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BR

OUTUBRO DE 2023 | ANO 24, N. 332

CADÊ O
PROFESSOR?
Queda no número de
formados em licenciaturas
e desinteresse pelo
magistério ameaçam a
educação básica brasileira

A polêmica Acidentes de Invisíveis Vírus da febre Casal de Orquídea


do suposto trânsito são a olho nu, amarela circula meteorologistas atrai mosca
material a principal causa microplásticos de modo conta como estudos polinizadora
supercondutor de mortalidade estão em ininterrupto há na Amazônia com berçário
à temperatura de jovens na todo o litoral sete anos no fortaleceram falso e
ambiente América Latina brasileiro Centro-Sul do país pesquisa climática armadilha
CONFERÊNCIAS EVENTOS PRESENCIAIS
2023

6ª CONFERÊNCIA

Evolução humana:
conquistas e desafios
10 de outubro de 2023 | das 10h às 11h30
Bernard Anthony Wood
Diretor do Centro de Estudos Avançados de Paleobiologia
Humana da Universidade George Washington (GWU)

Foto: Smithsonian Institution


Moderação: Carlos Alfredo Joly, Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)

7ª CONFERÊNCIA

Contribuições do Marco sobre Futuros


da Natureza para as mudanças
transformadoras e o desenvolvimento
de pessoas e da natureza
27 de outubro de 2023 | das 10h às 11h30

Laura Maureen B. Pereira


Foto: Acervo pessoal
Global Change Institute of University of the Witwatersrand,
Johanesburgo, África do Sul

Moderação: Carlos Alfredo Joly, Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)

Local: Auditório FAPESP Inscrições e mais informações, acesse


Rua Pio XI, 1500 – Alto da Lapa, São Paulo, SP fapesp.br/conferencias2023
2 | OUTUBRO DE 2023
OUTUBRO 2023

5 CARTA DA EDITORA INFRAESTRUTURA FÍSICA ECOLOGIA


6 NOTAS 26 Governo prevê 42 Supostos 55 Orquídea usa
R$ 7,9 bilhões para supercondutores à armadilha para atrair
CAPA projetos de interesse da temperatura ambiente moscas polinizadoras
12 Melhorar a carreira comunidade científica geram debate acalorado
e reformular os currículos EVOLUÇÃO
é o caminho para reverter RECURSOS HUMANOS COVID-19 58 Abelhas surgiram há
a escassez de professores 30 Competição estimula 48 Estratégias não 120 milhões de anos no
na educação básica alunos da rede estadual medicamentosas ajudaram supercontinente formado
de ensino de São Paulo a reduzir o impacto pelas atuais América do Sul
18 Desvalorização a prestar vestibular na USP do novo coronavírus e África
social torna carreira
docente pouco atrativa INDICADORES VIROLOGIA CONSERVAÇÃO
34 Relatório de 52 Causador da febre 60 Caça para a
ENTREVISTA atividades mostra como amarela circula de modo subsistência em reservas
20 Casal de a FAPESP ampliou o ininterrupto há sete anos extrativistas tem
meteorologistas Pedro financiamento em 2022 no Centro-Sul do Brasil impacto limitado sobre
e Maria Assunção Dias animais silvestres
conta como estudos BOAS PRÁTICAS GENÉTICA
na Amazônia fortaleceram 38 Site que avalia artigos 54 Costa do Chile AMBIENTE
ciência climática brasileira já publicados vira ou do Peru é origem do 62 Microplásticos
plataforma de denúncias vírus da gripe aviária são encontrados em todo
de má conduta que se espalha pelo país o litoral brasileiro

DADOS ›››
41 Inclusão na
universidade e escolaridade
superior de jovens adultos

Pássaros taxidermizados
para exposição em
museu (ITINERÁRIOS
DE PESQUISA, P. 94)
FOTO LÉO RAMOS CHAVES / REVISTA PESQUISA FAPESP

332
Vincenzo Pastore WWW.REVISTAPESQUISA.FAPESP.BR
documenta o
próprio trabalho ao
retratar um homem,
por volta de 1900
(FOTOGRAFIA, P. 84) VÍDEO
Os psicodélicos e a depressão
Novas descobertas abrem
caminho para a produção de
medicamentos que podem
ajudar quem tem o problema

VÍDEO
O punk no Brasil
Documentos revelam contexto
social e político em que o

FOTOS 1 VINCENZO PASTORE / INSTITUTO MOREIRA SALLES 2 HENRIQUE SANTOS GONÇALVES / CENAP / ICMBIO
gênero se desenvolveu no país

PODCAST
Transplantes, sensor de
poluentes e Bob Esponja
As estratégias para ampliar
a doação de órgãos e o
1 número de cirurgias no Brasil.
E mais: ciência em Bob
Esponja; academia sob nova
ENERGIA FOTOGRAFIA RESENHA direção; sensor de poluentes
68 As novas técnicas 84 A atuação de 96 Juventude
para reciclar baterias fotógrafos italianos no e contracultura,
veiculares de lítio Brasil do século XIX de Marcos Napolitano. Este conteúdo está disponível no
Por Patrícia site www.revistapesquisa.fapesp.br,
BIOTECNOLOGIA OBITUÁRIOS Marcondes de Barros que contém, além de edições
72 Sensor de papelão 88 Antonio Galves anteriores, versões em inglês
pode monitorar (1947-2023) 97 COMENTÁRIOS e espanhol e conteúdo exclusivo
a qualidade da água 89 Alberto Setzer 98 FOTOLAB
(1951-2023)
POLÍTICAS PÚBLICAS 2
74 Aumento no número MEMÓRIA
de mortes no trânsito exige 90 Identificado há Comunidade Jurucuá,
melhorias em estradas 40 anos, o HIV mudou localizada na reserva
extrativista Médio Purus,
e campanhas educativas a visão sobre doenças em Lábrea, no Amazonas
infecciosas (CONSERVAÇÃO, P. 60)
CIÊNCIA POLÍTICA
80 Dados da Receita ITINERÁRIOS DE PESQUISA
Federal mapeiam um 94 O taxidermista
século de expansão Paulo César Balduíno
de igrejas evangélicas monta animais para
mostras e coleções
científicas

Capa
Amanda Negri, Claudia Warrak,
Léo Ramos Chaves, Vitória Couto
CARTA DA EDITORA

Procuram-se professores
Alexandra Ozorio de Almeida | DIRETORA DE REDAÇÃO

N
os depoimentos de alunos do ensino mé- do avanços e não pode retroceder pela falta de
dio que se inscreveram na Competição pessoal especializado (página 12).
de Conhecimentos e Oportunidades da É rara, nesta revista, a publicação de uma en-
USP, o incentivo de professores é um reconhe- trevista em dupla, mas neste mês houve um bom
cimento recorrente. As premiações incluíram motivo para trazermos dois entrevistados em
uma formação complementar preparativa para conjunto: os meteorologistas Pedro Leite e Maria
o vestibular e, para muitos estudantes, a desco- Assunção Dias são casados há 50 anos e se dedi-
berta de que havia espaço para eles no ensino cam a pesquisar temas muito próximos. Enquanto
superior público (página 30). ele é especialista em modelagem climática nos
A importância de seus professores também trópicos, ela estuda a interação do clima com a
aparece na fala do taxidermista Paulo César Bal- floresta amazônica (página 20). Na entrevista,
duíno, que já montou milhares de animais para eles contam como estudos na Amazônia deram
exibição em museus e coleções científicas e é peso à pesquisa climática brasileira.
destaque da seção Itinerários de Pesquisa deste Cobrir um amplo leque de áreas do conheci-
mês (página 94). Depoimentos desse tipo são cor- mento é um dos pilares de Pesquisa FAPESP. A
riqueiros quando o tema é educação e trajetórias equipe procura, mensalmente, pautas para ga-
profissionais, sinal inequívoco da relevância dos rantir a diversidade temática, cada uma com suas
docentes e de seu impacto na vida dos alunos. especificidades e complexidades. Nesta edição,
Há, entretanto, um hiato entre a inconteste os mais recentes episódios da busca pelos ma-
importância da carreira de professor e a sua atra- teriais supercondutores ganham ar de série de
tividade. Estudos, um deles inédito, do Instituto streaming na narrativa do editor Marcos Pivetta
Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (página 42). A história de um objetivo científico
(Inep), vinculado ao Ministério da Educação, que é perseguido há mais de 100 anos tem, nessa
mostram que as matrículas em licenciaturas caí- nova temporada, tons de aventura e drama, expli-
ram e o número de formandos também se reduziu. cada com clareza para que leitores que chegam
Dados da instituição apontam ainda que somente agora também acompanhem a história.
um terço dos licenciados vai atuar na docência. Para fechar, a divertida história de uma orquí-
O que vem sendo considerado um apagão de dea do Cerrado que engana as moscas que a poli-
professores não é uma ameaça futura, mas sim nizam. Atraídos com falsa oferta de alimento – as
uma realidade: ainda segundo o Inep, em 2022, chamadas orquídeas-sapatinho parecem oferecer
apenas cerca de 60% das vagas de docentes no abundância de pequenos pulgões, mas não passa
ensino fundamental II eram ocupadas por pro- de uma ilusão de ótica, mostram pesquisadores
fessores qualificados na área do conhecimento da Universidade Federal de Uberlândia –, os inse-
correspondente. A reportagem de capa traz dados tos acabam por escorregar para dentro da flor. O
relevantes para uma reflexão urgente acerca da spoiler é que elas conseguem escapar; para saber
educação básica no Brasil, que vem apresentan- como, vá diretamente à página 55.

PESQUISA FAPESP 332 | 5


NOTAS

Aguapé, a planta mais invasora do mundo


Comum nas bacias sul-americanas do Amazonas e do prietário da empresa RMPC Meio Ambiente Sustentá- A também chamada
rio da Prata, a planta aquática aguapé (Eichhornia cras- vel, único brasileiro no painel de especialistas da Ipbes. jacinto-de-água reduz
as populações de
sipes) é a espécie invasora mais disseminada pelo mun- “Nas águas brasileiras, esses moluscos causam proble-
peixes, por impedir
do, segundo o relatório da Plataforma Intergoverna- mas para a aquacultura e na operação de usinas, onde a passagem de luz
mental de Políticas Científicas sobre Biodiversidade e ficam incrustados nos sistemas de refrigeração.” Outro
Serviços Ecossistêmicos (Ipbes), ligada à Organização exemplo: o mosquito Aedes aegypti, originário da Áfri-
das Nações Unidas (ONU). No lago Vitória, na África ca, transmite os agentes causadores da dengue, zika
Oriental, por impedir a passagem de luz e a oxigenação e de outras doenças. O relatório afirma que as ativida-
da água, a planta aniquilou populações de tilápias, re- des humanas causaram a disseminação de mais de 37
curso pesqueiro importante. Além de exportar espécies, mil espécies de plantas, animais e microrganismos, com
as Américas também sofrem invasões. “Um exemplo papel central em 60% das extinções globais. Em 2019,
é Limnoperna fortunei, o mexilhão-dourado”, conta o o impacto econômico das espécies invasoras ultrapas-
biólogo Ricardo Pinto Coelho, professor aposentado sou US$ 423 bilhões anuais, cerca de R$ 2 trilhões
da Universidade Federal de Minas Gerais e hoje pro- (ipbes.net, 4 de setembro).

6 | OUTUBRO DE 2023
Meias com Representação
gráfica da Aditya-L1
sensores para aproximando-se
de seu objetivo
idosos
Especialista em mecanismos
neurocomportamentais do movimento
humano, Shlomi Haar se prepara para
avaliar as possibilidades de uso da Meias
Inteligentes (SmartSocks) com 15 pessoas
em um laboratório do Instituto de
Pesquisas sobre a Demência, do Imperial
College London (ICL), no Reino Unido,
onde as atividades diárias se dão como se
fosse na sala de estar de uma casa.
Desenvolvidas pela startup Milbotix,
sediada em Chipping Norton, as meias
contêm sensores que medem a frequência
cardíaca, os níveis de transpiração e o
3
movimento. Se aceitas pelos potenciais
usuários, elas poderiam ajudar no Depois da Lua, o Sol
monitoramento remoto de pessoas com
demência, que nem sempre se dão bem A Índia está fazendo história espacial. No final de agosto, logo depois de pousar perto do
com as pulseiras usadas atualmente para polo sul da Lua, a sonda Chandrayaan-3 enviava as primeiras imagens da face oculta do
acompanhar o bem-estar dos idosos com único satélite natural terrestre. Uma semana depois, a Organização Indiana de Pesquisa
problemas cognitivos. As meias seriam Espacial (Isro) anunciou que o instrumento de espectroscopia de ruptura induzida por laser
uma solução – pelo menos em condições (Libs), a bordo da sonda, identificou pela primeira vez os elementos químicos da superfície
climáticas nas quais essa peça do daquela região. Por meio de pulsos de laser, o aparelho registrou, de modo inequívoco, en-
vestuário é natural e cotidiana –, já que xofre e, preliminarmente, alumínio, cálcio, ferro, cromo, titânio, manganês, silício e oxigênio.
ao usuário parecem comuns. Zeke Steer, Com ela, a Índia tornou-se o quarto país a chegar à superfície da Lua, após os Estados Uni-
diretor da Milbotix, resolveu criar essas dos, a China e a Rússia. No início de setembro, a Índia lançou sua primeira missão de obser-
peças após testemunhar a evolução da vação do Sol, a Aditya-L1, que viajará 1,5 milhão de quilômetros em quatro meses. Se a
demência de sua bisavó. Ávido por missão for bem-sucedida, a Índia será um dos poucos países que estudam o Sol. O Japão
ajudá-la, desistiu de seu emprego na lançou uma sonda em 1981 e as agências espaciais dos Estados Unidos e da Europa obser-
indústria de defesa e fez um doutorado vam o Sol desde a década de 1990 (Isro, 28 de agosto; BBC, 2 de setembro).
em robótica, no qual se interessou pelas
chamadas tecnologias vestíveis
(newsletter do Imperial College London,
10 de agosto). Crianças também sofrem
Inspirada na com violência contra as mulheres
bisavó do
inventor, registra
A violência doméstica contra as mulheres prejudica também as crianças que a
frequência
cardíaca, testemunham, indicou um estudo conduzido por pesquisadores da Universidade Federal
transpiração e de Pelotas (UFPel), no Rio Grande do Sul. As conclusões se apoiam na Coorte de
movimento Nascimentos de Pelotas de 2015, que inclui todos os nascimentos hospitalares ocorridos
entre 1º de janeiro e 31 de dezembro de 2015, na cidade de Pelotas. Dos 4.275 nascidos
FOTOS 1 PAULA FRASSON / INATURALIST 2 MILBOTIX 3 ISRO

vivos participantes da coorte, a amostra incluiu 3.730 e 3.292 duplas de mães e filhos
acompanhados aos 4 anos e aos 6-7 anos de idade, respectivamente. As relações
parentais foram avaliadas por meio de filmagens da mãe e da criança em tarefas
interativas, avaliadas por uma equipe de psicólogos, e de entrevistas com mulheres dos
dois grupos. Coordenadas pela epidemiologista da UFPel Carolina Coll, as análises
indicaram a alta prevalência da chamada violência praticada entre parceiros íntimos
(VPI): 21,9% das mães relataram ter sofrido violência emocional e 9,4% física ou
sexual nos 12 meses anteriores à entrevista. A experiência de violência prejudicou o
relacionamento entre mães e filhos, debilitou a chamada consistência parental, expressa
pela comunicação e interação com as crianças, e induziu a comportamentos coercitivos
2 dos pais, com resultados semelhantes nos dois grupos (Lancet Global Health, setembro).

PESQUISA FAPESP 332 | 7


A dupla que agrava as cáries
Problema de saúde pública mundial, as cáries nha. O grupo, do qual participa o brasileiro de
dentárias afetam cerca de 2,5 bilhões de pes- origem coreana Hyun Koo, verificou que ao
soas no mundo e resultam da interação entre menos outras três – Selenomonas sputigena,
uma alimentação rica em açúcares e os mi- Prevotella salivae e Leptotrichia wadei – tam-
crorganismos existentes na boca, ampliada bém desempenham um papel importante.
por uma higiene oral precária. Investigando Todas são capazes de transformar os açúcares
as variedades de microrganismos existentes livres dos alimentos em ácidos corrosivos. Em
na cavidade oral de 416 crianças em idade geral, elas dependem de S. mutans para formar
pré-escolar nos Estados Unidos, pesquisadores o biofilme (placa bacteriana), colônias aderen-
da Universidade da Carolina do Norte em Cha- tes de bactérias que crescem sobre os dentes.
pel Hill e da Universidade da Pensilvânia, am- Os testes de formação de biofilme in vitro e de
bas nos Estados Unidos, identificaram 16 es- agressividade das bactérias feitos com roedo-
pécies de bactérias encontradas em maior res mostraram, porém, que a combinação de
quantidade nas crianças com cárie. Uma delas, S. mutans e S. sputigena foi a mais danosa. Ela
1 Streptococcus mutans, já era bem conhecida formou biofilmes mais extensos e produziu
Consumo de doces, sem escovar os dentes dos dentistas por estar associada a esse tipo mais ácido do que as outras espécies isolada-
depois, cria ambiente favorável às bactérias de deterioração dos dentes. Ela não age sozi- mente (Nature Communications, 22 de maio).

Seu cão não está apenas dormindo


Enquanto dorme, embora não pareça, seu cachorro pode estar ouvindo
o que você faz. Especialistas em comportamento animal da Universidade
Eötvös Loránd, da Hungria, conectaram dispositivos que medem as ondas
cerebrais em 13 cães (nove fêmeas e quatro machos, com idade entre 1
e 10 anos). Os animais foram expostos a sons de cães e humanos – gritos,
gemidos, rosnados, tosses, risadas, suspiros e bocejos, sem estímulos Colônia de
Rothia nasimurium,
negativos para não se assustarem – e os dados gravados enquanto esta-
que converte
vam acordados, sonolentos ou depois de relaxarem e adormecerem. ácidos graxos em
Mesmo quando estavam em sono mais profundo, os cães aparentemen- hidrocarboneto
te conseguiam distinguir se um ruído vinha de outro companheiro peludo
ou de uma pessoa e se a comunicação era positiva ou neutra. Os autores Enzima para
do trabalho, embora reconheçam que mais pesquisas são necessárias,
sugerem que os circuitos neurais dos cães diferenciam vocalizações e combustíveis de aviação
fornecem evidências do complexo processamento vocal durante o sono.
Essa capacidade já havia sido detectada em primatas e roedores, como Após três anos e meio de trabalho, uma equipe do
ratos (Scientific Reports, 4 de setembro; ScienceAlert, 12 de setembro). Laboratório Nacional de Biorrenováveis do Brasil (LNBR)
do Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais
(CNPEM) identificou uma enzima que poderia substituir
Mesmo em sono os catalisadores tradicionais utilizados em rotas
profundo, o cérebro termoquímicas para a produção de bioquerosene de
dele está atento
aviação. Chamada de descarboxilase ou OleTPRN, provém
da bactéria Rothia nasimurium e converte ácidos graxos,
componentes essenciais de gorduras, em uma classe de
hidrocarbonetos conhecidos como alcenos ou olefinas,
um intermediário da produção desse tipo de
combustível. Essa capacidade permitiria a produção de
hidrocarbonetos para a aviação a partir de plantas
oleaginosas, como soja, macaúba ou milho, ou resíduos
agrícolas, como o bagaço ou a palha da cana-de-açúcar.
“A versatilidade dessa enzima permite que seja adaptada
para uso em diferentes setores [da indústria], como
alimentícia, cosmética, farmacêutica e de transportes”,
comentou à Agência FAPESP a física Letícia Zanphorlin,
2 coordenadora da pesquisa (PNAS, 22 de maio).

8 | OUTUBRO DE 2023
Inscrições rupestres
de cerca de 6 mil
anos em Pedra
do Ingá, na Paraíba

Sítios Sabe qual o sítio arqueológico mais antigo do materiais neles encontrados. Um mapa interativo
Brasil? E o mais próximo da sua casa? Essas permite acessar informações de cada sítio, com
arqueológicos informações estão disponíveis no site do projeto o número de datações realizadas e datas mais
Brazilian Radiocarbon Database (brc14database. antigas e mais recentes. As mais longínquas
brasileiros com.br). Construído pela equipe do arqueólogo são dos sítios Abrigo do Morro Furado, na Bahia,

on-line Lucas Bueno, da Universidade Federal de Santa


Catarina (UFSC), o site reúne 3.769 datações de
e Boqueirão da Pedra Furada, no Piauí, ambos
com cerca de 40 mil anos. “Uma rápida
1.249 sítios arqueológicos brasileiros registrados comparação entre a quantidade de sítios para
no Cadastro Nacional de Sítios Arqueológicos os quais conseguimos, até o momento, reunir
(CNSA). No ar desde 2021, permite aos usuários dados sobre datações radiocarbônicas e a
colaborar para a atualização das informações. quantidade de sítios registrados hoje no CNSA,
Bueno e seus colegas completaram os registros dá uma dimensão do que precisa ser feito”,
do CNSA com informações de 459 documentos afirmam os autores em um artigo científico
(artigos científicos, teses e dissertações) no qual descrevem o projeto (Boletim do Museu
sobre a localização dos sítios e a idade de Paraense Emílio Goeldi, 2023).

Maior risco de atropelamento


FOTOS 1 RDNE STOCK PROJECT / PEXELS 2 KAROLINA GRABOWSKA / PEXELS 3 KANG, Y. ET AL.
VETERINARY SCIENCES. 2022 4 CLAUDIO JJ / WIKIMEDIA COMMONS 5 MARCO VERCH / FLICKR

Carros sem motorista, ainda em testes, não conseguem detectar crian-


ças e pedestres de pele mais escura tão bem quanto adultos de pele
mais clara, aumentando, assim, o risco de atropelar quem não identifica
corretamente. Após testar oito sistemas de detecção de pedestres ali-
mentados por 8.311 imagens com 16.070 identificadores de gênero,
20.115 de idade e 3.513 de tons de pele, pesquisadores do King’s Colle-
ge, em Londres, verificaram que a detecção para adultos era 19,67%
maior em comparação com a de crianças e 7,52% mais precisa para
pedestres de pele clara que para pedestres de pele mais escura; o gê-
nero mostrou uma diferença de apenas 1,1%. Isso ocorre porque os pro-
gramas de inteligência artificial são treinados com fotos que mostram
mais pessoas com pele clara do que com pele escura. “O perigo que os
carros autônomos podem representar é grande”, disse Jie Zhang, uma
das autoras do estudo, em um comunicado de imprensa. “As pessoas de
grupos minoritários podem enfrentar lesões graves.” Segundo ela, fa-
Carro autônomo,
bricantes dos chamados autônomos e governo deveriam se unir para menos atento
promover o tratamento igualitário para os pedestres (ArXiv.org, 5 de a grupos minoritários
agosto; King’s College London, 23 de agosto; PCMag, 28 de agosto).

PESQUISA FAPESP 332 | 9


O primeiro parque
eólico de grande escala
do Senegal
Quando a defesa
pode agredir
No cérebro, além dos neurônios,
há micróglias, células pequenas com
ramificações. Elas protegem o sistema
nervoso central ao combater agentes
infecciosos e ajudar na eliminação
de células mortas. A neurocientista
Katherine Prater e o bioquímico Kevin
Green, ambos da Universidade de
Washington em Seattle, extraíram
amostras de micróglia do cérebro de
pessoas que morreram com a doença
de Alzheimer e de indivíduos sem a
1 enfermidade e compararam o padrão de
ativação dos genes. Comparativamente,
Acordo para acelerar a transição as micróglias de quem tinha Alzheimer
exibiram mais genes ativos associados
para energias limpas na África à inflamação. Embora necessária para
eliminar microrganismos invasores e
A Masdar, empresa de energia limpa dos Emirados Árabes Unidos (EAU), e a Africa50, pla- células doentes, a inflamação, quando
taforma pan-africana de investimento em infraestrutura, anunciaram em setembro uma se intensifica ou se prolonga, torna-se
parceria para identificar, acelerar e dimensionar projetos de energia limpa em todo o con- nociva: compostos inflamatórios
tinente. Mohamed Jameel Al Ramahi, CEO da Masdar, comentou: “Nosso portfólio [de ener- podem danificar células saudáveis e
gias limpas] inclui o primeiro parque eólico de grande escala do Senegal, o primeiro e maior contribuir para a progressão do
projeto solar fotovoltaico da Mauritânia e o desenvolvimento do maior parque eólico da Alzheimer. A identificação desse perfil
África, no Egito”. Ligada ao Etihad 7, plataforma de desenvolvimento lançada pelos EAU na torna as micróglias um potencial alvo
Semana de Sustentabilidade de Abu Dhabi em 2022, tem como meta fornecer eletricidade para o desenvolvimento de novas
limpa a 100 milhões de pessoas em todo o continente africano até 2035. A iniciativa reúne terapias para o Alzheimer, embora até o
capital privado e público, além de instituições dos EAU, como o Fundo para o Desenvolvi- momento testes com anti-inflamatórios
mento de Abu Dhabi. A Masdar comprometeu-se com um total de US$ 10 bilhões em finan- não tenham mostrado efeitos
ciamento de energia limpa, dos quais US$ 2 bilhões de capital próprio e US$ 8 bilhões de significativos (Nature Aging, 29 de maio;
financiamento de projetos (Africa Science News, 7 de setembro). ScienceAlert, 26 de agosto).

O macaco que atravessou o Atlântico


Um macaco que pesava cerca de 230 gramas, batizado com o nome Ashanin-
kacebus simpsoni, inseriu novas discussões na história da origem dos primatas
amazônicos. Até aqui, todos os fósseis encontrados tinham parentesco com
os macacos atuais da América do Sul, com origem na África. A nova espécie
tem semelhanças dentárias com um pequeno grupo extinto de macacos do sul
da Ásia e não deu origem a nenhum animal moderno, por isso é considerado
um beco sem saída da evolução. Uma equipe franco-brasileira chegou a essa
conclusão a partir de um minúsculo dente, um molar superior menor do que
um grão de arroz, encontrado em uma barranca do alto rio Juruá, no Acre, pró-
ximo ao Peru. “Os antepassados de Ashaninkacebus devem ter atravessado o
oceano Atlântico em uma balsa natural formada por restos vegetais, por volta
do Eoceno Médio, entre 40 milhões e 35 milhões de anos atrás”, comenta o
biólogo Francisco Ricardo Negri, do campus de Floresta da Universidade Fe-
deral do Acre (Ufac). Por serem pequenos, os macacos precisavam de pouco
Interpretação
alimento e possivelmente teriam sobrevivido à viagem comendo restos vege-
artística de
Ashaninkacebus tais. A. simpsoni foi o terceiro primata a chegar na Amazônia. Antes dele, outras
simpsoni duas espécies de macacos pequenos já haviam feito a mesma travessia, pro-
vavelmente também de balsa (PNAS, 3 de julho).

10 | OUTUBRO DE 2023
Grupo de
pinguins-imperadores,
cada vez mais raros
Calor intenso, safra menor
Desde os anos 1980, a produtividade da soja sofre uma redução de 6% para cada
aumento de 1 grau Celsius (°C) na temperatura. Para chegar a esse resultado,
pesquisadores brasileiros examinaram os efeitos da variação da temperatura e da
pluviosidade médias anuais de 1980 a 2018 em 322 municípios da região conhecida
como Matopiba, área de transição entre o Cerrado e a Amazônia formada por
partes dos estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia. A equipe, coordenada
pelo economista brasileiro Daniel Silva, da Universidade do Texas, entrevistou
90 fazendeiros da região para examinar as práticas agrícolas e as percepções das
mudanças do clima. Eles atribuem a elevação da temperatura média a oscilações
cíclicas do clima, mas não relacionam a perda de vegetação com a redução das
chuvas. A elevação da temperatura também implica aumento do endividamento,
por exigir mais capital para investir em irrigação e tecnologias para mitigar perdas
com a seca (International Journal of Agricultural Sustainability, fevereiro).

Mortalidade maior nas metrópoles


Uma análise de pesquisadores da Universidade Federal do Rio de Janeiro nas 14 áreas
urbanas mais populosas do país registrou um excesso (valor além do normal) de 48.075
3 mortes relacionadas às ondas de calor verificadas de 2000 a 2018, principalmente nas
regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste. As Regiões Metropolitanas de São Paulo, Rio
Milhares de de Janeiro, Porto Alegre, Recife, Belém e Cuiabá apresentaram as maiores taxas de mor-
FOTOS 1 LIONEL MANDEIX / PRESIDÊNCIA SENEGAL 2 JORGE GONZALES E DIEGO BARLETTA 3 CHRISTOPHER MICHEL / WIKIMEDIA COMMONS 4 J.DURAN MACHFEE / FOLHAPRESS

talidade relacionadas ao calor. Os grupos mais vulneráveis foram de idosos, mulheres,


filhotes morrem pessoas autodeclaradas pretas e pardas, com menor nível de escolaridade ou comor-
bidades, como o câncer. As principais causas de morte durante as ondas de calor esta-
na Antártida vam associadas com doenças cardiovasculares e respiratórias. Os autores desse estudo
acentuam que “o fortalecimento da atenção primária à saúde combinado com a redução
Por causa do derretimento do gelo das desigualdades socioeconômicas e de gênero representa um passo crucial para re-
em novembro/dezembro, na primavera do duzir as mortes relacionadas ao calor no Brasil”. De acordo com uma análise da morta-
hemisfério Sul, não sobreviveu nenhum filhote lidade e temperatura entre 326 cidades da América Latina, para cada 1 grau Celsius
em quatro das cinco colônias de reprodução (oC) de aumento de temperatura, estima-se uma elevação de 5,7% no risco de morte,
dos pinguins-imperadores (Aptenodytes em especial entre idosos com doenças cardiovasculares ou câncer (preprint, SSRN).
forsteri) na Antártida. Como fazem todos os
4
anos, as fêmeas depositaram os ovos em maio
e junho no chamado gelo rápido, que se forma
em abril, e os chocaram durante 65 dias.
Mas essa borda da superfície se rompeu e
os filhotes ainda indefesos, com a penugem Onda de calor na
incompleta, caíram nas geladas águas capital paulista,
em 2014: perigo
antárticas. A região com maior perda foi a do
para quem tem
mar de Bellingshausen, a oeste da península. problemas cardíacos
Em apenas um local, a ilha Rothschild, ou respiratórios
com 650 casais reprodutores, os filhotes
conseguiram emplumar e sobreviver. Cada
colônia pode abrigar até 3.500 casais.
Caso a tendência de redução da superfície
de gelo da Antártida continue, em razão
das mudanças do clima, mais de 90% das
colônias de pinguins-imperadores poderão se
extinguir até ao final deste século, alertaram
pesquisadores do Instituto Britânico de
Pesquisa Antártica, que identificaram a
mortandade no final do ano passado
(Communications Earth & Environment,
24 de agosto; ScienceAlert, 25 de agosto).

PESQUISA FAPESP 332 | 11


CAPA

PRECISA-SE
DE
PROFESSORES

12 | OUTUBRO DE 2023
Políticas para melhorar a atratividade da carreira
e reformular currículos é o caminho para reverter cenário
de escassez docente na educação básica

Christina Queiroz

U
ma medida paliativa vem ocorrendo ensino médio na área do conhecimento em que
com frequência cada vez maior em se formaram. Dados do último Censo da Educa-
escolas públicas e privadas de todo ção Superior do Inep, autarquia vinculada ao Mi-
o país. Muitos estudantes estão fi- nistério da Educação (MEC), divulgados no ano
nalizando o ano letivo de 2023 sem passado, mostram que desde 2014 a quantidade
ter tido aulas de física ou sociologia de ingressantes em licenciaturas presenciais está
com professores habilitados para caindo, assim como ocorre em cursos a distân-
ministrar essas disciplinas. Dian- cia desde 2021. “As áreas mais preocupantes são
te da ausência de candidatos para as de ciências sociais, música, filosofia e artes,
ocupar as docências, as escolas improvisam e que apresentaram as menores quantidades de
colocam profissionais formados em outras áreas matrículas em 2021, e as de física, matemática
para suprir lacunas no ensino fundamental II e e química, que registraram as maiores taxas de
no ensino médio. A medida tem se repetido em desistência acumulada na última década”, assi-
diferentes estados e municípios brasileiros, como nala Ferreira (ver gráfico na página 14).
mostram dados de estudo inédito realizado por Dados do Inep disponíveis no Painel de Mo-
pesquisadores do Instituto Nacional de Estudos nitoramento do Plano Nacional de Educação
e Pesquisas Educacionais (Inep): em Pernam- (PNE) indicam que, em 2022, cerca de 59,9% das
buco, por exemplo, apenas 32,4% das docências docências do 6º ao 9º ano do ensino fundamental
em física no ensino médio são ministradas por e de 67,6% daquelas oferecidas no ensino médio
licenciados na disciplina, enquanto no Tocantins eram ministradas por professores qualificados
o valor equivalente para a área de sociologia é de na área do conhecimento. Ao analisar os núme-
5,4%. Indicativo da falta de interesse dos jovens ros, o pedagogo e professor de educação física
em seguir carreira no magistério, o número de Marcos Neira, pró-reitor adjunto de Graduação
concluintes de licenciaturas em áreas específi- da Universidade de São Paulo (USP), comen-
cas passou de 123 mil em 2010 para 111 mil em ta que a situação é diferente em cada área do
2021. Esse conjunto de dados indica que o país conhecimento. “Por um lado, a média nacional
vivencia um quadro de apagão de professores. mostra que 85% dos docentes de educação física
Para reverter esse cenário, pesquisadores de- são licenciados na disciplina, enquanto os per-
fendem a urgência da criação de políticas de centuais equivalentes para sociologia e línguas
valorização da carreira docente e a adoção de estrangeiras são de 40% e 46%, respectivamen-
FOTO LÉO RAMOS CHAVES / REVISTA PESQUISA FAPESP

reformulações curriculares. te. Ou seja, os problemas podem ser maiores ou


“O apagão das licenciaturas é uma realidade menores conforme a área do conhecimento e
que nos preocupa”, afirma Marcia Serra Ferrei- também são diferentes em cada estado”, destaca
ra, da Universidade Federal do Rio de Janeiro Neira, que atualmente desenvolve pesquisa com
(UFRJ) e diretora de Formação de Professores financiamento da FAPESP sobre reorientações
da Educação Básica da Coordenação de Aperfei- curriculares na disciplina de educação física.
Brasil registra déficit çoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). A falta de formação adequada do professor
de professores
habilitados para lecionar
As licenciaturas em áreas específicas são cursos pode causar impactos no processo de aprendiza-
em todas as áreas superiores que habilitam os concluintes a dar au- gem dos alunos, conforme identificou Matheus
do conhecimento las nos anos finais do ensino fundamental e no Monteiro Nascimento, físico da Universidade

PESQUISA FAPESP 332 | 13


Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), em pes- em três, matemática, língua portuguesa, língua
quisa realizada em 2018. De acordo com o pes- estrangeira e geografia em um”, contabiliza Alva-
quisador, na ausência de docentes licenciados na Bof, uma das autoras da pesquisa. Além disso,
em física, quem acaba oferecendo a disciplina o estudo avaliou se a quantidade de licenciados de
nas escolas, geralmente, são profissionais da 2019 a 2021 seria suficiente para suprir todas as
área de matemática. “Com isso, observamos que docências que, em 2022, estavam sendo ofereci-
a abordagem da disciplina tende a privilegiar o das por professores sem formação adequada. Foi
formalismo matemático”, comenta. Ou seja, no constatado que faltariam docentes de artes em 18 À direita, alunos do
curso de licenciatura
lugar de tratar de conhecimentos de mecânica, estados, física em 16 estados, língua estrangeira em química na USP
eletricidade e magnetismo por meio de abor- em 15, filosofia e sociologia em 11, matemática e, abaixo, estudantes
dagens fenomenológicas, conceituais e expe- em 10, biologia, ciências e geografia em 8, lín- em escola de
rimentais, os professores acabam trabalhando gua portuguesa em 5, história e química em 2 São Paulo em aula
de artes: disciplinas
os assuntos em sala de aula apenas através de e educação física em um estado. “Os resultados registram altos
operações matemáticas e equações sem relação indicam que já vivemos um apagão de professores patamares de carência
direta com a realidade do aluno. “O formalismo em diferentes estados e disciplinas”, reitera Bof, de professores
matemático é, justamente, o elemento da dis- licenciada em letras e com
ciplina de física que mais prejudica o interesse doutorado em educação
de estudantes por essa área do conhecimento”, (ver gráficos nas páginas

P
considera Nascimento. 16 e 17).
Outro autor do traba-
reocupados em mensurar se as defa- lho, o sociólogo do Inep
sagens poderiam ser sanadas com a Luiz Carlos Zalaf Caseiro
contratação de profissionais forma- esclarece que o cenário de
dos em licenciaturas no Brasil nos falta de professores não
últimos anos, pesquisadores do Inep está relacionado com fal-
realizaram, em setembro, estudo no ta de vagas em cursos de
qual olharam para as carências de licenciaturas. “Em 2021,
escolas públicas e privadas nos anos o país teve 2,8 milhões
finais do ensino fundamental e médio. de vagas disponíveis, das
“Se todos os licenciados de 2010 a 2021 ministras- quais somente 300 mil
sem aulas na disciplina em que se formaram nos foram preenchidas. Isso
anos finais do ensino fundamental e no ensino significa que 2,5 milhões
médio em 2022, ainda assim o país teria dificul- de vagas ficaram ociosas,
dades para suprir a demanda por docentes de sendo grande parte no se-
artes em 15 estados, física em cinco, sociologia tor privado e na modali- 1

QUEM FICA E QUEM SAI NA LICENCIATURA


De 2012 a 2021, a taxa de desistência acumulada de alunos matriculados em cursos de física foi de 72%

Taxa de desistência acumulada Taxa de conclusão acumulada Taxa de permanência*

1 2 1 3 1 1 1 1 2 1 3 3 2 4
49 43 43 40 41 40 40 39 36 36 33 30 30 24

72
67 68
62 63 64
58 59 59 60
55 56 57
50

Pedagogia Artes Geografia Biologia História BRASIL Educação Língua Sociologia Língua Filosofia Química Matemática Física
(todos os física portuguesa estrangeira
cursos)
FONTES MEC / INEP / CENSO DA EDUCAÇÃO SUPERIOR * Corresponde aos alunos cursando a licenciatura ou com matrícula trancada

14 | OUTUBRO DE 2023
de ensino determina que os currículos escolares
devam deixar de ser organizados conforme dis-
ciplinas para passarem a funcionar por meio de
áreas do conhecimento. Com isso, aulas de física,
por exemplo, poderiam ser integradas à grande
área de ciências da natureza e suas tecnologias
que abarca, também, conteúdos de química e
biologia. “Apesar da proposta interdisciplinar ser
aspecto positivo da BNCC, a maioria dos profes-
sores de física do país não está preparada para
atuar com esse viés nas escolas”, avalia Barros.
Na perspectiva do pesquisador, o novo ensino
médio – criado pela Lei nº 13.415, em 2017, pre-
vendo a flexibilização da grade curricular por
meio da oferta dos chamados itinerários formati-
2
vos (ver Pesquisa FAPESP nº 316) – traz desafios
à formação tradicional de graduados em física.
dade de ensino a distância”, relata. Licencia- Isso porque os professores licenciados na disci-
turas oferecidas no ensino público, na modali- plina não são preparados para ministrar aulas
dade presencial, também tiveram quantidade alinhadas com as propostas do novo ensino mé-
significativa de vagas ociosas. “De 2014 a 2019, a dio. “O descompasso entre o currículo atual do
taxa de ociosidade de licenciaturas em institui- ensino médio e os conhecimentos do professor
ções públicas foi de cerca de 20%, enquanto em prejudica o processo de aprendizagem dos estu-
2021 esse percentual subiu para 33%”, informa. dantes. Mais tarde, as deficiências no ensino de
Cursos como o de matemática apresentaram si- física na educação básica contribuem para que o
tuação ainda mais alarmante. “Licenciaturas de jovem não queira cursar licenciatura nessa área
matemática em instituições públicas no formato do conhecimento”, relaciona. Segundo Barros, o
presencial registraram 38% de vagas ociosas em caso do Instituto de Física da USP de São Carlos
2021”, destaca Caseiro, comentando que mui- constitui exceção, na medida em que desde a dé-
tas vagas, mesmo quando preenchidas, logo são cada de 1990 os alunos da licenciatura recebem
abandonadas. Além disso, segundo o sociólogo, formação interdisciplinar, concluindo o curso ap-
somente um terço dos estudantes que finalizam tos para lecionar aulas de ciência, física, química e
as licenciaturas vai atuar na docência; o restante matemática tanto para turmas do 6º ao 9º ano do
opta por outros caminhos profissionais. O estu- ensino fundamental como para o ensino médio.
do foi desenvolvido a partir do cruzamento de Seguindo esse modelo, o pesquisador sustenta
dados relativos a docentes presentes no Censo que currículos das licenciaturas em física devam
da Educação Básica e referentes a ingressantes e ser reformados para aproximar a disciplina dos
concluintes em licenciaturas captados pelo Censo avanços da ciência moderna, tratando de temas
da Educação Superior. Ambas as pesquisas são atuais de mecânica quântica, relatividade e as-
realizadas anualmente pelo Inep para analisar trofísica e buscando desenvolver metodologias
a situação de instituições, alunos e docentes da inovadoras de ensino. “Para que essa abordagem
FOTOS 1 RUBENS CAVALLARI / FOLHAPRESS 2 LÉO RAMOS CHAVES / REVISTA PESQUISA FAPESP

O
educação básica e do ensino superior. possa ser aplicada em sala de aula, um ponto-
-chave são as escolas contarem com laboratórios
s cursos de licenciatura enfrentam, de atividades experimentais, que podem ajudar a
ainda, o desafio de atualizar seus conquistar o interesse de alunos”, aponta Barros,
currículos. Tomando como exem- integrante de projeto financiado pela FAPESP
plo a área de física, Marcelo Alves voltado à busca por estratégias de renovação do
INFOGRÁFICO ALEXANDRE AFFONSO / REVISTA PESQUISA FAPESP

Barros, físico da USP de São Carlos, ensino de ciência.


explica que os licenciados na disci- A BNCC e a reforma do ensino médio tam-
plina, tradicionalmente, recebem bém trouxeram desafios para as licenciaturas
formação pautada em uma aborda- em história, assegura Marieta de Moraes Fer-
gem com pouca conexão com outras reira, historiadora da UFRJ. “As novas diretrizes
disciplinas e a realidade do estudante da educa- enxugaram os conteúdos específicos de áreas
ção básica. Essa forma tradicional de pensar o como sociologia, história e filosofia que devem
conteúdo de física e ministrá-lo em sala de aula, ser ministrados na educação básica, em prol de
conforme Barros, difere de diretrizes estabele- uma abordagem interdisciplinar. Porém os pro-
cidas por documentos oficiais, entre eles a Base fessores não foram preparados para atuar com
Nacional Comum Curricular (BNCC) do ensino essas mudanças”, enfatiza Ferreira. Ela recorda
médio. Homologada em 2018, a BNCC dessa etapa que as primeiras graduações nessa área do co-

PESQUISA FAPESP 332 | 15


PROFESSORES Língua História
Ensino fundamental II

Geografia Matemática Ciências Educação Língua Artes


HABILITADOS portuguesa física
97,8
estrangeira

91,0 90,2
Unidades da federação 90,0 89,1
85,2
84,5 82,5
com os maiores e menores
percentuais de docências
adequadas em 2021

Estado com o MAIOR percentual 41,5


38,5
34,8
Estado com o MENOR percentual 30,4 29,3 27,4

14,1
7,2

FONTE BOF, A. M. ET AL. CADERNOS DE ESTUDOS E


PESQUISAS EM POLÍTICAS EDUCACIONAIS. 2023. NO PRELO DF MA DF MA DF MA DF MA SP MA SP MA DF AM DF MA

nhecimento foram criadas no Brasil nos anos Em 2018, para entender as razões pelas quais 1

1930 com foco na formação de professores. Mais o desempenho dos alunos em matemática não
tarde, na década de 1970, com a expansão de progredia ou até recuava a partir de seu ingresso
programas de pós-graduação, as instituições de no ensino fundamental II, um grupo de pesqui-
ensino passaram a valorizar atividades de pes- sadores da UFC liderados por Lira realizou um
quisa nessa disciplina, de forma que a preocu- levantamento em parceria com a Seduc. “Dire-
pação em formar alunos para o magistério ficou tores e coordenadores se perguntavam por que
em segundo plano. O debate sobre o ensino de na virada do fundamental I para o II o desem-
história voltou à cena nos anos 2000, quando as penho matemático dos alunos não avançava
instituições passaram a diferenciar quem queria tanto quanto em outras áreas”, conta. “Então,
ser licenciado e dar aulas de quem se graduaria resolvemos investigar a fundo a origem desse
como bacharel para atuar como pesquisador. problema.” Foram analisados dados históricos
“Não concordo com essa divisão e penso que de estudantes da rede pública do Ceará do en-
não dá para ser professor sem saber pesquisar. sino fundamental até o final do ensino médio,
Para formar melhores docentes, as licenciaturas mapeando curvas de aprendizagem e detectando
deveriam articular atividades de ensino com os gargalos que começavam de forma massiva
pesquisas focadas em questões suscitadas pelo na passagem do ensino fundamental I para o II.

A
ambiente escolar”, propõe. Em paralelo, desenvolveram análise para ava-
liar o conhecimento pedagógico de professores,
o refletir sobre a BNCC, o matemá- identificando a existência de lacunas envolven-
tico Jorge Herbert Soares de Lira, do conceitos básicos que são trabalhados desde
da Universidade Federal do Ceará os anos iniciais do ensino fundamental, entre
(UFC), concorda que a nova base
curricular pode trazer melhorias 2

aos processos de ensino e apren-


dizagem, mas as mudanças preci-
sam ser trabalhadas com alunos
formados nas licenciaturas. Lira,
que também é cientista-chefe da Secretaria de
Educação (Seduc) daquele estado, considera
que, no caso da matemática, é preciso incenti-
var a integração entre o enfoque aprofundado
no conteúdo e estratégias de ensino. Na última
edição do Programa Internacional de Avaliação
de Estudantes (Pisa), estudo da Organização
para a Cooperação e o Desenvolvimento Eco-
nômico (OCDE) para analisar o desempenho de
estudantes nas áreas de matemática, ciências
e leitura, o Brasil ficou entre os 10 países do
mundo com pior desempenho em matemática.

16 | OUTUBRO DE 2023
Ensino médio

Matemática Geografia Biologia Educação Língua Química Física História Língua Filosofia Artes Sociologia
física portuguesa estrangeira
97,5 98,5 98,6 97,9
94,8 95,5 93,1 94,1
88,1 86,7 85,8
83,5

61,1 62,0
54,9 56,6 57,1
48,6
40,3
32,4
27,7
18,2
10,3
5,4

SE AC SE AC SE AC SE MA SP MT DF AC DF PE ES AC SE AM DF TO SP TO AP TO

eles frações, leitura de do conhecimento matemático durante a educa-


gráficos e tabelas, o ção básica é uma forma de ampliar seu interesse

P
sistema de numeração por lecionar a disciplina no futuro.
decimal e as operações
aritméticas. “Os do- ara evitar os problemas identificados
centes têm lacunas na por Lira no Ceará e resolver outros
compreensão profunda mapeados em São Paulo, Neira pro-
dessa matemática bá- põe atualizar os 28 programas de
sica e em habilidades licenciatura da USP. O pró-reitor
complexas próprias conta que a instituição desenvolve
do ensino de conceitos ações para apoiar coordenadores de
fundantes ministrados cursos na reformulação de currículos.
nos primeiros anos da “Queremos oferecer graduações com
educação básica, que viés integrativo, abandonando a ideia de que a
são retomados em to- formação do bacharel deva ocorrer de forma se-
da a trajetória curricu- parada daquela oferecida ao licenciado”, resume.
lar. Assim, não estavam A USP estuda uma parceria com a Secretaria de
preparados para ensi- Educação do Estado de São Paulo para oferecer
nar os alunos a utili- estágios remunerados em escolas públicas a alu-
zá-los em abordagens nos de licenciaturas.
mais complexas, que Os pesquisadores defendem que as licenciatu-
começam a partir do ras precisam se renovar para oferecer formações
6º ano”, comenta Lira. sólidas tanto no conteúdo da área do conhecimen-
A partir desse diag- to como em questões de caráter prático e didático,
Acima, alunos do nóstico, a Seduc passou a promover avaliações preparando os alunos para saber como ensinar.
FOTOS 1 EZ PHOTOS / ALAMY / FOTOARENA 2 LALO DE ALMEIDA / FOLHAPRESS

ensino médio em escola periódicas para identificar os conteúdos nos “Em todas as áreas do conhecimento, alunos de
de Fortaleza, no Ceará,
estado que criou
quais os estudantes não progridem. Conforme licenciaturas devem ter formação nas disciplinas
os resultados das análises, a secretaria realiza específicas da educação, como políticas educa-
INFOGRÁFICO ALEXANDRE AFFONSO / REVISTA PESQUISA FAPESP

estratégia para
melhorar a formação processos formativos aos docentes com vistas cionais, teorias curriculares, planejamento e ava-
docente em matemática. a melhorar seu preparo para abordar os tópicos liação, gestão escolar e organização do trabalho
Ao lado, aula de
história em escola de
mais estruturais do currículo. “Nesses treina- pedagógico”, resume a pedagoga Márcia Apare-
Rio Branco, no Acre mentos, mostramos aos professores como re- cida Jacomini, da Universidade Federal de São
tomar conhecimentos básicos e alinhá-los com Paulo (Unifesp). Segundo a pesquisadora, hoje,
competências complexas, por meio de estratégias muitos cursos de licenciatura ainda enfatizam o
pedagógicas nas quais os alunos são expostos a ensino da disciplina em si, deixando de lado as-
problemas em contextos cotidianos, científicos pectos práticos e metodológicos fundamentais
e sócio-econômicos”, conta o pesquisador, cujo para o sucesso do processo de aprendizagem. n
projeto é financiado pela Fundação Cearense de
Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnoló- Os projetos e os artigos científicos consultados para esta reportagem
gico (Funcap). Para Lira, aproximar estudantes estão listados na versão on-line.

PESQUISA FAPESP 332 | 17


PROFISSÃO
EM RISCO Professores protestam
no Rio de Janeiro
em 2023 para exigir
melhoria salarial

Salários baixos, falta de estrutura em escolas e desvalorização


social prejudicam interesse pela carreira docente

Christina Queiroz

A
pesar da busca por construir básica correspondia, em média, a 78% do A falta de docentes para atuar na edu-
um país civilizado e econo- valor registrado para outros profissionais cação básica é um fenômeno que vem
micamente produtivo pas- assalariados com mesmo nível educa- se agravando nos últimos anos e, para
sar, necessariamente, pela cional, segundo o “Relatório do 3º ciclo ser mais bem compreendido, deve ser
boa formação de crianças e de monitoramento das metas do Plano analisado em perspectiva histórica, se-
jovens, professores da edu- Nacional de Educação (PNE)”. O físico gundo Pietrocola, que estuda a questão
cação básica têm enfrenta- Mauricio Pietrocola, da Faculdade de há cerca de 40 anos. De acordo com o
do, nas últimas décadas, Educação da Universidade de São Paulo pesquisador, entre 1970 e 2000, a escas-
desafios envolvendo baixos (FE-USP), observa que além de salários sez docente estava relacionada, prin-
salários, falta de acesso a laboratórios e insuficientes e classes lotadas, deficiên- cipalmente, com a rápida expansão na
bibliotecas escolares, assim como um pro- cias de aprendizagem acumuladas pelos quantidade de matrículas.
cesso de desvalorização social da profis- alunos em toda a sua trajetória educacio- Ao recordar o cenário passado de cres-
são. Divulgado em 2021 pela Organização nal são outros desafios enfrentados por cimento acentuado em matrículas da
para a Cooperação e o Desenvolvimento docentes que, muitas vezes, acabam por educação básica, Lúcia Teixeira, presi-
Econômico (OCDE), o relatório “Educa- desistir da profissão. “Vivo encontrando dente do Semesp, entidade que represen-
tion at a glance”, por exemplo, indicou ex-alunos da licenciatura em física traba- ta mantenedoras de ensino superior no
que o piso salarial de docentes do ensi- lhando em bancos. Muitos me dizem que Brasil, menciona que, entre as décadas
no fundamental no Brasil é o mais baixo gostariam de ser professores, mas opta- de 1980 e 1990, o governo federal au-
dentre as 40 nações analisadas, sendo ram por prestar concurso para trabalhar torizava a contratação de pessoas sem
menor do que em outros países latino- em bancos públicos pelas melhores con- formação na área para lecionar em es-
-americanos como Colômbia e México. dições laborais”, relata Pietrocola, que colas. Esse cenário começou a mudar
No Brasil em 2019, o rendimento bruto é coordenador de projeto de pesquisa em 1996, com o estabelecimento da Lei
médio mensal de profissionais do ma- financiado pela FAPESP voltado à busca de Diretrizes e Bases (LDB), ou Lei nº
gistério com nível superior completo por estratégias inovadoras no ensino de 9.394, segundo a qual professores são
atuantes em redes públicas da educação ciências naturais. obrigados a ter formação na disciplina

18 | OUTUBRO DE 2023
que oferecem. “Porém essa diretriz da brasileiro o valor foi ainda menor, de 2,4%. Na avaliação de Alavarse, o Brasil deve
LDB ainda não é integralmente cumpri- Já a média de países europeus foi de 20% expandir a quantidade de bolsas do Pibid
da”, afirma Teixeira. Em 2021, o número Por sua vez, Marcia Serra Ferreira, a partir de análises sobre suas estatísti-
total de professores atuantes na edu- da Universidade Federal do Rio de Ja- cas educacionais, incluindo projeções
cação básica foi de 2,2 milhões, segun- neiro (UFRJ) e diretora de Formação demográficas futuras. “O envelhecimen-
do o Inep. Já a quantidade de docentes de Professores da Educação Básica da to da população brasileira captado pelo
lecionando no ensino fundamental II Capes, menciona relatório elaborado Censo pode fazer com que a demanda
caiu de 779 mil para 753 mil de 2016 a em 2007 por uma comissão instituída por professores diminua, nas próximas
2021, conforme pesquisa do Instituto na Câmara de Educação Básica do Con- décadas, de forma que será preciso men-
Semesp divulgada em 2022. Os valores selho Nacional de Educação (CNE). O surar o déficit de professores, tendo em
correspondentes para o ensino médio no documento já alertava sobre um possível conta tendências demográficas”, propõe
mesmo recorte temporal foram de 520 apagão de professores no ensino médio, (ver Pesquisa FAPESP nº 330).
mil e 516 mil. O Instituto Semesp estima caso providências urgentes não fossem Vitor de Angelo, presidente do Con-
que o déficit de professores na educação tomadas no país. A partir daquele ano selho Nacional de Secretários de Edu-

M
básica pode chegar a 235 mil em 2040. o governo federal criou diversas ações, cação, comenta que em 2023 o governo
entre elas o Programa Institucional de federal criou programas para ampliar
as, ao contrário de déca- Bolsas de Iniciação à Docência (Pibid), as escolas de tempo integral e melhorar
das passadas, o problema oferecendo bolsas para que estudantes o processo de alfabetização de alunos
atual de escassez docente de licenciaturas atuem em escolas pú- do ensino fundamental I. “Porém ainda
se relaciona com um pro- blicas da educação básica. “O programa há muito o que ser feito em relação aos
cesso de desvalorização beneficiou 317 mil alunos. Atualmente, professores”, avalia Angelo, que também
da carreira, na perspec- mantém parcerias com 248 instituições é secretário de Educação do Espírito
tiva de Pietrocola. Ao de ensino superior e contempla 49,2 Santo. Nesse sentido, ele recorda que o
enfatizar que essa não é mil bolsistas de iniciação à docência Plano Nacional de Educação (PNE), que
uma dificuldade exclu- em todo o Brasil”, afirma. Para 2024, determina diretrizes, metas e estratégias
sivamente brasileira, ele cita estudo da devem ser instituídas 100 mil novas va- para a política educacional brasileira e
OCDE realizado com jovens concluintes gas para o programa, segundo Ferreira. com vigência de 2014 a 2024, está sendo
da educação básica. “Em 2015, a pesquisa O pedagogo Ocimar Munhoz Alavarse, reformulado. “O momento é oportuno. O
identificou qual era a média global de estu- da USP, reconhece a importância des- novo PNE deve ser repensado de forma
dantes no mundo que estavam finalizando ses programas, mas afirma que as vagas a contemplar ações para tornar a carrei-
a educação básica e afirmavam que que- são restritas e precisam ser ampliadas. ra docente mais atrativa, criando estra-
riam se tornar professores, comparando os “Eu tenho cerca de 300 alunos nos dois tégias eficazes para atrair professores
patamares médios com os percentuais de primeiros anos do curso de pedagogia à educação básica”, finaliza Angelo. n
países e regiões”, diz. Conforme o estudo, elegíveis para receber as bolsas do Pi-
o percentual médio do mundo caiu de 5,5% bid, mas somente 24 conseguiram vagas
FOTO FABIO TEIXEIRA / ANADOLU AGENCY VIA GETTY IMAGES INFOGRÁFICO ALEXANDRE AFFONSO / REVISTA PESQUISA FAPESP

Os projetos e os artigos científicos consultados para esta


para 4,2% em 10 anos, enquanto no cenário para participar”, comenta. reportagem estão listados na versão on-line.

LICENCIADOS ATUANDO COMO PROFESSORES


Número e percentual de alunos concluintes das licenciaturas entre 2011 e 2021 que eram docentes em 2022

Concluintes, em milhares Docentes em 2022, em milhares % de concluintes docentes em 2022

125,0 123,0 123,6 100%


120,0 117,2
116,2
109,0 111,1 111,6 111,9
107,4
101,9 100,6
100,0 80%

75,0 60%

35,7% 36,6% 37,4% 36,1% 35,7%


34,6% 34,8% 33,6% 32,6% 31,8% 33,4%
50,0 29,3% 40%
42,5 40,4 40,2 40,2 39,6 41,6
39,0 37,3 39,1 37,3
33,6 32,8
25,0 20%

0 0
2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016 2017 2018 2019 2020 2021
Ano de conclusão

FONTE BOF, A. M. ET AL. CADERNOS DE ESTUDOS E PESQUISAS EM POLÍTICAS EDUCACIONAIS. 2023. NO PRELO

PESQUISA FAPESP 332 | 19


ENTREVISTA Pedro Leite da Silva Dias e Maria Assunção Faus

IDADE 71 anos FORMAÇÃO IDADE 71 anos FORMAÇÃO


Graduação em Graduação em
ESPECIALIDADE ESPECIALIDADE
matemática aplicada matemática aplicada
Dinâmica da Chuvas em sistemas
pela USP (1974), pela USP (1974),
meteorologia de grande tropicais e interação entre
mestrado (1977) mestrado (1977)
escala e modelagem biosfera e atmosfera,
e doutorado (1979) em e doutorado (1979) em
atmosférica particularmente na Amazônia
ciências atmosféricas pela ciências atmosféricas
INSTITUIÇÃO Universidade Estadual INSTITUIÇÃO pela Universidade Estadual
Universidade do Colorado em Fort Universidade do Colorado em Fort
de São Paulo (USP) Collins, Estados Unidos de São Paulo (USP) Collins, Estados Unidos

20 | OUTUBRO DE 2023
TEMPO BOM
PARA
PESQUISA
Casal de meteorologistas conta como estudos sobre
a atmosfera da Amazônia fortaleceram a ciência
climática brasileira e alerta sobre os desafios atuais

Marcos Pivetta | RETRATO Léo Ramos Chaves

C
asados há 50 anos, os meteorologistas Pedro Leite da Silva Dias
e Maria Assunção Faus da Silva Dias dividem seu tempo atual
entre a casa na cidade de São Paulo e uma fazenda de café em
Arceburgo, município do sudoeste mineiro com 9 mil habitantes
que faz divisa com a paulista Mococa. Professor titular do Ins-
tituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da Universidade de
São Paulo (IAG-USP), Pedro passa a maior parte da semana na capital pau-
lista. Desde que se aposentou do IAG em 2015, quando passou a ser profes-
sora sênior na universidade, Assunção, como ele a chama, permanece mais
tempo na propriedade rural.
A exemplo de Pedro, Assunção continua ativa com as pesquisas acadêmi-
cas, ainda que em ritmo menor do que no passado, e passou a prestar con-
sultoria climática a empresas. “A diferença agora é que eu tenho de dividir
a sala com ele”, brinca Assunção, que não tem mais um espaço fixo no IAG.
Ambos orientam alunos na pós-graduação e tocam as pesquisas que os torna-
ram conhecidos entre seus pares daqui e do exterior. Pedro é especialista em
modelagem climática nos trópicos e Assunção estuda a interação do clima,
em especial da chuva, com a floresta amazônica e as queimadas.
Os dois, que têm a mesma idade, fizeram praticamente toda a carreira aca-
dêmica na USP, onde exerceram cargos de direção em sua unidade. Também
passaram temporadas fora da universidade paulista, no exterior e em outras
instituições de pesquisa do país. Entre 1988 e 1990, ele chefiou o então re-
cém-criado Centro de Previsão de Tempo e Estudos Climáticos do Instituto
Nacional de Pesquisas Espaciais (CPTEC-Inpe). De 2007 a 2015, dirigiu o
Laboratório Nacional de Computação Científica (LNCC). Assunção também
coordenou o CPTEC, por seis anos, de 2003 a 2009.
Nesta entrevista, concedida na sala número 350 do bloco principal do
IAG, agora às vezes compartilhada por ambos, Pedro e Assunção contam
sua trajetória comum, falam de suas pesquisas e comentam o cenário das
mudanças climáticas.

PESQUISA FAPESP 332 | 21


Vocês fizeram a graduação em mate- Não sei se entendi direito. Vocês já ti- trado e doutorado em meteorologia nos
mática na USP juntos. Já se conheciam nham se transferido para a matemática, Estados Unidos. Nem hesitamos. Na ho-
antes da universidade? mas faziam estágio no Oceanográfico? ra, aceitamos o convite.
Pedro: Já, desde os 15 anos. Mas não na- A: Sim. Na matemática aplicada era pos-
morávamos. sível fazer disciplinas optativas em ou- Ele veio com um pacote fechado para
Assunção: Antes da USP, estudamos tras unidades da USP. Fizemos as optati- vocês?
juntos no Colégio Bandeirantes, em São vas em meteorologia no IAG e a iniciação P: Sim e explicou por quê. Tínhamos
Paulo. Éramos da mesma classe, na qual científica no IO. pensado em fazer mestrado no Inpe,
havia 50 alunos, só cinco meninas onde havia alguns pesquisadores que
Nessa época, já namoravam? tinham feito doutorado em meteorologia
Como foram se reencontrar na USP? P: Namoramos um ano e nos casamos em no exterior, e a pós-graduação em me-
A: Em 1971, o Pedro entrou na Escola fevereiro de 1973, no terceiro ano da fa- teorologia do Inpe já existia. Como era
Politécnica [Poli] e eu no Instituto de culdade. Em outubro de 1974, o professor difícil conseguir bolsa para o mestrado
Física. Em seguida, ele mudou para o Giorgio Giacaglia, que era então diretor no exterior, pretendíamos tentar uma
curso de matemática aplicada. Um ano do IAG, estava à procura de jovens com bolsa de doutorado no exterior após o
depois fiz o mesmo. vontade de ajudar na montagem de um mestrado no Inpe. Mas o Giacaglia dis-
P: Quando entrei na Poli, já achava que Departamento de Meteorologia. se que seria importante para o IAG que
não ia fazer engenharia. Queria fazer A: Ele nos chamou para uma conver- tivéssemos uma formação diferenciada.
alguma coisa ligada às ciências da Ter- sa, por indicação dos professores Paulo Dizia que a USP precisava ter um pensa-
ra e meteorologia já estava na lista. Mas Marques dos Santos e Paulo Benevides, mento independente. Ele foi muito es-
naquela época só havia graduação em e nos disse que estava contratando dois pecífico. Disse que tínhamos de ir para
geologia. Excluí esse curso porque a ma- meteorologistas americanos e três chi- os Estados Unidos, não para a França ou
temática e a computação não eram en- neses de Taiwan que trabalhavam nos a Inglaterra, que seriam outras opções
tão fundamentais no ensino da geologia. Estados Unidos e Canadá, mas que tam- naturais naquela época, pois na Europa
bém tinha de recrutar brasileiros, pois a formação na pós-graduação era muito
Por que não optaram logo de início por não podia depender apenas de estrangei- específica, concentrada no tema da te-
fazer a graduação em matemática? ros para conduzir a graduação e a pós. se. Nos Estados Unidos, a formação era
A: Inicialmente, o curso era só de mate- Ele sabia que estávamos nos formando mais aberta, o que seria mais útil para
mática pura, não havia a parte aplicada, no fim de 1974 e nos fez uma proposta. nós na volta ao Brasil, onde teríamos de
que era o que queríamos. Podia nos contratar se fizéssemos mes- ajudar na constituição do Departamento
P: Meu pai [o matemático Candido Lima de Meteorologia da USP.
da Silva Dias (1913-1998), primeiro dire-
tor do Instituto de Matemática e Esta- O Giacaglia também escolheu onde fa-
tística da USP] dizia que a universidade riam a pós nos Estados Unidos?
teria logo um curso de matemática apli- P: Isso não. Mas sabíamos que tínhamos
cada. Mas eu não podia ficar esperando de ir para algum centro que trabalhasse
isso acontecer. Optei pela Poli, de onde com meteorologia tropical, algo não mui-
poderia me transferir para outro curso to comum nos Estados Unidos.
de exatas. Já no final do primeiro ano, vi A: Fizemos uma lista de possíveis luga-
que a engenharia não era para mim. Por res de interesse e nos candidatamos em
sorte, o curso de matemática aplicada foi quatro programas. Fomos aceitos em três
aprovado logo depois e ia começar em e optamos pela Universidade Estadual
1972. Esperei até o fim do primeiro ano Estamos do Colorado (CSU), em Fort Collins. O
e me transferi para a matemática. Departamento de Ciências Atmosféri-
A: Queria fazer astronomia. Como ainda
não havia esse curso, tinha de fazer física.
muito aquém cas, criado no início dos anos 1960, tinha
vários professores com experiência em
Um dia vi um cartaz nos corredores do
Instituto de Física que oferecia estágios
do necessário um grande experimento meteorológico,
com navios oceanográficos e estações
em meteorologia marinha no Institu- na superfície, para explorar a região do
to Oceanográfico [IO] da USP. Também na redução Atlântico Equatorial. Isso pesou bastan-
não estava muito convencida de que era te na nossa escolha. Em maio de 1975,
astronomia mesmo o que eu queria. Fui das emissões fomos contratados como auxiliares de
até o Oceanográfico, e me aceitaram no ensino na USP e em agosto fomos para
estágio. Contei para o Pedro e acho que
no dia seguinte ele foi lá e também conse-
de gases de o Colorado. Foi tudo muito rápido. Nos-
so primeiro filho – temos três – acabou
guiu o estágio. Foi assim que começamos
a trabalhar em pesquisa meteorológica, efeito estufa, nascendo lá, em 1977. Concluímos o mes-
trado no início de 1977 e o doutorado em
ambos com bolsa de iniciação científica maio de 1979 e reassumimos as funções
da FAPESP por dois anos. afirma Pedro no IAG no final desse mês.

22 | OUTUBRO DE 2023
com instrumentos para medir a estrutu-
ra vertical da atmosfera. Foi o primeiro
conjunto de dados em altitude com alta
resolução temporal realizado no Brasil.

Havia alguma discussão sobre mudan-


ças climáticas nos anos 1980, quando
vocês estavam começando a carreira?
P: Foi o El Niño de 1983 [até então, a mais
forte manifestação desse fenômeno cli-
mático no século XX] que provocou um
interesse maior sobre essa questão. Seu
impacto econômico e social foi fortíssi-
mo no mundo inteiro. Tinha aprendido
na pós-graduação o que era a mudança
climática. Desde o século XIX, já havia
a noção de que o aumento da concentra-
ção de dióxido de carbono na atmosfera
poderia ter um impacto climático.
A: Não se pode esquecer que o El Niño
não é estritamente uma mudança climá-
tica, faz parte da variabilidade natural
Pedro e Assunção do clima. Desde então, foi criada toda
em julho de 1976 em uma estrutura de pesquisa em clima com
Fort Collins, durante
o mestrado feito
abrangência global.
na Universidade P: A questão era distinguir se o que ocor-
Estadual do Colorado ria com o clima era devido ao aumento
da concentração de gases de efeito estufa
ou a variabilidade natural. A Organiza-
O que estudaram nos Estados Unidos? P: Isso criou aqui uma cultura de expe- ção Meteorológica Mundial iniciou esse
A: O Pedro sempre olhou mais para a rimentos de campo para coletar dados processo que, com apoio da Organização
dinâmica da meteorologia de grande es- e entender o ciclo de vida de fenômenos das Nações Unidas [ONU], levou à cria-
cala, que observa o comportamento dos meteorológicos. ção do IPCC [Painel Intergovernamental
continentes e oceanos. Fui estudar tem- sobre Mudanças Climáticas] em 1988.
pestades, chuvas. No mestrado, trabalhei Qual foi o primeiro experimento no Bra- A primeira avaliação das pesquisas so-
com chuvas na Venezuela. Meu orien- sil que organizaram? bre o clima saiu em 1990. Participei do
tador, Alan Betts, tinha um conjunto de P: Foi o Radasp, com o radar meteo- segundo relatório, de 1995, e do quarto,
dados muito bom sobre esse tema. No rológico de Bauru e financiamento da de 2007.
doutorado, trabalhei com modelagem de FAPESP. A: Participei do quinto, de 2013.
sistemas de chuva nos trópicos. A chuva A: Fui com a cara e a coragem. Entrei
é um fenômeno fascinante. Numa tem- com o pedido do projeto no começo dos Quais das suas contribuições científicas
pestade severa, ocorrem muitos proces- anos 1980 e ele foi aprovado. Quando vocês destacariam?
sos, como ventania, gelo e chuva forte. saiu o recurso financeiro, perguntei pa- P: No meu caso, acho que são os traba-
Melhorar a compreensão da chuva tem ra o Alan Betts se ele não poderia passar lhos sobre a questão da dinâmica tropi-
um impacto grande na previsão meteo- um mês aqui para me ajudar. E ele veio. cal. Em particular, como a energia as-
rológica, que afeta a vida das pessoas e Ofereceu um curso de pós-graduação sociada às chuvas é dispersada na at-
a economia. compacto e passou sua vasta experiên- mosfera, fazendo com que os trópicos
P: Trabalhei com o professor Wayne cia para nós. influenciem o clima em latitudes mais
Schubert, já naquela época muito co- altas. Também estudo como fenômenos
nhecido por seus estudos em dinâmica Como era o experimento? tropicais de pequena escala espacial e
da atmosfera tropical. Fiz um trabalho A: O objetivo geral era estudar o papel alta frequência temporal podem influen-
essencialmente teórico sobre a dinâmica das circulações locais, produzidas por ciar a formação de sistemas de grande
da relação entre o vento e a temperatu- topografia, brisa marítima e lagos, na escala. São trabalhos mais teóricos que
ra perto do Equador, tema que até hoje formação da chuva nas regiões monito- levaram a explicações sólidas sobre as
FOTO ARQUIVO PESSOAL

desafia os meteorologistas. radas por radar meteorológico em São observações na escala de tempo meteo-
A: Depois que voltamos para o Brasil, Paulo. Montamos equipamentos no solo rológico e do clima.
convidamos vários ex-professores para para registrar a radiação, a temperatura,
visitar o IAG, pois tínhamos a intenção a umidade, os ventos e outros parâme- Esses processos são diferentes dos que
de iniciar pesquisas de campo. tros, e soltamos a cada três horas balões ocorrem em uma zona temperada?

PESQUISA FAPESP 332 | 23


P: Tem diferenças significativas. É uma aqui no Brasil. Depois, chamamos os com os grupos do exterior. Para o grupo
linha de pesquisa que começou com o colegas estrangeiros para um grande estrangeiro participar, era necessário que
doutoramento na CSU e é de grande encontro em que definimos os objeti- houvesse um compromisso com a forma-
aplicação no desenvolvimento de mode- vos gerais do programa de pesquisa e ção de alunos com bolsas de estudo para
los atmosféricos globais. É um tema com a forma do relacionamento da equipe que fizessem a pós-graduação com eles.
interface nos estudos sobre sistemas di- brasileira com os grupos do exterior. Tí- A: Uma grande quantidade de jovens,
nâmicos em matemática. Nos trópicos, nhamos ficado com um gostinho amar- principalmente da comunidade amazô-
o efeito do conjunto das chuvas, não de go na boca em experimentos anteriores nica, foi para o exterior fazer doutorado.
apenas um ou outro episódio isolado, é com intensa participação estrangeira Cresceram profissionalmente, viraram
muito importante. Esse conhecimento em que ocorreram parcerias mal re- pesquisadores e hoje estão espalhados
hoje é usado para melhorar os modelos solvidas. Em alguns experimentos a pelo país.
de previsão de tempo nos trópicos. participação brasileira foi inexpressi-
A: Sou mais conhecida pelos estudos va do ponto vista da geração de novos Como avaliam o nível da pesquisa atual
sobre interações das chuvas na biosfera conhecimentos e pouca ciência foi feita sobre meteorologia e clima no Brasil?
da Amazônia. Trabalhei muito na inte- em colaboração. P: Hoje há gente fazendo pesquisa de
ração do clima com áreas de floresta, de A: O LBA foi criado com outra ideia. alto nível em todo o Brasil. Essa é a prin-
pastagem e com os produtos das quei- Fizemos um grande esforço para obter cipal diferença. Isso não existia 40 anos
madas, também como esses elementos apoio financeiro das agências brasileiras atrás. Éramos poucos e bastante limi-
alteram os processos meteorológicos e para as atividades no campo e na con- tados nas áreas de pesquisa. Nos anos
como as tempestades se formam e evo- dução das pesquisas. Foi um sucesso: 1970, ficávamos maravilhados com as
luem no ambiente tropical. A questão fomos sempre considerados como par- condições de trabalho nos laboratórios
da influência da poluição de queima- ceiros efetivos. Claro que não dá para da Universidade Estadual do Colorado
das sobre o clima ainda tira o sono. Em competir financeiramente com a Nasa quando comparados com os nossos. Hoje
certas circunstâncias, a poluição pare- [agência espacial norte-americana, que não é mais assim.
ce inibir as chuvas. Em outras, trans- investiu muito no LBA]. Mas, com nosso A: Mas eles ainda têm mais recursos e
forma uma nuvem de chuva amazôni- financiamento, bancamos nossas equi- mais gente.
ca, que aparentava ser típica do verão e pes e podíamos conversar de igual para P: Sim, mas a ciência que nossos colegas
não muito severa, em um sistema mais igual com os estrangeiros. fazem aqui hoje não é muito diferente
preocupante, com ventos fortes, muita P: No LBA, desde o início, estipulamos da que eles fazem lá. Uma grande parte
chuva e gelo. Na Amazônia, as pedras algumas condições para fazer parcerias dos pesquisadores brasileiros tem pro-
de gelo são encontradas principalmen- jeção internacional.
te na primavera, quando o ar está ex-
tremamente poluído pelas queimadas. Nossa previsão do tempo e modelagem
Não há um consenso sobre esse ponto: climática é hoje do mesmo nível dos me-
é a poluição que causa essas pedras de lhores centros internacionais?
gelo ou é outro parâmetro meteorológi- P: Acho que, 15 ou 20 anos atrás, tínha-
co que leva à sua formação? Precisamos mos maior destaque internacional na
de mais pesquisas para entender esse parte operacional. Estávamos no time
ponto. Essa linha de pesquisa começou dos 10 melhores centros de previsão me-
nos anos 1980, se expandiu muito com teorológica do mundo.
o LBA [Experimento de Grande Esca-
la da Biosfera-atmosfera na Amazônia Por que ficamos para trás?
que teve início em meados da década de Temos hoje A: Tínhamos um computador mais com-
1990] e alcançou grande exposição in- petitivo e equipes trabalhando em temas
ternacional. Não sabíamos quase nada
sobre esses processos algumas décadas
a constatação nos quais também éramos competitivos.
Por razões múltiplas, o número de gru-
atrás, área de pesquisa na qual há uma
expressiva contribuição brasileira.
de que as pos trabalhando com o desenvolvimento
da previsão numérica diminuiu. Houve
uma pulverização dos recursos humanos
O LBA foi o primeiro grande experimen- mudanças especializados e perdeu-se muita gente
to de clima na Amazônia com finan- na área acadêmica.
ciamento tripartite, do Brasil, Estados climáticas P: Principalmente para instituições no
Unidos e Europa. exterior e para a iniciativa privada.
P: O LBA foi montado com pessoas que
já tinham bastante experiência em ex-
já estão Nossa modelagem climática está de-
perimentos de campo nos anos 1980,
como eu, Assunção, Carlos Nobre, Paulo ocorrendo, fasada?
P: Antes de tudo, para ser competiti-
Artaxo, Reynaldo Victoria, entre outros. vo, teríamos de ter um supercomputa-
Primeiro fizemos uma reunião só nossa diz Assunção dor cerca de 50 vezes mais rápido do

24 | OUTUBRO DE 2023
que o atual do CPTEC. Outra questão Há evidências de que ciclones extra-
é que falta rumo à nossa ciência. Para tropicais, como esse recentemente que
resolver um problema maior, que tenha atingiu o Rio Grande do Sul, estão se
impacto na sociedade, é preciso ter fo- tornando mais frequentes ou fortes no
co. Isso é um problema sério no Brasil. O IPCC Brasil?
Durante meus oito anos como diretor P: O IPCC sinaliza que, com as mudanças
do LNCC, passei por seis ministros de sinaliza uma climáticas, há uma tendência de aumento
Ciência e Tecnologia, cada um com uma na frequência de furacões e tufões mais
ideia diferente do que a instituição de-
veria fazer.
tendência de intensos. Costumo contar uma história
sobre por que os ciclones se formam nas

A criação em 2012 do Centro Nacional aumento na minhas aulas sobre o tema. Os ciclones
estabilizam a atmosfera do ponto de vista
de Monitoramento e Alertas de Desas- termodinâmico, transportando calor de
tres Naturais, o Cemaden, praticamente frequência baixo para cima, evitando o aquecimen-
um filhote que saiu do Inpe, não foi algo to exagerado na superfície. As nuvens
bom para o país?
A: É importante ter um centro desse ti-
de furacões convectivas, aquelas de grande desen-
volvimento vertical que se formam em
po. Mas talvez pudesse ter sido criado
em coordenação com o Inpe e com ór- mais intensos, dias muito quentes, também atuam nesse
sentido. O aquecimento global produzido
gãos estaduais voltados para desastres pelo aumento da concentração de gases
naturais. comenta Pedro de efeito estufa tem impacto contrário:
P: Houve um processo de esvaziamen- tende a desestabilizar a atmosfera, aque-
to do CPTEC, que comprometeu sua cendo embaixo, perto da superfície, e es-
missão. friando mais acima. Então, para estabi-
A: Por exemplo, a operação de previsão lizar a temperatura em um planeta mais
meteorológica foi duplicada. quente, a atmosfera tem de “tomar uma
P: Também dava para fazer um centro decisão”: ou produz mais nuvens con-
mais articulado com iniciativas que já vectivas isoladas ou organiza sistemas
existiam pelo Brasil afora. Grupos de ciclônicos mais intensos para resolver o
pesquisa de outros estados que faziam problema causado pela instabilidade ter-
um bom trabalho, como em Santa Cata- modinâmica. Do ponto de vista prático,
rina, ficaram com a sensação de que seus se os ventos forem favoráveis, é mais efi-
esforços foram vistos como de pouca ciente produzir ciclones intensos do que
valia. Hoje não há no CPTEC o número Ainda é possível reduzir as emissões de nuvens isoladas. Esses ciclones resolvem
necessário de pessoas para incorporar gases de efeito estufa para que o aque- mais rapidamente o problema da instabi-
os avanços na modelagem climática. Há cimento global não ultrapasse 1,5 ºC, lidade termodinâmica. A atmosfera “toma
dois anos, visando reverter essa situação, como é o objetivo do Acordo de Paris? decisões” em razão das leis de conserva-
começou um programa institucional do A: Uma mudança significativa no padrão ção que controlam os movimentos do ar,
Inpe, com o apoio do MCTI [Ministério das emissões já teria de estar ocorrendo em particular da lei de conservação de
da Ciência, Tecnologia e Inovação], pa- agora. A resposta do clima é lenta. Não energia termodinâmica.
ra o desenvolvimento do novo modelo é cortar as emissões e o aquecimento
comunitário brasileiro do sistema ter- termina imediatamente. Vocês falam muito de clima e meteoro-
restre, o Monan. P: Tenho a impressão de que as ações logia também em casa?
A: Monan quer dizer Model for Ocean- necessárias só vão ser tomadas quando P: A partir do momento em que entra-
-laNd-Atmosphere predictioN [Modelo a “dor no bolso” for insuportável. É cla- mos na universidade estudávamos juntos.
para Previsão dos Oceanos, Superfícies ro que houve algum progresso com uma Sempre trocamos ideias sobre ciência e
Terrestres e Atmosfera]. série de acordos internacionais, como ensino. Às vezes nossos filhos pediam pa-
P: O Monan tem um coordenador do In- o de Kyoto e o de Paris. Mas ainda es- ra pararmos de falar de trabalho.
pe, o Saulo Ribeiro de Freitas, e um coor- tamos muito aquém do necessário com A: Creio que o fato de trocarmos ideias
denador externo, que sou eu. Ele reúne relação aos compromissos de redução sobre questões relacionadas com pesqui-
mais de 50 pesquisadores no Brasil. Em na emissão de gases de efeito estufa em sa foi uma vantagem para nós dois. Para
tupi, Monan é o nome da entidade que todo o mundo. mim, uma fase da vida muito difícil foi
criou o mundo, os céus e os seres vivos. A: A ciência avançou muito e temos hoje quando os filhos eram pequenos. Con-
No Brasil, a competência hoje está dis- a constatação de que as mudanças cli- ciliar o trabalho e a criação deles não
persa em várias universidades, cada uma máticas já estão ocorrendo. Mas a socie- foi fácil. Cheguei a pensar em diminuir
com sua missão. Precisamos que todos dade enfrenta dilemas incríveis, como meu regime de trabalho na universidade,
trabalhem para atender uma demanda balancear o impacto ambiental com a mas o Pedro argumentou que era uma
nacional. No caso, ter uma capacidade economia. Nunca se discutiu tanto esse fase, que iria passar. Acabei não fazendo
preditiva de alta qualidade. tema como hoje. essa mudança. n

PESQUISA FAPESP 332 | 25


INFRAESTRUTURA

NOVOS ESPAÇOS
PARA PESQUISA

S
1

Governo federal inclui seis projetos de eis iniciativas do Ministério da Ciên-


cia, Tecnologia e Inovação (MCTI)
interesse da comunidade científica foram incluídas no Novo PAC, o
Programa de Aceleração do Cres-
no Plano de Aceleração do Crescimento cimento, anunciado pelo governo
federal em agosto. Os investimentos
Maurício Oliveira previstos são de R$ 7,9 bilhões até
o final de 2026. A maior parte dos
recursos, em um total de R$ 4,4 bi-
lhões, está vinculada ao Pró-infra, programa que
existe há duas décadas e busca atualizar e ampliar
a infraestrutura de pesquisa em universidades e
institutos de ciência e tecnologia – a expectativa
é lançar editais ao longo dos próximos anos para
modernizar laboratórios e estimular a construção
de instalações onde há poucas, como o Norte, o
Nordeste e o Centro-Oeste.
Projetos de grande porte também estão con-
templados. Há R$ 1 bilhão previsto para o Orion,
um conjunto de laboratórios de biossegurança
em Campinas, no interior paulista, que inclui
a primeira instalação de contenção máxima no ampliar de 1.038 para cerca de 1.800 o número
Brasil, própria para manipular microrganismos de municípios acompanhados pelo Centro nos
altamente patogênicos e letais. Uma peculiarida- próximos quatro anos.
de desse projeto é que está prevista sua conexão “A inclusão desses projetos no PAC ressalta a
com o Sirius, o laboratório de luz síncrotron de importância da área de ciência, tecnologia e ino-
quarta geração que começou a operar em 2020 vação na promoção de um novo ciclo de desen-
e é a maior e mais complexa infraestrutura cien- volvimento do país e facilita o acompanhamento
tífica já construída no país. Ambas as instalações das iniciativas pela sociedade”, avalia o secretário-
pertencem ao Centro Nacional de Pesquisa em -executivo do MCTI, Luis Fernandes. Os inves-
Energia e Materiais (CNPEM), organização so- timentos têm como lastro a intenção do governo
cial financiada pelo MCTI que também dispõe federal de executar os recursos do Fundo Nacio-
de unidades de pesquisa em nanotecnologia, bio- nal de Desenvolvimento Científico e Tecnológico
logia e combustíveis renováveis. Com a integra- (FNDCT), principal fonte de financiamento federal
ção, o Orion usará três linhas de luz síncrotron para pesquisa que, desde 2016, vinha sofrendo con-
e será capaz de analisar a estrutura de amostras tingenciamentos de recursos sucessivos e vultosos.
manipuladas no laboratório. Outro investimento Uma lei aprovada em abril liberou R$ 4,18 bilhões
previsto é a segunda fase do Sirius. A ideia é des- do FNDCT que haviam sido bloqueados quando o
tinar R$ 800 milhões para a construção de mais orçamento de 2023 foi votado. Com isso, o mon-
10 linhas de luz síncrotron – hoje, há 14 fontes tante disponível em 2023 atingiu R$ 9,96 bilhões.
funcionando ou em implantação. Mas a capacidade de manter um fluxo estável de
Uma dotação de R$ 1 bilhão está prometida recursos nos próximos anos ganhou um grau de
para o Reator Multipropósito Brasileiro (RMB), incerteza depois da aprovação no Congresso do
que tem como objetivo a produção de radioisó- Regime Fiscal Sustentável, conhecido como arca-
topos a serem usados na medicina e na indústria. bouço fiscal, que prevê a possibilidade de bloquear
O projeto, idealizado em 2008, não foi adiante recursos do FNDCT caso o governo não consiga
por falta de recursos. Já as Infovias RNP (Rede controlar seu endividamento.
Nacional de Ensino e Pesquisa) deverão receber No passado, a inconstância no financiamento
R$ 640 milhões. Esse projeto prevê a ampliação federal da ciência criou embaraços para realizar
de redes de fibras ópticas de longa distância pa- ou concluir grandes projetos de infraestrutura. O
ra levar internet de alta velocidade a universi- RMB é um exemplo recente. Seu objetivo é ga-
dades e instituições de pesquisa em localidades rantir autonomia na produção de radioisótopos,
do interior do Brasil. Completando o pacote, o usados principalmente na fabricação de fármacos
Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de para diagnóstico e tratamento de várias doen-
Desastres Naturais (Cemaden), responsável pela ças, mas com aplicações em energia, indústria,
prevenção e pelos alertas de risco de catástrofes materiais e combustíveis nucleares, agricultura
naturais, receberá R$ 50 milhões. Os recursos se e meio ambiente. “O objetivo do RMB é tirar o
destinam à instalação de equipamentos e buscam Brasil da condição de importador de radioisóto-
2

Representação gráfica
dos laboratórios de
biossegurança ligados
ao acelerador Sirius,
IMAGENS 1 CNPEM 2 IPEN

em Campinas (à esq.),
e do Reator Multipropósito
Brasileiro, em Iperó:
investimentos para lidar
com microrganismos letais
e fabricar radiofármacos

PESQUISA FAPESP 332 | 27


pos e transformá-lo em exportador”, diz Patrícia as instalações são ainda bastante competitivas,
Pagetti, pesquisadora do Instituto de Pesquisas mas já enfrentam a concorrência de outros paí-
Energéticas e Nucleares (Ipen) e coordenadora ses com fontes semelhantes, como a França e,
técnica do projeto. O cronograma inicial previa sua em breve, a China.
conclusão em 2014, mas até hoje ele é um cantei- A luz síncrotron é um tipo de radiação eletro-
ro de obras em uma área de 2 milhões de metros magnética de amplo espectro – desde a luz infra-
quadrados em Iperó (SP). O projeto já consumiu vermelha, passando pela radiação ultravioleta e
R$ 285 milhões, entre projetos arquitetônicos e chegando aos raios X –, que é produzida quando
de engenharia e algumas obras. Ainda será ne- partículas carregadas, aceleradas a velocidades
cessário investir R$ 2,5 bilhões na construção – o próximas à velocidade da luz em um túnel, têm
valor previsto no PAC, de R$ 1 bilhão, assegura a sua trajetória desviada por ímãs superpotentes. A

N
retomada, mas não é suficiente para concluí-lo. luz síncrotron canalizada para estações de pesqui-
sa é capaz de penetrar a matéria e revelar carac-
os últimos cinco anos, a iniciativa terísticas de sua estrutura molecular e atômica.
esteve abandonada. Em 2021, não O Sirius foi projetado para receber até 38 linhas
houve recursos no orçamento fede- de luz dedicadas a diferentes técnicas e aplicações.
ral para importar radiofármacos, que Por enquanto dispõe de 14 linhas previstas na fa-
chegaram a faltar nos hospitais (ver se 1, que estarão em operação plena em 2025. As
Pesquisa FAPESP nº 309). Se houver verbas previstas no PAC serão destinadas à cons-
dinheiro suficiente, o RMB deve ficar trução de mais 10 linhas, além das três destinadas
pronto em 2029, com vida útil prevista ao Orion, com conclusão programada para o final
de 50 anos. Há quatro reatores nuclea- de 2027. “Essa ampliação resultará na maior ca-
res de pesquisa dedicados a atividades diversas no pacidade de investigação dos mais diversos mate-
Brasil – dois em São Paulo, um no Rio de Janeiro e riais, em diferentes escalas de espaço e de tempo”,
um em Minas Gerais –, mas são estruturas antigas diz Antônio José Roque da Silva, diretor-geral do
e de desempenho limitado. O RMB será um reator CNPEM. “Para entender como o cérebro funcio-
de 30 megawatts, seis vezes mais do que o reator na, por exemplo, essa diversidade de escalas é
mais potente existente hoje no Brasil. essencial.” Roque vai dar início ao planejamento
A demora na conclusão de uma grande insta- mais efetivo da terceira e última fase do projeto.
lação de pesquisa traz prejuízos que vão além de A iniciativa científica mais ambiciosa prevista
sua indisponibilidade por um tempo maior que no PAC é mesmo o Orion – e não há como dis-
Sala de situação do o previsto. Quando foi projetado, há cerca de sociar sua concepção da experiência recente da
Centro Nacional 10 anos, o Sirius teria como competidor apenas pandemia. Trata-se de um complexo de laborató-
de Monitoramento uma instalação semelhante na Suécia, garantin- rios de biossegurança que inclui um laboratório
e Alertas de Desastres
Naturais (Cemaden):
do à comunidade científica nacional em análise NB4, categoria que permite a manipulação de
ampliação do número de materiais a chance de produzir estudos que vírus de alta patogenicidade e mortalidade para
de municípios cobertos pouca gente no mundo seria capaz de fazer. Hoje, os quais não há remédios nem vacinas.
1
O único vírus dessa ca-
tegoria identificado até
hoje no Brasil é o sabiá
(SABV), que causa a fe-
bre hemorrágica brasilei-
ra. A doença foi diagnos-
ticada em humanos pela
primeira vez na década de
1990 e, após quase 20 anos
FOTOS 1 CEMADEN 2 REDE NACIONAL DE ENSINO E PESQUISA (RNP)

sem registro, teve dois ca-


sos identificados em 2019.
Pesquisas que exigem a
manipulação desse pató-
geno não podem ser fei-
tas em território brasileiro
por falta de infraestrutura
adequada. Há 60 labora-
tórios desses no mundo,
mas nenhum até agora na
América do Sul. A existên-
cia de uma instalação de
biossegurança máxima vai

28 | OUTUBRO DE 2023
oferecer condições para isolar e monitorar agen- preciso prover recursos no
tes biológicos e auxiliar no desenvolvimento de longo prazo para que o país
métodos de diagnóstico, vacinas e terapias. Já possa lidar com desafios de
a conexão com as três linhas de luz síncrotron pesquisa em temas como mu-
permitirá analisar a estrutura de células, tecidos dança climática e transição
e fazer tomografia de pequenos animais conta- energética. “Só assim o Brasil
minados por patógenos. conseguirá criar escala para
Os R$ 4,4 bilhões destinados ao Pró-infra, pro- fomentar pesquisas de alto
grama operado pela Financiadora de Estudos e nível”, diz.
Projetos (Finep), têm o objetivo de expandir e O programa Infovias RNP
tornar competitiva a rede de milhares de labora- tem como estratégia ampliar a
tórios de universidades e instituições de pesquisa. abrangência e a segurança da
Fernandes, do MCTI, diz que os critérios para a conectividade para educação
distribuição dos recursos e lançamento dos editais e pesquisa, expandindo-a em
ainda estão sendo definidos. Ele adianta que os todas as regiões do país. Os
investimentos levarão em conta, além da neces- investimentos são destinados
sidade de modernizar a infraestrutura, critérios a implantar 18 novas infovias
como a descentralização da atividade científica estaduais, oito regionais e
no território nacional. Parcerias com as fundações duas nacionais. A infraestru-
estaduais de amparo à pesquisa terão contrapar- tura óptica será compartilha-
tidas federais de quatro para um na região Norte da entre as organizações de
e de três para um no Nordeste e no Centro-Oeste. educação e pesquisa usuárias
Já no Sul e no Sudeste, serão mais equilibradas. do Sistema RNP e a rede do
Outra meta é estreitar as relações com a iniciativa governo estadual parceiro. Es-
privada, para que aumente a participação das em- sas iniciativas somarão mais
presas nos investimentos em ciência, tecnologia e de 40 mil quilômetros de fi-
inovação feitos no Brasil. “Países que deram saltos bra óptica, com a ambição de
de inovação têm 20% de investimentos públicos atingir 1.328 universidades,
e 80% de privados. Aqui no Brasil ainda estamos institutos e centros de edu-

O
meio a meio”, afirma Fernandes. cação, pesquisa e inovação,
180 mil pesquisadores, 3.880
s recursos para as iniciativas do programas de pós-graduação
MCTI são uma parcela pequena – e 12 ambientes de inovação e
pouco mais de 0,5% – do montante parques tecnológicos. “Além
envolvido no Novo PAC, que prevê de fortalecer a pesquisa, va-
desembolsos públicos e privados da mos avançar na inclusão e na
ordem de R$ 1,78 trilhão. “No caso capacitação digital da popula-
2
dos projetos em ciência e tecnologia, ção brasileira, sobretudo nas
o PAC deve ser olhado como uma regiões mais remotas do país”, afirma o diretor de Traçados de projetos
tentativa de organizar investimentos Relações Institucionais da RNP, Gorgonio Araú- de infovias no Pará,
em Goiás e na Bahia:
e de estabelecer prioridades”, diz a economis- jo. “O objetivo é ir cada vez mais para o interior, R$ 640 milhões para
ta Fernanda De Negri, do Instituto de Pesquisa para que as condições de pesquisa, de acesso à levar internet de alta
Econômica Aplicada (Ipea). Para ela, a mescla internet e de tráfego de dados sejam as mesmas velocidade a instituições
de grandes instalações para múltiplos usuários para quem está nos grandes centros e em qual- de pesquisa do interior

e infraestrutura básica atualizada busca aten- quer outro lugar do país”, diz Araújo.
der necessidades imediatas e de médio prazo Os R$ 50 milhões destinados ao Cemaden,
da comunidade científica. De Negri ressalta a unidade de pesquisa vinculada ao MCTI, buscam
importância dos projetos de grande porte para ampliar o alcance geográfico de alertas produzi-
dar escala e maior competitividade à produção dos pela instituição sobre o risco de deslizamento
científica brasileira, mas também aponta a neces- de encostas, enxurradas, inundações e secas – e
sidade de atualizar e modernizar uma série de que apoiam o trabalho da Defesa Civil. Ainda
laboratórios e instalações de pesquisa que ficaram não foram definidos os municípios que serão in-
sem investimento nos últimos anos e que respon- cluídos, mas se projeta que a população atendida
dem por parte significativa da produção científica passará de 55,7% para aproximadamente 70% do
do país. “Os laboratórios menores sustentam a país. “Parte do dinheiro será aplicada também na
produção científica brasileira. Certamente não modernização do nosso parque de Tecnologia da
seria o caso de decidir, de uma hora para ou- Informação, que foi concebido em 2011 e precisa
tra, que os investimentos irão apenas para os ser atualizado”, conclui a diretora do Cemaden,
grandes projetos.” Ela adverte, contudo, que será Regina Alvalá. n

PESQUISA FAPESP 332 | 29


RECURSOS HUMANOS

DA ESCOLA
PÚBLICA
PARA A
UNIVERSIDADE
Em sua sétima edição, competição de
conhecimentos da USP exclusiva para alunos da
rede estadual de ensino tem recorde de inscritos
e procura aproximar jovens da graduação
Sarah Schmidt

A
estudante Marcela Amanda To- projeto de pesquisa. Em 2022, pulou uma série
nelli, de 18 anos, tinha o desejo e foi direto para o terceiro ano. Competiu nova-
de cursar a graduação em física mente e ganhou acesso a cursos remotos para
quando iniciou o primeiro ano do se preparar para o vestibular. “Descobri que as
ensino médio em uma escola pú- universidades públicas têm reservas de vagas
1

Experiência com blica do município de São Carlos, para egressos do ensino público, o que me fez
a Cuco ajudou interior paulista. Naquele mesmo ano, em 2021, sentir mais confiante”, diz ela, que foi aprovada
Marcela Tonelli, de
18 anos, a ingressar
por incentivo dos professores, inscreveu-se e no bacharelado em física na Universidade Fe-
no bacharelado participou da Competição de Conhecimentos deral de São Carlos (UFSCar) e no Instituto de
em física da USP e Oportunidades da Universidade de São Paulo Física (IFSC) da USP e optou por este último,
neste ano (USP), a Cuco. A prova on-line com 18 questões, onde ingressou em 2023.
distribuídas entre ciências da natureza, ciências Tonelli faz parte dos 4.492 estudantes da rede
humanas, matemática e linguagens, foi sua pri- estadual paulista que já participaram da Cuco e
meira aproximação com um exame nos moldes conseguiram ingressar em algum dos campi na
do vestibular e ela pôde testar seus conhecimen- universidade paulista ao longo dos últimos seis
tos e o controle do nervosismo com duas horas anos – cerca de 55% são mulheres. Em sua sé-
cronometradas para responder a tudo. tima edição, realizada em agosto, a competição
Com o melhor desempenho de sua sala, ga- gratuita exclusiva para alunos do ensino médio
nhou uma bolsa de pré-iniciação científica no público bateu seu recorde: foram 141.254 inscri-
campus da USP na cidade, com direito a aulas tos – ante 18 mil da primeira edição – de 3.012
semanais sobre física e desenvolvimento de um colégios distribuídos por 605 municípios.

30 | OUTUBRO DE 2023
Ao todo, 117.651 alunos efetivamente
fizeram a prova e 15.888 foram premia-
dos com certificados e cursos on-line
de formação complementar para se
prepararem para o vestibular, com
direito a tirar dúvidas em fóruns
de discussão com estudantes de
graduação da USP. Algumas es-
colas também devem organizar
visitas aos campi da universidade
paulista e as 15 que tiveram maior
adesão de alunos à Cuco recebe-
rão palestras sobre curiosidades Após participar
da USP e um show de física com da competição,
Geovânio Monteiro,
demonstrações de experimentos. de 20 anos, passou
“Apesar do nome do programa, o obje- em vestibulares
tivo final não é promover uma disputa, na USP em 2022
mas estimular o processo formativo dos e 2023

alunos, aproximá-los da universidade públi- 2

ca e mostrar que ela é um lugar para eles”, afir-


ma o físico e educador Herbert Alexandre João,
do IFSC-USP, coordenador-executivo da Cuco.

U
ma ação de extensão universitária dessa maneira os alunos concorrem com as mes-
do programa Vem Saber, vinculado mas condições educacionais”, observa Hernan-
ao IFSC, a competição nasceu para des, que organizou um livro sobre a experiência
ampliar o acesso de estudantes do da Cuco, lançado neste ano. “O intuito desse sis-
ensino médio público ao ensino tema é incentivar os alunos e mantê-los motiva-
superior público. Foi criada em dos”, complementa. Após a realização da prova,
resposta à política de cotas para alunos de es- formulada com questões específicas para cada Hyan Tuzi foi premiado
colas públicas da USP, aprovada em 2017 para ano com base no conteúdo curricular, a comissão com isenção da taxa
ingresso em 2018, que paulatinamente aumentou avaliadora define uma nota de corte calculada a da Fuvest e, em 2022,
ingressou na USP
de 37% para os atuais 50% de vagas reservadas na partir de uma média de desempenho estadual. no bacharelado em
graduação, 37,5% delas destinadas a candidatos Hyan Tuzi, de 20 anos, conta que se sentia de- matemática aplicada
autodeclarados pretos, pardos e indígenas (PPI). sanimado com os estudos quando cursava o ter- e computacional
“Não basta que as vagas sejam criadas, os alunos ceiro ano do ensino médio público no município
3
precisam saber que têm esse direito. Ninguém es- de Penápolis, em 2021, em meio à pandemia
colhe o que não sabe que existe”, observa o físico. de Covid-19. Ele cogitou fazer o vesti-
Nas edições anteriores, apenas um aluno de bular, ainda sem muitas certezas,
cada sala era premiado. Neste ano, a pedido dos e chegou a pedir isenção da ta-
próprios estudantes e dos professores, os três me- xa da Fuvest, mas se esqueceu
lhores de cada turma passaram a ser classificados de anexar um documento e
com certificados de nível ouro, prata e bronze. teve seu pedido negado.
FOTOS 1 ARQUIVO PESSOAL 2 E 3 LÉO RAMOS CHAVES / REVISTA PESQUISA FAPESP

Um dos prêmios que os alunos recebem é o “Foi quando lembrei que


acesso a cursos complementares oferecidos pela a coordenadora da esco-
USP, mas a iniciativa não pretende ser um cursi- la havia comentado que
nho pré-vestibular popular, modelo que há déca- quem fosse premiado
das se dedica a preparar jovens com vulnerabili- na Cuco daquele ano
dades socioeconômicas para os vestibulares. No teria isenção da taxa da
IFSC, os membros da equipe da Cuco costumam Fuvest. Decidi partici-
indicar esses cursinhos para competidores da ci- par”, recorda-se. Ficou
dade de São Carlos. “Nosso trabalho é oferecer bem colocado, ganhou
uma formação complementar”, afirma o físico a isenção e usou os cur-
Antonio Carlos Hernandes, do IFSC, idealizador sos on-line a que também
da Cuco, que foi pró-reitor de Graduação da USP teve acesso para se prepa-
quando a reserva de vagas foi implementada. rar em casa para o vestibu-
Como o foco é o processo de aprendizagem, lar. Interessado em ciências
os alunos são classificados dentro de sua série e exatas, em 2022 ingressou na
de sua escola. “Cada escola tem a sua realidade e USP no bacharelado em matemá-
3
Estudantes que
fizeram parte
da competição
em 2019, quando
ela tinha uma
fase presencial

projetos que estimulem os jovens a considera-


rem uma carreira na universidade – entre eles,
a Cuco. “Logo que o prazo das inscrições para a
competição é divulgado, mando mensagens pa-
ra os coordenadores e professores em grupos de
WhatsApp. Monitoro as inscrições das escolas
pela plataforma on-line e incentivo as que estão
tica aplicada e computacional. Em 2023, os alu- mais devagar”, diz ela. “Os professores relatam
nos premiados não terão direito a essa isenção que, como os alunos estão prestando uma prova
porque a parceria com a Fuvest foi interrompida. da USP, muitos perdem o medo do vestibular e
se sentem mais encorajados.”

T
O PAPEL DOS PROFESSORES
A prova on-line da Cuco é apenas uma das eta- ambém há a figura do professor in-
pas, segundo Hernandes. Desde o cadastro no centivador – neste ano, foram 5.131
site, passando pela inscrição, pelo teste em si e cadastrados. Pela primeira vez, 91
depois pelo acesso aos conteúdos criados para deles foram premiados, entre os
os alunos, tudo foi planejado para que eles co- mais votados pelos alunos, com bol-
nheçam os caminhos que precisarão percorrer sas integrais de cursos de 18 meses
quando se inscreverem nos processos seletivos do MBA USP/Esalq. A professora de biologia
das universidades. Isabela Garcia, da Escola Estadual José Augusto
Neste ano, com a implementação de uma plata- Lopes Borges, de Araçatuba, foi uma das premia-
forma própria – anteriormente o programa ficava das e pretende fazer o curso de gestão escolar.
hospedado no site da Fuvest –, 106 professores Além das aulas de biologia, ela é responsável
colaboradores distribuídos em 91 diretorias de pela disciplina Projeto de Vida, em que os alu-
ensino do estado terão acesso ao desempenho nos de nível fundamental e médio direcionam
das classes participantes. A ideia é que eles levem seus objetivos para uma carreira. Ela usa essas
essas informações para diretores e coordenado- aulas para estimular a discussão sobre o acesso
res pedagógicos, que podem avaliar quais são os às universidades públicas e divulgar competições
conteúdos que precisam de reforço em sua insti- de conhecimento.
tuição. “Nós somos apenas os organizadores. Tu- Uma das alunas que receberam incentivo de
do realmente acontece graças à mobilização dos Garcia foi Laura Sutil da Silva, de 17 anos, que
professores e das diretorias”, afirma Hernandes. está no terceiro ano do ensino médio, gabaritou
A equipe costuma visitar escolas ao longo do ano a prova da Cuco deste ano e levou certificado de
FOTOS MARCOS SANTOS / USP IMAGENS

para entender suas demandas. nível ouro. “Eu não acreditava muito em mim,
Patrícia Chade, coordenadora de ciências e não me achava tão capaz. Mas, depois de ver meu
biologia da diretoria de ensino da cidade de Ara- bom desempenho neste ano, passei a confiar mais
çatuba, no interior paulista, e especialista no cur- na minha capacidade para tentar uma vaga em
rículo das duas disciplinas, é uma das professoras universidades federais e estaduais”, conta ela,
colaboradoras da iniciativa. Ela costuma incen- que está em dúvida entre prestar vestibular para
tivar a participação de docentes e estudantes em física ou zoologia.

32 | OUTUBRO DE 2023
universidades ou a isenção da taxa do vestibular.
“Muitos acham que se trata do rendimento mensal
da família e não o valor per capita. Um aluno cuja
família é composta por cinco pessoas com renda
mensal de cerca de R$ 8 mil [menos de 1,5 salário
mínimo por pessoa] tem direito a requisitar certos
auxílios e muitas vezes ele não se dá conta disso”,
observa Herbert.
No campus da USP Neste ano, apesar de a Cuco ter recebido cerca
em Pirassununga, de 180 mil cadastros em seu site, processo no qual
alunos receberam
certificado
o aluno cria um nome de usuário e uma senha,
de participação cerca de 40 mil estudantes não se inscreveram
na Cuco para a prova, que é uma segunda etapa. “Muitos
pensaram que com o cadastro já estavam inscri-
tos. O mesmo pode ocorrer quando estiverem se
inscrevendo para o vestibular da Fuvest, porque
o processo é o mesmo”, explica o coordenador-
-executivo do projeto. “Parecem detalhes peque-
nos, mas podem fazer a diferença entre ingressar
Isabela Garcia afir- na universidade ou perder um ano de estudos. A
ma que a participação cada edição levamos essas dificuldades que no-
na Cuco também poderá tamos para as diretorias de ensino”, completa.
ajudar os estudantes a se De acordo com as professoras entrevistadas
prepararem para o Vestibular nesta reportagem, outro receio recorrente dos
Paulista Seriado, conhecido como jovens em sala de aula é o de não ter como se
Provão Paulista, que começará a ser manter em uma nova cidade, caso eles sejam
aplicado já neste ano – as notas dos alunos aprovados e precisem se mudar para continuar
do terceiro ano serão consideradas para ingresso os estudos. Por isso, um dos prêmios deste ano
em 2024. Já no ano que vem, será utilizada a nota para os participantes será uma live sobre os pro-
acumulada das provas feitas na 2ª e 3ª séries do gramas de permanência da USP.

P
ensino médio. E em 2025 serão consideradas as
avaliações nas três séries. Segundo a Secretaria or muito tempo, Geovânio Alves Mon-
Estadual de Educação, haverá cerca de 13 mil va- teiro, de 20 anos, aluno de uma escola
gas distribuídas em cursos superiores nas três uni- estadual do município de Casa Bran-
versidades paulistas – USP, Universidade Estadual ca, interior paulista, não cogitava fa-
de Campinas (Unicamp) e Universidade Estadual zer vestibular para uma universidade
Paulista (Unesp) –, na Universidade Virtual do pública. Ele não conhecia a reserva
Estado de São Paulo (Univesp) e nas Faculdades de vagas nem os programas de auxílio. Na época,
de Tecnologia (Fatecs) do Centro Paula Souza. “A conciliava o trabalho em um supermercado com
prova da Cuco é uma prévia, porque aborda co- os estudos. “O que eu via na minha cidade eram
nhecimentos gerais e pode servir de termômetro pessoas que estudavam em faculdades privadas
para que os alunos avaliem as áreas que precisam da região”, recorda-se. Ele fez as provas da Cuco
estudar mais”, observa Garcia. durante o ensino médio, foi o melhor colocado
de sua série no terceiro ano e também ganhou
ENTRAVES QUASE INVISÍVEIS isenção para a Fuvest, o que o motivou a prestar
Os anos de experiência com a competição permi- o vestibular.
tiram aos organizadores mapear o que chamam Em 2021, ele ingressou na licenciatura em ciên-
de “entraves invisíveis” enfrentados pelos alu- cias exatas no IFSC, mas, no final de 2022, de-
nos antes do vestibular. Ainda em 2017, quando cidiu que queria mudar de área. Prestou todo o
o projeto começou, uma das dificuldades era processo seletivo novamente e em 2023 iniciou
a falta de documentos exigidos para fazer sua o curso de ciências sociais da Faculdade de Fi-
inscrição, como ter um número do Cadastro de losofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH).
Pessoas Físicas (CPF). “Levamos essa informa- Conseguiu auxílios estudantis para mudar no-
ção para a Secretaria de Educação, que passou a vamente de cidade, dessa vez para São Paulo.
orientar os alunos a tirar logo o CPF. Hoje já se “Já comecei a participar de grupos de pesqui-
tornou algo raro de aparecer”, relata Hernandes. sa e pretendo conseguir uma bolsa de iniciação
Alunos e professores também se confundem na científica. Quero ser pesquisador”, vislumbra. n
hora de preencher o questionário socioeconômico
para requisitar auxílios estudantis oferecidos pelas O livro consultado para esta reportagem está listado na versão on-line.

PESQUISA FAPESP 332 | 33


INDICADORES

A
EXPANSÃO
Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São
Paulo investiu no ano passado R$ 1.182.639.805 no
fomento a 20.709 projetos de pesquisa. O desem-

DE
bolso foi 16,7% maior que o de 2021 e o número de
projetos contratados no período cresceu 27,8%. As
receitas da Fundação totalizaram R$ 2.214.740.885,

OPORTUNIDADES
24% acima do ano anterior – houve um aumento
de 12,6% nas transferências feitas pelo Tesouro
paulista, que chegaram a R$ 1.907.892.438, e de
235% de outras fontes, que foram a R$ 306.848.447. O balanço
Relatório de atividades mostra está descrito no Relatório de atividades FAPESP 2022, dispo-
nível no site da Fundação – no qual também é possível obter
como a FAPESP ampliou os dados anuais do financiamento da instituição desde 1962,
quando a FAPESP iniciou suas atividades.
o financiamento à pesquisa A receita da Fundação é formada por 1% da arrecadação
em 2022 e buscou recuperar tributária do estado de São Paulo, transferida mensalmente
pelo Tesouro conforme previsto na Constituição paulista, e por
prejuízos da pandemia recursos de outras fontes, como convênios com instituições
e empresas para o financiamento conjunto de pesquisas. Um
Fabrício Marques dos destaques de 2022 foram os investimentos em Pesquisa
para o Avanço do Conhecimento – categoria que inclui gran-
des projetos de pesquisa básica e aplicada, como os Temáticos,
Jovens Pesquisadores em Centros Emergentes ou os Centros
de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) – que representaram
53,5% do desembolso da Fundação. Seus aportes cresceram de
R$ 563,6 milhões em 2021 para R$ 633 milhões no ano passa-
do. “Esse é o resultado dos esforços da Fundação para ampliar
as oportunidades de fomento para jovens pesquisadores por
meio de iniciativas como o Projeto Geração e o Projeto Inicial
ou pelo aumento do prazo de duração da Bolsa Jovem Pesqui-
sador, de 48 para 60 meses, além da contratação de 54 novos
projetos Temáticos no período”, explicou, na apresentação
do relatório, o presidente do Conselho Superior da FAPESP,
Marco Antonio Zago.
O investimento em todas as modalidades de bolsas cresceu
mais de 20% em relação a 2021 – e a formação de recursos hu-

EVOLUÇÃO ANUAL COM DESEMBOLSO (R$)

1,217 bilhão 1,257 bilhão


1,137 bilhão 1,059 bilhão 2018 2019
2016
2017

34 | OUTUBRO DE 2023
POR ESTRATÉGIA
DE FOMENTO
53,5% Pesquisa para o
Avanço do Conhecimento
(básica e aplicada)

18% Formação de Recursos A FAPESP


Humanos para C&T desembolsou

R$ 1.182.639.805
11% Apoio à no fomento a
Infraestrutura de Pesquisa 20.709 projetos de
pesquisa em 2022
8,5% Pesquisa para Inovação

7% Pesquisa em
Temas Estratégicos
manos foi responsável por 18% dos dispêndios da Fundação.
Na categoria Apoio à Infraestrutura de Pesquisa, o desembolso 2% Difusão, Mapeamento
de R$ 130 milhões correspondeu a 11% do fomento, um ponto e Avaliação de Pesquisas
percentual acima do patamar de 2021. Isso se deveu à abertu-
ra, em 2022, de três chamadas de propostas para aquisição de
equipamentos de grande porte multiusuários, com previsão
de investimentos de R$ 450 milhões. Em setembro de 2023,
um novo edital foi lançado, no valor de R$ 200 milhões, agora
para aquisição de equipamentos de pequeno porte. POR ÁREAS
Em outras linhas, o financiamento permaneceu estável. DO CONHECIMENTO
Foi o caso dos investimentos em Pesquisa para Inovação, que 26,2% Saúde
reúne programas como o Pesquisa em Parceria para Inovação
Tecnológica (Pite), Pesquisa Inovativa em Pequenas Empre-
sas (Pipe) e Centro de Pesquisa em Engenharia/Centro de 14,2% Biologia
Pesquisa Aplicada (CPE/CPA), responsáveis por 8,5% do to-
tal, e dos dispêndios na modalidade Pesquisa em Temas Es-
tratégicos, que abrange esforços de pesquisa em temas como 10,2% Interdisciplinar
biodiversidade, bioenergia, mudanças climáticas, entre outros
(7%), assim como o desembolso em Difusão, Mapeamento e
Avaliação de Pesquisas (2%). 10,2% Engenharia
Se o momento de financiamento ascendente é fruto da re-
cuperação da economia após a pandemia, alguns resquícios 9,3% Ciências Humanas e Sociais
da emergência sanitária, que levou ao fechamento temporário
de laboratórios e à redução de atividade presencial dos insti-
INFOGRÁFICOS ALEXANDRE AFFONSO / REVISTA PESQUISA FAPESP

6,4% Química
tutos e universidades, permanecem presentes em outros in-
dicadores. A produção científica de pesquisadores do estado 6,3% Agronomia e Veterinária
de São Paulo caiu de 30,6 mil artigos publicados em 2021 para
25,1 mil em 2022, mas, como houve redução equivalente no 5,3% Física
Brasil, manteve em 41,9% sua participação no total nacional. 4,4% Ciência e Engenharia
Também foi registrada, por exemplo, uma redução de cerca da Computação
de 40% na submissão de novos projetos à Fundação em rela- 3,1% Geociências
ção ao período anterior à chegada da Covid-19.
2,0% Matemática e Estatística
Para compensar a redução na demanda espontânea por
1,1% Astronomia e Ciência Espacial
recursos, várias iniciativas vêm buscando aumentar o in-
vestimento em projetos de médio e longo prazos de modo 0,7% Arquitetura e Urbanismo
a estimular as atividades de pesquisa e inovação do estado. 0,5% Economia e Administração

FONTE RELATÓRIO DE ATIVIDADES FAPESP 2022

0,978 bilhão 1,013 bilhão 1,182 bilhão


2022
2020 2021
PESQUISA FAPESP 332 | 35
No ano passado, a FAPESP anunciou os resultados de chama-
SISTEMA PAULISTA DE CT&I da que selecionou mais 17 novos Centros de Ciência para o
Desenvolvimento (CCD) – além dos 11 já instalados –, consti-
tuídos para articular pesquisadores de universidades e insti-
tutos estaduais de pesquisa com gestores de órgãos públicos,
em projetos orientados à solução de problemas específicos e
30 10.398 23 67 com relevância social ou econômica para São Paulo. “Temos
GOVERNO EMPRESAS INSTITUIÇÕES ENSINO enormes problemas nas várias secretarias estaduais e essa é
SEM FINS SUPERIOR uma maneira de ouvirmos os gestores públicos, alinharmos
LUCRATIVOS os temas de pesquisa e oferecermos chamadas que abordem
problemas que as secretarias têm na gestão de políticas pú-
21 Institutos 10.398 16 Institutos de 48 Instituições
blicas”, explicou o diretor-presidente do Conselho Técnico-
de pesquisa Empresas com pesquisa privadas
-Administrativo da FAPESP, Carlos Américo Pacheco, no
P&D interno
7 Instituições 7 Instituições 19 Instituições anúncio das propostas vencedoras. Os novos centros desen-
de atendimento de atendimento públicas volverão pesquisas em tópicos como biofármacos, inovação
à saúde à saúde em políticas públicas urbanas, inovação tecnológica para
emergências em saúde, doenças humanas e animais, apri-
2 Outras

E
moramento de vacinas, entre outros.
instituições
de CT&I
m 2022, três novos CPE/CPA iniciaram suas ati-
vidades: o primeiro, voltado para o desenvolvi-
O DESEMBOLSO mento de inovação offshore, em parceria com a
POR INSTITUIÇÃO Shell e sede na Universidade de São Paulo (USP);
o segundo, com foco no melhoramento molecu-
Como os dispêndios da lar de plantas, junto com a Empresa Brasileira de
FAPESP se distribuíram Pesquisa Agropecuária (Embrapa) e com sede na
em 2022 Universidade Estadual de Campinas (Unicamp);
e o terceiro, de pesquisa em imuno-oncologia, em
cooperação com a GSK e sediado na Sociedade Beneficente
44,7% USP
Israelita Albert Einstein. Esse será o terceiro centro cons-
tituído pela FAPESP e GSK. Um deles está em operação no
Instituto Butantan desde 2015 e investiga alvos moleculares
para o tratamento de doenças de base inflamatória. O outro,
15,6% Unicamp com sede na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar),
busca desenvolver produtos e processos químicos sustentáveis
na elaboração de novos medicamentos.
12,7% Universidades
e outras instituições
Nos CPE, equipes das empresas desenvolvem colaboração
de pesquisa federais de longo prazo, de cinco a 10 anos, com cientistas de univer-
sidades ou institutos de pesquisa. As pesquisas são cofinan-
ciadas em quantias equivalentes pela FAPESP e pela empresa
9,2% Unesp parceira, enquanto a contrapartida das instituições é feita por
meio da oferta de infraestrutura e do pagamento de salários a
7,8% Instituições pesquisadores e técnicos. “Na hora em que a FAPESP põe R$
Estaduais de Pesquisa 10 em um centro, a empresa A, B ou C coloca outros R$ 10 ou
5,0% Empresas
mais para amplificar os resultados do investimento”, obser-
vou o neurocientista Luiz Eugênio Mello, diretor científico
3,9% Instituições
Particulares de da FAPESP em 2022 (ver Pesquisa FAPESP nº 327). “E, para
Ensino e Pesquisa várias áreas em que o recurso de pesquisa e desenvolvimento
0,2% Sociedades e é incentivado – por exemplo, no setor de óleo de gás –, não
Associações Científicas fazemos parcerias de um para um, mas de dois para um, de
0,1% Instituições três para um, de quatro para um. E esse dinheiro vai sempre
Municipais para uma instituição de ciência e tecnologia no estado de São
0,8% Outros Paulo, servindo tanto para reagentes, equipamentos, como
para bolsas.” Outros três CPE foram constituídos em 2022
com início de atividades previsto para 2023. O Smartness, que
realizará pesquisa em redes e serviços, será instalado na Uni-
camp, em parceria com a Ericsson. O Centro de Pesquisa em
Engenharia para a Mobilidade Aérea do Futuro (CPE-MAF)
FONTE RELATÓRIO DE ATIVIDADES FAPESP 2022 reunirá pesquisadores da Embraer e do Instituto Tecnológico

36 | OUTUBRO DE 2023
35
11
ARTIGOS SOBRE COVID-19 São José do
Rio Preto 1 Franca
Barretos
Papers a respeito do novo coronavírus 14 132
publicados por pesquisadores de São Paulo Araçatuba Ribeirão
Preto
7 157
2.500 Presidente 10 Central
Prudente Bauru
11
Marília 487
2.000
Campinas
Artigos publicados

1.500 85 140
Sorocaba São José
A GEOGRAFIA 685
dos Campos
1.000
DA INOVAÇÃO São Paulo
2
Itapeva
500 Distribuição das 11
empresas apoiadas 2 Santos
Registro
0
pelo programa
2019 2020 2021 2022 2023
Pipe desde 1997 –
por região
administrativa

de Aeronáutica (ITA). E a Braskem será parceira da Unicamp


e de outras instituições em pesquisas sobre o uso da plasti-
cultura no cultivo agrícola.
O programa Pipe, que desde 1997 já apoiou pesquisas em
1.853 micro, pequenas e médias empresas de base tecnológica A FORMAÇÃO DE RECURSOS HUMANOS
de 163 municípios paulistas, contratou 578 novos projetos de
224 empresas inovadoras em 2022. Uma parte desses projetos Número de bolsas financiadas pela FAPESP
foi selecionada em chamadas feitas em parceria com a Compa- vigentes em 2022
nhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp),
BOLSAS NO PAÍS
com o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Em-
presas (Sebrae) e com a Financiadora de Estudos e Projetos Iniciação Científica
(Finep). Pela primeira vez, a FAPESP integrou o Programa 2.924
Centelha, iniciativa do Ministério da Ciência, Tecnologia e Mestrado
855
Inovação (MCTI) e da Finep, junto com o Conselho Nacional
Doutorado
das Fundações Estaduais de Amparo à Pesquisa (Confap) e a
1.498
Fundação Certi – sigla para Centro de Referência para Tec-
Doutorado Direto
nologias Inovadoras –, com sede em Florianópolis (SC). O 365
objetivo do programa é apoiar jovens empreendedores inte- Pós-doutorado
ressados em transformar ideias inovadoras em novos negócios. 696
A Fundação foi também responsável pela articulação na-
cional da Iniciativa Amazônia +10, uma parceria envolvendo BOLSAS NO EXTERIOR
Fundações Estaduais de Amparo à Pesquisa (FAP), sob a lide-
Bolsa Estágio de Pesquisa no Exterior (BEPE)
rança do Confap, que tem como propósito estimular pesquisa
colaborativa e interdisciplinar com foco no desenvolvimen- BEPE – Iniciação Científica
to sustentável da Amazônia. A primeira chamada mobilizou 81
mais de 500 pesquisadores em 20 estados brasileiros. Foram
INFOGRÁFICOS ALEXANDRE AFFONSO / REVISTA PESQUISA FAPESP

BEPE – Mestrado
selecionadas 39 propostas de 18 estados e do Distrito Fede- 100
ral, com investimentos das FAP totalizando R$ 41,9 milhões. BEPE – Doutorado
Em maio de 2022, uma cerimônia marcou os 60 anos da 318
Fundação, com o anúncio de novos investimentos em pesquisa BEPE – Doutorado Direto
74
no total de R$ 990 milhões. As comemorações já haviam co-
BEPE – Pós-doutorado
meçado em 2021 e incluíram a realização de 17 Conferências
124
FAPESP 60 anos, duas Escolas FAPESP 60 anos envolvendo
Bolsa de Pesquisa no Exterior (BPE)
120 estagiários de pós-doutorado de todo o Brasil, além de
duas publicações lançadas em 2022: o livro FAPESP 60 anos: BPE – Pós-doutorado
Ciência, cultura e desenvolvimento; e FAPESP 60 anos: A ciên- 130
cia no desenvolvimento nacional, organizado pela Academia
de Ciências do Estado de São Paulo (Aciesp). n TOTAL: 7.165
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BOAS PRÁTICAS
Má conduta C
riado há 11 anos como um fórum na internet
para discussão do conteúdo de artigos cientí-
ficos, o site PubPeer consolidou-se como uma

exposta vitrine de denúncias de má conduta científica. Sua in-


fluência ficou evidente no caso que levou à demissão

na vitrine
do reitor da Universidade Stanford, o neurocientista
Marc Tessier-Lavigne, em meados de julho. Os pri-
meiros indícios de manipulação de imagens em vários
artigos publicados pela equipe do reitor foram apon-
Site que publica comentários, tados em comentários no PubPeer a partir de 2015, e
na maioria anônimos, sobre ganharam repercussão depois que um repórter de um
jornal estudantil de Stanford compilou-os em uma re-
o conteúdo de artigos portagem no ano passado. Uma investigação feita pela
científicos consolida-se como universidade concluiu que o dirigente não participou
plataforma de denúncia de da manipulação nem teve conhecimento das fraudes
desvios éticos antes da publicação dos artigos, mas o fato de ele não
ter se empenhado em retratar os artigos assim que
soube dos problemas foi criticado pelos investigado-
res e essa inação selou sua saída. “Concordo que em
alguns casos eu deveria ter sido mais diligente ao bus-
car correções e lamento não ter feito isso”, escreveu
Tessier-Lavigne, em sua carta de renúncia.
Quem acompanha a trajetória do PubPeer não se
surpreendeu com o desfecho em Stanford. Em 2016,
um software capaz de identificar erros estatísticos em

38 | OUTUBRO DE 2023
artigos científicos analisou cerca de 50 mil trabalhos Na época, Stell contou à revista Science que a ideia
publicados em revistas de psicologia e divulgou no do PubPeer remontava aos seus tempos de graduação
PubPeer seus resultados, para constrangimento de na Universidade do Colorado em Boulder, Estados
milhares de autores. No ano seguinte, a revista Nature Unidos, onde frequentava reuniões de pesquisadores
revogou um prêmio que havia concedido ao bioquími- e estudantes em que artigos publicados em perió-
co espanhol Carlos López-Otín em reconhecimento a dicos eram discutidos e dissecados. Ele se inspirou
seu trabalho como mentor de jovens pesquisadores, nessa experiência para criar um clube de discussões
depois que nove artigos de seu grupo da Universidade virtual, aberto à contribuição de qualquer pessoa,
de Oviedo foram retratados por evidências de mani- com a ambição de acelerar o processo de correção da
pulação de imagens – os indícios foram apresentados ciência. O site cresceu e deu origem à The PubPeer
no PubPeer. Recentemente, sete artigos de Gregg Foundation, sediada na Califórnia, e financiada por
Semenza, pesquisador da Escola de Medicina Johns uma organização filantrópica mantida pelos bilioná-
Hopkins, nos Estados Unidos, vencedor do Nobel de rios John e Laura Arnold.
Medicina ou Fisiologia de 2019, foram retratados por

A
manipulação de imagens – os problemas também vie- plataforma pede aos usuários que os comentá-
ram à tona na plataforma. rios postados se atenham a informações con-
Qualquer artigo publicado em uma revista cien- cretas e que possam ser verificadas publica-
tífica pode ser alvo de comentários no PubPeer. Na mente. Veda expressamente a disseminação de boatos.
prática, a plataforma promove um tipo de escrutínio “Alegações de má conduta são proibidas no PubPeer”,
análogo à revisão por pares após a publicação dos informa o site aos usuários. “De qualquer forma, elas
estudos, por meio da qual leitores podem apontar si- são desnecessárias. O público é composto principal-
nais de erros ou de má conduta. Os revisores podem mente por pesquisadores altamente inteligentes. Eles
ou não se identificar. Segundo os criadores do site, são perfeitamente capazes de tirar suas próprias con-
cerca de 90% das análises postadas são anônimas e o clusões se os fatos forem claramente apresentados.”
PubPeer não guarda informações sobre esses usuários Não se imagine que todos os comentários postados
propositalmente. “Consideramos que é só uma questão no site sejam fidedignos. A repórter Denise-Marie Or-
de tempo até que informações de usuários vazem de dway, que trabalha no site The Journalist’s Resource,
alguma forma. A única proteção certa é nunca saber entrevistou três jornalistas que utilizam o PubPeer co-
informações que não desejamos ver expostas”, expli- mo fonte de informação e enumerou recomendações
caram os responsáveis, ao anunciarem uma reformu- para lidar com as denúncias de forma responsável.
lação técnica do site, promovida em 2017. A mais importante é compreender que as informa-
O caráter incógnito das denúncias já rendeu pe- ções são apenas indícios e é necessário confirmá-las
lo menos uma grande dor de cabeça jurídica para o em investigações detalhadas. “Você precisa tratar as
PubPeer, mas o site saiu fortalecido. Em 2016, Fazlul postagens anônimas no PubPeer da mesma forma que
Sarkar, oncologista da Universidade Wayne, nos Es- lidaria com postagens anônimas de qualquer tipo”,
tados Unidos, que teve 13 artigos retratados por ma- disse Charles Piller, um dos entrevistados, que escreve
nipulação de imagens, processou o PubPeer e exigiu para a revista Science e é um dos fundadores de uma
que fosse revelada a identidade dos indivíduos que ONG de jornalismo investigativo chamada Center for
apontaram os problemas em seus trabalhos – alegou Public Integrity. O primeiro cuidado que Piller toma
que estava mudando de emprego na época das de- é o de submeter as suspeitas levantadas nos comen-
núncias e elas abortaram sua transferência para a tários a especialistas em integridade científica: “Você
Universidade do Mississipi. Um tribunal no estado não tem como saber de antemão se o denunciante tem
de Michigan considerou que as denúncias anônimas alguma motivação oculta”.
eram protegidas pela legislação. Stephanie Lee, repórter da revista eletrônica The
Nos primeiros anos do PubPeer, seus próprios cria- Chronicle of Higher Education, diz que recorre à pla-
dores também se mantiveram anônimos e a plataforma taforma sempre que vai escrever sobre um pesqui-
era cercada por uma aura clandestina. Os fundadores sador ou um grupo cujo trabalho interessa a ela. “É
só se revelaram em 2015: o site já ganhara prestígio e o primeiro lugar aonde vou para saber se já foram
eles decidiram que era hora de buscar financiamento levantadas questões sobre os cientistas”, explicou.
para expandir as atividades. O neurocientista norte- Ela teme, contudo, o estrago que denúncias podem
-americano Brandon Stell, pesquisador da Universidade causar à reputação de pesquisadores. “Mostre evi-
Paris Descartes, na França, anunciou que era o princi- dências”, aconselha. “Acho melhor deixar as evidên-
FOTO HULTON ARCHIVE / GETTY IMAGES

pal responsável pela iniciativa, realizada com o apoio cias falarem por si.” Julia Belluz, correspondente do
de dois irmãos, seu ex-aluno Richard Smith e George site Vox, ressaltou o papel que o PubPeer cumpre no
Smith, que trabalha com desenvolvimento de sites. O processo de correção de registros científicos. “Sabe-
neurocientista Boris Barbour, da mesma universidade mos que a revisão por pares pode não detectar erros
francesa, e o advogado Gabor Brasnjo, que tem um es- ou fraudes em artigos antes de sua publicação. O
critório em São Francisco, nos Estados Unidos, uniram- PubPeer é um lugar onde cientistas denunciam pes-
-se também ao time depois que o PubPeer foi criado. quisas problemáticas.” n Fabrício Marques

PESQUISA FAPESP 332 | 39


Um freio no exagero das edições especiais

O
Comitê de Ética em Publica- documento critica os abusos de editoras se cerquem de cuidados na hora de sele-
ções (Cope), fórum de editores que publicam uma quantidade exagera- cionar os editores convidados. Algumas
de revistas científicas sediado da de edições especiais. “Publicar um sugestões soam redundantes, como a de
no Reino Unido que trata de questões de grande número de coleções de artigos que os editores-chefes devem verificar
integridade, lançou um documento com editados por convidados pode levantar a identidade dos editores e a autentici-
recomendações para enfrentar um cres- preocupações sobre a independência, dade de seus e-mails e telefone, antes
cente foco de má conduta: a proliferação imparcialidade e credibilidade da revista. de lhes atribuir a responsabilidade de
exagerada de números especiais de pe- [...] O número das coleções editadas por organizar um número especial. É que já
riódicos. Essas edições são organizadas convidados não deve exceder uma quan- houve casos em que esse cuidado não foi
por editores convidados, não vinculados tidade que possa ser razoavelmente su- tomado. Uma investigação da Universi-
ao organograma das publicações, cos- pervisionada pelo editor-chefe, conselho dade Politécnica de Hong Kong (PolyU)
tumam tratar de tópicos específicos de editorial e equipe da redação”, informou descobriu que a conta de e-mail de um de
pesquisa e são usadas para multiplicar o texto apresentado pelo Cope. O docu- seus alunos de pós-graduação era usada
as receitas de editoras. Frequentemente, mento não menciona casos específicos, de forma fraudulenta por um pesquisa-
contudo, são acusadas de publicar con- mas um dos mais rumorosos envolve a dor de outra universidade – ele se apro-
teúdo de baixa qualidade e, em alguns editora MDPI, sediada em Basileia, na priava da identidade do estudante para
casos, até de perder o controle sobre o Suíça, hoje a quarta maior editora cientí- atuar como coordenador de edições es-
processo de revisão por pares, manipu- fica do mundo. Em 2023, seus dois princi- peciais de dois periódicos científicos da
lado por fraudadores. pais títulos, Sustainability e International editora Hindawi e publicar artigos frau-
De acordo com o Cope, as práticas de Journal of Molecular Sciences, programa- dulentos. A Hindawi anunciou a suspen-
publicação das edições especiais as ex- ram cada um a publicação de cerca de 3,5 são da publicação de edições especiais
põem a riscos, como a ocorrência de frau- mil edições especiais – nove edições por depois que a Clarivate Analytics puniu,
des, manipulação de citações, conflitos dia (ver Pesquisa FAPESP nº 327). em abril, 19 revistas da empresa por sus-
de interesses financeiros, entre outros A maioria das recomendações funcio- peita de práticas desonestas, cancelando
problemas. Embora de forma velada, o na como um checklist para que editoras a divulgação de seu fator de impacto.

Desvio ético em estudo sobre melanoma

U
m importante centro de pesquisa oncológica da Austrália está às voltas com
um caso de má conduta científica. Uma investigação interna concluiu que um
estudo sobre melanoma conduzido no Peter MacCallum Cancer Center, em
Melbourne, descreveu um experimento que, provavelmente, jamais foi realizado.
O artigo, publicado em abril de 2016 no Journal of Clinical Oncology, foi coordenado
pelo imunologista Mark Smyth, que trabalhou no centro durante 13 anos. O estudo
analisou o caso de uma mulher de 39 anos que teve melanoma com metástase nos
ossos. Ela recebeu dois tipos de anticorpos, o ipilimumab e o denosumab, e teve boa
recuperação: os tumores regrediram e a dor óssea desapareceu. Para avaliar em de-
talhes o efeito obtido, a combinação dos anticorpos foi aplicada em camundongos
com melanoma e, segundo as conclusões do artigo, também se revelou eficaz. Essa
segunda etapa em modelo animal, contudo, não tem sustentação. A nota de retra-
tação do artigo menciona os resultados de uma investigação externa que não en-
controu correlação entre o número de roedores alegadamente usados na pesquisa
e os registros oficiais de utilização de animais. “No balanço das possibilidades, é
improvável que as experiências mostradas tenham sido realmente realizadas”, diz
a nota. Enquanto trabalhava na instituição em Melbourne, Smyth recebeu quase 17
milhões de dólares australianos, o equivalente e R$ 54 milhões, em financiamento
público para nove projetos de pesquisa. O nome do oncologista esteve ligado recen-
ILUSTRAÇÃO RODRIGO CUNHA

temente a um outro escândalo no QIMR Berghofer Medical Research Institute, em


Brisbane, onde ele foi trabalhar depois que saiu de Melbourne, mas foi demitido no
ano passado. Em abril, uma investigação concluiu que ele fabricou dados de pesqui-
sa usados para lastrear pedidos de financiamento e protocolos de ensaios clínicos.
Procurado pelo jornal The Sydney Morning Herald, Smyth não quis se pronunciar.

40 | OUTUBRO DE 2023
DADOS Inclusão na universidade e escolaridade
superior de jovens adultos

O ano de 2022 marcou 10 anos da aprovação da lei de cotas1 O processo, iniciado uma década antes, culminou na lei que levou
nas instituições federais de ensino superior para estudantes várias instituições de ensino superior, notadamente públicas,
oriundos das redes públicas de ensino médio e para quem se a adotarem programas de ação afirmativa com o objetivo de ampliar
declara de cor preta, parda ou indígena o acesso de grupos desfavorecidos ao ensino superior

CONCLUINTES – 0,4 0,8 0,4 0,8 0,5 0,6 0,6 0,9 0,3 0,6

TOTAL, POR CATEGORIA 2,6 2,1 3,3 1,5 2,8 3,6 2,8 2,2 2,3 1,6

ADMINISTRATIVA 25,0 36,0 26,6 40,6 27,7 29,3 30,4 39,3 20,5 29,3

E DECLARAÇÃO
DE COR/RAÇA 4,2

Participação (%) – 6,1


5,0 72,7 6,5
12,5 11,0 6,2
Brasil, 2011 e 2021
65,8 8,0 64,0 62,0
10,5 60,0 7,9
57,2 55,6
53,2
46,6 49,7

n Indígena

n Amarela

n Parda

n Preta

n Branca

2011 2021 2011 2021 2011 2021 2011 2021 2011 2021
Total (declarado) Pública federal Pública estadual Privada CFL Privada SFL

Seus efeitos atingiram todos No total de concluintes, a participação Os sistemas privados, com ou sem fins lucrativos (CFL
os sistemas, mas sobretudo dos que se declararam de cor/raça preta, e SFL), apesar de não serem contemplados por aquela lei,
o público2, como mostra parda ou indígena passou de 32% para sentiram efeitos de outros programas federais, como de
a mudança da composição 45%. No sistema federal, a participação bolsas (Prouni) e de financiamento (Fies), que, ao levarem
dos concluintes3 entre 2011 desse grupo passou de 39% para 52% em conta a situação econômica dos estudantes, também
e 2021 (acima) e, no estadual, de 33% para 41% implicaram a maior inclusão desse grupo populacional

POPULAÇÃO DE 25 A 34 ANOS: População 25-34 %/Total Com ensino Escolaridade


anos (milhares) superior completo (% com ensino
TOTAL, POR GRUPO DE COR/RAÇA (milhares) superior completo)
E ESCOLARIDADE SUPERIOR Total 34.025,1 100,0% 7.700,3 22,6%
Branca 13.705,0 40,3% 4.476,4 32,7%
Preta/Parda/Indígena 20.045,6 58,9% 3.123,7 15,6%
Amarela 269,9 0,8% 98,6 36,5%

Apesar desses avanços, dados do Ministério da Educação mostram Além disso, para toda a população nessa faixa etária, 23% possuíam
que, em 2023, na população de 25 a 34 anos4, os que se declaram título de nível superior, proporção que chegava a 33% entre os que
pretos, pardos ou indígenas correspondem a 59% do total5, ou seja, se declaravam de cor branca e apenas a 16% entre os de cor/raça
a inclusão ainda não resultou em equilíbrio na representatividade preta, parda ou indígena, mostrando que ainda é longo o caminho a
desse grupo entre os concluintes do ensino superior percorrer nesse campo

NOTAS (1) LEI FEDERAL Nº 12.711/2012 DE 29/08/2012 – HTTPS://WWW.PLANALTO.GOV.BR/CCIVIL_03/_ATO2011-2014/2012/LEI/L12711.HTM (2) O SISTEMA MUNICIPAL TAMBÉM PASSOU POR MUDANÇA SEMELHANTE; FOI DEIXADO
FORA DO GRÁFICO POR NÃO SER SIGNIFICATIVO EM NÚMEROS ABSOLUTOS (APENAS 11,5 MIL CONCLUINTES QUE DECLARARAM COR/RAÇA EM 2021) (3) CONCLUINTES QUE DECLARARAM COR/RAÇA
(4) A PRIMEIRA FAIXA ETÁRIA CONSIDERADA EM ANÁLISE DA ESCOLARIDADE EM NÍVEL SUPERIOR, NAS COMPARAÇÕES INTERNACIONAIS (5) DADOS DA PNAD CONTÍNUA 2º TRIMESTRE/2023; A MAIOR PARTE DOS CONCLUINTES
EM 2021 JÁ SE ENCONTRAVA NESSA FAIXA ETÁRIA, O QUE JUSTIFICA A COMPARAÇÃO

FONTES MICRODADOS DO CENSO DA EDUCAÇÃO SUPERIOR, INEP/MEC; PNAD CONTÍNUA, IBGE. PROCESSAMENTO DA GERÊNCIA DE ESTUDOS E INDICADORES, FAPESP
ELABORAÇÃO FAPESP, DPCTA/GERÊNCIA DE ESTUDOS E INDICADORES

PESQUISA FAPESP 332 | 41


FÍSICA

POLÊMICA
ELETRIZANTE

42 | OUTUBRO DE 2023
Materiais que funcionariam como supercondutores
à temperatura ambiente geram debate acalorado
e não convencem os críticos

Marcos Pivetta

A
temperatura não para de subir dentro É verdade que, segundo o estudo da Nature, o
e fora dos laboratórios que procu- LuNH precisava ser submetido a uma pressão 10
ram por materiais supercondutores, mil vezes superior à da atmosfera terrestre para
capazes de conduzir eletricidade atuar como um condutor perfeito de eletricidade.
sem nenhuma perda de energia na Ainda assim, desde a descoberta da supercondu-
forma de calor, ou seja, com resis- tividade em 1911 no elemento mercúrio a -269 ºC
tência zero. Em 8 de março deste (4,15 K), ninguém tinha pleiteado a existência de
ano, uma equipe coordenada pelo um supercondutor com uma Tc tão alta. Ninguém
físico Ranga Dias, da Universidade a não ser o próprio Dias em um artigo anterior,
de Rochester, nos Estados Unidos, publicou um publicado em outubro de 2020, também na Na-
artigo científico na revista Nature em que relatava ture. No trabalho, ao lado de colegas da Univer-
a síntese do que seria o primeiro supercondutor à sidade de Nevada e de seu time em Rochester, o
temperatura ambiente. De acordo com o trabalho, físico alegava ter produzido um composto feito
o composto de fórmula LuNH – material basea- de carbono, hidrogênio e enxofre que se tornava
do no lutécio, um metal de cor branca-prateada, supercondutor a 15 ºC se submetido a uma pres-
misturado com nitrogênio e hidrogênio – apre- são 2,6 milhões de vezes maior do que a da Terra.
sentaria resistência zero a 294 Kelvin (K), 21 graus Passados seis meses de sua divulgação, o com-
Celsius (°C). posto LuNH exibe fissuras crescentes em sua
O suposto feito, longe de ser comprovado por alegada reputação de supercondutor à tempera-
ora, teria um potencial revolucionário. Todos tura ambiente. “Tenho um ceticismo comedido
os supercondutores hoje disponíveis – instala- com esse material. Nesse campo da ciência, o
dos em aparelhos de ressonância magnética, no primeiro resultado é provisório enquanto não
interior de grandes aceleradores de partículas e for confirmado por outros laboratórios”, co-
em alguns trens magnéticos de alta velocidade – menta o físico Wilson Ortiz, coordenador do
funcionam apenas quando resfriados, de forma grupo de supercondutividade e magnetismo da
custosa, a temperaturas extremamente baixas, Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).
próximas do zero absoluto (0 K). Esses valores Nenhum grupo de pesquisa independente con-
equivalem a centenas de graus Celsius negativos. seguiu reproduzir, em laboratório ou computa-
O parâmetro mais importante de um super- cionalmente, o experimento que teria indicado
condutor é denominado temperatura crítica (Tc), sua supercondutividade a 21 °C.
FOTO PETER HANSEN / GETTY IMAGES

valor geralmente dado na escala Kelvin abaixo A situação do estudo anterior, de três anos atrás,
do qual um material apresenta resistência zero com o composto feito de carbono, hidrogênio e
à passagem de corrente elétrica. Ou seja, vira enxofre, é ainda mais desconfortável. Em setem-
Supercondutores um supercondutor elétrico. Outra característi- bro do ano passado, a Nature retratou, à revelia de
expulsam
campos magnéticos
ca definidora é a capacidade de repelir campos seus autores, o artigo de 2020 publicado em suas
e provocam o magnéticos, propriedade que pode ser usada para páginas pela equipe de Dias. “Depois da publica-
fenômeno da levitação produzir o fenômeno da levitação. ção [do artigo], questões foram levantadas sobre

PESQUISA FAPESP 332 | 43


a maneira com que os dados desse paper foram “O artigo mais recente
processados e analisados”, escreveram os editores da equipe de Ranga Dias
do periódico em um texto que explicava a decisão. não explica direito a com-
Para piorar ainda mais a situação, a prestigiada posição desse material do
revista Physical Review Letters (PRL) retratou, sistema LuNH nem o mé-
em agosto de 2023, outro artigo que o grupo de todo usado para obtê-lo”, NÃO HÁ PERDA DE
Dias e os colegas de Nevada haviam publicado em
uma de suas edições de 2021. O paper anulado não
comenta o engenheiro de
materiais Luiz Eleno, da ENERGIA NA FORMA
tratava especificamente de supercondutividade,
mas das propriedades elétricas do dissulfeto de
Escola de Engenharia de
Lorena da Universidade
DE CALOR QUANDO
manganês (MnS2), que podia se comportar ora
como isolante, ora como metal.
de São Paulo (EEL-USP).
Em parceria com pesqui-
A CORRENTE ELÉTRICA
Quatro equipes independentes de especialis- sadores das universidades PASSA POR UM
tas examinaram o artigo da PRL e expressaram Sapienza de Roma (Itá-
SUPERCONDUTOR

FOTO J. ADAM FENSTER / UNIVERSIDADE DE ROCHESTER INFOGRÁFICO ALEXANDRE AFFONSO / REVISTA PESQUISA FAPESP
“sérias dúvidas” sobre os dados apresentados em lia), de Cambridge (Reino
uma figura sobre as curvas de resistência elétrica Unido) e Tecnológica de
do material, de acordo com o comunicado emiti- Graz (Áustria), Eleno e o
do pelo periódico quando divulgou a retratação. engenheiro físico Pedro
Todos os 10 autores do paper concordaram com Ferreira, que faz douto-
o veredicto da revista, com exceção de Dias, que rado sob sua orientação,
tem evitado dar entrevistas recentemente sobre publicaram um estudo na Nature Communications

N
seus trabalhos. em 4 de setembro em que descartam qualquer
possibilidade de uma combinação dos elementos
ascido no Sri Lanka, o físico da Uni- lutécio, hidrogênio e nitrogênio gerar um material
versidade de Rochester concluiu o supercondutor com características similares às
doutorado em 2013 na Universidade defendidas pelo grupo de Rochester.
Estadual de Washington e fez pós- O trabalho com participação dos brasileiros
-doutorado na Universidade Harvard não foi de caráter experimental. Eles não foram
antes de ser contratado como pro- ao laboratório e tentaram reproduzir o mesmo
fessor em 2017 pela Universidade de material e os resultados apresentados por Dias,
Rochester. Ao lado do físico Ashkan como fizeram, também sem sucesso, alguns gru-
Salamat, da Universidade de Nevada, pos internacionais. Escolheram uma abordagem
um colaborador de muitos de seus estudos, Dias de modelagem computacional em que desenham
fundou em 2020 a empresa Unearthly Mate- virtualmente um material e tentam prever suas
rials, para vender (supostos) supercondutores propriedades eletrônicas, magnéticas e outros
que funcionariam à temperatura ambiente e a parâmetros com o emprego do conhecimento
pressões modestas. da física de estado sólido e de várias técnicas

1933 ANOS 1940 E 1950


A EVOLUÇÃO DOS SUPERCONDUTORES Os físicos alemães
Walther Meissner (1882-1974)
Compostos elevam o valor da
(Tc). Em 1941, é determinado que
Principais descobertas que impulsionaram e Robert Ochsenfeld (1901-1993) o nitreto de nióbio (NbN) se
identificam a segunda propriedade torna supercondutor a -257,15 ºC
a pesquisa em busca de materiais que conduzam central dos supercondutores: (16 K). Em 1953, é descoberta
eletricidade com resistência zero a de repelir um campo magnético. a Tc do vanádio-silício (V3Si), de
O efeito faz um magneto (ímã) -255,65 ºC (17,5 K), e, em 1954,
levitar sobre um material a do nióbio-estanho (Nb3Sn),
supercondutor de -254.8 °C (18,3 K)
1911 1930
O físico holandês A supercondutividade
Heike Kamerlingh Onnes é medida no nióbio,
(1853-1926) descobre o elemento puro da tabela
a supercondutividade no periódica que apresenta
mercúrio. Resfriado a a mais elevada
-269 ºC (4,15 K), o material temperatura crítica (Tc)
passa, repentinamente, conhecida, limite abaixo do
a transmitir uma corrente qual um material apresenta
elétrica sem nenhuma resistência zero à corrente
perda de energia, ou seja, elétrica. A do nióbio
com resistência zero é de -264 ºC (9,3 K)

44 | OUTUBRO DE 2023
supercondutores – nenhum deles a temperatu-
ras próximas às temperaturas em que vivem os
seres humanos. “O composto que se saiu melhor
poderia, segundo as simulações, transmitir uma
corrente sem perda de energia apenas a 40 K, ou
-233,15 ºC”, comenta Eleno.
Foi um trabalho de ocasião, que começou a
ser concebido assim que o artigo do grupo de
Rochester ganhou as páginas da Nature em mar-
ço passado. Nessa época, Ferreira passava uma
temporada na Universidade Tecnológica de Graz,
na equipe de Christoph Heil, e pesquisava outro
tema na área de supercondutividade. Mas, diante
do enorme interesse e polêmica despertados pelo
estudo da equipe de Dias, decidiram concentrar
esforços em um estudo com o composto LuNH.
“Se ele fosse realmente um supercondutor à
temperatura ambiente, como eles diziam, essa
poderia ser a descoberta científica do século”, co-
menta Ferreira, que é o primeiro autor do estudo
O físico Ranga Dias, modernas de informática, como inteligência ar- na Nature Communications e faz doutorado com
da Universidade de tificial e aprendizagem de máquina. bolsa da FAPESP. “Por isso, fizemos nosso estudo
Rochester, que afirma
ter produzido
Dessa forma, simulam diferentes condições de com rapidez. Sabíamos que os maiores grupos de-
supercondutores à temperatura e de pressão e criam, em um cluster dicados à procura de novos materiais, em especial

A
temperatura ambiente de computadores, versões distintas de cristais a da área de supercondutores, fariam o mesmo.”
partir da combinação dos elementos químicos
usados pela equipe de Rochester. O objetivo final pesar de batida e talvez pretensiosa,
do experimento computacional era averiguar se a metáfora de que a busca por super-
algum composto feito com essa receita poderia condutores de altas temperaturas é
resultar em um material candidato a ser um su- o Santo Graal da física – algo muito
percondutor à temperatura ambiente. procurado, mas que ninguém encon-
No total, foram simulados no computador 200 trou – continua sendo comumente
mil compostos com estruturas atômicas diferen- empregada. A alegoria faz sentido,
tes. Dos pouco mais de 150 materiais que pare- ainda que não faltem outros obje-
ciam ser estáveis quando submetidos a uma certa tivos com potencial revolucionário
corrente elétrica, o grupo identificou 52 que exi- em vários campos científicos, inclusive na própria
biam algum potencial para se comportar como física. A descoberta de um material que atue como

1957 1962 1986


Três físicos norte-americanos, O físico britânico Descoberto o primeiro
John Bardeen (1908-1991), Brian Josephson prevê que uma supercondutor de “alta
Leon Cooper e John Schrieffer corrente elétrica deve passar temperatura”, o óxido de cobre-
(1931-2019), propõem a teoria por dois supercondutores -lantânio-bário (CuBa0.15La1.85O4),
BCS, que explica em nível mesmo se estiverem separados com Tc de -238,15 ºC (35 K).
microscópico como ocorre por um material isolante. Essa Não se esperava encontrar tal
a supercondutividade a baixas propriedade, de tunelamento propriedade em um composto
temperaturas em elementos puros supercondutor, é conhecida como cerâmico, tipo de material que
e ligas simples (ver box na p. 47) efeito Josephson normalmente é um isolante elétrico

1987 ANOS 1990 E 2000


Uma cerâmica feita de um óxido Compostos submetidos a pressões
de ítrio, bário e cobre (YBCO) milhões de vezes superiores à da
é o primeiro material conhecido atmosfera terrestre se tornam
a se tornar supercondutor a supercondutores a temperaturas mais
temperaturas superiores à do elevadas. A Tc do hidreto metálico
nitrogênio líquido, de -196,15 ºC LaH10 é, por exemplo, de “meros”
(77 K), um meio mais barato de -23 ºC (250 K) a descomunais 190
refrigeração do que o hélio líquido gigapascal de pressão

PESQUISA FAPESP 332 | 45


supercondutor à temperatura (e pressão) ambien- sem acarretar perda de energia na passagem da
te poderia impulsionar novas aplicações em várias eletricidade (ver texto na página 47). “Mas, em
áreas, como computação quântica, transportes e muitos supercondutores com temperatura críti-
na própria transmissão de eletricidade, além de ca mais elevada, não conhecemos o mecanismo
gerar uma economia de energia sem paralelo. microscópico que levaria à supercondutividade
“Hoje se gasta muito com sistemas de refri- e a BCS não dá conta de explicar esses casos”,

A
geração que usam hélio líquido para manter os comenta Ortiz.
supercondutores abaixo de sua Tc”, comenta o
físico Pascoal Pagliuso, da Universidade Estadual passagem ou o bloqueio da corrente
de Campinas (Unicamp), especialista em física elétrica é um fenômeno quântico e
da matéria condensada. Em tese, uma corrente a explicação que segue é uma sim-
elétrica circularia infinitamente em um material plificação do processo. Os elétrons,
supercondutor – desde que mantidas as condições como seu nome indica, são as par-
de temperatura e pressão que levam ao surgimen- tículas responsáveis pela condução
to da resistência zero à passagem de eletricidade. da eletricidade no interior dos ma-
Em um experimento no Reino Unido, a corrente teriais. Em isolantes, eles estão tão
em um anel supercondutor foi mantida por dois juntos do núcleo dos átomos que
anos e meio e só se interrompeu em razão de uma não conseguem se deslocar e fazer a corrente
greve de caminhoneiros, que atrasou a entrega do fluir. Em materiais que conduzem eletricidade,
hélio líquido necessário para manter o material mas não são supercondutores, os elétrons se mo-
abaixo de sua temperatura crítica. vimentam e conseguem transmitir apenas uma
Além de problemas práticos, há questões teóri- parte da corrente recebida.
cas mal resolvidas na supercondutividade de altas No entanto, outros, em menor número, cho-
temperaturas. A chamada teoria BCS fornece as cam-se com os núcleos dos átomos, que têm car-
bases para a compreensão do surgimento do fenô- ga positiva e atraem os elétrons, de carga nega-
meno da resistência elétrica zero em supercon- tiva. Essas colisões provocam perda de energia,
dutores clássicos, que funcionam geralmente em na forma de calor. “É por isso que os fios de um
condições extremamente frias. Ela mostra como metal condutor, como os de cobre, esquentam”,
átomos e elétrons vibram de forma coordenada comenta o físico Mauro Doria, da Universidade
na malha estrutural de cristais supercondutores Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), especialista

Os aparelhos de
ressonância
magnética funcionam
com o emprego de
supercondutores
mantidos a baixíssimas
temperaturas

46 | OUTUBRO DE 2023
BCS, UMA TEORIA PARA SUPERCONDUTIVIDADE
Interação coordenada de elétrons e átomos permite passagem de corrente sem perda de energia

Apresentada em 1957 pelos físicos um material apresenta supercondutividade, rendeu o Nobel de Física de 1972 a seu trio
norte-americanos John Bardeen (1908-1991), os pares de elétrons que fluem no interior de formuladores, novas teorias precisam
Leon Cooper e John Schrieffer (1931-2019), da estrutura de um cristal se aproximam ser desenvolvidas para tentar explicar
a teoria BCS (alusão ao sobrenome de seus bastante (sem, no entanto, juntar-se ou colidir) o surgimento da supercondutividade em
propositores) é a melhor explicação científica e passam a interagir conjuntamente, como temperaturas mais elevadas.
disponível até hoje sobre o mecanismo uma quase partícula, com os átomos do
microscópico que estaria por trás da material, que têm carga positiva. Corrente elétrica em supercondutor …
supercondutividade. Embora não seja Os pares de Cooper se movem
atualmente considerada capaz de dar conta ordenadamente em um jogo de aproximação
dos mecanismos que possibilitam a e distanciamento dos átomos – uma vibração
transmissão de eletricidade com resistência ou excitação coletiva denominada fônon –
Corrente elétrica
zero em materiais que se comportam como e percorrem a malha estrutural do cristal Par de Cooper

supercondutores a temperaturas mais altas, sem provocar colisões. Grosso modo, são
essa formulação de meados do século passado os choques dos elétrons com os núcleos dos
introduz um conceito fundamental para a átomos que fazem com que os materiais
compreensão geral desse fenômeno quântico: condutores ou semicondutores de eletricidade, … e em material sem supercondutividade
a formação dos chamados pares de Cooper. como fios de cobre ou chips de silício,
Trata-se da contraintuitiva ligação de grupos desperdicem parte de sua energia na forma
de dois elétrons que, em certos materiais, de calor. “A teoria BCS é completa para
em determinadas condições favoráveis, como descrever a supercondutividade, mas não
a temperaturas perto do zero absoluto ou a explica realmente como os pares de Cooper
grandes pressões, permite a passagem de se formam nos supercondutores de alta
corrente elétrica sem perda de energia. Por temperatura”, comenta o físico Pascoal
terem carga negativa, os elétrons não deveriam Pagliuso, da Unicamp. Hoje, há praticamente
se atrair, mas se repelir. Entretanto, quando um consenso de que, além da BCS, que elétron núcleo do átomo

em supercondutividade, magnetismo e fluidos. Apesar de ter causado muito barulho, o tra-


“Sua resistência à passagem da corrente não é balho, que não foi aceito para publicação em
FOTO LÉO RAMOS CHAVES / REVISTA PESQUISA FAPESP INFOGRÁFICO ALEXANDRE AFFONSO / REVISTA PESQUISA FAPESP

zero.” Pelo menos 15% da energia é dissipada nenhuma revista, carecia de rigor científico na
como calor em materiais que transmitem cor- opinião de muitos especialistas. “Eles cometeram
rentes elétricas, mas não de forma perfeita como erros de interpretação tanto no texto como nas

O
os supercondutores. figuras que indicariam a existência de supercon-
dutividade”, diz Pagliuso. “Foram precipitados e
s trabalhos de Ranga Dias não são amadores.” Quando um composto atinge a tem-
os primeiros a pleitear a descoberta peratura em que se torna um supercondutor, sua
da supercondutividade à tempera- resistência à passagem de corrente elétrica cai
tura ambiente. Vários grupos fi- abruptamente e chega a zero. “O trabalho dos
zeram o mesmo no passado, todos coreanos registra uma grande queda repentina
sem sucesso. Nos últimos meses, na resistência elétrica, mas ela não parecia se
em paralelo às discussões e polê- tornar nula nos dados mostrados.”
micas sobre os estudos do grupo Não à toa, as dificuldades de encontrar mate-
de Rochester, pesquisadores sul- riais que deixem a corrente elétrica fluir total-
-coreanos do Centro de Pesquisa em Energia mente livre, sem nenhum grau de resistência,
Quântica, de Seul, publicaram em julho passado, em condições similares à do ambiente natural,
na forma de preprint no repositório arXiv, um levaram o físico argentino Elbio Dagotto, da Uni-
artigo com uma reivindicação ainda mais espe- versidade do Tennessee, a afirmar, certa vez, que
tacular. Diziam que tinham criado um material, a supercondutividade de altas temperaturas era
um composto de cobre, chumbo, fósforo e oxi- “o Vietnã da física teórica”. n
gênio denominado LK-99, com resistência zero
à passagem de corrente elétrica à temperatura Os projetos e os artigos científicos consultados para esta reportagem
e pressão ambiente. estão listados na versão on-line.

PESQUISA FAPESP 332 | 47


COVID-19

LIÇÕES DA
PANDEMIA
Dossiê reúne evidências de que estratégias
não medicamentosas ajudaram a reduzir o impacto
do novo coronavírus

Felipe Floresti

O
uso de máscaras, a imposição de que realizaram os estudos de revisão. “Isso não
distanciamento social e outras significa que todas as intervenções foram efica-
três medidas não farmacológi- zes em todos os cenários ou o tempo todo, mas
cas foram eficientes para con- aprender as lições de toda a pesquisa gerada nessa
ter a transmissão do novo coro- pandemia será fundamental para nos preparar-
navírus durante a pandemia de mos para a próxima”, concluiu.
Covid-19 e, assim, evitar o colapso generalizado A partir de março de 2020, bem antes de as
dos sistemas de saúde de diferentes países en- vacinas estarem disponíveis, países ao redor do
quanto não surgiam as vacinas. Essas estratégias mundo adotaram conjuntos de medidas – com
se mostraram úteis especialmente quando usa- diferentes formatações, abrangências e intensi-
das em conjunto e nas fases mais iniciais, indi- dades – que alteraram o funcionamento da socie-
cam as evidências científicas apresentadas em dade e o convívio entre as pessoas, representando
uma série de estudos de revisão publicados em a maior interferência no cotidiano da população
agosto na revista Philosophical Transactions of global desde a Segunda Guerra Mundial. Com
the Royal Society A. base na experiência de pandemias anteriores,
“Há evidências suficientes para concluir que a como a da Gripe Espanhola de 1918, especialistas
implementação precoce e rigorosa de pacotes de e autoridades da saúde orientaram os governos
intervenções não farmacêuticas complementares a recomendar ações como tornar obrigatório
foi inequivocamente efetiva em limitar as infec- o uso de máscaras em certas situações, impor
ções por Sars-CoV-2”, afirmou em comunicado à o distanciamento social e até lockdowns, antes
imprensa o médico Mark Walport, secretário de mesmo que fosse possível conhecer em detalhes o
Relações Exteriores da Royal Society, a academia comportamento do Sars-CoV-2 ou de ter certeza
britânica de ciências que edita a Philosophical de que funcionariam contra ele. Algumas dessas
Transactions, e líder do grupo de especialistas medidas, em especial as duas últimas, foram bas-

48 | OUTUBRO DE 2023
Imposição de uso tante impopulares, por causarem um importante cinco foram realizados nas comunidades e 40
obrigatório de impacto econômico, além de social, em especial conduzidos em unidades de saúde. Quase to-
máscaras diminuiu
a taxa de infecção
nas populações mais vulneráveis. Foram ações dos eram estudos observacionais, nos quais os
pelo Sars-CoV-2 consideradas necessárias diante de um vírus que realizadores acompanharam, sem interferir, os
se dissemina muito rapidamente e contra o qual efeitos do uso versus os do não uso de máscaras.
não se tinha imunidade. Dos 45 trabalhos que avaliaram se o aparato de
Passada a fase crítica da pandemia, Walport proteção facial reduzia o número de infectados,
reuniu seis grupos de especialistas e pediu que 39 (87%) identificaram um efeito positivo – alguns
cada equipe revisasse os mais relevantes estudos registraram uma diminuição de pouco mais de
que avaliaram cada uma das cinco principais me- 10% no total de indivíduos com o vírus ou com
didas não farmacológicas adotadas para conter sinais de Covid-19. De 18 estudos que analisaram
o vírus: uso de máscaras; distanciamento social o impacto do uso obrigatório de máscaras, 16
ou imposição de lockdown; testagem, rastreio e concluíram que a medida reduzia a taxa de in-
isolamento; controle de fronteiras internacionais; fecção. “De modo geral, o corpo de publicações
FOTO LÉO RAMOS CHAVES / REVISTA PESQUISA FAPESP

e controle ambiental. Também foi analisado o analisadas demonstra que a máscara funciona”,
impacto de ações de comunicação social sobre afirma o epidemiologista Expedito Luna, da Fa-
a aceitação dessas medidas. culdade de Medicina da Universidade de São
Paulo (FM-USP), que avaliou o dossiê a pedido
MÁSCARAS de Pesquisa FAPESP.
O grupo liderado pelo epidemiologista Christo- Sete estudos indicaram que as máscaras do tipo
pher Dye, da Universidade de Oxford, no Rei- N95 protegiam mais do que as cirúrgicas, embora
no Unido, analisou 75 estudos que mediram em outros cinco trabalhos não tenham encontrado
diferentes países se o uso de máscaras poderia diferença. “No início da pandemia, quando não
reduzir a transmissão do Sars-CoV-2. Trinta e havia máscaras disponíveis para todo mundo, o

PESQUISA FAPESP 332 | 49


mínima de outras pessoas e restringir o número
de participantes de reuniões foram repetida-
mente associadas a uma redução importante na

A
transmissão do Sars-CoV-2.

epidemiologista Christi Donelly,


do Imperial College London, no
Reino Unido, e sua equipe revi-
saram 338 estudos sobre nove
medidas de distanciamento so-
cial. Quase metade dos trabalhos
(151) avaliou o impacto da imposição de ficar em
casa, que, em alguns casos, incluía ações mais
restritivas, como lockdowns. Deles, 119 encontra-
ram redução significativa no número de casos e
na mortalidade. A queda média na transmissão
do vírus foi de 50%, embora os valores tenham
variado consideravelmente (de 6% a 81%) en-
tre os estudos, que usaram desenhos diferentes,
analisaram populações distintas nas quais foram
adotadas formas diversas de restrição.
“Manter as pessoas em casa reduz bastante, e
pode praticamente zerar, a transmissão do vírus
por um período”, explica Hallal. “No Brasil, não
funcionou porque se quis dar um ‘jeitinho’ no
distanciamento para não atrapalhar as ativida-
Ordens para ficar uso de máscaras de pano era melhor do que nada, des econômicas.” Na opinião do epidemiologista
em casa baixaram em mas o relatório deixa claro que aquelas de melhor Eliseu Waldman, da Faculdade de Saúde Públi-
50%, em média,
a transmissão do novo
qualidade reduzem mais a transmissão”, conta o ca da USP, o distanciamento social deixou mais
coronavírus epidemiologista Pedro Hallal, da Universidade claras as diferenças sociais no Brasil. “Boa parte
Federal de Pelotas (UFPel), que também analisou da população não pôde pôr a medida em prática
os estudos da Philosophical Transactions. porque precisava sair de casa para conseguir o
Entre todas as intervenções avaliadas, o distan- que comer a cada dia”, afirma.
ciamento social foi a que se mostrou mais eficaz. A equipe da epidemiologista Elizabeth Fearon,
Ordens para ficar em casa, manter uma distância da University College London, no Reino Unido,
olhou 1.181 estudos e, entre eles, encontrou apenas

FOTOS LÉO RAMOS CHAVES / REVISTA PESQUISA FAPESP INFOGRÁFICO ALEXANDRE AFFONSO / REVISTA PESQUISA FAPESP
25 trabalhos que mediram empiricamente e em
O que ajudou a conter o Sars-CoV-2 nível populacional a estratégia de testar as pes-
soas suspeitas de estarem infectadas, rastrear os
Análise de dezenas de estudos sobre cinco estratégias indica indivíduos que tiveram contato com elas e isolar
quais delas ajudaram a controlar a disseminação do vírus aqueles em que a infecção foi confirmada. No en-
tanto, devido à diversidade de abordagens adota-
ESTRATÉGIA EFEITO das, não foi possível comparar os dados seguindo
uma única métrica de impacto. “Em geral, esses
Uso de máscaras Mais de 80% dos estudos mostraram que
estudos mostraram que a testagem e/ou o ras-
reduziu a proporção de infectados
treio de contatos estavam associados a reduções
Distanciamento social Foram as estratégias mais eficazes. Diminuíram na transmissão”, escreveram os pesquisadores.
e lockdown em média em 50% o número de casos e mortes Apesar de a maioria dos países ter introduzi-
do restrições de viagem durante a pandemia, a
Rastreio, checagem Não se chegou a um valor único, mas os
especialista em políticas de saúde Karen Grépin,
e isolamento dados sugerem que reduziram a transmissão
da Universidade de Hong Kong, e seus colabora-
Restrições de viagens Em países específicos, causaram redução dores encontraram poucos estudos examinando a
moderada na transmissão eficácia dessas medidas. Segundo os pesquisado-
res, estudos de casos nacionais, como o da Nova
Controle ambiental (ventilação, Diminuiu a transmissão quando aplicada
Zelândia, mostraram que políticas abrangentes
filtragem do ar, desinfecção) a ambientes fechados
de controle de fronteiras podem reduzir, mas
FONTES BOULOS, L. ET AL. PHILOSOPHICAL TRANSACTIONS OF THE ROYAL SOCIETY A. 24 AGO. 2023 / MURPHY, C. ET AL. não eliminar, o número de viajantes infectados.
PHILOSOPHICAL TRANSACTIONS OF THE ROYAL SOCIETY A. 24 AGO. 2023 / LITTLECOTT, H. ET AL. PHILOSOPHICAL
TRANSACTIONS OF THE ROYAL SOCIETY A. 24 AGO. 2023 / GRÉPIN, K. A. ET AL. PHILOSOPHICAL TRANSACTIONS OF THE As restrições de viagem de países específicos ti-
ROYAL SOCIETY A. 24 AGO. 2023 / MADHUSUDANAN, A. ET AL. PHILOSOPHICAL TRANSACTIONS OF THE ROYAL SOCIETY A.
24 AGO. 2023 / WILLIAMS, S. N. ET AL. PHILOSOPHICAL TRANSACTIONS OF THE ROYAL SOCIETY A. 24 AGO. 2023 veram um efeito moderado na transmissão, mas

50 | OUTUBRO DE 2023
Vacina da UFMG avança para a segunda fase de testes
Composto deve ser administrado a 360 pessoas com idades entre 18 e 65 anos

No final de agosto, a Agência Nacional de Vi- Horizonte e da bancada mineira na Câmara surgir, além de avaliar marcadores imunoló-
gilância Sanitária (Anvisa) aprovou o início da dos Deputados. gicos de eficácia.
segunda fase de testes em seres humanos da Na segunda fase de testes, a formulação Informações iniciais do ensaio clínico de fa-
SpiNTec, o único composto candidato a vaci- será administrada a cerca de 360 voluntários se 1, apresentadas em junho, indicaram que a
na contra a Covid-19 desenvolvido integral- com idades entre 18 e 65 anos, saudáveis ou SpiNTec é segura (não causa problemas graves
mente no Brasil. Essa é a penúltima etapa de com doenças crônicas controladas, que rece- de saúde) e capaz de induzir a resposta imuno-
ensaios clínicos antes da liberação para a co- beram anteriormente doses de CoronaVac ou lógica. Além de estimular a produção de anti-
mercialização. do imunizante da AstraZeneca e o reforço da corpos contra a proteína da espícula do Sars-
A SpiNTec é um dos três candidatos a imuni- vacina da Pfizer/BioNTech ou da AstraZeneca. -CoV-2, como a maioria das vacinas disponíveis,
zante contra o novo coronavírus desenvolvido “Esse é um importante passo para a obtenção a nova formulação potencializa a ativação dos
com a participação de brasileiros a chegar à fa- do registro”, disse o imunologista Ricardo Gaz- linfócitos T, células que combatem as células in-
se de testes em pessoas (ver Pesquisa FAPESP zinelli, coordenador do CTVacinas e pesqui- fectadas pelo vírus. Essa dupla ação, em princí-
nº 321). Ela foi criada pela equipe do Centro de sador da Fiocruz em Minas Gerais, à Agência pio, pode torná-la eficaz também contra novas
1 Tecnologia de Vacinas (CTVacinas) da Univer- FAPESP. Os participantes serão acompanha- variantes. Se tudo correr bem, a última etapa de
sidade Federal de Minas Gerais (UFMG), em dos por um ano. testes deve ocorrer no próximo ano. “Já temos
parceria com a Fundação Oswaldo Cruz (Fio- O objetivo dessa segunda fase é continuar recursos da Finep aprovados para a fase 3, que
cruz) em Minas Gerais e recebeu investimentos avaliando a segurança da formulação e iden- serão liberados mediante o sucesso da atual
de instituições federais, da Prefeitura de Belo tificar os efeitos indesejáveis que possam fase do estudo”, contou Gazzinelli.

rapidamente se tornaram menos eficazes à me- Gales, avaliou a eficácia das estratégias de comu-
dida que o número de casos aumentou. Já a qua- nicação para fazer as pessoas aderirem às medi-
rentena na fronteira de entrada foi considerada das não farmacológicas de controle da Covid-19.

A
mais eficaz para reduzir a transmissão do vírus. Foram analisados 13 trabalhos, que levaram em
conta exclusivamente o contexto do Reino Uni-
equipe coordenada pelo engenhei- do. A confiança – no governo, nos pesquisadores
ro Shaun Fitzgerald, da Univer- e nas autoridades da saúde – foi o fator que mais
sidade de Cambridge, no Reino impactou a eficácia da comunicação, sendo men-
Unido, buscou na literatura cien- cionado em 10 dos 13 estudos. A baixa confiança
tífica evidências de que medidas no governo levou a uma menor adesão ou a uma
de controle ambiental – como maior crença em teorias conspiratórias. Igual-
melhorar a ventilação dos locais e realizar a fil- mente importantes também foram a clareza e a
tragem do ar ou a desinfecção de superfícies, entre consistência da mensagem. “Mensagens ambí-
outras – poderiam ajudar a diminuir a transmissão guas” geraram confusão e, em alguns casos, falta
do vírus. De 14 mil artigos identificados, apenas de adesão, afirmaram os pesquisadores.
19 haviam sido revisados por pares. Segundo os Da leitura do dossiê, fica claro que ainda são
autores da revisão, esses trabalhos sugerem que necessários estudos mais específicos para men-
essas medidas são capazes de reduzir a transmissão surar melhor o efeito de cada medida. Nos tra-
do Sars-CoV-2 se aplicadas a ambientes fechados. balhos analisados, muitas haviam sido adotadas
A revisão coordenada pelo sociólogo Simon simultaneamente, o que dificultou a separação do
Williams, da Universidade de Swansea, no País de efeito de cada uma. Luna, da USP, lembra ainda
que não foram avaliadas as consequências sociais
e econômicas dessas medidas. Apesar das limi-
tações, Hallal afirma que o relatório organizado
por Walport é importante por acrescentar evi-
dências empíricas ao que já se sabia em teoria ou
havia sido demonstrado pontualmente por estu-
dos isolados. “Essas revisões mostraram serem
Estratégia de testar, efetivas várias medidas que recomendamos mil
rastrear e isolar vezes durante a pandemia. Muitas mortes po-
infectados também
mostrou potencial de
deriam ter sido evitadas se essas ações tivessem
reduzir a disseminação sido tomadas no Brasil”, conclui o epidemiolo-
do vírus gista da UFPel. n

PESQUISA FAPESP 332 | 51


VIROLOGIA

OS CAMINHOS DA
FEBRE
AMARELA
Agente causador da enfermidade circula de modo
ininterrupto há sete anos no Centro-Sul do país

Ricardo Zorzetto

E
m 30 de abril, um homem doença no Brasil, dos quais três foram de um artigo publicado em setembro na
de 44 anos que morava em confirmados, com uma morte – a segunda revista Science Advances descrevendo a
São João da Boa Vista, mu- morte em São Paulo ocorreu posterior- dinâmica de dispersão recente do vírus
nicípio a 210 quilômetros mente. No mesmo período, centenas de no Brasil. No trabalho, pesquisadores
ao norte da capital paulis- macacos foram achados sem vida em ma- de 46 instituições no país e no exterior
ta, morreu em consequência tas próximas a regiões urbanas, suspeitos sequenciaram o genoma de 147 amos-
da febre amarela. Foi o segundo óbito de estarem infectados com o vírus, que tras do vírus obtidas de seres humanos,
provocado pela doença em 2023 no es- provoca lesões no fígado, nos rins e no co- macacos e mosquitos infectados entre
tado de São Paulo, onde havia três anos ração, e mata até metade das pessoas que 2015 e 2022 e confrontaram com outros
não se registravam casos humanos da desenvolvem a forma grave da doença. 296 genomas de exemplares do patógeno
enfermidade. Após a fase mais intensa “É a primeira vez que um surto fora que circularam nas últimas décadas em
do surto atual, o maior em décadas, que da Amazônia dura tanto. São quase se- países das Américas Central e do Sul – a
entre 2016 e 2020 deixou cerca de 2,3 mil te anos de transmissão ativa, em alguns febre amarela é endêmica em 13 países
pessoas doentes e matou mais de 600 nas períodos com duas variedades do vírus da região, além de outros 34 da África.
regiões Sudeste, Centro-Oeste e Sul do circulando simultaneamente”, afirma a A análise de um número tão grande de
país, a febre amarela arrefeceu. Sua ocor- virologista Camila Zanluca, pesquisadora genomas do vírus – a maior já feita com
rência diminuiu muito, mas a circulação do Instituto Carlos Chagas, unidade da material brasileiro – revelou surpresas.
do vírus que a causa não cessou. Segundo Fundação Oswaldo Cruz no Paraná (ICC/ A primeira é que, no surto atual, o agente
dados da Organização Pan-americana da Fiocruz-PR). Zanluca e a virologista ita- da febre amarela chegou ao Centro-Sul
Saúde (Opas), de julho de 2022 a meados liana Marta Giovanetti, da Fiocruz no do país dois a três anos antes do que se
de março, houve 300 prováveis casos da Rio de Janeiro, são as autoras principais pensava, vindo de algum ponto na Ama-

52 | OUTUBRO DE 2023
Células renais que codifica uma enzima que auxilia a tencem ao clado IIb”, afirma a virologista
de macaco (com núcleo replicação do material genético do vírus Claudia Nunes Duarte dos Santos, chefe
azul) infectadas pelo
vírus da febre amarela
no interior das células do hospedeiro do Laboratório de Virologia Molecular
(em verde) (mosquito, macaco ou humano). do ICC/Fiocruz-PR, e também coorde-

D
Ao combinar as características gené- nadora do estudo atual.
ticas das amostras com o local em que
foram coletadas, os pesquisadores con- o clado IIIc, há menos
zônia. “Os dados atuais indicam que o seguiram reconstruir ao menos parcial- informação, uma vez que
vírus entrou no Sudeste entre o final de mente os caminhos trilhados por cada havia menos de 20 geno-
2013 e o início de 2014”, conta o virolo- variedade do vírus. Vindos da região mas disponíveis. Sabe-se
gista Luiz Carlos Júnior Alcântara, pes- Norte, os integrantes do clado Ia entra- que ele é geneticamente
quisador do Instituto René Rachou, em ram no Sudeste por Minas Gerais, perto mais próximo que os ou-
Minas Gerais, também da Fiocruz, e um do início de 2014, embora os primeiros tros dois de uma variedade ancestral,
dos coordenadores do estudo atual. Ele casos em macacos e seres humanos só detectada em 2002 em Roraima. Ele sur-
participou de um trabalho anterior, pu- tenham sido detectados no fim de 2016. giu na região Norte, em 2017, e depois
blicado em 2018 na revista Science, que Dali, eles alcançaram o Espírito Santo e seguiu para o Centro-Oeste, antes de
havia calculado, a partir da análise de 62 depois se espalharam para o Rio de Ja- chegar ao Sudeste.
genomas, que o vírus teria alcançado a neiro e a Bahia, no Nordeste, como já ha- “A circulação do vírus da febre ama-
região, mais especificamente o estado de via sido indicado em um artigo publicado rela no eixo Norte-Sul já havia sido su-
Minas Gerais, apenas no final de 2016. em 2019 no Journal of Virology, também gerida por outros autores, a partir de
A segunda novidade do artigo da coordenado por Alcântara. observações empíricas”, lembra o viro-
Science Advances é que nos últimos se- Quase ao mesmo tempo, o IIb emer- logista Renato Souza, especialista em
te anos três variedades do vírus circula- giu em Goiás, no Centro-Oeste, e um ano febre amarela da unidade de Taubaté do
ram no Centro-Sul do Brasil, duas delas mais tarde chegou a Minas, de onde se Instituto Adolfo Lutz, que não participou
concomitantemente em certos períodos. espalhou para o estado de São Paulo. A do estudo. “O artigo atual se baseia em
Definidas com o nome técnico de clados seguir, alcançou os estados da região Sul, dados de sequenciamento genético de
Ia, IIb e IIIc, todas integram o genótipo onde permanece em circulação. “Ainda alta qualidade para reconstruir a história
sul-americano I, o mais comum no país. hoje recebemos amostras de vírus ex- de difusão do vírus no espaço e no tem-
Elas, no entanto, diferem entre si por al- traídas de primatas não humanos, prin- po, permitindo traçar os caminhos mais
IMAGEM CAMILA ZANLUCA / LABORATÓRIO DE VIROLOGIA MOLECULAR / ICC / FIOCRUZ-PR INFOGRÁFICO GIOVANETTI, M. ET AL. SCIENCE ADVANCES. 1º SET. 2023

terações pontuais, em especial no gene cipalmente dos estados do Sul, que per- prováveis de espalhamento”, afirma.
Para o infectologista Marcos Boulos,
da Universidade de São Paulo (USP) e
O espalhamento fora da Amazônia assessor da coordenadoria de Controle
de Doenças da Secretaria de Estado da
A partir do sequenciamento do vírus, Saúde de São Paulo, o trabalho é revela-
pesquisadores reconstroem as rotas de dispersão dor por mostrar que o vírus permanece
em circulação o tempo todo desde o iní-
Trajeto percorrido pelos vírus do clado Ia (à esq.) e do clado IIb cio do surto atual. “A análise dos casos
no país. A cor das linhas indica o ano estimado do evento. clínicos não permitia observar isso de
GO
modo tão evidente”, comenta. “É um
MG
resultado que amplia o conhecimento
BA
científico sobre o comportamento do
vírus, mas que não altera o tratamento.”
Cerca de 90% das pessoas infectadas
SP não apresentam ou têm poucos sinto-
ES
mas, nem sabem que tiveram o vírus. Os
PR RJ outros 10% se dividem entre casos leves
e graves. A forma mais eficaz de preve-
SC
nir a doença é por meio da vacinação.
MG
ES RS Produzido com vírus vivo atenuado de
Direção da dispersão
uma variedade africana, o imunizante é
seguro e oferece proteção pela vida toda.
No Brasil, o Programa Nacional de Imu-
RJ
nizações recomenda a administração de
uma dose inicial aos 9 meses de idade,
com um reforço aos 4 anos. n
2018 2019 2020 2021 2016 2017 2018 2019 2020 2021

Os artigos científicos consultados para esta reportagem


FONTE GIOVANETTI, M. ET AL. SCIENCE ADVANCES. 1º SET. 2023 estão listados na versão on-line.

PESQUISA FAPESP 332 | 53


GENÉTICA

O VÍRUS
QUE VEIO DO
PACÍFICO
Variedade causadora
da gripe aviária que chegou
ao Brasil originou-se na
costa do Chile ou do Peru Trinta-réis-de-bando,
a primeira espécie
Giselle Soares infectada no Brasil
com o H5N1

A
variedade de vírus da (Mapa). “A espécie infectada, o trinta- (USP) e presidente da Sociedade Brasi-
gripe aviária que vem -réis-de-bando, é muito comum no país, leira de Virologia.
se disseminando pelo encontrada do Amapá ao Rio Grande do De maio a 21 de setembro, equipes do
Brasil é muito prova- Sul, inclusive nas ilhas oceânicas.” Mapa registraram 106 focos da doença
velmente originária da A variedade de alta patogenicidade do no Brasil, sendo 103 em aves silvestres e
região costeira do Chile vírus da influenza A (H5N1) que hoje cir- três em aves criadas para subsistência –
ou do Peru. Pesquisadores brasileiros cula por aqui surgiu em 2020 na Europa e, até o momento, nenhum em granjas de
sequenciaram o genoma do patógeno de lá, alcançou outros continentes. Che- produção comercial. Outros dez poten-
que infectou a primeira ave brasileira gou aos Estados Unidos em 2021 e, no ano ciais focos da doença continuavam em
identificada com a doença – um trinta- seguinte, já estava na costa do Pacífico da investigação.
-réis-de-bando (Thalasseus acuflavidus) América do Sul (ver reportagem “Brasil “A vigilância e o monitoramento cons-
encontrado mor­to em maio deste ano declara emergência zoossanitária para tantes são necessários para o controle
em Marataízes, no litoral sul do Espírito prevenir espalhamento de gripe aviária”, rápido e a redução de danos, caso o ví-
Santo – e concluíram que ele é genetica- disponível no site). Em maio deste ano, ou rus chegue aos criatórios comerciais,
mente similar à variedade do vírus que até mesmo antes, entrou no Brasil, pos- evitando, assim, uma epidemia”, afirma
circula desde 2022 nos dois vizinhos sivelmente trazida por aves migratórias. Góes-Neto. Se o vírus atingir a produção
sul-americanos. Os resultados da análise Transmitida por meio de contato com comercial no país, pode haver um im-
se tornaram disponíveis em 21 de agosto secreções respiratórias ou fezes infec- pacto importante na economia. O Brasil
em um artigo disponibilizado no reposi- tadas, essa cepa do vírus provoca uma é o segundo maior produtor de carne de
tório de preprints da Social Science Re- forma grave de gripe em certos grupos frango do mundo e o maior exportador.
search Network (SSRN), que armazena de aves, letal para quase todos os ani- Para reduzir o risco de que isso ocorra,
os documentos ainda não revisados por mais infectados. Em geral resistentes, as os especialistas recomendam que os es-
pesquisadores independentes. aves aquáticas migratórias atuam como tabelecimentos de produção avícola ado-
“Nosso estudo é um breve relato do hospedeiros naturais e reservatórios dos tem medidas de biosseguridade, como
FOTO DOMINIC SHERONY / WIKIMEDIA COMMONS

primeiro caso identificado no Brasil”, vírus e têm papel importante na sua evo- manter as aves domésticas em ambientes
conta o microbiologista Aristóteles lução, manutenção e disseminação. “O telados, para reduzir a exposição às aves
Góes-Neto, da Universidade Federal de H5N1 gera sintomas clínicos nos tratos silvestres; desinfectar equipamentos e
Minas Gerais (UFMG). Ele participou do respiratório e digestório e no sistema veículos; limitar a entrada de visitan-
sequenciamento e da análise do genoma nervoso das espécies sensíveis a essa tes em granjas; e usar equipamentos de
do vírus em parceria com pesquisadores infecção, embora também existam ca- proteção pessoal durante o trabalho. n
ligados ao Hospital Israelita Albert Eins- sos de animais assintomáticos”, conta a
tein, em São Paulo, e ao Ministério da veterinária Helena Lage Ferreira, pro- O artigo científico consultado para esta reportagem está
Agricultura, Pecuária e Abastecimento fessora da Universidade de São Paulo listado na versão on-line.

54 | OUTUBRO DE 2023
U
ECOLOGIA ma cena do Cerrado brasileiro: uma
mosca sobrevoa a vegetação em busca
do local ideal para depositar as cente-
nas de ovos que carrega no abdômen.
Eis que se depara com uma flor re-
pleta de afídeos, pequenos insetos co-
nhecidos como pulgões, ingrediente
único da dieta das larvas dessa mosca.
Talvez a mosca nem tenha tempo de
perceber que os afídeos são falsos, porque, assim
que pousa para iniciar a oviposição, escorrega e
despenca para dentro da flor. A descrição da ar-

FALSOS
madilha de Phragmipedium vittatum foi publicada
pela equipe liderada pelo biólogo João Custódio
Cardoso, da Universidade Federal de Uberlândia
(UFU), na edição de fevereiro da revista Annals of

BERÇÁRIOS
Botany. Durante as observações, os pesquisadores
identificaram principalmente duas espécies de
moscas-das-flores: Allograpta exotica e Dioprosopa
clavata, ambas da família dos sirfídeos.
A flor que engana as moscas, P. vittatum, é uma
espécie de orquídea do Brasil Central, bastante
visada por colecionadores e por isso ameaçada de
Orquídea usa armadilha para extinção. O gênero Phragmipedium é um dos que
abrigam espécies conhecidas como orquídeas-
atrair moscas polinizadoras -sapatinho, que se distinguem por uma modifi-
cação na pétala de baixo (labelo), que lhes dá um
Laura Segovia Tercic formato de bolsa ou sapato.

Depois de depositar
pequenos ovos brancos
junto aos falsos
pulgões pretos, mosca
escorrega e tenta,
sem sucesso, voltar
à plataforma de pouso

Veja vídeo
FOTO JOÃO CUSTÓDIO CARDOSO / UFU

na versão
on-line desta
reportagem

PESQUISA FAPESP 332 | 55


As moscas-das-flores são consideradas excelen- e sair por um dos dois minúsculos orifícios no
tes polinizadoras de algumas plantas e também topo da flor. Durante o esforço de se esgueirar
costumam ser usadas na agricultura em proce- pelo espaço apertado, ela deixa pólen no estig-
dimentos de controle biológico de pragas, jus- ma (o órgão reprodutivo feminino da flor). Mais
tamente pelo intenso apetite de suas larvas por adiante, ela recolhe um novo pacote de pólen ao
pulgões que sugam a seiva de algumas plantas e passar por uma das anteras (o órgão masculino),
podem danificar safras inteiras. Outra caracterís- que poderá carregar para a flor seguinte. Da ex-
tica marcante desse grupo de moscas é que elas periência, a mosca leva o prejuízo de tempo e
lembram abelhas, o que as protege, por exemplo, energia. Frequentemente, deixa ovos pelo ca-
de ataques de aves. minho, que são desperdiçados, uma vez que as
Cardoso explica que, em geral, as orquídeas- larvas não encontram os pulgões necessários a

O
-sapatinho não fornecem aos insetos recursos seu desenvolvimento.
como néctar ou óleos, mas os atraem com formas,
cores e odores específicos. Uma vez enganadas, grupo da UFU também descobriu que
as moscas realizam a polinização sem receber a superfície do tecido vegetal por
nada em troca. O percurso da polinização come- onde a mosca escorrega é composta
ça quando a orquídea chama a atenção da mosca por células voltadas para baixo, em
que pode carregar aderidos às costas, como uma formato de telhado. Essa caracterís-
grande mochila, milhares de grãos de pólen de tica anula a capacidade de aderência
uma visita anterior. A atração das moscas se deve das moscas, que depende de as gar-
tanto aos pontinhos pretos das flores que imitam ras de suas pernas se engancharem
pulgões, o alimento para as larvas, quanto a ca- em superfícies rugosas. Essa região
Entre os polinizadores racterísticas mais usuais que chamam a atenção da flor é também coberta por mucilagem, uma
da orquídea-sapatinho desses insetos, como a cor amarela. substância viscosa. Nessas condições, as peque-
(no alto), típica Após escorregar pelo amplo e viscoso labe- nas ventosas adesivas que as moscas têm distri-
do Brasil Central,
está a mosca-das-flores
lo, a mosca tenta voltar pelo mesmo caminho e buídas nas pernas não conseguem se prender.
Allograpta exotica ganhar a liberdade, mas não consegue. O único “Não é um ou outro atributo que garante que
(embaixo) caminho possível é atravessar o labirinto interno ela escorregue”, explica Cardoso. “A combina-
ção dos dois dribla as adaptações da mosca.” A
superfície do caminho de saída é revestida por
tricomas (estruturas análogas aos pelos dos ani-
mais) nos quais a mosca se agarra, facilitando o
caminho para fora.
Superfícies escorregadias e aderentes não são
novidade em flores-armadilha e algumas plantas
carnívoras, mas a observação é inédita em orquí-
deas. O caso de P. vittatum também é único por
ser o primeiro mimetismo de afídeos relatado nas
Américas. “Isso mostra que espécies ameaçadas
de extinção podem guardar segredos incríveis,
e devem ter a oportunidade de ser estudadas”,
comenta o pesquisador.

FOTOS E IMAGENS JOÃO CUSTÓDIO CARDOSO / UFU INFOGRÁFICO RODRIGO CUNHA


UM CRIME PERFEITO?
Segundo os pesquisadores, é admirável que a evo-
lução possa ter dado origem a uma interação na
qual uma das partes não recebe nada em troca e
ainda por cima pode perder a própria prole. Co-
mo poderia existir um encaixe, à primeira vista
tão perfeito, entre as estruturas da orquídea e
essas moscas?
O biólogo Anselmo Nogueira, da Universi-
dade Federal do ABC (UFABC), estuda como
interações ecológicas podem mudar o curso da
evolução das plantas e explica que há um viés
temporal no olhar humano sobre esses sistemas.
Para ele, é necessário sempre levar em conta o
saldo energético dessas interações. Ao longo do
tempo evolutivo, o surgimento desse sistema de-

56 | OUTUBRO DE 2023
Microscopia eletrônica
permite enxergar
o alto relevo dos falsos
pulgões (à esq.)
e, olhando mais de
perto, as células
escorregadias em
forma de telhado

CILADA ENGENHOSA pende do balanço entre custos e benefícios, que


varia de acordo com as condições do ambiente.
Estrutura das flores obriga “Isso que chamamos de condicionalidade do
insetos a contribuírem para resultado da interação é um aspecto teórico mais
a reprodução da planta recente, muito importante para os estudos das
interações ecológicas, incluindo antagonismos
e mutualismos”, afirma. “Por exemplo, um po-
linizador pode sair no prejuízo se gastar muito
tempo e energia visitando uma flor que impede
5 seu acesso ao recurso floral, em relação ao que
Um pouco mais aconteceria com outras espécies de planta. Esse
adiante, recolhe raciocínio só faz sentido se no ambiente houver
1 outro pacote de flores com pólen ou néctar mais acessível para
Mosca fêmea pólen que poderá esse visitante”, continua Nogueira. “Em um am-
é atraída pela levar à próxima flor biente com escassez, a relação poderia valer a
falsa presença pena, pois, apesar do gasto energético, pequenas
de pulgões… porções de pólen ou néctar poderiam fazer toda
4 a diferença”, diz ele.
… para passar No caso da orquídea-sapatinho e das duas es-
por um espaço pécies de mosca-das-flores, é difícil imaginar
2 estreito onde deixa em um primeiro momento que a evolução tenha
… e pousa em o pólen que traz mantido um comportamento tão custoso para o
uma plataforma de outra flor inseto caso as fêmeas escolham com frequência
escorregadia depositar os ovos na orquídea traiçoeira. Os cus-
que a faz descer tos, afinal, são altos demais: o sacrifício da prole
como por e, ocasionalmente, a morte do próprio adulto
um tobogã 3 quando não conseguisse passar pelo canal. Inves-
No caminho de tigações mais profundas do significado evolutivo
saída, encontra do “golpe do berçário da orquídea-sapatinho”
pelos onde pode dependerão de outros fatores a serem estudados.
se agarrar… Entre eles: analisar a presença de outras espécies
de plantas utilizadas pelas moscas; o número de
vezes que uma mesma mosca insiste no engano
até aprender com a experiência negativa e pas-
sar a depositar seus ovos em outra superfície;
e a proporção de ovos perdidos em relação ao
conjunto total de uma fêmea. n

O artigo científico consultado para esta reportagem está listado na


FONTES JOÃO CUSTÓDIO CARDOSO / UFU
versão on-line.

PESQUISA FAPESP 332 | 57


Fêmea de
EVOLUÇÃO
abelha-das-orquídeas
(Exaerete smaragdina)
em flor de guanhuma
em Cosmópolis,
São Paulo

A LONGA
HISTÓRIA
DAS
ABELHAS

H
Insetos polinizadores á cerca de 120 milhões de análise de sequências de DNA de dife-
anos, início do período Cre- rentes partes do genoma de 216 espécies
teriam surgido há táceo, grupos de dinossau- de abelhas de todas as sete famílias e 28
ros ainda caminhavam pela subfamílias conhecidas hoje. As amostras
120 milhões de anos no Terra quando as primeiras vieram dos cinco continentes onde as
supercontinente abelhas surgiam nas atuais América do abelhas vivem (todos, exceto a Antárti-
Sul e África, então conectadas como da), graças aos dados e espécimes deposi-
Gondwana Ocidental, parte do supercontinente Gondwana. tados em museus de pesquisa – Almeida
“O ancestral comum das abelhas prova- é curador da coleção entomológica Prof.
formado pelas atuais velmente surgiu em meio ao clima mais J. M. F. Camargo, que abriga centenas
árido que essa região tinha. Até hoje, a de milhares de exemplares de abelhas.
América do Sul e África   maioria das mais de 20 mil espécies já Os pesquisadores compararam estima-
catalogadas prefere áreas mais secas, tivas genéticas de idade e dados da dis-
Sarah Schmidt onde são mais diversificadas”, contou tribuição geográfica dessas espécies com
o biólogo Eduardo Almeida, do campus informações provenientes de 220 fósseis
de Ribeirão Preto da Universidade de e locais onde foram coletados. Todas
São Paulo (USP), enquanto se preparava essas informações permitiram ao grupo
para apresentar os resultados em um traçar a árvore genealógica (filogenia)
workshop sobre evolução das abelhas das abelhas, estimando as relações de
na cidade de Portal, no Arizona, Estados parentesco evolutivo entre as principais
Unidos, em meados de agosto. linhagens e as idades dos eventos evolu-
Ao lado do colega alemão Silas Bos- tivos. O resultado é uma linha do tempo
sert, da Universidade Estadual de Wa- que indica onde e quando as primeiras
shington, ele liderou o estudo publicado espécies teriam surgido e como os gru-
em agosto na revista científica Current pos se dividiram, diversificaram cores,
Biology, que tornou mais nítido esse qua- formas, comportamentos e modos de
dro esboçado em estudos anteriores pela organização, e se dispersaram pelo pla-

58 | OUTUBRO DE 2023
neta ao longo do tempo, acompanhando Tempos depois, outras abelhas que já es- cias e novos dados para sua hipótese”,
a reacomodação dos continentes. tavam no continente asiático também te- observa o pesquisador de Ribeirão Preto.
Segundo os resultados do grupo de riam colonizado a Austrália. Já na Índia, A bióloga Vera Lucia Imperatriz Fon-
Ribeirão Preto, a partir do momento em elas devem ter chegado por volta de 50 seca, do campus paulistano da USP, que
que surgiu o ancestral comum das abe- milhões de anos atrás, depois que o ter- não participou do estudo, observa que
lhas, por volta de 124 milhões de anos ritório do atual país indiano, que havia se a pesquisa é a mais ampla filogenia de
atrás, um processo contínuo de diversifi- desprendido da Gondwana antes da ori- abelhas já feita. “Antigamente estudáva-
cação foi influenciado pela configuração gem das abelhas, chocou-se com o conti- mos as abelhas do nosso quintal. Hoje
dos continentes na época, a subida e des- nente asiático e encontrou a fauna local. podemos estudar as abelhas do mundo”,
cida do nível do oceano e as mudanças A aparência da abelha ancestral ainda diz ela, que ressalta a importância da
no clima que ocorreram nos diferentes é uma incógnita: seria grande ou peque- preservação e expansão das coleções de
períodos geológicos. na, vivia em sociedades organizadas em insetos do país, inclusive de abelhas, para
“A separação do supercontinente le- colmeias ou era solitária? Almeida ar- que esse tipo de pesquisa seja ampliado.
vou a uma mudança na configuração risca um palpite: provavelmente seria “A associação entre as abelhas e as flo-
de como as abelhas se distribuíam pelo solitária, já que hoje 85% das espécies res ao longo dos milhões de anos é outro
mundo”, diz Almeida. Os dados sugerem têm esse tipo de hábito, com seus inte- ponto que o trabalho ajuda a pensar”, diz
que, das sete famílias atuais, apenas Me- grantes vivendo em tocas individuais no o biólogo Guilherme Cunha Ribeiro, da
littidae ainda não existia há cerca de 100 chão. Almeida vem investigando tam- Universidade Federal do ABC (UFABC),
milhões de anos na região hoje corres- bém meios de reconstruir a morfologia que também não participou do estudo.
pondente à América do Sul. Talvez gra- ancestral desses insetos. Em artigo publicado em 2022 na revista

A
ças a isso, as abelhas resistiram à queda Cretaceous Research, Ribeiro e colegas
do asteroide tido como responsável pela proposta de que as abelhas descrevem na família Crabronidae uma
extinção em massa dos dinossauros, no surgiram na porção ociden- nova espécie de vespa extinta, que ga-
golfo do México, há cerca de 60 milhões tal da Gondwana, que incluía nhou o nome Exallopterus spectabilis,
de anos. “Elas já estavam espalhadas pelo América do Sul e África, não cujo fóssil foi localizado na formação
planeta, em uma distribuição próxima da é nova. Ela foi aventada pelo Crato, em Nova Olinda, no Ceará. Sua
atual”, pondera Almeida. Ele lembra que, entomólogo norte-americano Charles idade foi estimada entre 125 e 115 mi-
a partir desse período, alguns ambientes Michener (1918-2015) ainda em 1979 em lhões de anos.
tropicais começaram a se expandir para um artigo publicado na revista Annals of “Argumentamos que, se a família Cra-
latitudes mais elevadas, o que permitiu the Missouri Botanical Garden. bronidae, considerada por alguns estu-
que os grupos que viviam nas regiões tro- Michener, “avô” acadêmico de Almei- dos como irmã das abelhas, já existia
picais e subtropicais no hemisfério Sul da, é uma referência no estudo da evo- nesse intervalo, então as abelhas tam-
avançassem rumo à América do Norte, lução das abelhas e chegou a passar um bém teriam que existir”, diz Ribeiro. Co-
Europa, Ásia e norte da África. ano no Brasil em 1956, trabalhando com mo ainda não foram encontrados fósseis
Grupos de abelhas provavelmente che- o entomologista brasileiro Jesus Santiago de abelhas na região, apesar da grande
garam à Austrália entre 70 e 35 milhões Moure (1912-2010), conhecido como pa- abundância de insetos já coletados, ele
de anos atrás, com os primeiros origina- dre Moure, na UFPR em Curitiba. “Qua- sugere que uma das explicações pode ser
dos na América do Sul e percorrido uma renta anos depois, o avanço nas análi- que elas tenham se diversificado mais ao
rota atravessando a Antártida, que fazia ses genéticas e computacionais, além da sul da Gondwana.
a ligação ao sul entre os dois continentes descoberta de muitos fósseis de abelhas, Almeida explica que, em algum mo-
e tinha um clima mais ameno que o atual. permitiu que trouxéssemos mais evidên- mento, vespas carnívoras se tornaram
vegetarianas, passaram a se alimentar de
pólen e, depois disso, surgiram as abe-
Macho de Centris lhas. “Elas se tornaram dependentes das
varia em flor de flores e o principal grupo responsável
rainha-dos-lagos
em Capão da Canoa,
pela polinização.” Por isso, uma das con-
Rio Grande do Sul clusões do trabalho coordenado por ele
é de que a rica biodiversidade de plantas
da América do Sul está relacionada com
o fato de ser o continente onde as abelhas
estão há mais tempo. Elas levaram mi-
lhões de anos para se estabelecer, adap-
FOTOS ADRIANA TIBA E JULIO PUPIM

tar-se e se diversificar. “Se as mudanças


climáticas transformarem os ambientes
de maneira radical, não sabemos se elas
vão conseguir se adaptar”, alerta. n

Os projetos e os artigos científicos consultados para esta


reportagem estão listados na versão on-line.

PESQUISA FAPESP 332 | 59


CONSERVAÇÃO

Comunidade São
Francisco, na Resex
do Médio Purus,
próximo ao
município de Lábrea,
no Amazonas

EFEITOS DA CAÇA
NA AMAZÔNIA
Abate para a subsistência em reservas extrativistas tem impacto
limitado sobre a população de animais silvestres

Felipe Floresti

U
m impasse se instalou anos da restrição autoimposta. Seu objetivo dades humanas. A distâncias maiores, o
atrás em Periquito, uma era investigar o impacto da caça sobre efeito diminui.
das comunidades espa- as populações de mamíferos e aves das “Em outras florestas tropicais, esse
lhadas nas proximidades reservas extrativistas, as Resex, unidades impacto da caça se estende por distân-
e no interior da Reserva de conservação que também se destinam cias maiores, de 7 km a 10 km”, afirma
Extrativista Riozinho da à preservação dos meios de vida e da cul- Sampaio. Segundo o biólogo, a ausência
Liberdade, próxima à cidade de Cru- tura de populações tradicionais por meio de um comércio legal de carne de caça no
zeiro do Sul, no Acre. Percebendo que da exploração sustentável dos recursos Brasil contribui para reduzir o impacto.
precisavam percorrer distâncias cada naturais. Além das 8 comunidades da “No Peru e em países da Ásia e da África
vez maiores para encontrar uma paca, Resex Riozinho da Liberdade, ele e cola- nos quais a caça é permitida, a área em
um veado ou queixada para se alimentar, boradores coletaram dados em outras 91 que as espécies silvestres são afetadas é
os moradores instituíram uma norma: localizadas em mais 8 unidades de con- maior”, conta Sampaio.
de um lado do rio, era permitido caçar servação de uso sustentável do centro e “Em ecossistemas muito fragmenta-
com a ajuda de um cão; do outro, não. O do sudoeste da Amazônia. Publicados em dos, como os encontrados mais ao sul do
auxílio canino tornava a captura mais agosto na revista Biological Conservation, Brasil, esses 5 km podem parecer muito.
eficiente, talvez até demais, exaurindo os resultados sugerem que a caça de sub- Na Amazônia, é pouco”, comenta o ecó-
a oferta de alimento. sistência, permitida exclusivamente para logo australiano William Ernest Magnus-
Ricardo Sampaio, biólogo e analista a alimentação de quem vive nessas áreas, son, pesquisador do Instituto Nacional
ambiental do Instituto Chico Mendes de produz um impacto importante sobre as de Pesquisas da Amazônia (Inpa), que
Conservação da Biodiversidade (ICM- populações de algumas espécies silves- não participou do estudo.
Bio), chegou a Periquito em 2018 em tres apenas nas proximidades – a menos Entre 2013 e 2019, Sampaio e seus co-
meio às discussões sobre a efetividade de 5 quilômetros (km) – das comuni- laboradores percorreram as 100 comuni-

60 | OUTUBRO DE 2023
1 adaptadas a ambientes alterados, foram
encontradas em maior abundância a me-
nos de 5 km das comunidades.
Na opinião dos pesquisadores, as três
últimas espécies, em teoria, poderiam se
tornar candidatas a ter suas populações
manejadas por meio de caça controlada
por essas comunidades, com a possibi-
lidade de comercialização do exceden-
te, o que já é permitido pela legislação
que rege o funcionamento das Resex, a
Instrução Normativa nº 26 do Institu-
to Brasileiro do Meio Ambiente e dos
Recursos Naturais Renováveis (Ibama),
de 2002. Em contrapartida, moratórias
protegeriam as espécies mais sensíveis.

N
o Brasil, a Lei de Proteção
2 da Fauna, de 1967, proibiu
3
a caça e ajudou a contro-
lar o mercado de carne e
de pele de animais silves-
tres, mas deixou no limbo
as populações que vivem em áreas onde
essa é uma das poucas fontes disponíveis
de proteína animal. Embora a norma do
Ibama permita a exploração da fauna
Veado-cinza
em áreas de uso sustentável e a Lei de
(Mazama nemorivaga) Crimes Ambientais, de 1998, determine
e grupo de queixadas que não é crime a caça realizada em “es-
(Tayassu pecari), tado de necessidade, para saciar a fome”,
flagrados por uma
das armadilhas
nenhuma norma define o que é “estado
fotográficas usadas de necessidade”. Assim, fica a cargo dos
no estudo juízes decidir se em determinada situa-
ção a caça ocorreu de modo ilegal ou se
foi para subsistência.
“A caça está proibida há tanto tem-
dades situadas próximas ou no interior dos, os pesquisadores levaram em conta po no país que não temos mais a cultu-
de nove Resex e, em cada uma delas, ins- a influência de mais seis variáveis sobre ra dessa atividade e não sabemos, por
talaram cerca de 10 armadilhas fotográfi- a diversidade e a população de animais exemplo, quantos indivíduos de quei-
cas que permitiram registrar a presença silvestres: número de habitan­tes e densi- xada, veado ou caititu poderiam ser ex-
FOTOS 1 HENRIQUE SANTOS GONÇALVES / CENAP / ICMBIO 2 E 3 RICARDO SAMPAIO / CENAP / ICMB

de 29 espécies de mamíferos e aves. As dade populacional humana na comunida- plorados por quilômetro quadrado sem
câmeras foram posicionadas em linha a de, distância e número de habitantes do afetar a conservação da espécie”, afir-
distâncias que variavam de 75 metros a centro urbano mais próximo, disponibi- ma Chiarello, da USP, um dos autores
15 km do centro de cada comunidade e lidade de proteína pro­veniente da pesca do estudo. “Isso talvez pudesse mudar.”
permaneceram ativas por 42 dias, em mé- e localização den­tro ou fora da Resex. O trabalho de Sampaio ajudou a co-
dia. “Eram necessários quase uns 30 dias De longe, o fator que mais contribuiu munidade de Periquito a tomar uma de-
para instalar as câmeras em cada Resex e para diminuir a diversidade de espécies cisão. Os dados mostraram que a abun-
mais 30 para retirá-las”, lembra Sampaio. e o tamanho de suas populações foi a dância e a diversidade de espécies eram
Os registros das armadilhas foto­grá­ proximidade das comunidades rurais. A maiores na margem do rio em que os
ficas foram usados por ele e pelos pes­ menos de 5 km dos povoados, o tamanho cães haviam sido banidos. “Depois de um
quisadores Ronaldo Morato, também do da população das 29 espécies silvestres ano, eu recebi uma ata de uma reunião
ICMBio, e Adriano Chiarello, da Facul­ era menor do que a 15 km de distância. em que eles reforçavam o acordo de não
dade de Filosofia, Ciências e Letras de Treze dessas espécies apresentaram uma usar cachorros. Eles também passaram a
Ribeirão Preto da Universidade de São redução superior a 50%. As populações controlar a reprodução dos cães”, conta
Paulo (FFCLRP-USP), para calcular a di- de anta, mutum, queixada, veado-cinza e o pesquisador. n
versidade de espécies e o número de indi- cutiara sofreram algum grau de declínio
víduos a diferentes distâncias das comu- mesmo a distâncias maiores, enquanto O projeto e os artigos científicos consultados para esta
nidades. Além da proximidade dos povoa- as de veado-vermelho, paca e cutia, mais reportagem estão listados na versão on-line.

PESQUISA FAPESP 332 | 61


AMBIENTE

MICROPLÁSTICOS
POR TODA A COSTA
Pesquisadores
analisaram ostras
e mexilhões para
verificar a ocorrência
de microplásticos
no estuário de Santos,
no litoral paulista

62 | OUTUBRO DE 2023
Estuário de Santos se apresenta como um dos locais com
a mais alta concentração desses resíduos, já encontrados na praia,
na água e no fundo do mar, do Pará ao Rio Grande do Sul

Domingos Zaparolli

A
costa brasileira está acumulando tes industriais e esgoto residencial levados por
microplásticos, partículas plásti- emissários submarinos da região.
cas com diâmetro inferior a 5 mi- A variedade de elementos geradores de micro-
límetros (mm), e nanoplásticos, plásticos é enorme, mas o principal item encon-
que medem menos de 0,001 mm. trado no estuário paulista foi fibra têxtil sintética
É o que revela uma série de estu- composta por poliamidas, elastanos e poliéster,
dos feitos por diferentes grupos possivelmente oriunda de fábricas de tecidos,
de pesquisa do país nos últimos confecções e também do desgaste gerado na la-
anos. Uma investigação recente, vagem doméstica de roupas.
realizada com apoio da FAPESP, estabeleceu o “A água utilizada para lavar os tecidos é dire-
estuário de Santos, no litoral paulista, como um cionada ao esgoto, que não é tratado, mas despe-
dos locais do mundo mais contaminados por jado no mar pelo emissário submarino”, obser-
microplásticos, numa comparação de amostras va o biólogo marinho Ítalo Braga de Castro, do
colhidas em 40 países. Com o objetivo de veri- Instituto do Mar da Universidade Federal de São
ficar a ocorrência desse resíduo no ambiente, os Paulo (IMar-Unifesp) e coordenador do estudo,
pesquisadores analisaram ostras e mexilhões, realizado pelo aluno Victor Vasques Ribeiro du-
animais que filtram a água para se alimentar. rante seu mestrado.
Artigo publicado em maio na revista científica Os microplásticos podem ser divididos em dois
Science of the Total Environment revelou que grupos. Os primários, que já são fabricados em
foram detectadas, em média, 12 a 16 partículas pequenas dimensões, como pellets, granulados
plásticas por grama (g) de tecido dos moluscos, milimétricos empregados pela indústria de trans-
uma quantidade grande, considerando que os formação plástica, e os utilizados como esfoliante
animais pesam em média 5 g. em cosméticos e pastas dentárias. O outro grupo
Invisíveis a olho nu, micro e nanoplásticos não são os microplásticos secundários, resultado da
contaminam apenas a costa brasileira. Já foram degradação de plásticos maiores em microfrag-
detectados em rios, no solo onde são cultivados mentos. Nesse caso, as origens são as mais diver-
alimentos e no ar que respiramos (ver Pesquisa sas. Sacolas, tecidos, garrafas plásticas, bitucas
FAPESP nº 281). Absorvidos involuntariamente de cigarro, pneus e isopor são alguns exemplos.
por seres vivos, chegam ao sistema digestivo,
aos pulmões, à corrente sanguínea e à placenta DO PARÁ AO RIO GRANDE DO SUL
FOTO LÉO RAMOS CHAVES / REVISTA PESQUISA FAPESP

de mulheres grávidas. Cientistas do mundo todo Em um dos primeiros estudos de abrangência


estão dedicados à tarefa de identificar o quanto nacional sobre a presença de microplásticos na
esses resíduos estão dispersos na natureza e os costa brasileira, o biólogo marinho Tommaso
riscos ao ambiente e à saúde de humanos e ani- Giarrizzo, professor visitante do Instituto de
mais provocados por sua presença. Ciências do Mar da Universidade Federal do Cea-
Não foi surpresa o nível abundante das partí- rá (Labomar-UFC), colheu amostras de areia de
culas no estuário de Santos, cidade com elevada praia em 22 localidades do Pará ao Rio Grande
densidade urbana e que abriga o maior porto do do Sul. Depois, quantificou e caracterizou os mi-
país. O litoral santista recebe água de rios que croplásticos encontrados de acordo com os ma-
atravessam diversas cidades, bem como efluen- teriais que os originaram e o perfil de ocupação

PESQUISA FAPESP 332 | 63


humana das localidades onde foram coletados, leve e se dispersa com grande facilidade. Resí-
considerando a proximidade de centros urbanos, duos gerados em uma localidade circulam e logo
a frequência turística e a imediação de portos chegam a outras e também às águas profundas.
ou de indústrias da cadeia produtiva do petró- Seus efeitos para a vida marinha ainda estão sen-
leo. Um manuscrito com os principais achados do estudados”, diz o biólogo Marcelo de Oliveira
encontra-se em fase de análise na Science of the Soares, do Labomar e coordenador da pesquisa.
Total Environment. “O microplástico é uma das causas do branquea-
“Nosso estudo tem a intenção de dar uma con- mento e da morte de corais, não só o aquecimento
tribuição para a criação de um protocolo de diag- global, mas ainda precisamos entender qual é a

H
nóstico, análise e monitoramento da presença de participação de cada fator no problema.”
microplásticos no litoral do país”, diz Giarrizzo,
que também já estudou a ocorrência de fragmentos á também estudos na costa flumi-
plásticos nos rios amazônicos e na costa da Ama- nense, especificamente na baía de
zônia. Em artigo publicado em outubro de 2020 Guanabara. Em um artigo de 2016,
na revista científica Marine Pollution Bulletin, um publicado na revista Ocean & Coas-
grupo da Universidade Federal do Pará (UFPA), tal Management, pesquisadores do
onde Giarrizzo foi professor visitante, relatou mi- Instituto de Geociências da Univer-
croplásticos em resíduos estomacais de arraias- sidade Federal Fluminense (UFF)
-brancas (Hypanus guttatus) pescadas na região. concluíram que o nível desse micro-
No Ceará, o Labomar-UFC mapeou em 2020 poluente muda conforme a estação
os 573 quilômetros da costa cearense e detec- do ano. Durante o verão, as concentrações de
tou as partículas plásticas por todo o litoral. As microplásticos variaram de 12 a 1.300 partículas
maiores concentrações foram identificadas nas por metro quadrado (m2) nas praias, informaram
praias da capital, Fortaleza. “O microplástico é os autores no trabalho, enquanto nos meses de

COMO ELES CHEGAM AO MAR


PRIMÁRIOS
Conheça a origem dos microplásticos e o caminho até o oceano
Liberados no ambiente
como pequenas partículas

n Microfibras de roupas n Microesferas n Estações de tratamento n O descarte n Pellets, esferas usadas como
sintéticas foram o plásticas de de esgoto podem reter inadequado de matéria-prima para a produção
principal item encontrado cosméticos e de parte dos microplásticos, pellets nos processos de plásticos maiores
no estuário de Santos. produtos de higiene que ficam misturados industriais também
Elas se soltam durante seguem por efluentes no lodo, usado depois é fonte de n Microesferas adicionadas
a lavagem e acabam até estações de na agricultura fragmentos plásticos em cosméticos, pastas dentais,
chegando aos rios, de tratamento de água, esfoliantes e em outros
onde seguem para o mar chegando à população n O lixo plástico produtos de higiene
deixado na rua,
em lixões e aterros
sanitários é SECUNDÁRIOS
levado pela chuva Resultam da degradação
até os rios de objetos maiores

n Fibras oriundas de roupas


sintéticas, carpetes e tapetes,
e liberadas pelo atrito de pneus
com o asfalto
n A perda acidental de n Resíduos plásticos n Redes de n Micropartículas
contêineres e material descartados por pesca perdidas liberadas pelos pneus dos n Fragmentos de sacolas
plástico, como pellets, plataformas de ou abandonadas carros são levadas pelo de supermercado, garrafas PET
durante o transporte petróleo podem se fragmentam vento e pela chuva, e redes de pesca
marítimo contribui para transformar-se em em partículas depositando-se nos cursos
o problema microplásticos micrométricas de água das cidades n Resíduos plásticos expostos
às intempéries ambientais
(raios UV, temperatura,
umidade, ação das ondas)

n Restos de material
empregado no cultivo
agrícola, como estufas, telas de
sombreamento e filmes para
FONTES ONU, GESAMP E ENTREVISTADOS
cobertura do solo

64 | OUTUBRO DE 2023
Detritos e lixo plástico
se acumulam na
baía de Guanabara,
no Rio de Janeiro

inverno, o nível caiu para 3 a 743 partículas por associada a esses poluentes plásticos é seu efeito
m2. Isso ocorre porque, no verão, estação das chu- na cadeia alimentar marinha. Os zooplâctons,
vas no Sudeste brasileiro, mais resíduos plásticos organismos na base da pirâmide, ingerem na-
são lançados na baía de Guanabara levados pelas nopartículas plásticas, diz Sá, e são consumidos
dezenas de rios e riachos que deságuam nela. por pequenos peixes e crustáceos. Estes, por sua
Outra investigação, conduzida por cientistas vez, servem de alimento para animais marinhos
do Instituto de Biologia Marinha da Universi- maiores e também fazem parte da dieta humana.
dade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), mos- “Hoje há uma grande redução da biodiversidade
trou que existem, em média, cinco partículas marinha no mundo, mas é muito difícil determinar
de microplásticos flutuantes por metro cúbico o quanto dessa perda é gerada por microplásticos
(m3), enquanto em sedimentos do fundo da baía e quanto é resultado da ação de outros poluentes
de Guanabara o nível é de 26 mil partículas por ou da combinação de efeitos desses diferentes
m2 nas áreas estudadas. “A altíssima concentra- contaminantes”, diz o pesquisador, destacando
ção de microplásticos no sedimento da baía de que diversos estudos evidenciam a perda de bio-
Guanabara, em comparação com a maioria dos diversidade por poluição plástica. Sá coordenou
estudos ao redor do mundo, sugere alto risco a pesquisa com zooplâncton, executada durante

A
de contaminação para organismos bentônicos o mestrado de sua aluna Jennifer Bernardino.
e peixes demersais, pois podem estar ingerindo
microplásticos”, concluem os autores do estudo lém de gerar problemas para o apa-
FOTO LEONARDO MARTINS / GETTY IMAGES INFOGRÁFICO ALEXANDRE AFFONSO / REVISTA PESQUISA FAPESP

em artigo de 2019 na Marine Pollution Bulletin. relho digestivo quando ingerido, o


Organismos bentônicos e peixes demersais vi- microplástico pode causar intoxica-
vem em contato constante com o fundo do mar. ção. Fuligens, hidrocarbonetos, par-
“Um terceiro trabalho de nosso grupo, também tículas de metais tóxicos, pesticidas
na mesma baía, comparou a elevada concentração e outros poluentes aderem ao mate-
de itens plásticos com a densidade de organismos rial quando entram em contato com
[de mesmas dimensões] presentes no sedimento, ele. Com isso, os fragmentos passam
conhecidos como macrobentos. Encontramos a transportar esses poluentes.
mais fragmentos plásticos que poliquetas [tipo As partículas plásticas ainda carregam em
de verme aquático] e quantidades similares de sua composição elementos químicos potencial-
microplásticos com crustáceos – ambos os ani- mente nocivos quando adsorvidos. Isso porque a
mais são itens importantes na alimentação de maioria dos plásticos é produzida com polímeros
peixes e siris”, destaca a bióloga Gisela Mandali sintéticos, elaborados a partir de derivados de
de Figueiredo, que conduziu os estudos. “Logo, petróleo. Eles têm propriedades físicas distin-
esses organismos têm grande risco de ingerir tas dependendo de suas funções e aplicações e,
microplásticos ao se alimentar, por confundi-los portanto, apresentam diferentes composições
com suas presas ou, incidentalmente, por serem de insumos e aditivos químicos que geram ca-
abundantes no sedimento.” racterísticas como rigidez, maleabilidade, flexi-
Para o oceanólogo Fabian Sá, do Departamento bilidade, cor e resistência.
de Oceanografia e Ecologia da Universidade Fe- Uma substância química utilizada para conferir
deral do Espírito Santo (Ufes), uma preocupação rigidez e transparência às formulações plásticas é

PESQUISA FAPESP 332 | 65


o bisfenol-A (BPA), considerado potencialmente Em outra vertente de pesquisa, uma equipe do
cancerígeno em certas circunstâncias e, por isso Instituto de Ciência e Tecnologia da Universidade
mesmo, proibido de ser usado em vários países, Estadual Paulista (Unesp), em São José dos Cam-
inclusive no Brasil, na fabricação de mamadeiras. pos, investigou a contaminação por microplásticos
Outro exemplo é o ftalato, ingrediente empre- em piscinões da Grande São Paulo, reservatórios
gado para tornar maleável o produto final, mas de detenção que recebem e regulam a vazão da
potencialmente prejudicial à saúde. água da chuva nas cidades. Uma avaliação em
Especialistas advertem que os impactos de uma estrutura localizada no bairro paulistano de
micro e nanoplásticos vão além dos efeitos fi- Aricanduva detectou 109 mil unidades de micro-
siológicos gerados pela ingestão das partículas. plásticos por quilo (kg) de sedimentos recolhidos
A intoxicação pode ocorrer mesmo sem seu con- no leito do local. Do material encontrado, 53%
sumo direto, como efeito da lixiviação das partí- eram resíduos de pneus. A borracha também gera
culas. Lixiviação é o processo de dissolução de micropartículas danosas ao ambiente.
um material pela ação da água. “Um pellet plás- Em uma comparação com amostras coletadas
tico que cai de um navio cargueiro no mar estará pelo grupo em um reservatório em Poá (SP), em
liberando toxinas em 24 horas”, alerta o biólogo 2020, a presença de microplásticos no bairro pau-
marinho Caio Rodrigues Nobre, autor de um ar- listano de Aricanduva é quase o dobro. Em Poá,
tigo sobre o tema publicado em 2015 na Marine a concentração do contaminante foi de 57,5 mil
Pollution Bulletin. unidades por kg de resíduo. “Quanto mais densa
Nobre verificou que a decomposição de pel- a urbanização de uma região, maior a geração de
lets plásticos no mar gera toxicidade suficiente microplásticos e, consequentemente, o impacto
para impactar o desenvolvimento embrionário ambiental”, diz o engenheiro civil especializado
do ouriço-do-mar (Lytechinus variegatus). “Al- em saneamento básico, Rodrigo Moruzzi, coor-
gumas larvas de ouriço expostas aos pellets plás- denador do estudo, publicado na revista Environ-
ticos demoram para crescer, outras não crescem mental Pollution em dezembro de 2022. A den-
adequadamente e muitas nem mesmo se tornam sidade demográfica de Poá, de 6 mil habitantes
ouriços”, relata o biólogo, destacando que, du- por quilômetro quadrado (km2), é pouco menos
rante o estudo, isolou o efeito do pellet de outros da metade da verificada no bairro de Aricanduva
fatores que poderiam afetar o desenvolvimento (12,8 mil habitantes por km2).
embrionário do ouriço. Segundo Nobre, os efei- As águas pluviais que recebem e carregam mi-
tos tóxicos dependem da composição de cada croplásticos nas áreas urbanas das cidades não são
microplástico e não são idênticos nos diferentes destinadas para as estações de tratamento de esgo-
organismos marinhos. Uma compreensão maior to, mas despejadas diretamente em rios. As águas
do problema exigirá que sejam realizados estu- dos rios se direcionam ao mar, mas muitas vezes

D
dos sobre diversos elementos da fauna aquática. abastecem estações de tratamento para o consumo
da população. Essas estações, contudo, não foram
urante seu doutorado, com bolsa da dimensionadas para lidar com o microplástico.
FAPESP, Nobre estudou os efeitos “Não existem protocolos estabelecendo proce-
de microplásticos que adsorvem o dimentos para a retirada do material e os valores
bactericida triclosan, ingrediente máximos de microplásticos permitidos na água
de cosméticos e produtos de higiene potável”, constata Moruzzi. Mesmo as estações
pessoal, sobre ostras Crassostrea e de tratamento de esgoto não têm protocolos de-
caranguejo-uçá (Ucides cordatus), finidos para a remoção de microplásticos dos
como detalhado em artigos publica- efluentes. “O material não é alvo dos processos
dos nas revistas científicas Archives estabelecidos. É removido eventualmente por
of Environmental Contamination and Toxicology, tecnologias que visam reter outros poluentes em
em 2020, e Chemosphere, em 2022. Adsorção é suspensão”, afirma.
o processo pelo qual moléculas ou íons ficam Moruzzi usa um argumento comum entre os
retidos na superfície de um material por meio pesquisadores da área para definir a dispersão
de interações químicas ou físicas. das partículas plásticas na natureza. “Só não tem
“Nos dois casos, os efeitos contaminantes dos microplástico onde não se mede. Medindo, en-
microplásticos expostos ao triclosan foram maio- contra-se”, salienta. Apesar da existência dos
res do que a exposição a microplásticos comuns. microplásticos ser conhecida desde os anos 1970,
Também foi possível verificar que os efeitos no- apenas nos últimos 15 anos se intensificaram as
civos sobre as brânquias dos caranguejos foram pesquisas científicas que buscam dimensionar o
significativamente maiores do que os observados problema e entender os riscos gerados à vida. n
nas ostras”, descreve o biólogo, atualmente em
estágio de pós-doutorado no Instituto do Mar Os projetos e os artigos científicos consultados para esta reportagem
da Unifesp. estão listados na versão on-line.

66 | OUTUBRO DE 2023
Diferentes tipos
de microplástico
encontrados
em peixes e no
sedimento marinho
da costa brasileira

A
IMPACTOS
s pesquisas sobre os impac- que 77% dos doadores de sangue do país
tos dos microplásticos na carregavam grande número de partículas
saúde humana ainda são plásticas no sangue.

SOBRE
incipientes. Uma equipe Em um estudo mais recente, divul-
do Departamento de Pato- gado em julho na revista científica En-
logia da Faculdade de Me- vironmental Science & Technology, uma
dicina da Universidade de equipe médica do Hospital Anzhen, de

A SAÚDE
São Paulo (FM-USP), em Pequim, capital da China, encontrou
um dos primeiros estudos pela primeira vez microplásticos em
nesse campo, detectou esses resíduos em corações humanos. Ao avaliar o múscu-

HUMANA
pulmões humanos, como detalhado em lo cardíaco de 15 pacientes que seriam
artigo publicado na Journal of Hazardous submetidos a uma intervenção cirúrgica,
Materials em 2021 (ver Pesquisa FAPESP os médicos encontraram nove diferen-
no 305). “Os microplásticos estão no ar e tes tipos de plástico em cinco tecidos
é inevitável que sejam inalados. Vimos cardíacos distintos.
Estudos com culturas que eles chegam aos pulmões, mas ainda O Programa Ambiental das Nações
precisamos saber qual é o impacto na Unidas (Pnuma) calcula que a huma-
de diferentes tipos saúde”, diz a médica patologista Thais nidade produza por volta de 460 mi-
Mauad, coordenadora do estudo. lhões de toneladas de plástico por ano
celulares mostram que Segundo ela, pesquisas com culturas e esse total tem potencial de triplicar
microplásticos podem que simulam tecidos humanos indicam até 2060. Boa parte do resíduo plástico
que os fragmentos plásticos causam le- acaba parando no mar – apenas o Brasil
causar lesões estruturais sões celulares e podem gerar inflama- lança 3,44 milhões de toneladas de lixo
ções, mas ainda não é possível determi- plástico no litoral por ano (ver Pesqui-
e inflamatórias nar a quantidade de partículas necessá- sa FAPESP nº 321). De acordo com os
rias para provocar uma lesão grave ou especialistas ouvidos por Pesquisa FA-
Domingos Zaparolli mesmo o impacto da absorção de adi- PESP, é necessária uma solução global
tivos químicos presentes nos plásticos. para o problema. Por ora, adotar a cha-
Em janeiro de 2021, cientistas italianos mada regra dos 3R da sustentabilidade
da Universidade Politécnica de Marche, – reduzir, reutilizar e reciclar –, apesar
em Ancona, relataram na Environment de ser considerada por eles como ape-
International a presença de microplás- nas um paliativo, já seria um avanço. As
ticos na placenta de mulheres grávidas. atenções estão voltadas para o Tratado
Apesar de reconhecerem que os efei- Global contra a Poluição Plástica, que a
IMAGENS TOMMASO GIARRIZZO

tos eram desconhecidos, os cientistas Organização das Nações Unidas (ONU)


alertaram para o risco de malformação pretende concluir com o apoio de 175
dos fetos, que ainda precisavam ser mais países até o final de 2024. n
bem estudados. Em maio de 2022, pes-
quisadores da Universidade Vrije, em Os projetos e os artigos científicos consultados para esta
Amsterdã, nos Países Baixos, revelaram reportagem estão listados na versão on-line.

PESQUISA FAPESP 332 | 67


ENERGIA

VIDA NOVA
PARA
O LÍTIO

Os diversos
componentes das
baterias de lítio;
e o óxido metálico
recuperado na forma
de um pó preto

68 | OUTUBRO DE 2023
Pesquisadores desenvolvem técnicas para separar
e reciclar metais contidos em baterias usadas
em smartphones, notebooks e veículos elétricos

Domingos Zaparolli

E
ssenciais para promover a mobilida- mento do pack. O procedimento mais tradicional
de elétrica, as baterias de íons-lítio prevê a detecção das células que ainda estão aptas
conseguem concentrar muita energia a formar um novo pacote, dando origem a uma
em um espaço reduzido e pesam bem bateria de segunda vida. As células que chegaram
menos do que modelos que utilizam ao fim de sua vida útil são encaminhadas para o
outros materiais. Essas duas caracte- descarte. São essas células o foco do trabalho dos
rísticas – alta densidade energética pesquisadores do Cast.
e leveza – fazem com que sejam as A sequência do processo desenvolvido na
mais utilizadas não apenas em veí- Unesp, conforme descrição de Oliveira, envolve
culos elétricos, mas também em smartphones a separação de todos os componentes das células,
e notebooks. Ao chegarem ao fim da vida útil e como os plásticos contidos no invólucro e usa-
serem descartadas, contudo, as baterias de lítio dos como isolante entre a estrutura metálica e o
transformam-se em um problema ambiental. Para material interno. Esse último é constituído pelo
contornar essa situação, grupos de pesquisa em cátodo (polo positivo da bateria), uma lâmina de
todo o mundo estudam formas de reciclar e rea- alumínio onde estão os óxidos de lítio e de co-
proveitar os metais que compõem esses módulos, balto, pelo ânodo (polo negativo), uma lâmina de
como cobalto, lítio, cobre, grafite e alumínio. No cobre envolvida em grafite, e por uma membrana
Brasil, um dos trabalhos mais avançados é con- plástica que faz a separação entre os dois polos.
duzido no Center for Advanced and Sustainable Por estar em contato com ambos, essa membrana
Technologies (Cast), da Faculdade de Engenharia pode conter grafite e óxidos metálicos.
da Universidade Estadual Paulista (Unesp) em O desmanche da célula é feito manualmente,
São João da Boa Vista (SP). com o auxílio de máquinas para cortar. As folhas
“Nossas técnicas possibilitam a recuperação e metálicas obtidas são submetidas a um banho
o reaproveitamento de materiais com potencial com uma solução química aquosa criada para
tóxico e estimulam a economia circular. Com isso, remover o cobre e o alumínio, que já saem do
é possível reduzir o impacto ambiental que seria processo prontos para a reutilização. Já o grafite
gerado por novas atividades minerais”, destaca o e os óxidos de lítio e de cobalto com alto grau de
engenheiro ambiental José Augusto de Oliveira, pureza são obtidos após a filtração das respectivas
coordenador do Cast. As metodologias em de- soluções. O processamento da membrana exige,
FOTO LÉO RAMOS CHAVES / REVISTA PESQUISA FAPESP

senvolvimento recorrem a processos de hidro- igualmente, uma filtração e uma etapa posterior
metalurgia, que preveem a lixiviação, ou seja, a de separação para a purificação dos óxidos me-
separação dos metais contidos nas baterias por tálicos presentes nela.
sua contínua dissolução em meio aquoso. “Os reagentes químicos utilizados são de fon-
Uma bateria de íons-lítio é composta por vá- tes orgânicas. Foram escolhidos para minimi-
rias pequenas pilhas, chamadas de células, que zar impactos ambientais e maximizar o benefí-
formam um pacote maior, ou pack, no jargão dos cio econômico e a segurança laboral”, explica a
engenheiros (ver Pesquisa FAPESP no 261). A pri- química Mirian Paula dos Santos, pesquisadora
meira etapa de qualquer processo de reciclagem responsável pelo processo de extração dos óxi-
ou reaproveitamento de baterias é o desmembra- dos metálicos. “A tecnologia está sendo aprimo-

PESQUISA FAPESP 332 | 69


rada. Só no final do processo, vamos conseguir nal conta com apoio da FAPESP por meio do pro-
calcular os impactos ambientais e a viabilidade grama Pesquisa em Parceria para Inovação Tec-
econômica”, ressalta. Por ora, diz ela, a técnica nológica (Pite).

O
está validada em escala laboratorial. Outra técnica para reciclagem das baterias de
íons-lítio em desenvolvimento no Cast segue uma
potencial econômico da metodo- rota não convencional, que utiliza água em condi-
logia, de acordo com Oliveira, é fa- ção supercrítica como solvente para recuperar os
vorável. “Estudos iniciais indicam óxidos metálicos. “Para isso, a água deve ser sub-
que a venda do óxido de lítio gera metida a uma temperatura superior a 374 graus
recursos suficientes para cobrir os Celsius [oC] e a uma pressão de 240 atmosferas
gastos da reciclagem”, diz. A etapa [atm]. Sob essas condições, já não há mais diferença
atual de desenvolvimento da técnica, entre seu estado líquido e gasoso”, descreve o en-
que gerou um depósito de patente no genheiro químico Lúcio Cardozo Filho, responsá-
Instituto Nacional da Propriedade vel pelo projeto de pesquisa. “A água supercrítica,
Industrial (INPI) em 2020, proporciona uma taxa submetida a temperatura e pressão extremas, tem
de recuperação de 90% do óxido de lítio com 98% uma reatividade adequada para processar, tratar
de pureza; quando contaminado com grafite, a e extrair compostos inorgânicos, como os óxidos
taxa é de 50% de pureza. Os componentes res- metálicos encontrados nas baterias de lítio.”
tantes da bateria são totalmente recuperáveis, de Embora levar a água à condição supercrítica
acordo com artigo publicado em 2021 na revista não seja trivial, o fluido utilizado, segundo Car-
científica Resources, Conservation and Recycling. dozo, não precisa ser de boa qualidade, podendo
Esses resultados permitiram à Unesp fechar ser água de reúso, e o processo não emprega ne-
um acordo de desenvolvimento tecnológico e de nhum reagente químico adicional para a extração
licenciamento de uma versão de seu processo de dos óxidos metálicos. “O sucesso na separação
reciclagem, com novos reagentes, com uma empre- dos metais supera 98%”, informa o engenheiro.
sa brasileira com atuação global. Em um primeiro O resultado alcançado é uma mistura de óxidos
momento, o objetivo é utilizar a tecnologia para metálicos, conhecido como black mass, que ainda
reciclar as baterias dos veículos que ela produz. precisará passar por um processo de separação
Posteriormente, antecipa Oliveira, a companhia, e purificação comumente usado na hidrometa-
cujo nome não pode ser revelado por questões lurgia convencional. “Nosso próximo desafio
contratuais, avalia com a Unesp uma estratégia é conseguir recursos adicionais para escalar o
Campo de mineração
comercial para viabilizar a oferta do serviço de processo”, antecipa Cardozo Filho.
de lítio no deserto reciclagem de forma abrangente a terceiros. A A reciclagem de baterias de íons-lítio é um pro-
do Atacama, no Chile cooperação entre a universidade e a multinacio- cesso mais sustentável e econômico do que a reti-
1

70 | OUTUBRO DE 2023
Zanin explica que os principais processos de
reciclagem empregados no mundo são os piro-
metalúrgicos e os hidrometalúrgicos, que, se-
gundo o pesquisador, alcançam uma eficiência
superior a 80%. Na pirometalurgia, a incineração
do material pode liberar gases tóxicos, o que é
indesejável.
Já os processos de hidrometalurgia, apesar de
consumirem água, poluem menos e demandam
menos energia. “O gasto de água é bem menor do
que o da mineração do lítio. Nos processos de re-
ciclagem por hidrometalurgia, utiliza-se em torno
de 5 litros [L] de água para a obtenção de 100 gra-
mas [g] de sal de lítio. Na mineração, o consumo
de água pode variar de 50 a 90 L para se obter

A
100 g de carbonato de lítio”, informa Oliveira.

remanufatura de baterias de lítio


em novos packs com o aproveita-
2
mento das células que perderam
Baterias de lítio rada dos minerais da natureza. No caso do lítio, são rendimento, mas ainda não che-
ao fim da vida útil necessários 100 quilos (kg) do mineral bruto para garam ao fim de seu ciclo de vida,
desmontadas e prontas
para reciclagem em uma
produzir 1,6 kg de lítio. Já um processo de recicla- é foco de um projeto que o centro
empresa de Hamburgo, gem é capaz de recuperar 7 kg de óxido de lítio de inovação CPQD desenvolve em
na Alemanha em cada 100 kg de bateria. A extração do minério Campinas (SP) em parceria com a
tem alto impacto ambiental pelo uso intensivo de CPFL Energia e a BYD, fabricante
água, além de o refino ser eletrointensivo, com chinesa de baterias e veículos elétricos.
os materiais rochosos aquecidos a temperaturas Como explica o engenheiro Aristides Ferreira,
acima de 1.000 ºC, o que consome muita energia. gerente de soluções de sistemas de energia do
A demanda global por armazenamento em ba- CPQD, as baterias utilizadas pelos veículos elé-
terias de lítio deve crescer de 700 gigawatts-hora tricos são tracionárias, ou seja, são usadas para
(GWh) em 2022 para 4,7 mil GWh em 2030, de a tração do veículo e, para isso, são submetidas
acordo com estudo da consultoria McKinsey. O a condições operacionais intensas. Após um pe-
aumento da demanda, dizem especialistas, faz ríodo que varia de 8 a 10 anos, dependendo do
com que a recuperação e o reaproveitamento dos uso, perdem capacidade de armazenar energia
materiais metálicos que formam essas baterias e gerar a tração necessária para movimentar um
se imponham. veículo. Mas ainda podem ser úteis em aplicações
O setor automotivo é o principal destino das menos exigentes, como baterias estacionárias,
FOTOS 1 LFREEDOM_WANTED / ALAMY / FOTOARENA 2 MARKUS SCHOLZ / PICTURE ALLIANCE VIA GETTY IMAGES

baterias de lítio, com cerca de 80% da produção sistemas de backup e módulos de armazenamen-
sendo direcionada às montadoras. Uma bateria to de energia de fontes de geração solar e eólica,
veicular típica para veículos elétricos pesa mais que são intermitentes. Permitem, por exemplo,
de 200 kg e tem vida útil entre 8 e 10 anos. A acumular a energia gerada durante o dia em um
Agência Internacional de Energia (AIE) estima painel solar fotovoltaico para o aproveitamen-
que a produção de lítio precisará crescer quase to noturno ou a energia de fonte eólica quando
dez vezes até 2050 para atender ao aumento da não há vento.
demanda mundial do produto. O projeto do CPQD envolveu a criação de algo-
“A produção de insumos corre o risco de não ritmos capazes de verificar a qualidade das células
acompanhar a crescente demanda global. O re- retiradas de uma bateria veicular de íons-lítio e
sultado é que poderemos ter escassez de baterias determinar sua longevidade, sem a necessidade de
até 2030”, alerta o físico Hudson Zanin, da Fa- longos ensaios laboratoriais, facilitando a seleção
culdade de Engenharia Elétrica e Computação das melhores células em uma segunda vida em
da Universidade Estadual de Campinas (Feec- baterias estacionárias. O CPQD já desenvolveu
-Unicamp), coordenador de uma pesquisa que um protótipo de bateria de segunda vida, que se
visa desenvolver uma bateria à base de sódio encontra em fase de testes em um laboratório que
(ver Pesquisa FAPESP no 329). “A reciclagem e a possui planta de geração de energia fotovoltaica
integração progressiva dos materiais recupera- na Unicamp. n
dos nas novas baterias oferecem vantagens tanto
do ponto de vista ambiental quanto econômico, O projeto e o artigo científico consultados para esta reportagem
garantindo o suprimento de insumos”, afirma. estão listados na versão on-line.

PESQUISA FAPESP 332 | 71


U
BIOTECNOLOGIA m sensor descartável de O processo de fabricação do disposi-
baixo custo e uso simples, tivo, um pequeno retângulo de papelão
feito de papelão e conten- medindo 15 milímetros (mm) de largura
do nanopartículas de ouro, por 20 mm de comprimento e 1 mm de
poderá vir a ser uma ferra- espessura, é praticamente isento de rea-
menta útil para monitorar a gentes químicos, comumente utilizados
qualidade da água consumi- na fabricação de sensores, e quase total-
da pela população. Em fase mente automatizado. Além do papelão,
final de desenvolvimento, o que pode ser proveniente de um processo
dispositivo analítico foi projetado pela de reciclagem, os pesquisadores usaram
equipe do químico Thiago Regis Longo cola adesiva, spray impermeabilizante e
Cesar da Paixão, do Instituto de Química um pequeno volume de solução de ouro
da Universidade de São Paulo (IQ-USP) e (30 microgramas). Um laser de dióxido
coordenador do Laboratório de Línguas de carbono (CO2) aplicado sobre o pa-
Eletrônicas e Sensores Químicos da mes- pelão é responsável por criar as trilhas
ma instituição. A pesquisa, apoiada pela condutoras, a base dos eletrodos de de-
FAPESP, resultou em um artigo publica- tecção. A solução de ouro é adicionada às
do no início deste ano na revista científi- trilhas e, em seguida, uma nova aplicação
ca Sensors & Diagnostics. Um pedido de de laser sintetiza as nanopartículas de
patente do processo de fabricação está ouro (ver infográfico ao lado).
sendo elaborado pelo grupo. “As nanopartículas são responsáveis por
“Produzir sensores baratos que pos- melhorar o desempenho do dispositivo”,
sam estar espalhados pelo Brasil possi- explica o pesquisador. “O sensor realiza
bilita o monitoramento em tempo real medidas de corrente elétrica oriunda de
da água servida à população. Os dados uma reação eletroquímica que ocorre na
colhidos podem orientar a criação de superfície condutora ao se aplicar um po-
políticas públicas por agentes governa- tencial elétrico. Quanto maior a concen-

TESTE DE
mentais e ajudar a tomada de decisão tração da substância química que se quer
das empresas de tratamento de água”, identificar na amostra de água colocada no
destaca Paixão. O custo estimado do sen- sensor, maior será a corrente gerada.” O
sor, sujeito à confirmação, é de R$ 0,50. potencial elétrico que deve ser aplicado ao

QUALIDADE
Sensor de papelão modificado
com partículas de ouro
poderá ajudar a monitorar
a qualidade da água
consumida pela população
Yuri Vasconcelos

Laser de dióxido de
carbono incide sobre
o papelão criando
uma trilha condutora
que dará origem aos
eletrodos do sensor

72 | OUTUBRO DE 2023
COMO O NOVO SENSOR É FABRICADO
Processo é quase todo automatizado e leva por volta de 5 minutos para ser concluído

1 2 3 4
PREPARAÇÃO DO CRIAÇÃO DO ELETRODO SINTETIZAÇÃO DAS IMPERMEABILIZAÇÃO
PAPELÃO DE DETECÇÃO NANOPARTÍCULAS DA SUPERFÍCIE

Duas folhas de papel kraft Laser de dióxido de Nova aplicação de laser Uma cola de silicone
são unidas com cola e colocadas carbono aplicado no papel é feita para sintetizar é depositada na superfície
em uma prensa térmica. converte a celulose em as nanopartículas de do sensor a fim de
Um spray impermeável de carbono e cria trilha ouro. Nesse processo criar uma barreira para
verniz branco é aplicado para condutora que dá origem a os íons de ouro confinar a solução da
evitar a absorção da solução da três eletrodos de detecção. são convertidos amostra de água
amostra pelo papel durante a Adiciona-se uma solução em ouro metálico a durante o processo de
realização das medidas de ouro à trilha partir da energia do laser sensoriamento

FONTE THIAGO REGIS LONGO CÉSAR DA PAIXÃO (IQ-USP)

eletrodo central para fazer o dispositivo conhecida como cloro, a substância é ter capacidade para projetar o sistema
funcionar é de -0,2 volt (V), inferior ao de usada como desinfetante em águas de completo, o que inclui o dispositivo que
uma pilha pequena do tipo AAA (1,5 V). piscina. Em altas concentrações, pode faz a leitura dos dados, ainda sem custo
O fato de ser produzido sem manipu- ser prejudicial à saúde. O nível máximo estimado. É possível também usar um
lação humana confere vantagens. “Mui- de cloro livre permitido pela Organiza- modelo de leitor portátil disponível no
tas vezes temos em laboratório uma série ção Mundial da Saúde (OMS) em pisci- mercado – algo parecido com o que se faz
de etapas manuais para a elaboração de nas é de 3 a 5 partes por milhão (ppm). hoje com as fitas para medir os níveis de
sensores. Elas fazem com que os dispo- No estudo feito no Instituto de Química, glicose no sangue, que são inseridas em
sitivos não tenham muita reprodutibili- segundo o artigo publicado na Sensors & instrumentos chamados glicosímetros.
dade. Quando recorremos a máquinas, Diagnostics, foi possível detectar até 0,50 O próximo passo da pesquisa é criar

P
como a que emite o laser, evitamos essa ppm de hipoclorito de sódio na água. um plano-piloto para testagem do sen-
intervenção artesanal no processo de sor em larga escala, na residência das
fabricação do dispositivo”, conta Paixão. ara identificar outras espé- pessoas, por usuários não treinados. O
O químico Wendell Karlos Tomazelli cies químicas em amostras ensaio com a população ajudará no aper-
Coltro, diretor do Instituto de Química de água, a plataforma teria feiçoamento do dispositivo. Numa etapa
FOTO LÉO RAMOS CHAVES / REVISTA PESQUISA FAPESP INFOGRÁFICO RODRIGO CUNHA

da Universidade Federal de Goiás (IQ- que ser adaptada – o termo posterior, o grupo pretende encontrar
-UFG), que não participou do estudo, espécie química refere-se uma empresa que se interesse por fazer
concorda. “A tecnologia baseada no uso às diversas formas que as a produção comercial do sensor.
do laser é muito atrativa por permitir es- substâncias químicas se en- “Já há conversas em andamento”, re-
calar a produção com alta reprodutibili- contram na natureza, como vela Paixão, destacando que a busca por
dade”, avalia. Para Coltro, o dispositivo átomos, moléculas, íons. “Já sensores de papelão ou arranjos desses
apresenta elevado nível de inovação. “A projetamos sensores para medir metais dispositivos para monitorar a qualidade
equipe da USP foi pioneira na proposição tóxicos, pesticidas e fármacos, além de da água em tempo real não ocorre ape-
do emprego do laser para produzir sen- outras espécies de interesse ambiental, nas no Brasil. As startups LAIIER, em
sores em papelão. O uso desse material como nitrito e nitrato”, diz o pesquisa- Londres, na Inglaterra, iFlux, em Niel,
torna o dispositivo sustentável e permite dor da USP. Para cada substância seria na Bélgica, e OmniVis, em São Francisco,
que venha a ser fabricado em qualquer preciso projetar um sensor específico, nos Estados Unidos, informa o pesqui-
lugar do mundo”, diz. mas há a possibilidade de montar um sador, também trabalham no projeto de
Nos ensaios em laboratório para ava- arranjo de sensores para realizar a de- aparelhos desse tipo. n
liar o desempenho do sensor, os pesqui- tecção simultânea de várias substâncias.
sadores usaram como prova de conceito Por enquanto, apenas o sensor foi cria- O projeto e o artigo científico consultados para esta
o hipoclorito de sódio. Popularmente do, mas os pesquisadores da USP dizem reportagem estão listados na versão on-line.

PESQUISA FAPESP 332 | 73


POLÍTICAS PÚBLICAS

Em 2020, acidente
com cinco motocicletas
e outros 17 veículos em
São José dos Pinhais (PR)
deixou ao menos oito
pessoas mortas e mais
de 20 feridas

EPIDEMIA
SILENCIOSA
74 | OUTUBRO DE 2023
Acidentes com motociclistas aumentam o número de
mortes no trânsito no Brasil, exigindo a adoção de melhorias
em estradas e a criação de campanhas educativas

Christina Queiroz

S
inistros com transporte terrestre habitantes, valor que representa quase o dobro da
são a principal causa de mortali- média europeia, de nove por 100 mil habitantes.
dade juvenil na América Latina, No mundo, um dos principais fatores de risco
segundo a Organização das Na- à insegurança viária é o excesso de velocidade.
ções Unidas (ONU). No Brasil, “Cada aumento de 1% na velocidade média produz
392 mil pessoas morreram em um crescimento de 4% no risco de acidente fatal
decorrência de acidentes de e um avanço de 3% no risco de acidente grave”,
trânsito entre 2010 e 2019, um afirma Pavarino. Segundo ele, o risco de morte
aumento de 13,5% em compara- para pedestres atingidos frontalmente por auto-
ção com a década anterior, con- móveis também aumenta, sendo 4,5 vezes mais
forme relatório do Instituto de alto quando a velocidade passa de 50 quilômetros
Pesquisa Econômica Aplicada por hora (km/h) para 65 km/h. “Quando pensa-
(Ipea), divulgado no começo de agosto. Excesso mos no choque entre carros, o risco de morte pa-
de velocidade, consumo de bebidas alcóolicas ra os ocupantes é de 85% quando o veículo está a
e distrações ao volante, especialmente o uso de 65 km/h.” Outro elemento complicador é dirigir
celulares, são alguns dos principais fatores de alcoolizado ou sob o efeito de substâncias psicoa-
risco, que têm afetado de forma mais intensa tivas. “Mesmo baixos níveis de concentração de
homens e usuários de motocicletas. Para am- álcool no sangue do motorista já aumentam o ris-
pliar a segurança viária no país, especialistas co de sinistros, enquanto o risco de acidente fatal
defendem que é preciso realizar investimentos para quem consumiu anfetaminas é cerca de cinco
combinados tanto em infraestrutura de vias e vezes mais alto se comparado com quem não fez
mecanismos de fiscalização, como também na uso desse tipo de substância”, compara o sociólogo.
criação de campanhas para educar a população Coordenado pela farmacêutica e bioquími-
em relação ao cumprimento de leis e a adoção de ca Vilma Leyton, da Universidade de São Paulo
comportamentos adequados no trânsito. (USP), o projeto concluído em 2019 investigou o
Cerca de 1,35 milhão de pessoas morrem anual- uso de drogas, como cocaína, maconha e anfeta-
mente no mundo por causa de acidentes viários. minas, entre motoristas de caminhão e motoci-
Quarenta e nove por cento são pedestres, ciclistas clistas parados por operações policiais. O estudo
e motociclistas, de acordo com o sociólogo Victor analisou amostras de saliva de 202 usuários de
Pavarino, oficial de Segurança Viária e Preven- motos na cidade de São Paulo, sendo que 12,9%
FOTO FRANKLIN DE FREITAS / FOLHAPRESS

ção de Lesões da Organização Pan-americana do total apresentou resultado positivo para uso
da Saúde (Opas) e da Organização Mundial da de maconha e cocaína e mais da metade dos mo-
Saúde (OMS). “Em nível mundial, mais de 90% tociclistas testou positivo apenas para o consumo
do total de mortes no trânsito ocorre em países de maconha. Participaram do levantamento 504
de baixa e média renda, como são os casos de na- caminhoneiros que circulavam em rodovias fede-
ções latino-americanas”, destaca. Dados da ONU rais do estado de São Paulo. “Detectamos que 6%
mostram, ainda, que países da região registram dos motoristas de caminhão tinham feito uso de
17 óbitos por acidente de trânsito a cada 100 mil alguma droga – 3,8% de cocaína e 1,4% de anfeta-

PESQUISA FAPESP 332 | 75


minas. A ocorrência de resultados positivos para com até 0,6 grama de álcool por litro no sangue,
o consumo de maconha foi pequena, de apenas o equivalente a quatro ou cinco doses de bebida.
um caminhoneiro”, conta Leyton. Na avaliação “Estudos desenvolvidos pela Abramet mostraram
da pesquisadora, o uso de estimulantes por mo- que não há limites seguros para o consumo de
toristas de caminhão ocorre por causa de longas álcool e a condução de veículos”, afirma Adura
jornadas de trabalho, prazos curtos para entrega (ver Pesquisa FAPESP nº 327). No final de 2020,
de mercadorias, falta de locais adequados para a socióloga Marina Kohler Harkot, que fazia dou-
descanso, entre outras dificuldades. “Melhorias torado na USP sobre mobilidade urbana, andava
nas condições de trabalho, mecanismos de fis- de bicicleta e foi atropelada por um motorista
calização e campanhas de conscientização so- acusado de dirigir alcoolizado em alta velocidade.

O
bre os efeitos nocivos de drogas são estratégias Ele fugiu sem prestar socorro e Harkot faleceu.
fundamentais para aumentar a segurança viária
no país”, propõe a pesquisadora. artigo 64 do Código de Trânsi-
No Brasil, a Lei nº 11.705, de 2008, conhecida to Brasileiro (CTB), criado pela
como Lei Seca, determina que conduzir veículos Lei nº 14.071/20, que passou a
com qualquer teor de álcool no organismo é infra- vigorar em 2021, determina que
ção de trânsito gravíssima. Além da multa de R$ crianças com idade inferior a 10
2.934,70, o motorista penalizado tem a Carteira anos e com menos de 1,45 m de
Nacional de Habilitação (CNH) suspensa por 12 altura devem ser transportadas
meses. Criada a partir de diretrizes da Associação em bancos traseiros em dispo-
Carro apreendido Brasileira de Medicina do Tráfego (Abramet), a sitivos de retenção adequados
em batida policial: lei salvou 50 mil pessoas desde sua promulgação, à sua idade, peso e altura. “Esse
ingestão de
substâncias alcoólicas
de acordo com o médico Flávio Adura, diretor artigo aperfeiçoou a Resolução
e psicoativas aumenta científico da instituição. Antes de 2008, a legisla- nº 277/2008 do Conselho Na-
risco de acidentes ção brasileira autorizava a condução de veículos cional de Trânsito [Contran]. Ambos permitiram
evitar 28 mil mortes de crianças entre 2008 e
2023”, estima o médico a partir de levantamen-
tos desenvolvidos pela Abramet no último ano.
Adura, também pesquisador do Instituto de Es-
tudos Avançados da USP, conta que, atualmente,
a Abramet realiza estudos para mostrar a impor-
tância do uso de capacetes por ciclistas. Em sua
avaliação, o uso desse equipamento de proteção
por usuários de bicicleta deveria ser obrigatório.
“Há 15 anos, a taxa de óbitos de ciclistas em si-
nistros viários era insignificante nos registros do
Sistema Único de Saúde [SUS] e, hoje, respondem
por 3,5% do total.”
“Comportamentos arriscados e falta de pro-
1 teção agravam as consequências de acidentes de

MORTES
POR SINISTROS 2000 a 2009 2010 a 2019
DE TRÂNSITO Outros
28%
Pedestre
28%
Outros
21%
Pedestre
19%

NO BRASIL Ônibus
1%
Na última década, Caminhão Caminhão Bicicleta
2% Bicicleta
os óbitos de 4%
2% 4%

motociclistas
passaram Carro/ Carro/
caminhão Moto caminhão Moto
a responder por
21% 17% 23% 30%
30% do total de
vítimas fatais

FONTE BALANÇO DA 1ª DÉCADA DE AÇÃO PELA SEGURANÇA NO TRÂNSITO NO BRASIL E PERSPECTIVAS PARA A 2ª DÉCADA (IPEA), 2023

76 | OUTUBRO DE 2023
2

Especialistas defendem trânsito, que causam internações e tratamentos mente, Larocca coordena outro estudo, também
que uso de capacetes prolongados”, alerta o médico. “Isso afeta de for- financiado pela FAPESP, para identificar proble-
por ciclistas seja
obrigatório no Brasil
ma intensa a integridade física de pessoas jovens mas na infraestrutura viária por meio do uso de
e traz impactos financeiros significativos para o simulador de direção. Prevista para ser concluí-
SUS.” Estudo elaborado pelo Ipea em agosto cor- da em 2024, a pesquisa está sendo realizada em
robora a afirmação de Adura. Segundo o documen- parceria com uma concessionária de rodovias,
to, um terço dos óbitos decorrentes de acidentes identificando lugares das vias em que é preciso
viários no Brasil envolve pessoas com até 15 anos mudar a sinalização e o revestimento do pavi-
e cerca de dois terços do total são de indivíduos mento. “A concessionária adotou as mudanças
com menos de 50 anos. Segundo o engenheiro recomendadas pela pesquisa até agora e, entre
civil Carlos Henrique Ribeiro de Carvalho, um 2021 e 2022, reduziu os acidentes fatais em 18%”,
dos autores do estudo, a pesquisa teve como ba- conta a pesquisadora.
FOTOS 1 MARCIO DAVID RODRIGUES / FOLHAPRESS 2 LÉO RAMOS CHAVES / REVISTA PESQUISA FAPESP INFOGRÁFICO RODRIGO CUNHA

se dados do Ministério da Saúde. Pelo critério Se as mortes por sinistros de trânsito foram
do órgão, mortes ocorridas até 30 dias depois do agravadas em todas as modalidades de trans-
sinistro são computadas como acidente por trans- porte, entre usuários de motocicleta a situação
porte terrestre. Em 2019, esse quadro provocou é alarmante. De 2010 a 2019, os óbitos de moto-
um prejuízo de cerca de R$ 320 milhões para o ciclistas totalizaram 120 mil vítimas fatais, em
SUS (ver gráfico na página 79). comparação com o número de 60 mil registrado
Pesquisa coordenada pela engenheira civil Ana na década anterior, segundo levantamento do
Paula Camargo Larocca, da Escola de Engenharia Ipea, desenvolvido a partir de informações do
de São Carlos (EESC) da USP, mostrou que ho- SUS. Acidentes com motocicletas respondem
mens de 18 a 25 anos apresentam risco 42% mais hoje por 44% das mortes no trânsito de pessoas
alto de se expor em manobras de ultrapassagem entre 15 e 29 anos, enquanto atropelamentos
em pista simples, considerado o tipo de rodovia são responsáveis pela maior parte dos óbitos de
mais perigoso, se comparados a homens mais ve- indivíduos com mais de 70 anos. “Em 2021, das
lhos ou mulheres. Concluído em 2019 com finan- 33,8 mil mortes no trânsito, 11,9 mil foram de
ciamento da FAPESP, o estudo foi feito a partir motociclistas”, enumera o engenheiro civil Jorge
de análises do comportamento de 100 voluntários Tiago Bastos, da Universidade Federal do Paraná
de diferentes faixas etárias e com habilitação, (UFPR). Segundo o pesquisador, esse número
que utilizaram um simulador de direção capaz está relacionado, entre outros motivos, ao cres-
de reproduzir estradas virtualmente de forma cimento da frota de motocicletas registrado nos
realista. No trabalho, foi projetada uma rodovia últimos 25 anos, à expansão dos serviços pres-
de pista simples com mão dupla e os motoristas tados por esse tipo de condutor e às condições
precisavam fazer ultrapassagens em momentos laborais precárias a que estão submetidos, com
que considerassem adequados. “Jovens do sexo jornadas extensas e a necessidade de fazer um
masculino se arriscaram mais, colando na traseira número grande de entregas.
de outros veículos e fazendo tentativas perigosas Empenhado em identificar o papel do com-
de ultrapassagem”, comenta a engenheira. Atual- portamento humano no panorama nacional de

PESQUISA FAPESP 332 | 77


acidentes de trânsito, Bastos realiza no Paraná Redução de Mortes e Lesões no Trânsito (Pna-
estudo observacional para analisar como moto- trans), a Lei nº 13.614, de 2018. Como a meta de
ristas reagem em diferentes situações ao volante. redução não foi atingida em grande parte do mun-
Por meio de veículos equipados com câmeras e do, a ONU renovou a iniciativa em 2021. “Um dos
sistemas de geoprocessamento (GPS), o pesquisa- pilares dessa nova fase é o conceito de sistemas
dor detectou que os condutores costumam aguar- seguros, abordagem integrada que reconhece o
dar momentos de redução de velocidade, como trânsito como um ambiente complexo, estabele-
ocorre em semáforos e locais de interação com cendo que é preciso projetar estradas prevendo
pedestres, para enviar mensagens de texto pelo a ocorrência de erros humanos e minimizando
celular. “Porém, por outro lado, eles não espe- as consequências de acidentes”, explica o pes-

C
ram reduzir a velocidade para enviar mensagens quisador da UFPR.
de voz ou fazer ligações, sendo que esse tipo de
atividade também distrai a atenção”, comenta. om tese de doutorado defendida
Adura concorda que o uso de celular na direção na área de engenharia de trans-
foi um fator preponderante para a piora da segu- portes em 2019, Cintia Isabel
rança viária no Brasil em 2021, quando as mortes de Campos Roque Guerrero, da
em decorrência de sinistros de trânsito aumenta- Faculdade de Ciência e Tecno-
ram 3,4% em comparação com 2020. Em sintonia logia da Universidade Federal de
com Bastos e Adura, Pavarino, da Opas-OMS, in- Goiás (UFG), explica que, no pas-
forma que esse tipo de distração é preocupação sado, 95% das ocorrências eram
crescente para a segurança no trânsito em todo o atribuídas a falhas humanas. “A
mundo. “Condutores que utilizam celulares en- abordagem de sistemas segu-
quanto dirigem têm cerca de quatro vezes mais ros, que ganhou protagonismo
risco de se acidentarem”, diz Pavarino. “O uso do em estudos de segurança viária
telefone diminui os reflexos do motorista, bem co- na última década, prevê que é inadmissível que
mo aumenta sua dificuldade de manter o veículo na pessoas paguem por erros com a própria vida”,
pista correta e respeitar distâncias de segurança.” explica. Segundo a pesquisadora, essa proposta
Ainda em relação à pesquisa de Bastos, da tem motivado engenheiros a desenvolver tecno-
UFPR, foi constatado que episódios de excesso logias para aumentar a segurança de veículos, Moto na ciclofaixa
de velocidade são mais intensos em vias locais, incluindo alertas de fadiga quando identificam em São Paulo:
de 2010 a 2019, os
justamente em áreas com maior presença de pe- que o condutor está piscando muito ou reduz a óbitos de motociclistas
destres e ciclistas. Para o engenheiro, esse tipo de pressão sobre o volante; emissão de avisos sonoros totalizaram 20 mil
comportamento arriscado poderia ser evitado por quando o motorista muda de faixa sem dar pisca- vítimas no país
meio de investimentos em educação para o trân-
sito, que estão previstos no Código de Trânsito
Brasileiro (CTB), a Lei nº 9.503. Sancionada em
1997, a legislação define atribuições de autorida-
des de trânsito e estabelece normas de conduta,
além de determinar infrações, crimes e penalida-
des para motoristas. “Cidades e estados não têm
colocado em prática projetos de educação para o
trânsito, apesar de previstos na legislação”, alerta
o pesquisador. O Observatório Nacional de Segu-
rança Viária (ONSV), por exemplo, tem material
paradidático, aprovado em 2017 pelo Ministério da
Educação (MEC), voltado para uso em sala de aula
de alunos do 1º ao 9º ano do ensino fundamental.
Pedro Borges, responsável pela área de Mobilida-
de Segura do ONSV, explica que os documentos
se apoiam na ideia de que a educação no trânsito
é um princípio de cidadania. “A proposta é fazer
com que a população compreenda que acidentes
podem ser evitados, mas isso depende de nossa
atitude nas vias”, observa.
A respeito da legislação, Bastos recorda que a
Década de Ação pela Segurança no Trânsito 2011-
-2020, criada pela ONU para reduzir pela metade
a mortalidade no trânsito, teve como um de seus
efeitos no Brasil a criação do Plano Nacional de

78 | OUTUBRO DE 2023
IMPACTOS Gasto (R$ milhões) Internações

NO SUS
De 2010 a 2019, 450
411,90 408,98
200.000
405,52
foram registrados 400 180.000
357,26 355,79
1,7 milhão de 350
160.000
320,38
internações 300
140.000

hospitalares e 120.000
250
despesas de cerca 100.000

de R$ 3,8 bilhões 200


80.000
150
60.000

100 40.000

50 20.000

0 0

2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016 2017 2018 2019

FONTE BALANÇO DA 1ª DÉCADA DE AÇÃO PELA SEGURANÇA NO TRÂNSITO NO BRASIL E PERSPECTIVAS PARA A 2ª DÉCADA (IPEA), 2023

-alerta; sensores para ampliar a visão noturna, em Em 2017, Romão desenvolveu projeto para a
pontos cegos ou para detectar redução abrupta de prefeitura de Rio Verde (GO), com o objetivo de
velocidade de carros à frente, entre outros. Esses reduzir acidentes e melhorar a mobilidade urba-
sistemas já vêm embutidos em alguns carros de na. Realizado entre 2016 e 2017, a ideia se apoiou
alto padrão e o desafio é ampliar sua incorporação na reforma e na mudança do paisagismo da ci-
para veículos de todas as faixas de preço. dade, reorganização de placas e sinalizações de
Além dessas diretrizes, outras recomendações da trânsito, como faixas de pedestres, colocação de
ONU abarcam a necessidade de países melhorarem estruturas para ampliar a acessibilidade em ruas
a estrutura de atendimento às vítimas, priorizar a e calçadas. Além disso, foram elaboradas medi-
circulação de ciclistas e pedestres em vias, adotar das educativas, como cursos voltados a gestores
políticas de redução de velocidade, desestimular e à comunidade e campanhas de conscientiza-
o uso de veículos particulares em áreas urbanas ção. Devido a essa iniciativa, entre 2017 e 2019,
de muita densidade e fornecer treinamentos em a cidade conseguiu reduzir as vítimas fatais de
primeiros-socorros para operadores leigos, como sinistros viários em 64% e a prefeitura registrou
motoristas de táxi ou de transporte público. Para uma economia de R$ 80 milhões em gastos hos-
além de recomendações gerais, a engenheira civil pitalares e danos patrimoniais. “Nas últimas dé-
Magaly Romão, da Faculdade de Tecnologia de Jaú cadas, o Brasil teve uma grande ampliação de sua
(Fatec-Jahu), no interior paulista, sustenta que ca- frota, incentivada por políticas que facilitaram o
da município deve desenvolver planos alinhados às acesso a crédito para a aquisição de veículos de
suas características e necessidades. Nesse sentido, transporte individual, sem adotar contrapartidas
a pesquisadora participou de estudo, coordenado envolvendo campanhas de educação. Esse cenário
FOTO LÉO RAMOS CHAVES / REVISTA PESQUISA FAPESP INFOGRÁFICO RODRIGO CUNHA

pelo engenheiro civil Antonio Clóvis Pinto Ferraz, agravou os níveis de acidentalidade”, considera
da EESC-USP, que apresenta dados comparativos a pesquisadora.
de áreas associadas ao nível de desenvolvimento Ainda de acordo com Romão, nos últimos anos,
socioeconômico de municípios paulistas com mais problemas de engenharia em estradas deixaram
de 100 mil habitantes, entre eles de mobilidade de ser a causa principal da insegurança viária, de
urbana. “Cidades do mesmo porte e com frotas forma que hoje é preciso trabalhar com mais in-
semelhantes podem apresentar níveis distintos de tensidade questões culturais e comportamentais.
acidentalidade, dado que nos permite desconstruir “Isso significa que investimentos para reformar
a ideia de que municípios grandes, com muita cir- estradas devem ser acompanhados de campa-
culação de carros e pessoas, necessariamente são nhas de conscientização. Caso contrário, em vias
os mais inseguros no trânsito”, comenta. Segundo muito modernas, por exemplo, o usuário pode se
Romão, mais do que o porte de cidades e o tama- sentir tão seguro a ponto de exceder limites de
nho de frotas, a insegurança viária está associada velocidade, ou deixar de usar cinto de seguran-
a baixos índices de desenvolvimento e de renda ça”, finaliza a pesquisadora. n
per capita. “É preciso municipalizar as estratégias
para redução de sinistros, entendendo as especi- Os projetos, o relatório e o livro consultados para esta reportagem
ficidades de cada contexto”, defende. estão listados na versão on-line.

PESQUISA FAPESP 332 | 79


Fiéis em culto da igreja
Assembleia de Deus,
no Rio de Janeiro:
estado concentra o
maior número de igrejas
evangélicas no país,
ao lado do Espírito Santo

CIÊNCIA POLÍTICA

O
FISCO


EA

80 | OUTUBRO DE 2023
Dados da Receita Federal ajudam a mapear
um século de expansão de igrejas evangélicas

Diego Viana

A
principal fonte de informações com código aberto, que pode ser acessado por
sobre a afiliação religiosa da pesquisadores e demais interessados no tema.
população brasileira é o Censo O método permitiu detectar e classificar os
Demográfico, realizado a cada templos registrados na Receita Federal de acor-
10 anos pelo Instituto Brasilei- do com as categorias empregadas nos censos do
ro de Geografia e Estatística IBGE. São elas: as missionárias, mais antigas,
(IBGE). Para sociólogos e outros pesquisadores como a Batista, a Presbiteriana e a Metodista;
da religião, esse intervalo é longo demais. A po- as pentecostais, cuja doutrina contém elemen-
pulação evangélica no Brasil passou a crescer em tos ausentes das missionárias, como a crença em
ritmo acelerado desde a década de 1960, deixando milagres, e incluem Assembleia de Deus, Con-
os dados do Censo rapidamente defasados. gregação Cristã do Brasil e Deus é Amor; e as
“Fala-se muito que a população evangélica es- neopentecostais, fenômeno surgido no fim da
tá aumentando no país, mas não sabemos exata- década de 1970 no Brasil que enfatiza a teologia
mente de que forma isso vem acontecendo nem da prosperidade e inclui igrejas como Universal
onde esse crescimento começou, por exemplo”, do Reino de Deus, Sara Nossa Terra e Renascer
afirma o cientista político brasileiro Victor Araú- em Cristo. Há ainda as igrejas de “classificação
jo, da Universidade de Reading, no Reino Unido. não determinada”.
“O Censo é uma fotografia e não temos dados Os resultados foram publicados na nota técni-
dinâmicos do que acontece entre as edições da ca “Surgimento, trajetória e expansão das igrejas
pesquisa do IBGE.” evangélicas no território brasileiro ao longo do
Se na década de 1960 mais de 90% dos brasilei- último século (1920-2019)”, divulgada recen-
ros se declaravam católicos, até 2040 o evangeli- temente pelo Centro de Estudos da Metrópole
calismo, em suas diversas denominações, deverá (CEM), da Universidade de São Paulo (USP), ao
ser o maior grupo religioso do país. O fenômeno qual Araújo está associado no Brasil. O CEM é um
que o Brasil atravessa é conhecido como “transi- dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Ce-
ção religiosa”. Em parte da Europa isso aconteceu pid) financiados pela FAPESP. “O levantamento
de forma estendida durante as guerras religiosas traz um dado adicional para nós, pesquisadores
dos séculos XVI e XVII, mas aqui, de acordo com desse campo, porque o Censo Demográfico do
FOTO CARL DE SOUZA / AFP VIA GETTY IMAGES

Araújo, o processo poderá ser mais breve e levar IBGE nada diz a respeito da criação de templos”,
menos de 100 anos. afirma o sociólogo Ricardo Mariano, da Facul-
Para identificar como as igrejas evangélicas se dade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
distribuem no território nacional, Araújo recor- (FFLCH-USP).
reu a outra fonte de informação: utilizou dados Graças ao recurso digital, o pesquisador ma-
da Receita Federal, disponíveis on-line. Como peou a história da transição religiosa no país entre
há mais de 152 mil estabelecimentos religiosos 1920 e 2019. Araújo assinala que a legislação sobre
inscritos no país, o cientista político desenvolveu igrejas foi alterada diversas vezes, mas o registro
um algoritmo na linguagem de programação R, mais antigo ainda ativo na Receita Federal é de

PESQUISA FAPESP 332 | 81


1922. Trata-se de uma igreja de denominação ali paróquias católicas. Quem chegou primeiro
batista em Nova Iguaçu (RJ). Como escreve na nessas localidades foram os evangélicos porque
nota técnica, isso não significa que essa seja a podiam abrir templos sem precisar recorrer ao
primeira igreja evangélica inaugurada no Bra- Vaticano, como era o caso dos católicos”, relata
sil. Registros históricos indicam, por exemplo, o pesquisador, autor do livro A religião distrai os
a existência de uma congregação da Assembleia pobres? O voto econômico de joelhos para a moral

N
de Deus fundada em 1911 em Belém (PA). e os bons costumes (Edições 70, 2022).
Até hoje, as regiões que mais se urbanizaram
o Brasil, as organizações religio- são os maiores bastiões do evangelismo brasileiro.
sas são obrigadas a ter o Cadas- Dentre as unidades da federação, Espírito Santo
tro Nacional de Pessoa Jurídica e Rio de Janeiro concentram o maior número de
(CNPJ) desde 2002, como es- igrejas evangélicas – mais de 80 templos por 100
tabelece o artigo 44 do Código mil habitantes, em ambos os casos. Ou seja, nes-
Civil. A exigência também é pre- sas localidades existe uma igreja evangélica para
vista na Lei n° 10.825/2003. “A legislação institui cada 1.250 moradores, revela o levantamento. Já
que as igrejas são pessoas jurídicas de direito o Nordeste continua sendo amplamente católico,
privado. Portanto, necessitam ter inscrição na embora os evangélicos predominem nas regiões
Receita Federal e, por consequência, o CNPJ para, metropolitanas das capitais.
por exemplo, abrir conta bancária e contratar fun- Para o antropólogo Ronaldo de Almeida, coor-
cionários”, informa Armando Rovai, presidente denador do Laboratório de Antropologia da Re-
da Comissão Especial de Advocacia Empresarial ligião da Universidade Estadual de Campinas
da Ordem dos Advogados do Brasil, seção São (LAR-Unicamp), o mapeamento dos templos
Paulo (OAB-SP). O CNPJ foi criado em 1998. realizado por Araújo corrobora pontos que os Acima, o Templo
Antes havia o Cadastro Geral de Contribuintes estudos da religião vêm buscando mostrar nesses de Salomão, da Igreja
Universal, no bairro
(CGC), instituído em 1964. últimos anos. Um deles é a aceleração do cresci- paulistano do Brás
Na avaliação de Araújo, a transição religiosa é mento do evangelismo na década de 1980, quando
“um dos fenômenos demográficos mais importan- o Censo começou a sinalizar com maior acuidade
tes do Brasil contemporâneo”. O processo se ace- a presença dessa população no país.
lerou principalmente a partir da década de 1960, Outro ponto é a expansão territorial dessas
acompanhando a urbanização e a industrialização igrejas detectada no Censo de 2000. “É possí-
do país. “Quando as pessoas se mudavam para vel perceber o crescimento de igrejas evangéli-
as novas periferias das cidades, ainda não havia cas em áreas de imigração recente”, acrescenta

Avanço de igrejas evangélicas no Brasil


Pico de crescimento aconteceu entre 2000 e 2016

Todas Missionárias Não determinado Neopentecostais Pentecostais

8.000

7.000
Número de novas igrejas ativas

6.000

5.000

4.000

3.000

2.000

1.000

0
1922 1930 1940 1950 1960 1970 1980 1990 2000 2010 2019

FONTE "SURGIMENTO, TRAJETÓRIA E EXPANSÃO DAS IGREJAS EVANGÉLICAS NO TERRITÓRIO BRASILEIRO AO LONGO DO ÚLTIMO SÉCULO (1920-2019)" – CEM

82 | OUTUBRO DE 2023
Abaixo, pequena
congregação no Rio
de Janeiro: muitas
delas não se formalizam
na Receita Federal

Almeida, que também é pesquisador do Centro


Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap).
“As regiões Norte e Centro-Oeste, fronteiras da
expansão agrícola nas últimas décadas, recebe-
ram muitos agricultores do Sul do país, onde a
presença protestante é historicamente forte.”
As primeiras igrejas a se instalarem, junto com
os migrantes, eram de orientação missionária. sentem na obrigação de se formalizarem. A sub-
Na última década, porém, igrejas pentecostais e notificação é grande”, observa Mariano. Também
neopentecostais avançaram mais rapidamente. não constam do levantamento igrejas que foram
É o caso de Rondônia. De acordo com o ma- abertas no período analisado, mas que, por algum
peamento, no ranking dos estados com maior motivo, já não estavam ativas em 2019. É possí-
número de igrejas evangélicas, Rondônia ocupa- vel, ainda, que indivíduos registrem CNPJ de
va o antepenúltimo lugar em 1970. Entretanto, igrejas com finalidade não religiosa, mas esses
FOTOS LÉO RAMOS CHAVES / REVISTA PESQUISA FAPESP INFOGRÁFICO ALEXANDRE AFFONSO / REVISTA PESQUISA FAPESP

a partir de 2000 passou a figurar entre os cinco casos não são identificáveis nos dados do Fisco,
primeiros colocados. Em 2019, abrigava 60 tem- como alerta Araújo.
plos por 100 mil habitantes e era um dos estados Ainda assim, os dados relativos aos anos em
brasileiros mais próximos de completar a tran- que houve Censo, como 2000 e 2010, estão ali-
sição religiosa, ao lado de Rio de Janeiro, Mato nhados aos números divulgados pelo IBGE. “Para

A
Grosso do Sul e Espírito Santo. os anos não censitários, quando não é possível
fazer a comparação, é provável que a classificação
contagem dos templos não ex- também esteja próxima do que seria se os dados
pressa com precisão a quantida- fossem coletados todo ano”, diz Araújo.
de desses fiéis no Brasil. Afinal, Segundo o cientista político, a disponibilização
uma capela e uma catedral têm da ferramenta para outros pesquisadores é um
um único registro no CNPJ, mas dos objetivos de seu estudo. “Qualquer pessoa
comportam públicos incomen- com um conhecimento intermediário de progra-
suráveis. “Como em todo estudo, há limitações. mação e um computador com capacidade padrão
É difícil captar a expansão dos evangélicos no de processamento pode replicar os procedimen-
último século no país, mas o registro dos templos tos”, afirma Araújo. O pesquisador pretende atua-
é uma variável complementar que contribui para lizar as informações contidas no estudo à medida
enxergar o que ocorreu no Brasil ao longo desse que novos dados forem disponibilizados no site
recorte temporal”, afirma Almeida. da Receita Federal, bem como comparar os re-
Além disso, muitas igrejas operam clandesti- sultados com os números que serão divulgados
namente, sem CNPJ: um líder religioso pode, por pelo Censo de 2022. n
exemplo, realizar cultos na sala ou garagem de
sua casa. “Muitas pequenas congregações não se O projeto consultado para esta reportagem está listado na versão on-line.

PESQUISA FAPESP 332 | 83


FOTOGRAFIA

REGISTROS

ESCASSOS
Mulheres descansando em
banco de praça (c. 1910),
fotografia feita por Vincenzo
Pastore em São Paulo
Pesquisadores examinam atuação
de fotógrafos italianos que chegaram
ao Brasil no século XIX
Diego Viana

D
ezenas de fotógrafos junho passados, o volume pretende in- Entre os itinerantes encontram-se no-
italianos atuaram no centivar pesquisas sobre esses artistas. mes como Nicola Maria Parente (1847-
Brasil durante o Im- A baixa disponibilidade de imagens -1911), nascido na região da Basilicata,
pério e a Primeira Re- reflete a relativa obscuridade em que sul da Itália. Parente, que também era
pública, mas a maior caiu a maior parte dos fotógrafos ita- dentista, montou ateliês em cidades co-
parte de sua produção lianos pioneiros no país. Em 2005, no mo Goiana (PE) e João Pessoa (PB), ga-
não sobreviveu ou não está acessível ho- artigo “O exórdio de uma cultura urbana nhando a vida com a venda de cartões de
je. Atualmente, nos museus e arquivos no Brasil no final do século XIX e iní- visita e retratos de família. Em 1897, ao
brasileiros, não é possível localizar mais cio do século XX”, a arquiteta e histo- retornar de uma viagem à França, trou-
de uma dezena de fotografias da maioria riadora da arte Maria Pace Chiavari, da xe um exemplar do cinematógrafo dos
desses profissionais, de acordo com a Universidade Federal do Rio de Janeiro irmãos Lumière, com o qual realizou a
pesquisadora Livia Raponi, diretora (UFRJ), escreveu: “A produção de fotó- primeira sessão de cinema da capital pa-
do Instituto Italiano de Cultura do Rio grafos franceses, alemães e ingleses que raibana nesse mesmo ano. Em maio de
de Janeiro. A escassez desses registros trabalharam no Brasil inspirou inúmeras 1911, quando morava na cidade de Abaeté,
contrasta com a riqueza numérica dos publicações; faltam, porém, estudos so- hoje Abaetetuba (PA), o fotógrafo morreu
acervos de outros estrangeiros, como bre os italianos que se espalharam por em um acidente: experimentava um ge-
os franceses Victor Frond (1821-1881), todo o país e deixaram uma importante rador de oxigênio que havia criado para
Augusto Stahl (1828-1877) e Marc Fer- documentação de sua passagem”. Para sua atividade de dentista quando o in-
rez (1843-1923). No entanto, os italia- Marçal, a lacuna permanece e o estudo vento explodiu.
nos estiveram em todas as regiões do desses profissionais continua sendo “um Atualmente, um dos nomes mais divul-
país, receberam prêmios em exposições campo completamente aberto”. gados entre os antigos fotógrafos italia-
nacionais e títulos oficiais do Império, Marçal compara o legado dos italia- nos é Vincenzo Pastore (1865-1918), que
registraram obras públicas e transfor- nos com o dos franceses, que deixaram manteve ateliês em São Paulo a partir de
mações urbanas e foram pioneiros da sua marca no Brasil a partir da chegada 1894 e, durante alguns anos, em Potenza
exibição cinematográfica. da Missão Artística Francesa, em 1816. e Bari, na Itália. Sua obra mais célebre é
Nove desses fotógrafos foram reuni- Os italianos aportaram no país em con- uma série de imagens de trabalhadores
dos no livro Italianos detrás da câmera dições diferentes. Havia imigrantes que urbanos, realizadas nas décadas de 1900
(Editora Unesp, 2022), organizado por buscavam ganhar a vida, engenheiros e 1910, hoje pertencentes ao Instituto
Raponi e pelo historiador da fotografia que fotografavam suas obras, profissio- Moreira Salles (IMS). Mas nem sempre
Joaquim Marçal Ferreira de Andrade, nais de outras áreas que também se dedi- foi assim. Essas imagens, guardadas em
curador, pela Biblioteca Nacional, do cavam a registrar imagens. “Os italianos uma caixa de sapato, permaneceram es-
portal Brasiliana Fotográfica. Os crité- não vinham com o mesmo apoio institu- quecidas durante quase todo o século
rios de escolha foram a disponibilidade cional dos franceses. Vinham para traba- XX e só atingiram seu atual grau de no-
FOTO VINCENZO PASTORE / INSTITUTO MOREIRA SALLES

de imagens digitalizadas em instituições lhar. E, quando olhamos mais de perto toriedade graças à doação feita pelo pia-
de memória e a representação de dife- para a história da fotografia brasileira, nista Flavio Varani, neto do fotógrafo, ao
rentes partes do território brasileiro, do vemos que boa parte dos fotógrafos lo- IMS, em 1996.
sul à Amazônia. Apoiado pela embaixa- cais teve professores italianos. Muitos As fotografias mostram engraxates, la-
da da Itália no Brasil e acompanhado da dos viajantes, que retratavam as pessoas vadeiras e carregadores circulando pela
exposição Fotógrafos italianos no flores- em rincões e cidades menores, eram da cidade que começava a se modernizar e
cer da fotografia brasileira, realizada no Itália”, afirma Marçal. Algumas vezes, a crescer. O conjunto tem uma particula-
Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) existência desses indivíduos ficou regis- ridade: em sua época, as impressões não
do Rio de Janeiro, em outubro e novem- trada quase exclusivamente em menções foram comercializadas, mas estampadas
bro de 2022, e de Brasília, de março a e anúncios na imprensa local. em restos de papel fotográfico e expostas

PESQUISA FAPESP 332 | 85


Registro sem data
de Virgilio Calegari da
sala de exposição do
próprio ateliê, localizado
em Porto Alegre
1

nas paredes de seu ateliê de São Paulo. chamei de ‘fotógrafo do cotidiano’”, diz. biblioteca, havia um álbum sobre Nova

FOTOS 1 VIRGILIO CALEGARI / ACERVO FOTOGRÁFICO, MUSEU DE COMUNICAÇÃO HIPÓLITO JOSÉ DA COSTA 2 GUIDO BOGGIANI / SISTEMA MUSEALE DELL'UNIVERSITÀ DEGLI STUDI DI
Pastore era reconhecido como retratis- Em alguns outros estados, os registros York. “Virgilio Calegari e Jacintho Fer-
ta e teve grande sucesso comercial, de são mais abundantes. É o caso do Rio rari eram os dois principais fotógrafos da
acordo com a historiadora Fabiana Bel- Grande do Sul, de acordo com a histo- cidade. Disputavam a clientela, sobretu-
tramim, pesquisadora de estudos visuais riadora da arte Zita Rosane Possamai, do a classe dominante, que tinha recur-

T
e autora do livro Entre o estúdio e a rua: A da Universidade Federal do Rio Gran- sos para contratá-los”, relata Possamai.
trajetória de Vincenzo Pastore, fotógrafo de do Sul (UFRGS). No mesmo perío-
do cotidiano (Edusp, 2016). A obra é ba- do, italianos também se destacaram nas ambém era italiano um dos
seada na tese de doutorado que defen- imagens urbanas de outra capital que se primeiros fotógrafos dos
deu no ano anterior no Departamento modernizava: Porto Alegre. Na virada quais se tem registro em
de História da Faculdade de Filosofia, do século, uma certa rivalidade chegou Porto Alegre. Trata-se de
Letras e Ciências Humanas da Univer- a se instalar entre os fotógrafos Virgilio Luís Terragno (1831-1891),
sidade de São Paulo (FFLCH-USP). Calegari (1868-1937), italiano, e Jacintho que se instalou na capital
“Essas imagens não fazem parte de Ferrari (?-1935), filho de italiano. Ca- em 1853 e percorreu diversas cidades
uma tradição que retratava o exotismo legari – presente no livro editado por da então província de São Pedro. Além
e a escravidão do Brasil para satisfazer Raponi e Marçal – registrou as trans- de registrar imagens, o genovês estudou

FIRENZE 3 ERMANNO STRADELLI / ARCHIVIO FOTOGRAFICO DELLA SOCIETÀ GEOGRAFICA ITALIANA


a curiosidade de turistas estrangeiros”, formações que a cidade atravessou na os processos químicos da fotografia e
afirma Beltramim. A pesquisadora de- primeira década do século XX, quando chegou a criar uma emulsão a partir da
fende que Pastore, em suas fotografias os antigos quarteirões coloniais davam mandioca, o sulfomandiocato de ferro.
de trabalhadores egressos da escravi- lugar à metrópole republicana. Terragno buscava adaptar as técnicas
dão e imigrantes europeus feitas após a “Calegari se radicou em Porto Alegre, fotográficas às condições climáticas do
Abolição da escravatura, exercitou um onde viveu até o fim da vida. Ele acom- Brasil, de acordo com Marçal.
estilo conhecido na Itália como arte per panhou todo o processo de moderniza- O fotógrafo é autor de imagens do im-
via (arte nas ruas), que mostra as pes- ção da cidade”, afirma Possamai, que perador dom Pedro II (1825-1891) e de
soas em suas ocupações diárias. Segundo publicou diversos artigos sobre o traba- seu genro, Gastão de Orléans, o conde
Beltramim, as cenas urbanas de Pastore lho do fotógrafo. “Por isso, ele constrói d’Eu (1842-1922), em trajes gaúchos. As
mobilizam essa tradição de um repertó- um olhar que reflete essa metamorfose. fotografias, de teor propagandístico, fo-
rio visual de tipos e costumes, mas ele Suas imagens contêm elementos novos, ram realizadas em 1865, durante a pas-
se interessava pelas contradições da vida como desembarques no cais do porto, o sagem do Exército brasileiro pelo Rio
urbana paulistana. “Ele estava atento às que remete à presença da multidão, uma Grande do Sul, rumo à Guerra do Para-
sociabilidades das camadas populares, novidade naquele momento.” O resultado guai (1864-1870). Na ocasião, Terragno
que faziam das ruas seu espaço de vida é o álbum Porto Alegre, produzido entre teria apresentado um pedido ao impe-
e trabalho. E entendia as ambiguidades 1908 e 1912. Segundo Possamai, o autor rador para acompanhar as tropas até o
da nossa modernidade. Por causa de seu se inspirou em outros conjuntos de ima- front e registrar as batalhas. Assim como
olhar atento ao trabalho informal, eu o gens urbanas daquele período – em sua ocorreu com todos os demais fotógrafos,

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teve o pedido negado. “Como grande pédia amazônica”. Para Raponi, o interes- Abaixo, Índia Caduveo
promotor da fotografia, o imperador ti- se de Cascudo, que resultou no livro Em (Mbayá), imagem sem data
feita por Guido Boggiani
nha perfeita consciência do poder que as memória de Stradelli (Livraria Clássica, em Mato Grosso do Sul
imagens têm e não queria que ficassem 1936), foi responsável por manter viva a

J
registros do conflito”, afirma Marçal. lembrança do fotógrafo-explorador.
Italianos detrás da câmera também
ressalta a produção imagética de dois á o piemontês Boggiani
autores mais conhecidos por sua atuação era pintor reconhecido na
em outro campo. Trata-se de Ermanno Itália, onde viveu até os
Stradelli (1852-1926) e Guido Boggiani 27 anos. Amigo do escri-
(1861-1902), que se dedicaram a traba- tor Gabriele d’Annunzio
lhos etnográficos no século XIX. O pri- (1863-1938), foi conduzi-
meiro foi objeto da tese de doutorado de do pelo mesmo espírito aventuresco de
Raponi, defendida no Departamento de Stradelli a viajar para a América do Sul
Letras Modernas da FFLCH em 2018. e acompanhar expedições para o norte
Nascido em uma família abastada de da Argentina, Paraguai e oeste do Brasil.
Piacenza, Stradelli foi influenciado pela Fotografou e escreveu sobre as etnias
mentalidade romântica de sua época, o Chamacoco e Kadiwéu, o que lhe rendeu
que lhe incutiu o gosto pelas explorações. citações do antropólogo Darcy Ribeiro
Interessou-se pelos costumes e as cosmo- (1922-1997), que fez trabalhos etnográ-
logias dos povos indígenas da Amazônia ficos na mesma região.
e organizou, mesmo sem apoio institu- De posse de tecnologias de revelação
cional, expedições com objetivos tanto mais avançadas do que as de Stradelli,
3
geográficos, como o mapeamento de rios, Boggiani pôde realizar retratos notáveis,
quanto antropológicos. Sua obra mais co- sobretudo por captar aspectos singulares mortais foram encontrados na região do
nhecida é o Vocabulário português-nheen- dos seus modelos, que parecem estar à Chaco paraguaio em 1904, com o crânio
gatu – Nheengatu-português, idioma de- vontade na frente da câmera, em particu- esmagado e a câmera fotográfica enter-
senvolvido a partir de línguas indígenas lar as mulheres, observa Raponi. Seu olhar rada a uma certa distância. O motivo
amplamente falado no Brasil colonial. treinado como pintor enfatizou elemen- do assassinato pelos indígenas que o
Ela veio a público postumamente, em tos como a pintura facial e corporal e as haviam fascinado não foi esclarecido.
1929, na Revista do Instituto Histórico e vestimentas femininas. Em algumas ima- “Há muitas especulações, que vão do
Geográfico Brasileiro. Desde 2014, o livro gens, os indígenas sorriem, algo que não ciúme por seu envolvimento com mu-
integra o catálogo da Ateliê Editorial. O era habitual nos retratos do século XIX. lheres indígenas até uma reação à pró-
antropólogo, historiador e folclorista Luís Apesar da cumplicidade e talvez por pria câmera, com seu poder de ‘roubar
da Câmara Cascudo (1898-1986) afirmou causa dela, Boggiani teve morte preco- a alma’”, observa Raponi.
que a obra era “uma verdadeira enciclo- ce, violenta e misteriosa. Seus restos O acesso ainda limitado às fotografias
ajuda a explicar a queixa de Chiavari so-
2
bre a insuficiência de estudos históricos
Gente do tuxaua Antonio sobre fotógrafos italianos no Brasil. As
(Apurinã) e maloca do imagens sobreviventes de Stradelli estão
Marané (1889), fotografia
realizada por Ermanno
no Arquivo Fotográfico da Sociedade Geo-
Stradelli no Amazonas gráfica Italiana. As de Boggiani se encon-
tram em coleções europeias, tanto públi-
cas quanto privadas. Possamai aponta que
também no Rio Grande do Sul muitas das
fotografias de Terragno, Calegari e Ferrari
pertencem a coleções particulares.
Marçal espera que outras imagens
possam ser encontradas em posse de
herdeiros. Recuperá-las seria uma ma-
neira de reescrever a história dos italia-
nos que se instalaram no Brasil. “Veja o
que aconteceu com Pastore: depois que
os descendentes doaram suas fotografias,
ele se tornou um monumento”, conclui
o historiador. n

Os livros consultados para esta reportagem estão listados


na versão on-line.

PESQUISA FAPESP 332 | 87


OBITUÁRIOS
Galves se dedicou Galves-Löcherbach”, usado em pesqui-
a formar uma sas de neurocomputação e simulação
rede internacional
de pesquisadores
do comportamento do cérebro e uma
em probabilidade das contribuições de maior impacto do
e estatística pesquisador brasileiro.
Claudio Landim, diretor-adjunto do
Instituto de Matemática Pura e Aplicada
(Impa), destaca dois artigos de Galves. O
primeiro, de 1981, em coautoria com os
matemáticos Claude Kipnis (1949-1993),
francês, e Carlo Marchioro e Errico Pre-
sutti, italianos, é um dos primeiros a es-
tudar sistemas termodinâmicos fora do
equilíbrio e contém uma dedução esta-
tística da lei de Fourier, que trata do flu-
xo de calor em um material. O segundo,
de 1984, com o físico-estatístico italiano
Marzio Cassandro, o italiano Enzo Oli-
vieri e a brasileira Maria Eulália Vares,
ambos matemáticos, inaugura o “estu-

O ARTICULADOR
do sistemático da metaestabilidade”, de
acordo com Landim.
O termo designa estados de siste-
mas com um longo período de aparente
O matemático Antonio Galves fomentou parcerias e equilíbrio, seguido de uma rápida alte-
ração ao equilíbrio estável. Casos típi-
contribuiu para avanços na física, linguística e neurociência cos são os líquidos super-resfriados. Por
exemplo, uma garrafa de cerveja colocada
Diego Viana no congelador, a uma temperatura abai-
xo de zero ºC, que congela de repente

E
quando sofre uma perturbação externa.
m julho e agosto, a 26a edição torado na mesma área (1978). Em 1969 O físico-matemático José Fernando
da Escola Brasileira de Proba- tornou-se professor nessa instituição Perez, diretor científico da FAPESP entre
bilidade, evento internacional de ensino, onde permaneceu até se apo- 1993 e 2005, exemplifica o caráter agre-
que reúne pesquisadores e es- sentar em 2022 como professor titular. gador de Galves por meio de seu esforço
tudantes de estatística, home- Era coordenador do Núcleo de Apoio à de aproximar profissionais do IME e do
nageou um de seus principais promoto- Pesquisa em Matemática, Computação, Instituto de Física da USP. “Nos anos 1980
res: o matemático paulistano Antonio Linguagem e Cérebro (MaCLinC-USP). e 1990 estabelecemos uma sólida parceria
Galves, do Departamento de Estatística O ponto de partida de seus trabalhos entre as duas instituições e muitos dos
do Instituto de Matemática e Estatísti- foram os sistemas markovianos de partí- meus alunos acabaram sendo contrata-
ca da Universidade de São Paulo (IME- culas, cuja trajetória independe de even- dos pelo IME, embora fossem físicos.”
-USP). A homenagem foi o último con- tos passados, isto é, da memória. Galves, Desde 2013, Galves coordenava o Cen-
tato que muitos de seus colegas tiveram porém, introduziu a memória nesses sis- tro de Pesquisa, Inovação e Difusão em
com Galves, que morreu no dia 5 de se- temas, conforme explica a matemática Neuromatemática (NeuroMat), um dos
tembro, em Campinas (SP), aos 76 anos, alemã Eva Löcherbach, da Universida- Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão
de causa não divulgada. de de Paris 1 Panthéon-Sorbonne. Ele (Cepid) apoiados pela FAPESP. Entre os
Ele é considerado o pai da rede de pes- estudava as cadeias de ordem variável, projetos do NeuroMat, há um videoga-
quisadores em probabilidade e estatística ou seja, sistemas cuja dependência de me em que o participante é convidado
no Brasil devido a seus esforços para for- eventos passados pode ser mais extensa a prever para que lado um atacante co-
FOTO MARCOS SANTOS / USP IMAGENS

mar e fortalecer os vínculos entre os pro- ou mais curta. brará um pênalti, com base em seu com-
fissionais desse campo. Além disso, buscou Em 2013, o brasileiro e a alemã pu- portamento passado. Essa ferramenta já
estabelecer pontes com colegas de outros blicaram artigo em que apresentam um foi utilizada para detecção precoce da
países da América Latina e da Europa. cálculo para o tempo que um estímu- doença de Parkinson.
Galves formou-se em matemática em lo (spike) emitido por um neurônio em Galves era casado com Charlotte
1968, na USP, onde também cursou o uma rede neural leva para retornar a seu Chambelland Galves e tinha duas filhas
mestrado em estatística (1972) e o dou- emissor. Essa é a origem do “modelo de e um filho. n

88 | OUTUBRO DE 2023
Setzer: trabalho com
queimadas levou
o governo a
lançar programas
de prevenção e
combate a incêndios

GELO
E FOGO
O engenheiro ambiental Alberto Setzer
esteve à frente da meteorologia da
Antártida e do programa de
monitoramento de queimadas
Felipe Floresti

E
vocar frio e calor ajudam a con- relevante para o deslocamento das equi- beçasse o Projeto de Monitoramento de
tar a trajetória do engenheiro pes sobre o gelo. Ele implementou uma Queimadas por Satélite. Em ação desde
ambiental Alberto Waingort rede de pesquisa meteorológica que é setembro de 1987, escancarou ao mundo
Setzer e suas contribuições pa- reconhecida internacionalmente por sua o grande volume de queimadas no país e
ra a ciência brasileira. De 1984 qualidade”, diz Francisco Eliseu Aquino, forçou o governo brasileiro a lançar, em
a 2010 ele coordenou o projeto de Me- climatologista da Universidade Federal 1988, o Pacote Ecológico Nossa Natureza,
teorologia Antártica do Brasil e em 1985 do Rio Grande do Sul (UFRGS). além de criar a Comissão de Prevenção
idealizou o programa de monitoramento Entre as características relatadas pelos e Combate aos Incêndios Florestais. Em
de queimadas do Instituto Nacional de que o conheciam, a preocupação social 1989, nascia o Instituto Brasileiro do Meio
Pesquisas Espaciais (Inpe), que coman- parece ter sido a mais importante. “O Ambiente e dos Recursos Naturais Reno-
dou até 2020. No dia 8 de setembro, Set- Alberto resolveu entrar nas questões das váveis (Ibama) e o Sistema de Prevenção
zer, de 72 anos, jogava tênis em Ubatuba queimadas porque viu que era um tema e Combate aos Incêndios Florestais.
(SP) quando um infarto o matou. altamente relevante para o país”, afirma Setzer esteve à frente do Programa
Paulistano, formado em engenharia me- o físico Ricardo Galvão, presidente do Queimadas por 35 anos. Segundo Galvão,
cânica pela Escola de Engenharia Mauá Conselho Nacional de Desenvolvimento a iniciativa do Inpe de tornar as imagens
(1973), Setzer cursou o mestrado (1977) no Científico e Tecnológico (CNPq) e dire- de satélites disponíveis gratuitamente,
Technion Institute of Technology, em Is- tor-geral do Inpe entre 2016 e 2019. Em em 2004, apoiada por Setzer, teve um
rael, e o doutorado (1982) na Universidade 1985, durante um trabalho conjunto do impacto enorme. O material é usado por
Purdue, nos Estados Unidos, ambos em Inpe com a Nasa, a agência espacial nor- órgãos de governo, organizações não
engenharia ambiental. Ingressou no Inpe te-americana, Setzer sobrevoou a Amazô- governamentais e empresas privadas.
em 1977, onde ficou por toda a carreira. nia para investigar a composição química “Somente depois que o Brasil liberou
No verão entre os anos de 1984 e 1985, do que se pensava ser o ar mais puro do as imagens, a Nasa e a Agência Espacial
realizou a primeira de 25 missões na An- planeta. Os expressivos índices de polui- Europeia fizeram o mesmo.”
tártida que faria à Estação Antártica Co- ção do ar deixaram os pesquisadores sur- A meteorologista Renata Libonati, da
mandante Ferraz. O objetivo era instalar presos. Setzer, então, solicitou as imagens Universidade Federal do Rio de Janeiro
o sistema de meteorologia do Programa do satélite meteorológico Noaa-9, dos (UFRJ), comprova o reconhecimento
Antártico Brasileiro, que começou a fun- Estados Unidos, que mostraram focos de que o pesquisador tinha entre seus pares.
cionar em 1986 para dar suporte às equi- calor na porção sul do bioma amazônico. “Há 20 anos viajo pelo mundo em confe-
pes de pesquisa de campo na estação e Foi o primeiro indício científico de que rências e reuniões científicas da área de
às dos navios de pesquisa oceanográfica as queimadas aconteciam em proporções sensoriamento remoto do fogo, em que
Barão de Teffé e Ary Rongel, da Marinha tais que eram capazes de mudar a com- ele foi pioneiro, e não há lugar que eu
do Brasil. “De 1995 a 2002 estive em vá- posição da atmosfera e, em larga escala, tenha ido em que as pessoas não conhe-
rias missões de campo na Antártida e afetar o clima do planeta. cessem o Alberto e seu trabalho”, conta.
FOTO INPE

era o Alberto quem me atualizava com A confirmação da dimensão de seu Alberto Setzer deixa a mulher, Adriana
a previsão do tempo ou alguma notícia impacto foi a motivação para que enca- Prest Mattedi, e uma filha, Joana Setzer. n

PESQUISA FAPESP 332 | 89


MEMÓRIA
Primeira imagem
do HIV obtida
no Brasil, em 1987

AIDS
E
1

UMA EPIDEMIA
m uma sexta-feira, 20 de maio de 1983,
uma equipe do Instituto Pasteur de Pa-
ris liderada pelo virologista francês Luc

QUE NÃO
Montagnier (1932-2022) anunciou em um
artigo publicado na Science uma desco-
berta ansiosamente aguardada por médi-

TERMINOU
cos e cientistas: a identificação do vírus causador da
nova doença que vinha destruindo o sistema imuno-
lógico dos pacientes, jovens na maioria, deixando-os
vulneráveis a infecções oportunistas e tipos raros de
Identificado há 40 anos, o HIV mudou câncer. Desde 1982, a enfermidade era conhecida
como Síndrome da Imunodeficiência Adquirida, ou
a visão sobre doenças infecciosas Aids (Acquired Immunodeficiency Syndrome). Seu
agente causador receberia em 1985 o nome de Human
Suzel Tunes Immunodeficiency Virus, HIV, ou Vírus da Imuno-
deficiência Humana.
Em paralelo a Montagnier, o virologista norte-
-americano Robert Gallo, que também trabalhava na
identificação do novo agente infeccioso no Instituto
de Virologia Humana da Universidade de Maryland,
nos Estados Unidos, reivindicou a paternidade da
descoberta. Depois de disputas na Justiça, os dois
cientistas seriam reconhecidos como codescobridores
do vírus, com direito partilhado à patente de exames
diagnósticos. Mas quem recebeu o Prêmio Nobel de

90 | OUTUBRO DE 2023
2 3

Montagnier e Barré-Sinoussi em 2008, ao receberem o Prêmio Nobel, e Gallo, codescobridor do vírus da Aids

Medicina e Fisiologia de 2008 em razão Estado de São Paulo. Em sua residência cuidado integral, um só profissional não
dessa descoberta foi Montagnier e sua médica, de 1986 a 1988, ela já atendia bastava. “Era necessário trabalhar com
colega Françoise Barré-Sinoussi. casos de Aids, que desde o ano de 1983 profissionais da saúde mental, das ciên-
Em abril de 1984, a então secretária de avançava pelo país. Enfrentar uma doen- cias sociais, da enfermagem. O trabalho
Saúde norte-americana, Margaret Heck- ça até então pouco conhecida lhe trouxe multiprofissional ganhou importância”,
ler (1931-2018), previa que uma vacina o que considera um dos aprendizados relata a médica.
contra o vírus estaria pronta em dois anos. mais importantes de sua carreira: “Cui- Cuidar de um paciente com sintomas
Quatro décadas depois, essa estratégia de dar, no sentido mais amplo”. de Aids significava, também, acolher com
combater a Aids ainda parece distante. “O “Na infectologia trabalhamos muito empatia uma pessoa duplamente vitimi-
desenvolvimento de uma vacina acabou se com infecção bacteriana, que em geral se zada: aos sintomas físicos da doença fa-
mostrando uma tarefa mais difícil do que cura com antibiótico, mas logo ao entrar tal somavam-se os sofrimentos causados
pensávamos”, reconhece o infectologista na vida profissional me deparei com uma por preconceito e marginalização. Como
Esper Kallás, diretor do Instituto Butan- doença que não tem cura e pode evoluir inicialmente a epidemia atingiu sobretu-
tan, que pesquisa formas de deter a Aids rapidamente para óbito”, comenta Sou- do homens homossexuais, não demorou
desde 1996 na Faculdade de Medicina da za. Segundo ela, diante do sentimento para que termos preconceituosos como
Universidade de São Paulo (FM-USP). de impotência trazido por esse cenário, “peste gay” ou “câncer gay” começassem
“O HIV tem uma imensa capacidade de o cuidado médico ganhava outra dimen- a ser disseminados pelos meios de comu-
mutação e, até o momento, conseguiu são. Além de tratar as infecções oportu- nicação. Os homossexuais continuaram a
FOTOS 1 MONIKA BARTH / IOC / FIOCRUZ 2 WIKIMEDIA COMMONS 3 NCI 4 GENILTON VIEIRA / IOC / FIOCRUZ

escapar da resposta imune estimulada nistas, buscava-se dar mais conforto e ser vistos como “grupo de risco” mesmo
pelas vacinas experimentais.” dignidade ao paciente. E nesse modelo de depois que a doença alcançou homens e
No início, os médicos não conseguiam
4
explicar como os casos de pacientes se-
riamente debilitados se multiplicavam
nos serviços de saúde, muitos com qua-
dros graves de pneumonia por Pneu-
mocystis carinii, que acomete pessoas
imunossuprimidas, ou sarcoma de Kapo-
si, um tipo raro de câncer que costuma
ter evolução lenta em idosos, mas nos
pacientes jovens com Aids avançava de
forma rápida e agressiva.
“Entrávamos nos ambulatórios com
máscaras e roupas especiais, assim como
fizemos recentemente com a Covid-19,
para atender os pacientes com Aids”, Galvão,
coordenador
lembra a infectologista Rosa de Alencar do grupo que
Souza, diretora adjunta do Centro de isolou o HIV-1
Referência e Treinamento-DST/Aids do no Brasil

PESQUISA FAPESP 332 | 91


1
mulheres heterossexuais e se compro- tamento se consolidaria em 1996 com a
varam outras vias de transmissão além terapia tripla, com três medicamentos
da sexual, como a sanguínea. em dois comprimidos, que aumentou a
“Naquela época, a ignorância era bru- qualidade de vida das pessoas com HIV.
tal”, recordou o oncologista Drauzio Va- Também em 1987, o imunologista bra-
rella em entrevista em 2019 (ver Pesquisa sileiro Bernardo Galvão, pesquisador
FAPESP nº 279). O médico viu o início da emérito da Fundação Oswaldo Cruz
epidemia quando estava em Nova York (Fiocruz), isolou, pela primeira vez na
em 1983. De volta a São Paulo, atendeu América Latina, o HIV (ver Pesquisa FA-
alguns dos primeiros pacientes com a PESP no 118). A partir daí a Fiocruz foi
doença e orientou a população por meio capaz de produzir kits para diagnóstico,
de programas inicialmente de rádio e de- barateando o custo e ampliando o acesso.
pois de televisão. Atualmente, a expres- A disseminação dos testes trouxe mais
são “grupo de risco” deixou de ser usada, segurança aos hemocentros, estancan-
em razão da discriminação que acarreta. do a crescente transmissão do HIV por
Do sofrimento, emergiram a solida- transfusão de sangue. “A epidemia de
riedade e a mobilização da comunida- HIV/Aids foi decisiva para o controle

FOTOS 1 ROCHELLE COSTI / FOLHAPRESS 2 BIBLIOTECA NACIONAL DIGITAL / AGÊNCIA SENADO 3 MINISTÉRIO DA SAÚDE / AGÊNCIA SENADO 4 ROVENA ROSA / AGÊNCIA BRASIL 5 EDUARDO CESAR / REVISTA PESQUISA FAPESP
Betinho, incentivador das políticas para evitar
de homossexual e de organizações não a transmissão do HIV pelo sangue de doenças transmitidas pelo sangue no
governamentais (ONG) em defesa dos Brasil”, ressalta Galvão. Ele conta que,
pacientes com Aids e dos indivíduos so- políticas públicas de prevenção e trata- na década de 1980, bancos de sangue de
ropositivos, que participaram da formu- mento (em contraposição a discursos todo o país não tinham a menor regula-
lação de um plano governamental de preconceituosos e moralistas); a reação mentação ou controle: “Para estimular
combate à epidemia. “A articulação com da sociedade civil organizada contra a a doação, muitos ofereciam dinheiro em
a sociedade civil foi uma das principais discriminação das pessoas vivendo com troca da coleta, o que atraía pessoas em
marcas da resposta brasileira à epide- HIV/Aids; e a criação do Sistema Úni- situação de rua, com a saúde precária e
mia de Aids”, afirma a médica sanitarista co de Saúde (SUS), que materializou o frequentemente contaminadas por HIV”.

C
Maria Clara Gianna, uma das criado- conceito de saúde como um “direito de
ras do CRT/Aids em 1988, atualmente todos e um dever do Estado”, expresso om a Portaria nº 1.376, de
na Secretaria de Vigilância em Saúde e na Constituição de 1988. 1993, o MS proibiu a co-
Ambiente do Ministério da Saúde (MS). “Ter o SUS organizado fez toda a di- mercialização de sangue
“O enfrentamento da Aids uniu ONG, ferença. A Covid-19 mostrou isso nova- humano e tornou obriga-
pessoas com HIV, médicos e pesquisa- mente”, diz Kalichman. Por meio da rede tória a triagem de agentes
dores. Vários projetos financiados pela de atendimento do SUS, preservativos, infecciosos transmitidos
FAPESP impulsionaram essa resposta, medicamentos e testes diagnósticos de por via sanguínea. Essas orientações fo-
com a avaliação e a incorporação de no- HIV chegaram à população e mudaram ram ratificadas oito anos depois, quando
vas tecnologias”, destaca Gianna. a história da Aids no Brasil. se aprovou a Lei nº 10.205, de 21 de mar-
Para Artur Kalichman, sanitarista da O uso de medicamentos antirretrovi- ço de 2001, que seria chamada de “Lei
Gerência de Vigilância Epidemiológica rais começou em 1987, logo após a agên- Betinho”, em homenagem póstuma ao
do CRT desde 1988, o combate à epide- cia que controla medicamentos e alimen- sociólogo Herbert de Souza (1935-1997)
mia sustentou-se em três bases: as evi- tos (FDA) dos Estados Unidos aprovar e a seus irmãos – o cartunista Henfil
dências científicas para a formulação de a zidovudina (AZT). A evolução do tra- (1944-1988) e o músico Chico Mário
(1948-1988) –, todos hemofílicos, que
2
contraíram HIV em transfusões de san-
3

gue. Betinho foi um dos fundadores da


Associação Brasileira Interdisciplinar de
Aids (Abia), que presidiu até sua morte.
A Lei nº 9.313, de 1996, foi outro mar-
co. “A lei garantiu que todas as pessoas
vivendo com HIV tivessem acesso gra-
tuito, por meio do SUS, aos antirretro-
virais. Não tem faltado até hoje”, come-
Cartaz da mora Gianna. Além de pessoas com Aids,
campanha de
1988, com uma
foram beneficiadas as gestantes, que têm
imagem de mulher, acesso a medicamentos para a prevenção
criticada na da transmissão vertical do HIV, ou seja,
Constituinte, e de da mãe para o bebê durante a gestação,
1990, com alertas
sobre as formas
parto ou amamentação. As mulheres re-
de transmissão cebem também fórmula láctea artificial,
do vírus para evitar a transmissão do vírus pelo

92 | OUTUBRO DE 2023
grupos pode chegar a 40%, segundo um
dos estudos do grupo de pesquisa Nudhes
(saúde, sexualidade e direitos humanos
da população LGBT+), coordenado por
Veras. Segundo ela, travestis e mulheres
trans são alvo de uma confluência de es-
tigmas baseados em gênero, raça e posi-
ção social. Vivendo sob extrema margi-
nalização, elas têm dificuldade de acesso
aos serviços públicos de saúde e a recur-
sos eficazes para a prevenção da doença,
como a Profilaxia Pré-Exposição (PrEP).
Disponível no SUS desde 2018, a PrEP
consiste no uso diário de um medica-
mento antirretroviral para evitar a re-
4 produção do HIV no organismo, caso a
Campanha promovida pela Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo na região central pessoa tenha contato com o vírus. Segun-
da capital em 2016 para testagem rápida de HIV do Kallás, essa estratégia previne 99% de
novas infecções. A oferta de PrEP visa
leite materno. “Com essas medidas, foi Médicas da Santa Casa de São Paulo, que especialmente às pessoas em situação
possível eliminar a transmissão vertical acompanha a epidemia desde os anos de maior vulnerabilidade para o HIV,
no município de São Paulo. O estado de 1980, quando trabalhava no Recife, aler- mas tem sido mais utilizada por pessoas
São Paulo está na beira de conseguir isso. ta para o aumento de casos de infecção e cisgênero brancas e de maior escolari-
A meta é certificar todo o país até 2025.” óbitos em estados do Norte e Nordeste. dade. “Em março de 2023, havia 23.302
As estratégias de tratamento e pre- “De modo geral, entre 2011 e 2021 houve usuários de PrEP no município de São
venção, integradas a campanhas de in- um declínio nas taxas de detecção de HIV Paulo, mas apenas 3,9% eram travestis ou
formação em meios de comunicação de em 16 estados, mas o crescimento con- mulheres trans”, comenta Veras.
massa, permitiram a redução contínua tinua em 11”, diz ela. “Quanto às mortes A Aids mostrou que inclusão e igual-
dos casos de Aids no país, do ápice de por Aids, o Ministério da Saúde registrou dade social são tão decisivas quanto os
43.850 casos notificados em 2013 para uma queda de 24,6% entre 2011 e 2021 medicamentos. De acordo com a Orga-
15.412 registrados em 2022. Os resul- na maioria dos estados, com exceção de nização Mundial da Saúde (OMS), em
tados se devem em boa parte à médi- Acre, Paraíba, Amazonas, Rondônia, Rio 2022, 39 milhões de pessoas viviam com
ca Lair Guerra de Macedo, criadora do Grande do Norte, Piauí, Alagoas, Pará e HIV, principalmente em países pobres.
Programa Nacional de DST [Doenças Mato Grosso do Sul.” Ainda que a mortalidade associada à Aids

P
Sexualmente Transmissíveis] e Aids do tenha caído 55% entre mulheres e 47%
Ministério da Saúde, que ela coordenou ara Kalichman, mesmo o entre homens desde 2010, em 2022 as
de 1985 a 1996, quando se afastou em registro de 15.412 casos de doenças relacionadas à Aids foram a cau-
consequência de um acidente de carro. Aids em 2022 – uma queda sa de morte de 630 mil pessoas. Mundial-
Os avanços no combate à Aids não são de 56,27% em relação ao ano mente, o HIV ainda é um sério problema
homogêneos. A epidemiologista Maria anterior, um possível efeito de saúde pública.
Amélia Veras, da Faculdade de Ciências da subnotificação durante O Brasil terá de reforçar a atenção
a pandemia de Covid-19 – precisa ser com os grupos ainda pouco atendidos
visto com olhar crítico: “A ocorrência se quiser atingir a meta “95-95-95”, es-
Tenofir, um dos de Aids, hoje, é uma falha do sistema tabelecida pelo Programa Mundial de
medicamentos de saúde. Depois que uma pessoa con- Aids das Nações Unidas (Unaids) para
da Profilaxia
trai o HIV, leva cerca de oito anos para 2030 – diagnosticar 95% das pessoas
Pré-exposição
Sexual (PrEP), aparecerem os sintomas. Dá tempo para soropositivas, tratar 95% delas com an-
para evitar fazer o diagnóstico, iniciar o tratamento tirretrovirais e atingir carga viral inde-
a transmissão e permitir ao paciente ficar com carga tectável em 95% das pessoas em trata-
do HIV
viral indetectável”, diz ele. “O problema mento. Até o momento atingiu 88-83-95,
é quem está ficando para trás por falta respectivamente. “O tratamento da Aids
de acesso aos serviços de saúde.” teve um desenvolvimento tecnológi-
As populações periféricas, negras e de co muito rápido”, observa Kalichman.
menor renda e escolaridade são as mais “Hoje, o controle da doença não é mais
afetadas. Travestis e mulheres trans figu- questão de tecnologia, mas de cidada-
ram no extremo da vulnerabilidade social nia e respeito aos direitos humanos.” n
e econômica. Na cidade de São Paulo, en-
quanto a prevalência do HIV na popu- Veja na versão on-line desta reportagem uma linha do
5 lação adulta em geral é de 0,4%, nesses tempo com os principais fatos da história da Aids.

PESQUISA FAPESP 332 | 93


ITINERÁRIOS DE PESQUISA

ARTE
QUE IMITA
A VIDA
Há quase 40 anos, o biólogo e taxidermista Paulo César Balduíno monta
animais para coleções científicas e mostras museológicas

T
axidermia é uma palavra de ori- Entrei na Unicamp aos 16 anos para tampouco uma ave daquela espécie. Lo-
gem grega que significa “dar for- trabalhar como mensageiro da secre- go que bati os olhos no animal, lembro
ma à pele”. É a arte de montar taria do IB, em 1982. Minha função era de ter me perguntado como era possível
animais para exibição em mu- distribuir a correspondência entre os retirar toda a sua pele sem que as penas
seus e coleções científicas. No decorrer docentes e ajudar na organização de do- caíssem. Aquela pergunta ficou na minha
de meus quase 40 anos de carreira, mon- cumentos. Eu passava pelos corredores cabeça e pedi para Antonio para voltar no
tei milhares de bichos. Para o Museu de do departamento e ficava olhando fasci- dia seguinte, em meu horário de almoço.
Zoologia da Universidade de São Paulo nado para os animais de todo o Brasil que Comecei, então, a frequentar o labo-
(MZ-USP), por exemplo, foram mais de estavam expostos nas vitrines. Nos dois ratório e a acompanhar o trabalho dele.
10 mil exemplares, enquanto para o Ins- anos em que fui mensageiro, vi pela pri- Após alguns meses, Antonio se aposen-
tituto Nacional de Pesquisa da Amazônia meira vez vários bichos taxidermizados tou e um novo taxidermista assumiu o
(Inpa) preparei ao menos 4 mil. Trabalho que eu nem sequer sabia que existiam. laboratório. Era Otávio Cardozo de Oli-
FOTOS LÉO RAMOS CHAVES / REVISTA PESQUISA FAPESP

no Laboratório de Taxidermia do Depar- Certo dia, fui levar a correspondência veira, até então motorista do diretor do
tamento de Biologia Animal, no Instituto para o responsável pelo Laboratório de IB, que havia sido treinado por Antonio
de Biologia da Universidade Estadual de Taxidermia. Eu nunca tinha visto nin- para substituí-lo. Porém Otávio também
Campinas (IB-Unicamp) e perdi as contas guém entrando lá e estava curioso. Bati à estava perto de se aposentar e precisava
de quantos vertebrados preparei para a porta e Antonio Corrêa Filho, o primeiro começar a pensar em um sucessor. Pedi a
instituição. Foram inúmeros animais para taxidermista do IB, me convidou para en- ele que me ensinasse o ofício e ele aceitou.
coleções científicas e didáticas do Museu trar. Ele estava sentado na bancada, pre- Na mesma época, Pierre Montouchet
de Diversidade Biológica (MDBio), para parando uma saíra-sete-cores [Tangara tornou-se chefe do Departamento de Zoo-
pesquisas de mestrado e doutorado, além seledon]. Fiquei espantado. Nunca tinha logia e eu decidi pedir transferência para
de inúmeros trabalhos de campo. visto ninguém realizar aquele trabalho e o Laboratório de Taxidermia. Ele ficou

94 | OUTUBRO DE 2023
Peças preparadas Sentia vontade de cursar biologia e
por Balduíno no decidi prestar vestibular em 2007. Entrei
Museu de Diversidade
Biológica, da Unicamp:
no Centro Universitário Nossa Senhora
trabalho minucioso do Patrocínio, em Itu (SP). Mas eu estava
para fazer com que há tantos anos sem estudar que pensei
anatomia, postura que seria impossível concluir a gradua-
e olhar dos bichos
se assemelhem
ção. Minha ideia era finalizar o primeiro
à realidade ano com a reprovação em apenas uma
disciplina. Caso fosse reprovado em mais
de uma, desistiria do curso. Para minha
surpresa, fui aprovado em todas as ma-
surpreso porque enquanto todo mun- similar possível da morfologia real do térias no primeiro ano e em todos os ou-
do fugia daquele laboratório, eu queria bicho e em uma postura natural, imitan- tros. Durante a graduação, conheci uma
entrar. Depois de algumas semanas, eu do seus gestos em vida. A parte final da professora que me apoiou e me convidou
estava na secretaria e o professor Pierre montagem envolve a inserção de olhos para dar aulas de taxidermia na faculda-
apareceu. Colocou a mão em meu ombro de vidro e a injeção de formol. de, já que existem poucos profissionais
e disse: “Você fica aqui até a hora do almo- Para animais que vão para a coleção capacitados no Brasil.
ço e, depois, está liberado para ir para a científica, o processo é mais metódico. Entre 2010 e 2016, nas últimas viagens
taxidermia”. Naquele mesmo dia comecei Antes de mexer com o animal, realizo que fiz a trabalho pelo Brasil, foram tan-
a trabalhar com Otávio. Em 1989, quando a biometria, identifico o sexo, registro tos animais coletados que não dava tempo
ele se aposentou, eu assumi o laboratório. sua procedência, data e nome de quem de montá-los em campo. Comecei a tra-
A taxidermia é um processo que pode o coletou, peso e tiro medidas. Com es- zê-los para casa para fazer as preparações
ser feito com qualquer animal vertebra- ses dados, etiqueto o bicho. Depois, si- e Bárbara, minha filha caçula, hoje com
do, mas eu trabalho com mais frequência go o mesmo procedimento adotado na 27 anos, ficava olhando, cada vez mais
com aves e mamíferos. Quando chega um coleção artística, com exceção da pos- interessada. Ela começou a me acompa-
animal no laboratório, pergunto para o tura. Geralmente, o animal de coleções nhar nas viagens. Em uma delas, precisei
professor, pesquisador ou estudante qual científicas não fica colado em uma base. ir embora mais cedo e Bárbara ficou para
seria a finalidade. A artística é voltada à Para as duas finalidades, eu me guio por dar suporte aos pesquisadores. Tenho 59
exposição em museus, a didática para o minha memória, que é fotográfica. anos e vou me aposentar em 2024, mas

N
uso em sala de aula, enquanto na cientí- não pretendo parar totalmente. Mesmo
fica o foco está em preparar o bicho para o ano 2000, um aluno que ti- assim, preciso de alguém qualificado para
compor coleções que serão estudadas nha realizado mestrado no IB e me substituir e minha filha é a principal
por distintos pesquisadores. fazia doutorado na USP passou candidata para assumir a função.
Na artística, o primeiro passo é deitar pelo laboratório. Eu trabalhei Voltando à pergunta que fiz na primei-
o animal na bancada e fazer um corte com os bichos dele no mestrado e ele me ra vez que entrei no Laboratório de Ta-
longitudinal da genitália até a ponta do contou que seu doutorado estava para- xidermia: por que as penas das aves não
nariz para descolar a pele da muscula- do, pois não conseguia um taxidermista caem? Na verdade, as penas podem cair.
tura. Com muita delicadeza, vou desves- para montar seis tangarás [Chiroxiphia Principalmente em trabalhos de campo,
tindo a pele como se fosse uma roupa e caudata] coletados como parte do estu- quando coletamos uma ampla variedade
separo o corpo da cabeça. Faço um molde do. Eu pedi para ver as aves, que estavam de bichos, de gaviões a beija-flores. Nes-
de gesso fundido em uma estrutura de congeladas e muito bem conservadas. ses momentos, é preciso ser delicado e
arame que dará sustentação à peça. De- Disse a ele que faria o trabalho e entre- cuidadoso e também saber trabalhar com
pois, passo uma solução conservante na guei todo o material em 15 dias. peles de diferentes texturas e resistên-
pele e encaixo o molde da cabeça. Utili- Semanas mais tarde, esse mesmo alu- cias, algumas mais grossas, outras mais
zo outras estruturas de arame como se no me falou sobre um projeto desenvol- gordurosas, aplicando técnicas específi-
fossem o esqueleto e, depois, preencho a vido pela USP para levantar a fauna na cas. Caso contrário, todo trabalho para
peça com palha e costuro as partes. Além Amazônia, que estava em busca de um coletar o animal pode ser perdido.
disso, coloco o animal em uma postura taxidermista para pesquisa de campo. Gosto de pensar que mais pessoas pode-
específica, fixado em uma base de ma- Ele me indicou para o coordenador. Eu rão ver e estudar os bichos taxidermizados.
deira. O desafio é deixar a peça o mais jamais tinha me envolvido com uma pes- Alguns animais, infelizmente, dentro de
quisa tão grande. Desde então, fui con- alguns anos, não existirão mais na natu-
vidado para mais de 20 viagens, o que reza. Quando estou imerso no processo
me deu a oportunidade de trabalhar de de montagem, me sinto feliz. E fico ainda
SAIBA MAIS forma mais próxima com pesquisadores mais satisfeito quando finalizo e olho o
Passo a passo
e aprimorar as habilidades de montar animal, observando a beleza de cada um
ilustrado do processo
animais para estudos científicos. Nessas de seus detalhes. Sinto que com meu traba-
de taxidermia
ocasiões, muitas vezes, faço a montagem lho consigo trazer o bicho de volta à vida.
de bichos rodeado de pesquisadores que É quase como se ele se tornasse eterno. n
nunca viram um taxidermista em ação. DEPOIMENTO CONCEDIDO A CHRISTINA QUEIROZ

PESQUISA FAPESP 332 | 95


RESENHA

As diferentes fases da contracultura


Patrícia Marcondes de Barros

C
om linguagem didática que não compro- pelos direitos civis dos negros, homossexuais,
mete a qualidade conceitual e teórica, mulheres e a inclusão dos jovens como atores
Juventude e contracultura, escrito pelo sociais significativos são exemplos da politização
historiador Marcos Napolitano, da Universida- do movimento contracultural, analisados minu-
de de São Paulo (USP), abrange amplamente a ciosamente. Além disso, destacam-se a conscien-
diversidade do movimento contracultural, apre- tização ambiental, o pacifismo e outras propos-
sentando seus significados em outras localidades tas inovadoras que não encontravam espaço na
além do epicentro norte-americano, como na chamada política tradicional.
Europa, Caribe e América Latina. Inicialmente, Na América Latina, a trajetória da contracul-
aborda a relevância do estudo da contracultura, tura se deu em um cenário de modernização ca-
um movimento frequentemente lembrado e pou- pitalista, no qual coexistiram estruturas sociais
co compreendido, de cunho multiculturalista, ultraconservadoras evidenciadas em regimes
Juventude que teve como mote a luta contra opressões que ditatoriais. No Brasil, ao lado da repressão mi-
e contracultura vão desde aquelas comportamentais, enraizadas litar iniciada em 1964, havia o anseio pela liber-
Marcos
Napolitano
na mente e no corpo do indivíduo, resultantes dade percebido na rebeldia comportamental da
Editora Contexto do condicionamento ao sistema instituído, até juventude transviada, passando pelas lutas en-
176 páginas aquelas que se estendem às esferas política, eco- gajadas do movimento estudantil e chegando ao
R$ 41,00 nômica e cultural. tropicalismo no final dos anos 1960. Nessa fase,
O autor apresenta as diferentes fases da con- é perceptível a difícil trajetória das lutas juvenis
tracultura, tendo como ponto de partida o cená- e suas rupturas promovidas no âmbito estético
rio pós-guerra e o boom do rock. Nesse período, e político, algo que o autor explora ao tratar do
marcado pela era de ouro do capitalismo, emerge “desbunde” ou “udigrudi” na década de 1970, uma
a rebeldia comportamental (1955-1962), personi- versão tropical e antropofágica do movimento
ficada pelos “rebeldes sem causa” que impulsio- hippie, que se diluiu ideologicamente na próxi-
naram a indústria cultural através do consumo de ma fase, denominada “contracultura histórica”
discos de rock, vestuário e outros produtos cria- (1980-1990). Nesse momento, as ideias juvenis
dos para esse segmento. No cinema, filmes como se disseminaram por diversas regiões, indo além
O selvagem (1953) e Sementes de violência (1955) dos países centrais do capitalismo.
foram referências significativas para entender a As possibilidades oferecidas pelo horizon-
juventude, pois retrataram os medos, os anseios te contracultural são apresentadas com um
e a profunda insatisfação existencial gerada pelo manancial de obras literárias e acadêmicas, filmes
American way of life. Nesse cenário também se de ficção, documentários, entre outros. Nas con-
destaca a importância dos poetas beatniks, cujas siderações finais, analisa a fragmentação da con-
criações não apenas desafiaram as normas esta- tracultura manifestada sob a forma de subculturas
belecidas, mas também provocaram uma reflexão superficiais, que se tornaram irrelevantes como
profunda sobre os valores e as limitações impostas crítica global ao sistema. No entanto, enfatiza que,
pelo sistema capitalista e tecnocrático. embora o idealismo original dos jovens român-
O arquétipo juvenil assumiu papel de destaque, ticos do século XX possa ter se enfraquecido, o
solidificando sua rebeldia em formas mais orga- legado da contracultura mantém sua importância
nizadas de resistência e provocação ao sistema. na crítica à sociedade dominante, representando
Essas tendências se tornam evidentes na segunda uma resistência à extrema direita, que emerge
fase da contracultura (1962-1970), quando as ma- como uma ameaça constante, colocando em risco
nifestações de rebeldia, sociabilidade e expressão as liberdades individuais e as lutas coletivas em
cultural se tornam mais conscientes e radicais, prol da democracia.
fundamentadas no existencialismo de Sartre e
na “grande recusa” de Marcuse, que se opõe à Patrícia Marcondes de Barros é doutora em história pela Unesp,
autora do livro Panis et circenses: A ideia de nacionalidade no
ideia do indivíduo unidimensional, aprisionado movimento tropicalista (Eduel, 2000) e uma das organizadoras de
e sem autonomia sobre sua própria vida. A luta Transas da contracultura brasileira (Editora Passagens, 2020).

96 | OUTUBRO DE 2023
FUNDAÇÃO DE AMPARO À PESQUISA DO ESTADO DE SÃO PAULO
COMENTÁRIOS cartas@fapesp.br

PRESIDENTE
Marco Antonio Zago

VICE-PRESIDENTE
Ronaldo Aloise Pilli

CONSELHO SUPERIOR
Carmino Antonio de Souza, Helena Bonciani Nader, Herman
Jacobus Cornelis Voorwald, Ignácio Maria Poveda Velasco,
Liedi Legi Bariani Bernucci, Mayana Zatz, Mozart Neves Ramos,
Pedro Luiz Barreiros Passos, Pedro Wongtschowski, Thelma Krug

CONSELHO TÉCNICO-ADMINISTRATIVO
Caatinga Mas, como não conhecem fronteiras,
DIRETOR-PRESIDENTE
Carlos Américo Pacheco Uma indicação do que nosso presente sempre chegam outros.
DIRETOR CIENTÍFICO
Marcio de Castro
carrega da história das variações cli- Mônica C. Netto
DIRETOR ADMINISTRATIVO máticas que a Terra já experimentou,
Fernando Menezes de Almeida
podemos estar avançando para um no-
vo arranjo de paisagens, com possível Revista
desaparecimento de muitas espécies Adoro o conteúdo da revista e sou pri-
ISSN 1519-8774 (“Grãos de pólen do fundo de uma lagoa vilegiado por ter acesso a ela na escola
COMITÊ CIENTÍFICO
revelam a história recente da Caatin- onde trabalho.
Luiz Nunes de Oliveira (Presidente),
Agma Juci Machado Traina, Américo Martins Craveiro, Anamaria
ga”, nota na edição 331 e texto completo João Augusto Silveira Ferreira
Aranha Camargo, Ana Maria Fonseca Almeida, Angela Maria Alonso,
Carlos Américo Pacheco, Claudia Lúcia Mendes de Oliveira, Deisy
disponível no site). O H. sapiens pode
das Graças de Souza, Douglas Eduardo Zampieri, Eduardo de Senzi
Zancul, Euclides de Mesquita Neto, Fabio Kon, Flávio Vieira Meirelles,
entrar na lista.
Francisco Rafael Martins Laurindo, João Luiz Filgueiras de Azevedo,
José Roberto de França Arruda, Lilian Amorim, Lucio Angnes, Luciana Ailton Krenak Vídeo
Harumi Hashiba Maestrelli Horta, Luiz Henrique Lopes dos Santos,
Mariana Cabral de Oliveira, Marco Antonio Zago, Marie-Anne Muito bom ver a valorização da pesquisa
Van Sluys, Maria Julia Manso Alves, Marta Teresa da Silva Arretche,
Reinaldo Salomão, Richard Charles Garratt, Roberto Marcondes social, especialmente dos estudos sobre
Cesar Júnior, Wagner Caradori do Amaral e Walter Collii
Produção em baixa o punk no país (“O punk no Brasil”).
Com os cortes de investimento dos úl-
COORDENADOR CIENTÍFICO
Luiz Nunes de Oliveira João Bittencourt
DIRETORA DE REDAÇÃO timos anos, nem milagre faria ter mais
Alexandra Ozorio de Almeida

EDITOR-CHEFE
publicação (“Avanço interrompido”, Interessante perceber que a cidade e o
Neldson Marcolin
edição 331). contexto social influenciam diretamente
EDITORES Fabrício Marques (Política C&T), Carlos Fioravanti,
Marcos Pivetta, Maria Guimarães e Ricardo Zorzetto (Ciência), Priscilla Queiroz nossos estilos musicais e nossa forma de
Ana Paula Orlandi (Humanidades), Yuri Vasconcelos (Tecnologia)
nos expressarmos. Boa pesquisa!
REPÓRTER Christina Queiroz
Adhalya Intchala
ARTE Claudia Warrak (Editora),
Júlia Cherem Rodrigues e Maria Cecilia Felli (Designers),
Alexandre Affonso (Editor de infografia), Felipe Braz (Designer digital),
Espécies invasoras
Amanda Negri (Coordenadora de produção) É um assunto, me parece, cada vez mais Punk Brasil em São Paulo, pela ótica de
FOTÓGRAFO Léo Ramos Chaves
preocupante porque os meios de combate João Neves, ficou demais. Parabéns à
BANCO DE IMAGENS Valter Rodrigues
são custosos e nem sempre eficazes (“Es- FAPESP por apoiar a pesquisa que re-
SITE Yuri Vasconcelos (Coordenador), Jayne Oliveira (Coordenadora
de produção), Kézia Stringhini (Redatora on-line) pécies invasoras causam prejuízo mundo sultou nesse ótimo trabalho.
MÍDIAS DIGITAIS Maria Guimarães (Coordenadora), Renata Oliveira
do Prado (Editora de mídias sociais), Vitória do Couto (Designer digital)
afora”, disponível apenas no site). Na Gustavo Bertolucchi

VÍDEOS Christina Queiroz (Coordenadora)


Europa, por exemplo, o adorável guaxi-
RÁDIO Fabrício Marques (Coordenador) e Sarah Caravieri (Produção) nim é considerado uma espécie invasiva Sua opinião é bem-vinda. As mensagens poderão ser re-
REVISÃO Alexandre Oliveira e Margô Negro e são eliminados aos montes na Bélgica. sumidas por motivo de espaço e clareza.
REVISÃO TÉCNICA Américo Craveiro, Ana Maria Fonseca
de Almeida, Célio Haddad, Deisy de Souza, Douglas Zampieri,
Francisco Laurindo, José Roberto Arruda, Marta Arretche,
Rafael Oliveira

COLABORADORES David Lapola, Diego Viana, Domingos


ASSINATURAS, RENOVAÇÃO CONTATOS
Zaparolli, Felipe Floresti, Giselle Soares, Joana Santa Cruz, Laura
Segovia Tercic, Maurício Oliveira, Patrícia Marcondes de Barros,
E MUDANÇA DE ENDEREÇO revistapesquisa.fapesp.br
Rodrigo Cunha, Sarah Schmidt, Suzel Tunes, Renato Pedrosa
Envie um e-mail para
MARKETING E PUBLICIDADE Paula Iliadis redacao@fapesp.br
CIRCULAÇÃO Aparecida Fernandes (Coordenadora de Assinaturas) assinaturaspesquisa@fapesp.br
OPERAÇÕES Andressa Matias
SECRETÁRIA DA REDAÇÃO Ingrid Teodoro
PesquisaFapesp
PARA ANUNCIAR
É PROIBIDA A REPRODUÇÃO TOTAL OU PARCIAL DE TEXTOS, PesquisaFapesp
FOTOS, ILUSTRAÇÕES E INFOGRÁFICOS SEM PRÉVIA AUTORIZAÇÃO
Contate: Paula Iliadis
TIRAGEM 28.400 exemplares
IMPRESSÃO Plural Indústria Gráfica E-mail: publicidade@fapesp.br pesquisa_fapesp
DISTRIBUIÇÃO RAC Mídia Editora

GESTÃO ADMINISTRATIVA FUSP – FUNDAÇÃO DE APOIO @pesquisa_fapesp


À UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
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PESQUISA FAPESP Rua Joaquim Antunes, no 727,
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10o andar, CEP 05415-012, Pinheiros, São Paulo-SP Preço atual de capa acrescido do custo de postagem.
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CIÊNCIA, TECNOLOGIA E INOVAÇÃO cartas@fapesp.br
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PESQUISA FAPESP 332 | 97


FOTOLAB O CONHECIMENTO EM IMAGENS

Sua pesquisa rende fotos bonitas? Mande para imagempesquisa@fapesp.br


Seu trabalho poderá ser publicado na revista.

Acima da floresta
Esse anel de torres está em fase de conclusão para despejar ar enriquecido
em gás carbônico (CO2) sobre uma pequena área de floresta amazônica,
80 quilômetros ao norte de Manaus. É parte de um experimento do projeto
AmazonFACE em uma reserva do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia
(Inpa), que no final de 2024 entrará em ação com outros cinco anéis.
O experimento medirá uma diversidade de respostas fisiológicas da floresta
diante das condições previstas para a mudança do clima. Duas imensas gruas
ao lado de cada um dos anéis facilitarão a pesquisa de dossel. “Ver a floresta
de cima é uma experiência indescritível, chega a umedecer os olhos”, conta
o ecólogo David Lapola, da Universidade Estadual de Campinas.

Imagem enviada por David Lapola, do Laboratório de Ciência


do Sistema Terrestre da Unicamp

FOTO BRUNO TAKESHI T. PORTELA / INPA

98 | OUTUBRO DE 2023
A FAPESP convida bolsistas de pós-doutorado
com atuação no Brasil para participar da

ESCOLA INTERDISCIPLINAR

2023
HUMANIDADES,
CIÊNCIAS SOCIAIS E ARTES

O encontro será entre os dias 10 e 13 de dezembro


em Embu das Artes, São Paulo.
Os bolsistas terão oportunidade de conhecer, interagir
e debater com lideranças científicas do Brasil e do exterior
e estabelecer laços profissionais com seus pares.

INSCRIÇÕES ABERTAS ATÉ 04 de novembro de 2023

Para mais informações


e inscrições, acesse

PESQUISA FAPESP 332 | 99


À VENDA EM BANCAS
DE TODO O PAÍS

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