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O trabalho com a leitura e a

escrita na escola
Claudia Toldo*

Resumo Considerações iniciais


Este trabalho apresenta refle-
O principal objetivo deste texto é
xões acerca dos atos de ler e escre-
ver enquanto processos que levam à fazer uma reflexão sobre dois atos que
construção de sentidos no texto. Na realizamos todos os dias: ler e escrever.
perspectiva da interação, veem-se a Percebo que na maioria das vezes não
leitura e a escrita como processos
nos damos conta de que essas duas ações
cognitivos realizados por sujeitos que
percebem a linguagem como prática ocupam boa parte de nossa atividade
social e como forma de interação en- docente, principalmente no que respei-
tre interlocutores. Essas considera- ta ao conhecimento que construímos
ções tomadas no universo escolar são enquanto professores e/ou profissionais
imprescindíveis para o trabalho do
professor de língua portuguesa que
da educação. Com base nessa reflexão,
compreende e ensina a língua a par- trago algumas considerações sobre a
tir de seu uso em reais situações de construção de sentidos pela leitura e
comunicação. escrita de textos.
Acredito que ler textos em diferentes
Palavras-chave: Leitura. Escrita. Tex-
to. Sentido. linguagens possibilita contatos entre
espaços, tempos, mundos. Hoje, o saber
provém de vários centros, de fontes múl-

*
Professora de Língua Portuguesa da Universidade de
Passo Fundo, atuando junto ao curso de Letras e ao
Programa de Pós-Graduação – Mestrado em Letras.
Graduada em Letras – Licenciatura Plena pela UPF -
RS, mestra em Letras (UFRGS) – Teorias do Texto e
do Discurso e Doutor em Letras (PUCRS) – Linguística
Aplicada. Professora de Língua Portuguesa no ensino
médio do Colégio Notre Dame.

Data de submissão: novembro de 2009. Data de aceite: dezembro de 2009.

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tiplas, de diferentes textos. Isso nos con- trabalho – e interminável – de leitura e
duz ao chamado “mundo das letras”, ou de escrita, tanto de professores como de
seja, ao contexto onde interagimos com a todos os que fazem uma escola. Numa
leitura e com a escrita. As vitrinas estão perspectiva que vê a linguagem como
cheias de palavras. As ruas estão cheias forma de interação, sublinho que o pro-
de palavras. A televisão, a internet, o ci- fessor precisa ter o texto como unidade
nema estão cheios de palavras. Nas falas básica de ensino da leitura e da escrita,
das pessoas com as quais interagimos uma vez que isso é fundamental para um
jorram palavras. As bancas de jornal trabalho que visa à melhora da compe-
estão cheias de palavras. As camisetas tência dos alunos tanto na leitura quanto
estão cheias de palavras. O armazém na escritura de textos. Passemos a uma
da esquina está cheio de palavras. Já das questões: a leitura.
que a palavra faz parte efetivamente
da nossa vida, é necessário decodificá- Ler: um trabalho de
la, compreendê-la, interpretá-la, pois
ter a palavra é ter o poder. Pronunciar
compreensão
a palavra é mover o mundo. Todos nós, Inicio esta reflexão sobre leitura
professores e/ou profissionais da educa- enquanto trabalho de compreensão re-
ção, temos de tomá-la e mover nossas correndo às palavras de Marisa Lajolo
escolas, provocando todos que nela se (1993, p. 56), que afirma que “ler não é
constituem para que façam o mesmo. decifrar, como num jogo de adivinhações,
Não pronunciamos ou escutamos apenas o sentido do texto, mas é a partir dele
palavras, mas verdades, mentiras, coisas ser capaz de atribuir sentido ao que se
boas ou não. lê”, conseguindo relacioná-lo com outros
Para tanto, precisamos assumir que textos. Isso indica que aprender a ler sig-
ler e escrever são tarefas dos professores nifica dominar progressivamente textos
das diferentes áreas do conhecimento e cada vez mais complexos, construindo
que isso é um compromisso de todos que seu sentido, ou seja, significa ler textos
têm a linguagem como instrumento de e compreendê-los.
acesso ao conhecimento enciclopédico. Trata-se de exercitar a leitura para
Por isso tenho dito que é na escola que praticar, numa primeira instância, a
se tem a responsabilidade de levar o decodificação da escrita, adestrando o
sujeito a atrever-se a errar, a construir olho para enxergar mais do que uma
suas próprias hipóteses a respeito do letra de cada vez, mais do que apenas
sentido do que lê e a assumir pontos de uma palavra; para entender os processos
vista próprios para escrever a respeito de construção das palavras; para enxer-
do que vê, do que sente, do que vive, do gar as discrepâncias que caracterizam
que lê, do que ouve na escola, em casa, a ortografia; para atribuir sentido a
na rua. O caminho para isso é um efetivo

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expressões; para familiarizar-se com a e que jamais se chega ao significado de
sintaxe da língua escrita; para entender um texto pela soma do sentido das suces-
o significado dos sinais de pontuação, o sivas palavras que o compõem, pois
das letras maiúsculas e minúsculas, o [...] ler significa ser questionado pelo mundo
das margens do texto; para construir e por si mesmo, significa que certas res-
um repertório de enredos, de fantasias, postas podem ser encontradas na escrita,
significa poder ter acesso a essa escrita,
de imaginações, de personagens, de ra- significa construir uma resposta que integra
ciocínios, de argumentos, de linhas de parte das novas informações ao que já se é.
tempo, de conceitos que caracterizam (FOUCAMBERT, 1994, p. 31).
as áreas do conhecimento; para, enfim, Tendo presente essas considerações,
movimentar-se com desenvoltura no os professores de língua portuguesa de-
mundo da leitura e da escrita. vem mostrar aos seus alunos o que faz
A leitura faz com que se desenvolva de uma sequência linguística um texto,
uma familiaridade com a língua escrita o que dá origem à sua textualidade e
através da leitura de todo gênero textual, à sua discursividade, bem como que
numa quantidade tal que faça o sujeito fatores isso abrange. Muitos estudos já
gostar de ler e de perceber a importân- constataram que o sentido ultrapassou
cia da leitura para sua vida pessoal e os limites da frase, que apenas a sinta-
social. Enquanto professores de língua xe não consegue dar conta do sentido
portuguesa, precisamos ensinar a ler do texto, que a semântica não explica
como o texto se organiza, de que forma se tudo que é possível construir num texto
constrói, como se arquiteta internamente e que o contexto é grande demais para
e que relação estabelece com seu exterior. abarcar o que não temos explicação
Precisamos ler em todos os sentidos! plausível e convincente. Quando lemos
Alguém poderia perguntar: Mas o que um texto, seu sentido não se estabelece
é ler em todos os sentidos? Afinal, só sem a interação de crenças, de desejos,
conhecemos um sentido de leitura: da de quereres, de preferências, de valores,
esquerda para a direita e de cima para de leituras anteriores que trazemos
baixo. Quero dizer que “ler em todos os dentro e que no momento da leitura se
sentidos” significa ensinar a organização misturam e se entrecruzam, construindo
de eixos de leitura que não se baseiam novos saberes.
apenas na superfície textual, mas na O sentido de um texto se estabelece
busca de pistas que o autor deixou no na relação entre autor e leitor e suas
caminho que realizou ao escrever, cons- leituras anteriores. Então, o sentido de
truindo sentidos outros para o texto que um texto não está na cabeça do leitor
ora se lê. É sair de uma linha horizontal ou, essencialmente, no texto (como se
de leitura e mergulhar numa vertical. o sentido fosse dado, pronto, acabado)
Jean Foucambert (1994) afirma que o e, sim, na relação e no tipo de relação
ato de ler é o meio de interrogar a escrita que se consegue estabelecer entre autor/

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texto/leitor. Dessa forma, todo texto se quicamente ordenado. Como diz Van
caracteriza pela liberdade e pela ação Dijk (1993), o sentido de uma sequência
desses coprodutores, atribuindo sentidos linguística não é meramente uma soma
vários a ele. Isso propicia conhecimento. de proposições que subjazem à sequên-
Esse conhecimento, no entanto, não é cia, mas o sentido que uma sequência
dado por um nem por outro polo dessa estabelece com as outras, formando um
interação, mas pela ação dos dois juntos todo organizado de sentido. Precisamos
nessa relação de cumplicidade. ter presente que uma frase – obrigato-
Nessa ação recíproca e dialógica se riamente – deve estabelecer uma relação
instaura a coerência, que está ligada à semântica com o que veio antes e com o
possibilidade de estabelecer um sentido que vem depois. Então, só assim teremos
para o texto. Ela – a coerência – é que um todo de sentido, um texto.
faz com que um texto faça sentido para A construção dos sentidos do texto
um interlocutor numa dada situação de está no estabelecimento da sua coerên-
comunicação e, ainda, que transforma cia. Acreditando que o texto é construído
uma sequência linguística em texto, ou por quem sabe ler, só é possível entendê-
seja, dá sua textualidade. Dessa forma, lo quando, previamente, já se sabe bem
a coerência liga-se à inteligibilidade mais sobre ele do que nele consta. Para
do texto e à capacidade que o receptor compreender algo, é preciso possuir mais
tem para construir – pela leitura – seu informações do que aquela que se vai
sentido. procurar, uma vez que alguém, na con-
A coerência subjaz à superfície tex- dição de autor, só pode produzir textos
tual, não é linear (horizontal), mas a partir da sua própria experiência com
profunda (vertical) e global, uma vez a escrita na situação de leitor, caso con-
que hierarquiza itens lexicais, frases, trário, ela – a escrita – apenas codifica
orações, períodos e parágrafos esco- por escrito uma mensagem. Dessa forma,
lhidos para aquele texto. Suas frases ler é uma negociação entre o conhecido,
trazem em si proposições subjacentes, ou seja, o que está na nossa cabeça atra-
implícitas, ou seja, outras informações vés do conhecimento prévio, partilhado,
que são percebidas pelo leitor, quando das informações adquiridas em leituras
lidas (conhecimento prévio), pois elas anteriores, e o desconhecido, que está
estão conectadas entre si. Esta questão no papel, entre o que está atrás e o que
é fundamental, porque essas proposições está diante dos olhos. Para estabelecer
trazem, na verdade, uma interpretação a coerência de um texto, precisamos ter
possível da frase e que, no momento em presente que os elementos constituintes
que passa a se relacionar com outras da relação de interlocução (autor/texto/
frases, estabelece um todo de sentido leitor) estão imbricados na dimensão
– o texto. Só poderemos ter esse texto, da leitura para a escrita de textos. É
se tivermos um todo coerente hierar- fundamental ver a leitura como algo

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que foi escrito e/ou como a escrita do por sinais e signos: o leitor (que assume
que foi lido. Lê-se para reconstruir o que o trabalho da compreensão) comporta-
foi dito por outro e por que ou para que se diante do texto, transformando-o e
foi dito. Faraco (2003, p. 35) diz que “as transformando-se. Isso em situação de
palavras não saem do nada, elas brotam ensino é fundamental. Os PCNs (1987,
dos lábios dos outros”. Na há palavra que p. 30) afirmam que um dos importantes
seja a primeira ou a última. Então, ler papéis da escola é viabilizar o acesso do
supõe essa identificação que passa pela aluno ao universo de textos que circulam
experiência pessoal e histórica do leitor. socialmente, ensinando a compreendê-
Como diz Vigner: los, interpretá-los e produzi-los.
Todo texto que, pela relação que estabelece Segundo Van Dijk (1993), a coerência
com textos anteriores ou com o texto geral, de um texto proporciona sua compreen-
dissemina em si fragmentos de sentido já são. Nesse sentido, a produção textual
conhecidos pelo leitor, desde a citação direta
até a mais elaborada reescritura. Ler signifi- ultrapassa qualquer objetivo utilitário
ca aí perceber esse trabalho de manipulação de comunicação, fazendo do texto um
sobre os textos originais e interpretá-los. objeto de significação para seu leitor.
(VIGNER, 1997, p. 34)
Assim, o questionamento do que está
Tomando por base essas considera- escrito, a partir de experiências ante-
ções, podemos pensar que a produção de riores de leitura, faz com que autor e
um texto implica a percepção crítica, a leitor estabeleçam entre si uma relação
interpretação e a reescrita do lido numa de dependência para juntos construírem
dada situação comunicativa. A leitura e o sentido do texto em questão, uma vez
a escrita são, pois, algo dinâmico. Essa que o texto não possui um conteúdo do
dinamicidade é característica também da qual algo possa ser extraído, como se
linguagem, que se movimenta conforme fosse uma mina que se esvaziasse com
o autor/leitor age com/sobre ela num a mineração; nem possui um conteúdo
processo de compreender melhor sua rea- que simplesmente se transfere para o
lidade mais próxima, de organizar seu leitor, que cria determinadas hipóteses e
próprio conhecimento, bem como de or- as vai confirmando ou não durante a lei-
ganizar as informações distribuídas num tura. Quando lemos, ativamos diversos
texto. Logo, podemos pensar que o leitor conhecimentos para juntos construirmos
executa um ato de compreender o mundo sentidos e chegarmos à compreensão do
construído no texto que lê. Esse compre- que lemos. Então, podemos considerar
ender deve ser visto como uma forma de que ler significa mobilizar tudo o que já
ser, que pode ser detectada através das sabemos. A relação que se estabelece no
atitudes e do comportamento do autor e escrever de um (autor) e no ler de outro
do leitor diante do texto e do conteúdo (leitor) busca um ponto de vista, que
que ali veiculam. Assim, não basta de- leva ao questionamento, à investigação
codificar as representações indiciadas dos meios que permitiram a elaboração

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do texto e ao confronto com os pontos de que autor e leitor são capazes de fazer
vista de um e de outro, construindo um referências, inferências e pressuposições
diálogo interminável. na construção do sentido de um texto; é
Essa relação traz o conceito de leitor, pela leitura que se é capaz de construir
formulado por Jean Foucambert (1994), sequências linguísticas aceitáveis e co-
que diz ser ora o autor, ora o leitor. Com erentes pelo conhecimento linguístico e
isso, aperfeiçoa-se o sistema de inter- pragmático que ela evidencia, produzi-
rogação dos textos de que se precisa, das por sujeitos concretos, em situações
mobilizando o “conhecido” para reduzir concretas, sob determinadas condições
o “desconhecido”. As intervenções reme- de produção.
tem, pois, à organização e ao uso desse A não leitura traz a não escrita e,
“conhecido”, já que podemos entender obviamente, a impossibilidade de lidar
que ser leitor é querer saber o que se com os fatores que estabelecem o sentido
passa na cabeça do outro, para compre- de um texto. Para muitos, a leitura está
ender melhor o que se passa na sua; e intimamente associada às atividades
tornar-se leitor é penetrar nas razões e e exigências da escola e da academia;
nas redes de uma comunicação escrita, por isso, quando concluído o período de
uma vez que o mundo aí está, cheio de escolarização, deixam de ler, porque a
mistérios, resistências, encantos, sabe- vida agora significa algo muito diferen-
res, limites. te do que faziam antes. Além disso, há
Nas atividades de leitura podemos outros entretenimentos e meios educa-
articular fatores essenciais para o cionais que suplantam a leitura. Sem
estabelecimento da coerência de um falar que, na maioria das vezes, a escola
texto, ou seja, é pela leitura que temos não ensina para o estudante, mas, sim,
a intertextualidade; é pela leitura que para a escola, pois, ao invés de mostrar
temos o conhecimento de mundo e, por- o caminho para o leitor, apresenta uma
tanto, o conhecimento partilhado entre leitura pronta, sem colocar obstáculos
os três elementos da interlocução; é pela no meio, não permitindo que o diálogo
leitura que temos a informatividade, entre autor/texto/leitor se construa de
tratada aqui como o fator responsável modo significativo para a construção de
pela seleção e distribuição da informa- leitores competentes. Como diz Georges
ção no texto; é pela presença da leitura Picard (2008, p. 112), “de que valem um
na escrita que podemos identificar a romance ou um ensaio que não mexem
consistência e a relevância do que é dito conosco? Com certeza, nós os esquecere-
e do que fica implícito nas proposições; mos mais rapidamente que qualquer ou-
é pela familiaridade com a atividade tra obra irritante”. Sem dúvida alguma
da leitura que autor e leitor poderão ler é muito mais que um jeito de passar o
estabelecer relação entre os gêneros tempo ou de arejar a cabeça. Ler é traba-
textuais; é pela intimidade com a leitura lhar na construção de conhecimentos e, a

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partir daí, relacioná-los. Ler é construir atividade de leitura, que deve acontecer,
uma experiência de significação que seja simultaneamente, na vida de qualquer
a soma de todas as histórias das leitu- usuário da língua, para que ele possa
ras individuais. Os leitores têm tudo a criar a familiaridade necessária com a
ganhar ao abordar um livro e tê-lo como modalidade escrita e, então, articular os
objeto de desejo, consumo, oportunidade elementos linguísticos e não linguísticos
de – pelo saber – fazer a diferença. A necessários para produzir sentido no/
escola – em sua dimensão mais ampla – pelo texto, principalmente no universo
deve aprender isso. docente/discente.
Ainda acredito – e provavelmente Jean Foucambert (1994) afirma que
continuarei acreditando por muito tem- escrever é inventar algo “jamais lido” a
po – que a boa leitura torna as pessoas partir de uma prática que tenta organi-
melhores, mais educadas, reconciliadas zar todos os componentes da experiência
com a cultura e amantes das belas coisas de leitor de quem escreve. Para ele, toda
e das belas letras. Essas questões pro- palavra nova encontrada num texto obri-
vocam um leitor que pode ser melhor e, ga a ver de outra maneira as palavras
por isso, ser um bom produtor de textos. já conhecidas. Assim, o conhecimento
Eis o próximo ponto dessas reflexões: a do sistema da escrita evolui, porque as
produção textual. estratégias de leitura evoluem. Não se
trata apenas de ampliar a leitura, mas,
Escrever: um trabalho de essencialmente, de revolucioná-la, de

produção torná-la uma leitura de questionamento,


seja uma leitura na situação de leitor,
O ato de escrever é uma prática social, seja na situação de autor.
resultante do desenvolvimento de um A intertextualidade faz-se presente
conhecimento longamente assimilado nesta dimensão, pois escrevemos o que
durante muitos anos de formação. As- outros já escreveram; falamos o que ou-
sim, a escrita está ligada à construção tros já falaram em outras situações de
de um modo abstrato de mediação das discurso; lemos a leitura que os autores
práticas sociais e à tentativa de entender fizeram de outros autores e, assim, su-
um pouco mais sobre o homem em suas cessivamente. Não podemos esquecer de
relações, já que a escrita não circula no que há uma simetria irredutível entre os
vazio. Tomar a escrita como trabalho processos de ler e de escrever. E é nessa
– sim, trabalho, pois esse estereótipo simetria que reside o vínculo de leitor e
de “escritor mágico” não existe, porque escritor. É pela boa leitura que construí-
acredito que escrever é trabalhar com mos bons escritores. É pela leitura e pela
e sobre a língua – de produção de texto escrita de muito tempo que conseguimos
só pode ocorrer com base numa larga escrever com o som da nossa própria voz.
É com isso que conseguimos imprimir em

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nossas leituras e em nossas escritas uma gerada por uma postura de leitura como
“impressão” de autoria. trabalho. De acordo com Possenti, “[...]
A escrita precisa ser vista como um ler e escrever são trabalhos. Ler e escre-
meio de construir um ponto de vista, ver são trabalhos essenciais no processo
uma visão de mundo, de encaixar cada de aprendizagem, para que possamos
fato num conjunto, de estabelecer um pensar a escrita de um texto, que se quer
sistema, dar um sentido às coisas, não de qualidade, a partir de uma leitura de
representar, mas apresentar sua aborda- qualidade”. (1996, p. 57).
gem, sua interpretação. O ato de produ- Jamais se escreve algo que tenha
ção de textos evidencia a escrita como um acontecido antes do trabalho de escrever.
instrumento do pensamento reflexivo e Escreve-se aquilo que se produz durante
a coloca como necessária para operações esse trabalho, no seu decorrer, e esse
intelectuais. Precisamos de trabalhos trabalho – o da escrita – está subme-
que ensinem a manejar a escrita, para tido ao que se exige da/com a língua.
que, efetivamente, se construam textos Jamais se pode aprender a escrever
de qualidade. Infelizmente, hoje, na es- senão escrevendo, isto é, percorrendo o
cola, na maioria dos casos, não estamos caminho da escrita, pois ela propicia for-
diante de textos pautados nas noções mas especiais da atividade linguística,
de “autoria”, “originalidade”, “criação”, desenvolve certas maneiras de colocar e
“convenções prescritas pela gramática de resolver problemas e proporciona uma
tradicional”. Um texto asséptico não é oportunidade de explorar a língua. Isso
inventivo, pois apenas reproduz lugares- caracteriza uma escrita que traz o que
comuns e acaba não se compondo no seu está atrás das aparências. Há, dessa ma-
fazer-se pela escrita. Percebo a escrita neira, um fazer surgir uma ordem desco-
como um artesanato que molda um jeito nhecida dos fatos contados, uma ordem
de combinar as peças que compõem a que propõe um sentido novo à própria
obra. experiência de leitor e de escritor, bem
Foucambert (1994) afirma que a es- como a necessidade, enquanto leitor, de
crita é uma “ação de pensar o mundo”; escrever. A necessidade de escrever para
também é uma vontade de agir sobre entender a ordem do universo e dar-lhe
ele, transformando, por exemplo, a visão uma ordem que nos pareça mais adequa-
que o leitor tem dele. Assim, a escrita da e também a necessidade de fazer-se
é uma procura e uma reconstrução do entender pelo texto nos coloca mais uma
que explica que as coisas sejam como vez a questão de ter o que dizer, em
são, e a produção de texto impõe que se função de equacionar um problema, ou
procure e se produza uma coerência, ou seja, ter um conhecimento prévio mínimo
seja, que se pense o mundo em vez de para que se possa problematizar o que
simplesmente nomeá-lo. Essa atitude está preestabelecido por uma leitura
diante da produção de texto deve ser que alguns fazem através da escrita de

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um novo texto, uma nova ordem. Como Para Geraldi (1991), o texto é, pois,
afirma Umberto Eco (1984, p. 64), “[...] o lugar onde o encontro se dá: encontro
o escritor sabe que deve resolver um entre autor e interlocutor, encontro com
problema. Ele traz consigo a lembrança o conhecimento. O produto do trabalho
da cultura que carrega (o eco da inter- de produção de um bom texto deve se
textualidade)”. Picard (2008) assinala, oferecer ao leitor num processo dialógico,
ainda, que a escrita é o mais ambíguo cuja trama toma fios que, juntos e (in-
e o mais sedutor dos espelhos. É ali que ter)relacionados, formam uma rede que
nos enxergamos. É ali que descobrimos traça o que se tem a dizer. É o encontro
o que sabemos, o quanto sabemos e se desses fios que evidencia a cadeia de
realmente sabemos algo a ponto de poder leitura anterior deste autor, construindo
dizer ao outro. Nas palavras do autor: os sentidos de um texto. O que liga os
Ao escrever, não busco me fazer admirar, fios são as estratégias escolhidas pela
muito menos surpreender os leitores; tento experiência anterior de leitura do ago-
simplesmente animar zonas pouco conheci- ra autor. É aprendendo a ler de forma
das de minha sensibilidade, desestabilizar o
trem de meu pensamento, cujo movimento competente que aprendemos a escrever
ordinariamente caótico e vago é obrigado a da mesma forma, do que resultam bons
tomar ritmo e forma fixando-se. (PICARD, textos.
2008, p. 18).
Isso deixa claro que o bom texto se
Precisamos da leitura para que per- estrutura tendo o outro (o tu) como
ceber no texto a perspectiva de uma medida, uma vez que ele se inscreve no
escrita de qualidade, um conjunto de seu processo de produção de sentidos;
características que determinam a relação preocupa-se com o que tem a dizer a um
que o texto vai estabelecer com seus lei- determinado leitor, uma vez que a ex-
tores, por meio de um diálogo que trava periência vivida (de leitura) passa a ser
com eles e com os demais textos que o objeto de reflexão, ou melhor, é o objeto
antecederam na história dessa relação. de partida para a reflexão; diz o que tem
Pelo texto, os interlocutores partilham a dizer com alguma razão e, dessa forma,
de algumas crenças, saberes, represen- seleciona estratégias para esse dizer. O
tações que fazem do mundo, dos objetos, bom texto deve proporcionar uma leitura
das relações dos homens entre si e com o que traga subsídios, para que se possam
mundo que os rodeia. O texto produzido estabelecer relações com leituras ante-
nessa dimensão de diálogo é visto como riores e produzir novas. Para que essa
uma atividade discursiva, por meio da leitura possa acontecer, precisamos, sem
qual um eu diz algo a um tu, por meio dúvida, de um texto de qualidade para
da leitura/escrita que faz. É nessa dança que o leitor possa deslocar e alterar os
intelectual entre leitor e autor que os sentidos de tudo o que já leu, tornando
sentidos e os saberes vão se construindo. mais profunda a compreensão que faz do
E isso deve ser ensinado na escola. seu mundo mais próximo.

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Escrever é escrever textos. Textos que de modo inteligente e competente, provo-
provocam questionamentos e respostas cando o leitor de tal forma que o prende,
no interlocutor, ou seja, pelas informa- amarra, submete, seduz pelo que diz.
ções e reflexões que trazem, provocam Para que essa distribuição de infor-
no outro (leitor) uma reação. Não que- mação aconteça, o autor do texto tem
remos dizer que o texto deve provocar a de ter o que distribuir; ter o que dizer;
resposta, mas uma resposta. Ele precisa conseguir estabelecer relações de sentido
ser visto como uma das condições neces- entre as informações já dadas, as novas
sárias e fundamentais à produção de sen- e, ainda, contar com o conhecimento
tidos na leitura, em que os espaços em prévio que sustenta e dá sentido às
branco são preenchidos em consequência informações que ficam subjacentes ao
de diferentes interpretações, em função conteúdo proposicional das construções
dos universos discursivos diferentes de linguísticas. A distribuição de informa-
autor e de leitor. Como afirma Geraldi ções num texto deve evidenciar um jeito
(1991, p. 29), ainda que os interlocutores novo, peculiar, de dizer o já sabido, o já
possam “compartilhar algumas crenças, conhecido, o já dado. Isso não significa
sempre se está reorganizando, pelos que exista uma ordem para que os fatos
discursos, as representações que fazem sejam contados. O fato, num texto, só
do mundo dos objetos, de suas relações traz uma parte da realidade que carac-
e das relações dos homens com o mundo teriza um acontecimento e ainda requer
e entre si”. uma localização num contexto espacial/
Dessa forma, o texto que se quer de temporal determinado.
qualidade é aquele que se propõe como O mesmo ocorre com a descrição, que
diálogo entre interlocutores; diz de que sempre é incompleta, uma vez que o que
problema quer tratar; seleciona argu- se diz sempre é selecionado, recortado
mentos para tratar de tal problema; pelo olhar de quem diz. Os aspectos
mostra por que razão e para que trata selecionados numa descrição servem
disso; usa mecanismos linguísticos para para dar uma ideia de relação parte/
construir tal sentido e não outro. Texto todo, geral/específico e, ainda, lembra-
bom e de qualidade é aquele que traz, no mos que a descrição cria uma imagem
seu interior, uma história de leitura an- na cabeça do leitor. Quando se organiza
terior, também de qualidade, evidencia- um texto, faz-se uma seleção do que se
da pela sua própria construção escrita, julga importante – contam-se algumas
numa determinada situação discursiva, coisas; outras, não. O ato da escrita exige
que (re)significa sentidos e mostra certa a escolha entre muitas ideias, inicial-
familiaridade com a modalidade escrita e mente vagas, aquelas que encontrarão a
o uso de seus recursos. Texto bem escrito própria densidade nos limites da sintaxe,
é aquele que distribui suas informações do léxico, do estilo. Portanto, escrever é

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selecionar o que já se selecionou pelas se dá. E esse conhecimento é construído
leituras anteriores. Tomando mais uma em nossas leituras e materializado em
vez as palavras de Schopenhauer: nossos textos. Não nos esqueçamos de
Poucos escrevem como um arquiteto cons- que a palavra – escrita – do homem é o
trói: primeiro esboçando o projeto e con- material mais duradouro. Se um poeta
siderando-o detalhadamente. A maioria deu corpo à sua sensação passageira com
escreve da mesma maneira com que jogamos
dominó. Nesse jogo, às vezes segundo a in- a palavra que julgou mais apropriada,
tenção, às vezes por mero acaso, uma peça aquela sensação vive através de séculos
se encaixa na outra, e o mesmo se dá com o nessas palavras e é despertada nova-
encadeamento e a conexão de suas frases.
Alguns sabem apenas de modo aproximado
mente a cada ato de leitura e de escrita
que figura terá o conjunto e aonde chegará o que realizamos.
que escrevem. Muitos não sabem nem isso,
mas escrevem como os pólipos de corais
constroem: uma frase se encaixa em outra The development of
frase, encaminhando-se para onde Deus
quiser. (2007, p. 115).
reading and writing at
Essas reflexões evidenciam que tanto
school
a leitura quanto a escrita necessitam Abstract
ser um objeto de ensino e de aprendi-
zagem. This paper presents reflections
on the acts of reading and writing
Considerações finais as processes that lead to the construc-
tion of meaning in the text. In the
Para finalizar, sabendo que isso é perspective of the interaction, the
impossível, gostaria ainda de dizer que reading and the writing are seen as
acredito ser nessa dança mental de ler, cognitive processes carried out by indi-
compreender, interpretar, interagir com viduals who perceive the language as
o outro, tomar atitude que o sentido do social practice and as a means of in-
texto se constrói. O conhecimento pelo teraction among interlocutors. These
texto se constrói. Entendo conhecimento considerations taken in the school en-
como todas as informações interiorizadas vironment are essential to the teachers
que, acionadas nas diferentes situações of Portuguese who understand and
vividas, estabelecem relações outras com teach the language from its use in
as novas e as velhas informações obti- communicative real situations.
das, acomodando-as em sua estrutura
cognitiva. É nessa rede lógica, signifi- Key words: Reading. Writing. Text. Mea-
cativa e individual que o conhecimento ning.

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