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UNIDADE 2: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E

FAMILIAR CONTRA A MULHER E SUA


INTERSECÇÃO COM RAÇA E CLASSE
SOCIAL
Flávia Martins de Carvalho2

1. Introdução

O Brasil é um país racista. Essa afirmação, embora lastreada por fatos e


dados, ainda é negada por boa parcela da sociedade brasileira, o que dificulta o
adequado enfrentamento da desigualdade racial que vigora em nosso país
(GHIROTTO, 2020; VIEIRA, 2020). Ainda assim, algumas iniciativas, a exemplo da
política de cotas nos concursos públicos, vem ampliando a inclusão de pessoas
negras em espaços de poder, o que nos coloca na direção de uma sociedade mais
igualitária, embora muito ainda precise ser feito.
Nos limites do presente artigo, inicialmente, apresentaremos o mito da
democracia racial e a razão pela qual este deve ser desconstruído. A seguir,
abordaremos os efeitos do racismo nos índices de violência. Mais adiante,
demonstraremos de que maneira os marcadores de raça, gênero e classe social
tornam a mulher negra mais vulnerável à violência doméstica. Por fim, abordaremos

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Juíza de direito no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Mestra em Direito pela Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Ex-Coordenadora Adjunta e Membro do Comitê Científico do
Fórum de Grupos de Pesquisa em Direito Constitucional e Teoria do Direito. Membro do Grupo de
Trabalho instituído pelo CNJ para tratar de questões raciais no âmbito do Poder Judiciário (Portaria nº
108/2020). Diretora de Promoção da Igualdade Racial da Associação dos Magistrados Brasileiros
(2020/2022).

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a perspectiva de uma hermenêutica negra a ser aplicada na análise dos casos de
violência doméstica.

2. O mito da democracia racial

Com o fim da escravidão no Brasil, a questão racial foi tratada de diferentes


formas em nossa história recente, que vão desde a busca do embranquecimento da
população até a construção do mito da democracia racial, todas buscando a
invisibilidade dos problemas enfrentados pela população negra em nosso país
(SILVA, 2015).
O racismo científico, que atribuía a pessoas negras condição inferior e as
afastava da condição de seres humanos, foi bastante aceito no século XIX e
sustentou uma quase obsessão pela busca da raça pura. Conforme leciona Lilia
Moritz Schwarcz, as teorias de Lombroso e Darwin contribuíram para a ideia de que
a miscigenação deveria ser evitada a fim de promover a evolução natural e a
preservação das espécies, de modo a serem extirpados traços patológicos de
“degeneração”, que eram, segundo tais teorias, mais incidentes em pessoas negras.

Um outro tipo de determinismo, um determinismo de cunho racial, toma


força nesse contexto. Denominada ‘darwinismo social’ ou ‘teoria das raças’,
essa nova perspectiva via de forma pessimista a miscigenação, já que
acreditava que ‘não se transmitiam caracteres adquiridos’, nem mesmo por
meio de um processo de evolução social. Ou seja, as raças constituiriam
fenômenos finais, resultados imutáveis, sendo todo cruzamento, por
princípio, entendido como erro. As decorrências lógicas desse tipo de
postulado eram duas: enaltecer a existência de ‘tipos puros’ – e portanto
não sujeitos a processos de miscigenação – e compreender a mestiçagem
como sinônimo de degeneração não só racial como social (SCHWARCZ,
1993, p. 76/78).

Essas teorias acabaram por influenciar políticas estatais, de forma que a


busca de uma raça pura e a eliminação de raças inferiores revelaram-se um “ideal
político”, com reflexos nos programas de reprodução da população, que
incorporaram um viés eugenista, chegando a haver proibições de casamentos inter-
raciais para manter o equilíbrio genético e evitar a degradação das espécies, sempre

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tendo como parâmetro de perfectibilidade a raça ariana, de origem europeia
(SCHWARCZ, 1993).

No dizer de Kon, Silva e Abud, “a política de ‘embranquecimento’ ou


‘branqueamento’ da população, conduzida pelo Estado, estabeleceu uma nova
modalidade de racismo à brasileira”. Isso porque o ideal passou a ser a busca pelo
clareamento estético e cultural para que o negro e, principalmente, o mestiço
pudessem ser aceitos socialmente (SILVA, 2017).
Com o avanço dos estudos científicos, sobretudo daqueles relacionados à
genética, a crença de que poderia haver uma raça pura superior a qualquer outra
caiu por terra, o que não significou o fim do racismo. Ao contrário, o discurso de que
não existe raça e de que somos todos seres humanos tem sido utilizado muitas
vezes como argumento contra políticas afirmativas que tenham por objetivo a busca
da igualdade racial através de reserva de cotas para pessoas pretas e pardas.
Entretanto, é importante compreender que raça e racismo são construções
históricas e culturais, que fazem de pessoas brancas o padrão universal sob
diversos aspectos, ao passo que pessoas não brancas são tidas como “o outro”,
muitas vezes sequer reconhecidas como humanas.

Ser branco situa as pessoas em um lugar específico dentro das hierarquias


sociais em função da significação que o pertencimento ao grupo racial
dominante possui no mundo contemporâneo. À identidade racial branca
estão associados diversos predicados positivos, como superioridade
cultural, beleza estética, integridade moral, sucesso econômico e
sexualidade sadia. […]
A negritude surge a partir da atribuição negativa de características morais a
traços fenotípicos das populações africanas. […] O racismo cumpre então
um papel central nesse processo, pois cria e propaga imagens culturais
destinadas a justificar hierarquias entre brancos e negros. Assim, essas
duas identidades são construídas a partir da lógica oposicional na qual
grupos de pessoas são racializadas de formas distintas em função das
relações de poder que possuem dimensões culturais, políticas, históricas e
econômicas (MOREIRA, 2019a, p. 42/43).

Assim, temos que a racialização é muito mais uma construção histórica e


sociocultural do que o resultado de uma formação biológica.

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A ideia de que o Brasil é um país onde vigora a chamada “democracia racial”
ganhou força com a obra de Gilberto Freyre, publicada em 1933, denominada Casa-
grande e senzala. Em seu livro, Freyre apresenta uma relação harmônica entre
brancos e negros, construída a partir da miscigenação. A mestiçagem seria a base
da sociedade brasileira, o que favoreceria a construção de uma democracia racial.
Sua abordagem afasta a inferioridade racial do negro sustentada pelo racismo
científico, base das teorias eugenistas, mantendo, contudo, um discurso conflitante,
uma vez que sustenta que os negros que foram trazidos para o Brasil eram
superiores àqueles que foram levados para os Estados Unidos. Além disso, para
Freyre, o mestiço seria o falso negro, aceito culturalmente por se aproximar das
características do colonizador. Portanto, há uma valorização do branqueamento da
pele e do aculturamento do povo negro.
A forma como Freyre retrata a relação entre brancos e negros é utópica, pois
faz parecer que não havia qualquer conflito, e somente nessa base ilusória é que se
pode admitir o mito da democracia racial.

Tudo se passa como se não houvesse luta, não houvesse revolta, não
houvesse crime. A existência de quilombos não é explicada, a própria
escravidão ganha caráter tão doce que é difícil imaginá-la hedionda e é
difícil acreditar que os negros não a desejassem. Tudo é paz, tudo é
harmonia, confraternização eterna entre os valores da senzala e da casa-
grande (SANTOS, 2002, p. 12).

O mito da democracia racial fez com que a questão racial não fosse uma
questão central para a sociedade brasileira, embora o racismo esteja presente de
forma estrutural em nossa sociedade desde o início da sua formação até os dias
atuais (ALMEIDA, 2019).

3. Racismo em números

Segundo Silvio Almeida, pode-se conceituar o racismo como “uma forma


sistemática de discriminação que tem a raça como fundamento, e que se manifesta

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por meio de práticas conscientes ou inconscientes que culminam em desvantagens
ou privilégios para indivíduos, a depender do grupo racial a que pertençam”
(ALMEIDA, 2019, p. 32).
Por sua vez, Oscar Vilhena Vieira entende o racismo como “uma invenção
branca voltada a naturalizar a exclusão, a subordinação e a exploração da
população negra, assim como a legitimar a violência contra pretos e pardos, sem a
qual a dominação branca não subsistiria” (VIEIRA, 2020).
De certo, não se pode admitir a existência de uma democracia racial no Brasil
quando se observa a desigualdade, sob qualquer perspectiva, como pessoas negras
e não negras experienciam a vida em sociedade.
De acordo com o Atlas da violência (INSTITUTO DE PESQUISA
ECONÔMICA APLICADA, 2020), em 2018, os negros (soma de pretos e pardos,
segundo classificação do IBGE) representaram 75,7% das vítimas de homicídios,
com uma taxa de homicídio de 37,8 por 100 mil habitantes. Por outro lado, entre os
não negros (soma de brancos, amarelos e indígenas), a taxa foi de 13,9 por 100 mil
habitantes. Isso evidencia que, para cada indivíduo não negro morto em 2018, 2,7
negros foram mortos.
Da mesma forma, as mulheres negras representaram 68% do total das
mulheres assassinadas no Brasil, com uma taxa de mortalidade de 5,2 por 100 mil
habitantes, quase o dobro quando comparada à das mulheres não negras, que foi
de 2,8 por 100 mil habitantes.
Entre 2008 e 2018, as taxas de homicídio apresentaram um aumento de
11,5% para os negros, enquanto para os não negros houve uma redução de 12,9%.
A forma aguda como a violência atinge predominantemente a população
negra no Brasil nos remete às reflexões propostas por Achille Mbembe, que, a partir
do conceito de biopoder, de Michael Foucault, apresenta o racismo como um
instituto que tem “a função de regular a distribuição da morte e tornar possíveis as
funções assassinas do Estado”. Nesse contexto, a soberania consiste “no poder e
na capacidade de ditar quem pode viver e quem deve morrer”, e os números indicam

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que a população negra é quem tem sido escolhida para figurar nas fileiras da morte
(MBEMBE, 2016, p. 123).
A trajetória histórica do nosso país, na qual a libertação do povo negro
escravizado os lançou à própria sorte, explica parte do estado de coisas atual,
embora não seja a única justificativa (ALMEIDA, 2019). Mas é importante
compreender que a liberdade concedida às pessoas negras não representou o fim
da escravidão, pois “se é livre para viver a própria vida somente quando se é livre
para morrer a própria morte” (MBEMBE, 2016, p. 144).
Nessa perspectiva, o racismo estrutural, que permeia toda a nossa sociedade,
será determinante como fator de opressão e extermínio do povo negro. No dizer de
Almeida,

[o] racismo estabelecerá a linha divisória entre superiores e inferiores, entre


bons e maus, entre os grupos que merecem viver e os que merecem
morrer, entre os que terão a vida prolongada e os que serão deixados para
morrer, entre os que devem permanecer vivos e os que serão mortos. E que
se entenda que a morte aqui não é apenas a retirada da vida, mas também
é entendida como a exposição ao risco da morte, a morte política, a
expulsão e a rejeição (ALMEIDA, 2019, p. 115).

Mas negros e negras têm resistido à chamada “necropolítica”, termo cunhado


por Mbembe para tratar do extermínio do povo negro através da soberania estatal, e
tal como o personagem Dorvi, retratado por Conceição Evaristo, na obra Olhos
d’água, segue dizendo: “A gente combinamos de não morrer!” (EVARISTO, 2016, p.
99).

4. Os números da violência contra a mulher

Ainda de acordo com o Atlas da violência, em 2018, 4.519 mulheres foram


assassinadas no Brasil. Isso significa uma mulher assassinada a cada duas horas,
indicando uma taxa de 4,3 homicídios para cada 100 mil habitantes do sexo
feminino. Os números indicam que houve uma queda de 9,3% entre 2017 e 2018.

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Em Minas Gerais, no ano de 2018, a taxa de homicídios foi de 3,3 para cada
100 mil habitantes do sexo feminino.
Entretanto, no período entre 2008 a 2018, houve um aumento de 4,2% no
número de mulheres assassinadas, dado que revela crescimento ainda que haja
uma tendência de queda.
Embora o Atlas da violência registre a quantidade de homicídios, o estudo
não é capaz de mostrar os números específicos da violência doméstica, uma vez
que tais informações não constam dos registros utilizados para compor o relatório.
Entretanto, o relatório traz duas abordagens que servem como indicativos para
apontar o número de feminicídios no Brasil.
Analisando o homicídio de mulheres pelo local de ocorrência, observa-se que
a taxa de homicídios que se deram fora da residência da vítima não destoa da taxa
geral de homicídios e da taxa geral de homicídios de mulheres no país, indicando
tendência de queda. Não obstante, a taxa de homicídios de mulheres na residência
revela uma constante entre 2008 e 2013, com aumento de 8,3% entre 2013 e 2018,
havendo estabilidade entre 2017 e 2018.
Tais números demonstram uma dinâmica diversa entre os homicídios de
mulheres dentro e fora de suas residências. Considerando tais distinções, o Atlas
aponta que 30,4% dos homicídios de mulheres ocorridos em 2018 no Brasil seriam
em decorrência de feminicídio – um crescimento de 6,6% em relação a 2017.
Embora sejam números que decorrem de uma combinação analítica, aproximam-se
daqueles registrados pelas polícias civis, que foi de 29,4%.
O Atlas da violência mostra ainda que, entre 2013 e 2018, ao mesmo tempo
em que a taxa de homicídios de mulheres fora de casa diminuiu 11,5%, as mortes
dentro de casa aumentaram 8,3%, o que é um indicativo do crescimento de
feminicídios.
Os números revelam que o percentual de mulheres que sofrem a violência
dentro da residência é 2,7 vezes o de homens, o que parece evidenciar a dinâmica
da violência de gênero, notadamente, do feminicídio.

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No mesmo período, houve aumento de 25% nos homicídios de mulheres por
arma de fogo dentro das residências, que, para os pesquisadores, pode ser um
reflexo do crescimento na difusão de armas, que teve um aumento significativo nos
últimos anos.

5. Raça e classe como fatores de maior vulnerabilidade

O cruzamento dos marcadores de raça, gênero e classe social, também


chamado de “interseccionalidade”, faz da mulher preta, pobre e periférica a mais
vulnerável dentro do sistema de desigualdades, exigindo maior atenção por parte
das autoridades e da rede de proteção quando do atendimento a situações de
violência.
O conceito de “interseccionalidade” foi cunhado por Kimberlé Crenshaw, em
1989, e, segundo Carla Akotirene, aportada por Patrícia Hill Collins, seria uma
espécie de “sistema de opressão interligado” (AKOTIRENE, 2020, p. 21). Surge
como categoria analítica a partir da percepção de que o feminismo tradicional lutava
contra a opressão da “mulher” tendo como parâmetro a mulher branca das classes
alta e média, o que excluía diversas outras mulheres do movimento feminista,
sobretudo mulheres negras.
“Minha experiência de vida me mostrou duas questões inseparáveis, que, no
momento de meu nascimento, dois fatores determinaram meu destino, o fato de eu
ter nascido negra e o fato de eu ter nascido mulher” (HOOKS, 2020, p. 35). Com
essas palavras, Bell Hooks aponta as categorias raça e gênero como marcadores
que definem, antecipadamente, experiências de vida decorrentes de nossa
organização social construída em bases sexistas e racistas.
Grada Kilomba aponta que mulheres negras descrevem a opressão que
experienciam primeiro em relação à raça em vez de em relação ao gênero
(KILOMBA, 2019), o que é também descrito por Bell Hooks ao afirmar que mulheres
negras do século XX tendem a aceitar o sexismo como algo natural, um fato da vida,
diversamente do racismo, que seria uma força mais opressiva em suas vidas

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(HOOKS, 2020). Tais apontamentos indicam que, para mulheres negras, o racismo é
ainda mais opressor do que o sexismo.
O discurso de Sojourner Truth, proferido em 1851, durante a Convenção dos
Direitos da Mulheres de Ohio, em Akron, é um marco nesse despertar para a
necessidade de ampliação da luta pelos direitos das mulheres, de forma a abarcar
as vulnerabilidades também das mulheres negras, e não apenas daquelas que
representavam o padrão universal – mulheres brancas de classe média e alta.

Aqueles homens ali dizem que as mulheres precisam de ajuda para subir
em carruagens, e devem ser carregadas para atravessar valas, e que
merecem o melhor lugar onde quer que estejam. Ninguém jamais me
ajudou a subir em carruagens, ou a saltar sobre poças de lama, e nunca me
ofereceram melhor lugar algum! E não sou uma mulher? Olhem para mim?
Olhem para meus braços! Eu arei e plantei, e juntei a colheita nos celeiros,
e homem algum poderia estar à minha frente. E não sou uma mulher? Eu
poderia trabalhar tanto e comer tanto quanto qualquer homem – desde que
eu tivesse oportunidade para isso – e suportar o açoite também! E não sou
uma mulher? Eu pari treze filhos e vi a maioria deles ser vendida para a
escravidão, e quando eu clamei com a minha dor de mãe, ninguém a não
ser Jesus me ouviu! E não sou uma mulher? (TRUTH, 2014).

O discurso de Truth denuncia a forma mais acentuada como mulheres negras


eram atingidas pelo sexismo em virtude do seu cruzamento com o racismo.
Pesquisa realizada em 2020 pelo Instituto Locomotiva indicou que o
percentual de mulheres negras em ensino superior com idade entre 25 anos ou mais
é de 13% contra 27% de mulheres não negras na mesma faixa etária. Por sua vez, a
renda média entre mulheres negras com nível superior é de R$3.067,00 contra uma
renda média de 4.566,00 entre mulheres não negras. Ou seja, mulheres não negras
com nível superior têm renda média 33% maior do que a de mulheres negras com o
mesmo grau de instrução, além de terem mais acesso ao nível superior de ensino do
que mulheres negras (LOCOMOTIVA, 2020).
A análise sob a perspectiva racial indica, ainda, que mulheres negras e não
negras são afetadas de formas diferentes pela violência (INSTITUTO DE PESQUISA
ECONÔMICA APLICADA, 2020).
Entre 2017 e 2018, houve queda de 12,3% nos homicídios de mulheres não
negras; entre mulheres negras, a redução foi de 7,2%. Já no período entre 2008 e

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2018, a taxa de homicídios entre mulheres não negras caiu 11,7%, ao passo que a
taxa de homicídios entre mulheres negras aumentou 12,4% (INSTITUTO DE
PESQUISA ECONÔMICA APLICADA, 2020).
As oportunidades profissionais das mulheres negras também sofrem os
efeitos do racismo. De acordo com pesquisa publicada pela Universidade Duke, nos
Estados Unidos, cabelos crespos, que são um traço característico de mulheres
negras, reduzem as chances profissionais dessas mulheres, percebidas como
menos profissionais do que negras com cabelos alisados (ESTELA; PINTO;
ROSETTE, 2020). Ou seja, para ampliar suas chances de conseguir um emprego,
mulheres negras devem adotar um padrão estético que as aproxime do padrão
estético de mulheres não negras, como, por exemplo, cabelos alisados.
O período de escravidão ajudou a construir diversos mitos e estereótipos a
respeito da mulher negra, chegando mesmo a descaracterizá-la como mulher. Tais
construções foram reforçadas pelo racismo e permanecem até os dias atuais. Um
exemplo dessa construção imaginária é a ideia de que a mulher negra é uma mulher
“forte”, muitas vezes sequer reconhecida como mulher.

Nos Estados Unidos, a ideologia racista branca sempre permitiu que


mulheres brancas assumissem que a palavra ‘mulher’ é sinônimo de ‘mulher
branca’, porque as mulheres de outras raças são sempre consideradas as
Outras, seres desumanizados que não cabem sob o título de ‘mulher’
(HOOKS, 2020, p. 222).

No Brasil, pesquisas realizadas pela Fundação Osvaldo Cruz, sob a


coordenação da pesquisadora Maria do Carmo Leal, indicaram que mitos e
estereótipos a respeito da mulher negra, como o fato de que seriam mais fortes e
resistentes à dor, fazem com que essas mulheres sofram mais durante o parto, pois
a chance de uma mulher negra não receber anestesia é 50% maior quando
comparada com mulheres não negras (RIBEIRO, 2020).
Ainda de acordo com a pesquisa da Fiocruz, mulheres negras possuem maior
risco de ter um pré-natal inadequado, realizando menos consultas do que o indicado
pelo Ministério da Saúde; têm maior peregrinação entre maternidades, buscando

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mais de um hospital no momento de internação para o parto, e, frequentemente,
estão sozinhas, com ausência de acompanhante durante o parto (RIBEIRO, 2020).
Com Akotirene, vale destacar que as opressões não são hierarquizadas
(AKOTIRENE, 2020). O que se pretende com o olhar da interseccionalidade é
contemplar uma miríade de situações que tornam as mulheres negras mais
vulneráveis em virtude de diferentes camadas de opressão, o que demanda
soluções complexas e não homogeneizadas.

A interseccionalidade é sobre a identidade da qual participa o racismo


interceptado por outras estruturas. Trata-se de experiência racializada, de
modo a requerer sairmos das caixinhas particulares que obstacularizam as
lutas de modo global e vão servir às diretrizes heterogêneas do Ocidente,
dando lugar à solidão política da mulher negra, pois que são grupos
marcados pela sobreposição dinâmica identitária. É imprescindível, insisto,
utilizar analiticamente todos os sentidos para compreendermos as mulheres
negras e as ‘mulheres de cor’ na diversidade de gênero, sexualidade,
classe, geografias corporificadas e marcações subjetivas (AKOTIRENE,
2020, p. 48).

Essa é a proposta que se pretende perseguir.

6. Um olhar negro para o processo

Perceber de que forma a intersecção entre gênero, raça e classe social pode
tornar a situação de vulnerabilidade das mulheres ainda mais agressiva é importante
para que possamos atender adequadamente aquelas que nos chegam em situação
de violência.
Não obstante, muitas vezes as instituições estatais reproduzem o racismo e o
sexismo e agravam ainda mais a situação daquelas que deveriam ser acolhidas pela
rede de proteção posta à disposição pelo Estado.

A despeito dos direitos humanos permitirem acesso irrestrito,


independentemente de raça, sexo, nacionalidade, etnia, idioma, religião ou
qualquer outra condição, as mulheres negras se veem diante dos
expedientes racistas e sexistas das instituições públicas e privadas por lhes
negarem primeiro trabalho e, depois, o direito humano de serem
reclamantes das discriminações sofridas (AKOTIRENE, 2020, p. 62).

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Ter consciência desse processo discriminatório negativo é importante para
reverter esse quadro; compreender que o racismo pode ser individual, mas que é
também e sobretudo institucional, torna-se fundamental para fazer cessar essa
engrenagem que destrói a autoestima das mulheres negras, principalmente
daquelas em situação de violência doméstica.
Além disso, é importante que a narrativa apresentada por qualquer mulher em
situação de violência doméstica e, ainda mais, por mulheres negras, seja levada a
sério, pois dentro da lógica racista e sexista, a mulher negra é uma mulher
silenciada, cuja voz não é ouvida. A partir do questionamento apresentado por
Gayatri C. Spivak sobre a possibilidade de uma subalterna falar, Grada Kilomba
responde que “é impossível para a subalterna falar ou recuperar sua voz e, mesmo
que ela tivesse tentado com toda sua força e violência, sua voz ainda não seria
escutada ou compreendida pelos que estão no poder” (KILOMBA, 2019, p. 47).
A ausência dessa análise interseccional levou o estado brasileiro a ser
condenado pela inobservância da discriminação sofrida por Simone André Diniz. No
caso, Simone buscava uma oportunidade profissional e se deparou com um anúncio
para vaga de empregada doméstica “de preferência branca”. Em contato com a
anunciante, esta confirmou a exigência da “branquitude”. Ao dizer que era negra,
Simone foi informada de que não preenchia os requisitos necessários para a vaga.
O caso foi judicializado, sendo arquivado pela justiça brasileira, embora a anunciante
tenha confirmado a exigência quanto à preferência racial.
O caso foi levado à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) da
Organização dos Estados Americanos (OEA) e resultou na condenação do Brasil por
omissão ao permitir que um caso de discriminação racial fosse arquivado sem
sequer ter havido uma ação penal. Para a CIDH da OEA, houve o “descumprimento
pelo Estado brasileiro de sua obrigação de garantir os direitos consagrados na
Convenção Americana, a que se refere o artigo 1(1) de dito tratado”, que dispõe
sobre o dever dos estados signatários em respeitar os direitos e liberdades nela
reconhecidos e a garantir seu livre e pleno exercício a toda pessoa que esteja sujeita

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à sua jurisdição, sem discriminação alguma por motivo de raça, cor, sexo, idioma,
religião, opiniões políticas ou de qualquer outra natureza, origem nacional ou social,
posição econômica, nascimento ou qualquer outra condição social (PENTEADO,
2006).
Na obra Pensando como um negro: ensaio de hermenêutica jurídica, Adilson
Moreira (ano 2019) propõe uma hermenêutica jurídica pautada na visão de uma
pessoa negra como forma de diminuir os efeitos do racismo estrutural que perpassa
as instituições públicas e privadas e que explica, em alguma medida, a razão pela
qual muitos processos envolvendo questões raciais não resultam em condenação.
Cabe lembrar que, de acordo com pesquisas realizadas pelo Conselho
Nacional de Justiça (CNJ), a magistratura brasileira é formada predominantemente
por homens brancos (CNJ, 2018), havendo apenas 6% de magistradas negras
espalhadas por todo o território nacional.
Assim, estatisticamente, haverá uma maior probabilidade de que casos de
violência doméstica cujas vítimas são majoritariamente mulheres negras sejam
julgados por homens brancos. Para que essa diferença não se converta em uma
camada a mais de opressão, como aquela evidenciada no caso Simone André Diniz,
Moreira propõe que a/o jurista empreenda esforços para pensar como um negro na
aplicação da hermenêutica jurídica.

Pensar como um negro significa compreender o Direito como um


instrumento de transformação social, como algo que pode ter o poder de
afirmar a dignidade do povo negro. Isso exige a rejeição de uma perspectiva
interpretativa segundo a qual o sistema jurídico existe para manter o
consenso sobre formas de organização social. Uma posição dessa natureza
não pode ser apoiada por um jurista que pensa como um negro porque
essas normas são produtos de relações de poder existentes dentro de uma
sociedade (MOREIRA, 2019b, p. 286).

Em acréscimo à hermenêutica proposta por Moreira, entendemos necessário


pensar como uma mulher negra, com suas múltiplas vulnerabilidades, através de um
exercício de empatia, que permita ao/à julgador/a compreender todos os marcadores
que atravessam o corpo negro feminino.

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7. Conclusão

Neste breve artigo, procuramos demonstrar as razões pelas quais não se


pode admitir o mito da democracia racial, bem como evidenciamos as razões pelas
quais é necessário compreender o racismo como um sistema que estrutura as
relações de poder.
A partir de diversos estudos, demonstramos de que forma o racismo impõe a
pessoas negras uma maior vulnerabilidade, que se acentua quando se trata de
mulheres negras, em razão da interseccionalidade dos marcadores de gênero, raça
e classe social.
Por fim, demonstramos que o direito deve ser entendido como um instrumento
de transformação social, o que exige um exercício de deslocamento e empatia por
parte de quem julga e de toda a rede de atendimento, sob pena de se agravar as
violências sofridas por mulheres negras.
Dessa forma, esperamos contribuir para o enfrentamento das questões raciais
no âmbito do Poder Judiciário, lançando luz sobre questões até então silenciadas e
que, cada vez mais, precisam ser debatidas se quisermos construir, de fato, uma
sociedade democrática.

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