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BR
UMA DOSE
DE DISCÓRDIA
Limite do que seria
beber com moderação
diminui no mundo
Uma em cada Políticas de isenção Vidro bioativo Distintas formas Falhas de Financiamento
sete brasileiras e desconto para tem potencial de cartografia planejamento a pesquisas sobre
realiza aborto publicar artigos para tratar ajudam a urbano, chuvas doenças tropicais
até os 40 anos, são inacessíveis câncer ósseo reconhecer fortes e solo frágil negligenciadas
metade delas a pesquisadores e induzir terras indígenas intensificam encolhe nas
na adolescência do país regeneração e quilombolas fendas gigantes últimas décadas
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Domingos, às 16h
MAIO 2023
327
ECOLOGIA 88 MEMÓRIA
59 Pesquisadores medem O jesuíta Buenaventura
taxa de natalidade de Suárez observou
onças-pintadas do Pantanal e descreveu eclipses com
precisão no século XVIII
MUNDO DIGITAL
62 Legislação brasileira 92 OBITUÁRIO
sobre segurança de Boris Fausto (1930-2023)
dados avança, mas
vulnerabilidade persiste 94 ITINERÁRIOS
Marco Nalon explica o uso
ENGENHARIA BIOMÉDICA de geoprocessamento de
66 Sensor para verificar dados no mapeamento
pressão intracraniana da vegetação nativa
poderá dar informações
em tempo real 96 RESENHA
Do Roraima ao Orinoco:
ENGENHARIA DE MATERIAIS Resultados de uma
70 Vidro bioativo tem viagem no Norte do Brasil
potencial para eliminar e na Venezuela nos anos
células cancerígenas de 1911 a 1913,
de Theodor Koch-Grünberg.
ANTROPOLOGIA Por Pablo de Castro Albernaz
74 Cartografias distintas
ajudam a reconhecer terras 97 COMENTÁRIOS Capa
indígenas e quilombolas 98 FOTOLAB Aline van Langendonck
WWW.REVISTAPESQUISA.FAPESP.BR
Pesos e medidas
Alexandra Ozorio de Almeida | DIRETORA DE REDAÇÃO
Q
ue álcool em excesso faz mal, todo mun- atividade não é realizada de modo contínuo por
do sabe. A pergunta, para governos que uma única área do cérebro, como se pensava. Ao
definem políticas públicas e para quem menos duas regiões trabalham de forma coor-
gosta de beber, é: como se define excesso? denada e consecutiva na execução dessa tarefa,
A resposta não é simples e muda à luz de novos mostram experimentos com ratos (página 54).
conhecimentos. O limiar do tolerável depende, A febre amarela, contra a qual não existe cura,
além do teor alcoólico da bebida e do tamanho da é objeto de pesquisa promissora, desenvolvida
dose, de fatores como a idade de quem bebe, sexo, por pesquisadores da USP e da Fiocruz em cola-
constituição física, genética, estilo de vida e estado boração com cientistas norte-americanos. Foram
geral da saúde. Mesmo estabelecidas as principais identificados dois anticorpos humanos com po-
variáveis, não há consenso na literatura científica. tencial de tratamento que, quando administra-
Há, sim, uma convergência na direção de que dos a roedores e macacos, permitiram que eles
inexiste medida segura. Mesmo em quantidades sobrevivessem à infecção pelo vírus causador
mínimas, o álcool traz riscos à saúde, principal- dessa febre hemorrágica.
mente de problemas no coração, câncer, distúr- Lembrando que os resultados ainda são preli-
bios mentais, cirrose, além de envolvimento em minares, a possibilidade de um tratamento a uma
acidentes e violência física. doença que mata entre 20% e 50% dos pacien-
Essa convergência tem levado à revisão, por tes indica um novo caminho nos estudos dessa
autoridades nacionais em diversos países, das doença endêmica no Brasil (página 50).
recomendações de ingestão moderada de bebi- Em pauta correlata, reportagem à página 36
das alcoólicas, mostra o editor Marcos Pivetta mostra que investimentos públicos em pesquisas
na reportagem que ilustra a capa desta edição sobre doenças tropicais negligenciadas diminuí-
(página 12). ram significativamente no país nas últimas duas
Quatro anos atrás, a revista reportou a mudan- décadas. Febre amarela não integra mais o gru-
ça na forma de mensurar o quilograma, a última po, composto por moléstias como hanseníase e
das sete unidades fundamentais até então ainda esquistossomose, que afetam principalmente
calculada com base em um objeto físico (veja o populações e países pobres.
vídeo https://revistapesquisa.fapesp.br/vale-quan- O tema é difícil, mesmo para adultos, então pa-
to-pesa/). A medição do tempo já havia sido alte- ra educadores é oportuno o lançamento recente
rada na década de 1960, com a adoção de relógios de livro gratuito com 62 verbetes sobre morte,
atômicos para calcular a duração de 1 segundo, luto e memória. Pensada para alunos do ensino
que passou a ser definida pelo tempo de transi- básico, a publicação organizada por dois historia-
ção de níveis de 1 átomo de césio 133 em repouso. dores das universidades federais de Uberlândia
É assim que a ciência mede o tempo, mas e o e Pelotas tem como meta levar a discussão so-
cérebro, como cronometra segundos? Pesquisa- bre como lidar com questões relativas à finitu-
dores da UFABC, que procuram decifrar como de humana para dentro das escolas desde cedo,
diferentes regiões cerebrais codificam a passa- de forma crítica, reflexiva, e fundamentada na
gem de intervalos breves, descobriram que essa ciência (página 84).
6 | MAIO DE 2023
Os sons das A forma de uma
colmeia se
plantas feridas assemelhava
a um suposto ser
de 550 milhões
Quando estressadas, por exemplo, de anos
pela falta de água, as plantas
apresentam alterações na cor, no cheiro
e na forma. Podem também liberar
compostos orgânicos voláteis. Ou ainda
emitir sons ultrassônicos, na frequência 2
Em resolução publicada no Diário Oficial do Estado de (Pites), um convênio firmado entre a USP e as univer-
São Paulo de 7 de abril de 2023, o governador de São sidades Jean Moulin Lyon 3, Lumière Lyon 2 e Jean
Paulo, Tarcísio de Freitas, reconduziu Fernando Me- Monnet de Saint Étienne, todas na França. A parceria
nezes de Almeida ao cargo de diretor administrativo permite aos alunos brasileiros obter o diploma de li-
da FAPESP por mais três anos. A escolha foi feita a cence en droit, expedido pelas universidades parceiras
partir da lista tríplice de candidatos elaborada pelo e com validade europeia. Menezes foi secretário ad-
Conselho Superior da Fundação, encabeçada por Me- junto de Ciência, Tecnologia e Desenvolvimento Eco-
nezes. Professor titular da Faculdade de Direito da nômico do Estado de São Paulo (2003-2006) e as-
Universidade de São Paulo (USP), onde fez a gradua- sessor da presidência da FAPESP (2007-2016). Des-
ção e o doutorado, desde 2014 coordena o programa de maio de 2017, ele exerce a função de diretor ad- Menezes, renomeado para mais
Parceria Internacional Triangular de Ensino Superior ministrativo da Fundação. um mandato de três anos
8 | MAIO DE 2023
Método para prever
os caminhos dos
incêndios no Cerrado
Quando começa um incêndio na vegetação, tão
importante quanto combater as chamas iniciais
é prever a direção para onde poderão avançar.
Suas rotas dependem principalmente do relevo,
do vento e da maior ou menor umidade do solo
e da vegetação. Com essas variáveis em vista,
pesquisadores das universidades federais de Minas
Gerais (UFMG) e de Brasília (UnB), do Instituto
Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade
(ICMBio) e do Instituto Nacional de Pesquisas
Espaciais (Inpe) criaram um sistema de previsão
FOTOS 1 MARCOS SANTOS / USP IMAGENS 2 EDUARDO CÉSAR / REVISTA PESQUISA FAPESP 3 MIKHAIL NILOV / PEXELS 4 JOSE CRUZ / AGÊNCIA BRASIL INFOGRÁFICO ALEXANDRE AFFONSO / REVISTA PESQUISA FAPESP
Documentos na língua
nativa, os preferidos
Uma equipe coordenada por Tatsuya Amano, da Como os autores escolhem suas fontes
Universidade de Queensland, Austrália, examinou 333 A preferência é por materiais não acadêmicos na própria língua (respostas múltiplas)
documentos sobre a situação da biodiversidade em
37 países ou territórios nos quais o inglês não é o Linguagem: n Não inglês n Inglês
10 | MAIO DE 2023
FOTOS 1 T. ZUYUA / WIKIMEDIA COMMONS 2 MAYOBS – IPGP / CNRS / IFREMER / BRGM 3 ALEKSANDR OSIPOV / WIKIMEDIA COMMONS 4 L’HÉRITIER, M. ET AL. PLOS ONE. 2023
O TAMANHO
DA DOSE
Estabelecer se há um limite moderado para o consumo
do álcool está cada vez mais difícil
B
eba com moderação. A frase que bar com os amigos ou um brinde numa festa de
embala as propagandas de be- casamento ou aniversário?
bidas alcoólicas recorre ao bom Não há consenso na literatura científica sobre
senso das pessoas, mas deixa em quanto seria beber com parcimônia, algo como
aberto um ponto central: com um padrão de consumo sem repercussões negati-
quantos copos de cerveja, taças vas ou com impactos quase desprezíveis na saúde
de vinho ou doses de destilado física e mental. Nas últimas décadas, alguns estu-
se faz um consumidor regrado? dos sugeriam que o consumo de pequenas doses
É razoável argumentar que não de álcool, geralmente vinho tinto, poderia ser
há um número mágico universal, benéfico ao coração, mas o tema permanece po-
que se adéque a todos os públi- lêmico e hoje é contestado por muitos trabalhos.
cos. Esse limite dependeria de O pouco que se ganharia em termos de proteção
uma série de fatores, como idade, sexo, consti- cardiovascular seria anulado pelo aumento da
tuição física, características genéticas, estilo de probabilidade do surgimento de outras doenças
vida e estado geral de saúde do indivíduo, além (ver quadro na página 17).
do teor alcoólico do líquido ingerido. A conclusão dominante de um conjunto de es-
A maioria das cervejas tem cerca de 5% de tudos e recomendações mais recentes é a de que
álcool, aproximadamente dois quintos do teor não há dose, por pequena que seja, com risco zero
de etanol predominante em vinhos e espuman- à saúde. Quanto menor for a ingestão de álcool,
tes. A cachaça, o uísque, a vodca, o gim – enfim, menor o risco de desenvolver doenças relacionadas
os destilados – têm por volta de oito vezes mais a esse hábito, como problemas no coração, alguns
álcool do que a cerveja. Então, além da quanti- tipos de câncer, cirrose hepática, distúrbios men-
dade, o tipo de bebida consumida também entra tais e alcoolismo, sofrer ou provocar acidentes e se
na equação da moderação. Isso sem falar que, envolver em violência física. Essa é a mensagem
não raro, a ocasião às vezes induz o bebedor ao central da Organização Mundial da Saúde (OMS)
copo. Quem recusa um chopinho numa mesa de e de boa parte dos trabalhos científicos atuais.
285 ML 100 ML
14 13,45 10-14 de uma cerveja com de vinho com
12 4,9% de álcool 13% de álcool
10 10
8
30 ML
de destilados
com 40%
Áustria EUA Canadá Itália Brasil* França Austrália Reino Unido
de álcool
FONTE OMS / CANADIAN CENTRE ON SUBSTANCE USE AND ADDICTION *Não há um valor oficial
14 | MAIO DE 2023
Filho, da Faculdade de Saúde Pública da USP e
diretor-presidente da Fundação Oncocentro de AS NOVAS DIRETRIZES DO CANADÁ
São Paulo (Fosp). “Com o álcool, parece que o tem-
po de uso da substância tem um peso menor do No início de 2023, o país divulgou uma das
que o tamanho da dose ingerida no surgimento de recomendações mais restritivas entre as nações
cânceres.” Essa seria uma das explicações para as que não proíbem o consumo de álcool
mulheres, que metabolizam mais lentamente o ál-
cool, terem um risco maior de desenvolver câncer
Alto e
de mama devido ao consumo regular da bebida. crescente a
Sete ou mais
Wünsch participou de um grande trabalho cada dose
Risco de
realizado pelo projeto International Head and Quantidade extra tomada
desenvolver
Neck Cancer Epidemiology que analisou a cor- de doses doenças
relação estatística entre a incidência de câncer de álcool por causa da
na cavidade oral, laringe e orofaringe (a parte da por semana*
3a6 Moderado
bebida
garganta logo atrás da boca) e hipofaringe (pouco
antes do esôfago), a dose de álcool consumida e
há quanto tempo os pacientes bebiam. O estudo, 1a2 Baixo
* A dose canadense
que se baseou em resultados de 26 trabalhos an- tem 13,45 gramas
de etanol puro
teriores, analisou dados de mais de 62 mil pes- e é mais de um terço
maior do que a
soas, das quais cerca de 40% tinham recebido um FONTE CANADIAN CENTRE ON SUBSTANCE USE AND ADDICTION definida pela OMS
O
nal of Cancer em outubro de 2020. dose recomendada pela OMS”, comenta a psicó-
loga Clarice Madruga, da Unidade de Pesquisa
s novos limites recomendados no em Álcool e Drogas da Universidade Federal de
Canadá são bem mais severos do São Paulo (Uniad-Unifesp). “Hoje sabemos que
que os preconizados na revisão não há dose segura para consumo de álcool. Em
anterior, de 2011, que aconse- pesquisa é muito comum usarmos o indicador que
lhava até 15 doses semanais pa- chamamos de binge drinking, caracterizado pela
ra homens e 10 para mulheres. ingestão, em uma única ocasião, de quatro ou mais
Também difere bastante das re- doses de bebida para mulheres e cinco ou mais
comendações difundidas pelos para homens.” Além de levar a eventuais danos
serviços de saúde de outros paí- de longo prazo à saúde, esse nível do consumo
ses para consumo moderado de de álcool causa embriaguez e aumenta o risco
bebidas alcoólicas entre adultos imediato de acidentes e de violência interpessoal.
saudáveis. Nos Estados Unidos, Para formular diretrizes sobre o que seria um
o limite indicado é de até duas doses diárias para consumo baixo ou moderado de álcool é preciso
homens e uma para mulheres. No Reino Unido, ter em mãos estudos epidemiológicos de amplo
é de 14 doses semanais para ambos os sexos. Na alcance, que levem em conta os mais variados
Austrália, que atualizou suas diretrizes no fim de tipos de impacto, de curto e de longo prazo, so-
2020, as recomendações estipulam até 10 drin- bre a saúde das pessoas. O Canadá, por exemplo,
ques por semana, nunca mais de quatro doses em constituiu um painel com 23 especialistas que
uma única ocasião. Na França, a quantidade de procuram por estudos sobre álcool e saúde dis-
drinques considerada de baixo ou moderado risco poníveis em 10 bases de dados científicos. Foram
é a mesma da Austrália, mas ainda é aconselhado considerados trabalhos de revisão e meta-análi-
não ultrapassar duas doses em uma jornada e ses publicados entre 6 de janeiro de 2017 e 17 de
ficar ao menos um dia por semana sem beber. fevereiro de 2021 que abordassem uma questão
É preciso tomar cuidado ao comparar as quan- central: riscos e benefícios do álcool à saúde de
tidades de doses de bebida alcoólica de diferen- curto e longo prazo e durante a gestação e o de-
tes países. Não há um padrão universalmente senvolvimento infantil.
A
“Atualmente, os painéis de especialistas es- vários lugares do mundo (ver quadro na página 17).
tudam as ligações que existem entre o nível de
consumo de álcool e as probabilidades de morte rtigo de pesquisadores da Uni-
por causas [doenças] sabidamente relacionadas versidade de Brasília (UnB)
ao uso dessa substância, como cirrose, câncer de publicado em outubro de 2022
mama, derrames e problemas de coração”, expli- na revista científica PLOS ONE
ca, em entrevista por e-mail a Pesquisa FAPESP, calculou que os custos diretos
o psicólogo Tim Stockwell, da Universidade de e indiretos (faltas ao trabalho)
Vitória, um dos participantes do painel canaden- com problemas de saúde rela-
se. “Foi assim que nosso painel estimou recen- cionados ao consumo de álcool
temente que apenas seis drinques por semana no Brasil entre 2010 e 2018 fo-
aumentava o risco de morte por doenças em 1%.” ram de cerca de US$ 1,5 bilhão
O número pode parecer pequeno, mas a dis- (aproximadamente R$ 7,5 bi-
cussão se dá em níveis de consumo de álcool que lhões). Foram gastos US$ 740
são socialmente toleráveis e percebidos por mui- milhões com hospitalização, US$ 420 milhões em
tas pessoas como plenamente aceitáveis. Então cuidados com pacientes que não foram internados
estavam errados os estudos que apontavam que e US$ 330 milhões devido ao absenteísmo laboral.
um consumo modesto de álcool, geralmente de Em 2018, por exemplo, os custos diretos referen-
vinho tinto, poderia fazer bem ao coração? “A tes ao consumo de álcool representaram 0,56%
ideia de que o vinho está associado a benefícios dos US$ 22,8 bilhões gastos naquele ano pelo
16 | MAIO DE 2023
Sistema Único de Saúde (SUS) com internações álcool (62,9% entre os homens e 83,0% entre as
e despesas com paciente. Os valores se baseiam mulheres). Mais de 60% dos que bebiam regu-
em dados do SUS e do sistema nacional de segu- larmente disseram ingerir menos de 12 gramas
ridade. No trabalho, foram considerados 21 tipos de etanol por dia, o índice mais baixo entre os
de complicações de saúde e acidentes que podem que não se declararam abstêmios. Mesmo assim,
ter relação com o consumo de álcool, de acordo por representar a maior faixa dos consumido-
com o padrão adotado no estudo internacional res, essa fatia de pessoas vistas como bebedores
The global burden of disease (O peso global das moderados é a que mais impacta o SUS em ter-
doenças, em tradução livre). mos de custos de saúde relacionados a proble-
Alcoolismo, acidentes não intencionais e ba- mas por conta de ingestão de álcool. “Apesar de
tidas no trânsito foram, nessa ordem, os proble- a categoria de 12 gramas por dia ser a menor em
mas que mais geraram gastos de hospitalização. quantidade de álcool consumida, ela é uma das
Só o tratamento do câncer de mama, um dos sete principais em termos de risco atribuído à popu-
tipos de tumor cujo aparecimento pode ser cau- lação, dada a sua maior prevalência”, escrevem
sado pela ingestão de álcool, respondeu por mais no artigo Mariana Gonçalves de Freitas e Everton
de 45% das despesas com doenças associadas a Nunes da Silva, do Programa de Pós-graduação
esse hábito que não requereram internações. O em Saúde Pública da UnB.
estudo levou em conta dados de consumo de ál- Um dado preocupante é que o consumo entre
cool no Brasil coletados em 2019 na população as mulheres, embora ainda em menor escala e
adulta, com 18 anos ou mais, pela Pesquisa Nacio- menos abusivo do que o dos homens, apresenta
nal de Saúde (PNS), uma iniciativa do Instituto tendência de crescimento no Brasil. Na PNS de
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 2019, 17% das mulheres disseram beber uma vez
parceria com o Ministério da Saúde. por semana diante de 13% na PNS anterior, de
Segundo essa PNS, 73,4% da população brasi- 2013. Entre os homens houve uma ligeira queda
leira declarou que não consome semanalmente na quantidade de bebedores entre as duas pes-
N
cada em 2020. nenhum benefício à saúde. Para pessoas acima
dos 40 anos, o risco varia conforme a idade e a
o caso das mulheres, um dos região geográfica que a pessoa vive. No entanto, o
principais problemas associados trabalho indica que indivíduos mais velhos, sem
ao consumo de álcool é o aumento problemas de saúde, poderiam se beneficiar com
do risco de câncer de mama, o consumo diário de um a dois drinques, cada um
o mais comum na população deles com 10 g de etanol. Esses eventuais efeitos
feminina. Segundo estudo positivos se concentrariam na área cardiovascular.
publicado em 2018 no periódico “Consumido com moderação, o álcool reduz o
Asian Pacific Journal of Cancer risco de doença arterial coronariana, de derrame
Prevention, mulheres com menos e de diabetes. Mas ele também aumenta a proba
de 50 anos que consumiam bilidade de muitos cânceres, de acidentes, de cirrose
regularmente álcool há pelo e de doenças infecciosas, como tuberculose”,
menos uma década tinham um comenta, em entrevista a Pesquisa FAPESP,
risco três vezes maior de desenvolver esse tipo a pesquisadora Dana Bryazka, do Instituto
de tumor. O estudo foi feito com 1.506 mulheres de Métricas e Avaliação da Saúde (IHME) da
atendidas no Instituto Fernandes Figueira da Universidade de Washington, dos Estados Unidos,
Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), do Rio de coordenadora do estudo. Com apoio da OMS e de
Janeiro, das quais 1.100 formaram um grupo de outras agências, esse grupo do IHME coordena
controle (não tinham a doença) e 406 tinham o projeto The global burden of disease. Trata-se
recebido esse diagnóstico. O estudo, no entanto, de um grande esforço internacional que, há mais
não detalhou qual era o nível de consumo médio das de 30 anos, estuda o impacto das patologias na
participantes, apenas se eram abstêmias ou bebiam. mortalidade e morbidade da população do planeta.
18 | MAIO DE 2023
ÁLCOOL É CONSIDERADO CARCINOGÊNICO
HÁ MAIS DE UMA DÉCADA
Desde 2012, o etanol presente nas comenta o médico sanitarista Victor Wünsch provocada, em muitos casos, pela ação
bebidas alcoólicas faz parte do grupo 1 Filho, da Faculdade de Saúde Pública da conjunta de múltiplos fatores de risco. Mas
de agentes e substâncias classificados Universidade de São Paulo (FSP-USP) e algumas alterações biológicas associadas
como carcinogênicos pela Agência diretor-presidente da Fundação Oncocentro ao surgimento de tumores já são conhecidas.
Internacional de Pesquisa em Câncer (Iarc) de São Paulo (Fosp). Apenas sinaliza o grau “O acetaldeído, por exemplo, é capaz de
da Organização Mundial da Saúde (OMS). de confiabilidade da informação científica promover danos no DNA celular”, diz Thainá
Essa categoria abrange atualmente sobre sua capacidade de gerar tumores. Alves Malhão, do Instituto Nacional de
126 itens, sobre os quais há evidência Uma gama diversa de compostos Câncer (Inca). “O maior consumo de etanol
científica suficiente de que são capazes químicos, misturas complexas, moléculas também pode induzir estresse oxidativo por
de causar câncer em seres humanos. farmacêuticas, agentes físicos e biológicos meio do aumento da produção de espécies
É a classificação mais severa que um aparecem na listagem da entidade. reativas de oxigênio, que são tóxicas ao
agente pode receber. Substâncias provável O tabaco, a poluição atmosférica, a luz solar, material genético e carcinogênicas.” Nas
e possivelmente carcinogênicas são os raios gama e X, os vírus HPV e Epstein- mulheres, o álcool pode elevar os níveis
catalogadas, respectivamente, nos grupos Barr são exemplos de carcinógenos dentro circulantes do hormônio estradiol, alteração
2A e 2B. As que não provocam câncer do grupo 1 ao lado do etanol. O acetaldeído, que aumenta o risco de câncer de mama.
são listadas no grupo 3. um composto químico produzido no Por fim, há ainda um efeito indireto
A classificação da Iarc não indica a processo de metabolização do álcool no da presença do álcool no organismo.
probabilidade de um agente provocar câncer organismo e associado à sensação de Ele age como um solvente e favorece a
em função do grau de exposição dos seres ressaca, também faz parte dessa categoria. penetração nas células de outras
humanos a ele. “Ela não mede se um agente Não se sabe em detalhes os mecanismos substâncias carcinogênicas, como
causa mais ou menos câncer do que outro”, que levam o álcool a causar câncer, doença as presentes no tabaco.
O artigo na Lancet levou em conta dados do consumo 1920 e 1933 nos Estados Unidos. A chamada Lei
de bebidas alcoólicas de 204 países e seu impacto Seca norte-americana foi uma medida radical,
sobre 22 doenças ou tipos de acidentes. sem efetividade, e socialmente insustentável. Hoje
Atingir um consenso sobre o que seria uma pouco mais de 10 países, a maioria por motivos
ingestão moderada, ou tolerável, de álcool é religiosos, proíbem total ou parcialmente a venda
muito difícil. Alguns pontos, no entanto, são hoje de bebidas alcoólicas. No Brasil, bebe-se, em média,
inegociáveis. Certas parcelas da população não entre 7 e 8 litros de etanol por ano por habitante.
devem beber de forma nenhuma. Esse é o caso dos Boa parte dos países da Europa, onde o consumo
menores de idade, cujo desenvolvimento cerebral é mais elevado, ultrapassa 12 litros por ano.
pode ser afetado pelo álcool, e das grávidas e Na pandemia, a bebida se tornou um companheiro
lactantes. “O álcool passa pela placenta, chega ao de muitas pessoas que estavam isoladas em casa. O
feto e também é repassado ao bebê na amamentação”, consumo aumentou em todo o mundo e a incidência
afirma Arthur Guerra. Certas situações requerem de doenças relacionadas ao álcool também. “O
uma política de tolerância zero com o álcool, como mercado brasileiro é pouco controlado. Não há
antes de dirigir ou realizar tarefas que possam causar nem uma licença específica que regulamente quem
acidentes ou oferecer perigo à vida. É igualmente pode e quem não pode vender álcool”, diz Clarice
prudente não beber em excesso antes de tomar Madruga, da Unifesp. “Precisamos de políticas
decisões importantes. Há inúmeros casos – alguns públicas mais claras e definidas para o setor.” A
anedóticos – sobre situações que ocorrem sob o efeito OMS e autoridades sanitárias pressionam por mais
do álcool, como casamentos entre desconhecidos em controles na venda do álcool. O governo da Irlanda
uma capela de Las Vegas, nos Estados Unidos, que, estuda colocar nos rótulos das bebidas avisos sobre
logo em seguida, se arrependem do ato. os possíveis malefícios decorrentes do consumo
Informar a população e os formuladores de de álcool, como ocorre com o tabaco. Se vier a ser
políticas públicas sobre os riscos associados ao implementada, a medida poderá ser um sinal de
consumo de álcool, um hábito arraigado na maior uma nova era na relação milenar do homem com
parte das sociedades, é a tônica dos estudos mais as bebidas alcoólicas. n
recentes. Mesmo os mais combativos críticos do
papel do álcool nas sociedades não defendem Os artigos e relatórios citados nesta reportagem estão listados na
atualmente sua proibição, como ocorreu entre versão on-line.
MILÊNIOS
As bebidas alcoólicas
acompanham a sociedade
desde o surgimento
das cidades e a adoção
da agricultura
H
á cerca de 10 mil anos, Em sua longa história, o álcool se tor- do a Jesus é a transformação da água
no chamado período nou a droga psicoativa mais difundida em vinho, bebida que, posteriormente,
Neolítico, marcado nas sociedades. Ligadas ao convívio so- seria adotada como o sangue de Cristo
pelo surgimento dos cial, a rituais metafísicos ou a cerimônias na cerimônia da eucaristia.
esboços das primei- religiosas, as bebidas estiveram presen- Essa dimensão espiritual e ligada a
ras cidades e início do tes em todas as civilizações do passado festividades está presente nas mais di-
processo de domesti- e hoje permanecem aceitas na maioria versas culturas. No livro Selvagens be-
cação de plantas para a dos países, com exceção de pouco mais bedeiras: Álcool, embriaguez e conta-
nascente agricultura, o de uma dezena de nações islâmicas. Na tos culturais no Brasil colonial (séculos
homem provavelmente Mesopotâmia, há cerca de 6 mil anos, XVI-XVII) (Alameda Editorial, 2011),
passou a conviver mais os sumérios já consumiam vinho e cer- o historiador João Azevedo Fernandes
20 | MAIO DE 2023
2
Detalhe de relevo
persa na escadaria de
Apadana (página
oposta), pintura de
Baco, o deus grego do
vinho, e representação
de consumo de
cerveja no Antigo Egito
consumo. Mas o próprio termo álcool é germes em seu líquido, do que a água que Embora por vezes resvalem em argu-
de origem árabe, a exemplo da palavra se conseguia nas cidades. mentos econômicos ou morais, as dis-
alambique. Não por acaso, é atribuída Para o historiador Henrique Soares cussões atuais sobre quanto um bebedor
aos árabes a introdução na Europa me- Carneiro, da Faculdade de Filosofia, Le- moderado poderia consumir de álcool
dieval, por volta do século X, do processo tras e Ciências Humanas da Universidade se insere, em grande medida, dentro do
de destilação, que consiste na separação de São Paulo (FFLCH-USP), o álcool e as debate científico a respeito de (novos)
dos constituintes de uma mistura líqui- drogas em geral são um dos elementos efeitos deletérios associados a essa subs-
da por meio de sua vaporização parcial. fundadores da civilização humana por tância intoxicante. Mas sempre há quem
Essa operação é a base da elaboração de seu valor econômico, social e cultural. prefira também colocar nessa equação ar-
uma categoria de bebidas, a dos destila- “Desde o fim do século XIX, a história das gumentos socioculturais, além da questão
dos, que engloba o conhaque, o uísque, drogas é, antes de tudo, a história de suas física. “Não sou médico, mas, pelo que li,
o gim e um sem-número de aguardentes. regulações, de como elas são autorizadas aceito que o álcool é prejudicial ao ser
Embora embriaguez, comportamentos a circular nas sociedades e das políticas humano no sentido fisiológico. Porém,
antissociais e eventuais malefícios físicos de repressão, incitações e tolerância a se olharmos para as pessoas de forma
tenham sido associados à ingestão exces- seu uso”, comenta Carneiro, coordenador holística, pode ser que os efeitos de seu
siva de líquidos fermentados e destilados do Laboratório de Estudos Históricos de consumo moderado sejam benéficos em
em diferentes momentos da história e Drogas e Alimentação da FFLCH. Mais do geral – ou seja, que seu dano fisiológico
sociedades, o álcool, em suas variadas que possíveis danos à saúde, a proibição seja equilibrado ou superado pelos be-
formas, foi um companheiro da prática do uso de certas substâncias na sociedade nefícios emocionais, uma sensação de
médica desde a Antiguidade. Vinhos, cer- industrial, como conta o historiador no bem-estar, de relações sociais lubrifica-
vejas e destilados foram empregados co- livro Drogas – A história do proibicionis- das, ou desfrutar de ocasiões sociais”,
mo tentativas de amenizar os sofrimentos mo (Autonomia Literária, 2018), se dá por diz, em entrevista a Pesquisa FAPESP, o
do corpo, ora como se fosse um remédio razões religiosas, econômicas (não afetar historiador neozelandês Rod Phillips, da
propriamente dito, ora como o veículo no a produção de bens) ou simplesmente por Universidade Carleton, no Canadá, autor
qual se misturava um tratamento, ou, no controle do Estado. Nasce assim o con- de livros sobre a história do álcool e do
caso das bebidas mais potentes, fazendo ceito moderno de três tipos de drogas: as vinho. “É verdade que não precisamos do
o papel dos modernos anestésicos. Até o ilícitas, as lícitas medicinais e as também álcool para obter esses benefícios, mas
século XVIII, era mais seguro beber vi- legais de uso recreativo, como o tabaco e nos acostumamos culturalmente a usá-lo
nho, cuja fermentação matava parte dos as bebidas alcoólicas. para esses fins.” n Marcos Pivetta
TEMPOS
INTENSOS
Neurocientista passa em revista
os três anos em que ocupou
a Diretoria Científica da FAPESP
N
este mês, o neurocientista Luiz Eugênio gerenciar ações que pudessem ser úteis no combate
Araújo de Moraes Mello estará de volta à doença. Também lidou com situações urgentes,
às bancadas dos laboratórios da Univer- como repatriar bolsistas que estavam no exterior
sidade Federal de São Paulo (Unifesp) quando as fronteiras fechavam. Agindo de modo rá-
com frequência maior do que nos últi- pido, a Fundação apoiou pesquisas, ensaios clínicos,
mos anos. Também se engajará em novos projetos, alavancou recursos privados para a área da saúde
um deles relacionado à divulgação de ciência para e estimulou pesquisadores a se empenharem para
jovens. Diretor científico da FAPESP desde abril de entender a Covid-19 e sugerir formas de tratamento.
2020, Mello decidiu não se candidatar à recondução Nas atividades internas de sua diretoria, Mello
do cargo no final do ano passado e deixou a institui- dedicou-se a melhorar processos em curso. Apoia-
ção, em 26 de abril. Será substituído pelo geneticista do pelo colegiado de pesquisadores e servidores,
Márcio de Castro Silva Filho, da Escola Superior de procurou reduzir a documentação para a submis-
Agricultura Luiz de Queiroz, da Universidade de São são de propostas e tornar mais visível a busca de
Paulo, a Esalq-USP (ver nota na página 8). informações no site da Fundação. Procurou ainda
Mello assumiu a Diretoria Científica (DC) em ajustar as informações solicitadas quanto ao perfil
meio à pandemia de Covid-19. No primeiro ano e dos candidatos que pedem auxílios e bolsa. Criou
parte do segundo, ficou concentrado em buscar e e extinguiu programas, além de modificar e forta-
22 | MAIO DE 2023
Mello (de gravata),
com assessores da
Diretoria Científica
24 | MAIO DE 2023
Apenas como exemplo, lembro de um os exames de Covid feitos no Fleury?
trabalho sobre o anticoagulante hepari- E os dados de internação do Sírio e do
na, feito pela Elnara Negri, da Faculdade Einstein? Muito dinheiro. Esses dados
de Medicina da USP e pneumologista do
Sírio-Libanês. As primeiras variantes do Durante são excepcionais e nós os disponibili-
zamos livremente para o Brasil e para
vírus promoviam fenômenos vasculares o mundo. Dados abertos são algo que
muito complexos, que contribuíram se- a pandemia, têm de ser uma mudança cultural. Não
veramente para a mortalidade. A FA- é trivial porque quem produz se sente
PESP financiou as pesquisas da Elnara,
assim como as da Helena Nader, da Uni-
a FAPESP o dono dos dados. O dado de origem do
produto final do estudo, que é o paper,
fesp, que também trabalha com hepari-
na, a linha central de pesquisa dela há
mobilizou também deveria tornar-se público, isto
é, de livre acesso.
muito tempo. Temos apoiado 17 centros
de excelência – com os novos, aprovados a comunidade O Brasil é um lugar atraente para pes-
em abril, agora são 22 –, os Cepid [Cen- quisadores estrangeiros?
tros de Pesquisa, Inovação e Difusão], científica paulista Já foi mais. Nos últimos anos vários as-
há mais de duas décadas. Fizemos uma pectos da sociedade brasileira, talvez
reunião com todos os coordenadores dos
Cepid para dizer que teriam mais apoio
e contribuiu da política, progressivamente tornaram
o Brasil menos atraente. Outro ponto é
para investigar a doença e seus trata-
mentos. Não foi uma atuação passiva. para os que o grau de internacionalização da
nossa ciência é ainda muito baixo. Pou-
Não fiquei aqui sentado para receber e cos falam inglês. Independentemente
analisar as propostas que chegavam. A ensaios clínicos disso, eu acho que São Paulo pode ser
FAPESP mobilizou a comunidade cientí- visto como uma referência. Enquanto
fica paulista e contribuiu para os ensaios
clínicos de vacinas. Tivemos duas delas
de vacinas os nossos pesquisadores e estudantes
podem almejar o Norte Global, nós pode-
testadas no Brasil: a da AstraZeneca/Ox- mos ser almejados por vários outros do
ford, na Escola Paulista de Medicina; e a linhas de fomento de maior agilidade e, Sul Global. Mesmo para o Norte Global,
do Butantan, a CoronaVac. Apoiamos os por fim, capitaneou uma ação que era nós podemos ser atraentes se pensarmos
dois ensaios. No caso do Butantan, en- muito mais abrangente. Na maior parte em pesquisas sobre a Amazônia. O fluxo
tramos com R$ 82,5 milhões. Só que R$ das vezes, a ciência é feita com recursos de ideias e de pessoas é fundamental e
50 milhões desse dinheiro não foram da públicos. Se é assim, entende-se que o temos de continuar trabalhando para a
FAPESP, mas do consórcio Todos pela resultado que essa ciência produziu tam- nossa internacionalização, mandando os
Saúde. E o pessoal do consórcio afirma bém deveria ser público. Essa é a base nossos pesquisadores e estudantes pa-
que só entrou com R$ 50 milhões por- do Open Science, de trabalhar com os ra fora – o que já fazemos com sucesso
que a Fundação desembolsou R$ 32,5 dados que são publicados com acesso –, mas nos esforçando ainda mais para
milhões, foi a avalista. É como se tivés- geral. Mas uma das coisas é o dado pa- receber as pessoas de fora. Não estou
semos alavancado R$ 50 milhões para o ra produzir essa ciência, que poderia falando de “roubar cérebros”, mas de
orçamento da Fundação porque, afinal, ser aberto também. Isso se chama Open fluxo, de pessoas que vão e vêm.
é dinheiro a mais para ações que que- Data – é muito mais abrangente do que
ríamos fazer: apoiar a pesquisa contra Open Science. Criamos uma iniciativa de Nesse tema caberia falar da participa-
a doença. Open Data, em que o apoio da Cláudia ção da FAPESP no GRC, que avançou
Medeiros, do Instituto de Computação bastante no seu mandato. Qual foi a
As ações começaram na transição do da Unicamp e da Coordenação do Pro- importância disso?
período do diretor científico anterior, grama FAPESP de Pesquisa em eScience Esse foi um grande desafio que tive ao
Carlos Henrique de Brito Cruz, para e Data Science, foi fundamental. Essa ini- assumir. Já tínhamos sediado um even-
sua gestão, não é? ciativa chama-se Covid-19 Data Sharing to do GRC, em 2018/2019, em parceria
Isso mesmo, essa ação foi discutida no Brazil [repositoriodatasharingfapesp. com a National Science Foundation, dos
CTA [Conselho Técnico-Administrativo uspdigital.usp.br/]. Estados Unidos. O Brito Cruz se tornou
da FAPESP]. O primeiro projeto apoia- presidente do conselho executivo. Onde
do pela Fundação durante a pandemia, Você se refere ao compartilhamento mais conseguiríamos chegar? Na minha
nessa área, foi aprovado quatro dias de- de informações das pesquisas sobre a gestão, trabalhamos para expandir as
pois de ter sido apresentado. Esse prazo Covid-19? nossas atividades no GRC, não só com a
é sensacional, mostra que tivemos uma É disso que se trata. As primeiras insti- Ana Maria Fonseca à frente do grupo de
resposta muito rápida para uma questão tuições a compartilhar os dados foram trabalho sobre equidade, diversidade e
urgentíssima. A Fundação fez tudo o que o laboratório Fleury e os hospitais Sírio- inclusão, mas também com a Alicia Ko-
estava a seu alcance: buscou outros re- -Libanês e Albert Einstein, três insti- waltowski passando a compor o grupo
cursos, estimulou grupos que talvez não tuições privadas de São Paulo. Quanto sobre métricas responsáveis para avaliar
fossem trabalhar na área, estabeleceu custaria comprar os resultados de todos a pesquisa. Depois, nos voluntariamos
26 | MAIO DE 2023
exemplo, estuda em uma faculdade e tem Nesses três anos na Diretoria Científica sutis, extrapolados por essa situação que
uma colega que é influencer, com 1 milhão você conseguiu fazer pesquisa? é atípica – a epilepsia.
de seguidores. Ela deve ter agora uns 25 Consegui. Em 2009, eu me tornei diretor
anos. Não estou falando que é fácil – fa- de Pesquisa, Desenvolvimento e Inova- Você voltará para a Unifesp agora?
zer bem qualquer coisa nunca é simples. ção da Vale. Quando assumi essa posição, Nunca saí de lá. Vou continuar pesqui-
Mas parece uma coisa de acesso imediato: modifiquei o meu regime de trabalho na sando em paralelo às novas funções. Uma
vou estalar o dedo e virar o Whindersson Unifesp e apresentei um plano de ação delas é a posição como diretor de um novo
Nunes [comediante e youtuber]. na Comissão Permanente de Pessoal Do- museu de ciências para crianças. É um pro-
cente, que foi aprovado. Mantive o meu jeto que se inicia com a perspectiva de se
Nunca é assim, não é? vínculo acadêmico e, portanto, minha deixar um legado, pelo Patrice de Camaret,
Não é assim. Só tem um Whindersson atividade de pesquisador, como neuro- empresário e filantropo franco-brasileiro.
Nunes, e ele deve ter gramado muito, cientista. O que fui fazer na Vale tinha ze-
está sempre se reinventando, fazendo ro de neurociência. Entrei na Vale como Passados esses três anos, o que você
coisas novas. Esse é um mundo em que pesquisador nível 1A do CNPq. Nove anos diria para o futuro diretor científico?
tudo parece imediato. Entre eu ter que depois, eu saí como pesquisador nível 1A A primeira é que a posição é notável por-
estudar matemática e me tornar um in- do CNPq. Então, eu mantive uma ativida- que há a possibilidade de agir sobre o
fluencer, a segunda opção é mais atraen- de intensa de pesquisa. É a minha vida. ambiente de pesquisa no estado de São
te. Agora, quantas pessoas vão virar um Paulo, moldar e influenciar, direcionar
Neymar ou um Whindersson Nunes? Seus estudos continuam direcionados em diferentes aspectos, e isso é muito
Não é fácil ser um jogador de megassu- para a epilepsia? gratificante. O aspecto de se nortear por
cesso, um influencer ou um cientista de Têm a ver com epilepsia. Na época que princípios maiores e gerais e procurar
megassucesso. Mas acho que tem muito comecei a estudar a epilepsia, havia uma não abrir exceções é muito importante.
mais espaço para se tornar um cientista série de textos importantes sobre o as- Vão sempre existir pressões, das mais va-
de bom nível do que ser um jogador de sunto e meu orientador, Esper Abrão riadas naturezas, para quaisquer pessoas,
futebol ou um influencer de bom nível. Cavalheiro, sempre destacava o conceito o tempo inteiro, em qualquer posição.
de “epilepsia, uma janela para o cérebro”. Na FAPESP, talvez as pressões sejam
Mas tem de estudar. A epilepsia permite entender fenôme- maiores ainda e cabe a quem ocupa a
Estudar é gostoso, aprender as coisas é nos fundamentais do sistema nervoso cadeira de diretor científico considerar
muito bom. É algo que dá prazer. Quando que não têm nada a ver com a doença. o que faz sentido, dentro de princípios
se aprende alguma coisa, há uma ilumi- Na epilepsia, muitas vezes, o que temos gerais, idealmente discutidos colegia-
nação que indica que o conhecimento são muitos neurônios disparando poten- damente e compartilhados com outras
já está dentro de você. Santo Agostinho ciais de ação, funcionando juntos e em instâncias diretivas da instituição. Mas
escreveu sobre isso, embora atribuísse à sincronia. Um dos problemas do sistema nunca como decisões unilaterais.
presença de Deus. Se conseguimos encai- nervoso é que os fenômenos são em pe-
xar as peças, temos essa iluminação. E es- quena escala e é difícil enxergá-los. Com Por que você decidiu não se candidatar
sa sensação, que é o aprender, é incrível. o refino das técnicas, tornou-se cada vez à recondução como diretor científico?
mais fácil fazer isso, mas ainda assim, Tenho o entendimento de que certas
A Iniciativa de Mentoria vai na direção quando observamos uma manifestação conjunturas de forças facilitam ou difi-
de fortalecer a carreira de pesquisador? epiléptica, o fenômeno biológico se tor- cultam a execução do trabalho. Em um
Criamos esse programa, graças à lide- na mais claro, mais inequívoco. Muitas dado momento, ainda em 2022, para mim
rança de Catarina Porto, com a intenção vezes, o que temos de fazer é separar o era claro que a conjuntura existente na
de termos um profissional experiente, que é sinal do que é ruído. FAPESP não ajudava para que eu pudes-
o mentor, orientando os pesquisadores se contribuir de uma maneira relevante.
mais jovens na superação dos obstáculos Tudo para entender o funcionamento Talvez outras pessoas, com outros perfis,
e desafios que enfrentam na carreira pro- do cérebro? outros traços de personalidade, possam
fissional. O programa começou em 2022 O tempo inteiro, os nossos 80 bilhões fazer isso melhor. Quando isso ficou claro
e é composto por diferentes atividades de neurônios estão funcionando e de- para mim, busquei trabalhar para preser-
pertinentes à consolidação da carreira de flagrando potencial de ação. Para quem var o que eu entendo que deva ser a visão
pesquisador na academia, na indústria e apenas observa essas ações, é uma bal- da Diretoria Científica. Minha opinião é
no governo. As atividades são desenvol- búrdia. Essa balbúrdia somos nós pen- de que a FAPESP é o que é, não apesar
vidas por meio de módulos: a FAPESP e sando, comendo, sorrindo, lembrando, dos seus diretores científicos, mas por
o sistema de pesquisa paulista; a consoli- dormindo... Conseguir entender essa causa deles. Eu tenho o maior orgulho
dação da carreira científica; o treinamen- complexidade é muito difícil. Trabalhar de suceder ao Brito, ao [José Fernando]
to em ética e integridade da pesquisa; o com epilepsia permite olhar para os neu- Perez, ao Flávio Fava, ao William Saad
treinamento como assessor ad hoc em rônios em atividade síncrona, organi- Hossne [1927-2016] e tantos outros que
fomentos à pesquisa; e os tópicos espe- zada, na qual há algumas respostas: as estiveram à frente da Diretoria Científica.
cíficos para subsidiar as atividades rela- proteínas e genes que estão por trás das Espero ter contribuído para o aprimora-
cionadas à carreira de pesquisador nas ações, os canais iônicos que se abriram mento da instituição e ter atrapalhado
áreas de ciência, tecnologia e inovação. ou fecharam. Dá para estudar fenômenos pouco o seu funcionamento. n
27,65%
Países de renda
média alta
1,32%
Países de renda
média baixa
(DESCONTOS)
ACESSO ABERTO
0,35%
DORES
Países de renda
baixa (ISENÇÕES)
DA
EXCLUSÃO
70,66%
Países de
renda alta
28 | MAIO DE 2023
U
m estudo de pesquisadores das
BENEVOLÊNCIA RESTRITA universidades de São Paulo (USP)
e Estadual de Campinas (Unicamp)
Percentual de artigos científicos provenientes de chamou a atenção para um obstáculo
países/territórios que poderiam ser incluídos em enfrentado por cientistas de países
políticas de desconto ou isenção de taxas para em desenvolvimento quando bus-
publicação em acesso aberto, em relação ao total – cam publicar seus artigos em revistas
base de dados Scopus internacionais de prestígio. Com o
avanço do modelo de acesso aberto,
por meio do qual os leitores têm acesso livre na
internet ao conteúdo de artigos sem precisar
25,6% SEGUNDO pagar taxas ou assinaturas de revistas, os custos
Países de renda OS CRITÉRIOS DO de publicação passaram a recair sobre autores de
papers e suas instituições e órgãos de fomento,
média alta
RESEARCH4LIFE ** que são obrigados a desembolsar aos periódicos
4,05% valores muitas vezes proibitivos. O levantamento,
Grupo B publicado em março no fórum sobre publicações
(50% DE acadêmicas The Scholarly Kitchen, mostra que a
DESCONTO) solução para o problema oferecida por editoras
científicas é ineficaz: as políticas de isenção e
desconto concedidas por revistas a autores são
muito restritivas e inacessíveis a pesquisadores
1,12% de países de renda média, como o Brasil.
De acordo com o trabalho, se forem conside-
Grupo A
(ISENÇÕES)
rados os critérios adotados pelo Research4Life,
uma coalizão de editoras como Wiley, PLOS,
Elsevier, Sage e Science, apenas 1,12% dos ar-
tigos publicados entre 2012 e 2021, disponíveis
na base de dados Scopus, seria beneficiado por
isenções, as quais são concedidas porque seus
autores vivem em nações de renda muito baixa,
principalmente na África, mas também em locais
conflagrados como Iêmen, Síria ou Afeganistão.
Outros 4,05% poderiam receber descontos de
69,22% até 50% das taxas de processamento de artigos
porque provêm de nações de renda média baixa,
Países de
renda alta
a exemplo de países do norte da África, da Amé-
rica espanhola e do sul da Ásia. Em um segundo
cenário, a restrição é ainda maior. Quando são
observadas as normas estabelecidas pelo Pla-
no S, um programa de disseminação de acesso
aberto que começou a ser adotado em 2021 por
um conjunto de agências de fomento de países
europeus e instituições como a Fundação Bill &
Melinda Gates, só 0,35% dos artigos seria isento
de taxas e 1,32% passível de descontos. O recorte
de renda dos países, nesse caso, segue os padrões
do Banco Mundial e é adotado atualmente por
editoras como Springer Nature e Taylor&Francis.
“Na minha especialidade, revistas científicas
cobram entre US$ 3 mil e US$ 5 mil para publicar
um artigo, mas existem casos extremos, como em
periódicos da coleção Nature, em que esse cus-
to supera os US$ 11 mil”, explica a bioquímica
Alicia Kowaltowski, do Instituto de Química da
USP, autora principal do estudo, também assina-
FONTE ARTICLE do pelo físico Paulo Nussenzveig e pelo biólogo
PROCESSING CHARGES
ARE A HEAVY BURDEN FOR Ariel Silber, da USP, e por José Roberto Arruda,
MIDDLE-INCOME COUNTRIES/
**CRITÉRIOS ADOTADOS POR WILEY, PLOS, ELSEVIER, SAGE E SCIENCE THE SCHOLARLY KITCHEN engenheiro mecânico da Unicamp.
P
comentários sobre o trabalho.
30 | MAIO DE 2023
que redirecionariam os valores hoje desembol-
sados com assinaturas de revistas para o paga-
mento das taxas de publicação de artigos e sua
EM PAÍSES DE RENDA MÉDIA, oferta livre na internet.
O
de APC para disseminar a produção científica internacional da comunicação científica.
nacional, ainda que esses títulos não disponham
do impacto e da visibilidade de revistas de elite. Brasil se manteve até agora ao largo
“Temos periódicos nacionais de alta qualidade desse debate, embora tenha inves-
que estão disponíveis para disseminar bons ar- tido em 2020 R$ 380 milhões em
tigos de autores brasileiros”, afirma. contratos com editoras científicas
Para José Roberto Arruda, coautor do levanta- para franquear o conteúdo de suas
mento, não houve menosprezo da importância de revistas a pesquisadores brasileiros
iniciativas de acesso aberto como a SciELO, mas por meio do Portal de Periódicos da
a preocupação em cobrar políticas mais eficazes Capes (Coordenação de Aperfeiçoa-
de renúncia das grandes editoras comerciais. mento de Pessoal de Nível Superior),
“Isso é vital para permitir que pesquisadores de agência do Ministério da Educação responsável
países de renda média alta continuem a publicar por avaliar e financiar programas de pós-gradua-
em revistas científicas de prestígio e altamente ção. Isso agora começa a mudar. Em comunicado
visíveis enquanto os modelos de acesso aberto enviado a Pesquisa FAPESP, a Capes informou
baseados em APC não mudam”, afirmou. Em que “está empenhada em realizar acordos trans-
resposta à crítica de Phil Davis, Arruda disse formativos no sentido de ofertar à comunidade
que não se trata necessariamente de diminuir acadêmica, além da assinatura de publicações
a receita das editoras, mas de distribuir melhor científicas, a publicação de artigos em acesso
os custos entre os pesquisadores de países com aberto”. Segundo a agência, ela está liderando
diferentes níveis de renda e diferentes realidades no país, em parceria com instituições como a
de financiamento à pesquisa. Academia Brasileira de Ciências, a Sociedade
Em tese, o modelo de acesso aberto basea- Brasileira para o Progresso da Ciência e o Con-
do em APC deveria mudar em breve. Em sua selho Nacional de Desenvolvimento Científico e
concepção original, o Plano S determinava que Tecnológico, um movimento para que os pesqui-
todos os artigos resultantes de pesquisas apoia- sadores consigam publicar a preços compatíveis
das por agências e países signatários deveriam com a realidade socioeconômica do país.
ser publicados exclusivamente em revistas de Recentemente a agência iniciou consulta à
INFOGRÁFICO ALEXANDRE AFFONSO / REVISTA PESQUISA FAPESP
acesso aberto a partir de 2020. A data do início comunidade científica sobre o tema e, em maio,
da implementação foi postergada para 2021 e as será realizado workshop colaborativo para de-
regras foram flexibilizadas, permitindo-se, por bater a publicação de artigos em acesso aberto.
exemplo, a existência até 2024 de modelos híbri- “Um dos pontos abordados será o pagamento
dos de publicação, nos quais os autores podem de taxas de processamento de artigos no âmbito
pagar para publicar artigos em acesso aberto dos contratos do Portal de Periódicos”, informa
em periódicos que também vendem assinaturas. a nota da Capes. O assunto entrou na pauta da
Já a partir de 2025, esse formato intermediário agência em novembro passado, na quinta edição
deixará de ser aceito e se espera que as edito- do Seminário do Portal de Periódicos. “Agora,
ras passem a publicar artigos apenas em acesso com o workshop, o objetivo é dar continuidade
aberto, celebrando acordos abrangentes com ao tema e aprofundar as discussões na comuni-
países, agências ou bibliotecas de instituições, dade acadêmica.” n
CAMINHOS
E
ntre os pesquisadores brasileiros da
área médica, colaborações científicas
podem durar cerca de cinco anos – esse
é o prazo aproximado em que duplas
de cientistas atuam conjuntamente
COMPARTILHADOS
compartilhando a autoria de trabalhos
acadêmicos. Em engenharia nuclear e
engenharia biomédica, a longevidade
média dessas coautorias chega a oito
anos. Já em história, letras, filosofia e artes, é bem
Estudo indica quantos anos duram as mais curta, próxima a dois anos – nesses campos
do conhecimento não há ainda uma tradição de
parcerias entre autores de artigos científicos trabalho em cooperação e parte significativa de
sua produção é assinada por poucas pessoas, fre-
do país em 81 áreas do conhecimento quentemente uma só.
O panorama inédito sobre a longevidade de par-
Fabrício Marques | ILUSTRAÇÃO Felipe Mayerle cerias científicas faz parte de um levantamento
sobre a produção acadêmica de doutores do Brasil
em 81 áreas do conhecimento, baseado em dados
da plataforma de currículos Lattes, do Conselho
Nacional de Desenvolvimento Científico e Tec-
nológico (CNPq). “Colaborações que resultam
em coautoria de artigos dependem de variáveis
subjetivas, como a criação de laços de afinidade
e confiança, e da cultura de publicação de cada lho. Foram excluídos do cômputo os que tinham
disciplina. Buscamos observar a probabilidade autores únicos – eram, aliás, mais da metade dos
de pesquisadores se agruparem e amadurecerem trabalhos em áreas mais refratárias às parcerias
relações desse tipo”, explica o cientista da com- científicas, como educação, direito e letras. Para
putação Jesús Pascual Mena-Chalco, do Centro evitar distorções, também foram descartados es-
de Matemática, Computação e Cognição da Uni- tudos com mais de 40 coautores – a física, uma
versidade Federal do ABC (UFABC). área em que vicejam consórcios internacionais
O estudo é resultado da pesquisa de doutorado de pesquisa com milhares de participantes, foi a
ainda em andamento da cientista da computação disciplina com mais trabalhos desconsiderados.
Andréia Gusmão, aluna da UFABC sob orienta- Já o terceiro indicador, batizado de “caminhar
ção de Mena-Chalco, e foi publicado em 2022 na de coautores”, foi estabelecido pelo próprio grupo
revista científica Em Questão. Foram compilados e é determinado pela relação entre longevidade e
artigos, apresentações em congressos, livros e ca- dimensão de coautoria. Os caminhares são mais
pítulos de livro de mais de 200 mil doutores que longos quanto menor é o grupo de pesquisadores
atualizaram sua produção na plataforma Lattes envolvidos – afinal, é mais difícil manter unido
entre 2019 e 2020. Os responsáveis pelo estudo ao longo do tempo um time de quatro coautores
extraíram três indicadores desse volume notável do que três ou dois. Mas o comportamento varia
de dados. Um deles é a durabilidade de uma coau- bastante entre as disciplinas. “Em matemática, os
toria acadêmica: o tempo, em anos, em que vigo- grupos são menores, formados principalmente por
ram colaborações entre grupos de pesquisadores orientadores e alunos ou ex-alunos, mas eles per-
a ponto de isso gerar publicações. manecem unidos ao longo de vários anos. Já nas
O segundo indicador é a dimensão de uma coau- áreas da saúde, como medicina, farmacologia, en-
toria acadêmica: o número de pessoas que parti- fermagem e odontologia, os parceiros podem ser
cipam concomitantemente de um mesmo traba- bem mais numerosos, mas o grupo tende a se man-
E
de dois pesquisadores que escreveram papers jun- trabalhos em coautoria.”
tos por 46 anos, em uma cooperação classificada
como vitalícia. O estudo observou perfis de cola- studos anteriores publicados por Mena-
boração semelhantes em disciplinas que tiveram -Chalco e parceiros haviam se debruçado
uma origem comum, como física e astronomia, sobre outras características das colabora-
biologia e medicina, computação e engenharia ções no Brasil – aproveitando-se do de-
elétrica. “São áreas irmãs, que se desmembraram, senvolvimento de ferramentas da ciência
mas seguem compartilhando práticas de publica- da computação que permitiram extrair
ção”, diz Mena-Chalco. e analisar grandes volumes de informa-
Há muito tempo existe consenso de que a pes- ções da plataforma Lattes. Uma dessas
quisa em colaboração é essencial para o progresso facetas foi o aumento da frequência das
da ciência. Muitos campos de pesquisa se tornaram parcerias: entre 2008 e 2010 foi registrado pouco
tão complexos e especializados que demandam mais de 1 milhão de colaborações, em contraste com
esforços cooperativos e interdisciplinares para apenas 63.944 observadas entre 1990 e 1992 (ver
alcançar avanços do conhecimento. Em algumas Pesquisa FAPESP nº 218). Também foi estudada a
áreas, formaram-se consórcios internacionais cuja influência da proximidade geográfica na formação
produção deu origem a um fenômeno, não aborda- de redes de cooperação (ver Pesquisa FAPESP nº
do pelo estudo da UFABC, conhecido como hipe- 241). No novo trabalho, eles buscaram pistas de
rautoria, que é a publicação de artigos com mais como as colaborações se mantêm ao longo do tempo
de mil nomes de autores, cada qual responsável e os fatores que podem influir em sua estabilidade.
por uma contribuição muitas vezes pequena, por Não é só com dados da plataforma Lattes que
exemplo, na coleta ou na análise de dados (ver o grupo está trabalhando. No ano passado, Mena-
Pesquisa FAPESP nº 289). -Chalco e Gusmão apresentaram os resultados de
“Políticas públicas vêm incentivando e ampliando um estudo no XXII Encontro Nacional de Pesqui-
as colaborações no mundo inteiro. Por isso, conhe- sa em Ciência da Informação (Enancib), em Porto
cer as características e a eficiência dessas parce- Alegre, em que levantaram o perfil de colaborações
rias tornou-se relevante para avaliar os resultados de pesquisadores em ciência da informação. Foram
do trabalho dos pesquisadores”, diz a cientista da analisados artigos publicados entre 1968 e 2021 in-
informação Solange Santos, coordenadora de pro- dexados na Web of Science, base de dados que não
dução e publicação da coleção de revistas SciELO abrange uma produção tão extensa quanto a regis-
Brasil, que também é coautora do artigo feito pelos trada nos currículos Lattes e que se concentra em
10
0
Engenharia nuclear
Eng. de mat. e metalúrgica
Engenharia agrícola
Engenharia de minas
Engenharia sanitária
Engenharia química
Eng. naval e oceânica
Engenharia mecânica
Engenharia civil
Engenharia biomédica
Engenharia elétrica
Engenharia aeroespacial
Astronomia
Odontologia
Geociências
Parasitologia
Química
Recursos florestais
Recursos pesqueiros
Robótica, mecatrônica e automação
Oceanografia
Morfologia
Microbiologia
Medicina veterinária
Medicina
Imunologia
Administração
Física
Fisiologia
Farmacologia
Engenharia de transportes
Engenharia de produção
Agronomia
Engenharia de energia
Demografia
Ciência e tecnologia de alimentos
Ciência da computação
Botânica
Bioquímica
Biofísica
Zoologia
34 | MAIO DE 2023
revistas internacionais tradicionais e consolidadas. São Paulo (EACH-USP) mostrou que artigos assina-
Os resultados evidenciaram, como esperado, que dos conjuntamente por orientadores e orientados
grupos menores publicam juntos por mais tempo cresceram em volume em todas as áreas do conheci-
do que os maiores e que as colaborações institucio- mento desde a década de 1980, com destaque maior
nais, que se caracterizam por conter pesquisadores para as ciências biológicas e agrárias e, mais tardia-
de uma mesma afiliação, são as mais longevas, com mente, para disciplinas como letras e linguística.
duração de 10 anos para grupos de dois coautores. “Mesmo nas humanidades, em que essas coautorias
Em parcerias internacionais, o maior período de co- eram raras porque se dizia que a tese pertence ao
laboração entre dois pesquisadores foi de sete anos. aluno e não ao orientador, observou-se um cresci-
Segundo o cientista da computação da UFABC, mento notável de artigos assinados por professores
os indicadores propostos são objetivos, mas não e estudantes de pós-graduação nos últimos anos,
medem as colaborações em toda a sua complexi- ainda que elas estejam em um patamar menor do
dade. “Nem toda parceria resulta na publicação de que outros campos do conhecimento”, diz um dos
um artigo, assim como há papers com uma grande autores do trabalho, o cientista da computação Lu-
quantidade de coautores em que a relação entre ciano Digiampietri, professor do bacharelado em
eles não necessariamente configura uma colabo- sistemas da informação da EACH-USP. “De modo
ração”, afirma. “Analisamos as interações sociais geral, o progressivo aumento da produção cien-
estabelecidas quando pesquisadores compartilham tífica brasileira nos últimos 40 anos resultou em
a autoria de artigos, mas há muito mais gente envol- um aumento dos estudos feitos em colaboração.”
vida nesse processo, como orientadores, revisores O grupo da UFABC busca agora avaliar os cami-
dos artigos, editores das revistas. Por trás de cada nhares em maior profundidade. “Vamos analisar a
artigo tem o trabalho cooperativo de um número questão do gênero para saber se os caminhares são
INFOGRÁFICO ALEXANDRE AFFONSO / REVISTA PESQUISA FAPESP
15
Longevidade em anos
10
0
Zootecnia
Enfermagem
Educação física
Ecologia
Planejamento urbano e regional
Nutrição
Saúde coletiva
Geografia
Genética
Fonoaudiologia
Fisioterapia
Farmácia
Economia
Educação
Probabilidade e estatística
Ciência da informação
Desenho industrial
Ciências ambientais
Arqueologia
Divulgação científica
Comunicação
Psicologia
Sociologia
Biotecnologia
Serviço social
Biologia geral
Linguística
Matemática
Museologia
Turismo
Arquitetura e urbanismo
Ciência política
Teologia
Antropologia
Letras
História
Direito
Defesa
Artes
Filosofia
FONTE ANÁLISE DA LONGEVIDADE E DO TAMANHO DAS COAUTORIAS ACADÊMICAS: OS CAMINHARES NA CIÊNCIA BRASILEIRA — 2022
FINANCIAMENTO
PESQUISA
Rodrigo de Oliveira Andrade
NEGLIGENCIADA
Paciente com
malária em tratamento
na Fundação de
Medicina Tropical
Dr. Heitor Vieira
Dourado, em Manaus
O
s investimentos públicos em pesquisas sobre essas enfermidades. Foram US$
pesquisas sobre doenças tropi- 3,8 milhões despendidos em 2020, 73% a menos
cais negligenciadas, aquelas que do que em 2019. A reportagem entrou em con-
atraem pouco interesse da in- tato com o MS para um posicionamento sobre
dústria farmacêutica por afeta- os resultados do levantamento, mas não obteve
rem principalmente populações resposta até o fechamento desta edição.
e países pobres, diminuíram significativamente As doenças negligenciadas atingem aproxima-
nas últimas duas décadas no Brasil, de acordo damente 1,7 bilhão de pessoas no mundo, sobretu-
com levantamento feito por pesquisadores do do em países da África, do Sudeste Asiático e da
Ministério da Saúde (MS), da Universidade de América Latina, segundo a Organização Mundial
Brasília (UnB) e do Hospital do Coração, em São da Saúde (OMS). O Brasil ainda é vulnerável a
Paulo. O grupo analisou a evolução dos valores várias delas, com destaque para a dengue, a han-
para estudos sobre moléstias como doença de seníase e as leishmanioses, mas conseguiu avan-
Chagas, hanseníase e esquistossomose entre 2004 çar na redução de outras, como esquistossomose
e 2020 com base em dados do Departamento de e Chagas. Das 20 moléstias que integram esse
Ciência e Tecnologia (Decit), órgão vinculado ao grupo, apenas duas não estão presentes no país, a
MS que financia pesquisas em áreas estratégicas dracunculíase, causada por um parasita chamado
para o Sistema Único de Saúde (SUS) sozinho ou verme-da-guiné, que produz úlceras, principal-
em parceria com outras instituições. mente nas pernas, e a tripanossomíase africana,
O Brasil investiu aproximadamente US$ 230,9 desencadeada por diferentes subespécies de Try-
milhões em 1.158 projetos de pesquisa no período. panosoma brucei, transmitidos pela mosca tsé-tsé
Os valores foram atualizados para 2021 e ajusta- (Glossina), e que, em humanos, afeta o sistema
dos pela paridade de poder de compra, métrica nervoso, levando as vítimas, no extremo, ao coma
usada para equiparar moedas de diferentes países e à morte. Indivíduos em situação de vulnerabi-
de acordo com sua capacidade de adquirir bens e lidade, sem acesso a saneamento básico, saúde e
serviços. O MS respondeu por 69,8% desse valor. educação, são os mais afetados. Estima-se que até
O restante veio de fundos setoriais (14,7%), de 10 mil brasileiros morram por ano em decorrên-
agências estaduais de apoio à pesquisa (11,5%) e cia de alguma doença do rol das negligenciadas,
dos ministérios da Educação e da Ciência, Tecno- sobretudo nas regiões Norte e Nordeste.
logia e Inovação (0,5%). A Fundação Bill e Melin- Coordenadora do Programa Nacional de Han-
da Gates, organização filantrópica com sede nos seníase e Doenças em Eliminação do MS entre
Estados Unidos reconhecida por seus esforços no 2004 e 2007 e de 2011 a 2016, a médica Rosa Cas-
combate a doenças como malária, contribuiu com tália lembra que essas doenças costumam en-
3,6% do quinhão destinado a pesquisas sobre es- curtar a vida produtiva de suas vítimas ou de-
sas moléstias no Brasil – os recursos, nesse caso, sencadeiam condições crônicas que demandam
foram para trabalhos sobre dengue e tuberculose. assistência de serviços de saúde caros e de maior
De acordo com o artigo publicado em março na complexidade por toda a vida, como a cardiopatia
revista PLOS Neglected Tropical Disease, tanto os decorrente da doença de Chagas e as epilepsias
valores aportados quanto a quantidade de estudos associadas à cisticercose.
apoiados variaram bastante ao longo dos anos, Indústrias farmacêuticas, de modo geral, de-
inclusive em períodos com maior disponibilida- monstram pouco interesse em desenvolver me-
de de recursos para a ciência, com quedas mais dicamentos contra essas moléstias – como atin-
acentuadas em anos de troca no governo federal. gem populações pobres, tais remédios teriam um
“A criação de novos conhecimentos para o con- potencial restrito de exploração econômica. “É
trole dessas moléstias depende de investimento importante que os países afetados invistam em
RICARDO FUNARI / BRAZIL PHOTOS / LIGHTROCKET VIA GETTY IMAGES
N
223.878
letal dos cinco parasitas que causam a malária. Doença de Chagas
141.640
20.081
Leishmaniose
o Brasil, as pesquisas sobre dengue, 40.967
tantes, entre eles um composto candidato a vacina FONTE MARTINS-MELO, F. R. ET AL. PLOS NEGLECTED TROPICAL DISEASES. 2018
38 | MAIO DE 2023
Áreas de interesse
Distribuição do número de pesquisas sobre cada moléstia
no Brasil e o valor investido entre 2004 e 2020
* Paridade de Poder de Compra, métrica usada para equiparar moedas de diferentes países de acordo com sua capacidade de adquirir bens e serviços.
FONTE MELO, G.B.T. ET AL. PLOS NEGLECTED TROPICAL DISEASES. 2023
E
pecializados nessas moléstias.” pública em muitas regiões do Brasil”, comen-
ta a bióloga Bruna de Paula Fonseca, do CDTS-
sse efeito foi captado no estudo pu- -Fiocruz, uma das autoras do estudo. “Trabalhos
blicado na PLOS Neglected Tropical centrados no comportamento epidemiológico da
Disease. Os autores identificaram doença ou no aperfeiçoamento de seu diagnósti-
uma alta concentração de recursos co, prevenção e tratamento também são cruciais
para trabalhos em biomedicina bá- para a redução da carga dessas doenças para pa-
sica (81,6% do total), desenvolvidos tamares que causem menos danos individuais e
em laboratório e majoritariamente voltados à in- coletivos”, completa Castália. n
vestigação dos mecanismos de ação dos patógenos
e desdobramentos da infecção no organismo. En- O projeto e os artigos científicos consultados para esta reportagem
quanto isso, pesquisas de caráter epidemiológico estão listados na versão on-line.
O milagre da A
Clarivate Analytics, empresa responsá-
vel pela base de dados acadêmicos Web
of Science (WoS), anunciou em março
de artigos
respeitaram normas de qualidade exigidas pela
companhia e perderão uma credencial fundamen-
tal para atrair novos autores: foram excluídas do
Journal Citation Report (JCR), plataforma que
Prática controversa, a publicação de determina o fator de impacto de periódicos, me-
milhares de papers em edições especiais dida consagrada para mensurar a sua visibilidade
e repercussão ao calcular quantas citações seus
de periódicos levanta suspeitas sobre artigos receberam em outros estudos.
rigor na avaliação de seu conteúdo Esse tipo de exclusão acontece todos os anos,
mas, em 2023, chamou a atenção por incluir 21
títulos de duas editoras de acesso aberto que se
notabilizaram por um rápido crescimento. A pu-
nição também põe sob escrutínio uma prática dis-
40 | MAIO DE 2023
seminada nessas empresas que já era considerada cerca de 20 mil artigos em seus primeiros 15 anos,
controversa: a publicação de números especiais mas começou a multiplicar a produção a partir
temáticos organizados por editores convidados, de 2015. Em 2021, foram 240,5 mil trabalhos,
sem vínculo formal com os seus quadros, que cos- cobrando uma taxa média de processamento de
tumam gerar uma enorme quantidade de artigos 1.258 francos suíços (o equivalente a R$ 6,9 mil)
e, em alguns casos, não seguem o mesmo rigor por paper. Em 2023, seus dois principais títulos,
na avaliação das edições regulares. Sustainability e International Journal of Molecular
Dezenove revistas excluídas são da Hindawi, Sciences, deverão publicar cada um cerca de 3,5
que edita cerca de 250 periódicos de acesso aber- mil edições especiais – nove por dia.
to – 64 deles estavam indexados na WoS. A em-
U
presa, fundada no Cairo, Egito, em 1997, hoje ma análise feita por Paolo Crosetto, do
pertence à norte-americana John Wiley & Sons. Instituto Nacional de Pesquisa em Agri-
Outras duas publicações punidas são da MDPI, cultura, Alimentação e Meio Ambiente
sediada na Basileia, Suíça, responsável por 390 da França, e Pablo Gómez Barreiro, do Jardim
periódicos. Um dos que receberam sanção foi o Botânico Real de Kew, em Londres, mostrou que
International Journal of Environmental Research apenas em 2022 uma centena de periódicos do
and Public Health, que publicou cerca de 17 mil MDPI lançou 17 mil edições especiais com um
artigos em 2022. Seu último fator de impacto foi total de 187 mil artigos. A dupla avaliou o tempo
de 4.614, desempenho notável para um título com que demorou para que o mérito dos papers fosse
produção tão extensa. avaliado, entre a submissão da primeira versão do
A Clarivate não forneceu detalhes sobre os pro- texto e a sua publicação. O prazo médio foi de 37
blemas encontrados em cada caso, mas a editora dias, ante mais de 200 dias das revistas de acesso
chefe e vice-presidente da WoS, Nandita Quaderi, aberto da coleção PLOS. “Não tenho provas de
informou que o uso de uma ferramenta de inte- que eles fizeram algo errado”, disse Crosetto à
ligência artificial capaz de detectar mudanças Science. “Mas é lógico que a confiança fica com-
atípicas no desempenho de periódicos apontou prometida quando você delega a responsabili-
500 que mereciam ser investigados. Segundo ela, dade a um editor convidado qualquer”, afirma,
foi possível reunir evidências de que ao menos 50 referindo-se a casos documentados de conflitos
deles não estavam cumprindo os padrões exigi- de interesse e revisão por pares fraca e até frau-
dos de avaliação. “Nos últimos meses, tomamos dulenta nesse tipo de título. Carlos Peixeira Mar-
medidas proativas adicionais para combater as ques, da Universidade de Trás-os-Montes e Alto
crescentes ameaças à integridade do registro aca- Douro, em Vila Real, Portugal, disse à Science que
dêmico”, afirmou Quaderi em um comunicado. a MDPI o convidou várias vezes para atuar co-
“Quando determinamos que um periódico não mo editor de números especiais em áreas como
atende mais aos nossos critérios de qualidade, agricultura e engenharia, mas nunca em negó-
temos a responsabilidade de agir.” cios e turismo, que são suas áreas de pesquisa.
No final do ano passado, a Hindawi anunciou a “O volume insano de edições especiais torna im-
suspensão temporária de edições especiais. Isso possível manter um padrão mínimo de avaliação
depois de identificar em várias delas a publicação por pares”, afirmou.
de centenas de trabalhos fraudulentos, produ- Em um comunicado, a MDPI atribuiu a re-
zidos por “fábricas de papers”, serviços ilegais moção a um critério relacionado à “relevância
que criam manuscritos sob encomenda, em geral de conteúdo”. Em manifestações anteriores, a
com dados ou imagens falsas. Em outubro, mais empresa defendeu seu modelo com o argumen-
de 500 artigos de 16 títulos da editora foram re- to de que a revisão expressa permite aos auto-
tratados por manipulação na revisão por pares. res difundirem rapidamente seus resultados de
As investigações tiveram início em abril, após pesquisa, e o trabalho de editores convidados é
o editor-chefe de uma das revistas da Hindawi útil para dar treinamento a jovens pesquisadores
ter manifestado preocupação sobre o conteúdo em processos de comunicação científica. Giulia
de uma edição especial. Pareceres de revisores Stefenelli, presidente do Conselho Científico do
tinham textos duplicados. Também houve casos MDPI, disse à revista Times Higher Education
de pareceristas que participaram da avaliação de que as edições especiais “são iniciadas por pes-
muitos manuscritos e de outros que entregaram quisadores experientes em disciplinas específi-
LAWRENCE THORNTON / GETTY IMAGES
suas revisões muito rapidamente. A Hindawi re- cas como uma oferta à comunidade acadêmica”.
latou um prejuízo de US$ 9 milhões com a pausa Segundo ela, os periódicos avaliam propostas de
nas edições especiais entre novembro e janeiro. edições especiais formuladas por cientistas e os
O modelo das edições especiais também foi res- artigos selecionados são submetidos a uma revi-
ponsável pelo crescimento exponencial da MDPI, são por pares rigorosa, com uma taxa de rejeição
fundada há apenas 13 anos e hoje a quarta maior de manuscritos “próxima da marca de 50%”. n
editora científica do mundo. A empresa publicou Fabrício Marques
U
m dos mais prolíficos pesquisado- áreas como nanomateriais, nanocatálise recursos para viagens e hospedagens,
res da Espanha, o químico Rafael e química verde, que já receberam mais além de dinheiro para pesquisa.
Luque Alvarez de Sotomayor re- de 29 mil citações. Só nos três primeiros Sua produtividade extraordinária
cebeu uma punição severa da Universi- meses de 2023, ele já publicou 58 papers atraiu a atenção de especialistas em má
dade de Córdoba, onde se doutorou em – um a cada 37 horas. Desde 2018, figura conduta. O engenheiro britânico Nick
2005 e, desde então, trabalhava como na lista dos pesquisadores altamente ci- Wise, por exemplo, diz que um dos tra-
docente do Departamento de Química tados do mundo produzida pela empresa balhos assinados por Luque foi anun-
Orgânica. Ele foi suspenso de suas fun- Clarivate. Tais credenciais são valoriza- ciado em um site que vende coautoria
ções, sem direito a vencimentos, pelos das por rankings como o da Shangai Jiao de papers para interessados. O químico
próximos 13 anos. A sanção, que em ter- Tong University, da China, que conferem diz que jamais compraria um artigo, mas
mos práticos equivale a uma demissão, pontos extras a instituições com pesqui- admite que não conhece alguns dos ira-
foi aplicada porque Luque também tra- sadores altamente prolíficos. Luque foi nianos que assinam como coautores. Já
balhava em duas instituições no exterior, convidado a integrar os quadros das uni- o matemático russo Alexander Maga-
a Universidade King Saud, em Riad, ca- versidades da Arábia Saudita e da Rússia zinov afirma que algumas publicações
pital da Arábia Saudita, e a Universidade justamente para reforçar a posição delas de Luque contêm “frases torturadas”,
RUDN, em Moscou, na Rússia, embora em rankings. Ele precisa ir às instituições expressões que parecem mal traduzi-
fosse contratado em regime de tempo poucas semanas por ano, mas as mencio- das e aparecem em textos que tentam
integral em Córdoba. na nos artigos que assina. “Sem mim, a escamotear a prática de plágio (ver Pes-
Para além da infração contratual, o Universidade de Córdoba vai cair 300 quisa FAPESP nº 317). O espanhol nega
caso é revelador de um tipo de estraté- posições no ranking de Shangai. Eles de- irregularidades, mas admite que, nos
gia anômala adotada por universidades ram um tiro no pé”, disse Luque a propó- últimos meses, tem usado o software
para ascender em rankings acadêmicos sito da punição, segundo o jornal El País. de inteligência artificial ChatGPT para
internacionais. Luque, de 44 anos, tem Ele atribuiu a sanção à “inveja pura” e auxiliá-lo. “Agora consigo escrever em
uma produção extraordinariamente ele- garantiu que nunca recebeu salário das um dia artigos que antes exigiam dois ou
vada. Escreveu mais de 700 artigos, em universidades estrangeiras, mas apenas três dias de dedicação”, disse ao El País.
Transparência em casos de
assédio sexual na Austrália
A
Universidade de Melbourne, na Austrália, registrou 11 de-
núncias de má conduta sexual contra funcionários e pro-
fessores em 2022. Nove foram investigadas formalmente,
o que resultou na demissão de quatro indivíduos e na instauração
de processos disciplinares contra outros dois. Na maioria dos casos,
as denúncias partiram de mulheres – funcionárias e estudantes – e
tinham como alvo homens. Os números constam da segunda edi-
ção do relatório anual sobre má conduta sexual da universidade,
divulgado no final de março. A instituição registrou 20 queixas
contra estudantes, as quais resultaram em sete suspensões.
“Esperamos que as medidas que estamos adotando e a trans-
parência que estamos dando a esse assunto ajudem a aumentar a
confiança em nossos sistemas e processos voltados para erradicar
esse problema da nossa comunidade”, afirmou Nicola Phillips, rei-
tora da instituição. Segundo ela, um programa educacional criado
para fomentar um ambiente seguro e respeitoso na universidade
já teve a participação de mais de 4.500 funcionários. Casos de
assédio sexual são comuns em escolas de ensino superior austra-
lianas. Uma pesquisa com 44 mil alunos de graduação do país em
2022 descobriu que 1,1% deles sofreu abuso sexual nos 12 meses
anteriores ao levantamento – o índice chega a 5% ao longo da vida
universitária (ver Pesquisa FAPESP nº 316). De acordo com o le-
vantamento, mais de 85% dos agressores eram do sexo masculino
e 5% funcionários das universidades.
42 | MAIO DE 2023
DADOS Colaborações internacionais nas
publicações científicas de São Paulo
Publicações científicas de São Paulo com colaboração internacional e sua participação no total
Médias anuais, quadriênios (2009-2012 a 2019-2022)
2.000
0
2009-2012 2010-2013 2011-2014 2012-2015 2013-2016 2014-2017 2015-2018 2016-2019 2017-2020 2018-2021 2019-2022
As colaborações com países com maior número de O país cuja participação mais cresceu França (+125%) e Argentina
coautorias com pesquisadores de São Paulo também foi a Austrália, que passou de 268 (+100%) também ampliaram
cresceram significativamente, como é o caso do para 1.212 publicações, com variação o número de coautorias, mas em
principal deles, os Estados Unidos. As parcerias com de 352%, movendo-se da 12ª para ritmo menor que outros países,
São Paulo atingiram 5.185 publicações no quadriênio a 8ª posição nesse grupo de países levando-os a perder posições no
2019-2022, ou seja, 41,1% do total das publicações grupo: a França de 2º para 5º
do estado com colaboração internacional4 e a Argentina de 8º para 15º lugar
6.000
4.000
3.000
2.000
1.000
0
EUA Reino Unido Alemanha Espanha França Itália Canadá Austrália Portugal China Holanda Suíça Japão Índia Argentina
NOTAS (1) PUBLICAÇÕES DAS CATEGORIAS ARTICLE, PROCEEDING PAPER E REVIEW DA BASE WEB OF SCIENCE/CLARIVATE. (2) UMA PUBLICAÇÃO É CONSIDERADA COLABORAÇÃO INTERNACIONAL SE, ALÉM DOS AUTORES SEDIADOS
NO ESTADO DE SÃO PAULO, HOUVER AUTORES SEDIADOS EM OUTROS PAÍSES. (3) OS VALORES ABSOLUTOS CORRESPONDEM ÀS MÉDIAS ANUAIS DO PERÍODO CONSIDERADO. (4) UMA PUBLICAÇÃO PODE TER AUTORES DE VÁRIOS
PAÍSES, PORTANTO. A SOMA DAS PARCIAIS DOS PAÍSES PODE SER MAIOR DO QUE O TOTAL DE PUBLICAÇÕES COM COLABORAÇÃO INTERNACIONAL PARA SÃO PAULO.
FONTES INCITES/WEB OF SCIENCE/CLARIVATE. DADOS BAIXADOS EM 04/04/2023 ELABORAÇÃO FAPESP, DPCTA/GERÊNCIA DE ESTUDOS E INDICADORES
VOÇOROCAS
RASGANDO CIDADES
Pesquisadores alertam há anos que crateras gigantes como
as de Buriticupu, no Maranhão, cresceriam se não houvesse
drenagem e ocupação adequada do solo
Sarah Schmidt
A
o percorrer Buriticupu, no oeste As fendas que se agigantam com as chuvas in-
maranhense, em 2015 e 2016, o tensas não são fenômenos exclusivos dessa região.
geógrafo Marcelino Silva Farias Também conhecidas como boçorocas ou bura-
Filho, da Universidade Federal cões, as voçorocas se formam em áreas urbanas
do Maranhão, contou ao menos 15 e rurais das cinco regiões do país. No estado de
crateras gigantes rasgando o chão São Paulo, um relatório técnico do Instituto de
da área urbana do município. Ele e Pesquisas Tecnológicas (IPT), apresentado em
seus estudantes também ouviram 2015 em um congresso realizado em Natal, no
relatos de moradores cujas casas Rio Grande do Norte, identificou 1.398 processos
tinham sido engolidas pelas voçorocas, fenômeno erosivos em áreas urbanas de 326 municípios,
erosivo em que a água da chuva concentrada dos quais 949 foram classificados como voçoro-
escava grandes buracos em solos mais frágeis e cas e 449 como ravinas, como são chamados os
atinge o lençol freático. Dependendo do volume processos erosivos com profundidade acima de
de água e das condições geológicas, elas podem 1 metro (m), que podem evoluir para voçorocas.
se expandir rapidamente. Nas áreas rurais paulistas, foram cadastrados
Casas em encostas dos morros nos bairros San- 39.864 processos erosivos de 593 municípios, dos
tos Dumont, Vila Isaías e Caeminha corriam risco quais 30.004 se enquadravam como voçorocas e
de deslizamento. Muitos moradores que pode- 9.860 como ravinas. De acordo com esse estudo,
riam perder suas casas foram remanejados de ou- a predominância de voçorocas em áreas urbanas
tros lugares da cidade ameaçados por voçorocas. seria um indício de formas inadequadas de ocu-
“Quando concluímos o trabalho, procuramos as pação e de drenagem do solo, e, nas áreas rurais,
autoridades públicas da cidade para avisar que do uso agrícola, sem a utilização de técnicas de
a situação iria piorar, mas não deram atenção”, conservação do solo e da vegetação nativa.
afirma. Piorou. As condições que levam à formação de voço-
Em 24 de março de 2023, após chuvas intensas, rocas variam de acordo com a localidade, o tipo
o Ministério Público do Maranhão havia acionado de solo, a inclinação do terreno e o volume de
juridicamente o município pelo descumprimen- água que ele recebe. Em geral, elas começam
to de um acordo judicial, de abril de 2022, que como sulcos menores, que podem evoluir para
previa a implantação de uma série de medidas ravinas e, depois, voçorocas.
para evitar o avanço dos processos de erosão e “Considerando o desmatamento e o uso ina-
garantir a segurança dos moradores das áreas de dequado do solo, se a água da chuva é lançada de
risco. No dia 26, a prefeitura do município de- forma concentrada em uma velocidade acima do
clarou estado de calamidade pública por causa que o solo suporta, começa o processo erosivo”,
de 23 voçorocas que chegavam a 70 metros (m) explica o tecnólogo em construção civil Claudio
MARCELINO FARIAS / UFMA
de profundidade e 600 m de extensão e amea- Luiz Ridente Gomes, um dos autores do relató-
çavam 880 pessoas em 220 casas localizadas em rio do IPT.
encostas da cidade. Dois dias depois, o Ministé- Em Buriticupu, as voçorocas urbanas decor-
Voçoroca no bairro
Santos Dumont, em rio de Integração e Desenvolvimento Regional rem de uma combinação de fatores resultantes
Buriticupu, em 2018 reconheceu o estado de calamidade. das condições naturais e da ocupação humana.
1 A água da chuva penetra em solos 2 O acúmulo de água satura o solo 3 Em áreas urbanas, estradas e rodovias,
porosos e se acumula sobre rochas ou solos e acelera a erosão, aprofundando a erosão, a partir dos pontos de chegada
menos permeáveis. O fluxo de água e alargando a vala da água da chuva, é também superficial.
subterrâneo geralmente forma um túnel Os processos subsuperficiais somados aos
superficiais levam à formação de grandes
valas, que crescem continuamente
Solo MAIS
resistente
46 | MAIO DE 2023
Crateras em 2014 (à Em um artigo publicado em dezembro de 2022 tora do trabalho. “Por isso, ao pensar em ações
esq.) e 2022: expansão na Revista do Instituto de Geociências –USP, Viei- de contenção e de mitigação, é preciso ver o to-
em direção à periferia
de Buriticupu
ra caracteriza três voçorocas que se formaram na do. Caso contrário, se cuidamos apenas de uma,
área urbana da cidade de Rio Preto da Eva, a cerca a tendência é que o processo erosivo retorne.”
de 80 quilômetros (km) de Manaus. Como o solo O engenheiro-agrônomo Aluísio Andrade, da
era argiloso, mais resistente à erosão, ele atribuiu Embrapa, concorda: “O primeiro passo é estu-
as crateras à expansão urbana e consequente falha dar a região para fazer um diagnóstico do pro-
na drenagem da água pluvial. De julho de 2019 cesso erosivo e, assim, traçar um planejamento
a julho de 2021, a maior delas aumentou de 116 personalizado”. Dependendo do caso, é possível
m para 127 m de comprimento e de 17,9 m para combinar práticas mecânicas – como a realoca-
22,9 m de profundidade. “Pelo menos duas casas ção da terra, obras de contenção e drenagem – e
A
correm o risco de ser engolidas”, alerta. cobertura vegetal.
Foi o que uma equipe da Empresa Brasilei-
s três fendas causaram a perda de ra de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) fez em
uma área de 6.117,20 metros qua- uma voçoroca no Morro do Radar, próximo ao
drados (m2) e de 123.267,29 metros Aeroporto Internacional Tom Jobim (antigo Ga-
cúbicos (m3) de terra, acumulada leão), no Rio de Janeiro. Como descrito em um
nos canais próximos, de acordo com comunicado técnico da Embrapa de dezembro de
esse estudo. Os danos somam cerca 2005, a primeira medida foi controlar o fluxo de
de R$ 170 mil e os custos de conten- água com a construção de terraços no morro, que
ção ficariam em quase R$ 2 milhões. a desviavam e evitavam que caísse na voçoroca.
“É mais barato monitorar os riscos Em seguida, a construção de patamares corrigiu
FOTOS GOOGLE MAPS INFOGRÁFICO ALEXANDRE AFFONSO / REVISTA PESQUISA FAPESP
e prevenir problemas. Quanto antes o dano for a inclinação do térreo e permitiu a reocupação
contido, melhor”, ressalta Vieira. Ele encontrou da terra com espécies de árvores de rápido cres-
voçorocas também próximas a rodovias que unem cimento, como a maricá (Mimosa bimucronata),
Manaus ao interior do estado. que pode chegar a 10 m de altura, e sabiá (Mimosa
Na bacia do córrego Palmital, entre as cidades caesalpiniaefolia), de até 8 m, também bastante
de Nazareno e Conceição da Barra, próximo a São usada na recuperação de áreas degradadas.
João Del Rei, no sul de Minas Gerais, há quase 100 “Dependendo do solo, das condições climáticas
delas, e boa parte está conectada, de acordo com e de suas dimensões, o que funciona para uma
um estudo de março de 2020 na revista científica voçoroca não funciona para outra”, ressalta An-
Catena. Portanto, a recuperação em uma única drade. Rodrigues reforça: “Cada região tem suas
voçoroca pode não ser o suficiente para deter o particularidades. Não há fórmulas prontas para
processo erosivo. lidar com as voçorocas, mas é preciso sempre
“Por meio das águas subsuperficiais e super- monitoramento, planejamento do uso do solo e
ficiais, uma voçoroca pode interferir nas outras, drenagem correta da água.” n
como um efeito cascata”, explica a geóloga Valéria
Rodrigues, da Escola de Engenharia de São Carlos Os artigos científicos consultados para esta reportagem estão listados
da Universidade de São Paulo (EESC-USP), coau- na versão on-line.
A carga do vírus da
dengue em Aedes
aegypti com a dupla
infecção é, em média,
TRANSMISSÃO
cinco vezes maior
do que nos mosquitos
sem PCLV e HTV
TURBINADA
N
Se infectado por dois vírus específicos a pequena carcaça de Aedes
aegypti prospera um micro-
de insetos, mosquito Aedes aegypti bioma peculiar que pode
aumentar a capacidade de o
passa a propagar mais rapidamente mosquito carregar certos ví-
dengue e zika ao homem rus e transmiti-los ao homem e a outros
animais. Segundo um trabalho publicado
Renata Fontanetto em janeiro na revista científica Natu-
re Microbiology, a chance de o vírus da
dengue estar presente em Aedes aegypti
é três vezes maior se os mosquitos esti-
verem infectados de forma simultânea
por dois vírus específicos de insetos – o
Phasi Charoen-like (PCLV) e o Humaita
Tubiacanga (HTV).
A carga do vírus da dengue nos mos-
quitos infectados por ambos os vírus de
insetos é, em média, cinco vezes maior
do que em A. aegypti sem o PCLV e o
HTV, que não são transmitidos a animais
vertebrados. O aumento de carga acelera
o ciclo de replicação do vírus da dengue
nos mosquitos, que passam a transmitir
mais rapidamente a doença e elevam o
risco de aparecimento de surtos da mo-
léstia em seres humanos.
“Vírus formados pela molécula de tificados somente em amostras de A. pulação humana, um fator de risco para
RNA, como o PCLV e o HTV, normal- aegypti. O primeiro estava presente em a eclosão de surtos.
mente competem entre si pelos recursos 61% das amostras e o segundo em 85%. Para o bioquímico José Henrique Oli-
dos insetos que infectam, mas observa- “Os mosquitos com ambos os vírus ti- veira, da Universidade Federal de Santa
mos o efeito contrário em A. aegypti”, co- nham em torno de três vezes mais chan- Catarina (UFSC), que não participou do
menta o biólogo João Trindade Marques, ce de estarem infectados com dengue estudo, o trabalho dos colegas da UFMG
da Universidade Federal de Minas Gerais do que aqueles que não carregavam o indica a importância de se determinar a
(UFMG), coordenador da equipe que fez PCLV e o HTV”, afirma o bioinformata prevalência da dupla infecção pelo ví-
o trabalho. Os dados do estudo indicam Roenick Olmo, primeiro autor do artigo, rus PCLV e HTV nas populações de A.
que, nessa espécie de mosquito, parece que defendeu doutorado na UFMG sob aegypti do país. “Dessa forma, podería-
haver uma associação positiva entre es- orientação de Marques e atualmente faz mos antever as regiões com maior pro-
ses dois vírus específicos de insetos e os estágio de pós-doutorado na Universi- babilidade de apresentar novos surtos
vírus que causam dengue e zika. dade de Estrasburgo, na França. “Em de arboviroses e intensificar a vigilância
A pesquisa teve início com a análise um surto de dengue, geralmente de 2% para reduzir o contingente de mosquitos
dos tipos de vírus de RNA encontrados a 3% dos mosquitos estão infectados vetores”, diz Oliveira.
em 815 mosquitos adultos coletados em com o vírus da doença. Mas, no material O próximo passo dos estudos da equi-
seis países de quatro continentes: Brasil, de Caratinga, 5% de A. aegypti estavam pe da UFMG é tentar identificar os me-
Suriname, França, Gabão, Senegal e Sin- com dengue, ou seja, uma porcentagem canismos que levam ao estabelecimento
gapura. As amostras vieram de A. aegyp- acima do normal.” da dupla infecção pelo PCLV e HTV nos
ti e de Aedes albopictus, espécies cujas A etapa seguinte da pesquisa levou mosquitos, principalmente os genes en-
fêmeas transmitem arboviroses, como a equipe da UFMG a produzir evidên- volvidos nesse processo. Assim, talvez
dengue, zika e chikungunya. A primei- cias laboratoriais de que a coin- seja possível descobrir por que
ra é mais predominante em ambientes fecção por PCLV e HTV a presença de ambos os
urbanos; a segunda, em áreas rurais e de afeta a replicação dos vírus torna A. aegyp-
transição entre o campo e a cidade. No vírus da dengue e da Mosquitos de ti mais competen-
total, foram identificados 12 vírus, cinco zika no interior do te para transmitir
completamente novos e sete já conheci- mosquito. Linha- áreas da América do Sul dengue e zika pa-
dos, no material genético de A. aegypti. gens diferentes e da Ásia com alta ra o homem. Um
Os dois vírus encontrados com mais de fêmeas de A. primeiro acha-
frequência na análise, o PCLV e HTV, aegypti foram ge- incidência de dengue do nesse senti-
são exclusivos de A. aegypti e estavam radas em labora- do já foi obti-
presentes em mais da metade das amos- tório a partir de e de zika tendiam a ter do. A equipe de
tras. O HTV foi descoberto em 2015 no uma população de Marques consta-
dupla infecção por
Brasil. As cargas virais mais elevadas mosquitos da natu- tou que o padrão
de ambos os vírus vinham de mosqui- reza – uma com a du- PCLV e HTV de expressão (ativa-
tos coletados em localidades com alta pla infecção por PCLV ção) de uma das pro-
incidência de dengue e zika na Améri- e HTV, outra sem ambos teínas responsáveis pelo
ca do Sul (Brasil e Suriname) e na Ásia os vírus – e foram postas para empacotamento do material
(Singapura). Nas Américas, o Brasil foi se alimentar do sangue de camundon- genético de A. aegypti no núcleo de suas
o país com mais casos de dengue e zika gos infectados com os vírus da dengue células, a histona H4, é alterado em mos-
em 2022: 2,3 milhões e 34,1 mil, respecti- e da zika. Em comparação ao grupo que quitos com dengue que apresentam a du-
vamente, segundo dados da Organização não foi infectado pelo PCLV e HTV, os pla infecção por PCLV e HTV. Os dados
Pan-americana da Saúde (Opas). Essa mosquitos com a dupla infecção apre- do grupo sugerem que, quando a histona
coincidência levou a equipe do estudo sentaram cargas virais de dengue e de H4 é menos expressa, o vírus da dengue
a formular uma hipótese: a presença zika cerca de cinco vezes maior. parece se replicar mais lentamente nos
do PCLV e do HTV poderia favorecer O trabalho ainda constatou que a pre- mosquitos. Em estudos futuros, a histona
a transmissão de arboviroses pelas fê- sença do PCLV e do HTV no mosquito H4 pode ser um alvo a ser testado como
meas do mosquito. encurta entre um e cinco dias o período uma forma de modulação da capacida-
Para testar essa ideia, os pesquisado- de incubação extrínseco do vírus da zika de do mosquito de transmitir dengue e
res fizeram uma nova análise em amos- – tempo necessário para que o inseto se outras doenças. n
tras de RNA de 515 exemplares de A. torne capaz de infectar o homem ou um
LAUREN BISHOP / CDC
ANTICORPOS
CONTRA A
FEBRE AMARELA
Roedores e macacos tratados com
Na ausência de anticorpos,
células de rim de macaco
infectadas pelo vírus da
febre amarela morrem e se
agrupam formando pontos
azuis (linhas A, B, C e H);
na presença dos anticorpos
os compostos sobreviveram à infecção MBL-YFV-01 (linhas D e E)
e MBL-YFV-02 (linhas F e G),
pelo vírus causador da doença mesmo em concentrações
decrescentes (da esq. para
a dir.), o vírus não consegue
Ricardo Zorzetto infectar as células
50 | MAIO DE 2023
U
ma colaboração internacional as pessoas adoecem gravemente e preci- repetiu os experimentos com macacos
da qual participaram pesqui- sam ser internadas, a terapia consiste em rhesus, nos quais a infecção costuma ser
sadores da Universidade de adotar medidas de suporte para manter mais agressiva e matar a partir do tercei-
São Paulo (USP) e da Fun- o corpo hidratado e evitar hemorragias e ro dia, e obteve resultados semelhantes.
dação Oswaldo Cruz (Fio- sinais de lesão renal. A melhor proteção “Pela capacidade de neutralização do
cruz), no Rio de Janeiro, identificou dois contra a doença é a vacina, elaborada vírus que demonstraram, esses anticor-
anticorpos humanos com o potencial com o vírus atenuado (enfraquecido). pos estão prontos para ir para os testes
de tratar a febre amarela, uma doença Desenvolvida há quase um século, ela é clínicos”, afirma Kallás, que atualmente
que mata de 20% a 50% das pessoas que eficaz e segura. Algumas semanas após dirige o Instituto Butantan. “Em uma
desenvolvem sua forma grave. Admi- a imunização, ela evita que quase 100% próxima fase, talvez seja interessante
nistradas a roedores e macacos, as duas dos vacinados desenvolvam a forma gra- usar os dois anticorpos combinados, por-
moléculas permitiram aos animais so- ve da doença. Embora faça parte do pro- que cada um deles reconhece uma região
breviver à infecção pelo vírus causador grama de vacinação de cerca de 40 países diferente do envelope do vírus”, propõe
dessa febre hemorrágica que danifica o onde a infecção é endêmica, entre eles Bonaldo, da Fiocruz.
fígado e os rins e, com menor intensida- o Brasil, a proporção de pessoas que a Antes do início dos testes em seres
de, o coração e os pulmões. Os não trata- tomam é baixa. Dados da Organização humanos, porém, será preciso superar
dos, que integravam o grupo de controle, Pan-americana da Saúde (Opas) indi- um gargalo comum no desenvolvimen-
adoeceram gravemente e tiveram de ser cam que, em média, metade das pessoas to de medicamentos e vacinas no Brasil:
sacrificados cerca de uma semana após a nessas nações recebe o imunizante, que produzir os anticorpos seguindo as boas
infecção experimental pelo vírus. pode causar um evento adverso raro. Em práticas de manufatura, exigidas pelas
“Para nossa surpresa, os anticorpos aproximadamente 1 em cada 250 mil agências sanitárias para os compostos a
ofereceram proteção total contra a febre vacinados, o vírus pode adquirir nova- serem usados por seres humanos. “Ho-
amarela”, conta o infectologista Esper mente a capacidade de se multiplicar e je, produzir no exterior um lote-piloto
Kallás, da USP, um dos autores do estudo, causar a forma grave da doença. desses anticorpos para os testes clínicos
D
publicado em março na revista Science custa no mínimo US$ 5 milhões”, relata
Translational Medicine. Como os efeitos e volta aos Estados Unidos, o infectologista da USP.
observados em organismos de outras es- Watkins entrou em contato “Caso se mostrem eficientes em en-
pécies nem sempre são os mesmos que com a imunologista Laura saios com seres humanos, esses anti-
ocorrem em seres humanos, ainda são Walker, atualmente na em- corpos podem representar um grande
necessários testes com pessoas para con- presa Adagio Therapeutics, avanço na terapia da febre amarela”,
firmar os resultados e, se tudo sair como que havia isolado cerca de 1.200 anticor- comenta o médico e virologista Pedro
o esperado, em algum tempo, tornar o pos diferentes produzidos pelo organis- Vasconcelos, do Instituto Evandro Cha-
uso desses anticorpos uma terapia efe- mo de pessoas vacinadas. A equipe de gas (IEC) e Universidade do Estado do
tiva contra a febre amarela. Watkins selecionou os 37 anticorpos mais Pará (Uepa), em Belém, no Pará, que
A busca por um tratamento à base de promissores e, em laboratório, testou a não participou da pesquisa. Provocada
anticorpos para controlar a doença come- capacidade de cada um deles bloquear por um vírus da família Flaviviridae, a
çou há cerca de seis anos, durante o surto a ação do vírus da vacina. Os cinco que mesma dos causadores de dengue e da
de 2016-2019, o mais grave registrado no se saíram melhor foram encaminhados zika, a febre amarela atinge a cada ano
Brasil nas últimas oito décadas, no qual para a bióloga Myrna Bonaldo, no Rio cerca de 200 mil pessoas no mundo e
2.237 pessoas adoeceram e 759 morreram. de Janeiro. Na Fiocruz, o grupo de Bo- se manifesta em duas fases. A primei-
Em visita ao Hospital das Clínicas da USP, naldo testou o poder de esses anticorpos ra, chamada de infecciosa, dura três ou
o patologista David Watkins, da Univer- neutralizarem quatro cepas do vírus que quatro dias e causa febre alta, calafrios,
sidade George Washington, nos Estados circularam entre 2008 e 2019 no Brasil. cansaço, dor de cabeça, dor muscular,
LIDIANE MENEZES / LABORATÓRIO DE BIOLOGIA MOLECULAR DE FLAVIVÍRUS / FIOCRUZ
Unidos, coautor do estudo e antigo co- Dois dos anticorpos avaliados na Fio- náuseas e vômitos. Na fase seguinte, a
laborador dos pesquisadores brasileiros, cruz, o MBL-YFV-01 e o MBL-YFV-02, viscerotrópica, o vírus se aloja em ór-
acompanhou o caso de pessoas infectadas revelaram-se de especial interesse por gãos como rins, fígado, coração e pul-
com o vírus que chegavam caminhando neutralizarem bem o vírus e seguiram mão e causa danos que podem ser fatais.
ao serviço de saúde e dias mais tarde pre- para a fase de teste em animais. Admi- “Dispor de anticorpos monoclonais para
cisavam ser intubadas e submetidas à he- nistrados isoladamente e em dose única evitar a evolução da fase infecciosa para
modiálise, para suprir o papel de órgãos a hamsters três dias após a infecção com a viscerotrópica pode levar ao aumento
e sistemas comprometidos pela doença. o vírus da febre amarela, os anticorpos de sobrevida dos indivíduos infectados
Watkins perguntou como poderia ajudar amenizaram a gravidade da doença e e à redução da letalidade da doença”,
e Kallás sugeriu que tentassem desen- permitiram que os animais vivessem pe- afirma Vasconcelos. Os pesquisadores
volver uma terapia à base de uma versão los 21 dias em que foram acompanhados. imaginam que esses anticorpos também
sintética de anticorpos, moléculas que na- Os roedores do grupo de controle come- possam servir para combater os eventos
turalmente são produzidas pelo sistema çaram a morrer a partir do sexto dia após adversos raros da vacina. n
de defesa contra organismos invasores. o contato com o vírus. Na Universidade
Até hoje não existe um tratamento es- de Saúde e Ciência do Oregon, Estados O projeto e os artigos científicos consultados para esta
pecífico contra a febre amarela. Quando Unidos, o biólogo Benjamin Burwitz reportagem estão listados na versão on-line.
APOSTA
U
m artigo publicado em fe-
vereiro na revista Science
Translational Medicine trou-
xe resultados animadores
TAILANDESA
dos ensaios clínicos de fase
1 da HXP-GPOVac, a versão
tailandesa de uma candidata
a vacina contra a Covid-19
desenvolvida a partir da
plataforma tecnológica NDV-HXP-S,
Em testes iniciais, vacina similar concebida pela rede de hospitais Monte
Sinai, dos Estados Unidos. O imunizante
à ButanVac produz mais foi testado em 210 pessoas na Tailândia
e produziu uma resposta imunológica
anticorpos neutralizantes do que contra o Sars-CoV-2 similar à propor-
imunizante da Pfizer cionada pela vacina baseada na ação do
RNA mensageiro (RNAm) fabricada pela
farmacêutica norte-americana Pfizer em
Meghie Rodrigues conjunto com a alemã BioNTech.
52 | MAIO DE 2023
da HXP-GPOVac com os produzidos por
20 pessoas imunizadas com a vacina da
Pfizer/BioNTech e outras 18 que haviam
naturalmente se recuperado da infecção
pelo novo coronavírus. Os anticorpos
desenvolvidos pelos três grupos foram
capazes de neutralizar a cepa original
Frascos da do Sars-CoV-2, surgida no final de 2019
HXP-GPOVac,
em Wuhan, na China, e, em menor pro-
a vacina contra
Covid-19 em porção, as variantes beta e delta.
2 testes na Tailândia Uma avaliação inicial, apresentada
em março de 2022 na revista eClinical-
Houve, no entanto, uma diferença no o nome de ButanVac. No Vietnã ela se Medicine, já havia mostrado que a HXP-
perfil dos anticorpos produzidos pelos chama CoviVac. -GPOVac era segura e causava eventos
dois imunizantes. A HXP-GPOVac ge- HXP-GPOVac, CoviVac e ButanVac adversos leves: dor no local da aplicação
rou mais anticorpos neutralizantes do compartilham uma base comum. As três em 63% dos casos, cansaço em 35% e dor
que a vacina da Pfizer/BioNTech, mas formulações utilizam uma versão inati- de cabeça ou muscular em 32%. Uma
menos não neutralizantes (ligantes). Os vada do vírus da doença de Newcastle – proporção um pouco menor desses even-
primeiros impedem os vírus de invadir causador de uma infecção respiratória tos, também leves, foi observada entre
as células e se multiplicar no interior em aves, mas inofensivo aos seres huma- os 120 voluntários que participaram da
delas. Os do segundo tipo, os ligantes, nos –, ao qual foi acrescida a informação fase 1 de testes clínicos da CoviVac, no
marcam os vírus e sinalizam para o sis- genética para produzir uma forma mais Vietnã. Cinquenta e oito por cento senti-
tema imune destruir as células ocupadas estável da spike do coronavírus. A equi- ram dor no local da picada, 22% cansaço,
pelo agente infeccioso. “Isso significa pe do virologista Peter Palese, da rede 21% dor de cabeça e 14% dor muscular,
que a resposta imunológica estimula- Monte Sinai, concebeu essa plataforma segundo dados preliminares, publicados
da pela HXP-GPOVac é mais focada em vacinal com o objetivo de gerar um pro- em junho de 2022 na revista Vaccine.
neutralização”, explicou, em entrevista duto barato que pudesse ser fabricado No Brasil, os testes de fase 1 da Bu-
à Pesquisa FAPESP, o microbiologista por países de renda baixa e média (ver tanVac, com 320 participantes, já foram
Florian Krammer, da Escola de Medici- Pesquisa FAPESP nos 302 e 303). concluídos e os resultados analisados
na Icahn, da rede Monte Sinai, em Nova “Como originalmente infecta galinhas, pela Agência Nacional de Vigilância Sa-
York, e coordenador do estudo. esse vírus se desenvolve muito bem em nitária (Anvisa). Embora não tenha si-
Vacinas que produzem grande quan- ovos”, comentou Krammer. Isso permite do publicado um artigo científico sobre
tidade de anticorpos neutralizantes são que se use na síntese desse candidato a a fase 1, a Anvisa autorizou o início da
consideradas esterilizantes por terem o imunizante a mesma tecnologia empre- etapa seguinte. “A ButanVac se mostrou
potencial de bloquear a infecção e impe- gada na elaboração de vacinas contra o altamente imunogênica”, afirma Érique
dir o desenvolvimento da doença. Já as vírus influenza, da gripe, dominada por Peixoto de Miranda, gestor médico de
N
que produzem uma mistura desses an- vários países, entre eles o Brasil. desenvolvimento clínico do Instituto
ticorpos não evitam a infecção, mas pro- Butantan. “Os títulos de anticorpos li-
tegem das formas graves da doença. No o estudo de fase 1 na Tai- gantes e neutralizantes medidos no san-
caso da Covid-19, o efeito neutralizante lândia, a primeira dos testes gue das pessoas imunizadas com ela são
é conferido por anticorpos que aderem a em seres humanos, desti- parecidos com os das duas formulações
FOTOS 1 INSTITUTO BUTANTAN 2 THAILAND'S GOVERNMENT PHARMACEUTICAL ORGANIZATION
uma região muito específica da proteína nada a avaliar a segurança irmãs em teste na Ásia. Isso mostra um
da espícula (spike), usada pelo vírus para da formulação, 210 volun- efeito consistente.” Os eventos adversos
invadir as células, chamada domínio de tários foram separados em observados nos testes de fase 1 da Butan-
ligação ao receptor (RDB), uma espécie seis grupos. Os integrantes Vac também foram leves e semelhantes
de calcanhar de aquiles do vírus. de cinco deles receberam aos verificados na Tailândia e no Vietnã.
Os dados apresentados no estudo são duas aplicações de diferen- Apesar de usarem a mesma cepa viral
uma boa notícia não só para os tailan- tes doses do candidato a imunizante ou mestre e serem produzidas em ovos, as
deses. A formulação ali avaliada, fabri- do composto combinado com um ad- três formulações seguem procedimen-
cada pela Organização Farmacêutica juvante, substância que potencializa a tos de produção, controle de qualidade,
Governamental (GPO) da Tailândia, resposta do sistema de defesa, separadas testes de potência e estabilidade dife-
é praticamente idêntica às que foram por um intervalo de quatro semanas. O rentes. Por essa razão, a Anvisa conside-
desenvolvidas e estão sendo testadas sexto grupo foi tratado apenas com duas ra que se trata de formulações distintas
no Vietnã e no Brasil. Aqui, a potencial doses de uma solução inócua (placebo). e os dados dos compostos em testes na
vacina foi elaborada pelo Instituto Bu- Duas semanas após a conclusão do Ásia não substituem os dos ensaios clí-
tantan, de São Paulo, em parceria com esquema vacinal, Krammer e colabora- nicos da ButanVac. n
o mesmo consórcio internacional do dores coletaram amostras de sangue dos
qual participam os norte-americanos, os participantes para comparar os níveis de Os artigos científicos consultados para esta reportagem
tailandeses e os vietnamitas, e recebeu anticorpos gerados pela administração estão listados na versão on-line.
M
APRENDENDO A esmo sem um relógio
CONTAR
por perto, não é difícil
calcular com precisão
razoável a duração de
1 segundo. É o tempo
O TEMPO
aproximado de uma ba-
tida do coração ou de uma piscada mais
lenta dos olhos. Intervalos tão curtos cos-
tumam passar despercebidos no dia a dia,
mas são cruciais para a sobrevivência.
Podem representar a diferença entre cap-
Neurônios de uma região do cérebro turar ou não uma presa ou atravessar uma
rua em segurança. Se são tão importantes,
treinam os de outra para como o cérebro aprende a cronometrá-
-los? Em estudos realizados com ratos,
perceber a passagem dos segundos pesquisadores da Universidade Federal
do ABC (UFABC) estão ajudando a de-
cifrar como diferentes regiões cerebrais
atuam para codificar a passagem de pe-
ríodos tão curtos de tempo.
Os resultados mais recentes, publi-
cados em setembro de 2022 na revista
eLife, revelaram algo inesperado: con-
tabilizar intervalos breves não é uma nunca se consegue acompanhar a ativi- cogumelo que reduz temporariamente a
atividade estática, realizada de modo dade cerebral em todos esses estágios. O atividade dos neurônios. Quando o córtex
contínuo por uma única área do cére- principal empecilho é técnico. O aprimo- era inativado no início dos experimentos,
bro, como sugeriam trabalhos anterio- ramento na execução das tarefas costu- os animais não conseguiam aprender a
res. Em vez disso, a equipe coordenada ma levar dias e, durante esse tempo, os aguardar 1,5 s e se saíam mal na tarefa. Já
pelo neurocientista Marcelo Bussotti eletrodos implantados no cérebro podem se o muscimol era aplicado no córtex pré-
Reyes verificou que ao menos duas re- mudar de posição ou perder sensibili- -frontal depois que os roedores estavam
giões parecem agir de modo coordenado dade por causa da cicatriz que se forma experientes, eles continuavam experts
e consecutivo na tarefa. ao redor. “Isso nos impedia de saber se em obter a recompensa. A aplicação de
Uma delas é o córtex pré-frontal me- estávamos registrando sempre a mesma muscimol no estriado depois que os ratos
dial. Associado ao planejamento de população de neurônios”, explica Reyes. já sabiam quanto tempo aguardar, no en-
ações, ao controle de impulsos e à iden- “No experimento atual, em que os ani- tanto, revertia o efeito do aprendizado e
tificação de regras, essa camada mais mais aprendem em menos de uma hora, eles passavam a errar o momento de tirar
superficial situada na parte anterior da temos segurança de que estamos acom- o focinho do orifício.
cabeça atua nos estágios iniciais, apren- panhando a todo momento a atividade “Esses experimentos são surpreenden-
dendo a identificar a duração do interva- dos mesmos neurônios”, afirma. tes porque os autores capturam o apren-
O
lo. À medida que esse conhecimento se dizado muito precoce e mostram que,
consolida, no entanto, a cronometragem que acontece no cérebro embora estejam diretamente conectados,
passa a ser executada por uma região durante a aprendizagem o córtex frontal e o núcleo estriado de-
mais profunda: o núcleo estriado dorsal, da tarefa? Na fase inicial, sempenham papéis diferentes”, afirmou o
responsável pela execução automática antes de os animais se neurologista norte-americano Nandaku-
de tarefas aprendidas. tornarem experts, a ati- mar Narayanan, da Universidade de Iowa,
No Centro de Matemática, Computa- vação ocorre apenas no nos Estados Unidos, que não participou
ção e Cognição da UFABC, Reyes e seus córtex pré-frontal. À medida que se apro- desse trabalho, a Pesquisa FAPESP.
colaboradores observaram a migração xima o momento em que podem retirar o “O trabalho é interessante por sugerir
da atividade de uma área cerebral para focinho do orifício e ganhar o prêmio ado- que, no início do aprendizado, a infor-
outra ao registrar a atividade dos neurô- cicado, os neurônios dessa região cerebral mação sobre o tempo é codificada por
nios de ratos durante o aprendizado de passam a ser ativados um número maior neurônios de uma área executiva alta-
uma tarefa simples. No interior de uma de vezes por segundo. Os neurocientistas mente evoluída, o córtex pré-frontal,
caixa de acrílico, os roedores tinham de chamam esse padrão de “sinal em rampa”, e, após o aprendizado, pelos neurônios
colocar o focinho em um pequeno orifí- por causa da reta inclinada que surge no de uma área classicamente associada a
cio contendo um sensor infravermelho gráfico que mostra o número de vezes em comportamentos automáticos e à forma-
e mantê-lo ali por ao menos 1,5 segundo que cada população de neurônio é ativada ção de hábitos”, afirma o neurocientista
(s). Se o animal retirasse o focinho antes por intervalo de tempo. “Para nossa sur- Adriano Tort, do Instituto do Cérebro
do prazo, não ganhava nada. No entan- presa, o sinal em rampa estava presente da Universidade Federal do Rio Grande
to, quando aguardava ao menos o tempo no córtex pré-frontal desde as primeiras do Norte (UFRN). “É uma descoberta
predeterminado pelos pesquisadores, ele tentativas, antes de o animal aprender a importante que precisa ser corrobora-
recebia uma recompensa prazerosa: go- aguardar aquele tempo específico”, conta da por outros grupos. Como o número
tas de uma solução de água com açúcar. a engenheira biomédica Gabriela Chiuffa de animais acompanhados foi pequeno,
Nas primeiras tentativas, os roedores Tunes, uma das autoras dos experimen- provavelmente devido à complexidade
não se saíam bem. Tiravam o focinho tos, realizados no doutorado feito sob a da pesquisa, as análises estatísticas são
antes da hora e ficavam sem a recom- orientação de Reyes. mais limitadas”, explica o neurocientista.
pensa ou esperavam tempo demais e À medida que os roedores ganhavam “Os resultados atuais trazem evidên-
perdiam oportunidade de tomar água experiência, o sinal deixava de ser ob- cias de que a contagem do tempo não é
com açúcar mais vezes. Só de vez em servado no córtex pré-frontal e passa- realizada continuamente pela mesma
quando acertavam. Cerca de uma hora va a ser identificado no núcleo estria- região do cérebro, ao menos nos inter-
após o início do treinamento, porém, do. “Inicialmente pensamos que fosse valos mais curtos”, afirma o pesquisa-
eles já haviam aprendido o quanto era consequência da perda de qualidade do dor da UFABC. Eles reforçam uma ideia
preciso aguardar e se tornado hábeis registro”, lembra Reyes. Também era surgida nas últimas décadas na neuro-
ganhadores de recompensa possível que o efeito observado fosse ciência de que, para intervalos conside-
Evolução tão rápida no desempenho consequência do acaso. rados curtos, o registro da passagem do
da tarefa deu aos pesquisadores a opor- A confirmação de que a codificação da tempo ocorre de modo difuso, feito por
tunidade rara de investigar como as duas informação sobre o tempo havia migra- diferentes regiões do cérebro. “Nossa
regiões cerebrais sabidamente ligadas do de uma região para outra veio com hipótese agora é de que o córtex pré-
INCHENDIO / GETTY IMAGES
à percepção do tempo atuavam em três outro experimento. Tunes e o também -frontal ‘treine’ outras regiões e depois
estágios do teste: antes, durante e depois engenheiro biomédico Eliezyer Fermi- saia de cena.” n Ricardo Zorzetto
do aprendizado. Embora muitos expe- no de Oliveira injetaram, ora no córtex
rimentos de percepção da passagem do pré-frontal, ora no estriado, uma dose de Os projetos e os artigos científicos consultados para esta
tempo sejam feitos com animais, quase muscimol, um composto extraído de um reportagem estão listados na versão on-line.
UM
RETRATO
DO
ABORTO
NO
BRASIL
O
assunto é espinhoso e cos- uma técnica que protege a identidade da
tuma despertar posições entrevistada, indica que a cada ano são
extremas. Talvez por esses realizados cerca de 500 mil abortos no
Uma em cada sete motivos e por ser qualifi- Brasil. Em quase metade dos casos, mais
cado como crime pela le- especificamente 43%, surgem complica-
mulheres de 40 anos gislação brasileira, o abor- ções que exigem a internação da mulher
to permaneceu um tema em hospitais ou prontos-socorros para
já interrompeu velado por muito tempo e concluir o procedimento.
intencionalmente só recentemente passou a “O aborto é um problema de saúde
ser mais discutido. Apesar da proibição pública que afeta a mulher comum, em
ao menos uma gestação, legal e da frequente condenação moral particular as brasileiras mais jovens e
ou religiosa, o fato é que ele ocorre e mais vulneráveis, como as mulheres ne-
cerca de metade é comum, praticado em boa parte das gras”, afirma a antropóloga Debora Di-
vezes de modo inseguro (sem o auxí- niz, da Universidade de Brasília (UnB),
o fez na adolescência lio de profissionais da saúde e os meios uma das coordenadoras da Pesquisa Na-
adequados), o que coloca em risco a cional do Aborto (PNA). Atualmente em
Ricardo Zorzetto
vida das mulheres. A estimativa mais sua terceira edição, esse levantamento,
ILUSTRAÇÃO Juliana Freire recente e confiável, obtida por meio de repetido em média a cada cinco anos,
tenta compreender a magnitude do pro- havia interrompido uma gestação. Tam- sistência adequada e coloca em risco a
blema no país. Na PNA mais recente, bém se aproximava de 10% a proporção vida da mulher. A quase totalidade (97%)
entrevistadoras foram a 125 municípios de católicas, evangélicas ou protestantes dessas interrupções inseguras acontece
brasileiros em novembro de 2021 coletar ou mulheres sem religião que já haviam nos países em desenvolvimento.
A
informações sociodemográficas de 2 mil abortado (ver gráficos na página 58). No Brasil, de acordo com a evolução
mulheres com idades entre 18 e 39 anos. registrada nas três edições da PNA, a
Na ocasião, também entregavam a cada pesar de o cenário indicar gravidade das complicações de saúde
participante um questionário com sete uma tendência de redução decorrentes do aborto aparentemente
perguntas sobre aborto, que era preen- na proporção de mulheres está diminuindo. Em 2010, 55% das mu-
chido e depositado por ela própria em que realizam aborto, os lheres que realizaram aborto precisaram
uma urna lacrada, para evitar a quebra números são vistos com ser internadas. Em 2021, essa propor-
do sigilo. Sorteadas de modo aleatório cautela pelos próprios ção foi de 43%. Ainda assim, um núme-
para fazer parte do levantamento, es- pesquisadores, porque a ro importante, que representa cerca de
sas mulheres representam a população queda pode ser menor do 200 mil hospitalizações por ano. “Isso
feminina brasileira em idade fértil que que aparenta. A margem de gera um impacto para as mulheres e um
sabe ler e escrever e vive nas cidades. erro em cada levantamento é de dois custo elevado para o sistema público de
Os resultados do levantamento, acei- pontos percentuais para mais ou para saúde”, lembra Diniz.
tos para publicação na revista Ciência & menos e pode haver uma oscilação es- “A diminuição na taxa de complica-
Saúde Coletiva, mostram que o aborto é tatística de uma edição para outra da ções sugere uma possível transição do
um evento comum entre as brasileiras: pesquisa, o que tornaria os valores mais uso de métodos mais perigosos, que en-
uma em cada sete mulheres de 40 anos já próximos entre si. Existe ainda a possibi- volvem a manipulação do útero, como
fez ao menos um aborto. “Qualquer pro- lidade de os dados sofrerem influência de o uso de agulhas e outros objetos, para
blema que afete tamanha proporção de uma mudança na estrutura da população. outras estratégias mais seguras, que uti-
pessoas é uma questão de saúde gigan- Nos 11 anos que separam a primeira da lizam medicamentos, ainda que obtidos
tesca para um país”, enfatiza o sociólogo última PNA, a taxa de fecundidade da de maneira ilegal”, comenta o ginecolo-
Marcelo Medeiros, professor visitante brasileira diminuiu de quase 1,9 filho por gista e obstetra Luiz Francisco Baccaro,
na Universidade Columbia, nos Estados mulher para 1,5 e, com menos gestações, da Universidade Estadual de Campinas
Unidos, coautor do estudo. haveria menos aborto. Alguns estudos (Unicamp), que não fez parte da PNA.
Essa proporção, no entanto, parece apontam ainda para um aumento no uso Ele coordenou a participação do Brasil
estar diminuindo. Essa taxa era de apro- de métodos contraceptivos de longa du- em um estudo recente da OMS que ana-
ximadamente 20% nos levantamentos ração na América Latina. lisou a severidade das complicações de-
de 2010 e 2016 e caiu para 15% em 2021. Se a evolução registrada nas três PNA correntes do aborto em 70 hospitais de
Embora as entrevistadas tivessem entre for real, ela pode indicar que o Brasil se- seis países da América Latina (20 deles
18 e 39 anos de idade, os pesquisadores gue uma tendência verificada nas últimas brasileiros). Publicados em 2021 na re-
usam uma ferramenta estatística para fa- décadas nos países mais desenvolvidos, vista BMJ Global Health, os resultados
zer uma projeção da taxa de abortos aos oposta à que aconteceu na América do sugerem que a maior parte dos casos que
40 anos e corrigir eventuais distorções Sul. Uma análise das estatísticas sobre chegam aos serviços de saúde no Brasil e
nos dados causadas pelo envelhecimento aborto registradas entre 1990 e 2014 em no Peru é menos grave do que os atendi-
da população e pelo fato de o aborto ser 186 países mostrou que, em um quarto dos na Argentina, Bolívia, República Do-
um fenômeno cumulativo. de século, a frequência de interrupção minicana e El Salvador – os dados foram
Em 2021, pela primeira vez, a sonda- de gravidez diminuiu expressivamente coletados antes da legalização do aborto
gem avaliou a idade em que as participan- nas nações mais desenvolvidas – caiu de, na Argentina no final de 2020. No Brasil,
tes realizaram o primeiro aborto induzi- em média, 46 abortos em cada grupo de 83% são leves, pequenos sangramentos,
do e revelou que esse é um problema que mil mulheres em idade reprodutiva para e 14% moderados, em geral hemorragias
começa cedo na vida das brasileiras: 52% 27 por mil. No mesmo período, segundo um pouco mais intensas.
haviam interrompido uma gestação antes os dados publicados em 2016 na revista Ainda que o grau das complicações
dos 19 anos. “A gravidez é um problema The Lancet, essa taxa cresceu de 43 para varie de um país para outro por carac-
social e econômico importante para as 47 por mil na América do Sul. terísticas dos sistemas de saúde locais,
jovens nessa faixa etária, porque impede A interrupção intencional da gravidez a OMS estima que 13% das mortes ma-
de continuar os estudos, prejudica a for- é um fenômeno comum no mundo. A Or- ternas – aquelas que ocorrem durante
mação profissional e restringe o acesso ao ganização Mundial da Saúde (OMS) esti- a gestação ou após o seu término – se-
mercado de trabalho”, explica Medeiros. ma que, a cada ano, ocorram 73 milhões jam consequência de abortos inseguros.
De acordo com a PNA, quem faz aborto de abortos induzidos, o equivalente a um A solução para o problema, na opinião
é hoje a mulher comum. Todas as edições terço das gestações. A agência sanitária dos especialistas, passa pela oferta de
da pesquisa mostraram que uma pro- internacional considera o procedimento condições seguras para a interrupção da
porção praticamente igual de brancas, seguro “se for realizado com os métodos gravidez, algo que no Brasil exigiria uma
pretas e pardas já realizou aborto. Em adequados para a idade gestacional e mudança na legislação, além de acesso
2021, era da ordem de 10% a parcela de por uma pessoa treinada”. Em 45% dos ao planejamento reprodutivo para evitar
mulheres de cada um desses grupos que casos, no entanto, ele ocorre sem a as- gestações não desejadas.
7%
25 a 29
Amarelas 8% Sem religião 12%
anos
O Código Penal brasileiro qualifica o gestações decorrentes de estupro (esti- educar a população para exercer a sexua-
aborto como um crime contra a vida. A madas em 18 mil por ano) e que, portanto, lidade de modo responsável e informá-la
mulher que opta por fazê-lo pode ser poderiam ser legalmente interrompidas. sobre os métodos contraceptivos, além
condenada a até três anos de prisão e Uma norma técnica de 2005 do Minis- de torná-los disponíveis. “Todo mundo
quem a auxilia (seja um profissional da tério da Saúde oferece aos profissionais faz sexo. Temos de parar de tratar esse
saúde ou não) pode pegar até 10 anos em da saúde orientações de como tratar e tema como tabu e passar a falar na es-
regime fechado. Essa lei de 1940 só prevê acolher os casos de aborto. Segundo o cola, na televisão, na igreja, sobre como
duas condições em que a punição não é documento, “o abortamento seguro, nas prevenir a gravidez”, afirma Medeiros.
aplicada: no caso de gravidez decorrente razões legalmente admitidas no Brasil, e Ele defende a necessidade de que os ho-
de estupro ou se o procedimento for o o tratamento do abortamento constituem mens assumam uma parte da responsa-
único meio de salvar a vida da mulher. direito da mulher que deve ser respeita- bilidade no controle da reprodução. “Se
Desde 2012, uma decisão do Supremo do e garantido pelos serviços de saúde”. os homens usassem camisinha em todas
Tribunal Federal (STF) também autoriza Essa diretriz, no entanto, é insuficien- as relações, a taxa de gravidez indesejada
a interrupção da gravidez nos casos de te para que o serviço seja oferecido à po- cairia próximo a zero e, consequente-
anencefalia, quando o feto não desenvol- pulação mesmo nas situações previstas mente, os abortos diminuiriam”, conclui.
ve completamente o cérebro ou outros em lei. A psicóloga Marina Gasino Ja- Especialistas afirmam ainda que é
órgãos do encéfalo e não tem condições cobs, durante o doutorado, realizado na necessário descriminalizar o aborto.
A
de sobreviver após o parto. Universidade Federal de Santa Catarina Vários estudos indicam que tornar o
(UFSC) sob a orientação da sanitarista procedimento legal e oferecer à mu-
pesar dessa possibilidade, a Alexandra Boing, procurou em três ba- lher a possibilidade de realizá-lo leva à
proporção de abortos legal- ses de dados do SUS informações sobre redução no número de casos. “O número
mente permitidos é muito estabelecimentos cadastrados para fa- cai porque as mulheres são acolhidas e
inferior à esperada. Em zer ou que tinham feito aborto legal em passam a ter acesso a métodos contra-
INFOGRÁFICOS ALEXANDRE AFFONSO / REVISTA PESQUISA FAPESP
um levantamento publica- 2019. Encontrou 290 serviços de saúde, ceptivos e orientação de como evitar
do em 2020 nos Cadernos localizados em apenas 200 dos 5.568 uma nova gestação não desejada”, diz
de Saúde Pública, o médico municípios brasileiros. Segundo os dados a epidemiologista Rosa Domingues, da
sanitarista Bruno Cardoso, publicados em 2021 nos Cadernos de Saú- Fundação Oswaldo Cruz, no Rio de Ja-
da Secretaria Municipal da de Pública, 40% deles se concentravam neiro, autora de revisões recentes sobre
Saúde do Rio de Janeiro, e colaboradores na região Sudeste. “Em 2019, 58,3% das a realização de aborto legal e ilegal no
analisaram os dados de nascimento, morte mulheres em idade fértil viviam em mu- Brasil. “A criminalização do aborto não
e internação no Sistema Único de Saúde nicípios em que o aborto previsto em lei resolve o problema. Só o torna insegu-
(SUS) no período 2008-2016 e consta- não era ofertado”, escreveram as autoras. ro”, afirma Diniz. n
taram que, a cada ano, são feitos cerca Uma questão importante é como redu-
de 1.600 abortos por indicação médica zir os abortos, em especial os inseguros? Os artigos científicos consultados para esta reportagem
ou legal. Esse número é bem inferior às A saída, segundo estudiosos do assunto, é estão listados na versão on-line.
58 | MAIO DE 2023
ECOLOGIA
Maioria das
gestações dá origem
a um único filhote
QUANTOS
N
o Natal de 2021, o biólogo Edu
Fragoso ganhou um presente
inusitado da mãe: um álbum de
FILHOTES TEM
fotografias. A diferença é que a
coletânea não reunia momentos
em família nem de viagens, como
se costumava fazer antes da era digital, mas
UMA ONÇA?
imagens do pesquisador em seu ambiente de tra-
balho, o Pantanal, com o seu objeto de pesquisa,
as onças-pintadas. Toda vez que ele e sua equipe
se aproximavam de uma onça para coletar dados
Com a ajuda da tecnologia, pesquisadores para pesquisa, ele mandava uma foto para a mãe,
EDU FRAGOSO / ONÇAFARI
O
só usar o método quando a toca está acessível,
sucesso das onças do Pantanal para evitar alterações que exponham os filhotes
se deve muito à quantidade de a riscos. “Antes só víamos os filhotes já com 2, 3
presas às quais elas têm acesso. meses de idade pelas câmeras, mas não sabíamos
“Esses felinos têm uma vida boa quantos de fato tinham nascido e sobrevivido.”
e tranquila aqui”, diz Fragoso. Os Uma das próximas missões é medir a taxa de
dados que permitiram as desco- mortalidade infantil das onças.
bertas foram coletados por quase uma década Além de experiência, para fazer parte de uma
com a ajuda da tecnologia: câmeras com sensores equipe como a de Fragoso, é necessário respeitar
de movimento para observar os animais – são as os protocolos de segurança. Só se pode chegar
chamadas armadilhas fotográficas. Ao detectar a perto de uma onça acordada dentro de um carro.
presença do bicho, a câmera começa a registrar.
Colares com equipamento de localização por GPS
ajudam os cientistas a saber exatamente onde
as onças estão, por onde andam e a identificar
as fêmeas grávidas, já que seus deslocamentos
diminuem consideravelmente durante a gestação.
Para colocar os colares, outro tipo de armadi-
lha é usado: o laço. Como sugere o nome, trata-se
de um laço conectado a um transmissor, armado
no meio da trilha e camuflado. Quando a onça
pisa na armadilha, sua pata fica presa e a equipe
recebe um sinal de que houve captura e, então,
corre até o local e dispara um dardo anestésico
que põe o animal para dormir.
Com o tranquilizante aplicado por um veteri-
nário, eles têm entre 40 minutos e uma hora pa-
ra tirar medidas, como peso e tamanho, coletar
material para análise em laboratório, como pelos,
saliva, sangue, e colocar o colar com o localizador
60 | MAIO DE 2023
Na região onde o Onçafari atua, elas já estão acos- Isso porque o Pantanal é um bioma conservado
tumadas ao barulho dos veículos e não alteram e com alta densidade de onças-pintadas, destaca
seu comportamento natural. Além de abrigar o veterinário Ronaldo Morato, coordenador do
pesquisadores, a Caiman também recebe turistas. Centro Nacional de Pesquisa e Conservação de
Até hoje, o biólogo nunca presenciou nenhum Mamíferos Carnívoros do Instituto Chico Men-
acidente grave, mesmo lidando com as maiores des de Conservação da Biodiversidade (Cenap/
onças do mundo. “As onças não enxergam os se- ICMBio). “Elas têm alguns comportamentos mais
res humanos como presas”, afirma o biólogo Alan relaxados ali, a competição é menor por terem
Eduardo de Barros, estudante de doutorado na mais alimento disponível”, avalia. “Ter essa re-
Universidade de São Paulo (USP), que estuda as ferência pode nos permitir fazer previsões para
consequências dos incêndios sobre a população regiões em que há menos possibilidade de coletar
de onças pantaneiras. informações”, aponta.
N
Outra vantagem foi poder observar onças em
o Pantanal, machos adultos chegam a uma propriedade que também tem investimento
pesar mais de 140 quilogramas (kg) e na atividade turística, à qual os animais estão ha-
as fêmeas mais de 80 kg. Adultos da bituados: entre os passeios oferecidos na região,
Caatinga são mais leves, com machos está a experiência de observar onças-pintadas.
adultos pesando menos de 50 kg. É essencial que os interesses do turismo sejam
EDU FRAGOSO / ONÇAFARI
Nesse sentido, Barros, que não tem aliados à pesquisa científica e à preservação da
relação com a Onçafari, avalia que a equipe de Fra- espécie, diz Barros. “O potencial é positivo se for
goso foi privilegiada por desenvolver o estudo no feito da maneira correta”, avalia.
bioma. “Existe uma facilidade para observar bichos O avanço da tecnologia foi mais um fator que
de grande porte e aves no Pantanal”, comenta. permitiu uma observação tão intensa do compor-
tamento desses animais. Nos anos 1970, pesqui-
sadores utilizavam colares que emitiam sinais
de rádio em frequência muito alta (VHF) – e não
com GPS. Para captar os sinais, Peter Crawshaw
(1952-2021), brasileiro pioneiro no estudo de
onças-pintadas, sobrevoava o Pantanal em ul-
traleves. “Antigamente, um estudo muito bom
conseguia cerca de 60 pontos de localização em
dois, três anos”, lembra Morato, um dos primei-
ros a usar GPS para monitorar onças-pintadas.
“Hoje, coletamos 60 localizações em três dias,
então a informação aumentou muito em quan-
tidade e tornou-se mais precisa.”
O acompanhamento O avanço dos computadores também permite
de longo prazo fornece que os pesquisadores analisem o grande volume
dados detalhados
sobre a demografia
de dados coletados. “Existem métodos para es-
das onças-pintadas miuçar essas informações de maneira muito mais
do Pantanal detalhada”, comenta Morato. “Podemos fazer
associações mais complexas que nos ajudam a
entender melhor a história natural das espécies.”
Reproduzir o estudo da equipe de Fragoso em
outros biomas brasileiros pode ser um desafio,
principalmente naqueles onde as onças estão
ameaçadas de extinção, como a Mata Atlântica
e o Cerrado, ou fora do país. A expectativa é de
que os dados coletados no Pantanal possam aju-
dar em avaliações da viabilidade de populações e
no planejamento para reintrodução da espécie.
Morato vê as onças-pintadas como um símbolo
para engajar a sociedade na preservação do meio
ambiente e da biodiversidade. n
Artigo científico
FRAGOSO, C. E. et al. Unveiling demographic and mating strategies
of Panthera onca in the Pantanal, Brazil. Journal of Mammalogy.
On-line. 12 jan. 2023.
MAIS
BARREIRAS
CONTRA
CIBERATAQUES
62 | MAIO DE 2023
Legislação brasileira focada em segurança
de dados avança, mas aparelhos conectados
à internet ainda continuam vulneráveis
Sarah Schmidt
H
á boas razões para temer que infor- tentaram roubar dinheiro de usuários e institui-
mações pessoais ou de empresas va- ções usaram programas de ransomware, que se-
zem do celular ou do computador e questram dados e contas, só devolvidos aos seus
sejam usadas sem o controle de seus donos após pagamento de um resgate.
donos. No Brasil, a chamada segu- Mesmo assim, de 2018 para 2020, o país saltou
rança cibernética ainda precisa me- da 70ª posição para a 18ª no mais recente Índi-
lhorar, embora a legislação brasileira ce Global de Segurança Cibernética, elaborado
esteja avançando, com a participação pela União Internacional de Telecomunicações
de especialistas de universidades, (ITU), que avalia as ações dos países mais bem
empresas e centros de pesquisa. Definida como preparados para lidar com ataques de hackers.
um conjunto de ações para proteger máquinas e Provavelmente o avanço se deve aos aprimo-
pessoas contra invasões, a segurança cibernética ramentos da legislação, um dos itens avaliados
implica aprimoramentos contínuos no campo da pela ITU, no qual o país obteve a nota máxima.
regulação, tecnologia e processos por parte de Embora sejam fundamentais, apenas instrumen-
governos, usuários e setor privado. tos legais não bastam, advertem os especialistas.
O engenheiro eletricista Edmar Gurjão, da “O desafio principal do Brasil não é ter boas
Universidade Federal de Campina Grande medidas regulatórias, mas implementá-las e mo-
(UFCG), na Paraíba, deve apresentar em agosto nitorá-las”, diz a advogada Ana Luíza Calil, dou-
à Agência Nacional de Telecomunicações (Ana- toranda em direito administrativo na Universida-
tel), em Brasília, propostas de medidas legais pa- de de São Paulo (USP). Em artigo publicado em
ra reduzir a vulnerabilidade da tecnologia 5G, a maio de 2022 na revista científica International
internet de quinta geração, que começa a ser im- Cybersecurity Law Review, ela e o advogado Ro-
plantada no Brasil. Gurjão lidera um estudo que berto Carapeto, da Universidade de Nagoya, no
reúne 52 pesquisadores brasileiros cujo objetivo Japão, analisaram a legislação brasileira e de ou-
é oferecer subsídios para que a agência avalie a tros quatro países da América Latina: Argentina,
necessidade de criar medidas legais específicas Chile, Colômbia e México. Segundo eles, todos
para esse tipo de tecnologia. Uma das recomen- têm criado seus próprios mecanismos legais para
dações que pretende fazer é que a Anatel exija reforçar a segurança cibernética, mas estão em
certificação de fábrica dos softwares instalados estágios diferentes. “Entre os cinco países, o Bra-
nos dispositivos aptos a funcionar com 5G, ga- sil tem o conjunto de regulações mais avançado,
rantindo que os parâmetros de segurança este- seguido pelo Chile”, observa Calil. Segundo ela,
jam atualizados. “A alta velocidade e a conexão o México ainda está em fase inicial.
FOTOMONTAGEM LÉO RAMOS CHAVES / REVISTA PESQUISA FAPESP
entre os aparelhos 5G expõem mais os usuários O Marco Civil da Internet, aprovado em abril
a ataques cibernéticos”, diz o pesquisador. de 2014, abriu caminho para outras normas im-
Há muito por fazer. Entre os países da América portantes. Entre as mais recentes, destaca-se a
Latina, as redes e os aparelhos ligados à internet Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), em vi-
no Brasil estão entre os mais vulneráveis. O país gor desde agosto de 2020, que regulamenta o
sofreu 103 bilhões de tentativas de ataques ciber- tratamento de dados pessoais (por exemplo, no-
néticos em 2022, atrás apenas do México (com me, sobrenome, CPF, RG, endereço residencial e
187 bilhões), segundo levantamento da empre- identificação do computador). “É a única no Brasil
sa norte-americana de cibersegurança Fortinet. que prevê objetivamente multa por vazamento e
Em comparação com 2021, o número de ataques armazenamento inadequado de dados pessoais”,
no país aumentou 16%. Mundialmente, de acor- afirma o engenheiro da computação Roberto Gal-
do com esse mapeamento, 82% dos ataques que lo, diretor da empresa de criptografia Kryptus e
O
1,3 bilhão em 2023, 13% a mais que o ano anterior. porém, quando isso deve ser feito.
Gurjão, da UFCG, ressalta a importância de
utro marco legislativo importante é criar um centro unificado para registros de in-
a Estratégia Nacional de Seguran- cidentes cibernéticos, previsto na Estratégia. A
ça Cibernética (E-Ciber), aprovada seu ver, esse centro poderia permitir ações con-
como decreto em fevereiro de 2020, juntas mais rápidas de defesa entre instituições
com diretrizes e ações estratégicas de responsáveis por serviços essenciais como for-
segurança cibernética, como incenti- necimento de água, energia, telecomunicações e
vo à pesquisa. “A Estratégia Nacional segurança pública, em caso de ataques.
procura harmonizar os objetivos de “É importante formar uma coalizão com os
quem lida com cibersegurança, mas diversos setores do governo e da sociedade ci-
falta clareza sobre as atribuições de cada parti- vil, já que a segurança cibernética lida ao mesmo
cipante e as formas de monitoramento das ações, tempo com uma ameaça difusa e híbrida, que
incluindo a interação da União com estados e pode atingir qualquer pessoa, empresa ou ins-
municípios”, comenta Calil. tituição”, diz Raquel Jorge de Oliveira, analista
64 | MAIO DE 2023
SOCIEDADE CIVIL
SEGURANÇA NACIONAL
Coalizão Direitos na Rede
ONGs
Gabinete de Segurança
G
órgãos do governo e os usuários”, diz Oliveira. 2021, a agência criou o Grupo Técnico de Segu-
rança Cibernética e Gestão de Riscos de Infraes-
raduada em relações internacionais, trutura Crítica (GT-Ciber), reunindo empresas
Louise Marie Hurel, mestranda na de telecomunicações. O grupo editou o Ato 77,
London School of Economics, no da Anatel, de julho de 2021, que estabelece re-
INFOGRÁFICO ALEXANDRE AFFONSO / REVISTA PESQUISA FAPESP
Reino Unido, tem uma visão seme- quisitos de segurança cibernética para aparelhos
lhante. Em uma análise publicada de telecomunicações e dispositivos conectados
pelo Instituto Igarapé, instituição à internet, como roteadores, modems, celulares,
não governamental do Rio de Janei- câmeras de segurança e televisões.
ro dedicada à segurança climática e “Agora, aguardamos a interação com o novo
digital, ela comentou: “Por mais que governo e uma participação mais intensa na atua-
o GSI já desempenhe a função de coordenação e lização da estratégia nacional”, afirma Gustavo
facilitação na administração pública federal, sua Santana Borges, superintendente de controle de
relação com a sociedade civil permanece frágil, obrigações da agência e integrante do GT-Ciber. n
com grupos frequentemente apontando a falta de
transparência e militarização da agenda do De- Os artigos científicos consultados para esta reportagem estão listados
partamento de Segurança da Informação do GSI”. na versão on-line.
PRESSÃO
DENTRO
DO CRÂNIO
VIA WI-FI
Inédito, sensor ainda em desenvolvimento
poderá disponibilizar informações em tempo real
nos smartphones da equipe médica
Domingos Zaparolli
O
monitoramento contínuo da pressão pequeno sensor nos ventrículos cerebrais, cavi-
intracraniana (PIC) é uma necessi- dades internas do órgão, ou no córtex cerebral, a
dade médica no tratamento de pa- camada externa. O dispositivo é ligado por cabos
cientes com problemas neurológicos a um equipamento posicionado nas proximidades
graves, aqueles que demandam cui- do leito onde é feita a leitura da pressão. “Os ca-
dados intensivos ou são submetidos bos são um incômodo para o paciente e fonte de
a neurocirurgias. São pessoas vítimas insegurança. Um movimento mais brusco pode
de hidrocefalia, traumatismos cra- desconectá-los do monitor. Outra desvantagem
nianos, acidente vascular cerebral é que os cabos podem ser indutores de bactérias
(AVC) ou tumor no cérebro. Uma pesquisa em e gerar infecções”, descreve Barros.
desenvolvimento na Universidade Positivo, em O sensor em desenvolvimento na Universi-
Curitiba, no Paraná, pretende disponibilizar o dade Positivo não é influenciado por movimen-
primeiro sensor invasivo feito no mundo capaz tos nem pela posição do paciente, uma vez que
de gerar informações em tempo real da PIC e não será conectado por cabos a um monitor. Os
viabilizá-las por conexão de internet via Wi-Fi a dados coletados serão encaminhados via Wi-Fi
smartphones e computadores da equipe médica. a um servidor em nuvem acessível por meio de
“A proposta é levar os benefícios da conectivi- aplicativo de smartphone ou computador.
dade ao dia a dia dos neurologistas. O dispositivo A primeira versão do dispositivo implantável
projetado por nós proporcionará agilidade na foi projetada com dois componentes: um tubo
obtenção de informações críticas e dará mais se- com um cateter para coleta de dados da PIC,
gurança e conforto aos pacientes”, diz o neuroci- medindo 35 mm de comprimento por 3,5 mm de
rurgião oncológico Erasmo Barros da Silva Junior, diâmetro, e uma peça quadrada com o circuito
idealizador do estudo que está sendo desenvolvido eletrônico responsável pela comunicação via Wi-
no âmbito do Programa de Pós-graduação em Bio- -Fi. Este último item, com 34 mm de lado por 15
tecnologia Industrial (PPGBiotec) da Positivo. A mm de espessura, continha chipset (conjunto de
iniciativa tem parceria do Instituto de Neurologia chips), placa-mãe e bateria de polímero de íon
de Curitiba e das empresas paranaenses Orakolo de lítio recarregável.
Tecnologia e BMR Medical. O sensor invasivo está sendo desenvolvido em
Apesar de existirem sensores não invasivos que fibra óptica, o que proporciona uma vantagem
monitoram a PIC por meio de indicadores indire- importante sobre os tradicionais sensores eletro-
tos (ver box na página 68), os sensores invasivos, mecânicos existentes no mercado. Como a fibra
IMAGEM SUNNYCHICKA / GETTY IMAGES FOTO GUSTAVO BENKE / REVISTA PESQUISA FAPESP
68 | MAIO DE 2023
DIFERENTES FORMAS DE MONITORAR A PRESSÃO INTRACRANIANA
Dispositivos implantáveis medem o parâmetro de forma precisa, enquanto os não invasivos
se baseiam em indicadores indiretos
SENSOR INVASIVO TRADICIONAL SENSOR INVASIVO SEM FIO SENSOR NÃO INVASIVO
Transdutores de pressão instalados A diferença para os aparelhos tradicionais Acoplado na cabeça e conectado via
no córtex cerebral medem diretamente é a inexistência de cabos ligando o sensor internet a uma plataforma analítica,
a pressão intracraniana em milímetros colocado no cérebro a um equipamento monitora parâmetros indiretos como a onda
de mercúrio (mmHg). Os dados são externo. O registro da pressão é enviado de pressão sanguínea que chega ao cérebro
transmitidos a um módulo de leitura por por Wi-Fi ou captado por um módulo e a capacidade de o crânio tolerar aumentos
cabos conectados ao sensor implantado dedicado posicionado junto ao paciente de volume sem elevar a pressão craniana
lidade de mercado em um prazo de cinco anos. e computadores não beneficiará apenas a área
Antes, precisará obter a aprovação da Agência de neurologia. “Será possível utilizar o mesmo
D
Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). conceito para desenvolver sensores para serem
usados para medir a pressão do tórax, do abdome,
ois modelos de sensores de pressão da bexiga e dos olhos”, exemplifica.
intracraniana sem fio já estão dis- O neurocirurgião André Giacomelli Leal, pre-
poníveis no mercado global. Um foi sidente eleito da Academia Brasileira de Neuro-
desenvolvido pela empresa alemã cirurgia (ABNc), avalia que a possibilidade de
Raumedic AG e outro pela norte- obter informações em tempo real de pacientes
-americana Branchpoint Technolo- neurológicos sem que seja necessário o deslo-
FOTO LÉO RAMOS CHAVES / REVISTA PESQUISA FAPESP INFOGRÁFICO ALEXANDRE AFFONSO / REVISTA PESQUISA FAPESP
gies. Os equipamentos atuais, porém, camento até a sala de UTI irá gerar um benefí-
não têm conexão Wi-Fi e utilizam cio imenso ao trabalho do médico. “Se tudo der
um aparelho dedicado que depende certo, vamos ganhar tempo e com isso podere-
da aproximação com o crânio do paciente para mos ser mais proativos. O uso da tecnologia vai
a obtenção dos dados captados pelo sensor im- proporcionar maior segurança na assistência a
plantado. O custo dos dispositivos comerciais, pacientes graves”, comenta. n
segundo levantamento de Barros, está entre US$
12 mil e US$ 15 mil.
O dispositivo em desenvolvimento na Positi-
Projetos
vo passará por uma revisão em seu design para
1. Desenvolvimento de um equipamento para monitoramento mini-
uma miniaturização. Sendo assim, seus custos de mamente invasivo da pressão intracraniana (nº 08/53436-2); Moda-
produção ainda não foram definidos. Segundo lidade Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe); Pesquisador
o médico cirurgião digestivo Marcelo de Paula responsável Sérgio Mascarenhas Oliveira (Sapra); Investimento R$
654.281,90.
Loureiro, professor da PPGBiotec e orientador de 2. Registro e comercialização de um equipamento para monitoramen-
Barros no doutorado, a proposta de trabalho da to minimamente invasivo da pressão intracraniana (nº 11/51080-9);
equipe de pesquisadores da Universidade Positivo Modalidade Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe); Pesqui-
sador responsável Sérgio Mascarenhas Oliveira (Sapra); Investimento
é que o sensor Wi-Fi tenha um preço final que lhe R$ 348.684,81.
permita concorrer com os sensores conectados
Artigo científico
com cabo. Esses modelos custam entre R$ 1 mil
SILVA JUNIOR, E. B. et al. Fiber-optic intracranial pressure monitoring
e R$ 5 mil por unidade descartável. system using Wi-Fi – An in vivo study. Neurosurgery. n. 92(3), p.
Loureiro avalia que a pesquisa para o desenvol- 647-56. mar. 2023.
vimento de sensores de fibra óptica para medir Os demais projetos e os artigos científicos consultados para esta
a pressão conectados por Wi-Fi a smartphones reportagem estão listados na versão on-line.
VIDRO
CONTRA
O
CÂNCER
Biovidro em pó
e no formato de
pastilhas: partículas
magnéticas conferem
a coloração preta
70 | MAIO DE 2023
Pesquisadores desenvolvem material
compósito com potencial para matar
células cancerígenas e regenerar o osso
Suzel Tunes
A
engenheira de materiais paraibana a pesquisadora, que hoje faz doutorado no mesmo
Geovana Lira Santana conheceu as departamento. Além disso, o biovidro F18 tem
propriedades do F18, um vidro bioa- forte ação bactericida, que dificulta infecções
tivo capaz de estimular a regenera- no pós-cirúrgico.
ção óssea, ao chegar à Universidade Iniciado em 2018, o projeto teve a orientação
Federal de São Carlos (UFSCar) do engenheiro de materiais Edgar Dutra Zanotto,
para fazer mestrado. Viu no novo coordenador do LaMaV e do CeRTEV, e colabo-
material a possibilidade de realizar ração do professor do DEMa Murilo Crovace. Os
o desejo antigo de virar cientista e resultados preliminares, publicados no periódico
fazer pesquisas sobre câncer. A partir do F18, científico Materials em 2022, são promissores.
uma criação do Laboratório de Materiais Vítreos Outra característica relevante do novo mate-
(LaMaV), do Departamento de Engenharia de rial é que ele pode ser aquecido até no máximo
Materiais (DEMa) da UFSCar, Santana traba- 45 graus Celsius (oC). Dessa forma, evita-se o
lhou no desenvolvimento de um compósito com superaquecimento do local e danos a células sa-
partículas magnéticas para tratar câncer ósseo. dias vizinhas ao tumor. Em testes laboratoriais,
Com a colaboração do Centro de Pesquisa, as partículas magnéticas do compósito chegaram
Educação e Inovação em Vidros (CeRTEV) e do a 40 oC em poucos minutos ao serem submetidas
Centro de Desenvolvimento de Materiais Fun- a um campo magnético externo.
cionais (CDMF), dois Centros de Pesquisa, Ino- “É uma temperatura bem próxima à ideal pa-
vação e Difusão (Cepid) apoiados pela FAPESP, ra o tratamento do tumor, por volta de 43 °C”,
Santana desenvolveu um novo material para ser conta Santana. “A formação de uma camada de
aplicado como enxerto no osso afetado por cân- hidroxicarbonato apatita, naturalmente presente
cer. À matriz vítrea formada pelo vidro bioativo no osso humano, permite a ligação do compósi-
(ou biovidro) F18, patenteado pela UFSCar em to com o tecido ósseo”, explica a pesquisadora.
2015, ela incorporou manganitas de lantânio do- Além de buscar os níveis ideais de aquecimento,
padas, ou seja, enriquecidas com estrôncio, um as próximas etapas do projeto compreendem a
material que aquece quando exposto a um campo realização de testes in vitro e estudos clínicos,
magnético alternado externo. ainda sem data prevista. Um pedido de patente
O resultado foi um compósito – material for- do compósito foi depositado em 2021.
mado por dois ou mais componentes com pro- O médico radiologista Marcos Roberto de Me-
priedades complementares ou superiores às dos nezes, coordenador da área de radiologia e inter-
itens que lhe deram origem – com dupla função. venção guiada por imagem do Instituto do Câncer
A primeira é o combate às células tumorais pelo do Estado de São Paulo (Icesp), avalia que, uma
LÉO RAMOS CHAVES / REVISTA PESQUISA FAPESP
aquecimento controlado das partículas magné- vez validado por estudos clínicos, o novo material
ticas; a segunda é a regeneração do tecido ósseo, poderá trazer boas perspectivas ao tratamento
em razão da capacidade de osteoindução do bio- oncológico. Menezes é especialista no tratamento
vidro. “O vidro bioativo libera íons que alteram de câncer por termoablação, técnica que consiste
o pH do meio, estimulando a proliferação de cé- na inserção de agulhas guiadas por imagem pa-
lulas ósseas. Ele não apenas cria um ambiente ra destruição da célula tumoral por aumento de
favorável à regeneração do osso, como fazem os temperatura ou congelamento.
substitutos ósseos disponíveis no mercado, mas Segundo o radiologista, o uso da temperatura
também promove a formação de tecido”, resume como recurso terapêutico na oncologia pode ser
O
dade da lesão pode haver um enfraquecimento de sódio, cálcio, silício e fósforo.
do osso afetado, gerando perda de função e dor.
A capacidade de osteoindução do vidro bioativo novo material chamou a atenção pela
poderia solucionar esse problema. capacidade de reagir com fluidos
Mesmo faltando várias etapas para chegar ao corpóreos formando uma camada
mercado, o vidro bioativo com partículas magné- de hidroxicarbonatoapatita, o que
ticas da UFSCar já tem uma empresa interessada lhe permitia ligar-se quimicamen-
em promover sua comercialização: a startup Ve- te ao tecido ósseo e promover sua
tra, fundada em 2014 por ex-alunos do CeRTEV regeneração. Foi patenteado como
e incubada no Supera, o parque de inovações Bioglass 45S5, nome que se popu-
tecnológicas de Ribeirão Preto. larizaria para materiais similares
O biovidro utilizado como matriz do compó- com diferentes composições.
sito desenvolvido por Santana nasceu do projeto Em pouco tempo, o biovidro ganhou lugar de
de mestrado da dentista Marina Trevelin, sócia- destaque no mercado de biomateriais. “Na Euro-
-fundadora da Vetra, realizado no LaMaV-DEMa- pa e nos Estados Unidos, ele vem sendo utilizado
-UFSCar entre 2009 e 2011. No doutorado, a pes- para produzir enxertos ósseos, membranas para
quisadora expandiu o projeto avançando para a regeneração de úlceras da pele e, em forma de
os ensaios pré-clínicos e explorando diferentes pó, produtos odontológicos para a reparação de
aplicações para a tecnologia, como regeneração defeitos no esmalte e tratamento da hipersensi-
de feridas da pele e de nervos. bilidade dentinária”, destaca Zanotto.
Trevelin recebeu bolsa da FAPESP para a rea- O material inventado por Hench, entretanto,
lização do doutorado em ciência e engenharia de apresentou limitações, devido a sua baixa resis-
materiais e a Vetra teve apoio do Programa Pes- tência mecânica. Essa característica impede o uso
quisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe), como implante em locais submetidos a grandes
da Fundação, para a produção industrial do F18. cargas e limita a capacidade de moldá-lo em dife-
A startup tem a patente do material, licenciada rentes formatos. Um dia, numa conversa informal
pela UFSCar em 2016 (ver Pesquisa FAPESP no à mesa de um bar, Zanotto e Hench especulavam
Osso
1. Para tratar o câncer ósseo, 2. Médicos fazem o 3. Depois, é aplicado um 4. O compósito vítreo é
o tecido comprometido é implante de enxerto ósseo campo magnético alternado gradualmente absorvido
removido. Após a intervenção, de biovidro F18 com LSM externo na região, levando pelo organismo e
há risco de recorrência de (manganitas de lantânio à morte as células tumorais substituído pelo novo
células cancerígenas dopadas com estrôncio) remanescentes tecido ósseo formado
72 | MAIO DE 2023
Amostras do biovidro fórmula ideal, a F18. “Chegamos a uma compo-
com diferentes sição estável e altamente bioativa, além de bac-
composições do
material magnético
tericida. Desde o início dos testes pré-clínicos,
em 2011, o F18 tem se mostrado promissor na
regeneração tecidual”, diz Trevelin.
Valendo-se das propriedades bactericidas do
F18, Trevelin, da Vetra, pretende empregá-lo
como enxerto ósseo em pacientes acometidos
por osteomielite, uma infecção óssea causada
por microrganismos patogênicos. Ela já iniciou
pesquisas nessa direção, com financiamento do
Pipe. A realização de testes clínicos depende ago-
ra de investimentos na infraestrutura da startup,
que a pesquisadora espera fazer com auxílio do
Pipe Invest, modalidade de apoio a startups e
N
pequenas e médias empresas.
às dos vidros bioativos, mas geralmente reduz o que resultou em um vidro com alta bioativida-
índice de bioatividade. O desafio da equipe da de e magnetização. Um diferencial do material
UFSCar foi, então, projetar uma formulação que é a possibilidade de dosar a taxa de entrega dos
conferisse uma bioatividade similar à do biovidro agentes terapêuticos associados ao compósito.
mantendo a alta resistência mecânica. O resul- “Podemos modular a dose da braquiterapia no
tado agradou os pesquisadores. momento da implantação dos vidros bioativos
“Nos últimos anos realizamos três estudos contendo a propriedade radioativa de hólmio
clínicos distintos com o biosilicato, todos com incorporado”, explica. O projeto, apoiado pela
sucesso”, informa o coordenador do LaMaV. De FAPESP, está na fase de testes in vitro. n
acordo com Zanotto, além de eficiente no tra-
tamento de hipersensibilidade dentinária, na
forma de pó, o material permitiu a produção de Projetos
implantes de ossículos do ouvido médio e de um 1. Desenvolvimento e caracterização de tecidos vítreos flexíveis alta-
mente bioativos (nº 11/22937-9); Modalidade Bolsa de Doutorado;
implante oftálmico. Essa prótese ocular de vidro Pesquisador responsável Edgar Dutra Zanotto (UFSCar); Bolsista Marina
apresenta aspecto e movimentação muito seme- Trevelin Souza; Investimento R$ 168.950,29.
lhantes ao olho natural. 2. Desenvolvimento de metodologia para a produção de vidros bioativos
particulados de alta pureza em escala industrial (nº 15/17175-3); Moda-
Anos depois, na criação do biovidro F18, os lidade Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe); Pesquisadora
pesquisadores queriam resultado oposto ao do responsável Marina Trevelin Souza (Vetra); Investimento R$ 600.150,88.
biosilicato: que ele não cristalizasse quando sub- Artigo científico
metido a altas temperaturas, permitindo maior SANTANA, G. L. et al. Smart bone graft composite for cancer therapy
controle do material na produção de fibras, teci- using magnetic hyperthermia. Materials. abr. 2022.
dos vítreos e peças 3D complexas. Trevelin conta Os demais projetos e o artigo científico consultados para esta reportagem
que foram feitas 17 tentativas até a obtenção da estão listados na versão on-line.
QUANDO O MAPA
É O TERRITÓRIO
Reconhecimento de terras indígenas e quilombolas
se vale de diversas formas de cartografia
Diego Viana
A
o reconhecer aos povos indígenas “territorialidade”. Trata-se do território vivido,
o direito às terras que habitam, a ou “os modos como a terra ganha significado, a
Constituição Federal de 1988 fa- partir de sua simbologia, de seu uso, de sua re-
voreceu processos de demarcação presentação”, segundo o geógrafo Maurice Seiji
e delimitação de territórios, que Tomioka Nilsson, que cartografa terras indíge-
continuam a ser feitos até hoje. Em nas desde a década de 1980 e hoje é consultor da
todas as regiões do Brasil, as rei- organização não governamental Centro de Tra-
vindicações geraram uma profusão balho Indigenista (CTI), sediada em São Paulo.
de relatórios, laudos e pareceres, De acordo com Andrade, a cartografia vem
produzidos pelos grupos técnicos (GT) que rea- ganhando importância crescente na área da an-
lizam os estudos etno-históricos, antropológicos, tropologia, em contextos como a formação de
ambientais e cartográficos exigidos pela legisla- professores indígenas, a demarcação e a gestão
ção. Em cada uma dessas iniciativas, consta um ambiental de suas terras, a produção de laudos
elemento em comum: os mapas. para a regularização fundiária. “Os próprios in-
Durante os trabalhos, antropólogos, cartó- dígenas têm uma demanda por se apropriar das
grafos, gestores ambientais e historiadores en- ferramentas de georreferenciamento para for-
volvidos nos GT recorrem a mapas de diversas talecer sua luta por direitos territoriais”, afirma.
naturezas. Há representações oficiais, feitas no Nas demarcações, tem sido fundamental a car-
período colonial, no Império e na República. Há tografia histórica, sobretudo na análise de mapas
desenhos feitos à mão pelos moradores ou pro- produzidos na segunda metade do século XVIII,
duzidos com a ajuda de sistemas de navegação após a assinatura do Tratado de Madri, que de-
por satélite, como GPS, e aplicativos. Outros são limitou os territórios pertencentes a Portugal e
transpostos de relatos orais ou recuperados de Espanha na América do Sul em 1750, segundo a
antigas descrições. Ao longo de duas décadas historiadora Íris Kantor, coordenadora do Labo-
trabalhando com regularização fundiária, o an- ratório de Estudos de Cartografia Histórica da
tropólogo Estêvão Palitot, da Universidade Fede- Cátedra Jaime Cortesão (Lech), da Faculdade de
ral da Paraíba (UFPB), acumulou um acervo de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, da Univer-
mapas que materializam a diversidade de formas sidade de São Paulo. “Nesse período, os mapas
de cartografar necessárias para que os povos in- foram confeccionados por expedições militares
dígenas recuperassem suas terras e identidades. e científicas que visavam urbanizar os indígenas,
Reunindo esses e outros documentos, Palitot além de facilitarem a construção de fortalezas, a
e a também antropóloga Lara Erendira Almeida instalação de registros fiscais e o reconhecimen-
de Andrade, doutora pela Universidade Fede- to das vias de comunicação terrestres e fluviais.”
ral de Pernambuco (UFPE) e pós-doutoranda Hoje, “a disponibilização da cartografia digital
pelo Instituto Nacional de Pesquisa Científica em alta resolução e a catalogação dos espécimes
do Canadá, criaram o website Atlas do Pernam- cartográficos permitem fazer um uso ‘contraco-
buco Indígena. Andrade conta que, graças a sua lonial’ desses suportes de informação geográfica
experiência como produtora cultural no Recife, bidimensionais”, afirma.
viu no material uma oportunidade de colocar a O uso dos mapas históricos exige conhecimen-
BIBLIOTECA DIGITAL DE CARTOGRAFIA HISTÓRICA DA USP
documentação à disposição do público. “Esco- tos variados, explica a pesquisadora. Eles são
lhemos usar uma linguagem não especializada, classificados segundo critérios como o suporte
Detalhe da carta com textos curtos acompanhando cada mapa, e material, a linguagem gráfica e o público destina-
Praefecturae de uma ferramenta de busca para que os visitantes tário. “É fundamental evidenciar o processo social
Paraiba et Rio Grande,
executada pelo
possam navegar entre eles”, diz. O primeiro con- de sua produção, circulação e apropriação”, diz.
naturalista alemão junto de documentos, com 23 textos, está no ar Na elaboração dos laudos técnicos, a presença
Georg Marcgraf desde janeiro. ou ausência de topônimo nos mapas possibilita
(1610-1644) em torno O Atlas apresenta a variedade dos processos reconstituir as sucessivas formas de ocupação de
de 1640, que mostra
uma tropa de indígenas
cartográficos que expressam a relação de um uma área geográfica. “Essa transposição não po-
comandada por grupo humano a um território, naquilo que o de ser imediata ou inadvertida, porque os nomes
um militar holandês geógrafo Milton Santos (1926-2001) denominou de lugares variam de cartógrafo para cartógrafo.
Os estudos devem levar em conta as famílias de sem na bruma do tempo. “Cerca de 100 pequenas
mapas da região”, observa. Esse método de aná- cidades da região têm origem em aldeamentos. Boa
lise também exige um conhecimento da história parte do nosso trabalho consiste em descobrir, nos
das línguas indígenas e suas interações com as documentos históricos, o que aconteceu nesses
O
línguas dos colonizadores. lugares”, diz o antropólogo da UFPB.
Palitot aponta que o Nordeste é onde os regis-
tros da ocupação indígena feitos por europeus são s pesquisadores constataram a al-
os mais antigos do Brasil. “Mas as terras não estão ternância de períodos com intensa
plenamente demarcadas, contêm muitos conflitos documentação e outros sem infor-
76 | MAIO DE 2023
área foram assimilados ao restante da população, promoveram a recuperação de suas identidades. O
eles podem ser desconsiderados. aumento do registro da população indígena tam-
Nos dois primeiros censos brasileiros, em 1872 bém decorre do fato de que, entre 1991 e 2000, o
e 1890, os indígenas apareciam como “caboclos”, Censo passou a visitar comunidades mais afas-
D
sem distinção de etnia ou grupo linguístico, ex- tadas das cidades da Amazônia.
pressando a aspiração da época por uma popu-
lação homogênea e mestiça. Ao longo do século e acordo com o antropólogo, a conta-
XX, houve grande variação nos critérios, com gem mostra que esses povos sempre
a ausência até mesmo do item “cor e raça” em estiveram naqueles lugares e jamais
alguns recenseamentos. A partir de 1991, como deixaram de ser indígenas. Apesar
reflexo da nova Constituição, a população indí- dos séculos de aldeamento e expul-
gena passou a ser contabilizada em mais detalhe, sões, suas identidades nunca desapa-
incluindo seus idiomas. Naquele ano, foram re- receram por completo, manifestan-
No século XVII, o mapa
do Brasil “novo e
gistrados 294.131 indivíduos, número que cresceu do-se em costumes preservados por
acurado” elaborado pelo para 734.172 em 2000 e 817.963 em 2010. trás da adoção de hábitos ocidentais.
cartógrafo holandês Palitot associa o rápido aumento, em parte, “Diversos elementos mostram um protagonismo
Joan Blaeu (1596-1673) aos “processos de valorização das identidades indígena significativo. No Nordeste, há mitos em
assinala a presença de
povos indígenas dentro
indígenas” e, em parte, às políticas públicas que que a imagem de uma santa foi mudada de lugar
e no entorno das começaram a ser implementadas com foco nes- e voltou sozinha: a terra era dela e ela queria ficar
capitanias portuguesas ses povos, sobretudo em educação e saúde, e que com seus filhos, os indígenas”, diz.
O
vincula a terra não a uma pessoa, mas a um povo”, no papel foi o modo encontrado para resguardá-lo.
estabelecendo uma ponte entre o regime fundiá-
rio nacional e as territorialidades tradicionais. A mapeamento participativo envol-
partir dessa definição, populações que hesitavam ve o recolhimento de depoimentos
em se reconhecer como indígenas passaram a dos indígenas, particularmente os
reivindicar esse estatuto e a buscar reconstruir anciãos, que descrevem os problemas
seus territórios. A hesitação era fruto das pres- enfrentados e os pontos-chave da área
sões oficiais por aculturação e também, muitas reivindicada. Em seguida, são feitos
vezes, do medo da violência. os chamados mapas mentais, em
Além de recorrer a documentos históricos, que o território pode ser desenhado À esquerda, mapa
também é preciso produzir mapas novos, capa- à mão livre. Em algumas ocasiões, o elaborado a partir de
zes de representar os pontos-chave da vida do processo também inclui a realização de oficinas croqui do povo Kariri-Xokó
grupo, como montes sagrados ou rios propícios de cartografia. Segue-se o trabalho de campo, em indica pontos de cultivo
e moradia, mas também
à pesca. Ou seja, a territorialidade. A iniciativa que as áreas mais significativas são visitadas e conflitos com não
em que uma população participa diretamente registradas com GPS. Os dados recolhidos são indígenas; à direita,
do mapeamento de sua terra recebe diferentes sobrepostos a imagens de satélite. os impactos da
designações, como “mapeamento participativo”, As ferramentas de mapeamento pelas próprias implantação de um
projeto de energia eólica
“mapa mental” ou “etnomapeamento”. comunidades envolvidas estão no cerne do projeto sobre comunidades
Os mapeamentos participativos constituíram “Nova cartografia social da Amazônia”, idealizado de pescadores
parte importante da gestão ambiental das terras pelo antropólogo Alfredo Wagner Berno de Almei- no litoral maranhense
78 | MAIO DE 2023
da, da Universidade do Estado do Amazonas (UEA), o rio por meio da mancha azul que é a antiga con-
e que vem sendo desenvolvido desde 2005. A car- venção cartográfica. “Com a cartografia social, os
tografia social de Almeida tem origem nos proces- indígenas puderam mapear os poços, áreas mais
sos de mapeamento do projeto Grande Carajás, da profundas do rio, onde se podem pescar determi-
década de 1980, que visava industrializar a região nados peixes ausentes das partes rasas. Os signi-
paraense por meio de uma grande ferrovia e si- ficados se multiplicam muito além do que consta
derúrgicas instaladas no entorno de Marabá, no dos mapas oficiais. Assim, quem toma decisões
Pará. A experiência de Almeida é relatada no livro acerca do impacto ambiental ou social, como o
Carajás: A guerra dos mapas (Farangola, 1993). Ministério Público ou a Defensoria Pública, tem
“Para fazer um mapa de projetos econômicos uma visão mais clara do que se passa ali”, diz.
como esse, é possível encontrar todas as informa- Para Farias Júnior, a “Nova Cartografia Social da
ções necessárias em instituições como o Instituto Amazônia” funciona como ponto de ligação entre
Brasileiro de Geografia e Estatística [IBGE] ou o pesquisadores e movimentos sociais. Almeida deu
Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Re- a sua técnica o nome de “cartografia social” para
cursos Naturais Renováveis [Ibama]”, observa o ressaltar essa conexão, que deve ser contínua, o
antropólogo Emmanuel de Almeida Farias Júnior, que não é necessariamente o caso no mapeamento
da Universidade Estadual do Maranhão (Uema) e participativo em geral. As oficinas e demais etapas
pesquisador do projeto. Segundo o pesquisador, do processo são feitas por solicitação de grupos
estão lá as diferentes áreas, as linhas de trans- envolvidos em algum conflito, seja territorial, lin-
missão, as estradas e ferrovias, os rios e cidades. guístico ou cultural. A cartografia social também
Mas isso não diz tudo. “Essa informação tem as pode ser aplicada ao espaço urbano. Farias Júnior
MAPAS PROJETO NOVA CARTOGRAFIA SOCIAL DA AMAZÔNIA
limitações típicas de um documento feito com fi- cita as comunidades LGBT+ de Manaus, no Ama-
nalidade oficial”, diz. “A cartografia social surgiu zonas e Belém, no Pará, e dos catadores de reci-
da constatação de que os impactos sociais de uma cláveis manauaras. Esses grupos indicaram aos
iniciativa desse porte não aparecem no mapa se pesquisadores a necessidade de registrar em ma-
N
não forem indicados pelas pessoas que vivem no pas os pontos relevantes para eles dessas capitais.
lugar. E o que entra nesse mapa? Tudo que essas
pessoas indicarem como relevante e significativo.” a cartografia social e nas demais formas
A região do rio Tapajós, no Pará, é o exemplo de mapeamento participativo, a conju-
escolhido por Farias Júnior. Os mapas usados nos gação das duas técnicas, a mental e a
relatórios de impacto ambiental do complexo de via satélite, constitui um momento de-
hidrelétricas, previsto para a região, representam licado. Existe um risco de que o aparato
tecnológico sufoque as informações
trazidas pela comunidade, em razão
da disponibilidade por vezes imediata
das imagens e seu alto grau de deta-
lhamento. “O fundamento da boa transposição das
informações é o efetivo conhecimento do território,
que se obtém nas etapas anteriores”, diz Nilsson.
“Na verdade, a informação que vem dos relatos é
mais rica e relevante. Então é preciso pensar em
parâmetros para obter a simetria entre as duas téc-
nicas, que não são naturalmente harmônicas”, alerta.
Kantor chama a atenção para a mesma dificul-
dade no âmbito da cartografia histórica. “Conjugar
as diferentes práticas de representação do espaço
em uma mesma base de dados é questão crucial.
A sobreposição das camadas de informação tem
que ser feita com método, para que seja possível
fazer comparações e cruzamento de referências”,
observa. Para melhor cumprir suas funções, o repo-
sitório de imagens “deve contar com a colaboração
de etnógrafos, arqueólogos, botânicos, geólogos,
historiadores da cartografia, linguistas, especialis-
tas em tecnologia da informação, em inteligência
artificial, entre outros”. n
VOCAÇÃO
CIENTÍFICA
E CÍVICA
Parque Explora, em Medellín,
fomenta a transformação urbana
S
ímbolo de transformação social em científico, tecnológico, de biodiversidade e ino- Roldán em uma das
uma cidade que, na década de 1990, vação. Além disso, conta com aquário e viveiro, instalações do Parque
Explora, que atua
foi considerada a mais violenta do que abrigam mais de 2 mil animais resgatados como uma empresa
mundo, o Parque Explora, em Me- do tráfico de espécies e de posses irregulares. cultural, prestando
dellín, é um dos museus mais visi- O Parque Explora também funciona como uma serviço para terceiros
tados da Colômbia e centro de referência na empresa cultural, prestando serviços de consul-
América Latina. O município, segundo maior toria para terceiros e oferecendo espaços para
do país, localizado na cordilheira dos Andes, a realização de eventos, seminários e shows.
foi um dos que mais sofreram os impactos do Em entrevista concedida a Pesquisa FAPESP
conflito armado que teve início na década de no marco da Conferência Mundial de Jornalis-
1960 e terminou oficialmente em 2016, quan- tas de Ciência (WCSJ), Andrés Roldán, diretor-
do o governo assinou o Acordo de Paz com as -executivo do museu há quase uma década, falou
Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia – sobre os impactos sociais da instituição na cidade
Exército do Povo (Farc-EP). Medellín tornou-se que, nos últimos 20 anos, se tornou referência
o epicentro da violência urbana desencadeada em urbanismo social, por meio da adoção de po-
entre paramilitares, guerrilheiros, narcotrafi- líticas públicas e projetos de inovação. Graduado
cantes e agentes do Estado, especialmente entre em desenho industrial pela Universidade Ponti-
as décadas de 1980 e 1990. fícia Bolivariana, na entrevista Roldán abordou
Criado em 2007 em um bairro onde há cerca os modelos de negócio do Parque Explora, que
de 40 anos funcionava um aterro sanitário, o asseguram sua sustentabilidade financeira, tor-
museu oferece mais de 300 experiências para nando-o praticamente independente do aporte
promover a apropriação social do conhecimento de recursos públicos.
80 | MAIO DE 2023
Como o Parque Explora foi criado? Universidade dos Andes, em Bogotá, ca- da Comuna 13, que tem uma história de
O Explora abriu suas portas em dezem- pital do país. Pelayo considerava que um transformação e, hoje, se tornou ponto
bro de 2007. O museu foi criado a partir museu de ciências seria estratégico para turístico. Parques, espaços recreativos,
de um investimento público feito pela ci- a cidade e, por essa razão, começou a in- artísticos e esportivos e bibliotecas fo-
dade de Medellín, que viabilizou a cons- vestir no desenvolvimento de um grande ram construídos no coração de favelas
trução do edifício, da infraestrutura e da projeto. A criação do Parque Explora faz que, atualmente, também podem ser
primeira versão das experiências. Me- parte de um movimento, desencadeado acessadas por meio de modernos siste-
dellín recebe recursos de uma empresa nos últimos 20 anos, para criar espaços mas de teleféricos, facilitando a conexão
de serviços públicos chamada Empresas culturais, museus, bibliotecas, parques com o centro da cidade.
Públicas de Medellín, uma das maiores e complexos esportivos em bairros mar-
da Colômbia. Essa companhia pertence ginais e periféricos da cidade. Como é a região onde o museu foi criado?
à prefeitura e desenvolve trabalhos in- Estamos localizados no bairro de Aran-
clusive no exterior, incluindo projetos Em 2007, como era a questão da vio- juez. Apesar de ser uma zona relativa-
de saneamento, distribuição de energia lência e do conflito armado na cidade? mente central, ficamos nos limites da
elétrica e gestão de resíduos sólidos. Is- O período mais violento em decorrên- cidade planejada e da chamada cidade
MÁRIO QUINTERO / PARQUE EXPLORA
so permite que a cidade tenha um orça- cia do narcotráfico e do conflito arma- autoconstruída, que seria o equivalente
mento mais robusto do que o de outros do durou até 2002. Nos anos seguintes, às favelas no Brasil. Ao nosso lado está
lugares do país. Em 2004, a prefeitura a cidade passou por mudanças e a vio- a região de Moravia, onde funcionava o
era dirigida pelo matemático colombiano lência caiu radicalmente. A queda tem antigo aterro sanitário da cidade, que
Sérgio Fajardo, doutor honoris causa da a ver com grandes investimentos volta- chegou a abrigar 30 metros de altura de
Universidade Internacional Menéndez dos à integração social, especialmente lixo, espalhado em uma extensão de 7
Pelayo, na Espanha, e ex-professor da em bairros periféricos, como é o caso hectares. Saturado, esse lixão foi fecha-
82 | MAIO DE 2023
Museu funciona em um bairro que fica nos limites entre a cidade planejada e a cidade autoconstruída
Isso mesmo. No ano passado, chega- a disseminar a cultura científica. Ao re- como cocriadores em diferentes iniciati-
mos a ter 600 pessoas contratadas. Ho- conhecer essas organizações, o minis- vas. Assessoramos quem nunca elaborou
je estamos com 450, porque crescemos tério permite que pleiteiem recursos no um museu para que faça as perguntas
e decrescemos conforme os projetos Sistema Geral de Royalties, que inclui estratégicas necessárias para começar a
em andamento. Atuamos com um le- royalties do petróleo e da mineração, desenhar o conceito, a missão temática
que grande e desafiador de atividades para financiar seus projetos. e, por fim, para construir o espaço. Com
e trabalhamos muito. Conforme nosso o Museu Casa da Memória foi assim. Em
ordenamento jurídico e nosso estatuto, Como a pandemia impactou a insti- 2008, como parte das ações do Progra-
precisamos ser capazes de operar sem tuição? ma de Atenção às Vítimas do Conflito
dinheiro público. Por isso, devemos es- Foi um período duro, tivemos anos ne- Armado, o governo decidiu criar a ins-
tar sempre em busca de novos projetos gativos, ou seja, perdemos dinheiro. tituição, inaugurada em 2012. A equipe
e oportunidades. Mesmo assim, decidimos não demitir do Explora elaborou a experiência e o
ninguém. Por outro lado, nos conver- conteúdo do museu, desenvolvido com
Museus de ciência são uma tradição temos em um hub de recursos digitais base em pesquisas e consultas cidadãs,
na Colômbia? para famílias e professores, oferecendo por meio de exercícios de construção
Não. Temos poucos museus do porte eventos e experiências gratuitas on-line coletiva de memórias e reparação sim-
do Parque Explora. Em Bogotá, há um por meio da plataforma Parque Explora bólica. Sua finalidade é contribuir para a
chamado Maloka. No geral, contamos em Casa. A plataforma segue em uso, em superação do conflito e da violência em
com zoológicos e instituições mais tra- níveis inferiores aos do pico na pande- Medellín, na Antioquia e no país. Não é
dicionais. Ainda falta muito para che- mia. Mas já nos recuperamos dos im- fácil atuar com projetos museológicos
garmos a um patamar ideal, mas obser- pactos da Covid-19. O ano de 2022 foi o porque, muitas vezes, há vontade políti-
vo um interesse crescente das cidades que registramos os melhores resultados ca, mas não há recursos econômicos. Por
para investir em projetos e centros de financeiros de toda nossa história. isso, é preciso trabalhar em etapas. O pri-
ciência. Na Colômbia, o engajamento meiro passo é conceber uma declaração
com a ciência é chamado de apropriação Medellín conta também com o Museu que contenha a missão e os objetivos do
MÁRIO QUINTERO / PARQUE EXPLORA
social do conhecimento. E o Ministério Casa da Memória. Poderia falar um projeto, incluindo seu público-alvo e o
de Ciência, Tecnologia e Inovação tem pouco sobre esse outro espaço de refe- tipo de experiência que pretende ofere-
feito um grande esforço para reconhecer rência na cidade? cer. Esse primeiro documento funciona
centros de ciência no país, como jardins Na Colômbia não há tantas pessoas ca- como um pontapé inicial e permite sub-
botânicos, zoológicos, museus interati- pacitadas para desenvolver e adminis- sidiar a busca por recursos financeiros
vos, universitários e de história natural, trar museus e exposições. Então, muitas que tornarão viável o desenvolvimento
além de outras organizações que ajudam instituições nos buscam para atuarmos do projeto até o fim. n
PRECISAMOS
FALAR
SOBRE
A MORTE
Imagens que integram
memorial aos mortos
no Cemitério São Luiz,
na cidade de São Paulo
Em livro recém-lançado, pesquisadores tratam
do tema em suas várias vertentes com o objetivo
de levar a discussão para dentro da escola
P
ublicado desde 1851, o obituário por vezes, com abordagem sensacionalista e pou-
do jornal norte-americano The co educativa”, relata Dillmann, da Universidade
New York Times criou em 2020 Federal de Pelotas (UFPel). “A meta do Guia é
um memorial virtual intitulado levar essa discussão para dentro da escola e co-
Those We’ve Lost para home- meçar a falar sobre a morte desde cedo, a partir
nagear os mortos vítimas de do fundamental II, de forma crítica, reflexiva e
Covid-19. Entre eles está o ator fundamentada na ciência.”
e humorista fluminense Paulo Os textos foram escritos por 39 pesquisadores,
Gustavo (1978-2021), apontado do Brasil e de Portugal, e de múltiplas áreas do
pelo periódico como um dos conhecimento como história, ciências sociais,
intérpretes mais queridos pelos religião, direito e medicina. “Graças a essa va-
brasileiros, que pouco antes de riedade de especialistas, não tratamos apenas
adoecer teria dito que rir era “um belo ato de do passado, como é praxe entre historiadores,
resistência”, como escreve a historiadora Mariana mas também de questões contemporâneas, a
Antão de Carvalho Rosa, do Instituto Estadual exemplo de eutanásia e de necropolítica, observa
de Educação, Ciência e Tecnologia do Maranhão Nascimento, ao referir-se ao conceito proposto
(Iema), no texto a respeito de obituários que in- pelo filósofo camaronês Achille Mbembe, em
tegra o recém-lançado Guia didático e histórico ensaio publicado em 2003, que discute como o
de verbetes sobre a morte e o morrer. Estado escolhe quem vive e quem morre. Para
Organizada pelos historiadores Mara Regina a historiadora da arte Maria Elizia Borges, do
do Nascimento e Mauro Dillmann, a obra reúne Programa de Pós-graduação de História da Uni-
62 verbetes sobre temas como luto, velório e me- versidade Federal de Goiás (UFG), a morte é um
mória. “Vivemos em uma sociedade que cultua tema multidisciplinar. “No caso dos cemitérios,
a juventude e a ilusão de que seremos eternos. por exemplo, podemos estudar, entre outras coi-
Temos, portanto, grande dificuldade em lidar sas, a história e a geografia do local, a trajetória
com a finitude da vida”, observa Nascimento, das famílias dos mortos ali enterrados e a ico-
da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). nografia dos túmulos”, explica a pesquisadora,
“Mas, como a morte é uma questão inescapável que assina os verbetes “cemitério-necrópole” e
para todos os seres humanos, precisa ser mais “lápides e epitáfios”.
LÉO RAMOS CHAVES / REVISTA PESQUISA FAPESP
D
tas que despontavam naquele momento”, conta. Philippe Ariès”, conta a pesquisadora, que inves-
tiga a temática da morte há mais de 30 anos e no
e acordo com a historiadora Guia assina o verbete sobre o morrer católico.
Claudia Rodrigues, da Univer- Rodrigues é uma das coordenadoras de Ima-
sidade Federal do Estado do Rio gens da morte: A morte e o morrer no mundo
de Janeiro (Unirio), foi a partir ibero-americano, grupo de pesquisa do Depar-
da década de 1960 que os estu- tamento de História da Unirio, certificado pelo
dos sobre a morte ganharam im- Conselho Nacional de Desenvolvimento Cien-
pulso, na área de humanidades. tífico e Tecnológico (CNPq). Criada em 2011,
Isso se deu inicialmente na Eu- a iniciativa tem cerca de 50 integrantes, entre
À esquerda, cruz ropa e nos Estados Unidos, por professores universitários e estudantes de pós-
remanescente de meio de trabalhos de pesqui- -graduação de países como Brasil, Argentina,
cemitério protestante
instalado em área da
sadores como os historiadores Espanha e Colômbia. Em julho, o grupo deve
fazenda Ipanema, franceses Philippe Ariès (1914- apresentar um painel temático no 32º Simpósio
em Iperó, no interior 1984) e Michel Vovelle (1933-2018). No Brasil, um Nacional de História da Associação Nacional dos
do estado de São dos pioneiros nesse campo foi o educador baiano Professores Universitários de História (Anpuh),
Paulo. À direita, lápides
no Cemitério do Caju,
Clarival do Prado Valladares (1918-1983), que em São Luís, no Maranhão. “Nosso eixo é a histó-
na zona norte iniciou suas pesquisas na década de 1960 e pu- ria, mas dialogamos com várias áreas do conhe-
do Rio de Janeiro blicou livros como Arte e sociedade nos cemitérios cimento”, diz Rodrigues, editora da publicação
brasileiros (Conselho multidisciplinar Revista M. – Estudos sobre a
Federal de Cultura/ Morte, os Mortos e o Morrer. “Esse intercâmbio
Departamento de Im- é fundamental para, entre outros motivos, ex-
prensa Nacional, 1972). pandir a inserção de disciplinas como história
Seus dois volumes tra- da morte em cursos da área da saúde.”
tam do tema em 1.487 A lacuna é gigantesca, pelo menos no campo
páginas. Segundo Ro- da medicina, indica levantamento realizado pelos
drigues, no campo da pesquisadores George Felipe de Moura Batista e
história, o interesse Gustavo da Cunha Lima Freire, da Universida-
por esse objeto de pes- de Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), em
OS ESTUDOS SOBRE A MORTE
GANHARAM IMPULSO,
NA ÁREA DE HUMANIDADES,
A PARTIR DA DÉCADA DE 1960
N
e do processo de luto. mitt escreve no Guia,
observa-se atualmente,
o decorrer do século XIX famí- no mundo todo, movi-
lias burguesas contratavam fotó- mentos oriundos prin-
grafos para registrar uma última cipalmente das redes
imagem dos mortos, segundo a sociais que “encorajam
historiadora Juliana Schmitt, as pessoas a refletirem
professora do curso de artes vi- sobre a própria morte,
suais da Universidade Federal de tomando as decisões
Pernambuco (UFPE), no Recife. sobre as etapas pelas quais seus restos mortais Estátua do Sagrado
A ideia era guardar a memória passarão (o que inclui as roupas com as quais Coração de Jesus
no cemitério
daquele ente querido. “A prática seus corpos mortos serão vestidos) e deixando da Vila Alpina,
começou na Europa em meados explícitos, ainda em vida, esses desejos”. na região sudeste
do século XIX e algum tempo Conforme a estudiosa, o rigor em relação aos da capital paulista
depois chegou ao Brasil”, conta Schmitt, autora trajes de luto na sociedade ocidental foi reforça-
do verbete sobre fotografia mortuária. O acervo do no século XIX pela rainha Vitória (1837-1901),
do Museu do Ipiranga da Universidade de São do Reino Unido. Após a morte do marido, Albert,
Paulo (USP), por exemplo, guarda cerca de 20 em 1861, a regente usou roupas e acessórios na
retratos de mortos feitos por Militão Augusto cor preta até o final de sua vida, ou seja, por 40
de Azevedo (1837-1905), fotógrafo que atuou em anos. “Dessa forma, disseminou o culto ao luto
São Paulo no século XIX. “Entretanto, a partir para todas as classes sociais de sua época. Mas
das primeiras décadas do século XX esse tipo de manter esse rito ao longo de cerca de dois anos e
imagem ganhou fama na sociedade ocidental de meio e com as roupas adequadas, de preferência
algo mórbido e de mau gosto.” novas e seguindo a silhueta da moda, como pre-
Uma das explicações para que isso tenha ocor- conizavam os manuais de etiqueta da época, era
rido, segundo a pesquisadora, está no progressivo privilégio de poucas pessoas”, conta a pesquisa-
distanciamento da sociedade ocidental em relação dora, autora de Três lições da história da morte.
à morte. “Até o final do século XIX, morria-se, No decorrer do século XX, após as duas guerras
sobretudo, em casa, na companhia de familia- mundiais, as regras foram sendo afrouxadas. “Ho-
res, amigos e vizinhos. Depois a morte passou a je mantém-se a tradição do uso da cor preta no
FOTOS LÉO RAMOS CHAVES / REVISTA PESQUISA FAPESP
ocorrer fora do ambiente doméstico, nos hospi- mundo ocidental e de peças de modelagem dis-
tais. Além disso, a profissionalização dos serviços creta, mas não há mais nenhuma obrigatoriedade
funerários liberou, em parte, as famílias da lida nesse sentido”, conclui Schmitt. n
com o cadáver”, relata Schmitt.
No Guia, a pesquisadora também assina um
verbete sobre vestuário fúnebre, termo que se Livros
aplica tanto às roupas vestidas por cadáveres DILLMANN, M. e NASCIMENTO, M. R. (orgs.). Guia didático e histórico
quanto as usadas pelos enlutados. Em sua avalia- de verbetes sobre a morte e o morrer. Porto Alegre: Casaletras, 2022.
http://guaiaca.ufpel.edu.br/handle/prefix/8988
ção, por fugirmos do debate em torno da finitude SCHMITT, J. Três lições da história da morte. Rio de Janeiro: Editora
no mundo contemporâneo, questões como a vesti- UFRJ, 2023.
O CÉU
VISTO DAS
MISSÕES
Com telescópios feitos com
os Guarani do sul do Brasil, o jesuíta
Buenaventura Suárez observou
eclipses lunares e solares e luas de
Júpiter, com precisão, no século XVIII
Danilo Albergaria
1
88 | MAIO DE 2023
N
o início do século XVIII, uma finalidade religiosa e colaborava com do sol observada com um quadrante, um
nos aldeamentos das Mis- o processo de difusão do cristianismo.” aparelho astronômico rudimentar, a me-
sões Jesuíticas da bacia Em San Miguel Arcanjo, atualmente dição de eclipses dos satélites jovianos,
do rio da Prata, territó- no município gaúcho de São Miguel das de acordo com um método desenvolvi-
rio hoje dividido entre Missões, Suárez registrou dois eclipses do pelo próprio Galileu, era usada pa-
o Brasil, a Argentina e o lunares, um em 1728 e outro, com um te- ra encontrar a diferença da longitude
Paraguai, o jesuíta Buenaventura (ou lescópio refrator (de tecnologia simples, entre o local de observação e um local
Boaventura) Suárez (1679-1750) tinha com duas lentes convexas) de 3 metros de referência no globo com longitude
um profundo interesse nos fenômenos (m) de comprimento, em 1747. Nesse conhecida, como hoje é o meridiano de
celestes, mas enfrentou dificuldades pa- mesmo ano e com o mesmo telescópio, Greenwich, em Londres. “Suárez usou o
ra ser um astrônomo. Como a Compa- na missão de Santa Maria la Mayor, na método mais preciso e, ao mesmo tem-
nhia de Jesus, na Espanha, não enviava atual Argentina, observou outro eclipse po, exequível em sua época”, reconhece
equipamentos de medição e observação, lunar. Os registros de 1747 foram publi- o astrofísico Oscar Matsuura, professor
ele construiu seus próprios telescópios cados na Philosophical Transactions, re- aposentado da Universidade de São Pau-
e fez observações consideradas consis- vista científica da Royal Society, a acade- lo e organizador do livro História da as-
tentes por especialistas em centros cien- mia de ciências britânica, em 1749 e 1750. tronomia no Brasil (Cepe, 2014).
tíficos europeus dotados de aparelhos Mais importantes são suas observa- Nos 13 anos em que viveu em San Cos-
muito melhores. ções sistemáticas das quatro maiores luas me, o jesuíta observou 147 eclipses de
Suárez era da elite criolla da região, de Júpiter, descobertas pelo matemático satélites de Júpiter e usou essas infor-
filho de uma bisneta do conquistador italiano Galileu Galilei (1564-1642) e já mações para estabelecer a longitude de
espanhol Juan de Garay (1528-1583), de amplo conhecimento no século XVIII. todas as 30 missões. O astrônomo sueco
fundador de Santa Fé, atualmente na Com um relógio ajustado pela posição Pehr Wilhelm Wargentin (1717-1783) usou
Argentina, onde ele nasceu. Estudou no
colégio jesuíta da cidade, ingressou na 3
S
procuravam produzir nas próprias mis- de metal. Em algumas missões, Suárez e
eu conhecimento de mate- sões tudo de que precisavam, como equi- os indígenas fundiam sinos e fabricavam
mática lhe serviu também pamentos agrícolas, culinários ou mu- instrumentos musicais, como tubos de ór-
para elaborar lunários – sicais. “O vidro de qualidade suficiente gão. “Muitas crônicas jesuíticas destacam
compêndios de predições para produzir lentes para telescópios era a capacidade dos Guarani de fazer relógios
astronômicas como fases de acesso restrito, porque tinha de ser e astrolábios como os europeus”, relata
da lua e eclipses lunares e comprado via Buenos Aires ou Assun- Asúa. Impulsionadas pela astronomia de
solares. “O lunário era importante para ção”, esclarece o historiador Artur Henri- Suárez, as Missões produziram relógios de
a organização da vida nas missões”, diz que Barcelos, da Universidade Federal do sol, relógios mecânicos, globos terrestres
o historiador argentino Carlos Daniel Rio Grande (Furg), no Rio Grande do Sul. e celestes, perdidos após a expulsão dos
Paz, da Universidade do Vale do Rio dos O mais provável é que ele tenha cons- jesuítas das terras espanholas em 1767.
Sinos (Unisinos), em São Leopoldo, no truído as lentes a partir de materiais lo- Suárez e os Guarani fabricaram oito
Rio Grande do Sul. “Era uma forma de cais. Havia cristais de quartzo em abun- telescópios, com comprimento que va-
organizar o tempo das missões e orientar dância no Chaco paraguaio, e o conheci- riou entre 2,3 m e 9 m. Para operar os
90 | MAIO DE 2023
3
O
4
jesuíta traduziu para o A tradução indica, ainda, que Suárez que utilizou a teoria newtoniana em seu
espanhol o livro Theori- ultrapassava o aspecto pragmático da texto Sistema físico-matemático dos co-
ca verdadeira das marés, astronomia como fazer calendários para metas, de 1759.
publicado em Londres atividades religiosas. É também um tra- Suárez não foi o primeiro astrônomo
em 1737. O autor é o mé- balho intrigante, porque a Companhia de nem o primeiro jesuíta a fazer astrono-
dico judeu português Jesus não dava muita abertura para as mia na América do Sul. Desde o século
Jacob de Castro Sarmento (1692-1762), novidades teóricas – a mecânica newto- XVII, astrônomos, principalmente je-
um dos primeiros a introduzir a física niana ainda não era aceita nem ensinada. suítas, faziam observações com objeti-
newtoniana em Lisboa, antes de fugir da “O ensino jesuítico para os nativos vos cartográficos pelo continente, em
perseguição antissemita para Londres e era escolástico, com conteúdos antigos especial na Amazônia. Mas foi o pri-
se tornar membro da Royal Society. Era e cristalizados, mas entre os clérigos meiro indivíduo nascido na América
Sarmento quem lia as observações de era permitido ter curiosidade, tomar que produziu conhecimento astronô-
Suárez nas reuniões científicas e abriu conhecimento das novidades e deba- mico relevante para a nascente ciên-
caminho para o jesuíta publicar seus tra- tê-las”, conta Matsuura. “Era normal cia moderna, com seus próprios meios,
balhos em várias edições da Philosophical que uns aderissem às novidades e até as construindo os próprios instrumentos.
Transactions. Sarmento recebia os dados defendessem publicamente, enquanto “Sua história é importante para a com-
por intermédio do médico carioca Ma- outros, não.” Como exemplo, ele cita o preensão de que a América do Sul não
teus Saraiva (?-?), também membro da matemático e astrônomo português José foi um mero apêndice na produção de
Royal Society e interessado em astrono- Monteiro da Rocha (1734-1819), educa- conhecimento do século XVIII”, arre-
mia, com quem o jesuíta se correspondia. do pelos jesuítas no Colégio da Bahia, mata Paz. n
HISTÓRIA
AOS
DOMINGOS
Pioneiro nos estudos sobre a
revolução de 1930, Boris Fausto explorou
a micro-história e a autobiografia
Diego Viana
A
o evocar o último encontro Fausto dizia que sua carreira atípica era No artigo “O Estado Novo e o debate
que teve com o historiador fonte ao mesmo tempo de limitações e de sobre o populismo no Brasil”, a historia-
Boris Fausto, morto em 18 liberdade. Como não podia se afastar por dora Ângela de Castro Gomes, da Uni-
de abril, aos 92 anos, a cien- longos períodos do posto de trabalho na versidade Federal do Estado do Rio de
tista política Lourdes Sola USP, decidiu se dedicar a temas ligados à Janeiro (Unirio), afirma que esse livro foi
recorda que as conversas giraram em tor- cidade de São Paulo e à historiografia. Por “a primeira grande contribuição historio-
no da “carreira solo” de ambos. Apesar de outro lado, como não estava imerso no dia gráfica que tomou a revolução de 1930
pertencerem ao Departamento de Ciên- a dia da carreira acadêmica, que começa- como objeto” e influiu decisivamente
cia Política da Faculdade de Filosofia, va a se profissionalizar nessa época, pôde na compreensão desse evento histórico.
Letras e Ciências Humanas da Universi- escolher temas, métodos de pesquisa e A obra de Fausto caracteriza-se pelo
dade de São Paulo (DCP-FFLCH-USP), estilos de texto mais afinados a seu gosto. diálogo com as ciências sociais que apare-
suas trajetórias sofreram influência de “Sem levar em conta seu alto grau de ce, por exemplo, em sua tese de livre-do-
golpes de Estado, circunstâncias fami- autonomia e independência intelectual, cência no DCP, concluída em 1975: Tra-
liares e interesses de pesquisa. é impossível definir o Boris”, declara So- balho urbano e conflito social, 1890-1920
Fausto deu a um de seus livros de teor la. “Não tem uma fórmula para chegar (Difel). Nela, Fausto trata da formação
autobiográfico o título Memórias de um a essa autonomia. É a característica de da classe trabalhadora e do movimento
historiador de domingo (Companhia das quem vai navegando motivado por um operário em São Paulo e no Rio de Ja-
Letras, 2010). O nome expressa um senso impulso, uma curiosidade, uma formação neiro durante a Primeira República. Sua
de humor autoirônico, mas não é exage- intelectual sólida, uma escrita excelente. motivação foi o diálogo com o cientista
rado. De fato, nas primeiras décadas de Boris foi atípico na história e foi atípico político Francisco Weffort (1937-2021),
sua atividade intelectual, a pesquisa era na ciência política.” no âmbito do Centro Brasileiro de Aná-
uma atividade paralela à atuação profis- A característica aparece em seu pri- lise e Planejamento (Cebrap), que ambos
sional como advogado, consultor jurídico meiro livro, resultado de sua tese de dou- integravam desde 1971. A convite de seu
da USP e procurador do estado. Nasci- torado: A revolução de 1930: História e orientador Sérgio Buarque de Holanda,
do em 1930, formou-se pela Faculdade historiografia (Brasiliense, 1970). A in- organizou os quatro volumes dedicados
de Direito da mesma universidade em tenção declarada do estudo era criticar ao Brasil republicano da coleção Histó-
1953. Dez anos mais tarde, ingressou na a interpretação hegemônica da época, ria geral da civilização brasileira (Difel),
graduação em história, também na USP, formulada pelo historiador Nelson Wer- publicados em 1980.
incentivado por sua mulher, a educa- neck Sodré (1911-1999), que via o levante Sola aponta dois livros posteriores
dora Cynira Stocco Fausto (1931-2010). que levou Getúlio Vargas (1882-1954) como representativos do caráter mul-
Concluiu o curso em 1966 e completou o ao poder como momento de triunfo da tidisciplinar do trabalho de Fausto: sua
doutorado em 1969, orientado por Sérgio burguesia nacional, em conflito com eli- História do Brasil (Edusp, 1994) e a obra
Buarque de Holanda (1902-1982). tes agrárias, que seriam mais atrasadas. Argentina-Brasil 1850-2002: Um ensaio
92 | MAIO DE 2023
Em registro de dezembro
de 2014, por ocasião
do lançamento de
O brilho do bronze, Fausto
em sua casa, no bairro
do Butantã, em São Paulo
de história comparada (Editora 34, 2004), repressão. O tema voltaria em obras pu- resse pela disciplina e, mais tarde, seria
uma parceria com o historiador argen- blicadas bem mais tarde, como O crime sua amiga e professora na universidade.
tino Fernando Devoto. “Sua abordagem do restaurante chinês (Companhia das Sola atribui o senso de humor, o gosto
é sobretudo de história política, mas é Letras, 2009), baseado em um assassi- pelas memórias e o interesse pelo tema da
mais multidisciplinar do que se poderia nato ocorrido em São Paulo em 1938, imigração a essa origem familiar. O livro
esperar. Ele tem consciência das dimen- que chamou a atenção de Boris quan- Negócios e ócios: Histórias da imigração
sões econômicas dos problemas de his- do menino, ao ler sobre ele nos jornais. (Companhia das Letras, 1997) é ao mesmo
tória do Brasil, algo que os historiadores Nesses livros, o historiador exercita tempo autobiográfico e um ensaio sobre a
e os cientistas políticos muitas vezes não uma linguagem menos técnica, que mui- vida dos estrangeiros em São Paulo. Seu
têm”, observa. tos leitores consideraram próxima à lite- último livro memorialístico foi lançado há
N
ratura. A inspiração é a micro-história, cerca de dois anos: Vida, morte e outros
as décadas de 1980 e 1990, corrente originada na Itália dos anos detalhes (Companhia das Letras). Desde
embora tenha mantido sua 1970, que parte de episódios pontuais, 2021, sofria as consequências de um aci-
atenção sobre a Primeira muitas vezes notícias da imprensa, para dente vascular cerebral (AVC).
República, enveredou por traçar o retrato de um período histórico. Para o pesquisador nas áreas de filoso-
um novo tema: a criminali- Nascido em São Paulo no mesmo ano fia da lógica e de história da filosofia Luiz
dade, que lhe permitiu explorar a socio- da revolução que estudaria mais tarde, Henrique Lopes dos Santos, da FFLCH-
logia urbana e o tema da imigração, pelo o historiador era filho de imigrantes -USP e coordenador adjunto da Diretoria
qual nutria grande interesse. O primeiro judeus e contava que o gosto pelo co- Científica da FAPESP, na condição de
RAQUEL CUNHA / FOLHAPRESS
resultado foi Crime e cotidiano: A crimi- nhecimento vinha da herança judaica coordenador de área na segunda metade
nalidade em São Paulo, 1880-1924 (Bra- e o interesse pela história, da leitura de dos anos 1980, Fausto desempenhou um
siliense, 1984), que examina as relações jornais para um avô cego. Na escola, foi papel fundamental na consolidação das
sociais que circundavam os delitos, além aluno da historiadora Emilia Viotti da áreas de ciências humanas e humanida-
do papel de controle social exercido pela Costa (1928-2017), que aguçou seu inte- des na FAPESP. n
DA FÍSICA
AO MEIO
AMBIENTE
Marco Aurélio Nalon fala do uso
de geoprocessamento de dados no
mapeamento da vegetação nativa
do estado de São Paulo
M
inha carreira científica come- dição de pesquisador contratado, sem de análise, pautado no geoprocessamen-
çou no meu primeiro estágio estabilidade financeira ou profissional, to e geoestatística, dos escorregamentos
acadêmico. Em 1982, ingres- e subordinado à duração dos projetos em Cubatão. Por ser o único físico entre
sei no curso de física na PUC dos quais participava. Por 18 anos aguar- os estudantes do mestrado, no começo
[Pontifícia Universidade Católica], em dei ansioso a abertura de concurso. Isso minha presença gerou certa estranheza.
São Paulo, e passei a buscar um trabalho ocorreu em 2005, quando me tornei pes- Mas com outros colegas contribuímos
que me ajudasse a custear as despesas quisador concursado. Nesse ínterim, fui para que ferramentas de geotecnologia
básicas. Queria uma atividade instigante, professor de física no ensino médio por começassem a ser mais utilizadas em
que agregasse algo à minha formação. 12 anos. Tal vivência revelou-se muito estudos florestais e ecológicos, poten-
Em 1985, inscrevi-me na Fundap [Fun- importante; me reconheci como educa- cializando a adoção de modelos mate-
dação do Desenvolvimento Adminis- dor e absorvi conhecimentos. máticos e de geoestatística. O uso do
trativo], que direcionava para estágios Em 1996, ingressei no mestrado em geoprocessamento, aplicado ao meio
no serviço público do estado. Indiquei ciências florestais na Esalq [Escola Su- ambiente, tornou-se minha marca regis-
ciência, meio ambiente e informática perior de Agricultura Luiz de Queiroz trada. Tive a oportunidade de encabeçar
como áreas de interesse. Fui encami- da Universidade de São Paulo], em Pi- a criação do laboratório de geoproces-
nhado para o antigo Instituto Florestal racicaba. Sob a orientação de Hilton samento no Instituto Florestal.
de São Paulo, com os pesquisadores da Thadeu Zarate do Couto, pesquisei, com Em 2021, o instituto fundiu-se aos
climatologia, no Horto Florestal, aos financiamento da FAPESP, as áreas de institutos Geológico e de Botânica, que
25 anos. A experiência foi tão rica, que risco de escorregamentos do Parque igualmente funcionavam de forma in-
não consegui deixar a instituição. Em Estadual da Serra do Mar, em Cubatão. dependente. A fusão deu origem ao Ins-
1987, fui contratado como pesquisador. Couto era um parceiro de pesquisas do tituto de Pesquisas Ambientais [IPA],
Olhando retrospectivamente, sou um da- Instituto Florestal e sempre me incen- ligado à Secretaria da Infraestrutura e
queles casos de sucesso. Comecei como tivou a sistematizar, academicamente, Meio Ambiente. Estamos em pleno pro-
estagiário e me tornei diretor. as investigações realizadas em campo. cesso de estruturação que já colhe resul-
Minha situação nem sempre foi está- Desse modo, utilizei os dados de outros tados efetivos. Como exemplo, temos a
vel. Durante muito tempo, atuei na con- projetos para desenvolver um modelo atuação do IPA no litoral norte de São
94 | MAIO DE 2023
Nalon na sede Paulo, em decorrência das fortes chuvas Sobre o inventário florestal, é uma das
do Instituto na região. As ações têm ocorrido de ma- ferramentas mais relevantes da área de
de Pesquisas
Ambientais:
neira integrada entre diferentes áreas biodiversidade que dispomos no IPA,
de estagiário técnicas. Se estivéssemos no contexto justamente por proporcionar um retrato
a diretor anterior, provavelmente as interven- atualizado da vegetação nativa existente.
ções seriam fragmentadas, cada institu- Esse levantamento aponta as áreas que
to assumindo uma demanda específica. necessitam de restauração ambiental,
Atualmente sou diretor do Departamen- manutenção ou mesmo a criação de uni-
to Técnico-Científico do IPA. Tenho dades de conservação. Além disso, é um
sob minha gestão 114 pesquisadores e relevante instrumento para fiscalização
202 técnicos, distribuídos em centros e florestal e desenvolvimento de políti-
núcleos de pesquisa. Esses profissionais cas públicas. O pesquisador que vai a
cuidam de 18 laboratórios das áreas de campo utiliza esse mapeamento em sua
botânica, florestal e geociências, além pesquisa, e toda sociedade tem acesso
de sete coleções biológicas, geológicas aos dados. O governo do estado deve
e hidrológicas. As tarefas administra- destinar a partir do ano que vem uma
tivas absorvem bastante tempo. Meu cota adicional do ICMS aos municípios
papel é garantir o bom andamento das que preservarem 30% ou mais de mata
investigações científicas e promover nativa, fora de unidades de conservação
a interface com as diversas áreas. Na de proteção. Com o ICMS ecológico, os
PESQUISA FAPESP 2 ARQUIVO PESSOAL
FOTOS 1 LÉO RAMOS CHAVES / REVISTA
U
ambiental, e não seria possível sem os
m dos destaques da minha dados do inventário.
carreira tem sido o Inven- As quase quatro décadas em uma
tário Florestal da Vegetação instituição ambiental refletem minha
Nativa do Estado de São Paulo. ligação com a natureza, que começou
Integro, desde a primeira edição, em ainda na infância, quando percebi que
1990, a equipe de pesquisadores-au- meu entendimento do mundo passa-
tores responsáveis. No início, quando va por esse contato. Desde adolescen-
não tínhamos dispositivos digitais de te pratico o montanhismo. A primeira
processamento de dados, fizemos um escalada foi na Pedra do Baú, em São
mapeamento completamente analógi- Bento do Sapucaí, no interior do es-
co. No segundo inventário, divulgado tado, mas já me aventurei em relevos
10 anos depois, pudemos usar técnicas em outros países da América do Sul,
de geoprocessamento, que resultou em do Norte e na Europa. Em 2016, após
um mapeamento digital. Essa passagem dias chuvosos no vale de Cochamó, no
do papel para o digital, com a adoção Chile, comecei a rabiscar uma paisagem
de novos recursos metodológicos, foi montanhosa para espantar o tédio. Há
possível graças ao projeto Biota, finan- sete anos, com a técnica do nanquim,
ciado pela FAPESP. O último inventá- crio no papel uma diversidade de mon-
rio, de 2020, evidencia um refinamento tanhas imaginadas. n
inédito: as imagens de satélite que o DEPOIMENTO CONCEDIDO A ALINE NOVAIS DE ALMEIDA
compõem são compatíveis com as pro-
cessadas pelo Google. Atualmente, meu
desafio, como pesquisador e diretor, é
viabilizar que a edição se torne anual. A
SAIBA MAIS
ideia é oferecer balanços mais imediatos
2 da cobertura vegetal nativa. Não neces- Website do IPA
F
inalmente, o público brasileiro tem acesso do e detalhado sobre as condições de viagem e
aos três primeiros volumes de Do Roraima pesquisa, bem como sobre as culturas dos povos
ao Orinoco: Resultados de uma viagem no indígenas da região. O segundo volume é uma co-
Norte do Brasil e na Venezuela nos anos de 1911 a leção de mitos dos povos Taurepang e Arekuna.
1913. Obra clássica da etnologia alemã, foi publi- Lá estão as façanhas de Makunaíma, herói míti-
cada originalmente em cinco tomos pelo Instituto co dos povos da região, que serviu de inspiração
Baessler de Berlim, entre 1917 e 1928. Depois de para a obra de Mário de Andrade (1893-1945). No
lançar em 2006 o diário da viagem, a editora da terceiro tomo são detalhadas descrições etnográ-
Universidade Estadual Paulista (Unesp) publica ficas das culturas dos Taurepang e seus vizinhos,
agora os três volumes, com ilustrações do artista dos Schiriana e dos Waika, dos Ye’kwana e dos
Macuxi Jaider Esbell (1979-2021). Guinau. A parte final desse volume foi escrita
Do Roraima ao Orinoco: Desde o seu lançamento, o livro tem sido o pon- por Erich von Hornbostel (1877-1935), pioneiro
Resultados de uma to de partida para os etnógrafos que trabalham da musicologia comparada alemã. A partir dos
viagem no Norte do
Brasil e na Venezuela
com povos indígenas na região. Muito mais do que materiais resultantes da viagem, Hornbostel ana-
nos anos de 1911 a 1913 observações de viagem, como sugere o subtítulo, lisou a música vocal e os instrumentos musicais
Theodor Koch-Grünberg as descrições são ricas e minuciosas, abordando dos Macuxi, dos Taurepang e dos Ye’kwana.
(tradução de Cristina diversos aspectos de seus modos de vida como A relevância da publicação de Do Roraima ao
Alberts-Franco)
Unesp
a cultura material, a organização social, a mito- Orinoco deve ser analisada sob dois pontos de
1.085 páginas logia, o xamanismo, o uso de plantas sagradas, vista. Primeiro, o da importância que os resulta-
R$ 480,00 os cantos, a música instrumental, dentre outros. dos da pesquisa tiveram para a consolidação da
Durante um período de dois anos, o etnólogo etnologia americanista sobre os povos da região.
alemão Theodor Koch-Grünberg (1872-1924) rea- Em segundo lugar, merece destaque o grande
lizou sua pesquisa partindo do Brasil em direção valor da obra para os acadêmicos indígenas que,
à nascente do rio Orinoco, na Venezuela. Visitou desde a instauração das políticas afirmativas nas
aldeias e fez coletas e registros etnográficos, fíl- universidades brasileiras, têm, de modo crescen-
micos, fotográficos e fonográficos. te, adentrado esses espaços não apenas como
O etnólogo percorreu o rio Negro até o rio estudantes, mas como detentores de saberes de
Branco, depois seguiu os cursos dos rios Urari- valor inestimável para a ciência e para as artes.
coera e Tacutu, até chegar à fazenda São Marcos, Na Universidade Federal de Roraima, mais de
em Roraima, base a partir da qual realizou a pri- mil alunos indígenas, em sua maioria Macuxi,
meira parte de sua pesquisa na região de savanas Taurepang, Wapixana e Ye’kwana, frequentam
e serras, junto aos povos Macuxi, Taurepang e cursos de graduação e de pós-graduação. E em
Wapixana. Seguiu então para o monte Roraima, 2019, Vicente Castro Ihuruana, considerado o
onde visitou aldeias e realizou um filme mudo último grande sábio do povo Ye’kwana, recente-
sobre a vida dos Taurepang na Guiana. mente falecido, ministrou um curso sobre cosmo-
Iniciou a segunda parte da viagem no rio Ura- logia e artes de cura para os alunos de antropolo-
ricoera e adentrou a floresta a oeste de Roraima. gia social, abordando muitos dos temas presentes
Nessa etapa, Koch-Grünberg manteve contatos na etnografia de Koch-Grünberg sobre seu povo.
com grupos Waika, Schiriana, Guinau e Ye’kwana. Com a publicação de Do Roraima ao Orinoco
A expedição seguiu por um afluente do rio Ura- em português, os povos indígenas passam a ter
ricoera até o rio Merewari, na Venezuela. Depois acesso a um material de valor inestimável sobre
navegou pelo rio Ventuari até o rio Orinoco, su- a sua história. A obra deverá contribuir para a
bindo até o canal do rio Casiquiare, de onde se- formação dos acadêmicos indígenas e para a di-
guiu pelo rio Negro até chegar novamente ao ter- vulgação dos seus saberes, inclusive entre o pú-
ritório brasileiro. No estabelecimento São Felipe, blico em geral.
no rio Içana, ele concluiu sua viagem, em 1913.
O primeiro volume da obra compreende o diá- Pablo de Castro Albernaz é professor de antropologia social na
rio de campo do etnólogo, com um relato vívi- Universidade Federal de Roraima (UFRR).
96 | MAIO DE 2023
FUNDAÇÃO DE AMPARO À PESQUISA DO ESTADO DE SÃO PAULO
COMENTÁRIOS cartas@fapesp.br
PRESIDENTE
Marco Antonio Zago
VICE-PRESIDENTE
Ronaldo Aloise Pilli
CONSELHO SUPERIOR
CONSELHO TÉCNICO-ADMINISTRATIVO
DIRETOR-PRESIDENTE
Carlos Américo Pacheco
DIRETOR CIENTÍFICO
Luiz Eugênio Mello
DIRETOR ADMINISTRATIVO
Fernando Menezes de Almeida
COMITÊ CIENTÍFICO
Luiz Nunes de Oliveira (Presidente),
Agma Juci Machado Traina, Américo Martins Craveiro, Anamaria
Vídeos
Aranha Camargo, Ana Maria Fonseca Almeida, Angela Maria Alonso,
Carlos Américo Pacheco, Claudia Lúcia Mendes de Oliveira, Deisy
Impressionante tanta riqueza de espécies Maravilhoso saber sobre os habitantes
das Graças de Souza, Douglas Eduardo Zampieri, Eduardo de Senzi
Zancul, Euclides de Mesquita Neto, Fabio Kon, Flávio Vieira Meirelles,
e detalhes (“Pesquisadores chegam pela e suas culturas que existiam antes dos
Francisco Rafael Martins Laurindo, João Luiz Filgueiras de Azevedo,
José Roberto de França Arruda, Lilian Amorim, Lucio Angnes, Luciana
primeira vez à serra do Imeri”). Parabéns europeus chegarem aqui.
Harumi Hashiba Maestrelli Horta, Luiz Henrique Lopes dos Santos,
Mariana Cabral de Oliveira, Marco Antonio Zago, Marie-Anne Van Sluys,
à equipe. Heloisa Berenger
Maria Julia Manso Alves, Marta Teresa da Silva Arretche, Reinaldo
Salomão, Richard Charles Garratt, Roberto Marcondes Cesar Júnior,
Sebastiana Souza
Wagner Caradori do Amaral e Walter Collii
Boa pesquisa e linda narrativa, muito
COORDENADOR CIENTÍFICO
Luiz Nunes de Oliveira A falta de emprego e renda é um dos prin- bem ambientada.
DIRETORA DE REDAÇÃO cipais motivos para a fome no país (“Jo- Modesto Pereira
sué de Castro: o alerta para a fome”). É
Alexandra Ozorio de Almeida
EDITOR-CHEFE
Neldson Marcolin fundamental que o governo crie políticas
EDITORES Fabrício Marques (Política C&T), Glenda Mezarobba
(Humanidades), Marcos Pivetta (Ciência), Yuri Vasconcelos
efetivas para o desenvolvimento social, IA e plágio
(Tecnologia), Carlos Fioravanti e Ricardo Zorzetto (Editores especiais) econômico, tecnológico e de inovação, Que os seres humanos consigam apri-
REPÓRTERES Christina Queiroz e Rodrigo de Oliveira Andrade
para a geração de empregos. E, na base morar tecnologias capazes de salvar os
MÍDIAS DIGITAIS Fabrício Marques (Coordenador), Maria
Guimarães (Editora executiva), Renata Oliveira do Prado (Editora
de tudo, educação pública de qualidade. próprios seres humanos do mau uso da
de mídias sociais), Jayne Oliveira (Analista digital), Kézia Stringhini
(Redatora on-line), Vitória do Couto (Designer digital) e
Martha Stoffella tecnologia (“O plágio encoberto em tex-
Sarah Caravieri (Produtora do programa de rádio Pesquisa Brasil)
tos do ChatGPT”, edição 326). É uma
ARTE Claudia Warrak (Editora),
Júlia Cherem Rodrigues e Maria Cecilia Felli (Designers), Fantástica a perfeição dos desenhos questão de ética e educação, que preci-
Alexandre Affonso (Editor de infografia), Felipe Braz (Designer digital),
Amanda Negri (Coordenadora de produção) (“Arte rupestre no Paraná é a primeira sam ser mais valorizadas.
FOTÓGRAFO Léo Ramos Chaves representação conhecida de araucárias”). Regina Magdabosco
BANCO DE IMAGENS Valter Rodrigues Bom saber e divulgar para as pessoas
REVISÃO Alexandre Oliveira e Margô Negro entenderem quem estava aqui primeiro... Sua opinião é bem-vinda. As mensagens poderão ser re-
COLABORADORES Aline Novais de Almeida, Aline van
Langendonck, Ana Paula Orlandi, Danilo Albergaria, Diego Viana,
Marilene Nunes de Souza sumidas por motivo de espaço e clareza.
Domingos Zaparolli, Fabiana Machado, Felipe Mayerle, Joana
Santa Cruz, Juliana Freire, Letícia Naísa, Meghie Rodrigues,
Pablo de Castro Albernaz, Renata Fontanetto, Sarah Schmidt,
Sinésio Pires Ferreira, Suzel Tunes
Combate pré-natal
A lagarta-do-cartucho (Spodoptera frugiperda) causa graves
danos a culturas agrícolas, com destaque para o milho. Os métodos
de eliminar esse inseto-praga, nem sempre eficazes, costumam
funcionar quando as folhas já começaram a ser devoradas,
causando danos à lavoura. Uma nova forma de combate, usando
uma bactéria que ataca insetos, pode controlar a lagarta em sua
fase embrionária. Na imagem obtida por microscopia eletrônica de
varredura, ela aparece morta antes de sair completamente do ovo.
Ainda em pesquisa, pode ser uma estratégia promissora.
98 | MAIO DE 2023
I N V I TAT I O N
The German Centre for Research and Innovation São Paulo (DWIH São Paulo)
and the São Paulo Research Foundation (FAPESP) announce the
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