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‘ESQUEÇA A SUA FILHA’

Casais ricos do Amapá driblam Lei da Adoção e tiram crianças de famílias pobres com apoio do
judiciário

Nayara Felizardo

15 de Março de 2021, 1h27

A filha de quase 2 anos de Jéssica Gabrieli estava na casa da avó com


os irmãos de 4 e 5 anos quando oficiais de justiça de Macapá levaram
as três crianças para um abrigo após denúncias de negligência famili-
ar. Era setembro de 2018. Seis meses depois, em março, os meninos es-
tavam de volta, mas a bebê Mariana*, não. Sua guarda foi entregue a
um casal na mesma época em que as outras crianças foram devolvidas
para a mãe, em uma decisão que até hoje é questionada por Jéssica,
pela Defensoria Pública e pelo Ministério Público do Amapá. E esse
não é um caso isolado.

Há ao menos 187 processos de “adoção cumulada com destituição do


poder familiar” em andamento no Amapá atualmente, segundo dados
que obtive via Lei de Acesso à Informação. São casos em que casais en-
tram na justiça para ficar com crianças que têm famílias, semelhante
ao que ocorreu com Jéssica, e, por isso, não estão legalmente disponí-
veis para adoção. Eles driblam o sistema e conseguem ter uma criança
em casa em pouco tempo.

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O Estatuto da Criança e do Adolescente é claro: filhos devem ficar
com os pais, posição reforçada pela Lei da Adoção, de 2009. Se isso
não for possível, a família extensa, como avós, tios e primos, tem a
preferência. Somente em último caso, e após concluído o processo de
destituição do poder familiar, é que a criança fica disponível para ser
adotada por uma família sem vínculos de sangue. Para dar mais trans-
parência e segurança a esse processo, o Conselho Nacional de Justiça,
o CNJ, criou, em 2008, o Cadastro Nacional de Adoção e, mais recente-
mente, o Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento, o SNA. O ideal é
que toda criança que pode ser adotada esteja incluída nesse cadastro,
assim como quem pretende adotar. Forma-se assim a fila da adoção.

O que tem acontecido em Macapá é que essa ordem não é cumprida,


como mostram os quase 200 processos de adoção somados a pedidos
de destituição do poder familiar. Enquanto as ações se acumulam, no
Sistema Nacional de Adoção não há registro de nenhuma criança ado-
tada na capital do Amapá desde 2008. Em todo o estado, o sistema do
CNJ registra apenas 11 adoções no mesmo período, sendo dez delas re-
alizadas pela Vara da Infância e Juventude de Santana, município a 21
quilômetros da capital. No entanto, por e-mail, a assessoria de im-
prensa do CNJ me informou que foram realizadas 19 adoções em Ma-
capá nesse período.

Os dados contraditórios reforçam as suspeitas de defensores públicos


e promotores com quem conversei de que as adoções realizadas na ci-
dade não têm seguido o trâmite legal e, por isso, as crianças jamais fo-
ram incluídas no cadastro nacional.

Tive acesso à íntegra de quatro ações de adoção com pedido de desti-


tuição do poder familiar que correm em segredo de justiça no Tribu-
nal do Amapá. Em todos os processos, as famílias passaram na frente
de quem já estava na fila para adotar uma criança – com a ajuda do
judiciário local.
Ilustração: Matheus Santa Cruz para o The Intercept Brasil

Vai pagar pelo resto da vida


Entre os responsáveis pela análise do caso de Jéssica e dos outros pro-
cessos de adoção no tribunal, está Cyranette Miranda Ribeiro Cardoso,
assessora jurídica do Juizado da Infância e Juventude de Macapá. Ela
também é mãe adotiva via processo de “adoção cumulada com desti-
tuição do poder familiar”. Em entrevista ao site do tribunal, ela conta
que sempre teve preferência pela adoção. Cyranette tem duas filhas:
uma criança de 10 anos e uma jovem de 26 anos. Com a mais velha,
diz, o processo foi “muito simples, adoção consentida, saiu da mater-
nidade para nossa casa”. É a chamada adoção à brasileira, quando a
mãe entrega o filho para outra pessoa criar. Já a criança, Cyranette le-
vou da mãe e nunca mais devolveu.

Em setembro de 2011, Maria Angélica foi ao tribunal com a sua filha


Sílvia*, ainda uma bebê de colo, buscar informações sobre um proces-
so que respondia por negligência e maus-tratos contra os filhos mais
velhos. Quando chegou ao Juizado, foi surpreendida com a acusação
de que havia voltado a usar drogas. A assessora jurídica, então, disse
que ela não podia cuidar da criança.

Como assessora jurídica do Juizado, Cyranette tem acesso a boa parte


dos processos de adoção de Macapá. Foi se utilizando desse cargo que
a servidora avaliou que a bebê “não tinha condições de ir para um
abrigo, pois estava enfraquecida e com feridas abertas”. Por isso, re-
solveu que “seria melhor levá-la para sua casa”, como consta no pro-
cesso que Cyranette moveu para adotar a criança. A disputa judicial
durou mais de quatro anos e terminou em 2016 com a causa ganha e a
adoção da filha de Maria Angélica.

As decisões mais favoráveis à assessora foram dadas pela juíza Ilana


Kabacznik, que substituía o juiz titular César Augusto Souza Pereira
quando ele entrava de f érias ou tirava alguma licença do juizado. Cé-
sar se declarou impedido de julgar o caso por trabalhar com a assesso-
ra há 19 anos. Em dezembro de 2014, na sentença que confirmou a
destituição do poder familiar de Maria Angélica, a juíza Ilana reconhe-
ceu que ela estava longe do álcool e das drogas e que já tinha residên-
cia fixa, mas fez questão de registrar que aquilo não era suficiente. E
acrescentou: “se caso Maria Angélica possa questionar quanto à possi-
bilidade de pagar pelo resto da vida sob um erro que cometeu no pas-
sado, a resposta é SIM. Nosso futuro nada mais é do que consequência
que plantamos no passado. Assim, se plantamos chuvas colheremos
tempestades.”

Trecho da decisão dada pela juíza Ilana Kabacznik.


Imagem: Reprodução/TJAP
Entrei em contato com Cyranette, que respondeu por WhatsApp que
não poderia falar já que os casos envolvem processos e ela não rece-
beu autorização do tribunal. Por meio da assessoria de imprensa do
tribunal do Amapá, a juíza Ilana ressaltou que os casos, além de en-
volver crianças, estão sob segredo de justiça e que ela, como juíza,
“não pode e não deve se pronunciar”.

Em 2013, quando o processo ainda estava em andamento, Maria Angé-


lica foi entrevistada em uma reportagem da Record sobre adoções ir-
regulares no Amapá.

A denúncia dela e de outras famílias que se diziam vítimas de um es-


quema levou o promotor Aldeniz de Souza Diniz a investigar todos os
processos de adoção em Macapá entre 2008 e 2013. À época, ele res-
pondia pela promotoria da Infância e Juventude. Souza, segundo a re-
portagem, acreditava que servidores do Judiciário estavam facilitando
adoções de crianças para amigos.

Por causa das declarações que o promotor deu para a Record TV e da


investigação que ele iniciou, Cyranette o processou em 2015, pedindo
uma indenização de R$ 200 mil por danos morais. Ele se aposentou
em 2014, e o processo segue em andamento. As adoções irregulares
também.
Ilustração: Matheus Santa Cruz para o The Intercept Brasil

Criança escolhida por foto


No caso de Mariana, a filha de Jéssica, sua guarda foi entregue à tam-
bém servidora do tribunal Adriana Priscila Ayres dos Santos, assessora
de gabinete de um dos desembargadores do estado. Assim como ocor-
reu em outros dois casos que acompanhei, Adriana se aproveitou do
programa de apadrinhamento promovido pelo tribunal do Amapá e
não teve que enfrentar a fila da adoção.

O projeto é simples. Os “padrinhos” ou “madrinhas” se cadastram


para receber, aos finais de semana, feriados e até aniversários, crian-
ças que estão nos abrigos. A ideia é dar oportunidade de convívio fa-
miliar àquelas que têm menos chance de voltarem para suas casas ou
de serem adotadas.

Em um artigo escrito em 2016, Cyranette admite que o apadrinhamen-


to é usado como uma primeira etapa para a adoção. Segundo o texto,
“grande parte dos processos de adoção surge da convivência oportuni-
zada pelos programas de apadrinhamento natalino e apadrinhamento
social”.

Padrinhos e madrinhas sequer deveriam estar habilitados a adotar,


justamente para evitar que o programa seja distorcido. No texto, a as-
sessora jurídica também critica a Lei Nacional de Adoção de 2009, que
prioriza a família biológica e estabelece regras mais rígidas. Para a ser-
vidora, há “mecanismos que dificultam a inserção da criança na famí-
lia substituta como, por exemplo, a inscrição prévia dos adotantes no
Cadastro Nacional de Adoção”.

De acordo com um relatório do Núcleo de Assistência Psicossocial do


juizado, Adriana “soube [das crianças] através de servidores” do tribu-
nal em fevereiro de 2019. Ela e o marido “tiveram acesso à fotografia
da infante [a bebê Mariana] e sentiram interesse em ter contato com
ela”. Não está claro, no processo, como e nem por que essas fotos fo-
ram enviadas ao casal.

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No início de março, eles levaram a filha de Jéssica para casa por meio
do programa de apadrinhamento. Ela deveria voltar para o abrigo no
dia 6, mas, já no dia 7, o casal pediu a guarda da menina. Eles alega-
ram que ela estava doente e precisava ser incluída no convênio médi-
co da família. Ainda tentaram culpar Jéssica pelos problemas que a
bebê apresentou no pulmão – mas ela já estava no abrigo há seis me-
ses e havia sido apadrinhada por outra família nesse período.

Ao pedir a guarda, o casal disse estar ciente de que a menina não esta-
va disponível para adoção, mas que isso não importava, “pois tudo o
que querem é proporcionar ao infante tudo o que puderem de me-
lhor, além de amor e cuidados incondicionais”. O argumento foi sufi-
ciente para convencer o juiz Roberval Pantoja Pacheco, que deu a
guarda da criança ao casal no mesmo dia.

Aqui é preciso diferenciar o que é guarda de adoção: a guarda de uma


criança pode ser dada pela justiça a uma família apenas temporaria-
mente, em situações como necessidade de tratamento de saúde e ou-
tros casos urgentes. Mas os vínculos com a família de origem ficam
preservados. Já a adoção é mais abrangente e irrevogável. A criança
ganha uma nova família e tem alterado até mesmo o registro civil
para constar o nome dos pais adotivos no lugar dos biológicos.

A justiça, porém, foi bem menos ágil para responder os pedidos de


Jéssica. Ela foi ao Juizado da Infância e Juventude de Macapá no mes-
mo dia em que os filhos foram levados pelo Conselho Tutelar para ex-
plicar que morava com o noivo e que deixou as três crianças na casa
da mãe apenas para trabalhar como diarista. Jéssica não tinha como
pagar uma babá e a primeira creche pública da capital, a Tia Chiqui-
nha, só seria inaugurada dois meses depois, em novembro de 2018. Ela
ainda voltaria muitas vezes ao tribunal e ao abrigo, na tentativa de ter
a menina de volta.

Na primeira audiência em que foi ouvida pelo juiz, um mês depois


que as crianças estavam no abrigo, Jéssica repetiu que os filhos esta-
vam na casa da sua mãe porque ela precisava trabalhar. Mas o magis-
trado avaliou que naquele momento não haveria “como deliberar
acerca do destino das crianças” e manteve Mariana e os irmãos no
abrigo.

Questionei o TJ-AP e Adriana, através de sua advogada e da assessoria


de imprensa do tribunal, sobre o caso, mas não tive retorno.

‘Situação mais favorável’


Quem representa Adriana e o marido é a advogada Patricia Mel Xavi-
er, que foi estagiária do Juizado da Infância e da Juventude. Ela tam-
bém defende Cyranette no processo contra o promotor aposentado
Souza. E já defendeu outros dois servidores do judiciário em casos de
adoção cumulada com destituição do poder familiar: um motorista e
outra assessora jurídica. Em consulta ao sistema do Tribunal de Justiça
do Amapá, é possível identificar que, desde 2017, a advogada atuou
em ao menos 21 casos como esses, em que a criança não estava dispo-
nível para adoção.

Em audiência no dia 21 de março de 2019, no mesmo mês em que a


advogada ajudou Adriana a conseguir o apadrinhamento da filha de
Jéssica, técnicos do abrigo onde as crianças estavam disseram ao juiz
que o irmão de Mariana, de 5 anos, era “bem danado, razão da dificul-
dade de ser apadrinhado”. Acrescentaram que ele e o filho mais velho
de Jéssica, de 6 anos, queriam ficar com a mãe, e que a equipe do abri-
go era favorável. O juiz Pacheco, então, autorizou os dois a voltarem
para casa.

O irmão de Jéssica, de 10
anos, que foi levado para o
abrigo com os filhos da dia-
‘Perder as esperanças
rista e as irmãs dela de 13 e e esquecer minha
14 anos, já estava com uma própria filha porque as
tia desde fevereiro de 2019.
A mãe dele havia concorda-
pessoas que estavam
do em entregar a guarda do com ela tinham mais
menino à irmã, pois assim dinheiro que eu’.

ele continuaria na família –


a ordem judicial que resul-
tou na retirada das crianças da família provinha de um relatório do
MP que apontava “negligências; sobretudo abandono material e inte-
lectual” das crianças. Tudo isso agravado pelo alcoolismo da mãe de
Jéssica e do seu marido, Francisco Alves Barros.
As adolescentes também voltaram para casa porque, segundo o juiz, o
problema que levou ao “acolhimento institucional das adolescentes
fora superado”. Para a justiça, estava provado que a família tinha “for-
tes vínculos de afinidade/afetividade”. Apenas Mariana, a filha de 2
anos de Jéssica, cuja guarda já havia sido dada ao casal Adriana e Sil-
va, não voltou. Mesmo reconhecendo que a mãe tinha condições de
cuidar dos filhos, a ponto de ter de volta os dois meninos mais velhos,
o juiz avaliou que a bebê estava em “situação mais favorável na famí-
lia substituta”. Entrei em contato com o juiz por meio da assessoria
de imprensa do tribunal, mas ele também preferiu não se manifestar
a respeito dessa decisão.

Por e-mail, Patrícia disse que “o conhecimento adquirido quando de


tal estágio” lhe deixou “mais preparada para atuar nessa seara”. A ad-
vogada afirmou também que foi procurada por Adriana para atuar no
seu caso e que mantém relação “cordial e respeitosa” com servidores
do tribunal, principalmente do Juizado da Infância e Juventude.

Quando conversei com Jéssica por telefone sobre o caso, ela me con-
tou que, em uma das vezes em que foi ao abrigo, uma funcionária lhe
disse para “perder as esperanças e esquecer minha própria filha por-
que as pessoas que estavam com ela tinham mais dinheiro que eu”.
Como assessora de gabinete de um desembargador, Adriana ganha
cerca de R$ 10 mil por mês. Muito diferente da situação financeira de
Jéssica, que sustentava os filhos com cerca de R$ 400 que ganhava
como diarista, mais a renda do companheiro, de R$ 2 mil.
Ilustração: Matheus Santa Cruz para o The Intercept Brasil

Famílias ricas têm preferência


Responsável por boa parte dos relatórios realizados com as famílias
em processos de adoção em Macapá, a assistente social Valdirene Qua-
resma Ribeiro tem dois filhos adotivos, um deles também adotado
após um processo de adoção junto com pedido de destituição do po-
der familiar. Nos casos que analisei, ela destacou a renda das famílias
que tentavam a adoção na justiça – entre R$ 15 mil e R$ 22 mil –, e se
colocou contra o retorno das crianças à família biológica.

Foi Valdirene quem assinou o relatório que deu parecer favorável à


adoção de Luan*, filho de Lilian Batista dos Santos, que tinha cerca de
2 anos quando chegou ao abrigo, em dezembro de 2018. O menino foi
levado ao abrigo por agentes do Conselho Tutelar de Macapá depois
que funcionários de um hospital em que ele foi atendido denuncia-
ram um quadro de negligência, e o Conselho concluiu que os pais, de-
pendentes químicos, não tinham condições de cuidar da criança.
De acordo com o processo, os tios paternos de Luan, Cleoneide Baliei-
ro Pinheiro e João Neres Freitas dos Santos, souberam que o sobrinho
havia sido levado para o abrigo três dias depois, e logo foram visitá-lo
para dizer que queriam a sua guarda. Mesmo assim, a criança foi en-
tregue no final de dezembro à pastora Simone Maria Palheta Pires e
ao seu marido Elias Rodrigues da Fonseca para passar o Ano Novo, por
meio do programa de apadrinhamento. Nas redes sociais, a pastora
comemorou que seria mãe novamente.
Logo após apadrinhar uma criança para as festas de fim de ano, a pastora Simone comemorou no
Instagram estar sendo “mãe de bebê de novo”.
Imagem: Reprodução/Instagram

O casal, como a assistente social Valdirene enfatizou em relatório,


tem “renda aproximadamente de R$ 22.000,00 mensal”. Já os tios “so-
brevivem com aproximadamente R$ 2.000,00″. Pela lei, eles deveriam
ter a preferência, mas esses R$ 20 mil que separavam a renda das duas
famílias fizeram diferença.

No dia 7 de janeiro de 2019, a pastora e o marido entraram com o pe-


dido de guarda e, no dia 9, iniciaram o processo de habilitação para
adoção. Nessa mesma data, os tios do menino pediram à justiça para
levá-lo para casa, mas já era tarde. A guarda provisória foi concedida
para a pastora e seu marido. Até essa data, a família biológica sequer
tinha sido ouvida em uma audiência com o juiz.

A Defensoria Pública contestou a decisão, mas a criança continuou


com o casal. Um primeiro relatório entregue pelos profissionais do
abrigo em fevereiro de 2019, que recomendava que o menino ficasse
com os tios, foi desconsiderado. A pastora alegou ter tido, na igreja,
desavenças pessoais com a assistente social responsável pelo texto.

A justiça determinou que


fosse feito um novo relató-
‘A condição econômica rio. O texto, desta vez, assi-
jamais poderá ser nado por Valdirene, foi en-
crucial na escolha da tregue quatro meses depois.

família substituta’. Ao contrário dos profissio-


nais do abrigo, ela conside-
rou que a criança não deve-
ria ficar com os tios. Entre outras justificativas, argumentou que eles
moravam em uma região alagada, conhecida na cidade como “área de
ponte”, na periferia de Macapá. Na análise da assistente social, isso
poderia ser perigoso para a criança. Já o outro casal, escreveu Valdire-
ne, tem uma moradia “edificada em alvenaria, 3 quartos (todos
suítes), sala, cozinha, piscina, biblioteca e 3 banheiros, guarnecida de
eletricidade e água encanada”. A conclusão do relatório foi que os pas-
tores poderiam fornecer “o necessário para um desenvolvimento sau-
dável”, enquanto os tios paternos viviam em um local “insalubre para
o bom desenvolvimento de uma criança” – outra forma de dizer que
eles eram pobres.

Em agosto, a Defensoria Pública pediu a impugnação desse relatório


por considerá-lo “preconceituoso” e “estigmatizante”. O promotor
Alaor Azambuja, titular da promotoria da Infância e Juventude de Ma-
capá, concordou. O texto, escreveu, criminaliza a pobreza. Para o pro-
motor, a condição econômica jamais poderá ser crucial na escolha da
família substituta, “pois, se assim não fosse, num país com enormes
desigualdades sociais de oportunidades, estar-se-ia relegando mães po-
bres e seus familiares em presas fáceis de outros com maiores recur-
sos financeiros – ou com influências de toda sorte”.

Alaor ainda sugeriu que os tios fossem autorizados a visitar o sobri-


nho, mas eles só conseguiram encontrá-lo três vezes. Nas visitas, a
pastora Simone interferiu “no processo de readaptação da criança à
família biológica” e não deixou que os tios ficassem sozinhos com o
menino, como informou a psicóloga do tribunal. O quarto encontro,
que deveria ter sido realizado no dia 6 de dezembro de 2019, não acon-
teceu porque ela sequer levou a criança. A psicóloga alertou que o lon-
go tempo entre as visitas “inviabiliza a aproximação da criança” com
a família natural.

Por meio da assessoria de imprensa do tribunal, perguntei se Valdire-


ne gostaria de dar a sua versão sobre o que está nesta reportagem,
mas não tive resposta.

A última audiência para decidir com quem ficará o menino deveria


ter acontecido em março de 2020, mas a data foi remarcada porque a
advogada da pastora Simone iria fazer uma cirurgia. O caso ainda está
em andamento na justiça. Enviei algumas perguntas para a pastora
por meio da sua advogada, que respondeu apenas que não havia nada
a declarar.

A juíza Stella Simonne Ramos, porém, parece antecipar qual será o


seu entendimento. Ao determinar que as visitas dos tios fossem quin-
zenais e não duas vezes por semana, como pediam os tios e o Ministé-
rio Público, ela argumentou a favor da pastora e do marido e disse
que “o ECA prioriza não apenas relação de parentesco, mas consan-
guinidade com laços afetivos, o que vejo no presente caso”. A juíza
Stella também não se manifestou.

Por e-mail, o presidente do Tribunal de Justiça do Estado do Amapá,


desembargador Rommel Araújo de Oliveira, me respondeu que não
poderia falar sobre os casos porque os processos estão “sob o manto
do segredo de justiça” e que enviou as questões à Comissão Estadual
Judiciária do Amapá, ao Juizado Especial da Infância e Juventude de
Macapá e a todos os magistrados e servidores citados. Nenhum deles,
porém, respondeu às minhas perguntas.

Processos atrasados, vínculos


perdidos
O que também atrasa os processos de adoção é a demora do Núcleo de
Atendimento Psicossocial para realizar os relatórios sociais com as fa-
mílias. Em três processos a que tive acesso, há ofícios nos quais Valdi-
rene informa que não fez os estudos sociais “em virtude de expressiva
demanda de processos, e o número reduzido de assistentes sociais no
setor” – ao todo, três assistentes sociais trabalham no tribunal.

A demanda que alega existir, porém, não foi um empecilho no proces-


so de adoção de Cyranette. Em apenas 10 dias, Valdirene entregou o
relatório que foi decisivo para que a colega de tribunal ganhasse o
caso. “Às vezes, [o que] melhor atende aos interesses do infante (…) [é]
a entrega à adoção”, escreveu. Já no processo de Jéssica, ela levou qua-
se oito meses para fazer o mesmo trabalho.

Em janeiro de 2020, Valdirene respondeu a uma acusação na correge-


doria do tribunal por ter demorado quase um ano para fazer um rela-
tório. A denúncia acabou arquivada pela ausência “prática de alguma
conduta irregular, imprópria ou constitutiva de ilícito
administrativo”. O juiz que analisou o caso também considerou que o
Núcleo de Atendimento Psicossocial, que tem apenas três assistentes
sociais, enfrenta grandes dificuldades para realizar o seu trabalho.

É uma sensibilidade que a justiça do estado não parece estender às fa-


mílias que brigam por seus filhos. Em maio de 2019, Adriana e o mari-
do entraram com o pedido de destituição familiar, que poderá levar à
adoção formal da filha de Jéssica. Apesar de o Ministério Público do
Amapá já ter dado parecer favorável tanto as visitas de Jéssica à bebê
quanto ao retorno da criança para a família, a juíza Stella negou os
pedidos, argumentando que “a retirada abrupta da criança, que, diga-
se, pouco conviveu com a genitora, do lar que a acolheu, pode causar-
lhe sofrimento e dano emocional”.

Porém, a falta de convivência de Jéssica com a filha, alegada pela ma-


gistrada, foi provocada pela lentidão dos próprios colegas. Uma audi-
ência urgente pedida pelo Ministério Público em setembro de 2019
para ouvir a mãe e dar a ela o direito de visitar a menina só foi reali-
zada quase um ano depois, em outubro de 2020.

Segundo Jéssica, na última audiência, ela foi autorizada a visitar a me-


nina a cada 15 dias – ela não vê a filha desde 2018. Mas, até o início de
março de 2021, me disse, o juizado ainda não havia entrado em conta-
to para explicar como a visita iria acontecer. “Eu queria vê-la, saber
como está, dar um abraço nela. Meu filho mais velho sempre pergun-
ta quando a irmã vai voltar”. Atualmente, Jéssica diz que não sai mais
para trabalhar por medo de perder definitivamente os outros dois
filhos.
*Os nomes foram modificados para preservar a identidade das crianças.

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CRÉDITOS ADICIONAIS:

Colaboração: Paula Bianchi.

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