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A DISPOSIÇÃO PARA MUDAR – HOMENS, MASCULINIDADE E

AMOR
bell hooks

“Transformando chumbo em ouro puro por meio


da alquimia, aos homens é dada a oportunidade de queimar, de ser
tocados por um fogo interior, de viver uma vida substancial, de ser
mudados profundamente”.

Esse livro é dedicado à memória do meu avô,


Gus Oldham, um coração que queimava, a quem o amor, mais forte
que a morte, ilumina.

Na nossa sociedade que muda tão rápido, nós só


podemos ter certeza de que duas coisas não irão mudar. O que
nunca mudará é a disposição para mudar e o medo da mudança. É
a disposição para mudar que nos motiva a procurar ajuda. É o medo
da mudança que nos motiva a resistir à mudança que nós mesmos
procuramos. – Harriet Lerner, The Dance of Intimacy.
Sumário
PREFÁCIO .................................................................................... 3
1 – PROCURA-SE: HOMENS QUE AMAM ................................. 12
2 – ENTENDENDO O PATRIARCADO ....................................... 30
3 – SENDO UM GAROTO ........................................................... 48
4 – PARANDO A VIOLÊNCIA MASCULINA ................................ 71
5 – O SER SEXUAL MASCULINO .............................................. 93
6 – TRABALHO: O QUE O AMOR TEM A VER COM ISSO? .... 112
7 – MASCULINIDADE FEMINISTA ........................................... 129
8 – CULTURA POPULAR: MASCULINIDADE MIDIÁTICA ........ 150
9 – CURANDO O ESPÍRITO MASCULINO ............................... 162
10 – RECLAMANDO A INTEGRIDADE MASCULINA ............... 182
11 – AMANDO OS HOMENS .................................................... 200
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PREFÁCIO

Quando o livro About Men (Sobre os homens), de Phyllis


Chesler, foi publicado, há mais de dez anos, eu fiquei muito
animada. Enfim, pensei então, uma pensadora feminista iria explicar
esse homens misteriosos. Até então, eu nunca havia partilhado com
ninguém os sentimentos que eu tinha em relação aos homens. Eu
não tinha sido capaz de confessar que eu não só não entendia os
homens, eu os temia. Chesler, com seu audacioso modelo “não faça
prisioneiros” não iria simplesmente nomear esse medo, explicá-lo,
mas, eu pensei, ela faria muito mais: ela iria fazer com que os
homens fossem reais para mim. Os homens se tornariam pessoas
com quem eu poderia conversar, trabalhar, amar.

Seu livro me desapontou. Cheio de citações de diversas


fontes e notícias de jornal sobre violência masculina, o livro oferecia
apenas algumas informações; havia pouca ou nenhuma explicação,
interpretação. Desde aquele momento eu comecei a pensar o que
as mulheres teriam medo de falar abertamente sobre os homens, o
medo que tinham de explorar profundamente suas relações com
eles – o que presenciamos enquanto filhas, irmãs, avós, mães, tias,
companheiras, objetos sexuais ocasionais – e o medo de sequer
reconhecer nossa ignorância, o quanto nós não sabemos sobre os
homens.

Tudo aquilo que ignoramos intensifica nosso senso de


medo e ameaça. E certamente conhecer homens apenas por meio
de situações relacionadas à violência masculina, aquela infligida às
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mulheres e crianças, é uma forma de conhecimento parcial e


inadequada.

Atualmente, me espanto com o fato de mulheres que


advogam políticas feministas terem tão pouco a dizer sobre os
homens e a masculinidade. Entre os primeiros escritos de feministas
radicais, a raiva, a fúria e mesmo o ódio aos homens foi expresso,
ainda assim não houve nenhuma tentativa real de oferecer
caminhos para aplacar esses sentimentos, para imaginar uma
cultura de reconciliação em que mulheres e homens poderiam se
conhecer e encontrar um terreno comum. O feminismo militante deu
às mulheres a permissão de liberar sua ira e ódio pelos homens,
mas não permitiu que falássemos sobre o significado de amar
homens numa cultura patriarcal, de saber como poderíamos
expressar esse amor sem temer exploração e opressão.

Antes de sua morte, Barbara Deming estava entre as raras


pensadoras feministas declaradas que queriam criar um espaço em
que mulheres pudessem falar abertamente sobre seus sentimentos
sobre os homens. Articulando sua preocupação de que a origem da
fúria feminina contra os homens tornasse impossível para as
mulheres expressar quaisquer outros sentimentos diferentes de
“não há nada que se possa fazer pelos homens”, ela afirmou:

“Me assusta que mais e mais mulheres se sintam


assim, que pensem que os homens enquanto
gênero sejam uma causa perdida”.

Deming não achava que os homens fossem incapazes de


mudar, de sair da dominação masculina, mas ela sentia que era
necessário que as mulheres falassem a verdade sobre o que
pensamos sobre os homens:
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“Acredito que a única maneira de chegar aonde


pretendemos ir é nunca nos recusando a encarar
a verdade de nossos sentimentos conforme eles
se mostram em nós – mesmo quando desejamos
que não fossem reais. Então precisamos admitir
que nós, às vezes, desejamos que nossos pais,
filhos, irmãos, companheiros não estivessem ali.
Mas essa verdade existe junto de uma outra: a
verdade de que esse desejo nos causa angústia”.

Enquanto algumas mulheres ativistas do movimento


feminista estavam angustiadas com a inabilidade coletiva de
converter as massas de homens ao feminismo, muitas mulheres
simplesmente sentiam que o feminismo lhes deu permissão de
serem indiferentes aos homens, de dar as costas às necessidades
masculinas.

Quando o feminismo contemporâneo estava em seu auge,


muitas mulheres insistiram que estavam cansadas de dispender
energia com os homens, que queriam um lugar em que as mulheres
fossem o centro de todas as discussões feministas. Pensadoras
feministas como eu, que queriam incluir os homens na discussão,
eram geralmente rotuladas de “identificadas com os homens” e
dispensadas. Nós estávamos “dormindo com o inimigo”. Nós não
éramos feministas dignas de confiança porque nos preocupávamos
com o destino dos homens. Éramos feministas que não acreditavam
na superioridade feminina mais do que acreditávamos na
superioridade masculina. Conforme o movimento feminista
progrediu, o fato que ficou evidente foi que o sexismo e a exploração
e opressão sexistas não iriam mudar a não ser que os homens
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estivesse profundamente engajados na resistência feminista, e


ainda assim, a maioria das mulheres continuava a não expressar
interesse genuíno em destacar as discussões sobre a
masculinidade.

O reconhecimento de que o feminismo deveria dar maior


foco aos homens não levou a uma produção de um corpo feminino
escrevendo sobre os homens. A falta desse tipo de escrita
intensifica meu sentimento de que as mulheres não conseguem
falar completamente sobre os homens porque fomos muito bem
socializadas na cultura patriarcal para nos manter caladas e
submissas aos homens. Mas mais que silenciadas, fomos
socializadas para sermos as guardiãs dos túmulos e segredos
importantes – especialmente aqueles que poderiam revelar as
estratégias diárias de dominação masculina, como o poder dos
homens é imposto e mantido nas nossas vidas privadas. O fato de
as feministas radicais terem rotulado todos os homens de
opressores e todas as mulheres de vítimas foi uma forma de desviar
a atenção da realidade dos homens e da nossa ignorância sobre
eles. Só rotulá-los como opressores e dispensá-los significou que
nós nunca precisaríamos dar voz aos vazios da nossa compreensão
ou falar sobre a masculinidade em sua complexidade.

Não teríamos que falar sobre o modo como nosso medo


dos homens distorcia nossas perspectivas e bloqueava nosso
entendimento. Odiar os homens era só mais um jeito de não levar
os homens e a masculinidade a sério. Era mais fácil as mulheres
feministas falarem sobre desafiarem e mudarem o patriarcado do
que falar sobre os homens – o que sabíamos e o que não sabíamos,
sobre as coisas que desejávamos que os homens mudassem. Era
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melhor só expressar nosso desejo de fazer os homens desaparecer,


de vê-los acabados para sempre.

Com eloquência, Barbara Deming expressou esse desejo


quando escreveu sobre a morte de seu pai:

“Foi há muitos anos. Era um fim de semana no


interior e ele havia trabalhado com uma picareta
e uma pá, fazendo uma horta nova. Ele teve um
ataque cardíaco e caiu na terra fofa. Chamamos
o resgate e eles tentaram trazê-lo de volta, mas
não conseguiram. Foi ali, meio caída no chão ao
seu lado, com meus braços em volta de seu
corpo. Eu entendi que era a primeira vez na vida
que me senti realmente capaz de tocar o corpo
do meu pai. Eu segurava tão firme – com todo
meu amor – e com meu luto. E meu luto era
parcialmente porque meu pai, alguém que eu
adorava, estava morrendo. Mas também era
porque eu sabia que sua morte me faria sentir
mais livre. Eu estava enlutada porque aquilo tinha
que ser daquela forma. É difícil para mim falar
sobre esse luto. É insuportável para mim aceitar
que a única vez que eu me senti livre para abraçar
meu pai sem me sentir ameaçada por seu poder
sobre mim foi em seu leito de morte. E acho que
é difícil haver uma mulher que não sinta uma dor
comparável. Então seria simplificar demais dizer
a verdade: que às vezes queremos os homens
mortos; a não ser que falemos também a verdade
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que talvez seja mais difícil aceitar (enquanto


tentamos encontrar nossos próprios poderes,
sermos nós mesmas como mulheres): a verdade
é que desejar isso é insuportável para nós. Isso
nos dilacera”.

Como uma mulher jovem com seus vinte e poucos anos


que ainda não havia descoberto seus próprios poderes, eu muitas
vezes desejei que os homens da minha vida morressem. Meu
desejo de que meu pai morresse começou na infância. Era um jeito
de responder à sua ira, sua violência. Eu costumava sonhar que ele
se fora, estava morto para nunca mais voltar. A morte era uma
maneira de eu escapar do medo evocado pela frase “Espere até seu
pai chegar em casa”. A ameaça de punição era tão intensa, seu
poder sobre nós era real. Deitada na minha cama de criança,
esperando ouvir sua voz dura de raiva, o som invasivo de suas
ordens, eu pensava “Se ele morresse, eu poderia viver”.

Mais tarde, já como uma mulher adulta, esperando meu


companheiro chegar em casa, o homem que era na maioria das
vezes era um parceiro carinhoso, mas às vezes tinha seus arroubos
de violência, eu pensava “Talvez ele vá se envolver em um acidente
e morrer, talvez ele não volte para casa e eu serei livre e capaz de
viver”.

Mulheres e crianças no mundo todo desejam que os


homens morram para que elas possam viver. Essa é a mais
dolorosa verdade sobre a dominação masculina, que os homens
brandem seu poder patriarcal no dia a dia de formas que são
incrivelmente ameaçadoras, que mulheres e crianças se acovardem
de medo e se recolham em variados estados de impotência,
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acreditando que o único jeito de escapar do sofrimento, a única


esperança é a de que os homens morram, de que seu pai patriarcal
não volte para casa. Mulheres e crianças, meninas e meninos
dominados pelos homens já quiseram que estes morressem por
acreditar que eles não estão dispostos a mudar. Eles acreditam que
os homens que não são dominadores os protegerão. Eles acreditam
que não há como mudar os homens.

Quando saí de casa e entrei na universidade, se eu ligasse


para casa e meu pai atendesse, eu desligava. Eu não tinha nada a
dizer para ele. Não tinha palavras para me comunicar com um pai
que não me ouvia, que não parecia se importar, que não dizia
palavras de carinho ou amor. Eu não precisava de um pai patriarcal.
E o feminismo havia me ensinado que eu podia esquecê-lo,
caminhar para longe dele. Ao me afastar de meu pai, eu me afastei
de uma parte quem eu era. É uma ficção do falso feminismo que as
mulheres podem descobrir seus próprios poderes num mundo sem
homens, num mundo onde negamos nossas conexões com os
homens. Nós só proclamamos nosso poder por completo quando
admitimos que precisamos dos homens nas nossas vidas, que os
homens estão nas nossas vidas quer queiramos ou não, que nós
precisamos que os homens desafiem o patriarcado, que precisamos
que os homens mudem.

Enquanto o pensamento feminista me proporcionou


ultrapassar as barreiras impostas pelo patriarcado, foi a busca por
completude, por autorrecuperação que me levou de volta ao meu
pai. Minha reconciliação com meu pai começou quando reconheci
que queria e precisava de seu amor – e que se eu não pudesse ter
seu amor, então eu ao menos precisava curar a ferida que sua
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violência causou em meu coração. Eu precisava falar com ele, dizer-


lhe a minha verdade, abraçá-lo e fazer com que ele soubesse que
era importante. Hoje em dia, quando ligo para casa, me alegro com
o som da voz do meu pai, seu sotaque sulista tão familiar. Eu quero
ouvir sua voz para sempre. Eu não quero que ele morra, esse pai
que eu posso abraçar, que recebe meu amor e me dá amor de volta.
Ao entendê-lo, eu me entendo melhor. Para reivindicar meu poder
enquanto mulher, eu preciso reivindicar meu pai. Nosso lugar é
juntos um do outro.

O livro A disposição para mudar: Homens, masculinidade


e amor é sobre a nossa necessidade de viver num mundo onde
mulheres e homens podem conviver. Analisando as razões de o
patriarcado ter mantido seu poder sobre os homens e suas vidas,
eu conclamo que nós reivindiquemos o feminismo para os homens,
mostrando a eles porque o pensamento e a prática feministas são a
única coisa que realmente pode enfrentar a crise da masculinidade
hoje. Nos próximos capítulos, eu repito muitos dos meus pontos de
vista, assim cada capítulo sozinho vai passar a mensagem mais
importante como um todo. Os homens não podem mudar se não
houver pegadas que os levem à mudança. Os homens não podem
amar se a eles não for ensinada a arte do amor.

Não é verdade que os homens não estão dispostos a


mudar. A verdade é que muitos homens têm medo de mudar. A
verdade é que as massas de homens nem começaram a enxergar
como o patriarcado os mantém longe de conhecerem a si mesmos,
de se conectarem com os próprios sentimentos, de amar. Para
conhecer o amor, os homens precisam ser capazes de renunciar à
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vontade de dominar. Eles precisam ser capazes de escolher a vida,


não a morte. Eles precisam estar dispostos a mudar.
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1 – PROCURA-SE: HOMENS QUE AMAM

Todas as mulheres querem ser amadas por homens.


Todas as mulheres querem amar e ser amadas pelos homens em
suas vidas. Sejam homossexuais ou heterossexuais, bissexuais ou
celibatárias, elas querem o amor de seus pais, avós, tios, irmãos ou
amigos homens. Se ela for heterossexual, ela quer o amor de um
parceiro homem. Vivemos numa cultura em que mulheres
emocionalmente sedentas e privadas estão desesperadamente à
procura de um homem para amar. Nosso desejo coletivo é tão forte
que nos despedaça. E ainda assim nos negamos a falar sobre isso
por medo de caçoarem, se apiedarem e nos ridicularizarem. Falar
da nossa fome por amor masculino demandaria que déssemos
nome à intensidade da nossa falta e da nossa perda.

A imposição masculina que era muito intensa quando o


feminismo contemporâneo começou a surgir, há mais de 30 anos,
era, em parte, uma defesa enraivecida da vergonha que as
mulheres sentiam, não porque os homens se recusavam a
compartilhar seu poder, mas porque nós não conseguíamos
seduzir, persuadir ou atrair os homens a compartilhar suas emoções
– a nos amar.

Alegando que queriam o poder que os homens possuíam,


as feministas que odiavam os homens (que eram, sem dúvidas, a
maioria) secretamente proclamaram que elas também queriam ser
recompensadas por não se conectarem com seus sentimentos, por
serem incapazes de amar. Os homens da cultura patriarcal
responderam à demanda feminista por maior equidade no mundo
do trabalho e no mundo sexual dando-lhes espaço, compartilhando
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suas esferas de poder. O lugar que a maioria dos homens se negou


a mudar – que se acreditavam incapazes de mudar – era na sua
vida emocional. Nem mesmo pelo amor e respeito de mulheres
liberais eles estavam dispostos a vir à mesa do amor como parceiros
iguais prontos para saborear o banquete.

Ninguém anseia mais por amor masculino do que os


pequenos meninas e meninos que precisam e procuram pelo amor
do pai. Ele pode estar ausente, morto, fisicamente presente e
emocionalmente ausente, mas a menina ou menino anseiam por
serem reconhecidos, respeitados, que cuidem deles. Por todo lado
há outdoors dizendo: “Toda noite milhares de crianças vão dormir
com fome – fome de atenção de seus pais”. Como a cultura
patriarcal já ensinou às meninas e meninos que o amor de seus pais
tem mais valor que o amor de suas mães, é improvável que a
afeição maternal vá curar a falta do amor paterno. Sem dúvidas,
portanto, meninas e meninos crescem enraivecidos com os
homens, irritados porque a eles foi negado o amor que precisam
para se sentir inteiros, valorizados, aceitos.

Garotas heterossexuais e garotos homossexuais podem e


se tornam mulheres e homens que fazem de relacionamentos
românticos o lugar em que procuram encontrar e conhecer o amor
masculino. Mas essa busca raramente é satisfeita. Geralmente a
raiva, o luto e o desapontamento implacável levam as mulheres e
os homens a fechar uma parte de si mesmos que estava esperando
para ser tocada e curada pelo amor masculino. Eles aprendem a se
acostumar com qualquer tipo de atenção que os homens estejam
dispostos a oferecer. Eles aprendem a supervalorizar isso. Eles
aprendem a fingir que isso é amor. Eles aprendem a não falar a
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verdade sobre os homens e o amor. Eles aprendem a viver uma


mentira.

Quando criança, eu ansiava pelo amor do meu pai. Eu


queria que ele me notasse, que me desse atenção e afeto. Quando
não consegui que me notasse por ser boa e correta, eu estava
disposta a me arriscar a ser punida por ser má o suficiente para
chamar sua atenção e aguentar o peso de sua mão violenta. Eu
queria que aquelas mãos me abraçassem e me protegessem, que
me tocassem com cuidado e carinho, mas eu aceitava que nunca
seria assim. Aos cinco anos de idade, eu sabia que aquelas mãos
só me reconheceriam quando me trouxessem dor, e que se eu
pudesse aceitar a dor e mantê-la por perto, eu seria a menininha do
papai. Eu poderia deixá-lo orgulhoso. Eu não estou sozinha.

Tantas de nós já acharam que podiam ganhar o amor


masculino mostrando que estavam dispostas a aceitar a dor, a viver
nossas vidas afirmando que a masculinidade era considerada
máscula porque isso retém, retira, recusa a masculinidade que
desejamos. Aprendemos a amar os homens mais porque eles não
nos amarão. Se se atrevessem a nos amar, na cultura patriarcal eles
deixariam de ser “homens” de verdade.

Em seu comovente livro de memórias In the Country of


Men (No país dos homens), Jan Waldron descreve um sentimento
similar. Ela confessa que “o tipo de pai que eu cobiçava, eu só tinha
visto em vislumbres embelezados nos meus sonhos”. Contrastando
os pais amorosos com quem sonhamos com os pais que temos, ela
expressa seu desejo: Papai. É uma promessa contra todas as
probabilidades, à vista dos incontáveis exemplos em sentido
contrário. Papai. Não tem o mesmo efeito prático de Mamãe ou
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Mãezinha. Soa como o refrão de uma balada. É uma promessa que


se origina no coração e luta para sobreviver em meio à carnificina
da persistente e óbvia história do oposto e excruciante e escasso
por vir. O amor de mãe é abundante e aparente: nós reclamamos
porque recebemos amor demais. O amor pai é uma joia rara a ser
perseguida, polida e acumulada. Seu valor é mais alto por ser mais
escasso. Na nossa cultura, falamos muito pouco sobre a
necessidade do amor materno.

Ao invés de nos trazer sabedoria sobre a natureza dos


homens e do amor, as feministas reformistas focaram no poder
masculino, reforçando a ideia de que de alguma forma os homens
eram poderosos e tudo possuíam. A literatura feminista não nos
falou do profundo tormento dos homens. Não nos falou do terror que
corrói a alma daqueles que não conseguem amar. Mulheres que
invejaram o coração duro dos homens não nos contaram da
profundidade do sofrimento masculino. Assim, levou mais de 30
anos para que as vozes das visionárias feministas fossem ouvidas,
dizendo ao mundo a verdade sobre os homens e o amor.

Barbara Deming deu uma pista sobre essas verdades: Eu


acho que a razão de os homens serem tão violentos é que eles
sabem, bem lá no fundo, que eles encenam uma mentira, e ficam
furiosos por serem pegos na mentira. Mas eles não sabem como
quebrar esse ciclo... Eles ficam irados porque estão encenando uma
mentira – o que significa que no mais profundo de seu ser, eles
querem se ver livres disso, eles estão desesperados pela verdade.

A verdade que não dizemos é que os homens desejam o


amor. Esse é o desejo que as pensadoras feministas devem se
desafiar a examinar, explorar e falar sobre. Essas raras feministas
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visionárias que hoje já não são mais só mulheres, não têm mais
medo de abordar os problemas masculinos, a masculinidade e o
amor. Os homens se juntaram às mulheres com mentes abertas e
grades corações, homens que amam, homens que entendem o
quanto é difícil para os homens praticar a arte de amar na cultura
patriarcal.

Em parte, eu comecei a escrever livros sobre amor por


causa da luta constante entre meu ex-namorado Anthony e eu. Nós
éramos (e até o momento em que escrevo isso, ainda somos) o
primeiro elo um do outro. Nos juntamos esperando criar amor e nos
descobrimos criando conflitos. Decidimos nos separar, mas nem
isso fez com que parássemos de brigar. Os problemas pelos quais
brigamos tinham, em sua maioria, a ver com a prática do amor.
Como tantos outros homens que sabiam que as mulheres em suas
vidas querem ouvi-los declarar amor, Anthony fazia esse tipo de
declaração. Quando pedia para ele fazer a ligação entre as palavras
“Eu te amo” em definição e na prática, ele descobriu que não havia
palavras, que ele ficava fundamentalmente desconfortável em ser
questionado sobre suas emoções.

Como muitos homens, ele não tinha sido feliz na maioria


de suas relações. A infelicidade dos homens em seus
relacionamentos, a tristeza que os homens sentem por falhar no
amor, muitas vezes passa despercebida na nossa sociedade,
precisamente porque a cultura patriarcal não se preocupa de
verdade se os homens estão infelizes. Quando as mulheres sentem
dores emocionais, o pensamento sexista que diz que as emoções
devem e podem importar para as mulheres faz com que seja
possível para a maioria de nós pelo menos falar o que sentimos,
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conversar sobre isso com alguém, seja uma amiga próxima, um


terapeuta ou um estranho sentado ao nosso lado no ônibus ou no
avião.

Os costumes patriarcais ensinam uma forma de estoicismo


emocional aos homens que diz que eles são mais másculos se não
sentirem, mas se eventualmente sentirem e esses sentimentos
machucarem, a resposta máscula é guardá-los, esquecer deles,
esperando que assim sumam. George Weinberg explica em Why
Men Won’t Commit (Porque os homens não se comprometem):

“A maioria dos homens está em busca da mulher


perfeita porque eles basicamente pensam que os
problemas dentro dos relacionamentos não
podem ser solucionados. Quando a mínima
coisinha dá errado, é mais fácil fugir que
conversar”.

A farsa masculina é que homens não sentem dor.

A verdade é que os homens se machucam e que toda uma


cultura responde a isso dizendo “Por favor, não nos diga como você
se sente”. Eu sempre fui fã do desenho animado Sylvia, em que
duas mulheres estão sentadas, uma olhando uma bola de cristal
enquanto a outra diz “Ele nunca fala de seus sentimentos” e a outra
mulher, que pode ver o futuro, diz “Às 14h no mundo todo os
homens vão começar a falar sobre seus sentimentos – e as
mulheres no mundo todo vão se arrepender”.

Se não podemos nos curar do que não podemos sentir,


dando sustentação à uma cultura patriarcal que socializa os homens
para negar seus sentimentos, nós os condenamos a viver num
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estado de apatia emocional. Nós construímos uma cultura em que


a dor masculina não pode ter voz, em que as feridas dos homens
não têm nome nem podem ser curadas. Não são só os homens que
não levam suas emoções a sério. A maioria das mulheres não quer
ter que lidar com a dor dos homens se isso interferir com a
satisfação do desejo feminino.

Quando o movimento feminista proporcionou a liberação


masculina, incluindo a exploração dos “sentimentos” masculinos,
algumas mulheres tiraram sarro da expressão de emoções
masculina com o mesmo desgosto e desprezo que os homens
sexistas. Apesar de todo desejo feminino pelos sentimentos
masculinos, quando os homens trabalhavam para entrar em contato
com seus sentimentos, ninguém queria recompensá-los por isso.
Nos círculos feministas os homens que queriam mudar eram
frequentemente rotulados de narcisistas ou carentes. Homens
individuais que expressassem seus sentimentos eram
frequentemente vistos como pessoas necessitadas de atenção,
manipuladores patriarcais tentando roubar o palco com seu drama.

Quando eu tinha meus vinte e poucos anos, eu ia à terapia


de casal e meu parceiro de mais de dez anos explicava como eu o
questionava sobre seus sentimentos e quando ele falava, eu pirava.
Ele estava certo. Era difícil para mim encarar o fato de que eu não
queria ouvir sobre seus sentimentos quando eram dolorosos ou
negativos, que eu não queria que a imagem de homem forte que eu
tinha dele fosse posta à prova quando soubesse de suas fraquezas
e vulnerabilidades. Aqui estava eu, uma mulher feminista
esclarecida que não queria ouvir seu homem falar sobre suas dores
porque isso revelaria sua vulnerabilidade emocional. É razoável
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dizer, então, que as massas de mulheres comprometidas com o


princípio sexista de que os homens que expressavam seus
sentimentos eram fracos, na verdade não querem ouvi-los falar,
especialmente se quisessem falar sobre suas feridas, que não se
sentiam amados.

Muitas mulheres não conseguem ouvir os homens falando


das dores do amor porque soa como uma acusação de falha
feminina. As normas sexistas nos ensinaram que amar é nossa
obrigação, quer seja no papel de mães, amantes ou amigas, então
se os homens dizem que não são amados, nós erramos; nós somos
culpadas. Só há um emoção que o patriarcado valoriza quando
expressada pelos homens; essa emoção é a raiva. Homens de
verdade ficam loucos de raiva. E sua loucura, não importa o quão
violenta ou violadora, é considerada natural – uma expressão
positiva da masculinidade patriarcal. A raiva é o melhor lugar para
se esconder quando se procura não demonstrar dor ou angústia
espiritual.

Meu pai era um homem bravo. Às vezes, ele ainda é,


mesmo que ele já tenha passado dos oitenta anos. Recentemente,
quando liguei para casa ele disse, falando sobre mim e minha irmã:
“Eu as amo profundamente.” Espantada de ouvir meu pai falando
de amor, eu queria conversar, mas não encontrei palavras para
falar. O medo me silenciou, o antigo medo do meu pai patriarcal, o
homem silencioso e nervoso, e o novo medo de quebrar esse elo
frágil de carinho. Então não consegui perguntar “O que você quer
dizer, pai, quando diz que me ama profundamente?”.
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No capítulo focado na nossa busca por homens amorosos


em Communion: The Female Search for Love (Comunhão: a busca
feminina por amor) eu faço essa observação:

“Muitas mulheres temem os homens. E o medo


pode ser a base da fundação do desprezo e do
ódio. Pode ser o disfarce da fúria homicida
reprimida”.

O medo nos mantém longe do amor. E ainda assim as


mulheres raramente falam com os homens sobre o quanto os
temem.

Meus irmãos e eu nunca falamos com meu pai sobre os


anos que ele nos manteve prisioneiros – aprisionando-nos detrás
dos muros de seu terrorismo patriarcal. Mesmo já adultos, ainda
temos medo de perguntar a ele “Por que, pai? Por que você estava
sempre tão bravo? Por que você não nos amava?”.

Nessas passagens poderosas em que escreveu sobre a


morte do pai, Barbara Deming dá nome a esse medo. Enquanto a
morte rapidamente o tirava de seu alcance, ela via claramente que
o medo o tinha mantido longe dela por todo aquele tempo – o medo
dele de ela ficar perto demais e o medo dela de buscar ficar perto
demais dele. O medo nos impede de chegar mais perto dos homens
em nossas vidas; ele nos impede de amar.

Eu costumava pensar que ter medo do homens era algo


feminino. Quando comecei a falar com os homens sobre amor, era
rotina ouvir histórias sobre o medo que os homens tinham de outros
homens. De fato, os homens que sentem, que amam,
frequentemente escondem essa compreensão de outros homens
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por medo de serem atacados e ridicularizados. Esse é o segredo


que tão bem escondemos – o medo da masculinidade patriarcal que
une todos na nossa cultura. Não podemos amar o que tememos.
Por isso é que tantas tradições religiosas nos ensinam que não há
medo no amor.

Nós fazemos um grande esforço, todos nós inseridos na


cultura patriarcal, para amar os homens. Nós podemos nos importar
com os homens profundamente. Podemos valorizar nossas
conexões com os homens em nossas vidas. E podemos
desesperadamente sentir que não podemos viver sem sua
presença, sua companhia em nossas vidas. Podemos sentir todas
essas paixões à vista da masculinidade e, ainda assim, nos
recolher, mantendo a distância criada pelo patriarcado, mantendo
os limites que nos convenceram a não ultrapassar.

Numa sala com os alunos lendo a trilogia de livros que


escrevi sobre amor, com 40 homens falando de amor, nós falamos
sobre pais. Um homem negro em seus 30 e poucos anos, cujo pai
era presente em casa, um trabalhador dedicado, falou sobre sua
recente experiência de paternidade, seu compromisso de ser um pai
amoroso e seu medo de falhar. Ele temia falhar porque ele não teve
um modelo amoroso. O pai dele estava quase sempre longe de
casa, trabalhando, vagando. Quando estava em casa, seu jeito
favorito de se aproximar era provocar e insultar o filho sem piedade,
com uma voz afetada cheia de sarcasmo e desprezo, uma voz que
podia humilhar com apenas uma palavra. Refletindo a experiência
de muitos de nós, o indivíduo contando sua história falou sobre
querer o amor desse homem durão e aprender a não querer,
aprender a silenciar seu coração, a fazer com que aquilo não
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importasse. Perguntei a ele e aos outros homens “Se você tivesse


fechado seu coração, desligado sua sabedoria emocional, saberia
como amar seus filhos? Onde e quando, ao longo do caminho, você
aprendeu a praticar o amor?”.

Ele diz a mim e aos outros homens sentados no nosso


círculo de amor: “Eu só penso no que meu pai faria e faço o oposto”.
Todo mundo ri. Eu reafirmo essa prática, só adicionando que não é
suficiente estar nesse espaço de reação, que só ser reativo é
arriscar que o passado nebuloso tome conta do presente. Quantos
filhos, fugindo ao exemplo de seus pais, criam meninos que surgem
como clones de seus avós, meninos que talvez nunca tenham nem
conhecido os avós, mas agem exatamente como eles?

Além da reação, porém, qualquer homem


independentemente de circunstâncias passadas ou presentes, de
sua idade ou experiência, pode aprender a amar. Nos últimos quatro
anos, a única verdade que aprendi com homens individuais que
conheci enquanto viajava e palestrava é a de que homens querem
conhecer o amor e aprender como amar. Não há literatura suficiente
falando diretamente, intimamente sobre essa necessidade.

Depois de escrever um livro genérico sobre amor, um


específico sobre pessoas negras e o amor, e então outro, focado na
busca feminina por amor, eu queria ir mais além e falar sobre os
homens e o amor.

Mulheres e homens igualmente passam muito pouco


tempo encorajando os homens a aprender a amar na cultura
patriarcal. Mesmo as mulheres irritadas com os homens, mulheres
que em sua maioria não são e talvez nunca sejam feministas, usam
essa raiva para evitar estarem totalmente comprometidas em criar
23

um mundo em que homens de todas as idades possam conhecer o


amor. E sobra uma pequena parte de pensadoras feministas que
sentem que, de verdade, deram tudo que podiam aos homens; elas
se preocupam somente com a melhoria do bem-estar feminino.

A vida me mostrou, no entanto, que toda vez que um


homem se atreve a transgredir os limites do patriarcado para amar,
as vidas de mulheres, homens e crianças são transformadas para
melhor definitivamente. Todo dia nas telas das nossas TVs e nos
nossos jornais de alcance nacional, vemos notícias da continuidade
da violência masculina em casa e no mundo todo. Quando ouvimos
que garotos adolescentes estão se armando e matando seus pais,
seus pares ou estranhos, um alarme permeia nossa cultura. As
pessoas querem respostas. Elas querem saber por que isso está
acontecendo. Por que tanta morte pelas mãos de meninos agora,
nesse momento histórico? Mesmo assim, ninguém fala sobre o
papel que as noções patriarcais de masculinidade têm em ensinar
aos garotos que é de sua natureza matar e que não há nada que
possam fazer para mudar sua natureza – isto é, nada que vá deixar
sua masculinidade intacta. Nossa cultura prepara os machos para
abraçar a guerra, então eles devem ser imersos no pensamento
patriarcal que diz que é de sua natureza matar e gostar de matar.

Bombardeados por notícias sobre violência masculina, não


ouvimos notícias sobre os homens e o amor. Só uma revolução de
valores em nossa nação irá pôr fim à violência, e ela deverá ser
baseada na ética do amor. Para criar homens amorosos,
precisamos amar os homens. Amar a masculinidade é diferente de
reverenciar e recompensar os homens por viverem em prol de
noções sexistas de identidade masculina. Se importar com os
24

homens por causa do que fazendo por nós não é o mesmo que amá-
los por simplesmente existirem. Quando amamos a masculinidade,
estendemos nosso amor quer os homens a performem ou não.
Performance é diferente de ser. Na cultura patriarcal, os homens
não são permitidos de ser quem são e glorificar sua identidade
única. Seu valor sempre é determinado pelo que fazem. Numa
cultura antipatriarcal os homens não têm que provar seu valor. Eles
sabem, desde o nascimento, que sua própria existência lhes agrega
valor e o direito de serem apreciados e amados.

Escrevo sobre os homens e o amor como uma declaração


de profunda gratidão aos homens da minha vida, com quem eu faço
o trabalho do amor. Muito do meu pensamento sobre a
masculinidade começou na infância, quando presenciei a diferença
com que eu e meu irmão éramos tratados. Os padrões usados para
julgar seu comportamento eram muito mais severos. Nenhum
homem consegue se equiparar ao que os padrões patriarcais
impõem sem se envolver numa prática de auto traição.

Quando era um garoto, meu irmão, como tantos outros


garotos, queria muito se expressar. Ele não queria seguir um roteiro
rígido de apropriada masculinidade. Como consequência, ele era
menosprezado e ridicularizado pelo nosso pai patriarcal. Meu irmão
tinha uma presença amorosa em nossa casa, capaz de expressar
emoções de surpresa e encantamento. Conforme o pensamento e
as ações patriarcais o reivindicaram na adolescência, ele aprendeu
a mascarar seus sentimentos amorosos. Ele entrou num espaço de
alienação e comportamento antissocial considerado “natural” para
meninos adolescentes. Suas seis irmãs presenciaram sua
transformação e nos entristecemos com a perda de nossa conexão.
25

O dano à sua autoestima na infância perdurou por toda sua vida,


porque até hoje ele se agarra ao problema de se auto definir ou se
permitir definir pelos padrões patriarcais.

Ao mesmo tempo que meu irmão entregou sua


consciência emocional e capacidade de se conectar
emocionalmente para ser aceito como “um dos caras”, rejeitando a
companhia das irmãs por medo de ser menos homem por gostar
ficar conosco, o pai da minha mãe, Papai Gus, achou mais simples
ser desleal ao patriarcado quando idoso. Ele era o homem que mais
praticava a arte de amar quando eu era criança. Ele era
emocionalmente consciente e emocionalmente presente, e ainda
assim ele também se viu preso ao patriarcado. Nossa avó, sua
esposa por mais de 60 anos, sempre esteve profundamente
investida do modelo dominador de relacionamento. Para os macho
men, Papai Gus, o pai da minha mãe, parecia ser menos que
masculino. Ele era visto como dominado. Eu me lembro de nosso
pai patriarcal expressando desprezo pelo Papai Gus, chamando-o
de fraco – e fazia questão que minha mãe soubesse que ele não
seria governado por uma mulher. Meu pai tirou da minha mãe a
admiração dela pelo pai, por sua capacidade de amar e fez parecer
que aquilo que ela considerava precioso era, na verdade, inútil.

Naquela época, minha mãe não sabia quão sortuda era de


ter um pai amoroso. Como muitas mulheres, ela fora seduzida pelos
mitos do amor romântico em sonhar com um homem que fosse um
parceiro forte, dominador, controlador, impetuoso e atrevido. Ela se
casou com um ideal somente para se descobrir presa num vínculo
com um homem patriarcal que era punitivista, cruel e que não sabia
amar. Ela passou mais de 40 anos de casamento acreditando nos
26

papéis de gênero patriarcais que diziam que ele deveria ter o


controle e ela devia se submeter e obedecer.

Quando homens patriarcais não são cruéis, as mulheres


em suas vidas podem se agarrar ao mito sedutor de que são
sortudas por ter um homem de verdade, um patriarca benevolente
que provê e protege. Quando esse homem real é repetidamente
cruel, quando responde ao carinho e gentileza com desprezo e
desconsideração brutal, a mulher em sua vida passa a vê-lo
diferente. Ela pode começar a questionar sua própria aliança ao
pensamento patriarcal. Ela pode acordar e reconhecer que se casou
com o abuso, que ela não é amada. Esse momento de despertar é
um momento que parte o coração. Mulheres de coração partido em
casamentos ou relações de longa data raramente deixam seus
homens. Elas aprendem a fazer uma identidade a partir de seu
sofrimento, seus lamentos, sua amargura.

Ao longo de nossa infância, minha mãe era uma grande


defensora do meu pai. Ele era seu cavaleiro de armadura brilhante,
seu amado. E mesmo quando ela passou a vê-lo, vê-lo de verdade
como ele era e não como ela queria que fosse, ela ainda nos
ensinava a admirá-lo e ser gratos por sua presença, sua provisão,
sua disciplina. Aos 50 anos, ela estava disposta a se agarrar à
fantasia de ideal patriarcal mesmo sendo confrontada com a
brutalidade da dominação patriarcal diariamente. Quando seus
filhos saíram de casa, deixando-a sozinha com o marido, sua
esperança de que encontrassem seu caminho para o amor logo foi
varrida. Ela teve de encarar o patriarca sem emoções com quem
tinha se casado. Depois de 50 anos de casamento, ela não o
deixaria, mas ela deixou de acreditar no amor. Só sua amargura
27

encontrou voz; ela agora fala da ausência de amor, uma vida inteira
de coração partido. Ela não está só. No mundo todo, mulheres
vivem com homens em estados de falta de amor. Elas vivem e
lamentam.

Minha mãe e meu pai foram as figuras que moldaram meus


padrões de amor e anseio. Eu passei a maior parte dos anos entre
os 20 e os 40 anos de idade buscando conhecer o amor com
homens intelectualmente brilhantes que eram simplesmente
desconectados emocionalmente, homens que não podiam dar o que
não tinham, homens que não podiam ensinar o que não sabiam –
homens que não sabiam amar. Aos 40 anos eu comecei um
relacionamento com homem bem mais novo que tinha sido
ensinado a arte e a prática do pensamento feminista. Ele conseguia
reconhecer que tinha um espírito aos pedaços. Enquanto criança,
ele fora vítima da tirania patriarcal. Ele sabia que havia algo errado
com ele, mesmo que não tenha encontrado uma linguagem capaz
de articular o que faltava.

“Algo está faltando” era uma autodescrição que eu ouvi de


muitos homens quando rodei o país falando sobre o amor. Por
diversas vezes, ouvi de homens sobre seus sentimentos de
exuberância emocional, de alegria não reprimida, de se sentir
conectados à vida e a outras pessoas na infância e então, com uma
ruptura, a desconexão, e o sentimento de se sentir amado, de ser
abraçado, se fora. De alguma forma o teste de masculinidade tinha
a ver com a disposição para aceitar sua perda, não falar sobre isso
nem quando estivessem sozinhos, os homens me diziam. Triste e
tragicamente, esses homens, em sua maioria, estavam se
lembrando do momento primário de sofrimento e dor: o momento
28

em que eram compelidos a desistir de seu direito de sentir, de amar,


para poder tomar seu lugar como homens patriarcais.

Todo mundo que tenta criar amor com um parceiro não


conectado emocionalmente, sofre. Livros de autoajuda falam-nos
com frequência que não podemos mudar ninguém além de nós
mesmos. É claro que nunca respondem à questão do que motivará
os homens na cultura patriarcal, que foram ensinados que amar os
castraria, a mudar, a escolher o amor, quando essa escolha significa
que devem se posicionar contra o patriarcado, contra a tirania de
seus familiares. Não podemos mudar os homens, mas podemos
encorajá-los, implorar e afirmar sua disposição para mudar.
Podemos respeitar sua verdade, a verdade que eles podem nunca
ser capazes de verbalizar: que eles desejam se conectar, amar, ser
amados.

A disposição para mudar: Homens, Masculinidade e Amor


responde às perguntas sobre amor feitas por homens de todas as
idades em nossa cultura. Escrevo em resposta às questões sobre o
amor feitas a mim por homens que sei que estão intimamente
trabalhando para encontrar um caminho para serem pessoas de
coração aberto, que se expressam emocionalmente, tal como eram
antes de serem convencidos a silenciar seus desejos e fechar seus
corações.

A disposição para mudar é minha oferta ao banquete da


recuperação masculina, de seu direito a amar e ser amados. As
mulheres acreditaram que poderíamos salvar os homens em nossas
vidas dando-lhes amor, e que esse amor serviria como cura para
todas as feridas feitas por assaltos tóxicos a seus sistemas
emocionais, pelos ataques que sofrem todos os dias. As mulheres
29

podem compartilhar o processo de cura. Podemos guiar, instruir,


observar, compartilhar informação e habilidades, mas não podemos
fazer pelos garotos e homens o que eles devem fazer por si
mesmos. Nosso amor ajuda, mas sozinho não consegue salvar
garotos e homens. No fim das contas, os garotos e homens salvam-
se sozinhos quando aprendem a arte de amar.
30

2 – ENTENDENDO O PATRIARCADO

O patriarcado é a única e mais letal doença social que


ataca o corpo e o espírito masculinos na nossa nação. Ainda assim,
a maioria dos homens não usam o termo “patriarcado” no dia a dia.
A maioria dos homens nunca pensou sobre o patriarcado – o que
significa, como é criado e sustentado. Muitos homens em nossa
nação não seriam capazes de soletrar ou pronunciar a palavra
corretamente. A palavra “patriarcado” é só uma parte normal de
seus pensamentos e discurso. Os homens ouviram e souberam que
o mundo associa a palavra à libertação feminina, ao feminismo e,
assim, a desprezam como se fosse irrelevante às suas próprias
experiências.

Eu já falei sobre o patriarcado em púlpitos por mais de


trinta anos. É uma palavra que uso diariamente e os homens que
me ouvem falar frequentemente me perguntam o que eu quero dizer
com isso. Nada é capaz de desacreditar mais a velha projeção
antifeminista dos homens como todo-poderosos quanto a
ignorância básica sobre uma faceta do sistema político que molda e
informa a identidade masculina e o senso de identidade, do
nascimento até a morte. Eu muitas vezes uso a frase “patriarcado
capitalista de supremacia branca imperialista” para descrever a
interseção entre os sistemas políticos que são a fundação da
política de nossa nação. De todos esses sistemas, o que mais
ouvimos falar é o patriarcado, mesmo que não saibamos a palavra,
porque os papéis de gênero patriarcais são destinados a nós
quando crianças e somos guiados continuamente sobre quais
caminhos seguir para melhor cumprir esses papéis.
31

O patriarcado é um sistema político-social que insiste que


os homens são inerentemente dominadores, superiores a tudo e a
qualquer um considerado fraco, especialmente mulheres, e dotados
do direito de dominar e reinar sobre todos os fracos e manter essa
dominância por meio de várias formas de terrorismo psicológico e
violência. Quando meu irmão mais velho e eu nascemos, com um
ano de diferença, o patriarcado determinou como seríamos
considerados pelos nossos pais. Nossos pais acreditavam no
patriarcado; eles aprenderam o pensamento patriarcal por meio da
religião.

Na igreja, eles aprenderam que Deus tinha criado os


homens para governar o mundo e tudo que havia nele e que era
trabalho da mulher ajudar os homens a cumprir essas tarefas,
obedecer e sempre assumir o papel de subordinada ao homem
poderoso. Eles aprenderam que Deus era um homem. Esses
ensinamentos foram reforçados em todas as instituições – escolas,
tribunais, clubes, arenas esportivas, assim como nas igrejas.
Abraçando o pensamento patriarcal, como todos à sua volta, eles
ensinaram isso aos filhos porque parecia o jeito “natural” de
organizar a vida.

Como filha, fui ensinada que era meu papel servir, ser
fraca, livre do fardo de pensar, zelar e cuidar dos outros. Meu irmão
foi ensinado que era seu papel ser servido; prover; ser forte; pensar,
armar estratégias e planejar; e a se recusar a zelar e cuidar de
outros. Eu fui ensinada que não era apropriado para uma mulher ser
violenta, que “não era natural”. Meu irmão foi ensinado que seu valor
seria determinado pela sua disposição à violência (desde que em
configurações apropriadas). Ele foi ensinado que para um garoto,
32

gostar de violência era algo bom (desde que em configurações


apropriadas). Ele foi ensinado que um garoto não deve expressar
sentimentos. Eu fui ensinada que garotas poderiam e deveriam
expressar sentimentos, ou pelo menos alguns deles. Quando
respondi com raiva por terem me negado um brinquedo, me
ensinaram, como uma garota num lar patriarcal, que a raiva não era
um sentimento apropriado para meninas, que deveria não só não
ser demonstrado como também deveria ser erradicado. Quando
meu irmão respondeu com raiva ao negarem a ele um brinquedo,
ele foi ensinado que, como um garoto num lar patriarcal, sua
habilidade em demonstrar raiva era boa, mas que ele deveria
aprender o jeito certo de dar vazão à sua hostilidade. Não era bom
que ele usasse sua raiva para se opor aos desejos dos pais, mas
mais tarde, quando ele cresceu, ele foi ensinado que a raiva era
permitida e que deixar que a raiva o levasse à violência o ajudaria a
proteger sua casa e a nação.

Nós vivíamos em uma fazenda, isolados de outras


pessoas. Aprendemos nossas noções de papéis de gênero com
nossos pais, vendo como eles se comportavam. Meu irmão e eu nos
lembramos de nossa confusão sobre gênero. Na verdade, eu era
mais forte e mais violenta que meu irmão, o que rapidamente
aprendemos que era algo ruim. E ele era um menino gentil e calmo,
o que logo aprendemos que era algo muito ruim. Mesmo que
estivéssemos sempre confusos, de uma coisa tínhamos certeza:
nós não podíamos ser e agir do jeito que queríamos, fazendo o que
queríamos fazer. Era claro para nós que nosso comportamento
devia seguir um roteiro predeterminado pelo gênero. Nós dois
aprendemos a palavra “patriarcado” na vida adulta, quando
33

aprendemos que o roteiro que tinha determinado o que devíamos


ser, as identidades que devíamos assumir, eram baseadas em
valores e crenças patriarcais sobre gênero.

Eu sempre me interessei mais por desafiar o patriarcado


que meu irmão, porque esse era o sistema que sempre me deixava
de fora das coisas de que eu queria fazer parte. Na nossa família,
nos anos 1950, bolinhas de gude eram brinquedo de menino. Meu
irmão herdou suas bolinhas de gude dos homens da família; ele
tinha uma caixa para guardá-las. De todos os tamanhos e formas,
maravilhosamente coloridas, elas eram os objetos mais lindos aos
meus olhos. Nós jogávamos juntos, sempre comigo me agarrando
à bolinha que eu mais gostava, me negando a compartilhar.

Quando meu pai estava no trabalho, nossa mãe dona de


casa ficava feliz em nos ver brincar de bolinha de gude juntos.
Mesmo assim, meu pai sempre ficava perturbado com o que via com
sua perspectiva patriarcal. Sua filha, agressiva e competitiva, era
uma jogadora melhor que seu filho. Seu filho era passivo; o garoto
não parecia realmente se importar com quem ganhava e estava
disposto a renunciar às suas bolinhas de gude se solicitado. Meu
pai decidiu que esse jogo precisava acabar, que tanto eu quanto
meu irmão tínhamos que aprender uma lição sobre papéis de
gênero apropriados.

Uma tarde, meu irmão ganhou permissão do meu pai para


trazer a caixa de bolinhas de gude. Eu falei que gostaria de brincar
e ouvi do meu irmão que “meninas não brincam com bolinhas de
gude”, que isso era brincadeira de menino. Isso não fez sentido para
meu eu de quatro ou cinco anos de idade, e eu insisti no meu direito
de jogar, pegando as bolinhas e jogando-as. Meu pai interveio para
34

me fazer parar. Eu não o ouvi. Sua voz foi ficando mais e mais alta.
Então, de repente, ele me pegou no colo, quebrou uma tábua da
nossa porta de tela e começou a me bater com aquilo, me dizendo
“Você é uma menininha. Quando eu te falar para fazer alguma
coisa, é para me obedecer”. Ele me bateu repetidamente, querendo
que eu entendesse o que tinha feito.

Sua raiva e violência chamaram a atenção de todos. Nossa


família estava paralisada, arrebatada diante da pornografia da
violência patriarcal. Depois dessa surra, eu fui castigada – forçada
a ficar sozinha no escuro. Minha mãe entrou no quarto para acalmar
a dor, me dizendo em sua voz de sotaque sulista “Eu tentei te avisar.
Você precisa aceitar que é só uma menina e que meninas não
podem fazer o que os meninos fazem”. A serviço do patriarcado,
sua missão era reforçar que meu pai tinha feito a coisa certa me
colocando no meu devido lugar, restaurando a ordem social natural.

Eu me lembro muito bem desse evento traumático porque


era uma história muitas vezes recontada na nossa família. Ninguém
se importava que essa repetição constante pudesse desencadear
um quadro de estresse pós-traumático; recontar era necessário
para reforçar a mensagem e o estado de absoluta impotência. A
lembrança dessa surra brutal numa filha pequena pelo homem
grande e forte serviu como mais que um lembrete do meu lugar de
gênero, era um lembrete a todos os meus irmãos que estavam
vendo ou relembrando, homens e mulheres, e também para nossa
mãe já crescida de que nosso pai patriarcal era quem mandava na
casa. Era para nós nos lembrarmos de que, se não obedecêssemos
a suas ordens, seríamos punidos, punidos até mesmo com a morte.
Esse foi o jeito como fomos educados na arte do patriarcado.
35

Não há nada singular ou mesmo excepcional nessa


experiência. Ouça as vozes de crianças crescidas machucadas,
criadas em lares patriarcais, e você poderá ouvir diferentes versões
com a mesma temática de fundo: o uso da violência para reforçar
nossa doutrinação e aceitação do patriarcado. Em How Can I Get
Through to You? (Como eu posso chegar até você?), o terapeuta
familiar Terence Real nos conta como seus filhos foram iniciados no
pensamento patriarcal mesmo tendo pais que trabalhavam para
criar um lar amoroso em que os valores antipatriarcais prevaleciam.
Ele conta como seu filho mais novo Alexander gostava de se vestir
como uma boneca Barbie até que os garotos que brincavam com
seu irmão mais velho o presenciaram vestido de Barbie e
demonstraram, pelos olhares e pelo silêncio reprovador e chocado
que seu comportamento era inaceitável:

“Sem o menor vestígio de malícia, o olhar que


meu filho recebeu transmitiu uma mensagem.
Não é para você fazer isso. E o meio pelo qual a
mensagem foi passada foi uma emoção potente:
vergonha. Aos três anos de idade Alexander
aprendeu as regras. Uma interação silenciosa de
dez segundos foi poderosa o suficiente para
dissuadir meu filho de fazer o que até então era
sua brincadeira favorita. Eu chamo esses
momentos de indução da ‘traumatização normal’
dos meninos”.

Para doutrinar meninos nas regras do patriarcado, os


forçamos a sentir dor e negar seus sentimentos. Minhas histórias se
passam nos anos 1950; as histórias que Real conta são recentes.
36

Elas contém a tirania do pensamento patriarcal, o poder da cultura


patriarcal de nos manter prisioneiros. Real é um dos mais brilhantes
pensadores no tema da masculinidade patriarcal em nossa nação,
e mesmo assim ele diz aos leitores que não é capaz de impedir que
o patriarcado alcance seus filhos. Eles sofrem com sua investida,
como todos os outros meninos e meninas, em maior ou menor grau.

Sem dúvidas, ao criar um lar amoroso que não é patriarcal


Real ao menos oferece uma escolha aos seus filhos: eles podem
escolher ser eles mesmos ou podem escolher se conformar com os
papéis patriarcais. Real usa a frase “patriarcado psicológico” para
descrever o pensamento patriarcal comum a mulheres e homens.
Apesar do pensamento feminista visionário contemporâneo, que
deixa claro que um pensador patriarcal não precisa ser homem, a
maioria das pessoas continua a ver os homens como o problema do
patriarcado. Esse não é o caso. As mulheres pode ser tão fiéis ao
pensamento e atitude patriarcais quanto os homens.

O psicoterapeuta John Bradshaw dá uma definição útil e


clara de patriarcado em Creating Love (Criando amor):

“O dicionário define ‘patriarcado’ como uma


‘organização social marcada pela supremacia do
pai no clã ou família, nas funções domésticas e
religiosas...’. O patriarcado se caracteriza pela
dominação e poder masculinos”.

Mais à frente ele diz que “as regras patriarcais ainda


governam a maior parte do mundo religioso, dos sistemas escolares
e familiares”. Descrevendo a maioria dessas regras prejudiciais,
Bradshaw lista “obediência cega – a fundação sobre a qual o
patriarcado se sustenta; a repressão de todas as emoções, exceto
37

o medo; a destruição da força de vontade individual; e a repressão


do pensamento quando ele se desvia da forma de pensar da figura
autoritária”. O pensamento patriarcal forma os valores da nossa
cultura. Nós somos socializados nesse sistema, tanto mulheres
quanto homens. A maioria de nós aprendeu atitudes patriarcais no
seio familiar e elas normalmente são ensinadas a nós pelas nossas
mães. Essas atitudes são reforçadas nas escolas e instituições
religiosas.

A presença contemporânea de casas lideradas por


mulheres levou muitas pessoas a pensar que as crianças criadas
nesses lares não aprenderiam valores patriarcais porque não havia
homens presentes. Pensam que os homens são os únicos
professores do pensamento patriarcal. Ainda assim, muitas casas
chefiadas por mulheres endossam e promovem o pensamento
patriarcal com ainda mais paixão do que casas chefiadas por casais.
Por falta de experiência na realidade para desafiar falsas fantasias
de papéis de gênero, mulheres nesses lares são muito mais
propensas a idealizar o papel do homem patriarcal e os homens
patriarcais do que mulheres que convivem com homens patriarcais
diariamente. Precisamos esclarecer o papel da mulher em perpetuar
e sustentar a cultura patriarcal para reconhecer o patriarcado como
um sistema que tem o apoio de mulheres e homens igualmente,
mesmo que os homens recebam mais recompensas desse sistema.
Desmontar e mudar a cultura patriarcal é um trabalho que homens
e mulheres têm que fazer juntos.

Claramente, não podemos desconstruir um sistema


enquanto nos negamos a aceitar o impacto que tem nas nossas
vidas. O patriarcado requer dominação masculina pelos meios
38

necessários, visto que dá suporte, promove e tolera violência


sexista. Nós ouvimos mais sobre violência sexista em discursos
sobre estupro e abuso por parceiros domésticos. Mas as formas
mais comuns de violência patriarcal são aquelas que têm lugar em
casa, entre pais patriarcais e seus filhos. O objetivo da violência
geralmente é reforçar um modelo de dominação, no qual a figura de
autoridade é considerada a que governa sobre os que não têm
poder e são dotadas do poder de manter aquela governança por
práticas de subjugação, subordinação e submissão.

Impedir homens e mulheres de falar a verdade sobre o que


acontece em suas famílias é uma forma pela qual a cultura patriarcal
se mantém. A grande maioria dos indivíduos reforçam uma regra
não falada na cultura que determina que mantenhamos os segredos
do patriarcado, protegendo, assim, a regra do pai. Essa regra de
silêncio é sustentada quando a cultura recusa a todos fácil acesso
mesmo à palavra “patriarcado”. A maioria das crianças não aprende
o nome desse sistema institucionalizado de papéis de gênero e
raramente o nomeamos em nosso discurso diário. Esse silêncio
promove negação. E como podemos nos organizar para desafiar e
mudar um sistema que não pode ser nomeado?

Não é por acidente que as feministas começaram a usar a


palavra “patriarcado” para substituir as mais comumente usadas
“machismo” e “sexismo”. Essas vozes corajosas queriam que
homens e mulheres se tornassem mais atentos da forma como o
patriarcado nos afeta a todos. Na cultura popular a palavra em si era
dificilmente usada no auge do feminismo contemporâneo. Ativistas
anti-homem estavam tão pouco interessadas quanto os homens em
enfatizar o sistema patriarcal e como ele funciona. Porque fazê-lo
39

implicaria, automaticamente, expor a noção de que homens eram


todo-poderosos e as mulheres, impotentes, que todos os homens
eram opressores e as mulheres eram sempre e somente vítimas.

Ao colocar a culpa da perpetuação do sexismo somente


nos homens, essas mulheres poderiam manter sua própria
associação ao patriarcado, sua própria sede de poder. Elas
mascaravam seu desejo de serem dominadoras vestindo o manto
da vitimização.

Assim como muitas feministas visionárias radicais, desafiei


essa noção sem sentido, trazida por mulheres que estavam
simplesmente fartas com a exploração e opressão masculinas, de
que os homens eram “o inimigo”. Em 1984, incluí um capítulo com
o título “Homens: Companheiros na luta” no meu livro Teoria
Feminista: da margem ao centro, chamando aqueles que advogam
políticas feministas a desafiar qualquer retórica que colocava toda a
culpa da perpetuação do patriarcado e a dominação masculina
sobre os homens.

A ideologia separatista encoraja as mulheres a ignorar o


impacto negativo do sexismo na personalidade masculina. Isso
ressalta a polarização entre os sexos. De acordo com Joy Justice,
os separatistas acreditam que há “duas perspectivas básicas” na
questão de nomear as vítimas do sexismo:

“Há a perspectiva de que homens oprimem


mulheres. E há a perspectiva de que pessoas são
pessoas, e que todos nos machucamos pelos
papéis de sexo rígidos”.
40

Ambas as perspectivas descrevem com precisão nosso


dilema. Os homens de fato oprimem as mulheres. As pessoas são
machucadas pelos padrões sexistas rígidos. Essas duas realidades
coexistem. A opressão dos homens sobre as mulheres não pode
ser usada para retirar o peso do reconhecimento de que os homens
se machucam pelos padrões sexistas rígidos. Ativistas feministas
devem reconhecer esse dano e trabalhar para mudar. Isso não
apaga nem diminui a responsabilidade dos homens de apoiar e
perpetuar seu poder dentro do patriarcado para explorar e oprimir
mulheres de uma maneira muito mais dolorosa do que o sério
estresse psicológico e dor emocionais causadas pela conformidade
masculina com os padrões sexistas rígidos.

Ao longo daquele capítulo, salientei que as advogadas


feministas conspiram na dor dos homens feridos pelo patriarcado
quando elas falsamente representam homens como sempre e
unicamente poderosos, sempre e unicamente ganhando privilégios
de sua obediência cega ao patriarcado. Enfatizei que a ideologia
patriarcal causa uma lavagem cerebral nos homens para que
acreditem que sua dominação sobre as mulheres é benéfica quando
não é.

Frequentemente ativistas feministas afirmam essa lógica


quando deveríamos estar constantemente chamando esses atos de
expressões de relações de poder pervertido, falta de controle das
ações das pessoas, impotência emocional, irracionalidade extrema
e, em muitos casos, insanidade completa. Enquanto os homens
sofrerem lavagem cerebral a fim de igualar dominação violenta e
abuso de mulheres privilegiadas, eles não entenderão o dano feito
a eles mesmos ou aos outros e não terão motivação para mudar.
41

O patriarcado exige que os homens se tornem e


permaneçam emocionalmente aleijados. Sendo um sistema que
nega aos homens acesso a seu livre arbítrio, é difícil para qualquer
homem de qualquer classe se rebelar contra o patriarcado, ser
desleal ao pai patriarcal, ser esse pai ou mãe.

O homem que foi meu primeiro companheiro por mais de


vinte anos era traumatizado pela dinâmica patriarcal em sua família
de origem. Quando eu o conheci, ele tinha seus vinte anos. Tendo
passado seus anos de formação na companhia de um pai violento
e alcoólatra, as circunstâncias mudaram quando ele tinha 12 anos
e ele passou a viver sozinho com a mãe. Nos primeiros anos de
nossa relação, ele falava abertamente sobre sua hostilidade e raiva
contra seu pai abusivo. Ele não estava interessado em perdoar ou
entender as circunstâncias que haviam moldado e influenciado a
vida do pai, seja na infância ou na época em que trabalhou no
exército.

Nos primeiros anos de nossa relação, ele era


extremamente crítico à dominação masculina sobre mulheres e
crianças. Ainda que não usasse a palavra “patriarcado”, ele entedia
seu significado e se opunha a isso. Seu jeito gentil e calado
frequentemente levava as pessoas a ignorarem ele, colocando-o
como um pessoa fraca e impotente. Aos trinta anos ele começou a
assumir uma postura de “macho”, abraçando o modelo dominador
que até então criticava. Vestindo o manto do patriarcado, ele
ganhou maior respeito e visibilidade. Mais mulheres se
interessavam por ele. Era mais notado nos espaços públicos. Ele
deixou de criticar a dominação masculina. E, de fato, passou a
42

verbalizar a retórica patriarcal, dizendo o tipo de coisa sexista que o


teria abalado no passado.

Essas mudanças em seus pensamentos e


comportamentos foram desencadeadas por seu desejo de ser
aceito e se afirmar numa ambiente de trabalho patriarcal e
racionalizado por seu desejo de progredir. Sua história não é
incomum. Garotos brutalizados e vitimizados pelo patriarcado
frequentemente se tornam patriarcais, incorporando a
masculinidade patriarcal que reconheciam como algo mau. Poucos
homens que foram brutalmente abusados quando crianças em
nome da masculinidade patriarcal resistem corajosamente à
lavagem cerebral e se mantém verdadeiros consigo mesmos. A
maioria dos homens se conformam ao patriarcado de um jeito ou de
outro.

Na verdade, a crítica ao patriarcado feita por feministas


radicais foi praticamente silenciada em nossa cultura. Tornou-se um
discurso subcultural, disponível somente às elites bem educadas.
Mesmo nesses círculos, usar a palavra patriarcado é considerado
antiquado. Frequentemente nas minhas palestras quando uso a
frase “patriarcado capitalista de supremacia branca imperialista”
para descrever o sistema político de nossa nação, a plateia ri.
Ninguém nunca explicou por que é tão engraçado chamar o sistema
pelo nome correto. O riso em si é uma arma do terrorismo patriarcal.
Funciona como uma negação, uma forma de descreditar o que está
sendo nomeado. Sugere que as palavras sozinhas são o problema,
não o sistema que descrevem. Eu interpreto esse riso como a
maneira da plateia de mostrar desconforto ao serem desafiados a
se alinhar à crítica desobediente antipatriarcal. Esse riso me lembra
43

que se eu me atrever a desafiar o patriarcado abertamente, me


arrisco a não ser levada a sério.

Cidadãos desta nação temem desafiar o patriarcado


mesmo que não estejam conscientes do medo que sentem, de tão
profundamente que as regras do patriarcado estão inseridas em
nosso inconsciente coletivo. Frequentemente falo para os
espectadores que se nós fôssemos de porta em porta perguntando
se deveríamos acabar com a violência masculina contra as
mulheres, a maioria das pessoas daria seu apoio incondicional.
Mas, se você lhes disser que só podemos acabar com a violência
masculina contra as mulheres erradicando o patriarcado, as
pessoas iriam hesitar e mudar sua posição. A despeito dos muitos
ganhos do movimento feminista contemporâneo – maior igualdade
para mulheres no trabalho, maior tolerância ao abandono dos
rígidos papéis de gênero – o patriarcado enquanto sistema se
mantém intacto e muitas pessoas continuam a acreditar que ele é
necessário se os humanos quiserem sobreviver enquanto espécie.
Essa crença soa irônica, dado que os métodos patriarcais de
organização social, especialmente a insistência na violência como
forma de controle social, na verdade levou ao massacre de milhões
de pessoas no planeta.

Até que possamos, coletivamente, reconhecer o dano que


o patriarcado causa e o sofrimento que gera, não podemos falar da
dor dos homens. Não podemos exigir que os homens tenham o
direito de ser inteiros, de serem os provedores e âncoras da vida.
Obviamente que alguns homens patriarcais são confiáveis e até
cuidadores benevolentes e provedores, mas ainda assim estão
aprisionados por um sistema que sabota sua saúde mental. O
44

patriarcado promove insanidade. Ele está na raiz das doenças


psicológicas que acometem os homens em nossa nação. No
entanto, não há uma preocupação massiva com a condição dos
homens. Em Stiffed: The Betrayal of the American Man (Enrijecido:
A traição do homem americano), Susan Faludi inclui muito pouca
discussão sobre o patriarcado:

“Peça para as feministas diagnosticarem os


problemas os homens e você encontrará, com
frequência, uma explicação bem clara: os
homens estão em crise porque as mulheres estão
desafiando a dominação masculina. Mulheres
estão pedindo aos homens para compartilhar
suas rédeas em público e os homens não
suportam isso. Pergunte o mesmo às
antifeministas e você receberá um diagnóstico
similar em um aspecto. Se o patriarcado
realmente recompensasse os homens, a
violência e o vício na vida familiar que são tão
onipresentes não existiria. Essa violência não foi
criada pelo feminismo”.

Se o patriarcado fosse recompensador, a insatisfação aterradora


que a maioria dos homens sente em seu trabalho – uma insatisfação
extensivamente documentada no trabalho de Studs Terkel e que
está presente na tese de Faludi – não existiria.

De muitas formas, Stiffed é também uma traição do


homem americano porque Faludi passa tanto tempo tentando não
desafiar o patriarcado que falha em ressaltar a necessidade de pôr
45

fim ao patriarcado para libertar os homens. Ao contrário, ela


escreve:

“Ao invés de me perguntar por que os homens


resistem às investidas das mulheres em nome de
uma vida mais livre e saudável, comecei a me
perguntar por que os homens evitam de se
engajar em seus próprios problemas. Por que,
apesar do crescente número de ataques de birra,
eles não oferecem nenhuma resposta razoável e
metódica aos seus dilemas: dada a insustentável
e insultuosa natureza das exigências feitas aos
homens para provarem quem são em nossa
cultura, por que os homens não se revoltam?...
Por que eles não respondem à série de traições
em suas vidas – às falhas de seus pais em
cumprir suas promessas – com algo que se iguale
ao feminismo?”.

Note que Faludi não se atreve a provocar a ira das


feministas sugerindo que os homens podem achar salvação no
movimento feminista, ou a rejeição de potenciais leitores homens
que são antifeministas de carteirinha sugerindo que eles têm algo a
ganhar se engajando no feminismo. Até agora, em nossa nação, o
movimento feminista visionário é o único que luta por justiça,
enfatizando a necessidade de acabar com o patriarcado. Nenhum
conjunto de massas de mulheres desafiou o patriarcado e nenhum
grupo de homens raivosos se juntou para liderar esse esforço. A
crise que os homens enfrentam não é uma crise de masculinidade,
é uma crise da masculinidade patriarcal. Até que deixemos isso
46

claro em nossas discussões, os homens continuarão a temer que


qualquer crítica ao patriarcado represente uma ameaça.

Distinguindo o patriarcado político, que ele vê como


largamente comprometido em acabar com o sexismo, o terapeuta
Terrence Real deixa claro que o patriarcado que nos fere a todos
está arraigado em nossa psique:

“O patriarcado psicológico é a dinâmica entre as


qualidades reputadas ‘masculinas’ e ‘femininas’,
nas quais metade de nossos traços humanos são
exaltados enquanto a outra metade é
desvalorizada. Tanto homens quanto mulheres
participam nesse sistema de valores torturados.
O patriarcado psicológico é a ‘dança do
conteúdo’, uma maneira perversa de conexão
que substitui a verdadeira intimidade com
camadas complexas e encobertas de dominação
e submissão, conspiração e manipulação. É um
paradigma não reconhecido de relações que
impregnou a civilização ocidental por gerações,
deformando ambos os sexos e destruindo a
ligação apaixonada entre eles”.

Ao ressaltar o patriarcado psicológico, vemos que todos


estamos implicados e libertos da percepção errada de que os
homens são os inimigos. Para acabar com o patriarcado precisamos
desafiar sua manifestação psicológica, bem como a concreta, na
vida diária. Há pessoas capazes de criticar o patriarcado, mas
incapazes de agir de forma antipatriarcal.
47

Para acabar com a dor masculina, para responder


efetivamente à crise masculina, temos que dar nome ao problema.
Temos que reconhecer que o problema é o patriarcado e trabalhar
para acabar com o patriarcado. Terrence Real oferece sua
percepção valiosa:

“A recuperação da completude é um processo


ainda mais carregado para os homens do que
para as mulheres, mais difícil e mais
profundamente ameaçador à cultura como um
todo”.

Se os homens vão reclamar a beleza essencial de ser


homem, se eles vão recuperar o espaço de abrir seus corações e
expressar sentimentos que é o fundamento do bem-estar,
precisamos imaginar alternativas à masculinidade patriarcal.
Precisamos todos mudar.
48

3 – SENDO UM GAROTO

Garotos não são vistos como amáveis na cultura patriarcal.


Ainda que o sexismo sempre tenha imposto que os meninos tenham
mais status que as meninas, status e recompensas por privilégio
não são o mesmo que ser amado. O ataque do patriarcado à vida
emocional dos meninos começa no momento de seu nascimento.
Ao contrário da mitologia sexista, na realidade dos bebês meninos
e meninas, os bebês meninos se expressam mais. Choram por mais
tempo e mais alto. Eles chegam ao mundo querendo ser vistos e
ouvidos. O pior do pensamento sexista leva muitos pais a deixar
meninos chorando sem um toque de conforto por medo de que, se
abraçarem bebês meninos demais, se os confortarem demais, eles
vão crescer uns fracotes. Ainda bem que tem havido um pouco de
quebra dos papéis sexistas rígidos, permitindo que os pais ignorem
essa lógica deslocada e deem aos filhos o mesmo conforto que dão
ou dariam às meninas.

Recentemente, tornou-se claro para os pesquisadores que


trabalham promovendo a vida emocional dos garotos que a cultura
patriarcal influencia os pais a desvalorizar o desenvolvimento
emocional dos garotos. Naturalmente, isso afeta a capacidade dos
meninos de amar e ser amados. Dan Kindlon e Michael Thompson,
autores de Raising Cain: Protecting the Emotional Life of Boys
(Criando Caim: Protegendo a vida emocional dos garotos),
ressaltam que sua pesquisa mostra que meninos são livres para ser
mais emotivos nos primeiros anos da infância porque ainda não
aprenderam a temer e desprezar a expressão de dependência:
49

“Toda criança, incluindo meninos, vem ao mundo


querendo amar e ser amada pelos pais. Quarenta
anos de pesquisa sobre apego emocional mostra
que sem isso as crianças morrem ou sofrem dano
emocional severo.”

Apesar dessa poderosa compreensão, eles não falam


sobre o impacto do patriarcado. Eles não falaram para os leitores
que para realmente proteger a vida emocional dos meninos nós
devemos dizer a verdade sobre o poder do patriarcado. Devemos
nos atrever a encarar o modo com que o pensamento patriarcal
cega a todos para não vermos que a vida emocional dos garotos
não pode ser totalmente honrada enquanto as noções de
masculinidade patriarcal prevalecerem. Não podemos ensinar aos
garotos que “homens de verdade” não sentem ou não expressam
seus sentimentos e esperar que os garotos se sintam confortáveis
em se conectarem com seus sentimentos.

Muito da pesquisa tradicional sobre a vida emocional dos


garotos desenha a conexão entre noções de dominação masculina
e o desligamento das emoções na infância dos garotos, mesmo que
os pesquisadores ajam como se os valores patriarcais possam
permanecer intactos. Bestsellers populares como Raising Cain:
Protecting the Emotional Life of Boys (Criando Caim: Protegendo a
vida emocional dos garotos) e Lost Boys: Why Our Sons Turn
Violent and How We Can Save Them (Garotos Perdidos: porque
nossos filhos se tornam violentos e como podemos salvá-los), de
James Garbarino, salientam o modo como os meninos sofrem dano
emocional, mais falham em oferecer uma visão alternativa corajosa,
uma visão que fundamentalmente desafiaria a masculinidade
50

patriarcal. Ao invés disso, esses livros sugerem que dentro do


sistema patriarcal a infância dos meninos deveria ser livre das
demandas patriarcais. O valor do patriarcado em si nunca é
colocado em pauta. Em Raising Cain: Protecting the Emotional Life
of Boys (Criando Caim: Protegendo a vida emocional dos garotos),
os autores concluem argumentando:

“O que os garotos precisam, em primeiro lugar e


mais importante, é serem vistos por lentes
diferentes das tradicionais. Individualmente e
culturalmente, devemos descartar a visão
distorcida sobre os garotos que ignora e nega sua
capacidade de sentir, a visão que mancha a
percepção dos garotos sobre si mesmos como
superiores ou de fora de uma vida com emoções.”

Kindlon e Thompson despolitizam sua linguagem com


cuidado. O uso da palavra “tradição” nega a realidade de que a
cultura patriarcal que socializou quase todo mundo em nossa nação
para desmerecer a vida dos garotos é um sistema social e político
complexo. Também não é um acidente na natureza. Mulheres
antifeministas como Christina Hoff Sommers conquistam
favorecimento patriarcal com os homens espalhando a ideia,
colocada no livro de Sommers The War Against Boys (A guerra
contra os garotos), de que “o feminismo ameaça nossos jovens
garotos”. Sommers falsamente assume que educar garotos para ser
antipatriarcais é “ressocializar os garotos em direção à
feminilidade”. Convenientemente, ela ignora que pensadoras
feministas são tão críticas de noções sexistas de feminilidade
quanto somos críticas das noções patriarcais de masculinidade. É o
51

patriarcado, em sua negação da completa humanidade dos garotos,


que ameaça a vida emocional dos meninos, não o pensamento
feminista. Para mudar as “tradições” patriarcais, precisamos acabar
com o patriarcado, em parte visando formas alternativas de pensar
a masculinidade, não só a infância dos meninos. Sem nunca usar a
palavra “patriarcado” (ele usa a frase “masculinidade tradicional”), o
psicólogo James Garbarino sugere em Lost Boys que o cultivo de
um ser andrógino, que combina traços considerados masculino e
feminino, afirmaria aos garotos seu direito a ser emotivos. No
capítulo “O que os garotos precisam”, Garbarino escreve:

“Quando e como os meninos aprendem o que


significa ser homem? Eles parecem aprender
tudo com a mídia de massa e os homens de maior
visibilidade em sua comunidade, particularmente
seus pares. Os amigos dos meninos são árbitros
do que é masculino e do que é feminino, então a
resiliência entre a comunidade dos garotos
depende da mudança das atitudes de macho em
seus grupos de pares homens e da ampliação de
seu conceito do que um homem de verdade
realmente faz”.

O trabalho de Garbarino é poderoso, muito certeiro em


suas descrições e na informação que oferece sobre as formas que
os meninos sofrem traumas pelas demandas em negar suas
emoções. Mas, também é perturbador porque o próprio autor parece
relutante em conectar seu reconhecimento do dano feito aos
garotos com a crítica do pensamento e prática patriarcais. É como
se ele acreditasse que, de alguma forma, tudo de que se precisa é
52

uma reforma dos valores patriarcais para que as emoções dos


meninos possam ser amparadas, ao menos até que os meninos
cresçam.

Francamente, é difícil entender por que esses homens que


sabem tanto sobre o quanto o pensamento patriarcal é danoso para
os garotos são incapazes de chamar o problema pelo nome que tem
e, assim, se libertarem para vislumbrar um mundo onde os
sentimentos dos meninos possam realmente importar. Talvez eles
se calem porque qualquer crítica ao patriarcado necessariamente
leva a uma discussão sobre se a conversão ao pensamento e
prática feministas são a resposta. Tem sido difícil para muitos
homens pensadores da vida emocional dos meninos ver o
feminismo como uma teoria de apoio, pois os sentimentos anti-
homem entre algumas feministas levaram o movimento a focar
pouco sua atenção no desenvolvimento dos garotos.

Uma das maiores falhas da teoria e prática feministas tem


sido a falta de estudos centrados na infância dos meninos, uma das
linhas mestras e estratégia para a masculinidade alternativa e
modos de pensar a masculinidade. De fato, a retórica feminista que
insistiu em identificar homens como inimigos frequentemente fechou
os espaços em que garotos eram levados em consideração, em que
eram considerados dignos de serem resgatados da exploração e
opressão patriarcais tanto quanto as mulheres. Tal qual os
pesquisadores que escrevem sobre a vida emocional dos garotos
de uma perspectiva não feminista, pesquisadoras feministas
frequentemente mostram-se avessas ou relutantes de mirar o
pensamento patriarcal. A terapeuta familiar Olga Silverstein, em seu
livro The Courage to Raise Good Men (A coragem de criar grandes
53

homens) diz muito pouco sobre o patriarcado mesmo oferecendo


estratégias alternativas para criar garotos. Há duas grandes
barreiras impedindo pesquisadores de se dirigirem ao patriarcado.
Os pesquisadores temem que análises políticas alienarão os
leitores de um lado, e do outro, que eles possam simplesmente não
ter visões alternativas a oferecer.

A teoria feminista nos oferece críticas brilhantes do


patriarcado e muito poucas ideias sobre masculinidade alternativa,
especialmente em relação ao garotos. Muitas mulheres feministas
que tiveram filhos meninos se viram relutantes em desafiar os
aspectos convencionais da masculinidade patriarcal quando seus
filhos queriam se agarrar àqueles valores. Elas não quiseram negar
a seus filhos acesso às armas de brinquedo ou dizer a eles para
serem passivos quando outro garoto os atacasse no parquinho.
Para muitas brilhantes mães solo feministas com recursos
econômicos limitados, o esforço de mapear alternativas à
masculinidade patriarcal para os filhos simplesmente consumia
tempo demais.

Uma de minhas melhores amigas é mãe solo com duas


crianças, uma filha mais velha e um filho mais novo. Quando o filho
dela nasceu, sugeri que lhe desse o nome de Ruby. Seu pai
biológico falou, de brincadeira “Ela tinha que ter o próprio filho e
então dar o nome de Ruby”. Bem, o nome do meio dele é Ruby.
Quando ele tinha mais ou menos cinco anos, ele decidiu que queria
usar o nome Ruby. Os meninos da escola mostraram, por meio de
provocações, que esse nome era de menina. Para contestar, ele e
sua mãe levaram fotos de homens chamados Ruby de várias
épocas. Mais tarde, ele quis pintar as unhas com esmalte e ir assim
54

para a escola. De novo, os garotos fizeram com que ele soubesse


que meninos não usam esmalte. Sua mãe e irmã juntaram todos os
caras adultos “descolados” que conheciam e os levaram à escola
para mostrar que homens podem usar esmalte nas unhas.

Isso aconteceu nos tempos de pós-graduação da minha


amiga; quando ela começou a trabalhar em período integral, se
tornou mais difícil manter essa vigilância. Só recentemente seu filho
lhe disse o quanto ele gosta do perfume dela. Ela disse que ele
podia passar o mesmo perfume. Ele disse a ela que não podia ir
para a escola com aquele perfume doce de jeito nenhum. Ele tinha
pegado o recado de que “meninos não usam perfume gostoso”. Ao
invés de incentivá-lo a mais esse desafio, ela agora permite que ele
escolha e não julga suas escolhas. Ainda assim, ela fica triste por
ele, triste que a conformação com os padrões patriarcais
interferiram em seus desejos.

Muitos pais antipatriarcais pensam que a masculinidade


alternativa que apoiam para seus filhos meninos são destruídas não
pelos adultos, mas pelos garotos sexistas da mesma idade. Pais
progressistas que se esforçam para serem vigilantes com as mídias
de massa a que seus meninos têm acesso precisam
constantemente intervir e oferecer ensinamentos que contradigam
a pedagogia patriarcal encarada como “normal”. Em How Can I Get
Through to You? (Como posso chegar até você?), Terence Real, pai
de dois filhos, afirma:

“Nossos filhos aprendem o código cedo e bem,


não chore, não seja vulnerável; não demonstre
fraqueza, e mais importante, não demonstre que
se importa. Como sociedade, pode ser que
55

tenhamos uma noção de que criar meninos e


meninas inteiros é uma boa ideia, mas isso não
quer dizer que o fazemos. Mesmo que você e eu
nos comprometamos a criar crianças mais livres,
a cultura como um todo, mesmo que pareça estar
mudando, está ainda longe de mudar. Por mais
que tentemos, nos cinemas, nas salas de aulas,
nos parquinhos nossos filhos e filhas são
bombardeados com mensagens tradicionais
sobre masculinidade e feminilidade, hora a hora,
dia a dia”.

De novo, Real usa a palavra “tradicional” ao invés de


“patriarcal”. Tradições são raramente difíceis de mudar. O que tem
sido muito difícil de mudar, no entanto, é a propaganda ostensiva da
cultura patriarcal. Ainda assim, começamos a proteger o bem-estar
emocional dos meninos e de todos os homens quando chamamos
essa propaganda pelo verdadeiro nome, quando reconhecemos
que a cultura patriarcal exige que os meninos neguem, suprimam e,
se tudo der certo, desliguem sua consciência emocional e sua
capacidade de sentir.

Meninos pequenos são os únicos seres masculinos em


nossa cultura que podem estar total e completamente em contato
com seus sentimentos, a quem se permite momentos em que
podem expressar sem vergonha seus desejos de amarem e serem
amados. Se forem muito, muito sortudos, eles conseguem se
manter conectados aos seu eu interior ou alguma parte de seu eu
interior antes de entrarem no sistema escolar patriarcal onde rígidos
papéis de sexo serão impostos pelos pares de maneira tão rigorosa
56

quanto ocorre nas prisões masculinas. Os poucos meninos que


vivem em lares antipatriarcais aprendem desde cedo a viver uma
vida dupla: em casa, eles podem sentir, se expressar, ser quem são;
fora de casa, precisam agir conforme o papel de garoto patriarcal.
Garotos patriarcais, assim como seus pares adultos, conhecem as
regras: eles sabem que não devem expressar sentimentos, com
exceção da raiva; que não devem fazer nada considerado feminino
ou próprio de mulher. Uma pesquisa nacional com garotos
adolescentes revelou sua aceitação passiva da masculinidade
patriarcal. Os pesquisadores descobriram que os garotos
concordam que para ser um verdadeiro homem, eles precisam
exalar respeito, ser durões, não falar de seus problemas e dominar
as mulheres.

Todos os dias pelo país, meninos consomem imagens em


mídias de massa que lhes mandam uma mensagem sobre como
lidar com as emoções, e essa mensagem é “Atuem”. Geralmente,
atuar significa agressão dirigida para o exterior. Chutes, gritos e
tapas chamam atenção. Como a paternidade patriarcal não ensina
os garotos a expressar seus sentimentos em palavras, ou os
meninos atuam ou implodem. Muito poucos garotos são ensinados
a expressar com palavras o que sentem, quando sentem. E mesmo
quando os meninos são capazes de expressar sentimentos na
primeira infância, eles aprendem enquanto crescem que não devem
sentir e se desligam.

A confusão que os meninos experimentam sobre suas


identidades é aumentada na adolescência. De muitas formas, o fato
de os garotos de hoje frequentemente terem uma gama maior de
expressões emocionais na infância, mas serem forçados a suprimir
57

sua consciência emocional mais tarde, faz com que a adolescência


seja mais estressante para os garotos. Tragicamente, não fosse
pela extrema violência despertada nos meninos adolescentes de
nossa nação, a vida emocional dos garotos ainda seria ignorada.
Ainda que terapeutas nos digam que as imagens de violência
masculina e dominação de mídias de massa ensinem os meninos
que a violência é sedutora e satisfatória, quando meninos
individuais são violentos, especialmente quando matam
aleatoriamente, os eruditos tendem a se comportar como se fosse
um mistério os meninos serem tão violentos.

Pesquisas de feministas progressistas sobre garotos


adolescentes desbancaram a até então aceita noção de que é
natural para os garotos passarem por um estágio antissocial em que
se dissociam e se desconectam. Estudos recentes indicam que é
emocionalmente danoso para meninos jovens se isolarem e serem
privados de cuidado e nutrição emocional. No passado, se
acreditava que a agressão era parte de um ritual de separação, uma
forma de o garoto em crescimento afirmar sua autonomia.
Claramente, porém, enquanto as meninas aprendem a ser
autônomas e criar uma distância saudável de seus pais sem serem
antissociais, garotos podem fazer o mesmo. Em famílias saudáveis,
os meninos podem aprender e afirmar autonomia sem
apresentarem comportamento antissocial, sem se isolar. Em todo o
mundo, regimes terroristas usam o isolamento para quebrar os
espíritos das pessoas.

Essa arma de terrorismo psicológico é diariamente


implantada em nossa nação contra os garotos adolescentes.
Isolados, eles perdem a noção de seu valor. Sem dúvidas que
58

quando eles se recolocam na sociedade, trazem com eles sua fúria


assassina como principal defesa.

Mesmo que massas de garotos americanos não venham a


cometer crimes violentos que terminem em morte, a verdade que
ninguém quer declarar é que todos os garotos estão sendo criados
para ser matadores mesmo que aprendam a esconder o assassino
interior e agir como jovens patriarcas benevolentes. (Mais e mais
garotas que abraçam o pensamento patriarcal também abraçam a
noção de que devem ser violentas para ter poder). Falando com
garotas adolescentes de todas as classes que estavam
secretamente apanhando de seus namorados (que dizem estar
“disciplinando-as”), o que se ouve é o mesmo que dizem as
narrativas do Dr. Jekyll e do Sr. Hyde1, que mulheres adultas contam
quando falam de seus relacionamentos com homens abusivos.
Essas garotas descrevem caras que parecem legais e que tem
arroubos de raiva. Repetidamente, ouvimos em nossos telejornais
sobre jovens garotos que parecem ser legais e quietos cuja face
violenta é revelada. Os meninos são encorajados pelo pensamento
patriarcal a encarar a raiva como o caminho mais fácil para a
masculinidade. Não deveria surpreender, então, que abaixo da
superfície haja uma raiva fervendo nos meninos, esperando pelo
momento de ser ouvida.

Muito da raiva que os meninos expressam é uma resposta


à exigência de que eles não mostrem suas emoções. A raiva
geralmente é melhor do que o torpor, porque ela leva a ações mais
concretas. A raiva pode, e geralmente é, um esconderijo para o

1
N.T.: O estranho caso do Dr Jekyll and Mr Hyde é um romance gótico, com elementos de ficção
científica e terror, escrito pelo autor escocês Robert Louis Stevenson e publicado originalmente em
1886.
59

medo e para a dor. Em The Heart of the Soul (O cerne da alma), os


autores Gary Zukav e Linda Francis exploram as formas como a
raiva bloqueia o eu que sente:

“A raiva afasta o amor e isola aquele que sente


raiva. É uma tentativa, muitas vezes bem
sucedida, de afastar o que a pessoa mais quer –
companhia e compreensão. É uma negação da
humanidade dos outros bem como da própria
humanidade. A raiva é a agonia de acreditar que
você não é capaz de ser compreendido e que
você não é digno de compreensão. É uma parede
que te separa de outros com tanta eficiência,
como se fosse feita de concreto, grossa e muito
alta. Não há forma de contorná-la, nem de passar
por baixo ou por cima dela”.

Certamente, em quase todas as situações em que


garotos mataram, descobrimos narrativas de raiva que descrevem
a realidade emocional antes que aconteçam. Importante dizer que
essa raiva é expressa em espectros de classe, raça e circunstâncias
familiares. Garotos violentos de famílias ricas frequentemente são
tão emocionalmente alienados quanto os dos guetos.

Num momento da história de nossa nação quando, mais


do que nunca, garotos estão sendo criados em casas lideradas por
mães solo, as mídias de massa mandam a mensagem de que mães
solo não são capazes de criar um filho saudável. Por todo canto em
nossa nação as mães se preocupam que seu jeito de criar os filhos
esteja causando danos a eles. Esse é o problema que Olga
Silverstein ataca frontalmente em The Courage to Raise Good Men
60

(A coragem de criar grandes homens). Comentando que muitas


pessoas ainda acreditam que as mães comprometem a
masculinidade dos filhos, ela escreve:

“A maioria das mulheres, assim como a maioria


dos homens, sente que a influência da mães vai,
ao fim e ao cabo, ser danosa para os meninos,
que irá enfraquecê-los e que somente o exemplo
de um homem é capaz de encaminhar seu filho
para a masculinidade. Mães solo em particular
são atormentadas pelo terror de produzir um
maricas”.

A homofobia guia o medo de que permitir que meninos


possam sentir vai fazê-los virarem gays; esse medo é
frequentemente mais intenso em lares liderados por pais solo.
Como consequência, as mães dessas famílias podem ser duras
demais e profundamente emocionalmente retraídas com seus filhos,
acreditando que esse tratamento vá ajudar os meninos a serem
mais masculinos.

Não importa que haja informações abundantes sobre como


muitos homens gays vêm de famílias de dois pais e podem ser
machões e odiar mulheres, ainda assim prevalece a noção
distorcida de como surgem os homens gays. Diariamente meninos
que expressam seus sentimentos são psicologicamente
aterrorizados e, em casos extremos, brutalmente espancados, por
pais que temem que um homem com sentimentos possa ser
homossexual.

Homens gays compartilham com homens hétero as


mesmas noções de aceitação da masculinidade. Por sorte, tem
61

havido homens gays individuais que se atrevem a desafiar a


masculinidade patriarcal. Porém, a maioria dos homens gays em
nossa cultura abraçam o pensamento sexista tanto quanto os
heterossexuais.

Seu pensamento patriarcal os leva a construir paradigmas


de comportamento de desejo sexual similares aos dos homens
heterossexuais patriarcais. Como consequência, muitos homens
gays são tão raivosos quanto os heterossexuais.

Tal como o sadismo maternal floresce num mundo onde


mulheres são feitas para sentir que sua crueldade emocional com
os filhos faz deles mais preparados para a masculinidade, o
sadismo paternal é a expressão dos valores patriarcais. No livro The
Man I Might Become: Gay Men Write About Their Fathers (O homem
que posso me tornar: homens gays escrevem sobre seus pais),
editado por Bruce Shenitz, muitas das histórias dos garotos
descrevem rituais de sadismo paternal. James Saslow escreve em
Daddy Was a Hot Number (Papai era original):

“Todas as crianças sofrem a dor pulsante da


inadequação quando o papai vira a cara; é duas
vezes mais dolorido quando ele é seu objeto de
desejo bem como seu mentor e modelo. Só o
amor materno é incondicional... Mas o amor
paterno é também aquele que modela a criança...
Os pais nos desafiam e então nos julgam – seu
papel na socialização da próxima geração. Nessa
batalha mística de vontades, persuasão e
exemplo são as armas preferidas, mas se elas
62

não funcionam, o sargento terá que soltar a


bomba atômica da guerra familiar: rejeição”.

A maioria dos pais patriarcais em nossa nação não usam


violência física para manter os filhos sob controle; eles usam várias
técnicas de terrorismo psicológico, a mais comum delas sendo
prática de humilhação. Pais patriarcais não conseguem amar os
filhos porque as regras do patriarcado ditam que eles se mantenham
competindo com os filhos, prontos a provar que eles são os homens
de verdade, que estão no comando. Em seu texto Finding Light and
Keeping it in Front of Me (Encontrando a luz e mantendo-a em frente
a mim), Bob Vance descreve como andava atrás do pai quando
garoto, querendo se conectar, mas sabendo intuitivamente que não
havia conexão possível:

“Algo me inibe de dizer o que quero. Eu sei, se é


que um garoto tão pequeno consegue intuir esse
tipo de coisa, que eu sou deixado de fora de seu
mundo e sou, de alguma forma, proibido de
perguntar a ele o que posso fazer para que ele
me carregue para seu mundo de modo brincalhão
e carinhoso. Aqui começa o dilema. Essa é a
primeira memória que tenho de meu pai”.

Para pais patriarcais, os filhos só podem ser considerados


soldados em treinamento, então eles precisam constantemente ser
submetidos a batalhas de poder sadomasoquistas, com o objetivo
de fazê-los mais fortes, prepará-los para manter o legado patriarcal.
Como filhos, eles habitam um mundo onde pais se esforçam para
mantê-los em posição inferior; como patriarcas em treinamento, eles
devem aprender como assumir a posição de comando. Real explica:
63

“Sustentar relações com outros requer um bom


relacionamento com a gente mesmo. Autoestima
saudável é um senso de valor interno, que te
empurra não para a grandiosidade do ‘melhor
que’ nem para a vergonha do ‘menos que’...
Desprezo é o motivo de tantos homens terem
tantos problemas em se manterem conectados.
Uma autoestima saudável – nem muito acima
nem muito abaixo – não é bem uma opção, e
como estar em posição inferior provoca desdém
em si mesmo e nos outros, a maioria dos homens
aprende a esconder a vergonha crônica que
carregam... fugindo da própria humanidade e da
proximidade com as pessoas”.

Esse voo para longe da proximidade é mais intenso em


garotos adolescentes, pois é a zona limite entre a infância e a vida
adulta, em que experimentam uma vasta gama de emoções que os
deixa fora de controle, com medo de não corresponderem ao padrão
da masculinidade patriarcal. A raiva suprimida é o esconderijo
perfeito para todos esses medos.

Apesar das grandes mudanças em papéis de gênero na


vida pública, na vida privada muitos garotos são traumatizados por
suas relações com pais distantes ou ausentes. Trabalhando com
grupos de homens, ouvindo-os falar de suas infâncias, ouço as
histórias que eles contam sobre a falta de conexão emocional com
seus pais. Enquanto tentam se enquadrar nas expectativas do
patriarcado, muitos garotos temem a fúria do pai. Em Man Enough:
64

Fathers, Sons and the Search for Masculinity (Homem o suficiente:


Pais, filhos e a busca pela masculinidade), Frank Pittman lembra:

“Temendo não ter o suficiente, eu ficava


maravilhado com a masculinidade. Pensei que
meu pai tinha algum poder mágico que não tinha
passado para mim, um segredo que não havia me
contado”.

Esse mesmo pensamento ocorre repetidamente, o que


sugere que há um ideal de masculinidade que homens jovens não
tem muita certeza de atingir e que faz desmoronar sua autoestima.
E a crise dessa falta parece mais profundamente sentida por
garotos com pais ausentes. Sem uma conexão positiva com um
homem adulto real, eles são muito mais propensos a investir num
ideal patriarcal hipermasculino. O medo de não ser capaz de atingir
o nível correto de masculinidade é frequentemente traduzido em
fúria. Muitos garotos adolescentes são raivosos porque a fantasia
de conexão emocional entre pai e filho, o amor que imaginam que
estará lá, nunca se torna realidade. Em seu lugar, há apenas um
espaço de desejo vazio. Mesmo quando se torna evidente que a
fantasia não vai se realizar, que o “machucado do pai” nunca será
curado, os meninos se apegam à falta. Talvez isso lhes dê um senso
de propósito de sentir que algum dia vão encontrar o pai ou, ao
terem filhos, se tornar o pai com que sonham.

Frustrados em sua busca pela ligação com o pai, os


garotos frequentemente sentem uma tristeza e depressão
tremendas. Eles podem mascarar esses sentimentos porque lhes é
permitido se isolar, se fechar para o mundo e se refugiar na música,
televisão, videogames etc. Não há saída emocional para a dor de
65

um garoto adolescente desapontado. Ser capaz de lamentar a


perda da conexão emocional com seu pai seria um jeito saudável
de lidar com o desapontamento. Mas os garotos não têm espaço
para lamentar. Essa necessidade de espaço para sofrer é
vivamente retratada no filme Life Has a House. Ao saber que tem
câncer e pouco tempo de vida, o pai do filme procura se conectar
com seu filho adolescente sexualmente confuso, raivoso e usuário
de drogas, que vive com a mãe e o padrasto. No pouco tempo que
vive com o pai, o filho é capaz de desenvolver conexão emocional.
Quando o filho descobre que seu pai está morrendo, ele se revolta
por ter recebido um amor que não vai durar. No estudo de Donald
Dutton sobre homens abusivos, The Batterer (O agressor), ele
observa que há poucos modelos masculinos de sofrimento, e
enfatiza que “homens em particular parecem ser incapazes de
sofrer e se lamentar de maneira individual. Presos num mundo que
diz aos meninos que eles não devem expressar sentimentos,
garotos adolescentes não tem para onde ir para que sua dor seja
aceita”.

Ainda que os adultos reclamem da raiva dos meninos


adolescentes, a maioria dos adultos fica mais confortável
confrontando um adolescente enraivecido do que um que está
perdido em dor e não consegue parar de chorar. Os meninos
aprendem a esconder sua dor com raiva; quanto mais problemático
o garoto, mais intensa sua máscara de indiferença. Desligar suas
emoções é a melhor defesa quando o desejo de se conectar precisa
ser negado.

Adolescentes são os menos amados em nossa nação.


66

Adolescentes são os que impõem mais medo,


precisamente porque eles estão constantemente expondo a
hipocrisia de seus pais e do mundo ao seu redor. E nenhum grupo
de adolescentes é mais temido do que um grupo de garotos
adolescentes. Emocionalmente abandonados pelos pais e pela
sociedade como um todo, muitos garotos estão irados, mas
ninguém se importa realmente com essa ira a menos que isso leve
a um comportamento violento. Se os meninos pegarem sua ira e se
sentarem em frente ao computador o dia todo, sem falar, sem se
relacionar, ninguém se importa. Se os meninos pegarem sua raiva
e forem para o shopping, ninguém se importa, contanto que seja
contida. Em Lost Boys (Garotos perdidos), o terapeuta James
Garbarino dá seu testemunho de que, quando se trata de garotos,
“a negligência é mais comum que o abuso: mais crianças são
emocionalmente abandonadas do que diretamente atacadas, física
ou emocionalmente”. Negligência emocional pavimenta o caminho
para o entorpecimento emocional que ajuda os garotos a se sentir
melhor ao serem deixados de lado. Explosões de raiva em garotos
são geralmente consideradas normais, explicadas com a justificava
da idade para adolescentes de maus comportamentos patriarcais,
“Garotos são assim mesmo”. O patriarcado cria a raiva nos meninos
e a retém para uso posterior, fazendo dela uma fonte para explorar
mais tarde, quando os meninos se tornarem homens. Enquanto
produto nacional, essa raiva pode ser acumulada para posterior
imperialismo, ódio e opressão de mulheres e homens em escala
global. Essa raiva é necessária se os garotos forem virar homens
dispostos a viajar pelo mundo lutando em guerras sem nunca exigir
que outros meios de solução de conflitos sejam encontrados.
67

Desde que massas de garotos americanos começaram,


na esteira das lutas por direitos civis, libertação sexual e movimento
feminista, a exigir seus direitos de ser psicologicamente inteiros e
expressar essas demandas mais visivelmente se recusando a lutar
na Guerra do Vietnã, a mídia de massa, agindo como ferramenta de
propaganda do patriarcado capitalista de supremacia branca
imperialista mirou nos jovens garotos e se empenhou numa
lavagem cerebral pesada para reforçar o patriarcado psicológico.
Hoje, meninos pequenos e homens jovens são diariamente
inundados com uma pedagogia venenosa que apoia a violência e a
dominação masculinas, que ensina aos garotos que violência
desenfreada é algo aceitável, que os ensina a desrespeitar e odiar
mulheres. Dada esta realidade e o concomitante abandono
emocional dos garotos, não deveria surpreender ninguém que os
garotos sejam violentos, que eles estejam dispostos a matar;
deveríamos nos surpreender que a matança ainda não seja
generalizada.

Ataques patriarcais impiedosos à autoestima de garotos


adolescentes se tornaram uma norma aceitável. Há um silêncio
grave sobre a tirania dos homens adultos em relação aos garotos
adolescentes. Muito do terrorismo dos homens adultos e sua
competição com meninos pequenos e homens jovens é conduzida
pela mídia de massa. Muito da mídia de massa dirigida aos garotos
jovens consumidores é criada por homens que odeiam a si mesmos
e são emocionalmente desconectados, que só tem a pornografia da
violência para compartilhar com os homens mais jovens. Para isso,
eles criam imagens que tornam a matança atraente e a exploração
sexual de mulheres uma recompensa sedutora. Na esteira das
68

críticas feministas, antirracistas e pós-coloniais ao patriarcado


capitalista de supremacia branca imperialista, a reação que visa
reinscrever o patriarcado é feroz. Enquanto o feminismo ignora os
meninos e homens jovens, homens capitalistas patriarcais não o
fazem. Foram homens adultos, brancos e ricos nesse país que
primeiro leram e se apaixonaram pelos livros de Harry Potter.

Apesar de terem sido escritos por uma mulher britânica,


inicialmente descrita pelos homens americanos ricos e brancos que
a “descobriram” como uma mãe solo da classe trabalhadora, os
livros de Harry Potter escritos por J.K. Rowling são um releitura
moderna inteligente dos romances escolares ingleses. Harry, como
nosso herói dos tempos modernos, é um garoto branco super
inteligente, talentoso, abençoado (um mini patriarca) que “governa”
entre crianças igualmente inteligentes, incluindo ocasionalmente
uma garota ou garoto de cor. Mas esses livros também glorificam a
guerra, retratada como a matança em nome do “bem”.

Os filmes de Harry Potter glorificam o uso da violência para


manter o controle sobre os outros. Em Harry Potter e a Câmara
Secreta, a violência é considerada positiva quando usada pelo
grupos aceitáveis. O pensamento sexista e racista nos livros de
Harry Potter é raramente criticado. Se o autor fosse um homem
branco da classe dominante as pensadoras feministas talvez
tivessem sido mais ativas em desafiar o imperialismo, racismo e
sexismo nos livros de Rowling.

Repetidamente eu escuto pais, particularmente os


antipatriarcais, expressam preocupação com o conteúdo desses
livros ao mesmo tempo que os elogiam por trazer os meninos para
a leitura. Claro que crianças americanas foram bombardeadas com
69

uma blitz de propagandas dizendo a elas que deveriam ler esses


livros. Harry Potter começou como uma notícia nacional sancionada
pela mídia de massa. Livros que não reinscrevem a masculinidade
patriarcal não recebem o tipo de aprovação que Harry Potter
recebeu. E crianças raramente têm a oportunidade de conhecer
livros que oferecem uma alternativa às visões de masculinidade
patriarcal. O fenomenal sucesso monetário de Harry Potter significa
que garotos vão ter, daqui para a frente, uma variedade de clones
literários para escolher.

Literatura para crianças é considerada como uma fonte de


atitudes patriarcais tanto quanto a televisão. Há poucos livros com
personagens masculinos focados em garotos que desafiam o
patriarcado, de qualquer forma. Por não haver muitos desses livros,
não há como saber que impacto teria ensinar aos garotos
masculinidades alternativas. Ao escrever uma série de livros infantis
para garotos, eu inicialmente fiquei espantada com como foi difícil
para mim, uma teórica visionária feminista, imaginar novas imagens
e textos para garotos. Comprar livros para meu sobrinho foi o que
me alertou para a falta de literatura progressista para garotos. No
meu primeiro livro infantil com personagens masculinos, Be Boy
Buzz (Seja um garoto, Buzz), eu queria celebrar a infância dos
meninos sem reinscrever normas patriarcais. Eu queria escrever um
texto que expressasse amor pelos garotos. É um livro para meninos
pequenos. Esse livro é um esforço para honrar o bem-estar geral
dos garotos e expressar amor por eles quer eles estejam rindo,
brincando ou somente sentados. Os livros que escrevi são focados
em oferecer aos garotos formas de lidar com seu lado emocional. O
70

objetivo é estimular nos garotos consciência emocional e afirmar e


essa consciência.

Para realmente proteger e honrar a vida emocional dos


garotos, precisamos desafiar a cultura patriarcal. E até que essa
cultura mude, devemos criar subculturas, santuários onde os
meninos podem aprender a ser quem são de forma única, sem
serem forçados a agir como mandam as visões de masculinidade
patriarcal. Para amar os garotos da forma correta, devemos
valorizar suas vidas interiores o suficiente para construir mundos,
públicos e privados, onde seu direito a serem completos possa ser
consistentemente celebrado e afirmado, onde sua necessidade de
amar e ser amados possa ser realizada.
71

4 – PARANDO A VIOLÊNCIA MASCULINA

Todos os dias no país, homens são violentos. Sua


violência é considerada “natural” pela psicologia do patriarcado, que
insiste que há uma conexão biológica entre ter um pênis e ser
propenso à violência. Esse pensamento continua a dar forma às
noções de masculinidade em nossa sociedade, apesar do fato de
que já foi documentado que há culturas no mundo onde homens não
são violentos no dia a dia, onde estupro e assassinato são raros.

Todos os dias em nossa nação há homens que se


distanciam da violência. Esses homens não escrevem livros sobre
como conseguem navegar pelo terreno da masculinidade patriarcal
sem sucumbir à atração pela violência.

Conforme as mulheres foram ganhando o direito de serem


homens patriarcais disfarçados, elas estão se envolvendo em atos
de violência similares aos dos homens. Isso serve para nos lembrar
que o desejo de usar a violência não está realmente ligado à
biologia, mas a uma série de expectativas sobre a natureza do
poder numa cultura de dominação.

Por décadas, independente de quantos programas de tv e


filmes tenhamos assistido em que os heróis são homens bons que
usam violência para ganhar a briga contra os homens maus, muitas
pessoas sentiram que as pensadoras feministas exageram o nível
que os homens são violentos no dia a dia. A feminista radical Andrea
Dworkin tem corajosa e consistentemente se atrevido a nomear o
largo alcance da violência masculina contra mulheres. Em
Scapegoat (Bode expiatório) ela escreve:
72

“Um relatório recente das Nações Unidas diz que


‘a violência contra mulheres é a forma mais
perversa de abuso dos direitos humanos no
mundo’. Nos Estados Unidos, o Departamento de
Justiça diz que ‘uma em cada doze mulheres será
perseguida em algum momento de sua vida’. A
Associação Americana de Medicina concluiu que
‘abuso sexual e violência familiar estão
devastando o bem-estar físico e emocional dos
Estados Unidos’; em 1995, o AAM reportou que
‘mais de 700 mil mulheres nos Estados Unidos
são abusadas sexualmente a cada ano, ou uma
a cada 45 segundos’”.

Esses fatos dizem respeito a abusos físicos e não contam


o abuso emocional de forma abrangente que se tornou praticamente
aceitável em relacionamentos entre homens e mulheres, seja entre
marido e mulher, pai e filha, irmão e irmã, ou namorada e namorado.

Em How Can I Get Through to You? (Como posso chegar


até você?) Terence Real inclui um capítulo intitulado “Uma
conspiração silenciosa”, no qual ele enfatiza que, em nossa cultura,
não nos é permitido falar a verdade sobre como são as relações
com homens. Esse silêncio representa nosso alinhamento coletivo
cultural com o patriarcado. Para ser leais ao patriarcado, somos
ensinados que devemos manter os segredos dos homens. Real
aponta que o segredo fundamental que compartilhamos é que
ficaremos em silêncio:

“Quando garotas são introduzidas na vida adulta,


o que exatamente elas tem a dizer que precisa
73

ser silenciado. Que verdade as mulheres


carregam que não pode ser dita. A resposta é
simples e arrepiante. Meninas, mulheres – e
também meninos jovens – todos compartilham
isso em comum. Ninguém deve falar a verdade
sobre os homens”.

Uma das verdades que não devem ser ditas é a violência


diária praticada pelos homens de todas as classes e raças em nossa
sociedade – a violência do abuso emocional. Em seu trabalho
inovador Emotional Abuse (Abuso emocional), Marti Tamm Loring
explica que abuso emocional é “um processo em andamento em
que um indivíduo sistematicamente diminui e destrói o eu interior de
outro. As ideias essenciais, os sentimentos, as percepções e as
características pessoais da vítima são constantemente diminuídas...
A característica mais fácil de identificar do abuso emocional é seu
padrão... é o... constante esforço de rebaixar e controlar que
constitui o abuso emocional”. Significativamente, abuso emocional
nas famílias não é só um componente dos relacionamentos entre
casais; ele pode determinar o modo como todos na família se
relacionam. Se uma mulher é patriarcal, isso pode estar presente
numa casa com uma mãe solo, sem nenhum homem adulto
presente. Em muitos lares, o poder patriarcal está nos meninos
adolescentes que são abusivos com suas mães solo; essa é a
violência masculina contra mulheres.

Quando Real quebra o silêncio, as histórias que ele conta


são de sessões de terapia familiar onde pacientes abertamente
revelam o modo como os pais praticavam rituais de poder, usando
humilhação, cancelamento, ameaças e se tudo o mais falhasse,
74

violência física para manter sua posição de dominância. Em minha


família de origem, nosso pai gritava com a mamãe numa voz brava
e que ia aumentando “Eu mato você”. Por anos, meus pesadelos
eram cheios de um pai irado que às vezes matava mamãe, às vezes
me matava por tentar protegê-la. Em nossa família, meu pai não
estava o tempo todo nervoso, mas o abuso físico e emocional
intenso era liberado nas raras ocasiões em que ele agia com
violência para manter todo mundo sob controle, vivendo no limite,
vivendo com medo. Geralmente um cara frio, quieto e reservado,
meu pai encontrou voz quando estava com raiva.

Os dois homens com quem tive meus primeiros


relacionamentos na vida adulta são quietos e reservados como meu
pai e meu amado avô. Diferente do meu avô, alguém que eu nunca
vi expressar raiva, muito menos fúria, esses dois homens que
escolhi como parceiros precisavam exercitar a dominância de
tempos em tempos por meio de rituais de poder. Um deles era
fisicamente violento em algumas ocasiões, um fato que ele sempre
achou que não importava, e emocionalmente cruel com bastante
frequência. Meu segundo parceiro de longa data eu escolhi em parte
porque ele era um grande partidário de parar a violência contra
mulheres, mas conforme nossa ligação se estreitava, ele começou
a ser emocionalmente abusivo por vezes. Era como se ele sentisse
que eu era poderosa demais e essa percepção o empoderava a
desafiar esse poder, a ferir e machucar. Eu fiquei atordoada de
perceber que o passado estava se repetindo.

Em livros de autoajuda dissemina-se como verdade a ideia


de que as mulheres escolhem homens que as tratarão mal. Esses
livros raramente falam do patriarcado ou da dominação masculina.
75

Eles raramente reconhecem que relações não são estáticas, que as


pessoas mudam com o tempo, que se ajustam às circunstâncias.
Homens que podem ter traços de negatividade e dominação junto
com traços positivos podem se ver mais propensos ao lado negativo
em tempos de crise em suas vidas.

Os dois homens que escolhi como parceiros, como todos


os homens que amei, foram vítimas de vários graus de negligência
emocional e abandono em sua infâncias. Eles não amavam seus
pais ou realmente os conheciam intimamente.

Passando da juventude para a vida adulta, eles


simplesmente aceitaram passivamente a falta de comunicação com
seus pais. Ambos sentiam que todas as tentativas de reconciliação
deveriam vir de pai para filho. E mesmo assim, quando se tornaram
adultos maduros, ambos começaram a se comportar como os pais
sujas ações eles condenaram e odiavam. Observando-os ao longo
do tempo, percebi que os dois tinham sido rebeldes e antipatriarcais
em seus vinte poucos anos e início dos trinta, mas conforme se
embrenharam mais pelo mundo, eles passaram a assumir mais e
mais das condutas patriarcais que os identificavam como homens
poderosos e de sucesso. Mesmo que não tenham vivido com seus
pais, quando chegou a hora de ser “homens”, os modelos de
masculinidade em sua vida foram inconscientemente repetidos.
Eles poderiam ter se protegido dessa repetição se conscientemente
tivessem trabalhado para serem diferentes, sendo desleais ao
modelo dominador.

Nenhum homem que não escolhe ativamente trabalhar


para mudar e desafiar o patriarcado pode escapar disso. O homem
mais passivo, gentil e quieto pode recorrer à violência se as
76

sementes do pensamento patriarcal tiverem se fixado em sua


psique. Muito dos comportamentos do Dr. Jekyll e do Sr. Hyde que
as mulheres descrevem em homens que são alternadamente
carinhosos e abusivos têm raízes nessa aliança fundamental ao
pensamento patriarcal. A doutrinação no pensamento patriarcal
começa na infância e inclui uma iniciação psicológica que requer
que os garotos aceitem que sua inclinação à violência faz deles
homens patriarcais. Uma distinção pode e deve ser feita entre a
disposição para atos de violência e a realização desses atos.
Quando pesquisadores, olhando para dados de estupro,
entrevistaram vários universitários e descobriram que muitos deles
não viam nada errado com forçar sexualmente uma mulher, eles
ficaram espantados. Seus achados pareceram desafiar a noção até
então aceita de que estupro era um comportamento masculino
abominável. Enquanto é improvável que qualquer dos homens
desse estudo fossem ou tenham se tornado estupradores, ficou
evidente que dadas as circunstâncias que eles consideravam
apropriadas, eles poderiam se ver sendo sexualmente violentos.
Inconscientemente eles se envolvem no pensamento patriarcal, que
perdoa estupro mesmo que nunca cheguem a fazê-lo.

Essa é a máxima do patriarcado que a maioria das


pessoas em nossa sociedade quer negar. Sempre que pensadoras,
especialmente as que advogam o feminismo, falam sobre o
problema generalizado da violência masculina, as pessoas logo
querem se levantar e mostrar que a maioria dos homens não é
violenta. Elas se recusam a aceitar que massas de garotos e
homens foram programados desde o nascimento para acreditar
que, em algum momento, eles terão que ser violentos, seja
77

psicológica ou fisicamente, para provar que são homens. Terence


Real chama essa doutrinação prematura no pensamento patriarcal
de “traumatização normal” dos garotos:

“Quando comecei a olhar para os problemas de


gênero, acreditava que a violência era um
subproduto da socialização dos garotos. Mas
depois de ouvir mais de perto homens e suas
famílias, passei a crer que a violência é a
socialização dos garotos. O modo como
transformamos ‘meninos em homens’ é por meio
do dano: Nós os separamos de suas mães, dizem
os pesquisadores, muito cedo. Nós os
empurramos para longe de sua própria
expressividade, de seus sentimentos, da
sensibilidade em relação aos outros. A própria
frase ‘Seja homem’ significa ‘engula isso e siga
em frente’. Desconexão não é consequência da
masculinidade tradicional. Desconexão é a
masculinidade. Essa doutrinação ocorre
independente de um garoto ser criado num lar de
casal ou por uma mãe solo”.

A perpetuação da violência masculina pelo ensino de que


há um modelo dominador nas relações chega aos meninos tanto por
homens quanto por mulheres. O patriarcado alimenta o sadismo
maternal em mulheres que abraçam essa lógica. Um grande
número de mulheres presencia e testemunha a brutalização de seus
filhos pelas mãos dos pais, namorados, irmãos porque sentem que,
fazendo isso, eles mostrarão sua aliança ao patriarcado. Sem
78

dúvidas que a raiva dos homens é frequentemente direcionada a


mulheres em relações íntimas. Essas relações claramente disparam
em muitos homens a raiva e a fúria que sentiam na infância quando
suas mães não os protegiam ou cruelmente impediam conexões
emocionais em nome do patriarcado.

Ao contrário do que contam os mitos populares, mães solo


são as mais brutais quando se trata de coagir os filhos a seguir as
normas patriarcais. A mãe solo que insiste que seu filho “seja
homem” não é antipatriarcal; ela está reforçando a vontade
patriarcal. Pesquisando a infância dos meninos, Olga Silverstein
observou:

“Em lares de mães solo, é comum ver garotos


que se tornaram os ‘homenzinhos da mamãe’.
Frequentemente, esses meninos são crianças
muito mandonas que protegem suas mães, que
na verdade fazem imitações sinistras de um certo
tipo de marido, sendo alternadamente
possessivos, protetores e sedutores”.

Seja em lares com apenas um dos pais ou em casais, aos


meninos é permitido assumir o papel de “mini patriarca” que
geralmente são violentos com as mães. Eles batem e chutam
quando seus desejos não são satisfeitos. Obviamente, como
garotos pequenos, eles não têm força para superar as mães, mas
fica claro que eles veem o uso da violência como forma de satisfazer
suas necessidades algo aceitável. E enquanto mães de meninos
que batem nelas podem sentir que bater é errado, elas podem ao
mesmo tempo sentir que é trabalho delas satisfazer as vontades de
79

qualquer homem, especialmente de um que age por meio de


coação.

Muitos garotos adolescentes têm um desprezo violento e


raiva de suas mães patriarcais porque entendem que no mundo fora
de casa, o sexismo as torna impotentes; eles ficam bravos porque
elas têm poder sobre eles em casa. Eles não veem suas regras
autocráticas em casa como poder legítimo. Como consequência,
eles podem ficar irados com a mãe por usar essa tática de
terrorismo psicológico para moldá-los e, ainda assim, responder
com admiração ao par masculino ou à figura de autoridade que age
usando táticas similares. Na cultura patriarcal, os meninos
aprendem desde cedo que a autoridade da mãe é limitada, que seu
poder vem por ser ela a provedora do patriarcado. Quando ela
concorda com o abuso praticado por homens adultos em seu filho,
ela (ou uma futura figura materna simbólica) será alvo de sua
violência.

Anos atrás, o seriado O Incrível Hulk era o favorito de


muitos garotos. Ele mostrava um cientista calmo que se tornava um
monstro verde e raivoso sempre que sentia emoções intensas. Uma
socióloga, entrevistando garotos sobre sua paixão por esse seriado,
perguntou o que eles fariam se tivessem o poder do Hulk. Eles
responderam que iriam “esmagar suas mamães”. Em seu trabalho
inovador The Mermaid and the Minotaur (A sereia e o Minotauro), a
teórica feminista Dorothy Dinnerstein destacou a extensão com a
qual os meninos respondem com raiva ao poder autocrático de suas
mães. Como muitas pesquisadoras feministas atuais, ela insistiu
que o envolvimento dos homens com a parentalidade era
necessário para quebrar essa projeção em que as mães são a figura
80

todo-poderosa que deve ser objeto de rebeldia e, em alguns casos,


destruição.

Claramente, mães patriarcais que têm raiva de homens


adultos projetam isso nos filhos. Elas podem forçar os filhos a
entrarem em uma relação inapropriada em que ele deve prover a
conexão emocional negada por homens crescidos ou se envolver
em abuso emocional, em que o filho é constantemente diminuído e
humilhado. Esses atos de violência patriarcal servem como reforço
na mente dos meninos de que a violência contra as mulheres é
apropriada. É simplesmente uma vingança justificável. A idealização
feminista da maternidade tornou extremamente difícil de chamar
atenção para o sadismo maternal, para a violência que as mulheres
infligem às crianças, especialmente aos meninos. E, ainda assim,
sabemos que, seja isso uma consequência das dinâmicas de poder
na cultura de dominação ou simplesmente reflexo da raiva, as
mulheres são assustadoramente violentas com crianças. Esse fato
deveria levar todo mundo a questionar quaisquer teorias de
diferenças de gênero que sugerem que mulheres são menos
violentas que homens.

Na cultura patriarcal, mulheres são tão violentas quanto


homens contra grupos sobre os quais têm poder e podem dominar
livremente; geralmente, esses grupos são crianças ou mulheres
mais fracas. Assim como os homens, muito da violência das
mulheres contra crianças toma a forma de abuso emocional,
especialmente abuso verbal e humilhação, visto que é difícil de
documentar. O sadismo maternal deve ser estudado, contudo, se
quisermos entender as raízes da violência masculina contra
mulheres. Em algum ponto, as pensadoras feministas reformistas
81

que focaram em mulheres como as mais éticas, gentis, o sexo mais


frágil, se colocaram no caminho de um estudo mais profundo sobre
sadismo maternal, sobre as formas com que as mulheres na
sociedade patriarcal agem com tanta violência contra meninos.

Na casa em que morei quando criança, era claro que


nossa mãe acreditava de todo coração que era papel do homem ser
disciplinador, estar no comando. Quando papai usava de violência
em excesso, ela enxergava isso como algo correto. Muitas mulheres
que acreditam que é certo que os homens dominem, sentem que
elas não devem resistir à violência masculina contra si mesmas ou
seus filhos. Não surpreende que essas mulheres, inclusive minha
mãe, usem todo tipo de violência para disciplinar seus filhos.
Temendo ser objetos da ira de homens adultos, elas podem desejar
que os filhos se comportem de forma a não provocar a ira do papai.

Em conversas com homens cujas mães eram passivas


enquanto os filhos eram vítimas dos pais ou outra figura masculina
da família, descobri que esses homens são muito mais propensos
do que outros homens a idealizar suas mães, pois as viam como
vítima indefesa. Mesmo que não dirigissem sua raiva contra suas
mães e fossem, geralmente, incapazes de sequer considerar que
elas deveriam ter agido para proteger seus direitos, esses homens
eram violentos em suas relações íntimas com mulheres. Seus
comportamentos confirmam o palpite de Terrence Real de que “a
coreografia do patriarcado, essa terrível fusão de amor, perda e
violência, não poupa ninguém”. Mães que se aliam ao patriarcado
não podem amar seus filhos direito, porque sempre virá o momento
em que o patriarcado vai requer que sacrifiquem seus filhos. Na
maior parte das vezes, esse momento é a adolescência, quando
82

muitas mães carinhosas e afetuosas param de alimentar o


emocional de seus filhos por medo de que isso vá lhes afeminar.
Incapazes de lidar com a perda de conexão emocional, os garotos
internalizam a dor e a mascaram com indiferença ou raiva.

Geralmente, homens adultos que são incapazes de se


conectar emocionalmente com mulheres com quem eles escolhem
se envolver intimamente, ficam congelados no tempo, sem
conseguir se permitir amar por medo de que a pessoa amada vá
lhes abandonar. Se a primeira mulher por quem eram perdidamente
apaixonados, a mãe, não foi fiel ao elo de amor, então como eles
podem confiar que seu parceiro será verdadeiro com o amor?
Frequentemente, em suas relações adultas, esses homens atuam
para testar o amor do parceiro repetidamente. O adolescente
rejeitado imagina que não pode mais receber o amor de sua mãe
porque não é digno, já o homem adulto pode agir de formas indignas
e ainda assim demandar que a mulher em sua vida lhe ofereça amor
incondicional. Esses testes não curam as feridas do passado, só as
reencenam, para que então, no final, a mulher se canse de ser
testada e ponha fim à relação, reencenando, assim, o abandono.
Esse drama confirma, para muitos homens, que eles não podem
confiar no amor. Eles decidem que é melhor confiar em serem
poderosos, dominadores. Em Man Enough (Homem o suficiente),
Frank Pittman diz sobre os homens que “enquanto a maioria de nós
quer ser amado, os controladores estão dispostos a renunciar ao
amor se isso for o que os fará ser os mandachuvas”. Para ser o
chefão, não é preciso que nenhum homem seja emocionalmente
saudável, capaz de dar e receber amor.
83

Desde que comecei a escrever sobre o amor, eu o defini


de uma forma que mistura a noção de amor de M. Scott Peck, de
que é a vontade de alimentar o crescimento emocional e espiritual
próprio e do outro, com a de Eric Fromm, de que o amor é ação e
não somente sentimento. Trabalhando com homens que querem
conhecer o amor, eu os aconselhei a pensar nisso como uma
combinação de carinho, compromisso, conhecimento,
responsabilidade, respeito e confiança. A maioria de nossos
relacionamentos tem um ou dois desses aspectos. Homens
patriarcais são ensinados na arte de serem responsáveis e dar um
carinho mecânico. Quando eu era adolescente e reclamava da
negligência emocional, do abuso e da esporádica violência contra
minha mãe praticadas pelo meu pai, minha mãe sempre agia rápido
para me lembrar que ele trabalhava duro e era o provedor da nossa
família, que ele estava em casa quase todas as noites e por isso
nós devíamos respeitá-lo e honrá-lo. O fato de que os homens
frequentemente misturam serem cuidados e serem violentos faz
com que seja mais difícil para todo mundo em nossa cultura
enxergar o quanto a violência masculina atrapalha os homens a
darem e receberem amor.

O primeiro ato de violência que o patriarcado demanda dos


homens não é a violência contra mulheres. Ao contrário, o
patriarcado exige que os homens se envolvam em atos de
automutilação psíquica, que eles matem suas partes emocionais.
Se um indivíduo não consegue se castrar emocionalmente com
eficiência, ele pode contar com homens patriarcais para fazê-lo
passar por rituais de poder que irão violar sua autoestima. O
movimento feminista ofereceu aos homens e mulheres a informação
84

necessária para desafiar essa matança psíquica, mas esse desafio


nunca se tornou um aspecto amplo da luta por igualdade de gênero.
As mulheres exigiram dos homens que eles dessem mais
emocionalmente, mas a maioria dos homens não conseguiu
realmente entender o que estava sendo pedido deles. Tendo
cortado partes de si mesmos que poderiam sentir uma vasta gama
de respostas emocionais, eles estavam muito desconectados. Eles
simplesmente não podiam dar mais emocionalmente, ou sequer
entender o problema sem antes se reconectarem, reunindo as
partes separadas.

Descrevendo um casal em terapia familiar, Terence Real


lembra as qualidades que a esposa queria que o marido tivesse:
“Sensibilidade com os outros, capacidade de identificar e
compartilhar seus sentimentos, disposição de colocar suas
necessidades de lado a serviço da família”. Essas são as mesmas
qualidades, Real ressalta, que “tem sido retirada da maioria dos
meninos, mesmos nesses tempos mais iluminados”. As mulheres
procuram intimidade nos homens e frequentemente têm suas
expressões de necessidade diminuídas. Muitos homens respondem
à necessidade das mulheres por conexão emocional com
abstinência emocional e, em casos mais graves, com abuso.

Emocionalmente automutilados e desconectados, muitos


homens se abrem para conexões emocionais só para, mais tarde,
enfraquecê-las com abuso emocional. Eles simplesmente não
entendem que amor e abuso não andam juntos. E por que deveriam
entender, quando programas de TV, filmes e muito mais na cultura
popular passa a mensagem de que sempre que houver uma paixão
intensa entre um casal, a violência pode surgir? Ensinar os homens
85

a entender que mulheres e crianças não se sentem amadas quando


são abusadas é um dos primeiros objetivos dos grupos de trabalho
para acabar com a violência masculina. O ensaio autobiográfico de
Kay Leigh Hagan chamado A Good Man is Hard to Bash (É difícil
reprimir um homem bom) começa com a história dela num encontro
com um homem que ela sentiu ser abusivo e que era
potencialmente capaz de ser fisicamente violento. Ela pede
conselhos ao melhor amigo do rapaz sobre quanto de abuso ela
deveria suportar, dizendo “Se eu quero ficar com ele de verdade, e
se quero que nosso relacionamento dê certo, que dure, haverá dias
bons e ruins. Não acho que eu deveria fugir quando as coisas se
complicam. Eu deveria me dispor a tolerar um pouco de abuso se
realmente o amo”. O amigo olha diretamente em seus olhos e lhe
diz; “Kay, numa relação amorosa, abuso é inaceitável. Você não tem
que tolerar nenhum abuso para ser amada”.

Com a ousadia e honestidade radicais características,


Hagan compartilha que “seu entendimento sobre o amor e o poder
mudaram para sempre naquele momento”. Ela imaginava que o
amigo do namorado ficaria do lado dele. “Pelo contrário, a reação
dele me encorajou a me amar, a ter responsabilidade pelo meu
próprio bem-estar e a rejeitar a violência mesmo que em suas
formas mais sutis”. Hagan teve sorte de receber esse conselho
sábio cedo. O destino de muitas mulheres é dramaticamente
diferente, especialmente mulheres que cultuam o trono do
patriarcado. Essas mulheres sentem, como Hagan inicialmente
sentia, que escolher estar com um homem patriarcal é
automaticamente concordar com algum nível de abuso, ainda que
relativo. Todos os dias as mulheres explicam a violência e crueldade
86

masculinas insistindo em diferenças de gênero que normalizam o


abuso. Mulheres heterossexuais solteiras e que querem estar com
homens sentem que não conseguem fugir de serem vitimizadas em
algum momento pelo abuso emocional e/ou físico nas mãos de seus
parceiros homens. A aceitação feminina coletiva da violência
masculina em relações amorosas, mesmo que a aparente aceitação
mascare a raiva, o medo ou o puro terror, torna difícil desafiar e
mudar a violência masculina.

Quando o professor aparentemente reservado com quem


eu morei passou de abuso emocional para violência física, senti que
deveria ser compreensiva, saber perdoar. Como eu, ele tinha sido
criado numa família disfuncional. Contudo, mesmo que ele
frequentasse a terapia, mesmo que a violência física tivesse parado,
ele nunca acreditou de verdade que havia feito algo de errado. Ele
nutria a ideia, como muitos homens violentos fazem, de que eu era
a responsável pelo seu mau comportamento. No trabalho de Donald
Dutton com homens violentos, ele identifica mulheres que veem
através da máscara, como um catalisador para violência masculina:
Ele pode se desculpar e sentir vergonha logo depois, mas ele não
sustenta essa emoção; é dolorosa demais, recorda dores há muito
tempo enterradas. Então, ele culpa a mulher. Se isso acontece
repetidamente com mais de uma mulher, ele deixar de culpar a ela
e passa a culpar “todas elas”. Suas próprias deficiências são
abarcadas por uma misoginia em desenvolvimento... Nesse ponto,
o abuso é conectado em seu sistema. O homem é programado para
violência íntima.

Com frequência, homens que foram emocionalmente


negligenciados e abusados na infância por mães dominadoras
87

conectam-se com mulheres assertivas, para sentir de novo as


emoções de quando eram crianças. Como não podiam “esmagar a
mamãe” e ainda receber amor, eles percebem que podem praticar
violência contra suas parceiras que respondem a seu mau
comportamento tentando se conectar emocionalmente com eles,
esperando que o amor que oferecem no presente irá curar as feridas
do passado. Se somente uma das partes da relação está agindo
para criar amor e espaço para conexão emocional, o modelo
dominador continua existindo e a relação se torna um lugar de
constante luta por poder.

Mulheres que ficam em relacionamentos de longo prazo


com homens emocionalmente abusivos ou violentos geralmente
acabam fechando as portas de seus corações. Elas param de
trabalhar para criar amor. Elas constantemente ficam nessas
relações porque um certo cinismo, enraizado em sua experiência,
confirma que a maioria dos homens são emocionalmente atrofiados,
então elas não acreditam que podem se ver num relacionamento
amoroso com homem nenhum. Quando eu quis deixar meu primeiro
parceiro de longa data, que era continuamente abusivo
emocionalmente e ocasionalmente abusivo fisicamente, foram
outras mulheres (minha mãe, amigas próximas, conhecidas) que me
aconselharam contra acabar com o relacionamento, me dizendo
que o homem com quem eu estava era melhor que a maioria dos
homens, que eu era sortuda. Deixá-lo foi um gesto de amor-próprio
e autoconfiança de que não me arrependi. Ainda assim, acho que
as observações que as mulheres fizeram de como eram a maioria
dos homens foram bastante acertadas.
88

O homem com quem vivo um relacionamento há quase


quinze anos mostrava uma mistura de masculinidade patriarcal e
masculinidade alternativa. Nos conhecemos no auge do movimento
feminista e ele estava disposto a trabalhar em prol da igualdade de
gênero. Assim como para muitos homens hoje, era muito mais fácil
para ele aceitar o pagamento igualitário para trabalhos iguais, a
divisão das tarefas de casa e os direitos reprodutivos do que aceitar
a necessidade de desenvolvimento emocional compartilhado. É
mais difícil para os homens fazer o trabalho de desenvolvimento
emocional, pois esse trabalho requer do indivíduo consciência
emocional – sentimento. O patriarcado retribui os homens por serem
inatingíveis em seus sentimentos. Quer estejam envolvidos em atos
de violência contra mulheres e crianças ou homens mais fracos, ou
na admitida violência da guerra, os homens são mais capazes de
realizar as demandas do patriarcado se não sentirem nada. Os
homens de sentimentos frequentemente se veem isolados de outros
homens.

Esse medo do isolamento acaba agindo como um


mecanismo para impedir que os homens se tornem mais
emocionalmente conscientes.

Quando um grande número de homens jovens nessa


nação se rebelou contra o patriarcado em oposição à Guerra do
Vietnã, muitos deles se preocupavam com justiça, muitos deles não
queriam matar, mas muitos mais simplesmente não queriam morrer.
Se oporem à guerra e ao imperialismo que promove a guerra
colocou esses homens jovens em desacordo com o patriarcado
capitalista de supremacia branca imperialista. Eles sofreram ao
escolher tomar esse lado. Eles foram ridicularizados por outros
89

homens e muitas vezes representados como traidores. Nos últimos


dez anos a mídia de massa produziu filmes que pretendiam fazer os
garotos glorificarem a guerra (O resgate do soldado Ryan,
Independence Day, MIB: Homens de Preto, Falcão Negro em
perigo, Pearl Harbor, para mencionar alguns) que, uma vez mais,
fazem parecer heroico morrer sozinho, longe de casa, lutando por
uma causa que podem ou não entender. Esses filmes são parte da
reação patriarcal antifeminista. Eles glorificam a masculinidade
patriarcal que iluminou a crítica de homens e mulheres. Eles servem
de propaganda, recrutando o coração e a imaginação dos garotos.
Como os raps, eles celebram a violência em todas as frentes,
incluindo a dominação das mulheres.

A mídia de massa conservadora oferece lições diárias de


pedagogia patriarcal; ela diz aos garotos o que eles devem fazer
para ser homens. Nos lares em que pais esclarecidos diariamente
trabalham para repudiar a violência, a televisão reafirma sua
importância, fazendo com que cortejar a morte pareça glamouroso
e sexy. Crianças e adolescentes meninos da classe pobre e
trabalhadora frequentemente incorporam os piores aspectos da
masculinidade patriarcal, agindo com violência por ser o jeito mais
fácil e mais barato de se declararem homens. Se não é possível
provar que você é “homem o bastante” se tornando presidente, ou
ficando rico, ou virando um líder público, ou sendo o patrão, então
a violência é seu passaporte para o concurso de masculinidade
patriarcal e sua habilidade de ser violento nivela o campo de jogo.
Nesse campo, o campo da violência, qualquer homem pode vencer.

Homens que vencem nos termos patriarcais acabam


perdendo nos termos de qualidade de vida substancial. Eles
90

escolhem a masculinidade patriarcal ao invés da conexão amorosa,


primeiro passando por cima do amor-próprio e então do amor que
poderiam dar e receber e que os conectaria aos outros.
Pesquisadoras feministas têm exposto há muito tempo a violência
doméstica amplamente disseminada em nossa sociedade. Mesmo
diante dessa exposição, a violência contra mulheres não abrandou
e, em alguns casos, se intensificou. Os críticos antifeministas
procuram culpar a intensificação da violência masculina com o
aumento da igualdade das mulheres. Apesar disso, a maioria dos
estudos sobre a vida familiar indicaram que, nessa esfera, as
relações de gênero não passaram por nenhuma revolução
significativa. O sociólogo Arlie Hochschild forneceu dados
importantes mostrando que as dinâmicas de gênero domésticas
entre homens e mulheres continuam bastante sexistas; mulheres
trabalham fora de casa, mas continuam a fazer a parte mais difícil
do trabalho doméstico. Claro que homens que eram misóginos
disfarçados antes do movimentos feminista se sentiram mais
compelidos a extravasar sua raiva abertamente conforme o
movimento ganhou relevância, mas essa raiva sempre esteve
presente.

A violência masculina em geral se intensificou não porque


os ganhos feministas oferecem às mulheres maior liberdade, mas,
ao contrário, porque homens que apoiam o patriarcado descobriram
ao longo do caminho que a promessa patriarcal de poder e
dominação não é fácil de ser alcançada, e nos raros casos em que
é alcançada, os homens se veem emocionalmente desolados. A
masculinidade patriarcal, que supostamente traria satisfação, não
traz. E assim que essa consciência se instala, a maioria dos homens
91

patriarcais se isola e se aliena; eles não conseguem voltar e


reivindicar o passado de felicidade e alegria, nem podem ir adiante.
Para ir em frente eles precisariam repudiar o pensamento patriarcal
em que basearam sua identidade. A ira é o caminho mais fácil de
voltar ao reino dos sentimentos. Ela pode servir como o disfarce
perfeito, mascarando sentimentos de medo e de fracasso.

Meu pai e minha mãe são casados há mais de 50 anos.


Meu pai nunca abandonou seu status patriarcal e ela nunca o
desafiou. Mesmo assim, ao se agarrarem ao pensamento patriarcal,
eles condenaram suas chances de serem felizes juntos. A ameaça
da violência, do abuso emocional, está sempre lá, no meio do
caminho da intimidade, impedindo-os de se perdoarem e seguirem
em frente. Infelizmente, eles estão presos na armadilha do
patriarcado. E isso continua dando vazão à violência diária, o
terrorismo sutil e íntimo que intensifica o ressentimento e acaba com
a possibilidade de serem felizes.

Não é fácil para os homens, jovens ou velhos, rejeitar os


códigos da masculinidade patriarcal. Homens que se colocam
contra a violência estão simultaneamente escolhendo ser contra o
patriarcado, conhecendo essas escolha ou não. Em seu ensaio
perspicaz Gender Politics of Men (As políticas de gênero dos
homens), R. W. Connell chama atenção para o fato de que homens
que se opõe ao patriarcado permanecem em desacordo com o
mundo em que vivem:

“Homens que tentam desenvolver políticas de


apoio ao feminismo, sejam gays ou hétero, não
encontram um terreno fácil. Provavelmente, eles
vão sofrer com o escárnio de muitos outros
92

homens, e de algumas mulheres. É quase um


clichê jornalístico que mulheres desprezem os
Homens Sensíveis da Nova Era. Eles não
necessariamente vão ser bem recebidos por
mulheres feministas”.

Ao fim e ao cabo, os homens que escolhem ser contra a


violência, contra a morte, o fazem porque querem viver
completamente e viver bem, porque querem conhecer o amor.
Esses homens é que são os verdadeiros heróis, esses homens
cujas vidas precisamos conhecer, honrar e não esquecer.
93

5 – O SER SEXUAL MASCULINO

A maioria dos homens e mulheres não estão tendo um


sexo satisfatório e pleno. Todos já ouvimos a ideia de que os
homens vão para relacionamentos procurando sexo e não amor e
que mulheres vão para relacionamentos procurando amor e não
sexo. Na realidade, os homens partem para o sexo esperando que
isso vá lhes garantir toda satisfação emocional que viria do amor. A
maioria dos homens pensa que o sexo vá lhes dar a sensação de
estar de vivo, conectado, que o sexo vá oferecer proximidade,
intimidade, prazer. E o mais comum é que isso não aconteça. Esse
fato não leva os homens a deixar de ser obcecados com o sexo; ele
intensifica sua luxúria e sua necessidade.

Se as mulheres têm sido ensinadas pela socialização


sexista que a jornada pelo penoso terreno do sexo vai nos levar aos
desejos de nosso coração, os homens têm aprendido que os
desejos de seus corações deveriam ser por sexo e mais sexo.

A partir do movimento de libertação sexual, a libertação


sexual das mulheres parecida prometer que homens e mulheres
heterossexuais e bissexuais começariam a pensar do mesmo jeito
que os homens sobre sexualidade, que a sexualidade feminina se
tornaria tão predatória e obsessiva quanto o desejo sexual
masculino. Muitos homens pensaram que essa fossa a promessa
do paraíso. Finalmente eles iriam ser capazes de buscar prazer
sexual sem ter que se preocupar com comprometimento. A lógica
sexista os convenceu, e ainda os convence, de que podem ter
conexão e intimidade sem se comprometerem, que “ter um pinto
viajante” significava que suas necessidades poderiam e seriam
saciadas quando quisessem, a qualquer tempo, em qualquer lugar.
94

Em nossa cultura, essas atitudes com relação à


sexualidade foram encampadas pela maioria dos homens e muitas
mulheres pós-feministas após a libertação sexual. Eles não são a
raiz de nossa obsessão cultural com o sexo. Quando comecei a
escrever livros sobre o amor, a falar disso individualmente e, depois,
para plateias cheias, percebi que era praticamente impossível
discutir seriamente sobre o amor – que discussões sobre amor,
especialmente discussões públicas, são tabu em nossa sociedade.
Mesmo assim, todo mundo fala sobre sexo. Vemos toda sorte de
cenas de sexo na tv e nas telas do cinema. Falar de sexo é
aceitável. Programas de auditório envolvem os espectadores
diariamente com discussões explícitas sobre sexualidade.
Discussões sobre sexo são fundamentalmente mais fáceis de se
engajar porque na cultura patriarcal o sexo é apresentado a nós
como um desejo “natural”. A maioria das pessoas acredita que
estamos biologicamente programados para querer o sexo, mas não
acreditam que somos programados para querer o amor. Quase todo
mundo acredita que é possível fazer sexo sem amor; a maioria das
pessoas não acredita que um casal pode ter amor num
relacionamento se não houver sexo.

O movimento feminista foi capaz de desafiar e mudar as


noções de desigualdade feminina em muitas frentes,
particularmente nas áreas do trabalho, educação e religião.
Contudo, o sexismo continua a dar forma à maneira como a maioria
das pessoas pensam sobre relações sexuais. Não importa quantos
homens em nossa nação sejam celibatários ou tenham apenas
experiencias sexuais ocasionais, as pessoas ainda acreditam que o
sexo é algo de que os homens precisam. Na base dessa suposição
95

está a crença de que se os homens não são sexualmente ativos,


eles vão se rebelar ou endoidar. Essa é a razão por que a violência
entre homens é aceita nas prisões em nossa nação. Esse é o motivo
por que o estupro – seja por parte dos namorados, maridos ou de
estranhos – ainda não é considerada um crime sério. Esse é o
motivo de o estupro de crianças, especialmente quando praticado
por homens calados e legais, é permitido. Se assim não fosse,
celebridades acusadas de abusar sexualmente de crianças não
seriam mais consideradas ícones da cultura. Presumir que “ele tem
que ter isso (o sexo)” deixa claro o quanto nossa cultura aceita a
violência sexual masculina. É por isso que muita gente continua a
acreditar que qualquer pessoa que é estuprada pode ter “pedido”
com um vestido ou postura “sedutora”, independentemente de
quantos programas de tv tenham veiculado fatos sobre a violência
sexual.

As crianças de hoje aprendem mais sobre sexo por meio


da mídia de massa do que de qualquer outra fonte. Seja assistindo
novelas, canais pornô ou filmes para menores, as crianças de nossa
nação são mais conscientes de seu corpo e sua sexualidade do que
nunca. Porém, muito do que elas aprendem sobre sexualidade é
baseado nos roteiros patriarcais de natureza sexual dos homens e
mulheres, de masculino e feminino. Eles aprendem que no mundo
das relações sexuais há sempre um lado dominante e um outro,
submisso. Eles aprendem que os homens devem dominar as
mulheres, que homens mais fortes devem dominar homens mais
fracos. Eles aprendem que não importa se ele é homossexual ou
heterossexual, um homem privado de acesso ao sexo, em última
análise será sexual com qualquer um. Se for privado por tempo
96

demais, mesmo que seja hétero, ele fará sexo com outro homem;
se for gay, a privação o levará a agir de forma desesperada em atos
sexuais com mulheres. Repetidamente, crianças ouvem a
mensagem da mídia de massa de que quando se trata de sexo, “ele
tem que ter isso (o sexo)”. Os adultos podem saber mais, pela
própria experiência, mas as crianças acreditam cegamente. Elas
pensam que os homens vão enlouquecer se não agirem de modo
sexual. Essa é a lógica que produz o que as pensadoras feministas
chamam de “cultura do estupro”.

Homens, sejam eles gays ou hétero, aprendem desde


cedo que uma das recompensas mais importantes oferecidas por
obediência ao pensamento e prática patriarcais é o direito a dominar
mulheres sexualmente. E, se não tiver nenhuma mulher por perto,
eles têm direito a colocar um homem mais fraco na posição da
“mulher”. Na antologia “Victims No Longer: Men Recovering from
Incest and Other Sexual Child Abuse” (Não mais as vítimas:
Homens se recuperando de incesto e outros abusos sexuais
infantis), homens que foram vitimizados por caras mais fortes,
irmãos e outros homens, compartilham como a lógica do
pensamento patriarcal sobre o direito de o mais forte fazer o quiser
com os que consideram fracos lhes foi apresentada por seus
abusadores. Essa mesma lógica geralmente formou o pensamento
sobre sexualidade abraçada pelos adultos abusadores. Ed escreve
sobre o abuso sexual praticado por seu irmão mais velho:

“Aprendi sobre sexo quando tinha apenas 9 anos.


Eu fazia boquetes aos 10. Enquanto outras
crianças brincavam com arminhas, eu aprendi
como ‘satisfazer’ um homem. Eu aprendi como
97

ser uma ‘mulher’. Meu irmão gostava de encenar


fantasias em que ele era o ‘homem’ e eu, a
‘mulher’”.

Esse irmão mais velho se casou e levou para o casamento


a percepção de que era seu direito fazer sexo com qualquer um que
desejasse, quer as pessoas quisessem ou não. Sua necessidade
de dominar era a característica mais proeminente de suas relações
sexuais.

Dentro de uma cultura de dominação, lutas por poder são


travadas diariamente nas relações humanas, frequentemente
assumindo as piores formas em situações de intimidade. O homem
patriarcal que nunca responderia às exigências do chefe com raiva
exagerada e abuso, responderá com fúria quando pessoas íntimas
quiserem mudar seu comportamento.

Homens que não mentem e não traem diariamente nos


seus trabalhos, o fazem em suas relações íntimas. Essas mentiras
geralmente estão conectadas a um comportamento sexual
inapropriado ou ao desconforto com o comportamento sexual. Em
seu poderoso ensaio “Who He Was” (Quem ele era), Eric Gutierrez
reconta como ele contou mentiras para esconder que seu pai, na
verdade, era gay:

“Mais ou menos ao mesmo tempo que comecei a


mentir sobre meu pai, eu comecei a mentir sobre
mim mesmo. Eu não mentia
indiscriminadamente... Em vez de inventar
detalhes reconfortantes que retratariam meu pai
não como um gay pomposo, mas mais como os
outros pais trabalhadores que carpiam a grama
98

na nossa rua, eu embelezei seus defeitos, suas


fraquezas, suas raivas, em perversidade real...
Eu encantava meus colegas de classe com
histórias de como meu pai nos amarrava e atirava
taças de cristal na minha mãe aterrorizada... Eu
era um mentiroso bem-sucedido, construindo
falsas identidades para meu pai e para mim
mesmo, exagerando a verdade e levando-a à um
rumo totalmente novo”.

Mentir sobre sexualidade é uma parte aceitável da


masculinidade patriarcal. O sexo é o lugar onde os homens podem
atuar, porque é a única arena social em que a promessa patriarcal
de dominação pode facilmente se realizar. Sem essas vantagens,
massas de homens poderiam ter se rebelado contra o patriarcado
há muito tempo.

Meninos pequenos aprendem logo cedo que a sexualidade


é o campo definitivo de teste da sua masculinidade patriarcal. Eles
aprendem cedo que o desejo sexual não deve ser livremente
expresso e que mulheres tentarão controlar a sexualidade
masculina. Para garotos, esse problema do controle começa com a
resposta materna ao seu pênis; geralmente, ela não gosta dele e
não sabe o que fazer com ele. Seu desconforto com o pênis dele
comunica que há algo inerentemente errado com ele. Ela não diz ao
menino que seu pênis é lindo, especial, maravilhoso. O mesmo
medo do pênis do menino é comumente expressado pelos pais que
simplesmente não se preocupam em educar os meninos sobre seus
corpos. Tristemente, abordagens não inteligentes para abuso
infantil levam muitos pais a temer a celebração dos corpos das
99

crianças, especialmente o corpo dos meninos, que pode responder


com uma ereção a uma brincadeira física bem próxima.

Na cultura patriarcal, todos são encorajados a ver o pênis,


mesmo o pênis de uma criança, com uma arma em potencial. Essa
é a cultura do estupro psicológica. Os meninos aprendem que
devem se identificar com seu pênis e o prazer dado pelas ereções,
ao mesmo tempo em que aprendem a temer o pênis como se fosse
uma arma cujo tiro pudesse sair pela culatra, deixando-os
impotentes, destruídos. Daí porque a mensagem que os meninos
recebem sobre atos sexuais é que eles serão destruídos se não
estiverem no controle, exercendo poder.

A socialização sexual adolescente é o momento de


vulnerabilidade da vida de um garoto, quando dele é exigido que
identifique seu eu e sua sexualidade com a masculinidade
patriarcal; é o encontro da teoria com a prática. Durante esses anos
de formação, quando o desejo sexual de um garoto é geralmente
intenso, ele aprende que a cultura patriarcal espera que ele cultive
abertamente aquele desejo e a vontade de satisfazê-lo, enquanto
se envolve em atos de clara repressão sexual. Essa divisão é parte
da iniciação na masculinidade patriarcal; é um rito de passagem. O
garoto que aprende também que as mulheres são o inimigo quando
se trata do desejo da satisfação sexual. Elas são o grupo que imporá
ao menino a necessidade de reprimir seus desejos sexuais, e assim,
para provar sua macheza, ele deve se atrever a desafiar a repressão
e praticar atos sexuais.

A repressão sexual é o combustível do desejo de meninos


e homens. Jogando luz no impacto negativo dessa socialização no
ensaio “Fuel for Fantasy: The Ideological Construction of Male Lust”
100

(Combustível da fantasia: a construção ideológica do desejo


masculino), Michael S. Kimmel demonstra que a repressão sexual
cria um mundo em que homens devem se encarregar
constantemente das fantasias sexuais, erotizando o que não é
sexual. Explorando o elo entre a repressão sexual e o sexismo, ele
explica:

“O prazer sexual é raramente o objetivo da prática


sexual, uma coisa muito mais importante que o
mero prazer está em jogo, nossa percepção de
nós mesmos enquanto homens. A percepção
masculina da escassez sexual e uma quase
compulsiva necessidade de sexo para afirmar a
masculinidade se retroalimentam, criando um
ciclo vicioso de privação sexual e desespero. E
faz com que os homens fiquem furiosos com as
mulheres por fazer o que as mulheres foram
ensinadas a fazer em nossa sociedade: dizer
não”.

Desespero e raiva são os sentimentos que levam os


homens ao sexo, seja com mulheres ou com outros homens.

Encorajados a se referirem ao sexo de um jeito viciante


pelo pensamento patriarcal que prega que “ele tem que ter isso (o
sexo)”, os homens devem se ajustar a um mundo onde raramente
podem ter sexo ou não ter tão frequentemente quanto gostaria, ou
onde podem tê-lo por meio de coação e manipulação de alguém que
não queira, geralmente alguma mulher.
101

Em The Heart of the Soul (O cerne da alma), Gary Zukav


e Linda Francis descrevem as características de indivíduos viciados
em obsessões sexuais:

“Eles não conseguem descansar dos


pensamentos sobre sexo. Eles vão de um
encontro a outro. Cada experiência sexual traz
alívio apenas temporário do desejo e esse desejo
rapidamente retorna. Nenhuma quantidade de
atividade sexual pode satisfazê-lo”.

Eles explicam que o “desejo sexual não é por sexo, mas


por algo mais profundo”.

O fato de que esse desejo sempre volta é a pista de que o


vício sexual não é simplesmente sobre fazer sexo. Para o homem
patriarcal, seja ele hétero ou gay, a sexualidade viciada é
fundamentalmente sobre a constante necessidade de afirmação e
reafirmação de sua individualidade. Se somente por meio do sexo é
possível experimentar a individualidade, então o sexo precisa ser
sempre estar em primeiro plano. Zukav e Francis explicam:

“Quanto mais intensa se torna a dor do medo, da


indignidade e de se sentir incapaz de ser amado,
mais obsessiva se torna a necessidade de ter
uma interação sexual”.

O sexo, então, se torna para a maioria dos homens uma


forma de autoconsolo.

Não é sobre se conectar com outra pessoa, mas, ao


contrário, de liberar a própria dor. O viciado é frequentemente um
indivíduo em estado de dor aguda. O homem patriarcal não tem uma
102

forma de expressar sua dor, então eles buscam esse meio. Zukav e
Francis ressaltam que o viciado em sexo teme ser inadequado e
teme ser rejeitado: “Quanto mais fortes as emoções quando não
querem senti-las, mais forte se torna a obsessão com o sexo”. A
obsessão sexual masculina tende a ser vista como normal. Assim,
toda uma cultura compactua em exigir dos homens que eles
desprezem e repudiem seus sentimentos, despejando-os todos no
sexo. Steve Bearman coloca esse ponto em seu trabalho “Why Men
Are So Obsessed With Sex” (Porque os homens são tão obcecados
com sexo), explicando que “mesmo se nós não nos envolvermos
compulsivamente em sexo casual anônimo, pornografia,
masturbação ou fetiches para recuperar o que foi esquecido, o sexo
ainda assim assume um caráter de vício”. Seja hétero ou gay, a
sexualidade masculina assume um caráter de vício.

Como não é biologicamente possível nem prático, dadas


as poucas horas do dia disponíveis para atividades de lazer, que os
homens estejam em constantes interações sexuais, a pornografia
patriarcal disponível numa miríade de formas se torna o lugar de
sublimação, o lugar em que o viciado em sexo pode se satisfazer
rapidamente. Homens patriarcais podem usar pornografia em
qualquer lugar, a qualquer hora do dia. Eles podem assistir filmes,
olhar revistas, olhar para mulheres reais com um olhar pornográfico,
lhes despir, foder com elas, dominá-las.

Kimmel argumenta que o consumo masculino de


pornografia é alimentado pelo desejo sexual que os homens são
ensinados a sentir o tempo todo e pela sua raiva por não poder ter
seu desejo satisfeito:
103

“A pornografia consegue sexualizar essa raiva, e


pode fazer o sexo se parecer com vingança... Em
todo lugar os homens estão no poder,
virtualmente controlando todas as instituições
econômicas, políticas e sociais da sociedade.
Apesar disso, homens individuais não se sentem
poderosos – estão longe disso. A maioria dos
homens se sente impotente e estão
frequentemente nervosos com as mulheres, a
quem entendem como pessoas sobre quem eles
têm poder sexual: o poder de incitá-las e oferecer
ou negar sexo. Esse é o combustível tanto das
fantasias sexuais como do desejo por vingança”.

Muitos homens estão enraivecidos com as mulheres, mas


mais profundamente, as mulheres são os alvos da raiva deslocada
dos homens pela falha do patriarcado em cumprir sua promessa de
satisfação, especialmente o prazer sexual infinito.

Os homens podem estar aterrorizados em confrontar os


fatos de suas vidas e dizer a verdade de que possuir o direito a se
envolver em rituais de dominação e subordinação não é tudo que o
patriarcado prometeu que seria. Se, como diz Terence Real, o
patriarcado fosse uma doença, seria uma doença de “desejo
desordenado”; para curar essa doença, então, todos nós
precisaríamos reconsiderar a forma como vemos os homens e o
desejo masculino. Em vez de enxergar a violência masculina como
uma expressão de poder, precisaríamos chamá-la pelo nome
verdadeiro – patologia. A violência patriarcal é uma doença mental.
O fato de que essa doença tem sua expressão mais desordenada
104

na vida sexual dos homens é algo poderoso, porque faz com que
seja difícil documentá-la, já que não testemunhamos o que os
homens fazem no sexo como testemunhamos o que fazem no
trabalho ou na vida civil. Transformar a sexualidade positiva inerente
aos homens em violência é o crime patriarcal que é perpetuado
contra o corpo masculino, um crime que massas de homens ainda
precisam de força para reportar. Os homens sabem o que está
acontecendo. Eles simplesmente foram ensinados a não dizer a
verdade sobre seus corpos, a verdade sobre sua sexualidade.

Robert Jensen, em seu poderoso e corajoso trabalho


“Patriarcal Sex” (Sexo Patriarcal), entrega essa mensagem. Ao
definir patriarcado, ele escreve:

“Sexo é foda. No patriarcado, há o imperativo de


foder – no estupro e no sexo ‘normal’, com
estranhas e namoradas e esposas e com as
esposas e crianças de outras pessoas. O que
importa no sexo patriarcal é que os homens
precisam foder. Quando essa necessidade se
apresenta, o sexo acontece”.

De forma atrevida, Jensen explica:

“Atenção para como o significado da palavra


masculina central para relação sexual – ‘foder’ –
é instrutivo. Foder uma mulher é fazer sexo com
ela. Foder alguém em outro contexto... significa
machucar ou trair a pessoa. E quando dita como
simples xingamento (‘vá se foder’), a intenção é
humilhar e o comentário geralmente antecede a
violência ou a ameaça de violência. O sexo no
105

patriarcado é foda. É uma prova do poder do


patriarcado que vivamos num mundo em que as
pessoas continuam a usar a mesma palavra para
sexo e violência, e resistam à percepção de que
o sexo é rotineiramente violento enquanto
parecem se ofender quando o sexo é
abertamente violento”.

Pode-se acrescentar que é a suprema prova do poder do


patriarcado que se possa convencer homens e mulheres de que
violência sexual satisfaz.

Muito da música popular, do rock ao rap, compartilha essa


mensagem. Seja nas letras de Iggy Pop “Coloquei meu pau no bolso
e ele está aparecendo na calça. Só quero foder, nada de romance”
ou a letra do grupo de rap Mystikals “Quando acabar, vou fumar um
e arrancar a boceta de alguma vadia”. Claro que a verdade das
vidas dos homens é que a sexualidade patriarcal não satisfez. Ela
deu combustível para a compulsiva necessidade de serem mais
sexuais, mais violentos, na esperança de que haja uma maneira de
se sentirem mais satisfeitos.

A pornografia patriarcal, não mais isolada, agora sempre


presente na mídia de massa, se tornou tão disseminada porque
homens que sofreram lavagem cerebral pelo pensamento patriarcal
não encontram coragem de dizer a verdade. Eles não têm coragem
de dizer “Eu não consigo me satisfazer”.

A pornografia patriarcal se tornou uma parte inescapável


da vida diária porque a necessidade de criar uma falsa cultura onde
o desejo masculino é sempre satisfeito impede os homens de expor
a mentira patriarcal e buscar identidades sexuais saudáveis.
106

Subculturas gays historicamente têm articulado com


grande honestidade e atrevimento sobre o desejo sexual
compulsivo masculino.

E ao contrário do que diz o senso comum, em vez de ser


antipatriarcal, o sexo predatório homossexual é a incorporação
definitiva do ideal patriarcal. Jensen observa que “gay ou hétero não
importa realmente. A questão da resistência ao sexo patriarcal é tão
importante na foda gay quanto na heterossexual. Todos nós
recebemos basicamente o mesmo treino... Foder é entendido como
aquilo que os homens gays fazem; alguns podem argumentar que
se você não está fodendo, então não é gay”. Na maior parte das
vezes, homens gays são tão patriarcais em seus pensamentos
sobre masculinidade e sexualidade quanto os homens
heterossexuais, a não ser que tenham decidido conscientemente
fazer de outra forma. Seu investimento no patriarcado é um desejo
intensamente desarranjado porque eles se apaixonam pela
ideologia que nutre e promove a homofobia. Agora que homens
patriarcais hétero foram compelidos pela mídia de massa a encarar
o fato de que homens homossexuais não são “meninas com pinto”,
que eles podem e, de fato, incorporam a masculinidade patriarcal, a
dominação sexual de homens hétero sobre mulheres no sentido
biológico se intensificou, já que é o único fator que realmente
distingue heterossexuais de homossexuais.

Atualmente, a homofobia é amplificada entre os homens


heterossexuais, pois expressá-la abertamente é útil para identificar,
entre os macho men aparentemente iguais, quem é gay e quem é
hétero.
107

A pornografia patriarcal é um espaço de masculinidade


compartilhada por homens hétero e homossexuais. As imagens que
os homens gays procuram são masculinas, mas homens
posicionados da mesma forma que corpos de homens e mulheres
na pornografia heterossexual. Seja mirando homens gays ou hétero,
a pornografia é fundamentalmente uma reencenação da cultura de
dominação no reino do que é sexual.

A “necessidade” masculina por pornografia patriarcal que


erotiza a dominação não mostra o poder masculino. Enquanto o
ódio por mulheres pode levar a atos de dominação que machucam,
ferem e destroem, não há poder construtivo aqui. Tragicamente, se
massas de homens acreditarem que sua individualidade e sua
sexualidade são a mesma coisa, eles nunca encontrarão coragem
de criar um sexualidade libertadora e plena. É essa realidade que
leva os homens de consciência na sociedade patriarcal a temer o
sexo com a mesma intensidade com mulheres geralmente temem o
sexo. Como Jensen atesta:

“Eu temo o sexo como definido pela cultura


dominante, como é praticado ao meu redor e
projetado nas páginas de revistas, nos outdoors
e nas telas de cinema. Eu temo o sexo porque
temo a dominação, a crueldade, a violência e a
morte. Eu temo o sexo porque o sexo me feriu e
feriu muitas pessoas que conheço, e porque eu
feri outros com o sexo no passado. Eu sei que há
pessoas por aí que foram machucadas pelo sexo
de formas que estão além das palavras, que
experimentaram uma dor tão profunda que eu
108

nunca vou entender de verdade. E eu sei que há


pessoas mortas por causa do sexo. Sim, eu tenho
medo do sexo. Como não teria?”.

Apesar do testemunho corajoso de Jensen e de outros,


apesar da crítica radical ao sexo patriarcal, a maioria dos homens
não está superando a negação e dizendo a verdade sobre o sexo.
Eles engolem isso tudo, a dor, o desespero, a confusão: eles
seguem as regras patriarcais.

Em vez de mudar, os homens e mulheres patriarcais têm


explorado a lógica da igualdade de gênero no reino sexual para
encorajar mulheres a ser advogadas do sexo patriarcal e a fingir,
como fazem os homens, que isso é liberdade sexual. Clipes de
músicas e séries de TV como Sex and the City (escrito e produzido
por homens e mulheres patriarcais) ensinam as mulheres,
especialmente mulheres jovens, que a mulher desejável como
companheira é a que está disposta a ser a dominadora ou a
subordinada, que pode se mostrar tão indiferente ao sexo quanto
qualquer homem patriarcal. Socializar mulheres para se
conformarem às normas patriarcais sexuais masculinas é uma
forma por meio da qual o patriarcado espera atingir a ira masculina.
Já que essa ira esconde a dor que poderia ser o catalisador do
despertar crítico, essa ira tem que ser amenizada. Não são só as
reações antifeministas que levaram à normalização da violência
pornográfica sexual em nossas mídias de massas e na prática
sexual comum; o desejo de impedir que os homens sintam e deem
nome às suas dores abastece a necessidade de uma lavagem
cerebral consistente.
109

O desespero masculino, geralmente inicialmente expresso


como raiva, é uma ameaça bem maior à ordem sexual patriarcal que
o movimento feminista. Enquanto massas de homens continuam a
usar o sexo e a pornografia patriarcais para se entorpecerem,
muitos homens estão cansados de estarem entorpecidos e estão
tentado achar uma forma de reclamar sua individualidade. Esse
processo de recuperação inclui encontrar uma nova sexualidade. O
ataque ao corpo masculino pelas doenças modernas, diminuição do
desejo sexual e impotência recorrentes levaram homens individuais
não só a questionar o sexo patriarcal, mas a encontrar novas
maneiras de ser sexual que satisfaçam.

Se homens ignorantes estão sofrendo de sua versão do


“problema que não tem nome” quando se trata de sexualidade, eles
podem aliviar suas dores vencendo a negação e repudiando o
roteiro patriarcal de dominação e submissão. Com perspicácia
aguda, em seu trabalho “Why Men Are So Obsessed with Sex”
(Porque os homens são tão obcecados com sexo), Bearman
relembra os homens que eles têm escolha:

“Direta e indiretamente, nos é dada a sexualidade


como um veículo por meio do qual ainda é
possível se expressar e experimentar aspectos
essenciais de nossa humanidade que foram lenta
e sistematicamente retirados de nós. O sexo era,
e é, apresentado como o caminho da intimidade
verdadeira, da proximidade completa, como a
arena onde se pode amar abertamente, ser
carinhoso e vulnerável e ainda assim continuar a
salvo, não nos sentir tão intensamente solitários.
110

O sexo é o único lugar em que a sensualidade


parece ser permitida, onde podemos ser gentis
conosco e com nossos corpos e nos permitir
transbordar nossa paixão. É por isso que os
homens são tão obcecados com sexo... Mas de
forma alguma o sexo pode preencher nossas
necessidades plenamente. Essas necessidades
só podem ser plenamente satisfeitas pela cura
dos efeitos do condicionamento masculino e
enchendo cada área de nossas vidas com
empatia e vivacidade”.

A sexualidade compulsiva, como qualquer vício, é difícil de


ser mudada pelos homens porque ela substitui o lugar da cura que
é preciso se os homens forem amar seus corpos e deixar esse amor
levá-los a uma maior comunhão com outros corpos humanos, com
corpos de mulheres e crianças. Bearman lembra aos homens que
“não importa quanto sexo você faça, não será suficiente para
preencher a enorme necessidade de amor e proximidade e de
expressar sua paixão e encantamento em seus sentidos e sentir as
forças da vida pulsando por seus músculos e pele”. Se massas de
homens pudessem recuperar essa paixão fundamental por seus
próprios corpos, essa mudança para longe do sexo patriarcal
poderia nos levar na direção de uma verdadeira revolução sexual.
Para recuperar o poder e a paixão da sexualidade masculina
afetada pelo ataque patriarcal, homens de todas as idades poderiam
falar abertamente sobre seus desejos sexuais. Eles precisam ser
capazes de serem sexuais num espaço em que o pensamento
patriarcal não pode mais violar o único meio de conseguir prazer
111

sexual. Esse é um trabalho difícil. E até que os homens aprendam


a fazê-lo, eles não serão satisfeitos.
112

6 – TRABALHO: O QUE O AMOR TEM A VER COM ISSO?

Antes do movimento feminista, os meninos eram mais


propensos a ser ensinados, em casa e na escola, que eles
encontrariam realização no trabalho. Hoje em dia os meninos
ouvem uma mensagem um pouco diferente. Eles aprendem que o
dinheiro oferece a realização e que o trabalho é uma maneira de
conseguir dinheiro – mas não a única maneira. Ganhar na loteria,
encontrar um parceiro rico ou cometer um crime em que você não
seja pego são caminhos para a realização tão aceitáveis quanto
trabalhar.

Essas atitudes acerca da natureza do trabalho na


sociedade patriarcal mudaram assim como o capitalismo mudou a
natureza do trabalho. Poucos homens, atualmente ou no futuro,
podem esperar uma vida empregados. Nos dias de hoje, homens
trabalhadores de todas as classes experimentam períodos de
desemprego. Para manter a fé, a cultura patriarcal teve de oferecer
aos homens diferentes critérios para julgar seu valor além do
trabalho.

Como uma pedra fundamental da autoestima do


patriarcado, o trabalho não deu certo para as massas de homens
por algum tempo. Ao invés de jogar fora todo o roteiro patriarcal
ultrapassado para que a natureza do trabalho em nossa cultura
possa ser mudada, aos homens foram oferecidos vícios que fazem
trabalhos insatisfatórios mais toleráveis. A obsessão patriarcal com
o sexo e a pornografia que ele induz são promovidos para apaziguar
os homens de forma subliminar, enquanto eles continuam em
trabalhos tediosos, chatos, e frequentemente desumanizados,
113

trabalhos em que sua saúde e bem-estar estão em risco. A maioria


dos homens trabalhadores na América, assim como as mulheres,
trabalham em circunstâncias de exploração; o trabalho que fazem e
a forma com que são tratados pelos superiores acaba por
enfraquecer sua autoestima.

Um dos sentimentos patriarcais antifeministas que ganhou


espaço nos últimos anos foi a ideia de que massas de homens
costumavam se contentar em escravizar seus trabalhos
insignificantes para fazer seu papel de provedores e que foi a
insistência do feminismo em igualdade de gênero na força de
trabalho que criou o descontentamento masculino. Por trás dessa
ideia está a noção de que a entrada das mulheres na força de
trabalho, não mais esperando que seus parceiros fossem os únicos
provedores da família, minou o bem-estar dos homens na cultura
patriarcal. Mesmo assim, muitos estudos sociológicos de homens
no trabalho realizados antes do movimento feminista indicam que
os homens já estavam expressando grande descontentamento e
depressão com a natureza e o sentido do trabalho em suas vidas.
Esse descontentamento não recebe a mesma atenção dada aos
homens trabalhadores quando colocam a culpa da sua infelicidade
com o mundo do trabalho no movimento feminista.

Em sua grande dissertação jornalística Stiffed: The


Betrayal of the American Man (Enrijecido: A traição do homem
americano), Susan Faludi documenta a realidade de que muitos
homens, especialmente homens mais velhos, sentiram que as
mudanças na avaliação e natureza do trabalho, bem como a
competição com as mulheres por trabalho, lhes roubaram o orgulho
114

de serem provedores, criando o que ela chama de “crise da


masculinidade”.

A parte mais superficial da crise da masculinidade, a perda


da autoridade econômica, ficou mais evidente na época de recessão
do início dos anos 1990, quando a devastação do desemprego
masculino crescia mais e mais. O papel de provedor da família
estava claramente sendo pouco a pouco destruído por forças
econômicas que jogaram muitos homens num mercado de trabalho
traiçoeiro durante as “consolidações” e fusões corporativas. Mesmo
os muitos homens que nunca haviam sido demitidos eram
acometidos do medo de serem os próximos – que o sólido posto de
provedores estava perigosamente ameaçado.

Massa de homens em nossa cultura podem crer que sua


habilidade de proverem para si mesmos e suas famílias é uma
medida de sua masculinidade, mesmo assim eles frequentemente
não usam esses recursos para prover para outras pessoas.

Teóricas feministas, eu inclusive, há algum tempo


chamamos atenção para o fato de que o comportamento do homens
que fazem dinheiro e ainda assim se recusam a pagar pensão
alimentícia ou uma ajuda para crianças, ou seus pares que lideram
lares esbanjam seu pagamento com prazeres individuais, desafiam
a insistência patriarcal de que os homens estão sedentos para ser
os cuidadores e provedores. O livro The Hearts of Men (O coração
dos homens), de Barbara Ehrenreich, foi um dos primeiros livros a
salientar a realidade de que muitos homens não estão
desesperados para ser provedores, que a ideia do “playboy” foi
criada como válvula de escape desse papel e para ter outros meios
de provar a masculinidade. Os homens que lideram lares que dão
115

uma pequena parte de seus salários para as necessidades da


família ainda podem ter a ilusão de que são provedores.

Atualmente, os salários das mulheres pode ser o dinheiro


que permite a muitos homens patriarcais gastar seu pagamento com
drogas, álcool, apostas ou aventuras sexuais mesmo que eles se
considerem os provedores.

O homem trabalhador dos dias atuais luta para prover


economicamente para si mesmo. E se ele provém para si e sua
família, sua batalha é ainda mais rigorosa e o medo de falhar, mais
intenso. Homens que fazem muito dinheiro nessa sociedade e que
não são ricos independentes geralmente trabalham longas horas,
gastando muito de seu tempo longe da companhia das pessoas que
ama. Essa é uma coisa que compartilham com homens que não
fazem muito dinheiro, mas que também trabalham longas horas. O
trabalho fica no caminho do amor para a maioria dos homens
porque as longas horas de trabalho drenam suas energias; há
pouco ou nenhum tempo sobrando para trabalho emocional, para
fazer o trabalho do amor. O conflito entre encontrar tempo para o
trabalho e encontrar tempo para o amor e para as pessoas amadas
é raramente discutido em nossa nação. Simplesmente se supõe que
na cultura patriarcal os homens devem estar dispostos a sacrificar
conexões emocionais importantes para fazer seu trabalho. Ninguém
realmente tentou examinar o que os homens sentem com a perda
de tempo com as crianças, as parceiras, seus entes queridos, e o
tempo de autoconhecimento. Os trabalhadores a que Susan Faludi
dá destaque em Stiffed não expressam preocupação com não ter
tempo suficiente para autorreflexão e conexão emocional consigo
mesmos e com outros.
116

Há bem pouca pesquisa que documente a extensão a


que a depressão com a natureza do trabalho leva os homens a agir
com violência em suas vidas domésticas. O patriarcado
contemporâneo ofereceu aos homens trabalhadores desapontados
uma troca: as vantagens da masculinidade que uma economia falida
tira pode ser devolvida no reino sexual pela dominação das
mulheres. Quando esse mundo de sexualidade não é satisfatório,
os homens se enfurecem. Na atualidade, as mulheres estão
cansadas da dominação masculina especialmente na esfera sexual,
e ao invés de fazer disso uma “benção doméstica”, ao se voltarem
para o sexo para terem a satisfação sexual que não recebem no
trabalho, os homens intensificam o conflito. O movimento de
massas de mulheres na força de trabalho não desestruturou os
homens trabalhadores economicamente; eles ainda recebem a
maior parte dos trabalhos e salários. Isso fez com que as mulheres
que trabalham se sentissem no direito de resistir mais à dominação
do que as mulheres que ficam em casa, dependendo do salário do
marido para sobreviver.

Mulheres da classe trabalhadora e da classe média com


quem falei, falaram do quanto trabalhar fora depois de muitos anos
trabalhando em casa reforçou suas autoestimas e lhes encheu de
uma perspectiva diferente dos relacionamentos. Essas mulheres
frequentemente começam a exigir mais engajamento emocional de
seus esposos e namorados. Frente a essas demandas, homens
trabalhadores muitas vezes desejam que a mulher ficasse em casa
para que eles pudessem exercer poder absoluto,
independentemente do valor do seu pagamento. Em muitos casos,
quando o salário de uma mulher é maior que o de seu parceiro, ele
117

se rebela para restaurar seu senso de dominação. Ele pode


confiscar o salário dela e usar para seus próprios fins, fazendo com
que ela fique dependente. Ele pode exigir mais favores sexuais, e
se isso não funcionar, ele pode simplesmente recusar sexo, fazendo
com que uma mulher trabalhadora que deseja sexo sinta seu poder
enfraquecido.

A maioria das mulheres que trabalham longas horas


chegam em casa e trabalham um segundo turno, cuidando das
tarefas da casa. Elas sentem, tal como os homens, que não há
tempo para o trabalho emocional, para compartilhar sentimentos e
nutrir outros. Assim como os homens, elas podem só querer
descansar. Mulheres trabalhadoras são muito mais propensas a ser
irritáveis do que outras mulheres; elas são menos abertas a atender
as necessidades de outras pessoas do que as raras mulheres que
ficam em casa o dia todo, que podem cuidar de crianças ou não. Os
lares certamente são afetados quando o sexismo decreta que todo
cuidado emocional e amor devem vir das mulheres, tendo em vista
que mulheres trabalhadoras, como os homens trabalhadores,
frequentemente chegam em casa cansadas demais para se
entregar às emoções.

Homens e mulheres sexistas acreditam que o modo de


resolvem esse dilema é não encorajar os homens a compartilhar o
trabalho de cuidado emocional, mas, em vez disso, voltar a papéis
de gênero mais sexistas. Eles querem mais mulheres,
especialmente as que tenham filhos pequenos, que ficam em casa.

É claro que eles não criticam a economia que faz com que
seja necessário para todos os adultos trabalhar fora; pelo contrário,
eles fingem que o feminismo mantém as mulheres na força de
118

trabalho. A maioria das mulheres trabalha porque quer sair de casa


e porque suas famílias precisam daquele dinheiro para sobreviver,
não porque são feministas que acreditam que seu trabalho é sinal
de libertação. Quando homens individuais ficam em casa para fazer
todo o trabalho doméstico e criar os filhos, esse arranjo é tido como
“não natural” pela maioria dos observadores. Ao invés de serem
vistos como quem faz o que deve fazer enquanto pessoas num
relacionamento, homens donos de casa são vistos como
especialmente cavalheiros, sacrificando o poder e os privilégios que
poderiam ter como homens que trabalham fora de casa para fazer
o trabalho da mulher dentro de casa.

Assumindo o papel de pais participativos e amáveis que


homens individuais se atreveram a desafiar concepções sexistas e
trabalhar em casa, o que também lhes possibilita aprender
habilidades relacionais. Eles documentam a verdade da teoria
feminista, que argumenta que se os homens participassem
igualmente da criação das crianças, eles poderiam, como as
mulheres fazem, aprender a cuidar das necessidades dos outros,
inclusive as necessidades emocionais. Mesmo que mais homens
estejam mais presentes na criação dos filhos em algum nível do que
em qualquer outro momento na história da nossa nação, a grande
maioria dos homens ainda se recusa a assumir um papel igual no
desenvolvimento emocional de seus filhos. Frequentemente, eles
usam o trabalho como desculpa para o distanciamento emocional.
Sejam elas definidas como pró ou antifeministas, a maioria das
mulheres quer que os homens façam mais o trabalho emocional nos
relacionamentos. E a maioria dos homens, mesmo os que apoiam
incondicionalmente a igualdade de gênero na força de trabalho,
119

ainda crê que o trabalho emocional é um trabalho para mulheres. A


maioria dos homens continua a se prender ao pensamento sexista
de que emoções não tem lugar no mundo do trabalho e que o
trabalho emocional em casa deve ser feito pelas mulheres.

Muitos homens usam o trabalho como local onde podem


fugir de si mesmos, da consciência emocional, onde podem se
perder e operar num espaço de entorpecimento emocional. O
desemprego é tão emocionalmente ameaçador pois significa que
haveria tempo para preencher, e a maioria dos homens na cultura
patriarcal não querem ter tempo de sobra. Victor Seidler expressa
seu medo de ter tempo ocioso em Rediscovering Masculinity
(Redescobrindo a masculinidade), confessando:

“Eu tenho aprendido o quão difícil é me dar


tempo, mesmo que seja apenas uma hora por
dia. Há sempre coisas que eu deveria estar
fazendo. Um sentimento de pânico e ansiedade
surge só com o pensamento de passar mais
tempo comigo mesmo”.

Ele argumenta que a maioria dos homens têm um senso


de si mesmos tão limitado que eles ficam incertos de possuir “uma
individualidade com a qual queiram se relacionar”. Ele expressa:

“Nós apenas aprendemos que esse ‘eu’ é algo


que devemos controlar firmemente, senão isso
pode estragar nossos planos... Nós nunca nos
damos realmente muita chance de conhecer a
nós mesmo melhor ou desenvolver maior contato
conosco mesmo, porque... isso tudo ameaça o
‘controle’ que aprendemos que identifica a nossa
120

masculinidade. Nos sentimos presos, mesmo que


não saibamos como estamos constantemente
refazendo essa armadilha para nós mesmos”.

A competição com outros homens no ambiente de


trabalho pode deixar ainda mais difícil para os homens expressar
seus sentimentos ou passar tempo sozinhos. O homem que busca
solitude no trabalho, especialmente em tempos difíceis, é visto com
suspeita. Mesmo assim, quando os homens se juntam no ambiente
de trabalho, eles raramente tem conversas edificantes. Eles
zombam, se vangloriam, fazem piadas, mas não compartilham
sentimentos. Eles se relacionam de modo roteirizado e limitado,
tomando o cuidado de não ultrapassar os limites emocionais
estabelecidos pelo pensamento patriarcal sobre a masculinidade.
As regras da masculinidade patriarcal os lembra que é seu dever
como homem recusar se conectar.

Mesmo que homens trabalhadores como Kenneth


Blanchard, autor de One Minute Manager (O gerente de um minuto)
e coautor de The Power of Ethical Management (O poder do
gerenciamento ético), compartilha a saberia de que habilidades
relacionais deveriam ser cultivadas pelos homens para melhorar a
natureza do trabalho e as relações de trabalho, a maioria das
instalações de trabalho continuam sendo lugares onde o
envolvimento emocional entre trabalhadores, especialmente o chefe
e o subordinado, é considerado ruim para os negócios. Se os
homens tivessem maior contato com habilidades relacionais e sua
vida emocional, eles poderiam escolher trabalhos que, pelo menos
algumas vezes, fortaleceriam seu bem-estar. Ainda que mulheres
com privilégio de classe como Susan Faludi ou Susan Bordo, que
121

escrevem sobre os homens, expressam ficar surpresas que a


maioria dos homens não se veja tão poderosa, mulheres que foram
criadas nas classes pobre e trabalhadora sempre souberam muito
bem da dor emocional dos homens em suas vidas e de suas
insatisfações com o trabalho. Se Susan Faludi tivesse lido o trabalho
de mulheres feministas de cor sobre homens da classe pobre e
trabalhadora que conhecemos bem intimamente, ela não teria se
“surpreendido” em encontrar massas de homens incomodados e
descontentes. Mulheres com privilégio de classe têm sido o único
grupo a perpetuar a noção de que os homens são todo-poderosos,
porque frequentemente os homens em suas famílias eram
poderosos.

Quando Faludi critica a popular noção feminista de que


homens são todo-poderosos, ela conta com a ignorância dos
leitores sobre feministas, escrevendo para perpetuar a noção de
que feministas não entendem a dor dos homens. Promover essa
imagem distorcida reforça seu argumento.

Feministas visionárias escreveram sobre o fato de que


homens da classe trabalhadora, longe de se sentirem poderosos,
estavam terrivelmente feridos pelo patriarcado muito antes de Faludi
conceber Stiffed, e é difícil imaginar que ela não soubesse desses
escritos. É dissimulado da parte dela também agir com se o
movimento de libertação que as mulheres criaram para confrontar
“seu problema sem nome” se dirigisse a mulheres além das classes.
O movimento feminista teve bem pouco impacto nas massas de
mulheres da classe trabalhadora que eram parte da força de
trabalho antes do movimento e que ainda continuam lá, tão
insatisfeitas e descontentes com seu fardo quanto os homens em
122

suas vidas. Mulheres das classes pobre e trabalhadora sempre


souberam que sua experiência de trabalho diária coloca os homens
em um ambiente em que eles se sentem impotentes e incapazes de
articular isso em termos patriarcais; para usar os termos de Faludi,
eles se sentem “menos que masculinos”.

Tal como os ganhos feministas nesta nação tiveram


principalmente impacto positivo em mulheres com privilégio de
classe, os homens “trabalhadores” que tiveram permissão, dentro
dos contornos da cultura patriarcal, de reconfigurar a natureza do
trabalho em suas vidas tendem a ter poder de classe. No final dos
anos 1980, início dos anos 1990 um grande número de filmes
populares tratava homens poderosos que, em meio a uma doença
ou uma crise, avaliavam suas vidas e escolhiam fazer profundas
mudanças na natureza de seu trabalho. No recente filme Life as a
House, um arquiteto branco cujo trabalho está sendo desqualificado
se demite, descobre que tem câncer e pouco tempo restante de
vida, então ele se envolve num processo de repensar o patriarcado,
mas é claro que esse termo não é usado. Analisando sua vida, ele
escolhe usar os meses que lhe restam para fazer conexões
emocionais com a família, especialmente com o filho adolescente e
seus amigos. Ele passa o tempo aprendendo como dar e receber
amor. O atual marido executivo e rico de sua ex-esposa, inspirado
pelo exemplo de um homem à beira da morte, repensa a natureza
de sua vida e resolve dar menos tempo para o trabalho e mais
tempo para conexões emocionais. Esse filme, assim como seus
antecessores, deixa claro que homens trabalhadores devem ter
tempo para se conectar com seu eu emocional se quiserem se
tornar homens de sentimentos.
123

Imensamente popular e ganhador do Oscar, o filme Beleza


Americana mostrava o personagem principal Lester Burnham
deprimido com sua vida, seu trabalho, seu casamento e sua família;
ele perdera a capacidade de sentir. Ele deixa de levar o trabalho a
sério e no final, entra em contato com seus sentimentos, e mesmo
assim ele não consegue resgatar sua vida. Ele também morre, tal
como ocorre com o protagonista de Life has a House. Esses filmes
seduzem as audiências com imagens de homens em processo de
crescimento, mas então eles traem seus personagens e a nós,
nunca deixando que esses homens vivam. Eles ecoam a mensagem
patriarcal de que se um parar de trabalhar de trabalhar, ele perde
sua razão de viver. Em Rediscovering Masculinity (Redescobrindo
a masculinidade), Victor Seidler afirma que o homem que define seu
eu por meio do trabalho procura fazer isso pois “essa é a única
identidade que tradicionalmente nos pertence... acreditamos que
ainda podemos provar nossa masculinidade mostrando que não
precisamos de nada que venha dos outros”. Em Beleza Americana
Lester sofre sozinho. Sua investigação crítica dos próprios
sentimentos acontece dentro da cabeça dele. E ele não consegue
sobreviver sendo tão vulnerável e isolado. No fim das contas, os
filmes passam a mensagem à audiência masculina que homens não
serão significativamente empoderados se eles aprenderem a amar.
Beleza Americana acaba por dizer aos espectadores que não há
esperança para homens deprimidos que estão dispostos a refletir
criticamente sobre suas vidas. Ele nos diz que mesmo quando os
homens estão dispostos a mudar, não espaço para eles na cultura
patriarcal. A frase de abertura do filme já diz tudo: “Meu nome é
Lester Burnham. Tenho 42 anos. Em menos de um ano, estarei
morto. Claro que ainda não sei disso. De qualquer forma, já estou
124

morto”. A cultura popular nos oferta poucas ou nenhuma imagem


redentora de homens que começam emocionalmente mortos.
Diferentemente da Bela Adormecida, eles não podem ser trazidos
de volta à vida. Na realidade, homens individuais estão envolvidos
no trabalho de recuperação emocional todos os dias, mas o trabalho
não é fácil porque eles não tem apoio dos sistemas dentro da cultura
patriarcal, especialmente se forem das classes pobre e
trabalhadora. E não é acidental que Life Has a House, que mostra
um homem rejeitando o patriarcado e encontrando seu caminho não
seja tão famoso quanto Beleza Americana.

Homens das classes pobre e trabalhadora sofrendo de


depressão por causa do trabalho, desesperados com a qualidade
de suas vidas íntimas, um sentimento de alienação ou uma
sensação de estar perdidos frequentemente se voltam para os
abusos para aplacar sua dor. Quando eles começam a buscar por
recuperação, o AA é um dos poucos lugares que eles podem ir para
fazer seu trabalho de se sentirem bem de novo. Em grupos de
recuperação eles aprendem, primeiramente, que é importante se
conectar com seus sentimentos, que eles têm direito a nomear
esses sentimentos. O sucesso do AA está atrelado ao fato de que a
prática da recuperação se dá num contexto de comunidade, em que
a vergonha de falhar pode ser expressa e o desejo masculino de
cura, validado. Homens curadores visionários, tais como John
Bradshaw, encontraram o caminho para a cura nesses cenários.
Homens da classe trabalhadora a quem entrevistei que encontraram
na recuperação um caminho para retomar a conexão emocional
compartilham que é profundamente difícil se engajar nesse trabalho,
que é fundamentalmente antipatriarcal, e então deixar esses
125

espaços e voltar a entrar na cultura patriarcal. Um homem falou


sobre como sua parceira se desinteressou pela sua disposição para
expressar sentimentos, contar sua história; aos olhos dela, aquilo
era uma fraqueza. Ela insistiu que agora que ele estava sóbrio, ele
não precisava mais “expressar seus sentimentos”.

Apesar da mudança da natureza dos papéis de gênero, o


nosso ainda é aquele da cultura patriarcal em que o sexismo
comanda. Se não fosse assim, os homens poderiam encarar
períodos de desemprego como tempo de folga, quando poderiam
fazer um trabalho de auto atualização, quando poderiam fazer o
trabalho de cura. Muitos homens trabalhadores em nossa cultura
mal podem ler ou escrever.

Imagine se o tempo longe do trabalho pudesse ser gasto


em cursos de instrução para homens pobres e da classe
trabalhadora. Imagine um salário pago por seu trabalho de auto
desenvolvimento. Quando o patriarcado não mais ditar as regras,
será possível para os homens se verem holisticamente, ver o
trabalho como parte da vida, não toda sua existência. Em Love and
Survival (Amor e sobrevivência), Dean Ornish, compartilhando sua
dificuldade pessoal com trabalhar menos e dar tempo para auto
atualização, oferece essa visão:

“Se a intenção por trás do trabalho é buscar


reconhecimento e poder – ‘ei, olha para mim, eu
sou especial, sou importante, eu sou digno de seu
amor e respeito’ – então você está se colocando
distante dos outros como forma de tentar se
conectar com eles. Se colocar a parte dos outros
como forma de tentar se sentir conectado a eles:
126

parece claro porque isso é autossabotagem, e


ainda assim frequentemente é a norma em nossa
cultura... Quando meu próprio valor é definido
pelo que fiz, então eu preciso me agarrar a cada
oportunidade que surja, mesmo que em
detrimento das relações”.

Quando começou a escolher viver holisticamente, Ornish


foi capaz de mudar seu pensamento sobre o trabalho.

Understanding Men’s Passages (Compreendendo as


passagens masculinas), de Gail Sheehy, contém histórias
autobiográficas de homens que lutaram com o conhecimento de que
o trabalho que fazem promove severa depressão e infelicidade.
Esses homens lidam com ter que escolher seu bem estar ao invés
do salário ou de manter uma imagem de provedores. Lee May
relembra: “Eu me vi de frente a duas opções difíceis. Uma, ficar no
trabalho que eu estava e me afogar e morrer psicologicamente ou
me demitir e encarar a possibilidade de falir financeiramente”.

Ele admite que sua infelicidade com o trabalho tinha


afetado seu bem-estar em casa: “Nossa casa era um lugar infeliz.
Mas, se eu tivesse ficado nos trabalhos antigos, minha infelicidade
teria impregnado nosso relacionamento”. May conseguiu fazer a
escolha de deixar o trabalho que o fazia infeliz e o trabalho que ele
começou a fazer – escrever um livro sobre sua vida como jornalista
itinerante, escrevendo uma popular coluna de jardinagem – foi o que
despertou sua auto consciência, sua auto atualização. Seu relato
honesto de seus medos e superação da negação é um modelo para
muitos homens aprenderem a honrar seu eu interior num mundo
que diz a eles todos os dias que não importam.
127

Escrevendo corajosamente sobre como foi difícil se


distanciar dos valores patriarcais que haviam governado sua forma
de pensar por anos, Ornish compartilha que a prática da intimidade
o está curando:

“Estou aprendendo que a chave da nossa


sobrevivência é o amor. Quando amamos alguém
e nos sentimos amados, de alguma forma ao
longo do caminho nosso sofrimento se aplaca,
nossas maiores feridas começam a sarar, nossos
corações começam a se sentir seguros o
suficiente para serem vulneráveis e se abrir um
pouco mais. Começamos a experimentar nossas
próprias emoções e os sentimentos daqueles que
estão à nossa volta”.

Imagine uma cultura não patriarcal em que o


aconselhamento estivesse disponível para todos os homens, para
ajudá-los a encontrar o trabalho que se adapta melhor a eles, que
possam fazer com alegria. Imagine locais de trabalho que oferecem
intervalos de descanso em que os trabalhadores podem ter aulas
de recuperação relacional, onde podem fazer amizade com outros
trabalhadores e construir uma comunidade de solidariedade que, se
não pudesse mudar a natureza árdua e depressiva do trabalho, ao
menos pudesse fazer o ambiente de trabalho mais aceitável.
Imagine um mundo em que os homens que estão desempregados
por qualquer que seja a razão pudessem aprender um caminho para
a auto atualização. Mulheres trabalhadores descobrem que deixar
de estar isoladas em casa e trabalhar em ambientes comuns
aumenta seu bem-estar emocional, mesmo quando o salário é baixo
128

e não libertador (como algumas pensadoras feministas


ingenuamente sugerem que seja). Se os homens seguissem esse
exemplo e usassem o local de trabalho como um lugar para praticar
habilidades relacionais e desenvolvimento comunitários, a crise
masculina quanto ao trabalho poderia ser mais efetivamente
tratada.

Muitos homens que estão se aposentando,


particularmente homens acima de 60 anos em nossa cultura,
frequentemente sentem que o envelhecimento lhes permitem se
libertarem do patriarcado. Com mais tempo livre, eles se veem
compelidos por extrema solidão, alienação, uma crise de sentido ou
outras circunstâncias, para o desenvolvimento emocional individual.
Eles são idosos que podem conversar com gerações de homens
mais jovens, desbancando os mitos patriarcais do trabalho; essas
vozes precisam ser ouvidas.

Essas vozes dizem aos homens jovens “Não esperem até


sua vida estar perto do fim para encontrar seus sentimentos, para
seguir seu coração. Não espere até ser tarde demais”. O trabalho
pode e deve acrescentar à vida dos homens. Quando os homens se
atreverem a ir ao trabalho amando e sendo amados, a natureza do
trabalho será transformada e o ambiente de trabalho não mais
exigirá que os corações dos homens sejam partidos para que o
trabalho seja feito.
129

7 – MASCULINIDADE FEMINISTA

Diga que vocês é feminista para a maioria dos homens e


automaticamente você será vista como o inimigo. Você se arrisca a
ser vista como uma mulher que odeia os homens. A maioria das
mulheres jovens temes que se elas se intitularem feministas elas
perderão o favoritismo masculino, que não serão amadas pelos
homens. A opinião popular sobre o impacto do movimento feminista
nas vidas dos homens é de que o feminismo machuca os homens.
Mulheres e homens conservadores antifeministas insistem que o
feminismo é a destruição da vida em família.

Eles argumentam que mulheres trabalhadoras deixam as


casas abandonadas, crianças sem os cuidados das mães. Assim,
eles consistentemente ignoram a que nível a cultura capitalista
consumista, e não o feminismo, fez com que as mulheres entrassem
na força de trabalho e as mantém lá.

Quando as mulheres feministas contaram ao mundo que o


patriarcado promove o ódio às mulheres, a resposta foi de que
feministas estavam sendo exageradas, aumentando o problema.

Mesmo assim, quando homens que não sabiam nada


sobre feminismo disseram que as feministas odiavam os homens,
não houve resposta do mundo não feminista dizendo que eles
estavam sendo muito extremistas. Nenhuma feminista matou e
estuprou homens. Feministas não estão sendo presas todos os dias
por violência contra os homens. Nenhuma feminista foi acusada de
contínuo abuso sexual contra meninas, inclusive criando um mundo
de pornografia infantil com meninas pequenas. Porém, esses são
130

os alguns dos atos dos homens que levaram algumas feministas a


identificar homens como pessoas que odeiam as mulheres.

Ainda que nem todos os homens sejam misóginos,


pensadoras feministas foram certeiras quando afirmaram que o
patriarcado em sua forma mais básica e não mediada promove
medo e ódio às mulheres. Um homem que descaradamente e
inequivocamente se compromete com a masculinidade patriarcal
temerá e odiará ao mesmo tempo tudo o que a cultura considerar
feminino e afeminado. A maioria dos homens, contudo, não
escolheram o patriarcado conscientemente como uma ideologia que
querem que governe suas vidas, suas crenças e ações. A cultura
patriarcal é o sistema em que nasceram e no qual foram
socializados para aceitar, e mesmo assim em todas as áreas de
suas vidas a maioria dos homens se rebelaram de maneiras
menores contra o patriarcado, resistindo contra a aliança ao
pensamento e prática patriarcais.

A maioria dos homens claramente se mostra disposta a


resistir ao patriarcado quando ele interfere em seus desejos
individuais, mas eles não estão dispostos a abraçar o feminismo
enquanto um movimento que iria desafiar, mudar e, ao final, acabar
com o patriarcado.

O movimento feminista foi apresentado à maioria dos


homens desde o início pela mídia de massa como anti-homem. Na
verdade, houve sérias facções anti-homem no movimento feminista
contemporâneo. E mesmo que mulheres que odeiam os homens
fossem a menor porção das mulheres que lutavam pela liberação,
elas recebiam a maior parte da atenção. Falhando ao cuidar das
mulheres da forma correta, os homens, por meio de atos contínuos
131

de dominação, tinha criado o contexto cultural para a rebelião


feminista. No capítulo “Masculinidade Feminista” do meu livro mais
recente O feminismo é pra todo mundo, escrevo:

“Mulheres heterossexuais individuais vieram ao


movimento saídas de relacionamentos em que os
homens eram cruéis, rudes, violentos, infiéis.
Muitos desses homens eram pensadores radicais
que participaram em movimentos por justiça
social, falando em nome dos trabalhadores, dos
pobres, de justiça racial. Quando o assunto era
gênero, porém, eles eram tão sexistas quanto os
conservadores. Mulheres individuais vieram
dessas relações com raiva. Elas usaram essa
raiva como um catalisador para a liberação das
mulheres. Conforme o movimento progrediu,
conforme o movimento feminista avançou,
ativistas feministas esclarecidas viram que os
homens não eram o problema, que o problema
era o patriarcado, o sexismo e a dominação
masculina”.

Foi difícil para as mulheres comprometidas com o


feminismo mudar e encarar a realidade, que o problema não estava
apenas nos homens. Encarar essa realidade requeria uma
teorização mais complexa; requeria reconhecer o papel da mulher
na manutenção e perpetuação do patriarcado e do sexismo. À
medida que mais mulheres se distanciavam de relacionamentos
destrutivos com homens, ficou mais fácil ver a o cenário geral.
132

Era fácil ver que mesmo se homens individuais se


despissem dos privilégios do patriarcado, o sistema patriarcal, o
sexismo e a dominação masculina ainda permaneceriam intactos, e
as mulheres ainda seriam exploradas e oprimidas. Apesar dessa
mudança na agenda feminista, pensadoras feministas visionárias
que nunca tinham sido anti-homem não recebiam e não recebem
atenção da mídia de massa. Como consequência, a noção popular
de que feministas odeiam os homens continua a prevalecer.

A imensa maioria das mulheres feministas que encontro


não odeiam os homens. Elas sentem pena dos homens por verem
como o patriarcado os machuca e, mesmo assim, os homens
continuam comprometidos com a cultura patriarcal. Enquanto
pensadoras visionárias chamavam atenção para o modo como o
patriarcado fere os homens, nunca houve um esforço contínuo
direcionado à dor masculina. Até hoje, ouvi mulheres feministas
individuais expressarem sua preocupação com as apuros dos
homens dentro do patriarcado, mesmo quando compartilham que
não têm intenção de gastar energia para ajudar a educar e mudar
os homens. A autora feminista Minnie Bruce Pratt deixa bem clara
essa posição:

“Como é que os homens vão mudar? O encontro de


duas pessoas, onde uma se opõe à outra, é o ponto
da mudança. Mas não quero o contato pessoal. Não
quero ter que fazer isso... Quando as pessoas falam
sobre não gastar energia com os homens, eu
concordo com isso... Eles precisam se entregar”.

Essas atitudes, junto com as atitudes negativas da maioria


dos homens para com o pensamento feminista, significou que nunca
133

houve uma chamada coletiva e afirmativa para que meninos e


homens se juntassem ao movimento feminista para que, então, se
libertassem do patriarcado.

Mulheres feministas reformistas não podiam fazer tal coisa


porque elas eram o grupo de mulheres (a maioria mulheres brancas
com privilégio de classe) que haviam empurrado a ideia de que
todos os homens eram poderosos, em primeiro lugar. Essas eram
as mulheres para quem a liberação feminista era mais sobre pegar
um pouco do poder e menos sobre libertar massas de mulheres ou
homens menos poderosos da opressão sexista. Elas não estavam
bravas com seus papais poderosos e maridos que mantinham
homens pobres em situação exploração e opressão; elas estavam
com raiva de não terem o mesmo acesso ao poder. Agora que
muitas dessas mulheres ganharam poder, e especialmente
paridade econômica com os homens de sua classe, elas perderam
seu interesse no feminismo.

Conforme o interesse no pensamento e prática feministas


minguou, houve ainda menos foco na condição dos homens do que
havia no ápice do movimento feminista. Essa falta de interesse não
mudou o fato de que só uma visão feminista que abrace a
masculinidade, que ame os garotos e homens e que verbalize suas
demandas e exija em seu nome os direitos que queremos para
meninas e mulheres, poderá renovar os homens em nossa
sociedade. O pensamento feminista nos ensina a todos, e
especialmente aos homens, como amar a justiça e a liberdade de
formas que nutrem e afirmam a vida. Claramente precisamos de
novas estratégias, novas teorias e guias que nos mostrarão como
criar um mundo em que a masculinidade feminista floresça.
134

Infelizmente não há nenhum corpo de feministas


escrevendo para os homens que seja acessível, clara e concisa. Há
pouco trabalho feito a partir do ponto de vista feminista concentrado
na infância dos meninos. Nenhum corpo significante de feministas
escrevendo diretamente para os garotos, lhes dizendo como podem
construir uma identidade que não tenha raiz no sexismo. Não há
corpo de literatura feminista infantil que possa servir de alternativa
às perspectivas patriarcais que abundam no universo dos livros
infantis.

A igualdade de gênero que muitos de nós acredita já


conquistada em nossas vidas adultas, particularmente aqueles de
nós que têm privilégio de classe e educação de qualidade, é
simplesmente inexistente no mundo dos livros infantis ou no mundo
da educação pública e privada.

Professores de crianças veem, na maioria das vezes, a


igualdade de gênero em termos de assegurar que garotas tenham
os mesmos privilégios e direitos que os garotos dentro da estrutura
social existente; eles não a enxergam em termos de garantir que os
garotos tenham os mesmos direitos que as garotas – por exemplo,
o direito de escolher não participar de brincadeiras agressivas ou
violentas, o direito de brincar de boneca, de brincar de se vestir, de
usar fantasias de qualquer gênero, o direito de escolher.

Assim como foi mal direcionado para pensadoras


feministas reformistas ver a liberdade simplesmente como mulheres
tendo o direito de ser tão poderosas quanto os homens patriarcais
(mulheres feministas com privilégio de classe nunca sugeriram que
queriam que pessoas como elas fossem iguais aos homens pobres
e da classe trabalhadora), então era bem simplista imaginar que os
135

homens libertados poderiam se tornar uma mulher travestida.


Mesmo assim, esse era o modelo de liberdade oferecido aos
homens pelo pensamento feminista convencional. Esperava-se que
os homens se agarrassem às ideias de força e de prover aos outros
que eram parte do pensamento patriarcal, enquanto deixavam de
investir em dominação e passavam a investir em crescimento
emocional. A visão da masculinidade feminista era tão carregada de
contradições que era impossível de perceber. Não há dúvidas do
porquê de os que se importavam, que estavam abertos à mudança,
frequentemente desistiam, voltando à masculinidade patriarcal que
achavam tão problemática. O homem individual que vestia o manto
das ideias feministas de libertação masculina o faziam somente
para descobrir que poucas mulheres respeitavam essa mudança.

Uma vez que o “novo homem” que é o homem mudado


pelo feminismo era apresentado como um covarde, como um
brócolis cozido demais dominado por mulheres poderosas que
secretamente ansiavam por um machão, massas de homens
perderam o interesse. Reagindo a essa inversão dos papéis de
gênero, homens que simpatizavam, escolheram parar de tomar
parte no movimento feminista liderado por mulheres e se
envolveram com o movimento dos homens. De forma positiva, o
movimento dos homens enfatizava a necessidade de os homens
entrarem em contato com seus sentimentos, de falar com outros
homens. Por outro lado, negativamente o movimento dos homens
continuava a promover o patriarcado insistindo, tacitamente, que
para ser completamente autoatualizado era preciso que os homens
se separassem das mulheres. A ideia de que os homens
precisavam se separar das mulheres para encontrar seu verdadeiro
136

“eu” parecia muito com a antiga mensagem patriarcal com nova


roupagem.

Descrevendo o movimento masculino liderado por Robert


Bly, em seu trabalho “Feminism and Masculinity” (Feminismo e
Masculinidade), Christine A. James explica:

“Bly afirma que as mulheres, principalmente desde o


feminismo, criaram uma situação em que homens,
especialmente homens jovens, se sentem fracos,
castrados e inseguros de si mesmos, e que o homem
mais velho deve liderar o caminho de volta... Bly
sustenta o mito do Homem Selvagem como exemplar
da direção que os homens devem tomar e nunca
desafia os dualismos hierárquicos que são tão
integralmente ligados à tensão que existe entre
homens e mulheres. Discutivelmente, a noção do
Homem Selvagem meramente reforça clichês sobre a
‘masculinidade real’ ao invés de tentar criar uma nova
relação entre homens e mulheres, bem como entre o
masculino e o feminino”.

O movimento dos homens era frequentemente crítico das


mulheres e do feminismo, mas não fazia críticas bem embasadas
sobre o patriarcado. Ao final, não exigia consistentemente que os
homens desafiassem o patriarcado ou vislumbrassem modelos
libertadores de masculinidade.

Muitos dos modelos New Age criados por homens


reconfiguraram velhos paradigmas sexistas, fazendo parecer que
estavam oferecendo um roteiro diferente para as relações de
gênero. Com frequência, o movimento dos homens resistiu aos
137

modelos patriarcais machões e usou visões de um patriarcado


benevolente em que o pai é o chefe que governa com ternura e
bondade, mas ainda assim mantém o controle. O despertar do
movimento feminista e dos diversos movimentos de libertação
masculina não ajudaram a aproximar homens e mulheres, a questão
de qual alternativa à masculinidade patriarcal ainda precisava ser
respondida.

Claramente os homens precisam de novos modelos de


autoafirmação que não demandem a construção de um “inimigo”,
seja mulher ou o feminino simbólico, para que se definam de novo.
Começando logo cedo na infância, os homens precisam de modelos
de homens íntegros, ou seja, homens inteiros, que não estão
divididos entre si mesmos. Enquanto mulheres individuais que são
mães solo mostraram que podem criar meninos saudáveis e
amáveis que se tornem homens responsáveis e amáveis, em todos
os casos em que esses modelos de parentalidade foram um
sucesso, as mulheres escolheram homens adultos – pais, avós, tios,
amigos e camaradas – para exemplificar para os filhos que tipo de
homem adulto eles deveriam se esforçar para ser.

Sem dúvidas, um dos primeiros atos revolucionários do


feminismo visionário deve ser restaurar a masculinidade em uma
categoria ética biológica apartada do modelo dominador. Por isso o
termo masculinidade patriarcal é tão importante, porque ele
identifica a diferença entre os homens como sendo sempre e
somente sobre os direitos dos homens a dominar, sejam as
mulheres ou qualquer outro grupo considerado mais fraco os
subordinados, usando de qualquer meio necessário. Rejeitar esse
modelo por uma masculinidade feminista significa que devemos
138

definir a masculinidade como o estado de ser ao invés de uma


performance. O ser homem e masculinidade devem representar a
bondade essencial do ser, do corpo humano que tem um pênis.
Muitos dos críticos que escreveram sobre masculinidade sugerem
que devemos abolir o termo, que precisamos “acabar com a
masculinidade”. Mas tal posicionamento acaba por sustentar a ideia
de que há algo de mal, de ruim ou indigno na masculinidade.

É um posicionamento que parece ser mais uma reação à


masculinidade patriarcal do uma resposta criativa que pode separar
a masculinidade de todos os traços que o patriarcado impôs nos
serem que têm um pênis. Nosso trabalho de amor deveria ser
reclamar a masculinidade e não permitir que ela se torne prisioneira
da dominação patriarcal. Há, para a masculinidade, um lugar
criativo, que sustenta e melhora a vida numa cultura de não-
dominação. E aqueles de nós comprometidos a acabar com o
patriarcado podemos tocar os corações de homens reais onde
vivem, não exigindo que desistam da masculinidade, mas pedindo
que eles permitam que seu sentido seja transformado, que eles
sejam desleais com a masculinidade patriarcal para que encontrem
um lugar para o masculino que não seja sinônimo de dominação ou
inclinação à violência.

A cultura patriarcal continua a controlar os corações dos


homens precisamente porque socializa os homens para acreditarem
que sem seus papéis como patriarcas, eles não terão razão de
existir. A cultura de dominação ensina a todos nós que a essência
de nossa identidade é definida pela disposição para dominar e
controlar os outros. Somos ensinados que essa vontade de dominar
é mais biologicamente ligada aos homens do que às mulheres. Na
139

realidade, a cultura de dominação nos ensina que todos somos


nascidos assassinos, mas que os homens são mais hábeis a
encenar o papel do predador. No modelo dominador, a perseguição
ao poder externo, a habilidade de manipular e controlar outros é o
que mais importa. Quando a cultura se baseia no modelo
dominador, não somente ela será violenta, mas irá emoldurar todas
as relações em busca de poder.

Independentemente de quantos videntes atuais nos


garantam que a busca por poder não é um modelo efetivo para as
relações humanas, a cultura patriarcal capitalista de supremacia
branca imperialista continua a insistir que a dominação deve ser o
princípio organizacional da civilização atual. Em The Heart of the
Soul (O cerne da alma), Gary Zukav e Linda Francis deixam claro
que enquanto os humanos têm a necessidade de criar poder
externo para manter a espécie viva, esse não é mais o caso:

“Com ou sem reverência, a busca por poder externo


leva somente à violência e destruição. É uma
modalidade evolutiva que não funciona mais. É o
remédio errado e não há nada que possa fazê-la o
remédio certo”.

A masculinidade patriarcal ensina aos homens que sua


individualidade só tem sentido ao perseguir poder externo; tal
masculinidade é um subtexto do modelo dominador.

Antes da realidade dos homens ser transformada, o


modelo dominador precisa ser eliminado como a ideologia em que
fundamentamos a base de nossa cultura. Já é possível ver que
dentro da cultura patriarcal os homens podem ser mais emocionais,
podem criar filhos, podem quebrar os papéis sexistas, mas
140

enquanto os princípios basilares não mudarem, os homens não


poderão ser realmente livres. A qualquer momento esse etos
patriarcal fundamental pode sobrepor comportamentos que vão
contra ele. Nós já vimos que muitos homens mudaram seu
pensamento por um tempo, quando o movimento feminista era uma
poderosa força de mudança social, mas como o pensamento
patriarcal que acorrenta nossa sociedade não mudou, quando a
energia do movimento começou a abrandar, a antiga ordem voltou
a se estabelecer. O pensamento e ação sexista que haviam sido
duramente criticados no ápice do movimento feminista voltaram a
se tornar mais aceitáveis. Claramente, acabar com o patriarcado é
necessário para que os homens experimentem uma liberação
coletiva. É a única solução para a crise da masculinidade que a
maioria dos homens vêm experienciando.

Para oferecer aos homens um jeito de ser diferente,


primeiro é preciso substituir o modelo dominador com um modelo
de parceria que veja a essência do ser e a interdependência como
uma relação orgânica de todos os seres. No modelo de parceria, a
individualidade, seja a pessoa homem ou mulher, está sempre
conectada no centro de sua identidade. A masculinidade patriarcal
ensina os homens a serem patologicamente narcisistas, infantis e
psicologicamente dependentes para a autodefinição de seus
privilégios (ainda que relativos) que recebem por terem nascido
homens. É por isso que muitos homens sentem que sua própria
existência está ameaçada se esses privilégios forem tirados. Num
modelo de parceria, a identidade masculina, assim como a feminina,
estaria centrada na ideia do bem essencial que é orientado
inerentemente e relacionalmente. Ao invés de assumir que os
141

homens nascem com disposição para a agressividade, a cultura


assumiria que os homens nascem com a disposição inerente de se
conectar.

A masculinidade feminista pressupõe que é suficiente para


os homens apenas existirem para ter valor, que eles não têm que
“fazer”, que “performar”, para ser afirmar e ser amados. Longe de
definir força como “supressão”, a masculinidade feminista define
força como a capacidade de alguém de ser responsável por si e
pelos outros. Essa força é um traço que homens e mulheres
precisam possuir. Em The Courage to Raise Good Men (A coragem
de criar grandes homens), Olga Silverstein reforça a necessidade
de redefinir os papéis de sexo masculino de formas que rompam
com as normas sexistas.

Atualmente, definições sexistas dos papéis masculinos


insistem em definir a masculinidade em relação à vitória,
superioridade, dominação:

“Até que estejamos dispostos a questionar muitas das


especificidades do papel de sexo masculino, incluindo
a maior parte das sete normas e estereótipos que o
psicólogo Robert Levant elenca numa lista de
principais constituintes – ‘evitar feminilidade, restrição
emocional, busca por sucesso e status,
autossuficiência, agressão, homofobia e atitudes não
relacionais acerca da sexualidade’ – nós vamos negar
aos homens sua humanidade completa. A
masculinidade feminista teria como fundamentos
principais integridade, amor-próprio, consciência
emocional, assertividade e habilidade relacional,
142

inclusive a capacidade de ser empático, autônomo e


conectado”.

O cerne da masculinidade feminista é um


comprometimento com a igualdade e mutualidade, cruciais à
essência do ser e à parceria em criar e sustentar vida. Tal
compromisso sempre privilegia atos de não violência contra
violência, paz contra guerra, vida contra morte.

Olga Silverstein diz, corretamente, que “o que o mundo


precisa agora é um tipo de homem diferente” – ela afirma que
precisamos de um homem “bom” – mas essa categoria binária
automaticamente se reveste de um modelo dominador de “ou isso
ou aquilo”. O que o mundo precisa agora é homens libertados que
tenham as qualidades que Silverstein cita, homens que sejam
“empáticos e fortes, autônomos e conectados, responsáveis por si
mesmos, pela família e os amigos, e para com a sociedade, e
capazes de entender como essas responsabilidades são, em última
análise, inseparáveis”. Os homens precisam do pensamento
feminista. Nessa teoria que apoia sua evolução espiritual e seu
distanciamento do modelo patriarcal. O patriarcado está destruindo
o bem-estar dos homens, tirando suas vidas diariamente.

Quando Silverstein participa de workshops focados em


mudar papéis de gênero sexistas, são as mulheres que a
questionam sobre se um homem com as qualidades descritas acima
sobreviveriam. Ela respondem a seus medos apontando as
seguintes verdades:

“Os homens não estão sobrevivendo tão bem!


Nós os mandamos para a guerra para matar e
morrer. Eles se deitam no meio de rodovias para
143

provar sua masculinidade, imitando uma cena de


um filme recente sobre futebol na universidade.
Eles morrem de ataques cardíacos no início da
meia idade, morrem por doenças do fígado e dos
pulmões pela busca da masculinidade através da
bebida e do cigarro, cometendo suicídio em
número pelo menos quatro vezes maior que as
mulheres, se tornam vítimas de homicídio
(geralmente pelas mãos de outros homens) três
vezes mais que as mulheres, e, assim, vivendo
aproximadamente oito anos a menos que as
mulheres”.

E eu adicionaria que muitos homens tentado provar a


masculinidade patriarcal por meio de atos de violência brutal e
desnecessária estão aprisionados por toda vida. Claramente,
muitas mulheres sobrevivem levando vidas felizes e plenas porque
nós não abraçamos uma identidade que nos liga à violência; aos
homens deve ser dada a mesma escolha.

As mulheres não são o único grupo que não consegue


imaginar como seria o mundo se os homens fossem criados em sua
plenitude de ser. Aparentemente, há um medo de que se os homens
forem criados para serem pessoas íntegras, pessoas que podem
amar, eles serão incapazes de ser enérgicos e agir com violência
caso necessário.

Um sábio Masai quando perguntado por Terrence Real


para elencar os traços de um bom guerreiro, respondeu:

“Eu me recuso a te dizer o que faz um bom morani


(guerreiro). Mas eu te digo o que faz um ótimo
144

morani. Quando o momento pede firmeza, um


bom morani é muito feroz. E quando o momento
pede por gentileza, um bom morani é altamente
carinhoso. Agora, o que faz um ótimo morani é
saber qual é o momento de ser cada coisa”.

Vemos que mulheres que são criadas com traços que


qualquer pessoa íntegra possui pode agir com carinho, com
assertividade e com agressividade se e quando necessário.
Homens que são capazes de ser plenos, seres inteiros podem
praticar o discernimento emocional tão lindamente descrito pelo
sábio Masai, precisamente porque são capazes de sentir empatia e
responder a isso ao invés de simplesmente reagir.

A masculinidade patriarcal confina os homens a vários


estágios de reação e exagero. A masculinidade feminista não
reproduz a noção de que a masculinidade tem esse componente
reativo, selvagem, descontrolado; ao contrário, ela dá aos homens
e àqueles de nós que se preocupam com os homens a certeza de
que não precisamos temer que os homens percam o controle. O
poder do patriarcado tem sido fazer a masculinidade ser temida e
fazer os homens sentirem que é melhor serem temidos do que
serem amados. Sejam eles capazes de confessar ou não, os
homens sabem que isso não é verdade.

Esse medo da masculinidade que eles exalam afasta os


homens das mulheres em suas vidas em maior ou menor grau, e os
homens sentem essa perda. No fim das contas, um dos custos
emocionais da aliança ao patriarcado é ser visto como indigno de
confiança. Se mulheres e meninas na cultura patriarcal são
ensinadas a ver os homens, inclusive os homens de quem são
145

íntimas, como estupradores e assassinos em potencial, então não


podemos oferecer-lhes nossa confiança e sem confiança, não há
amor. Quando eu era menina, meu pai era respeitado como o
provedor e protetor patriarcal em nossa família. E ele era temido.
Essa capacidade de inspirar medo era, para ele, sinal da
masculinidade real.

Mesmo que saber que nosso pai cuidava de nós fosse


reconfortante, o momento em que ele libertava a vontade de ser
violento conosco – seus entes queridos – nós o perdíamos. Éramos
deixados só com nossos medos e o entendimento de que não havia
conexão emocional grande o suficiente para apaziguar e
transformar a violência de nosso pai, para mantê-lo conectado.

Quantos homens perderam esses laços de amor por atos


de violência relacional, performando a ideia intrínseca à
masculinidade patriarcal de que todo homem tem que ser um
predador, um caçador faminto e pronto para matar? Silverstein
argumenta que os homens sofrem com a insistência patriarcal de
que eles performem rituais de alienação que levam “os homens a
se afastar das mulheres”. Ela afirma:

“Como qualquer pessoa que trabalha com idosos,


eu te digo, quando octogenários dizem suas
últimas palavras, é ‘Mamãe’ que os homens
chamam, nunca ‘Papai’. Esses homens podem
nem estar realmente chamando por suas mães,
mas pela mãe simbólica que representa nutrição,
cuidado, conexão, cuja presença faz com que
sintamos que não estamos sós”.
146

A masculinidade patriarcal insiste que homens de verdade


devem provar sua masculinidade idealizando a solidão e a
desconexão. A masculinidade feminista diz aos homens que eles se
tornam mais reais agindo de forma a se conectar aos outros, formar
comunidades. Não nenhuma sociedade no mundo feita de um
homem só. Mesmo Thoreau2 em sua cabana solitária escrevia para
sua mãe todos os dias.

Quando John Gray diz aos leitores em Os homens são de


Marte e as mulheres são de Vênus3 que os homens entram em suas
cavernas – ou seja, que os homens se dissociam e se desconectam
– ele está precisamente descrevendo a masculinidade patriarcal.
Mas ele nunca sugere que os homens podem ser plenos vivendo
suas vidas na caverna. No entanto, homens presos ao patriarcado
abraçam a vida de forma mais selvagem onde estão complemente
e sempre sós.

O feminismo como movimento para acabar com a


dominação e opressão sexistas nos oferece a todos um jeito de fugir
da cultura patriarcal. Os homens que estão acordando para essa
verdade em geral são homens mais jovens, que nasceram num
mundo em que a igualdade de gênero é a norma. Diferentemente
de gerações mais velhas de homens, eles não têm que ser
convencidos de que mulheres são iguais a eles. Esses são os
rapazes que frequentam aulas de estudos feministas, que não têm
medo de se identificar como advogados do feminismo. São filhos
feministas de mães feministas.

2
Foi um autor estadunidense, poeta, naturalista, pesquisador, historiador, filósofo e
transcendentalista. Ele é mais conhecido por seu livro Walden, uma reflexão sobre a vida
simples cercada pela natureza, e por seu ensaio A Desobediência Civil.
3
Editora Bicicleta Amarela
147

Por isso mesmo, no seu agradecimento no livro de sua


mãe The Courage to Raise Good Men (A coragem de criar grandes
homens), Michael Silverstein saúda o trabalho da mãe:

“A ideia de que os homens que perderam o


contato com suas mães perderam o contanto com
partes de si mesmos é poderosa – tanto que é
capaz de provocar mudanças. Tenho orgulho de
ter uma mãe corajosa em abrir essas questões
para mim e para si mesma, e para outras mães e
seus filhos”.

Esses homens são o exemplo vivo de que os modos da


masculinidade feminista libertam os homens.

Gerações mais velhas de homens que mudaram do


pensamento sexista para a masculinidade feminista sempre eram
levados pelas mulheres em suas vidas a mudar seus pensamentos
e ações, mas para muitos foi a experiência de igualdade no papel
de criar os filhos que realmente transformou suas consciências e
seus comportamentos. Eu tive muitas conversas com homens que,
ao criar filhas mulheres, de repente se viram enraivecidos com
vieses patriarcais que eles não tinham percebido ou se importado
até que viram o sexismo ameaçar as ações e vidas das suas filhas.
Teóricas feministas argumentaram desde o início do movimento que
os homens, ao participarem diretamente da criação dos filhos, se
transformariam. Eles desenvolveriam habilidades relacionais
frequentemente vistas como inatas nas mulheres. A criação dos
filhos continua sendo um modo de os homens praticarem o amor
enquanto se desfazem do modelo dominador e se envolvem,
mutuamente, com mulheres que criar com eles os filhos que eles
148

têm. A dominação masculina não permite que a intimidade mútua


floresça; ela mantém os pais longe de tocar o coração de seus filhos.

Enquanto os homens dominarem as mulheres, não pode


haver amor entre nós. A mais poderosa mentira do patriarcado é
que amor e dominação podem coexistir. A maioria dos homens e
mulheres continua a acreditar nisso, mas na verdade, o amor
transforma a dominação. Quando os homens fazem o trabalho de
se criarem fora da caixinha do patriarcado, eles criam a consciência
emocional necessária para que aprendam a amar. O feminismo
torna possível que mulheres e homens saibam amar.

O feminismo visionário é uma política sábia e amorosa. É


fundada no amor do ser masculino e feminino, se recusando a
privilegiar um ou outro. A alma da política feminista é o
comprometimento com o fim da dominação patriarcal de mulheres
e homens, meninas e meninos. O amor não pode existir numa
relação baseada em dominação e coerção. Os homens não podem
se amar na cultura patriarcal se sua autodefinição se apoia na
submissão às regras patriarcais. Quando os homens abraçam o
pensamento e prática feministas, que enfatizam o valor do
crescimento mútuo e a autoatualização em todas as relações, seu
bem-estar emocional se eleva. Uma política feminista genuína
sempre nos tira das amarras para a liberdade, do desamor para o
amor.

“Parceria mútua é a fundação do amor. O pensar


e agir feministas criam as condições em que a
mutualidade pode ser nutrida”.

Um verdadeiro camarada e advogado das políticas


feministas, John Stoltenberg consistentemente insiste que os
149

homens desenvolvam uma sensibilidade ética que os levaria amar


mais a justiça que a masculinidade. Em seu trabalho Healing from
Manhood” (Me curando da masculinidade), ele compartilha que
“amar a justiça mais que a masculinidade não só é uma busca que
vale a pena, é o futuro”.

Como Stoltenberg explica,

“Escolher a lealdade à masculinidade em


detrimento da individualidade leva
inevitavelmente à injustiça... amar a justiça mais
que a masculinidade realoca a identidade
pessoal na individualidade – relacionalmente,
reciprocamente, realisticamente”.

Ele, assim como outros homens que advogam o


pensamento feminista, sabe em primeira mão que não é tarefa fácil
para os homens se rebelarem contra o pensamento patriarcal e
aprender a se amar e amar os outros. A masculinidade feminista
oferece aos homens uma maneira de se reconectar com sua
individualidade, descobrindo a bondade essencial da masculinidade
e permitindo que todos, homens e mulheres, encontrem glória em
amar a masculinidade.
150

8 – CULTURA POPULAR: MASCULINIDADE MIDIÁTICA

A mídia de massa continuamente faz o trabalho de


doutrinar meninos e homens, ensinando-os as regras do
pensamento e prática patriarcais. Uma das principais razões para a
demanda feminista de desafiar e mudar o patriarcado ter tido tão
pouco impacto nos homens é que a teoria era principalmente
expressa nos livros. A maioria dos homens não comprava nem lia
livros feministas. Nos momentos em que feministas brancas
lideravam o movimento, no final dos anos 1960 e início dos anos
1970, autores homens contribuíram em livros que lidavam com o
assunto da masculinidade destrutiva, criticando o patriarcado. Livros
como The Male Machine (A máquina masculina), Men’s Liberation
(A libertação dos homens), The Liberated Man (O homem liberto),
The Limits of Masculinity (Os limites da masculinidade), For Men
Against Sexism (Para homens contra o sexismo), Being a Man
(Sendo um homem) e White Hero, Black Beast (Herói branco, fera
negra) desafiaram a aceitação passiva pelos homens dos papéis de
gênero estereotipados.

Esses livros e as discussões que geraram não tiveram nem


de perto o impacto na consciência masculina que os livros
feministas focados na feminilidade tiveram na consciência feminina.
Em sua maioria, esses autores brancos não se esforçaram para
reconceitualizar a masculinidade; em vez disso, eles encorajaram
os homens a aprender comportamentos antes associados às
mulheres. Eles todos concordavam que as mudanças econômicas,
juntamente com mudanças no status das mulheres tinha produzido
uma crise na masculinidade.
151

Com o avanço da sociedade capitalista moderna, o poder


masculino era tradicionalmente visto como sinônimo da habilidade
dos homens de prover financeiramente. Conforme mais e mais
mulheres ganharam acesso à esfera do trabalho, no entanto, a
esfera de provisão, esse atributo central definidor da masculinidade
patriarcal, tinha perdido sua importância.

A igualdade de gênero na força de trabalho libertou muitos


homens para falarem a verdade de que eles não estavam
exatamente interessados no papel de provedores. Muitos homens
estavam felizes com a ideia de que o feminismo estava ensinando
as mulheres que elas deviam fazer seu próprio caminho.
Concomitantemente, enquanto o movimento feminista e a chamada
revolução sexual mudaram a noção de que o ato sexual e a iniciação
sexual era exclusivamente um lugar masculino, outro significante da
masculinidade patriarcal perdeu significado. Mudanças na força de
trabalho motivadas em gênero e em políticas sexuais significavam
que os papéis de sexo foram modificados para a vasta maioria das
pessoas, especialmente as mulheres, ainda que as noções
patriarcais de masculinidade permanecessem intactas, mesmo
quando elas não tinham base na realidade. Daí porque a crise na
masculinidade. A ordem social patriarcal tradicionalmente
institucionalizada estava sofrendo mudanças mesmo que não
houvesse mudanças significativas no pensamento sexista.

Homens passando por essa crise podiam se agarrar nas


suposições fundamentais da ideologia patriarcal em busca de
segurança ou podiam se aliar aos esforços e lutas feministas para
criar novos conceitos de masculinidade, novas possibilidades para
a formação social da identidade masculina. Os homens que
152

escolheram a mudança, que se atreveram a se aliar ao movimento


feminista geralmente eram gays ou bissexuais ou que estavam em
relações heterossexuais com mulheres feministas radicais. Muitas
mulheres nessas relações perceberam que os homens em suas
vidas perderam o interesse em transformar a masculinidade depois
que o fervor inicial do feminismo se abrandou.

A mídia de massa convencional, particularmente filmes e


televisão, refletiram essas contradições, mesmo que continuassem
a reforçar o pensamento e ação patriarcais. A maioria dos homens
escolheu não mudar e a mídia de massa conservadora apoiou sua
inércia. A aliança contínua dos homens a uma ideia de
masculinidade que não podia mais se realizar nos termos antigos
os levou a enfatizar sua capacidade de dominar e controlar pela
força física e terrorismo e abuso psicológico.

Forçados a trabalhar num campo em que homens não


mais exerciam controle patriarcal (supervisoras e chefes do alto
escalão podem ser mulheres), esses homens só podiam performar
rituais de dominação patriarcal na esfera privada. Como
consequência, apesar das mudanças feministas na área de
trabalho, a incidência de violência masculina contra mulheres e
crianças estava escalando. A mídia de massa, principalmente os
programas de auditório, focava na violência masculina sem fazer
uma conexão disso com o fim do patriarcado.

A dominação masculina de mulheres simplesmente se


tornou uma nova forma de entretenimento de massa (vide o rentável
espetáculo do julgamento do caso O. J. Simpson). Nas relações
sociais com outros homens fora da esfera do trabalho, os homens
153

eram mais pressionados do que nunca a performar rituais de


dominação.

Entre homens negros, assassinatos de negros por negros


rapidamente se tornaram a maior causa de mortes de homens em
idades entre dezesseis e quarenta e cinco anos.

No mundo da televisão, programas dirigidos a crianças


nunca deixaram de espalhar o mito sexista. Um dos programas
infantis mais populares com um subtexto sobre masculinidade era
O Incrível Hulk. Um favorito dos meninos de várias classes e origens
raciais, esse programa instrumentalizava o ensino da ideia do que
era ser homem, o emprego da força física (brutal e monstruosa) era
uma resposta viável a todas as situações de crise. Quando um
sociólogo perguntou a jovens espectadores o que eles fariam se
tivessem o poder do Hulk, eles disseram que iam esmagar suas
mamães. O Hulk foi o precursor dos brinquedos dos Power
Rangers, que ainda são populares, juntamente com os mais
recentes vídeo games, que permitem aos garotos se engajar na
brincadeira violenta ritualizada.

O herói de O Incrível Hulk, como muitos heróis da televisão


e do cinema que surgiram depois dele, é o candidato perfeito para
ser incluído no livro de Barbara Ehrenreich The Heart of Men:
American Dream and the Flight from Commitment (O coração dos
homens: o sonho americano e o distanciamento do compromisso).
Ele é o homem que está sempre correndo, incapaz de desenvolver
laços duradouros ou intimidade. Um cientista praticante (a
personificação do homem racional), quando experimenta raiva, ele
se torna uma criatura de cor e pratica atos de violência. Depois de
ser violento, ele muda de volta para seu eu masculino branco normal
154

e racional. Ele não tem memória de seus atos e, portanto, não pode
assumir responsabilidade por eles. Por ser (como o herói do popular
drama adulto The Fugitive) incapaz de formar vínculos emocionais
fortes com amigos ou familiares, ele não consegue amar. Ele
prospera na desconexão e dissociação. Tal como os homens da
geração Beat4, como os homens da recente geração X, ele é o
símbolo máximo do homem patriarcal – sozinho, na estrada, sempre
vagando, levado pela besta que habita seu interior.

O Incrível Hulk juntou sexismo e racismo. O cientista


branco descolado, equilibrado e racional que se torna uma fera de
cor quando provocado. Atormentado ao saber de sua
transformação, ele procura por uma cura, um jeito de se dissociar
da besta interior. Ao escrever sobre a conexão entre racismo e a
construção da masculinidade em White Hero, Black Beast (Herói
Branco, Fera Negra), Paul Hoch argumenta:

“Há, de fato, uma interação muito próxima entre a


concepção de masculinidade do ocidente e da
dominação racial (e de espécies). A ideia,
originalmente vinda de mitos e fábulas, é o pico
da masculinidade – o herói branco – alcança sua
masculinidade, primeiramente saindo vitorioso do
embate contra a ‘besta fera’ ou a fera bárbara de
outras – de alguma forma, ‘mais escuras’ – raças,
nações e castas sociais”.

4
Um movimento de jovens dos anos 1950 que rejeitavam a sociedade convencional e eram adeptos
do Zen Budismo, jazz moderno, sexualidade livre e drogas recreativas. Entre autores associados a esse
movimento estão Jack Kerouac e Allen Ginsberg.
155

Filmes recentes como MIB: Homens de Preto,


Independence Day e Matrix se apoiam em narrativas racializadas
do preto versus branco para valorizar a masculinidade branca
patriarcal no reino da fantasia. Na vida real, políticas imperialistas
de supremacia branca do nosso governo levam a rituais de violenta
dominação branca masculina de um universo mais escuro, como na
Guerra do Golfo e na mais recente guerra contra o Iraque. Fazendo
parecer que a masculinidade ameaçadora – o estuprador, o
terrorista, o assassino – é um outro mais escuro, homens patriarcais
brancos podem desviar a atenção de sua própria misoginia e
violência contra mulheres e crianças.

A popularização do “gangsta rap”, liderada por executivos


brancos da indústria musical, deu uma voz pública ao patriarcado e
ao ódio às mulheres. No entanto, ao promover as vozes de jovens
homens negros (no início, muitos que vinham das classes mais
baixas), os homens brancos da classe dominante podiam, ao
mesmo tempo, explorar a vontade de seus clientes pelas armadilhas
da masculinidade patriarcal (dinheiro, poder, sexo) e fazer com que
passassem a mensagem antifeminista que os jovens homens
brancos aprenderiam.

Assim como os brancos conservadores que controlam


nosso governo usam homens negros individuais – por exemplo,
Colin Powell5 – para pregar a palavra da guerra ao público
americano (afirmando a ideia de que outros mais perigosos são a
ameaça que o herói branco precisa aniquilar), a demonização dos
homens negros pela mídia de massa como o epítome da brutal

5
Político, diplomata e general de quatro estrelas americano que serviu como Secretário
de Estado dos Estados Unidos de 2001 a 2005, sendo o primeiro afro-americano a
ocupar este cargo.
156

masculinidade patriarcal desvia a atenção da masculinidade


patriarcal dos homens brancos e seu ódio concomitante às
mulheres.

Uma das formas que homens brancos patriarcais usaram


a mídia de massa para encampar sua guerra contra o feminismo foi
consistentemente retratar o homem que sente ódio por mulheres
como uma aberração, alguém anormal.

Um exemplo perfeito da extensão a que os homens


brancos patriarcais chegam para negar sua violência patriarcal é
mostrada no documentário sobre o caso Hillside Strangler6. Os
espectadores assistem a psiquiatras conversando com um
assassino serial branco que matou mulheres adultas e duas
meninas. É um conto em partes, cada uma delas altamente
dramática e cheia de suspense. Os espectadores ficam sabendo
que o acusado é o típico garoto branco boa pinta (uso a palavra
“garoto” porque os comentaristas se referem diversas vezes a suas
qualidades infantis) com uma esposa loira e adorável e um filho
bebê. Nos contam que ele não tem a aparência de um vilão, de um
assassino. Nos contam que ele é um trabalhador dedicado, de quem
todos gostam etc. Todas essas qualidades fizeram com que os
detetives e a polícia (todos brancos e homens) ficassem relutantes
em prendê-lo. Ele lhes pareciam um “suspeito improvável”.

Mesmo depois de sua prisão, profissionais de saúde


mental homens e brancos foram trazidos ao caso para documentar
que, se esse homem americano branco padrão realmente cometeu
esses crimes violentos contra mulheres, ele o fez porque era louco.

6
Filmes The Case of the Hillside Stranglers (1989) e O Estrangulador (2004)
157

Por fim, um médico perspicaz descobre que o acusado


fingia ser louco para escapar da punição. Parece que ele tinha
estudado psicologia antes de cometer seus crimes, então ele
saberia como parecer louco. Quando o médico finalmente o
“desmascara”, o Estrangulador de Hillside afirma: “Uma mulher não
é nada para mim. Posso matá-la num minuto”.

Conforme o julgamento vai chegando ao final e o juiz


homem e branco lê seus comentários finais sobre o caso, ele diz
aos espectadores que o Estrangulador de Hillside era um misógino,
um homem que odiava mulheres. Ainda assim, o juiz não conecta
sua misoginia ao patriarcado ou ao sexismo ou à dominação
masculina. Ao contrário, nos dizem que a mãe daquele homem o
espancava para expressar sua raiva por ter um marido violento e
viciado em jogos de azar.

Na análise final, uma mulher é culpada por ter um homem


violento com mulheres – mais um caso de “Ela me fez fazer isso”.
Nada é dito sobre a sua bem pensada estratégia de dissimulação
ou da forma que ele matou muitas mulheres e outras pessoas se
passando por um cara legal, personificando o patriarca benevolente.

A partir do movimento feminista contemporâneo, o gênero


de mistério explorou as questões feministas como violência
doméstica, abuso sexual e incesto para criar vilões masculinos
misóginos. Romances desde Jagged Edge até os mais recentes,
como The Analysand exploram temas feministas ao mesmo tempo
em que se sustentam na necessidade de violência patriarcal.

No mundo real, onde mais de 90% dos crimes violentos


são cometidos por homens, não surpreende que a cultura popular
ofereça modelos negativos e positivos de masculinidade. Homens
158

dominadores que odeiam as mulheres são consistentemente


mostrados como solitários, que podem ter sido abusados na infância
e que não foram capazes de se ajustar normalmente na sociedade.
Ironicamente, esses homens “maus” compartilham das mesmas
características que os homens “bons” que os perseguem e matam.
Em ambos os casos, esses homens dissimulam (assumem várias
aparências e disfarces para manipular a percepção alheia de sua
identidade) e lhes falta habilidade de se conectar emocionalmente
com outras pessoas.

Em filmes contemporâneos como Gênio Indomável, o


homem sensível é mostrado como alguém que tem um traço
violento latente. No filme, Will é um jovem adulto da classe
trabalhadora que tem a oportunidade de se tornar um homem
saudável se conseguir confrontar sua infância traumática e aprender
a sentir de novo. Ele é o retrato cinematográfico do homem na
cultura patriarcal tentando reclamar conexões. Terrence Real
escreve sobre o filme:

“Como Will Hunting nos mostra, um homem não


pode se conectar com outros e continuar sem se
conectar com o próprio coração. Intimidade gera
muitos sentimentos em seu estado mais puro.
Disputar com esses sentimentos é um trabalho
essencial para se manter próximo de outras
pessoas. Ainda assim, o estoicismo da
desconexão e a estratégia de evitar os
sentimentos alheios é precisamente o valor que é
ensinado aos garotos... Empatia consigo e com o
outro fica num reino que restou desvalorizado e
159

inexplorado – o reino das mulheres... A raiz do


sofrimento de Will e, também, da vontade de fugir
dele, inflingindo-o aos que mais ama, são o
coração do patriarcado – o código masculino ao
qual os meninos são induzidos”.

Esse código patriarcal é passado de geração em geração.


O filme ganhador de prêmios A última ceia mostra três gerações de
homens brancos: o patriarca dominador, que é vítima de uma vida
difícil, do vício em bebida e cigarro, seu filho patriarcal obediente
que trabalha como diretor de prisão e a terceira geração, o neto, que
está seguindo os passos de seus parentes mais velhos.

Para se darem conta do ideal patriarcal de masculinidade,


esses homens brancos devem aprender a se desconectar de seus
sentimentos. O patriarca dominador trata seu filho com abuso
verbal, dizendo a ele que “Sua mãe não era merda nenhuma”.
Envergonhar é a sua forma de manter o controle. Racista e
misógino, ele é cegamente seguido por seu filho até que seu neto,
tido como fraco por ser antirracista e capaz de ter sentimentos,
confronta o pai. O garoto pergunta por que o pai não o ama e então
dá um tiro na própria boca. Seu suicídio põe fim ao ciclo patriarcal e
leva à transformação de seu pai, que busca redenção entre pessoas
negras, até então odiadas. Nenhum filme atual expõe mais a
maldade do patriarcado tão magistralmente como A última ceia. O
caminho para a redenção requer que se repudie a regra do homem
branco patriarcal. Mesmo assim, como muitos dos filmes que
mostram homens resistindo ao patriarcado, no fim a mudança é
meramente de um patriarca dominador violento para um patriarca
requintado.
160

Livros e filmes contemporâneos oferecem claras


representações das maldades do patriarcado sem oferecer uma
direção para a mudança. Em última análise, eles passam a
mensagem de que a sobrevivência masculina exige a manutenção
de algum vestígio de patriarcado. Em A última ceia, o homem que é
realmente diferente, que é humanista, sentimental, antirracista e
que deseja se afastar da objetificação da pornografia patriarcal para
se aproximar da intimidade real é a vítima. Ele se mata. Ao assistir
esse filme, nenhum homem se inspirará a realmente desafiar o
sistema. Em outro filme, A Estranha Família de Igby, o pai, que está
em contato com seus sentimentos, é esquizofrênico. Quando ele
compartilha seu sentimento de ser incapaz de aguentar o peso da
responsabilidade patriarcal com o filho, Igby não consegue se
conectar emocionalmente. Levado pelo ódio que tem da mãe, Igby
abraça a crueldade do mundo ao seu redor e só escapa de ser
violento ao escolher ser um fugitivo, um homem que corre em busca
de um “eu” que não consegue encontrar. A grande maioria dos
filmes contemporâneos passam a mensagem de que homens não
podem fugir da besta interior. Eles podem fingir. Eles podem
dissimular, mas eles nunca podem se ver livres das garras do
patriarcado em suas consciências.

Até que possamos criar uma cultura popular que afirme e


celebre a masculinidade sem se agarrar ao patriarcado, nunca
veremos uma mudança no sentido de que massas de homens
pensem na natureza de sua identidade. Em Gênio Indomável,
quando confrontado com a possibilidade de conhecer o amor, Will
deve fazer uma escolha. Ele deve se libertar de seus sentimentos
de inadequação e vergonha causados por seu passado traumático;
161

ele deve escolher a vida sobre a morte. Sua escolha de amar, de


viver, é o rompimento com o modelo patriarcal que liberta seu
espírito. Como espectadores, celebramos sua nova capacidade de
perceber sua bondade essencial, sua redenção. Sua recuperação
nos dá esperança.

A mídia de massa é um veículo poderoso para ensinar a


arte do possível. Homens iluminados devem transformá-la num
espaço para ecoar sua voz pública e criar uma cultura popular
progressiva que ensine aos homens como se conectar com outras
pessoas, como se comunicar, como amar.
162

9 – CURANDO O ESPÍRITO MASCULINO

Os homens não podem falar de suas dores na cultura


patriarcal. Os garotos aprendem isso desde a tenra infância. Como
uma garota, eu admirava um homem da minha igreja, um diácono
que se postava em frente à congregação e falava de seu amor pelo
espírito divino. Frequentemente no meio de seu testemunho ele
começava a lacrimejar, soluçando num lenço branco enorme.

Essas meninas e meninos que presenciavam suas


lágrimas se sentiam envergonhados por ele, porque a seus olhos
ele se mostrava fraco. Quando ele chorava, os homens que ficavam
a seu lado se viravam para longe. Eles sentiam vergonha de ver um
homem expressar sentimentos tão intensos.

Eu me lembro desse homem de sentimentos maravilhoso


na autobiografia da minha infância, Olhares Negros – Raça e
representação7:

“Para sua mente de criança, homens mais velhos


eram os únicos que tinham sentimentos. Eles não
cheiravam a álcool e colônia doce. Eles
cheiravam a borboletas, com movimentos leves e
belos, ficando parados por um momento... Eles
eram homens de pele morena com rostos sérios
que eram os diáconos da igreja, o braço direito de
deus. Eles eram os homens que choravam ao
sentir seu amor, que ficavam com os olhos cheios
de lágrimas quando o pastor falava dos servos
bons e fiéis. Eles puxavam lenços amassados de

7
Editora Elefante
163

seus bolsos e deixavam as lágrimas cair, como


se estivessem enchendo um copo de leite. Ela
queria beber daquelas lágrimas que, como o leite,
poderiam nutri-la e ajudá-la a crescer”.

Para contradizer as representações patriarcais de homens


como seres que não têm sentimentos, nos livros que escrevo, para
adultos e crianças, me atrevi a criar imagens de homens que
demonstram sua beleza e integridade de espírito.

Ainda que raramente usemos a palavra patriarcado, todos


sabem como a masculinidade sexista atacou os espíritos dos
homens. Apesar de errar ao culpar as mulheres pela mortandade
emocional dos sentimentos masculinos, o poeta Robert Bly chamou
a atenção dos homens para achar o Homem Selvagem interno,
esperando que eles poderiam, dentro de um espaço seguro, deixar
seus corações falar, que iriam uivar e chorar e dançar e jogar e
encontrar o espírito interior de novo.

Claro que os homens que participaram das oficinas


conduzidas por Bly se deixavam levar por um tempo e depois
voltavam ao seu mundo patriarcal, deixando o espírito selvagem
para trás. Qualquer leitor de João de Ferro: Um Livro Sobre Homens
pode ouvir a culpa da mãe em suas palavras. E Bly está correto ao
exigir que todos olhemos para o papel da mãe em matar o espírito
dos garotos, mas ele falha em não reconhecer que essas mães, em
atos de sadismo maternal, estão fazendo o trabalho do cuidado
patriarcal, fazendo o que elas são ensinadas que as mães devem
fazer.

É bastante irônico que vivamos num tempo em que todos


somos levados a questionar se as mães podem criar filhos quando
164

tantos homens patriarcais têm sido ensinados crenças e valores


patriarcais por suas mães, em primeira mão. Muitas mães na cultura
patriarcal expressam sua ira com homens adultos direcionando-a a
seus filhos. Em The Power of Partnership (O poder da parceria),
Riane Eisler explica:

“Algumas mulheres direcionam sua raiva


suprimida contra homens que elas consideram
fracos e vulneráveis – seus filhos, por exemplo. O
psicólogo David Winter descobriu que mulheres
que vivem em países ou períodos de extrema
dominância masculina tendem a ser muito
controladoras com seus filhos, que são os únicos
homens contra quem é seguro se revoltar.
Mulheres nessas circunstâncias são, com
frequência, sutilmente – ou não tão sutilmente –
abusivas com seus filhos”.

Muitas mães na cultura patriarcal silenciam os espíritos


selvagens de seus filhos, o espírito da admiração e da doçura
brincalhona, temendo que seus filhos sejam fracos, que não estejam
preparados para ser os “macho men”, homens de verdade, homens
que outros homens invejem e em quem se espelhem.

Muito da raiva que os homens dirigem às mães é uma


resposta à falha maternal de proteger o espírito do garoto da ferida
patriarcal. Numa das sessões de terapia familiar sobre as quais
Terrence Real escreve em How Can I Get Through to You? (Como
posso chegar a você?), um filho descreve o momento em que a
cultura patriarcal se intromete na conexão emocional que ele tem
165

com sua mãe, e a permissão dela para que isso aconteça. O filho
relembra:

“Ela me dizia: Me deixe ir, querido. Só me deixe


ir. Sabemos que seu pai é um bruto. Nós vivemos
juntos num mundo de sentimentos refinados que
ele nunca entenderá. Mas sabe, querido, eu não
posso fazer nada, não é mesmo? O que eu
deveria fazer?”.

Todos os dias, mães agem com dureza e brutalidade para


acabar com a conexão emocional com meninos para entregá-los ao
patriarcado, seja a um pai real sem sentimentos ou um pai
simbólico. Meninos sentem a dor. E não tem o que fazer com ela;
eles a carregam consigo. Eles a levam para um lugar em que a
convertem em ira.

Ao aprender a dissimular, os homens aprendem a encobrir


sua raiva, seu senso de impotência. Quando os homens aprendem
a criar um falso “eu” como forma de manter a dominação masculina,
eles não têm uma base sólida para fundamentar sua autoestima.

Usar sempre uma máscara como forma de marcar a


presença masculina é sempre viver a mentira, perpetuamente
apartados de um autêntico senso de identidade e bem-estar. Esse
fingimento leva os homens a experimentar intensa dor emocional.
Rituais de dominação ajudam a diminuir a dor. Eles dão um senso
ilusório de “eu”, uma identidade.

O poeta e fazendeiro Wendell Berry em The Unsettling of


America: Culture and Agriculture (A inquietação da América: Cultura
e Agricultura) sugere que “se removermos o status e a
166

compensação da exploração destrutiva que chamamos de


‘masculina’, os homens seriam vistos como pessoas que sofrem
tanto quanto as mulheres. Eles seriam vistos sofrendo pelas
mesmas razões: eles estão exilados da comunhão de homem e
mulher, que é a conexão mais profunda na comunhão de todas as
criaturas”.

Muitos homens em nossa sociedade não tem status ou


privilégios; eles não recebem nenhuma compensação, nenhuma
vantagem no patriarcado capitalista. Para esses homens, a
dominação de mulheres e crianças pode ser a única oportunidade
de ter uma presença patriarcal. Esses homens sofrem. Sua angústia
e desespero não encontra limites ou fronteiras. Eles sofrem em uma
sociedade que não quer que os homens mudem, que não quer que
os homens reconstruam a masculinidade para que a base social da
formação da identidade masculina não esteja enraizada numa ética
de dominação. Ao invés de reconhecer a intensidade de seu
sofrimento, eles dissimulam. Fingem. Agem como se tivessem
poder e privilégio quando se sentem impotentes. A incapacidade de
reconhecer a profundidade da dor masculina torna difícil para os
homens desafiar e mudar a masculinidade patriarcal.

Conexões perdidas com mães e pais, traumas da


negligência emocional e abandono que muitos homens
experimentaram e não puderam nomear danificaram e machucaram
os espíritos dos homens. Muitos homens são incapazes de falar de
seu sofrimento. Como as mulheres, os que mais sofrem se agarram
aos que lhes infligem sofrimento, se recusando a resistir ao sexismo
ou opressão sexista. Sua recusa está baseada no medo de que sua
fraqueza seja exposta.
167

Eles temem reconhecer a profundidade de sua dor.


Conforme sua dor se intensifica, assim também se intensifica a
necessidade de ser violento, de coercitivamente dominar e abusar
de outros. Barbara Deming explica:

“Eu acho que o motivo de os homens serem tão


violentos é que eles sabem, no âmago de seu ser,
que estão performando uma mentira, e então
ficam furiosos. Não é possível ser feliz vivendo
uma mentira, por isso ficam furiosos de serem
pegos na mentira. Mas eles não sabem como sair
disso, então eles acabam entrando nisso ainda
mais fundo”.

Para muitos homens o momento da conexão violenta pode


ser a única intimidade, a única proximidade aceitável, o único
espaço em que a agonia pode ser liberada. Quando mulheres
feministas insistem que todos os homens são opressores poderosos
que vitimizam a partir de um lugar de poder, elas obscurecem a
realidade de que muitos homens vitimizam de um lugar de
vitimização. A violência que infligem a outros é, geralmente, um
espelho da violência sofrida por eles e com eles. Muitas feministas
radicais ficaram tão iradas com a dominação masculina que elas
não conseguiram aceitar a possibilidade do sofrimento masculino e
não conseguiram perdoar. Falhar ao examinar a vitimização dos
homens não permite que nós entendamos a masculinidade, que
descubramos o espaço de conexão que pode levar mais homens a
buscar a transformação feminista.

Incitando mulheres a vencer o medo da raiva masculina,


Barbara Deming escreve que homens estão “raivosos porque eles
168

encenam uma mentira – o que significa que em alguma parte


profunda de seus seres eles querem se ver livres disso, eles estão
ávidos pela verdade”. Ela explica que “a fúria deles nos dá motivo
para temer, mas também nos dá motivo para ter esperança”.

Tem sido terrivelmente difícil para os advogados do


feminismo criar novas formas de pensar a masculinidade, novos
paradigmas feministas para a reconstrução da masculinidade.
Apesar dos sucessos do movimento feminista, a socialização dos
meninos – a moldagem da identidade masculina patriarcal – não foi
radicalmente alterada. Trabalhos feministas, sejam de ficção ou
teoria, raramente são focados na mudança masculina. Eu sempre
fico perturbada quando estudantes homens pedem referências de
literatura que serviriam como guia quando eles lutam para interrogar
o patriarcado e criar identidades progressivas, porque há tão pouca
literatura para oferecer a eles. Em contraponto, posso oferecer
incontáveis referências para estudantes mulheres que me dizem
que estão tentando entender criticamente e mudar os papéis
feministas sexistas. Precisa haver mais trabalhos feministas que
sejam especificamente direcionados aos homens. Eles precisam de
pegadas feministas para encontrar a mudança.

Num curso de teoria feminista eu pedi aos alunos que


comentassem sobre um livro, filme, programa de televisão, ou
qualquer experiência pessoal que lhes oferecesse exemplos de
masculinidade reconstruída, feminista. Numa sala com mais de
quarenta alunos, houve poucas respostas positivas. Vários alunos
falaram do antigo filme de John Sayles O irmão que veio de outro
169

planeta (1984) e seu filme mais recente, A terra do sol (2002). Eu


chamei atenção para o romance de Alice Walker, A cor púrpura8.

Frequentemente quando esse romance é discutido, a


transformação de Celie de objeto em sujeito recebe atenção, mas
ninguém fala sobre o fato de que a história também retrata a
transformação de Mister, seu movimento de distanciamento da
masculinidade patriarcal e aproximação de alguém carinhoso e que
é capaz de participar da comunidade.

Na ficção feminista surgem papéis masculinos


radicalmente novos. Enquanto fantasia, A cor púrpura dá uma visão
utópica do processo pelo qual os homens que abraçam uma
masculinidade sexista destrutiva mudam. Em A cor púrpura, Walker
retrata as técnicas da dominação patriarcal usadas por homens para
manter o poder dentro da esfera doméstica, escrevendo cenas
gráficas de abuso e terrorismo, mas ela também retrata o processo
pelo qual o homem dominante adquire uma nova consciência e
novas formas de ser. Sua visão utópica da transformação masculina
não coloca toda a responsabilidade da mudança sobre os homens.

Celie também precisa mudar suas atitudes para com os


homens. Ela precisa não só afirmar a transformação de Albert, ela
precisa entendê-lo e perdoá-lo. Sua aceitação permite que ele se
junte à comunidade novamente, abrace a visão da parceria mútua.
No fim do livro, Celie diz sobre Albert:

“Depois de todo o mal que ele fez, eu sei que você


se pergunta por que eu não o odeio. Eu não o
odeio por dois motivos. Um, ele ama Shug. E

8
Editora José Olympio
170

dois, Shug o amava. E mais, parece que ele está


tentando fazer algo sobre si mesmo. Não digo
isso só porque ele trabalha e limpa as coisas que
suja e aprecia algumas das coisas que Deus foi
divertido o suficiente para fazer. Digo que quando
você fala com ele, ele agora realmente ouve, e
uma vez, do nada no meio de uma conversa que
estávamos tendo, ele disse ‘Celie, estou satisfeito
que seja a primeira vez que eu vivo nessa terra
como um homem natural. É uma experiência
nova’”.

Para mudar, Albert deve entender a razão de ter abusado


de mulheres. Ele aloca a vontade de abusar no trauma de seu
crescimento, quando foi coagido a escolher contra si mesmo para
ser doutrinado no patriarcado. Desumanizando-se, foi fácil para ele
justificar desumanizar outros. Quase no fim do livro, Albert se torna
um pensador contemplativo que busca entender o motivo da
existência humana. Ele diz:

“Acho que estamos aqui para nos questionar, a


mim mesmo. Se questionar. Se surpreender. E
assim, se maravilhando com as coisas grandes e
se perguntando sobre as coisas grandes, você
aprende sobre as coisas pequenas, quase que
por acidente. Mas você nunca sabe mais sobre
as coisas grandes do que você sabia quando
começou. Quanto mais me questiono, ele diz,
mais eu amo”.

Como patriarca, Albert era incapaz de amar.


171

Diferente do personagem fictício Albert, de Walker, a


maioria dos homens não é levado a mudar pelas circunstâncias que
estão além do seu controle. A maioria dos homens que estão
sofrendo uma crise de masculinidade não sabem por onde começar
a procurar por mudança. No filme Voltando a viver (que é baseado
numa história real), o rapaz negro problemático expressa sua crise
dizendo “Eu não sei o que fazer”. Um futuro feminista para os
homens pode tornar possível a transformação e a cura. Como
advogados do feminismo que buscam acabar com o sexismo e a
opressão sexista, precisamos estar dispostos a ouvir os homens
falarem de suas dores. Só quando nós corajosamente encararmos
a dor masculina sem olhar pra longe, poderemos mostrar aos
homens a consciência emocional necessária para a cura.

Para se curar, os homens precisam aprender a sentir de


novo. Eles precisam aprender a quebrar o silêncio, a falar da dor.
Com frequência, os homens se voltam para as mulheres em suas
vidas para falar de suas dores, e não encontram ouvidos abertos
para elas. De muitas formas as mulheres compraram a mística
masculina patriarcal. Ao serem convocadas a ouvir um homem
expressar seus sentimentos, a ouvir sobre aqueles sentimentos e a
responder, elas simplesmente dão as costas. Houve um tempo em
que eu dizia para os homens em minha vida para falar de seus
sentimentos. E quando eles começavam a falar, eu os interrompia
ou os silenciava, chorando, mandando uma mensagem de que seus
sentimentos eram pesados demais para qualquer um aguentar,
então era melhor que eles os guardassem para si. Assim como o
desenho animado Sylvia, o qual eu já mencionei, nos lembra, as
mulheres têm medo de ouvir os homens expressarem sentimentos.
172

Eu não queria ouvir sobre a dor do meu companheiro, porque isso


requeria que eu renunciasse ao meu ideal patriarcal de homem
como protetor dos feridos. Se ele estava ferido, como poderia me
proteger?

Com a maturidade e com o desenvolvimento da minha


consciência feminista, que passou a incluir o abuso patriarcal aos
homens, pude ouvir a dor dos homens. Pude ver os homens como
camaradas e parceiros na jornada da vida e não como seres
existentes apenas para oferecer suporte material. Como os homens
ainda precisam organizar um movimento feminista masculino que
proclamaria os direitos dos homens à consciência emocional e
expressão, não sabemos quantos homens realmente tentaram
expressar seus sentimentos só para ver as mulheres em suas vidas
lhes virarem as costas ou se mostrarem indiferentes. Conversando
com homens, me surpreendi quando homens individuais
confessavam que compartilhavam sentimentos intensos com
colegas homens, apenas para que o colega o interrompesse e
silenciasse, sem oferecer resposta ou se distanciar. Homens de
todas as idades que querem falar sobre seus sentimentos com
frequência aprendem a não procurar outros homens. E se eles são
heterossexuais, são ainda mais suscetíveis de buscar mulheres de
quem tenham sido sexualmente íntimos. Mulheres que falam sobre
o fato de que conversas íntimas com homens geralmente
acontecem em breves momentos antes e depois do sexo. E, claro,
nossa mídia de massa fornece, repetidamente, a imagem do
homem que procura uma profissional do sexo para compartilhar
seus sentimentos porque não há intimidade nessa relação, portanto
não há risco emocional.
173

Ser “vulnerável” é um estado emocional que muitos


homens procuram evitar. Muitos homens passam a vida num estado
de evasão e, assim, nunca experimentam intimidade. Tristemente,
todos nós nos aliamos ao patriarcado quando aceitamos o
fingimento com os homens, fingindo níveis de intimidade e
proximidade que não sentimos. Nós dizemos aos homens que os
amamos quando, na verdade, não temos a menor ideia de quem
eles realmente são. Nós dizemos aos nossos pais que os amamos
quando estamos aterrorizados de compartilhar nossa percepção
sobre eles, nosso medo de que, se discordarmos, seremos
deixados de lado, excomungados. Nesse sentido, todos
comungamos com a cultura patriarcal para fazer os homens
sentirem que podem ter tudo, que podem abraçar a masculinidade
patriarcal e ainda estar próximos de seus amados. Na verdade,
quanto mais patriarcal um homem é, mais desconectado ele deve
ser dos sentimentos. Se ele não consegue sentir, ele não consegue
se conectar. Se não consegue se conectar, ele não consegue ser
íntimo.

Terrence Real sugere, significativamente, que a maioria


dos homens não sabem o que é intimidade, que o “mundo liga-
desliga da masculinidade deixa pouco espaço para carinho... ou
você controla ou é controlado, dominador ou dominado”. Ele
compartilha a poderosa contribuição de que “quando falam que
temem intimidade, o que realmente querem dizer é que temem ser
subjugados”. Esse medo da subjugação é geralmente causado pela
realidade de que meninos criados por mulheres patriarcais são
controlados por sua necessidade de proximidade maternal. No
174

sadismo maternal, a mulher manipuladora explora a vulnerabilidade


emocional do menino para atá-lo à sua vontade, para subjugá-lo.

Essa experiência logo cedo na vida é a razão principal de


muitos homens temerem ser íntimos de mulheres adultas. E isso
pode explicar por que tantos homens na cultura patriarcal buscam
intimidade com garotas ou mulheres jovens o suficiente para ser
suas filhas.

Há pouca discussão feminista sobre sadismo maternal em


relação aos meninos porque tem sido difícil para pensadoras
feministas encontrar uma linguagem para nomear o poder que as
mães exercem sobre os filhos na cultura patriarcal, quando no
contexto social geral as mulheres são tão impotentes. Pode ser que
essa impotência em relação a homens adultos no patriarcado, no
entanto, leve tantas mulheres a exercer poder emocional sobre os
garotos de forma destrutiva. Por essa razão, famílias lideradas por
mães solo disfuncionais e com abundante sadismo maternal sejam
tão prejudiciais para criar garotos como famílias disfuncionais de
dois pais, em que o sadismo maternal é a norma. Nas famílias com
dois pais, os meninos podem ter, com sorte, um homem adulto que
intervenha contra o sadismo maternal, que aja como uma
testemunha iluminada. Essa intervenção está ausente nas famílias
lideradas por mães solo.

As mulheres não são inerentemente mais amáveis que os


homens; mulheres podem dar carinho e ser emocionalmente
abusivas. Tem havido uma forte tendência na cultura patriarcal de
simplesmente admitir que as mulheres são amáveis e capazes de
ser íntimas, tanto que a falha feminina em adquirir habilidades
175

relacionais que tornariam a intimidade possível passa


despercebida.

A maioria das mulheres é encorajada a aprender


habilidades relacionais, porém problemas de autoestima podem nos
impedir de aplicar essas habilidades de forma saudável. Se vamos
começar a criar uma cultura em que a masculinidade feminista pode
prosperar, então as mulheres que são mães precisarão se educar
para uma consciência crítica. Num futuro próximo, podemos esperar
ter mais dados para nos mostrar de que forma os meninos são
criados quando têm pais amorosos, estejam eles juntos ou
separados, que ensinem aos filhos como ser íntimos. Até lá, criemos
espaços em que homens que não tenham habilidades relacionais
possam aprendê-las.

Como Zukav e Francis corajosamente colocam em The


Heart of the Soul (O cerne da alma), “A intimidade e a perseguição
por poder externo – a habilidade de manipular e controlar – são
incompatíveis”. Antes de a maioria dos homens ser íntima de outros,
eles precisam ser íntimos de si mesmos. Eles precisam aprender a
sentir e estar atentos a seus sentimentos. Homens que mascaram
sentimentos e os suprimem simplesmente não querem sentir dor. A
dor emocional é o sentimento que a maioria dos homens esconde,
inibe ou em que se fecham, a jornada de volta ao sentimento é,
frequentemente, passando pelo portal do sofrimento.

Muito da raiva dos homens esconde esse lugar de


sofrimento: esse é o segredo bem guardado. Frequentemente,
quando uma mulher se aproxima da dor masculina, penetrando a
máscara para ver a vulnerabilidade emocional mais a fundo, ela se
torna alvo da raiva.
176

A vergonha de ser emocionalmente vulnerável é,


geralmente, o que os homens mais emocionalmente fechados
buscam esconder. Já que a inibição é, com frequência, utilizada
para socializar os meninos, mantendo-os longe de seus sentimentos
e apontando na direção de uma máscara patriarcal, muitos homens
adultos têm uma voz inibidora interna. Estudos indicam que pais
patriarcais raramente são mortos por seus filhos; as mães são mais
assassinadas, pois a raiva que muitos homens sentem de seus pais
por humilhá-los é transferida para figuras femininas de autoridade.

Com mulheres, especialmente, os garotos feridos que


habitam os homens adultos podem ser raivosos, sem medo de
repressão. Quanto mais íntima a relação, maior a probabilidade de
ela ser, ao mesmo tempo, alvo da raiva e a fiel do segredo, não
dizendo a ninguém que aquele homem é viciado na raiva. Esse caso
acontece especialmente quando o homem revoltado é um filho que
bate na mãe ou em irmãos mais frágeis. A violência dos filhos,
principalmente adolescentes, contra as mães é raramente um tópico
discutido em nossa cultura.

Agora que tantos homens adultos solteiros voltaram a viver


na casa das mães ou que nunca saíram de casa, há um problema
crescente de discordância doméstica, emocional e física, que está
sendo encoberta.

Terrorismo íntimo em relações de homem-mulher é


identificado como um problema, particularmente o abuso emocional.
Em oposição, pouco se fala do terrorismo íntimo entre crianças
adultas e seus pais. O recente filme A professora de piano, mostrou
graficamente a violência sadomasoquista que pode existir entre
uma criança adulta e um pai, tomando a forma de abuso emocional
177

e físico. Nesse filme, os adultos mostrados são mulheres e o público


é levado a interpretar o que vê de acordo com as noções sexistas
de competição feminina. Enquanto isso, na realidade há um enorme
abuso emocional acontecendo em relações de mães solo/filhos
adultos que não é nomeada. Mulheres na cultura patriarcal são
treinadas para disfarçar e esconder o abuso masculino, ainda mais
quando o culpado é o filho e a vítima, sua mãe.

Essas situações de intimidade nociva existem porque


nossa cultura falhou em ensinar mulheres e homens o que é
intimidade. E enquanto as mulheres continuarem sendo as
principais cuidadoras, teremos a maior parte da responsabilidade na
aprendizagem de como ser íntimas e compartilhar esse
conhecimento com as crianças, meninos e meninas.

Aprender a ser íntimo é uma habilidade relacional que nos


ensinar o valor do autoconhecimento. Oferecendo uma definição
mais ampla e significativa de intimidade do que a antiga ideia de
simplesmente ser próximo e vulnerável com alguém, Gary Zukav e
Linda Francis afirmam que “se cria intimidade quando se muda a
perseguição por poder externo – a habilidade de manipular e
controlar – para uma perseguição por poder autêntico – o
alinhamento entre a personalidade e a alma”.

Nos últimos anos, tem havido a publicação de um grande


número de livros de autoajuda que provoca os leitores a cuidar de
suas almas. Livros tais como de James Hillman, Thomas Moore e
Gary Zukav têm sido campeões de vendas nacionais. Ironicamente,
esses homens falam da necessidade de cuidar de nossas almas
como se esse caminho fosse o mesmo para homens e mulheres.
178

Na introdução do livro de Thomas Moore Care of the Soul (Cuidar


da alma), ele diz aos leitores:

“Trabalho engrandecedor, relações


recompensadoras, poder pessoal e alívio dos
sintomas são todos dons da alma. Eles são
particularmente ilusórios em nosso tempo, pois
não acreditamos na alma e, portanto, não damos
espaço a ela em nossa hierarquia de valores...
Vivemos num tempo de profunda divisão, em que
as mentes são separadas dos corpos e a
espiritualidade se confronta com o materialismo.
Mas como podemos sair dessa divisão?”.

Pensadores visionários acreditam que ao expor a forma


como a lógica de dominação criou a cisão e escolher um modelo de
interexistência e interdependência, podemos começar o trabalho de
restaurar a integridade, e com a integridade tem lugar o cuidado da
alma.

Homens presos na lógica da masculinidade patriarcal têm


dificuldade em acreditar que suas almas importam. É talvez um viés
patriarcal que leve Thomas Moore a sugerir, na conclusão de seu
toque de clarim para que todos cultivemos plenitude de alma que “o
cuidado com a alma não é um projeto de autoaperfeiçoamento...
Não se preocupa com viver adequadamente ou com saúde
emocional”. Essa necessidade de negar qualquer relação do
cuidado da alma com autocuidado é, em si mesma, o indicativo das
divisões binárias de consciência que Moore critica. Ninguém que
realmente se importa com a própria alma deixa de experimentar
uma melhora de bem-estar.
179

Os homens precisam ouvir que suas almas importam e que


o cuidado com suas almas é a primeira tarefa para seu ser. Se todos
os homens estivessem em busca de descobrir uma plenitude de
alma em suas vidas ao invés de buscar poder dentro de um modelo
dominador, então o mundo como conhecemos seria transformado
para melhor.

Não pode ser mero acidente do destino que os professores


homens visionários que nos oferecem mensagens de formas de
cuidar da alma que vão aprimorar nossas vidas no planeta sejam
homens de cor de países pobres, homens que vivem exilados,
homens que têm sido vitimizados pela violência imperialista
masculina. Dois homens que vêm à mente são Sua Santidade o
Dalai Lama e o monge budista vietnamita Thich Nhat Hanh. Em Uma
nova ética para um novo milênio, o Dalai Lama pede por uma
revolução espiritual. Ele compartilha sua crença de que todos os
humanos desejam a felicidade e que a principal característica de
felicidade genuína é paz interior, que ele conecta com o
desenvolvimento da preocupação com os outros. Sua mensagem
de plenitude de alma ecoa o que as pensadoras feministas têm dito
ao mundo, que os homens podem curar seus espíritos ao
desenvolver habilidades relacionais – a habilidade de experimentar
empatia, de se importar com os outros.

A existência de professores visionários que oferecem aos


homens e mulheres orientação espiritual é um lembrete constante
de que os corações dos homens podem ser transformados com
amor e compaixão. Consistentemente o Dalai Lama nos ensina
sobre a necessidade de cultivar a prática da compaixão. Se os
homens um dia se virem como quem trabalha pelo fim do
180

patriarcado, ainda resta o fato de que qualquer homem que escolha


o caminho da compaixão cura o espírito e se afasta da dominação.
O Dalai Lama oferece sua sabedoria:

“Compaixão é uma das principais coisas que faz


nossas vidas terem sentido. É a fonte de toda
felicidade e alegria duradoura. E é a base de um
bom coração. Pela bondade, afeição,
honestidade, verdade e justiça para com os
outros, asseguramos nosso próprio benefício.
Isso não é nenhuma teoria complexa. É questão
de senso comum... Sem dúvida que nossa
felicidade está inextrincavelmente ligada à
felicidade de outros. Sem dúvida, se a sociedade
sofre, nós também sofremos... Então podemos
rejeitar tudo o mais: religião, ideologia, toda
sabedoria conhecida. Mas não podemos escapar
da necessidade de amor e compaixão”.

Esse é o cuidado da alma a que os homens e mulheres


devem atender se vamos sustentar a vida no planeta, se vamos
viver por completo e bem.

A maioria dos homens em nossa sociedade acredita em


poderes superiores, e mesmo assim aprenderam a desvalorizar a
vida espiritual, a violar seu próprio entendimento do sagrado. Daí
porque o trabalho de restauração espiritual – de ver as almas dos
homens como sagradas – é essencial se vamos criar uma cultura
na qual os homens possam amar. Quando os corações dos homens
estão cheios de compaixão e abertos ao amor, então, como afirma
o Dalai Lama, “não há necessidade de templo ou igreja, de mosteiro
181

ou sinagoga, não há necessidade de filosofia complexa, doutrina ou


dogma, pois nosso coração e nossa mente são o templo e a doutrina
é a compaixão”.

Quando o movimento feminista contemporâneo estava no


seu ponto mais militante, aquelas de nós que louvavam deidades
masculinas eram tratadas como se fôssemos traidoras. Mesmo
assim, muitas de nós acharam especialmente útil manter nosso
amor pelos homes e apreciação pela sacralidade da alma
masculina, a fim de separar a ideologia patriarcal das poderosas
imagens de carinho e bondade amorosa representadas nas figuras
religiosas masculinas.

Muitas de nós que éramos filhas feridas de origens cristãs


acharam útil meditar diariamente sobre o Salmo 23, pois ele
evocava para nós a imagem do pai carinhoso para nossas almas,
afirmando e assegurando que nós sobreviveríamos, que a bondade
e a misericórdia nos seria dada e que o pai nos manteria para
sempre sob seus cuidados.

Essa imagem de uma paternidade amorosa personifica a


masculinidade feminista na sua forma mais divina. Para curar o
espírito, cuidar das almas dos meninos e homens precisamos nos
atrever a proclamar nossa adoração, a nos curvar não ao macho
dominador, mas ao homem como espírito divino personificado a
quem podemos nos unir no amor, sem medo de nos separar,
conhecendo um amor perfeito em que não haja medo.
182

10 – RECLAMANDO A INTEGRIDADE MASCULINA

Curar a crise no coração dos homens requer de todos nós


disposição para enxergar o fato de que a cultura patriarcal cobrou
dos homens que eles sejam almas divididas. Sabemos que há
homens que não sucumbiram à essa demanda, mas que a maioria
dos homens entregou sua capacidade de ser inteiro. A busca por
integridade é uma jornada heroica que pode curar a crise da
masculinidade e preparar os corações dos homens para dar e
receber amor.

Aprender a usar uma máscara (essa palavra já está


embutida no termo “masculinidade”) é a primeira lição de
masculinidade patriarcal que um garoto aprende. Ele aprende que
seus sentimentos mais profundos não podem ser expressos se eles
não se conformarem aos comportamentos aceitáveis que o sexismo
define como masculinos. Quando são solicitados a desistir de seu
eu para se conformar ao ideal patriarcal, os meninos aprendem
cedo a autossabotagem e são recompensados por esses atos de
assassinato da alma. O terapeuta John Bradshaw explica a cisão
que ocorre quando uma criança aprende que a forma como ele se
sente de verdade não é aceitável. Em resposta a essa lição de que
ser autêntico é inapropriado e errado, o menino aprende a se
disfarçar de um falso “eu”. Bradshaw explica:

“O sentimento de que fiz algo de errado, que eu


não sei bem o que é, que há algo terrivelmente
errado com meu próprio ser, leva a um
sentimento de desesperança completa. Essa
desesperança é o corte mais profundo do estado
183

mistificado. Significa que não há possibilidade


para mim como eu sou; não há uma maneira de
eu importar ou ser merecedor do amor de
ninguém enquanto eu continuar a ser eu mesmo.
Devo encontrar um jeito de ser alguém diferente
– alguém amável. Alguém que não seja eu”.

Os papéis sexistas restringem a formação da identidade


dos homens e mulheres quando crianças, mas o processo é bem
mais danoso para os meninos não só porque os papéis que são
demandados deles são mais rígidos e restritivos, mas porque eles
são mais propensos a receber punição severa quando desviam
desses papéis.

O movimento feminista contemporâneo criou um espaço


socialmente sancionado em que meninas podem criar um senso de
individualidade que se distingue das definições sexistas; a mesma
liberdade não foi estendida aos meninos. Não há dúvida, então, do
motivo de os meninos continuarem a tradição de criar um falso
indivíduo, de se dividirem, na cultura patriarcal. Essa divisão nos
meninos e homens é frequentemente caracterizada pela
capacidade de compartimentalizar. É essa divisão nas psiques e
almas dos homens, fundamentalmente ferindo, que é o campo fértil
para doenças mentais.

Quando é pedido dos homens que usem a máscara de um


falso eu, sua capacidade de viver completa e livremente é
severamente diminuída. Eles não podem experimentar alegria e
nunca podem amar verdadeiramente.

Qualquer um que sustente uma identidade falsa é


desonesto. Pessoas que aprendem a mentir para si mesmas e para
184

os outros não podem amar porque elas estão incapacitadas de dizer


a verdade e, por consequência, são incapazes de confiar. Esse é o
cerne do dano psicológico causado aos homens no patriarcado.
Esta é uma forma de abuso que essa cultura continua a negar. Os
meninos são socializados por meio de abuso para se tornarem
patriarcas.

Como vítimas do abuso infantil via socialização na direção


do ideal patriarcal, os meninos aprendem que não é possível que
sejam amados. De acordo com Bradshaw, eles aprendem que
“relações são baseadas em poder, controle, segredos, medo,
vergonha, isolamento e distância”. Esses são traços
frequentemente admirados no homem patriarcal adulto.

Meninos emocionalmente feridos são aceitos e até mesmo


exigidos pela cultura patriarcal. Negar a eles o direito de serem
completos, de ter integridade não é só encorajado, é visto como a
forma certa de fazer as coisas. Terrence Real diz que “nós forçamos
nossas crianças para longe da completude e conexão na qual eles
iniciam suas vidas” e então os encorajamos “a se afundar no mais
profundo de si mesmos, de parar de falar ou reconhecer a verdade,
de se fiarem à desconfiança, ou mesmo ao desdém, do estado de
proximidade que todos nós, por nossa natureza, mais desejamos”.

Expondo a dura realidade do impacto psicológico do


patriarcado, Real tem a coragem de dizer a verdade: “Nós vivemos
numa cultura antirrelacional e que despreza a vulnerabilidade, que
não só falha em nutrir as habilidades de conexão, mas ativamente
as teme”.

Ensinar os garotos a desprezar sua vulnerabilidade é uma


forma de socializá-los a se engajar no assassinato da própria alma.
185

Essa ferida no espírito masculino, causada por atos de cisão


aprendidos, de dissociação e desconexão, só podem ser curados
pela prática da integridade. Homens feridos devem recuperar todas
as partes de seu eu que abandonaram ao servir às necessidades
da masculinidade patriarcal. Tal recuperação é onde deve ser
realizado o trabalho necessário para restaurar a integridade do ser
masculino.

Falando sobre o significado da integridade em seu mais


recente livro, Living a Life That Matters (Vivendo uma vida que
importa), Rabbi Harold Kushner oferece essa clara definição:

“Integridade significa ser inteiro, não quebrado,


não dividido. Descreve uma pessoa que uniu as
diferentes partes de sua personalidade para que
não houvesse mais uma cisão em sua alma”.

O patriarcado encoraja os homens a render sua


integridade e viver suas vidas em negação. Ao aprender as artes de
compartimentalizar, dissimular e dissociar, os homens podem se ver
agindo com integridade em casos em que não estão. Seu estado
aprendido de negação psicológica é severo. Adicionando à
definição de integridade em Further along the Road Less Traveled
(Mais fundo no caminho menos percorrido), M. Scott Peck discute a
raiz do significado do termo “integridade”, que é o verbo “integrar”,
enfatizando que isso é o oposto de compartimentalização.

“Indivíduos sem integridade naturalmente


compartimentalizam. E a masculinidade
patriarcal normaliza a compartimentalização
masculina”.
186

Peck argumenta que a compartimentalização é uma forma


de evitar sentir dor:

“Estamos todos familiarizados com o homem que


vai à Igreja aos domingos de manhã crendo que
ama Deus e a criação divina e seus
companheiros humanos, mas que, na segunda-
feira de manhã não tem problema em se aliar à
política de sua empresa de dispensar resíduos
tóxicos no sistema de tratamento de esgoto
local”.

A maioria dos homens foi socializada para acreditar que


a compartimentalização é uma prática positiva, parece correta e
confortável. Praticar a integridade, então, é difícil; dói. Peck expõe
um ponto crucial: “A integridade é dolorida. Mas sem ela não há
como ser íntegro”. Para ser íntegros, os homens precisam praticar
a integridade.

Integridade é a necessidade de uma autoestima saudável.


A maioria dos homens tem autoestima baixa porque eles estão
constantemente mentindo e dissimulando (se escondendo atrás de
falsas aparências) para poderem performar o papel masculino
sexista. Identificando a prática de integridade como um pilar da
autoestima em seu inovador trabalho no tema, Six Pillars of Self-
Esteem (Os seis pilares da autoestima), Nataniel Branden fala sobre
o modo como a mentira fere a autoestima. Ele confessa que, como
muitos homens, havia se convencido que era importante mentir para
proteger outras pessoas, mas eventualmente ele precisou encarar
a verdade de que “mentiras não funcionam”. Para honrar sua
autoestima, para praticar integridade, ele aprendeu que a verdade
187

tinha que ser dita, que “ao procrastinar e adiar eu só fazia com que
as consequências fossem mais terríveis para todos”. Além disso, ele
escreve

“Eu não consegui proteger ninguém, muito menos


a mim mesmo. Se parte do meu motivo para
mentir era poupar pessoas com quem eu me
importava, eu infligi a elas uma dor ainda maior
do que elas poderiam ter experimentado. Se
parte do meu motivo para mentir era proteger
minha autoestima, evitando um conflito entre
meus valores e lealdades, eu estava ferindo
minha autoestima”.

Essa lógica falha que ele descreve é a mesma que muitos


homens patriarcais usam para evitar falar a verdade e praticar a
integridade.

Com bastante frequência, somos levados a crer que os


homens ganham mais poder com mentiras e compartimentalização.
O estresse de guardar e proteger um eu falso é prejudicial para o
bem estar emocional masculino; isso erode a autoestima. Muito da
depressão que os homens sofrem está diretamente relacionada à
sua inabilidade de ser íntegros. Mesmo que eles tenham sido
socializados para criar e manter identidades falsas, a maioria dos
homens se lembra do verdadeiro indivíduo que um dia existiu. E é
essa memória de perda – junto com a raiva do mundo que os
encorajou a se render – que leva à depressão.

Esse sofrimento, a fonte que muitas vezes passa


despercebida nos homens adultos, é constante. Ele leva muitos
homens ao vício, seja de trabalho ou abuso de substâncias.
188

O vício no trabalho é o vício mais comum em homens


justamente porque é geralmente recompensado e não levado a
sério como uma deterioração de seu bem estar. O trabalho é,
normalmente, o espaço em que os homens se afastam de seus
sentimentos. Zukav e Francis descrevem o vício em trabalho como
um voo para longe das emoções:

“É uma droga tão eficiente quanto o mais


poderoso anestésico... O vício em trabalho é um
sono profundo. É um transe autoinduzido que
mantém as emoções doloridas temporariamente
longe da percepção”.

No momento em que o vício deixa de manter as emoções


à distância, muitos homens mergulham na depressão. E com tanta
dor masculina, só recentemente aos homens foi dada permissão
social para confrontar a depressão. Os homens sofrem de
depressão com frequência por causa de suas expectativas não
realizadas ou seu perfeccionismo (que nunca pode ser alcançado,
já que ser humano é ser imperfeito). Repetidamente se sugere que
o movimento feminista retirou ou minou o “poder masculino” e, em
consequência, os homens se sentem impotentes. Por trás dessa
ideia está a noção de que as mulheres são as culpadas pela
depressão masculina, ainda que seja difícil crer que os homens se
sintam ameaçados por massas de mulheres entrando para a força
de trabalho em que recebem pagamento menor que os homens e
voltam para casa, depois de longas horas, para um segundo turno.
Já que o fato de a mulher estar fora de casa não está mais sob o
mando do chefe patriarcal do lar, esse movimento vindo de fora
189

pode ameaçar o poder masculino mais do que as mulheres fazem


do lado de dentro.

Uma dimensão do movimento feminista que teve um


profundo impacto nos homens foi a insistência de que as mulheres
tinham que ter o direito de criticar os homens, coletiva e
individualmente. No lar patriarcal em que fui criada, um aspecto
significante do poder de meu pai era que ele estava acima de
qualquer crítica. Mesmo que mamãe nunca tenha se tornado
feminista, depois de 40 anos de submissão ela começou a criticar
meu pai de formas que ecoavam os desafios feministas ao poder e
privilégio masculinos.

Como muitas mulheres, ela desafiou a falta de


engajamento emocional do marido. Como muitas mulheres, ela quis
que ele se interessasse pelo crescimento pessoal. Por muitos anos
a cultura patriarcal ensinou os homens que sua individualidade, sua
masculinidade é afirmada pela falta de interesse no crescimento
pessoal; de repente, na onda do movimento feminista, as mulheres
começam a bombardear os homens com novas expectativas
emocionais. Coletivamente, os homens responderam a isso com um
sentimento de depressão.

O famoso psicoterapeuta M. Scott Pack nos lembra que


sempre que um de nós dá um passo em direção ao crescimento,
passamos por um processo de negação, raiva, barganha,
depressão e aceitação (os mesmos estágios que Elisabeth Kübler-
Ross identifica como aqueles pelos quais passamos quando
confrontamos a morte). Ele dá o exemplo de ter sido criticado por
seus entes queridos por falhas de caráter e ter resistido às críticas:
190

“Se eles realmente me amam o suficiente para


ficar me criticando, então talvez eu chegue ao
ponto de pensar ‘Será que eles estão certos?
Será que há algo de errado com o grande Scott
Peck?’ E se a resposta for sim, isso é deprimente.
Mas se eu conseguir me segurar a essa noção
depressiva – de que talvez haja mesmo algo
errado comigo – e começar a me perguntar o que
pode ser isso, se eu comtemplar e analisar e
isolar isso, e ao identificar, então poderei passar
pelo processo de matar isso e de me purificar.

Tendo passado por todo o processo da


depressão, emergirei do outro lado como um
novo homem, um ser ressuscitado, uma pessoa
melhor”.

Frequentemente, no entanto, os homens se veem presos


à raiva. Não há dúvidas, então, de porque tantos homens que
buscam ser íntegros devem primeiro nomear a intensidade de sua
raiva e dor que a mascara.

Ao escrever sabendo que morreria, Joseph Beam


confessa em Brother to Brother: Words from the Heart (De irmão
para irmão: palavras do coração):

“O que é mais importante para mim deve ser dito,


verbalizado e compartilhado, ainda que sob o
risco de soar errado e ser mal interpretado. Eu
conheço a raiva. Meu corpo carrega tanta raiva
quanto carrega água. É o material a partir do qual
ergui minha casa: tijolos vermelho-sangue que
191

choram na chuva... São a face e a postura que


mostro ao mundo. É a forma como, por vezes,
demonstro afeição. Fico bravo porque é o
tratamento que recebo enquanto homem negro.
Essa raiva borbulhante está guardada junto com
o desprezo que muitos demonstram por mim por
eu ser gay. Não posso ser o que sou em casa. A
raiva normalmente esconde a depressão e o
profundo pesar”.

A depressão frequentemente mascara a inabilidade de


sofrer. Aos homens não é dado o espaço emocional para sofrer.
Meninas e mulheres podem chorar, expressar pesar no decorrer de
nossas vidas. Podemos externar isso. Os homens ainda aprendem
a manter isso escondido e, o que é pior, a negar que têm vontade
de chorar. Donald Dutton, no seu capítulo de Love and Rage (Amor
e raiva) diz que a recusa masculina em reconhecer a perda é o
componente-chave da raiva masculina:

“Há poucos modelos de homens que sofrem... Os


homens em particular parecem incapazes de
sofrer e sentir pesar de maneira individual. Talvez
por isso o blues seja tão popular entre os
homens. Ele serve como uma forma socialmente
aceita de expressão dessa perda e desse
processo irrealizável... Quando o artista do blues
Robert John canta ‘Fui maltratado e não me
importo em morrer’, uma multidão de homens
pode sentir seus próprios anseios não realizados
e são capazes de se reconhecer”.
192

Muitas garotas adolescentes passam pelo processo de luto


enquanto transicionam de serem crianças pequenas para mulheres
maduras. Às garotas é permitido sofrer pelas mudanças. Os
homens não têm rituais de luto, seja enquanto meninos ou homens.

Um dos motivos por que a Igreja tem sido tão importante


nas vidas de homens negros é que esse é um dos locais em que
lhes é permitido expressar emoções, onde podem lamentar. James
Baldwin descreve essa libertação de emoções na Igreja em The Fire
Next Time (Da próxima vez, o fogo9):

“Nada que aconteceu comigo se compara com o


poder e a glória que eu às vezes sentia quando,
no meio de um sermão, eu sabia que eu estava
de alguma forma, por um milagre, realmente
chorando, enquanto diziam ‘a Palavra’ – quando
a Igreja e eu éramos um. Sua dor e sua alegria
eram minhas, e as minhas eram deles – eles me
entregavam sua alegria, eu lhes entregava a
minha”.

Foi na igreja de minha infância que eu vi homens em


lamento pela primeira vez.

Para crescer psicológica e espiritualmente os homens


precisam lamentar. Os homens que estão fazendo o trabalho da
auto recuperação testemunham que é só quando eles conseguem
sentir a dor que podem começar a se curar. Com coragem e
perspicácia, Neale Lundgren fala sobre esse esforço interno em seu
trabalho autobiográfico sobre infância, The Night When Sleep

9
Editora Bup/Polêmica, 1963
193

Awoke (A noite que os adormecidos acordaram), confessando sua


necessidade de achar um modelo de pai, de se reconectar com a
masculinidade.

“Justo quando achei que já tinha exaurido minha


procura por um pai, comecei a buscar por ajuda
terapêutica. Depois de muitos episódios de
depressão crônica inexplicáveis, tomei a decisão
de finalmente parar de evitar a dor e a raiva. Com
a ajuda e o apoio terapêuticos de homens e
mulheres, comecei a explorar o temido terreno de
meu ferido coração. Comecei a lamentar por
perdas e afetos passados”.

Quando a capacidade emocional de um homem de sofrer


é retirada, ele provavelmente vai ficar congelado no tempo, incapaz
de completar o processo de crescimento. Os homens precisam se
lamentar pelo seu “eu” antigo e criar o espaço para que um novo
sujeito nasça, se quiserem mudar e ser transformados por completo.

Se um homem não está disposto a quebrar as regras


patriarcais que dizem que ele nunca deve mudar – especialmente
para satisfazer alguém, particularmente uma mulher – então ele
escolherá estar certo ao invés de ser amado. Ele vai se distanciar
de seus entes queridos e escolher sua masculinidade acima de sua
individualidade, isolamento acima de conexão. O terapeuta George
Edmond Smith se recorda de aprender muito cedo que os homens
respondem com raiva e rejeição se percebidos como estando fora
de controle ou cometendo um erro:

“Eu também me lembro que, bem novo, se


perguntasse ao meu pai algo que ele não sabia a
194

resposta, ele ficava nervoso, como que dizendo:


‘Olha, eu não a resposta para essa pergunta e por
isso você merece apanhar!’ Claro que eu aprendi
isso quase imediatamente, e parei de buscar em
meu pai as respostas. Talvez se ele tivesse me
dito ‘Filho, eu não sei a resposta, mas vamos
olhar juntos e descobrir’”.

Só um pai capaz de ser inteiro pode ter a integridade de


reconhecer sua ignorância ao seu filho sem se sentir diminuído.

Homens que são íntegros podem falar de seus medos sem


vergonha. Eles não precisam usar uma falsa máscara de destemor.
Os pais têm sido incapazes de compartilhar com seus filhos que
eles têm medo. Eles temem não estar à altura das expectativas de
seus filhos. Eles temem que o filho verá seu despeito e inveja do
garoto que ainda não cortou relações com seus sentimentos, que
não emocionalmente fechado. Escrevendo sobre sua infância,
Neale Lundgren relembra, “Eu estava maravilhado com meu pai e
parecia que eu frequentemente sentia que ele tinha medo de mim.
Talvez ele estivesse intimidado pelo meu coração que era como o
dele costumava ser quando garoto: grande, cheio, aberto, forte e
carinhoso”.

Incapaz de reconhecer os sentimentos, os pais


frequentemente os encobrem com raiva, cruelmente cortando sua
ligação com o filho e recusando seu amor e admiração. Um modelo
competitivo de performance patriarcal ensina aos homens que tem
filhos que eles serão seus adversários, que eles devem temer ter
sua glória roubada pelo filho. Nossos mitos e histórias religiosas são
cheias de narrativas nas quais o filho é mostrado como inimigo do
195

pai, sempre na intenção de roubar seu poder. O modelo disfuncional


sugere aos homens que a separação só pode ser forjada pela
violência e morte. Só o homem que escolhe um modelo saudável –
em que a figura paterna, o homem adulto íntegro, o guia que
resguarda, protege e educa o filho – pode atender de forma
graciosamente a afirmação de autonomia saudável de seu próprio
filho.

Quando figuras paternas são saudáveis, elas sabem a


hora de deixar ir; elas podem afirmar o garoto a cada passo do
caminho. Como declara Thomas Moore em seu trabalho sobre
infância masculina Little Boy Found (Pequeno Garoto Encontrado),
“Se os pais falam por nós, podemos preservar nossos espíritos
dourados... Pais e filhos precisam uns dos outros, porque assim se
sustentam. Precisamos deixar nossos pais crescerem devagar...
Eles precisam levar a sério nossas bobagens infantis, dando suas
vidas por isso, para então podermos ser pais também a partir do
nosso lugar ao sol”. Pais carinhosos com uma força e integridade
vigorosas protegem os corações abertos e doces de seus filhos dos
ataques insensíveis do patriarcado.

Quando os homens praticam a integridade, eles aceitam


que parte do trabalho de integridade é aprender a ser flexível,
aprender a negociar, a abraçar a mudança de pensamento e ação.

A habilidade de ser autocrítico e mudar e ouvir críticas de


outros é a condição de ser que nos faz capazes de assumir
responsabilidades. Para serem capazes de responder a família e
amigos, os homens precisam praticar assumir responsabilidades.
Esse é outro componente de uma autoestima saudável. Nathaniel
Brandon equaciona nossa capacidade de ser responsáveis com
196

nossa capacidade de experimentar alegria, de ser pessoalmente


empoderados. Esse senso de agência pessoal nos permite quebrar
com os papéis de sexo impostos. Essa é a verdadeira liberdade e
independência:

“Eu sou responsável por aceitar ou escolher os


valores pelos quais vivo. Se vivo por valores que
aceitei ou adotei passiva e impensadamente, é
fácil imaginar que eles são ‘minha natureza’, são
‘quem eu sou’, e evitar reconhecer as escolhas
envolvidas. Se estou disposto a reconhecer que
escolhas e decisões são cruciais quando se
adota valores, então posso olhar claramente
meus valores, questioná-los e, se necessário,
revisá-los. De novo, assumir responsabilidades
me liberta”.

O modelo patriarcal que diz aos homens que eles precisam


estar no controle sempre está em oposição a cultivar a capacidade
de ser responsável, que requer saber quando controlar e quando se
deixar levar.

Homens responsáveis são capazes de realizar autocrítica.


Se mais homens estão realizando o trabalho da autocrítica, eles não
sairão feridos, machucados ou desgostosos quando criticados por
outros, especialmente por mulheres de quem são íntimos. Se
engajar em autocrítica empodera os homens responsáveis a admitir
seus erros. Quando erram com os outros, estão dispostos a
reconhecer seu erro e compensá-lo. Quando outros erram com eles,
são capazes de perdoar. A habilidade de perdoar é parte de se livrar
do perfeccionismo e aceitar a vulnerabilidade.
197

Ao mesmo tempo, a crítica construtiva só funciona quando


está ligada a um processo de afirmação. Se afirmar é um ato de
cuidado emocional. Homens feridos frequente são incapazes de
dizer algo positivo. Eles são homens ranzinzas; cobertos de
cinismo, se mantém a uma distância emocional de si mesmos e dos
outros. Afirmação nos traz para perto. É a maior realização de
compaixão e empatia com os outros. Um dos aspectos negativos
das críticas da masculinidade por feministas anti-homem é a falta
de qualquer afirmação do que é positivo e potencialmente positivo
do ser homem. Quando indivíduos, incluindo eu mesma,
escrevemos sobre a necessidade de afirmar os homens e identificá-
los como camaradas na luta, com frequência somos taxadas de
“identificadas com os homens”. As que nos atacaram não entendiam
que era possível criticar o patriarcado sem odiar os homens. De fato,
reconhecer todas as formas pelas quais os homens foram vitimados
pelo patriarcado (mesmo que recebessem recompensas) era uma
maneira de incluir os homens no movimento feminista, agradecendo
sua presença e honrando sua contribuição.

Análises críticas são úteis quando promovem crescimento,


mas isso nunca é o bastante. O trabalho de afirmação é o que nos
une. Quando os homens aprendem a afirmar a si e aos outros,
cuidando de suas almas, eles estão no caminho da completude.
Quando os homens são capazes de pequenos atos de misericórdia,
eles podem estar em comunhão com outros sem a necessidade de
dominar. Não mais separados, não mais distantes, eles carregam
uma integridade que pode se unir à integridade dos outros. Isso é
ser íntegro. Como pessoas íntegras, eles podem experienciar
alegria.
198

Diferentemente da felicidade, alegria é um estado contínuo


que pode ser sustentado mesmo quando tudo não sai como
gostaríamos. Em seu trabalho Celebrating Life (Celebrando a vida),
o padre Jesuíta Henri Nouwen declara que “onde há alegria, há
vida”. Nouwen deixou sua prestigiada cátedra nas escolas da Ivy
League para trabalhar com a comunidade para os mentalmente
deficientes. Como guia espiritual e cuidador ativo, ele encontrou sua
integridade afirmada pelo ato de servir aos outros. O terapeuta
George Edmond Smith em Walking Proud: Black Men Living beyond
the Stereotypes (Andando com orgulho: homens negros vivendo
além dos estereótipos) testemunha que seu crescimento psicológico
foi melhorado quando ele começou a “fazer coisas muito simples
que são altruístas”. Ele diz aos leitores que se os homens
“pudessem se comprometer com o bem e não com o mal enquanto
estivessem acordados, suas vidas mudariam dramaticamente”.

Homens íntegros não têm vergonha de servir. Eles são


cuidadores, guardiões, guardadores da chama. Eles conhecem a
alegria. Eu escrevi, em louvor ao meu avô, o homem que me amou
em minha infância consistentemente e incondicionalmente, o livro
de memórias Bone Black10:

“Seu cheiro enche minhas narinas com o


perfume da felicidade. Com ele, todas as partes
quebradas do meu coração voltam a se juntar”.

Esse é o verdadeiro significado de reunião, viver o


conhecimento que o estrago pode ser reparado, que podemos ser

10
Bone char, bone charchoal ou bone black é um produto obtido da calcinação de ossos bovinos em
altas temperaturas na ausência de ar. Deriva de ossos triturados de animais carbonizados a
temperaturas de 500–700°C em ferro hermético por 4–6 h.
199

inteiros de novo. É a realização última que acontece quando os


homens se atrevem a desafiar e mudar o patriarcado.
200

11 – AMANDO OS HOMENS

Enquanto crescia, entendi que meu pai era o cara forte que
não falava, não demonstrava emoções, que não dedicava seu
tempo ou atenção. Ele era o provedor, o protetor, o guerreiro que
guardava os portões. Ele era um estranho em casa. Não nos era
permitido conhecê-lo, ouvir suas histórias de infância, revirar suas
memórias. A vida dele era rodeada de mistério. Procurávamos por
ele. Em frente às fotos dele como jovem soldado, como boxeador,
papai no salão de sinuca em sua glória, papai na quadra de
basquete. Parávamos em frente à foto da unidade de infantaria
negra que ele serviu na Segunda Guerra Mundial. Nossa
brincadeira favorita na infância era encontrar o papai na foto, nosso
pai, o patriarca por excelência – um homem de seu tempo, criado
para a guerra.

Para escrever sobre homens e amor, preciso falar de


guerra. Nos tem sido dito repetidamente que a civilização não pode
sobreviver se os homens amarem, pois assim eles não serão
capazes de matar quando ordenados. Se os homens nascessem
para matar, no entanto, destinados pela biologia e o destino a tirar
a vida, não haveria necessidade de a socialização patriarcal torná-
los assassinos. A forma guerreiro fere meninos e homens; é a flecha
que acertou bem no coração de sua humanidade. A forma guerreiro
levou os homens na direção de um empobrecimento do espírito tão
profundo que ameaça toda a vida no planeta Terra.

Escrevendo sobre sua infância e a forma guerreiro, no


ensaio My War Story (Minha história de guerra) Shepherd Bliss
abertamente confessa que ele foi “uma criança traumatizada, um
tipo específico de trauma – trauma militar, trauma de guerra”. Tendo
201

crescido no exército, se tornado soldado e então começado a


advogar pela paz, Bliss se coloca contra a guerra e contra a forma
guerreiro:

“A ética do guerreiro nos danificou. Conforme nos


movemos para o século XXI, precisamos
amadurecer para além da guerra e dos
guerreiros. Discordo com os homens escritores e
ativistas que falam tão bem do guerreiro. Aprecio
alguns de seus traços – como coragem, trabalho
de equipe, lealdade, mas o arquétipo em si é
corrompido neste ponto da História. Certamente
precisamos de guardiões, quem possa
estabelecer limites, lavradores e cidadãos. Se
vamos sobreviver nesse planeta tão ameaçado
pela guerra e pelos guerreiros, precisamos
superar o arquétipo obsoleto do guerreiro e
valorizar imagens como a do pacificador, o
parceiro, e o lavrador que se importa com a terra
e os animais”.

Mesmo que a guerra esteja falhando como estratégia de


sustentar a vida e criar segurança, os líderes de nossa nação nos
forçam a batalhar, dando vida nova ao combalido patriarcado.

A guerra foi, nos primórdios, inclusiva para homens e


mulheres. Ao detalhar sua história em Blood Rites (Ritos de sangue)
Barbara Ehrenreich nos lembra que “ao dar somente aos homens o
status de predador triunfante, os humanos ajudaram a si mesmos a
‘esquecer’ o pesadelo pré-histórico em que havia homens e
mulheres sendo presas de animais maiores e mais fortes... Gênero,
202

em outras palavras, é uma ideia que coincidentemente oblitera


nosso passado comum como presas e afirma que o status de
predador é inato e ‘natural’ – ao menos para os homens”.
Chamando atenção para o fato de que a guerra não foi
simplesmente uma ocupação masculina, mas “uma atividade que
com frequência serviu para definir a própria masculinidade”,
Ehrenreich argumenta que “a guerra e a masculinidade agressiva”
são mutuamente reforçadas. A natureza de gênero da guerra faz
dos homens predadores e das mulheres, presas. Não podemos falar
de homens e amor, de amor entre mulheres e homens, sem falar da
necessidade de acabar com a guerra e com todos os pensamentos
que tornam a guerra possível.

O slogan “Faça amor, não faça guerra” foi popular num


momento da história da nossa nação em que homens individuais
estavam mais conscientes de sua necessidade de resistir à
masculinidade patriarcal. Não foi por acidente que Daniel Berrigan,
preso por atividades antiguerra, falou com Thich Nhat Hanh sobre a
necessidade de solidariedade, de que todos aprendessem a estar
em comunidade. Esses dois homens de integridade falam juntos em
The Raft Is Not the Shore (A jangada não é a margem) sobre a
necessidade de resistência comunitária. Thich Nhat Hahn diz:

E resistência, na raiz, deve significar, penso eu,


mais que resistência à guerra. É resistência a
todos os tipos de coisas que são como a guerra.
Porque vivendo na sociedade moderna, não é
fácil se manter íntegro, completo. A todo
momento temos nossa humanidade roubada, a
capacidade de sermos nós mesmos... Então
203

talvez, e em primeiro lugar, resistência signifique


oposição a ser invadido, ocupado, agredido e
destruído pelo sistema. O propósito da
resistência aqui é buscar a cura de si para ser
capaz de ver claramente... Comunidades de
resistência deveriam ser lugares onde as
pessoas podem voltar a si mais facilmente, onde
as condições são tais que elas podem se curar e
recuperar sua integridade.

Berrigan pede que as relações, parcerias sejam vistas


como comunidades de resistência vitais.

Em culturas dominadoras, a maioria das famílias não está


em lugares seguros. Disfuncionalidade, terrorismo íntimo e violência
são solos férteis para a guerra. Já que ainda precisamos acabar
com a cultura patriarcal, nossos esforços para acabar com a
dominação precisa começar com onde vivemos, na comunidade
que chamamos de lar. É lá que experimentamos nosso poder de
criar revoluções, de fazer mudanças que transformam a vida. Já
sabemos que os homens não têm que sem manter vinculados ao
patriarcado. Homens individuais têm feito um chamamento
diferente, pedindo por seus direitos de viver e de amar. Eles são
refúgios de esperança incorporando a verdade de que os homens
podem amar.

Se vamos criar uma cultura na qual todos os homens


podem aprender a amar, primeiro precisamos reimaginar a família
em todas as suas diversas formas como um lugar de resistência.
Precisamos estar dispostos a enxergar a infância dos garotos de
maneira diferente, não como um momento em que os meninos são
204

doutrinados na masculinidade que é sobre violência e morte, mas


como um tempo em que os meninos aprendem a glória da conexão
com os outros, na celebração e alegria da intimidade que é um
anseio humano essencial. Precisamos seguir a sabedoria de
Thomas Moore quando ele pede pela adoração não patriarcal do
menino:

“Que misterioso é ser um garoto, tão perto da


morte e do nascimento, tão ignorante e, portanto,
tão fresco e inocente. Devíamos acabar com
nossa depreciação do garoto, de nossa própria
imaturidade, de nosso atraso em crescer, de
nosso puro deleite na beleza, em nosso amor
pelo sol, em nossas inclinações verticais, em
nossos devaneios e grandes quedas... Podemos
dizer palavras de encorajamento a esse garoto
quando encontrá-lo – em nossos amigos e
alunos, em nossas instituições e em nossos
próprios corações. Se não falarmos com ele
assim, ele ficará perdido e nós teremos perdido
com ele toda suavidade e graça”.

Para criar uma cultura que vai permitir aos garotos amar,
precisamos ver a família tendo como sua função primária o
compartilhamento do amor (prover comida e teto são atos de amor).
Aprendendo a amar na vida familiar, meninos (e meninas)
aprendem as habilidades relacionais necessárias para criar uma
comunidade em casa e no mundo. O poeta Wendell Berry fala desse
tipo de movimento como um retorno ao respeito pela integridade
inata de todos os seres:
205

“Se tivermos sorte o suficiente de, enquanto


crianças, estarmos cercados de adultos que nos
amam, nossa percepção de integridade não será
só uma percepção de completude de nós
mesmos, mas também um senso de
pertencimento aos outros e ao nosso lugar; é
uma percepção inconsciente de comunidade, de
ter algo em comum. E talvez esse sentido duplo
de integridade singular e de pertencimento
comum seja nosso padrão pessoal de saúde
enquanto vivermos... Parece que sabemos
instintivamente que a saúde não é dividida”.

Quando nossas famílias são funcionais e não moldadas


por um modelo dominador e pelo pensamento patriarcal que o
acompanha, o modelo de saúde que Berry descreve pode se tornar
a norma.

Nesse mundo, os meninos podem pensar em jogos que


não tenham como premissa causar dor, criar a morte, mas serão
formas de brincar que celebrem a vida e a integridade. E as
diferenças individuais que surgem entre os garotos, e entre meninos
e meninas, não serão interpretadas como uma causa de dominação,
onde um governa o outro, mas se tornarão ocasiões para
exploração e compartilhamento de conhecimento e de invenção de
novas formas de ser. Pais amorosos já veem que se rígidos padrões
de gênero não forem impostos aos garotos, eles tomarão decisões
de individualidade em relação a suas paixões, seus desejos, seus
presentes. Não podemos honrar os meninos da maneira certa,
protegendo suas vidas emocionais, sem acabar com o patriarcado.
206

Fingir o contrário é se aliar à matança de almas que ocorre em nome


de transformar meninos em homens.

Sem dúvida sempre haverá meninos que escolherão


atividades violentas, que requerem força física e elementos de risco,
mas haverá também garotos que vão procurar prazeres mais
silenciosos, que vão caminhar para longe dos riscos. Haverá
meninos cujas personalidades estará em algum lugar entre esses
dois paradigmas. Se os meninos forem criados para serem
empáticos e fortes; autônomos e conectados; responsáveis por si,
pela família, amigos e sociedade; capazes de formar comunidades
fundadas no reconhecimento do interser, então temos uma
fundação sólida e eles serão capazes de amar.

Para construir essa fundação sólida, os homens precisam


dar o exemplo, se atrevendo a se curar e fazer o trabalho da
recuperação relacional. Independentemente de suas preferências
sexuais, os homens em processo de autorrecuperação geralmente
começam retornando à infância e avaliando o que eles aprenderam
sobre masculinidade e como aprenderam. Muitos homens acham
útil apontar os momentos em que perceberam quem eram, o que
sentiram, e então suprimiram esse entendimento porque
desagradava aos outros. Entender as raízes da doença dos homens
ajuda muitos homens a começar o trabalho de reparar o dano.
Homens individuais progressistas gays em nossa nação,
particularmente os que resistiram ao pensamento patriarcal (que
frequentemente são chamados de “femininos” por serem
emocionalmente conscientes), estiveram à frente na recuperação
relacional. Homens hetero e gays patriarcais aprenderam com eles.
207

Os homens estão no caminho para o amor quando


escolher se tornar emocionalmente conscientes. Zukav e Francis
veem isso como um processo:

“Consciência emocional é mais do que aplicar


técnicas a essa ou àquela circunstância. É uma
expressão natural de uma orientação que
direciona sua atenção para as partes mais
nobres, satisfatórias, alegres e empoderadoras
de nós mesmos que podemos alcançar. Essa é a
sua alma”.

As mulheres querem que os homens sejam mais


emocionalmente conscientes. Principalmente as mulheres que
querem estar em relacionamentos amorosos com homens. Ao
mesmo tempo em que os homens estão em crise, as mulheres estão
experimentando uma crise de fé nos homens. A forma dessa crise
se apresenta no desespero em relação à capacidade dos homens
de fazer mudanças construtivas, de alcanças a maturidade
emocional, de crescer.

A ideia de que lésbicas são anti-homem sempre se prova


falsa quando grupos de mulheres se juntam e falam sobre homens.
Os comentários mais duros de ódio aos homens são sempre feitos
por mulheres que estão com homens e que planejam estar com eles
pelo resto de suas vidas. Depois de 39 anos de casamento, minha
mãe está brava com papai. A esposa subordinada perfeita, agora
nos 70 anos de idade, está chateada de ele não ser
emocionalmente aberto. Como ela não é feminista, ela não vê que
é uma contradição esperar que esse patriarca dos velhos tempos,
de repente, lhe dê amor. Sua raiva o deixa surpreso e bravo. A raiva
208

de mamãe mascara o medo dela de que a qualquer momento ela


morra sem ter se sentido amada pelo homem a quem ela passou
toda a vida tentando agradar. Tal qual os homens que sentem que
a promessa do patriarcado não foi cumprida, mamãe sente que só
lhe restam promessas quebradas, sem a recompensa pelo papel de
subordinada que ela foi ensinada a performar.

Mulheres que não são feministas, mulheres que apoiam o


patriarcado, que não têm problemas com o sexismo, compartilham
com suas colegas feministas e antissexistas o desejo de que os
homens sejam mais amorosos. Shere Hite documentou esse desejo
em seu grande estudo Women and Love: A Cultural Revolution in
Progress (Mulheres e amor: uma revolução cultural em progresso).
O capítulo “Amando os homens nesse momento histórico” começa
com a observação de que “estranhamente, assombrosamente, a
maioria das mulheres nesse estudo – sejam casadas, solteiras ou
divorciadas, de todas as idades – dizem que ainda não encontraram
o amor que procuram”. O amor que as mulheres procuram em
relacionamentos com homens é baseado em mutualidade e
parceria. Mutualidade é diferente de igualdade.

Há muito tempo, as mulheres acreditavam que os homens


nos respeitariam mais se mostrássemos que nós éramos iguais.
Num mundo onde a desigualdade de gênero é a norma aceita pela
maioria, os homens negam às mulheres seu respeito. A raiz da
palavra “respeito” significa “olhar para”. As mulheres querem ser
reconhecidas, vistas e cuidadas pelos homens em suas vidas. Nós
desejamos respeito quer exista a igualdade de gênero em todas as
áreas ou não. Quando uma mulher e um homem prometem amar
um ao outro, se apoiar mutuamente, dar um ao outro cuidado,
209

compromisso, conhecimento, respeito, responsabilidade e


confiança, mesmo se houver circunstâncias de desigualdade,
ninguém usa essa diferença para reforçar a dominação. O amor não
pode coexistir com dominação. O amor existe em circunstâncias em
que a igualdade não é a ordem do dia. Isso pode aumentar a
percepção da necessidade de ser mais amoroso.

Muitas mulheres se desesperam em relação ao homens


porque, no final das contas, acreditam que os homens se
preocupam mais em ser dominadores do que em ser parceiros
amorosos. Elas acreditam nisso porque muitos homens se negam a
fazer as mudanças que fariam o amor recíproco possível. As
mulheres não provaram que se preocupam o suficiente com os
corações do homens e com seu bem-estar para desafiar o
patriarcado em nome desses homens com quem elas querem
conhecer o amor. Lemos livros de autoajuda que nos dizem o tempo
todo que não podemos mudar ninguém e que isso é altruísmo útil.
É também verdade, no entanto, que quando damos amor, amor
verdadeiro – não o intercâmbio emocional do tipo “eu te dou o que
você quer, você me dá o que eu quero”, mas preocupação genuína,
compromisso, conhecimentos, responsabilidade, respeito e
confiança – isso pode servir como um catalisador sedutor para a
mudança. Qualquer mulher que apoie o patriarcado, que sustenta
seu amor pelos homens em sua vida ou que está frustrada porque
eles não a amam, está em estado de negação.

Mulheres que querem que os homens amem sabem que


isso não pode realmente acontecer sem uma revolução de
consciência em que os homens deixem de lado o pensamento e a
ação patriarcais. Papéis sexistas sempre apoiaram as mulheres no
210

desenvolvimento emocional tornando, portanto, mais fácil para as


mulheres encontrarmos nosso caminho para o amor. Nós não
amamos mais ou melhor que os homens, mas achamos mais fácil
estar em contato com nossos sentimentos porque mesmo a
sociedade patriarcal apoia esse traço em nós. Os homens nunca
receberão suporte da cultura patriarcal para seu desenvolvimento
emocional. Mas se, como testemunhas iluminadas, oferecermos
aos homens que amamos (nossos pais, irmãos, parceiros, amigos,
camaradas) afirmação de que eles podem mudar, e a garantia de
que os aceitaremos quando mudarem, a transformação não
parecerá tão arriscada.

Ao mesmo tempo que homens individuais se tornaram


mais conscientes da falta de amor em suas vidas, eles também
reconheceram seu desejo por amor. Esse reconhecimento não
significa que os homens saibam o que fazer. Quando os homens
amam, isso muda a natureza de sua sexualidade, o que pensam
sobre sexo e com eles performam sexualmente. Muitos homens
temem aprender amar porque não podem imaginar a sexualidade
para além do modelo patriarcal. Num mundo onde os homens
amam, o foco no eros e no erotismo naturalmente substituirá a
obsessão masculina com sexo. Todos os homens poderiam ter a
oportunidade de curtir prazer sexual, incluindo fantasia sexual, por
si só e não como um substituto de fantasias de dominação ou como
forma de afirmar masculinidade ao invés de individualidade, onde
eles aprendem um erotismo saudável.

Frequentemente os homens usam fantasias sexuais


perversas (particularmente o uso de pornografia patriarcal) como
forma de se esconder da depressão e da dor. Pornografia patriarcal
211

é o lugar onde os homens podem fingir que a promessa do poder


patriarcal pode sempre se concretizar. Michael Kimmes explora
esse aspecto da luxúria masculina em seu trabalho Fuel for Fantasy
(Combustível da fantasia):

“A utopia pornográfica é um mundo de


abundância, abandono e autonomia – resumindo,
um mundo total diferente daquele em que
vivemos... A maioria dos homens não se sentem
especialmente bem sobre si mesmos, vivendo
vidas de ‘desespero silencioso’... Fantasia
pornográfica é uma vingança contra o mundo real
das vidas dos homens. Para transformar essas
fantasias, é preciso que nós transformemos essa
realidade também”.

Transformar o mundo real que os homens habitam requer


nossa disposição coletiva de sonhar de forma nova com os corpos
dos homens e torná-los um lugar de beleza, prazer, desejo e
possibilidade humana. No livro The Soul of Sexes (A alma dos
sexos) James Hillman declara:

“Uma das primeiras conquistas a se fazer para


reconciliar corpo e espírito, pré-requisito para
uma sexualidade aprofundada e de alma, é a
redescoberta da virtude e do valor do erotismo do
corpo... Para encontrar a alma do sexo,
precisamos arrancá-la do corpo materialista e
mecânico que criamos em forma de filosofia
moderna e reuni-la com o corpo sutil, cheio de
fantasia e mitologizado da imaginação”.
212

Tendo sido feridos no lugar do coração em que poderiam


ter se imaginado livres, os homens devem passar por uma
restauração curativa da vontade de imaginar antes que rompam
com um modelo de sexualidade que fomenta o vício enquanto nega-
lhes acesso a uma sexualidade que satisfaça.

Steve Bearman explica a compulsão masculina por sexo


como o eros interrompido em sua dissertação Why Are Men So
Obsessed With Sex (Porque os homens são tão obcecados com
sexo):

“Direta e indiretamente a sexualidade nos é


colocada como um veículo pelo qual é possível
expressar e experienciar aspectos essenciais de
nossa humanidade que foram, devagar e
sistematicamente, retiradas de nós”.

O sexo foi, e é, apresentado como a estrada para a


intimidade verdadeira, a proximidade completa, como a arena na
qual se pode amar abertamente, ser carinhoso e vulnerável e ainda
assim continuar seguro, não se sentir tão sozinho. O sexo é o único
lugar em que a sensualidade é permitida, onde podemos ser gentis
com nossos próprios corpos e nos permitir transbordar de paixão.
Prazer e desejo, vitalidade e excitação, que parecem ter sido
abandonados em algum lugar que sequer conseguimos nos
lembrar, tornam-se imagináveis de novo.

Pungente e poderosamente provocativa, essa é a


promessa de sexualidade dentro do patriarcado, mas é uma
promessa que não pode ser cumprida no final das contas. Homens
e garotos que a abraçam estão fadados a para sempre desejar,
sempre num estado de falta.
213

Bearman explica que, depois de aprender a ser obcecado


por sexo por meio do condicionamento patriarcal, os homens são
“então submetidos a um continuado condicionamento para reprimir
a sensualidade, dopar os sentimentos, ignorar nossos corpos e nos
separar de nossa proximidade natural com os seres humanos”. Ele
continua:

“Todas essas necessidades humanas nos são


prometidas pelo sexo e pela sexualidade... Mas
de forma alguma o sexo pode completamente
preencher essas necessidades. Tais
necessidades só podem ser preenchidas curando
os efeitos do condicionamento masculino e
enchendo cada área de nossas vidas com
empatia e vivacidade”.

Sugerindo que os homens resistem à repressão e


escolhem a paixão conforme reclamam seus sentimentos, Bearman
identifica paixão como “a grande aliada” que os homens podem
escolher em seus esforços para libertar sua humanidade por
completo. O significado central da palavra patior em Latim é “sofrer”.
Para reclamar a paixão, os homens precisam abraçar a dor, sentir
o sofrimento, passar por ele para chegar ao mundo de prazer que
os espera. Essa é a jornada heroica para os homens do nosso
tempo. Não é uma jornada para conquistar e dominar, para
desconectar e extirpar a vida; é uma jornada de retomada, em que
aos poucos sua individualidade vai sendo encontrada e juntada,
tornada inteira.

Conforme os homens trabalham para se tornar íntegros, o


sexo assume seu lugar de direito como um prazer em meio a tantos
214

outros prazeres. Diferentemente do sexo patriarcal viciante, a


paixão enraizada num etos erótico de afirmação da vida aprofunda
a conexão emocional. De acordo com Zukav e Francis:

“A intimidade sexual amorosa... expressa cuidado e


carinho. É uma troca mútua, não uma retirada mútua. É uma arena
na qual os indivíduos cultivam um ao outro ao invés de se
explorarem. Na intimidade sexual amorosa, os parceiros sexuais
não são intercambiáveis. Eles são únicos em suas histórias,
aptidões, esforços e contentamentos. Eles se conhecem e se
preocupam um com o outro. Eles têm empatia. Eles se interessam
um pelo outro. Eles usam a intimidade física para aprofundar sua
intimidade emocional... Eles estão comprometidos em crescer
juntos.

Homens individuais que encontraram seu caminho de volta


a um senso restaurado de erótico, do eros como força vital,
precisam compartilhar sua benção com os homens em geral.
Bearman nos diz:

“Minha visão para mim mesmo e para os outros


homens é que nós resgatemos cada pedaço de
humanidade que nos foi negado pelo nosso
condicionamento. A obsessão com sexo pode ser
curada quando reclamamos todos os aspectos
essenciais da experiência humana de que
aprendemos a viver apartados: nossa afinidade
uns com os outros, conexões de carinho com
pessoas de todas as idades e experiências e
gêneros, satisfação sensual de nossos corpos,
expressão própria apaixonada, desejo
215

emocionado, amor carinhoso conosco e com os


outros, vulnerabilidade, ajuda com nossas
dificuldades, descanso gentil, ficar perto das
pessoas em diversos tipos de relacionamentos”.

Mulheres que amam os homens compartilham dessa


visão.

Nós desejamos que garotos e homens encontrem o


caminho do amor-próprio.

Nós desejamos que garotos e homens caminhem do amor-


próprio para o companheirismo que cure uns aos outros. Nenhum
homem que reclama sua paixão pela vida teme a paixão de outro
homem, Ele não é homofóbico, porque sê-lo significaria rejeitar a
autoaceitação e aceitação dos outros que é essencial para a
formação e manutenção da autoestima. Se todos os homens
tivessem contato com a paixão positiva primitiva, as categorias de
gay e hétero perderiam sua importância.

Em A Queer Geography (Uma geografia queer), Frank


Browning faz uma distinção útil entre a identidade política gay, que
frequente encerra conexões, e um comprometimento com o eros e
o erotismo que amplia conexões:

“Quando digo erótico, falo de todas as atrações


poderosas que podemos ter: ao oferecer e
receber mentoria, nos flertes não concretizados,
nas viagens intelectuais, na camaradagem suada
em jogos ou no trabalho, no êxtase espiritual, ao
ser abraçado num momento de dor silenciosa,
nas explosões de raiva por um inimigo comum,
216

no sublime amor da amizade. Todas ou nenhuma


dessas formas de amar podem estar conectadas
ao fato de que eu geralmente faço sexo com
homens porque todos esses amores podem
acontecer e acontecem tanto com homens e
mulheres em minha vida”.

O patriarcado tem procurado reprimir e domar a paixão


erótica precisamente por causa de seu poder de nos levar a uma
comunhão cada vez maior conosco mesmos, com aqueles que
conhecemos intimamente, e com o estranho.

O feminismo mudou as vidas íntimas das mulheres e


homens ao oferecer a todos a visão de relações fundada na
mutualidade, uma visão de parcerias sem dominação.

Essa promessa sedutora pode ser concretizada somente


com a cessação do pensamento patriarcal de dominar a consciência
das mulheres e homens, meninas e meninos. Na busca por curar as
feridas infligidas pelo patriarcado, precisamos ir até a fonte. Temos
que olhar os homens diretamente, nos olhos, e falar a verdade que
chegou o momento de os homens revolucionarem seus valores.
Não podemos virar nossos corações para longe dos meninos e
homens, e então questionar por que a política de guerra continua a
moldar nossa política nacional e nossas vidas românticas íntimas.

Há uma guerra entre os sexos nesta nação, entre aqueles


que acreditam que estão destinados a ser predadores e aqueles que
são considerados presa. A resistência à dominação de gênero
intensificou essa guerra. Conforme o pensamento e a prática
feministas perdem visibilidade, muitas mulheres procuram o
patriarcado para se salvarem. Mais do que nunca na história de
217

nossa nação, as mulheres são encorajadas a assumir a máscara


patriarcal e enterrar sua individualidade emocional tão
profundamente quanto fazem os homens. As mulheres abraçam
esse paradigma porque sentem que é melhor ser dominadora do
que ser dominada. Essa, no entanto, é uma visão perversa de
igualdade de gênero, que oferece às mulheres acesso igual à casa
dos mortos. Nessa casa não há amor.

A maioria das mulheres ainda não abraçou coletivamente


as teorias e práticas alternativas que as pensadoras visionárias –
mulheres e homens, mas especialmente feministas – ofereceram
para curar nossos corações feridos e nosso planeta em sofrimento.
Diferentemente da maioria dos homens, a maioria das mulheres
aprende habilidades relacionais. Está claro, porém, que é cada vez
mais frequente as mulheres usarem essas habilidades a serviço da
dominação, do patriarcado, e não na busca por liberdade e amor.
Ao reconhecer esse fato, vemos eu a maioria das mulheres não
estão em estágio mais avançado que os homens como grupo. Em
ambos os grupos, indivíduos procuram por salvação, completude,
se desafiam a serem radicais e revolucionários, mas a grande
maioria das pessoas continuam em dúvida sobre tomar o caminho
que acabará com a guerra dos gêneros e tornará o amor possível.

Por mais que esteja claro que muitos homens não estão
dispostos a explorar e seguir o caminho que leva à
autorrecuperação como as mulheres, não podemos ir muito longe
se abandonarmos os homens. Eles têm poder demais para serem
simplesmente ignorados ou esquecidos. Aqueles de nós que amam
os homens não querem continuar nossa jornada sem eles. Nós
precisamos deles perto de nós porque nós os amamos.
218

Compartilho da visão de Terrence Real sobre a


recuperação relacional, que convida dos homens que estiveram fora
do círculo de amor a retornar. A jornada masculina para o amor
nunca será fácil ou simples na cultura patriarcal. Assim como as
mulheres que navegaram por terreno difícil para abrir os corações,
para encontrar amor, os homens precisam de conscientização, de
grupos de apoio, terapia, educação. Emocionalmente famintos e
desligados, os homens, cansados da dor da falta de amor, precisam
que seus amados façam intervenções positivas como aquelas que
somos encorajados a fazer quando o problema é o vício.

Como Real afirma, “O mundo é antirrelacional. Os antigos


termos têm caminhado conosco por muito tempo. Podemos esperar
nos perder neles em alguns momentos, desviando do nosso
caminho. É então que a ajuda dos que conhecemos e amamos é
essencial”.

Os homens que procuram por ajuda frequentemente


encontram dificuldade em achar suporte. Exigimos que mudem sem
criar uma cultura de mudança que lhes dê suporte e assistência.

Repetidamente, quando tinha dificuldade em fazer o


trabalho do amor com um parceiro que não estava mudando, me
diziam para desistir dele, para jogá-lo para escanteio. Me diziam que
eu estava perdendo meu tempo. Todo esse retorno negativo me fez
pensar se há lugares de cura a que os homens feridos possam ir
aonde não serão ignorados, especialmente quando uma mudança
positiva não acontece rápido, ou não rápido o suficiente.

Mulheres que foram vitimizadas por homens, naturalmente


são mais cautelosas que decidem dar a serviço de ajudar a curar os
homens. Ainda assim, há muitas mulheres que tanto ajudaram
219

quanto machucaram os homens. Kay Leigh Hagan testemunha


sobre como os homens bons em sua vida a arruinaram por odiar os
homens:

“Tanto para homens como para mulheres, os


Homens Bons podem ser, de certa forma,
pessoas estranhas de se estar por perto porque
eles geralmente não agem de maneiras
associadas com os homens típicos; eles ouvem
mais do que falam; eles refletem sobre seus
próprios comportamentos e motivações, eles
ativamente se educam sobre a realidade das
mulheres ao buscar por cultura feminina e por
ouvir as mulheres... Eles evitam usar mulheres
para expressões emocionais substitutas...
Quando eles erram – e eles realmente erram –
eles procuram as mulheres para lhes guiar, e
recebem a crítica com gratidão. Eles praticam a
incerteza duradoura enquanto esperam por uma
nova forma de ser para revelar alternativas antes
não consideradas ao comportamento controlador
abusivo. Eles intervém no comportamento
misógino dos homens, mesmo quando não há
mulheres presentes, e trabalham duro para
reconhecer e desafiar seu próprio
comportamento. Talvez o que seja mais incrível é
que os Homens Bons percebem o valor da prática
feminista por si mesmos, e a advogam não por
ser politicamente correto ou porque querem que
220

as mulheres gostem deles, ou mesmo porque


querem igualdade para as mulheres, mas porque
entendem que o privilégio masculino impede não
só de serem completos, seres humanos
autênticos, mas também por saberem a verdade
sobre o mundo... Eles dão provas de que os
homens podem mudar”.

Esses homens são nossos verdadeiros camaradas na luta.


Sua presença em minha vida sustenta minha esperança.

Homens feridos, em crise, estão pedindo ajuda. Se não


estivessem, não saberíamos que estão sofrendo. Quando ouvimos
suas histórias, ouvimos que querem ficar bem e que não sabem o
que fazer. O filme Voltando a Viver (2002), baseado em uma história
real, é uma crônica da busca de um homem por um caminho de
cura. O poema de Fisher “Who Will Cry for the Little Boy?” (Quem
vai chorar pelo garotinho?), dá voz ao sofrimento que o homem
ferido não pode mais esconder.

Nós demonstramos nosso amor pela masculinidade, pelos


homens, ao trabalhar para curar as feridas dos homens que sofrem
e por aqueles de nós que presenciamos seu sofrimento. Muitas de
nós vivemos a verdade de que conhecer as formas como somos
feridos é o processo mais simples de achar e manter a prática da
cura. Vivemos numa cultura onde é aceito e até encorajado que as
mulheres se coloquem ao lado dos homens quando eles estão
fazendo o trabalho da destruição.

Mesmo assim, precisamos criar um mundo que nos pede


para ficar ao lado de um homem quando ele procura pela cura,
221

quando ele procura recuperação, quando ele trabalha para ser um


criador.

O trabalho da recuperação relacional masculina, de


reconexão, de moldar a intimidade e fazer uma comunidade, nunca
pode ser feito sozinho. Num mundo em que homens e meninos
estão perdendo seu caminho, precisamos criar guias, letreiros,
novos caminhos. Uma cultura de cura que empodera homens a
mudar está em construção. A cura não acontece no isolamento. Os
homens que amam e homens que querem amar sabem disso.

Precisamos estar ao lado deles, com nossos corações e


braços abertos. Precisamos estar prontos a abraçá-los, oferecendo
o amor que pode proteger seus espíritos feridos enquanto eles
buscam o caminho de casa, enquanto exercitam a disposição para
mudar.

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