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1. Introdução
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Juíza de direito no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Mestra em Direito pela Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Ex-Coordenadora Adjunta e Membro do Comitê Científico do
Fórum de Grupos de Pesquisa em Direito Constitucional e Teoria do Direito. Membro do Grupo de
Trabalho instituído pelo CNJ para tratar de questões raciais no âmbito do Poder Judiciário (Portaria nº
108/2020). Diretora de Promoção da Igualdade Racial da Associação dos Magistrados Brasileiros
(2020/2022).
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a perspectiva de uma hermenêutica negra a ser aplicada na análise dos casos de
violência doméstica.
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tendo como parâmetro de perfectibilidade a raça ariana, de origem europeia
(SCHWARCZ, 1993).
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A ideia de que o Brasil é um país onde vigora a chamada “democracia racial”
ganhou força com a obra de Gilberto Freyre, publicada em 1933, denominada Casa-
grande e senzala. Em seu livro, Freyre apresenta uma relação harmônica entre
brancos e negros, construída a partir da miscigenação. A mestiçagem seria a base
da sociedade brasileira, o que favoreceria a construção de uma democracia racial.
Sua abordagem afasta a inferioridade racial do negro sustentada pelo racismo
científico, base das teorias eugenistas, mantendo, contudo, um discurso conflitante,
uma vez que sustenta que os negros que foram trazidos para o Brasil eram
superiores àqueles que foram levados para os Estados Unidos. Além disso, para
Freyre, o mestiço seria o falso negro, aceito culturalmente por se aproximar das
características do colonizador. Portanto, há uma valorização do branqueamento da
pele e do aculturamento do povo negro.
A forma como Freyre retrata a relação entre brancos e negros é utópica, pois
faz parecer que não havia qualquer conflito, e somente nessa base ilusória é que se
pode admitir o mito da democracia racial.
Tudo se passa como se não houvesse luta, não houvesse revolta, não
houvesse crime. A existência de quilombos não é explicada, a própria
escravidão ganha caráter tão doce que é difícil imaginá-la hedionda e é
difícil acreditar que os negros não a desejassem. Tudo é paz, tudo é
harmonia, confraternização eterna entre os valores da senzala e da casa-
grande (SANTOS, 2002, p. 12).
O mito da democracia racial fez com que a questão racial não fosse uma
questão central para a sociedade brasileira, embora o racismo esteja presente de
forma estrutural em nossa sociedade desde o início da sua formação até os dias
atuais (ALMEIDA, 2019).
3. Racismo em números
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por meio de práticas conscientes ou inconscientes que culminam em desvantagens
ou privilégios para indivíduos, a depender do grupo racial a que pertençam”
(ALMEIDA, 2019, p. 32).
Por sua vez, Oscar Vilhena Vieira entende o racismo como “uma invenção
branca voltada a naturalizar a exclusão, a subordinação e a exploração da
população negra, assim como a legitimar a violência contra pretos e pardos, sem a
qual a dominação branca não subsistiria” (VIEIRA, 2020).
De certo, não se pode admitir a existência de uma democracia racial no Brasil
quando se observa a desigualdade, sob qualquer perspectiva, como pessoas negras
e não negras experienciam a vida em sociedade.
De acordo com o Atlas da violência (INSTITUTO DE PESQUISA
ECONÔMICA APLICADA, 2020), em 2018, os negros (soma de pretos e pardos,
segundo classificação do IBGE) representaram 75,7% das vítimas de homicídios,
com uma taxa de homicídio de 37,8 por 100 mil habitantes. Por outro lado, entre os
não negros (soma de brancos, amarelos e indígenas), a taxa foi de 13,9 por 100 mil
habitantes. Isso evidencia que, para cada indivíduo não negro morto em 2018, 2,7
negros foram mortos.
Da mesma forma, as mulheres negras representaram 68% do total das
mulheres assassinadas no Brasil, com uma taxa de mortalidade de 5,2 por 100 mil
habitantes, quase o dobro quando comparada à das mulheres não negras, que foi
de 2,8 por 100 mil habitantes.
Entre 2008 e 2018, as taxas de homicídio apresentaram um aumento de
11,5% para os negros, enquanto para os não negros houve uma redução de 12,9%.
A forma aguda como a violência atinge predominantemente a população
negra no Brasil nos remete às reflexões propostas por Achille Mbembe, que, a partir
do conceito de biopoder, de Michael Foucault, apresenta o racismo como um
instituto que tem “a função de regular a distribuição da morte e tornar possíveis as
funções assassinas do Estado”. Nesse contexto, a soberania consiste “no poder e
na capacidade de ditar quem pode viver e quem deve morrer”, e os números indicam
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que a população negra é quem tem sido escolhida para figurar nas fileiras da morte
(MBEMBE, 2016, p. 123).
A trajetória histórica do nosso país, na qual a libertação do povo negro
escravizado os lançou à própria sorte, explica parte do estado de coisas atual,
embora não seja a única justificativa (ALMEIDA, 2019). Mas é importante
compreender que a liberdade concedida às pessoas negras não representou o fim
da escravidão, pois “se é livre para viver a própria vida somente quando se é livre
para morrer a própria morte” (MBEMBE, 2016, p. 144).
Nessa perspectiva, o racismo estrutural, que permeia toda a nossa sociedade,
será determinante como fator de opressão e extermínio do povo negro. No dizer de
Almeida,
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Em Minas Gerais, no ano de 2018, a taxa de homicídios foi de 3,3 para cada
100 mil habitantes do sexo feminino.
Entretanto, no período entre 2008 a 2018, houve um aumento de 4,2% no
número de mulheres assassinadas, dado que revela crescimento ainda que haja
uma tendência de queda.
Embora o Atlas da violência registre a quantidade de homicídios, o estudo
não é capaz de mostrar os números específicos da violência doméstica, uma vez
que tais informações não constam dos registros utilizados para compor o relatório.
Entretanto, o relatório traz duas abordagens que servem como indicativos para
apontar o número de feminicídios no Brasil.
Analisando o homicídio de mulheres pelo local de ocorrência, observa-se que
a taxa de homicídios que se deram fora da residência da vítima não destoa da taxa
geral de homicídios e da taxa geral de homicídios de mulheres no país, indicando
tendência de queda. Não obstante, a taxa de homicídios de mulheres na residência
revela uma constante entre 2008 e 2013, com aumento de 8,3% entre 2013 e 2018,
havendo estabilidade entre 2017 e 2018.
Tais números demonstram uma dinâmica diversa entre os homicídios de
mulheres dentro e fora de suas residências. Considerando tais distinções, o Atlas
aponta que 30,4% dos homicídios de mulheres ocorridos em 2018 no Brasil seriam
em decorrência de feminicídio – um crescimento de 6,6% em relação a 2017.
Embora sejam números que decorrem de uma combinação analítica, aproximam-se
daqueles registrados pelas polícias civis, que foi de 29,4%.
O Atlas da violência mostra ainda que, entre 2013 e 2018, ao mesmo tempo
em que a taxa de homicídios de mulheres fora de casa diminuiu 11,5%, as mortes
dentro de casa aumentaram 8,3%, o que é um indicativo do crescimento de
feminicídios.
Os números revelam que o percentual de mulheres que sofrem a violência
dentro da residência é 2,7 vezes o de homens, o que parece evidenciar a dinâmica
da violência de gênero, notadamente, do feminicídio.
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No mesmo período, houve aumento de 25% nos homicídios de mulheres por
arma de fogo dentro das residências, que, para os pesquisadores, pode ser um
reflexo do crescimento na difusão de armas, que teve um aumento significativo nos
últimos anos.
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(HOOKS, 2020). Tais apontamentos indicam que, para mulheres negras, o racismo é
ainda mais opressor do que o sexismo.
O discurso de Sojourner Truth, proferido em 1851, durante a Convenção dos
Direitos da Mulheres de Ohio, em Akron, é um marco nesse despertar para a
necessidade de ampliação da luta pelos direitos das mulheres, de forma a abarcar
as vulnerabilidades também das mulheres negras, e não apenas daquelas que
representavam o padrão universal – mulheres brancas de classe média e alta.
Aqueles homens ali dizem que as mulheres precisam de ajuda para subir
em carruagens, e devem ser carregadas para atravessar valas, e que
merecem o melhor lugar onde quer que estejam. Ninguém jamais me
ajudou a subir em carruagens, ou a saltar sobre poças de lama, e nunca me
ofereceram melhor lugar algum! E não sou uma mulher? Olhem para mim?
Olhem para meus braços! Eu arei e plantei, e juntei a colheita nos celeiros,
e homem algum poderia estar à minha frente. E não sou uma mulher? Eu
poderia trabalhar tanto e comer tanto quanto qualquer homem – desde que
eu tivesse oportunidade para isso – e suportar o açoite também! E não sou
uma mulher? Eu pari treze filhos e vi a maioria deles ser vendida para a
escravidão, e quando eu clamei com a minha dor de mãe, ninguém a não
ser Jesus me ouviu! E não sou uma mulher? (TRUTH, 2014).
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2018, a taxa de homicídios entre mulheres não negras caiu 11,7%, ao passo que a
taxa de homicídios entre mulheres negras aumentou 12,4% (INSTITUTO DE
PESQUISA ECONÔMICA APLICADA, 2020).
As oportunidades profissionais das mulheres negras também sofrem os
efeitos do racismo. De acordo com pesquisa publicada pela Universidade Duke, nos
Estados Unidos, cabelos crespos, que são um traço característico de mulheres
negras, reduzem as chances profissionais dessas mulheres, percebidas como
menos profissionais do que negras com cabelos alisados (ESTELA; PINTO;
ROSETTE, 2020). Ou seja, para ampliar suas chances de conseguir um emprego,
mulheres negras devem adotar um padrão estético que as aproxime do padrão
estético de mulheres não negras, como, por exemplo, cabelos alisados.
O período de escravidão ajudou a construir diversos mitos e estereótipos a
respeito da mulher negra, chegando mesmo a descaracterizá-la como mulher. Tais
construções foram reforçadas pelo racismo e permanecem até os dias atuais. Um
exemplo dessa construção imaginária é a ideia de que a mulher negra é uma mulher
“forte”, muitas vezes sequer reconhecida como mulher.
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mais de um hospital no momento de internação para o parto, e, frequentemente,
estão sozinhas, com ausência de acompanhante durante o parto (RIBEIRO, 2020).
Com Akotirene, vale destacar que as opressões não são hierarquizadas
(AKOTIRENE, 2020). O que se pretende com o olhar da interseccionalidade é
contemplar uma miríade de situações que tornam as mulheres negras mais
vulneráveis em virtude de diferentes camadas de opressão, o que demanda
soluções complexas e não homogeneizadas.
Perceber de que forma a intersecção entre gênero, raça e classe social pode
tornar a situação de vulnerabilidade das mulheres ainda mais agressiva é importante
para que possamos atender adequadamente aquelas que nos chegam em situação
de violência.
Não obstante, muitas vezes as instituições estatais reproduzem o racismo e o
sexismo e agravam ainda mais a situação daquelas que deveriam ser acolhidas pela
rede de proteção posta à disposição pelo Estado.
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Ter consciência desse processo discriminatório negativo é importante para
reverter esse quadro; compreender que o racismo pode ser individual, mas que é
também e sobretudo institucional, torna-se fundamental para fazer cessar essa
engrenagem que destrói a autoestima das mulheres negras, principalmente
daquelas em situação de violência doméstica.
Além disso, é importante que a narrativa apresentada por qualquer mulher em
situação de violência doméstica e, ainda mais, por mulheres negras, seja levada a
sério, pois dentro da lógica racista e sexista, a mulher negra é uma mulher
silenciada, cuja voz não é ouvida. A partir do questionamento apresentado por
Gayatri C. Spivak sobre a possibilidade de uma subalterna falar, Grada Kilomba
responde que “é impossível para a subalterna falar ou recuperar sua voz e, mesmo
que ela tivesse tentado com toda sua força e violência, sua voz ainda não seria
escutada ou compreendida pelos que estão no poder” (KILOMBA, 2019, p. 47).
A ausência dessa análise interseccional levou o estado brasileiro a ser
condenado pela inobservância da discriminação sofrida por Simone André Diniz. No
caso, Simone buscava uma oportunidade profissional e se deparou com um anúncio
para vaga de empregada doméstica “de preferência branca”. Em contato com a
anunciante, esta confirmou a exigência da “branquitude”. Ao dizer que era negra,
Simone foi informada de que não preenchia os requisitos necessários para a vaga.
O caso foi judicializado, sendo arquivado pela justiça brasileira, embora a anunciante
tenha confirmado a exigência quanto à preferência racial.
O caso foi levado à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) da
Organização dos Estados Americanos (OEA) e resultou na condenação do Brasil por
omissão ao permitir que um caso de discriminação racial fosse arquivado sem
sequer ter havido uma ação penal. Para a CIDH da OEA, houve o “descumprimento
pelo Estado brasileiro de sua obrigação de garantir os direitos consagrados na
Convenção Americana, a que se refere o artigo 1(1) de dito tratado”, que dispõe
sobre o dever dos estados signatários em respeitar os direitos e liberdades nela
reconhecidos e a garantir seu livre e pleno exercício a toda pessoa que esteja sujeita
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à sua jurisdição, sem discriminação alguma por motivo de raça, cor, sexo, idioma,
religião, opiniões políticas ou de qualquer outra natureza, origem nacional ou social,
posição econômica, nascimento ou qualquer outra condição social (PENTEADO,
2006).
Na obra Pensando como um negro: ensaio de hermenêutica jurídica, Adilson
Moreira (ano 2019) propõe uma hermenêutica jurídica pautada na visão de uma
pessoa negra como forma de diminuir os efeitos do racismo estrutural que perpassa
as instituições públicas e privadas e que explica, em alguma medida, a razão pela
qual muitos processos envolvendo questões raciais não resultam em condenação.
Cabe lembrar que, de acordo com pesquisas realizadas pelo Conselho
Nacional de Justiça (CNJ), a magistratura brasileira é formada predominantemente
por homens brancos (CNJ, 2018), havendo apenas 6% de magistradas negras
espalhadas por todo o território nacional.
Assim, estatisticamente, haverá uma maior probabilidade de que casos de
violência doméstica cujas vítimas são majoritariamente mulheres negras sejam
julgados por homens brancos. Para que essa diferença não se converta em uma
camada a mais de opressão, como aquela evidenciada no caso Simone André Diniz,
Moreira propõe que a/o jurista empreenda esforços para pensar como um negro na
aplicação da hermenêutica jurídica.
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7. Conclusão
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