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10442021 5629
Abstract This paper makes a critical assessment Resumo O ensaio epistemológico relaciona cri-
of epidemiology with the COVID-19 pandemic as ticamente a epidemiologia com a pandemia de
a social event. It examines the philosophical re- COVID-19 enquanto evento social. Explora-se a
flection in which Agamben defines as contempo- reflexão filosófica em que Agamben define con-
rary those able to stand back to see the dark side of temporâneo como quem é capaz de se afastar
their own era. In the light of decolonial criticism, e enxergar o lado escuro do seu tempo. À luz da
the concept of “epidemiological transition,” with crítica decolonial, questionam-se a ideia de “tran-
its theory of transcendence of “social determinants sição epidemiológica”, com sua transcendência
of health” and binarism of epidemiological varia- na teoria dos “determinantes sociais de saúde”, e
bles as supports of the biomedical and quantitati- a disposição binarista das varáveis epidemiológi-
ve structuring of the epidemiology of risk factors cas, como suportes da estruturação quantitativa e
is queried. The scientific ambition to dominate biomédica da epidemiologia dos fatores de risco.
nature and the engendering of a linear and evolu- A pretensão científica de domínio da natureza e
tionary historical time, beginning in western mo- o engendramento de um tempo histórico linear e
dernity, contextualizes the epistemicides of popu- evolutivo, que inicia com a modernidade ociden-
lar wisdom and the coloniality of epidemiological tal, contextualizam os epistemicídios dos saberes
knowledge. The theoretical constitution of decolo- populares e a colonização do saber epidemiológi-
nial thought is historically analyzed, highlighting co. Historiciza-se a constituição do pensamento
its greater critical potential to reveal the structural crítico decolonial e pontua-se seu potencial para
colonization of epidemiological knowledge. The a revelação do caráter estrutural da colonização
post-pandemic future is considered and Prigogi- do saber epidemiológico. Considera-se o futuro
ne’s idea of bifurcation – as elaborated by Sousa pós-pandemia e relacionam-se as ideias de bi-
Santos – and Paulo Freire’s untested feasibility are furcação, originada de Ilya Prigogine e elaborada
related with the concept of time as the creation por Boaventura de Sousa Santos, e inédito viável,
1
Departamento de
Epidemiologia e Métodos and expectation of social transformation. de Paulo Freire com a concepção do tempo como
Quantitativos em Saúde, Key words Epistemology, Contemporaneity criação e a expectativa de transformação social.
Escola Nacional de Saúde of the COVID-19 pandemic, Epidemiological Palavras-chave Epistemologia, Contempora-
Pública Sergio Arouca,
Fundação Oswaldo Cruz. transition, Social determination of health and neidade da pandemia de COVID-19, Transição
R. Leopoldo Bulhões 1480 binarisms, Decolonial criticism epidemiológica, Determinação social da saúde e
Manguinhos, 21041-210. binarismos, Crítica decolonial
Rio de Janeiro RJ Brasil.
gsev@terra.com.br
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Sevalho G
tegoria estilos de vida, que define a natureza da quanto determinam desajustes sociais, e seu en-
relação entre o biológico e o social, funcionan- frentamento oportuniza ao Estado a realização
do como conceito operador para mudança entre de medidas repressivas que em outro cenário não
vida insalubre e vida saudável. A ideia de estilos seriam aceitáveis. Tanto vítimas quanto perpe-
de vida condiz com o culto da modernidade oci- tradores definem historicamente contexto e sig-
dental ao individualismo. nificado da doença. A medicina clínica e a ideolo-
A promoção da saúde, nascida no Canadá na gia médica, aponta Stark, não negam a etiologia
década de 1970 e internacionalizada pela OMS, social da doença, mas reconhecem que os meios
filia-se ao modelo preconizando ações educativas de progresso capitalista causam doença ao mesmo
orientadas segundo padrões de civilidade e saúde tempo em que ocultam a natureza histórica con-
ditados pelas sociedades ocidentais capitalistas tingencial do processo, mostrando-o alternativa-
desenvolvidas, em acordo com o saber biomédico mente, como um fato ‘natural’ (como ‘progresso’) e
universalizado. Acompanhando o avanço do ne- como resultado de uma escolha individual ou ‘esti-
oliberalismo, o afastamento do Estado da função lo de vida’14 (p. 701).
de provedor de políticas e ações sociais voltadas A dimensão social das pandemias é fato his-
para saúde, educação, trabalho, explica as con- tórico. Biraben27 relata que os rituais da dança
cepções de Estado mínimo ou ausente que dão macabra diante da morte, cortejos de flagelados
sentido à promoção da saúde. em peregrinação ou fuga, culpabilização dos po-
Posicionando-se na defesa crítica de uma bres e mendigos, aumento de mortes entre ido-
dialética da determinação social da saúde, Brei- sos, aumento da violência e repercussões econô-
lh26 aponta que o paradigma do risco foi concebido micas acompanharam a peste negra dos séculos
para manejar ‘fatores’ bem definidos, localizados e XIV e XV. Segundo Biraben, desde o século XV, os
de curto prazo de ação (p. 197). Constitui estraté- ricos aprenderam a proteger-se relativamente bem,
gia positivista que esvazia o conteúdo histórico, fugindo para suas propriedades no campo e isolan-
reifica fatores que fragmentam a visão processual, do-se, o que não podiam fazer os pobres27 (p. 596).
alimenta o reducionismo probabilístico, o nivela- Em maio de 2020, quando contabilizavam-se
mento ontológico, metodológico e praxiológico e a no mundo 270.000 mortes e 4,3 milhões de casos
ambiguidade interpretativa da determinação da de COVID-19, Abrams e Szefler28 evidenciavam a
saúde26 (p. 199). grave desigualdade social implicada no processo
A teoria do risco, e sua centralização na ideia e anteviam o que a história da pandemia mostra.
de estilos de vida, segundo Breilh26, é de enor- Pobreza, falta de moradia ou situação de rua, raça
me utilidade para os modelos de gestão neoliberal ou etnicidade são determinantes de saúde relacio-
e para a manipulação da hegemonia na saúde, nados pelos autores com a capacidade de cumpri-
constituindo a base de uma epidemiologia sem mento das medidas de isolamento social e restri-
memória e sem sonhos de emancipação presa à di- ção do contato físico e com o acesso aos serviços
tadura de um presente que se mantém à custa de e recursos de saúde (p. 661). Medidas de distan-
mudanças cosméticas que deixam intacta a estru- ciamento físico são difíceis de cumprir por quem
tura insalubre (p. 202). Não somos expostos aos vive em espaços precários. Tais condições afetam
riscos, assinala Breilh, mas estes nos são impostos em maior escala a população negra que mais so-
pela ordem social. A epidemiologia ocidental he- fre com a desigualdade social. Abrams e Sezfler
gemônica desconhece as dimensões estruturais ressaltam que talvez os efeitos dos determinantes
da opressão, assentadas na tripla iniquidade, de sociais em relação à COVID-19 sejam deprecia-
classe, gênero e raça. dos, e deveriam ser priorizados no enfrentamento
A qualificação como evento social foi incor- desta e de pandemias futuras.
porada aqui a partir de um ensaio de Stark14, para Convém, então, assinalar a referência crítica
quem uma epidemia não deve ser vista como um de Horton29 a uma perspectiva de determinação
intruso extraterritorial e biológico mas como um social, ao dizer que a COVID-19 não é uma pan-
‘evento’ com dimensões ideológicas e socioeconômi- demia, mas uma sindemia. O conceito, criado na
cas, fruto de decisões políticas e econômicas (p. antropologia médica por Singer30 referindo-se à
681-682). A doença sempre foi um fato social, aids, compreende a complexa interação entre do-
assim era para populações pré-industriais em seu enças transmissíveis, doenças não transmissíveis
convívio organizacional com o meio, mas tor- e vulnerabilidade social, e é utilizado por Horton
nou-se um produto quando a natureza passou a para assinalar a articulação do amplo espectro de
ser um obstáculo ao desenvolvimento capitalista. manifestações clínicas e sociais da pandemia de
Epidemias são tanto socialmente determinadas COVID-19.
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constitutivo e mais escuro da ideia de modernidade nhecimento, por meio da geração de uma nova
eurocêntrica (p. 2). Interpretamos, neste ensaio, perspectiva temporal de história evolucionista
o giro decolonial, ético-político e teórico, de que traçada desde um estado de natureza ao de ci-
fala Maldonado-Torres11, como releitura crítica vilização, onde diferenças de identidade racial e
capaz de produzir ressignificações históricas e gênero, bem como aquelas entre subdesenvolvi-
novas versões epistemológicas para a epidemio- mento e desenvolvimento, respectivamente, são
logia. encarnadas na América Latina e resto do mundo
e na Europa (p. 121). A colonialidade do poder,
Uma leitura decolonial para Quijano, é estruturada sobre uma trajetória
da contemporaneidade da pandemia civilizatória contínua unilinear racista, um novo
espaço-tempo que inferioriza os não-europeus
O pensamento decolonial, segundo Balles- e culmina na modernidade europeia, assumida
trin33, surge no final dos anos 1990 quando in- como dimensão material e subjetiva universal de
telectuais latino-americanos realizam um movi- mudança e futuro12 (p. 125, 127).
mento de crítica epistemológica radical com a Para Mignolo10 a globalização tem dois lados:
criação do Grupo Modernidade/Colonialidade, o da narrativa da modernidade e o da lógica da co-
renovando as ciências sociais. Produzem uma ge- lonialidade (p. 3). Mignolo pensa a colonialidade,
nealogia da argumentação pós-colonial e trans- conceito que buscou em Quijano, como o lado
cendem outros estudos sobre a subalternidade. escuro da modernidade. O discurso da moderni-
A intenção é ultrapassar a reflexão pós-colonial, dade define o nascimento da civilização a partir
cujo foco principal é o imperialismo britânico, e da dominação europeia, celebrando as conquis-
outras teorizações descoloniais. tas inscritas nesta perspectiva histórica e ocultan-
O uso do termo decolonial expressa insur- do a colonialidade. Espaço e tempo foram colo-
gência em relação às propostas descoloniais que, nizados, em sentido econômico e epistemológico,
embora contrapostas à dominação colonialista, para sustentação do projeto. A ciência hegemôni-
diferem do movimento latino-americano33. O ca estruturou-se sob a soberania europeia, como
decolonial confronta radicalmente a universali- conhecimento capaz de dominar a natureza. O
zação da modernidade eurocêntrica que forja a convívio respeitoso com a natureza, fundamento
ciência hegemônica, procurando desvelar as di- de civilizações seculares, tornou-se, diante da ci-
versas formas de opressão e racismo matricial- ência hegemônica eurocêntrica, uma miscelânea
mente incorporadas à colonialidade do poder, de narrativas alternativas que não devem ser tra-
do saber, do ser, em sua relação com a América tadas como conhecimento. Hierarquias raciais,
Latina. de gênero, espiritual/religiosa, estética, epistê-
Quijano12 é autor pioneiro na perspectiva de- mica, linguística, conformadas a uma concepção
colonial, tendo introduzido a ideia de coloniali- de sujeito moderno padronizada segundo a civili-
dade do poder que inspirou as de colonialidade zação europeia, branca, patriarcal, cristã, torna-
do saber e do ser. Para o autor, a invenção da ideia ram-se modelo para a humanidade10 (p. 11).
de raça fundamenta a dominação eurocêntrica O engendramento de um tempo históri-
sobre as populações latino-americanas. Raça é co universal linear com início na modernidade
construção mental funcional que demarca hie- europeia, revelado pela crítica decolonial, é ele-
rarquias de poder entre colonizadores e coloni- mento estrutural da formulação clássica da ideia
zados, dissimulando-se como suposta distinção de transição epidemiológica e sua postulação de
estrutural biológica. A partir da ideia de raça fo- controle sobre as doenças infecciosas. Isto con-
ram produzidas formas de relações e identidades textualiza o caráter surpreendente da pandemia
sociais como índios, negros, mestiços e brancos, de COVID-19, diante da qual somam-se perple-
constitutivas da dominação colonizadora euro- xidade e despreparo científico e político.
peia. Criou-se, assim, no sistema-mundo capi- A Pachamama, mãe terra das cosmologias
talista um novo padrão universalizado de po- indígenas latino-americanas, como esclarece
der no qual se ancora o controle das relações de Mignolo10, não compreende a distinção entre na-
trabalho, recursos e produtos. Sobre esta matriz tureza e cultura que marca a civilização ociden-
foi também constituída a hierarquia do conheci- tal. A natureza foi colonizada e expropriada pelo
mento, sendo incorporadas a intelectualidade e discurso teológico cristão, separada da cultura e
a cultura ao processo de dominação. Populações tornou-se fonte de recursos objetivada para a ex-
colonizadas foram expropriadas de suas expres- ploração capitalista. A teorização decolonial am-
sões simbólicas, religiosidade, subjetividade, co- plia e ressignifica a crítica à teoria da transição
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Pensamos que, ao alimentar distinção fechada, o em sua crítica decolonial, caracterizando a crise
binarismo saúde/doença reforça o peso coloni- epistemológica e política que vivemos43 (p. 432)
zador da biomedicina ocidental sobre o conhe- ou apontando a possibilidade de mudanças so-
cimento epidemiológico, fragilizando o reconhe- cialmente emancipadoras44 (p. 289). Sevalho45
cimento da complexidade social e política que associa, em uma epistemologia que vê o tempo
orienta as epidemias. como criação, a complexidade de Prigogine e o
Os aportes da reflexão decolonial podem, pensamento de Paulo Freire, ilustrando a rela-
com sua radicalidade, fortalecer a análise crítica ção com o conceito freireano de inédito viável na
do saber epidemiológico. Ao apontamento deco- perspectiva da esperança.
lonial o questionamento epistemológico da Saú- Em Freire46, inédito viável remete à superação
de Coletiva toma um sentido original revelador de situações-limites e não-determinismo (p. 110).
da opressão colonizadora que estrutura o pensa- O conceito diz da conscientização da possibilida-
mento epidemiológico e, frequentemente, não se de de emancipação e se contrapõe à opressão so-
revela ao espelho. cial e à conformidade com a ideia de que a justiça
social é inalcançável. Bifurcações e inédito viável
miram a mudança, o novo.
Considerações finais: incertezas, A desobediência associada com a epidemia,
bifurcações, inédito-viável segundo Stark14, pode crescer de acordo com as
medidas executadas pelas autoridades para racio-
Para Santos34, o coronavírus é nosso contemporâ- nalizar o sofrimento (p. 690). Movimentos popu-
neo ao compartir conosco as contradições de nosso lares surgidos no contexto de epidemias podem
tempo, o passado que não é passado e o futuro que transcender o enfrentamento da doença, e, então,
virá ou não (p. 35). A cruel pedagogia do vírus nos atentemos para as lutas antirracistas nascidas du-
ensina das consequências da agressão à natureza. rante a pandemia de COVID-19, que tomaram
Não sabemos se o que virá será para o bem ou o mundo.
para o mal e à narrativa do medo deverá se con- É difícil lidar com a longa duração do tempo
trapor a da esperança (p. 40). e ao viver o drama desejamos soluções favoráveis
Prigogine41 observou bifurcações que inserem no tempo curto. Reações contra a privação da
a perspectiva histórica em sistemas químicos liberdade e perdas sociais devem surgir, mas po-
levando-os ao não determinismo, rompendo li- dem não se dar de modo a constituir a conscien-
nearidade e ordem de equilíbrio anterior (p. 23). tização crítica sobre a iniquidade social. O futuro
Pequenas flutuações em sistemas abertos criam pós-pandemia pode configurar o enrijecimento
estruturas instáveis duradouras distantes do perverso do neoliberalismo ou nos levar a socie-
equilíbrio e pouco previsíveis. Irreversibilidade dades mais justas.
do tempo, assimetria, mudança compõem a re- Discursos solidários constroem mundos em
flexão humanizadora de Prigogine sobre a com- contraposição à desinformação politicamente
plexidade, e ao entender o tempo como criação orientada. Devemos nos empenhar na constru-
ele sugere associar as bifurcações, e as transfor- ção de uma ciência crítica e socialmente emanci-
mações que trazem, tanto aos sistemas naturais padora com a convicção de que um outro mundo
como sociais42 (p. 74). é possível.
As bifurcações prigogineanas e seu potencial
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Sevalho G
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