em 1688, mais solidamente ao direito conferido pela posse com a teoria política jacobita? O próprio Hume levantou essa questão
do poder do que ao direito dos governados de se rebelarem contra a nas páginas finais do "A Dialogue", onde discute os exemplos de Pascal
tirania intolerável, o tipo de tirania que representa o fracasso do governo e de Diógenes, o Cínico, que viveram segundo regras que Hume
em respeitar a liberdade pública, que é uma salvaguarda contra o considerava incompatíveis com o julgamento universal da humanidade,
funcionamento do governo, contrariamente aos interesses da "vanta- no que se refere à virtude e ao vício. Pascal constituía um exemplo
gem e segurança mútuas", que d6 ao governo sua única justificação. daquilo que Hume, numa atitude de desprezo semelhante à do clero
Pois Hume, embora tenha-se referido à revolução de 1688 como tendo presbiteriano, viria a condenar, na Pesquisa (seção IX, parte I), como
"tido uma feliz influência sobre nossa constituição", declarou também "as virtudes monacais": "O celibato, o jejum, o arrependimento, a
que não era seu propósito mostrar que o direito de resistência à tirania mortificação, a autonegação, a humildade, o silêncio, a solidão...". Essas
foi, de fato, justamente exercido em 1688. Independentemente do fato supostas virtudes - segundo Hume, na verdade, vícios - eram
de essa Última justificação ser invocada, o que considero que desejava justificadas por Pascal através da teologia agostiniana. É verdade que
enfatizar, dessa forma, era que o direito da posse presente e recente aquilo que Hume chama de "as mais ridículas superstições" de Pascal
era, por si só, suficiente para mostrar que as alegações jacobitas eram era considerado pelo próprio Pascal como sendo racionalmente
errôneas. indemonstrável e apenas sustentado pela fé. Entretanto. no livro I do
Qual era a origem do erro jacobita? Na sua essência era o mesmo Tratado, Hume, afinal de contas, escreveu que "todo raciocínio provável
dos protagonistas do direito romano. Assim como os Últimos supunham, não é nada mais do que uma espécie de sensação. Náo apenas na poesia
segundo Hume, erradamente, que há princípios de justiça sustentáveis e na música devemos seguir nosso gosto e nossos sentimentos, mas
independente e anteriormente a qualquer distribuição de propriedade também na filosofia. Quando estou convencido de algum princípio, é
estabelecida, também os jacobitas supunham que há princípios de di- apenas uma idéia que me impressiona mais fortemente" (I, 2, 8). E
reito dinástico sustentáveis independente e anteriormente a qualquer ainda argumentou que-mais de uma crença sustentada universalmente
posse estabelecida do poder de governar. Esses supostos princípios não é indemonstrável. Portanto, a dissidência religiosa de Pascal em relaçáo
podem resultar do interesse que todos têm no estado atual da propri- àquilo que Hume considera seu próprio bom senso mundano, e em
edade e do poder, e princípios que não podem resultar desse estado relaçáo ao consenso social, do qual Hume tornou-se o porta-voz, pode
atual não fornecem às paixóes humanas motivos para a ação. parecer um tipo de dissidência ao qual Hume não pôde propor uma
342 A visão de Hume sobre a justiça e a racionalidade prática A visão de Hume sobre a justiça e a racionalidade prática 343

resposta efetiva. A objeção de Hume a Pascal, parece, não passa da passando pela "adulação e pelos medos da superstição mais vulgar",
expressão de um sentimento em oposição a outro. No entanto, do ponto que geram o teísmo, à animosidade moderna para com a razoabilidade
de vista do próprio Hume, não é bem assim; pois, independentemente das formas dominantes da religião.
e além de qualquer erro filosófico que um dissidente como Pascal Essa. história da aberração, entretanto, é apenas a contrapartida do
possa ter cometido, ele ainda condenou-se pelo próprio fato de ter desenvolvimento no qual a invenção do governo promove, não só o
dissentido. próprio consenso da paixão, do sentimento e do raciocínio que fornece
Consideremos a argumentação desenvolvida por Hume no ensaio sua própria justificação como a riqueza material que permite que a
em que finalmente cumpriu a promessa feita numa nota de rodapé, no sociedade que encarna esse consenso floresça - Hume acreditava que
Tratado (111, 2, 8), para explicar "em que sentido podemos falar de um o governo surge originalmente do exercício da autoridade militar: "Os
gosto certo ou errado em moral, eloquência ou beleza...". Esse ensaio, acampamentos militares são as verdadeiras mães das cidades" (Tratado
"Do Padrão do Gosto", publicado em 1757, propôs duas teses funda- .
111, 2, 8) "Assim, pontes são construídas, portos, abertos, plataformas,
mentais: que os princípios do gosto são "universais e aproximadamente, levantadas, canais, formados, frotas, equipadas e exércitos, disciplinados;
se não completamente, os mesmos em todos os homens ..." e "que os em todo lugar, através do cuidado do governo, embora composto de
gostos de todos os indivíduos não têm condições iguais, e que alguns homens sujeitos a todos os tipos de enfermidades, surge, através de
homens, em geral, por mais difícil que seja identificá-los rigorosamente, uma das invenções mais finas e sutis imagináveis, uma composição
devem ser reconhecidos pela opinião universal como merecedores de que é, até certo ponto, isenta de todas essas enfermidades" (Tratado
preferência, acima dos outros". 111, 2, 7). Em The History of England, Hume narrou o que considerava
ser a história política justamente desse consenso, progredindo irregu-
O árbitro do gosto é o que articula aquilo com o que a maioria
larmente rumo a este resultado ameaçado, de tempos em tempos, por
concorda, a longo prazo, expressando em seu consenso a convergência
uma série de paixões religiosas aberrantes, mas, até então, sobreviven-
de sentimentos e paixões. O dissidente é quem viola o consenso, mesmo
do a essas ameaças.
que receba imediatamente alguma aprovação temporária. "A autoridade
ou o preconceito podem dar um reconhecimento temporário a um mau Nessa obra, o vocabulário de Hume da aprovação e da desaprovação
poeta ou orador; mas sua reputação nunca será durável ou geral". O pressupõe uma comunidade compartilhada de sentimento e raciocínio,
rude e o bárbaro, o fanático e o supersticioso, todos falham segundo da qual tanto o autor como seus leitores participam. As normas a serem
esse critério, e a arte de Corneille é rejeitada a partir do mesmo fundamento justificadas pela redação dessa história informam o modo dessa re-
que o leva a rejeitar a moralidade de Pascal. Esse fundamento é o dação:A história de Hume não é valorativamente neutra e não nutre a
consenso. possibilidade de sê-10. O ponto de vista valorativo dessa história é,
naturalmente, o da ordem dominante iniciada na Inglaterra depois de
Um consenso do sentimento e da paixão e um consenso do ra-
1688. Enquanto autor, Hume não mais pretende ser inglês, como fazia
ciocínio sobre a justiça e o governo, que tanto pressupõe como resulta
sob o encobrimento do anonimato do Tratado; meramente escreve sobre
do consenso do sentimento e da' paixão, é, então, estabelecido his-
a Escócia como se ela fosse um país estrangeiro. É esclarecedor con-
toricamente no tempo. E ao se escrever a história desse estabeleci-
siderar o modo no qual os julgamentos de Hume sobre a Escócia do
mento, as normas da paixão e do raciocínio são apresentadas. Essa história
século XVII, no capítulo LI11 da History, fazem eco aos seus julga-
terá de mostrar como certas formas de expressão da paixão, na crença
mentos sobre os habitantes da Grã-Bretanha pré-romana, no seu primeiro
e na ação, são fenômenos relativamente locais ou temporários diferindo,
capítulo.
assim, das formas relativamente universais e permanentes da expressão
do consenso; e tais fenômenos locais e temporários serão caracteristi- O adjetivo central no capítulo I é "bárbaro", por oposição a "civ-
camente apresentados como aberrantes em relação ao consenso e ilizado"; e quando Hume fala, no capítulo LIII, do modo de pregação
ameaçadores para sua estabilidade. É esta a tarefa que Hume se propõe do clero presbiteriano, ele o chama de "a retórica, embora bárbara, das
cumprir na The Natural History of Religion, onde conta o desenvol- conferências e discursos religiosos", sendo que, anteriormente, carac-
vimento da religiáo a partir da ignorância bárbara da religião primitiva, terizou a audiência escocesa, receptiva a essa retórica, como "inculta
344 A visdo de Hume sobre a justiça e a racionalidade prática A visão de Hume sobre a justiça e a racionalidade prática 345

e incivilizada". A vida política desordenada dos antigos bretões surgiu humano individual. Ambos reconhecem, naturalmente, que o tipo de
de "um gosto pela liberdade", e se expressou no modo como "cada raciocínio que meramente adapta de maneira eficiente os meios aos
Estado foi dividido em facções.,."; a tendência à rebelião da Esc6cia fins pode ser exercido independentemente de pertencer a essa sociedade.
do século XVII exemplificava o "fanatismo misturado com a facção" Mas raciocinar separadamente dessa sociedade significa não ter ne-
e "o interesse privado com o espírito de liberdade". Os antigos bretões nhum padrão disponível através do qual se possa corrigir as paixões.
foram submetidos pelos "terrores de sua superstição"; os escoceses do Aristóteles e Hume têm, naturalmente, concepções muito diferentes e
século XVII foram levados à rebelião porque foram inflamados por radicalmente incompatíveis sobre questões fundamentais como a relação
preconceitos religiosos". da razão com as paixões, a natureza dos padrões através dos quais as
A narrativa de Hume, seus julgamentos de aprovação e desaprovação paixões devem ser corrigidas e a estrutura do raciocínio prático. Mas
e seu raciocínio sobre a prudência ou a imprudência, a justiça ou a não devemos permitir que essa incompatibilidade oculte as semelhanças
injustiça, dos diversos personagens na sua narrativa, portanto, expressam entre suas visões ou o que essas semelhanças, pelo menos, sugerem:
a posição de uma ordem social que excluiu de si mesma, tanto quanto que a racionalidade prática, com uma estrutura determinada, é sempre
possível, a turbulência bárbara presente nas suas origens, assim como informada por, ao mesmo tempo que informa as práticas de uma forma
as perturbações que ameaçaram sua estabilidade posterior. Ao narrar, específica de ordem social, e que é enquanto membro dessa forma de
julgar e raciocinar dessa forma, Hume narra, julga e raciocina como ordem social, e não apenas enquanto indivíduo, que alguém exerce
um membro desse mesmo tipo de ordem social. E é agora possível uma determinada racionalidade prática.
compreender como, de um ponto de vista humiano, não há nenhum Se essa hipótese é correta, o fato de a cada forma determinada de
outro modo de narrar, julgar ou raciocinar (para uma discussão mais racionalidade prática corresponder uma concepção de justiça determinada
extensa e uma perspectiva diferente sobre os compromissos de Hume assume um significado adicional - e a teoria de Hume apresenta essa
a esse respeito, ver Donald W. Livington, Hume's Philosophy of Common
conexão tão claramente quanto a de Aristóteles. Se essa hipótese é
Life, Chicago, 1984).
correta, algumas diferenças e algumas discordâncias sobre a justiça e
Segundo Hume, o que faz com que o raciocínio sobre a justiça seja a racionalidade prática serão inseparáveis. Ambas expressarão um Único
sólido é, fundamentalmente, que é um raciocínio compartilhado por, e mesmo conflito entre adesões sociais rivais. Portanto, os que discordam
pelo menos, a grande maioria dos membros da comunidade à qual alguém radicalmente entre si sobre a justiça não poderão recorrer a uma concepção
pertence. O que faz com que a emissão de juízos sobre a virtude e o neutra da racionalidade, através da qual poderão decidir quem está
vício seja efetiva é que eles expressam, não apenas as reações individuais certo. Pois as mesmas discordâncias, ou discordâncias semelhantes,
de alguém, mas as reações comuns e reciprocadas pela mesma grande devem geralmente aparecer em questões sobre a natureza da racionalidade
maioria. Portanto, alguém raciocina e julga, em todos os assuntos morais prática. E o caráter político e social de tais discordâncias será trazido
e práticos, como um membro de uma comunidade particular e de um à tona.
tipo de ordem social característico de todos os povos civilizados. Se
Na Escócia do século XVIII, nunca se perdeu de vista essa conexão.
retirarmos dos seres humanos essa reciprocidade de reações compartilhadas
Era patente para os leitores, tanto a partir do Tratado como de suas
e as conseqüentes possibilidades de raciocínio comum, estaremos reti-
obras posteriores, assim como para o próprio Hume, que nas suas
rando também o tipo de ordem social no qual as paixões calmas e os
concepções da relação da razão com as paixões, e na sua visão da
hábitos de reação que as expressam limitam e superam as paixões vi-
; justiça e do governo, ele tinha assumido uma posição social e po-
olentas. Estaremos, assim, entregando a ordem social às superstições
liticamente controversa, que o alinhava a certos partidos e tendências,
dos antigos bárbaros ou aos entusiasmos dos bárbaros dos tempos h em questões escocesas e inglesas, e que o punha em conflito com
modernos. O paralelo, nesse ponto, entre Hume e Aristóteles é notável.
outros. E, em vários casos, a reação que a posição de Hume provocava
Ambos apresentam uma visão da racionalidade prática, segundo a era muito clara. Mas no caso do clero e dos leigos cultos, e daquele
qual o indivíduo que raciocina corretamente o faz enquanto membro de que viria a ser o partido Moderado no presbiterianismo escocês, havia
um tipo particular de sociedade política, e não apenas enquanto ser um alto grau de ambivalência.
346 A visão de Hume sobre a justiça e a racionalidade prática A visdo de Hume sobre a justiça e a racionalidade prática 347

Por um lado, Hume representava para eles um desafio e uma sub- muito a você. Sua companhia seria mais aceitável do que a de Sto.
versão de seus valores de direito e moralidade. Alguns comentadores Atanásio, embora sejamos todos bons cristãos. E, uma vez que não
modernos de Hume argumentaram que a acusação de ceticismo em podemos ter sua presença, você é trazido ao foro de discussão mais
moral, dirigida contra Hume, às vezes, pelos pastores das posições frequentemente do que qualquer outro, acusado e defendido com gran-
Moderada e Evangélica, deve ter-se baseado numa leitura errônea do de zelo, mas sem amargura". Desses debates surgiram dois livros im-
Tratado, no qual o ceticismo mitigado do livro I tinha sido equivocamente portantes, Dissertation on Miracles, de George Campbell, em 1762 e
atribuído também ao livro 111. E talvez tenha havido um pouco de má Inquiry into the Human Mind on the Principles of Common Sense, de
compreensão. Mas é muito mais exato dizer que a concepção de Hume Thomas Reid, em 1764. Parte da importância da obra de Reid era que
da moralidade era, de fato, profundamente incompatível com a visão ela mudava a natureza do debate de maneira decisiva.
escocesa tradicional, segundo a qual a justiça era precisamente o que Dois modos adversos de vida social e cultural foram contrapostos
Hume dizia que não poderia ser, anterior a todas as regras de propri- na Escócia do início do século XVIII: um valorizava o passado escocês
edade, e segundo a qual cabia à teologia fornecer a compreensão mais do século XVII, embora reconhecendo a necessidade de transformá-lo
adequada da moralidade. Portanto, Hume, de fato, tinha de ser excluído - de modo que a herança particularmente escocesa em religião, direito
da educação dos jovens. E quando, pela segunda vez, Hume candidatou- e educação pudesse ser renovada e preservada-; o outro não via ne-
se a uma cátedra universitária de Lógica em Glasgow, em 1752, foram nhum futuro próspero para a Escócia, a não ser como parte cada vez
mais uma vez os pastores que tiveram um papel decisivoopara impedir mais anglicizada do Reino Unido e repudiava, conseqüentemente -
a sua nomeação. tanto quanto necessário - o passado do século XVII. Ambos aceita-
No entanto, Hume foi também um dos porta-vo&s mais articulados vam a revolução de 1688-1690 e o Act of Union como eventos felizes;
e convincentes das medidas políticas e econômicas com as quais o ambos repudiavam as alternativas representadas pelos herdeiros dos
clero e os leigos moderados se identificaram. Ele era excelente no tipo covenanters, os cameronians e os seceders. A questão crucial que ti-
de arte literária que tanto valorizavam. E tinha grandes amizades entre nham enfrentado era se uma justificação filosófica para concepções
eles, algumas provenientes de sua juventude, algumas mais recentes, as particularmente escocesas da teologia, do direito, da moralidade e da
quais, à medida que Hume, decepcionado com sua recepção entre os educação poderiam substituir o aristotelismo depauperado do século
ingleses, reidentificou-se cada vez mais como um escocês, tornaram-no XVII, que fora universalmente rejeitado.
um membro altamente estimado da sociedade moderada. O resultado A obra de Hutcheson foi assumir essa tarefa de justificação, substi-
foi que Hume assumiu um papel que não tinha projetado para si mes- tuindo os recursos do aristotelismo escolástico, no qual tinha sido ini-
mo. Ele foi corretamente identificado como o antogonista por excelência, cialmente educado, pelos recursos oferecidos por Shaftesbury e pelo
o filósofo cujas visões tinham de ser derrotadas no debate filosófico caminho das idéias. O talento de Hume foi compreender que, se os
aberto. Ele tornou-se o pensador em oposição ao qual, década após princípios fundamentais e as concepções do caminho das idéias são
década, os filósofos escoceses tinham de estruturar suas pesquisas. adotados, o que emerge são conclusões profundamente incompatíveis
com as teses fundamentais da teologia e do direito escoceses e com
As primeiras reações a Hume não eram sempre de grande mérito. A
qualquer concepção da moralidade que os expresse.
publicação anônima, em 1751, por Henry Home - que receberia o
título de Lord Kames, como juiz da Court of Sessions um ano depois Hume declarou "que há na Inglaterra, em particular, muitos se-
- de Essays on the Principles of Morality and Natural Religion foi a nhores honestos que, estando sempre absorvidos em seus afazeres
primeira obra mais extensa. Foi seguida, em 1753, pela obra de James domésticos ou divertindo-se com as distrações comuns, levaram seus
Balfour of Pilrig, também anônima, The Delineation of the Nature and pensamentos muito pouco além dos objetos que se lhes apresentam,
Obligation of Morality, que era uma resposta à Pesquisa. Balfour, logo todos os dias, aos sentidos. E, realmente, não pretendo fazer deles
depois, sucedeu a Cleghorn como professor de filosofia moral em filósofos. ...Eles fazem bem em permanecer na sua situação atual; e,
Edimburgo. Em Aberdeen, a fundação da Sociedade Filosófica, em em vez de transformá-los em filósofos, gostaria de poder comunicar
1758, propiciou um fórum para a discussão da filosofia de Hume. Thomas aos nossos fundadores de sistemas uma parte dessa mistura grosseira e
...
Reid escreveu a Hume: "Uma pequena sociedade filosófica aqui dev,e vulgar ..." (Tratado I, 4 , 7).
348 A visão de Hume sobre a justiça e a racionalidade prática A visão de Hume sobre a justiça e a racionalidade prática 349

Hume tornou-se, portanto, o campeão filosófico de uma cultura tanto para Hume como para Aristóteles. Naturalmente, ele não foi o
essencialmente não-filosófica. Não há, conseqiientemente, nenhum primeiro a propor esse tipo de alternativa, e seus livros apareceram
paradoxo no fato de a sua filosofia ter sido muito debatida entre aque- numa época em que várias outras concepções filosóficas da racionalidade
les cujas crenças ele aspirava refutar e subverter, mas, durante muito prática, enquanto propriedade dos indivíduos, independente e anterior
tempo, pouco discutida - a não ser pelo palavrório intelectual de ter- à sua inserção nas relações sociais, estavam sendo elaboradas, princi-
ceira categoria de teólogos anglicanos como Warburton -entre aqueles palmente por Bentham, na Inglaterra, e por Kant, na Prússia. A
cujas crenças e modo de vida defendia e cuja história escreveu. multiplicidade de tais concepções, por si só, já é importante. Pois ao
passarmos dos debates escoceses dos séculos XVII e XVIII às discussões
Parte da originalidade de Reid residiu no desafio que fez a Hume sobre a racionalidade prática e a justiça da modernidade do século XX,
ao apelar - contra a sua filosofia - aos princípios justamente das não apenas nos distanciamos de teorias segundo as quais o exercício da
pessoas comuns, não dadas à filosofia, tão altamente valorizadas pelo racionalidade prática pressupõe algum tipo de ambiente social, como
próprio Hume. Além disso, apelou àquilo, nessas pessoas comuns, que também entramos num mundo no qual o exercício da racionalidade
é independente das particularidades de sua história, de suas instituições prática, se ocorre, deve ser expresso em contextos sociais de conflito
ou da ordenação de suas paixões, àquilo que alegava ser constante e
invariável na natureza humana e anterior a toda teorização. Assim,
Reid nunca apelou à tradição do direito romano ou às Escrituras, do
modo como Hutcheson fizera, e seu estilo em prosa era muito adequado
para dirigir-se a uma audiência de toda e qualquer nacionalidade, re-
ligião, política ou cultura. Ele não fala nos termos dos padrões de um
tipo particular de comunidade, como Hume ou Aristóteles tinham feito.
Pois a aceitação de princípios fundamentais, segundo Reid, não deriva
do acordo da paixão e do sentimento, expresso nas trocas
institucionalizadas nem da educação nas virtudes apenas proporcionada
por algum tipo particular de comunidade; tal aceitação, na verdade,
não é derivada. Todas as pessoas comuns de mente saudável, concor-
dam com um único e mesmo conjunto de verdades fundamentais en-
quanto primeiros princípios não-derivados, as verdades do senso comum,
assim que essas verdades são apresentadas a partir da mente, pela
experiência. Aqueles que são estigmatizados como bárbaros, de um
ponto de vista humiano ou aristotélico, são, na visão de Hume, tão
possuidores desse conjunto de verdades fundamentais quanto qualquer
outra pessoa e, realmente, podem ser os que o possuem mais segura-
mente, uma vez que sua apreensão dessas verdades não foi ameaçada
pela teorização filosófica enganosa.
Argumentei que, na concepçáo de Hume, como na de Aristóteles, o
exercício da racionalidade prática - com todas as diferenças que as
duas concepções comportam - exige um tipo particular de ambiente
social. Também argumentei que, em cada caso, a caracterização do tipo
relevante de ambiente expressava uma concepçáo particular de justiça.
A concepção de Reid é bastante diferente: o exercício da racionalidade
fundamental, prática ou teórica, não exige nenhum tipo particular de
ambiente social. Reid, portanto, nos apresenta uma alternativa radical
Capítulo XVII

O LIBERALISMO TRANSFORMADO EM
TRADIÇAO

Os capítulos anteriores narraram partes da história de três tradições


distintas: a que vai de Homero a Aristóteles, e que mais tarde passa,
através de autores árabes e judeus, a Alberto Magno e Sto. Tomás; a
que é transmitida da Bíblia, através de Agostinho, a Sto. Tomás; e a
que leva a tradição moral escocesa do aristotelismo calvinista ao en-
contro com Hume. Uma tradição de pesquisa é mais do que um mo-
vimento coerente de pensamento. Ela é um movimento, ao longo do
qual, seus adeptos tornam-se conscientes dele e de sua direção e, de
modo autoconsciente, tentam participar de seus debates e dar pros-
seguimento às suas pesquisas. As relações entre os indivíduos e uma
tradição são muito diversificadas, indo de uma adesão não-problemá-
tica, passando por tentativas de corrigir ou redirecionar a tradição, à
oposição ampla às suas alegações fundamentais até então. Mas essa
última relação com a tradição pode, de fato, ser tão formadora e impor-
tante quanto qualquer outra. Tal era a relação de Hume com a tradição
escocesa que emergiu da aliança, no século XVII, entre uma versão
calvinista da teologia agostiniana e uma releitura de Aristóteles. Nos
, estágios posteriores da tradição escocesa - que não serão tratados
aqui - a reação a Hume foi uma de suas características fundamentais.
E o próprio Hume s6 pode ser compreendido corretamente como alguém
que se define, em parte, através dessa oposição.
A tradição escocesa, nas suas origens, reencenou, embora de um
modo muito diferente da tradição medieval, a relação entre agostinismo
e aristotelismo. Mas é importante enfatizar que, durante a maior parte
352 O liberalismo transformado em tradiçdo O liberalismo transformado em tradição 353

de sua história, essas duas tradições de pesquisa foram não apenas não autoriza qualquer confiança generalizada na hospitalidade potenci-
distintas, mas conflitantes. Aristóteles, afinal de contas, tinha estabe- al de outras línguas e culturas à exposição articulada daquela tradição
lecido uma relação muito diferente com Platão, à diferença de Agos- particular, muito menos à adesão a ela. E isso significa que o ponto de
tinho, com sua dívida com relação a Plotino, herdeiro de Platão, mais vista das tradições é necessariamente contrário a uma das características
do que com relação a Aristóteles. E a compreensão aristotélica do fundamentais da modernidade cosmopolita: a crença confiante de que
agente humano e do raciocínio prático não tinha meios de admitir nela todos os fenômenos culturais devem ser potencialmente translúcidos à
mesma, a partir de seus próprios recursos, os conceitos hebraicos da compreensão, que todos os textos devem poder ser traduzidos na lin-
Bíblia, muito menos o conceito agostiniano da vontade. Foi necessária guagem que os adeptos da modernidade falam entre si.
a descoberta construtivista de Sto. Tomás de um modo de compreender Num nível, essa crença informa uma série de atividades: o ensino
mais abrangente do que qualquer tradição, para que fosse possível integrar confiante de textos de culturas passadas e estranhas, traduzidos não
essas duas tradições. E é uma medida de seu potencial para o conflito apenas para estudantes que não conhecem as línguas originais, mas por
o fato de pouquíssimos adeptos de qualquer uma das duas, no século professores que também não as conhecem; a condução de negociações
XIII, terem visto o significado do empreendimento de Sto. Tomás. comerciais, políticas e militares, por parte daqueles que supõem que o
Todas essas três tradições de pesquisa merecem essa descrição, não fato de não conhecerem as línguas uns dos outros não os impede de
apenas devido às continuidades de debate e pesquisa que expressaram, compreender uns aos outros adequadamente; e a disposição de permitir
que versões internacionalizadas de línguas - como o inglês, o espa-
mas também devido às transmutações e traduções a que foram capazes
nhol e o chinês - tomem o lugar das línguas das culturas minoritárias
de se submeter, em pontos de conflito e diferença e através deles. Uma
ou de suas variantes locais, dialetizadas. Num outro nível, essa mesma
tradição torna-se madura apenas à medida que seus adeptos enfrentam
crença aparece sob a forma de teses filosóficas sobre a tradutibilidade
e encontram um modo racional de atravessar ou contornar os encontros
universal.
com posições radicalmente diferentes e incompatíveis, que levantam os
problemas da incomensurabilidade e da intradutibilidade. A habilidade Por que e de que modos, o ponto de vista de uma pesquisa consti-
de reconhecer quando seus recursos conceituais são inadequados nesse tuída pela tradição implica a rejeição de todas essas teses será escla-
encontro, ou quando se sente incapaz de assimilar satisfatoriamente o recido ao longo do capítulo. Mas é importante ter em mente, desde o
que os outros têm a dizer, como crítica ou refutação, e uma sensibili- início, que há sempre a possibilidade de uma tradição de ação e pesquisa
dade para as distorções que podem surgir na tentativa de capturar, no encontrar uma outra, de modo que nenhuma das duas possa, pelo menos
nosso próprio esquema, teses originalmente melhor situadas em outro por certo tempo considerável, apresentar à justificada satisfação de
esquema, são todas essenciais para o crescimento de uma tradição, com seus adeptos sua superioridade racional, deixando para trás os adeptos
?
conflitos em qualquer nível de complexidade ou cujas mutações en- da tradição que se lhe contrapõe. E essa possibilidade surgirá quando
volvem transições de um tipo de ordem social e cultural para outro e e se as duas tradições, estejam ou não encarnadas na mesma língua e
de uma linguagem para outra. cultura, não puderem encontrar, de nenhum dos dois pontos de vista,
um conjunto adequado de padrões para avaliar racionalmente sua rela-
Também faz parte da natureza das tradições que seus adeptos não ção.
saibam antecipadamente, quaisquer que sejam suas convicções ou
pretensões, como e em que estado sua tradição sairá desses conflitos e Podemos começar a abordar os problemas implicados na avaliação
encontros. Sua confiança justificada na sua própria tradição aumentará, , de uma tradição de pesquisa por outra, considerando, primeiramente, a
naturalmente, à medida que sua tradição mostrar-se, em encontros : diferença entre a tarefa de avaliar racionalmente afirmações opostas e
sucessivos, capaz de fornecer os recursos necessários e de realizar as I conflitantes, numa mesma tradição, e a de avaliar asserções semelhan-
necessárias transformações. Mas a perspectiva de uma tradição origi- tes quando cada uma delas desenvolveu-se dentro de tradições muito
- diversas e conflitantes. Consideremos, sob essa luz, a diferença entre
nalmente enraizada em circunstâncias contingentes, surgindo de problemas,
perplexidades e discordâncias, numa ordem social particular, articulada comparar, em termos de concepqáo do raciocínio prático e da justiça,
nos termos das particularidades da língua e da cultura dessa ordem, 6, Sto. Tomás com Aristóteles, ou Aristóteles com Platáo, ou Hume com
354 O liberalismo transformado em tradiçüo O liberalismo transformado em tradição 355

Hutcheson, por um lado, e comparar as concepções de Aristóteles ou outros tipos de conhecimento, teóricos ou práticos, o que faz a tradi-
de Sto. Tomás com as de Hume. No primeiro caso, temos uma série de ção, pelo menos quanto a esse aspecto, perder funçáo.
padrões relativamente não-problemáticos aos quais recorrer para fazer Afirmada tão aberta e corajosamente como Reid o fez, sua tese
a comparação: até que ponto o pensador posterior soluciona os problemas sofreu uma acusação imediata de implausibilidade. Reid propôs, contra
postos pelo pensador anterior ou os que foram considerados insolúveis Hume, uma concepção do dever e da obrigação que toma nossa con-
por ele? Até que ponto o pensador posterior consegue resolver as in- sideração por eles independente do desejo, da paixão ou do interesse;
coerências na obra do anterior? Até que ponto o posterior propõe re- há, segundo Reid, dois princípios racionais independentes, um dos quais
cursos conceituais ou teóricos que não têm as limitações dos recursos nos manda fazer o que o dever e a obrigaçáo exigem, e o outro nos
de seu predecessor? Mas, no segundo caso, a situação é bastante diferente. manda fazer aquilo que produzirá nossa própria felicidade, princípios
Hume e Aristóteles, por exemplo, simplesmente náo se encontram no que, se corretamente compreendidos, coincidem nas suas instruções.
tipo de relação em que adeptos posteriores e anteriores da mesma tradiçáo Mas enquanto podia atribuir o fracasso de Hume em reconhecer a
se encontram. independência desses dois princípios ao fato de ele ter sido mal guiado
Neste caso, ao contrário, temos concepções do raciocínio prático e por sua teorizaçáo filosófica errônea, era mais difícil para ele explicar,
da justiça que sáo propostas em esquemas conceituais muito diferentes, à luz de sua própria teoria, como as pessoas comuns, leigas em filo-
que empregam modos de caracterização e argumentaçáo totalmente sofia, podiam aparentemente discordar sobre os fundamentos da mo-
diferentes, e que, ademais, são claramente incompatíveis. O que Hume ralidade. Pois todos eram considerados igualmente conscientes dos
considera justo seria, na visáo de Aristóteles, frequentemente, injusto; "princípios básicos da moralidade.
a noção de merecimento ocupa, na visáo de Aristóteles, um lugar que Esse foi um dos tipos de consideração que levou Dugald Stewart,
lhe é negado na visáo de Hume; na visáo de Aristóteles, a razáo, concebida mesmo aceitando o núcleo da doutrina de Reid, a substituir a frase de
de um certo modo, é capaz de governar e educar as paixões, ao passo
Reid "os princípios do senso comum" por sua própria frase "as leis
que, na visáo de Hume, a razão, concebida de um modo bastante di-
ferente, só pode se submeter a elas. Há, certamente, alternativas coe- fundamentais da crença humana". Stewart concordava com Reid que a
rentes para a opção entre ser aristotélico ou humiano, mas qualquer uniformidade dessas leis e a uniformidade subjacente da mente humana
aristotélico está, automaticamente, comprometido com a negação das é tal que todos os seres humanos, de fato, concordam sobre os mesmos
asserções fundamentais de Hume, e vice-versa. Como, então, decidir princípios morais básicos, que não são inferidos ou redutíveis a nada
entre essas posições rivais e mutuamente exclusivas? Há algum padráo mais fundamental do que eles mesmos. Essa concordância seria mani-
neutro, independente de qualquer tradição e racionalmente justificável, festa nos seus julgamentos morais efetivos, se não fosse pelas grandes
ao qual possamos recorrer? diferenças no ambiente físico e social de sociedades diferentes, que são
tais que um único conjunto de princípios morais exige julgamentos
Duas respostas possíveis a essa questáo revelam sua inadequaçáo,
práticos muito diferentes. Outros fatores, que produzem uma diver-
após um breve exame. A primeira é a resposta proposta por Thomas
Reid e Dugald Stewart. Thomas Reid argumentou, contra Hume, que sidade justificável de julgamentos, são diferenças em "opiniões
há certas verdades evidentes a quase todos os seres humanos, negadas especulativas" e diferenças quanto ao que constitui o comportamento
apenas por detentores de uma mente fraca ou aprisionados por alguma educado, deferente ou amigável, em sociedades diferentes (Philosophy
teoria filosófica infundada. Nossa consciência dessas verdades é elicitada of the Active and Moral Powers, em Collected Works, vol. I , Edim-
pela experiência, não derivada dela. Argumentando desse modo, Reid burgo, 1855:235-248).
tentou restaurar o recurso a primeiros princípios evidentes, táo carac- Portanto, Stewart seguiu Hutcheson e os seguidores de Hutcheson
terísticos da tradiçáo escocesa do século XVII, mas no modo como ele
tais como Smith, Beattie e o próprio Hume, ao sustentar que é apenas
recorre a esses princípios, a própria tradiçáo torna-se fundamentalmente
irrelevante. Pois se cada um de nós, por si só, a partir de seus próprios um ilusão a aparência de diversidade e de discordância entre culturas
recursos internos, pode saber a verdade desses princípios fundamentais e ordens sociais diferentes, quanto ao julgamento moral. Os seres humanos,
e não consegue, de fato, adquirir conhecimento de nenhum outro modo, de fato, concordam entre si no que se refere à moralidade, e se tivéssemos
o conhecimento desses primeiros princípios é pressuposto em todos OS . todos iguais circunstâncias culturais, intelectuais e no nosso ambiente
356 O liberalismo transformado em tradiçdo i O liberalismo transformado em tradição 357

físico e social, esse acordo universal seria manifesto. O mérito peculiar há lugar para o erro moral generalizado. Ao comprometer-se com isso,
de Stewart foi expressar essa posição mais clara e extensamente, e com Stewart não resolve o problema da discordância radical, apenas o des-
mais exemplos do que qualquer um de seus predecessores. loca.
Sua tese era factual. Se ela é verdadeira, os julgamentos morais e Pois, agora, ele deve ser capaz de explicar o problema da discordância
práticos de todas as culturas apresentam uma conjunção de elementos entre aqueles cujos julgamentos morais são estruturados e testados a
morais e prudenciais (no sentido moderno de "prudencial"), universais partir da suposição de que o erro moral generalizado é possível, tal
e invariáveis, por um lado, e elementos locais variáveis, por outro. A como Sto. Tomás e, de fato, toda sua cultura, e aqueles cujo modo de
leitura dessas passagens da obra de Stewart nos faz lembrar, inevita- julgamento moral não permite essa possibilidade, tal como Stewart e
velmente, do que Sto. Tomás diz sobre syndéresis e conscientia e sobre toda sua cultura. Isso significa que Stewart tem de defender sua teoria
os preceitos primários e secundários da lei natural. E isso, presumivel- da variação moral contra, pelo menos, uma teoria rival e, ao fazê-lo,
mente, não é acidental. Ao retornar a Hutcheson - e enquanto Stewart, enfrenta dois tipos distintos de dificuldade.
como Reid, divergia da epistemologia moral de Hutcheson, ele, tam- A primeira: o que deveria ter sido um apelo, contra as teorias filo-
bém como Reid, concordava com Hutcheson quanto à substância da sóficas, àquilo que a razão proporciona às consciências das pessoas
moralidade - Stewart, sem o saber, retornava também a alguns ele- comuns torna-se agora dependente, quanto à sua força, do resultado de
mentos da escolástica, da qual Hutcheson tanto herdara. Mas há diferenças um debate teórico, ficando, assim, privado do que Reid considerava
cruciais. , seu mérito distintivo. Uma segunda dificuldade é que os fatos empíri-
O que toma syndéresis e conscientia, quando a última não está errada, cos da diswrdância moral são incompatíveis com as alegações de Stewart,
uma expressão dos princípios da razão reta, segundo Sto. Tomás, é que não apenas porque suas explicações contrafactuais não são adequadas
elas são constitutivas da única forma de vida humana dirigida ao nosso para explicar os dados referentes à discordância e à diversidade entre
ultimus finis. E na pessoa virtuosa cuja prudentia ("prudência" no sentido as culturas (sobre as questões empírica e conceitual, ver R. Needham,
antigo, não no de Stewart) a guiou para esse fim, temos uma justifi- "Remarks on the Analysis of Kinship and Marriage", Remarks and
Inventions, London, 1976, e C. Geertz, "The Impact of the Concept of
cação de nossa identificação do conteúdo dos preceitos da syndéresis
Culture on the Concept of Man", New Views on the Nature of Man, ed.
e uma autoridade baseados na qual podemos discriminá-los. Para Stewart, J . R. Platt, Chicago, 1965), mas também porque sua visão, como a de
não há e não pode haver nenhum teste secundário disponível, e a Reid, não explica a existência da discordância moral radical dentro de
importância desse fato torna-se clara quando consideramos uma questão uma mesma cultura ou ordem social. Na verdade, foi a incapacidade da
crucial sobre a qual Stewart discorda de Sto. Tomás. Trata-se do quanto filosofia de Reid e de Stewart, nas versões então correntes nos Estados
nossa consciência, até mesmo de preceitos fundamentais, pode ser Unidos, de explicar a discordância entre os escravagistas e os
subvertida pelas distrações e corrupções do mal, de modo que o erro antiescravagistas, ou de fornecer bases extraídas dos supostos princí-
de toda uma classe de ações pode deixar de nos ser evidente. Portanto, pios morais fundamentais para defender um lado e não o outro, deci-
segundo Sto. Tomás, há proibições absolutas e incondicionais que toda '
siva para desacreditar sua filosofia moral no período imediatamente
uma cultura pode infringir sem saber o que está fazendo. Stewart es- anterior à guerra entre os Estados.
tava comprometido em negar essa afirmação. Seu indutivismo baconiano
não permite esse tipo de erro naqueles que devem fornecer os dados A tentativa de decidir entre as posições de tradições opostas e em
para suas generalizações. De modo que, se o infanticídio (um exemplo competição, no que se refere à gênese da ação e ao conteúdo da mo-
que Stewart toma de Smith), ou o parricídio (um exemplo tomado de ralidade, recorrendo a um conjunto de princípios fundamentais do que
Locke), é sancionado em alguma cultura, para Stewart isto é uma evidência Reid chamava de senso comum, portanto, fracassa nas suas versões
clara de que, em alguma circunstância, é permissível ou mesmo obrigatório mais ou menos sofisticadas. Que alternativa existe? Uma outra possi-
matar os muito jovens ou os idosos. Mas os supostos princípios básicos bilidade é que, se devemos descobrir qual é a forma do raciocínio
universais, tais como os exemplificados, perdem progressivamente sua prático ou a natureza da justiça, não devemos cbmeçar por uma teoria
especificidade e acabam por justificar tudo o que as pessas geralmente - seja pelas teorias informadas pela tradição, tais como as de Aristóteles
fazem, em qualquer cultura, nas suas circunstâncias específicas. Não e Hume, que estão reagindo parcialmente a pensadores anteriores, seja
358 O liberalismo transformado em tradição O liberalismo transformado em tradição 359

pelas teorias que tentam um começo inteiramente novo, como as de dos casos haveria exemplos genuinamente neutros. Para dizer o mesmo
Reid e Stewart -, mas, no caso do raciocínio prático, devemos come- de outra maneira: cada teoria do raciocínio prático é, entre outras coisas,
çar pelos prdprios fatos sobre a gênese da ação humana e, no caso da uma teoria sobre como exemplos devem ser descritos, e o modo como
justiça, pelas apreensões mais elementares do que é a conduta correta. descrevemos qualquer exemplo particular dependerá, portanto, de qual
No entanto, esse projeto também acaba por soçobrar. teoria adotamos. Logo, o recurso a exemplos é, necessariamente, vão.
Consideremos o que acarreta tentar avaliar asserções opostas sobre Pontos relacionados e paralelos emergem de teses semelhantes sobre
o raciocínio prático, comparando cada uma delas com aqueles que são como devemos adjudicar as concepções de justiça diferentes e in-
considerados os fatos básicos do raciocínio prático. Hume, por exemplo, compatíveis propostas por tradições opostas e em competição. Natu-
alega que a razão só pode ser serva das paixões. Aristóteles e Sto. ralmente, à medida que essas concepções de justiça derivam de concepções
Tomás alegam que a razão dirige as paixões. Deveríamos, então, considerar particulares da racionalidade prática ou são justificadas nos seus ter-
uma série tão ampla quanto possível de exemplos de ações humanas, mos, a impossibilidade de identificar um padrão neutro através do qual
nas quais o raciocínio e a paixão estão presentes e têm algum papel na julgar teorias conflitantes, no caso das últimas, implica uma impossi-
geração da ação e, à luz desses exemplos, decidir entre as duas posições
conflitantes? O problema é: como descrever os exemplos relevantes? bilidade semelhante, no caso das primeiras. Mas mesmo se essa con-
Quando os indivíduos articulam para si mesmos os processos através sideração fosse abandonada, tais propostas encontrariam outras
dos quais procedem na ação, ou quando observadores descrevem esses dificuldades enormes.
processos em outros, eles só podem fazê-lo empregando algum esquema Justamente porque elas implicam a identificação de um fundamento
conceitual particular, informado por uma teoria ou que pressupõe uma ou de um conteúdo de justiça independente das tradições conflitantes,
teoria, conceitualizando o que fazem ou aquilo a que se submetem ou o que se encontra deve ser a característica de uma posição moral humana
o que observam, de um modo que está de acordo com uma teoria e não válida para os seres humanos, independentemente das suas características
com outra. Não há dados pré-conceituais ou pré-teóricos, e isso implica enquanto membros de uma tradição cultural ou social particular. Deve-
que nenhum conjunto de exemplos de ações, independentemente de sua se recorrer a algum tipo de universalidade ou impessoalidade concebido
abrangência, pode fornecer um tribunal de apelação neutro para que se
como capaz de especificar e prover uma posição moral independente
possa decidir entre teorias rivais. Naturalmente, eu não quero dizer, e
seria absurdo fazê-lo, que os fatos empíricos sobre a ação e sua gênese da tradição. Uma primeira dificuldade é que essas concepções de univ-
não são tais que não possam impor limites ao que pode constituir uma ersalidade e impessoalidade, que sobrevivem a esse tipo de abstração
conceitualização plausível ou operacional. Mas esses limites são com- da concretude dos modos convencionais tradicionais, ou mesmo não
preensivelmente consistentes com uma série de teorias, pelo menos tão tradicionais, de pensamento e ação, são demasiado fracas e estéreis
amplas e, possivelmente, mais amplas que o conjunto de teorias mu- para prover o necessário.
tuamente incompatíveis que emergiram das histórias dos capítulos Houve, naturalmente, tentativas recorrentes de se negar isso, entre
anteriores. as quais a de Kant, a mais importante. Mas a história das tentativas de
\
Conseqüentemente, se qualquer tentativa fosse feita para julgar teorias construir uma moralidade para indivíduos livres de tradição, seja através
conflitantes através de exemplos empíricos, um entre dois resultados do recurso a uma entre várias concepções de universalizabilidade, a
ocorreria. Se os exemplos fossem extraídos da cultura particular, cuja uma entre várias concepções da utilidade igualmente multifárias, a
prática estivesse sendo articulada por um dos teóricos em questão, esse intuições comuns ou a uma combinação dessas, foi, quanto ao resultado,
teórico, sem dúvida, sairia do teste substancialmente justificado - como observamos no início dessa pesquisa, uma história de disputas
talvez, naturalmente, corrigido e complementado em pormenores -, continuamente não-resolvidas, de modo que não emerge nenhuma con-
uma vez que as exemplos.seriam justamente do lipo que essa leórico cepção não-contestada ou incontestável do que seja a moralidade in-
teria considerado ao elaborar sua teoria. No entanto, se os exemplos dependente da tradição e, conseqüentemente, nenhum conjunto de cri-
fossem extraídos de uma cultura estranha e diferente da dos dois teóricos térios através dos quais as asserções de tradições opostas e conflitantes
em disputa, esses exemplos seriam instâncias da conceitualizaçáo exigida possam ser julgadas. A evidência do fracasso dos herdeiros de Kant,
por um terceiro tipo de teoria, talvez ainda não articulado. Em nenhum nesses empreendimentos construtivistas, está contida nas críticas dos
360 O liberalismo transformado em tradição O liberalismo transformado em tradição 361

livros que os expõem, nos periódicos filosóficos especializados. As Entretanto, é da maior importância ter em mente que o projeto de
páginas de críticas de livros desses periódicos são os cemitérios da fundar um tipo de ordem social, no qual os indivíduos possam eman-
filosofia acadêmica constnitivista, e quaisquer dúvidas sobre se o con- cipar-se da contingência e da particularidade da tradição, através do
senso racional não poderia, afinal de contas, ser alcançado na filosofia recurso a normas genuinamente universais e independentes da tradição,
moral acadêmica moderna podem ser postas para descansar em paz, não foi e não é apenas, nem princip?lmente, um projeto de filósofos.
através da leitura regular de tais periódicos. Mas isso não se dá apenas, Ele foi e é o projeto da sociedade liberal moderna e individualista, e
ou mesmo principalmente, porque o reino da vida prática é um reino as razões mais convincentes que temos para acreditar que a esperança
de controvérsia moral, política e religiosa. Essencialmente, é uma con- de universalidade racional independente da tradição é uma ilusão, derivam
seqüência do tipo de filosofia a que se recorre em tais tentativas de da história desse projeto. Pois, no curso dessa história, o liberalismo,
construção. Pois uma condição do sucesso de qualquer uma dessas que começou como um apelo a supostos princípios de racionalidade
tentativas é que seu rival deve fracassar. Nenhuma tese particular pode compartilhada, contra o que se considerava a tirania da tradição, foi
ser conclusivamente estabelecida sem que pontos de vista incompatíveis transformado em tradição cujas continuidades são parcialmente definidas
sejam conclusivamente refutados. pela interminabilidade do debate de tais princípios. Essa interminabilidade
No entanto, o que revela o tipo de filosofia vigente na história da que, do ponto de vista do liberalismo nascente, era um grave erro a ser
filosofia acadêmica pós-iluminista é que a discordância quanto a ques- remediado o mais rápido possível, tornou-se, pelo menos aos olhos de
tões principais parece ser inerradicável, embora muito ocasionalmente alguns liberais, um tipo de virtude.
uma tese particular seja conclusivamente refutada, ou seja, pelo menos,
Inicialmente, o projeto liberal era fornecer um esquema político,
tornada literalmente implausível, e, embora muito mais frequentemente
legal e econômico no qual o fato de concordar com o mesmo conjunto
a relação de um argumento com outro, ou de um conjunto de afirma-
de princípios racionalmente justificáveis tornaria aqueles que têm
ções com outro, seja esclarecida em termos de conseqüência, implica-
concepções amplamente diferentes e incompatíveis da boa vida para os
ção ou de outras relações lógicas e conceituais. O resultado de quase
seres humanos capazes de viver juntos pacificamente dentro da mesma
toda tentativa de refutação de uma teoria filosófica, como afirma David
Lewis, é que a "teoria sobrevive à sua refutação - a um certo preço. sociedade, desfmtando da mesma posição política e assumindo as mesmas
Nossas 'intuições' são simplesmente opiniões, nossas teorias filosófi- relações econômicas. Todo indivíduo deve ser igualmente livre para
I

cas também. ... Uma vez que o menu de teorias bem desenvolvidas nos propor e viver de acordo com qualquer concepção do bem que lhe apraza,
I é apresentado, a filosofia torna-se uma questão de opinião ..." derivada de qualquer teoria ou tradição a que ele possa ter aderido, a
(Philosophical Papers, vol. I, Oxford, 1983:~-xi).O que esse tipo de não ser que essa concepção do bem implique que a vida do resto da
I filosofia efetivamente consegue fazer é mostrar em que outros compro- comunidade deva ser reformulada de acordo com ela. Qualquer concepção
missos incorremos, lógica e conceitualmente, quando afirmamos ou do bem humano segundo a qual, por exemplo, é dever do governo educar
negamos uma tese particular. Mas ela não possui nenhum padrão co- moralmente os membros da comunidade, de modo que eles passem a
mum geral, através do qual possamos julgar se é racional ou não incor- I viver essa concepção, pode, até certo ponto, ser sustentada como uma
rer nesses compromissos. A metáfora do "preço" utilizada por Lewis é teoria particular por indivíduos ou grupos, mas qualquer tentativa séria
adequada. Não obtemos nenhum padrão filosófico de valor, h luz do de incorporá-la à vida pública será proscrita. Essa característica, ob-
qual possamos descobrir se o custo de um compromisso particular é viamente, implica não apenas que o individualismo liberal tem sua
alto demais com relação aos benefícios filosóficos que confere. Por própria concepção ampla do bem, o qual está empenhado em impor
essa razão, devemos recorrer à opinião pré-filosófica e reconhecer que politica, legal, social e culturalmente onde quer que tenha o poder para
I esse tipo de filosofia, quando conduzido de maneira autoconsciente, é tal, mas também que, ao fazê-lo, sua tolerância de concepções rivais do
l
o que alguns de seus expoentes mais perspicazes sempre disseram que bem, na arena pública, é seriamente limitada.
1
era: um modo de esclarecer questões e alternativas, mas não de obter
bases para a convicção em questões substanciais. Devemos também O que é permitido na arena é a expressão de preferências, de in-
i
1 observar que, quanto à inerradicabilidade do conflito, a assim chamada divíduos ou de grupos, as segundas sendo compreendidas como as
I
filosofia continental não difere significativamente da filosofia analíti- preferências dos indivíduos que compoem os grupos, somadas de al-
ca. gum modo. Pode até ser que, em alguns casos, seja uma teoria ou
I
362 O liberalismo transformado em tradição O liberalismo transformado em tradição 363

concepção não-liberal do bem humano que leve os indivíduos a expres- O eu é desfigurado...". Desse modo, Rawls equaciona o eu humano
sar suas preferências. Mas essas teorias e concepções só podem ser com o eu liberal de um modo que é atípico na tradição liberal, apenas
manifestadas enquanto expressóes de preferência. por sua clareza de concepção e formulação.
Os paralelos entre essa compreensão da relação dos seres humanos, O eu liberal, portanto, move-se de esfera em esfera, compartimen-
no domínio social e político, e a instituição do mercado, a instituição talizando suas atitudes. As reivindicações de atenção ou de recursos,
dominante numa economia liberal, são claros. Nos mercados também, por parte de uma esfera qualquer, devem ser determinadas pela soma
é apenas através da expressão de preferências individuais que uma das preferências individuais e pela negociação. Assim, é importante
série heterogênea de necessidades, desejos e bens, concebidos de um para todas as áreas da vida humana, e não apenas para transações
modo ou de outro, encontra o direito de se manifestar. O peso dado a explicitamente políticas e econômicas, que haja regras aceitáveis de
uma preferência individual, no mercado, é uma questão do custo que negociação. E o que cada indivíduo e grupo deve esperar dessas regras
o indivíduo é capaz de pagar e se está disposto a fazê-lo; um indivíduo é que elas devam ser tais que os tornem capazes de efetivamente
só tem voz à medida que tem os meios para barganhar com aqueles que implementar suas preferências. Esse tipo de eficácia, portanto, torna-se
podem fornecer-lhe o que necessita. Assim, também no domínio político um valor fundamental da modernidade liberal.
e social, a capacidade de barganhar é crucial. As preferências de uns
têm peso para outros apenas à medida que a satisfação dessas preferên- Nesse esquema liberal, as regras de justiça têm uma função de-
finida. As regras da justiça distributiva consistem tanto em estabelecer
cias leva à satisfação de suas próprias preferências. Só recebe quem
tem algo a dar. Numa sociedade liberal, os que não têm meios para
limites ao processo de negociação - de modo a garantir o acesso a ele
aos que, de outro modo, estariam em desvantagem - como em pro-
barganhar estão em desvantagem. teger os indivíduos para que tenham liberdade de se expressar e, dentro
Nesse contexto, duas características do sistema liberal de avaliação desses limites, implementar suas preferências. A estabilidade da pro-
tornam-se inteligíveis. A primeira refere-se ao modo pelo qual o liberal priedade, para Hume um valor supremo, é valorizada pelos liberais,
está comprometido com o fato de não haver um único bem supremo. apenas à medida que contribui para essa proteção e não exclui os que
O reconhecimento de uma série de bens faz-se acompanhar pelo reco- estão em desvantagem. O merecimento, exceto em algumas associações
nhecimento de uma série de esferas compartimentalizadas, cada qual secundárias nas quais os grupos buscam bens particulares escolhidos,
com seu próprio bem a ser perseguido: político, econômico, familiar, é irrelevante para a justiça. Portanto, tanto a concepção de Aristóteles
artístico, atlético, científico. Desse modo, é dentro de uma série de como a de Hume são incompatíveis com a justiça liberal, de um modo
grupos distintos que cada indivíduo persegue seu próprio bem, e as paralelo à incompatibilidade de ambas as visões da gênese da ação com
preferências que ele manifesta expressam essa variedade de relações o modo no qual os indivíduos compreendem a si mesmos e aos outros
sociais (ver John Rawls, "The Idea of Social Union", cap. 79, op. cit.). como agentes que expressam preferências, em sociedades liberais.
Conseqüentemente, a norma liberal é caracteristicaniente uma norma Pois, no domínio público liberal, os indivíduos compreendem a si
segundo a qual tipos diferentes de avaliação, cada uma independente mesmos e aos outros como tendo, cada um, sua própria ordenação de
da outra, são exercidos nesses tipos diferentes de ambiente social. A preferências. Suas ações são compreendidas como sendo planejadas
heterogeneidade é tal que não é possível uma ordenação geral dos para implementar essas preferências e, de fato, é pelo modo como os
bens. Ser educado na cultura de uma ordem social liberal significa, indivíduos agem que temos a melhor evidência sobre quais são suas
portanto, tornar-se o tipo de pessoa para quem parece normal buscar preferências. Cada indivíduo, conseqüentemente, ao contemplar uma
vários bens, cada um adequado à sua própria esfera, sem um bem ação prospectiva, deve primeiro perguntar-se: quais são meus desejos?
supremo que confira unidade geral à vida. Cito novamente uma pas- Como se ordenam? A resposta a essa questão fornece a premissa inicial
sagem de John Rawls: "O bem humano é heterogêneo porque os objeti- para o raciocínio prático desses indivíduos, uma premissa expressa
vos do eu são heterogêneos. Embora subordinar todos os nossos objeti- pela afirmação: "Quero que tal coisa ocorra", ou por outra semelhante.
vos a um único fim, estritamente falando, não viole os princípios da De imediato, essa forma tipicamente moderna de raciocínio prático
escolha racional ... fazê-lo ainda nos parece irracional ou mesmo louco. apresenta uma outra diferença, em relação a Aristóteles e a Hume.
364 O liberalismo transformado em tradiçdo O liberalismo transformado em tradição 365

"Quero que tal coisa ocorra", como vimos no capítulo XVI, não pode verdadeira ou falsa, do mesmo modo que as frases em terceira pessoa
ser a expressão de uma boa razão para a ação no esquema de Hume, 'ela sente dor' ou 'ele tem medo'. Passamos a nos referir a nós mesmos
tampouco no de Aristóteles. A emergência de um tipo de raciocínio com a mesma impessoalidade com que nos referimos aos outros. As-
prático no qual esse tipo de expressão pode ser a premissa inicial de sim, o mesmo ocorre com o 'eu quero' que, em vez de expressar uma
um argumento prático marcou um momento da transformação cultural paixão e, portanto, revelar um motivo para a ação - como ainda ocorre,
pós-humiana, um momento que implicou passar a compreender as arenas por exemplo, numa perspectiva humiana - pode funcionar como uma
de escolha pública, não como lugares de debate, quer nos termos de afirmação e, portanto, uma premissa. Desse modo, ele passou a possuir
uma concepção dominante do bem humano, quer entre concepções opostas o tipo de impessoalidade exigido de uma boa razão para a ação.
e conflitantes desse bem, mas como lugares onde a negociação entre os Minha tese não é que os procedimentos do domínio público do
indivíduos, cada um com suas próprias preferências, é conduzida. O individualismo liberal tenham sido a causa e a psicologia do indivíduo
que teve de acontecer para que o 'eu quero' assumisse esse novo papel? . liberal, o efeito, nem vice-versa. O que proponho é que um exigiu o
outro e que, ao se unirem, definiram um novo artefato social e cultural,
Naturalmente, os desejos sempre foram reconhecidos como móveis
para a ação, e alguém podia sempre explicar sua ação expressando o "o indivíduo". No raciocínio prático aristotélico, é o indivíduo enquanto
desejo que o motivou através de uma expressão tal como 'eu quero'. cidadão que raciocina; no raciocínio prático tomista, é o indivíduo
Não havia novidade em se acreditar que é bom satisfazer certos desejos enquanto pesquisador do seu bem e do bem de sua comunidade; no
ou que o prazer dessa satisfação é bom. A novidade foi a transformação raciocínio prático humiano, é o indivíduo enquanto proprietado ou não-
das próprias expressões de desejo em primeira pessoa, sem maiores proprietado, participante de uma sociedade de um tipo particular de
qualificações, em formulações de uma razão para a ação, em premissas reciprocidade; mas no raciocínio prático da modernidade liberal é o
para o raciocínio prático. E quero sugerir que essa transformação ocorre indivíduo enquanto indivíduo que raciocina.
devido a uma reestruturação do pensamento e da ação, de um modo
Qual é a estrutura desse tipo de raciocínio prático? Consideremos o
harmônico com os procedimentos dos domínios públicos do mercado e
procedimento através do qual ele tem de ser elaborado. Partindo da
da política individualista liberal. Nesses domínios, os dados últimos
premissa inicial 'eu quero que algo ocorra', o sujeito do raciocínio
são as preferências. Elas são pesadas umas contra as outras; para se
deve passar à questão sobre como o que ele quer pode ser alcançado
atribuir peso As preferências, é irrelevante saber como se chegou até
através da ação e qual das alternativas de ação é preferível. Mas a
elas. O fato de que as pessoas em geral tenham estas ou aquelas
preferências é visto como razão suficiente para se agir de modo a conjunção da premissa inicial 'eu quero que algo ocorra', com a premissa
satisfazê-las. Mas, se isso é verdade na comunidade política, também secundária obtida através da resposta a essa questão não produzirá, por
cada indivíduo, certamente, é igualmente capaz de considerar suas si só, a conclusão quanto ao que o sujeito do raciocínio deve fazer.
preferências razões suficientes para agir do mesmo modo. E haverá um Pois, pode muito bem ser que o curso de ação decidido dessa forma,
procedimento análogo para pesar nossos desejos individuais uns contra na verdade, frustrasse algum outro desejo do sujeito. Logo, uma pre-
os outros. missa adicional é necessária para qualquer argumento prático sólido no
qual a premissa inicial seja expressão de preferência, e a seguinte for-
Wittgenstein chamou nossa atenção para o fato de que certos tipos ma emerge: "Eu quero que algo ocorra; fazer isso me tornará capaz de
de frase em primeira pessoa - por exemplo, 'sinto dor7 ou 'estou com fazer com que algo ocorra; não há nenhum outro modo, que eu prefira,
medo' - podem funcionar primária e originariamente como expres- de conseguir o que quero; fazer aquilo não frustrará nenhuma outra
sivas, um substituto de alguma outra coisa, o grunhido ou talvez um preferência igual ou mais forte que essa".
grito, mas podem também vir a funcionar de um outro modo: "...um
grito, que não pode ser considerado uma descrição, que é mais primi- Os filósofos analíticos contemporâneos, que frequentemente pen-
tivo que qualquer descrição, por tudo o que serve como uma descrição , sam estar representando a forma atemporal do raciocínio prático como
da vida interior. Um grito não é uma descrição. Mas há transições" t tal, quando, de fato, estão representando a forma do raciocínio prático
(Philosophical Investigations, Oxford, 1953, 11, 9, 189e). As transições r específico de sua própria cultura liberal individualista, confirmam, em
são feitas tratando-se 'sinto dor7 ou 'tenho medo' como uma afirmação suas concepções, que essa é a forma geral de tal raciocínio prático,
366 O liberalismo transformado em tradição O liberalismo transformado em tradição 367

embora, não nos surpreendamos, discordem entre si quanto a pormeno- silogismo prático aristotélico, no contexto do tipo de atividade sis-
res de como essas preferências devem ser expressas (ver G. H. von temática do qual essas premissas extraem sua força peculiar, sabendo
Wright, Explanation and Understanding, Ithaca, 1971, cap. 111; A. o que está fazendo, e que não realiza a ação que deveria ter sido a
Goldman, A Theory of Human Action, Englewood Cliffs, 1970, cap. conclusão do silogismo, não porque não possa realizá-la, cai, desse
IV; P. M. Churchland, "The Logical Character of Action Explanations", modo, na ininteligibilidade da pura inconsistência. Mas não é isso o
Philosophical Review 79, 2, 1970; R. Audi, "A Theory of Practical que ocorre com alguém que, do mesmo modo, afirma a premissa de um
Reasoning", American Plrilosophical Quarterly 19, 1, 1982). raciocínio prático moderno e não age de acordo com ele. Robert Audi
Que conclusão resulta desse tipo de conjunto de premissas? A conexão argumenta, convincentemente, que o raciocínio desse tipo, que termina
entre as preferências expressas nas preniissas desse tipo de raciocínio num juízo prático, está completo enquanto raciocínio prático; ele não
prático, na sociedade individualista liberal moderna, e qualquer ação exige, para ser completo, a ação subsequente por parte do sujeito do
que deva ser gerada por elas é muito menos perceptível do que a conexão raciocínio, de acordo com ele, ou mesmo uma decisão de agir desse
entre as premissas de um silogismo prático aristotélico e a ação que é modo. Pois o sujeito pode não ter força de vontade em relação à re-
a sua conclusão, ou do que a ligação entre uma paixão humiana e sua alização dessa ação particular possível, e pode ser também que "à
expressão na ação. Nem a imediaticidade e necessidade de uma, nem medida que pensa sobre como fazê-lo, mude de idéia" (op. cit., 29). A
variedade de considerações possíveis que podem se interpor entre o
a regularidade causal da outra estão implicadas no modo pelo qual as
juízo prático e a ação, e mesmo entre o juízo prático e a decisão, é, ao
relações entre as atitudes expressas nas premissas e a ação subseqüente
mesmo tempo, demasiado ampla e indeterminada para que haja sequer
são compreendidas. É verdade que, como escreveu G. E. M. Anscombe,
uma aparência de ininteligibilidade quando o raciocínio prático não
"o sinal primitivo de querer é tentar obter...". (Intention, Oxford, 1957,
produz nenhum resultado. Portanto, numa cultura dominada por esse
67). Mas se, por um lado, é verdade que alguém que expressa um
tipo de raciocínio prático, tomar decisões - e voltar atrás numa decisão
desejo está sempre comprometido com tentar obter o que ele quer, em
- é um tipo de atividade que assume uma proeminência desconhecida
alguma circunstância, por outro lado, nada mais do que isso está ne-
em outras culturas.
cessariamente implicado.
Em que consiste, portanto, a racionalidade prática, do ponto de
Agir baseado num desejo particular aqui e agora, implementando
vista daqueles que adotam esse tipo de raciocínio? Em primeiro lugar,
uma preferência particular aqui e agora, depende não apenas de cir- na ordenação, por cada indivíduo, de suas preferências, de modo que
cunstâncias externas, mas também de que nenhum outro desejo ou
possam ser ordinalmente classificadas na sua apresentação no domínio
preferência apresente-se de tal modo que a pessoa faça uma outra coisa.
público; em segundo lugar, na solidez dos argumentos através dos quais
E, num contexto como o da cultura liberal moderna, onde a variedade as preferências são traduzidas em termos de decisões e ações; e, em
de bens desejados é considerada irredutivelmente heterogênea e sem terceiro lugar, na habilidade de agir de modo a maximizar a satisfação
nenhuma ordenação geral, isso tende sempre a acontecer. De modo dessas preferências de acordo com sua ordenação. É o primeiro desses
que, mesmo quando alguém ensaiou todas as premissas de um raciocínio aspectos da racionalidade especificamente moderna que torna tão cru-
prático desse tipo específico, a questão sobre se ele vai agir de acordo cial a questão sobre como essas preferências devem ser somadas, in-
com o raciocínio ainda permanece aberta. Portanto, entre o ensaio das dividual ou socialmente, e o teorema de Arrow e seus herdeiros tão
premissas e a ação subsequente, deve haver uma decisão. Tais premissas relevante na teoria social moderna. É o terceiro daqueles aspectos que
logicamente terminam, não em alguma ação como conclusão, mas num toma as preocupações com o utilitarismo e sua linguagem específica
juízo prático do tipo: "Então, devo fazer isso". A decisão quanto a agir tão inelimináveis do discurso público moderno e da filosofia moral e
de acordo com esse juízo não é feita simplesmente chegando-se a essa política moderna.
conclusão.
Naturalmente, ocorre frequentemente que as preferências de indivíduos
Consideremos o contraste entre o raciocínio prático aristotélico e o e de grupos de indivíduos diferentes entram em conflito. E a necessidade
caracteristicamente moderno, do ponto de vista de nossa interpretação de uma concepção de justiça implica, nessa cultura liberal, nada mais
do comportamento dos outros. Alguém que afirma as premissas de um nada menos do que a necessidade de um conjunto de princípios re-
368 O liberalismo transformado em tradiçdo O liberalismo transformado em tradiçáo 369

guladores, através dos quais a cooperação na implementação das pre- ricos filosóficos que argumentaram que todos os juízos avaliativos e
ferências possa ser alcançada, à medida do possível, e as decisões normativos não podem ser nada mais do que expressões de atitude e de
tomadas quanto a que tipos de preferência têm prioridade sobre outros. sentimento, que todos esses juízos são emotivos, nos disseram a ver-
Observe que, segundo os padrões dessa cultura, uma pessoa pode ser dade, não sobre os juízos avaliativos e normativos como tais, mas
inteiramente racional sem ser justa. A prioridade da racionalidade é sobre o que esses juízos se tornam nesse tipo de cultura progressiva-
exigida de modo que as regras da justiça possam ser justificadas através mente emotivista (ver capítulos I1 e I11 de After Vjrtue).
do recurso h racionalidade. A aceitação das normas da justiça pode,
realmente, às vezes, ser necessária para alguém satisfazer suas prefe- Conseqüentemente, quando a defesa de pontos de vista morais e
rências efetivamente, e a eficácia e a racionalidade podem, portanto, políticos rivais é interpretada na ordem liberal como a expressão de
determinar tal aceitação. Mas para que alguém seja racional, não é preferências pelos indivíduos que se empenham em tais defesas, essa
necessário que apresente uma disposição de ocupar-se com a justiça interpretação é mais do que uma questão da posição atribuída a todas
as expressões de opinião pelo individualismo liberal. A cultura do li-
como tal. Qual é, então, a função e a noção de justiça, nessa ordem
beralismo transforma as expressões de opinião no que sua teoria polí-
social e cultural?
tica e moral já tinha dito que eram. Logo, o debate, no primeiro nível,
A resposta a essa questão exige que atentemos a quatro níveis di- não terrl solução; mas os participantes do debate consideram que, num
ferentes de atividade e debate, na estrutura de uma ordem liberal e segundo nível, seus pontos de vista são incluídos no controle e avaliação
individualista. O primeiro é aquele no qual indivíduos e grupos dife- de expressões de preferência que as institucionalizações do liberalismo
rentes expressam suas visões e atitudes em seus próprios termos, quais- sempre implicam: contar votos, reagir à escolha do consumidor, mover
quer que sejam eles. Alguns desses indivíduos e grupos podem ser a opinião pública.
membros de sinagogas, igrejas ou mesquitas e expressar suas visões
como injunções a obedecer à lei divina. Alguns podem ser adeptos de Como já vimos, o primeiro nível, o do debate sobre o bem humano
em geral é, necessariamente, incapaz de levar a conclusões concorda-
teorias não-religiosas do bem humano, por exemplo, uma teoria aris-
das, numa ordem social liberal. O segundo nível, aquele no qual as
totélica ou quase-aristotélica. Outros podem adotar princípios referen-
tes, por exemplo, aos direitos humanos universais, que simplesmente i preferências são controladas e ponderadas, pressupõe que os procedi-
mentos e regras que governam esse controle e avaliação são o resul-
consideram como não exigindo maior fundamentação. O que cada ponto
de vista oferece é um conjunto de premissas, a partir do qual seus i tado de um debate racional de outro tipo bem diferente, no qual os
"princípios
p
da racionalidade compartilhada foram identificados pela
proponentes argumentam para chegar a conclusões sobre o que deve ou
6 pesquisa filosófica. Conseqüentemente, espera-se, de alguma forma, à
não deve ser feito, conclusões que estão, frequentemente, em conflito i
com as de outros grupos. O único modo racional no qual essas luz da argumentação até agora desenvolvida, que o liberalismo exija,
discordâncias podem ser solucionadas seria através de uma pesquisa para sua expressão social, o debate filosófico e quase-filosófico con-
filosófica que visasse decidir qual desses conjuntos de premissas, se tínuo sobre os princípios da justiça, um debate que, por razões já expostas,
algum, é verdadeiro. Mas uma ordem liberal, como vimos, é uma ordem é perpetuamente inconclusivo, embora socialmente eficaz em sugerir
na qual cada ponto de vista pode propor suas asserções, mas nada mais que se o conjunto relevante de princípios ainda não foi, finalmente,
do que isso, dentro da estrutura da ordem pública, uma vez que nenhuma descoberto, sua descoberta permanece como um objetivo fundamental
teoria geral do bem humano deve ser considerada justificada. Portanto, da ordem social.
nesse nível, o debate é necessariamente estéril; recursos opostos a r Esse terceiro nível, novamente um nível de debate, portanto, ofere-
concepções do bem humano ou da justiça necessariamente assumem , ce um certo tipo de sanção para as regras e procedimentos do segundo
uma forma retórica, de modo que é enquanto afirmação e contra-afirmação, i nível. E embora os teóricos filosóficos do individualismo liberal não
e não enquanto argumento e contra-argumento, que os pontos de vista concordem e não possam concordar sobre nenhuma formulação precisa
conflitantes se enfrentam. A persuasão não-racional desloca a argu-
mentação racional. Os pontos de vista são construídos como expressões
i dos princípios da justiça, eles concordam amplamente sobre o que tais
princípios devem alcançar. Justamente porque os princípios da justiça
de atitude e sentimento e, frequentemente, não passam disso. Os teó- f devem governar o controle e a avaliação de preferências, eles devem
E
O liberalismo transformado em tradiçáo O liberalismo transformado em tradiçáo 371

fornecer, à medida do possível, a justificação para cada indivíduo, enquanto Portanto, o liberalismo, enquanto inicialmente rejeita as asserções
indivíduo, controlar e avaliar suas preferências particulares, do modo de qualquer teoria suprema do bem, na verdade expressa justamente
como o faz. Assim, toda desigualdade no tratamento de indivíduos uma teoria desse tipo. Além disso, o liberalismo não pode oferecer
enquanto indivíduos exige justificação. A justiça éprima facie igualitária. nenhum argumento decisivo a favor de sua concepção do bem humano
Os bens em relação aos quais é igualitária, desse modo, são aqueles a não ser através do recurso a premissas que coletivamente já pressupõem
que, supostamente, todos valorizam: liberdade para expressar e essa teoria. Os pontos de partida da teorização liberal não são nunca
implementar preferências e uma participação nos meios necessários neutros no que se refere às concepções do bem humano; eles são sempre
para tomar essa implementação eficaz. É nesses dois sentidos que prima pontos de partida liberais. E a inconclusividade dos debates no liberalismo,
facie a igualdade é exigida. Mas é justamente neste ponto que a discus- quanto aos princípios fundamentais da justiça liberal (ver After Virtue,
são entre os teóricos liberais começa, uma disputa na qual as contribui- cap. XVII), reforça a visão de que a teoria liberal é melhor compreendida,
ções dos nomes mais importantes na fundação do liberalismo, Kant, não como tentativa de encontrar uma racionalidade independente da
Jefferson e Mill, têm sido continuadas por contemporâneos renomados tradição, mas como a articulação de um conjunto historicamente de-
como Hart, Rawls, Gewirth, Nozick, Dworkin e Ackerman. A senvolvido de instituições e formas de atividade, isto é, como a voz de
inconclusividade contínua dos debates, para os quais têm contribuído uma tradição. Como outras tradições, o liberalismo tem seus próprios
é, naturalmente, mais um tributo à inconclusividade necessária da fi- padrões de justificação racional internos. Como outras tradições, o
losofia acadêmica moderna. liberalismo tem seu conjunto de textos autoritativos e suas disputas
sobre a sua interpertação. Como outras tradições, o liberalismo se expressa
Entretanto fica claro que, gradualmente, se dá cada vez menos socialmente através de um tipo particular de hierarquia.
importância a se chegar a conclusões substanciais e cada vez mais se
atribui importância a continuar o debate pelo debate. Pois a natureza Pois, numa sociedade na qual as preferências, seja no mercado, na
do próprio debate, e não de seu resultado, fornece de vários modos a política ou na vida privada, recebem o lugar que têm numa ordem
liberal, detêm o poder aqueles que são capazes de determinar quais
base para o quarto nível, o das regras e procedimentos do sistema legal
devem ser as alternativas entre as escolhas disponíveis. O consumidor,
formal, no qual apelos à justiça podem ser ouvidos numa ordem indi-
o eleitor e o indivíduo em geral têm o direito de expressar suas pre-
vidualista liberal. A função desse sistema é impor uma ordem na qual
ferências por uma ou mais das alternativas oferecidas, mas o conjunto
a resolução de conflitos se faça sem se invocar qualquer teoria geral do de alternativas possíveis é controlado por uma elite, e o modo como
bem humano. Para se alcançar esse fim, quase todas as posições toma- são apresentadas 6 também controlado da mesma forma. As elites
das nos debates filosóficos da jurisprudência liberal podem, ocasional- gÒvemantes, no liberalismo, tendem a valorizar altamente a competência
mente, ser invocadas. E a marca de uma ordem liberal é referir a na apresentação persuasiva das alternativas, isto é, nas artes cosméti-
resolução de seus conflitos, não aos debates, mas aos veredictos de seu cas. Desse modo, um certo tipo de poder tem um certo tipo de auto-
sistema legal. Os advogados, não os filósofos, são o clero do liberalismo. ridade.
O liberalismo, portanto, fornece uma concepção específica da or- Por razões óbvias à luz da história de suas doutrinas, os liberais
dem justa, que é intimamente integrada h concepção do raciocínio prático relutam em reconhecer que não recorrem a uma racionalidade inde-
exigida pelas transações públicas conduzidas nos termos estabelecidos pendente da tradição como tal. Entretanto, há um número cada vez
por uma comunidade política liberal. Os princípios que informam tal maior de pensadores liberais que, por uma razão ou por outra, reconhe-
raciocínio prático e a teoria e a prática da justiça nesta comunidade não cem que sua teoria e sua prática situam-se além de uma tradiçáo fundada
são neutros com relação a teorias rivais e conflitantes do bem humano. e baseada em dados contingentes. Essas estão, de fato, em conflito com
Onde são vigentes, elas impõem uma concepção particular da vida boa, outras tradições opostas e, como o fazem outras tradições, reivindicam
do raciocínio prático e da justiça sobre os que voluntária ou o direito de adesão universal, porém, são incapazes de se evadir da
involuntariamente aceitam os procedimentos liberais e os termos liberais condição de serem, também elas, uma tradição. Até mesmo isso, entretanto,
de debate. O supremo bem do liberalismo é a manutenção continuada pode ser reconhecido sem qualquer inconsistência e tem sido reconhecido
da ordem social e política liberal, nada mais, nada menos. por escritores liberais como Rawls, Rorty e Stout.
372 O liberalismo transformado em tradição O liberalismo transformado em tradição 373

O fato de o liberalismo não fornecer uma base neutra independente porque, juntamente com o diagnóstico, ofereceram suas próprias solu-
da tradição, a partir da qual um veredicto possa ser pronunciado sobre ções terapêuticas. E, consequentemente, na ordem social e cultural do
as asserções opostas de tradições conflitantes, no que se refere à liberalismo, de maneira nada surpreendente, tem havido uma preocupa-
racionalidade prática e à justiça, mas acabar por revelar-se como apenas ção com a terapêutica, com os meios de se curar o eu dividido (ver P.
mais uma tradição com suas concepções altamente contestiíveis de ra- Rieff, The Triumph of the Therapeutic, Londres, 1966). Além disso, o
cionalidade prática e justiça, não implica, naturalmente, que tal base próprio Lacan sempre enfatizou sua disputa com Aristóteles (Encore,
neutra não exista. E é claro que não pode haver nenhum argumento Paris, 1973) e sua dívida para com liberais como Kant e Sade ("Kant
sólido a priori que demonstre que isso é impossível. Entretanto, é avec Sade", Écrits, Paris, 1966), de um modo que deveria nos fazer
igualmente claro que o liberalismo é a corrente mais forte a fornecer lembrar que essa questão da unidade e da divisão do eu, de como ela
tal base até então na história da humanidade, ou que pode vir a surgir deve ser caracterizada e como se deve lidar com ela na vida prática, s e
num futuro previsível. O fato de o liberalismo falhar a esse respeito, é que se deve fazê-lo, surge para todas as tradições que foram discu-
consequentemente, constitui a razão mais forte que podemos ter para tidas aqui, não apenas para o liberalismo. No entanto, ela é um pro-
afirmar que tal base neutra não existe, que não é possível recorrer à blema para o liberalismo.
racionalidade-prática-em-si ou à justiça-em-si, às quais todas as pes- De modo semelhante, o problema do bem comum que surge para o
soas racionais seriam, devido à sua própria racionalidade, constrangidas liberalismo tem seu análogo em, pelo menos, algumas outras tradições.
a aderir. Há, ao contrário, a racionalidade-prática-desta-ou-daquela- Sua formulação recente mais convincente foi feita por Robert A. Dahl,
tradição e a justiça-desta-ou-daquela-tradição. Dilemmas of Pluralist Democracy (New Haven, 1982). Naquilo que
O liberalismo, como todas as outras tradições morais, intelectuais e Dahl chama de democracias pluralistas, que são o que eu chamei de
sociais minimamente complexas, tem sua própria problemática interna, ordens políticas liberais, os indivíduos perseguem uma série de bens,
suas próprias questões cujas soluções se compromete a buscar, através associando-se em grupos, a fim de alcançar fins particulares e de pro-
de seus próprios padrões. Uma vez que, em seus próprios debates internos, mover formas particulares de atividade. Nenhum dos bens buscados
assim como em seus debates com tradições opostas, o sucesso ou o dessa forma pode ser tratado como sobrepujando as alegações de qualquer
fracasso do liberalismo em formular e resolver seus próprios problemas outro. Entretanto, se o próprio bem do liberalismo, o bem da comunidade
é da maior importância, assim como o sucesso ou fracasso das outras política democrática pluralista e não os bens de suas partes constituin-
tradições que consideramos, desdobrando em cada uma delas suas próprias tes, deve ser alcançado, ele deverá reivindicar uma adesão que se
problemáticas internas, é igualmente importante, vale a pena mencio- sobreponha e mesmo que se imponha as outras. Em outras palavras,
nar, dois problemas particularmente fundamentais do liberalismo, o do que boas razões poderia um indivíduo encontrar para se pôr a serviço
eu liberal e o do bem comum na ordem social liberal. do bem público e não de outros bens? Dahl oferece uma concepção
penetrante e pormenorizada da "extrema vulnerabilidade da virtude cívica
A formulação clássica de ambos os problemas foi feita por Diderot
individualista" e discute possíveis soluções (op. cit., cap. 6 e 7), mas,
em Le Neveu de Rameau, mas ambos também sofreram vigorosas
reformulações contemporâneas. O problema do eu na sociedade liberal como ele mesmo enfatiza, os problemas criados pelas diversas formas
surge do fato de que cada indivíduo deve formular e expressar, para si desse tipo de ordem política, e a tarefa de institucionalizar quaisquer
e para os outros, um esquema ordenado de preferências. Cada indivíduo soluções propostas, enfrentariam as mesmas questões geradas pelos
deve apresentar-se como uma vontade singular, bem ordenada. Mas o problemas.
que ocorre se tal forma de apresentação sempre exige que a ruptura e Ao enfatizar que os problemas enfrentados pelo liberalismo estão
o conflito interiores sejam dissimulados e reprimidos e que uma uni- também presentes em outras tradições, devo fazer a ressalva de que o
dade de apresentação falsa e psicologicamente incapacitadora seja, fato de essas tradições conseguirem lidar com esses problemas comuns
consequentemente, exigida pela ordem liberal?
não lhes proporciona um padrão neutro em cujos termos suas respec-
Aqueles que melhor identificaram o tipo relevante de ruptura e conflito tivas realizações possam ser avaliadas. Alguns problemas são realmente
interiores, tais como Freud e Jacques Lacan, frequentemente, nas suas comuns. Mas a importância de cada problema particular varia de tra-
concepções, não aparecem como ameaças para a visão liberal do eu dição para tradição, assim como as conseqüências de não se conseguir
374 O liberalismo transformado em tradiçdo

chegar a uma solução. Além disso, o que se considera solução satisfa-


tória e os padrões através dos quais diferentes soluções são avaliadas
também diferem radicalmente de tradição para tradição. Portanto, mais
uma vez, toda esperança de se descobrir padrões de julgamento inde-
pendentes da tradição revela-se ilusória. Capítulo XVIII
Pode muito bem parecer que, dessa constatação, decorre necessari-
amente que nenhuma tradição possa pretender ser racionalmente supe-
rior a qualquer outra. Pois cada tradiçáo tem sua própria visão interna
sobre em que consiste a superioridade racional quanto a tópicos tais
como a racionalidade prática e a justiça, e seus adeptos sempre jul-
garão segundo essa visão. Se isso é verdade, duas outras conclusões
parecem se impor. A primeira é que, num nível fundamental, não pode
haver nenhum debate racional entre tradições, por oposição ao debate
interno a cada uma delas. Os adeptos de tendências contrárias numa
mesma tradição podem ainda compartilhar o suficiente em termos de
crenças fundamentais para poderem conduzir um tal debate, mas os Este livro apresentou o esboço de uma história narrativa de três
protagonistas de tradições rivais ver-se-ão impedidos, em níveis funda- tradições de pesquisa sobre o que são a racionalidade prática e a justiça,
mentais, não apenas de justificar suas visões aos membros de outras e, além disso, o reconhecimento da necessidade de escrever a história
tradições, mas até mesmo de aprender com eles sobre como modificar narrativa de uma quarta tradiçáo, a do liberalismo. Todas essas quatro
sua própria tradição de modo radical. tradiçúes são e foram, necessariamente, mais do que tradições de pesquisa
intelectual. Em cada uma delas, a pesquisa intelectual foi, ou é, parte
Entretanto, se isso é verdade, uma segunda conclusão parece seguir. da elaboração de um modo de vida social e moral do qual a própria
Visto que cada tradiçáo estruturará seu próprio ponto de vista nos pesquisa intelectual foi parte integrante, e em cada uma delas as for-
termos de seus próprios conceitos idiossincráticos, e visto que náo é mas dessa vida estavam incorporadas, em maior ou menor grau de
possível nenhuma correçáo fundamental de seu esquema conceitual a imperfeição, às instituições sociais e políticas, que também extraem
partir de um ponto de vista externo, pode parecer que cada tradição sua vida de outras fontes. Desse modo, a tradição aristotélica emergiu
deve desenvolver seu próprio esquema de um modo que irá, muito da vida reflexiva e retórica da pblis e do ensinamento dialético da
provavelmente, impedir até mesmo a tradução de uma tradição para Academia e do Liceu; assim, também, a tradição agostiniana floresceu
outra. Portanto, pode parecer que a comunicação entre tradiçijes será, nas casas de ordens religiosas e nas comunidades seculares que ofereceram
em alguns pontos cruciais, demasiado inadequada para que cada uma um ambiente favorável a essas ordens na sua versão inicial, e, na sua
possa até mesmo compreender a outra completamente. Um universo versão tomista, nas universidades; também a mistura escocesa de
social composto exclusivamente de tradições rivais, pode parecer, será agostinismo calvinista e aristotelismo renascentista informou a vida
um universo no qual há uma série de visões gerais conflitantes e in- das congregações e sessões das kirks, dos tribunais de direito e das
compatíveis desse mesmo universo e que estão apenas parcial e ina- universidades; o liberalismo, inicialmente repudiando a tradiçáo em
dequadamente em comunicação, cada tradição sendo incapaz de justificar nome dos princípios universais e abstratos da razáo, tornou-se um poder
suas alegações em contraposição as de suas rivais, a não ser para aquelas politicamente incorporado, cuja inabilidade em concluir seus debates
que já as aceitam. É realmente isso o que acontece? Devemos agora sobre a natureza e o contexto desses princípios universais teve o efeito
passar aos problemas levantados por essas duas conclusões aparente- não intencional de transformar o liberalismo em tradiçáo.
mente ameaçadoras.
Essas tradições, naturalmente, diferem entre si sobre muito mais do
que suas concepções conflitantes de racionalidade prática e justiça:
elas diferem nos catálogos de virtudes, nas concepções do eu e nas
376 A racionalidade das tradições A racionalidade das tradiçdes 377

cosmologias metafísicas. Elas também diferem no modo como, em cada imagens e textos. Considerações exigidas no interior de uma tradição
uma delas, se chegou às concepções de racionalidade prática e justiça: s6 podem ser ignoradas, pelos que conduzem a pesquisa ou o debate,
na tradição aristotélica, através dos empreendimentos dialétiws sucessivos em outra, à custa de, segundo seus próprios padrões, excluir boas razões
de Sócrates, Platão, Aristóteles e Sto. Tomás; na tradição agostiniana, relevantes para crer ou descrer em algo, ou para agir de uma forma e
através da obediência à autoridade divina, revelada nas Escrituras, mediada não de outra. Entretanto, em outras áreas, o que se afirma ou pesquisa
pelo pensamento neoplatônico; na tradição escocesa, é através da re- na primeira tradição pode não ter nenhum equivalente na Última. E nas
futação de seus predecessores, argumentando a partir das premissas iíreas onde há questões ou assuntos comuns a mais de uma tradição,
que eles tinham aceito, que Hume propõe sua concepção; e, no liberalismo, uma dessas tradições pode estruturar suas teses através de conceitos
uma sucessão de wncepções ressoantes da justiça continuam num debate tais que impliquem necessariamente a falsidade das teses sustentadas
que se tornou inconclusivo, em parte, devido à visão da racionalidade por uma ou mais tradições, embora, ao mesmo tempo, não exista ne-
prática que a acompanha. nhum padrão comum, ou só existam padrões insuficientes, para que se
possa julgar os pontos de vista adversários. A incompatibilidade e a
Além disso, essas tradições têm histórias muito diferentes, no que incomensurabilidade lógicas podem, ambas, estar presentes.
se refere às suas relações umas com as outras. Adeptos da tradição
aristotélica discutem entre si sobre se ela é ou não necessariamente A incompatibilidade lógica, naturalmente, exige que em algum nível
antagônica 2 agostiniana. E os agostinianos dissentem no mesmo pon- de caracterização, cada tradição identifique aquilo em relação a que ela
to. Ambos, os aristotélicos e os agostinianos, se consideram necessa- mantém sua tese, de modo que os seus adeptos e os de sua adversária
riamente contrários a Hume e, embora em bases diferentes, também ao possam reconhecer que todos estão apresentando asserções sobre um
liberalismo. E o liberalismo teve de negar algumas das asserções de único e mesmo assunto. Mas, mesmo assim, cada uma pode, natural-
todas as outras principais tradições. Portanto, a história narrativa de mente, ter seus próprios padrões particulares através dos quais julgam
cada uma dessas tradições implica uma narrativa da pesquisa e do o que deve ser considerado Único e o mesmo, no assunto em questão.
debate dentro de uma tradição e também uma narrativa do debate e da Assim, duas tradições podem diferir sobre os critérios a aplicar na
discordância entre uma tradição e suas adversárias, debates e discordâncias determinação do âmbito dos casos nos quais o conceito de justiça tem
que definem pormenorizadamente os diversos tipos de relações antagô- aplicaçáo, embora cada uma, nos termos de seus próprios padrões,
nicas. Entretanto, é justamente nesse ponto que o desdobramento da reconheça que, em alguns desses casos, pelo menos, os adeptos das
argumentação suscita questões cruciais. outras tradições estão aplicando um conceito de justiça que, se apli-
cável, exclui a aplicação do seu próprio conceito.
A conclusão a que a argumentação tem levado até agora é que, a
partir de debates, conflitos e da pesquisa de tradições socialmente Portanto, Hume e Rawls concordam em excluir a possibilidade de
encarnadas e historicamente contingentes, as disputas referentes à aplicação de qualquer conceito aristotélico de merecimento na estrutu-
racionalidade prática e à justiça são propostas, modificadas, abandona- ração das regras de justiça, ao mesmo tempo que discordam entre si
das ou substituídas, mas não há nenhum outro modo de se realizar essa sobre se um certo tipo de igualdade é exigido pela justiça. Assim, a
formulação, elaboração, justificação racional e critica das concepções compreensão de Aristóteles das ações pelas quais alguém pode ser
da racionalidade prática e da justiça, a não ser a partir de uma tradição considerado responsável exclui qualquer aplicaçáo da concepção
particular, através do diálogo, da cooperação e do conflito entre aqueles agostiniana de vontade. Cada tradição pode, a cada estágio de seu
que habitam a mesma tradição. Não há nenhuma base, nenhum lugar desenvolvimento, fornecer justificação racional para suas teses funda-
para a pesquisa, nenhum modo de se avançar, avaliar, aceitar e rejeitar mentais, em seus próprios termos, empregando os conceitos e padrões
argumentações raciocinadas que não seja fornecido por uma ou outra pelos quais se define, mas não há um conjunto de padrões independentes
tradição particular. de justificação racional através dos quais as questões entre tradições
adversárias possam ser decididas.
Isso não implica, necessariamente, que o que se diz numa tradição
não possa ser ouvido por outra. Tradições que diferem radicalmente Não é que tradições adversárias não compartilhem alguns padrões.
sobre certos assuntos podem, quanto a outros, compartilhar crenças, Todas as tradições com as quais lidamos aqui concordam em atribuir
378 A racionalidade das nadições A racionalidade das tradições 379

alguma autoridade à lógica, na teoria e na prática. Se assim não fosse, A solução, segundo a posição perspectivista, é retirar a atribuição
seus adeptos não poderiam discordar como discordam. Mas os pontos de verdade e falsidade das teses individuais e dos corpos de crenças
em que concordam são insuficientes para resolver suas discordâncias. sistemáticas, dos quais tais teses são partes constitutivas, pelo menos
Conseqüentemente, pode parecer que enfrentamos as acepções opostas no sentido em que 'verdadeiro' e 'falso' têm sido compreendidos até
e conflitantes de uma série de tradições, no que se refere a nossa agora na prática de tais tradições. Em vez de interpretar as tradições
compreensão da racionalidade prática e da justiça, entre as quais nos rivais como modos mutuamente exclusivos e incompatíveis de com-
é impossível encontrar boas razões para optar. Cada uma tem seus preender o mesmo mundo, ou o mesmo assunto, devemos compreendê-
próprios padrões de raciocínio, suas próprias crenças fundamentais. las como fornecendo perspectivas diferentes e complementares de abordar
Oferecer um tipo de razão, recorrer a um grupo de crenças fundamen- as realidades sobre as quais nos falam.
tais implicará necessariamente assumir o ponto de vista de uma tradi- A s objeções relativista e perspectivista compartilham algumas
ção particular. Mas se não fizermos tal suposição, não teremos nenhuma premissas e são frequentemente apresentadas juntas, como partes de
boa razão para dar mais peso às alegações propostas por uma tradição uma única argumentação. Cada uma delas tem mais de uma versão, e
do que às propostas por outra. nenhuma delas foi originalmente elaborada nos termos de uma crítica
às reivindicações da verdade e da racionalidade das tradições. Mas,
Esse tipo de argumentação já foi desenvolvido em favor da con- consideradas dessa forma, elas não perdem nada da sua força. En-
clusão de que, se os únicos padrões disponíveis de racionalidade são tretanto, vou argumentar que s l o fundamentalmente mal concebidas e
propostos por tradições e internamente a elas, nenhuma disputa entre mal direcionadas. Sugiro que seu poder aparente deriva da inversão
tradições adversárias é passível de ser decidida racionalmente. Afirmar que fazem de certas posições fundamentais do Iluminismo, referentes
ou concluir isto e não aquilo pode ser racional relativamente aos pa- à verdade e à racionalidade. Enquanto os pensadores do Iluminismo
drões de uma tradição particular, não racional em si. Não pode haver insistiam num tipo particular de visão da verdade e da racionalidade,
racionalidade como tal. Todo conjunto de padrões, toda tradição que uma visão na qual a verdade é garantida pelo método racional e pelo
expressa um conjunto de padrões, tem tanto direito de reivindicar nossa recurso a princípios inegáveis por qualquer pessoa plenamente reflexiva
adesão como qualquer outro. Chamemos esta posição de 'objeção e racional, os protagonistas do relativismo e do perspectivismo, do p6s-
relativista', por oposição a um segundo tipo de objeção que chamare- Iluminismo, alegam que, se as concepções iluministas da verdade e da
mos 'perpectivista'. racionalidade não podem ser sustentadas, a sua é a única alternativa
possível.
A objeção relativista baseia-se na negação de que o debate racional
entre tradições adversárias, assim como a escolha racional entre elas, O relativismo e o perspectivismo pós-iluministas são, portanto, o
contraponto negativo do Iluminismo, sua imagem especular invertida.
seja possível; a objeção perspectivista questiona a possibilidade de se
Onde o Iluminismo invocava os argumentos de Kant e Bentham, os
reivindicar a verdade a partir de qualquer tradição. Pois, se há uma teóricos pós-iluministas invocam os ataques de Nietzsche contra Kant
multiplicidade de tradições adversárias, cada uma com seus próprios e Bentham. Conseqüentemente, é compreensível que o que era invisível
modos internos, característicos, de justificação racional, esse próprio aos pensadores do Iluminismo seja igualmente invisível aos relativistas
fato implica que nenhuma tradição pode oferecer às pessoas que não e perspectivistas pós-iluministas, que se consideram inimigos d o
aderiram a ela boas razões para excluir as teses de seus adversários. Iluminismo, enquanto, de fato, são, em grande medida, e sem o saber,
Entretanto, se isso for verdade, nenhuma tradição tem o direito de se seus herdeiros. O que nenhum deles era ou é capaz de reconhecer é o
arrogar exclusividade; nenhuma tradição pode negar legitimidade a suas tipo de racionalidade possuída pelas tradições. Em parte, isso ocorreu
adversárias. O que parecia exigir que tradições rivais exluíssem e negassem devido à oposição à tradição como inerentemente obscurantista, encon-
tal legitimidade era a crença na incompatibilidade lógica das teses trada entre os kantianos e os benthamianos, os neokantianos e os
afirmadas e negadas por tradições rivais, uma crença que expressava O utilitaristas posteriores, por um lado, e entre os nietzschianos e os pós-
reconhecimento de que, se as teses de uma tradição eram verdadejras, nietzschianos, por outro. Mas, em parte, a invisibilidade da racionalidade
logo, pelo menos algumas das teses afirmadas por suas rivais eram da tradição deveu-se à falta de exposições, sem falar em defesas, dessa
falsas. racionalidade.
380 A racionalidade das tradições A racionalidade das tradições 38 1

Sobre esse tema, e sobre muitos outros, Burke foi um agente que textos e vozes. Bardos, sacerdotes, profetas, reis e, ocasionalmente,
causou muitos danos. Pois atribuíu "sabedoria sem reflexão" às tra- bobos e bufões serão todos ouvidos. Todas essas comunidades estão
dições em boa ordem, a ordem, segundo supunha, significando seguir sempre, em maior ou menor grau, em estado de mudança. Quando
a natureza (Reflections on the Revolution in France, ed. C . C . 07Brien, pessoas educadas nas culturas das sociedades da modemidade imperialista
Harmondsworth, 1982, 129). De modo que não se atribui lugar à reflexão, disseram ter descoberto sociedades ou culturas chamadas primitivas
à teorização racional, como um trabalho da tradição. E um teórico da sem mudanças, nas quais a repetição, e não a transformação, governa,
tradição muito mais importante foi geralmente ignorado, tanto pelo elas estavam enganadas, em parte, pela sua compreensão das afirma-
Iluminismo como pelos teóricos pós-iluministas, porque a tradição tivas feitas por membros dessas sociedades de que eles obedeciam aos
particular na qual trabalhou, e de cujo ponto de vista apresentou sua ditames de hábitos imemoriais, e, em parte, pela sua própria concepção
teorização, era uma tradição teológica. Estou falando, naturalmente, de simplista e anacrônica do que significa a mudança social e cultural.
John Henry Newman, cuja concepção de tradição foi sucessivamente O que faz certa comunidade abandonar um primeiro estágio, no
desenvolvida em The Arians of the Fourth Century (edição revista, qual as crenças, asserções, textos e pessoas considerados autoritativos
Londres, 1871) e An Essay on the Development of Christian Doctrine são aceitos sem questionamento, ou pelo menos sem um questionamento
(edição revista, Londres, 1878). Mas se formos estender a concepção sistemático, pode ser um ou mais dentre vários tipos de acontecimentos.
de Newman da tradição particular do cristianismo católico às tradições Textos ou sentenças de autoridade podem ser revelados como suscetíveis
racionais em geral, num contexto filosófico muito diferente de qualquer de interpretações alternativas e incompatíveis, que prescrevem, talvez,
contexto imaginado por Newman, serão necessárias tantas adições e ações alternativas e incompatíveis, ao serem efetivamente interpreta-
adaptações que parece melhor proceder independentemente, tendo dos dessa forma. Incoerências no sistema de crenças estabelecido podem
primeiramente reconhecido um imenso débito para com ele. se tornar evidentes. O enfrentamento de novas situações, que geram
O que devo fazer, portanto, é fornecer uma concepção da racionali- novas questões, pode revelar, nas práticas e crenças estabelecidas, uma
dade pressuposta por e implícita na prática das tradições de pesquisa, falta de recursos para oferecer respostas a essas novas questões ou para
de cuja história tenho me ocupado, apta a enfrentar as objeções suscitadas justificá-las. A fusão de duas comunidades anteriormente separadas,
pelo relativismo e pelo perspectivismo. Na ausência de tal concepção, cada um com suas próprias instituições, práticas e crenças bem-
a questão de como devem ser avaliadas as asserções opstas, feitas por estabelecidas, através da migração ou da conquista, pode abrir novas
tradições diferentes, no que se refere à racionalidade prática e à justiça, possibilidades alternativas e exigir mais do que os meios de avaliação
ficaria sem resposta, e, na falta de uma resposta do ponto de vista : existentes são capazes de fornecer.
dessas próprias tradições, o relativismo e/ou o perspectivismo poderiam As reações que os habitantes de uma comunidade particular apre-
muito bem parecer prevalecer. Observemos que as bases para uma resposta sentam, em face de tais estímulos para a reformulação de suas crenças,
ao relativismo e ao perspectivismo devem ser encontradas, não numa de suas práticas ou de ambas, dependerão do estoque de razões e de
teoria da racionalidade, tal como explicitamente articulada e proposta habilidades de questionamento e de raciocínio que já possuem, mas
numa ou mais das tradições com as quais lidamos aqui, mas numa também de sua inventividade. E essas, por sua vez, determinarão o
teoria expressa nas suas práticas de pesquisa e por elas pressuposta, âmbito possível de resultados a que levam a rejeição, a reparação e a
embora nunca completamente desenvolvida, embora esboços ou partes reformulação de crenças, a reavaliação das autoridades, a reinterpre-
dela possam, certamente, ser encontrados em vários autores, princi- tação dos textos, a emergência de novas formas de autoridade e a
palmente em Newman. produção de novos textos. Uma vez que as crenças são expressas através
A racionalidade de uma pesquisa constituída pela tradição e constitutiva de rituais e dramas rituais, máscaras e modos de vestir, através dos
dela é, essencialmente, uma questão do tipo de progresso que ela faz, modos nos quais as casas são construídas e as vilas e cidades dispostas,
através de vários estágios bem definidos. Toda forma de pesquisa começa e, naturalmente, através das ações em geral, as refonnulações das crenças
1 não devem ser pensadas apenas em termos intelectuais; ou melhor, o
a partir de uma condição de pura contingência histórica, de crenças,
r
instituições e práticas de uma comunidade particular que constituem intelecto não deve ser pensado como uma mente cartesiana ou como
um dado. Em tal comunidade, a autoridade terá sido conferida a certos ! um cérebro materialista, mas como um intelecto através do qual indivíduos
D
A racionalidade das tradições A racionalidade das tradições 383

pensantes relacionam-se uns com os outros e com os objetos naturais A primeira questáo a ser levantada é a seguinte: o que, exatamente,
e sociais, tal como eles se lhes apresentam. corresponde ou deixa de corresponder a quê? Afirmações faladas ou
escritas, certamente, mas essas apenas enquanto expressões secundári-
Podemos agora contrastar três estágios no desenvolvimento inicial as do pensamento inteligente que é ou náo adequado, nas suas relações
de uma tradiçáo: um primeiro, no qual as crenças, textos e autoridades com seus objetos, às realidades do mundo social e racional. Neste
relevantes ainda náo foram questionados; um segundo, no qual vários ponto, é importante lembrar que a concepçáo da mente, pressuposta,
tipos de inadequações foram identificadas, mas não ainda soluciona- não é uma concepçáo cartesiana. É, antes, uma concepçáo da mente
das; e um terceiro, no qual a reação a tais inadequações resultou numa como atividade, como enfrentamento com o mundo natural e social em
série de reformulações, reavaliações, novas formulações e avaliações atividades tais como a identificaçáo, a reidentificação, a coleçáo, a
concebidas, a fim de solucionar as inadequações e superar limitações. separação, a classificaçáo e a nomeaçáo, e tudo isso através de ações
Onde uma pessoa ou um texto recebem uma autoridade que deriva do tais como tocar, prender, apontar, destruir, construir, chamar, responder
que se considera sua relaçáo com o divino, essa autoridade sagrada, ao e assim por diante. A mente é adequada a seus objetos à medida que
longo desse processo, será isenta de repúdio, embora suas afirmações as expectativas que ela cria, baseada nessas atividades, náo estão su-
possam certamente estar sujeitas à reinterpretaçáo. Estar assim isento jeitas à frustraçáo, e a lembrança na qual se envolve torna-a capaz de
é, de fato, uma marca do que é considerado sagrado. voltar e recuperar o que ela anteriormente encontrara, quer os próprios
O desenvolvimento de uma tradiçáo deve ser distinguido da trans- objetos estejam ainda presentes ou náo. A mente, sendo informada
formaçáo gradual, a que todo conjunto de crenças está exposto, pelo como resultado de seu envolvimento com os objetos, é informada por
seu caráter sistemático e deliberado. Qualquer fenômeno que possa ser ambas as imagens que sáo ou náo - para os propósitos da mente -
considerado uma tradiçáo de pesquisa é marcado pela teorizaçáo, desde representações adequadas de objetos ou tipos de objetos particulares, e
o estágio mais inicial. E o desenvolvimento de uma tradiçáo de pesqui- por conceitos que sáo ou náo representações adequadas das formas em
sa deve também ser distinguido das mudanças gerais abruptas nas suas cujos termos os objetos sáo apreendidos e classificados. A represen-
crenças, que ocorrem quando, por exemplo, toda uma comunidade passa tação como tal náo é uma figuraçáo, mas uma reapresentaçáo. As fi-
por um processo de conversáo em massa, embora tal conversáo possa guras são apenas um modo de se reapresentar, e sua adequaçáo ou
ser o ponto originador de uma tal tradiçáo. Os modos de continuidade inadequaçáo em funcionar como tal é sempre relativa a algum propósito
de uma tradiçáo racional diferem dos modos do primeiro, suas rupturas específico da mente.
dos modos do segundo. Algum núcleo de crença comum, constitutivo Uma das grandes intuições originais das pesquisas constituídas pela
da adesão à tradiçáo, tem de sobreviver a cada ruptura. tradiçáo é que as falsas crenças e os falsos juízos representam um
Quando se alcança o terceiro estágio de desenvolvimento, os mem- fracasso da mente, e náo de seus objetos. É a mente que necessita de
bros da comunidade que aceitaram as crenças da tradiçáo na sua nova correção. As realidades que a mente encontra revelam-se como são,
apresentadas, manifestas, reveladas. Portanto, a concepçáo mais primi-
forma - e essas crenças podem informar apenas uma parte limitada da
tiva da verdade é a da manifestabilidade dos objetos que se apresentam
vida da comunidade como um todo, ou ser tais que se refiram à sua
à mente; e é quando a mente náo consegue reapresentar essa manifes-
estrutura geral e, de fato, sua relaçáo com o universo -tornam-se capazes tabilidade que a falsidade, a inadequaçáo da mente com relaçáo aos
de contrastar suas novas crenças com as antigas. Entre aquelas crenças seus objetos, aparece.
antigas e o mundo tal como eles agora o compreendem, deve-se per-
ceber uma discrepância radical. É a essa falta de correspondência entre Essa falsidade 6 reconhecida retrospectivamente como uma inade-
o que a mente entáo julgava e acreditava e a realidade percebida, quaçáo passada, quando a discrepância entre as crenças de um estágio
classificada e compreendida agora, que os membros da comunidade se anterior de uma tradiçáo de pesquisa são contrastadas com o mundo de
referem, quando os julgamentos e crenças anteriores sáo considerados coisas e pessoas, tal como passou a ser compreendido num estágio
falsos. A versáo original e mais elementar da teoria da verdade enquanto posterior. Portanto, a correspondência, ou sua falta, torna-se um as-
correspondência é uma versáo na qual ela é aplicada retrospectivamente pecto de uma complexa concepçáo em desenvolvimento da verdade. A
na forma de uma teoria da falsidade enquanto correspondência. relaçáo de correspondência ou de falta de correspondência entre a mente
384 A racionalidade das tradições
A racionalidade das tradições 385

seja fornecida, de que desenvolvimentos possam ocorrer na pesquisa


e os objetos encontra expressão em juízos, mas não são os próprios
juízos que correspondem aos objetos ou, de fato, a nenhuma outra racional. O teste da verdade no presente, portanto, é sempre reunir
tantas questões e tantas objeções fortes, quantas for possível; o que
coisa. Podemos, efetivamente, dizer sobre um juízo falso que as coisas
pode ser justificadamente considerado verdadeiro é aquilo que resiste
não são como os juízos declaram ser, ou sobre um juízo verdadeiro que
suficientemente a tais questões e objeçóes dialeticamente postas. No
a pessoa que o profere diz que o-que-é é e o-que-não-é não é. Mas não
há dois itens que podem ser distinguidos, um juízo, por um lado, e que consiste tal suficiência? Isso também é uma questão para a qual
aquilo que é retratado no juízo, por outro lado, entre os quais uma devem-se produzir respostas e para a qual respostas rivais e conflitan-
relação de correspondência existe ou não. tes podem muito bem aparecer. E essas competirão racionalmente entre
si, apenas à medida que forem dialeticamente testadas, a fim de se
Nas versões modernas da frequentemente considerada teoria da verdade descobrir qual é a melhor resposta a ser proposta até então.
como adequação, o candidato mais comum àquilo que corresponde a
um juízo, desse modo, é um fato. Mas os fatos, assim como os telescópios Uma tradição que alcança este ponto de desenvolvimento terá se
e as perucas para os cavalheiros, foram uma invenção do século XVII. tornado, em maior ou menor grau, uma forma de pesquisa, e deverá ter
No século XVI e antes, 'fato', era geralmente uma tradução do latim institucionalizado e regulado, pelo menos até certo ponto, seus méto-
'factum', um feito, uma ação, e às vezes, no latim escolástico, um dos de pesquisa. Ela deverá ter reconhecido virtudes intelectuais, e terá
evento ou uma ocasião. Foi apenas no século XVII que 'fato' foi usado, questões não-respondidas sobre a relação entre tais virtudes e as virtu-
pela primeira vez, do modo como filósofos posteriores, tais como Russell, des de caráter. Sobre essas e outras questões, conflitos desenvolver-se-
Wittgenstein e Ramsey o usariam. Naturalmente, é e sempre foi in- ão, respostas conflitantes serão propostas e aceitas ou rejeitadas. Em
ofensivo, filosoficamente e em outros sentidos, usar a palavra 'fato' algum momento pode-se descobrir, numa tradição em desenvolvimento,
para se referir àquilo que um juízo afirma. O que não é e não foi que alguns dos mesmos problemas e questões - reconhecidos como os
inofensivo, mas altamente enganador, foi conceber um domínio dos mesmos à luz dos padrões internos dessa tradição particular - estão
fatos independente do juízo ou de qualquer outra forma de expressão sendo debatidos numa outra tradição, e áreas definidas de concordância
lingüística, de modo que juízos e declarações ou sentenças pudessem ou de discordância, com uma tal outra tradição, podem se desenvolver.
ser comparados a fatos, a verdade ou a falsidade consistindo na suposta Além disso, conflitos entre pesquisas constituídas por tradições, e in-
relação entre tais itens contrapostos. Esse tipo de teoria da verdade ternamente a elas, terão alguma relação com os outros conflitos presen-
como adequação entrou na cena filosófica, comparativamente, apenas tes numa comunidade portadora de tradições.
há pouco tempo e foi conclusivamente refutada, tanto quanto qualquer Caracteristicamente, chega um tempo na história das pesquisas
teoria poderia sê-10 (ver, por exemplo, P. F. Strawson, "Truth", Logico- constituídas pela tradição em que aqueles envolvidos podem considerar
Linguistic Papers, Londres, 1971). É um grande erro reconhecê-lo em oportuno ou necessário conceber uma teoria de suas próprias ativida-
formulações mais antigas referentes à verdade, tais como "adequatio des de pesquisa. O tipo de teoria que será então desenvolvido variará,
mentis a d rem", assim como na correspondência que estou atribuindo naturalmente, de tradição pàra tradição. Ao enfrentar a multiplicidade
à concepção da verdade, desenvolvida na história inicial do desen- de usos do termo "verdadeiro", os adeptos de um tipo de tradição
volvimento das tradições. podem reagir construindo uma concepção anal6gica desses usos e de
Aqueles que alcançam um certo estágio nesse desenvolvimento são, sua unidade, como fez Sto. Tomás, apresentando, no modo como realizou
então, capazes de olhar para trás e identificar sua própria inadequação sua tarefa, a influência do tratamento dado por Aristóteles à multiplicidade
intelectual prévia, ou a inadequação intelectual de seus predecessores, dos USOS do termo "bom". Contrariamente, a mesma multiplicidade
comparando o que eles agora julgam ser o mundo, ou, pelo menos, uma pode evocar uma tentativa de identificar uma marca única, talvez
parte dele, com o que então julgavam que fosse. Reivindicar a verdade complexa, da verdade. Descartes, que deve ser compreendido como um
para o esquema mental atual de alguém, e para os juízos que consti- seguidor tardio da tradição agostiniana, assim como alguém que tentou
tuem sua expressão, significa alegar que esse tipo de inadequaçáo, esse refundar a filosofia de novo, fez exatamente isso, ao recorrer à clareza
tipo de discrepância, nunca aparecerá em nenhuma situação futura possível, e à distinção como marcas da verdade. E Hume concluiu que não poderia
independentemente de quão penetrante seja a pesquisa, de quanta evidência encontrar nenhuma marca confiável da verdade (Tratado I, 4, 7).
386 A racionalidade das tradições A racionalidade das tradições 387

Outros elementos das teorias da pesquisa racional, propostos dessa tempo, dialético e histórico. Eles são justificados à medida que, na
forma, também variarão de tradição para tradição. E serão, em parte, história dessa tradição, eles se mostraram superiores aos seus predecessores
essas diferenças que resultam em outras conclusões distintas e opostas, históricos, sobrevivendo ao processo de questionamento dialético. Portanto,
no que se refere a pesquisas substanciais, inclusive de tópicos tais tais primeiros princípios não são auto-suficientes, primeiros princípios
como os da justiça e da racionalidade prática. Entretanto, até certo epistemológicos autojustificáveis. Eles podem, de fato, ser considera-
ponto, à medida que uma tradição de pesquisa racional é efetivamente dos necessários e evidentes, mas sua necessidade e sua evidência serão
uma tradição de pesquisa racional, ela tenderá a reconhecer o que caracterizáveis como tais, apenas para aqueles e por aqueles cujo
compartilha com outras tradições, e, no desenvolvimento de tais tradições, pensamento seja e s t ~ t u r a d opelo tipo de esquema conceitual do qual
padrões característicos comuns, senão universais, aparecerão. emergem, como elemento fundamental, na formulação e na reformu-
lação das teorias informadas por aquele esquema conceitual historicamente
Formas e padrões de argumentação serão desenvolvidas e exigênci-
em desenvolvimento. É esclarecedor ler o próprio Descartes, tanto nas
as para o questionamento dialético bem-sucedido serão estabelecidas.
Regras como nas Meditações, fornecendo justamente essa concepção
A forma mais fraca de argumentação, mas, apesar disso, a que tenderá de um processo de justificação dialética para seus primeiros princípios
a prevalecer na ausência de qualquer outra, será o apelo à autoridade e, ao fazê-lo, descartando a tradição de um modo extremamente tradicional,
da crença estabelecida, meramente enquanto estabelecida. A identificação levando, dessa forma, a tradição agostiniana a um ponto no qual Descartes
de incoerência na crença estabelecida sempre fornecerá uma razão para aprende dela o que ele, a partir de então, não pode reconhecer como
se investigar ainda mais, mas não será, em si mesma, uma razão conclusiva .
tendo aprendido dela. Agindo dessa forma, Descartes tomou-se o primeiro
para se rejeitar a crença estabelecida, até que algo mais adequado, cartesiano.
porque menos incoerente, seja descoberto. Em cada estágio, crenças e
juízos serão justificados, tendo como referência as crenças e os juízos Se, entretanto, naquilo de onde surge, a pesquisa constituída pela
do estágio anterior, e à medida que uma tradição se constituiu como tradição é anticartesiana, naquilo para onde se move, ela é anti-hegeliana.
uma forma bem-sucedida de pesquisa, as reivindicações de verdade, Há, de fato, implícita na racionalidade dessa pesquisa, uma concepção
nessa tradição, serão sempre, de um modo especificável, menos vulneráveis da verdade final, isto é, uma relação da mente com seus objetos que
ao questionamento e à objeção dialéticos do que suas predecessoras. seria completamente adequada, no que se refere às capacidades dessa
mente. Mas toda concepção desse estado, como um estado no qual a
A concepção de racionalidade e de verdade, enquanto expressa dessa
mente pode, por seus próprios poderes, conhecer-se como adequadamente
forma na pesquisa constituída pela tradição, é, naturalmente, marcadamente
informada, está excluída; o saber absoluto do sistema hegeliano é uma
contrária às concepções padronizadas cartesiana e hegeliana da
quimera, desse ponto de vista constituído pela tradição. Ninguém, em
racionalidade. Porque toda tradição racional, como tal, começa a partir
nenhum estágio, pode excluir a possibilidade futura de que suas crenças
da contingência e da positividade de um conjunto estabelecido de crenças,
e julgamentos presentes possam ser mostrados como sendo inadequa-
a racionalidade da tradição é, inevitavelmente, anticartesiana. Ao sis-
dos de vários modos.
tematizar e ordenar as verdades que consideram ter descoberto, os adeptos
de uma tradição podem muito bem atribuir um lugar prioritário, nas Talvez seja essa combinação de aspectos anticartesianos e anti-
estruturas de sua teorização, a certas verdades e tratá-las como primeiros hegelianos que parece conferir plausibilidade às objeções relativista e
princípios metafísicos ou práticos. Mas tais princípios deverão ter sido perspectivista. As tradições não passam no teste cartesiano de come-
justificados no processo histórico de justificação dialética. É por referência çarem a partir de verdades evidentes inatacáveis; elas não s6 começam
a tais primeiros princípios que as verdades secundárias serão justificadas, a partir da positividade contingente, mas cada uma começa de um
num corpo particular de teoria, e é também por referência a eles que, ponto diferente daquele de onde as outras começam. As tradições também
como vimos, nas teorias platônica e aristotélica do raciocínio prático, não passam no teste hegeliano de mostrarem que seu objetivo é um
os juízos práticos particulares e as próprias ações serão justificadas. estado racional final, que elas compartilham com todas as outras correntes
Mas esses próprios primeiros princípios, e, de fato, todo o corpo de de pensamento. As tradições são, sempre, até certo ponto locais, in-
teoria do qual são parte, serão compreendidos como exigindo justifi- formadas por particularidades de linguagem e de ambientes naturais e
cação. O tipo de justificação racional que eles recebem é, ao mesmo sociais, habitados por gregos ou por cidadãos da Africa romana, da
388 A racionalidade das tradições A racionalidade das tradições 389

Pérsia medieval ou por escoceses do século XVIII, que teimosamente este esquema conceitualmente enriquecido e, em alguns aspectos, radi-
se recusam a ser ou tornar-se veículos da auto-realização do Geist. Aqueles calmente novo, deve pôr fim à crise episternológica, ele deve fornecer
educados ou doutrinados a aceitar os padrões cartesianos ou hegelianos, uma solução aos problemas que se revelaram intratáveis, anteriormente,
considerarão a positividade da tradição como um sinal de arbitrariedade. de modo sistemático e coerente. Em segundo lugar, deve também fornecer
Pois toda tradição, ao que parece, buscará seu próprio caminho histórico uma explicação justamente daquilo que tornava a tradição estéril ou
específico, e tudo o que teremos no fim será um conjunto de histórias incoerente, ou ambos, antes que ela adquirisse esses novos recursos. E,
rivais independentes. em terceiro lugar, essas duas tarefas iniciais devem ser realizadas de
A resposta a essa sugestão, e, de fato, mais geralmente, ao relativismo modo a apresentar a continuidade fundamental das novas estruturas
e ao perspectivismo, deve começar pela consideração de um tipo par- conceituais e teóricas com relação às crenças comuns, em cujos termos
ticular de ocorrência na história das tradições, que ainda não foi catalogado. a tradição de pesquisa tinha se definido até então.
Entretanto, é no modo como os adeptos de uma tradição reagem a tais As teses fundamentais dessas novas estruturas teóricas e concei-
ocorrências, e no sucesso ou fracasso que se segue à sua reação, que tuais, justamente porque significativamente mais ricas e superadoras
as tradições atingem ou não sua maturidade intelectual. O tipo de das limitações das que eram fundamentais à tradição, anteriormente e
ocorrência é aquele que, em outro lugar, chamei de "crise epistemológica" no início da crise epistemológica, não poderão, de modo algum, derivar
("Epistemological Crisis, Dramatic Narrative and the Philosophy of das posições anteriores. Haverá de existir uma inovação conceitual
Science", The Monist 69, 4, 1977). Crises epistemológicas podem ocorrer imaginativa. A justificação das novas teses residirá precisamente na
na história dos indivíduos - pensadores tão diferentes quanto Agos- habilidade de realizar o que não podia ser realizado antes dessa inovação.
tinho, Descartes, Hume e Lukács nos deixaram registros de tais crises
Exemplos de tais saídas criativas bem-sucedidas para crises
- assim como na história das grupos. Mas elas podem também ser epistemológicas mais ou menos sérias, afetando uma área maior ou
crises numa tradição ou para toda uma tradição. menor da questão que uma tradição particular de pesquisa enfrentava,
Já observamos que, em toda pesquisa constituída pela tradição, em não são difíceis de encontrar, nas tradições que estudamos e em outras.
cada estágio de seu desenvolvimento, sua problemática atual é funda- O exemplo central de Newman era o modo no qual, no século IV, a
mental, aquela relação de problemas e questões não resolvidos, por definição da doutrina católica da Trindade resolveu as controvérsias
referência aos quais seus sucessos e fracassos em fazer progresso ra- oriundas de interpretações conflitantes das Escrituras, através do uso
cional, rumo a algum estágio posterior de desenvolvimento, serão de conceitos filosóficos e teológicos, cuja compreensão resultara, por
avaliados. Em qualquer momento, pode acontecer a uma pesquisa sua vez, de debates racionalmente não-resolvidos até aquele momento.
constituída pela tradição que, por seus próprios padrões de progresso, Assim, essa doutrina forneceu, à tradição agostiniana tardia, um paradigrna
ela deixe de progredir. Seus métodos de pesquisa, até então confiáveis, de como as três exigências para a solução de uma crise epistemológica
tornam-se estéreis. Os conflitos sobre respostas opostas a questões podiam ser satisfeitas. De um modo muito diferente, Sto. Tomás for-
fundamentais não podem mais ser racionalmente estabelecidos. Além neceu uma estrutura teórica e conceitual nova e mais rica, sem a qual
disso, pode, de fato, acontecer que o uso dos métodos de pesquisa e qualquer um que tivesse aderido a ambas as tradições aristotélica e
das formas de argumentação, através dos quais o progresso racional agostiniana teria necessariamente caído na incoerência, ou rejeitando
tinha sido feito até então, comece a ter o efeito de, cada vez mais, uma das duas, numa unilateralidade estéril. E, de um modo diverso,
revelar novas inadequações, incoerências até então desconhecidas, e talvez menos bem-sucedido, Reid e Stewart tentaram salvar a tradição
novos problemas, para cujas soluções não parece haver recursos ou escocesa da incoerência que a ameaçava, através da combinação de
recursos suficientes no tecido de crenças já estabelecido. premissas epistemológicas humianas com conclusões morais e metafísicas
Esse tipo de dissolução de certezas historicamente fundadas C a anti-humianas.
marca de uma crise episternológica. A solução para uma crise episte- Os mesmos padrões de crise epistemológica podem ser encontrados
mológica genuína requer a invenção ou a descoberta de novos con- em áreas bastante distintas de pesquisa: a derivação de paradoxos, feita
ceitos, e a estruturação de um novo tipo ou de novos tipos de teoria por Boltzmann, em 1890, a partir de concepções da energia térmica
que satisfaçam três exigências muito precisas. Em primeiro lugar, se estruturadas nos termos da mecânica clássica, produziu uma crise
390 A racionalidade das tradições A racionalidade das tradições 39 1

epistemológica na física que só seria resolvida pela teoria da estrutura dição de esterilidade e incoerência na qual a pesquisa caiu, seja tam-
interna do átomo de Bohr. O que esse exemplo mostra é que uma crise bém revelando ou criando novos problemas, e revelando novas falhas
epistemológica só pode ser reconhecida pelo que foi, retrospectiva- e limitações. O tempo pode passar e nenhum outro recurso ou solução
mente. Nada mais distante da verdade considerar que os físicos, em surgir.
geral, compreenderam que sua disciplina estava em crise no período
As reivindicações de verdade de uma tradição particular podem, em
entre Boltzmann e Bohr. E, no entanto, ela estava em crise, e o poder
algum momento desse processo, não mais se sustentar. E este ponto t
da mecânica quântica reside não apenas no fato de ter-se livrado das
dificuldades e incoerências que afligiam a mecânica clássica, mas tam- suficiente para mostrar que, se parte da tese relativista é que toda tra-
bém na sua habilidade de fornecer uma explicação de por que a pro- dição, uma vez que fornece seus próprios padrões de justificação raci-
blemática da mecânica clássica tendia, necessariamente, a gerar pro- onal, deve sempre ser justificada à luz desses padrões, pelo menos
blemas insolúveis, tais como o descoberto por Boltzmann. nisso, o relativista está errado. Mas, quer o relativista tenha alegado
isso ou não, uma outra possibilidade, ainda mais importante, fica agora
Ter passado por uma crise epistemológica, com sucesso, capacita os clara. Pois os adeptos de uma tradição, que está agora em estado de
adeptos de uma tradição de pesquisa a reescrever sua história de um crise fundamental e radical, podem, nesse momento, encontrar as asserçóes
modo mais profundo. E essa história de uma tradição particular fornece de uma tradição rival particular de um modo novo, talvez uma tradição
não apenas um modo de identificar as continuidades em virtude das com a qual tenham coexistido por algum tempo, talvez uma que este-
quais essa tradição de pesquisa sobreviveu e floresceu, enquanto uma jam encontrando pela primeira vez. Eles agora passam a compreender
única e mesma tradição, mas também de identificar mais exatamente a as crenças e o modo de vida dessa outra tradição, e, para fazê-lo, eles
estrutura de justificação subjacente a todas as reivindicações de verda- têm de aprender, como veremos adiante, quando discutirmos as carac-
de feitas nessa tradição, reivindicações que são diferentes e mais do terísticas lingüísticas da tradição, a língua dessa tradição como uma
que asserções de comprovação garantida. O conceito de comprovação nova e segunda língua.
garantida sempre se aplica apenas em alguma época e lugar particula-
res, com relação a padrões então vigentes em algum estágio particular Quando tiverem compreendido as crenças da outra tradição, eles
do desenvolvimento de uma tradição de pesquisa, e a alegação de que podem se sentir compelidos a reconhecer que, nesta outra tradição, é
tal afirmação é garantidamente comprovada sempre, consequentemen- possível construir, a partir de conceitos e teorias peculiares a ela, aqui-
te, tem de fazer referências explícitas a tais épocas e lugares. O conceito lo que eles foram incapazes de fornecer, a partir de seus próprios re-
de verdade, entretanto, é atemporal. Alegar que uma tese é verdadeira cursos teóricos e conceituais: uma explicação convincente e esclarecedora
significa não apenas alegar, para todas as épocas e lugares, que ela não - pelos seus próprios padrões - de por que sua própria tradição
pode ser demonstrada como incapaz de corresponder à realidade, no intelectual foi incapaz de resolver seus problemas ou recuperar sua
sentido de "correspondência" elucidado anteriormente, mas também coerência. Os padrões através dos quais eles consideram essa explicação
que a mente que expressa seu pensamento nessa tese está, de fato, convincente e esclarecedora serão os mesmos padrões através dos quais
adequada ao seu objeto. As implicações dessa alegação, feita desse consideraram sua tradição insuficiente ante a crise epistemológica. Mas
modo, a partir de uma tradição, são precisamente o que nos torna se, por um lado, esta nova explicação satisfaz duas das exigências
capazes de mostrar como a objeção relativista é mal concebida. necessárias para uma reação adequada a uma crise epistemológica numa
Toda tradição, quer ela o reconheça ou não, enfrenta a possibilidade tradição - à medida que ela, dadas as estruturas de pesquisa nessa
de que, em algum momento no futuro, irá entrar numa crise episte- tradição, tanto explica por que a crise teve de acontecer tal como
mológica, reconhecível como tal por seus próprios padrões de justifi- aconteceu, como não sofre, ela mesma, dos mesmos defeitos de inco-
cação racional, eles próprios tendo sido defendidos, até aquele mom- erência e falta de recursos, cujo reconhecimento foi o estágio inicial da
ento, como sendo os melhores que surgiram da história daquela tra- crise -, por outro lado, não consegue satisfazer a terceira exigência.
dição particular. Todas as tentativas de desenvolver os recursos imagi- A medida que deriva de uma tradição genuinamente diferente, a nova
nativos e inventivos, que os adeptos da tradição podem fornecer, po- explicação não se encontra em continuidade substancial com a história
dem falhar, seja por meramente n l o fazer nada para solucionar a con- precedente da tradição em crise.
392 A racionalidade das tradições A racionalidade das tradições 393

Nesse tipo de situação, a racionalidade da tradição exige um reco- Mas, se isso fosse verdade, não poderia haver nenhuma boa razão para
nhecimento, por parte daqueles que até então habitaram e deram sua se aderir ao ponto de vista de uma tradição qualquer, e não a outro.
adesão à tradição em crise, que a outra tradição C superior à sua, em Esse argumento pode agora ser reconhecido como falho. Antes de tudo,
racionalidade e em relação às suas reivindicações de verdade. O que a ele não C verdadeiro, e o argumento precedente mostra que não C ver-
explicação proporcionada pela outra tradição terá revelado é uma falta dade que as tradições, compreendidas como possuindo, cada uma de-
de correspondência entre as crenças dominantes de sua própria tradição las, sua própria concepção e suas próprias práticas de justificação racional,
e a realidade revelada pela explicação mais bem-sucedida, e pode muito não possam derrotar ou ser derrotadas por outras tradições. É com
bem ser a única explicação bem-sucedida, que foram capazes de desco- relação à sua adequação ou inadequação, nas reações às crises
brir. Portanto, a reivindicação de verdade para aquelas que foram até epistemológicas, que as tradições são justificadas ou não. Isso implica,
então suas crenças foi derrotada. necessariamente, que a objeção relativista valeria para um tipo de
O fato de a racionalidade, compreendida dessa forma, exigir esse pensamento autocontido, que não se tivesse desenvolvido ao ponto em
reconhecimento de fracasso com relação à verdade não implica neces- que crises epistemológicas se tornassem uma possibilidade efetiva. Mas
sariamente que haverá um reconhecimento efetivo. Quando a física não é esse o caso das tradições de pesquisa discutidas neste livro. No
medieval tardia foi derrotada, justamente dessa forma, por Galileu e que se refere a elas, portanto, a objeção relativista fracassa.
seus sucessores, não faltaram físicos que continuaram a negar tanto os O relativista pode responder a isso dizendo que, pelo menos, con-
fatos da crise epistemológica que afligiam a teoria da impulsão e a de cedi que duas ou mais tradições rivais podem se desenvolver e flores-
Galileu, quanto o sucesso de Newton em fornecer uma teoria que não
cer, durante longos períodos, sem encontrar mais do que crises episte-
apenas não sofria dos defeitos da teoria da impulsão, mas que era
mológicas menores, ou, pelo menos, tais que possam enfrentar com
capaz de fornecer os materiais para uma explicação de por que a na-
seus próprios recursos. E, quando isso ocorre, durante longos períodos,
tureza é tal que a teoria da impulsão não poderia ter evitado a descoberta
de sua própria falta de recursos e incoerência, justamente nos pontos nenhuma dessas tradições poderá enfrentar suas oponentes de modo a
nos quais esses defeitos, de fato, apareceram. A física de Galileu e derrotá-las, nem se desacreditará por sua inabilidade em resolver suas
Newton identificou os fenômenos da natureza, de modo a revelar a próprias crises. É claro que isso é verdade. Em termos históricos efe-
falta de correspondência entre o que a teoria da impulsão afirmava tivos, durante muito tempo, tradições de tipos muito diferentes, real-
sobre os fenômenos do movimento e o caráter que esses fenhmenos mente, parecem coexistir sem conseguir solucionar seus conflitos e
agora acabavam por possuir, e, ao fazê-lo, retiraram da teoria da impulsão discordâncias: podemos facilmente encontrar exemplos teológicos,
a justificação para sua reivindicação de verdade. metafísicos, morais, políticos e científicos. Mas segundo essa perspec-
tiva, pode parecer que, ao restringir-se a tais exemplos, a objeção relativista
É importante lembrar, nesse ponto, que nem todas as crises episte-
pode ainda ser mantida, pelo menos de forma moderada.
mológicas são resolvidas de modo tão satisfatório. Algumas, de fato,
não são resolvidas, e sua própria falta de solução derrota a tradição que Há, entretanto, uma questão anterior que deve ser respondida pelo
entrou em tal crise, sem, ao mesmo tempo, defender as alegações de relativista: quem está em posição de formular tal objeção? Pois a pessoa
nenhuma outra tradição. Portanto, uma tradição pode ser racionalmente que se propõe fazê-lo deve, neste momento, ou ser ela própria um habitante
desacreditada através de seus próprios padrões de racionalidade, e à de uma das duas, ou mais, tradições rivais, seguindo seus padrões de
luz desses mesmos padrões, em mais de um modo. Essas são as pos- pesquisa e justificação, e empregando-os em seu raciocínio, ou ser alguém
sibilidades que a objeção relativista não conseguiu perceber. Essa ob- fora de todas as tradições, não pertencendo a nenhuma delas. A primeira
jeção baseava-se no argumento de que, se toda tradição tem inter- alternativa nega a possibilidade do relativismo. Tal pessoa, na ausência
namente a ela seus próprios padrões de justificação racional, logo, à de uma crise epistemológica na sua tradição, não teria nenhuma boa
medida que as tradições de pesquisa são genuinamente distintas e di- razão para questionar sua adesão a ela, e todas as razões para continuar
ferentes umas das outras, não há como cada uma delas possa estabe- t sendo seu adepto. E quanto à segunda alternativa? A objeção relativista
lecer um debate racional com qualquer outra, e nenhuma tradição pode, poderia ser formulada a partir de um ponto de vista fora de toda tra-
portanto, pretender sua superioridade racional com relação às suas rivais. , dição?
394 A racionalidade das tradições A racionalidade das tradições

A conclusão do capítulo anterior foi que é uma ilusão supor que há O perspectivismo, nisso, mais uma vez, como o relativismo, é uma
uma posição neutra, um lugar da racionalidade em si, que forneça doutrina que só é possível para aqueles que se consideram de fora,
recursos racionais suficientes para a pesquisa independente de todas as descompromissados, ou melhor, atores que encarnam uma série sucessiva
tradições. Aqueles que sustentam o contrário adotam, abertamente, o de papéis temporários. De seu ponto de vista, todas as concepções da
ponto de vista de uma tradição, enganando-se a si mesmos e talvez a verdade, exceto a mais ínfima, parecem ter sido desacreditadas. E, do
outros, ao supor que a sua posição é uma posição neutra, ou, então, ponto de vista da racionalidade da pesquisa constituída pela tradição,
estão simplesmente errados. A pessoa fora de todas as tradições carece fica claro que tais pessoas estão, por sua própria posição, excluídas da
de recursos racionais suficientes para a pesquisa, e, a fortiori, para a possibilidade de possuir qualquer conceito de verdade adequado para
pesquisa sobre qual tradiçáo deve ser racionalmente preferida. Essa uma pesquisa racional sistemática. Portanto, a sua não é tanto uma
pessoa não tem os meios relevantes adequados de avaliaçáo racional, conclusão sobre a verdade, quanto uma exclusão dela, e, dessa forma,
e, portanto, não pode chegar a nenhuma conclusão bem-fundamentada, do debate racional.
incluindo a conclusão de que nenhuma tradição pode se defender con- hietzsche compreendeu isso muito bem. O perspectivista não pode
tra qualquer outra. Estar fora de todas as tradições significa ser estranho empenhar-se numa argumentação dialética com Sócrates, pois esse
à pesquisa; significa estar num estado de destituição moral e intelec- caminho trairia o que, do nosso ponto de vista, seria um envolvimento
tual, uma condição a partir da qual é impossível formular a objeção com uma tradição de pesquisa racional, e, do ponto de vista de Nietzsche,
relativista. a sujeição à tirania da razão. Não se deve discutir com Sócrates, de-
vemos ridicularizá-lo por sua feiúra e maus modos. Tal ridicularização,
O fracasso do perspectivista é camplementar ao do relativista. Como
como resposta à dialética, é imposta nos parágrafos aforísticos de Gotzen-
o relativista, o perspectivista está comprometido em manter que nenhu- Dammerung. E o uso do aforismo é instrutivo nele mesmo. Um aforismo
ma reivindicação de verdade, feita em nome de qualquer uma das tradições não é um argumento. Gilles Deleuze o chama de "um jogo de forças"
em competição, poderia derrotar as reivindicações feitas em nome de (ver "Pensée Nomade", Nietzsche aujourd'hui, Paris, 1973), algo
suas oponentes. Já vimos que isso é um erro que surge, normalmente, através do qual energia é transmitida, e não através do qual conclusões
porque o perspectivista impinge aos defensores das tradições uma con- são alcançadas.
cepção da verdade diferente da sua própria, talvez uma concepção
cartesiana ou hegeliana, ou talvez uma concepção que assimila a ver- Nietzsche não é, naturalmente, o único antecessor intelectual do
dade à comprovação garantida. perspectivismo moderno, e talvez, de modo algum, do relativismo
moderno. Durkheim, entretanto, forneceu uma pista para a procedência
O perspectivista, além disso, não reconhece quão integral é a con- de ambos, quando descreveu, no final do século XIX, como o colapso
cepção da verdade para as formas de pesquisa constituídas pela tra- das formas tradicionais de relação social aumentou a incidência de
dição. É isso que leva os perspectivistas a supor que alguém poderia anomia, de falta de normas. Anomia, como Durkheim a caracterizou,
temporariamente adotar o ponto de vista de unia tradição, e, aí, trocá- era uma forma de privação, de perda da condição de membro das
10 por um outro, como se troca de roupa, ou como se alguém pudesse instituições e modos sociais, nos quais as normas estão expressas, in-
ter um papel numa peça e, depois, um outro completamente diferente, cluindo as normas da racionalidade constituída pela tradição. O que
numa peça também diferente. Mas adotar genuinamente o ponto de Durkheim não previu foi uma época na qual a mesma condição de
vista de uma tradição compromete alguém com sua visão do que é anomia receberia o estatuto de realização do eu e de recompensa para
verdadeiro e falso e, ao se comprometer dessa forma, proíbe-se de o eu que tivesse conseguido emancipar-se, separando-se, supostamente,
adotar qualquer posição adversária. Logo, o perspectivista poderia, das relações sociais das tradições. Esse sucesso autodefinido torna-se,
realmente, fingir que assume o ponto de vista de uma tradição particu- em diferentes versões, a libertação da má fé do indivíduo sartriano, que
lar de pesquisa, ele não poderia fazê-lo de fato. A multiplicidade de rejeita determinados papéis sociais, o despatriamento do pensador nômade
tradições não permite uma multiplicidade de perspectivas entre as quais de Deleuze, e a pressuposição da escolha de Derrida entre permanecer
poderia mover-se, mas uma multiplicidade de compromissos antagônicos "dentro" do edifício social e intelectual já construído, embora sendo
entre os quais só é possível o conflito, racional ou não. estranho a ele, mas apenas para descontruí-10 por dentro, ou situar-se
A racionalidade das tradiçdes

brutalmente fora, numa condição de ruptura e descontinuidade. O que


Durkheim considerava uma patologia social é, agora, apresentado vestindo
as máscaras da pretensão filosófica.
A tendência mais característica desse tipo de filosofia é sua tem-
porariedade; residir no mesmo lugar durante muito tempo sempre ameaçará Capítulo XIX
conferir a tal filosofia a continuidade da pesquisa, de modo que ela se
incorpore em mais uma tradição racional. São as formas da tradição
que acabam por apresentar-se como ameaças ao perspectivismo, e não
o contrário. TRADIÇÁO E TRADUÇÁO
Portanto, somos ainda interpelados pelas alegações, visando nossa
adesão racional, das tradições em conflito, cujas histórias narrei, e,
realmente, dependendo de onde e como levantamos as questões sobre
a justiça e a racionalidade prática, pelas alegações de uma série de
outras tradições. Aprendemos que não podemos formular e responder Uma pré-condição para que os adeptos de duas tradições diferentes
a essas questões, de um ponto de vista exterior a todas as tradições, compreendam-nas como rivais e conflitantes é que eles sejam capazes
que os recursos da racionalidade adequada só nos são disponíveis nas .
de compreender um ao outro, relativamente bem Essa compreensão s6
tradições e através delas. Como devemos enfrentar essas questões? A pode, às vezes, ser alcançada através de um conjunto de transformações
que concepção de racionalidade prática e justiça devemos dar nosso históricas relacionadas; uma delas ou ambas as tradições podem ter
assentimento? Devemos agora observar que o modo como, de fato, tido de se enriquecer significativamente para ser capaz de fornecer
respondemos a essas últimas questões dependerá, fundamentalmente, uma representação de algumas das posições características da outra, e
de que linguagem compartilhamos com aqueles juntamente com os quais esse enriquecimento terá implicado a inovação conceitual e lingüística
as formulamos, e de até que ponto chegamos na história de nossa e, bem possivelmente, também a inovação social. No entanto, a com-
própria comunidade linguística. preensão de uma tradição pelos adeptos de outra pode implicar uma
série de tipos diferentes de resultado: compreender pode implicar a
rejeição imediata a respeito daquilo sobre o que divergiam; ou pode
levar à conclusão de que as questões que separam as duas tradições não
podem ser resolvidas; e, em casos raros, mas cruciais, como já obser-
vamos, compreender pode levar ao julgamento de que, pelos padrões
da tradição de alguém, a posiç8o da outra tradição oferece recursos
superiores para a compreensão dos problemas e das questões que sua
própria tradição enfrenta.
Alguns filósofos argumentam que, à medida que os protagonistas
de dois pontos de vista conflitantes conseguem compreender um ao
outro, eles, necessariamente, compartilham padrões de avaliação racional,
de modo que as questões que os dividem devem poder ser solucionadas
em grandes linhas, se não em pormenores. Segundo eles, a tradutibili-
dade implica a comensurabilidade. Argumenta-se também que essa
comensurabilidade deve ser suposta, não apenas para que se possa realizar
o trabalho de tradução, mas até mesmo para que se possa realizar a
tarefa elementar de identificar os falantes de uma língua estranha, que
398 Tradição e tradução Tradição e tradução 399

habitam uma cultura estranha, como possuindo uma língua, ou mesmo semântica a-histórica, hs vezes, entrem em conflito com as teses produzidas
uma mente. Assim, Donald Davidson escreveu que "encontrar uma base pela pesquisa histórica e filosófica da expressão linguística de tradições
comum não é posterior à compreensão, mas uma condição para que ela reais.
ocorra... Uma criatura que não possa, em princípio, ser compreendida
Toda tradição se expressa num grupo particular de asserções e ações
nos termos de nossas próprias crenças, valores e modos de comunicação,
e, através delas, em todas as particularidades de uma língua e de uma
não é uma criatura que tem pensamentos radicalmente diferentes dos
cultura específicas. A invençáo, a elaboração e a modificação dos
nossos, é uma criatura sem aquilo que chamamos de pensamentos"
conceitos, através dos quais os que fundam e os que herdam uma tradição
(Expressing Evaluations, Lawrence, 1984:20). a compreendem, estruturaram-se numa língua e não em outra, inevita-
Infelizmente, Davidson não nos conta quão diferente deve ser a velmente. Quando os adeptos dessa tradiçáo, pela primeira vez, planejam
diferença para ser radical, e uma vez que sua asserção trata do que que estendê-la a uma outra comunidade linguística, eles devem, em primeiro
ocorre "em princípio", ela pode ser interpretada como não querendo lugar, identificar, na nova língua, não apenas os tipos de asserçáo a
dizer nada mais do que seria aceito, supostamente, por qualquer um: serem reconhecidos como instâncias que dizem o mesmo que certas
que sempre haverá algo em comum entre duas línguas ou dois conjuntos sentenças na língua, ou línguas, através da qual a tradição se expressou
de pensamentos quaisquer. Mas, pelo menos algumas vezes, ele foi até agora, mas também o que é que não pode ser dito na nova língua,
compreendido como propondo teses incompatíveis com a concepção o que é, até entáo, intraduzível.
que apresentei dos tipos de relacionamento que se podem estabelecer
Do mesmo modo, quando uma tradição se expressa numa comuni-
entre tradições distintas.
dade lingüística cuja língua não é sua língua original, mas a de seus
Conseqüentemente, é importante desenvolver minha concepção, a herdeiros e sucessores, ela só pode preservar sua relação com seu passado
fim de identificar e caracterizar os tipos de relaçáo d e tradutibilidade através do reconhecimento da presença da língua original e, realmente,
e intradutibilidade, as relações lingüísticas que podem ser estabelecidas de línguas intermediárias, na língua na qual ela é, atualmente, falada e
entre tradições. Pois, sem esse desenvolvimento, certos elementos escrita. Assim, o judaísmo, depois que se tornou falante do grego, teve
fundamentais na própria concepção de uma tradição, na própria idéia de reconhecer a presença, na traduçáo dos Setenta, de formas, conceitos
de esquemas conceituais históricos, estarão sendo omitidos. Observe- e expressões especificamente hebraicas, um reconhecimento que implicou,
mos, entretanto, que por mais importante que seja essa preocupação pelo menos, a tomada de consciência de que o grego da tradução dos
com a expressáo linguística das tradições, ela não deve ser considerada Setenta era uma grego transformado, e que o grego anterior à tradução
como uma passagem para um nível mais fundamental d e pesquisa fi- dos Setenta, o grego sem ela, não era capaz de dizer, náo conseguia
losófica. Alguns filósofos recentes supõem que a semântica é a filoso- traduzir, o que o hebraico dizia. Assim também, quando a filosofia
fia primeira, deslocando a epistemologia de sua posição fundamental e grega passou a ser escrita em latim, aqueles que continuaram a tradição
escrevendo como se as discordâncias filosóficas devessem ser resolvidas, grega de pesquisa filosófica tiveram de ser capazes de reconhecer o
primeiramente, no nível da pesquisa semântica, as respostas às ques- grego original no latim, de um modo que também reconhecia o caráter
tões epistemológicas, metafísicas e éticas sendo, entáo, derivadas, pelo singularmente náo filosófico do latim anterior, tomando consciência da
menos parcialmente, das descobertas dos semânticos. Mas não há razão realização extraordinária daqueles que, como Cícero, traduziram do
particular para acreditar nisso. Prima facie, é táo razoável extrair grego e criaram neologismos no latim, de modo que ele passasse a ter
esses novos recursos.
conclusões sobre o que deve ser verdadeiro na filosofia da linguagem
daquilo que é verdadeiro, digamos, epistemologicamente, quanto o Temos, portanto, duas espécies distintas de traduçáo através das
contrário. Além disso, a semântica dominante na filosofia da linguagem quais uma tradiçáo pode ser transmitida de sua língua original -hebraico,
recente é altamente abstrata e desinformada, na sua maior parte, devido grego ou qualquer outra - para línguas posteriores: a traduçáo que-
à atenção que dá à pesquisa empírica, quer sobre o s usos diferentes da diz-o-mesmo e a tradução através da inovaçáo linguística. É importante
língua em culturas específicas, quer sobre as transformações históricas observar que essas duas relações de traduçáo podem existir entre textos
das línguas. Portanto, é de se esperar que as teses que emergem de uma ou outros corpos de sentenças, náo apenas entre línguas táo distintas
400 Tradição e tradução Tradição e traduçdo

quanto o hebraico, o grego e o latim, mas também entre dois estágios, desenvolveu-se, aparentemente, de modo a tornar-se potencialmente
ou períodos, na mesma língua: a tarefa de traduzir, dizendo-o-mesmo disponível para todos e qualquer um, independente de pertencer a uma
ou inovando, por exemplo, do inglês da Escócia não-gaélica, na época comunidade ou não. Nem todas as línguas internacionalizadas são desse
de Dunbar, para o inglês anglicizado, do século XVIII, de Hume e tipo do século XX;as versões do latim da alta Idade Média e do árabe
Adam Smith, foi e é, substancialmente, a mesma tarefa que a de tra- medieval, por exemplo, que ainda pressupunham um alto grau de tradição
duzir do grego para o latim, ou do latim para qualquer uma das duas e crenças comuns, entretanto, tornaram-se línguas dos habitantes de
versões do inglês. uma série de ordens sociais e políticas diferentes, assemelhando-se,
mas não equiparando-se, à condição das línguas internacionalizadas do
O conceito de língua pressuposto nessa formulação C o de uma
final do século XX.
língua tal como é usada por e numa comunidade particular, num lugar
e numa época particulares, com crenças, instituições e práticas comuns. Conseqüentemente, podemos comparar e contrastar as línguas quanto
Essas crenças, instituições e práticas encontrarão sua expressão numa ao grau a que uma língua-em-uso particular está vinculada, através de
série de formulações lingüísticas; a língua fornecerá usos padronizados seu vocabulário e de seus usos lingüísticas, a um conjunto particular de
para uma série de expressões, cujo uso pressuporá um compromisso crenças, as crenças de uma tradição específica, de modo que rejeitar ou
com essas mesmas crenças, instituições e práticas. Só era possível discutir modificar radicalmente as crenças implicará um tipo correspondente de
questões políticas, na Roma de Cícero, através de um esquema dado transformação linguística. Inicialmente, quero focalizar os tipos de lín-
pelos usos padronizados de 'respublica', 'auctoritas' (originalmente um gua nos quais os vínculos com as crenças comuns são relativamente
termo técnico nos procedimentos do senado), 'dignitas', 'libertas', íntimos; como podem os membros de uma tal comunidade linguística
'imperium' e outras expressões similares. Os predicados usados para se compreender a língua de uma tal outra comunidade muito diferente e
referir a feitos individuais heróicos ou não-heróicos, na Zlíada, pres- estranha? Os antropólogos insistiram, durante muito tempo, que nenhuma
supõem um catálogo particular de virtudes, expresso num acervo de cultura estrangeira pode ser caracterizada adequadamente, muito menos
adjetivos disponíveis; os predicados usados para se referir a esses feitos, compreendida, sem se viver, de fato, nela, por um certo tempo. E a
nos contos de Fianna irlandeses, do século XVII, pressupõem um ca- evidência que os antropólogos acumularam torna difícil discordar de-
tálogo bastante diferente, que só podia ser expresso num léxico distinto les; compreender exige, no mínimo, conhecer a cultura, tanto quanto
de adjetivos. Os limites das possibilidades de se falar de um modo possível, falar, entender, escrever e ler a língua como um nativo. Além
diferente daquele permitido pelas crenças dominantes dessas comuni- disso, aprender uma língua e adquirir a compreensão cultural não são
dades são estabelecidos pela língua-em-uso dessas comunidades; romper duas atividades independentes. Gestos, comportamentos rituais, esco-
esses limites instauraria, em maior ou menor grau, o processo através lhas e silêncios podem, ocasionalmente, expressar asserções, e as próprias
do qual uma língua-em-uso é lransformada em outra. afirmações são um tipo de atos, sendo também classificados como eles.
Evidentemente, segundo essa visão, não pode haver o inglês-em-si, O que está implicado nesse tipo de aprendizado de uma segunda
o hebraico ou o latim-em-si. Não há tampouco o latim clássico ou o língua, nos estágios iniciais, não é tanto uma questão de se referir à
irlandês moderno. Só pode haver o latim-como-foi-escrito-e-falado-na- língua materna, fazendo corresponder frase por frase. Ao contrário, é
Roma-de-Cícero e o irlandês-como-foi-escrito-e-falado-em-Ulster-no- necessário, por assim dizer, tornar-se novamente criança para aprender
século-XVI. Os limites de uma língua são as fronteiras de uma comunidade aquela segunda língua - e a cultura correspondente - como uma
linguística que é também uma comunidade social. Essa concepção de segunda língua. Assim como uma criança não aprende sua língua materna
língua exige complementaçáo. Na verdade, não houve línguas tais como fazendo corresponder frase por frase, já que inicialmente não domina
o inglês-do-século-XIV-como-tal, mas apenas línguas como o inglês- nenhum conjunto de frases, tampouco o adulto que, de certa forma,
do-século-XIV-de-Lancashire-e-dos-distritos-vizinhos, no qual Gawain torna-se criança.
and the Green Knight foi escrito. Mas há, para melhor ou pior, o inglês
do final do século XX, uma língua internacionalizada que, como outras Obviamente, compreende-se melhor o processo de aprender uma
línguas internacionalizadas do final do século XX - tais como as língua no caso daqueles que, como antropólogos, vão viver na socie-
versões do final do século XX do espanhol, do alemão e do japonês - ) dade da outra cultura e se transformam, à medida do possível, em
402 Tradição e tradução Tradição e tradução 403

habitantes nativos. Mas parece claro que, quando temos textos e outros capazes de compreender os obstáculos à tradução que não surgem apenas
materiais de uma cultura que não existe mais, aqueles que têm as de uma falta de recursos conceituais e linguísticos em uma das duas
habilidades lingüísticas e históricas podem mergulhar nesse material a línguas em questão. Além disso, é em relação hs línguas-em-uso dessas
ponto de se tomar quase propriamente membros participantes de so- sociedades que é mais importante lembrar o que os antropólogos en-
ciedades tais como a Atenas do século V, ou a Islândia do século XII. sinam: elas não podem ser adquiridas, como segundas Iínguas, acres-
A aquisição desse tipo de segunda língua s6 será verificável de modos centando-se h língua materna a habilidade de fazer corresponder frases
análogos aos modos pelos quais o conhecimento dos antropólogos é ou de parafrasear. Elas devem ser aprendidas como segundas línguas
verificável. No caso dos últimos, perguntamos: até que ponto ele pode maternas, ou náo serem aprendidas de modo algum.
passar por um nativo? No caso dos primeiros, a questão correspondente
Dois aspectos de tais línguas-em-uso são de particular importância:
poderia ser, por exemplo: quando está atuando numa peça de Aristófanes,
suas práticas de nomear pessoas e lugares e os modos particulares
ele consegue introduzir uma improvisação cômica, na qual a melhor pelos quais, ao dizer algo, um falante ou escritor comunica algo além
erudição acadêmica não poderia detectar nenhuma diferença relevante e diferente do que ele realmente disse. Esses dois aspectos continuam
com relaçáo ao original? É por isso que, numa educação clássica antiga a ser importantes em línguas-em-uso posteriores, nas quais, em grau
genuína, a composição do verso grego e latino de vários tipos diferentes variável, a crença e o uso da língua estão vinculados menos intima-
tinha um papel fundamental, e a retirada dessa exigência do currículo mente do que no tipo de exemplo pelo qual começarei, mas que são
clássico indicou, portanto, seja uma falta de interesse em saber se alguém também herdeiras e sucessoras desse primeiro tipo de língua-em-uso.
realmente sabe o grego ou o latim, seja a falta de conhecimento sobre Entretanto, por enquanto, preocupemo-nos com exemplos do tipo de
o que significa aprender uma língua. comunidade que fornece pontos de partida para as histórias que cons-
A marca característica de alguém que adquiriu duas línguas mater- tituem tradições.
nas, de um desses modos, é que ele é capaz de reconhecer quando, e i Nessas culturas, nomear pessoas e lugares significa nomeá-los en-
E:
em que sentidos, certas asserções numa língua são intraduzíveis na p u a n t o membros de um gmpo. Os tipos de nomes variam de grupo para
outra. Tal intradutibilidade pode ser de mais de um tipo. Pode ser o grupo: o tipo de nome usado para uma pessoa será diferente daquele
resultado, como observamos anteriormente, do fato de uma das duas I usado para um lugar, ou para um dia da semana. O uso distintivo de
línguas possuir recursos conceituais e expressivos que a outra não tem
ou, talvez, do fato de cada uma possuir, em áreas diferentes, recursos
, tipos tem deixado de vigorar, até certo ponto, no inglês do final do
stculo XX; no passado, teria sido impossível usar "Tuesday" como
que não existem na outra. Assim, o que aconteceu foi não apenas que nome de pessoa, e chamar alguém de "Man Friday" significava duvidar
o grego não dispunha de certos recursos que o hebraico possuía, antes de seu estatuto de pessoa. Consideremos como são usados os nomes d e
que os tradutores da Bíblia dos Setenta transformassem o grego par- pessoas naquilo que chamarei de comunidade lingüística primordial do
cialmente, mas também que o hebraico, mesmo depois, ainda não dispunha tipo exigido. Escolherei como exemplo o modo de nomeaçáo de pes-
dos recursos filosóficos que o próprio grego teve de adquirir, através soas, registrado por Robin Fox, na Ilha Tory, na costa norte de Donegar,
de uma série de inovações lingüísticas radicais, elas mesmas profunda- em 1962, simplesmente porque temos um bom registro dele ("Structure
mente estranhas ao grego arcaico. Não se pode expressar alguns dos of Personal Names on Tory Island", Man, 1963, reimpresso em "Personal
pensamentos fundamentais de Platão no hebraico de Jeremias ou mesmo Names", cap. 8, Encounter with Anthropology, Nova Iorque, 1973). Os
da literatura sapiencial, mas tampouco se pode expressá-los no grego sistemas de nomeação na Roma antiga e outras comunidades que ge-
homérico (ver Charles Kahn, The Verb 'Be' in Ancient Greek, parte 6, raram tradições têm muitas das mesmas características.
The Verb 'Be' and Its Synonyms, ed. J. M. W. Verhaar, Dordrecht, 1973).
Na Ilha Tory havia - e há - três grupos de nomes: um que s6 é
Embora esclarecedores, esses exemplos já estão demasiadamente usado em irlandês, em ocasiões relatívamente formais; um usado nas
distantes das sociedades nas quais o uso lingüística é intimamente relações cotidianas locais nas quais o irlandês é a língua.norma1, mas
vinculado ao tipo de crença comum que informa, caracteristicamente, nas quais também se usa o inglês; e outro, usado em inglês, em relação
as tradições nos seus pontos de origem e no seu crescimento original. a gmpos de fora, tais como empregadores em agências governamentais
Só se nos ativermos a exemplos extraídos dessas sociedades, seremos inglesas ou irlandesas (o irlandês-em-uso da Ilha Tory é, ou era,' dife-
404 Tradição e tradução Tradição e tradução 405

rente o bastante do irlandês-em-uso dos funcionários públicos de Dub- 'Aristóteles', por parte daqueles que falam uma língua moderna, na
lin, para que fosse, frequentemente, mais fácil conduzir transações com nossa sociedade, hoje. Mas essa é a possibilidade concretizada no sistema
eles em inglês). Os nomes dos dois primeiros tipos fornecem informação de nomes de pessoas na Ilha Tory, e em muitos outros sistemas de
suficiente para que se possa distinguir a pessoa nomeada de qualquer nomeação. Em tais sistemas, os nomes são usados a partir da suposiçáo
outra pessoa na comunidade. Portanto, no segundo grupo de nomes, ao de que certas crenças, gravadas na ordem social, são verdadeiras. Se e
primeiro nome de um homem acrescenta-se o primeiro nome de seu à medida que o uso de um nome pressupõe tais crenças, não é possível
pai, ou talvez o de sua mãe, de seu avô ou de sua av6, a não ser que a tradução para a língua de uma comunidade diferente, com crenças
algum aspecto especial precise ser transmitido, tal como o fato de que diferentes, simplesmente através da reprodução do nome ou alguma
seu avô era um imigrante; assim, um homem era chamado de 'Owen- versão dele (como 'Aristotle' é a versão inglesa, e 'Aristote' a versão
John-Dooley from Malin'. O fio de nomes é tão longo quanto neces- francesa do grego 'Aristóteles'). O uso do nome deverá ser acompanhado
sário para comunicar a informação que distinga aquela pessoa de todas de uma explicação, talvez apenas daquele nome, talvez de todo o sistema
as outras na comunidade. E de nomeação, dependendo do corpo de sentenças que deve ser tradu-
i zido.
A relação de tal nome com seu portador é que, quando interpelado %
por ele, responde a esse nome, pode ser convocado pelo seu uso, Portanto, no caso de um certo tipo de uso de nomes próprios, a
apresentado a alguém por ele, ou referido diretamente por ele. A noção i tradução exige a glosa ou a explicação como partes indispensáveis de
de um nome, como mantendo uma relação única e singular com seu i: seu trabalho. Tal explicação deve incluir uma referência, não apenas ao
caráter classificatório e informativo desse tipo de nome, mas também
portador, em tais contextos, é, não tanto errada, quanto enganadora. O
modo de vida no qual o nome está relacionado com seu portador, em ao modo pelo qual a posição social e a autoridade são designadas e
todas essas maneiras diferentes, fornece o contexto necessário para se 5 comunicadas através do uso de certos nomes. Nomes próprios que
compreender o que faz desse nome o nome dessa pessoa particular; expressam a posição de alguém num sistema de parentesco frequente-
'referência' não é mais do que um nome para a unidade na diversidade mente designam posição social, e usar um tipo particular de nome
de uso, e se a diversidade de uso fosse abstraída, o que restaria não próprio pode designar autoridade política legítima: tal pessoa C 'o O'Kane',
seria uma relação referencial pura. Ao contrário, não restaria nada. I ou 'o O'Neill'. É importante observar também que pode haver sistemas
opostos de nomeação, onde há comunidades e tradições que se opõem,
Nesse esquema, nomear significa nomear alguém enquanto membro de modo que usar um nome significa, imediatamente, reivindicar al-
da comunidade local; significa também nomear enquanto membro de guma legitimidade social e política e negar uma afirmação contrária.
um grupo de parentesco. No uso do nome, estão necessariamente Consideremos, como exemplo, os dois nomes rivais de lugar 'Doire
pressupostas crenças sobre o grupo de parentesco. A força do "neces- Columcille', em irlandês, e 'Londonderry', em inglês.
sariamente" pode ser evidenciada do seguinte modo. Kripke argumenta
que quando usamos o nome 'Aristóteles' não podemos querer dizer, em 'Doire Columcille' expressa a intenção de uma comunidade particu-
parte, por exemplo, 'o preceptor de Alexandre', porque é sempre pos- lar, irlandesa, católica e historicamente contínua, de nomear um lugar
sível descobrirmos que Aristóteles, de fato, não foi o preceptor de que tem tido uma identidade contínua, desde que se tornou o túmulo de
Alexandre, e essa descoberta não poderia ser expressa se 'preceptor de carvalho de S. Columbano, em 564 - 'Doire Columcille' é a descrição
Alexandre' fosse parte do significado do nome 'Aristóteles' (Saul A. do túmulo de carvalho de S. Columbano transformada em nome -,
Kripke, Naming and Necessity, Cambridge, Mass., 1980, 61-62). O que enquanto 'Londonderry' expressa a intenção de uma comunidade par-
seu argumento mostra é, não que os nomes das pessoas não tenham ou ticular, falante do inglês, pjotestante e historicamente contínua, de nomear
não possam ter conteúdo informativo, mas que ou eles não têm esse um estabelecimento feito no século XVII, cuja origem comercial, em
tipo de conteúdo, ou é verdade que o seu uso pressupõe o compromisso ; Londres, Inglaterra, é transmitida com tanta eficácia pelo seu nome
com uma crença, de modo que, se se descobrisse que essa crença é I quanto a informação religiosa correspondente é transmitida por 'Doire
falsa, o nome não poderia continuar a ser usado do mesmo modo. Essa 61 Columcille'. Usar um nome implica negar a legitimidade do outro.
Última possibilidade é uma que Kripke não considerou, e ele estava Conseqüentemente, não há como traduzir 'Doire Columcille' para o
certo, talvez, em não fazê-lo, no que diz respeito ao uso do nome inglês, a não ser usando-se 'Doire Columcille' e acrescentando-se uma
406 Tradição e tradução Tradição e tradução 407

explicação. 'Londonderry' náo traduz 'Doire Columcille'; nem tampouco traduzir da língua de uma comunidade, cuja língua-em-uso expressa e
'o túmulo de carvalho de S. Columbano' pois, em inglês, não há tal pressupõe um sistema particular de crenças bem-definidas, para uma
nome. língua diferente de uma outra tal comunidade, com crenças que, em
algumas áreas fundamentais, sáo fortemente incompatíveis com as da
O que isso evidencia é que, em tais comunidades, a nomeaçáo de primeira comunidade. O segundo conjunto de problemas surge quando
pessoas e lugares náo é apenas nomear como, mas também nomear para. se trata de traduzir de qualquer uma dessas línguas para uma das línguas
Os nomes são usados como identificaçáo para aqueles que comparti- internacionalizadas da modernidade. Nos dois casos a tarefa de tradu-
lham as mesmas crenças, as mesmas justificações da autoridade legí-
ção implicará, claramente, o uso não apenas de dizer-o-mesmo e de
tima, e assim por diante. As instituições de nomeaçáo expressam a
paráfrases, mas também o amplo uso de glosas e explicações
posição comum da comunidade e, caracteristicamente, suas tradições
interpretativas. Os problemas que surgirão na avaliaçáo de tais glosas
comuns de crença e pesquisa. O que acontece, então, ao uso de tais
nomes, quando eles são usados por alguém de fora da comunidade para e traduções interpretativas, entretanto, seráo diferentes.
identificar aquelas pessoas ou lugares, dos quais eles sáo os nomes; Como exemplo dos problemas que podem ser gerados pela traduçáo
quando sáo usados, por exemplo, por um estrangeiro que observou um do primeiro tipo - isto é, da língua-em-uso de uma comunidade cujo
nome de lugar num mapa, mas não sabe nada das crenças que governam uso da língua é intimamente vinculado a suas crenças, para a língua de
e que estáo pressupostas no seu uso interno à comunidade? Tal estrangeiro uma outra tal comunidade, com crenças incompatíveis -, considere-
pode usar esse nome de dois modos. Ele pode usá-lo desejando e vi- mos o caso no qual as crenças sáo, náo apenas incompatíveis, mas
sando identificar o lugar em questáo, através do uso do seu nome, ou também incomensuráveis. Já vimos que o fato de duas comunidades
pode usá-lo simplesmente para identificar aquele lugar, através de um com sistemas de crenças conflitantes serem capazes de concordar na
nome que realizará a tarefa de identificaçáo. Nesse último uso, o nome identificaçáo de um único e mesmo assunto como sendo aquele iden-
é usado simplesmente como expressão de referência, no lugar da qual tificado, caracterizado e avaliado nos seus dois sistemas rivais, e de
uma descrição apropriada e definida ou, em certas circunstâncias, um reconhecer que a aplicabilidade de alguns dos conceitos, num esquema
gesto de indicaçáo poderia ser usado. Nomear desvinculou-se de no- de crenças, impede a aplicaçáo de certos conceitos, no outro esquema,
mear como e de nomear para, e a relação do nome com o que ele náo implica necessariamente que os critérios fundamentais que gover-
nomeia reduz-se àquilo que existe entre qualquer rótulo de identifica- nam a aplicaçáo desses conceitos - os padrões pelos quais são julgados
ção, bem usado, e aquilo em relação a que é usado. O que faz dos dois a verdade ou a falsidade, e a justificaçáo racional ou a sua falta - náo
usos de 'Londonderry' ou de 'Aristóteles' usos de um único e mesmo possam diferir radicalmente. A incomensurabilidade dos dois esquemas
nome, quando empregados desse modo, é nada mais nada menos do de crenças, de modo algum, impede sua incompatibilidade lógica.
que o fato de que sáo usos de sinais do mesmo tipo falado ou escrito,
usados com relaçáo ao mesmo objeto. A ausência de crenças de base ~ x e m b l o sdessa incomensurabilidade podem-se extrair das crenças
comuns toma qualquer contexto informativo, ligado aos nomes, redundante expressas nos esquemas opostos de nomeaçáo. O tradutor desse esquema,
com relaçáo à sua função enquanto nomes. Assim, o conceito de pura da língua-em-uso A para a língua-em-uso B, terá de explicar o esque-
referência, de referência como tal, surge como o artefato de um tipo ma de nomeaçáo em A para aqueles cuja língua é B, nos termos das
particular de ordem cultural e social, uma ordem na qual um mínimo crenças dos membros dessa última comunidade. Isto é, o esquema de
de crenças e adesões comuns pode ser pressuposto. E é, de fato, verdade nomeaçáo em A terá de ser explicado nos termos de suas diferenças
que a relaçáo dos nomes com seus portadores, nesse tipo de ordem, com relaçáo à nomeaçáo em B, mas fazê-lo significará apresentar o
pode ser projetada, com nenhuma ou pouca complexidade, sobre a esquema de nomeaçáo de A como carente de justificaçáo e, em alguns
relaçáo dos nomes com seus portadores, numa versáo interpretada do aspectos, defeituoso. Compreender a traduçáo e a explicaçáo para B
cálculo predicamental de primeira ordem, criando, assim, a ilusáo de implicará, para aqueles cuja língua é B, rejeitar as crenças explicadas
alguns semânticos de que há uma única relaçáo essencial de referência. dessa forma.
Podemos, agora, identificar dois outros conjuntos de problemas sobre Com a ajuda dessas explicações, consideremos um outro tipo de
a tradutibilidade. O primeiro refere-se às situagões nas quais trata-se de exemplo. O que teria significado traduzir o latim da primeira linha, da
408 Tradiçüo e traduçdo Tradiçüo e traduçüo 409

quinta ode, do terceiro livro de odes de Horácio para o hebraico da Uma segunda característica dessas línguas-em-uso intensifica essa
comunidade judaica contemporgnea, na Palestina, do século I a.C.: "Caelo dificuldade e acrescenta algumas complexidades próprias. É uma ca-
tonantem credidimus Jovem regnare: praesens divus habetiur Augustus ..." racterística que resulta, parcialmente, das características das línguas
("N6s acreditamos que Júpiter trovejante reina no céu; Augusto será como tais e, parcialmente, das características específicas das línguas-
considerado uma divindade presente...")? O que foi dito por Horácio s6 em-uso que expressam uma ou mais tradições. A característica relevante
poderia aparecer, em hebraico, como uma falsidade e uma blasfêmia; das línguas como tais pode ser melhor explicada ao considerarmos a
a explicaçáo hebraica da concepção romana de um deus s6 poderia ser diferença entre as afirmações de alguém que tem o domínio de uma
feita nos termos de uma idolatria com relação aos espíritos maus. língua particular, seja sua língua materna ou sua segunda língua, e as
Justamente no viés dessa explicaçáo 'daimon' foi transformado em articulações de alguém que está usando um livro de expressões idio-
'demônio'. máticas para falar uma língua que ainda náo domina.
Conseqüentemente, nesse caso, um teste-padrão de traduçáo e Esse Último fala através de unidades nas quais cada frase ou pequeno
tradutibilidade não poderia ser aplicado. Quando alguém, diante de um grupo de frases tem uma função discreta, de modo que quando as
texto da sua língua materna traduzido para a sua segunda língua, concorda frases ou pequenos grupos de frases (tipos, não sinais) são comparados
que se ele fosse traduzir o texto de volta para sua língua materna, o com frases ou pequenos grupos semelhantes na língua do falante, e
ambos são comparados com certos tipos de contexto definidos e facilmente
resultado seria substancialmente o mesmo texto original, temos o que
é, talvez, o único teste definitivo através do qual podemos julgar uma reconhecíveis, é razoável que o falante espere produzir um efeito de-
traduçáo. Mas, no caso que estamos considerando, porque a adequaçáo sejado através do uso de sinais correspondentes. O critério de avaliação
do processo de correspondência comparativa é, portanto, pragmático.
da explicaçáo é relativa às crenças daqueles para quem algo está sendo
O uso desse grupo de frases resulta na compra, por exemplo, de um
explicado, e porque cada esquema de crenças implica a rejeiçáo do
vaso de cerâmica? O uso desse grupo de frases faz com que eu esteja
outro, o que é considerado uma boa traduçáo através de paráfrase ou na estação de ônibus na hora certa? Quanto melhor for o livro de
de dizer-o-mesmo numa língua-em-uso será diferente do que o C em frases, mais eficaz ele será em realizar as expectativas da cultura es-
outra. trangeira que o visitante busca satisfazer através dele; sáo elas que
As características dessas línguas-em-uso que geram esse tipo de informam a escolha de frases. Assim, um livro de frases do irlandês
tradutibilidade contestada váo muito além de suas práticas de uso de corrente torna os visitantes estrangeiros que desejam se passar por
nomes próprios. Problemas exatamente análogos ao de se fornecer a falantes do irlandês capazes de dizer "Biadh deoch agat" ("Beba algo"),
explicaçáo relevante, no caso dos nomes próprios, surgirá0 quando as enquanto os usuários do Vietnamita Facilitado, no final dos anos
duas línguas-em-uso expressam catálogos e compreensões diferentes e sessenta e início dos anos setenta, aprendiam a dizer "Dung bán!"
incompatíveis das virtudes, incluindo a justiça, ou um acervo diferente ("Náo atire").
e incompatível de descrições psicológicas de como o pensamento pode O que náo pode ser aprendido, fazendo corresponder frase por frase
gerar a açáo. E em todos os três casos - nomes próprios, a linguagem e frase com contexto, mesmo através de sofisticados vocabulários, é
das virtudes e a linguagem da gênese da açáo -, o problema da náo apenas como os tipos de sistema de nomeação e esquemas classi-
tradutibilidade é agravado por duas outras características dessas línguas- ficatórios que discutimos sáo usados, mas também, e mais fundamen-
em-uso. talmente, como uma apreensáo de uma língua-em-uso capacita o usu-
A primeira resulta do modo pelo qual esquemas de crenças básicas ário competente da língua a passar de um tipo de uso de uma expressáo,
comuns permitem que um falante, ao dizer algo, faça com que seus no contexto de uma frase, a outro tipo de uso notoriamente diferente
ouvintes compreendam outra coisa. Ao oferecer uma explicaçáo par- da mesma expressáo, no contexto de uma outra frase, e talvez passar,
ticular de uma ação, um falante exclui certas outras explicações alter- entáo, a inovar, inventando um terceiro tipo de uso para a mesma
nativas. Ao atribuir uma virtude particular a alguém, um falante im- r expressáo, em contexto bem diferente. Saber como ir em frente e além
pede essa pessoa de ter certos vícios. Compreender o que está sendo é a marca da competência lingüística elementar. Alguém que sabe que
negado, quando algo é afirmado, ou vice-versa, nesse tipo de caso, é adequado concordar com "a neve é branca", se e quando a neve é
exige muito mais do que a compreensão do sinal negativo. branca, náo evidencia, dessa forma, uma compreensáo de "branco", em
410 Tradição e tradução Tradição e tradução

inglês. Tal compreensão seria evidenciada pela capacidade de dizer, essa tradição. Os textos, aos quais o estatuto canônico é atribuído, são
por exemplo, "a neve é branca e também os membros da Ku Klux tratados tanto como tendo um significado fixo expresso neles, como
Klan, e todos em Arkansas estavam brancos de medo, durante o nevoeiro, sendo também sempre aberto a releituras, de modo que toda tradição
na última sexta-feira". Esse tipo de coisa não se pode aprender a dizer torna-se, até certo ponto, uma tradição de reinterpretação crítica na
através de um livro expressões idiomhticas, ou mesmo através de um qual um único e mesmo corpo de textos, naturalmente com algumas
grupo qualquer de frases isoladas recorrentes em inglês. adições e subtrações, é submetido sucessivamente a conjuntos diferen-
tes de questões, à medida que a tradição se desenvolve.
Saber ir em frente e além, no uso das expressões de uma língua, é
a parte poética da habilidade de todo usuário da língua. O poeta profis- Portanto, em qualquer ponto do desenvolvimento de uma tradição,
sional simplesmente tem essa habilidade de todo usuário de uma língua as crenças que caracterizam aquele estágio particular daquela tradição
em grau eminente. É ouvindo e aprendendo e, mais tarde, lendo textos particular trazem consigo uma história na qual a justificação racional
poéticos que os jovens, no tipo de sociedade que estamos estudando, sucessiva de si e de suas antecedentes é expressa, e a língua na qual
aprendem os usos paradigmáticos das expressões fundamentais, ao mesmo são expressas é inseparável da história de trasformações e traduções
tempo e inseparavelmente do aprendizado das exemplificações mode- lingüísticas e conceituais: velle (primeiramente na fala cotidiana, depois
lares das virtudes, as genealogias Iegitimadoras de sua comunidade e como um termo legal), voluntas, voluntário; auctoritas (primeiramente
sua prescrição fundamental. Aprender sua língua e ser iniciado na tradição, como um termo político-legal, depois mais geralmente), autoridade, autor;
ou tradições, de sua comunidade é um único e mesmo processo. Quando pdlis, politiké, koindnia; civitas, sociedade civil; dikaiosyne, ius, iustitia,
em tais sociedades se pergunta "O que é x?" ou "O que significa x?", justiça - essas seqüências podem ser lidas como versões aforísticas de
um modo padronizado de se responder é citando uma ou duas linhas de tais histórias, justamente do tipo das que são expressas nas concepções
um poema. Portanto, os significados de expressões fundamentais são narrativas das tradições grega, medieval e escocesa moderna, neste
fixados, em parte, pela referência a textos padrões de autoridade, que livro. E os nomes que genealogicamente pontuam essas histórias são,
para os que habitam essas tradições, como os nomes na Ilha Tory:
também fornecem os exemplos paradigmáticos usados na instrução dos
'Aristóteles' é inseparável, no significado e no uso, de 'o discípulo de
jovens sobre como estender conceitos, como encontrar novos usos para Platão, o discípulo de Sócrates', e 'Justiniano' de 'o autor imperial das
expressões estabelecidas, e como transitar através dessa multiplicidade Instituições'.
de usos, cuja familiaridade fornece o contexto para se introduzir dis-
tinções tais como entre o literal e o metafórico, o humorístico, o irônico Quando consideramos, como temos feito, as tarefas da tradução de
e o direto e, mais tarde, quando o desenvolvimento torna-se teórico, o textos de uma comunidade informada pela tradição, cuja língua-em-uso
analógico, o unívoco e o equívoco. Todo uso de uma língua informada está intimamente vinculada à expressão das crenças comuns daquela
pela tradição tende, em alguma medida, à condição de significação tradição, para uma língua-em-uso diferente, de uma outra comunidade,
múltipla finalmente alcançada em Finnegan's Wake, o último de todos com sua própria tradição e suas crenças diferentes, essa dimensão histórica
os textos paradigmáticos que é um despertar para todos os outros textos peculiar de cada comunidade portadora de uma tradição se acrescenta
- ou, pelo menos, o pretexto de um despertar. ao tipo de dificuldade que surge de tais práticas, tais como as de nomear
e classificar. Mas a dimensão histórica cria ainda um outro tipo de
Saber como ir em frente e além é parte, como sugeri, da capacidade dificuldade própria, quando a tarefa de tradução a ser realizada é jus-
linguística como tal; tomar esse conhecimento essencialmente dependente tamente de tal língua-em-uso para uma das línguas internacionalizadas
da leitura de textos, cuja redação exigiu essa capacidade num grau da modernidade.
exemplar, fornece justamente o tipo de fundação lingüística que uma
tradição, parcialmente constituída pela pesquisa filosófica sofisticada, Justamente porque é característico de tais línguas serem vagamente
exige. Pois essa tradição, se pretende florescer, como já aprendemos, vinculadas a conjuntos particulares de crenças contestáveis, mas ricas
deve ser expressa num conjunto de textos que funcionam como o ponto em modos de caracterização e de explicação que tornam possível que
de partida de autoridade para a pesquisa constituída pela tradição, e textos que expressam esquemas estranhos de crenças sistemáticas possam
que permanecem como pontos de referência essenciais para a pesquisa ser relatados - não à luz de um outro esquema rival de crenças, com
e a atividade, para a argumentação, o debate e o conflito internos a referência ao qual apareceriam, necessariamente, como falsas ou ver-
412 Tradição e tradução Tradiçáo e tradução 413

dadeiras, razoáveis ou não razoáveis, mas independentemente de todos Para eles, deve parecer que não há nada que não seja traduzível em sua
os critérios e padrões de verdade e de racionalidade - os problemas língua. A intradutibilidade - se forem criteriosos, podem dizer a
que geralmente surgem da tradução, cujo produto final parcial é uma intradutibilidade em princípio - aparecer-lhes-á, talvez, como uma
explicação inaceitável do significado de um texto, àqueles que o aceitavam ficção filosófica.
ou ainda aceitam, parecem, à primeira vista, não surgir. Essa crença na sua habilidade de compreender tudo sobre a cultura
O que quero dizer por "independentemente de todos os critérios e e a história humanas, independente de quão estranho lhes possa ser,
padrões de verdade e de racionalidade"? Justamente porque e à medida aparentemente é uma das crenças definidoras da cultura da modernidade.
que as línguas-em-uso internacionalizadas, da modernidade do final do Isso é evidente na maneira de ensinar e escrever a história da arte, de
século XX,tem pressuposições mínimas a respeito de sistemas de crenças modo que os objetos e os textos produzidos por outras culturas são
possivelmente rivais, seus critérios comuns para a aplicação correta de submetidos ao nosso conceito de arte, permitindo-nos expor o que, de
conceitos tais como "é verdadeiro" e "é razoável" são também míni- fato, eram tipos de objetos muito diferentes e heterogêneos sob uma
mos. E, de fato, a verdade é assimilada, à medida do possível, à única e mesma rubrica estética, em novos contextos neutros artificiais
comprovação garantida, e a razoabilidade, à medida do possível, é nos nossos museus, museus que, num sentido importante, tornaram-se
tomada como relativa ao contexto social. Portanto, quando textos de os prédios públicos desse tipo de modernidade culta, assim como o
tradições com seus próprios critérios de verdade e de racionalidade, templo o era para a Atenas de Péricles ou a catedral para a França do
fortes e substanciais, e com uma dimensão histórica forte, são traduzi- século XIII.
dos para tais línguas, eles são apresentados de um modo que neutraliza O tipo de tradução característico da modernidade gera, por sua vez,
as concepções de verdade e de racionalidade e o contexto histórico. Como seu próprio engano com relação à tradição. O lugar original desse
acontece isso? engano é o tipo de curso introdutório sobre Grandes Livros ou sobre
P u m a n i d a d e s , tão frequentemente ministrados nas faculdades de ciências
As concepções de verdade e de racionalidade tornam-se, não uma
humanas, nos quais, abstraindo do contexto histórico, e perdendo as
parte de uma estrutura pressuposta de crenças à qual o autor recorre,
complexidades da particularidades lingüísticas através da tradução, um
ao dirigir-se a uma audiência que compartilha ou compartilhou essa
aluno passa rapidamente por Homero, uma peça de Sófocles, dois diálogos
mesma estrutura, mas são relegadas a uma explicação a uma audiência
L de Platão, Virgílio, Agostinho, o Inferno, Maquiavel, Hamlet, e o que
caracterizada como não possuindo tal estrutura. A história particular a
mais for necessário para que se chegue a Sartre ao final do semestre.
partir da qual o autor escreveu e que é aquilo que ele deseja levar adiante
Se não se consegue reconhecer que o que esse tipo de curso proporci-
também desaparece de vista, como o contexto pressuposto do trabalho
ona não é e não pode ser uma reintrodução na cultura das tradições
e, ao contrário, aparece como um apêndice explicativo dele. Desses
passadas, mas um passeio por algo que, na verdade, é um museu de
dois modos, um tipo de texto que não pode ser lido fora de contexto,
textos, cada um descontextualizado e, portanto, diferente de seu origi-
enquanto o texto que é, é, entretanto, descontextualizado. Mas ao
descontextualizá-10, o texto se transforma em algo que não pertence nal, sendo preso num pedestal cultural, então é natural supor que, se
mais ao autor, e que nem seria reconhecido pela audiência à qual foi visássemos alcançar o consenso sobre tal conjunto de textos, sua lei-
dirigido. A tarefa de tradução para uma tal língua foi realizada às , tura reintegraria os estudantes modernos àquilo que é pensado como
custas de se produzir algo que não seria reconhecido ou aceito pelos nossa tradição, esse infeliz amálgama fictício, às vezes chamado de
falantes e escritores para quem a língua-em-uso original era sua língua I
"tradição judeu-cristã" e, às vezes, de "valores ocidentais". A obra de
autoproclamados conservadores contemporâneos, como William J. B e ~ e t t ,
materna, mas que aprenderam a língua internacionalizada particular i revela-se, de fato, como mais um estágio na deformação cultural moderna
como sua segunda língua. I de nossa relação com o passado.
A distorção feita pela tradução fora de contexto - do ponto de F
vista daqueles que habitam as tradições das quais os textos distorcidos Talvez seja de se esperar que as recentes doutrinas pós-modernas
foram extraídos - tende, naturalmente, a ser invisível para aqueles do texto, embora no nível teórico tenham marcado uma ruptura radical
cuja língua materna é uma das línguas internacionalizadas da modemidade. com seus predecessores imediatos, na teoria não fizessem nada mais do
414 Tradição e tradução Tradição e tradução
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que oferecer uma justificaçáo racional para as práticas que já eram, há uma condiçáo para se descobrir o inacessível é que haja um processo
bastante tempo, vigentes na educaçáo particularmente moderna. Todo em dois estágios, sendo o primeiro aquele no qual adquirimos uma
texto, proclama o pós-moderno radical, é suscetível de infinitas leituras segunda língua-em-uso como segunda língua, e o segundo aquele no
interpretativas. A compreensáo do texto não é controlada pelas intenções qual podemos aprender que somos incapazes de traduzir para a nossa
do autor ou por qualquer relaçáo com uma audiência com crenças comuns língua materna aquilo que agora podemos dizer em nossa segunda língua,
específicas, pois está fora de qualquer contexto, a não ser do contexto então o argumento perde toda sua força.
de interpretaçáo. Assim, Roland Barthes afirma que uma obra literária
Do ponto de vista de qualquer tradiçáo particular, é uma questáo
é diferente de uma asserçáo prática na qual as considerações pragmáticas
inteiramente contingente se a língua-em-uso de uma outra tradição
extraídas do contexto de proferimento eliminam sua ambiguidade: "Isso
não ocorre com uma obra (oeuvre): a obra náo tem circunstâncias e é diferente será ou náo compreensível àqueles que a habitam, ou vice-
isso, de fato, talvez, o que a melhor a define: a obra não-circunscrita, versa. Tradições opostas podem, naturalmente, ser muito diferentes entre
designada, protegida, dirigida por nenhuma situaçáo, por nenhuma vida si, em alguns aspectos, e ao mesmo tempo compartilhar vários outros
prática que determine o seu significado ... nela, a ambiguidade é totalmente aspectos: textos, modos de avaliaçáo, práticas inteiras tais como jogos,
pura: independentemente de sua extensão, ela possui algo da brevidade artes e ciências. A medida que isso é verdadeiro, a traduçáo poderá
da sacerdotisa de Apolo, dizeres que seguem um primeiro código (a proceder quase inteiramente através do dizer-o-mesmo. Mas, quanto
sacerdotisa náo delirava) e que, no entanto, abertos a uma série de menos for compartilhado, mais difícil e embaraçoso será o trabalho de
significados, pois proferidos fora de qualquer situação - exceto, re- traduçáo, e haverá mais possibilidades ameaçadoras de intradutibili-
almente, a situaçáo de ambiguidade ..." (Critique et Verité, Paris, 1966, dade. Mas 'ameaçador' náo é, de fato, a melhor palavra.
56). Essa é uma descrição esplêndida daquilo no que se transformam, Toda tradiçáo estará sempre aberta à possibilidade de que, em certa
necessariamente, os textos desligados do contexto da tradiçáo, apresentada época e lugar, aqueles que vivem suas vidas, em e através da língua-
por Barthes como se fosse uma visão de como os textos sempre são. em-uso que dá expressão à sua tradiçáo, possam encontrar uma outra
A multiplicidade indefinida de interpretações possíveis corresponde tradiçáo com sua própria língua-em-uso muito diferente e descobrir
à multiplicidade indefinida de traduções, uma vez que toda traduçáo é que, enquanto em algumas áreas de maior ou menor importância eles
uma interpretaçáo. Realmente, é cada vez mais difícil se enganar na não podem compreendê-la nos termos de referência de suas próprias
traduçáo, nessas circunstâncias, uma vez que os cânones de rigor são crenças, sua própria história, e sua própria língua-em-uso, ela oferece
necessariamente relaxados, em nome da criatividade de interpretaçáo. um ponto de vista a partir do qual, uma vez que tenham adquirido sua
E, nesse ponto, é interessante observar que os conservadores modernos língua-em-uso como segunda língua, as limitações, as incoerências e a
estáo de acordo com os radicais pós-modernos: as interpretações de pobreza de recursos de suas próprias crenças podem ser identificadas,
Ezra Pound de Propércio e o tratamento dispensado por Heidegger aos caracterizadas e explicadas de um modo que não é possível a partir de
pré-socráticos anteciparam, nas suas práticas de traduçáo, o que Barthes sua própria tradição.
e outros proclamariam, mais tarde, como teoria. Isso implica que o único modo racional de os adeptos de uma tradiçáo
O pensamento que a modernidade, conservadora ou radical, rejeita abordarem seus rivais, intelectual, cultural e lingüisticamente, é um
é que possa haver modos tradicionais de vida social, cultural e intelec- modo que conceda a possibilidade de que, em uma ou mais áreas, a
tual que sejam inacessíveis a ela e aos seus tradutores. O argumento de outra tradiçáo possa ser racionalmente superior a ela, precisamente no
que é apenas ? medida
i que passamos a compreender o que nos é su- que se refere Aquilo que, na tradiçáo estranha, não podem ainda
postamente inacessível que podemos ter bases para acreditar nessa compreender. A alegaçáo feita, em cada tradiçáo, de que as crenças
inacessibilidade, e de que a aquisição dessa compreensáo é, em si mes- atualmente estabelecidas, compartilhadas pelos adeptos dessa tradiçáo,
ma, suficiente para mostrar que o que era supostamente inacessível, na sáo verdadeiras implica a negaçáo de que isto possa acontecer no que
verdade, náo a é, é convincente apenas quando se supõe que a aquisi- se refere a essas crenças, mas é justamente a possibilidade de que isso
çáo da compreensáo do inacessível é uma questáo de traduzi-lo para possa vir a acontecer que dá sentido à afirmaçáo da verdade e fornece
nossa própria língua-em-uso. Mas se é verdade, como adiantei, que afirmações de verdade e falsidade com um conteúdo que as toma di-
416 Tradição e tradução

ferentes de versões idealizadas de afirmações de comprovação garan-


tida. A existência de amplas possibilidades de intradutibilidade e, portanto,
de ameaças potenciais à hegemonia cultural, lingüística, social e racional
de uma tradição, seja em geral ou numa área particular, C mais do que
uma ameaça, e diferente de uma ameaça. Apenas aqueles cuja tradição Capítulo XX
concede a possibilidade de que sua hegemonia possa ser posta em
questão podem ter a garantia racional para afirmar essa mesma hegemonia.
E apenas as tradições cujos adeptos reconhecem a possibilidade de
intradutibilidade na sua própria língua-em-uso podem lidar adequadamente JUSTIÇAS E RACIONALIDADES
com essa possibilidade.
CONTESTADAS
Essa argumentação exige um comentário explicativo: a condição
que descrevi como característica da língua do final do século XX da
modernidade internacionalizada é melhor compreendida como um tipo
ideal, uma condição que as línguas efetivas dos centros metropolitanos
modernos preenchem em graus variados e progressivos, principalmente
entre as mais afluentes. E a condição social e cultural daqueles que Neste ponto, é importante lembrarmo-nos que a discussão da natureza
falam esse tipo de língua, um certo cosmopolitanismo sem raízes, a da pesquisa constituída pela tradição e dela constitutiva é levada a
condição daqueles que, aspirando estar à vontade em qualquer lugar - cabo não por ela mesma, mas para que possamos chegar, à medida do
exceto, naturalmente, nas culturas de tradições que eles consideram possível, a uma concepção verdadeira da justiça e da racionalidade
atrasadas, fora de moda e não-desenvolvidas -, são, portanto, num prática. A pesquisa sobre a justiça e a racionalidade prática foi, desde
sentido importante, cidadãos de lugar nenhum, é também uma condição o início, informada pela convicção de que toda concepção particular da
típica ideal. É o destino rumo ao qual a modernidade se move, pre- justiça exige, em contrapartida, uma concepção particular da racionalidade
cisamente à medida que ela consegue se modernizar emancipando-se prática, e viceversa. Essa convicção foi reforçada pelo resultado da
das particularidades sociais, culturais e lingüísticas e, portanto da tradição. pesquisa até agora, e ficou evidente que as concepções da justiça e da
(Para uma visão diferente da relevância dos problemas de referência e racionalidade prática, em geral, caracteristicamente nos aparecem como
tradução para a questão de pontos de vista morais rivais, ver David B. aspectos intimamente relacionados de uma visão geral mais ampla, mais
Wong, Moral Relativity, Berkeley, 1984.) ou menos bem articulada, da vida humana e de seu lugar na natureza.
Tais visões gerais, à medida que reivindicam nossa adesão racional,
expressam tradições de pesquisa racional que são, ao mesmo tempo,
tradições expressas em tipos particulares de relações sociais.
Desse modo, a concepção da justiça e da racionalidade prática de
Aristóteles articulava as alegações de um tipo particular de comunida-
de baseada na prática, parcialmente exemplificada na pólis, enquanto a
concepção de Sto. Tomás, como a de Ibn Roschd ou de Maimônides,
expressavam as alegações de um tipo mais complexo de comunidade,
na qual os elementos religiosos e seculares coexistem num todo inte-
grado. Assim, a concepção de Hume da justiça e da relação do ra-
ciocínio com a ação fazia parte de e expressava as alegações de um
tipo particular de sociedade inglesa ou anglicizante, ordenada nos ter-
mos das reciprocidades da paixão e do interesse. Não é algo mera-
418 Justiças e racionalidades contestadas Justiças e racionalidades contestadas 419

mente acidental ou periférico, com relação às suas filosofias, o fato de pressuposto pela pesquisa constituída pela tradição. O reducionismo
que Aristóteles, Sto. Tomás e Hume e, de fato, todos os outros filósofos que aparece recorrentemente na sociologia do conhecimento baseia-se
que estudamos, eram historicamente situados, sendo eles próprios membros no erro de supor que os interesses e as necessidades pré-conceituais
desses tipos de comunidade, estando inevitavelmente envolvidos com podem operar em formas estabelecidas de vida social, independentemente
os conflitos fundamentais da vida histórica dessas comunidades, em das pressuposições informadas pela teoria, sobre o papel de tais interesses
épocas e lugares específicos. Devemos não apenas compreender cada e necessidades na vida humana. A ilusão aparentemente anti-ética da
filosofia como um todo, de modo que possamos compreender as con- autonomia do pensamento filosófico reforça, não intencionalmente, esse
cepções específicas da justiça e da racionalidade prática elaboradas por redutivismo, tratando o reino das teorias e dos conceitos como distinto
cada pensador como partes de um todo, mas também compreender cada do reino dos interesses, necessidades e formas da organização social.
filosofia nos termos do contexto histórico da tradição, da ordem social
e do conflito do qual emergiu. Portanto, as teorias da justiça e da racionalidade prática nos apre-
sentam aspectos das tradições, cuja adesão exige a vivência de uma
Ao fazê-lo, devemos evitar dois tipos opostos de erro, um carac- forma mais ou menos sistematicamente incorporada de vida humana,
terístico de muitos antigos historiadores da filosofia, o outro ainda cada uma com seus modos específicos de relação social, seus cânones
presente, pelo menos, na sociologia do conhecimento. Os historiadores de interpretação e explicação do comportamento dos outros, suas próprias
da filosofia frequentemente apresentam o contexto histórico da vida de práticas avaliativas. Isso não significa que não se pode ser aristotélico
cada filósofo como mero contexto de fundo. Eles foram levados a isso sem ser membro de uma pólis efetiva, ou que não se pode ser humiano
pelo modo como filósofos mais recentes comentam os mais antigos, estando fora das relações específicas hierarquicamente ordenadas da
reconhecendo alguma seqüência histórica mas, às vezes, pouco mais do Inglaterra do século XVIII. Se isso fosse verdade, o estudo das teorias
que isso. Desse modo, o desenvolvimento do pensamento filosófico é aristotélica e humiana só teria um interesse de peças de antiquário. O
apresentado como sendo relativamente autônomo, como um em- que isso, de fato, significa é que s6 se pode ser aristotélico à medida
preendimento socialmente desencarnado, tratando de problemas relati-
que as características da pólis que fornecem um contexto essencial para
vamente atemporais. Por outro lado, alguns sociólogos do conhecimento
o exercício da justiça aristotélica, para a conduç-o da ação e para os
propõem visões do pensamento e da pesquisa filosóficos que os tornam
dependentes, ou mesmo nada mais do que isso, de papéis desempenha- !
usos interpretativos do esquema aristotélico do rac ocínio prático, podem
ser reincorporados na vida de alguém, e de sua época e lugar. E, do
dos pelos interesses sociais, políticos e econômicos, previamente mesmo modo, é apenas à medida que podem ser reproduzidas as ca-
definíveis, de grupos particulares. Segundo essa visão, o que produz a racterísticas da ordem social em cujos termos Hume estruturou suas
mudança não pode ser o progresso em termos de racionalidade; tal visões da justiça e da ação, que se pode, realmente, ser humiano. O mesmo
progresso poderia, no máximo, ser o resultado acidental daquelas que
vale, correspondentemente, para outras tradições de pesquisa.
são consideradas mudanças mais fundamentais.
Pelo contrário, na visão que emergiu aqui, a partir da discussão da 8, efetivamente, uma característica de todas as tradições cujas his-
pesquisa constituída pela tradição e dela constitutiva, esse pensamento tórias temos acompanhado especificamente que, de um modo ou de
e essa pesquisa têm uma história que não é nem distinta nem inteligível outro, todas elas sobreviveram de modo a se tornar não apenas formas
independentemente da história de certas formas de vida prática e so- de vida prática possíveis, mas reais, no domínio da modernidade. Mesmo
cial, nem são meras variáveis dependentes. As teorias filosóficas ex- quando marginalizadas pela ordem social, cultural e política moderna
pressam conceitos e teorias já incorporados em tipos de prática e de dominante, tais tradições mantiveram a adesão dos membros de uma
comunidade. Como tais elas explicitam, para a crítica racional e para série de tipos de comunidade e empreendimento, dos quais nem todos
o desenvolvimento racional posterior, as teorias socialmente incorpo- são conscientes da origem de suas concepções de justiça e racionali-
radas e os conceitos dos quais elas oferecem uma compreensão. For- dade prática. O passado dessas tradições está encapsulado no presente
mas de instituição, organização e prática sociais são sempre, em maior e, nem sempre, de forma fragmentada ou oculta.
ou menor grau, teorias socialmente incorporadas e, como tais, mais ou Portanto, há modos humianos de existência social para os quais as
menos racionais, de acordo com os padrões daquele tipo de racionalidade relações de propriedade e sua estabilidade são da maior importância,
420 Justiças e racionalidades contestadas Justiças e racionalidades contestadas 421

nas quais há reciprocidades bem-estabelecidas de orgulho e estima, e temporâneos sáo, geralmente, pretextos para o liberalismo: os debates
nas quais pode-se recorrer ao reconhecimento de um interesse comum contemporâneos nos sistemas políticos modernos são quase exclusivamente
em manter a ordem em que esses valores florescem, contra as parciali- entre liberais conservadores, liberais liberais e liberais radicais. Há
dades do sujeito, do grupo e do interesse familiar. Assim há, também, pouco espaço, nesses sistemas políticos, para a crítica do próprio sistema,
comunidades e empreendimentos aristotélicos baseados na prática, nos isto é, para pôr o liberalismo em questão.
quais a justiça do merecimento é a virtude social daqueles que reco- É de se esperar, portanto, que, nos debates contemporâneos sobre a
nhecem os bens ordenados que perseguem, como especificando o que justiça e a racionalidade prática, um problema inicial para os que se
é exigido deles, para eles, nas suas circunstâncias, e ainda daqueles opõem ao liberalismo seja o de descobrir ou construir um foro ou arena
cujo télos é o bem em si. E assim, naturalmente, há comunidades re- institucional no qual os termos do debate não tenham já de antemão
ligiosas e educacionais de cristãos tomistas, assim como de outros tipos determinado seu resultado. Para sermos capazes de considerar as di-
de cristãos agostinianos, tanto católicos como reformados. Além disso,
mensões desse problema devemos, primeiramente, voltar à situação da
é importante não se esquecer de que há outras tradições além das que
pessoa a quem, afinal de contas, esse livro é primeiramente dirigido,
são discutidas neste livro, principalmente mais de uma tradição judaica,
alguém que, não tendo ainda aderido a nenhuma tradição coerente de
e as de outras culturas diferentes da nossa, que também têm suas ex-
pesquisa, é assediado por disputas sobre o que é justo e sobre como é
pressões sociais contemporâneas.
razoável agir, tanto no nível de questões imediatas particulares - "A
Cada uma delas propõe suas alegações, explicita ou implicitamente, justiça exige que eu participe ou me oponha a esta guerra?", "A dis-
numa estrutura institucionalizada profundamente informada pelas su- criminação positiva, em favor de membros de grupos até hoje oprimidos
posições do liberalismo, de modo que a influência do liberalismo vai e privados de direitos fundamentais, na indicação deste emprego, é
além dos efeitos de sua defesa explícita. E assim como as tradições uma injustiça?" -como no nível no qual concepções sistemáticas rivais,
mais antigas conseguem sobreviver na modernidade liberal, justamente informadas pela tradição, estão em disputa.
porque expressam aspectos da vida humana e modos de relacionamento
humanos que surgem em formas sociais e culturais muito diferentes, Essa pessoa enfrenta as alegações de cada uma das tradições que
também o liberalismo moderno teve suas antecipações em culturas consideramos, e também as de outras. O que significa reagir racional-
anteriores, principalmente, no que se refere à história estudada neste mente a elas? A resposta inicial é a seguinte: dependerá de quem você
livro, em alguns aspectos do pensamento e da prática política grega é e como você se compreende. Este não é o tipo de resposta que fomos
rejeitados por Sócrates, Platão e Aristóteles, mas defendidos por certos educados a esperar em filosofia, mas isso ocorre porque nossa educa-
sofistas, entre outros (ver Eric A. Havelock, The Liberal Temper in Greek ção em e sobre filosofia pressupôs, geralmente, algo que, de fato, não
Politics, New Haven, 1957). As particularidades históricas das tradições, é verdade, isto é, que há padrões de racionalidade adequados para a
o fato de que cada uma delas só deve ser apropriada através da relação avaliação de respostas rivais a essas questões, igualmnte disponíveis,
com uma história contingente particular, não significa, por si só, que pelo menos em princípio, a todas as pessoas, independentemente da
essas histórias não podem se estender ou mesmo florescer em ambien- tradição na qual se encontram ou se habitam ou não uma tradição. Uma
tes, não apenas diferentes, mas também hostis àqueles nos quais uma vez que essa falsa crença é rejeitada, fica claro que os problemas da
tradição surgiu originalmente. justiça e da racionalidade prática, e de como enfrentar as alegações
sistemáticas rivais das tradições conflitantes entre si, no agón do en-
O liberalismo, tal como o compreendi neste livro, aparece, natu-
contro ideológico, não são um único e mesmo conjunto de problemas
ralmente, em debates contemporâneos, numa série de disfarces e, ao
para todas as pessoas. Quais são esses problemas, como eles devem ser
fazê-lo, apropria-se do debate, reformulando disputas e conflitos inter-
formulados e dirigidos, e como devem ser resolvidos, se é que devem,
nos a ele, de modo que eles parecem tornar-se debates do liberalismo,
variará não apenas com a situação histórica, social e cultural das pessoas
questionando este ou aquele conjunto particular de atitudes ou políti-
que levantam esses problemas, mas também com a história das crenças
cas, mas não os princípios fundamentais do liberalismo, no que se
e atitudes de cada pessoa particular até o momento em que ela considerou
refere aos indivíduos e à expressão de suas preferências. Desse modo,
esses problemas inevitáveis.
os chamados conservadorismo e radicalismo, nos seus disfarces con-
Justiças e racionalidades contestadas 423
422 Justiças e racionalidades contestadas

O que a racionalidade exige dessa pessoa é que ela confirme, ou


O que cada pessoa enfrenta é, imediatamente, um conjunto de po- não, ao longo do tempo, essa visão inicial de sua relação com essa
sições intelectuais rivais, um conjunto de tradições rivais, expressas tradição particular de pesquisa, assumindo, num grau apropriado, tanto
mais ou menos imperfeitamente em formas contemporâneas de relação as argumentações em curso dentro dessa tradição como seus debates e
social, e um conjunto de comunidades rivais de discurso, cada uma conflitos argumentativos com um ou mais dos seus rivais. Essas duas
com seus modos específicos de fala, argumentação e debate, reivindi- tarefas não são, de modo algum, a mesma coisa. A última exige, à
cando a adesão do indivíduo. É através da relação entre o que é espe- medida do possível, a aquisição da língua-em-uso da tradiçáo rival
cífico a cada posição, expressa nesses três níveis de doutrina, história particular em questão, como segunda língua, o que, por sua vez, exige
e discurso, e o que é específico às crenças e à história de cada indi- um trabalho da imaginaçáo através do qual o indivíduo é capaz de se
víduo que enfrenta esses problemas, que o significado dos problemas posicionar imaginariamente no esquema de crenças habitado pelos adeptos
para essa pessoa é determinado. De modo que o encontro intelectual dessa tradição rival, de modo a perceber e conceber os mundos natural
genuíno não ocorre e não pode ocorrer de um modo generalizado e e social como eles os percebem e concebem.
abstrato. Quanto mais ampla a audiência com quem desejamos falar,
menos devemos nos dirigir a alguém em particular. Como, então, de- Possuir os conceitos de uma cultura estranha, nesse modo secundário,
informado pela imaginaçáo conceitual, é muito diferente de se possuir
vemos caracterizar os tipos específicos diferentes de situações contem-
os conceitos que são genuinamente seus. Pois, à medida que alguém
porâneas, nas quais os problemas da justiça e da racionalidade prática
discorda sobre se um conceito particular tem aplicação ou não - o
podem surgir, ser perseguidos e, talvez, resolvidos, por aqueles que conceito de justiça de Hume, ou o conceito de vontade de Agostinho
ainda não herdaram nenhuma tradição substantiva particular? - porque o seu próprio esquema conceitual impede sua aplicação, ele
Há, inicialmente, o tipo de pessoa para quem o que um encontro só poderá empregá-lo no modo como um ator que faz seu papel diz
com uma tradiçáo particular de pensamento e ação, no que diz respeito coisas que ele próprio não acredita. Possuímos tais conceitos sem poder
a essas questões, pode fornecer é uma ocasião para o auto-reconheci- empregá-los na primeira pessoa, a não ser como atores, falando de um
mento e o autoconhecimento. Essa pessoa terá aprendido a falar e escrever modo que não é o nosso. Mas isso não quer dizer que não podemos
uma língua-em-uso particular, cujas pressuposições do uso vinculam compreender o que significa estar numa outra tradição e adotar suas
essa língua a um conjunto de crenças que essa pessoa pode nunca ter crenças, através da imaginação conceitual empática, em alguns casos;
formulado explicitamente para si própria, a não ser de modo ocasional os limites de possibilidade são aqueles estabelecidos pelos tipos de
e parcial. Essa pessoa teve contato com certos textos, reagindo a eles intradutibilidade catalogados anteriormente.
de maneiras diferentes, e permaneceu indiferente a outros, é aberta a Essa pessoa passa a habitar uma comunidade de discurso particular,
certos tipos de considerações argumentativas e não foi persuadida por informada pela tradição, de um modo que a capacita a estabelecer um
outras. Ao encontrar uma apresentação coerente de uma tradição par- diálogo argumentativo com os membros de outras tradições do mesmo
ticular de pesquisa racional, seja através de seus textos seminais, seja tipo. Essa capacidade de reconhecimento do sujeito, como já estando
através de alguma reformulação posterior, talvez contemporânea, de suas familiarizado, até certo ponto, com uma tradição, diferencia radicalmente
posições, essa pessoa frequentemente sofre um choque de reconheci- esse tipo de pessoa e esse tipo de encontro com uma tradiçáo de pes-
mento: é isto que eu considero verdade, ela pode dizer, e também o quisa da pessoa que se encontra fora de toda tradiçáo de pesquisa que
que, de algum modo, sempre pensei que fosse verdade. O que ela ela encontra, porque traz para o encontro com a tradição padrões de
descobre é um esquema geral de crenças no qual muitas de suas cren- justificação racional que não podem ser satisfeitos pelas crenças de
ças estabelecidas particulares, senão todas, encontram seu lugar, um nenhuma tradição.
conjunto de modos de ação e de cânones interpretativos para a ação
Esse é o tipo de pessoa do período pós-iluminista que reage ao
que lhe apresentam seu modo de raciocinar sobre a ação como inteli-
fracasso do Iluminismo em fornecer padrões de julgamento racional
gível e justificável, de um modo ou a um ponto que ela nunca conhe- neutros, impessoais e independentes da tradição, concluindo que ne-
ceu, e a história de uma tradiçáo da qual, a história narrada de sua nhum conjunto de crenças proposto é, portanto, justificável. O mundo
vida, até então, participa enquanto uma parte inteligível.
424 Justiças e racionalidades contestadas Justiças e racionalidades contestadas 425

cotidiano deve ser tratado como um mundo de necessidades pragmáti- racional; de um ponto de vista agostiniano, eles ignoraram até mesmo
cas. Todo esquema de crenças gerais que vai além do domínio da o padrão interno à mente, à luz do qual somos capazes de conhecer
necessidade pragmática é igualmente injustificado. Náo há nenhum nossas próprias deficiências e, conseqüentemente, nossa inabilidade para
esquema de crenças com o qual tal indivíduo é capaz de identificar-se, resolvê-las. Em cada caso, eles sáo compreendidos pelos adeptos dessa
e a suposiçáo imaginária de crenças náo efetivamente professadas não tradiçáo particular de pesquisa como carecendo de correçáo, até mesmo
vale e não pode valer para a pesquisa da racinalidade desse esquema, daquela correçáo mínima que lhes permitiria estabelecer um diálogo
pois já ficou claro que todos os esquemas desse tipo sáo falhos. Esse com essa tradiçáo o que, através de sua própria atitude, eles se tomaram
indivíduo, portanto, vê a ordem social e cultural, a ordem das tradições, impedidos de possuir ou alcançar. Como, entáo, seria essa transformação
como uma série de simulações. E não pode pertencer a nenhuma co- possível?
munidade de discurso, pois os vínculos da língua que ele fala com Unicamente, parece, através de uma mudança que levasse a uma
qualquer esquema pressuposto de crenças são os mais desconexos conversão, uma vez que uma condição para esse tipo alienado de su-
possíveis. As línguas naturais das pessoas alienadas desse modo são as jeito encontrar uma língua-em-uso, que o tomasse capaz de estabelecer
línguas internacionalizadas da modernidade, as línguas de todo e ne- um diálogo com alguma tradiçáo de pesquisa, é que ele se transforme
nhum lugar. em algo diferente do que é agora, um sujeito capaz de reconhecer,
Essas pessoas que pensam ter conseguido evitar o engano, e o auto- através do modo como ele se expressa nos padrões lingüísticas da
engano, de tais simulações náo podem compreender o que significa pesquisa racional, algo além de expressões de vontade e de preferên-
aderir a um èsquema de crenças, a náo ser como um ato arbitrário da cia. Em oposiçáo ao tipo de sujeito que, ao encontrar-se com uma
vontade, isto é, arbitrário à medida que não é suficientemente baseado tradiçáo de pesquisa, realiza seu autoconhecimento e reconhecimento,
em razões. E atribuirá0 justamente tais atos arbitrários da vontade àqueles porque já está informado pelas disposições, sentimentos, língua-em-
que lhes parecem ter sido enganados, ou que se enganaram, ao tornar- uso e esquema mental característicos dessa tradiçáo particular, esse
se cúmplices dessas simulações. Portanto, as crenças, as adesões a Últim tipo de sujeito é estranho a qualquer conjunto de disposições,
concepções de justiça e o uso particular de modos de raciocínio sobre sentimentos, pensamentos ou línguas-em-uso desse tipo, e não informado
a açáo parecer-lhes-áo dissimulações adotadas pela vontade arbitrária por eles.
para levar à frente seus projetos, para se estabelecer. Como, se é que Pode muito bem acontecer que essas pessoas sejam retratadas nos
é possível, poderia essa pessoa, a partir de um encontro com uma textos literários e filosóficos modernos mais frequentemente do que
tradiçáo particular de pesquisa, passar a habitar essa tradiçáo enquanto encontradas na vida cotidiana. Tanto nos textos quanto na vida, eles
agente racional? Que tipo de transformação seria necessária? representam um ponto de extremismo moral e linguístico com relação
Essa transformação, compreendida do ponto de vista de qualquer a qualquer forma de pensamento e de vida constituída pela tradiçáo. A
tradiçáo racional de pesquisa, exigiria que aqueles que adotam essa maioria de nossos contemporâneos náo vive nesse ponto extremo, ou
posição tornem-se capazes não s6 de se reconhecer como presos a um sequer se aproxima dele, mas também não é capaz de reconhecer em
conjunto de crenças que carece de justificaçáo, precisamente do mesmo si própria, nos seus encontros com as tradições, que já deu, implici-
modo e no mesmo grau que as posições que rejeitam, mas também de tamente, sua adesão a uma tradiçáo particular, de modo significativo.
se compreender como carecendo, até entáo, daquilo que uma tradiçáo Ao contrário, tende a viver dividida, geralmente aceitando sem ques-
proporciona, enquanto pessoas parcialmente constituídas, tal como são tionar os pressupostos das formas liberais dominantes na vida pública,
até este ponto, por uma ausência, por aquilo que é, do ponto de vista mas utilizando, nas diferentes áreas de suas vidas, uma série de recur-
das tradições, um empobrecimento. De um ponto de vista humiano, sos de pensamento e açáo gerados por tradições, transmitidos através
eles deturparam seus sentimentos de tal modo que se tornaram inca- de fontes sócioculturais familiares, religiosas, educacionais e outras.
pazes de reciprocidade; de um ponto de vista aristotélico, eles se re- Esse tipo de sujeito que tem muitas semiconvicções e muito poucas
cusaram, ou foram incapazes de aprender que não se pode formar suas convicções coerentes estabelecidas, muitas alternativas párcialmente
próprias opiniões pensando sozinho, que é s6 através da participaçáo formuladas e muito poucas oportunidades de avaliá-las sistematicamente,
numa comunidade racional baseada na prática que alguém se torna traz aos seus encontros com as alegações de tradições rivais uma in-
426 Justiças e racionalidades contestadas Justiças e racionalidades contestadas 427

coerência fundamental que é demasiado perturbadora para ser admi- O que emerge dessa visão, do modo no qual tipos diferentes de
tida, no auto-exame, a não ser em raras ocasiões. indivíduo teriam que se envolver com as alegações de tradições opostas
de pesquisa é, novamente, a especificidade dos tipos necessários de
Essa fragmentação aparece em atitudes morais divididas, expressas diálogo. Não há nenhum modo de se envolver com ou avaliar racio-
em princípios morais e políticos inconsistentes, na tolerância de ra- nalmente as teses propostas na forma contemporânea por uma tradição
cionalidades diferentes em meios diferentes, na compartimentalização particular que não seja nos termos estruturados, tendo-se em vista o
defensiva do eu e nos usos da língua que vão dos fragmentos de uma caráter específico e a história dessa tradição, por um lado, e o caráter
língua-em-uso, através das expressões da modernidade internacionali- específico e a história do indivíduo particular, por outro lado. Se
zada, aos fragmentos de outra. (O teste mais simples da verdade dessa abstrairmos as teses particulares a serem debatidas e avaliadas de seus
tese é o seguinte: considere qualquer princípio, passível de ser discu- contextos nas tradições de pesquisa e, então, tentarmos discutí-las e
tido, que a maioria dos membros de um dado grupo aceita; será então avaliá-las nos termos de sua justificabilidade racional para qualquer pessoa
esperado que um princípio incompatfvel, em algum tipo de formulação, racional, para indivíduos concebidos como tendo sido abstraídos de
frequentemente empregando uma linguagem muito diferente da usada suas particularidades de caráter, história e circunstância, estaremos fazendo
na formulação do primeiro princípio, também receberá o assentimento com que um tipo de diálogo racional, que poderia passar pela avaliação
de uma fração substancial do mesmo grupo). Como podem essas pes- argumentativa à aceitação ou rejeição racional de uma tradição de pesquisa,
soas ser interpeladas e empreender um diálogo argumentativo com uma seja efetivamente impossível. Entretanto, é justamente essa abstração,
tradição qualquer de pesquisa, ou ainda com mais de uma tradição? com relação às teses a serem debatidas e às pessoas empenhadas no
O que esse indivíduo tem de aprender é como testar dialeticamente debate, que é imposta nos foros públicos de pesquisa e debate na cultura
as teses que lhe forem propostas por cada tradição e, ao mesmo tempo, liberal moderna, impedindo assim, efetivamente, na sua maior parte,
utilizar essas mesmas teses para testar dialeticamente as convicções e que as vozes da tradição fora do liberalismo sejam ouvidas. Consideremos
reações que ele próprio trouxe para o encontro. Ele deve envolver-se os modos nos quais isso ocorre, na universidade liberal moderna.
no diálogo entre as tradições, aprendendo a usar a língua de cada uma A fundação da universidade liberal foi a abolição dos testes religio-
delas, a fim de descrever e avaliar as outras através dela. Assim, cada sos para os professores universitários. A imposição de testes religiosos
um desses indivíduos será capaz de transformar suas próprias incoerências garantia um certo grau de uniformidade de crença no modo no qual o
iniciais em vantagens argumentativas, exigindo de cada tradição que currículo era organizado, apresentado e desenvolvido através da pesquisa.
ela lhe forneça uma visão de como essas incoerências podem ser melhor Cada uma dessas universidades pré-liberais foi, conseqüentemente, até
caracterizadas, explicadas e superadas. Uma das marcas de qualquer certo ponto, uma instituição que expressava um tipo particular de tradição
tradição madura de pesquisa racional é que ela possui os recursos para de pesquisa racional ou um grupo limitado dessas tradições, um grupo
fornecer visões de uma série de condições nas quais a incoerência se cujos acordos podem, ocasionalmente, fornecer o contexto para um
tomaria inevitável e para explicar como essas condições ocorreriam. conflito mais ou menos intenso. Assim, as universidades escocesas dos
Assim, esses indivíduos farão com que uma tradição de pesquisa lhes séculos XVII e XVIII articularam um tipo de tradição protestante de
forneça um tipo de autoconhecimento que ainda não possuíam, pro- pesquisa, assim como as universidades holandêsas do mesmo período.
porcionando-lhes, inicialmente, uma consciência do caráter específico A Universidade de Paris, no século treze, foi o meio para o conflito
de sua própria incoerência e, ainda, explicando o caráter particular entre os pensadores aristotélicos e agostinianos rivais e entre os pro-
dessa incoerência através de seu esquema metafísico, moral e político tagonistas de soluções alternativas e contrárias para esse conflito.
de classificação e explicação. Os catálogos de virtudes e vícios, as
normas de adequação e inadequação, as concepções de sucesso e fracasso Quando as universidades sem testes religiosos foram fundadas ou
educacional, as narrativas de tipos possíveis de vida humana que cada os testes religiosos foram abolidos nas universidades que antes os apli-
tradição elaborou nos seus próprios termos, todos esses elementos levam cavam, a conseqüência não foi que essas universidades tomaram-se
o indivíduo educado no auto-conhecimento de sua incoerência a reconhecer lugares de conflito intelectual ordenado, nos quais os pontos de vista
por qual desses modos rivais de compreensão moral ele se considera conflitantes e alternativos das tradições rivais de pesquisa poderiam ser
mais adequadamente explicado. sistematicamente elaborados e avaliados. Se isso tivesse ocorrido, a
428 Justiças e racionalidades contestadas Justiças e racionalidades contestadas 429

unidade de crença teria sido trocada por uma multiplicidade de crenças tipos diferentes de língua-em-uso, através dos quais tipos diferentes de
conflitantes, cada uma podendo fornecer sua própria estrutura de pesquisa. argumentação podem ser feitos, o ponto de vista dos foros da cultura
Ao contrário, o que aconteceu foi que, na indicação de professores liberal moderna pressupõe a possibilidade de uma língua comum para
universitários, as considerações de crença e adesão foram totalmente todos os falantes ou, pelo menos, da tradutibilidade de qualquer língua
abolidas. Uma concepção da competência acadêmica, independente do para qualquer outra. Onde o ponto de vista de uma tradição implica o
ponto de vista, foi imposta ao processo de nomeação. Uma concepção reconhecimento de que o debate fundamental se dá entre compreensões
correspondente de objetividade na sala de aula exigia que os professores contrárias e conflitantes da racionalidade, o ponto de vista dos foros da
apresentassem os tópicos que iriam ensinar como se fossem, realmente, cultura liberal moderna pressupõe a ficção de padrões universais de
padrões comuns de racionalidade, aceitos por todos os professores e racionalidade, mesmo que impossíveis de serem formulados. Onde o
acessíveis a todos os alunos. E foi desenvolvido um currículo que, à ponto de vista de uma tradição não pode ser apresentado, a não ser de
medida do possível, abstraía as disciplinas a serem ensinadas de sua um modo que leve em consideração a história e a particularidade his-
relação com os pontos de vista gerais em conflito. As universidades tórica, tanto das próprias tradições como dos indivíduos que estabele-
tornaram-se instituições comprometidas em sustentar uma objetividade cem diálogos com elas, o ponto de vista dos foros da cultura liberal
fictícia. moderna pressupõe a irrelevância da história de um indivíduo para a
Um dano menor foi causado ao ensino e à pesquisa nas ciências sua posição enquanto participante de um debate. Enfrentamo-nos, uns
naturais. Pois elas se constituíram, na cultura moderna, como uma aos outros, nesses foros, abstraídos de nossas particularidades históricas
tradição relativamente autônoma de pesquisa, sendo exigido, para que e privados delas.
se possa ser admitido nela, a aceitação de quaisquer princípios básicos Isso implica, necessariamente, que a racionalidade específica das
comuns daquela tradição, num período particular. A dissidêncimadical tradições de pesquisa só pode se reestabelecer o suficiente para questionar,
- dos astrólogos e frenologistas, por exemplo - foi sempre excluída efetivamente, a hegemonia cultural e política do libera-lismo, evitando
das ciências naturais modernas. Um dano maior foi causado às ciências ou subvertendo os modos liberais de debate. Como isso pode ser feito,
humanas, nas quais a perda dos contextos oferecidos pelas tradições de em conformidade com as exigências da justiça e da racionalidade?
pesquisa tem, progressivamente, impedido àqueles que as ensinam o Quando essa questão é posta, somos lembrados, mais uma vez, que o
acesso a padrões, à luz dos quais alguns textos poderiam ser defendi- que eu disse sobre as tradições de pesquisa racional, em geral, é, no
dos como sendo mais importantes do que outros, e alguns tipos de teoria máximo, um esboço de um conjunto de atitudes, crenças e pressupostos
como mais convincentes do que outros. comuns, desenvolvidos de modos muito diferentes, em cada tradição
particular e fornecendo respostas diferentes e incompatíveis para essas
O que o aluno, conseqiientemente, enfrenta, em geral, e isso tem questões, quando desenvolvidas tão completamente quanto sua formu-
pouco a ver com as intenções particulares de seus professores, é uma
lação o exige. Portanto, chegamos num ponto da argumentação geral
inconclusividade aparente em todas as argumentações fora das ciências
naturais, uma inconclusividade que parece abandoná-lo às suas preferências
- pode ser que já o tenhamos alcançado há algum tempo - no qual
só é possível falar a partir de uma tradição particular, de um modo que
pré-racionais. Desse modo, o aluno caracteristicamente sai de uma
implicará em conflito com tradições rivais. Há um modo de desenvolver
educação liberal com um conjunto de habilidades e de preferências, e
a argumentação desse livro que seria aristotélico, mas antagônico tanto
com pouco mais do que isso, alguém cuja educação foi tanto um processo
a Agostinho quanto a Hume; um modo que seria agostiniano, mas
de privação como de enriquecimento. Felizmente, nem toda educação,
implicando na rejeição tanto de Aristóteles como de Hume; um modo
em nossa cultura, é liberal, nesse sentido, mesmo em instituições cujo
que seria tomista, sintetizando Aristóteles e Agostinho, mas contrário
ethos dominante é o desse tipo de liberalismo.
tanto aos anti-agostinianos aristotélicos, como aos anti-aristotélicos
Há, portanto, uma profunda incompatibilidade entre o ponto de vista agostinianos, sem falar em Hume; e haveria, finalmente, um modo
de qualquer tradição racional de pesquisa e os modos dominantes do humiano de desenvolvê-la, no qual aquelas que foram consideradas as
ensino, da discussão e do debate contemporâneos, acadêmicos ou não. limitações e superstições de Aristóteles, Agostinho e Sto. Tomás, se-
Onde o ponto de vista de uma tradição exige o reconhecimento dos riam expostas histórica e filosoficamente.
i Justiças e racionalidades contestadas 43 1
430 Justiças e racionalidades contestadas

I
H&,portanto, pelo menos quatro modos alternativos de se continuar
I
No primeiro deles, o esquema de pensamento de Aristóteles foi
1 desenvolvido por Sto. Tomás de um modo que lhe permitiu acomodar
as narrativas dos capítulos anteriores, pelo menos quatro modos alter-
nativos de se extrair outras conclusões deste livro, mas nenhum autor alegações e intuições agostinianas juntamente com teorizações aris-
poderia escrever mais de uma delas. Pois é justamente neste ponto que totélicas, num único empreendimento dialeticamente construído. No
deve começar a discussão contemporânea substancial entre, a favor e segundo, a inabilidade dos aristotélicos escoceses do século XVII em
contra as tradições particulares de pesquisa, e ainda a favor e contra a fornecer uma resposta convincente às novas dúvidas epistemológicas
antitradição, no que se refere à justiça e à racionalidade. É aqui que sobre seus primeiros princípios e em estabelecer uma relação adequada
devemos começar a falar como protagonistas de uma parte envolvida, entre seu agostinismo calvinista e seu aristotelismo levou Hutcheson às
ou então permanecer em silêncio. Um livro que termina concluindo suas reformulações de posições mais antigas, nos termos do caminho
que o que podemos aprender de sua argumentação é onde e como das idéias, tornando toda a tradição escocesa vulnerável à crítica de
começar pode parecer não ter alcançado muito. Entretanto, afinal de Hume. Em contrapartida, o aristotelismo e o agostinismo da síntese
contas, Descartes pode estar certo sobre uma coisa: em filosofia, saber dialética tomista não eram vulneráveis desse modo. Essa síntese pode
como começar é a mais difícil de todas as tarefas. Nós, quem quer que fornecer uma concepção muito diferente de como a justificaçilo dos
sejamos, só podemos começar a pesquisa a partir da perspectiva ofe- primeiros princípios deve ser feita e da relação da filosofia com a
recida por nossa relação com um passado social e intelectual específi- teologia, que não permite nenhuma concessão às premissas a partir das
co, através do qual nos afiliamos a uma tradição particular de pesquisa, quais Hume iria extrair suas conclusões subversivas.
continuando a história dessa pesquisa até o presente, como uma histó- Portanto, as narrativas desses dois episódios convergem para mos-
ria aristotélica, agostiniana, tomista, humiana, liberal pós-iluminista, trar uma tradição aristotélica com recursos para sua própria expansão,
ou qualquer outra. correção e defesa, recursos a sugerirem que, prima facie, pelo menos,
Conseqüentemente, para cada um de nós, a questão agora é: a que podemos concluir legitimamente que, em primeiro lugar, aqueles que
questões, no debate contemporâneo, nos remete essa história particu- desenvolveram suas reflexóes através dos tópicos da justiça e da ra-
lar? Que recursos nossa tradição particular nos oferece nessa situação? cionalidade prática, a partir do ponto de vista construído por Aristóteles,
Podemos, através desses recursos, compreender as realizações e os e na direção apontada, primeiro por Aristóteles, depois por Sto. Tomás,
sucessos, os fracassos e esterilidades de tradições rivais mais ade- têm toda razão, pelo menos até agora, para sustentar que a racionali-
dade de sua tradição foi confirmada nos seus encontros com outras
quadamente do que seus próprios adeptos? Mais adequadamente, se-
tradições e, em segundo lugar, que a tarefa de caracterizar e explicar
gundo nossos padrões? Mais adequadamente, também segundo os de- as realizações e sucessos, assim como as frustrações e fracassos, da
les? É à medida que as histórias narradas neste livro nos remetem a tradição tomista nos termos oferecidos por tradições rivais de pesquisa
respostas a essas questões que elas podem também sustentar a promes- pode, mesmo do ponto de vista dos adeptos dessas tradições, ser uma
sa de responder às seguintes questões: justiça, de quem? Qual tarefa mais difícil do que às vezes se supõe.
racionalidade?
Esta conclusão, naturalmente, será inaceitável a todos os que dão
Entretanto, talvez, um pouco mais pode ter sido realizado, inciden- sua adesão a tradições rivais de pesquisa, e não há nenhum padrão de
talmente, ao caminharmos para este ponto na argumentação. No fecha- argumentação independente da tradição que possa mostrar que ela seja
mento da discussão da visão de Aristóteles, observei que ela oferecia errada. Será, fundamentalmente, através do modo como serão capazes
uma perspectiva a partir da qual Sócrates e Platão poderiam ser com- de escrever suas histórias rivais que, do seu próprio ponto de vista e
preendidos como tendo contribuído para a constituição de uma tradição do ponto de vista tomista, confirmarão, ou não, esta conclusão tomista
particular de pesquisa, no que se refere à justiça e à racionalidade emergente. As reivindicações rivais da verdade de tradiçües conflitantes
prática, uma tradição, naquele momento, que foi muito bem articulada de pesquisa dependem, para serem justificadas, da adequação e do
pelo próprio Aristóteles. Dois outros episódios, na história do desen- poder explicativo das histórias que os recursos de cada uma delas permitem
volvimento futuro daquela mesma tradição foram, desde então, narra- a seus adeptos escrever.
dos.
ÍNDICE DE NOMES

Abelardo, 184. 202 224, 225, 226, 242, 243, 244, 245,
Abraão, 165 271, 273, 275, 278, 283, 284, 290,
294, 296, 297, 307, 320, 321. 328,
Ackerman, B. A., 370
344, 345. 348, 351, 352, 353, 354,
Ackrill. J. L., 158 358, 362. 376, 385. 404, 405. 406.
Adão. 172, 210 417, 418. 420, 429, 430, 431
Addison, J., 318 Amstrong, A. H.. 172
Adamanto, 77, 85, 93, 94, 95, 111 Arnauld, A., 291
Agamenon, 26, 27, 28, 38 Arrow, K., 367
Agostinho, 161~s.. 172, 173. 174. 175, Asclépio, 72
178. 179. 1981. 1 8 , 201, 203, 208, 209, Ashworth, E. J., 245
215. 216. 217, 219, 223, 224. 309. 351, Atanásio, 168, 346
352, 388, 413, 423, 429 Atena, 27, 30, 37
Aikenhead, Thomas, 263, 264 Atena Polias, 73
Albeno Magno, 185~s..207, 351 Audi, R., 366, 367
Alcibíades, 73, 77, 79 Ayer. A. J., 329
Alexandre da Macedônia, 102, 103, 104,
107, 404 Bagehot, Waiter, 273, 306
Ambrósio, 177 Baier, A., 326
Anderson, John, 23 Baiilie. R., 244, 245, 265, 279, 280, 305
Anscombe, G. E. M., 366 Baifour of Pilrig, J., 346
Anselmo. 184 Barbeyrac, J., 285
Antígona, 119 Banhes, R., 414
Antípater, 102 Bastian , C., 9
Antifonte, 161 Bayle, P., 252, 270, 312
Antonino. 161 Beattie, 355
Aquiles. 26,27.28,29,30,37,38,69,71, Benholme, 111, 254
102 Bennett, W. J., 413
Apolo, 414 Bentham. J., 17, 192, 349, 379
Argyll, Segundo Duque de.(John Campbell), Berkeley, G.. 268, 269, 276, 312, 318
24 1 Blacklock, T.. 306, 3 18
Argyll, Terceiro Duque de (Archibald Blackstone, W.. 218, 247, 248, 249, 286,
Campbell), 241 33 1
Aristófanes, 67. 70, 402 Blair, H.. 304
Aristóteles, 7. 8, 14, 19, 24, 38, 71, 97, Block, F., 229
98. IOlss., 117~s..168. 173, 178, 179,181, Boécio, 192
182, 183, 184, 185, 199ss., 161, 171, 173,
182, 189, 190, 193. 194, 195, 196, 198, Bohr, N., 390
199, 202, 205, 207. 208. 209, 210, 211. Boltmann, L., 389, 390
E 214, 215, 216, 217. 218. 220, 221, 222, Boswell, J., 303, 304
434 índice de nomes fndice de nomes 435

Briseida, 28 Creonte, 70
Epicuro, 253 Gilherme de Orange. 245, 254, 319, 340
Buliert, B. J., 274 Crisis. 71
Er, 94 Guilherme ii, 245
Burgersdijk. F., 245 Crisótemis, 119
Erskine, E., 266, 274, 303 Gwynn, A., 176
Burke, E., 18. 19, 236, 237, 248, 380 Crítias, 77 Erskine. H., 303
Burnet, J., 23, 288 Cromweil, 245 Erskine, R., 266, 303
Burrell, D.. 211 Crousaz, J. P., 312 H a l i . P. M., 9
Espêusipo, 98 Halyburton, T., 263, 264, 265, 267, 301
Butler, J., 290 Crowe, M. B., 206 Espinoza. B. de. 253, 264, 270. 275
Butts, R. E., 244 Cuilen. W., 304 Hamilton, W., 269
Ésquilo, 37, 67
Bynkershoek, Comelius van. 285 Cumberland. R.. 283. 287 Hardie, W. F. R., 150
Euclides, 269
Eumeu, 30 Hanington, J., 285
C aim, 171, 202 D a h l . N. O., 106, 150, 154 Eurípedes, 74, 78 Hart, H. L. A,, 370
Havelock. E. A., 420
Cálicles, 82, 87, 99, 123 Dahl. R. A., 373 Euricléia, 26, 30
Evans, J. D. G., 129 Hegel, G. W. F., 22, 186, 187
Calístenes, 102 Daiches, D.. 277
Heidegger, M., 414
Calvino, J., 174, 244 Darvey, D., 72 Heitor, 39
Cameron, J. K., 266, 267 Darvey, H., 72 Fenton, B.. 257
Helenos, 71
Campbell, A., 265, 266, 267, 275 Davi, 165 Ferguson, A., 280
Henrique IV, 175
Campbell, G., 268. 274, 304, 347 Davidson, D., 326, 398 Fielding, H., 325 Hera.
Héracles,30 71, 74, 75
Campbell, R. H., 266 Davie, G. E., 259, 269, 278 Fiering, N., 291
Carlyle, A. J., 174, 177 Filipe Ii da Macedônia, 103 Heráclito, 23
Deifobo. 68
Carlyle, A., 239 Filocteto, 71. 72, 73, 74, 75, 110, 206 Hermes, 73
Deleuze, G.. 395
Carmichael, G., 257, 258, 279, 281. 283, Fílon. 173 Hildebrando, 174, 176, 177
* Demétno de Falero, 103
LU3 r Findlay, J., 107 Hirschman, A. 0.. 231
Demóstenes, 103 Finnis, J., 206
Carstares, W., 254 Hobbes, T., 78, 111, 125, 126, 192, 253,
Demda, J., 395 Fitzgerald, R., 29, 32 264, 275, 283, 315
Cassandro, 103
Descartes. R., 244,270,275,276,283,287. Fletcher, A., 277, 278, 279, 287, 288, 332 Home, G., 303, 305
Chapman, G., 28, 29
291, 312, 387, 388, 430 Forbes. D., 252 Home, Henry, Lord Kames, 395, 346
Cáriades, 76
Devereux, D., 106 Fox, R., 403 Homero. 24ss., 28, 29, 30, 33, 34, 35, 36,
Carlos II, 244, 251, 262
Case, T., 107 Dewey, 187 Frankel, H., 33, 34 37, 39,52, 53.59,69,74, 75, 78, 93, 94,
Diderot, D., 372 Freud, S., 372 102. 110, 113, 165, 349, 413
Céfalo, 77, 84, 95 Horácio, 407, 408
Chapman, 29. 32 Dihle, A., 171, 172, 173
Diódoto, 54. 68 Hortilius, T., 284
Chemiss, H. F.. 94 G a i e n o , 185
Hudson, W. D., 334
Chnstian. E., 249 Diógenes, 341 Galilei, G.. 115, 243, 392 . Hume. D..7, 8.21.22, 168, 192, 193,218,
~hurchlaid.P. M., 366 Dion, 110 Geertz, C.. 357 280. 302, 303ss., 323~s..351. 353, 354,
Cícero, M. T., 161 162, 169, 171, 189, Dionísio (Pseudo-Dionísio). 173 Gelásio, 177 355. 357, 358, 362, 376, 377. 388, 417,
215, 217, 275, 283, 305, 309, 3 10, 31 1, Dionísio I, 110 Gewirth, A., 370 418, 419, 423, 429, 431
312, 323, 400 Dionísio 11, 110 Gib, A., 274 Hutcheson, F., 258~s..2 6 3 s . 281~s..304,
Cimão, 82, 108 Donagan, A., 208, 209 Glauco, 52, 77, 85, 93, 94, 95, 111 305, 307, 308, 309, 310, 311, 312, 315,
Ciro, 166 Dunbar. W., 297, 400 Goldman, A., 366 316, 323. 334, 338, 347, 348, 353, 355,
Clarke. S.. 282. 288, 289, 304, 318, 334 Duns Scoto, 205
s Górgias, 76, 79, 81, 98 356, 431
l
Cleghom, W., 275, 276, 308, 346 Durkheim, E., 395 i Gottwald, N. K.. 165
Cléon, 54, 68 Grant, A., 259 I b n Roschd (Averróis). 185, 417
Dworkin, R., 370 Green, D., 97
Cobbett, W., 237 Inácio de Loyola, 182
Green. P., 78 Irwin, T. H., 116, 126
Cogan, M., 79 Edmunds, L., 59, 82, 84 Green, T. H.. 186, 187 Isaac, 165
Coke, E., 248 Édipo, 70, 206 Gregório VII. 7, 174ss., 216, 220 Isidoro de Sevilha. 174
Columbano, 405, 406 Electra. 119 Gregory, J., 256 Ismene, 119
Cooper, J. M., 150. 153, 154 Eiliot, G., 306
Gregory. J., 268 Isócrates, 60, 98, 99, 321
Cope, J., 240 Emerson. R. L., 259
Grosseteste, R., 207
Corneille, P., 342 Enio. 163
Grote, G., 86 Jacó, 165
Coutt, J., 259 Efialtes. 109 Grotius. H., 246. 257, 283, 285, 287
Craigie, T., 271 Elvington, W. L. of, 257 Jaeger, W., 107
Gudelinus, P. G., 246 Jarnes VI e I, 187
436 Índice de nomes Índice de nomes

James VII e II. 245, 254, 262, 277 Lockhart, G., 277 Norton, D. F.. 298, 315 R a m s e y , F. P., 384
Jefferson, T., 119 Lohr, F. C.. 245 Noth, M., 165 Ramus, 243
Jeremias. 402 Lonergan, B., 182 Nozick. R., 370 Raphael, D. D.. 334
Jerônimo, 202 Lukács, G., 388 Nussbaum. M., 182. 205 Rawls, J., 182, 362, 370, 371, 377
João de Salisbury, 184 Luscombe. D. E.. 202 Reed, D. R. C., 9
Jones. H. L.. 78 O ' ~ r i e n ,C. C., 380 Reid, T., 268, 271, 302, 346, 347, 348,
~ & e s : P., 304, 310, 311, 312 Maquiavei. N., 413 Okin, S. M., 119 354, 355, 356, 357, 389
Jonhson, N., 8 Orestes, 37 Reinhardt, K., 72, 74
Macintyre, J. C., 5
Jordan. M., 9, 195, 203 Ovídio, 3 11
MacIntyre. D. E.. 5 Rieff, P., 372
Josué, 165
Macintyre, H. C., 5 Owen, G. E. L., 107 Rohault, J., 255
Josias. 24, 165
Joyce, J., 325 Mackenzie, H.. 325 Rorty, A. O., 158, 371
Júlio César, Caio, 196 Maclaurin, C., 269, 270 Papus. 269 Rousseau, 1.-J., 17
Júpiter, 408 Maimônides, M., 417 Parker. G., 261 Ruddiman, T..305
Justiniano, 168, 246, 247, 285, 305. 41 1 Malebranche, N., 276, 289, 29 1, 30 1, 3 11, Pascal. B., 318, 341 Russell, B., 384
318 Paulo, 167, 169, 173. 194 Ryle. G . . 146
K a g a n . D., 60 Mandeville, B., 275, 3 15 Peach. J., 306
Kahn, C., 23, 402 Mandonnet, P. F., 187, 188 Pedro Lombardo, 202 S a d e , Donatien, Marquês de, 372
Kant, I., 17, 22, 192, 193, 349, 359, 370, Marco Aurélio, 161, 264 Pelagio, 170 Saliano, 175
372, 379 Maritain, J., 182, 211 Penélope, 3 1 Salústio, 170
Keamey. H.. 245 Markus, R. A., 172 Péricles, 47.59, 60.67, 68, 69.70, 71.72, Sarpedon, 59
Kelly, J. M., 164 McCabe, H., 9 74, 77, 78, 79, 82, 84, 85, 96, 98, 106, Sartre. J.-P.. 413
Kenny, A.. 154, 166, 207, 243, 326 McCosh. J., 274 Schmitt, C. B., 9, 227
108, 158. 321, 413
Kierkegaard, S., 182 McInemy, R., 9, 181, 217 Scoto Erígena, 173
Kindleberger C. P., 229 Phiilipson, N. T., 249, 279
McMullin, E., 243. 244 Pietrosanti, A. M.. 5 Scott, R., 27
Knox,B. W . M . , 7 0 , 7 1 , 72 Melville, A., 243, 256 Pinborg, J., 207, 243 Scott, W., 240, 257
Kretzmann, N.. 207. 243 Miltíades, 82, 109
Pio IX,174 Scott, W., 257
Kripke, S. A., 404
Mill, J., 86, 193, 370 Scott, W. R., 266, 267
Kunkel, W., 164 Pitcaime, A., 257, 264
Mill, J. S.. 104 Sêneca, 173
Pitts, J. C., 244
Miller, F. D., 151 Setenta (Os), 399, 402
L a c a n , J., 372 Minto. Lord (Gilbert Elliot), 308 Platão. 38, 59, 68, 69, 70, 75, 76, 77, 80,
Shaftesbury. IIi Conde de (Anthony Ashley
Laques, 76 81ss., 101, 102, 103, 104, 107, 108, 109,
Mitchison, R., 249, 279 Cooper, 242,264,283,289,290,291,292,
Lâmaco, 76 111, 112, 113, 119, 139, 158, 159, 160,
Moncrieff, h., 266 293, 294, 299, 300, 301. 307, 311. 315,
Law. W.. 265. 268, 269. 279, 309 171. 172, 173, 181, 189, 215, 216, 217,
Moisés, 24, 165 347
Layrnan, C. M.. 165. 244 244. 264, 275, 278, 283, 331, 352, 353,
Moir. H., 255 Sidgwick, H., 290
Le Clerc, Jean, 255 376. 402, 411, 413, 420, 430
More, Henry Siger de Brabante, 188
Leechman, W., 265, 266, 268. 281, Platt, J. R., 357
- -. Mossner. E. C., 318 Simson, J., 265, 266, 267, 281, 282
301 Plotino, 352
Murdock, I., 107 Simson. R., 266, 269
Leibniz, G. W., 228, 242, 270, 275 Plutarco. 67, 78
Lenman, B., 261 Sípio, 171
Needham, R., 357 Polanyi. K., 229, 336 Skinner. A. S., 266
Leon de Salamina, 77 Nelson, B., 166 Polemarco, 77, 84, 95 Skocpol, T., 229
Lewis, D.. 360 Neoptólemo, 71, 72, 73, 74, 75, 1 Pollock, R., 269 Smalley, B., 176
Leyser, K. J., 176
206 Pope, A., 28, 29, 32, 318 Smith, A., 273, 280, 302, 305. 318, 355,
Licurgo, 112 Nestor, 26, 110
Liddel, Henry George, 27 Porter, R., 233, 234, 317, 318 356, 400
Neu, J., 325 Potts, T. C., 202 Smout. T. C., 238, 268
Lisias, 77 Newman. J. H.. 18, 19, 380, 389 Pound, E., 414 Snell, B., 33
Livington, D. W., 344 Newton, D. F., 305
Lloyd, A. C., 107 Pringle. J., 257, 269, 271 Snider, D.,9
Newton, I., 115, 252. 269. 392 Propércio, 414 Sócrates, 38, 54, 76, 77, 82, 83, 84, 85,
Lloyd-Jones, H., 33, 34 Nícias, 76. 77, 79, 81 Ptolomeu, 185 86, 87, 88, 89, 93, 94, 95, 98. 104, 112,
Locke, J., 242, 252, 264, Nielsen, K., 206 Pufendorf, S., 257. 281, 283, 285, 287 129, 160, 161, 171, 189, 264, 376, 395,
281. 285. 291. 301, 311. Nietzsche. F.. 379, 395
Putnam, H., 186, 187 41 1, 420, 430
356
438 Índice de nomes

Sófocles, 54, 59, 70, 71, 72, 74, 75, 76, Toirrdelbach ua Briain, 176
78. 110, 158, 159. 413 Tuleen, D. L., 9
Sólon, 112
Somers, M. R., 229 Ulisses, 26ss., 30,, 31.71.73.74.75, 84,
St. John-Stevas, N., 273 159. 206 PREFACIO ............................................................................................................................................ 7
Stair, Visconpe (James Dalrymple). 245. Ullman, W., 176 z
246. 247, 248. 249. 250, 251. 252, 253, JUSTIÇAS RIVAIS, RACIONALIDADES EM COMPEIIÇÃO .................................................... 11
Verhaar, J. M. W., 402
254, 266, 270, 280. 285, 286, 287, 288.
290, 305, 319, 331 Vico, G., 273 d
zz
Stein, P., 249 Vitorino, Mário, 168 J U S ~ ÇE A
AÇÃO NA IMAGINAÇÁO H O ~ ~ ~ R I....................................................................
CA 23
Stephanus, H., 27 Vinnen, A., 305
!
zzz
Sterne, L., 325 Virgílio, 305, 413 A DMSÃO DA HERANÇA P6S-HoILIÉRICA .............................................................................. 4 1
Stevenson. C. L.. 329 Vlastos. G., 84
Voegeli, I., 9
zv
Stewart, D., 242,302,354,355,356. 357, ATENAS EM QUESTÃO .................................................................................................................... 59
389 Voet, G., 244, 305
Stewart. M. A. C., 269, 308 Voet, 1.. 265. 305 V
Stout, J., 371 Von Wright, G. H. . . . .PLATÃO
. . . . . . . E. .A. .PESQUISA
. . . . . . . .RACIONAL
......... 81
Strahan, W., 306 Vonnius, 305 VI
Strawson, P. F., 384 Vries, Gerard de, 255 ARIsT~TELEs, HERDEIRO DE PLATÃO .................................................................................... 101
Stump, E., 207, 243
W a l l a c e , R., 267, 309
vzz
Teiêmaco, 26, 30 Wallace, W.. 186 A WSÃO DE ARIST~TELES SOBRE A NSTIÇA ...................................................................... 117
Teloh, H. A., 9, 107 Warburton. W.. 348 vzzz
Temístocles, 82, 109 Weisheipl. J. A., 185 SOBRE A RACIONALIDADE PRATICA ................................... 139
A WSÃO DE ARIST~TELES
Teofrasto, 103 Wieland, G., 207
Wiggins, D., 130
zx
Teseu. 67 A ALTERNATNA AGOSTINIANA ................................................................................................. 161
Wilkie, W., 306, 318
Thom, W., 279 Winkler. K., 298 X
Thompson, S., 9 Wright. G. H. von, 365 SUPERAÇÃO DE UM CONFLITO DE TRADIÇOES .................................................................... 181
Tiemey, B. Wishart, W., 268 xz
Tierrey, B., 177 Witherspoon, J., 264 A WSÃO DE STO.TOMAS SOBRE A JUSTIÇA E A RACIONALIDADE PRATICA ........... 201
Tindal, M., 266, 268 Wittgenstein, L., 364, 384
Woilaston, W.. 3 18
xzz
Tomás de Aquino, 8, 21, 181ss., 201ss., 0 SUBSTRATO AGOSTiNiANO E ARISTOTÉLICO DO ILUMINISMO ESCOCÊS ................. 227
Wong, D. B., 416

!
242, 243, 286, 297, 331, 351, 353. 356,
357, 358, 376, 385, 389, 417, 418, 429, Woolf, V., 326 xzv
430, 43 1 A WSÃO DE HUTCHESON
SOBRE A NSTIÇA E A RACIONALIDADE PRATICA ............ 28 1
Trasúnaco, 84, 85, 87, 93, 95. 99, 104,
Xenofonte, 161 xv
111, 123, 160 A SUBVERSÃO ANGLICIZAM'E DE HUME............................................................................... 303
Tucídides, 24. 59, 60, 68, 70, 76, 77, 78, XVZ
79. 80. 81, 82, 84, 85, 96, 97, 99, 104, A w s à o DE HUMESOBRE A NSTIÇA E A RACIONALIDADE PRATICA ........................ 323
106, 113, 158
xvzzz
e: 0 LIBERALISMO TRANSFORMADO EM TRADIÇÃO .............................................................. 35 1
I ' xvzzz
A RACIONALIDADE DAS TRADIÇOES ........................................................................................375
XZX
TRADIÇÁO E TRADUÇÃO ...............................................................................................................397
1 xx
1 JUSTIÇAS
E RACIONALIDADES CONTESTADAS ................................................................... 417

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