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BR

MARÇO DE 2023 | ANO 24, N. 325

O SALTO DA
INTELIGÊNCIA Imagem gerada

ARTIFICIAL
pelo programa
MIDJOURNEY com
base no comando
“O salto da inteligência
artificial, estilo
Hieronymus Bosch”

ChatGPT e softwares
semelhantes prometem
transformar a interação
entre seres humanos
e computadores, com
muitas implicações éticas

Brasileiros Presença de Análise de Ambulâncias Empresa Estudos


e franceses mulheres em milhões de artigos do Samu desenvolve associam alimentos
identificam cargos de e patentes sugere alcançam 85% mariposa ultraprocessados
uma nova direção no que a ciência da população, transgênica para a 10% das
possível causa serviço público está ficando mas atendimento combater a principal mortes precoces
da depressão não chega a 20% menos disruptiva é desigual praga do milho no Brasil
PARA TODOS
OS DESAFIOS,
O CONHECIMENTO
ABRE PORTAS.
O Prêmio CBMM de Ciência e Tecnologia chega à sua 5a edição
reconhecendo o legado de quem transforma o futuro. Uma iniciativa
da CBMM, líder mundial na tecnologia do Nióbio, para reconhecer
pesquisadores e profissionais que trazem benefícios reais para
a sociedade com seus trabalhos nas áreas de Ciência e Tecnologia.

Inscreva-se até 14/4/2023 e acompanhe as etapas


da premiação em premiocbmm.com.br.
5 CARTA DA EDITORA CAPA ENTREVISTA ARQUEOLOGIA
16 ChatGPT inaugura 36 Luciana Santos, 48 Pintura no interior
6 BOAS PRÁTICAS uma nova era na interação titular do MCTI, do Paraná seria primeiro
Revistas têm reação entre seres humanos propõe novos arranjos registro de araucária
modesta a denúncias de e computadores para financiar a ciência em arte rupestre
erros e fraudes em
papers, mostra pesquisa 23 Sistema recorre à BIOCOMBUSTÍVEL NEUROCIÊNCIA
inteligência artificial para 38 Aplicação de 50 Falha na reciclagem
9 DADOS detectar imagens compostos naturais pode de componentes dos
Aumenta a participação adulteradas em artigos aumentar produção de neurônios provoca sinais
feminina nas etanol de bagaço de cana de depressão em roedores
solicitações ENTREVISTA
de bolsas e auxílios 26 O físico Cid de Araújo ENERGIA RENOVÁVEL EPIDEMIOLOGIA
elucida fenômenos que 42 Boia para medir ventos 52 Um quarto dos
10 NOTAS permitem o aprimoramento oceânicos é criada por infectados por Mpox
de fibras ópticas e novos pesquisadores brasileiros em Sergipe tem menos
materiais de 18 anos
ECOLOGIA
PRODUÇÃO DE 44 Eventos geológicos NUTRIÇÃO
CONHECIMENTO contribuíram para 56 Alimentos
32 Pesquisa com milhões megadiversidade de peixes ultraprocessados
de papers e patentes na América do Sul estariam associados
sugere que a ciência está a 10% das mortes
Neurônio de roedor idoso menos disruptiva precoces no Brasil
(pintado de amarelo,
LIDA KATSIMPARDI

à dir.) e do animal jovem


e saudável (azul):

MARÇO 2023
estudos sobre depressão
(NEUROCIÊNCIA, P. 50)

›››

325
ASTROFÍSICA HISTÓRIA 90 MEMÓRIA ORÇAMENTO
60 Objeto celeste 77 Como o teatro e a Em 1940 foi publicado PÚBLICO, P. 84

situado depois de Netuno música participaram do o primeiro mapa


é orbitado por anel “fora processo de emancipação geológico do país feito
do lugar” de escravizados no apenas por brasileiros
século XIX
BIOTECNOLOGIA 94 ITINERÁRIOS
62 Brasil é o primeiro POLÍTICAS PÚBLICAS DE PESQUISA
país a testar inseto 80 Estudo mostra A psicóloga Raquel
transgênico contra praga cobertura extensa da Silva Barros criou
do milho e atendimento desigual nova metodologia de
dos serviços do Samu acolhimento
66 Aedes aegypti
geneticamente modificado ORÇAMENTO PÚBLICO 96 RESENHA
já é vendido no Brasil 84 Pesquisadores Neutrinos solares
calculam recursos e o método científico,
EMPREENDEDORISMO federais destinados de Pedro Cunha de
68 Embrapa faz à primeira infância Holanda. Por Rafael
mapeamento das startups Alves Batista
do setor agropecuário 88 OBITUÁRIO
Cleonice Berardinelli 97 COMENTÁRIOS
(1916-2023) 98 FOTOLAB WWW.REVISTAPESQUISA.FAPESP.BR
GÊNERO
72 Mulheres enfrentam
barreiras para fazer carreira
no serviço público brasileiro VÍDEO
Como os Yanomami sonham?
Estudos etnográficos trazem
à luz interpretações de
povos ameríndios sobre
Sonda de exploração
de petróleo no
atividades oníricas
campo de Candeias,
na Bahia, em 1952
(MEMÓRIA, P. 90)

VÍDEO
Pesquisadores chegam pela
primeira vez à serra do Imeri
O biólogo Miguel Trefaut
Rodrigues, da USP, fala sobre
as espécies novas encontradas
em expedição à Amazônia

PODCAST
O avanço da ciência cidadã
Edição especial mostra
FOTO  ACERVO PETROBRAS  ILUSTRAÇÃO BRUNO NOVAES

como cientistas estão obtendo


apoio de pessoas de fora da
academia para produzir
conhecimento

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que contém, além de edições
passadas, versões em inglês
e espanhol e conteúdo exclusivo
CARTA DA EDITORA

Perguntas e respostas
Alexandra Ozorio de Almeida | DIRETORA DE REDAÇÃO

A
o definirmos que o ChatGPT seria tema Uma explicação apresentada recentemente
da reportagem de capa, foi irresistível aponta como origem dessa diversidade fenôme-
pedir ao software um editorial para esta nos geológicos ocorridos nos últimos 55 milhões
edição. A resposta desse modelo de linguagem que de anos. Em ao menos cinco grandes reconfigu-
utiliza inteligência artificial (IA) mais parecia um rações, sistemas de rios e lagos separados foram
press release, comunicado de imprensa: destacou conectados, misturando espécies, e a criação
a versatilidade da ferramenta, com aplicação em de barreiras bloqueou a circulação de animais,
serviços de atendimento ao público e na educação isolando populações de peixes que passaram a
(“oferecendo experiências de aprendizado per- evoluir separadamente (página 44).
sonalizadas e assistência nas lições de casa”). Na A depressão, um mal que aflige centenas de
conclusão, apontou potenciais riscos e desafios milhões de pessoas, é causada por uma série de
relacionados a vieses e à privacidade de dados. fatores biológicos e ambientais. No primeiro
As limitações do ChatGPT são evidentes, mas grupo, pesquisadores identificaram um fator
ao utilizar IA o sistema está programado para se adicional: a perda de capacidade dos neurônios
aperfeiçoar. Em um futuro próximo talvez seja de reciclar seus componentes danificados ou
difícil perceber se a carta de apresentação des- que não funcionam bem (página 50). Embora o
ta revista foi escrita diretamente por uma pes- estudo esteja restrito a animais-modelo, no ca-
soa. No campo da produção de conhecimento e so camundongos, os resultados sugerem que o
da integridade da ciência, o impacto do avanço envelhecimento acelerado de neurônios, provo-
dessa tecnologia já se sente, e está sendo desco- cado pela depressão, pode se beneficiar do uso
berto em tempo real. Questões relacionadas à de uma proteína chamada fator de diferenciação
integridade científica e ao reconhecimento de do crescimento.
autoria de artigos e de patentes, entre outros Primeira mulher nomeada para o cargo de mi-
exemplos, estão em jogo, mostra a reportagem nistra da Ciência, Tecnologia e Inovação, Lucia-
sobre o tema (página 16), escrita pelo repórter na Santos concedeu entrevista ao editor Fabrício
humano Rodrigo de Oliveira Andrade e ilustrada Marques durante uma passagem pela capital
por softwares geradores de imagens como MID- paulista (página 36). Engenheira eletricista com
JOURNEY e DALL-E. extensa carreira política em seu estado natal,
Quando pensamos na ciência como um pro- Pernambuco, Santos estabeleceu como priorida-
cesso de produção de conhecimento, o centro de a recuperação de investimentos públicos em
das atenções geralmente está nos resultados al- CT&I e a busca de novos arranjos para ampliar
cançados, mas as perguntas iniciais podem ser o financiamento dessa área.
tão interessantes quanto as respostas. A América Também pernambucano, o físico Cid Bartolo-
do Sul tem uma enorme variedade de peixes de meu de Araújo é outro entrevistado desta edição
água doce, das mais diferentes formas, tamanhos, (página 26). Dedicado ao estudo da óptica, o pes-
cores. Embora sua rede hidrográfica seja exten- quisador participou da fundação do produtivo
sa, o que explica o fato de essa região abrigar um Departamento de Física da UFPE, cujo sucesso
número tão grande de espécies? ele vincula à tradição científica do estado.

PESQUISA FAPESP 325 | 5


BOAS PRÁTICAS
Quando a U
ma dupla de pesquisadores espanhóis levantou
evidências novas sobre a disposição e a capa-
cidade de revistas científicas em responder a

má conduta denúncias de erros ou de má conduta em artigos pu-


blicados. Foi observado que apenas um em cada cinco

se esquiva
papers apontados como problemáticos ou suspeitos
em uma rede social acadêmica foi alvo de notas edi-
toriais – declarações públicas nas quais os periódicos

de ser punida comunicam a existência de investigações sobre o tra-


balho, divulgam erratas ou, em casos graves, anun-
ciam a retratação do estudo, considerando-o inválido.
Levantamento sugere que apenas Em um levantamento divulgado em janeiro na
um em cada cinco artigos com erros revista Profesional de la Información, o cientista da
informação José-Luiz Ortega e a cientista de dados
ou suspeitas de desvios provoca Lorena Delgado-Quirós mapearam comentários so-
reações na revista que o publicou bre o conteúdo de milhares de artigos armazenados
no site PubPeer, uma plataforma on-line criada em
2012 e sediada nos Estados Unidos, por meio da qual é
possível opinar sobre as conclusões de qualquer paper
e apontar eventuais erros e inconsistências, em uma
espécie de revisão por pares feita após a publicação
dos trabalhos. Como as críticas e análises podem ser
feitas de forma anônima, esse fórum on-line se tornou
um popular repositório de denúncias de má conduta.

6 | MARÇO DE 2023
Os dois pesquisadores debruçaram-se sobre uma te, 38,2% e 36,3% dos casos. No exemplo da PLOS
amostra de 17.244 artigos que receberam comentá- ONE, a resposta está relacionada à criação em 2018
rios no PubPeer até 2020. Em 14.290 desses papers, de uma equipe dedicada à investigação de problemas
o equivalente a 82,9%, foram apontados indícios éticos, após uma onda de denúncias de manipulação
de fraudes, manipulações, falhas metodológicas ou de imagens em papers publicados entre 2014 e 2016
erros cometidos de boa-fé. Não foram computadas (ver Pesquisa FAPESP nº 319).
denúncias formuladas por robôs, como as feitas em No extremo oposto, títulos como Oncotarget e
2016 pelo software statcheck, que detectou incon- Oncogene foram os que menos reagiram, com alertas
sistências estatísticas em mais de 50 mil trabalhos para 13% e 14,3% dos papers denunciados, respecti-
na área de psicologia e publicou alertas automáticos vamente. As áreas de ciências da vida (56,6%) e ciên-
no rol de comentários de cada um deles no PubPeer cias da saúde (19,6%) foram as que mais registraram
(ver Pesquisa FAPESP n° 253). artigos suspeitos. Periódicos de conteúdo multidis-
O passo seguinte foi identificar se as denúncias tive- ciplinar (28,6%) divulgaram mais avisos editoriais do
ram desdobramentos. Isso foi feito por meio da análise que os de ciências da vida (22,5%) e ciências sociais e
de registros em bases de dados como a PubMed, que humanidades (21%). “Isso sugere que revistas multi-
reúne resumos de artigos das áreas biomédicas, e a disciplinares teriam mais controle sobre publicações
do site Retraction Watch, que monitora retratações. problemáticas”, escreveram os autores.
O resultado foi que apenas 21,5% dos trabalhos apon-

O
tados como problemáticos da amostra foram alvo de índice de resposta das revistas era maior para
alguma declaração dos editores. A depender do tipo os trabalhos que saíram mais recentemente
de erro ou de má conduta, a quantidade de avisos – entre os de 2019, notas editoriais foram lan-
editoriais variava – em termos relativos, foram mais çadas sobre 34% das publicações. Há sinais, segundo
frequentes quando a queixa compreendia fraudes, ca- os autores, de que o rigor vem aumentando ano a ano,
tegoria que inclui desvios como plágio, autoria falsa e ainda que vagarosamente. Outro achado curioso do
manipulação da revisão por pares: de 1.698 artigos que estudo é que periódicos de prestígio, aqueles que os-
receberam comentários abrangendo essas formas de tentam índices de citação mais elevados, sofrem mais
má conduta, 499, ou 29,4%, resultaram em algum tipo denúncias de manipulação de imagens, enquanto o
de manifestação do periódico. Em números absolutos, plágio é a objeção maior em revistas de baixo impacto.
a contestação mais frequente envolvia manipulação A ideia de que revistas nem sempre conseguem
ou fabricação de dados ou imagens. Foram 10.989 acionar os mecanismos de autocorreção não é nova e
papers – desses, 2.256, ou 20,5%, ensejaram avisos já foi delineada em outros estudos. Em alguns deles,
editoriais. “Os periódicos precisam melhorar sua res- o número de artigos com problemas que escaparam
posta aos artigos problemáticos”, escreveram Ortega de retratações foi pequeno – o que foi atribuído ao
e Delgado-Quirós, ambos do Instituto de Estudos fato de os casos incluírem denúncias formais a instân-
Sociais Avançados, em Córdoba, vinculado ao Con- cias de investigação. Um estudo publicado em 2007
selho Nacional de Pesquisas Científicas da Espanha. na revista Science and Engineering Ethics analisou
Os autores reconhecem que o estudo tem uma li- casos de má conduta em artigos da área biomédica
mitação importante: as denúncias apresentadas ao descritos nos relatórios anuais dos Institutos Nacio-
PubPeer nem sempre são baseadas em evidências e, nais de Saúde (NIH), agência de pesquisa biomédica
em uma quantidade de casos difícil de mensurar, po- dos Estados Unidos, e do Escritório de Integridade
dem ser infundadas e injustas. É possível que muitas Científica (ORI) do país, e constatou que 83% dos
acusações tenham sido investigadas preliminarmente papers mencionados como falhos nesses relatórios
e descartadas. E, como as publicações não registram foram alvo de retratação. Em outras situações, o nú-
abertamente ou fazem alarde desse tipo de apuração, mero de artigos suspeitos que não foram retratados
não dá para saber quantas foram. parece ter sido muito maior. Em 2016, a microbiolo-
Ainda assim, algumas publicações são bem mais gista Elisabeth Bik inspecionou manualmente ima-
rigorosas do que outras na tarefa de apurar e dar gens de testes western blot, método usado na biologia
transparência a erros e casos de má conduta, o que molecular para identificar proteínas, divulgadas em
parece evidenciar lacunas nos mecanismos de au- 20.621 estudos da área biomédica publicados em 40
tocorreção de registros científicos. O estudo apre- revistas entre 1995 e 2014 (ver Pesquisa FAPESP nº
sentou dados sobre os 10 periódicos que tiveram 245). Encontrou imagens alteradas em 782 papers,
mais artigos problemáticos na amostra analisada. O 3,8% do total – em muitos casos, segundo Bik, as mo-
centenário Journal of Biological Chemistry, revista dificações feitas com o software Photoshop pareciam
da Sociedade Americana de Bioquímica e Biologia intencionais e de caráter fraudulento. Ela avisou os
BETTMANN / GETTY IMAGES

Molecular, estava no topo desse ranking, com 5,3% editores das publicações e escreveu para 10 institui-
dos trabalhos problemáticos da amostra. A PLOS ções que abrigavam pesquisadores responsáveis por
ONE aparecia em seguida, com 3,7%. Mas as duas problemas recorrentes. O saldo da iniciativa, segundo
também foram as que divulgaram notas editoriais e ela revelou na época, foi modesto: apenas seis artigos
correções com mais frequência em, respectivamen- foram retratados e 60 corrigidos. n Fabrício Marques

PESQUISA FAPESP 325 | 7


Governo dos Estados Unidos detalha orientações para
prevenir ingerência política em agências federais

D
ois anos depois de determinar líderes, promover o fluxo livre e transpa- a outros especialistas, em um processo
uma revisão nas políticas de in- rente de informações científicas e criar de revisão por pares com resultados di-
tegridade científica em todas as canais que protejam funcionários em vulgados publicamente.
agências federais dos Estados Unidos, denúncias de violações e interferências O plano também prevê a criação de um
o governo do presidente Joe Biden di- inapropriadas. painel composto por oficiais de integri-
vulgou um conjunto de orientações pa- O texto inclui um estatuto para um dade de várias agências e funcionários
ra prevenir interferências indevidas em subcomitê do Conselho Nacional de da Casa Branca com autoridade para re-
decisões de caráter técnico. O objetivo é Ciência e Tecnologia, encarregado de visar as políticas e investigar eventuais
evitar que se repitam as ingerências que acompanhar a aplicação de políticas violações. “É uma grande conquista para
marcaram a gestão do presidente Do- e orientar a escolha e as atividades de a ciência federal, embora sempre haja
nald Trump em órgãos como a Agência oficiais de integridade científica, pro- espaço para melhorias”, disse à revista
de Proteção Ambiental e dos Centros de fissionais encarregados de fiscalizar o Nature Jacob Carter, diretor do Centro
Controle e Prevenção de Doenças (CDC), uso adequado da ciência nos processos para Ciência e Democracia da União dos
quando pesquisadores foram impedidos internos de cada agência. De acordo Cientistas Preocupados (UCS), um grupo
de divulgar avaliações baseadas em evi- com as novas normas, esses fiscais de- de defesa de políticas baseadas em evi-
dências que discordavam de opiniões e verão criar mecanismos que permitam a dências científicas com sede em Cam-
crenças do governo. funcionários das agências expressarem bridge, Massachusetts. Já Lauren Kurtz,
O documento de 66 páginas aponta livremente suas análises. Quando um diretora-executiva do Fundo de Defesa
um modelo de política de integridade servidor discordar de informações, in- Legal da Ciência Climática, organização
que as agências devem adotar, além de terpretações ou conclusões relacionadas com sede em Nova York, afirmou que
uma extensa lista de ferramentas e mé- a uma decisão política com a qual está as normas podem ser facilmente revo-
tricas para ajudá-las a avaliar e aperfei- envolvido, será encorajado a expressar gadas e precisariam ser aprovadas pelo
çoar suas práticas. Para implementar o sua opinião por escrito. Se divergências Congresso e incorporadas à legislação
novo plano, os dirigentes das agências não forem resolvidas em deliberações vigente para realmente prevenir inge-
deverão reforçar o engajamento de seus internas, poderão ser alvo de consulta rências políticas no futuro.

Universidade em Bangladesh cria escala


para avaliar e punir casos de plágio

A
Universidade de Daca, a maior e mais antiga instituição pública de ensi-
no superior de Bangladesh, com 32 mil alunos e 1,6 mil professores, apre-
sentou em janeiro uma nova política para prevenção de plágio, que prevê
penalidades progressivas a depender da quantidade de texto reaproveitado sem
citar a fonte em trabalhos acadêmicos de docentes e estudantes.
De acordo com a proposta, se menos de 20% do texto for copiado, o plágio po-
deria ser tolerado. Caso abranja de 20% a 40%, o autor teria de pagar uma multa
e refazer o trabalho em no máximo seis meses. Se for de 40% a 60%, o rigor seria
maior. Caso se trate de artigos científicos, dissertações ou teses de autoria de pro-
fessores, funcionários ou pesquisadores da instituição e o trabalho copiado tenha
ILUSTRAÇÃO ALEXANDRE AFFONSO / REVISTA PESQUISA FAPESP 

servido para eles obterem emprego ou promoção, os plagiadores teriam de devol-


ver ao governo os vencimentos que receberam irregularmente. Já cópias acima de
61% seriam caso de suspensão por dois anos ou revogação de diploma.
A universidade adotou em agosto passado um software para verificar similari-
dade de texto nos trabalhos de seus alunos. Foi uma resposta a um escândalo en-
volvendo um docente do Departamento de Tecnologia Farmacêutica, Abul Kalam
Lutful Kabir, que plagiou 98% de sua tese de doutorado. Seu diploma de doutor foi
cassado e a promoção de professor assistente a associado cancelada.
De acordo com o vice-reitor de Graduação da universidade, Maksud Kamal, a
proposta receberá contribuições de aperfeiçoamento e será consolidada em breve.
“Após discussões iniciais, foram concedidas mais duas semanas para a formulação
das novas políticas”, disse, segundo o jornal Dhaka Tribune.

8 | MARÇO DE 2023
DADOS Participação feminina nas solicitações
de bolsas e auxílios da FAPESP

Entre 1992 e 2022, a FAPESP analisou mais Ao longo desse período, houve clara tendência de crescimento das
de 573 mil propostas de bolsas e auxílios solicitações feitas por pesquisadoras. Nos 10 primeiros anos da série,
à pesquisa, das quais 51% foram submetidas a média foi de 42% do total; nos últimos 10 anos, chegou a 53%.
por mulheres Em 2003, pela primeira vez, elas ultrapassaram a marca dos 50%

NÚMERO TOTAL DE BOLSAS E AUXÍLIOS, SEGUNDO O SEXO DO SOLICITANTE (1992-2022)


n Feminino n Masculino % mulheres

30.000 60%

25.000 50%

20.000 40%

15.000 30%

10.000 20%

5.000 10%

0 0
1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016 2017 2018 2019 2020 2021 2022

Nos últimos 10 anos,


a evolução da taxa de
TAXA DE SUCESSO, SEGUNDO O SEXO DO SOLICITANTE (2012-2022)
sucesso das pesquisadoras Feminino Masculino
foi muito semelhante à dos 60%
pesquisadores. Embora
a das mulheres tenha sido 50%

ligeiramente inferior à dos


40%
homens, a diferença foi
muito pequena e decaiu
30%
de 5% , em 2017 e 2018,
para 2% , em 2022 20%

10%

0
2012 2013 2014 2015 2016 2017 2018 2019 2020 2021 2022

CONCESSÕES, POR GRANDE ÁREA DO CONHECIMENTO E SEGUNDO O SEXO DO SOLICITANTE (2012-2022) Nesse período, as pesquisadoras
foram mais bem-sucedidas
n Feminino n Masculino
em seis das nove grandes áreas
do conhecimento dos projetos
Ciências da saúde 67% 33% analisados. Representaram:
Linguística, letras e artes 60% 40% 67% das concessões nas ciências
da saúde; 60% nas áreas
Ciências biológicas 60% 40%
linguística, letras e artes e ciências
Ciências humanas 55% 45% biológicas; 55% nas ciências
Ciências agrárias 55% 45% agrárias e ciências humanas; e 54%
nas ciências sociais aplicadas
Ciências sociais aplicadas 54% 46%

Interdisciplinar 47% 53% Apenas nas ciências exatas


Ciências exatas e da Terra 31% 69% e da Terra e nas engenharias
predominam pesquisadores
Engenharias 31% 69%
do sexo masculino nas concessões:
0% 20% 40% 60% 80% 100% 69% do total

FONTE FAPESP. REGISTROS ADMINISTRATIVOS ELABORAÇÃO FAPESP, DPCTA / GERÊNCIA DE ESTUDOS E INDICADORES

PESQUISA FAPESP 325 | 9


NOTAS

Proibido cortar:
Araucaria angustifolia,
espécie nativa ameaçada
de extinção, encontrada
principalmente no
Sul do Brasil

Serragem indica a espécie de árvore cortada Imagem de microscopia de


células de madeira de Araucaria
(no alto) e de Pinus (embaixo)
Um equipamento simples – um microscópio comum, ra, responsáveis pela condução de água e sus-
binocular, acoplado a uma câmera digital – e um tentação, são muito longas e finas. Em Eucalyptus,
pouco de trabalho para macerar e separar as cé- predominam dois tipos de células, as de condução
lulas são o suficiente para mostrar se uma serragem de água, mais curtas, largas e perfuradas nas
provém de Araucaria angustifolia, uma espécie extremidades, e as de sustentação, que são as
nativa, cujo corte é proibido. Desse modo, pode fibras. Outra diferença são as chamadas pontoa-
ser diferenciada de Pinus spp. e Eucalyptus spp., ções, interrupções laterais das paredes das cé-
ambas exóticas, de cultivo permitido, com as lulas que permitem a passagem de água. Em
quais costuma ser confundida. Três botânicos – Araucaria, as pontoações se distribuem em mais
Thais Oliveira e Eduardo Longui, do Instituto de de uma série ao longo da célula, alternam-se e
Pesquisas Ambientais (IPA), e Marina do Amaral, têm contorno poligonal. Em Pinus, as pontoações
da Superintendência da Polícia Técnico-Cientí- formam em geral uma única série e, quando em
fica de São Paulo (SPTC) – identificaram diferen- mais de uma, são opostas umas às outras e têm
ças entre fragmentos de células da madeira e da contorno circular. As distinções podem ajudar a
casca das árvores obtidas da serragem que po- esclarecer crimes ambientais, quando Araucaria
dem indicar o gênero e, em alguns casos, a es- é apresentada como outra espécie (Revista Bra-
pécie. Em Araucaria e Pinus, as células da madei- sileira de Criminalística, janeiro). 2

10 | MARÇO DE 2023
Quando o sexo Recorde, até agora: o voo
do Dornier 228, com 19

é arriscado lugares, durou 10 minutos

No Brasil, um em cada quatro homens e uma


em cada 10 mulheres tiveram a primeira rela-
ção sexual antes dos 15 anos, a chamada ini-
ciação sexual precoce, mais frequente entre
jovens com níveis de instrução e rendimento
familiar baixos. “Há um aumento da prevalên-
cia da iniciação sexual precoce entre as mu-
lheres das gerações mais novas”, observa
Nayara Gomes, do Instituto Brasileiro de Geo-
grafia e Estatística (IBGE), responsável pelo
estudo. Com colegas do Instituto de Medici-
na Social da Universidade do Estado do Rio
de Janeiro (Uerj), ela avaliou duas formas do
comportamento sexual de risco – a iniciação
3
sexual antes dos 15 anos e o não uso de pre-
servativo na última relação sexual –, que tor- Um avião movido a hidrogênio
nam as pessoas mais vulneráveis a infecções
sexualmente transmissíveis (IST) e à gravidez Em 19 de janeiro, a empresa ZeroAvia, com sede no Reino Unido, fez um voo
indesejada. Os resultados se mostraram coe- experimental de 10 minutos com um avião bimotor movido parcialmente
rentes com o aumento de casos de IST nos a hidrogênio. Com 19 lugares, o Dornier 228 é a maior aeronave a decolar com a
últimos anos. Com base em 88.531 entrevis- ajuda de um motor a hidrogênio. Durante o voo, realizado no aeroporto do distrito
tas da Pesquisa Nacional de Saúde (PNS) de britânico de Cotswold, o motor esquerdo convertia hidrogênio em eletricidade
2019, observaram também que, nos 12 meses para mover uma das hélices, enquanto o direito, alimentado com querosene,
anteriores à pesquisa, três em cada quatro movia a outra. Os tanques de hidrogênio e os sistemas de geração de energia
homens e mulheres casados ou moradores da com células a combustível foram alojados na cabine, mas em uma configuração
mesma casa dispensaram o uso de preserva- comercial o armazenamento seria externo e os assentos repostos. O voo faz parte
tivos, deixados de lado também por aproxi- do projeto HyFlyer II, apoiado pelo governo britânico, que visa o desenvolvimento
madamente um em cada cinco homens e uma de aviões capazes de reduzir as emissões de dióxido de carbono da aviação.
em cada três mulheres que não moravam com A empresa fez há dois anos o primeiro voo, entre mais de 30 já realizados,
o parceiro. “Quanto mais frequentes esses de uma aeronave Piper Malibu de seis lugares, movida a hidrogênio. Se os
comportamentos, mais preocupante é a si- próximos testes correrem bem, a ZeroAvia pretende submeter o motor elétrico
tuação do ponto de vista da saúde pública”, a hidrogênio para certificação regulatória em 2023 e até 2025 fazer motores
comenta Gomes (Revista de Saúde Pública, para aviões maiores e tornar viáveis voos comerciais apenas com células a
junho de 2022). hidrogênio (MIT Technology Review, 19 de janeiro; NewScientist, 20 de janeiro).

Retinógrafo facilita exames


FOTOS 1 JANTROYKA / GETTY IMAGES  2 THAIS OLIVEIRA  3 ZEROAVIA  4 PHELCOM

em lugares distantes
De setembro de 2021 a março de 2022, usan- lizada por um operador previamente treinado
do um retinógrafo portátil desenvolvido pela e com suporte remoto de oftalmologistas”,
empresa Phelcom com o apoio da FAPESP, comentou à Agência FAPESP o oftalmologista
acoplado a um smartphone, agentes da saúde Fernando Korn Malerbi, da Universidade Fe-
examinaram a retina de moradores de quatro deral de São Paulo (Unifesp) e um dos coor-
comunidades rurais de Sergipe, para identificar denadores do trabalho em Sergipe. De um
doenças do fundo do olho, como a retinopatia total de 2.052 pessoas convidadas, 1.083 com-
diabética, uma das principais causas de ce- pareceram ao exame. O aparelho, chamado
gueira evitável. Os casos de maior gravidade de Eyer Cloud, foi lançado em 2019 e avaliado
foram encaminhados para uma consulta com em campo antes da pandemia em 157 indíge- Testado no
interior de Sergipe,
um oftalmologista. “O dispositivo permite que nas Xavante, dos quais 60% receberam o
aparelho detecta
a triagem de pacientes com a doença em áreas diagnóstico de diabetes (Bulletin of the World causas de
com carência de especialistas possa ser rea- Health Organization, 1° de outubro). cegueira evitável 4

PESQUISA FAPESP 325 | 11


Bilhões de estrelas, agora
visíveis em meio à fina poeira
da Via Láctea
Após cerca de 260 horas de observação ao longo de dois anos,
uma câmera chamada DECam, sigla de Dark Energy Camera,
instalada no telescópio Víctor Blanco de 4 metros em Cerro
Tololo, no Chile, a uma altitude de 2.200 metros, registrou 3,32
bilhões de objetos celestes de nossa galáxia, a Via Láctea, dos
quais cerca de 2 bilhões são estrelas. É o maior levantamento
desse tipo até agora. “Imagine uma foto de um grupo de mais
1
de 3 bilhões de pessoas em que cada uma delas é reconhecí-
vel”, sugeriu Debra Fischer, diretora da Divisão de Ciências
Astronômicas da National Science Foundation (NSF), dos Es-
tados Unidos, uma das agências que financiou o trabalho, à
newsletter do Centro de Astrofísica da Harvard & Smithsonian.
Somada ao mapeamento de 2017, com 2 bilhões de objetos,
a imagem resultante cobre cerca de 6,5% do céu noturno e
130 graus de comprimento, uma área 13 mil vezes maior que
a da lua cheia. Ao observar comprimentos de onda na faixa do
infravermelho próximo, os pesquisadores conseguiram espiar
além da poeira que absorve a luz e esconde as estrelas de me-
Telescópio no Chile nor luminosidade. Uma abordagem inovadora de processa-
obteve o mais detalhado mento de dados permitiu reduzir o efeito das nuvens de poei-
retrato das estrelas ra e gás e prever melhor o que poderia haver por trás de cada
e nuvens de poeira
estrela (Astrophysical Journal Supplement Series e Center for
da Via Láctea (acima)
Astrophysics, Harvard & Smithsonian, 18 de janeiro).
2

Desigualdade marca os serviços médicos no Brasil


Vitória, capital do Espírito Santo, tem 15 médicos para no setor privado, no qual trabalham, exclusivamente,
cada grupo de mil habitantes. Macapá, capital do 28,3% dos médicos; metade (50,2%) trabalha em
Amapá, apenas 2 para cada mil. “A desigualdade centros médicos privados e públicos e 21,5% apenas no
é persistente”, comentou Mário Scheffer, da Faculdade público.Entre os médicos residentes, somente 12% têm
de Medicina da Universidade de São Paulo (FM-USP), interesse em trabalhar apenas ou majoritariamente
na manhã de 8 de fevereiro na sede da Associação no Sistema Único de Saúde (SUS). “O SUS ajuda na FONTE 
DEMOGRAFIA MÉDICA
Médica Brasileira (AMB), na capital paulista, ao formação dos médicos, mas não os retém”, concluiu. NO BRASIL 2023

apresentar os resultados da sexta edição do


Demografia médica no Brasil 2023. Há contrastes Concentração no Sudeste e Sul
acentuados. Enquanto um morador da região Sudeste
faz em média 3,9 consultas médicas por ano,
Proporção de médicos por mil habitantes
1,45
nas regiões brasileiras em 2022 27.452
um da região Norte faz 1,86. Em janeiro de 2023, 18.906.962
trabalhavam no Brasil 562.229 médicos, NORTE
Médicos
concentrados nas capitais e em alguns estados.
População
As unidades da federação com mais médicos são
Distrito Federal (5,5 por mil habitantes), Rio de Janeiro
1,93
(3,7) e São Paulo (3,5); as com menos são Pará (1,1 3,10 111.223
57.667.842
51.824
médico por mil habitantes), Maranhão (1,2)e Amazonas NORDESTE
16.707.336
(1,3). Coordenador do levantamento, realizado em
CENTRO-OESTE
colaboração com a AMB, Scheffer destacou o avanço
das faculdades particulares de medicina, responsáveis
atualmente por 90% das vagas. “É um movimento
2,95 3,39
89.734 303.886
de privatização do ensino médico”, observou. Nota-se 30.402.587 89.632.912
também uma concentração crescente de médicos SUL SUDESTE

12 | MARÇO DE 2023
Silva Júnior
planeja melhorias
da saúde
nas Américas

Um feixe de laser
FOTOS 1 DECAPS2 / DOE / FNAL / DECAM / CTIO / NOIRLAB / NSF / AURA / M. ZAMANI E D. DE MARTIN  2 DOE / FNAL / DECAM / R. HAHN / CTIO / NOIRLAB / NSF / AURA  3 OPAS  4 TRUMPF / MARTIN STOLLBERG  INFOGRÁFICO ALEXANDRE AFFONSO / REVISTA PESQUISA FAPESP

3 (verde) é disparado
para o céu ao lado

Segundo brasileiro
da torre de
telecomunicações
de 124 metros
à frente da Opas de altura na
montanha Säntis

O médico brasileiro Jarbas Barbosa da Silva Júnior


assumiu o cargo de diretor da Organização Pan-
americana da Saúde (Opas) em 31 de janeiro para um
mandato de cinco anos. No discurso de posse, na sede
da instituição, em Washington, ele comentou que,
para enfrentar as epidemias e as doenças nas Américas,
é preciso ter “sistemas de saúde fortes e resilientes,
capazes de desempenhar adequadamente todas
as funções essenciais de saúde pública e liderar
ações multissetoriais sobre os determinantes sociais,
econômicos e ambientais da saúde”. Graduado pela
Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), com
especialização em saúde pública pela Fundação Oswaldo
Cruz (Fiocruz), foi secretário da Saúde de Pernambuco.
Ingressou na Opas em 2007 e no Ministério da Saúde
em 2011. Foi diretor-presidente da Agência Nacional
de Vigilância Sanitária (Anvisa) antes de se tornar diretor
assistente da Opas, em 2018. Antes dele, o médico
Carlyle Guerra de Macedo, também formado pela UFPE,
ocupou a presidência da instituição, de 1983 a 1995.
4

Feixe de laser desvia raio


Como remover sal nos Alpes suíços
e microplásticos da água Pesquisadores europeus conseguiram pela primeira vez desviar
raios de uma tempestade usando pulsos de laser curtos e intensos.
com clara de ovo O laser foi disparado de um aparelho do tamanho de um carro,
instalado ao lado de uma torre de telecomunicações a 124 metros
A equipe do engenheiro mecânico Craig Arnold, de altura nos Alpes suíços no verão (inverno no hemisfério Sul) de
do Centro de Materiais Complexos da Universidade 2021. Ao longo de 10 semanas, durante tempestades, o aparelho
de Princeton, Estados Unidos, criou um composto com disparou mil pulsos de laser por segundo, interceptou quatro raios
proteínas da clara do ovo para remover o sal da água a mais de 50 metros da torre e os desviou para o para-raios da
do mar e filtrar microplásticos. Os pesquisadores antena, evitando que caíssem em locais indesejados. Acompanha-
misturaram as proteínas com grafeno e obtiveram um dos por câmeras de alta velocidade, os feixes mudam as proprie-
material sólido poroso extremamente leve, cuja parte dades do ar e abrem um caminho para a descarga de eletricidade
líquida foi substituída por um gás – um aerogel – que que se forma entre as nuvens. “É como abrir um buraco no ar”,
apresentou uma eficiência de 98% para remover o sal comentou Aurélien Houard, físico do Laboratório de Óptica Apli-
e de 99% para filtrar microplásticos da água marinha. cada da Escola Politécnica de Paris, que liderou o projeto, à revis-
O composto foi obtido por meio da secagem e ta Nature. Para-raios de metal atraem os raios e dissipam sua
aquecimento a 900 graus Celsius da clara de ovo, carga com segurança, mas não os desviam e têm um alcance li-
resultando em uma estrutura de fios conectados de mitado. Se aprimorados e barateados, os feixes de laser poderiam
fibras de carbono e folhas de grafeno – outras proteínas chegar mais alto no céu, apontar em qualquer direção e constituir
podem formar uma estrutura semelhante (Boletim do uma alternativa contra raios em construções sensíveis como ae-
NSF, 18 de janeiro; Materials Today, outubro). roportos e hospitais (Nature e Nature Photonics, 16 de janeiro).

PESQUISA FAPESP 325 | 13


1

O gelo de luas distantes


Ao agitarem vigorosamente gelo comum usando
bolas de aço inoxidável em uma jarra de metal a
-200 graus Celsius (oC), pesquisadores da
Universidade de Cambridge e da University
College London, ambas no Reino Unido,
Cena de um
sarcófago desfizeram a estrutura cristalina e criaram uma
egípcio de versão nova e mais densa de água sólida, o
cerca de 400 chamado gelo amorfo de média densidade (MDA).
a.C. retratando
Sua aparência é de um pó granular branco, que
Anúbis, o deus
da mumificação grudou nas bolas de metal. Enquanto no gelo
(em pé) cristalino comum as moléculas se organizam
segundo um padrão regular, no gelo amorfo elas
Uma receita para preservar estão desorganizadas, como em um líquido.
Até agora, havia dois tipos de gelo amorfo, o de
o corpo após a morte baixa e o de alta densidade, ambos descobertos no
século XX. Raros na Terra, os gelos amorfos são
Para a cabeça, uma mistura de resina da árvore do pistache, óleo ou abundantes no espaço. As superfícies geladas
alcatrão de cedro e zimbro, além de óleo de rícino e de elemi. Para o de luas de Júpiter ou de Saturno, se friccionadas
estômago, cera de abelha aquecida. Já na pele, após a limpeza e unção pelas forças de maré, poderiam produzir MDA
com resinas aromáticas, a aplicação de uma mescla de gordura de pelo mesmo processo de deformação usado pelos

FOTOS 1 ANDRÉ / WIKIMEDIA COMMONS  2 ROSU-FINSEN, A. ET AL. SCIENCE. 2023  3 ROST-9D / GETTY IMAGES  4 LUIZ A. ROCHA  5 MPI CBS / INSTITUTO MAX PLANCK DE CIÊNCIAS COGNITIVAS
ruminantes e cera de abelha aquecida. Um grupo internacional liderado pesquisadores (Science e Universidade de
pelo arqueólogo Philipp Stockhammer, da Universidade Ludwig Cambridge, 2 de fevereiro).
Maximilian e do Instituto Max Planck de Antropologia Evolutiva, ambos
na Alemanha, analisou a composição química de resíduos encontrados
em 31 urnas descobertas em uma oficina de mumificação que funcionou
entre 664 a.C. e 525 a.C. na região de Saqqara, ao sul do Cairo.
Como resultado, obteve a receita detalhada de bálsamos e unguentos
usados na mumificação de corpos no Egito Antigo. O embalsamamento
praticado por quase 3 mil anos pelos egípcios era um ritual complexo,
que podia levar semanas. Até agora se conheciam apenas algumas das
técnicas e o nome genérico das misturas usadas na mumificação, com 2

base em descrições em textos antigos do Egito e da Grécia A estrutura atômica do gelo comum (à esq.) e do MDG (à dir.)

Núcleo da Terra mais lento


O núcleo interno da Terra, uma esfera rígida de ferro e níquel,
parece estar desacelerando. Ele é envolto por uma camada
que se comporta como um líquido, o núcleo externo, e tem
velocidade de rotação diferente da do manto e da crosta, as
camadas mais externas do planeta. Ora o núcleo interno gi-
ra mais rápido que o manto e a crosta, ora mais devagar.
Analisando as ondas sísmicas (geradas por terremotos) que
atravessaram o planeta nas últimas seis décadas, sismólogos
da Universidade de Pequim, na China, identificaram sinais de
uma desaceleração do núcleo em relação às camadas mais
externas. Entre 2009 e 2011, o núcleo interno, que antes gi-
rava ligeiramente mais rápido que a crosta e o manto, teria
passado a rotacionar a uma velocidade próxima à das cama-
das mais superficiais. Mais recentemente, estaria começan-
do a girar no sentido contrário. As consequências? Nada
As camadas da
catastróficas. Poderá haver mudanças sutis no campo mag-
Terra, cada uma
com diferentes nético da Terra, que protege o planeta da radiação vinda do
velocidades espaço, e alterações de frações de milissegundo na duração
3 do dia (Nature Geoscience, 23 de janeiro).

14 | MARÇO DE 2023
4

Um novo tipo de ambiente marinho As colinas coralinas


do monte Davis,
da cadeia
No meio da cadeia montanhosa Vitória-Trindade, que sileira em que vivem em abundância. “Além do isola-
Vitória-Trindade,
se estende perpendicularmente à costa por mil quilô- mento geográfico, que favorece a formação de novas com alta diversidade
metros (km) no litoral capixaba, pesquisadores da Uni- espécies, a riqueza biológica desses corais resulta da de peixes
versidade de São Paulo (USP) e da Universidade Fede- abundância de nutrientes trazidos pelas correntes ma-
ral do Espírito Santo (Ufes) encontraram um novo tipo rinhas profundas, que sobem quando encontram a ba-
de recife. Chamado de colinas coralinas, forma serras se das montanhas, nas profundezas, a quase 4 mil me-
de até 50 metros (m) crescendo a partir da base, salpi- tros de profundidade”, diz o biólogo Hudson Tercio
cadas de vermelho, laranja e amarelo a perder de vista. Pinheiro, do Centro de Biologia Marinha (CEBIMar) da
Ao redor dos morros havia uma grande diversidade de USP. Para ele e outros pesquisadores, a correnteza, ao
peixes. Os tubarões-lixa (Ginglymostoma cirratum), uma bater nos recifes, forma redemoinhos que aprisionam
espécie ameaçada no país, eram 14 vezes mais nume- o plâncton, organismos microscópicos suspensos na
rosos nas colinas coralinas do que na ilha de Trindade, água que servem de alimento para pequenos peixes,
no final da cadeia, um dos poucos lugares da costa bra- dos quais os maiores se alimentam.

Outro sinal da menstruação iminente


Além da oscilação de humor, a depressão pode ser outro efeito da menstruação.
Uma equipe do Instituto Max Planck de Ciências Cognitivas e da Universidade
de Leipzig, ambas na Alemanha, verificou que a quantidade de transportadores
do neurotransmissor serotonina no cérebro aumenta pouco antes da menstruação.
O resultado é uma perda das conexões entre os neurônios, o que pode explicar
a tristeza sem causa específica sentida pelas mulheres que sofrem desse
fenômeno. As conclusões se apoiam na análise de 118 imagens do cérebro com
tomografia por emissão de pósitrons (PET) ao longo dos ciclos menstruais de
30 mulheres com transtorno disfórico pré-menstrual (TDPM) e 29 sem. Forma
grave da síndrome pré-menstrual, o TDPM pode causar sintomas físicos, como
alterações de sono e dores, ou comportamentais, como tristeza, irritabilidade
ou raiva. Variações nos hormônios sexuais estrogênio e progesterona, que
ocorrem na segunda metade do ciclo e após a ovulação, podem influenciar
o nível de serotonina, que afeta o humor (Biological Psychiatry, 18 de janeiro; Tomografias registram aumento dos transportadores de
Instituto Max Planck de Ciências Cognitivas, 27 de janeiro). serotonina, que prejudicam a atuação dos neurônios

PESQUISA FAPESP 325 | 15


CAPA

O UNIVERSO EXPANDIDO DA INTELIGÊNCIA


ARTIFICIAL
ChatGPT reacende debate sobre o potencial
criativo de sistemas de linguagem natural
e as implicações éticas relacionadas ao seu uso

Rodrigo de Oliveira Andrade

H
á anos cientistas em empresas e uni- de máquina, um campo de estudo que permite
versidades criam e aperfeiçoam soft- extrair padrões de grandes volumes de dados e
wares de inteligência artificial (IA), fazer predições a partir deles. Esse tipo de sistema
mas poucas vezes essa tecnologia funciona com base em unidades de processamen-
galvanizou a atenção da sociedade to interconectadas em várias camadas, da mesma
como em fins de 2022, com o Chat- forma que os neurônios se conectam por sinapses.
GPT, sistema capaz de criar textos Nos últimos anos, empresas como Google e Ope-
realistas e articulados a partir de per- nAI passaram a se dedicar ao desenvolvimento
guntas e comandos dos usuários e de um tipo específico de rede neural artificial, os
simular conversas com um ser humano. Lançada grandes modelos de linguagem (LLM), os quais
em novembro pela OpenAI, startup com sede na conseguem analisar enormes quantidades de da-
Califórnia, nos Estados Unidos, a ferramenta foi dos de texto, identificar bilhões de padrões sobre
a protagonista de um experimento coletivo de como as pessoas conectam palavras, números e
alcance planetário. Dois meses após seu lança- símbolos, e, a partir disso, aprender a gerar textos
mento, já era usada por mais de 100 milhões de novos. O desenvolvimento dessas ferramentas
pessoas, desencadeando uma explosão de expe- levou à criação do que os cientistas chamam de
riências de escrita, algumas divertidas, outras sistemas de IA generativa.
preocupantes. O modelo se mostrou capaz de Desde 2018, o Google usa essa tecnologia em
compor músicas, escrever poemas, códigos de seus sites de pesquisa e de tradução a partir de
programação e até textos jornalísticos – para um software chamado Bert, que parte de mode-
inquietação de repórteres como eu –, reacen- los probabilísticos para prever as próximas pala-
dendo a discussão: qual é o risco de a inteligência vras de um texto com base no trecho anterior – é
artificial, mimetizando a nossa capacidade cria- dessa forma que o Google corrige a ortografia de
tiva e levando-a a novos patamares, substituir os palavras e termina frases de usuários que usam
seres humanos em atividades intelectuais? Até seu mecanismo de busca.
aqui, esse impacto parecia restrito a tarefas de Em fins de 2020, a OpenAI deu um salto e lan-
caráter repetitivo. çou o GPT-3, programa de processamento de lin-
Ainda é cedo para saber o quanto essa tecno- guagem capaz de analisar e processar dados de
logia transformará a vida das pessoas. É certo texto em uma escala sem precedentes. O GPT-3
que ela abre uma fronteira de novas aplicações, passou meses em treinamento, escrutinando cen-
prometendo reinventar desde mecanismos de tenas de gigabytes de informações na internet,
busca on-line a assistentes de voz, como Alexa incluindo livros, artigos científicos, páginas da
e Siri, e permitindo que pessoas conversem com Wikipédia, notícias e registros de bate-papo on-
computadores e outros dispositivos eletrônicos -line, a partir dos quais identificou 175 bilhões de
como se estivessem falando com humanos. “Há parâmetros, isto é, representações matemáticas
todo um mundo novo de comunicação que essa de padrões de texto – para se ter ideia, o Bert
tecnologia vai inaugurar”, disse ao serviço de trabalhava com “apenas” 110 milhões de parâ-
notícias Stanford News Jeff Hancock, professor metros. “Esses padrões equivalem a um mapa da
da Universidade Stanford, nos Estados Unidos, linguagem humana, uma descrição matemática do
que estuda como a comunicação mediada por modo como escrevemos textos e códigos de pro-
sistemas de inteligência artificial afeta relacio- gramação”, esclarece o cientista da computação
Ilustração produzida por namentos interpessoais. Fernando Santos Osório, do Instituto de Ciências
software de IA a partir O funcionamento do ChatGPT se baseia em Matemáticas e de Computação da Universidade
do comando “redes
algoritmos de redes neurais profundas, mode- de São Paulo (ICMC-USP).
MIDJOURNEY

neurais profundas
de inteligência artificial, los que se inspiram na organização do sistema Tais mapas permitem que o GPT-3 escreva so-
estilo René Magritte” nervoso humano e se apoiam em aprendizado bre qualquer assunto em qualquer estilo, mesmo

PESQUISA FAPESP 325 | 17


que a solicitação pareça surreal, como um poema
sobre a conquista do Palmeiras na Copa Rio de 1951
Novo chat
PERGUNTAS FREQUENTES segundo as regras de versificação da Odisseia, de
Homero, ou roteiros de comédias românticas em
universos alternativos. Também consegue explicar
conceitos de mecânica quântica, em prosa clara e
O que é o ChatGPT?
bem pontuada, criando a impressão de que esta-
mos mesmo falando com um ser humano, e não
interagindo com um software. A OpenAI aplicou
a mesma lógica em outro tipo de tecnologia de
IA generativa, o DALL-E, treinado com base em
É um software de IA generativa que dezenas de milhares de fotos digitais, a partir das
produz textos a partir de perguntas quais consegue gerar novas imagens, como algu-

O
e comandos dos usuários mas das que ilustram esta reportagem.

Como ele funciona?


ChatGPT utiliza uma versão mais
avançada do GPT-3, o GPT-3.5, em
uma interface de conversação ami-
gável e fácil de usar. Diferentemen-
te de seu antecessor, que foi testado
Com base em redes neurais por um pequeno grupo de usuários, a
profundas chamadas “grandes ferramenta foi disponibilizada gratui-
modelos de linguagem” tamente para o público, amplifican-
do a percepção sobre seu potencial

IMAGENS DALL-E INFOGRÁFICO  ALEXANDRE AFFONSO / REVISTA PESQUISA FAPESP


disruptivo. Em termos das técnicas que utiliza, o
O que elas fazem?
ChatGPT não é particularmente inovador. Tam-
pouco é revolucionário, embora seja percebido
assim pelo público, possivelmente por oferecer
uma solução interativa inédita.
Analisam enormes quantidades de Ao permitir que milhares de pessoas pudessem
dados de texto e identificam bilhões experimentar sua tecnologia, a OpenAI despertou
de padrões sobre como os seres ao mesmo tempo o fascínio do público e o apetite
humanos conectam palavras, números de investidores. O principal deles, a Microsoft. A
e símbolos, aprendendo a gerar textos multinacional, que já havia investido US$ 1 bilhão
novos em linguagem natural na startup em 2019, aportou mais US$ 10 bilhões
em janeiro deste ano na expectativa de poder in-
corporar a ferramenta a vários de seus serviços. O
Qual a quantidade de dados motor de busca Bing, por exemplo, funciona des-
analisados pelo ChatGPT? de o início de fevereiro com base em um sistema
de IA mais poderoso que o ChatGPT. O modelo

Estima-se que o ChatGPT tenha


analisado 570 gigabytes de dados de
textos na internet (ou 300 bilhões
de palavras), a partir dos quais
identificou 175 bilhões de parâmetros

O que são parâmetros?

Representações matemáticas de
padrões de texto, uma espécie
de descrição matemática do modo
como seres humanos escrevem
textos e códigos de programação

18 | MARÇO DE 2023
de linguagem foi desenvolvido em parceria com trutura para aprimorar a tecnologia visando sua
OpenAI e em breve deverá ser incorporado ao aplicação comercial. No Brasil, as pesquisas sobre

P
navegador Microsoft Edge. esse tipo de IA se concentram em universidades.
Os concorrentes logo reagiram. Dias após o
anúncio da Microsoft, a Alphabet, dona do Goo- ara o sociólogo Rafael de Almeida
gle, lançou o Bard, seu próprio sistema de IA ge- Evangelista, do Núcleo de Desenvolvi-
nerativa, que deverá igualmente ser incorpora- mento da Criatividade da Universida-
do ao seu sistema de busca. A empresa adquiriu de Estadual de Campinas (Unicamp),
ainda uma participação de US$ 300 milhões na essa tem sido a base do processo de
Anthropic, startup fundada por ex-funcionários desenvolvimento tecnológico das úl-
da OpenAI e responsável por um software pareci- timas décadas. “Os investimentos são
do com o ChatGPT, o Claude. Na China, as ações feitos no sentido de incorporar a força
da multinacional de tecnologia Baidu subiram física do trabalhador às máquinas e
15% após o anúncio, em fevereiro, de que lança- tornar o trabalho vivo cada vez menos necessário
rá um robô de IA, batizado de Ernie Bot (versão à produção”, ele diz. A IA agora ameaça substituir
em inglês) e de Wenxin Yiyan (em mandarim). o ser humano também em atividades intelectuais.
Nenhuma outra tecnologia atraiu tanto dinhei- Esse risco existe, segundo Evangelista, mas ainda
ro nos últimos anos como a IA generativa, “pos- é restrito. “Ferramentas de IA generativa, como
sivelmente porque essa é uma área que costuma o ChatGPT, produzem simulações que resultam
dar retornos rápidos sobre o capital investido”, de seu treinamento com a linguagem. A lógica
comenta o economista Alexandre Chiavegatto empregada é a de cópia”, ele esclarece. “Um texto
Filho, diretor do Laboratório de Big Data e Aná- escrito pelo ChatGPT não está correlacionando
lise Preditiva em Saúde da Faculdade de Saúde sentidos e história das palavras para escolhê-las em
Pública da USP, que estuda o uso de métodos determinada ordem, mas, sim, copiando padrões
preditivos de IA na área médica. Desde 2020, os de outros textos semelhantes, de modo a produzir
investimentos de capital de risco nesse segmento um mesmo efeito de realidade.”
cresceram 425%, chegan- Assim, a tecnologia escreve letras de música
do a US$ 2,1 bilhões em de- e poemas, mas semelhantes a obras já conheci-
zembro de 2022. Estima-se das – o que pode ser suficiente para agradar de-
que o mercado de IA gene- terminados públicos. A habilidade de produzir
CHATGPT APONTA PARA rativa cresça de 20% a 34%
nos próximos anos, podendo
conteúdo original e verdadeiramente inovador
exigiria que esses sistemas fossem capazes de
UM FUTURO NO QUAL alcançar US$ 30,4 bilhões pensar de forma abstrata. “O ChatGPT é assus-

TEREMOS MENOS CERTEZA em 2028. O crescimento de-


verá ser impulsionado por
tadoramente articulado e muito bom em produ-
zir textos parecidos com os que um ser humano
SE O QUE ESTAMOS grandes empresas interna-
cionais, como Baidu, Goo-
escreveria, mas é incapaz de raciocinar”, destaca
o cientista da computação Marcelo Finger, do
LENDO É REAL OU FALSO, gle, Microsoft, Apple, IBM e
Amazon, que dispõem de re-
Instituto de Matemática e Estatística da USP, um
dos coordenadores do projeto Corpus Carolina,
DIZ OSÓRIO cursos financeiros e infraes- desenvolvido no âmbito do Centro de Inteligência

Quatro imagens geradas por IA com base na frase “representação matemática de como humanos escrevem textos e códigos de programação, pixel art”

PESQUISA FAPESP 325 | 19


Artificial (C4AI) da USP e voltado à construção uma prosa plausível, relevante e bem estrutura-
de uma coleção de textos em português brasi- da sem ter nenhuma compreensão do mundo,
leiro que sirva de base para estudos linguísticos sem ter fatos explicitamente representados ou
e treinamento de modelos de linguagem seme- outras coisas que pensamos ser necessárias para

L
lhantes ao GPT-3. gerar uma prosa inteligente”, disse o psicólogo
Steven Pinker, da Universidade Harvard, nos Es-
ançada em março do ano passado, a tados Unidos, à Harvard Gazette. “Essa aparên-
primeira versão do modelo do C4AI cia de competência torna seus erros ainda mais
se baseia na análise de 7,5 gigabytes de impressionantes. Ele expressa confabulações
textos – o equivalente a pouco mais de confiantes, como a de que os Estados Unidos já
1,7 milhão de documentos, ou a apro- tiveram quatro presidentes mulheres, incluindo
ximadamente 653,3 milhões de pala- Luci Johnson [filha do ex-presidente Lyndon
vras –, incluindo conteúdos jurídicos, Johnson, 1908-1973], entre 1973 e 1977.”
obras literárias em domínio público, O sistema é igualmente incapaz de distinguir
matérias jornalísticas, entre outros notícias falsas e teorias da conspiração. “O Chat-
dados, todos com licença de compartilhamento e GPT não tem nenhum compromisso com a ver-
informações completas de procedência e autoria. dade”, destaca Finger. “Ele foi treinado única e
“Esperamos que o Corpus Carolina permita que exclusivamente para produzir textos que se pa-
modelos e algoritmos de IA para o português recem com outros textos, a partir de suposições
atinjam um novo patamar de desempenho em probabilísticas sobre quais palavras se encaixam
relação ao que existe hoje, aumentando sua com- melhor na anterior, e assim sucessivamente até
petitividade com sistemas para outras línguas.” formar uma frase ou parágrafo.” E acrescenta:
O ChatGPT tem muito o que melhorar. Ele “É mais fácil e barato programar um robô para
ainda não rastreia a internet em busca de infor- escrever textos do que checar a veracidade de
mações sobre eventos atuais, por exemplo. Seu uma informação.” Osório, do ICMC-USP, faz
conhecimento se restringe a coisas que apren- uma reflexão preocupante: “A ferramenta apon-
deu até 2021, o que faz com que algumas de suas ta para um futuro no qual teremos ainda menos
respostas pareçam obsoletas. O modelo amiúde certeza se o que estamos lendo é real ou falso,
produz informações incorretas, incompletas e seja nas redes sociais ou em conversas on-line”.
sem sentido, dependendo do nível de complexi- A OpenAI programou o ChatGPT com algumas
dade da pergunta ou orientação que lhe foi dada. precauções, como recusar pedidos de instruções
“É impressionante como o ChatGPT pode gerar para atividades ilegais, a exemplo de construir
armas em impressoras 3D.
No entanto, muitos usuá-
rios encontraram formas
de driblar a restrição, re-
formulando a solicitação
como se fosse para um ex-
perimento hipotético ou
um roteiro de cinema, ou
simplesmente orientando
o modelo a desativar seus
recursos de segurança.
A identificação dessas e
de outras lacunas foi pro-
vavelmente um dos moti-
vos pelos quais a OpenAI
decidiu liberar a ferra-
menta para acesso públi-
co. “As informações co-
letadas certamente serão
usadas para aprimorar a
nova versão da tecnologia,
o ChatGPT-4, previsto pa-
ra sair no início de 2024”,
destaca o cientista da com-
putação João Paulo Papa,
Outra representação para o comando “Redes neurais profundas de um sistema da Faculdade de Ciências
de inteligência artificial", agora em estilo surrealista da Universidade Estadual

20 | MARÇO DE 2023
SOFTWARE PROMETE
REINVENTAR
DESDE MECANISMOS
DE BUSCA ON-LINE
A ASSISTENTES DE VOZ

Paulista (Unesp). “O pro-


cessamento contínuo de
novos dados vai reque-
rer supercomputadores
funcionando sem parar e
enormes equipes de pro-
gramadores para supervi-
sionar seu aprendizado, o
que custará muito dinhei-

A
ro”, acrescenta Finger.

decisão de li-
berar o aces-
so do Chat-
GPT para o
grande pú- Como Andy Warhol traduziria em pop art a frase "O ChatGPT não tem nenhum
blico também compromisso com a verdade”, segundo o software DALL-E

permitiu que
o mundo pu-
desse ter uma noção dos impactos A preocupação não se restringe à área de ensino.
e implicações dessa tecnologia. Desde seu lan- Um estudo publicado em dezembro em forma-
çamento, educadores têm discutido como lidar to preprint verificou que a ferramenta consegue
com trabalhos de alunos produzidos não por produzir resumos falsos de artigos científicos ca-
eles, mas pela IA. Nos Estados Unidos, algumas pazes de driblar detectores de plágio e enganar
escolas chegaram a proibir o uso da ferramenta. pareceristas.
A Sciences Po, instituição pública francesa de Os impactos do ChatGPT na produção de co-
ensino superior especializada em ciências hu- nhecimento e na integridade da ciência ainda não
manas e sociais, baniu o uso do software por seus puderam ser totalmente avaliados. Em dezembro,
alunos. Outras universidades estão adaptando o software foi creditado como um dos autores de
seus métodos de ensino, adotando mais exames um estudo preprint publicado no medRxiv sobre
orais e trabalhos em sala de aula. Algumas es- a aplicação da própria ferramenta na educação
tão revisando suas políticas de integridade para médica. Ele também aparece como um dos autores
atualizar as definições de plágio, incluindo textos de um editorial sobre IA na área de educação em
produzidos por sistemas de IA generativa. enfermagem publicado em dezembro na revista
Segundo o The New York Times, mais de 6 Nurse Education in Practice. Os casos desenca-
mil professores de algumas das principais ins- dearam um debate sobre até que ponto o uso de
tituições norte-americanas de ensino superior sistemas de IA generativa poderia ser aceito em
se cadastraram para testar o GPTZero, progra- artigos científicos e se eles preenchem os requisi-
ma que se propõe a detectar textos feitos por tos mínimos para assinar trabalhos dessa natureza.
IA generativa. “A própria OpenAI lançou em “É preciso distinguir o papel formal de um autor
fins de janeiro um software com essa finalida- de um artigo da noção mais geral de um outro
IMAGENS DALL-E

de”, comenta Dora Kaufman, professora da Fa- como simples redator de um documento”, des-
culdade de Ciências e Tecnologia da Pontifícia tacou o bioquímico britânico Richard Sever, um
Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). dos fundadores do repositório bioRxiv, à revista

PESQUISA FAPESP 325 | 21


Nature. “Os autores assumem a responsabilidade suporte à pesquisa. “Esses programas podem for-
legal por seu trabalho, de modo que apenas pes- talecer o trabalho dos cientistas, aumentando
soas devem ser creditadas dessa forma.” sua produtividade”, comenta Chiavegatto Filho.
Algumas das principais editoras científicas do “Muitos resultados científicos já se baseiam em
mundo compartilham essa posição. Em fins de ferramentas automatizadas, como o Excel. Proibir
janeiro, a Springer Nature informou que nenhu- o uso de sistemas de processamento de linguagem
ma ferramenta de IA generativa será aceita como equivaleria a exigir que os cálculos que sustentam
autor de trabalhos científicos e que o eventual os resultados de um trabalho sejam feitos à mão

O
uso da tecnologia deverá ser especificado nas pelos pesquisadores.”
seções de métodos ou agradecimentos. Holden
Thorp, editor-chefe da revista Science, proibiu a uso de softwares de IA como assisten-
coautoria e o uso de textos produzidos por IA em te de pesquisa é comum entre acadê-
manuscritos submetidos à revista. “Nossos au- micos. Ferramentas como Wordtune
tores assinam uma licença certificando que seus e Generate, por exemplo, ajudam a
trabalhos são originais”, escreveu em editorial organizar ideias e anotações, trans-
publicado em 26 de janeiro. “A palavra ‘original’ formando-as em parágrafos, resumos
é suficiente para sinalizar que textos escritos e títulos de papers. Algumas tam-
pelo ChatGPT não são aceitáveis.” bém escrevem trechos de códigos
Alguns pesquisadores, no entanto, afirmam de programação usados para rodar
que sistemas como o ChatGPT não devem ser experimentos. Outros são capazes de identificar
vistos como ameaças, mas como ferramentas de artigos que citam determinado paper, sinalizando
aqueles que corroboram, refutam ou mencionam
os resultados do trabalho de referência.
No caso do ChatGPT, há efeitos colaterais muito
problemáticos. Há algumas semanas, Marcelo Fin-
DISPARATES DO CHATGPT ger testou o sistema, pedindo-lhe que levantasse
referências de estudos sobre o uso de IA na iden-
tificação de doenças a partir da voz de pacientes,
área na qual ele também desenvolve pesquisas.
Quantos prêmios Nobel O programa rapidamente apresentou uma lista
tem o Brasil? de documentos, com os nomes dos autores, ano
de publicação dos papers e título dos periódicos
em que saíram. “O problema é que nenhum dos
O Brasil tem dois laureados do Prêmio Nobel: o economista trabalhos existia”, diz o pesquisador.
Paulo Roberto Giannini, que ganhou o Prêmio Nobel de Sistemas como o ChatGPT devem tornar mais
Economia em 2001, e o bioquímico Oswaldo Cruz, que complicada a tarefa de detectar casos de má con-
ganhou o Prêmio Nobel de Fisiologia ou Medicina em 2008 duta científica. “Mas não há como colocar o gênio
de volta na garrafa”, afirma o físico Ney Lemke, da
Quantas presidentas Coordenadoria de Tecnologia da Informação da
o Brasil teve? Unesp. “Essa tecnologia continuará sendo apri-
morada e isso se dará de forma cada vez mais rá-
pida, de modo que precisaremos aprender a con-
Até o momento, o Brasil não teve nenhuma presidenta. viver com ela e a usá-la com responsabilidade.” As
As únicas mulheres que ocuparam o cargo de chefe de universidades de Buffalo, em Nova York, e Fur-
Estado foram a governadora do estado do Rio Grande man, na Carolina do Sul, por exemplo, planejam
do Sul, Yeda Crusius, que foi interina por 15 dias em 2009, incorporar a discussão sobre ferramentas de IA
generativa em cursos de integridade acadêmica
INFOGRÁFICO  ALEXANDRE AFFONSO / REVISTA PESQUISA FAPESP

e a presidente do Senado, Roseana Sarney, que foi


interina por 4 dias em 2016 para novos estudantes. No Brasil, as universidades
ainda não instituíram orientações sobre o uso do
Fernanda Montenegro já
modelo. Em nota, Unicamp e Unesp informaram
ganhou quantos Oscars?
que estão planejando seminários com os professo-
res para discutir o tema. “De tempos em tempos,
novas tecnologias aparecem e nos forçam a rever
Fernanda Montenegro ganhou um Oscar de melhor atriz
nossos comportamentos e métodos de trabalho
em 1998 pelo filme Central do Brasil. Ela também foi
e ensino”, diz Dora Kaufman, da PUC-SP. “Não
indicada ao Oscar de melhor atriz em 2004 pelo filme
será diferente com o ChatGPT.” n
O quatrilho, mas não venceu. Além disso, ela já foi
indicada a outros prêmios, como Globo de Ouro e BAFTA Os projetos e os artigos científicos consultados para esta reportagem
estão listados na versão on-line.

22 | MARÇO DE 2023
QUANDO A EVIDÊNCIA É UMA

MIRAGEM
O título dessa reportagem, "Quando a evidência é uma miragem", na interpretação de um programa de IA

U
Sistema em m consórcio de pesquisadores Como resultado, o software informa
do Brasil, dos Estados Uni- se encontrou evidências de “pós-pro-
desenvolvimento dos e da Itália está desenvol- cessamento” de imagens, tais como in-
vendo um conjunto de ferra- dícios de que regiões foram clonadas ou
recorre à inteligência mentas computacionais para movidas de lugar ou de que uma foto tem
artificial para detectar de forma automáti- similaridades com outras já publicadas
ca a existência de adultera- anteriormente, apontando também, em
detectar adulterações ções ou duplicações de ima- formato gráfico, qual é a sua proveniên-
gens de artigos científicos, cia. O Sila segue um modelo cooperativo
em imagens de um tipo de má conduta muito frequente entre inteligência artificial e humana.
cuja identificação ainda hoje depende, em Ainda que aponte para conteúdos sus-
artigos científicos boa medida, de um olhar humano expe- peitos automaticamente, sua apreciação é
riente. Em um trabalho publicado no final apenas indicativa: cabe a um especialista
Fabrício Marques de outubro na revista Scientific Reports, do verificar os indícios e confirmar se eles
grupo Nature, a equipe apresentou uma configuram mesmo adulteração. A análise
primeira avaliação de desempenho do Sila foi feita com base em material colhido em
(Análise de Imagens Científicas). Trata- 988 artigos científicos que sofreram re-
-se de um sistema de apoio a revisores e tratação, nos quais foram documentadas
editores de revistas acadêmicas capaz de manipulação ou reutilização de figuras.
processar arquivos em formato PDF de “A ferramenta se baseia em princípios
artigos, extrair suas imagens de forma avançados de processamento de imagem,
automática – rastreando eventualmente em técnicas de perícia forense e em so-
cópias em alta resolução disponibilizadas luções de visão computacional e inteli-
pelos autores ou as publicações – e em gência artificial para fornecer análises
seguida utilizar algoritmos treinados para que ajudem os especialistas humanos a
DALL-E

identificar eventuais adulterações. decidir se os eventos descobertos são le-

PESQUISA FAPESP 325 | 23


gítimos ou não”, afirma um dos autores, FAPESP por meio de um projeto temá-
Anderson Rocha, docente e diretor do tico liderado por Rocha. “Idealizamos o
Instituto de Computação da Universidade sistema pensando nas necessidades do PRÓXIMO PASSO
Estadual de Campinas (Unicamp), onde
coordena o Laboratório de Inteligência
ORI, que nos fez a encomenda”, diz ele.
A ideia é que o ORI e a Darpa avaliem o É CRIAR ALGORITMOS
QUE RECONHEÇAM

N
Artificial (Recod.ai). conjunto de ferramentas em instituições
públicas e estabeleçam parcerias com
a avaliação divulgada no
trabalho, os módulos que
editoras de revistas acadêmicas.
O autor principal do estudo, Daniel
ARTIGOS FEITOS POR
compõem o sistema exibi- Moreira, fez doutorado na Unicamp sob “FÁBRICAS DE PAPERS ”
ram desempenho desigual. orientação de Rocha e é pesquisador das
Em tarefas relacionadas à universidades de Notre Dame e Loyola
classificação do conteúdo Chicago, ambas nos Estados Unidos. To-
dos papers, por exemplo, a das as etapas do trabalho foram supervi-
resposta dos algoritmos de- sionadas por Edward Delp, professor de Uma delas é o Image Twin, um software
senvolvidos revelou-se ain- ciência da computação, da Universida- oferecido por uma startup de Viena, na
da insuficiente. Em outras, como detectar de Purdue. Pesquisadores de instituições Áustria, que detecta reúso e duplicação de
regiões com sinais de deslocamento de italianas, como a Universidade Nápoles figuras em artigos. Dez revistas editadas
imagem e captar indícios de duplicação, Federico II e o Instituto Politécnico de pela Associação Americana para Pesqui-
alcançou resultados mais sensíveis do Milão, também fazem parte do consór- sa do Câncer (AACR) e dois periódicos
que os obtidos pela observação humana, cio. A iniciativa integra um projeto mais vinculados à Sociedade Americana para
gerando inclusive falsos positivos. “Con- abrangente que busca criar algoritmos Pesquisa Clínica vêm testando, até aqui
tinuamos a trabalhar no aperfeiçoamento de inteligência artificial para detecção de com bons resultados, um programa da
do Sila, pois há bastante terreno para “realidade sintética”, ou seja, para identifi- empresa israelense Rehovot, criado para
melhorá-lo”, explica Rocha. car falsificações em fotos, áudios e vídeos identificar fotos duplicadas ou com partes
Os algoritmos e as bases de dados uti- de todo tipo (ver Pesquisa FAPESP nº 321). giradas, invertidas e esticadas. “Estamos
lizados foram disponibilizados em repo- Uma vantagem do Sila é que ele abran- bastante satisfeitos com os resultados
sitórios de acesso aberto e a ideia é que ge um ciclo completo de tarefas para ana- até agora”, disse à revista Nature Daniel
outros pesquisadores ajudem a testar e lisar imagens, da extração à análise, e pre- Evanko, diretor de operações da AACR.
refinar o desempenho da ferramenta. O tende se tornar uma ferramenta aberta e Desde o advento da fotografia, ima-
consórcio tem financiamento da Agên- disponível para todo tipo de usuário. Nos gens são utilizadas como evidências de
cia de Projetos de Pesquisa Avançada últimos tempos, surgiram no mercado resultados científicos. Em alguns casos,
em Defesa (Darpa) e do Escritório de soluções tecnológicas dessa natureza, elas exprimem o próprio achado: caso da
Integridade Científica (ORI), ambos dos mas elas buscam resolver tarefas especí- fotografia feita pela química britânica Ro-
Estados Unidos. No Brasil, é apoiado pela ficas e são comercializadas por empresas. salind Franklin, que revelou a estrutura
do DNA em 1952 e embasou o artigo assi-
nado por James Watson e Francis Crick.
Com a transição da fotografia analógica
para a digital, ferramentas de software
de edição como o Photoshop permitiram
que pesquisadores retocassem arquivos
com bastante facilidade, destacando áreas
de interesse tais como “bandas” em re-
sultados de testes de western blot, mé-
todo usado na biologia molecular para
identificar proteínas. “A maioria dessas
edições é legítima. Não há problema em
calibrar a intensidade ou o contraste para
tornar o resultado mais fácil de visuali-
zar”, afirma Rocha. “Mas há edições que
comprometem a integridade e, às vezes,
isso tem claramente a intenção de enga-
nar os leitores. Nesses casos, é preciso
corrigir o registro e até mesmo pedir a
sua retratação.”
"Imagem manipulada Esses problemas são mais frequentes
de célula, em
estilo minimalista”,
do que se imagina. Uma análise manual
em versão do realizada pela microbiologista Elisabeth
software DALL-E Bik em 2016 vasculhou mais de 20 mil

24 | MARÇO DE 2023
Opções em estilo surrealista criadas por programa de inteligência artificial a partir do comando "Imagem forjada de teste western blot"

estudos da área biomédica e encontrou toques e remoções. As imagens dispo- em artigos acadêmicos, mas a tecnologia
algum tipo de adulteração em 4% deles níveis na biblioteca não são reais, mas, é uma realidade palpável – programas
(ver Pesquisa FAPESP nº 310). É fácil sim, reproduções criadas para simular como o DALL-E 2, da OpenAI, é capaz
enxergar mudanças aberrantes, mas há as características mais comuns das ma- de inventar imagens sobre qualquer tema
manipulações sofisticadas que podem nipulações. Isso porque ele não poderia com base em descrições apresentadas na
tornar a identificação bastante complexa. usar as figuras fraudulentas obtidas em forma de textos – como se fosse um retra-
Um dos principais desafios dos editores estudos retratados por razões legais e to falado. “A inteligência artificial pode

A
atualmente é reconhecer manuscritos restrições de direitos autorais. ajudar a detectar dados duplicados em
produzidos por “fábricas de papers”, pesquisas, mas também pode ser usada
serviços ilegais que vendem trabalhos gora, Cardenuto trabalha para gerar informações falsas”, escreveu
científicos sob demanda, frequentemente para identificar caracterís- Elisabeth Bik em um texto publicado em
com informações falsificadas, inclusive ticas de imagens adultera- outubro no jornal The New York Times.
imagens fabricadas. Bik recentemente das em documentos gerados “Hoje em dia é fácil produzir fotos ou
identificou 400 artigos com figuras tão por fábricas de papers – e vídeos fabricados de eventos que nunca
semelhantes que sugeriam uma origem a treinar algoritmos para aconteceram e imagens geradas por in-
comum – uma fábrica de papers. Havia rastreá-los na literatura aca- teligência artificial podem já ter começa-
indícios, em alguns casos, de que uma dêmica. Já existem ferra- do a envenenar a literatura científica. À
imagem padrão foi adaptada para repre- mentas automatizadas para medida que a tecnologia se desenvolve,
sentar diferentes experimentos, moldan- detectar artigos desse tipo, como o Paper- será significativamente mais difícil dis-
do-se ao conteúdo de cada documento mill Alarm, desenvolvido pela empresa tinguir o falso do real.”
fraudulento, por meio, por exemplo, de de serviços de dados acadêmicos Clear Não é impossível rastrear artigos cujos
alteração de cores ou da mudança de Skies, no Reino Unido. Ele usa técnicas textos foram gerados por programas co-
lugar de algum elemento. de aprendizagem profunda (deep lear- mo os da linhagem do ChatGPT. “Há
Um desafio para detectar manipula- ning) a fim de analisar títulos e resumos uma premissa na ciência forense, segun-
ções de forma automática é dispor de de manuscritos e comparar sua linguagem do a qual qualquer intervenção deixa al-
repositórios com grandes volumes de com a de trabalhos sabidamente produzi- gum vestígio”, afirma Anderson Rocha.
fotos, que sirvam de referência para ras- dos por esses serviços ilegais. O software “Um algoritmo de inteligência artificial
trear a origem de conteúdo reaproveita- não indica que o manuscrito é fabricado, seria capaz de identificar um paper ge-
do, e também de bancos de dados com mas sinaliza aqueles que merecem uma rado por outro algoritmo de inteligência
manipulações frequentes, que permitam investigação mais aprofundada antes da artificial, mas provavelmente precisará
detectar os padrões de fraudes em ma- publicação. “Como o conteúdo parece ser aperfeiçoado de forma contínua pa-
nuscritos submetidos para publicação. fazer sentido, há sempre dúvidas se foram ra acompanhar a sofisticação crescente
Na análise do texto de trabalhos científi- mesmo fabricados. Se pudermos reunir nas formas de adulteração. Será um jogo
cos, esses recursos já estão disponíveis e evidências relacionadas a imagens, ficará de gato e rato para ver quem está mais
municiam o funcionamento de soluções mais fácil ter certeza”, diz Cardenuto. avançado: nós ou os fraudadores.” n
antiplágio. O engenheiro da computação O futuro tende a ser ainda mais com-
João Phillipe Cardenuto, que está sen- plexo. Uma fronteira tecnológica envolve
do orientado por Rocha no doutorado, a geração de imagens sintéticas, produzi- Projetos
publicou em agosto do ano passado um das por programas de inteligência artifi- 1. Déjà vu: Coerência temporal, espacial e de caracteriza-
artigo na revista Science and Engineering cial. “Se já pode ser difícil confirmar que ção de dados heterogêneos para análise e interpretação
de integridade (nº 17/12646-3); Modalidade Projeto
Ethics em que reúne exemplos de adul- uma foto contém elementos de outra, será Temático; Pesquisador responsável Anderson Rocha;
terações de imagens e apresenta uma preciso criar novos parâmetros para veri- Investimento R$ 1.912.168,25.
IMAGENS DALL-E

biblioteca de algoritmos, disponível em ficar fraudes em registros que forem total- 2. Filtragem e análise de proveniência (nº 20/02211-2);
Modalidade Bolsa de Doutorado; Bolsista João Phillipe
acesso aberto, que reproduzem e são mente fabricados”, diz Rocha. Ainda não Cardenuto; Pesquisador responsável Anderson Rocha;
capazes de identificar duplicações, re- há provas de que isso esteja acontecendo Investimento R$ 130.935,02.

PESQUISA FAPESP 325 | 25


ENTREVISTA Cid Bartolomeu de Araújo

AS
PERIPÉCIAS
DA LUZ
Físico pernambucano elucida fenômenos
que permitem o aprimoramento de fibras ópticas,
telefones celulares, novos materiais e lasers

Carlos Fioravanti e Yuri Vasconcelos  |  RETRATO  Brenda Alcântara

E
m um experimento recente, o físico Cid Bartolomeu de Araújo IDADE 78 anos
usou feixes de luz para estudar grupos de cinco ou seis átomos,
ESPECIALIDADE
que, surpreendentemente, perdem parte de suas característi-
Óptica não linear
cas individuais e se comportam como se fossem um tipo de
e fotônica
agregado chamado metamolécula. O conhecimento produzido
nos laboratórios do Departamento de Física da Universidade Federal de INSTITUIÇÃO
Pernambuco (UFPE), além de desvendar novas propriedades da luz e de Universidade Federal
novos materiais, ajuda a aprimorar a eficiência de fibras ópticas e vidros de Pernambuco (UFPE)
especiais, como os usados em celulares e células fotovoltaicas, sem con-
FORMAÇÃO
tar os resultados inesperados. Araújo ficou feliz ao ver que três trabalhos
Graduação em
de seu grupo de pesquisa reforçaram a argumentação que permitiu ao
engenharia elétrica
físico italiano Giorgio Parisi ganhar o Prêmio Nobel de Física de 2021.
pela UFPE, mestrado
Na década de 1970, com outros jovens físicos, Araújo participou da
e doutorado em
criação do Departamento de Física da UFPE, que se tornou um dos mais
física pela Pontifícia
produtivos do país em óptica não linear, área da física que estuda os efei-
Universidade Católica
tos da alta intensidade de luz sobre sólidos, líquidos ou gases. Aos 78
do Rio de Janeiro
anos, casado, três filhos e seis netos, ainda que aposentado, ele percorre
(PUC-RJ)
diariamente os laboratórios e participa das pesquisas. Um livro lançado
em dezembro, História da física no Recife (Cepe Editora), escrito por As- PRODUÇÃO
cendino Silva, Marcos Galindo, Osvaldo Pessoa Jr. e Wanderley Vitorino, Autor de 359 artigos
ressalta a importância do grupo de física da UFPE e o vincula à tradição científicos e
científica do estado, enraizada no trabalho de astrônomos e naturalistas coautor de 2 livros
trazidos no século XVII pelo conde alemão-holandês Maurício de Nassau publicados por
(1604-1679) quando a região foi ocupada pelos holandeses. editoras internacionais

26 | MARÇO DE 2023
PESQUISA FAPESP 325 | 27
O senhor tinha 26 anos, em 1971, quando trabalho na UFPE foi o projeto da subes- mical Physics Letters propondo que
participou da criação do Departamento tação elétrica para alimentar o laborató- duas moléculas distintas interagindo
de Física da UFPE, um dos primeiros e rio. O projeto foi feito em conjunto com entre si dentro de um cristal orgânico
ainda hoje um dos mais produtivos nes- um engenheiro da prefeitura da UFPE. podem absorver simultaneamente dois
sa área no país. Como se planejaram? Como eu tinha feito graduação em enge- fótons, as partículas de luz, um efeito
Terei de voltar alguns anos para respon- nharia, fui parcialmente responsável pela que décadas depois foi observado ex-
der. José Rios Leite, meu colega até hoje, subestação. Sérgio Mascarenhas e o físi- perimentalmente. Em que consiste esse
e eu estudamos engenharia elétrica na co do Rio Grande do Sul Gerhard Jacob fenômeno exatamente?
UFPE e depois no mestrado em física na [1937-2019] levaram nosso plano de pes- Esse foi um dos trabalhos teóricos ao
PUC [Pontifícia Universidade Católica] quisa para convencer o CNPq [Conselho qual eu e Rios Leite nos dedicamos en-
do Rio. Nós dois e mais três outros cole- Nacional de Desenvolvimento Científico quanto não tínhamos um laboratório
gas da UFPE que estavam em São Paulo e Tecnológico] a nos dar o primeiro finan- bem instalado. No modelo mais simples
planejávamos fazer o doutorado fora do ciamento. Mascarenhas já tinha criado de átomo, o núcleo tem cargas positivas
Brasil e depois retornar ao Recife. O fí- outros grupos em São Carlos e mesmo e os elétrons, que giram ao redor, nega-
sico carioca Sérgio Mascarenhas [1928- no México, e acreditou na capacidade tivas. Quando os átomos estão distantes
-2021] fez uma proposta: “Vocês podem do nosso grupo. Fui contratado em 1971, entre si, o efeito do campo elétrico das
voltar e formar um grupo de pesquisa no antes de concluir o doutorado. Termi- cargas de um átomo sobre as cargas do
Recife e conseguir financiamento para nei o doutorado na PUC-RJ, em 1975, e outro átomo é pequeno. Inversamente,
tocar as pesquisas”. Nessa época, início logo depois saí para um pós-doutorado quando estão mais próximos, a intensi-
da década de 1970, era relativamente na Universidade Harvard, nos Estados dade do campo elétrico aumenta. O que
fácil conseguir dinheiro para pesquisa Unidos. Voltei, para ficar no Recife, em propusemos foi que, para determinadas
porque a competição ainda era pequena. dezembro de 1977. Conseguimos os pri- distâncias e certas condições, os dois
Mascarenhas, contudo, avisou: “Mas vo- meiros recursos do CNPq, mas levou um átomos próximos podem se comportar
cês precisam de alguém mais experiente tempo para o laboratório se estabelecer como um sistema único, como se fossem
conduzindo o trabalho”. Conversamos e começar a dar resultados. Nesse meio uma quase molécula. Quando excitados
sobre alguns nomes e ele próprio esco- tempo, procuramos fazer um pouco de por um feixe de luz de frequência apro-
lheu e convidou Sérgio Rezende, que em teoria, para não ficarmos parados, não priada, eles absorvem e compartilham a
1970 era considerado uma pessoa muito perder a fronteira daquelas poucas áreas energia; parte vai para um átomo e parte
experiente. Fazia apenas três anos que em que estávamos envolvidos. Naquela da energia vai para outro. Se estivessem
ele havia terminado o doutorado no MIT época, a maioria das revistas científicas isolados, cada átomo, mais exatamente
[Instituto de Tecnologia de Massachu- demorava a chegar, algumas menos, por- um elétron, pegaria toda a energia para
setts, nos Estados Unidos]. Ele topou que fazíamos a assinatura e vinham por si e mudaria de estado, de menor para o
vir para o Recife, com a promessa de fi- correio aéreo. Mas, em geral, recebíamos estado mais energético, retornando ao
car um ou dois anos, mas gostou e está revistas com atraso de cinco a seis meses. estado anterior, quando emite a energia
aqui até hoje [ver entrevista com Sérgio Era um problema, porque começávamos que recebeu. Quando estão próximos,
Rezende no suplemento Prêmio Conrado uma pesquisa e, meses depois, recebía- há uma interação eletrostática entre as
Wessel de Pesquisa FAPESP de janeiro mos uma revista e víamos que alguém já cargas dos dois átomos, que favorece
de 2012]. Uma coisa muito importante, tinha feito aquilo. a absorção simultânea de dois fótons.
que permitiu a formação do grupo, foi Hoje, esse trabalho me parece um pro-
o objetivo comum. Do ponto de vista A equipe atual do departamento man- blema que poderia entrar em um curso
científico, focalizamos uma área em par- tém esse espírito de união que norteou avançado de física, não é nada muito
ticular, a de materiais magnéticos, e com o início do trabalho de vocês? sofisticado. Ainda no início do Depar-
isso conseguimos criar um ambiente em A motivação vem da convivência, de você tamento de Física na UFPE, como não
que todos falavam a mesma língua. Mas estar animado com um trabalho e con- tínhamos dinheiro para montar labo-
foi uma coisa arriscada para todos nós. tagiar os outros colegas. Tentamos nos ratórios, Rios Leite e eu exploramos a
cercar de pessoas que pensam parecido possibilidade de investigar esse efeito
Por quê? e tenham a mesma empolgação com a no laboratório, que não tinha sido tra-
A probabilidade de não dar certo era pesquisa. Para selecionar os estudantes tado ainda em outros estudos. Fizemos
muito grande. Na época, poucas pessoas de iniciação científica, por exemplo, uma os cálculos e publicamos o artigo, que
faziam pesquisas na UFPE e em outras das primeiras perguntas que um colega tem quatro páginas e ficou dormindo
universidades da região. Vários grupos fazia era: “Você sabe consertar sua bici- por anos na literatura científica.
de física estavam começando também em cleta?”. A partir daí se pode ver se é um
Campinas e em São Carlos, no interior cara que gosta de mexer com as mãos e Tentaram demonstrar esse efeito expe-
paulista. Quando viemos para o Recife consertar coisas, uma habilidade muito rimentalmente?
não existiam laboratórios nem físicos no importante em um laboratório de física Quando conseguimos montar o labora-
departamento. Só engenheiros que eram experimental como o nosso. tório, tentamos fazer a experiência, mas
professores de física em tempo parcial não tínhamos ainda a infraestrutura para
e trabalhavam também em escritórios Em 1980, o senhor e um colega da encarar aquele tipo de problema. É pre-
particulares ou empresas. Meu primeiro UFPE publicaram um artigo na Che- ciso ter duas moléculas ou dois átomos

28 | MARÇO DE 2023
muito próximos, de modo que possam a luminescência [capacidade de emitir fez referência a três trabalhos nossos,
interagir. Tentamos com vapores de só- luz] de moléculas específicas do sangue, feitos no Recife, e que serviram para cor-
dio. Quando conseguimos as condições por exemplo. roborar as ideias propostas por um dos
experimentais, os dois átomos se junta- ganhadores do Prêmio Nobel de Física,
vam e formavam uma molécula de sódio, Em 2013, noticiamos um estudo seu so- o italiano Giorgio Parisi. Isso deixou a
que não servia para o que queríamos. bre os vórtices ópticos, que chamamos mim e aos colegas de nossa equipe mui-
Tentamos depois com um sólido com de redemoinhos de luz. Esse trabalho to felizes porque não tivemos nenhum
íons de terras-raras, mas também não avançou? contato com os autores do relatório, mas
foi possível. Por volta de 1985, um grupo Avançou. Um estudante de doutorado eles notaram que nossos artigos foram
francês fez alguma coisa muito próxima, que trabalhava nisso na época, Anderson importantes para comprovar as ideias
mas, na verdade, o efeito só foi observa- Amaral, agora é professor na UFPE. O do Parisi. No final da década de 1970,
do em 2002 por um grupo suíço-alemão. que naquela ocasião [ver Pesquisa FA- Parisi propôs uma teoria que explica-
Eles doparam [enriqueceram] um sólido PESP no 211] era um trabalho de pesquisa va o comportamento de alguns mate-
orgânico e com uma sonda conseguiram básica tornou-se uma rotina. Podemos riais magnéticos. Outros físicos dessa
localizar pares de moléculas que estavam produzir os feixes com vórtices ópticos área concordavam que a teoria do Pari-
muito próximas, mas não se tocavam, e e usá-los para fazer diferentes experiên- si era correta, mas a forma de verificar
viram o efeito. Para minha surpresa e do cias. Os feixes têm momento angular, o era muito indireta. Então, entre 2015 e
Rios Leite, eles tinham encontrado nosso que significa que, quando incidem sobre 2017, usando lasers aleatórios, mostra-
artigo, 22 anos depois da publicação, e o um grupo de elétrons ou de moléculas, mos de forma direta que a proposta dele
citaram. O artigo foi destacado na capa tendem a fazer os elétrons ou as molé- estava correta. Não fomos atrás disso,
da revista Science. Em 2012, a equipe do culas girarem. Um grupo dos Estados não, sabe? Chegamos a esses resulta-
Vanderlei Bagnato, da USP [Universidade Unidos e outro da China estão usando dos por acaso durante a pesquisa em
de São Paulo] de São Carlos, comprovou essa possibilidade de manipular o per- conjunto com um colega professor da
esse efeito em vapor de sódio, mas nesse fil da luz para gerar números aleatórios, UFPE, Anderson Gomes. Como somos
caso conversamos antes. Fizemos um muito importantes na criptografia das físicos experimentais, precisávamos do
seminário lá e ele achou que teria con- mensagens por celular ou internet. suporte de outros físicos teóricos. Por
dições de fazer esse tipo de experiência. coincidência, Ernesto Raposo, um cole-
Fez e deu certo. O artigo resultante foi Com uma carreira tão longa, que mo- ga bem mais jovem da física estatística
publicado na Physical Review Letters. mentos importantes o senhor destacaria? aqui da UFPE, já tinha trabalhado com
Foi uma grande satisfação, porque ele Em 2021, o relatório da comissão da Aca- esses processos na física do estado sólido
trabalhou com um sistema mais próxi- demia Sueca de Ciências que faz a indi- e nos ajudou imensamente.
mo do que tínhamos imaginado 32 anos cação dos nomes para o Prêmio Nobel
antes. Esse efeito passou a ser chama- Vocês têm contato com empresas da
do de absorção de dois fótons por um área de óptica?
par de átomos [TPTA]. É um fenômeno Tivemos contato há muitos anos com
que pode ser descrito dentro do grande Jarbas Castro, da Opto, de São Carlos. A
arcabouço da óptica não linear. Depois Opto passou por grandes dificuldades fi-
outros grupos também estudaram esse nanceiras, mas, pelo que sei, já se recupe-
efeito sob diferentes aspectos. rou [ver Pesquisa FAPESP nos 162 e 227].

O que é óptica não linear? De nosso Além dela, não conheço outra empresa
que fabrique lasers no Brasil. A paulista
É uma área, atualmente também chama- Quantum Tech fez algumas tentativas,
da de fotônica não linear, que estuda os departamento mas faliu depois de dois anos. Em São
efeitos da alta intensidade de luz sobre Paulo há outras empresas que usam la-
os vários estados da matéria, seja ela só-
lida, líquida, gasosa ou na forma de plas-
saíram startups sers para fazer stents [dispositivo usado
em cirurgia cardíaca], por exemplo, mas
ma. Esses materiais de interesse podem
estar no laboratório ou na natureza, en-
que fazem a fonte de luz é importada. De nosso de-
partamento saíram startups que se ins-
tão é possível fazer óptica não linear em talaram na incubadora do Instituto Tec-
laboratórios que simulam, por exemplo, equipamentos nológico de Pernambuco e desenvolvem
a atmosfera de estrelas. Do ponto de vista equipamentos para a área médica com
prático, a primeira contribuição impor- para a base na fotônica, mas os diodos emis-
tante dessa área foi a criação do primeiro sores de luz também são importados. O
laser e o entendimento de seu funciona-
mento, na década de 1960. Depois vie-
área médica custo de produção de um laser é alto e
o mercado brasileiro ainda é pequeno.
ram as fibras ópticas, que transportam
mensagens e mudaram nossa vida. E daí com base Uma empresa que se estabeleça no Bra-
sil teria de competir internacionalmen-
para frente surgiram as aplicações da óp- te com companhias fortes dos Estados
tica na medicina, em testes que avaliam na fotônica Unidos, da França e da Alemanha, que

PESQUISA FAPESP 325 | 29


fabricam lasers de uso industrial e mé- floresce muito [com um alto poder de cálice de Licurgo, feito pelos romanos
dico. Contribuímos com o mercado de emitir luz] e elas vão funcionar como 400 anos depois de Cristo, que está no
forma indireta, porque formamos pessoal os espelhos do laser. Museu Britânico, em Londres, é verde
qualificado para trabalhar nas empresas, quando iluminado de fora para dentro e
não apenas do Brasil. Alguns estudantes O que já fizeram com essas partículas? vermelho quando se põe uma lâmpada
que passaram por aqui estão trabalhan- Em uma das nossas experiências mais dentro dele. Atualmente essas partícu-
do em firmas no Canadá, nos Estados recentes, publicada há um ano, usamos las são objeto de estudo de nanociência
Unidos, na Índia e na China. Dois deles essas partículas, que têm 10 nanôme- e nanotecnologia. Com a professora da
estão em empresas de nanotecnologia, tros de diâmetro [1 nanômetro é a bi- Fatec [Faculdade de Tecnologia de São
baseadas em partículas preparadas por lionésima parte do metro], para estudar Paulo] Luciana Kassab estamos cons-
técnicas químicas, como as que fazemos as propriedades de clusters, grupos de truindo vidros especiais, usados em fibra
aqui. Outros são pesquisadores em uni- uns poucos átomos. A partir de cerca de óptica e sensores ópticos, com partículas
versidades. Temos nos dedicado a temas 1.500, 1.700 átomos, reduzimos a quan- metálicas, que permitem controlar a cor
que naturalmente treinam os estudantes, tidade até chegar a clusters [aglome- ou aumentar a fluorescência [emissão de
por exemplo, para a indústria de medica- rados] de seis átomos de ouro, rodea- luz] para desenvolver displays coloridos,
mentos, que tem muito interesse por na- dos por outras moléculas. Um químico sensores ópticos ou mesmo lasers que
nopartículas. Entretanto, a maioria dos da Índia nos forneceu as amostras e as emitem várias cores.
nossos pós-graduandos tem se tornado analisamos. Agora estamos com novas
professores e pesquisadores em univer- amostras que ele preparou de sete a 12 Em 2003, o senhor foi o primeiro e até
sidades no Brasil, em países vizinhos, na átomos de cobre. Vimos que, na medida agora o único brasileiro agraciado com
América do Norte e na Europa. em que reduzimos o tamanho do grupo o Prêmio Galileu Galilei, da Comissão
de átomos, não existem mais elétrons Internacional de Óptica, a ICO. Na justi-
O senhor trabalha com outras aplica- livres como num fio metálico. Os elé- ficativa do prêmio, a entidade referiu-se
ções da óptica, como as nanopartículas trons estão mais ou menos presos a cada a “contribuições científicas excepcionais
metálicas e os vidros especiais. Em que átomo, e cada cluster se comporta como produzidas sob circunstâncias compa-
pé estão? se fosse uma grande molécula, rodea- rativamente desfavoráveis”. Essas cir-
Estudamos as nanopartículas metálicas da por outras, que mantêm os átomos cunstâncias desfavoráveis persistem?
– de prata, ouro ou outros metais – como coesos. No passado, partículas metáli- Hoje são ainda maiores. Temos falta de
um meio não linear que permite inves- cas de prata e ouro serviram para fazer recursos para a pesquisa e vivemos altos e
tigarmos, entre outras coisas, a propa- vitrais de catedrais da Europa na Idade baixos. Na época da ditadura [1964-1985],
gação de pulsos de luz que se deslocam Média. O vidro vermelho contém micro- era relativamente fácil conseguir finan-
sem se deformar, os chamados sólitons. partículas de ouro e o verde de cobre. O ciamento porque alguns daqueles milita-
Para entender a motivação para estu- res eram nacionalistas e entendiam que
darmos sólitons, considere o seguinte: era importante desenvolver a tecnologia.
quando acendemos uma lanterna ou uma Depois tivemos um período muito ruim,
lâmpada comum, a luz não sai como se nos governos dos presidentes José Sar-
fosse um cilindro único, mas diverge, ney e Fernando Collor de Mello, quando
se espalha. Para estudar o comporta- o dinheiro para pesquisa desapareceu. Os
mento de umas poucas moléculas pre- orçamentos federais para pesquisa foram
cisamos de feixes unidirecionais como
os sólitons, já que mesmo o laser sofre Em Harvard muito reduzidos. Tivemos uma boa re-
cuperação nos dois primeiros mandatos
deformações enquanto se propaga. Os de [Luiz Inácio] Lula [da Silva], mas os
sólitons são objetos ópticos com uma aprendi últimos seis anos dos governos Temer
aplicação ampla, por exemplo, em fibras e Bolsonaro [2016-2022] foram muito
ópticas, para evitar as deformações das
mensagens causadas pela sobreposição
as estratégias ruins. Espero que melhore nos próximos
anos, porque nossa principal fonte de
dos pulsos de luz. Já existem circuitos
experimentais com frequência bem al-
de pesquisa, financiamento é o MCTI [Ministério da
Ciência, Tecnologia e Inovação]; alguns
ta, que permitem mandar bastante in- recursos internacionais; e a Facepe [Fun-
formação em um tempo muito curto. O por interagir dação de Amparo à Ciência e Tecnologia
comportamento das partículas metálicas do Estado de Pernambuco], que também
pode ser descrito por equações que aju- com pessoas ajudam muito.
dam a construir os sólitons. As partículas
metálicas servem também para construir
os chamados lasers aleatórios, que não
que faziam Por que o senhor escolheu o curso de en-
genharia elétrica se queria fazer física?
têm espelhos refletores que possibilitam
a amplificação da luz, como nos lasers uma física Na época me diziam que era o melhor
curso da UFPE, e o que tinha mais físi-
comuns. Posso colocar essas partícu- ca e matemática, que eu gostava muito,
las em um líquido ou em um sólido que de fronteira desde o ensino médio. Os dois primeiros

30 | MARÇO DE 2023
anos eram o chamado ciclo básico, com Paulo Henrique Evangelista de Araujo
muita física, matemática e química, e no começou com matemática, mas no fim
terceiro ano começavam as disciplinas do segundo ano fez outro vestibular e
mais aplicadas. Aí percebi que não era entrou em ciência da computação. Foi
engenharia que eu queria fazer, mas não Dois filhos lá até o terceiro ano e começou uma em-
existia ainda curso de física na universi- presa de software, com dois colegas, nu-
dade. Completei o curso de engenharia
elétrica, mas, orientado por alguns profes-
seguiram ma incubadora do Recife. Chegaram a
ter 15 funcionários, mas passados dois
sores, estudei disciplinas que faziam parte
do programa de bacharelado em física em
a carreira anos tiveram que desfazer a sociedade.
Depois ele trabalhou na Motorola em
outras universidades. Terminando a gra- São Paulo, resolveu estudar mandarim
duação, fui para a PUC-RJ. Um professor acadêmica por e no ano seguinte foi para a China para
daqui tinha me colocado em contato com estudar mais um ano de mandarim. Lá
dois físicos de lá, Erasmo Ferreira e Ni- causa da abriu uma empresa de logística, impor-
cim Zagury, os dois atualmente na UFRJ tação, exportação, mas a esposa veio para
[Universidade Federal do Rio de Janeiro],
que me disseram o que eu deveria estudar
convivência cá e por fim ele fechou a empresa e veio
também. Agora tem uma empresa de soft-
para chegar lá em condições de começar
uma pós-graduação em física. Depois, na com meus ware com ligação com o Porto Digital [o
parque tecnológico instalado no Recife
Universidade Harvard, trabalhei com Ni- com foco em tecnologia da informação]
colaas Bloembergen [1920-2017], consi- colegas e os e alguma atividade com energia solar fo-
derado o pai da óptica não linear, um dos tovoltaica, aproveitando as conexões que
ganhadores do Nobel de Física de 1981.
Na Harvard eu aprendi não só os conhe-
filhos deles tem na China. Os três são felizes com o
que fazem. Minha mulher, Rubi, aposen-
cimentos básicos da área, mas também tou-se como diretora de escola. Moramos
as estratégias de pesquisa, por interagir em Boa Viagem, gostamos da praia, mas
com pessoas que faziam uma física de ela diz que sou meio workaholic.
fronteira, e pude aprender como os gru-
pos de pesquisa funcionam. Além de praia, de que gosta?
De música. Estudei solfejo e canto, fui
Seus pais apoiavam suas escolhas? tenor, quando era jovem cantei no Co-
Meu pai acreditava que eu seria comer- Sim, mas já disse para eles que não tenho ral do Carmo do Recife, o principal da
ciante, como ele, que tinha uma loja de culpa nenhuma. Eles trabalham com óp- cidade naquela época, décadas de 1960
aviamentos e couro para sapatos, malas, tica também. O mais velho, Luís Eduar- e 1970. Era um coral religioso, mas eu
no bairro de Santo Antônio, na parte an- do Evangelista de Araújo, é professor e não era mais religioso, assim como ou-
tiga do Recife. A partir de certo momento tem laboratório no Instituto de Física da tros colegas. Nós cantávamos música
ele achou que eu deveria estar lá com ele. Unicamp há uns 20 anos. O outro, Renato sacra, mas também canções internacio-
Cheguei a acreditar que eu seria comer- Evangelista de Araújo, trabalha no De- nais e folclóricas com arranjos muito
ciante também, mas comecei a discordar partamento de Eletrônica da UFPE com bem-feitos. O coral gravou três discos
da forma como ele fazia os negócios, da aplicações médicas e biológicas do laser. com músicas brasileiras e um quarto com
dinâmica da loja, a pensar de forma mais O fato de eles terem seguido a carreira uma trilha de um filme, Terra sem Deus,
independente, e ele não gostou. Quan- acadêmica deve ser o resultado da con- sobre cangaço, rodado aqui em Pernam-
do decidi fazer engenharia, minha mãe vivência com os meus colegas e os filhos buco em 1963. A música da trilha era de
apoiou, mas meu pai ficou triste. E mais deles. Uma época morávamos pertinho inspiração nordestina, música polifôni-
triste ainda quando meu irmão, que é do campus e muitas vezes no final do dia ca, com quatro vozes, e arranjos disso-
mais novo três anos, virou sociólogo. Por eles vinham com a minha mulher para nantes, na época uma coisa avançada,
fim meu pai teve de vender a loja, porque me buscar. Lembro do Luís, com 3 ou 4 de certa maneira influência já do João
não tinha ninguém para cuidar. Mas acho anos, sentado no laboratório e pedindo Gilberto [1931-2019]. Na graduação, eu e
que depois ele gostou do avanço dos fi- para ligar o laser, que ele achava bonito. mais quatro colegas tivemos aulas extras,
lhos, tanto o meu caso quanto o do meu Quando estávamos nos Estados Unidos, durante dois anos, com um físico mate-
irmão, que também se tornou professor os dois frequentaram escolas com labo- mático português, Rui Gomes, que saiu
universitário, já se aposentou e vive no ratórios ótimos; foi lá que o Luís apren- do Porto na época do [António] Salazar
Rio de Janeiro há mais de 20 anos. Eu me deu a fazer crescimento de cristais no [1889-1970], foi para a Argentina e depois
aposentei também, mas continuo como laboratório da escola. Renato já gostava veio para o Recife. Em meados dos anos
professor, tenho o laboratório e os estu- de eletrônica. Acho que foi na high school 1960-70 estive várias vezes na casa dele.
dantes de pós-graduação. que ambos decidiram fazer o curso de A mulher do professor Rui, sabendo que
física quando voltamos para o Recife. eu era tenor, pedia para cantar canções
Dois de seus três filhos também são napolitanas daquela época. Meu pai tam-
físicos? E o terceiro filho, o que faz? bém gostava de cantar. n

PESQUISA FAPESP 325 | 31


PRODUÇÃO DE CONHECIMENTO

EURECA
EM BAIXA?
Estudo abre debate sobre o potencial
transformador da ciência ao afirmar
que ela está ficando menos disruptiva

Fabrício Marques  |  ILUSTRAÇÃO  Julia Jabur


A
ciência está esgotando sua ca- cionados, por não serem vistos como referên-
pacidade de transformar a so- cia para o rumo que aquele campo tomou. “Um
ciedade? Esse receio, mesmo ecossistema científico saudável é aquele em que
sem ser formulado em voz alta, há uma mistura de descobertas disruptivas e de
permeou a repercussão de um aperfeiçoamentos consolidadores”, afirmou Rus-
artigo publicado em janeiro na sell Funk, segundo o site da Escola de Adminis-
revista Nature por três cientistas tração Carlson. “Com as inovações incrementais
sociais dos Estados Unidos. Erin se tornando mais comuns, pode levar mais tempo
Leahey, da Escola de Sociolo- para conseguirmos avanços que impulsionem a
gia da Universidade do Arizona, ciência de forma mais dramática.”
Russell Funk e seu orientando Um dos casos de ciência disruptiva mencio-
de doutorado Michael Park, ambos da Escola nados no trabalho é amplamente conhecido: a
de Administração Carlson, da Universidade de descoberta da estrutura de dupla hélice do DNA,
Minnesota, analisaram mais de 45 milhões de apresentada em um artigo da revista Nature em
artigos publicados entre 1945 e 2010 e 3,9 milhões 1953 pelo inglês Francis Crick e o norte-ame-
de patentes depositadas nos Estados Unidos entre ricano James Watson (que ganhariam o Nobel
1976 e 2010 e concluíram que, com o decorrer do de Medicina ou Fisiologia nove anos depois).
tempo, se tornou mais difícil para os cientistas Já outros exemplos levantaram controvérsia.
obter descobertas originais a ponto de criar um O trabalho dos cientistas sociais comparou seis
novo campo do conhecimento ou reorientar o contribuições à ciência capazes de ilustrar fases
rumo de um tema de pesquisa existente. do espectro que vai do consolidador ao disrup-
O trio usou uma métrica, chamada de índice tivo. Uma patente de 1983 ficou na posição mais
CD, em que os valores podem variar de -1, para elevada na escala. De autoria de Richard Axel,
trabalhos menos disruptivos, a +1, para os mais da Universidade Columbia, e dois colaboradores,
disruptivos, e mostrou que a média do desem- Saul Silverstein e Michael Wigler, a descoberta
penho medido no indicador caiu gradativamen- estabeleceu uma maneira eficiente de inserir
te (ver gráfico). A queda acumulada nos perío- DNA em células de mamíferos. Já na posição
dos analisados foi de mais de 90% para artigos mais baixa, como exemplo de ciência consoli-
e mais de 78% para patentes. É verdade que o dadora, figura um artigo de 1970 do microbio-
número absoluto de artigos e patentes consi- logista David Baltimore, à época no Instituto
derados transformadores ficou em um mesmo de Tecnologia de Massachusetts (MIT), sobre
patamar ao longo do tempo. Mas como o volu- a descoberta da transcriptase reversa, enzima
me total de trabalhos e de aplicações cresceu de que catalisa a formação de DNA a partir de um
forma exponencial – estima-se que, atualmente, modelo de RNA.
cerca de 3 mil artigos sejam publicados por dia –,
a participação relativa da ciência dita disruptiva PARADOXOS
na contribuição global dos pesquisadores perdeu Em um texto de opinião publicado no site de no-
fôlego, em uma evidência para os autores do tra- tícias Stat, George Church, geneticista da Escola
balho de que o formidável esforço empreendido de Medicina de Harvard, e Juergen Eckhardt,
para produzir conhecimento rende dividendos vice-presidente da Leaps by Bayer, uma unida-
mais magros do que os investimentos projetavam. de de investimento em pesquisa de fronteira da
O trabalho divide a ciência inovadora em duas multinacional alemã, apontaram paradoxos nos
categorias. A primeira, apontada como disruptiva, exemplos selecionados. A patente considerada
caracteriza-se por “perturbar o conhecimento disruptiva, eles observaram, não chegou a re-
existente”, impulsionando a ciência e a tecno- presentar uma descoberta surpreendente, pois
logia em novas direções, de acordo com o artigo pelo menos dois outros grupos haviam conse-
publicado na Nature. A segunda, definida como guido inserir DNA dentro de células antes. Já a
consolidadora, melhora “os fluxos de conheci- descoberta da transcriptase foi “conceitualmente
mento existentes e, portanto, consolida o status muito surpreendente” ao fornecer uma forma
quo”. Para distinguir as descobertas que se en- de estudar e comercializar o RNA e rendeu um
caixam em um ou outro tipo, foram analisadas as Nobel a David Baltimore em 1975.
referências bibliográficas presentes em artigos e Também foi categorizado como “consolida-
patentes. Estudos consolidadores tendem a ser dor” um artigo publicado em novembro de 1965
citados em trabalhos subsequentes juntamente na revista Physical Review pelo químico austría-
com outros artigos relevantes que vieram antes, co naturalizado norte-americano Walter Kohn,
em um sinal de que diversos avanços estrutura- vencedor do Nobel de Química de 1998, e seu
ram aquela área, em um efeito cumulativo. Já colaborador de pós-doutorado Lu Jeu Sham,
entre os trabalhos disruptivos, a tendência é de na Universidade da Califórnia em San Diego. O
que estudos predecessores deixem de ser men- paper é a principal referência de um dos mais

PESQUISA FAPESP 325 | 33


populares métodos computacionais da mecânica vacinas de RNA mensageiro contra o novo co-
quântica, utilizada para descrever propriedades ronavírus foram classificadas no artigo como
eletrônicas na física do estado sólido, da ciência ciência consolidadora, já que resultaram de um
dos materiais, da química, entre outras. “É um desenvolvimento gradual.
dos artigos mais citados da história da física”, O questionamento da metodologia não teve
explica o físico Klaus Capelle, da Universidade força para arrefecer o debate levantado pelo ar-
Federal do ABC. “Ele mudou a forma como são tigo, visto que ele levanta preocupações sobre a
feitas contas na física da matéria condensada, produtividade da ciência presente em estudos
na química quântica, na ciência de materiais e anteriores. O economista Naercio Menezes Filho,
até em algumas áreas da biologia, farmacologia professor e coordenador do Centro Brasileiro de
e geofísica. Se o índice CD identifica esse artigo Pesquisa Aplicada à Primeira Infância (CPAPI)
como consolidador, há algo questionável com sua no Insper, escreveu um artigo no jornal Valor Eco-

P
metodologia ou sua interpretação.” nômico em que relaciona as conclusões do artigo
da Nature com as de um trabalho publicado em
rovavelmente, o paper foi qua­ 2020 na American Economic Review, assinado
lificado dessa forma porque, para por quatro economistas, entre os quais John Van
citá-lo em trabalhos subse­quen­ Reenen, que foi o orientador de seu doutorado
tes, é necessário mencionar tam­ na Universidade de Londres na década de 1990.
bém um estudo publicado um ano Intitulado “As ideias estão ficando mais difíceis
antes por Kohn e outro colabo- de encontrar?”, o estudo mostra que foi necessá-
rador de pós-doutorado, Pierre rio aumentar muito o número de pesquisadores
Hohenberg. Enquanto o primeiro nos Estados Unidos para manter um mesmo ní-
manuscrito demonstra o teorema vel de produtividade. “Tem cada vez mais gente
básico, o artigo de Kohn e Sham alocada em pesquisa, seja nas empresas ou na
mostrou como fazer cálculos com academia, mas está mais difícil encontrar novas
base nesse teorema. Ele apresenta um algoritmo ideias para serem aplicadas”, afirma Menezes. Na
matemático que permite calcular as propriedades agricultura, os autores mostram que entre 1960
dos sólidos – materiais para processadores de e 2015, a produtividade cresceu a uma taxa de
computadores ou celulares, por exemplo, foram 1,5% ao ano, enquanto o número de pesquisado-
desenvolvidos com base nesse algoritmo. res agrícolas aumentou 5%.
Hernan Chaimovich, do Instituto de Química Várias hipóteses para essa perda de fôlego fo-
da USP, considera que algumas críticas ao ar- ram discutidas. O problema pode estar relacio-
tigo da Nature resultam de uma compreensão nado a uma dificuldade dos pesquisadores em
distorcida. “Ele dá importância à ciência ino- conhecer todo o conhecimento gerado em seus
vadora, seja disruptiva ou consolidadora”, diz. campos, em virtude do crescimento no volume
“A ciência inovadora que consolida um campo da produção científica, e a uma tendência de se
pode ter tanto impacto quanto um artigo ino- dedicarem a temas especializados, que rendem
vador disruptivo.” Para o diretor científico da inovações incrementais. Há outras variáveis. O
FAPESP, Luiz Eugênio Mello, aumento do contingente de pesquisadores em
a discussão gerada pelo artigo atividade tornou a ciência bem mais competiti-
sobre o fazer científico é posi- va e eles são cobrados o tempo todo a mostrar
tiva. “Evidentemente qualquer o que estão fazendo. É comum que fatiem os
análise de qualidade que tome resultados obtidos em vários artigos científicos
como base 45 milhões de amos- com conteúdo complementar, em vez de divulgar
APARECEM CENTENAS tras tem algum mérito e a críti- apenas os achados principais em um manuscrito

DE NOVAS REVISTAS ca pela exceção não desmerece


o principal”, afirma. “Chama a
de maior peso.
Na avaliação de Paulo Artaxo, do Instituto de
A CADA MÊS. É NATURAL atenção que vários exemplos
de contribuições ‘não disrup-
Física da USP, o modo de fazer ciência mudou
radicalmente nas últimas décadas. “Há 100 anos,
QUE O CONTEÚDO DE tivas’ representem revoluções
fundamentais. Se houve de fa-
a ciência era realizada em pouquíssimos labora-
tórios no mundo desenvolvido. Hoje, está dis-
NOVIDADE DOS ARTIGOS to uma diminuição relativa da seminada em 200 países. A democratização da

SEJA MAIS LIMITADO, ciência disruptiva, por outro


lado nunca antes a humanidade
ciência é algo muito bom, no sentido de que mi-
lhares ou milhões de pesquisadores hoje fazem
DIZ PAULO ARTAXO havia desenvolvido uma vaci-
na – ou melhor, 10 delas – em
ciência”, afirma. Segundo ele, isso gerou efeitos
colaterais. “Ninguém hoje consegue acompanhar
menos de um ano”, diz Mello, os milhares de papers publicados a cada dia. Só
referindo-se aos imunizantes conseguimos olhar os de maior visibilidade. Há
contra a Covid-19. As inéditas hoje uma indústria de publicações que ganha
A DISRUPÇÃO ARTIGOS Ciências da vida e biomedicina
Física
PATENTES Química
Computadores e comunicações

PERDE
0,6 Ciências sociais 0,6 Medicina e fármacos
Tecnologia Elétrica e eletrônica

FÔLEGO
0,5 0,5 Mecânica

0,4 0,4

Índice CD médio

Índice CD médio
Evolução do índice
CD de artigos 0,3 0,3

e patentes:
quanto mais alto, 0,2 0,2

mais disruptivo
0,1 0,1
é seu conteúdo
0 0
FONTE  PARK, M. ET AL. NATURE. 2023 1950 1960 1970 1980 1990 2000 2010 1980 1990 2000 2010

muito dinheiro com essa forma de fazer ciên- que já em sua primeira rodada deve apoiar cerca
cia. Aparecem centenas de novas revistas a cada de 35 propostas com um orçamento total de R$
mês. É natural que o conteúdo de novidade dos 56 milhões. Nesse programa, pesquisadores jo-
artigos seja mais limitado do que era antigamen- vens, ainda sem vínculo empregatício, com até
te”, afirma Artaxo. “De todo modo, eu não diria seis anos após a titulação como doutor, podem
que a ciência disruptiva caiu e sim que o bolo da solicitar até R$ 1,6 milhão para desenvolver de

O
produção científica cresceu.” forma independente projetos que se proponham
a avançar a fronteira do conhecimento.
utra possibilidade é que o inves- Não é impossível que o estoque de ideias origi-
timento em linhas de investiga- nais esteja diminuindo. De todo modo, soa como
ção na fronteira do conhecimento contrassenso afirmar que a ciência esteja perdendo
possa estar aquém do necessário. a capacidade de mudar a sociedade, seja por meio
“Em geral, os pesquisadores não de projetos disruptivos ou consolidadores. Eckhar-
querem correr o risco de se dedi- dt, da Bayer, e Church, de Harvard, enumeraram
car a uma linha de investigação no artigo na Stat grandes promessas no horizonte
muito inovadora e de resultados como imunoterapias contra o câncer, avanços na
de longo prazo, pois não podem edição de genomas, projetos de colonização de
ficar muito tempo sem publicar planetas e terapias de reversão do envelhecimento.
artigos. Isso vai prejudicá-los em Para Hernan Chaimovich, a metodologia pro-
contratações e promoções”, afirma Menezes Fi- posta no artigo na Nature constitui um esforço
lho. Agências de fomento sempre se preocuparam interessante para medir a capacidade inovadora
em equilibrar investimentos em ciência básica e da ciência. “Mas é preciso cuidado ao afirmar
ciência aplicada ou, usando terminologia mais que os achados disruptivos estão caindo. O que
recente, em fazer um balanço adequado entre a se pode afirmar é que o investimento em ciência
pesquisa orientada pela curiosidade dos cientistas aumentou brutalmente nos últimos anos e isso
e aquela encomendada para resolver grandes de- fez crescer de modo importante a pesquisa de
safios da sociedade (ver Pesquisa FAPESP nº 246). caráter incremental”, afirma. Para além dos nú-
“Somada a pluralização da ciência em número meros, ele observa, é possível vislumbrar que a
de países e de pessoas, temos uma maior diver- ciência continue a produzir descobertas capazes
sidade de formatos, com ciência de descoberta, de mudar o rumo da humanidade. “Há pesquisas
ciência de implementação, ciência orientada importantes baseadas em disrupções menores e
à solução de problemas”, afirma Luiz Eugênio também há grandes disrupções em curso, como
Mello, diretor científico da FAPESP. A Fundação a junção da inteligência artificial com a compu-
oferece tanto oportunidades de financiamento tação quântica. O potencial transformador disso
para projetos de curta duração, como os auxílios é enorme e, como em exemplos anteriores, não
à pesquisa, como para os de longa duração, caso é possível prever ou imaginar hoje o que irão re-
dos projetos temáticos, com cinco anos, e dos presentar no futuro.” n
Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid),
com até 11 anos, que permitem a pesquisadores
investir em trabalhos de fôlego sem a pressão por Artigo científico
publicar resultados rápidos. Em 2022, a FAPESP PARK, M. et al. Papers and patents are becoming less disruptive over
lançou uma nova iniciativa, o Programa Geração, time. Nature. v. 613, p. 138-44. 5 jan. 2023.

PESQUISA FAPESP 325 | 35


ENTREVISTA LUCIANA SANTOS

PRECISAMOS
DE NOVOS
ARRANJOS A ministra
em São Paulo

A nova ministra do MCTI fala dos planos Na entrega do Prêmio Carolina Bori, a
senhora disse que o MCTI vai enfrentar
de recuperação do financiamento público a desigualdade de gênero na distribuição
de bolsas. Quais são os planos?
para pesquisa e de como combater Essas coisas exigem uma imersão na rea-
a desigualdade de gênero na ciência lidade objetiva das meninas que estão na
graduação ou mesmo antes da graduação.
Esse foi o foco do que tentamos desenvol-
Fabrício Marques ver em uma iniciativa em Pernambuco, o
Futuras Cientistas, por meio do Centro

A
de Tecnologias Estratégicas do Nordeste,
engenheira eletricista Luciana Barbosa de Oli- o Cetene. O Futuras Cientistas é um pro-
veira Santos é a primeira mulher a assumir o grama voltado para alunas de escolas pú-
Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação blicas do ensino médio. Os resultados são
(MCTI). Formada pela Universidade Federal de extraordinários: 70% delas passaram no
Pernambuco (UFPE), foi secretária de Ciência, Enem em áreas relacionadas a engenha-
Tecnologia e Meio Ambiente de Pernambuco entre 2009 e rias, matemática, física. Mas, quando se vai
2010 e tem extensa carreira política no estado. Filiada ao Par- analisar a carreira e fazer um diagnóstico
tido Comunista do Brasil, foi prefeita de Olinda entre 2001 e da participação no mestrado e no douto-
LÉO RAMOS CHAVES / REVISTA PESQUISA FAPESP

2008 e deputada federal por dois mandatos, de 2011 a 2018. rado, a fixação das meninas é mais com-
À frente do MCTI, estabeleceu como prioridades iniciais plicada. Muitas param para ter filhos e são
a recuperação do financiamento público para ciência, tec- prejudicadas, por exemplo, em avaliações
nologia e inovação e o combate a desigualdades de gênero na carreira. A mulher fica na retaguarda
na ciência. Em 10 de fevereiro, ela esteve em São Paulo para da família. Nosso objetivo é aprimorar as
participar da entrega do Prêmio Carolina Bori Ciência & experiências, talvez reuni-las em um pro-
Mulher, concedido há quatro anos pela Sociedade Brasileira grama único e tentar traçar um fluxo que
para o Progresso da Ciência (SBPC). No dia seguinte, deu responda às contradições concretas que
uma entrevista a Pesquisa FAPESP: as mulheres vivenciam.

36 | MARÇO DE 2023
Sobre o financiamento da pesquisa, a O investimento público em pesquisa e Em quais outras áreas da indústria se-
medida provisória (MP) que contingen- desenvolvimento no Brasil não é peque- riam necessários projetos e ações mais
ciava o dinheiro do Fundo Nacional de no quando comparado ao aplicado em abrangentes?
Desenvolvimento Científico e Tecnoló- muitos países, mas a participação das Temos pilares para dar os primeiros pas-
gico (FNDCT) perdeu a validade em 5 empresas é relativamente mais baixa. sos e repensar a política de ciência e tec-
de fevereiro, mas os recursos aprovados Como envolvê-las nesse esforço? nologia no Brasil. Um deles são as indica-
no orçamento não levam isso em conta. Um histórico de estímulo a algumas ca- ções do grupo de trabalho de transição,
Como garantir mais recursos? deias produtivas tem sido de isenção. que reuniu quadros que acompanham
Nós tivemos um apagão na ciência no Você retira alguns impostos e as empre- o setor; o outro é o Plano Nacional de
governo anterior, que foi muito além da sas investem em inovação. É um pouco, Ciência e Tecnologia – o último que teve
narrativa negacionista no enfrentamento por exemplo, o que acontece na indús- no Brasil foi há 12 anos. Uma estratégia
da Covid-19. Houve uma redução drástica tria eletroeletrônica. O Padis, um plano nacional precisa garantir soberania e au-
no financiamento. Os recursos discricio- de apoio ao desenvolvimento da indús- tonomia para o país. É preciso diminuir
nários do ministério passaram de R$ 11 tria de semicondutores, previa isso. Nós a nossa dependência. A Covid-19 revelou
bilhões para R$ 2,7 bilhões. O FNDCT, ainda não temos o domínio tecnológico o quanto isso é nefasto no mundo todo.
composto por recursos da iniciativa pri- dos chips de alta complexidade, mas há
vada como contrapartida de isenções e condições de desenvolver competências O que pode ser resgatado da estratégia
que é uma grande solução que se deu há no país. A experiência do Ceitec [Centro de 12 anos atrás?
décadas no Brasil, foi contingenciado. Nacional de Tecnologia Eletrônica Avan- Definimos 13 áreas estratégicas, que pas-
A MEI [Mobilização Empresarial pela çada] revelou isso. Chegamos a ocupar sam pelo fortalecimento de tecnologias
Inovação] juntou-se com a academia e quase metade do mercado nacional de que se chamam portadoras de futuro, co-
foi possível aprovar uma lei que proibiu chips veiculares. A lógica tem sido de mo a biotecnologia, a nanotecnologia, a
o contingenciamento em 2021. Mesmo isenção, mas creio que, em alguns seto- agenda das mudanças climáticas, a transi-
assim, veio uma MP, a de nº 1.136, para res mais dinâmicos, devemos estimular ção energética, a biodiversidade da Ama-
poder bloquear esse recurso de forma es- ações de compartilhamento. Precisamos zônia. Nós já temos uma boa inserção em
calonada até 2026. A medida caducou e promover a participação das empresas muitas dessas áreas. Na aeroespacial, te-
há um compromisso do governo de man- na inovação. A demonstração disso pode mos uma constelação de satélites, que são
dar um projeto de lei abrindo um crédito ser vista na mobilização para preservar o os CBERS, lançados em parceria com a
para resgatar essa parte contingenciada FNDCT. A lei de contingenciamento zero China. Queremos desenvolver o CBERS-6.
de R$ 4,2 bilhões, alcançando o total de só existiu porque a indústria se engajou. Essa é uma das agendas que o presidente
R$ 9,9 bilhões de arrecadação prevista Parcelas significativas do setor produtivo terá na viagem à China. Temos o complexo
para o fundo. Estamos concentrados em têm convicção desse caminho. industrial de saúde. Produzimos vacinas
ampliar o financiamento. E precisamos contra a Covid-19 no Butantan e na Fio-
de novos arranjos. A senhora mencionou o Ceitec, um cen- cruz, mas não os insumos. Os eixos estra-
tro de produção de semicondutores que tégicos precisam ser atualizados. Vamos
Que tipo de arranjo? estava em processo de liquidação por- realizar uma nova Conferência Nacional
Debati com o presidente da Petrobras, que, segundo o governo, dava prejuízo. de Ciência e Tecnologia com esse objetivo.
Jean Paul Prates, a necessidade de cuidar Como pretende resgatar essa experiên-
da transição energética. Queremos inves- cia em bases sustentáveis? As bolsas do CNPq e da Capes serão rea-
tir em energias renováveis. Temos uma O Ceitec não teve uma política de com- justadas em 40%, mas isso será suficien-
herança positiva de usinas hidrelétricas, pras do Estado e isso precisa existir, pois te para reverter a perda de interesse dos
além de parques eólico e solar conside- faz muita diferença em qualquer cadeia jovens pela carreira científica?
ráveis. Precisamos ter a capacidade de produtiva. Veja o caso do petróleo e do Isso é um fenômeno mundial, mas no
produzir os insumos para as placas foto- gás: se a Petrobras compra navio brasilei- Brasil ele também pode ser explicado por
voltaicas. A grande estrela do momento é ro, há estaleiros nacionais. Se não com- um processo recente de desqualificação
o hidrogênio verde. Isso tudo foi discutido pra, os estaleiros fecham. Uma política da nossa base científica. No governo an-
com o presidente da Petrobras e quere- de compras aumenta os investimentos terior, as universidades foram tratadas
mos que o BNDES também entre nesse de ciência e tecnologia e aquece a cadeia como espaço de balbúrdia. Nossas uni-
pacote de investimento. Fora isso, temos produtiva. Foi equivocada a decisão de versidades reúnem o que há de excelên-
a Lei do Bem e a Lei da Informática, que liquidar o Ceitec porque era deficitário. cia no ensino, na pesquisa, na extensão.
incluem investimentos da iniciativa pri- Países como a China e os Estados Unidos, Me parece que um vértice da questão é
vada. Temos que criar uma situação em que têm uma competição gigante em se- uma ausência de um projeto nacional de
que, a cada R$ 1 que o ministério colocar, micondutores, investem na casa de US$ desenvolvimento. Se houver um projeto
a Petrobras e o BNDES coloquem também 10 bilhões no segmento. Criamos um gru- arrojado, baseado no uso da inteligência
R$ 1, assim como as empresas do setor da po de trabalho para discutir a viabilidade brasileira, as pessoas serão atraídas. É
cadeia produtiva que vai se beneficiar do de médio e longo prazo do Ceitec. É um preciso emular, ostentar, mostrar o quan-
investimento em ciência. Estamos entre os primeiro passo para atualizar a política to a ciência é transformadora, o quanto
10 países que mais publicam papers, mas de semicondutores, que está inserida na isso é belo e revigorante, para que as pes-
isso não se traduz em inovação. agenda de reindustrialização. soas tenham orgulho de ser cientistas. n

PESQUISA FAPESP 325 | 37


BIOCOMBUSTÍVEL

REFORÇO
LÍQUIDO
Emprego de uma única
dose de compostos naturais
na lavoura de cana pode
aumentar a obtenção de
etanol de segunda geração
Marcos Pivetta

EDUARDO CESAR / REVISTA PESQUISA FAPESP


A
aplicação de uma única dose de ternativa mais simples do que tentar promover
compostos naturais pode provocar alterações no DNA da cana com o objetivo de
alterações sutis na parede celular tornar sua biomassa mais facilmente fermentá-
da cana-de-açúcar e aumentar a efi- vel. O genoma da cana é grande e complexo, com
ciência do processo de obtenção do mais de 100 cromossomos, muitos deles repeti-
etanol de segunda geração, produ- dos, uma característica que dificulta a criação
zido no Brasil a partir do bagaço e de linhagens transgênicas viáveis. A obtenção
da palha. Artigo publicado em de- do etanol de primeira geração, que responde por
zembro passado na revista científica mais de 98% desse biocombustível produzido
Biomass and Bioenergy sugere que esse tipo de no país, dispensa a etapa de hidrólise ou sacari-
procedimento pode elevar em 120% a taxa de ficação. Os açúcares do caldo ou melaço da cana
sacarificação do bagaço da cana em 12 meses, no fermentam de forma natural.
momento da colheita. Também chamada de hi- Além dos resultados positivos com o bagaço da
drólise, a sacarificação é o processo químico que, cana, o tratamento com essas substâncias elevou
com o emprego de enzimas, converte moléculas em 36% a sacarificação da soja 90 dias após a apli-
complexas de carboidratos, como a celulose e a cação dos compostos. No capim braquiária, usado
hemicelulose que não fermentam, em açúcares como pastagem na pecuária bovina, o aumento foi
mais simples, como a sacarose, capazes de se de 21% 40 dias após o emprego dos compostos. “O
transformar em etanol. foco principal do experimento era a cana-de açú-
“Se aplicados em excesso, esses compostos po- car, mas essa abordagem também pode produzir
dem matar uma planta, mas fizemos experimentos um pasto aparentemente de digestão mais fácil e
de campo com dosagens muito baixas, que são eli- uma soja com cascas mais resistentes a choques
minadas rapidamente e, ainda assim, promovem mecânicos, algo desejável pela indústria”, comenta
as alterações que buscamos”, diz o bioquímico Buckeridge, coordenador da equipe do estudo e
Wanderley Dantas dos Santos, da Universidade do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia do
Estadual de Maringá (UEM), principal autor do Bioetanol, financiado pela FAPESP e pelo Con-
artigo. “Não identificamos nenhum efeito colateral selho Nacional de Desenvolvimento Científico e
indesejado, as plantas cresceram normalmente e Tecnológico (CNPq). O trabalho contou, ainda,
Pilha de bagaço não houve perda de produtividade.” Desde 2008, com o apoio do Centro de Pesquisa e Inovação
de cana-de-açúcar quando fez estágio de pós-doutorado na equipe de Gases de Efeito Estufa (RCGI), uma iniciativa
em usina do interior
paulista: resíduo
do botânico Marcos Buckeridge no Instituto de bancada pela Fundação e pela Shell, multinacio-
pode ser usado na Biociências da Universidade de São Paulo (IB- nal da área de petróleo e energia.
produção do etanol -USP), Santos pesquisa essa abordagem. Foram testados três compostos que funcio-
de segunda geração Na visão dos autores do trabalho, a abordagem, nam como inibidores de enzimas associadas à
denominada engenharia fisiológica, seria uma al- síntese de lignina na cana e em outras plantas: o

PESQUISA FAPESP 325 | 39


ácido metilenodioxi cinâmico (MDCA), o ácido Imagem de microscopia
piperolínico (PIP) e a daidzina (DZN). Ao lado eletrônica mostra
a presença de lignina
da celulose e da hemicelulose, a lignina, uma mo- (pintada de amarelo) na
lécula aromática, está presente na parede celular parede celular do colmo
das plantas terrestres, à qual confere resistên- da cana-de-açúcar
cia mecânica e rigidez, além de funcionar como
uma barreira para a entrada de patógenos. Se não
houvesse lignina, as plantas, literalmente, não
parariam em pé e não teriam um sistema vascu-
lar impermeável capaz de transportar água das

D
raízes até seu tronco.

iferentes dosagens dos compostos


foram diluídas em água e aplicadas
na forma de spray sobre folhas e
raízes das plantas em etapas dis-
tintas de seu crescimento. Ao final 1

do experimento, os pesquisadores
determinaram o melhor momento ma, um tecido de preenchimento dos vegetais.
e a dosagem mais eficaz para a apli- É possível que essa redistribuição da lignina em
cação das substâncias. O PIP foi o diferentes partes da cana tenha sido a respon-
composto que apresentou melhor desempenho. sável pela maior eficiência de sacarificação re-
Grosso modo, metade do bagaço de cana é cons- portada no estudo.
tituído por celulose, um quarto de hemicelulose Para o bioquímico Mario Murakami, diretor
e um quarto de lignina. Embora essencial para científico do Laboratório Nacional de Biorreno-
a planta, a lignina é um composto que dificulta váveis (LNBR), de Campinas, ligado ao Ministé-
a obtenção do etanol de segunda geração. Por rio da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), o
não ser um açúcar, não fermenta. Mas esse não emprego de compostos que modulam a síntese
é o problema. Sua presença na biomassa da cana de lignina é uma abordagem interessante para
torna muito mais complexo e caro o processo de se tentar aumentar a eficiência do processo de

FOTOS 1 DEBORA LEITE / MARCOS BUCKERIDGE  2 WANDERLEY DANTAS DOS SANTOS / UEM  3 MAXUEL DE OLIVEIRA ANDRADE / RENATA RABELO / LNBR
transformar os carboidratos longos da celulose obtenção de etanol de segunda geração. Ele con-
e da hemicelulose, originalmente não passíveis sidera que os resultados apresentados por seus
de fermentação, em açúcares menores, esses sim colegas da UEM e USP são promissores, mas
aptos a se transformar em etanol. Além de ser precisam ser validados em condições tipicamente
trabalhoso separá-la da celulose e da hemicelu- empregadas pela indústria. “Esses experimentos Pés de cana-de-açúcar
em Maringá que
lose presentes na parede celular, a lignina produz precisam ser feitos em condições mais próximas receberam tratamento
substâncias que atrapalham o processo químico das que são usadas pelas empresas que produzem com moduladores
de sacarificação. etanol de segunda geração para ver se o ganho de lignina
Hoje, para que ocorra a hidrólise da biomas-
2
sa da cana, são aplicados tratamentos térmicos
e um coquetel de enzimas no bagaço da planta.
Essa etapa é a que mais encarece o processo de
produção do etanol de segunda geração e respon-
de por pelo menos 30% de seu custo final. “Não
podemos simplesmente reduzir a quantidade de
lignina em uma planta. Isso seria prejudicial pa-
ra o organismo”, comenta Buckeridge. “Quando
examinamos no microscópio a parede celular
da cana que submetemos ao tratamento com os
compostos, não vimos diferença alguma. As al-
terações devem ser muito sutis.”
No artigo, os pesquisadores dizem que o uso
dos compostos não diminuiu a quantidade total
de lignina no bagaço da cana. Também não mo-
dificou sua composição. Porém eles averigua-
ram que a concentração desse polímero orgânico
apresentou alterações em diferentes tecidos da
planta. Aumentou ligeiramente na parte fibrosa
e nos vasos condutores e diminuiu no parênqui-

40 | MARÇO DE 2023
A BUSCA POR UM COQUETEL DE ENZIMAS MELHOR
A degradação da parede celular da cana em açúcares fermentáveis depende da ação desse produto

Uma etapa crucial na produção do etanol de são empregados na fabricação do coquetel Para o botânico Marcos Buckeridge, do Ins-
segunda geração é o emprego do coquetel en- enzimático vendido comercialmente para pro- tituto de Biociências da Universidade de São
zimático encarregado de promover a hidróli- mover a sacarificação do bagaço da cana e Paulo (IB-USP), diferentes microrganismos de-
se da celulose e da hemicelulose. Por meio da possibilitar a produção de etanol de segunda vem ser usados para se tentar produzir coque-
ação de um conjunto de enzimas, os carboi- geração. Em um trabalho publicado no fim de téis enzimáticos que promovam uma hidrólise
dratos longos e complexos desses dois compo- 2022 na revista Bioresource Technology, os mais eficiente e simples. Além do conhecido
nentes do bagaço da cana-de-açúcar são que- pesquisadores do LNBR reportaram que con- T. reesei, fungos de origem amazônica, insetos,
brados em açúcares menores, glicose e xilose, seguiram reduzir o tempo de produção das como baratas, e a própria cana têm sido estu-
que são passíveis de fermentar. O mercado de enzimas de 14 para 9 dias. “Nosso coquetel dados como possíveis fontes de enzimas que
enzimas para essa finalidade é dominado pela enzimático é de baixo custo e estável. O pro- podem ser úteis para melhorar esse processo.
empresa dinamarquesa Novozymes. “O em- duto dura um ano em temperatura ambiente”, “A origem das enzimas não importa”, comenta
prego do coquetel enzimático representa en- conta Murakami. Ele já foi testado na planta- o pesquisador da USP. “O que nós precisamos
tre 30% e 50% do custo final da produção de -piloto do laboratório e conseguiu degradar é dominar a tecnologia de produção de um
etanol de segunda geração”, diz o bioquímico cerca de 60% dos carboidratos longos da bio- coquetel enzimático eficiente. O alto custo do
Mario Murakami, diretor científico do Labora- massa da cana, um desempenho semelhante produto importado afasta investimentos no
tório Nacional de Biorrenováveis (LNBR). Por ao de alguns produtos comerciais. setor de etanol de segunda geração.”
isso, grupos de pesquisa no Brasil procuram
3
alternativas mais em conta e, idealmente, mais
eficientes do que os produtos hoje disponíveis.
Com o emprego da técnica de edição gené-
Seis genes do
tica Crispr-Cas9, uma equipe coordenada por fungo Trichoderma
Murakami modificou em 2019 seis genes do reesei foram
fungo Trichoderma reesei para maximizar sua modificados para
aprimorar sua ação
produção de enzimas de interesse biotecno-
na degradação
lógico, sobretudo as usadas para a hidrólise da parede
de biomassa vegetal. Fungos desse gênero celular da cana

de sacarificação se mantém e não há nenhuma em laboratório, podem se tornar no futuro um


perda de eficiência no processo”, comenta Mura- produto comercial para o setor sucroalcooleiro
kami. “Também é preciso saber quais seriam os e talvez para outros ramos agrícolas. Já obtive-
eventuais impactos do uso desses compostos no ram patente no Brasil sobre o seu emprego em

E
custo da produção do etanol de segunda geração.” culturas agrícolas, e Santos e um grupo de alunos
do Departamento de Bioquímica da UEM cons-
sses questionamentos deverão ser res- tituíram uma startup, a BioSolutions, para tentar
pondidos em breve. Santos e Bucke- comercializar os compostos. Criada em 2021, a
ridge contam que a Raízen, uma das empresa conta com suporte do Serviço Brasileiro
duas empresas que produzem etanol de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae)
de segunda geração no país (a outra é do Paraná e do Instituto Tim. n
a GranBio), vai começar a testar o em-
prego dos compostos moduladores de
lignina em uma área-piloto de produ- Projetos
ção ainda neste semestre. “É possível 1. INCT 2014: Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia do Bioe-
tanol (nº 14/50884-5); Modalidade Projeto Temático; Convênio
que daqui a um ano tenhamos uma noção mais CNPq­‑INCT; Pesquisador responsável Marcos Buckeridge (USP);
clara se o aumento da sacarificação se mantém em Investimento R$ 5.261.561,47.
uma operação comercial”, pondera o pesquisador 2. Centro de Pesquisa e Inovação de Gases de Efeito Estufa – RCG2I
(nº 20/15230-5) Modalidade Programa Centros de Pesquisa em
da UEM. O novo experimento na empresa, uma Engenharia; Convênio BG E&P Brasil (Grupo Shell); Pesquisador
joint-venture da Shell e do grupo brasileiro Cosan, responsável Julio Meneghini (USP); Investimento R$ 13.604.936, 28.
faz parte das atividades de pesquisa do RCGI.
Artigo científico
Os pesquisadores envolvidos nos estudos apos-
SANTOS, W. D. et al. Natural lignin modulators improve lignocellulose
tam que os moduladores de lignina, que tam- saccharification of field-grown sugarcane, soybean, and brachiaria.
bém podem ser produzidos de forma sintética Biomass and Bioenergy. 5 dez. 2022.

PESQUISA FAPESP 325 | 41


U
ENERGIA RENOVÁVEL m projeto conduzido pela Petrobras em
parceria com o Instituto Senai de Inova-
ção (ISI) deverá resultar em uma tecno-
logia, inédita no país, capaz de reduzir o
custo de instalação de parques de energia
eólica offshore, aquela gerada a partir dos
ventos que sopram em alto-mar. A equipe
de pesquisadores brasileiros criou um
equipamento, nomeado de Bravo – acrôni-
mo de boia remota de avaliação de ventos oceânicos –,
dotado de um sistema de sensoriamento que cap-
ta dados meteorológicos e oceanográficos de forma
automatizada, entre eles a velocidade e a direção dos
ventos marítimos. Esses dados são essenciais para a
realização de estudos de potencial energético neces-
sários para a construção de usinas eólicas no mar.
Desenvolver tecnologias para a exploração da ener-
gia gerada pelos ventos oceânicos é importante por-
que o Brasil tem vasto litoral e grande área marítima.
Estudos recentes revelam que muitas regiões costei-
ras são adequadas para a instalação de usinas eólicas
por contarem com ventos em velocidades adequadas
para a geração de energia.
“Diversas multinacionais do setor de energia têm
demonstrado interesse em explorar nosso potencial
eólico offshore. O projeto da Bravo proporcionará a
nacionalização de uma tecnologia usada no mapea-
mento dos recursos eólicos marítimos. Não existe,

PARA MEDIR
no momento, um fornecedor local com equipamento
próprio validado para essa aplicação”, afirma o enge-
nheiro mecânico Antonio Medeiros, coordenador de
pesquisa e desenvolvimento do ISI em Energias Re-

VENTOS
nováveis, sediado em Natal (RN). O projeto também
teve a participação do ISI em Sistemas Embarcados,
localizado em Florianópolis (SC).
Algumas empresas nacionais, informa o especia-
lista, já oferecem boias que mensuram parâmetros

OCEÂNICOS
meteorológicos (temperatura do ar, umidade relati-
va e pressão atmosférica) e oceanográficos (ondas e
correntes marítimas). “A maioria desses dispositi-
vos também mede ventos de superfície, que sopram

Pesquisadores brasileiros
criam dispositivo fundamental
para a instalação de
usinas eólicas em alto-mar
Yuri Vasconcelos
PETROBRAS

42 | MARÇO DE 2023
a até 2 metros [m] de altura. Para a implantação de várias alturas. O tempo de viagem da luz até as par-
um projeto eólico em alto-mar, contudo, precisamos tículas e de volta determina a altura em que ocor-
conhecer o comportamento dos ventos acima de 100 reu a reflexão. Um fenômeno físico chamado efeito
m, na altura do rotor dos aerogeradores [ou turbinas Doppler faz com que a frequência da luz refletida seja
eólicas]”, diz Medeiros. Ele destaca que boias como a ligeiramente diferente da original enviada pelo Lidar.
Bravo são uma alternativa às torres fixas de medição, Essa diferença determina a velocidade da partícula
cujo custo de instalação é maior. e, consequentemente, do vento na altura de medição.
O engenheiro naval Alexandre Nicolaos Simos, As informações são transmitidas para um servidor
do Departamento de Engenharia Naval e Oceânica em nuvem por meio de comunicação por satélite,
da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo para serem posteriormente analisadas”, informou a
(Poli-USP), avalia como positivo o desenvolvimen- Petrobras por meio de sua assessoria de imprensa.
to da Bravo. “Temos uma carência muito grande no Módulos fotovoltaicos e duas pequenas turbinas eó-
país de medidas de monitoramento do oceano. As licas conferem autonomia energética à boia.
medidas de vento tomadas no ambiente marítimo são Os dados coletados pela Bravo durante o período
fundamentais para que se possa fazer corretamente de testes serão comparados com informações colhi-
o planejamento dos projetos de parques eólicos off- das por outro sensor Lidar fixo instalado no Terminal
shore”, ressalta. Simos lidera um estudo, financiado Salineiro de Areia Branca, porto localizado a 26 km
pela FAPESP e por outras instituições, voltado ao da costa, próximo de onde a boia foi lançada.
desenvolvimento de turbinas eólicas flutuantes – a No mundo, segundo a Petrobras, existem equipa-
maioria das turbinas offshore no mundo é fixa e tem mentos com sensor Lidar flutuante em países como
como fundação pilares fincados no leito marinho (ver Estados Unidos, França, Reino Unido e Noruega. A
Pesquisa FAPESP no 290). companhia estima uma redução de 40% no custo da
medição eólica offshore com a Bravo em relação à con-
PERÍODO DE TESTES tratação de uma empresa do exterior para a presta-
O primeiro modelo da Bravo começou a ser testado ção do serviço no Brasil. “A Bravo poderá contribuir
no final de novembro. A boia foi lançada a cerca de 15 para o aumento da oferta dos serviços e redução do
quilômetros (km) da costa de Areia Branca, municí- custo de implantação dos projetos de eólica offshore
pio do litoral norte potiguar, onde deverá permanecer no país”, informou a Petrobras.
por pelo menos sete meses. Com 2,5 m de diâmetro e Doutor em oceanografia e coordenador do La-
3,5 m de altura, ela é dotada de um casco de fibra de boratório de Hidrodinâmica Costeira do Instituto
vidro, uma estrutura metálica que faz conexão com o Oceanográfico (IO) da USP, o físico Marcelo Dotto-
sistema de ancoragem e um suporte para a instalação ri vê como positiva a tentativa de nacionalização de
dos sensores, entre eles um anemômetro ultrassôni- tecnologias empregadas em projetos oceanográficos.
co para a medição da direção e velocidade do vento “Temos uma riqueza enorme no mar e, por isso, o
a nível do mar e um sensor anemométrico remoto desenvolvimento de dispositivos como a Bravo são
com tecnologia Lidar (detecção de luz e medida de relevantes. Não falo apenas da boia em si, mas do con-
distância) para a coleta dos parâmetros do vento até junto de sensores instalados nela”, destaca. “Somos
cerca de 200 m acima do nível do mar. altamente dependentes de equipamentos produzidos
Bravo:
boia encontra-se
O Lidar funciona assim: o sensor envia pulsos de no exterior. Precisamos romper essa dependência.” n
em teste no luz laser para cima, que são refletidos de volta por
litoral potiguar partículas ou aerossóis carregados pelo vento, em Os projetos consultados para esta reportagem estão listados na versão on-line.

PESQUISA FAPESP 325 | 43


ECOLOGIA

PEIXE
PARA TODO
GOSTO 4

44 | MARÇO DE 2023
Eventos geológicos dos últimos 55 milhões
de anos reorganizaram bacias hidrográficas
e contribuíram para o surgimento da
megadiversidade de espécies da América do Sul
Ricardo Zorzetto

T
em aruanã, bagre, cascudo, candiru e e originaram novas espécies, como se observou na
curimba. E ainda dourado, lambari, Amazônia com a formação do arco Purus por volta
linguado, matrinxã, peixe-galho, de 20 milhões de anos atrás, que separou as porções
piranha, surubim, tambaqui, tuvira, leste e oeste dessa bacia hidrográfica.
uaru. Com uma das mais extensas A ecóloga brasileira Fernanda Cassemiro, da
redes hidrográficas do mundo, a Universidade Federal de Goiás (UFG), e 20 co-
América do Sul abriga uma variedade de peixes laboradores de instituições no país e no exterior
de água doce tão grande que é possível enume- confirmaram a importância do remodelamento da
rar vários deles para cada letra do alfabeto. São paisagem para gerar a diversidade atual de peixes
aproximadamente 5.800 espécies conhecidas da América do Sul, uma hipótese centenária, ao
(pouco mais de um terço das identificadas no analisar os dados de distribuição e os pulsos de
mundo) e, estima-se, quase 3 mil por descobrir. diversificação das espécies atuais e confrontá-los
Nos rios, córregos, lagos e lagoas temporárias com os principais eventos geológicos do continen-
dessa região do planeta, há peixe com as mais te nos últimos 100 milhões de anos. “Observamos
FOTOS  1 E 6 TIAGO CARVALHO / UNIVERSITY OF LOUISIANA AT LAFAYETTE  2, 3, 4E 5  JAMES ALBERT / UNIVERSITY OF LOUISIANA AT LAFAYETTE

variadas formas, cores e tamanhos. Do minúsculo que os padrões de concentração de espécies e a


Priocharax nanus, um peixinho alongado e quase ocorrência de espécies endêmicas estão forte-
transparente de 1,5 centímetro de comprimento, mente associados ao tempo e ao local de even-
ao colossal Arapaima gigas, o pirarucu, de até 3 tos específicos de alteração na paisagem”, conta
metros e cauda avermelhada, cujas escamas, da Cassemiro, autora principal do artigo publicado
dimensão de um polegar, formam uma couraça na PNAS. “Estudos anteriores não apresentaram
contra o ataque de predadores. Toda essa diver- uma resposta tão abrangente.”
sidade, a maior do mundo, desperta há tempos a Os pesquisadores, primeiro, compilaram 306
questão: por que há tanto peixe por aqui? mil registros de ocorrência de 4.967 espécies de
Uma explicação abrangente foi apresentada em peixes de água doce em 490 bacias hidrográficas
um artigo publicado em janeiro na revista PNAS. da América do Sul (ver mapa). Depois, reconstruí-
Fenômenos geológicos dos últimos 55 milhões de ram a história evolutiva de 3.169 espécies das quais
anos teriam causado ao menos cinco reconfigura- havia informações no GenBank, o maior banco de
ções de grande porte nas bacias hidrográficas sul- dados internacional de sequências de DNA. Essa
-americanas que promoveriam surtos importantes história evolutiva é representada em um gráfico
de formação de novas espécies, com um pequeno chamado árvore filogenética, que mostra o grau
nível de extinção. Ocorridas em intervalos de tempo de parentesco entre as espécies e permite estimar
A partir do alto, longos, essas transformações na paisagem produzi- quando umas se separaram das outras. O passo se-
peixe-borboleta ram dois efeitos principais. Em algumas situações, guinte foi alimentar um modelo matemático com
(Thoracocharax conectaram sistemas de rios e lagos antes separa- esses dados e verificar se os grandes surtos de for-
stellatus), cascudo
(Ancistrus sp.), linguado
dos, provocando em algumas áreas a mistura de es- mação e desaparecimento de espécies coincidiam
(Apionichthys finis), pécies distintas, como aconteceu entre 33 milhões no tempo com os fenômenos geológicos que cau-
sarapó ou tuvira e 23 milhões de anos atrás com o surgimento de um saram alterações importantes na rede hidrográfica.
(Gymnotus carapo), vale ligando a bacia do rio da Prata e alguns rios “Esse é certamente um dos trabalhos mais am-
peixe-galho
(Farlowella kneri) e
da costa brasileira. Em outras, criaram barreiras plos sobre a distribuição e a evolução dos pei-
piau-três-pintas que bloquearam a circulação dos peixes, isolando xes neotropicais. A análise de informações de
(Leporinus friderici) populações que passaram a evoluir separadamente um número tão grande de espécies é inédita”,

PESQUISA FAPESP 325 | 45


afirma o ictiólogo Alexandre Cunha Ribeiro, da No estudo publicado na PNAS, a hipótese ini-
Universidade Federal de Mato Grosso, que não cial dos pesquisadores era a de que as taxas de
participou do estudo. “A história das drenagens formação e de desaparecimento de espécies esta-
sul-americanas, no entanto, é complexa e qualquer riam cronologicamente vinculadas aos principais
associação direta entre os eventos de evolução da eventos geológicos. Se estivesse correta, o modelo
paisagem e suas consequências para a diversifi- matemático usado por eles deveria resgatar va-
cação da biota deve ser vista como hipótese a ser riações abruptas no ritmo de surgimento e ex-
corroborada ou refutada”, explica. tinção de espécies simultâneas às mudanças na
Para Naercio Menezes, ictiólogo especialista em paisagem. “Quando comparamos a figura gerada
peixes neotropicais e pesquisador sênior do Museu pelo modelo com as datas e os locais dos eventos
de Zoologia da Universidade de São Paulo (USP), geológicos, o encaixe foi perfeito”, relata o ecó-
o estudo deve causar impacto por ser pioneiro em logo Thiago Rangel, também da UFG e coautor
reconstruir a distribuição, origem e dispersão de da pesquisa. “Conseguimos evidências sólidas de
peixes usando dados genéticos disponíveis em que está correta a ideia de que os eventos geoló-
um banco internacional. Ele, no entanto, descon- gicos influenciariam o surgimento e a extinção
fia da qualidade desses dados, depositados por de espécies, sugerida por naturalistas como o
outros pesquisadores. “A análise se tornaria mais alemão Alexander von Humboldt [1769-1859] e
robusta se os autores tivessem confirmado, averi- o britânico Alfred Wallace [1823-1913].”
guando em coleções de universidades e museus, a Concluída a separação da África, há cerca de
identificação correta dos exemplares usados para 100 milhões de anos, as terras do imenso bloco
construir a árvore filogenética”, afirma. rochoso que forma a América do Sul passaram
muito tempo sob influência dos oceanos. Toda
vez que o clima se tornava mais quente e o nível
do mar subia – em alguns momentos ele esteve
O CONTINENTE DOS PEIXES 200 metros acima do atual –, suas águas avança-
vam centenas de quilômetros continente adentro,
O mapa mostra a distribuição de 4.967 espécies de água ocupando as terras baixas e isolando os sistemas
doce na América do Sul. As áreas vermelhas e alaranjadas preexistentes de rios. Quando o planeta resfria-
concentram um número maior e as azuis e verdes menor va, a água do mar retrocedia, tornando a planície
costeira mais extensa e possibilitando o surgi-
mento de novas conexões entre os cursos d’água
nessas áreas. “Os avanços e recuos dos oceanos
devem ter sido importantes para o surgimento
de novas espécies, em especial na periferia do
continente”, explica o ictiólogo Roberto Reis, da
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande
do Sul (PUC-RS), coautor da pesquisa.
Por volta de 55 milhões de anos atrás, a rede hi-
drográfica de uma vasta área ao norte da América
do Sul, hoje correspondente ao oeste da bacia ama-
zônica e à bacia do rio Orinoco, formou um único
sistema de rios que permaneceu interconectado até
33 milhões de anos atrás, com ligações também com
Concentração a bacia do Prata, no centro-sul do continente. Al-
de espécies guns milhões de anos mais tarde, a colisão da placa
tectônica sul-americana com a placa de Nazca, no
Pacífico, provocou deformações na crosta terrestre
que elevaram a porção central da cordilheira dos
Andes. O soerguimento dessa região originou o
Alta

altiplano andino, um planalto que se estende pela


Bolívia e partes do Peru, e uma barreira chamada
arco Michicola próximo ao norte da Argentina.
Baixa

Essas formações interromperam o fluxo entre os


cursos d’água do oeste da Amazônia e os da bacia
do Prata, que desde então se comunicam de modo
intermitente nos períodos de cheias.
Quase ao mesmo tempo, a distensão da crosta
fez surgir um vale indo do sul e ao sudeste do que
FONTE  CASSEMIRO, F. A. S. ET AL. PNAS. 2023 hoje é o Brasil que conectou os rios da bacia do

46 | MARÇO DE 2023
Hypostomus myersi Prata com os da planície costeira do Atlântico. que o arco Michicola separou a rede hidrográfica
(cascudo), capturado Essa ligação foi interrompida entre 23 milhões e do oeste da Amazônia da bacia do rio da Prata.
na bacia do rio Iguaçu, e
Geophagus iporangensis
16 milhões de anos atrás, com o soerguimento das Segundo Reis, da PUC-RS, a América do Sul tem
(acará-iporanga), da serras do Mar e da Mantiqueira. Como resultado, hoje uma megadiversidade de peixes porque, além
bacia do Atlântico Sul surgiu um bolsão de espécies exclusivas (endêmi- de a dinâmica geológica ter favorecido o surgimen-
cas) nas bacias dos rios Paraíba do Sul e Ribeira to de uma grande variedade de espécies, os fatores
de Iguape, inferior em quantidade apenas ao da climáticos ocasionaram um baixo nível de extinção.

N
Amazônia Ocidental. “Aqui não houve formação de grandes desertos
como aconteceu em regiões tropicais da África e
a época em que surgiram essas da Austrália. A região também não foi afetada por
serras, outra importante trans- glaciações tão intensas quanto as que ocorreram
formação aconteceu no norte do na Europa e na América do Norte”, explica.
continente. Movimentos da crosta No trabalho atual, Cassemiro e seus colabora-
e derramamentos de lava ergueram dores identificaram ao menos 3.730 eventos de
o terreno próximo ao curso do rio dispersão de espécies de uma área para outra da
Purus, a oeste de Manaus, dividindo ao meio a bacia América do Sul. Quase metade (45%) deles par-
amazônica. Suas águas, que antes corriam para o tiu das porções oriental e ocidental da Amazônia,
Pacífico, passaram a se comportar de duas formas. sobretudo nos últimos 23 milhões de anos. As es-
Os rios da porção leste foram desaguar no Atlânti- pécies da Amazônia Ocidental, uma das áreas com
co, enquanto, no lado ocidental, as águas ficaram maior endemismo, enriqueceram em especial a ba-
FOTOS  AUGUSTO FROTA / UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ INFOGRÁFICO ALEXANDRE AFFONSO / REVISTA PESQUISA FAPESP

represadas em um imenso pântano, o chamado lago cia do rio da Prata, com picos de migração em três
ou sistema Pebas (ver Pesquisa FAPESP nº 125). períodos entre 30 milhões e 10 milhões de anos
Por volta de 16 milhões de anos atrás, a elevação atrás. Hoje formada pelos rios Paraguai e Paraná
da porção norte dos Andes, entre o Peru e a Ve- e seus afluentes, a bacia do Prata também recebeu
nezuela, e o acúmulo de sedimentos nas bacias a nos últimos 20 milhões de anos uma proporção
leste da cordilheira forçaram os rios a escoar para grande de espécies dos rios da costa do Atlântico,
oriente e, por volta de 10 milhões de anos atrás, a região com a qual continuou parcialmente co-
superar o arco Purus, criando o Amazonas. nectada após a ascensão das serras do Mar e da
Esses rearranjos na paisagem proporcionaram Mantiqueira. Já a Amazônia Oriental alimentou
uma diversificação de peixes heterogênea no tempo principalmente a rede hidrográfica da região das
e no espaço. A análise da árvore filogenética permi- Guianas e, mais recentemente, após a formação
tiu identificar ao menos cinco mudanças abruptas do Amazonas, a porção oeste da bacia amazônica.
no ritmo de surgimento de novas espécies: duas “Os resultados do estudo mostram que as mu-
delas entre 30 milhões e 23 milhões de anos atrás, danças na taxa de diversificação antecedem a subi-
quando a bacia do rio da Prata se desconectou da da do norte dos Andes e não se restringem à bacia
Amazônia e se ligou aos rios da costa atlântica; e amazônica”, afirma Rangel, da UFG. Ribeiro, da
três entre 20 milhões e 7 milhões de anos atrás, UFMT, completa: “Esse trabalho reforça a ideia
época em que ocorreram as transformações re- de que o continente é povoado por uma fauna de
centes na bacia amazônica. As mudanças na taxa água doce antiga, cuja diversidade se acumulou
de formação das espécies foram impulsionadas ao longo de milhões de anos”. n
por três linhagens de bagres, peixes de couro com
órgãos sensitivos (barbilhões) ao redor da boca, e
pelos cascudos, também de couro, com o corpo co- Artigo científico
berto por placas ósseas. Essas alterações de ritmo CASSEMIRO, F. A. S. et al. Landscape dynamics and diversification of the
ocorreram em especial a partir do momento em megadiverse South American freshwater fish fauna. PNAS. 3 jan. 2023.

PESQUISA FAPESP 325 | 47


ARQUEOLOGIA

ARAUCÁRIA
NA
PEDRA
Pintura em sítio pré-histórico do
interior do Paraná seria o primeiro registro
da espécie em arte rupestre

Marcos Pivetta 

Treze araucárias e figuras


antropomórficas foram
encontradas em um abrigo
sob rochas
E
m uma meia encosta perto
do rio Piraí-Mirim, cerca
de 180 quilômetros a no-
O local da
SP
roeste de Curitiba, um pa- MS

redão de arenito inclina-


do para frente formou um Londrina
Área do
estudo descoberta
conjunto de abrigos sob a rocha. Esse
tipo de cavidade natural produz em sua O sítio arqueológico
PARANÁ
base uma área semifechada, relativa-
Ponta
Grossa com a pintura das
mente protegida das intempéries, onde Curitiba
araucárias fica dentro
usualmente são encontrados vestígios de de uma área de 9 mil
ocupação humana do passado remoto. hectares no interior
Em um desses abrigos descobertos SC paranaense, alvo de
em 2021 na zona rural de Piraí do Sul, um projeto de pesquisa
município cortado pelo curso d’água, um
100 km
painel de menos de meio metro quadra-
do estampa uma cena que lembra um
pequeno bosque de araucárias.
Segundo estudo publicado na revista peleológicas da Universidade Estadual do Rio Grande do Sul, também considera
Caderno de Geografia no início de feve- de Ponta Grossa (Gupe-UEPG), autor provável que os Jê tenham sido os auto-
reiro, essa pintura seria a primeira repre- principal do trabalho. “Nossa hipótese res da pintura com os pinheiros, um dos
sentação conhecida em arte rupestre no é de que o painel tenha sido feito por símbolos associados ao estado do Para-
Brasil de árvores da espécie Araucaria membros antigos de povos indígenas do ná. “Desconheço qualquer outro tipo de
angustifolia, a popular araucária, às ve- tronco linguístico Jê.” arte rupestre ou grafismo arqueológico
zes também denominada pinheiro-do- Além do desenho do pequeno bosque relacionado às araucárias. Por isso, esse
-paraná ou pinheiro-brasileiro. de pinheiros-do-paraná, outros 24 pai- sítio tem um caráter especial”, comenta
Descrita na literatura em 1820, A. an- néis com pinturas feitas com pigmentos Corteletti, que não participou do estu-
gustifolia ocorre em terras altas, de clima avermelhados e pretos foram identifi- do. “Diria que é possível que as pinturas
temperado, sobretudo nos três estados cados ao longo de 16,4 m de superfície tenham sido feitas pela etnia Kaingang.
do Sul. A região do novo sítio arqueo- contínua do paredão que forma o Abrigo Como o sítio não foi escavado pela equi-
lógico no Paraná está a pouco mais de das Araucárias, nome dado ao sítio ar- pe que fez o registro, não temos outros
1.100 metros (m) de altitude em relação queológico. “A maior parte dos grafismos materiais associados, ou até mesmo uma
ao nível do mar e abriga exemplares da é de desenhos geométricos”, comenta o cronologia estabelecida, para reforçar a
espécie. A araucária também é encontra- geógrafo e guia de turismo Alessandro hipótese da autoria atribuída aos Jê. Pa-
da em áreas montanhosas da divisa de Giulliano Chagas Silva, do Gupe, um dos ra ter certeza, seria preciso verificar se
São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais, autores da descoberta do sítio arqueoló- há mais elementos da cultura material.”
e, com menor frequência, em partes da gico. “Não encontramos nenhum outro O Abrigo das Araucárias foi um dos 29
Argentina e do Paraguai. A espécie, que desenho com araucárias.” As pinturas, sítios arqueológicos descobertos desde
está ameaçada de extinção, pode viver cujo estado de conservação é muito va- julho de 2021 pelo projeto EspeleoPi-
200 anos e atingir 50 m de altura. riado, contêm impressões digitais, pon- raí, coordenado por membros do Gu-
Esmaecidos ou parcialmente apagados tos, grafismos geométricos e desenhos pe. A iniciativa procurou por cavernas

N
FOTO  RODRIGO JUNGHANS  INFOGRÁFICO ALEXANDRE AFFONSO / REVISTA PESQUISA FAPESP

pela ação da umidade, os traços da pintu- similares a plantas. e abrigos que pudessem ser de interesse
ra rupestre retratam 13 araucárias, com espeleológico ou arqueológico em uma
seu típico caule retilíneo e copa em forma ão há estimativa de quan- área de 9 mil hectares, dentro dos cha-
de guarda-chuva ou cone, e 20 figuras do os desenhos foram mados Campos Gerais do Paraná. Se-
com formas antropomórficas, que lem- produzidos. Ainda não gundo Pontes, mais de uma centena de
bram seres humanos. Algumas árvores foram feitas escavações cavernas foram identificadas nessa re-
parecem estar sendo escaladas por uma no sítio arqueológico, al- gião, das quais 36 apresentam pinturas
pessoa ou talvez um primata arborícola. go previsto para outro rupestres, geralmente compostas por de-
O movimento de ascensão é facilmente projeto de pesquisa. Hoje não há povos senhos geométricos e representações de
justificável: as sementes (pinhões) ficam indígenas vivendo nos arredores do abri- figuras humanas, de animais e, às vezes,
nas pinhas localizadas no topo das arau- go. Mas, antes da chegada dos europeus, de plantas, como o milho. Agora, os con-
cárias e fazem parte da dieta de povos no início do século XVI, essa área do tornos das araucárias riscados na rocha
indígenas, e também de animais. Paraná fazia parte de uma grande faixa se somam a esses registros. n
“A pintura é contínua e mostra arau- de terra do Sul habitada por povos do
cárias maiores e menores que parecem tronco Jê, dos quais descendem as atuais
Artigo científico
representar exemplares velhos e jovens”, etnias Kaingang e Xokleng.
PONTES. H. S. et al. First rupestrian representations of
diz o geógrafo Henrique Simão Pontes, O arqueólogo Rafael Corteletti, da Araucaria angustifolia in Southern Brazil. Caderno de
do Grupo Universitário de Pesquisas Es- Universidade Federal de Pelotas (UFPel), Geografia. v. 33, n. 72. jan-mar. 2023.

PESQUISA FAPESP 325 | 49


NEUROCIÊNCIA

UMA NOVA
POSSÍVEL
CAUSA DA
DEPRESSÃO

U
m grupo de pesquisadores do ça psiquiátrica marcada por tristeza pro-
Falha na reciclagem
Brasil e da França apresentou longada que pode atingir até 20% das pes-
de componentes dos em um artigo publicado em 2 soas em algum momento da vida. Além
de fevereiro na revista Natu- desse fator biológico, dois outros já haviam
neurônios provoca re Aging uma nova possível sido associados ao surgimento da depres-
causa biológica da depressão: a perda da são: a baixa reposição das células cerebrais
em roedores capacidade dos neurônios de reciclar seus (em especial, os neurônios) e a redução das
componentes velhos ou danificados. Cha- conexões entre essas células. Sozinhos, no
sinais semelhantes
mado de autofagia, que, em grego, significa entanto, eles não explicam todos os casos
aos da doença “devorar a si mesmo”, esse mecanismo da doença, que, assim como outros trans-
de destruição e reaproveitamento dos tornos psiquiátricos, decorre da interação
em seres humanos componentes, quando bem controlado, é das características biológicas do indivíduo
fundamental para a saúde e o bom funcio- com as condições sociais, econômicas, psi-
namento das células. Sua conexão com a cológicas e culturais em que vive.
depressão foi identificada pela equipe do Kapczinski e Lledo chegaram à falha
neurocientista francês Pierre-Marie Lledo, da autofagia como potencial causa da
do Instituto Pasteur, em Paris, em parceria depressão de modo fortuito. Anos atrás,
com o grupo do psiquiatra brasileiro Flávio eles iniciaram uma colaboração para in-
Kapczinski, da Universidade Federal do vestigar o efeito de uma proteína chama-
Rio Grande do Sul (UFRGS). da fator de diferenciação do crescimento
A redução da capacidade de realizar au- 11 (GDF11) sobre a saúde dos neurônios.
tofagia é apenas um dos fatores biológicos Essa proteína favorece o desenvolvimen-
ligados ao surgimento da depressão, doen- to do cérebro, dos vasos sanguíneos e de
Ao longo da Essa molécula era o GDF11, cuja ação e tratados com esse fator de crescimento
restauradora sobre o cérebro havia sido funcionavam melhor e faziam mais cone-
vida, até 20% demonstrada pela neurocientista grega xões com outros neurônios. A evidência
Lida Katsimpardi durante um estágio de de que a autofagia estava por trás desse
das pessoas pós-doutorado na Universidade Harvard, resultado veio de outro experimento. Ao
nos Estados Unidos. Em um artigo publi- inativar geneticamente uma das proteí-
apresentam cado em 2014 na Science, Katsimpardi nas envolvidas na autofagia ou bloqueá-la
um episódio da comprovou que, em roedores, a proteína completamente por meio de compostos
revertia o efeito do envelhecimento por químicos, o efeito protetor se perdeu.
doença, marcado promover a formação de novos neurô- “Descobrir esse papel do GDF11 avan-
nios (neurogênese). Agora no Pasteur, ela ça nossa compreensão da conexão entre
pela tristeza propôs avaliar o efeito do GDF11 sobre a envelhecimento, memória e transtornos
depressão e um sintoma que a acompa- do humor e – talvez o mais emocionante
prolongada nha com frequência, a perda de memó- – aumenta a perspectiva de usar o GDF11
ria, também comum no envelhecimento. como um meio de melhorar o diagnós-

A
tico e o tratamento desses problemas”,
presentados na Nature Aging, escreveram Patrick Piantadosi e Andrew
os resultados dos experi- Holmes, pesquisadores dos Institutos
mentos mostraram que a Nacionais de Saúde (NIH) dos Estados
administração por algumas Unidos, em um comentário sobre o estudo
semanas do GDF11 em ca- publicado na mesma edição da revista.
mundongos idosos, que naturalmente “Esse trabalho é relevante por três mo-
têm níveis mais baixos desse fator de tivos”, afirma a psiquiatra brasileira Eli-
crescimento, foi suficiente para evitar sa Brietzke, da Queen’s University, no
o declínio da memória e os sintomas ca- Canadá, que não participou do estudo.
racterísticos da depressão. Os animais “Por mostrar que há múltiplos mecanis-
tratados passaram a apresentar desem- mos envolvidos na depressão, que não
penho semelhante ao de roedores jovens. é explicada apenas pela falta de neuro-
Já nos jovens, a proteína impediu que transmissores, como a serotonina. Por
desenvolvessem os sinais da depressão indicar que esse transtorno mental não
induzida por corticosterona, o hormônio causa alterações apenas no cérebro, mas
do estresse em roedores. no corpo todo. E por criar a perspectiva
Os pesquisadores também verificaram de que algum dia um tratamento que au-
que, nos animais tratados com GDF11, o mente os níveis de GDF11 possa combater
hipocampo, região cerebral associada à tanto a depressão quanto as queixas de
regulação do humor e à aquisição da me- memória, que são comuns nessa doença,
outros tecidos no embrião e é produzida mória, funcionava melhor, mas não pelo mas não melhoram com os antidepressi-
pelo organismo até a idade adulta. Nos motivo que supunham. “Pensávamos que vos atuais”, explica.
seres humanos, sua síntese declina a par- o efeito do GDF11 fosse decorrente da Embora Kapczinski e sua equipe te-
tir dos 70 anos. neurogênese, que compensaria a perda nham observado que os níveis de GDF11
Havia tempos o pesquisador brasileiro dessas células observada na depressão e estão reduzidos no sangue de pessoas
reunia evidências, em testes com animais e no envelhecimento”, conta Kapczinski. com depressão, ainda é longo o caminho
seres humanos, de que episódios sucessivos Análises da ação do GDF11 sobre os antes que se chegue a uma terapia para
de depressão causavam danos gradativos a neurônios, porém, mostraram que a me- aumentar seus níveis no organismo. “Pro-
neurônios e outras células cerebrais, lem- lhora não se devia à neurogênese. Ou não teínas como o GDF11 agem em diferentes
brando uma espécie de envelhecimento só a ela. Administrado na corrente sanguí- órgãos e tecidos e, quando administra-
acelerado, fenômeno que Kapczinski de- nea, o GDF11 até promove a formação de das diretamente, podem produzir efei-
nominou neuroprogressão (ver Pesqui- novos neurônios, mas, aparentemente, tos benéficos em alguns e deletérios em
sa FAPESP nº 197). “Em uma conferência de forma indireta, por estimular a libera- outros”, alerta Brietzke. Entender como
realizada em 2018 no Pasteur, apresentei a ção de outros compostos que provocam a o GDF11 age nas células, porém, pode
hipótese da neuroprogressão e soube que o neurogênese. Injetado no cérebro, ele não levar ao desenvolvimento de compostos
grupo de Lledo tinha disponível uma molé- levou à proliferação de neurônios, apesar que atuem nos mesmos alvos molecula-
cula que funcionaria como um rejuvenes- de promover melhora na memória e nos res e, além de eficientes, sejam seguros
cedor de neurônios”, conta o pesquisador, sintomas depressivos. e bem tolerados. n Ricardo Zorzetto
KLOSFOTO / GETTY IMAGES

que integra o Instituto Nacional de Ciência O efeito benéfico do GDF11, constata-


e Tecnologia Translacional em Medicina ram os pesquisadores, foi consequência
Artigo científico
(INCT-TM), financiado pela FAPESP e pe- do aumento da autofagia, que contribui
MOIGNEU, C. et al. Systemic GDF11 attenuates depres-
lo Conselho Nacional de Desenvolvimento para a eliminação de resíduos tóxicos. sion-like phenotype in aged mice via stimulation of neu-
Científico e Tecnológico (CNPq). Os neurônios cultivados em laboratório ronal autophagy. Nature Aging. 2 fev. 2023.

PESQUISA FAPESP 325 | 51


EPIDEMIOLOGIA

NOVAS VÍTIMAS
À VISTA

52 | MARÇO DE 2023
NIH-NIAID / IMAGE POINT FR / BSIP / UNIVERSAL IMAGES GROUP VIA GETTY IMAGES

Uma em cada quatro pessoas infectadas por


Mpox em Sergipe tem menos de 18 anos

Carlos Fioravanti

E
m algumas regiões do país, a varíola “Os sintomas em crianças são mais brandos do
dos macacos, ou monkeypox, reno- que em adultos”, observa o epidemiologista Paulo
meada como Mpox em novembro Ricardo Martins-Filho, da Universidade Federal
de 2022 pela Organização Mundial de Sergipe (UFS) e um dos autores do relato à
da Saúde (OMS), pode estar se ex- revista Journal of Paediatrics and Child Health.
pandindo para outros grupos, além Diagnosticadas pelo Laboratório Central de Saú-
do até agora majoritário, formado de Pública (Lacen), em Aracaju, todas as crian-
por homens homo e bissexuais. Essa ças tiveram lesões de pele e 12 sintomas gerais,
conclusão emerge de uma análise da principalmente febre, dor de cabeça, muscular ou
população infectada pelo vírus causador dessa de garganta. Não houve mortes nem internação
doença infecciosa em Sergipe. para tratamento desde que o primeiro caso foi
Das 71 pessoas que contraíram o vírus naquele confirmado em Aracaju, em 22 de agosto.
estado entre 22 de agosto de 2022 e 18 de janeiro
de 2023, 15 eram crianças e adolescentes com SINTOMAS LEVES
até 18 anos. Conforme relato de 4 de fevereiro “As lesões e outros sintomas, muito semelhantes
na Journal of Paediatrics and Child Health, a pro- aos da catapora, geralmente desaparecem em al-
porção de crianças e adolescentes em relação ao guns dias, apenas com tratamento sintomático”, diz
total, 21%, é cinco vezes maior que a verificada Martins-Filho. Segundo ele, nos adultos as lesões
até agora no Brasil. Até o início de fevereiro, o se concentram na região genital, anal e perianal,
país era o segundo em número de casos da doen- mas nas crianças aparecem com mais frequência no
ça (10.758), após os Estados Unidos (29.993). peito, nas costas, nos membros e, às vezes, na face.
De acordo com a OMS, o surto que começou Quatro crianças se infectaram após contato
em maio de 2022 atingiu mais de 85 mil pessoas com pessoas contaminadas, três semanas antes
e causou 93 mortes até fevereiro, no mundo. do aparecimento das lesões, mas as formas de
Mas abrandou no início de 2023, com 403 ca- transmissão para a maioria delas não foram ras-
sos registrados na quarta semana do ano (23 a treadas. “Esse tipo de informação tem sido pouco
29 de janeiro) e 159 na quinta (30 de janeiro a registrado nos prontuários”, lamenta Martins-
5 de fevereiro). Desde o início do ano, o núme- -Filho. “Muitas vezes o paciente não quer contar,
Imagem de ro de casos aumentou em 13 países, principal- porque a principal forma de transmissão entre
microscopia de mente no Chile, mas outros 70 não registraram homens é por contato com as lesões durante as
partículas do
Mpox (magenta)
mais pessoas infectadas. Crianças e adolescentes relações sexuais.”
em células respondem por cerca de 1% do total de pessoas As equipes da UFS, do Lacen e da Secretaria
infectadas (verde) infectadas no mundo. Estadual de Saúde também têm observado que

PESQUISA FAPESP 325 | 53


as mulheres respondem por cerca de 20% dos lheres e em crianças e adolescentes no Brasil
casos de Mpox em Sergipe. Essa constatação em relação ao que se observa em outros paí-
ajudaria a explicar a alta proporção de infecção ses”, acrescenta.
entre crianças e adolescentes, por causa do con- Segundo ele, o aparecimento do vírus em
tato contínuo das mães com os filhos. crianças e adolescentes pode ser o resultado
“Deve haver casos subnotificados de Mpox em tanto de contágio domiciliar quanto de início
crianças e mulheres, especialmente em lugares precoce da vida sexual. Nos casos registrados
onde a vigilância epidemiológica não é intensa em Sergipe, porém, a concentração das lesões
nem há condições de fazer exames laboratoriais em locais diferentes dos verificados em adultos
adequados”, diz Martins-Filho. Segundo ele, al- sugere que o mecanismo de transmissão tenha
gumas mulheres podem ter se infectado ao ter sido provavelmente por contato domiciliar e
contato com as lesões dos homens bissexuais. não por via sexual.
Elas têm apresentado menos lesões genitais que “O aumento dos casos em crianças e adoles-
no grupo masculino. centes pode caracterizar uma mudança de perfil
epidemiológico, com novos grupos de pessoas
RASTREAMENTO atingidas”, comenta a infectologista Lídia Ma-
“O aumento da proporção de casos em crian- ria Reis Santana, do Centro de Vigilância Epi-
ças e mulheres era de certo modo esperado, le- demiológica da Secretaria de Estado da Saúde
vando em conta o comportamento do vírus nos de São Paulo e da Universidade Federal de São

D
países da África onde já é endêmico”, comenta Paulo (Unifesp).
o infectologista Marco Aurélio Sáfadi, presiden-
te do Departamento Científico de Infectologia esde junho de 2022 até 9 de fevereiro
Pediátrica da Sociedade Brasileira de Pediatria de 2023, São Paulo foi o estado que
(SBD). Surtos de Mpox em adultos e crianças têm mais registrou casos no Brasil: 4.318,
sido registrados em países da África Ocidental e dos quais 186, o equivalente a 4,3%,
Central desde a década de 1970. em menores de 18 anos. Crianças e
“É importante fazer uma investigação epi- pré-adolescentes até 15 anos apre-
demiológica profunda para identificar os me- sentaram lesões disseminadas pelo
Sala de atendimento canismos de transmissão, ver se houve mesmo corpo e os adolescentes de 15 a 18
a pacientes com uma mudança de perfil epidemiológico ou se anos tiveram lesões nas regiões ge-
suspeita ou diagnóstico
confirmado de Mpox no
são casos isolados, relacionados ao modo de nital e anal, como os adultos.
Instituto Emílio Ribas, vida local”, ressalta Sáfadi. “Chama a atenção Os três adultos que morreram após a infecção
na cidade de São Paulo a elevada proporção de casos descritos em mu- com Mpox estavam com as defesas do organismo
bastante baixas – eram imunossuprimidos. “Eles
1
ou tiveram um diagnóstico tardio e descobriram
que tinham HIV quando souberam que estavam
com Mpox ou tinham abandonado o tratamento
para HIV”, comenta Santana.
Intenso em julho e agosto de 2022, quando
o número de casos dobrava a cada sete dias, o
surto no estado de São Paulo arrefeceu. “De de-
zembro até fevereiro, temos no máximo quatro
casos novos por dia”, relata. “A transmissão caiu

AUMENTO DE
CASOS EM CRIANÇAS
E ADOLESCENTES
INDICA QUE OUTROS
GRUPOS DA
POPULAÇÃO PODEM
SER ATINGIDOS
54 | MARÇO DE 2023
ESPECIALISTAS SUGEREM
MAIS ATENÇÃO À COMUNICAÇÃO
DO RISCO DE INFECÇÃO
E DAS FORMAS DE
TRANSMISSÃO DO VÍRUS

Campina Grande (UFCG), na Paraíba, comentou


que a baixa capacidade de testagem prejudica a
identificação dos casos e o controle da dissemi-
nação do vírus.
2 O Mpox pode ser transmitido entre as pessoas
por meio, principalmente, do contato com fluidos
corporais, lesões de pele ou na boca e garganta,
Lesões típicas de em adultos e crianças, o que indica que não hou- gotículas de saliva liberadas com a respiração
infecção por Mpox ve transmissão sustentada entre outros grupos ou espirros ou, mais raramente, contato com
em mãos de
um recém-nascido
populacionais.” objetos contaminados, de acordo com a OMS.
A cientista política Lorena Barberia, da Uni- Excluídas as crianças, o perfil do Mpox no Bra-
versidade de São Paulo (USP), faz uma ressalva: sil tem sido semelhante ao de outros países. Em
“Não podemos nos apoiar inteiramente na no- um levantamento nacional, publicado na edição
tificação para ver se há realmente um controle de março-abril da revista científica Travel Medi-
efetivo de uma epidemia”. Segundo ela, “pa- cine and Infectious Disease, o grupo de Sergipe
ra saber se está realmente caindo, temos que observou que essa doença tem atingido predomi-
examinar quantos testes estão sendo feitos e nantemente homens (92%), brancos (44%), com
quantas pessoas são testadas”. idade entre 20 e 39 anos (73%) e autoidentifica-
Em um artigo publicado na Lancet Regional dos como homo ou bissexuais (67%), causando
Health Americas em 17 de janeiro, um grupo de lesões cutâneas (92%) ou genital/anal (61%) e
pesquisadores da USP alertou que a infecção por febre (60%). Conforme artigo do grupo da UFS,
Mpox, apesar da baixa letalidade, poderia am- os registros até novembro se concentraram no
pliar o preconceito e o estigma contra homens Distrito Federal (10,8 casos por grupo de 100 mil
que fazem sexo com homens e alimentar a dis- habitantes), São Paulo (8,9 por 100 mil), Goiás (7,6
criminação contra as comunidades LGBTQIA+. por 100 mil) e Rio de Janeiro (7,3 por 100 mil).
“Sim, corremos esse risco”, concorda Santana. Em agosto do ano passado, o Ministério da
FOTOS 1 OSMAR BUSTOS / IIER 2 RAMNARAYAN, P. ET AL. THE NEW ENGLAND JOURNAL OF MEDICINE. 2022

“Temos de aprender novas formas de comuni- Saúde anunciou ter comprado 50 mil doses da
car riscos sem incorrer em estigmatização, que vacina MVA-BN, também chamada de Jynneos,
afasta as pessoas dos serviços de saúde. Se enca- fabricada pela empresa dinamarquesa Bava-
rássemos de forma mais aberta a saúde sexual da rian Nordic, para iniciar a vacinação de pessoas

B
população, não enfrentaríamos essa situação.” com pelo menos 18 anos contra varíola comum
e Mpox. Até o início de 2023, haviam chegado
arberia, uma das autoras do artigo, apenas 20% das doses, destinadas inicialmente
sugere que as estratégias de comu- para estudos de avaliação de efetividade e segu-
nicação promovam a busca pelos rança da vacina. n
serviços de saúde. “As imagens das
lesões de pele, no caso Mpox, po-
dem tanto motivar as pessoas a fazer Artigos científicos
os testes diagnósticos quanto criar MARTINS-FILHO, P. R. et al. Monkeypox in children and adolescents
uma imagem assustadora da doença in Northeast Brazil: A case-series. Journal of Paediatrics and Child
e afugentar as pessoas”, comenta. “É Health. 4 fev. 2022.
MARTINS-FILHO, P. R. et al. Incidence, geographic distribution, clinical
mais importante diferenciar a forma de trans- characteristics, and socioeconomic and demographic determinants
missão do que as pessoas atingidas ou transmitir of monkeypox in Brazil: A nationwide population-based ecological.

a ideia de que há grupos específicos de risco.” Travel Medicine and Infectious Disease. v. 52, 102517. mar.-abr. 2023.

Na mesma edição da Lancet Regional Health Os demais artigos científicos consultados para esta reportagem estão
Americas, um grupo da Universidade Federal de listados na versão on-line.

PESQUISA FAPESP 325 | 55


NUTRIÇÃO

 O PESO DOS
ULTRAPROCESSADOS
Estudos associam o consumo desse tipo
de comida a 10% das mortes precoces no Brasil
e à aceleração do declínio cognitivo

Guilherme Eler

D
ois trabalhos recentes feitos no causas mais comuns de óbitos preveníveis, além
Brasil apontam uma associação das chamadas doenças não transmissíveis, como
estatística significativa entre o os problemas cardíacos, a obesidade e o câncer.
consumo em excesso de alimen- A partir de uma modelagem epidemiológica, os
tos ultraprocessados e a ocorrên- pesquisadores calcularam o número de mortes não
cia de mortes evitáveis, somada naturais ligadas ao consumo de ultraprocessados
à aceleração do processo de de- no Brasil em 2019. “Nossa modelagem considera
clínio cognitivo na população como fator de risco para a ocorrência de mortes
brasileira. Um artigo publicado prematuras quanto uma população consome de
em novembro passado na revista ultraprocessados e associa esse dado à estimativa
American Journal of Preventive de risco e morte por todas as causas, segundo a
Medicine estima que, em 2019, literatura científica internacional”, explica o bió-
pelo menos 57 mil óbitos prematuros no país logo Eduardo Nilson, pesquisador associado ao
teriam sido causados pela ingestão em demasia Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição
de ultraprocessados. Outro estudo, que saiu em e Saúde, da Universidade de São Paulo (Nupens-
dezembro de 2022 na revista científica JAMA -USP) e da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz),
Neurology, sugere que o consumo exacerbado em Brasília, autor principal do primeiro estudo.
desse tipo de alimento acelera em 28% o declinío O trabalho considerou a Pesquisa de Orça-
da cognição geral dos adultos. mento Familiar 2017-2018, feita pelo Instituto

S
Os alimentos ultraprocessados apresentam pou- Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), co-
co do valor nutritivo de seus ingredientes originais. mo indicador do nível de consumo de comidas
A categoria, genérica, abrange um conjunto de ultraprocessadas no país. O levantamento esti-
comidas às quais foram adicionados altos teores mou que o percentual diário da dieta composta
de açúcar, gordura, sal ou compostos químicos por ultraprocessados varia entre 13% e 21% na
com a finalidade de aumentar sua durabilidade população brasileira, de acordo com a idade e o
ou palatabilidade. Como exemplos desse tipo de sexo dos entrevistados. Esses dados, mais as in-
alimento, figuram embutidos como salsichas, nug- formações do DataSUS, do Ministério da Saúde,
gets de frango, bolachas recheadas, refrigerantes, permitiram estimar que cerca de 57 mil mortes
salgadinhos, sorvetes e doces industrializados. Os prematuras estavam associadas, em 2019, ao con-
ultraprocessados são altamente calóricos. Comer sumo de ultraprocessados. O número equivale a
um hambúrguer congelado de 80 gramas (g), por 10,5% de todos os óbitos precoces de brasileiros
LÉO RAMOS CHAVES / REVISTA PESQUISA FAPESP

exemplo, equivale a ingerir 25% da quantidade no período. Se forem consideradas apenas as


diária recomendada de gordura. Uma lata de refri- vítimas fatais atribuídas a doenças não trans-
gerante representa 12% do total de açúcar que de- missíveis, o consumo de alimentos industrializa-
veria ser consumido por uma pessoa em 24 horas. dos responderia por uma fatia substancialmente
Alimentos A Organização Mundial da Saúde (OMS) define maior: 21,8% dos óbitos dentro dessa categoria.
ultraprocessados como mortes prematuras aquelas que ocorrem O artigo, que também contou com a colabora-
recebem a adição de
altos teores de açúcar,
entre 30 e 69 anos e, portanto, não estão associa- ção de colegas da Universidade Federal de São
gordura, sal ou das apenas à velhice. Acidentes de carro, homi- Paulo (Unifesp) e da Universidade Católica do
compostos químicos cídios, quedas, envenenamentos estão entre as Chile, projeta, ainda, como seriam três cenários

PESQUISA FAPESP 325 | 57


em que os brasileiros diminuíssem a média total comida ultraprocessada é responsável por pro-
de calorias obtidas por meio do consumo desse blemas de saúde ou se é mais um marcador de
tipo de alimento pouco saudável. Reduzir em um estilo de vida não saudável”, pondera Kuhle,
10% o peso desses itens na dieta evitaria 5,9 mil em entrevista a Pesquisa FAPESP.
mortes precoces. Uma redução de 20% pouparia O segundo artigo indica ter encontrado uma
12 mil óbitos. Um corte mais significativo, de 50% associação do consumo excessivo de ultrapro-
no consumo de ultraprocessados, implicaria 29,3 cessados com um problema mais sutil: uma piora

O
mil vidas salvas por ano. da performance cognitiva. O grupo investigou se
uma dieta farta em comida industrializada po-
s pesquisadores defendem a deria acelerar o declínio dos domínios de facul-
adoção de medidas que deses- dades mentais, sobretudo das chamadas funções
timulem a ingestão de comida executivas. Além de serem importantes para o
ultraprocessada. Desde outubro raciocínio e a capacidade de resolver problemas,
passado, a legislação brasileira essas funções regulam habilidades ligadas à au-
passou a exigir a adoção de um tonomia, como o controle consciente de ações,
selo frontal nas embalagens de pensamentos e emoções.
alimentos para informar a quan- Os dados do trabalho foram coletados entre
tidade elevada de três nutrientes 2008 e 2017 pelo Estudo Longitudinal de Saúde
em sua composição: açúcares do Adulto (Elsa), que conta com financiamen-
adicionados, gorduras saturadas to da FAPESP e do Ministério da Saúde. Foram
e sódio (ver Pesquisa FAPESP nº analisadas informações de 10.775 pessoas, de seis
319). As grandes indústrias têm 12 meses para se cidades brasileiras – as capitais do Sudeste, além
adaptar à nova norma. Para os pequenos produ- de Porto Alegre e Salvador. Todos os voluntários
tores, o prazo é de dois anos. “Outras medidas eram funcionários universitários ativos ou apo-
saudáveis incluem a regulamentação da comercia- sentados com mais de 35 anos. A média de idade
lização de alimentos em ambientes escolares e de de todos os participantes era de 50,6 anos. Cada
trabalho, a adoção de subsídios para a produção e voluntário foi acompanhado por oito anos, em

FOTOS  LÉO RAMOS CHAVES / REVISTA PESQUISA FAPESP


a venda de produtos locais frescos e uma tributa- média, e avaliado em três momentos diferentes.
ção maior para os ultraprocessados”, diz Nilson. Inicialmente, as pessoas responderam a um
Para Gunter Kuhle, professor de nutrição e questionário com 114 itens sobre seus hábitos
ciência alimentar da Universidade de Reading, alimentares. As perguntas tinham como objeti-
no Reino Unido, que não participou do estudo, vo entender quanto de sua dieta era composta
não se pode descartar que os consumidores de por comida não processada (como frutas, grãos
ultraprocessados tenham outros fatores de risco, integrais e vegetais frescos) e ultraprocessados.
como o hábito de fumar ou a falta de atividade Em seguida, os participantes foram divididos em
física, que também favorecem a ocorrência de quatro grupos, de acordo com o nível de ingestão
mortes precoces. “Não sabemos até que ponto a de comida industrializada. O grupo que mais con-

58 | MARÇO DE 2023
Estudo indicou uma sumia ultraprocessados, no geral, era composto acentua com o avanço da idade. “Isso é normal.
diminuição de 28% por voluntários mais jovens, mulheres e brancos. O que estamos tentando entender é se uma boa
das funções cognitivas
em adultos cuja dieta
Tinham maior escolaridade, fumavam menos e alimentação, com poucos ultraprocessados, po-
era composta por bebiam menos álcool. Faziam menos atividade de impedir que esses efeitos apareçam antes da
mais de um quinto de física e tinham menos comorbidades, mas apre- hora”, comenta Gonçalves.
ultraprocessados sentavam sintomas depressivos. Os trabalhos que exploram a associação entre
“Nos Estados Unidos, a tendência é que pessoas dois parâmetros, como o consumo de ultraproces-
com menor renda tenham maior consumo de ul- sados e a ocorrência de doenças ou mortes, têm
traprocessados. Por lá, esses produtos são muito limitações. Eles indicam que há fortes correlações
baratos. Aqui no Brasil, percebemos a tendência estatísticas de que a alteração de uma variável leva
inversa: quanto maior a renda, maior o consumo a mudanças na outra. No caso, a quantidade de
de ultraprocessados”, diz a bióloga Natália Gon- comida industrializada ingerida parece influenciar
çalves, pesquisadora do Departamento de Pato- no aparecimento de doenças e na quantidade de
logia da Faculdade de Medicina da USP, autora mortes prematuras. Esses estudos, no entanto, não

O
principal do estudo. conseguem demonstrar qual seria o mecanismo
por trás dessa aparente correlação.
desempenho cognitivo de ca- A geriatra Claudia Suemoto, da Faculdade de
da grupo foi colocado à prova Medicina da USP, que coordenou o estudo do Elsa
em testes de cognição. Quem sobre ultraprocessados e desempenho cognitivo,
obtinha mais de 20% de suas espera superar essa limitação em breve. Serão
calorias diárias comendo ultra- feitas imagens do cérebro de voluntários para
processados apresentou uma ver se o alto consumo de ultraprocessados pode
taxa de declínio geral da cog- causar eventos isquêmicos ou pequenos derra-
nição 28% mais rápida do que mes cerebrais, que, ao longo do tempo, poderiam
o grupo que retirava menos de comprometer as funções cognitivas. “Dessa for-
20% de sua energia por meio do ma, poderemos investigar possíveis mecanismos
consumo desse tipo de alimen- que expliquem a associação do ponto de vista
to. O declínio da função execu- estrutural”, conta Suemoto. n
tiva, mais ligada ao controle dos pensamentos e
das ações, foi 25% mais rápido nas pessoas que
ingeriam muitos ultraprocessados. Projeto
LÉO RAMOS CHAVES / REVISTA PESQUISA FAPESP

Os determinantes do envelhecimento cerebral saudável no Estudo


Segundo os pesquisadores, as perdas cognitivas Longitudinal de Saúde do Adulto (Elsa-Brasil) (nº 20/09468-9);
mensuradas no trabalho podem tornar um pouco Modalidade Projeto Temático; Pesquisadora responsável Alessandra
mais difícil a realização de tarefas como arma- Carvalho Goulart (USP); Investimento R$ 4.202.332,88.

zenar e relacionar informações no curto prazo, Artigos científicos


retomar uma atividade após uma interrupção NILSON, E. A. F. et al. Premature deaths attributable to the consump-
ou ler um texto em um ambiente barulhento. tion of ultraprocessed foods in Brazil. American Journal of Preventive
O declínio da capacidade cerebral, sobretudo Medicine. v. 64, n. 1. jan. 2023.
GONÇALVES, N. G. et al. Consumption of ultra-processed foods and
nas funções executivas, começa a ocorrer, ain- cognitive decline in the Elsa – Brasil study: A prospective study. JAMA
da que de forma lenta, a partir dos 25 anos e se Neurology. 5 dez. 2022.

PESQUISA FAPESP 325 | 59


ASTROFÍSICA

Quaoar

Segundo o limite de
Roche, o anel poderia
estar a uma distância
máxima de 1.780 km
de Quaoar. A estrutura,
Limite de Roche no entanto, foi
registrada a 4.100 km
do centro do objeto

Anel

U
1

ANEL
m grupo internacional de 59
astrônomos, liderado por bra-
sileiros, encontrou um anel
denso, formado por pequenos

FORA DO
blocos de gelo e rocha, giran-
do a uma distância de 4.100

FOTOS 1 ILUSTRAÇÃO ARTÍSTICA DE QUAOAR / OBSERVATÓRIO DE PARIS  2 NASA / ESA / H. WEAVER / E. SMITH (STSCI)


quilômetros (km) de um ob-
jeto longínquo do Sistema So-

LUGAR
lar. A presença da estrutura
circular em uma órbita tão afastada do
centro de Quaoar, nome do gélido objeto,
está em total desacordo com um resultado
fundamental da mecânica celeste. Segun-
A estrutura circular se do o limite de Roche, uma fórmula usada
desde meados do século XIX para calcular
encontra ao redor de Quaoar, a posição esperada de estruturas celestiais
em torno de objetos maiores, como anéis
um corpo gelado situado e satélites naturais (luas), o anel ao redor
no cinturão de Kuiper de Quaoar deveria estar localizado a uma
distância máxima de 1.780 km.
Marcos Pivetta “Nunca se observou um anel denso na
órbita de um objeto que estivesse fora do
limite de Roche”, explica o astrofísico Bru-
no Morgado, do Observatório do Valongo
da Universidade Federal do Rio de Janei-
ro (OV-UFRJ), autor principal da desco-
berta, descrita em artigo publicado em
8 de fevereiro na revista Nature. “A essa
distância de mais de 4 mil km de Quaoar, e Ciências da Universidade Estadual Pau- denominado Chariklo. “Mas aquele anel
o que deveria ter se formado é uma lua, lista (Unesp), que também assina o estudo. está dentro do limite de Roche”, comenta

P
não um anel.” O achado deve levar a um “Um de seus lados é mais largo do que o o astrofísico da UTFPR.
refinamento das teorias que preveem a outro.” As pesquisas de Sfair, que estuda
formação de anéis e satélites em torno as características e a dinâmica orbital de or ora, os astrofísicos não têm
de planetas e de outros objetos celestes. anéis, são parcialmente financiadas por explicação para a localiza-
Descoberto em 2002, Quaoar é um um projeto da FAPESP. ção tão afastada do anel de
pequeno mundo gelado, com 1.121 km O valor do limite de Roche é calculado Quaoar. Uma possibilidade
de diâmetro, aproximadamente 11,5 ve- a partir de alguns parâmetros, sobretudo é haver alguma influência
zes menor do que o da Terra. Seu nome do raio e da densidade do objeto prin- gravitacional sobre o sistema
é uma referência ao deus da criação na cipal e da espessura das estruturas que que impeça os pedaços do
mitologia dos Tongva, povo originário o orbitam (luas ou anéis). Grosso modo, anel de se juntarem e gerar,
das Américas que vive nos atuais Es- dentro do limite, a influência da força como se esperaria, um satéli-
tados Unidos. Quaoar é classificado de gravitacional do corpo maior impede que te natural. Isso poderia ser causado por
forma genérica como um objeto trans- os fragmentos de matéria em sua órbita uma irregularidade de Quaoar, por sua
netuniano. Está situado no cinturão de se juntem e formem uma lua. Há apenas lua Weywot, ou ainda por um pequeno
Kuiper, que começa logo depois da órbita uma ou duas exceções conhecidas a essa satélite desconhecido.
de Netuno, o oitavo planeta do Sistema regra. Nesse caso, o padrão dominante “Se for uma estrutura transitória, o
Solar (Plutão, que também está dentro é que surja um anel em volta do corpo anel deve desaparecer gradualmente
do cinturão, foi considerado o nono pla- maior. Fora do limite de Roche, os peda- à medida que seu material se agrega”,
neta até 2006, quando foi rebaixado à ços de matéria são capazes de se agregar escreve o astrofísico Matthew Hedman,
condição de planeta anão). O cinturão e gerar luas. O próprio Quaoar tem um da Universidade de Idaho, nos Estados
é constituído de trilhões de pedaços de satélite natural, Weywot, que obedece Unidos, em um artigo de comentário
matéria (rochas e gelo) que sobraram do a essa fórmula. publicado também em 8 de fevereiro na
processo de formação do Sistema Solar, Quando um satélite ou um cometa Nature. “No entanto, se for de longa du-
há 4,6 bilhões de anos. Seus fragmentos cruza o limite de Roche de um plane- ração, as variações de opacidade ao longo
de maior destaque podem ser classifica- ta, ele tende a se desintegrar por ação de sua extensão podem ser rastreadas
dos como cometas ou planetas anões. da gravidade do objeto maior. Em julho com o tempo para restringir exatamente
Quaoar, que tem metade do diâmetro de de 1992, o cometa Shoemaker–Levy 9 com que rapidez o material do anel está
Plutão, é um candidato a ser reconheci- se fragmentou em mais de 20 partes ao orbitando em torno de Quaoar.”
do oficialmente como um planeta anão. adentrar o limite de Roche de Júpiter. Os brasileiros Morgado, Ribas e Sfair
Não há imagens do anel de Quaoar, Dois anos depois, seus pedaços se cho- argumentam que os fragmentos de um
mas evidências indiretas de sua presen- caram contra o planeta. anel, como o encontrado ao redor des-
ça. Os pesquisadores observaram em Saturno, um dos planetas do Sistema se corpo gelado do cinturão de Kuiper,
vários telescópios espalhados pela Terra Solar, tem o maior e mais espetacular teoricamente se aglutinariam e forma-
reduções no brilho de estrelas sempre sistema de anéis. Urano, Júpiter e Ne- riam uma lua em cinco ou 10 anos. Não
que Quaoar e seu anel passavam em fren- tuno também apresentam essas estru- se sabe a idade exata de Quaoar, mas é
te a elas. “É um fenômeno semelhante a turas circulares em seu entorno. Neste razoável supor que exista há milhões ou
um eclipse”, compara o astrofísico Felipe século, anéis têm sido encontrados em mesmo bilhões de anos. “Seria quase im-
Braga Ribas, da Universidade Tecnológi- outros tipos de objetos, como planetas possível termos tido a sorte de encontrar
ca Federal do Paraná (UTFPR), outro au- extrassolares, luas, estrelas e outros cor- o anel pouco antes de seus fragmentos
tor do estudo. “Registramos a assinatura pos celestes. Em 2013, Ribas foi o autor se juntarem e darem origem a um saté-
típica de uma ocultação provocada pela principal de um trabalho que descobriu o lite”, comenta o astrônomo da UFRJ. n
passagem de um objeto com um anel.” primeiro anel em torno de um asteroide
A assinatura de uma ocultação ocasio- que se situa entre as órbitas de Saturno e O projeto e os artigos científicos consultados para esta
nada por um objeto dotado de um anel se Urano, um objeto de 250 km de diâmetro reportagem estão listados na versão on-line.
caracteriza pela ocorrência, ao longo de 2
1 minuto, de três reduções consecutivas
do brilho da estrela: uma menor, causa-
da pela passagem de uma parte do anel;
uma maior, provocada pelo cruzamento
do objeto em si (no caso, Quaoar); e ou-
tra menor, produzida pela outra parte do
anel. As duas diminuições menores da lu-
minosidade de estrelas ocasionadas pelo
anel de Quaoar apresentaram intensida- Imagem de 1994 mostra
fragmentos do cometa
de ligeiramente diferente. “O anel não é Shoemaker-Levy 9, que se
totalmente simétrico”, diz o astrofísico despedaçou ao cruzar
Rafael Sfair, da Faculdade de Engenharia o limite de Roche de Júpiter

PESQUISA FAPESP 325 | 61


BIOTECNOLOGIA

VEM AÍ A MARIPOSA
TRANSGÊNICA

A lagarta-do-cartucho
(Spodoptera frugiperda)
é responsável por
perdas de até 50% em
plantações de milho

62 | MARÇO DE 2023
Empresa desenvolve nova tecnologia para
combater a principal ameaça à lavoura do milho

Frances Jones

O
s agricultores brasileiros poderão Elas são uma versão geneticamente modifica-
contar dentro de algum tempo da da própria lagarta-do-cartucho que ataca o
com uma nova ferramenta para milho e, em seu código genético, carregam dois
combater o que é considerada genes diferentes, introduzidos em laboratório.
pelo agronegócio a principal pra- Um deles, conhecido como tTAV, impede o de-
ga da cultura do milho. A empre- senvolvimento de fêmeas e faz com que, dos ovos
sa Oxitec do Brasil prepara-se para fazer o lança- da nova geração, só vinguem os machos, afetando
mento comercial de uma mariposa geneticamente drasticamente a reprodução do inseto.
modificada a ser liberada nas plantações com a “Nós aprimoramos em laboratório um gene
finalidade de combater a lagarta-do-cartucho que já está na Spodoptera e em outros insetos e
(Spodoptera frugiperda). Presente em todas as aracnídeos, colocando um promotor [determina-
regiões do país em que se cultiva milho, o inseto da sequência de DNA] que sinaliza para a célula
é responsável por perdas de até 50% em uma produzir muito daquele gene”, afirmou Ferreira.
lavoura. A mariposa transgênica, chamada de “É como uma overdose. Como se eu, no meu corpo
Spodoptera do Bem, recebeu em 2021 a aprovação inteiro, em vez de produzir as células dos órgãos,
da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança passasse a produzir só colágeno, por exemplo”, diz.
(CTNBio), a instância do Ministério da Ciência, “O resultado é que não produziria mais sangue,
Tecnologia e Inovação (MCTI) responsável por saliva ou nada que garanta a minha vida; então
recomendar ou não a liberação de organismos morreria exatamente por falta dessas substâncias.”
geneticamente modificados no Brasil. O segundo gene inserido, DsRed2, é um mar-
“A Spodoptera do Bem é um produto seguro cador, derivado de uma espécie de coral mari-
e eficaz”, afirma a geneticista Natalia Ferreira, nho que produz uma proteína fluorescente e
diretora-geral da Oxitec do Brasil. “Estamos em ajuda a distinguir os animais modificados dos
uma fase de engajamento de agricultores, de con- insetos selvagens.
versa com distribuidores e continuamos com en- A técnica de combate à praga consiste em libe-
saios em fazendas para entendermos como esse rar machos geneticamente modificados no campo
produto se encaixa na rotina do produtor rural”, para copular com as fêmeas selvagens. Do cruza-
informa. O lançamento comercial, segundo a em- mento, vingam apenas lagartos machos, que, após
presa, deve ocorrer nos próximos anos. a fase de pupa, viram mariposas portadoras do
Spodoptera do Bem é o nome comercial das gene letal ou autolimitante no genoma, que mais
mariposas da linhagem geneticamente modifi- uma vez matará as descendentes fêmeas. Dessa
cada OX5382G, desenvolvida pela empresa ma- forma, em algumas gerações, segundo a empresa,
triz no Reino Unido e testada em duas fazendas a população do inseto diminuirá.
brasileiras – uma em Mato Grosso e outra em A tecnologia é a mesma utilizada no produto
PRODUTORA SÃO PAULO / OXITEC

São Paulo. Spin-off da Universidade de Oxford Aedes do Bem, vendido pela empresa no Brasil
criada em 2002, a Oxitec é hoje uma subsidiária desde 2021, que busca reduzir a população de
da empresa norte-americana Third Security, com Aedes aegypti. Nesse caso, o objetivo é diminuir
sede na Virgínia. os casos de dengue e de outras doenças transmi-
O Brasil é o primeiro e único país do mundo tidas pelo mosquito, como zika e chikungunya
a liberar as mariposas transgênicas no campo. (ver reportagem na página 66). Spodoptera mo-

PESQUISA FAPESP 325 | 63


dificada, duas versões de Aedes aegypti criadas No entanto, Spodoptera tem demonstrado resis-
pela Oxitec e o salmão da empresa canadense tência aos inseticidas convencionais. E ainda há
AquaBounty compõem o restrito grupo de ani- a preocupação com os efeitos indesejados desses
mais transgênicos cuja venda já foi liberada no agrotóxicos sobre a saúde de organismos não al-
Brasil pela CTNBio. vos e ao ambiente.
A médica veterinária Maria Lúcia Zaidan Da- Além dos inseticidas, há nove produtos para
gli, do Laboratório de Oncologia Experimental controle biológico registrados no país e outros
e Comparada da Faculdade de Medicina Veteri- quatro estão prestes a ser lançados. Desde a sa-
nária e Zootecnia da Universidade de São Paulo fra de 2008/2009, também se usa a tecnologia do
(FMVZ-USP) e membro da CTNBio, avalia co- milho transgênico – que expressa proteínas da
mo positiva a liberação no país da Spodoptera bactéria Bacillus thuringienses (Bt) para matar as
do Bem. Ela participou da decisão de aprovação lagartas. Só que os insetos já mostram resistência
da primeira versão de Aedes aegypti da Oxitec. à planta modificada.

P
“Quando utilizamos inseticidas ou plantas
ara obter a liberação comercial, ex- transgênicas para controle de uma praga, aca-
plica Dagli, é preciso que as quatro bamos selecionando involuntariamente no campo
áreas setoriais da CTNBio que ve- indivíduos capazes de sobreviver a essas tecno-
rificam o impacto do produto sobre logias”, explica o engenheiro-agrônomo Alberto
a saúde humana, a saúde animal, os Soares Corrêa, coordenador do Laboratório de
vegetais e o ambiente atestem a se- Ecologia Molecular de Artrópodes da Escola Su-
gurança do produto com base em dados e estudos perior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq),
apresentados pela companhia interessada. Após da USP. “Uma única fêmea de Spodoptera frugi-
a liberação comercial do produto, há ainda um perda pode colocar até 1.500 ovos em seu ciclo de
acompanhamento e a empresa deve enviar rela- vida. Além disso, é uma espécie extremamente
tórios anuais à CTNBio ao longo de cinco anos. complexa de manejar devido a sua polifagia [ha-
“É o mesmo processo que ocorre com novos bilidade de se alimentar em diferentes espécies
medicamentos liberados pelas respectivas agên- de plantas] e capacidade de dispersão. Nativa do
cias regulatórias. Se algum problema for relata- continente americano, recentemente ela se tornou
do, dependendo do que for, o produto pode ser uma praga cosmopolita com relatos de detecção
suspenso”, salienta a pesquisadora. Ela ressalta em países da África, Ásia, Europa e Oceania”,
que nunca ocorreu a suspensão de um produto informa Corrêa.
aprovado pela CTNBio. Para retardar a evolução da resistência ao mi-
Como parte da estratégia dos produtores ru- lho transgênico, recomenda-se que o agricultor
rais de combate à lagarta-do-cartucho, há no reserve uma parte da área — entre 10% e 20%,
mercado em torno de 200 produtos para contro- embora não haja consenso quanto a esses valo-
le químico do inseto, de acordo com a Empresa res — para o cultivo de plantas convencionais,
Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa). não transgênicas, o chamado refúgio. O objetivo
1

Além do milho,
a mariposa pode se
alimentar de cerca
de 50 variedades
de plantas

64 | MARÇO DE 2023
Colaboradores
da Oxitec em
campo conduzindo
o estudo-piloto da
Spodoptera do Bem
2

dessa estratégia é que os insetos copulem com tamentais e afetando seu desempenho no campo.
aqueles que não têm os alelos que conferem a re- A ideia do inseto transgênico é ter indivíduos
sistência (alelos são as diferentes formas de um com melhor desempenho e capacidade de com-
determinado gene). “O fato é que muitas vezes petir com os machos selvagens, acasalar com as
o produtor abre mão de plantar o refúgio e, com fêmeas e, assim, não deixar descendentes, redu-
isso, a evolução da resistência é acelerada”, diz zindo a população da espécie-alvo da tecnologia.”
o pesquisador da Esalq. Corrêa prefere não fazer previsões sobre os
De acordo com a Oxitec, Spodoptera frugiper- riscos e as possíveis consequências ecológicas da
da transgênica deverá ser um método bastante liberação de um inseto transgênico na natureza.
eficaz para controlar a resistência a plantações “Não temos dados científicos disponíveis na li-
de milho Bt. “A Spodoptera do Bem nunca viu teratura para responder às principais perguntas.
inseticida, nunca viu Bt na vida dela, é total- Isso nunca foi feito em larga escala”, afirma o pes-
mente suscetível”, observa Ferreira. “Quando o quisador. “No caso de Spodoptera frugiperda, se
macho transgênico vai a campo e acasala com a CTNBio aprovou, acredito que julgaram ter a
uma fêmea e deixa um descendente macho, que mínima segurança para a tecnologia ser aplicada.”
herda a parte do genoma do pai que não tem De acordo com ele, os mesmos questionamen-
resistência, recuperamos o efeito de todos os tos surgiram com as plantas transgênicas. “Hoje
inseticidas, agrotóxicos e do próprio milho Bt. sabemos que elas têm elevada segurança. Tanto
É uma tecnologia que vai ajudar a usar menos é que o uso delas tem sido ampliado em várias
agrotóxicos e a resgatar ou estender a vida útil regiões do mundo. Com animais, contudo, há
das sementes biotecnológicas.” uma diferença grande nas questões reprodu-

C
tivas e bioquímicas e na estrutura do genoma.
orrêa explica que o controle auto- Não podemos simplesmente falar: com planta
FOTOS 1 EDUARDO CESAR / REVISTA PESQUISA FAPESP  2 PRODUTORA SÃO PAULO / OXITEC

cida, no qual um inseto modifica- transgênica funcionou, com animal transgênico


do reduz a população de animais vai funcionar.”
da mesma espécie por meio dos O biólogo José Maria Gusman Ferraz, pesqui-
cruzamentos, é uma técnica an- sador convidado do Laboratório de Engenharia
tiga. “O exemplo clássico é o da Ecológica da Universidade Estadual de Campinas
mosca-da-bicheira [Cochliomyia hominivorax], (Unicamp), estudou Spodoptera frugiperda du-
erradicada dos Estados Unidos após a liberação rante seu doutorado. Para ele, a nova tecnologia
de milhões de insetos estéreis a partir da década pode ser um instrumento a mais no combate à
de 1950”, afirma. praga. Pondera, contudo, que deverá ser pouco
A diferença importante é que, em vez de trans- eficiente, uma vez que o inseto adulto tem ele-
gênicos, foram soltos no campo machos tornados vada capacidade de deslocamento e o milho é
estéreis pela irradiação de raios gama. A utilização plantado em grandes áreas abertas. “O histórico
de insetos transgênicos, contou ele, vem com o desse tipo de tecnologia é de que funciona bem
objetivo, pelo menos inicial, de superar algumas apenas em áreas insulares, ou seja, com caracte-
fragilidades desse método. “A exposição à radiação rística de ilhas”, diz.
pode trazer vários malefícios a esses insetos, com- Ferraz também gostaria de ver mais dados so-
prometendo características biológicos e compor- bre possíveis danos aos parasitoides – os inimigos

PESQUISA FAPESP 325 | 65


naturais da mariposa – antes da liberação e so-
bre os riscos de o material genético transgênico
permanecer no ambiente. “As novas tecnologias
podem funcionar em um espaço de tempo curto,
mas também podem causar efeitos negativos e,
em seguida, deixar de funcionar”, opina. “O prin-
cípio básico da vida é a diversidade e, quando eu
reduzo essa diversidade, o sistema fica frágil.”
Uma vantagem dos organismos geneticamente
modificados (OGM) em relação aos irradiados
são a praticidade e o custo, explica a bioquími-
ca Margareth Capurro, do Instituto de Ciências
Biomédicas (ICB) da USP, coordenadora técnica
de um estudo na Bahia sobre Aedes transgênico.
Segundo ela, 44 países estão se preparando para
usar a liberação de machos estéreis para o con-
trole de população de insetos, embora nenhum
deles adote técnicas de produção de OGM.
“Para o macho estéril, basta montar uma bio-
fábrica e manter o custo de produção; o transgê-
nico tem que pagar para a empresa que o fabrica.
O transgênico, entretanto, facilita a vida, porque
eliminamos a necessidade de um equipamento
que custa entre US$ 100 mil e US$ 200 mil. Como

AEDES
vai ter um irradiador em cada estado do Brasil?”,
questiona. “Não é viável. A logística do macho es-
téril, no caso de Aedes aegypti, exige que se faça a
produção do inseto perto do irradiador e ele tem

PARA TODOS
de ser transportado e liberado em até 24 horas.”
Uma distinção entre a mosca-da-bicheira, er-
radicada dos Estados Unidos no século passado, e
Spodoptera frugiperda é que a primeira é monogâ-
mica, ou seja, a fêmea copula uma única vez com Mosquito geneticamente modificado
apenas um macho. Já a segunda pode fazer múlti-
plas cópulas. E, diferentemente de Aedes aegypti, já é comercializado no país
que é um animal exótico, proveniente da região
do Egito, a mariposa que ataca o milho é nativa

O
do continente americano. Além de se hospedar
na espiga, Spodoptera também causa problemas a Brasil é pioneiro na libe-
outras culturas importantes, como algodão, soja, ração de Aedes aegypti
trigo, arroz e feijão. Pode se alimentar de cerca de transgênicos, com tes-
50 variedades de plantas de mais de 20 famílias tes sendo feitos desde
botânicas, segundo dados da Embrapa. a década passada em
Para ocorrer a erradicação do inseto, no entanto, cidades na Bahia e no
seria preciso uma política pública que pensasse interior paulista. Um artigo controverso
uma ação em todo o território nacional e ainda foi publicado em 2019 sobre um estudo
nos países vizinhos do continente americano. “O com os mosquitos em Jacobina (BA) na
Brasil é uma nação continental com uma fronteira revista Scientific Reports. Na conclusão
terrestre gigantesca. Temos problemas em unir os do texto, era dito que se constatou a
órgãos governamentais, empresas e produtores transferência dos genes transgênicos
para implementar estratégias de monitoramento e para a população selvagem de Aedes,
controle de pragas” pondera Corrêa. “Erradicar o gerando mosquitos híbridos. Após re-
inseto no Brasil é praticamente impossível. Creio percussão, a publicação anexou ao origi-
que a empresa não tem isso como objetivo.” n nal, em 2020, uma nota de preocupação
editorial, expressando críticas ao texto,
apoiada por seis dos 10 autores do artigo
Artigo científico
(ver Pesquisa FAPESP nº 285).
REAVEY, C. E. et al. Self-limiting fall armyworm: A new approach in
development for sustainable crop protection and resistance mana- Dois anos depois da polêmica, a Oxi-
gement. BMC Biotechnology. 27 jan. 2022. tec foi autorizada pelo governo brasi-

66 | MARÇO DE 2023
é composto por duas caixas, suficientes clina. Então o gene letal é expressado e a
para 5 mil metros quadrados (m2). Cada larva morre. Esse é um resumo geral do
caixa vem com cerca de 2,3 mil ovos, mas processo”, diz o engenheiro-agrônomo
apenas 1,2 mil mosquitos machos são li- Alberto Soares Corrêa, da Esalq.
berados de cada unidade; as fêmeas não Em um comunicado de 2022, a agên-
sobrevivem. O refil com os ovos de Ae- cia norte-americana argumentou que
des deve ser substituído a cada 28 dias. “há uma chance remota de que fontes
Quatro sachês específicos para o con- ambientais de tetraciclina podem ter
trole e a qualidade da água essenciais ao tetraciclina o suficiente para funcionar
ciclo de desenvolvimento dos mosquitos como um antídoto para a característica
também compõem o kit. Cada caixa ven- letal à fêmea do mosquito OX5034”. Com
dida pela Detecta custa R$ 460 e o refil isso, haveria a possibilidade de fêmeas
sai por R$ 196. Valério ressalta, porém, transgênicas sobreviverem e se reprodu-
que o custo total varia muito. “Depende zirem. Apenas as fêmeas de Aedes picam
do tamanho da área de abrangência, da os humanos e transmitem doenças.

N
necessidade de deslocamento do produ-
to, de quem vai operar as caixas. É feito o Brasil, não há nenhuma
um projeto individualizado.” restrição de local para a li-
Nos Estados Unidos, a liberação ainda beração dos insetos trans-
é feita em caráter experimental e ape- gênicos, tanto da maripo-
nas na Flórida. Em 2020, a Agência de sa quanto do mosquito. O
Proteção Ambiental dos Estados Unidos agrônomo e entomologista
(EPA) autorizou a Oxitec a fazer testes- Fernando Hercos Valicente, pesquisador
-piloto da tecnologia com o mosquito de da Embrapa Milho e Sorgo, que integrou
segunda geração (da linhagem OX5034) a CTNBio na época das deliberações
em regiões dos estados da Flórida e da para a aprovação da primeira versão de
Califórnia. Aedes aegypti da Oxitec, contou que o
A agência norte-americana, porém, assunto foi discutido na época. “Alguém
tomou a precaução de proibir a libera- mencionou o caso das rações de cachor-
ção dos mosquitos em áreas situadas a ro, que podem conter tetraciclina. Mas
menos de 500 m de possíveis fontes do é uma quantidade muito discrepante
Liberação de antibiótico tetraciclina, como estações entre o que havia na ração e o que era
Aedes aegypti
transgênico
de tratamento de esgoto, áreas produ- preciso para o inseto sobreviver. Seria
procura conter toras de maçãs, peras e frutas cítricas e preciso uma dose muito maior. Isso não
surtos de dengue instalações para gado bovino, suínos e é um problema”, afirma Valicente. Para
granjas. Bastante usado tanto na saúde ele, “os resultados positivos dos testes
humana como na terapia animal e em feitos no Brasil mostram o benefício da
alguns casos na agricultura, as molécu- tecnologia”.
leiro, a partir de parecer favorável da las dos antibióticos podem ser excreta- Já o biólogo José Maria Gusman Fer-
CTNBio, a vender o mosquito geneti- das sem sofrer metabolização no trato raz, que também fez parte da CTNBio
camente modificado em todo o territó- digestivo e contaminar o ambiente, no e votou contra a liberação do mosqui-
rio brasileiro, para empresas e pessoas solo ou na água, mesmo que em baixas to transgênico no país, afirma que há
físicas. “Estamos apresentando o Aedes concentrações. um grande descuido por parte das au-
do Bem para um grande grupo de clien- O mosquito transgênico foi desen- toridades e que seria preciso pesquisar
tes e ele está tendo aceitação em muitos volvido e é criado num ambiente rico muito mais o que pode acontecer com o
deles. Já vendemos para pessoas físi- em tetraciclina. Assim como no caso de ecossistema como um todo. “O princípio
cas”, informa Matheus Valério, biólogo Spodoptera, o gene letal introduzido é da precaução não está sendo levado em
da Detecta, especializada em controle o tTAV, feito a partir de DNA sintético conta. A liberação só será reavaliada se
de pragas. “Temos que demonstrar um baseado em uma fusão de sequências da houver um problema muito grave. Mas
conceito novo, porque as pessoas estão bactéria Escherichia coli e do vírus do pode ser tarde. Quando liberamos um
acostumadas com os produtos de aplica- herpes simples. “Em laboratório, o an- produto, não liberamos apenas a planta
ção convencional.” Com sede em Cam- tibiótico, em alta concentração, é capaz ou o inseto transgênico. Liberamos uma
APU GOMES / AFP VIA GETTY IMAGES

pinas (SP), a Detecta começou a vender de inibir a expressão do gene letal que tecnologia que pode levar a uma altera-
o produto como distribuidora parceira ele carrega. No campo, o inseto macho ção no ambiente.” n Frances Jones
da Oxitec em outubro de 2022. transgênico copula com a fêmea, que
A distribuidora recomenda a libera- depois coloca os ovos. Os ovos eclodem
Artigo científico
ção dos mosquitos por pelo menos oito e viram larvas, que são de vida aquáti-
EVANS, B. et al. Transgenic Aedes aegypti mosquitoes
meses seguidos, de preferência de outu- ca. Só que essa prole não encontra nesse transfer genes into a natural population. Scientific Re-
bro a março. O kit de tratamento básico meio a concentração elevada de tetraci- ports. 10 set. 2019.

PESQUISA FAPESP 325 | 67


EMPREENDEDORISMO

E
O UNIVERSO
m 2014, o bacharel em direito Thiago
Rosolem ouviu a expressão “carne
de caju” em uma música do compo-

DAS
sitor pernambucano Alceu Valença e
resolveu fazer dessa ideia um negó-
cio. A partir de um estudo realizado
na Empresa Brasileira de Pesquisa

AGTECHS
Agropecuária (Embrapa) em For-
taleza, no Ceará, e com o apoio de
pesquisadores e especialistas em
gastronomia, ele preparou bolinhos e hambúr-
Startups desenvolvem alimentos gueres vegetais com a massa fibrosa da fruta,
a tal “carne”, obtida após a extração da polpa,
e aprimoram o gerenciamento que geralmente é descartada. Agora à frente da
empresa Amazonika Mundi, Rosolem pretende
e a comercialização da produção usar neste ano 30 toneladas de fibras do bagaço
agropecuária, segundo do caju, o triplo utilizado em 2022, para produzir
substitutos de carne, enriquecidos com extrato de
mapeamento da Embrapa açaí e óleos de plantas da Amazônia e vendidos
em supermercados de 10 estados.
Sarah Schmidt A Amazonika é uma das 281 startups do setor
agropecuário – também chamadas de agtechs ou
agrifoodtechs – da categoria de alimentos do Ra-
dar Agtech Brasil 2022, mapeamento lançado em
novembro pela Embrapa. “A busca por alimentos
mais saudáveis, menos poluentes e específicos
para dietas personalizadas é uma tendência e está
favorecendo a inovação no setor agropecuário”,
observa o administrador de empresas Cleidson Em 2021, agtechs brasileiras receberam in-
Dias, da Embrapa, um dos autores do estudo, vestimentos públicos, privados e estrangeiros
feito em colaboração com a consultoria Homo da ordem de US$ 1,3 bilhão, de acordo com a
Ludens e o fundo de investimento SP Ventures. AgFunder, empresa norte-americana de capital
O trabalho teve o apoio da plataforma de star- de risco citada no estudo. O Brasil é o sexto país
tups Distrito e do Serviço Brasileiro de Apoio às que mais recebe investimentos, após Estados
Micro e Pequenas Empresas (Sebrae). Unidos, China, Índia, Alemanha e Reino Unido.
Empresas que fazem produtos como carnes O mapeamento da Embrapa examinou o fa-
vegetais, leites a partir de castanha-de-caju ou turamento de 168 empresas. Com base nessa
alimentos com melhores índices nutricionais são amostra, a maioria (62,5%) declarou uma receita
o maior (16,5%) entre os cinco principais grupos anual de até R$ 360 mil, quase metade (43,4%) de
dessa versão do Radar, que reúne 1.703 startups. até R$ 81 mil e 16,7% até R$ 16 milhões. A con-
O número total de agtechs brasileiras mais do clusão é de que “empresas nascentes, de baixo
que quintuplicou desde o primeiro mapeamen- faturamento, são frequentes”.
to feito pela Embrapa, em 2018 (ver gráficos). As
empresas são identificadas por meio do registro DE SEMENTES A DRONES
no Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica (CNPJ), O estudo examina três segmentos de empresas:
sites, redes sociais e formulários preenchidos antes, dentro e depois da fazenda. O primeiro
pelos próprios empresários. engloba atividades prévias ao trabalho no campo,
Na apresentação do estudo, dois diretores da como o desenvolvimento de materiais genéticos
SP Ventures, Felipe Guth e Francisco Jardim, co- (sementes, mudas ou sêmen) e novos métodos
mentaram que a extensão do país, a diversidade de análises laboratoriais de nutrientes do solo. O
de solos e climas e as diferenças de tamanho en- segundo envolve atividades ligadas diretamente
tre as propriedades rurais “tornam ineficiente o à produção agropecuária, como a gestão da pro-
processo de importar tecnologias e inovações, for- priedade, da plantação ou do gado. O terceiro,
talecendo o desenvolvimento local de soluções”. os serviços de distribuição e venda dos produtos
Muitas vezes nascidas de projetos acadêmi- agrícolas, como os mercados on-line.
cos, as empresas de apoio aos proprietários ru- “Desde 2019, quando começamos o mapea-
rais se concentram nas cidades de São Paulo mento, a diferença entre o número das agtechs
(21,6%), Curitiba (4,1%), Piracicaba (3,6%), Rio
de Janeiro (3,3%) e Campinas (3%). A capital
paulista se destacou como a única cidade da
América Latina classificada entre os 30 ecossis- EXPANSÃO CONTÍNUA
temas mais relevantes do mundo, de acordo com
dois levantamentos citados no mapeamento da Número de agtechs
Embrapa, o Ranking dos Ecossistemas de Star- nacionais mapeadas
cresceu mais de cinco
1.703
tups de 2022, publicado pelo centro israelense
de pesquisas sobre ecossistemas de inovação vezes desde 2018 1.574
globais Startupblink, e o Relatório Global dos
Ecossistemas de Startups, da empresa norte-
-americana de consultoria em inovação Startup
Genome. A capital paulista figura nas 16ª e 28ª
posições, respectivamente. 1.125
Divididas em 34 categorias, as startups agrí-
ILUSTRAÇÃO E INFOGRÁFICO ALEXANDRE AFFONSO / REVISTA PESQUISA FAPESP

colas se dedicam a atividades diversas, como de-


senvolvimento de sementes, de novos alimentos
para o gado ou de técnicas para reduzir os resí-
duos agrícolas, acompanhamento da produção
por meio de imagens de satélite e o uso de dro-
nes para aplicar agrotóxicos ou de aparelhos com
internet para detectar pragas, prever o clima e
planejar a irrigação.
Na introdução do Radar, Celso Luiz Moretti,
338
presidente da Embrapa, e Tiago Toledo Ferrei-
ra, diretor-executivo de negócios, observaram:
“O ecossistema de inovação agrícola nacional é
2018 2019 2020/2021* 2022
cada vez mais complexo e abrangente, impulsio-
nado pela participação significativa de startups * Levantamento feito com dados do biênio em razão da pandemia

(agtechs) e de investidores”. FONTE  RADAR AGTECH BRASIL 2019, 2020/21 E 2022

PESQUISA FAPESP 325 | 69


nos dois principais segmentos, dentro e depois da
fazenda, tem diminuído, mas as possíveis causas CONCENTRAÇÃO NA REGIÃO SUDESTE
ainda precisam ser pesquisadas em profundida- No Radar 2022, ​São Paulo é o estado com mais agtechs
de”, comenta Dias. De 2019 a 2022, a participação
das startups de dentro da porteira foi de 35% para
41,4%, enquanto a proporção das agtechs depois 1 2
da fazenda caiu de 47% para 44%. RR AP
A Terra App Solutions, de Belém, no Pará, en-
quadra-se em dois segmentos – antes e dentro da 6
fazenda. Criada em 2014 por pesquisadores do 4 14 1 17
RN
PA MA 7
Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazô- AM CE
PB
5
nia (Imazon), desenvolve programas para gestão PI 17
da produção, análise de risco socioambiental e 7 PE
climático de crédito rural e monitoramento de TO 2
34
áreas preservadas em propriedades rurais. 36 BA
SE
Em fase final de validação, seu mais recente MT 21
software, desenvolvido a pedido dos potenciais DF

usuários, poderá reunir dados de 2 mil produto- 32


GO 154
res que trabalham com 20 culturas diferentes, MG
15 22
como cupuaçu, cacau, açaí e mandioca, poten- MS ES
ciais compradores nacionais e internacionais 800 69
e duas instituições financeiras. “Os produtores SP RJ
podem solicitar financiamento com base em sua 176
PR
safra e os gerentes de bancos terão a segurança
para fornecer o crédito seguindo as exigências 128
dos órgãos reguladores”, explica o administrador POR REGIÃO SC

de empresas Andrew Breno, gerente comercial. 133


RS
Segundo ele, a empresa acompanha o uso do
programa, interessada em eventuais ajustes. “As
equipes das agtechs precisam trabalhar com os
usuários, para criar confiança e bons produtos”,
diz Breno. Para Dias, da Embrapa, a colabora-
ção pode evitar um erro comum: “Muitas vezes 61,4% (1.045) 25,6% (437)
Sudeste Sul
as empresas criam soluções desconectadas das
necessidades do produtor e depois precisam mu-
dar de rumo”. 6,2% (104) 5,2% (89)
Centro-Oeste Nordeste
Um problema a ser enfrentado é o acesso das
propriedades rurais à internet, que passou de 1,5% (28) Norte
5% em 2020 (ver Pesquisa FAPESP nº 287) para FONTE  RADAR AGTECH BRASIL 2022

D
23% em 2022.

FOTO  TERRAS APP SOLUTIONS  INFOGRÁFICOS  ALEXANDRE AFFONSO / REVISTA PESQUISA FAPESP


Equipe da Terras App Solutions
epois das empresas de alimentos em trabalho de campo em
e de tecnologia, o segundo maior Santa Bárbara do Pará, na
grupo de agtechs, a terceira maior Região Metropolitana de Belém
categoria é formada pelos espaços
on-line de venda de serviços e de
produtos agrícolas, incluindo ali-
mentos. São os chamados market-
places. “A pandemia obrigou muitos
setores a usar mais os serviços on-
-line que conectam fornecedores de
insumos agrícolas, produtores rurais, mercearias,
restaurantes e consumidores”, conta Dias.
A Muda Meu Mundo, de Fortaleza, começou
em 2019 e hoje reúne 650 pequenos produtores
rurais que negociam com 60 varejistas e outras
empresas de alimentação de 170 cidades das re-
giões Nordeste, Sudeste e Sul. “Eliminamos os
intermediários da cadeia de produção, como os

70 | MARÇO DE 2023
AS CINCO PRINCIPAIS CATEGORIAS DE AGTECHS NO BRASIL ANTES, DENTRO
A de alimentos inovadores continua a maior, enquanto OU DEPOIS DA FAZENDA
as de sistemas de gestão e de marketplaces crescem um pouco No Radar 2022, o maior grupo
é o de serviços de distribuição
18,6% e venda de produtos agrícolas
n 2020/21 n 2022
16,5%

756
705

10,2%
9,8%

7,3% 7,1% 7,2%


6,4%
5,0%
4,6% 242

Alimentos Sistemas de Marketplaces e Plataforma Drones, Antes da Dentro da Depois da


inovadores gestão de plataformas de integradora de máquinas e fazenda fazenda fazenda
propriedade negociação sistemas equipamentos
FONTE  RADAR AGTECH BRASIL 2022

centros de distribuição, para que o agricultor fa-


miliar possa obter um valor mais justo pelos seus
ESTRATÉGIAS DE CRESCIMENTO produtos”, diz a pedagoga Priscilla Veras, diretora
da empresa. “Em 2021 a demanda aumentou e
“Em 2020, quando entrevistei gestores de agtechs brasileiras triplicamos nosso faturamento.”
para meu doutorado, notei que são homens que dirigem a maioria Com base em sua experiência anterior com
delas”, diz o agrônomo Paulo Ramos, da Universidade Federal produtores rurais, quando trabalhou em uma
de São Carlos (UFSCar), campus de Lagoa do Sino, que não organização não governamental, Veras prepara
participou da elaboração do mapeamento da Embrapa. indicadores sobre os ganhos dos agricultores,
Ao começar o doutorado, em 2019, ele não tinha encontrado produtividade e venda, além de áreas de reflo-
nenhum levantamento sobre as agtechs brasileiras. Foi quando restamento e de participação da mão de obra
saiu a primeira versão do Radar, que o pesquisador usou para feminina. Ela é uma das 28,7% de mulheres que
identificar semelhanças entre 28 empresas que haviam atingido são sócias de agtechs no país, um mundo com
o chamado nível de escalabilidade, que define a possibilidade predomínio dos homens (71,3%), segundo o le-
de crescer, com pelo menos 10 funcionários e crescimento anual vantamento da Embrapa, que em 2022 trouxe
da receita de 20% por pelo menos três anos seguidos. pela primeira vez o recorte de gênero. Apesar
Como descrito em um artigo publicado em janeiro de 2022 na da participação menor, já existem fundos de
Revista de Gestão, Ramos identificou cinco pontos decisivos para investimento ou de capital de risco focados em
o crescimento dessas empresas. O primeiro é a estrutura de startups de mulheres, como os da Microsoft, We
governança bem definida, com conselhos consultivo e Ventures, EB Capital, Mubius e Sororitê, citados
deliberativo que avaliam periodicamente o plano estratégico. no mapeamento.
O segundo é a formação de equipes especializadas. O terceiro, O Radar reconhece: “As produtoras rurais en-
a definição clara do papel de cada departamento e funcionário, frentam mais obstáculos do que os homens no
algo que, segundo o pesquisador, não ocorre em muitas startups, acesso a recursos e serviços produtivos, tecnolo-
onde uma mesma pessoa desempenha várias atividades. gia, informações de mercado e ativos financeiros.
O quarto, a atenção com os recursos humanos, aprimorados As mulheres estão sub-representadas em institui-
continuamente por meio de cursos e motivados com a ções locais e nos mecanismos de governança”. n
participação nos lucros da empresa. Por fim, um modelo de
negócios validado com os clientes, com o conhecimento do
Artigo científico
público-alvo e de suas necessidades. “A falta de um plano
RAMOS, P. H. B. e PEDROSO, M. C. Main elements involved in the
de negócios consistente antes de se estruturar é o erro mais startup scalability process: A study on Brazilian agtechs. Revista de
comum das startups agrícolas”, avalia Ramos. Gestão. v. 29, n. 3, p. 220-37. jan. 2022.

PESQUISA FAPESP 325 | 71


GÊNERO

TETOS
DE VIDRO E PAREDES
DE CRISTAL
Mulheres enfrentam barreiras para
a ascensão no serviço público brasileiro

Diego Viana  |  ILUSTRAÇÃO  Clarice Wenzel

E
mbora já correspondam a mais de me- contra a mulher, ao passo que 17 países da região
tade da força de trabalho na burocracia já legislavam sobre o tema”, afirma a economista
brasileira (59%), as mulheres ocupam Daniela Verzola Vaz, da Escola Paulista de Política,
menos de 20% dos cargos de direção. Economia e Negócios da Universidade Federal de
O número, divulgado em dezembro no São Paulo (Unifesp).
estudo “Mulheres líderes no setor pú- “Há pouco reconhecimento de que a desigualdade
blico da América Latina e do Caribe”, de gênero seja um problema no setor público bra-
do Banco Interamericano de Desenvol- sileiro e, como consequência, existem poucas polí-
vimento (BID), coloca o país em posição ticas públicas a respeito”, observa. Vaz acrescenta
inferior à da maioria dos vizinhos na região. Países que, nos cargos em comissão do grupo Direção e
como Argentina (40,7%), Colômbia (47,1%) e Costa Assessoramento Superiores (DAS) do Poder Exe-
Rica (53,5%) caminham, pelo menos à primeira cutivo federal, a proporção de mulheres no nível 6,
vista, para a paridade de gênero no setor público. mais alto na hierarquia, era de 22% no final do ano
Os dados revelam o quanto o fenômeno conhe- passado. “Esse percentual pouco avançou na última
cido como “teto de vidro” ainda impõe barreiras à década: estava em 20,9% em novembro de 2009”, diz.
ascensão profissional para lideranças femininas no O resultado também reflete a falta de profissio-
continente, barreiras ainda mais difíceis de trans- nalização na alta administração pública, explica
por para as negras. A metáfora do teto de vidro foi a cientista política Gabriela Lotta, coordenadora
cunhada em 1978 pela consultora norte-americana do Núcleo de Estudos da Burocracia da Escola de
Marylin Loden (1946-2022) para se referir ao setor Administração de Empresas da Fundação Getu-
privado, denunciando os obstáculos muitas vezes lio Vargas de São Paulo (FGV) e pesquisadora do
invisíveis que impedem a ascensão das mulheres Centro de Estudos da Metrópole (CEM), da USP.
aos cargos mais altos. Mas o teto também cobre a As políticas de gênero adotadas em países como
cabeça das profissionais da administração pública. Chile, México e Peru compõem uma estratégia de
O relatório aponta que as mulheres compõem profissionalização que envolveu a criação de pro-
52% do funcionalismo dos países estudados. No cessos seletivos e critérios claros para preencher
entanto, são apenas 23,6% nos cargos classificados cargos comissionados, que são de livre indicação e
como de nível 1 (equivalente a ministro) e 44,2% correspondem a funções de alta remuneração. Isso
nos cargos de nível 4 (diretor). No Brasil, embora ainda não ocorreu no Brasil. “Não é uma política de
as mulheres, de acordo com o Atlas do Estado bra- Estado. Por isso o tema de gênero fica fora”, afir-
sileiro, produzido pelo Ipea, sejam quase 59% dos ma Lotta, acrescentando que o presidencialismo
servidores, são apenas 18,6% nos cargos de lide- de coalizão vigente no país dificulta a profissio-
rança, nos quatro níveis, conforme o relatório do nalização, na medida em que favorece a ocupação
BID. Separando pelos níveis estudados, em 2022 política dos cargos comissionados.
elas eram 19,3% no nível 4, 22,1% no nível 3 (sub- A segregação de gênero não é só vertical. Os se-
secretária) e 9,1% no nível 2 (secretária). tores em que as mulheres estão mais presentes
No nível mais alto, o BID considerou ministérios e conseguem ascender são os tradicionalmente
de 12 setores, como Fazenda, Desenvolvimento associados ao feminino, aqueles principalmente
Social, Trabalho, Educação e Relações Exteriores. ligados ao cuidado, como educação e saúde. Já os
Por isso, não foram contabilizadas as três ministras espaços que a cultura associa ao masculino, como
que integraram o governo anterior, e o Brasil figu- a economia e a defesa, continuam majoritariamen-
ra no relatório como não tendo nenhuma mulher te ocupados por homens. Nesses, a remuneração
ocupando essa posição em 2022. Atualmente, há também costuma ser mais alta. É a chamada “se-
11 ministras, de um total de 37 (29,7%). gregação horizontal”.
“A péssima posição do Brasil não surpreende. Mesmo nos países com maior igualdade de gêne-
Também está entre os países mais mal avaliados ro, a segregação horizontal persiste, aponta o BID.
da América Latina no que diz respeito aos direi- Na América Latina, as mulheres ocupam 45,9%
tos políticos das mulheres e à paridade política dos cargos de liderança dos setores de desenvol-
entre homens e mulheres. Até 2006, nem sequer vimento social, educação, saúde e trabalho. Já em
dispunha de legislação específica sobre violência setores como planejamento, relações internacio-

PESQUISA FAPESP 325 | 73


nais, segurança e obras públicas são apenas 38%. as profissionais de relações exteriores tentando
No Brasil, conforme o Atlas do Estado brasileiro, se desenvolver no ambiente masculino do Itama-
as mulheres são 34,6% das advogadas da União, raty. Os problemas vão desde chefes que recusam
27,7% das auditoras de finanças e 15,3% das dele- a indicação a postos aos quais teriam direito até o
gadas da Polícia Federal, funções mais bem remu- direcionamento para funções de menor prestígio.
neradas. Em carreiras de salário menor, como no Ampliar a presença de mulheres em posições
ensino público básico, são 73%, e no atendimento de liderança na burocracia diz respeito também
da saúde 70%. Esses dados são parte da explica- à capacidade que o Estado tem de oferecer ser-
ção para a diferença de aproximadamente 25% na viços adequados à população. O vínculo entre a
remuneração de homens e mulheres no funciona- composição da sociedade, em termos de gênero,
lismo brasileiro, um vão que praticamente não se raça, religião e outras categorias, e a dos funcio-

A
alterou desde o início deste século. nários públicos é estudado sob a rubrica da “bu-
rocracia representativa”.
segregação horizontal também é ob- De acordo com Godinho, o conceito foi desen-
jeto de uma metáfora arquitetônica. volvido pela ciência política por influência do li-
Não só o teto é de vidro, mas também vro The concept of representation (O conceito de
as paredes. Algumas autoras usam a representação, 1967), da cientista política norte-
expressão labirinto de cristal. “Em- -americana Hanna Pitkin, e inicialmente se referia
bora menos usado, esse conceito é à representação parlamentar. Pitkin questionava
igualmente importante para expli- se a representação estaria relacionada apenas a
citar os problemas que as mulheres ideias e interesses do eleitorado ou se também
enfrentam, que não se limitam à as- à composição da sociedade. Na década de 1990,
censão. Nas ocupações tradicionalmente mascu- outra cientista política norte-americana, Anne
linas, as mulheres se defrontam com todo tipo de Phillips, ampliou o argumento, com o livro The
barreira, como a dupla jornada, os preconceitos e politics of presence (A política da presença, 1995),
diversos tipos de violência”, enumera a cientista mostrando que determinados grupos sociais têm
política Letícia Godinho, uma das coordenadoras experiências e vivências que outros grupos não
do Grupo de Pesquisa Estado, Gênero e Diversidade conseguem representar.
da Fundação João Pinheiro (FJP). Não demorou para o princípio ser adotado pelos
Menos quantificável que o teto de vidro, o la- estudos da administração pública para analisar o
birinto de cristal transparece de outras manei- que muda quando policiais, professores e agentes
ras, caso do documentário Exteriores: Mulheres da saúde são oriundos do mesmo gênero, raça, clas-
brasileiras na diplomacia, lançado em 2018 pelo se, religião ou território dos receptores das políticas
Grupo de Mulheres Diplomatas. O filme mostra públicas. “A atuação do burocrata não é só técnica.

PARTICIPAÇÃO DE MULHERES EM CARGOS DE LIDERANÇA


Percentuais indicam a presença e distribuição, por nível hierárquico,
de mulheres no Executivo federal da América Latina e Caribe

n Nível 1 n Nível 2 n Nível 3 n Nível 4


FONTE BID

57,8%
52,5% 53,0%
47,7% 47,7%

41,7%
39,3%
33,8% 33,3%

25,5% 24,8%
21,7% 21,5% 22,1%
19,3%

5,0%

Participação paritária Rumo à paridade Participação baixa Participação muito baixa


(>50%) (41% — 50%) (30% — 40%) (<30%)
Trinidad e Tobago Panamá, Colômbia, Argentina, Peru, El Salvador, Guatemala e Brasil
e Costa Rica Paraguai e Rep. Dominicana Uruguai, Chile, Equador e México

74 | MARÇO DE 2023
a nomeação da economista Luciana Servo como
PERCENTUAL DE MULHERES primeira negra a presidir o Instituto de Pesquisas

NOS DISTINTOS NÍVEIS DE LIDERANÇA Econômicas Aplicadas (Ipea).


Porém a mera presença de indivíduos de um gru-
Pirâmide mostra que cargos elas ocupam po social nas carreiras públicas não é garantia de que
as condições de vida e os problemas daquele grupo
no Executivo federal da América Latina e Caribe 
serão reconhecidos, alerta Lotta, diferenciando a
“representação passiva”, que apenas reflete nos re-
23,6%
Nível 1
Ministra
presentantes a origem demográfica dos represen-
tados, da “representação ativa”, que produz resul-

30,9%
Nível 2 tados capazes de refletir os anseios da população.
Vice-ministra Nos Estados Unidos, as pesquisas que investi-
gam a relação entre a representação ativa e a pas-
40,3%
Nível 3
Subsecretária siva têm resultados inconclusivos, explica Lotta.
Foi identificada correlação muito variada entre
44,3%
Nível 4
as funções exercidas e a capacidade de responder
Diretora
aos anseios de segmentos sociais que depende do
FONTE BID setor de políticas e do grupo representado. No ca-
so das forças de segurança, por exemplo, algumas
Trata-se de um sujeito social, carregado de valores pesquisas mostram poucos sinais de que policiais
e histórias. Isso determina como ele desempenha negros ajam de maneira menos discriminatória do
seu papel”, resume Godinho. “Uma pergunta que que os brancos. No caso de professores, os indí-
os estudos sobre burocracia representativa bus- cios são mais fortes. “No Brasil, esses estudos são
cam responder é: como garantir que as pessoas muito raros e é ainda mais difícil tirar conclusões”,
que trabalham em nome do público produzam diz a professora da FGV. Godinho assinala que, no
políticas públicas pertinentes para esse público?” caso do Legislativo, as pesquisas sugerem que um
A pesquisadora ressalta que é necessária uma maior número de mulheres parlamentares tende a
abordagem interseccional, ou seja, não limitada produzir mais políticas voltadas para as mulheres.
a uma única categoria. “Apesar de ser mãe, se eu Como o processo de entrada no serviço público
fosse vereadora, nunca teria pensado em propor a brasileiro se dá por meio de concursos, e muitas
criação de creches noturnas”, comenta, à guisa de carreiras na administração do Estado têm planos
exemplo. “Mas foi o que propôs Marielle Franco claros de progressão, existe a ideia de que esse
[1979-2018] em 2017 no Rio de Janeiro. Para mães setor seria imune a questões de gênero e raça e,
como eu, a creche é importante durante o dia, mas por isso, tenderia a ser igualitário. Embora não
muitas mulheres pobres, a maioria negra, precisam seja uma noção de todo equivocada, ela é menos

O
ter onde deixar os filhos durante a noite.” verdadeira quanto mais os concursos são presti-
giados e concorridos, aponta Lotta.
mesmo vale para o alto escalão. O prin- Um motivo é a realidade social em que esses
cípio da burocracia representativa ex- concursos ocorrem. Para ser aprovado, é preciso
plica por que “a presença de mulheres estudar intensamente e, muitas vezes, abdicar de
em cargos de liderança torna visíveis outras atividades profissionais durante alguns anos.
experiências até então invisíveis e, “A trajetória das mulheres torna quase inconcebí-
com elas, interesses, prioridades e vel parar para estudar quando se tem cerca de 25
perspectivas diferentes das de seus anos”, diz a cientista política. As regras internas de
homólogos masculinos”, conforme progressão também não costumam levar em conta
o relatório do BID. A participação diferenças como o tempo dedicado à maternidade.
igualitária não é apenas um fim em si mesmo, mas Assim, as desigualdades da sociedade se refletem
INFOGRÁFICOS ALEXANDRE AFFONSO / REVISTA PESQUISA FAPESP

também um instrumento que “promove objetivos na composição do funcionalismo.


adicionais de cobertura, eficiência e eficácia dos Outras barreiras são ainda mais explícitas. Em
serviços”, prossegue o documento. 2013, o Supremo Tribunal Federal invalidou con-
Um episódio ilustrativo ocorreu nos primeiros cursos da polícia sul-mato-grossense que reser-
dias deste ano, quando a ministra do Planejamento, vavam vagas de formação de oficiais apenas a ho-
Simone Tebet, começou a montar seu secretariado. mens. “Também há critérios, na prática, que aca-
Tebet se deparou com uma dificuldade: nomear bam excluindo a mulher do concurso, porque ela
mulheres negras para cargos de direção. Ato con- se vê em desvantagem e prefere nem participar”,
tínuo, o gabinete da ministra da Igualdade Racial, comenta Lotta.
Anielle Franco, enviou uma lista com nomes de po- Godinho cita o caso da “Carta europeia para
tenciais candidatas. O resultado da interação entre a igualdade das mulheres e dos homens na vida
as ministras foi anunciado em 24 de janeiro, com local”, publicada em 2006 pelo Conselho de Mu-

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nicípios e Regiões da Europa, como exemplo de
LEGISLAÇÃO RELACIONADA À IGUALDADE iniciativa que visa remover barreiras como essas.

DE GÊNERO NA AMÉRICA LATINA E CARIBE, Há também guias como o Manual de boas práticas
para promoção de igualdade de gênero, publicado
POR PAÍS pelo Ministério Público do Trabalho em 2018, vi-
sando, entre outras coisas, reduzir a ocorrência
de questões discriminatórias em entrevistas de
contratação. Entre as proscritas, estão: “É casada?
Paridade na Cotas de Medidas na Leis ou
Tem filhos? Pretende ter?”.
constituição gênero na legislação decretos sobre Os mecanismos de promoção da igualdade de
administração pública de igualdade de gênero no Brasil são escassos, em comparação com
pública emprego gênero os vizinhos. Conforme o BID, países como Bolívia,
México e Equador inscreveram a paridade de gêne-
Argentina ro em seus textos constitucionais. Colômbia, Haiti
e Panamá têm cotas de gênero na administração
Bahamas
pública. Outros países têm medidas de paridade
Barbados na legislação do emprego público. No Brasil, desde
1997 há cotas apenas para candidaturas legislativas.
Belize A Lei de Cotas do Serviço Público, de 2014, reser-
va 20% de vagas em concursos para candidaturas
Bolívia de pessoas negras, mas não contempla o gênero.
“Não tem panaceia para obter a igualdade. É
Brasil
um erro pensar que basta os concursos não privi-
Chile legiarem os homens para as mulheres ocuparem
os espaços”, alerta Lotta. “O problema é multi-
Colômbia dimensional. É preciso recorrer a vários meca-
nismos articulados.” Para ela, essa é a função de
Costa Rica
ações afirmativas, como cotas de admissão e de
Equador
preenchimento de cargos, além de programas de
formação de lideranças femininas, manuais de boas
El Salvador práticas, regras claras de progressão, entre outras.
Entre as medidas a adotar, as pesquisadoras são
Guatemala unânimes em mencionar a urgência de equiparar
a licença-maternidade e a licença-paternidade.
Guiana
No serviço público brasileiro, a mãe tem direito a
Haiti 180 dias, enquanto o pai pode tirar apenas 20. Essa
diferença condena muitas mulheres à estagnação
Honduras profissional. A legislação considerada mais avançada
é a da Suécia, onde os pais têm direito a 480 dias,
Jamaica divididos segundo a escolha de ambos, mas com
um mínimo de 90 dias para cada um e bônus caso
México
a partilha seja igualitária. “Assim, o casal pode re-
Nicarágua vezar igualmente o tempo de trabalho com o tempo
dedicado ao cuidado com os filhos”, argumenta Vaz.
Panamá Outra iniciativa que tem apresentado bons re-
sultados é a mentoria, em que profissionais mais
Paraguai experientes apadrinham colegas em início de car-
INFOGRÁFICO  ALEXANDRE AFFONSO / REVISTA PESQUISA FAPESP

reira. A mentoria ocorre frequentemente no con-


Peru
texto de programas de formação de lideranças fe-
Rep. Dominicana mininas, que procuram ativamente as profissionais
com mais potencial, oferecem cursos e auxiliam
Suriname no enfrentamento das barreiras. Lotta recorre ao
impasse do Ministério do Planejamento este ano
Trinidad e Tobago
para ressaltar a importância desses programas.
Uruguai
“Se o problema é não conseguir encontrar essas
mulheres, então vamos formá-las.” n
Venezuela
Os artigos científicos e os livros consultados para esta reportagem
FONTE BID estão listados na versão on-line.

76 | MARÇO DE 2023
HISTÓRIA

“E
ARTE
u não gosto de dar pancadas”, dis-
se Clemência aos convidados na

×
volta à sala de estar, após chico-
tear e bater em duas escravizadas
que haviam quebrado a louça na
cozinha. A cena está em Os dois
ou o inglês maquinista, comédia
escrita pelo dramaturgo carioca

ESCRAVIDÃO
Martins Pena (1815-1848), ence-
nada em 1845, no Rio de Janeiro.
“Com essa passagem, Martins
Pena ratifica o que todos os seus
espectadores à época já sabiam: a violência física
contra os escravizados era habitual e rotinei-
Estudos mostram como o teatro ra. Há aí claramente uma crítica à escravidão e
não apenas um registro dos costumes”, afirma o
e a música participaram do historiador João Roberto Faria, autor do recém-
ILUSTRAÇÃO YHURI CRUZ

-lançado Teatro e escravidão no Brasil (editora


processo de emancipação de Perspectiva, 2022).
escravizados no Brasil do século XIX O livro é resultado de cinco anos de pesqui-
sa. Nele, o estudioso investiga um período de
Ana Paula Orlandi 50 anos de atividades teatrais no país, de 1838

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até a decretação da Lei Áurea, em 13 de maio censura”, relata a historiadora Silvia Cristina
de 1888. Dentre as fontes utilizadas por Faria Martins de Souza, da Universidade Estadual
está material publicado na imprensa da época de Londrina (UEL).
e também textos – 20 deles estão depositados Dentre os censores da instituição figuravam
no site Raros e inéditos – da dramaturgia bra- intelectuais como o próprio Martins Pena e
sileira do século XIX, projeto do Centro de Machado de Assis (1839-1908). Um dos textos
Documentação Teatral da Escola de Comuni- vetados foi O marujo virtuoso ou os horrores do
cações e Artes da Universidade de São Paulo tráfico da escravatura, de João Julião Federado
(ECA-USP), coordenado pelo historiador e Gonnet, francês radicado no Brasil. Censurada
por Elizabeth Ribeiro Azevedo, professora da em 1844 nos palcos do Rio de Janeiro, mas pu-
mesma unidade. “Busquei mostrar que o tea- blicada em 1851, a peça compilava depoimentos
tro brasileiro colaborou intensamente para a de vários traficantes de escravizados
formação de uma consciência antiescravista colhidos pelo autor. “Dois censo-
nos espectadores, bem como atuou na linha res foram designados para dar
de frente do abolicionismo na década de 1880, os pareceres e ambos negaram
por meio de mais de uma centena de peças a licença [para a peça ser apre-
teatrais escritas, publicadas e encenadas em sentada no Rio de Janeiro]. Um de-
todo o Brasil naquele momento”, explica Faria, les afirmou que a peça apresentava
professor aposentado de literatura brasileira ‘um tecido de maldades sem contraste
da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências nenhum’, que era escrita em ‘péssima lin-

O
Humanas (FFLCH) da USP. guagem’ e que, ‘quando não fora isso, o objeto
da peça não me parece admissível nas circuns-
ponto de partida do livro é Juiz tâncias do país’”, anotou Faria na obra, para
de paz da roça, escrita em 1833 depois prosseguir: “As poucas palavras desse
e apontada como a primeira parecer, que não discute a peça, e que nada fala
comédia de costumes do tea- de seu enredo e personagens, indicam apenas
tro brasileiro. A peça também vagamente a razão da censura. É preciso es-
marcou a estreia de Martins clarecer quais eram as ‘circunstâncias’ em que
Pena como dramaturgo e en- vivia o país, ou seja, dizer que as autoridades
trou em cena em 1838, no Rio. e a população eram coniventes com o tráfico
“O enredo nada tem a ver com ilegal de africanos.”
a escravidão, mas o assunto é
introduzido já na cena de aber- SEM EMPATIA
tura quando uma das perso- O demônio familiar, de José de Alencar (1829-
nagens se queixa do excesso de trabalho do -1877), trouxe pela primeira vez na dramaturgia
marido, um lavrador pobre que tem apenas um brasileira um protagonista negro. A comédia, que
escravizado”, conta Faria. estreou em 1857, no Teatro Ginásio Dramático,
“Nos anos 1830 e 1840, quando Martins Pena no Rio de Janeiro, é centrada em Pedro, um jo-
produziu sua obra, era tabu falar de escravidão, vem escravizado que fazia trabalho doméstico
instituição aceita pela maioria da população e, com suas intrigas, gerava uma série de
brasileira naquele momento”, comenta o histo- problemas para seu proprietário. “A peça
riador Antonio Herculano Lopes, pesquisador tem um tom moralista: Alencar mostra
da Fundação Casa de Rui Barbosa (FCRB). “O homens e mulheres corrompidos
foco principal de Martins Pena estava na so- pela convivência com escraviza-
ciedade livre, branca e mestiça, mas aqui e ali dos e defende que a única forma
a questão da escravidão aparece em seus en- de extirpar esse mal seria eliminar
redos. Mesmo que o tema da escravidão fosse a escravidão do interior da família
abordado de forma lateral, isso não era pouco brasileira”, conta Souza, autora de livros
para a época”, prossegue Lopes, especialista como O palco como tribuna: Uma interpretação
em história do teatro brasileiro. de O demônio familiar, de José de Alencar (Aos
De acordo com o livro, várias peças críticas à quatro ventos, 2003). “Ao final, Pedro é castiga-
escravidão foram proibidas pelo Conservatório do com a alforria, para que cuidasse sozinho da
Dramático Brasileiro (CDB), criado em 1843, no própria vida. Alencar não demonstra empatia
Rio de Janeiro, por um grupo de intelectuais, pelo escravizado, mas, sim, pelo senhor.”
escritores e jornalistas, como o poeta Gonçalves Faria concorda. O historiador lembra que o
de Magalhães (1811-1882). “Planejado para ser autor cearense escreveu a peça aos 28 anos de
uma associação que reunia homens interessados idade, antes de se tornar o político conserva-
nas artes cênicas, logo o CDB foi encampado dor que se colocaria contra a Abolição abrupta
pelo governo imperial como órgão oficial de da escravidão e a Lei do Ventre Livre (1871).

78 | MARÇO DE 2023
“O demônio familiar abriu caminho para uma da como a brasileira de então, de acordo com
discussão sobre as inconveniências da escra- o historiador. “Os teatros brasileiros atraíam
vidão doméstica e como acabar com ela. Para um público bem variado, da elite aos mais po-
os contemporâneos de Alencar, era o bastante bres. Era um lugar não apenas para se assis-
para enxergar na peça um conteúdo antiescra- tir ao espetáculo, mas também para ver e ser
vista”, diz. visto. Sem contar que as críticas publicadas
O espetáculo atraiu a atenção da crítica e foi na imprensa reverberavam o conteúdo desses
apresentado em diversas cidades brasileiras até espetáculos para quem não tivesse visto a pe-
a década de 1880. “Foi um sucesso retumbante, ça”, relata Lopes.
o maior da carreira dramatúrgica de Alencar”,
diz Souza. Segundo a historiadora, em 1860 a O MAESTRO DA ABOLIÇÃO
peça ganhou adaptação em Portugal “Na década de 1880 o movimento abolicionis-
e o papel de Pedro coube à atriz ta contou com o apoio expressivo de músicos,
Emília Adelaide (1836-1905). muitos deles de ascendência africana”, infor-
No Brasil, o personagem foi in- ma a historiadora Manuela Areias Costa, da
terpretado, por exemplo, pelas Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul
atrizes-mirins Julieta dos Santos (Uems). Era o caso do regente, instrumentista
e Gemma Cuniberti – esta última, em e compositor baiano Manoel Tranquilino Bas-
italiano. “Como o personagem é negro e tos (1850-1935), conhecido como o “maestro

F
os elencos das companhias eram mestiços da Abolição”.
e brancos, tudo nos leva a crer que os atores
tenham feito o uso de maquiagem blackface pa- ilho de um imigrante português
ra interpretar Pedro”, observa a pesquisadora. e de uma liberta, Bastos fundou
em 1870 a banda de música So-
GRANDE ALCANCE ciedade Euterpe Ceciliana, em
“Com o passar do tempo, a forma de falar sobre Cachoeira, sua cidade natal,
a escravidão foi mudando em nosso teatro”, ava- cujos integrantes eram oriundos
lia Souza. “A partir da campanha abolicionista de camadas populares. Defensor
essa denúncia tornou-se mais nítida.” Assim, em da monarquia, Bastos se engajou
1879, os teatros cariocas acolheram as primeiras no movimento abolicionista em
conferências emancipadoras, depois conhecidas 1884, quando ingressou na Socie-
como matinês abolicionistas. Encabeçadas por dade Libertadora Cachoeirana,
Vicente de Souza (1853-1908), José do Patrocí- criada naquele mesmo ano. “O
nio (1853-1905) e André Rebouças (1838-1898), hino abolicionista [1884], uma das várias músi-
líderes abolicionistas, tinham na programação cas que escreveu, foi tocado em festividades e
concertos, declamação de poemas, apresenta- encontros públicos promovidos pela entidade
ção de pequenas comédias e trechos de peças. para arrecadar fundos e alforriar escravizados.
“O teatro lotava, às vezes com gente do lado de Ele compôs outras músicas de mesmo teor”,
fora”, registrou em artigo Angela Alonso, da diz Costa, que pesquisou a trajetória de Bastos
FFLCH-USP, autora do livro Flores, votos em seu doutorado, defendido na Universidade
e balas – O movimento abolicionista bra- Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), em 2016.
sileiro (1868-88), publicado em 2015, Conforme a pesquisadora, Bastos não esteve
pela Companhia das Letras. sozinho na empreitada musical pelo fim da es-
São dessa época espetácu- cravidão. Em 1881, por exemplo, aconteceu um
los como A emancipadora, do concerto em São Paulo, organizado pelo maestro
paraense José de Lima Penante João Pedro Gomes Cardim (1832-1918), em prol
(1840-1892), que estreou em Forta- da Caixa Emancipadora Luís Gama, fundada na-
leza, em 1881, no Teatro São José, inspi- quele ano. Para a festa, Cardim compôs o Hino
rado na greve dos jangadeiros que se recusaram da Abolição, com letra de Brazil Silvado. “Essas
a transportar escravizados para os navios, em iniciativas exerceram um papel fundamental
janeiro daquele ano, na capital cearense. “Mes- para que a campanha contra a escravidão saís-
mo em peças que não abordavam essa temática, se da esfera político-parlamentar e chegasse à
a estrela da montagem costumava anunciar ao população de forma geral, inclusive às camadas
final do espetáculo mensagens a favor da Abo- populares”, conclui Costa. n
lição ou mesmo que a companhia teatral iria
comprar a carta de alforria de escravizados”,
diz Lopes, da FCRB. Artigo científico
Os espetáculos tinham grande alcance, so- SOUZA, S. C. M. de. O demônio familiar, de José de Alencar, no Teatro
bretudo em uma sociedade pouco alfabetiza- D. Maria II (Lisboa, 1860). Topoi. v. 22, n. 46. 2021.

PESQUISA FAPESP 325 | 79


POLÍTICAS PÚBLICAS

AMPLITUDE
Veículo do Samu
chega com paciente ao
Hospital das Clínicas de
São Paulo: 19 milhões
de ligações por ano

DA SIRENE
C
om quase duas décadas de
atividade, o Serviço de Aten-
dimento Móvel de Urgên-
cia (Samu), uma importante
porta de entrada do Sistema
Estudo revela uma cobertura Único de Saúde (SUS), teve
seu desempenho avaliado
disseminada, mas ainda desigual pela primeira vez em uma
pesquisa de abrangência
e imperfeita, do sistema nacional. De acordo com um levanta-
de ambulâncias do Samu mento realizado pela enfermeira Marisa
Malvestio, pesquisadora do Programa de
Pós-doutorado da Escola de Enfermagem
da Universidade de São Paulo (EE-USP),
o serviço público de ambulâncias aciona-
do pelo telefone 192 transformou-se em
um microcosmo tanto das grandes rea-
lizações quanto das dificuldades do SUS.
O Samu foi o primeiro fruto da Política
Nacional de Urgências, criada em 2003,
e atualmente assiste 85% da população de enfermagem e motoristas socorristas No outro preprint, ela observou que
em 67,3% dos municípios do país. Em seria capaz de utilizar no máximo 67% o número de procedimentos realiza-
2019, seus serviços foram requisitados dos veículos. Já no suporte avançado, dos aumentou 28,5% entre 2015 e 2019.
em ligações telefônicas feitas por mais de composto por UTIs móveis, há médicos “Com o envelhecimento da população,
19 milhões de brasileiros. Isso resultou suficientes para apenas 36% da frota. a demanda por serviços de emergência
em quase 4,3 milhões de atendimentos Assim, enfermeiros, acompanhados ou aumenta bastante. Isso vem ocorrendo
realizados por ambulâncias, UTIs mó- não por técnicos de enfermagem, aca- em muitos países e começa a acontecer
veis e, em quantidade bem inferior, he- bam atuando em ambulâncias de suporte no Brasil também”, afirma.
licópteros, embarcações e motocicletas avançado sem a presença de médicos em Diariamente, as unidades de suporte
– cerca de um atendimento para cada cerca de 60% dos atendimentos. básico realizam 3,3 atendimentos e as de
quatro ligações. A pesquisadora destaca que o socorro suporte avançado 2,7. “A média interna-
Os números extraordinários do Samu chega, em média, em aproximadamente cional é de sete atendimentos diários. No
escondem, contudo, uma desigualdade 30 minutos. “Isso é insuficiente para a sistema da Inglaterra, chega a 11. Prova-
persistente no serviço que proporciona. pior das emergências, a parada cardior- velmente, só temos 3,3 porque muitos
Em um artigo publicado em julho de 2022 respiratória, que precisa ser revertida dos recursos móveis não têm equipes pa-
na revista Ciência & Saúde Coletiva, Mal- em seis minutos. Embora essas limita- ra operá-las 24h por dia ou cobrem áreas
vestio e sua supervisora, Regina Márcia ções gerem riscos para muitos pacien- muito extensas, o que acarreta longos
Cardoso de Sousa, docente da EE-USP, tes, o Samu salva vidas o tempo todo e deslocamentos, entre outros motivos”,
reuniram dados do Ministério da Saúde tem uma força de trabalho que atua de sugere. O telefone 192 dá acesso a uma
e do Instituto Brasileiro de Geografia e forma apaixonada. A Força Nacional do central de regulação de urgência e emer-
Estatística (IBGE) e mostraram que, em- SUS, que agora está socorrendo a emer- gência, em que telefonistas atendem as
bora a cobertura tenha aumentado mais gência sanitária do povo Yanomami em ligações e as repassam a um profissional
de 5% no período de 2015 a 2019, alcan- Roraima, é composta, em grande parte, com formação médica. Ele identifica a
çando 178 milhões de brasileiros, ainda por profissionais do Samu que se candi- gravidade, faz um primeiro diagnóstico
existem lugares sem nenhum suporte ou dataram para essa missão”, diz. e define a prioridade e a necessidade de
onde há disponíveis poucas ambulâncias
compartilhadas por vários municípios.
Em 2019, contavam-se 1.820 cidades SOCORRO DESIGUAL
sem acesso ao serviço, principalmente
na região Norte - há exceções, como os Distribuição de municípios com ambulâncias de suporte básico,
estados de Roraima e Acre, com boa co- também com suporte avançado (UTIs móveis), com atendimento
bertura de ambulâncias, mas poucas UTIs compartilhado por cidades vizinhas e sem cobertura do Samu
móveis disponíveis. Em 1.938 cidades, o
Samu ele era oferecido por consórcios
municipais, seguindo a lógica de regio-
nalização de atendimento do SUS. “Essa
lógica é cruel, já que uma ambulância
pode estar a 90 quilômetros do local em
que é feita a chamada”, explica a pes-
quisadora, que trabalha no atendimento
pré-hospitalar por ambulâncias na cidade
de São Paulo desde 1990 e participou da
implantação do Samu a partir de 2003.
A pesquisa de pós-doutorado de Mal-
vestio originou outros dois estudos divul-
gados no repositório SciELO Preprints,
cujo conteúdo está sendo avaliado por
periódicos científicos. Um deles mostra
a evolução da força de trabalho do Sa-
mu, que cresceu 14% entre 2015 e 2019,
LÉO RAMOS CHAVES / REVISTA PESQUISA FAPESP 

mobilizando 41,4 mil profissionais, como


UTIs móveis
médicos, enfermeiros, técnicos em en-
Apenas veículos de suporte básico
fermagem, telefonistas, condutores de
Cobertura regional
ambulância, entre outros. Os recursos
humanos são claramente insuficientes Descoberto

para a operação dos 3.648 veículos dis-


poníveis. Nas ambulâncias de suporte bá-
sico, acionadas em casos de menor com-
FONTE  MARISA MALVESTIO, COM BASE EM
plexidade, o contingente atual de técnicos DADOS DO IBGE/MINISTÉRIO DA SAÚDE

PESQUISA FAPESP 325 | 81


enviar um recurso móvel – uma ambu- tornar um grande observatório da saúde
lância comum ou uma UTI móvel. pública. “A ideia era que, se soubéssemos PARA ENTENDER O SAMU
O custeio do sistema deveria ser tri- quais eram os problemas, a sua gravidade
partite, com o governo federal bancando e o local onde ocorriam, seria possível CENTRAL DE REGULAÇÃO
50% dos custos – os repasses anuais do conhecer os principais desafios da saúde DE URGÊNCIA (CRU)
Atendimento telefônico responsável
Ministério da Saúde estão na casa de R$ pública do país e preparar o SUS para
por receber demandas
1,3 bilhão. Estados e municípios dividi- enfrentá-los”, afirma O’Dwyer.
riam a outra metade. Na prática, algu- O atendimento de urgência em ambu- RECURSOS MÓVEIS
mas unidades da federação arcam com lâncias tem dois modelos principais no Ambulâncias de suporte básico ou
avançado, motolâncias, embarcações,
a parte dos municípios. “O Ministério mundo. Um deles, o dos Estados Unidos,
aeromédicos
da Saúde define como deve ser a orga- baseia-se num tipo de profissional trei-
nização do serviço, compartilha custeio nado para o atendimento pré-hospitalar: UNIDADE DE SUPORTE
e investimento, distribui ambulâncias e o paramédico. O outro, que de certa for- BÁSICO TERRESTRE (USB)
Ambulâncias de atendimento de
fiscaliza, mas quem opera, faz a gestão ma inspira a experiência brasileira, é o
pacientes de menor complexidade
e tem o poder decisório é o município vigente em países da Europa. “Na Fran-
ou um conjunto deles, associados em ça, os veículos precisam ter um médico, UNIDADE DE SUPORTE

A
consórcios”, afirma Malvestio. o que torna o serviço muito mais caro”, AVANÇADO TERRESTRE (USA)
UTIs móveis usadas no transporte de
diz Marisa Malvestio. O sistema francês,
pacientes de alto risco em emergências
médica Gisele O’Dwyer, implantado em 1986 com o nome Service pré-hospitalares ou entre hospitais.
pesquisadora da Escola d’Aide Médicale Urgente (serviço de as- Conta com um médico e um enfermeiro,
Nacional de Saúde Públi- sistência médica urgente), emprestou ao além do motorista socorrista
ca da Fundação Oswaldo nosso sistema a sigla Samu. “Em outros
MOTOLÂNCIA
Cruz (Ensp-Fiocruz), diz países, como Inglaterra e Suécia, há pre- Motocicletas conduzidas por
que um dos méritos da sença maior de enfermeiros e com isso é enfermeiros ou técnicos de enfermagem
investigação de Malvestio possível cuidar de mais gente”, afirma. treinados para acesso rápido ou em
locais onde ambulâncias não chegam
é apresentar uma análise O médico Oswaldo Tanaka, do Depar-
do Samu de forma integral. tamento de Política, Gestão e Saúde da EMBARCAÇÃO
“Foram feitos vários estudos de caráter Faculdade de Saúde Pública (FSP) da Unidades de atendimento a populações
regional, mas eles são incompletos por- USP, diz que o fato de a maioria dos aten- onde o acesso só é possível por rios.
Se for de suporte básico, é composta
que o país é muito diverso. Há serviços dimentos ser feita no país por técnicos
por condutor e técnico de enfermagem.
muito frágeis Brasil afora”, afirma ela, de enfermagem e enfermeiros não é um Se o suporte for avançado, é necessário
que no início da década passada coor- problema. “Eles são muito bem treina- ter um médico e um enfermeiro
denou pesquisas sobre a implantação dos para seguir protocolos, que buscam
AEROMÉDICO
e situação do serviço no estado do Rio encurtar o tempo de assistência, salvar
Atendimento de urgência feito por
de Janeiro. A ausência de um sistema vidas e prevenir sequelas”, explica. Ele médicos e enfermeiros treinados por
universal e uniforme frustrou uma das observa que, na situação atual de finan- meio de helicóptero ou avião
ambições iniciais do Samu, que era se ciamento do SUS, seria difícil ampliar

A ESTRUTURA 191 Centrais de A COBERTURA


Regulação
A evolução dos recursos móveis População coberta (em 2019)
de Urgência
4.000
Recursos móveis Sul 94,6%
3.648 (em 2019)

3.490 3.539
3.500
3.355 2742 Unidades de Sudeste 84,6%
3.188 Suporte Básico Terrestre

3.000 614 Unidades de Suporte Centro-Oeste 84,5%


Avançado Terrestre
Nordeste 83,2%
2.500 262 Motolâncias
18 Aeromédicos
Norte 77,2%
2.000

2015 2016 2017 2018 2019 12 Embarcações BRASIL 85%


FONTE  MARISA MALVESTIO, COM BASE EM DADOS DO IBGE/MINISTÉRIO DA SAÚDE

82 | MARÇO DE 2023
muito o número de médicos disponíveis Na avaliação do pesquisador, os es-
OS RECURSOS HUMANOS no suporte móvel. “Temos que pensar tudos de Malvestio contribuem para a
em formas de melhorar a capacidade de compreensão de diferentes desafios do
Profissionais do Samu em 2019 fazer o diagnóstico e de chegar rápido Samu, mas, para melhorá-lo, seria ne-

N
ao hospital”, afirma. cessário buscar métricas diferentes das
41.490 ão se trata, naturalmente,
tradicionais. “A meu ver, dados sobre a
cobertura do território e da população
Total
de uma tarefa corriqueira. não ajudam muito a planejar o atendi-
33.618 Tanaka classifica as difi- mento. O ponto de partida devem ser as
culdades enfrentadas pelo queixas recebidas pelo 192 – quantos são
serviço como um wicked acidentes de trânsito, fraturas, síncopes
problem, expressão usada cardíacas, crises epiléticas, problemas re-
para classificar problemas lacionados a altas precoces de cirurgias
de resolução muito difícil e à drogadição”, diz Tanaka. “É preciso
ou mesmo impossível, cuja avaliar quando elas acontecem e quantas
formulação exige premissas instáveis, foram resolvidas. Até mesmo o dia da se-
complexas ou contraditórias. “O Samu mana e as condições de trânsito no mo-
talvez seja a parte mais complicada do mento de emergência são importantes
7.872 SUS. Ele tem que estar preparado para
qualquer emergência que atinja qualquer
para o planejamento.”
O serviço, de todo modo, tem sido es-
pessoa a qualquer momento – e dar a sencial para salvar vidas, como já ocor-
melhor resposta possível no espaço mais reu com o próprio pesquisador. Em 17
curto de tempo”, explica Tanaka, que, de agosto de 2021, Tanaka, então diretor
Em Centrais de Nos recursos em meados da década passada, estudou da FSP-USP, participava de uma reunião
Regulação móveis
o desempenho do serviço na cidade de virtual com outros docentes para discu-
de Urgência
São Paulo com sua orientanda de dou- tir o retorno às atividades presenciais,
torado Flávia Saraiva Leão Fernandes, quando foi interpelado por uma colega.
2.038 Telefonista 9.869 Técnico de
hoje professora da Universidade Federal “Sua voz está ficando pastosa”, ele ou-
1.368 Médico enfermagem
4.252 Enfermeiro
de São Paulo (Unifesp). Esse trabalho viu. Em seguida a professora afirmou:
1.042 Operador de
radiocomunicação 2.161 Socorrista
registrou uma aparente contradição: nos “Você parece estar sofrendo um AVC.
608 Técnico de 1.658 Médico
atendimentos de UTIs móveis, que dis- Deite no chão agora”. Ele, que estava
enfermagem 1.539 Auxiliar de põem de um médico e equipamentos de sozinho em casa, obedeceu, perdeu a
543 Enfermeiro enfermagem suporte avançado, parte significativa dos consciência e acordou em um hospital.
194 Socorrista 14.139 Outros* casos resultava em morte. “Muitos casos Permaneceu na UTI por vários dias e se
184 Auxiliar de eram bastante complicados e, mesmo recupera de sequelas do incidente. “Fui
* Profissionais de nível
enfermagem
elementar, técnico ou com todos os esforços, não se conseguia salvo pelo Samu. A rapidez no socorro
1.895 Outros* superior, ou em ocupações
administrativas evitar o desfecho ruim.” foi crucial”, afirma. n Fabrício Marques

OS ATENDIMENTOS 22.500.000

Evolução de procedimentos 19,81 20,25 19,91


realizados pelas Centrais 20.000.000
19,08
de Regulação de Urgência 17.500.000
(em milhões)
15,09
INFOGRÁFICOS  ALEXANDRE AFFONSO / REVISTA PESQUISA FAPESP

15.000.000

12.500.000
11,31
Total de chamadas
10.000.000
recebidas/atendidas
Sem procedimento
7.500.000
Com envio de
suporte básico 5.000.000
Com orientação 3,50
3,04
Com envio de 2.500.000

suporte avançado 0,65


0,58
0
Envios múltiplos
2015 2016 2017 2018 2019

PESQUISA FAPESP 325 | 83


ORÇAMENTO PÚBLICO

SEMENTES DO
DESENVOLVIMENTO
Pesquisas calculam orçamento federal destinado
à primeira infância e mensuram a importância de
investimentos para essa faixa etária

Christina Queiroz  |  ILUSTRAÇÕES  Bruno Novaes


E
specialistas de diferentes áreas do investimento direcionado à primeira infância cor-
conhecimento têm procurado evi- respondeu a 0,41% do Produto Interno Bruto (PIB)
denciar a importância da primeira brasileiro e a 0,92% do Orçamento Geral da União.
infância para o desenvolvimento Ainda de acordo com o levantamento, 94% do total
da vida adulta. Isso porque, quando investido na primeira infância concentrou-se nas
cresce, a criança que foi bem cuidada áreas da saúde, assistência social e educação. “Sem
e estimulada até os 6 anos de idade orçamento não há como formular e implementar
tende a ter menos problemas de saúde, conseguir políticas públicas. Ao criar uma metodologia para
melhores oportunidades profissionais e demandar identificar o montante destinado à primeira infân-
menos assistência governamental. Considerando cia, a ideia é estimular o poder público a ampliar
esse contexto, um grupo formado por pesquisado- os investimentos nessa parcela da população”,
res do Fundo das Nações Unidas para a Infância enfatiza Chopitea. Ao destacar o pioneirismo da
(Unicef ) e do Centro de Estudos da Metrópole iniciativa, ela esclarece que metodologias anterio-
(CEM), um dos Centros de Pesquisa, Inovação e res, como o Orçamento da Criança e Adolescente,
Difusão (Cepid) financiados pela FAPESP, criou foram desenvolvidas para orçamentos municipais
uma metodologia para calcular quanto o governo e consideravam, por exemplo, recursos totais do
brasileiro investe nessa faixa etária da população. A Bolsa Família, enquanto a ferramenta atual permite
principal constatação: em 2021, esse investimento identificar especificamente qual montante dos re-
não chegou a 1% do orçamento federal. cursos desse programa federal beneficia crianças
“Políticas públicas voltadas aos primeiros anos dessa faixa etária, excluindo da contagem jovens e
de vida trazem resultados econômicos positivos adultos que também são atendidos pelo programa.
para o indivíduo, no futuro. É preciso deixar de A administradora pública Ursula Dias Peres, da
enxergá-las como gasto e passar a compreendê-las Universidade de São Paulo (USP) e do CEM, explica
como investimento”, diz a jurista Liliana Chopitea, que para investimentos que envolvem outros públi-
do Unicef e coordenadora do Grupo de Trabalho cos, o desafio foi estabelecer indicadores que tor-
de Orçamento Público pela Primeira Infância da nassem viável realizar “a delimitação adequada de
Comissão Interinstitucional da Frente Parlamen- gastos com crianças em ações que não as beneficiam
tar Mista da Primeira Infância. Criado em 2021, o de modo exclusivo”. “Investimentos em vacinação
grupo de trabalho é coordenado pelo Unicef e reú- infantil são diretos, mas no caso de programas de
ne 17 instituições, entre órgãos públicos, de ensino moradia, por exemplo, foi preciso identificar quan-
superior e pesquisa, como o CEM, e organizações tas crianças são impactadas por eles”, detalha. No
da sociedade civil. Segundo Chopitea, em 2021 a Lei final de 2022, o Unicef capacitou 50 servidores de
Orçamentária Anual, que estabelece receitas e des- ministérios, incluindo os da Educação e Saúde, no
pesas do governo federal, destinou apenas R$ 420 funcionamento da nova metodologia.
milhões exclusivamente para crianças de até 6 anos. Chopitea destaca que o Brasil dispõe de marcos
O estudo também identificou que, naquele ano, o legais que protegem crianças e adolescentes e são

PESQUISA FAPESP 325 | 85


referências no mundo. A Constituição Federal de zem a alocação de recursos para essa faixa etária da
1988 determina, em seu artigo 227, que crianças população. “Situações de pobreza, violência e pri-
devem ser priorizadas no momento de formulação vação de afeto na infância vão impactar o indivíduo
de políticas públicas. Além do Estatuto da Criança durante a vida toda, incluindo a sua integridade neu-
e do Adolescente (ver Pesquisa FAPESP n° 296), rológica e a capacidade de aprendizagem”, informa.
Peres, da USP, menciona o Marco Legal da Primei- Pioneiros nessa linha de trabalho, os estudos
ra Infância, lei aprovada em 2016 que estabelece do economista norte-americano James Heckman,
garantias específicas e diretrizes para políticas feitos em parceria com psicólogos, estatísticos e
públicas voltadas a crianças de até 6 anos. Entre neurocientistas, têm demonstrado que, para cada
outras ações, o marco legal deu origem à criação dólar investido na primeira infância, o retorno esti-
da Frente Parlamentar Mista da Primeira Infân- mado é de US$ 7, quando essa criança completar 20
cia. “Por meio dos esforços da frente parlamentar, anos de idade. “Vencedor do prêmio Nobel no ano
a primeira infância foi priorizada nos Planos Plu- 2000, as constatações de Heckman abriram cami-
rianuais [PPA] de 2020 a 2023”, comenta, citando nho para outras pesquisas que procuram mensurar
que os PPA estabelecem objetivos que devem ser os impactos que experiências na infância causam
seguidos pelos governos federal, estaduais e mu- na vida adulta”, detalha Linhares.
nicipais no prazo de quatro anos. Partindo des- Como parte dessas novas abordagens, a psicó-
ses planos, um decreto presidencial estabeleceu a loga Carolina Ziebold, da Universidade Federal de
Agenda Transversal e Multissetorial da Primeira São Paulo (Unifesp), participou de uma pesquisa
Infância, que envolve um conjunto de ações gover- coordenada por David McDaid, da London School
namentais implementadas por meio de políticas of Economics and Political Science, que identificou
públicas articuladas. Além disso, desde 2014 o país uma associação entre problemas de saúde mental
conta com metas específicas à educação infantil no na infância e maior probabilidade de repetência
Plano Nacional de Educação (PNE). Apesar dos
marcos legais, nem todas as garantias e diretrizes
são cumpridas. De acordo com o relatório “Pobre-
za na infância e na adolescência”, elaborado pelo
Unicef em 2018, 39,7% das crianças de até 5 anos

O
têm seus direitos violados no Brasil.

lhando para o contexto latino-


-americano, Chopitea, do Uni-
cef, explica que a composição
de orçamentos destinados à in-
fância é complexa. “O Peru, por
exemplo, afirma gastar 0,23%
de seu orçamento público fede-
ral com a primeira infância, enquanto o México,
10%. Porém cada um faz a apuração dos valores
considerando itens específicos”, observa. Além Mais da metade das
das dificuldades para se comparar o orçamento
brasileiro com o de outros países, existem dis- crianças e adolescentes no
crepâncias internas, envolvendo os investimen-
tos estaduais e municipais, porque no Brasil cada Brasil vive na pobreza
tribunal de contas utiliza metodologia específica
para esses cálculos. “Temos a expectativa de que O Brasil tem 32 milhões de crianças e adolescentes na pobreza,
a nova metodologia abra caminho para a criação conforme levantamento do Fundo das Nações Unidas para a Infância
de ferramentas que permitam a estados e cidades (Unicef), divulgado em fevereiro. O número corresponde a 63% da
um cálculo mais preciso e sistemático”, diz Peres, parcela da população de até 18 anos e inclui meninas e meninos que
da USP. Ela conta que o CEM integra um grupo de experimentam as múltiplas dimensões da pobreza, incluindo viver em
trabalho constituído para elaborar metodologias famílias sem renda suficiente, não ter acesso à educação, alimentação,
e orçamentos com foco em gênero e raça. “A ideia água e saneamento, residir em moradias precárias e exercer trabalho
é poder acompanhar a evolução do orçamento infantil. Para reverter esse cenário, o Unicef defende a necessidade
voltado a diferentes públicos, incluindo mulheres, de elaboração de políticas públicas voltadas não apenas às crianças
indígenas, negros, entre outros”, diz. e adolescentes, mas também às suas famílias e responsáveis.
A psicóloga Maria Beatriz Martins Linhares, da A pesquisa “As múltiplas dimensões da pobreza na infância e na
USP, explica que os primeiros 3 anos de vida são adolescência no Brasil” foi realizada a partir de bases de dados oficiais,
especialmente sensíveis para o desenvolvimento como a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad
humano. Por isso, defende que os governos priori- Contínua) e a Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF).

86 | MARÇO DE 2023
Novo centro vai medir o desenvolvimento infantil
Com vistas a acompanhar o desenvolvimento Índice de Desenvolvimento da Educação que um dos desafios da formulação de
infantil, uma pesquisa de coorte para avaliar Básica (Ideb), que mede o aprendizado e o políticas públicas para essa faixa etária
indicadores psicológicos, comportamentais, fluxo escolar, e indicadores de mortalidade é que elas precisam envolver diferentes áreas
biológicos, epigenéticos, entre outros, de infantil e incidência de doenças na área e devem ter início antes do nascimento
crianças de até 6 anos será um dos primeiros da saúde. De acordo com Menezes, o Brasil das crianças, incluindo atenção a gestantes,
estudos a serem realizados pelo Centro também desconhece o percentual de puericultura, vacinação, assistência social,
Brasileiro de Pesquisa Aplicada à Primeira crianças com atraso no desenvolvimento. em uma agenda integrada, transversal
Infância (Cpapi). Criado em 2021 pelo Insper A psicóloga Maria Beatriz Martins e multissetorial.
(Instituto de Ensino e Pesquisa) com o apoio Linhares, da USP, também pesquisadora do “É urgente que o país desenvolva políticas
da FAPESP, o centro agrega outras sete Cpapi, comenta que outro estudo do centro que assegurem menos desigualdade no
organizações e 18 pesquisadores, a maioria envolve a Caderneta da Criança, documento começo da vida e ofereçam ações efetivas
da USP. “Com os resultados das pesquisas do governo federal criado em 2005 que para reduzir o impacto de experiências
desenvolvidas no Cpapi queremos incentivar registra todas as informações sobre o negativas na infância”, sustenta a psicóloga.
a formulação de políticas públicas baseadas atendimento à criança em serviços de saúde Desde 2020, a pesquisadora coordena,
em evidências científicas”, explica o até os 9 anos. “A caderneta é subutilizada. em parceria com a psicóloga Elisa Rachel
economista Naércio Menezes, do Insper Estamos desenvolvendo uma metodologia e Pisani Altafim, também da USP, a
e coordenador do centro. Ele observa que um programa de treinamento para auxiliar implementação de um programa de prevenção
o país não sabe se as crianças brasileiras profissionais da saúde a otimizar o seu uso, de violência contra crianças, elaborado pela
estão se desenvolvendo adequadamente, especialmente na parte de vigilância do American Psychological Association, em
apesar da existência de avaliações como o desenvolvimento infantil”, diz. Ela destaca serviços públicos de 24 municípios do Ceará.

escolar. “Usamos dados de análise contínua de uma problemas de saúde e desenvolvimento humano,
coorte brasileira de jovens desfavorecidos para no decorrer da vida”, explica o epidemiologista
modelar os custos, para o sistema educacional, de Fernando Hartwig, da UFPel e um dos autores da
problemas de saúde mental não tratados”, explica. pesquisa. Além disso, os resultados mostram que
Estudo de coorte compara um grupo de pessoas crianças nascidas em famílias de baixa renda têm
exposto à determinada situação com outro não ex- maior risco de desnutrição crônica, atrasos no de-
posto ao longo de vários anos. Considerando o valor senvolvimento, baixa escolaridade e gravidez na
do dólar em 2019, ano da pesquisa desenvolvida adolescência, em comparação com crianças de
para o Fórum Econômico Mundial por Ziebold e famílias mais bem situadas economicamente.
outros pesquisadores, o custo estimado para o Es- Os pesquisadores também avaliaram os efeitos
tado para um ano de repetência entre jovens sem de longo prazo da pobreza na infância em coortes
problemas de saúde mental era de US$ 3,5 mil. Para de cinco países de baixa e média renda. Nesses es-
jovens que vivenciaram situações crônicas de medo, tudos, os indivíduos foram acompanhados desde o
angústia ou transtornos mentais durante a infância nascimento até a fase adulta. “A situação de pobreza

O
esse valor variava entre US$ 4,4 mil e US$ 6,3 mil. na infância segue causando reflexos nos indicadores
de saúde e desenvolvimento três décadas depois de
utro estudo, coordenado por uma experimentada”, reforça Hartwig. Ele explica que,
equipe da Universidade Federal para fazer as análises comparativas, o Centro Inter-
de Pelotas (UFPel) e publicado nacional de Equidade em Saúde da UFPel elaborou
na revista The Lancet, analisou uma metodologia que permitiu a padronização dos
as consequências da pobreza na dados dos distintos países envolvidos no estudo.
infância, na saúde e no desenvol- “Esse processo de harmonização é um grande de-
vimento do indivíduo, partindo safio, tendo em vista o grande volume de dados e as
de estudos realizados em 95 países de baixa e mé- especificidades de cada país. Isso é especialmente
dia rendas, seguindo uma classificação do Banco desafiador em nações de baixa renda, onde as in-
Mundial. Segundo a Organização das Nações Unidas formações, muitas vezes, são precárias. O centro
(ONU), pobres são as pessoas que vivem com menos de equidade realiza a tarefa de forma contínua,
de US$ 1,25 por dia. A pesquisa identificou que produzindo um banco de dados comparável que
crianças nessa condição correm de duas a três vezes pode ser usado para análises como essa”, finaliza. n
mais risco de morrer até os 5 anos. “Constatamos
que os efeitos da pobreza no início da vida são, na Os projetos, o artigo científico e os relatórios consultados para esta
maioria dos países, persistentes e geram grandes reportagem estão listados na versão on-line.

PESQUISA FAPESP 325 | 87


OBITUÁRIO

AMOR À
ÚLTIMA FLOR
DO LÁCIO
Uma das maiores especialistas do mundo
em Camões e Fernando Pessoa, a escritora
Cleonice Berardinelli morreu aos 106 anos

Dafne Sampaio

N
ão é todo dia nem qualquer casar, o que viria a fazer em 1953, aos 37 roz (1845-1900) e Mário de Sá-Carneiro
pessoa que ganha um elogio anos, com o médico Álvaro Berardinelli. (1890-1916). A partir daí surgiram livros
superlativo de um Nobel de A ensaísta costumava relembrar, nas que seguem sendo utilizados em salas de
Literatura. Sobre Cleonice muitas entrevistas que concedeu, um aula, como Estudos camonianos (MEC,
Berardinelli, o escritor por- diálogo marcante que teve com o marido: 1973) e Fernando Pessoa: Outra vez te re-
tuguês José Saramago (1922-2010) disse: “Ele preferia que eu deixasse os alunos vejo... (Lacerda, 2004). Por anos, foi con-
“Ela faz parte da aristocracia do espírito, particulares e as turmas do ginásio. ‘E a vidada a assumir uma cadeira na ABL e
essa que, sim, é necessária para a evolu- faculdade?’, perguntei. ‘A faculdade não. sempre declinou. Aceitou em 2009, quando
ção da sociedade”. A mais longeva inte- É a sua vida’, ele disse”. Foi assim que, passou a ocupar a cadeira de número 8.
grante da Academia Brasileira de Letras em 1959, tornou-se livre-docente em li- Presidente da ABL de 2018 a 2021 e
(ABL) morreu em 31 de janeiro, aos 106 teratura portuguesa pela Faculdade Na- atual presidente da Biblioteca Nacional,
anos, deixando um grande legado de en- cional de Filosofia da então Universidade o poeta Marco Lucchesi passou a conviver
saios e edições críticas, além de muitos do Brasil, hoje Universidade Federal do regularmente com Cleonice desde que se
estudantes que com ela aprenderam a Rio de Janeiro (UFRJ). À época, tal título tornou “imortal” em 2011, mas já era ín-
beleza e a sofisticação da língua e da li- outorgava automaticamente o de doutora timo de seus livros. “Conheci Cleonice a
teratura portuguesas. e a tese que defendeu sobre a poesia e a partir dos mares salinos de Camões, das
Nascida em 28 de agosto de 1916 no Rio poética de Fernando Pessoa (1888-1935) máscaras e sombras luminosas de Fernan-
de Janeiro, Cleonice passou a infância e foi a primeira no Brasil, e a segunda no do Pessoa e depois, presencialmente, na
a adolescência de cidade em cidade. Seu mundo, sobre o autor português. ABL. Foi um convívio extraordinário, pois
pai era militar e a família o acompanhava Pessoa foi o primeiro a ser escarafun- ela era atenta às delicadezas e, ao mes-
nas frequentes transferências. Estavam em chado pelas análises inquietas e elegantes mo tempo, capaz de iluminar partes das
São Paulo quando, apaixonada por poesia de Cleonice, sempre procurando descobrir mais obscuras de um autor. Ela era uma
desde que aprendeu a ler, decidiu cursar faces ocultas dos autores por quem era pessoa luminosa e iluminadora, sempre
letras neolatinas na nascente Universidade apaixonada. Outros se sucederam nas dé- caminhando por essa densa e delicada,
de São Paulo (USP). Graduou-se em 1938. cadas seguintes: Gil Vicente (1465-1536), forte e sutil, língua portuguesa, que corre
Coisa rara à época, seus pais permitiram Luís Vaz de Camões (1524-1580), padre nas veias das línguas praticadas no Brasil,
que ela seguisse os estudos em vez de se Antônio Vieira (1608-1697), Eça de Quei- África, Portugal e além-mar”, afirmou.

88 | MARÇO DE 2023
cê-la. Na época da orientação Berardi-
nelli tinha mais de 90 anos.
“Seu legado é de extrema importância.
Pessoa, apesar de ter tido 136 heterôni-
mos compilados, permanece a ser des-
vendado, porque ainda persiste material
inédito em sua famosa arca”, diz. “Dona
Cléo foi uma das maiores autoridades
nessa imensurável aventura, não só ao
divulgar a obra do poeta português como
de nos ajudar a entendê-la em toda sua
complexidade”, resume Facó.

O
poeta Carlos A. Pittella,
pesquisador da Universi-
dade Concordia, em Mon-
treal, Canadá, relembrou
os poucos mais de 10 anos
de convívio intenso com a imortal da
ABL, que foi sua orientadora no mes-
trado e no doutorado. “Cleonice foi de-
cisiva na minha formação. Sem ela não
teria estudado literatura. Ela me mostrou
o horizonte desses estudos e como era
possível ampliar esse mesmo horizon-
te, pois ofereceu tanto material de fon-
Berardinelli:
te primária, como suas edições críticas,
a paixão pela palavra quanto um modelo amplo de metodo-
surgiu ainda na infância logia e seriedade de pesquisa. Ou seja, a
Cleonice e o trabalho da Cleonice foram
e são fontes incontornáveis nos estudos
pessoanos. Sempre na vanguarda, e sem-
Em uma constante e apaixonada rela- do entrei na PUC para fazer o mestrado pre aberta a revisões, o que não é muito
ção com os livros e a sala de aula, Cleo- em literatura portuguesa. Como grande comum nesse meio”, afirmou Pittella.
nice foi professora de instituições como admiradora de Pessoa, e por ser também “Cleonice não é só um legado. Legado
a Pontifícia Universidade Católica do Rio professora de inglês e adorar Walt Whit- é algo que foi deixado e ela, para mim,
de Janeiro (PUC-Rio), a Universidade man [1819-1892], queria fazer uma dis- abriu muitas portas, foi também ponte
Católica de Petrópolis e o Instituto Rio sertação que unisse esses elementos”, entre os países de língua portuguesa”,
Branco, além da UFRJ. Na década de 1980, relembrou Maria do Carmo Facó, profes- comentou. “Para se ter uma ideia, ela
lecionou na condição de visitante nas uni- sora aposentada que lecionou em várias nos contou que o Saramago ligava para
versidades da Califórnia, em Santa Bárba- universidades do Rio. “A princípio ela ela logo que lançava um livro. Alguns
ra, nos Estados Unidos, e de Lisboa, em não aceitou, pois dizia que não conhecia dias antes de publicar Ensaio sobre a
Portugal. Orientou mais de uma centena Whitman o suficiente para orientar meu cegueira, enviou-lhe uma cópia, tele-
de teses de doutorado e dissertações de trabalho, embora soubesse que o próprio fonou e perguntou: ‘Então, Cleonice, o
GUILHERME GONÇALVES / ABL

mestrado, estabelecendo relações inte- Pessoa era seu leitor e admitia, inclusive, que é que achou?’. Ela respondeu: ‘Foi
lectuais e de amizade que influenciaram ter sido por ele influenciado.” Segundo uma pancada na boca do estômago’. In-
estudantes por toda a vida. Facó, como ela tinha muita curiosidade trigado, Saramago retrucou: ‘Gostou?’.
“Conheci dona Cléo, como a chamá- em se aproximar do “poeta do cosmo” Ela respondeu: ‘Às vezes, nós gostamos
vamos carinhosamente, em 2005, quan- norte-americano, não foi difícil conven- de apanhar’.” n

PESQUISA FAPESP 325 | 89


MEMÓRIA

RETRATO
DAS ROCHAS
QUE FORMAM
O PAÍS
Primeiro mapa geológico feito
apenas por brasileiros,
de 1940, expressa o esforço
do país em encontrar petróleo
Carlos Fioravanti
1

O poço DNPM-163,
em Lobato, bairro de
Salvador, Bahia, do qual
saiu petróleo pela
primeira vez no Brasil,
em 1939

90 | MARÇO DE 2023
Mapa de Avelino
Oliveira e Othon
Leonardos
publicado como
encarte no livro
Geologia do Brasil

M
ineiro de Uberaba, for- A obra deles, intitulada Mapa geoló- garet Lopes, do Museu de Arqueologia e
mado pela Escola de gico do Brasil e de parte dos países vizi- Etnologia da Universidade de São Paulo
Minas de Ouro Preto, nhos, foi publicada como encarte colado (MAE-USP) e autora de um artigo de
Avelino Ignácio de à contracapa do livro Geologia do Brasil, novembro na revista Earth Sciences His-
Oliveira (1891-1970) coordenado pelos dois engenheiros e pu- tory sobre o mapa de 1940. “Era também
trabalhava no Conse- blicado pelo Ministério da Agricultura um meio de mostrar que os geólogos do
lho Nacional do Petróleo, criado em 1938. em 1940. Das 815 páginas, 36 estão ocu- Brasil sabiam fazer mapas, antes feitos
FOTOS 1 ACERVO PETROBRAS 2 BIBLIOTECA DO INSTITUTO DE GEOCIÊNCIAS DA USP

O niteroiense Othon Henry Leonardos padas com fotos de fósseis de moluscos, apenas por estrangeiros.”
(1899-1977), graduado na Escola Politéc- peixes ou do mastodonte Cuvieronius Segundo ela, os brasileiros pretendiam
nica do Rio de Janeiro, era um professor humboldti, encontrados no interior da também completar o mapa do geólogo
recém-chegado ao Museu Nacional. Por Paraíba e em Mato Grosso do Sul, res- norte-americano John Casper Branner
20 anos os dois percorreram o país em pectivamente. Os fósseis ajudam a de- (1850-1922). Publicada em 1919 no Bul-
levantamentos geológicos e trabalharam terminar a idade das rochas. letin of the Geological Society of America
no Departamento Nacional da Produção Além de identificar as jazidas de car- e em 1920 pelo então chamado Servi-
Mineral (DNPM). Anos depois se encon- vão, manganês, ferro, ouro, carvão, co- ço Geológico e Mineralógico do Brasil,
traram novamente e fizeram o primeiro bre, alumínio e outros minerais, o livro transformado em 1934 no DNPM, a obra
mapa elaborado apenas por brasileiros detalha os limites e os tipos de rocha continha áreas em branco, por causa da
com os grandes conjuntos de rochas, das estruturas geológicas detalhadas dificuldade de acesso a regiões cobertas
também chamados de estruturas geoló- de todas as regiões do país. “O mapa e por floresta, e já se valia de fósseis para
gicas, que sustentam o relevo, enfatizan- o livro eram uma forma de divulgar os estimar a idade de rochas sedimentares.
do as áreas potenciais para exploração mapeamentos feitos durante décadas “Branner e o geólogo norte-americano
de petróleo, uma prioridade do Estado pelos técnicos do DNPM, ainda pouco Orville Derby [1815-1915, primeiro dire-
Novo (1937-1945). valorizados”, diz a geóloga Maria Mar- tor do Serviço Geológico do Brasil] per-

PESQUISA FAPESP 325 | 91


Reunião na Associação
dos Geógrafos Brasileiros,
sem data: em pé, da
esquerda para a direita,
Leonardos é o sexto e
Oliveira o oitavo

correram a Amazônia, mas ainda havia de uma comissão nomeada pelo então Geológico, em Brasília, ele prepara um
grandes áreas sem informação”, atesta presidente Juscelino Kubitschek (1902- mapa sobre os lugares mais relevantes da
o geólogo Carlos Schobbenhaus Filho, -1976) e chefiada por Leonardos. Os ma- história geológica do país, que pretende
do Serviço Geológico do Brasil. Coau- peamentos por fotografias aéreas, radar e publicar até o final deste ano.
tor do livro Geologia do Brasil (DNPM, imagens de satélite forneceram informa-
1984), ele coordenou a produção do Ma- ções nunca sonhadas pelos cartógrafos. PETRÓLEO
pa geológico do Brasil, de 1981, da Carta “Nos anos 1970, o Projeto Radam [Radar Atento ao interesse pelo também chama-
geológica do Brasil ao milionésimo, de da Amazônia] identificou rios de 100 do “ouro negro”, Oliveira havia começado
2004, e da versão mais recente do mapa quilômetros de extensão que vimos pela em 1938 a preparar um mapa das áreas
geológico da América do Sul, de 2019. primeira vez”, diz Schobbenhaus. Aos potenciais de petróleo no Brasil, mas teve
Em um capítulo do livro Geologia do 82 anos, em sua sala na sede do Serviço de interromper o trabalho por causa de
continente sul-americano: Evolução da
obra de Fernando Flávio Marques de Al-
2

meida (Beca, 2004), Schobbenhaus ar-


gumenta que o primeiro mapa geológi-
co do Brasil foi elaborado pelo geólogo
austríaco Franz Foetterle (1823-1876).
Publicado em 1854 em Viena, incluía
países vizinhos e priorizava as jazidas
de ouro, prata e ferro de rochas meta-
mórficas de Minas Gerais.

N
o mapa de 1940, a escala
adotada, de 1 para 7 mi-
lhões (1 centímetro no ma-
pa equivale a 70 quilôme-
tros no terreno real), não
permite detalhamento,
“mas os grandes traços estão corretos”,
comenta a geóloga Ana Maria Góes, do
Instituto de Geociências da USP. “A norte
e a sul da bacia sedimentar amazônica
se veem claramente, em vermelho, as
rochas mais antigas do cráton amazôni-
co”, observa (cráton é um bloco rochoso
antigo da litosfera, a camada externa
da superfície terrestre). “Até hoje não
conhecemos essas áreas em detalhe,
principalmente porque estão cobertas
pela floresta amazônica, com raros aflo-
Homens trabalhando
ramentos rochosos.” em sonda no campo
A produção de mapas se intensificou de Candeias, interior
com os cursos de geologia, que começa- da Bahia, em 1952
ram no Brasil em 1957 como resultado

92 | MARÇO DE 2023
3 4

Plataforma da Petrobras na bacia de Campos, no litoral do Rio de Janeiro, e mapa geológico de 2019 da América do Sul

mudanças na direção do DNPM. Ele o depois com um poço de perfuração em


retomou no fim de 1939, já com Leonar- Candeias, interior baiano.
dos, que no ano anterior percorrera o rio Oliveira, Leonardos e outros especia-
Tocantins, para ver se era navegável, e fi- Mil exemplares listas que pesquisavam a região acerta-
zera levantamentos geológicos no estado ram ao prever as jazidas no Recôncavo
de Goiás. Com o apoio do então ministro
do Geologia do Baiano, segundo Lopes. “Para examinar
da Agricultura, Fernando Costa (1886- Brasil foram a possibilidade de petróleo no Acre e ou-
1946), os dois engenheiros conseguiram tras regiões fronteiriças, eles trabalharam
uma verba extra para aumentar para 2
enviados para com as equipes dos serviços geológicos
mil exemplares a tiragem do livro com Lisboa e outras do Peru, da Bolívia e da Argentina, que já
o mapa. Metade foi enviada para Lisboa, tinham encontrado petróleo em regiões
Porto e outras cidades portuguesas como
cidades de próximas”, observa a pesquisadora. Le-
contribuição brasileira às comemorações Portugal vantamentos geológicos indicam que po-
da fundação de Portugal, em 1140, e da deria haver reservas de hidrocarbonetos
libertação da Espanha, em 1640. no Acre, mas os possíveis impactos sobre
FOTOS 1 ACERVO AGB 2 ACERVO PETROBRAS  3 STR / AFP VIA GETTY IMAGES 4 CPRM

“Avelino e Othon queriam ajudar os o ambiente e territórios indígenas bar-


geólogos portugueses a resolver proble- No Brasil, a procura por combustíveis ram sua exploração. “Por muito tempo os
mas difíceis e ajudar a explorar os recur- fósseis começou no início do século XX, geólogos insistiram em procurar também
sos do subsolo nas colônias da África”, mas os primeiros 51 poços perfurados no Sul do Brasil, onde não havia mesmo,
comentou Lopes. No prefácio do livro, os por órgãos do governo de 1919 a 1930 fo- por causa do tipo de rochas.”
dois engenheiros argumentavam: “Já que ram um fracasso. O petróleo jorrou pela Lopes conta que a possibilidade de
tivemos, ultimamente, a sorte de encon- primeira vez somente em janeiro de 1939 explorar petróleo no município e no li-
trar petróleo na faixa cretácea costeira, de um poço com 210 metros de profun- toral de Campos, no Rio de Janeiro, era
por que não o procurarão, também, os didade no município de Lobato, próxi- cogitada por geólogos desde a década de
portugueses, no litoral aparentemente mo a Salvador, na Bahia. “Eram apenas 1920, mas, por falta de tecnologia adequa-
semelhante de Angola?”. A identificação indícios de petróleo, mas a propaganda da e equipes especializadas, a pesquisa
de fósseis em terrenos sedimentares nos foi intensa, para recuperar a imagem sistemática e a exploração começaram
dois lados do Atlântico reforçava essa das instituições que haviam trabalha- nos anos 1970. Em outra grande área pro-
possibilidade. A exploração de petró- do durante muitos anos sem sucesso”, dutora atualmente, a bacia de Santos, li-
leo em Angola começou em 1958 e hoje comenta Lopes. A produção em esca- toral paulista, a exploração começou na
é uma das bases da economia do país. la comercial só se viabilizou dois anos década de 2000. n

PESQUISA FAPESP 325 | 93


ITINERÁRIOS DE PESQUISA

INVESTIGAÇÃO
SOLIDÁRIA
A psicóloga Raquel da Silva Barros conta como o contato
com pessoas em situação de vulnerabilidade contribuiu para
a criação de uma nova metodologia de acolhimento

N
unca me identifiquei como pes- sempre dizia para não ficar perto, como ca, maconha e cocaína –, com a visão dos
quisadora de laboratório ou bi- usuários de drogas, por exemplo. pais e a percepção de cada um dos jovens
blioteca, porque sempre gostei O trabalho na escola pautou minha sobre o que a família pensava sobre o seu
de um tipo de investigação que graduação porque fui percebendo to- uso de drogas. A investigação também in-
levasse a pautas mais práticas. Lembro das essas questões sociais. No meio do cluiu o fenômeno propriamente dito da
que devia ter uns 10 ou 11 anos quando curso, tive a oportunidade de fazer uma dependência e as relações pessoais nesse
comecei a acompanhar minha avó, todo iniciação científica. Comecei a investi- contexto. Minha hipótese era a de que as
final de semana, na distribuição de comi- gar o efeito da maconha no humor de relações entre pais e filhos sofriam mais
da para pessoas carentes, em Sorocaba, pessoas em situação de vulnerabilidade. pela falta de comunicação entre eles do
cidade do interior paulista em que nasci. Na mesma época participei de pesquisas que pela droga em si. Reuni muito mate-
Ficava muito impressionada ao ver aque- cujos resultados foram utilizados pelo rial sobre o assunto.
las pessoas comendo na panela, com a Instituto de Medicina Social e Crimi- Cursei as disciplinas obrigatórias, co-
mão, tanta carência de tudo. Ali, ainda nologia de São Paulo para apoiar ações lhi os dados, mas decidi que gostaria de
criança, comecei a pensar que tinha de com pais de usuários de substâncias psi- passar uma temporada fora do país. Optei
fazer algo que pudesse contribuir para coativas. Também integrei equipes que pela Itália por duas razões: tenho dupla
mudar a vida das pessoas. desenvolviam investigações etnográficas nacionalidade e conhecia um psicólogo
Mais ou menos na mesma época fui envolvendo o uso de drogas injetáveis. italiano que trabalhava com usuárias de
visitar uma psicóloga, mãe de uma ami- Acabei me especializando nessa área de heroína. A ideia era ficar seis meses no
guinha da escola. Chamou minha atenção uso de drogas. No mestrado, também de- país, mas acabei morando lá durante sete
sua capacidade de ouvir, ajudar e apoiar. senvolvido na USP, pesquisei a relação e a anos. Depois de um ano fora, período em
Quando chegou a hora do vestibular, não comunicação entre pais e filhos usuários que tranquei o mestrado, voltei ao Brasil e
tive dúvida: inscrevi-me em psicologia em de drogas. Para tanto, entrevistei 30 pais fiz minha qualificação. Como meu diplo-
todas as faculdades possíveis e fui apro- e mães de jovens usuários e os próprios ma não era válido na Itália, decidi fazer
vada na USP [Universidade de São Paulo]. usuários. Usando técnicas de análise de uma segunda graduação em psicologia,
Foi importante frequentar uma uni- discurso, cruzei informações dos filhos, a na Universitá di Padova, em Pádua. Até
versidade pública. O fato de não pagar visão que tinham sobre drogas – na épo- conseguir defender o mestrado, entre
mensalidade, por mais paradoxal que
possa parecer, despertou em mim uma 1

urgência em trabalhar, tanto para me


manter quanto para tentar devolver ao
Estado o que estava sendo investido na
minha formação. Comecei a lecionar
Barros na outra
história para o ensino médio, em uma página e, em 2010,
escola pública na periferia de Itapece- de cabelo comprido
rica da Serra. Tinha 18 anos e entrei pa- com a rainha Silvia
(no centro),
ra substituir uma professora. Ninguém
da Suécia, durante
queria dar aulas lá. Meus alunos eram homenagem pelo
justamente as pessoas que minha família seu trabalho

94 | MARÇO DE 2023
SAIBA MAIS
PSICOLOGIA
COMUNITÁRIA

depois fiquei grávida de gêmeas. Foi uma


fase muito importante na minha vida.
Na Lua Nova desenvolvi o tratamento
comunitário que poderia definir como
uma metodologia de acompanhamento
e desenvolvimento de pessoas em situa-
ção de extrema vulnerabilidade a partir
de relações não formais, estabelecidas,
por exemplo, com os amigos. No trata-
mento, identificamos e fortalecemos es-
sas relações justamente por serem mais
horizontais, mais pessoais e, portanto,
mais empáticas. A ajuda é mais efeti-
va dessa forma. Foi desenvolvendo essa
metodologia e construindo indicadores
de vulnerabilidade em saúde, educação
e moradia, que conseguimos firmar par-
cerias com a União Europeia. Expandi-
mos esse tratamento para comunidades
na Colômbia, México, Costa Rica, Chile,
Uruguai e Argentina. Hoje são 78 comu-
nidades em 11 países.
Em 2015 sofri um baque pessoal ao
descobrir um câncer de mama que me
levou a fechar a Lua Nova e encerrar
um capítulo importante na minha vida.
Como não queria ficar parada, dois anos
2
depois, entre sessões de quimioterapia,
1993 e 1996, vinha ao Brasil uma vez por de conclusão da segunda graduação em decidi encarar um doutorado na Unifesp.
ano e trabalhava um mês direto na USP. psicologia e exigiu muito de mim, pessoal- Infelizmente não consegui dar conta do
Eu não falava quase nada de italiano. mente. Estava casada com um italiano e esforço em torno da produção de uma
Chegando lá, o psicólogo que conhecia tentando, sem sucesso, engravidar. Vinha tese e tive de parar. Mas a universidade
me disse que eu só conseguiria uma bolsa frequentemente ao Brasil, estabeleci um acabou criando um curso de especiali-
se falasse a língua, caso contrário, teria grupo de pesquisa na Unifesp [Univer- zação em tratamento comunitário e me
de voltar. Fiquei desesperada. Já havia sidade Federal de São Paulo] e, durante tornei sua coordenadora.
iniciado um estágio em uma cooperati- quatro anos, atuei na Cracolândia com Atualmente, prestes a completar 57
FOTOS 1 ARQUIVO PESSOAL  2  LÉO RAMOS CHAVES / REVISTA PESQUISA FAPESP

va de trabalho para usuários de heroína. mães usuárias de heroína e crack. anos, dou aulas de psicologia no Cen-

E
Esses homens e mulheres acabaram por tro Universitário Facens, em Soroca-
me adotar e todo dia me ensinavam a fa- m 2000, regressei definitiva- ba, e coordeno uma iniciação científica
lar e a escrever algo novo no idioma. Foi mente ao Brasil e passei a me da instituição. Retomei o doutorado e
assim que pude demonstrar proficiência dedicar à estruturação, em So- pretendo defender minha tese em 2023.
e conseguir a bolsa. Foi uma experiên- rocaba, de uma organização pa- Estou trabalhando com os dados que co-
cia muito forte para mim: justamente ra mulheres e seus filhos em situação de letamos com o tratamento comunitário
aqueles que imaginava ter ido ajudar, vulnerabilidade. Algumas tinham his- na América Latina, a partir de uma ba-
com quem fui trabalhar, acabaram me tórico de uso de drogas, mas a maioria se de investigação muito disciplinada e
dando uma superforça. era vítima de abusos dos mais variados, organizada. Finalmente estou validando
Anos mais tarde, virei coordenadora de exploração sexual familiar a tráfico cientificamente a pesquisa-ação de uma
dessa cooperativa e passei a trabalhar com de mulheres. À época, pensei: se não vida toda com o objetivo de ajudar a de-
mães usuárias de heroína e sua relação vou poder engravidar, terei filhos assim, senvolver políticas públicas para pessoas
com os filhos, vulnerabilidades e apegos. adotando essas mães. Assim surgiu, em em situação de vulnerabilidade. n
A experiência foi utilizada em trabalho 2001, a Lua Nova. Curiosamente, um ano DEPOIMENTO CONCEDIDO A DAFNE SAMPAIO

PESQUISA FAPESP 325 | 95


RESENHA

Aprendendo ciência com os neutrinos solares


Rafael Alves Batista

I
nvisíveis, minúsculos, abundantes e pouco principalmente os que estão iniciando na área
interagentes: estes são os elusivos neutrinos, da física de partículas.
talvez as mais enigmáticas partículas elemen- Holanda utiliza os principais desenvolvimen-
tares que permeiam o imaginário popular. Des- tos da área, tanto teóricos quanto experimentais,
de 1930, quando foram teoricamente propostos, para ilustrar o método científico, com a intenção
e 1956, quando foram detectados, até os dias de de demonstrar, simultaneamente, suas limitações
hoje neutrinos têm se mostrado uma parte inte- e seu poder. A ênfase na natureza dinâmica da
gral do abecedário das partículas elementares, empreitada científica e na maleabilidade do mé-
desempenhando papéis importantíssimos nos todo, que é um constructo humano, é um tema
mais variados fenômenos físicos. O nosso Sol, recorrente na obra.
por exemplo, é uma notável fonte de neutrinos, Neutrinos são observados ou detectados? Essa
que são produzidos em grandes quantidades por não é uma questão meramente semântica. Com
Neutrinos solares meio do mesmo processo responsável por mantê- ela, Holanda motiva uma das discussões mais
e o método científico -lo brilhando: a fusão nuclear. Esses são os neu- interessantes em filosofia da ciência, contras-
Pedro Cunha
de Holanda
trinos solares, tema do livro Neutrinos solares tando algumas das principais correntes episte-
Unicamp e o método científico, de autoria do físico Pedro mológicas, tais como o realismo e o antirrealis-
160 páginas Cunha de Holanda. mo, e tocando em pontos fundamentais acerca
R$ 56,00 Como o título sugere, na obra, o leitor é levado da natureza das coisas e do real significado das
em uma jornada histórica da pesquisa na área de leis físicas.
neutrinos, percorrendo as principais descober- Os interlúdios filosóficos são talvez a caracte-
tas, desde seus primórdios até os dias atuais. De rística mais marcante do livro, a despeito da es-
forma didática, Holanda apresenta o desenvolvi- porádica desarticulação entre os tópicos apresen-
mento das ideias relacionadas a essas partículas, tados e da superficialidade de algumas análises.
começando com os conceitos mais fundamentais Ao argumentar a favor de critérios de elegância
acerca do que elas são e como são produzidas no e estética na ciência, por exemplo, posição de
interior do Sol. Pouco a pouco, ele avança ao in- difícil sustentação e objeto de muitas críticas,
troduzir alguns cálculos simples e, com maestria, talvez por brevidade, Holanda deixa escapar a
conduz o leitor à compreensão de conceitos úteis oportunidade de aprofundar a reflexão sobre um
para entender como se dá a detecção de neutrinos. tema amplamente debatido na atualidade. Apesar
Gradativamente a abordagem aprofunda-se, disso, é bem-sucedido em sua missão de analisar
com a introdução do conceito de “sabores” de episódios pretéritos e presentes da pesquisa em
neutrinos. Com o auxílio de criativas analogias neutrinos solares sob a ótica de várias vertentes
musicais, o leitor aprende como um sabor de neu- contemporâneas do pensamento filosófico.
trino pode oscilar em outro, um dos fenômenos Com respaldo em sua trajetória acadêmica na
mais contraintuitivos da mecânica quântica. Ho- área, Holanda fornece ao leitor uma excelente
landa também introduz com didatismo os efeitos obra de introdução à física de neutrinos solares.
da interação entre neutrinos e matéria presente Suas excursões em temas filosóficos são boas
no interior do Sol. fontes de informação para leigos e profissionais
O autor apresenta gráficos extraídos de publi- da área de física, que frequentemente não têm
cações originais, ademais de algumas equações, familiaridade com os debates contemporâneos
sem que isso torne a obra inacessível ao leitor. em filosofia da ciência. Neutrinos solares e o mé-
O esforço evidencia seu ambicioso projeto de todo científico cumpre bem o propósito de ensi-
alcançar os mais diversos públicos, o que resul- nar física de neutrinos e, ao mesmo tempo, de
ta em uma obra estratificada, que ora atende ao apresentar como, de fato, se dá a construção do
leitor pouco familiarizado com a área, ora a um conhecimento científico.
público especialista. Acredito que essa abran-
gência tenha valor inigualável para um nicho Rafael Alves Batista é físico e pesquisador da Universidad Autónoma
específico de leitores: os estudantes de física, de Madrid.

96 | MARÇO DE 2023
FUNDAÇÃO DE AMPARO À PESQUISA DO ESTADO DE SÃO PAULO
COMENTÁRIOS cartas@fapesp.br

PRESIDENTE
Marco Antonio Zago

VICE-PRESIDENTE
Ronaldo Aloise Pilli

CONSELHO SUPERIOR

David Everson Uip, Helena Bonciani Nader, Herman Jacobus


Cornelis Voorwald, Ignácio Maria Poveda Velasco, Liedi Legi
Bariani Bernucci, Mayana Zatz, Mozart Neves Ramos, Pedro
Luiz Barreiros Passos, Pedro Wongtschowski, Thelma Krug

CONSELHO TÉCNICO-ADMINISTRATIVO

DIRETOR-PRESIDENTE
Carlos Américo Pacheco

DIRETOR CIENTÍFICO
Luiz Eugênio Mello
Depressão
DIRETOR ADMINISTRATIVO
Fernando Menezes de Almeida Certamente esse trabalho levará a es-
tudos para novas medicações (“Brasi-
leiros e franceses identificam uma nova
ISSN 1519-8774 possível causa biológica da depressão”,
COMITÊ CIENTÍFICO
disponível no site e na presente edição).
Luiz Nunes de Oliveira (Presidente),
Agma Juci Machado Traina, Américo Martins Craveiro, Anamaria
Lenilde Pacheco
Aranha Camargo, Ana Maria Fonseca Almeida, Angela Maria Alonso,
Carlos Américo Pacheco, Claudia Lúcia Mendes de Oliveira, Deisy
das Graças de Souza, Douglas Eduardo Zampieri, Eduardo de Senzi
Zancul, Euclides de Mesquita Neto, Fabio Kon, Flávio Vieira Meirelles,
Pesquisa em empresa
Francisco Rafael Martins Laurindo, João Luiz Filgueiras de Azevedo,
José Roberto de França Arruda, Lilian Amorim, Lucio Angnes, Luciana
A entrevista de Carlos Henrique de Brito Impressionante tanta riqueza de espé-
Harumi Hashiba Maestrelli Horta, Luiz Henrique Lopes dos Santos,
Mariana Cabral de Oliveira, Marco Antonio Zago, Marie-Anne Van Sluys,
Cruz (“Fazer pesquisa na empresa precisa cies na serra do Imeri (“A biodiversidade
Maria Julia Manso Alves, Marta Teresa da Silva Arretche, Reinaldo
Salomão, Richard Charles Garratt, Roberto Marcondes Cesar Júnior,
virar um bom negócio”, disponível apenas de uma serra inexplorada na Amazô-
Wagner Caradori do Amaral e Walter Collii
na versão on-line) é uma leitura super nia”). Parabéns à equipe.
COORDENADOR CIENTÍFICO
Luiz Nunes de Oliveira importante para pesquisadores e aqueles Sebastiana Souza
DIRETORA DE REDAÇÃO que fazem parte de grandes empresas.  
Projeto maravilhoso sob a batuta do pro-
Alexandra Ozorio de Almeida
Jean Carlos Vargas
EDITOR-CHEFE
Neldson Marcolin fessor Miguel Trefaut Rodrigues na serra
EDITORES Fabrício Marques (Política C&T), Glenda Mezarobba
(Humanidades), Marcos Pivetta (Ciência), Yuri Vasconcelos
Vídeos do Imeri. Que orgulho desse trabalho
(Tecnologia), Carlos Fioravanti e Ricardo Zorzetto (Editores especiais) O vídeo “A importância dos sonhos para pioneiro.
REPÓRTERES Christina Queiroz e Rodrigo de Oliveira Andrade
os povos ameríndios” me lembrou o ma- Dione Seripierri
MÍDIAS DIGITAIS Fabrício Marques (Coordenador), Maria
Guimarães (Editora executiva), Renata Oliveira do Prado (Editora
ravilhoso livro A queda do céu, de Davi
de mídias sociais), Jayne Oliveira (Analista digital), Kézia Stringhini
(Redatora on-line), Vitória do Couto (Designer digital) e
Kopenawa e Bruce Albert. O “Patinho Feio, o primeiro computa-
Sarah Caravieri (Produtora do programa de rádio Pesquisa Brasil)
Oswaldo Goffman dor brasileiro, completa 50 anos”. Um
ARTE Claudia Warrak (Editora),
Júlia Cherem Rodrigues e Maria Cecilia Felli (Designers), excelente vídeo sobre uma história que
Alexandre Affonso (Editor de infografia), Felipe Braz (Designer digital),
Amanda Negri (Coordenadora de produção) Li também a reportagem sobre os so- merecia ser mais conhecida.
FOTÓGRAFO Léo Ramos Chaves nhos ameríndios na revista física. É toda Claudio R. C. Faria
BANCO DE IMAGENS Valter Rodrigues uma dimensão antropológica que não
REVISÃO Alexandre Oliveira e Margô Negro conhecia. Sua opinião é bem-vinda. As mensagens poderão ser re-
COLABORADORES Ana Paula Orlandi, Brenda Alcântara, Bruno
Novaes, Clarice Wenzel, Dafne Sampaio, Diogo Viana, Frances Jones,
Vagner Roberto sumidas por motivo de espaço e clareza.
Guilherme Eler, Joana Santa Cruz, Julia Jabur, Luis Americo Conti,
Sarah Schmidt e Rafael Alves Batista

REVISÃO TÉCNICA Américo Craveiro, Angela Alonso, Deisy de


Souza, Francisco Laurindo, José Roberto Arruda, Julia Jabur, Lilian
Amorim, Marta Arretche e Rafael Oliveira
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Um olhar diferente sobre as árvores


Se enxergássemos a luz na faixa infravermelha do espectro luminoso,
veríamos árvores assim: vermelhas. Mas nem todas são iguais. Na imagem
capturada na ilha do Cardoso, litoral de São Paulo, o manguezal aparece
mais acinzentado enquanto as cores mais vivas estão na flora de
restinga. Isso reflete, em parte, a densidade de organização das folhas.
O grupo do oceanógrafo Luis Americo Conti usa imagens obtidas por
um drone com capacidade de alta resolução, em que cada pixel tem cerca
de 2 centímetros, para analisar a estrutura da vegetação de diferentes
pontos da costa brasileira. É uma forma de monitorar as características
e a degradação desses ecossistemas.

Imagem enviada por Luis Americo Conti, da Escola de Artes,


Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo

98 | MARÇO DE 2023
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