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BR

MAIO DE 2023 | ANO 24, N. 327

UMA DOSE
DE DISCÓRDIA
Limite do que seria
beber com moderação
diminui no mundo

Uma em cada Políticas de isenção Vidro bioativo Distintas formas Falhas de Financiamento
sete brasileiras e desconto para tem potencial de cartografia planejamento a pesquisas sobre
realiza aborto publicar artigos para tratar ajudam a urbano, chuvas doenças tropicais
até os 40 anos, são inacessíveis câncer ósseo reconhecer fortes e solo frágil negligenciadas
metade delas a pesquisadores e induzir terras indígenas intensificam encolhe nas
na adolescência do país regeneração e quilombolas fendas gigantes últimas décadas
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Segundas-feiras, às 13h

Agora também na
Rádio UFSCar 95,3 FM
Domingos, às 16h
MAIO 2023

5 CARTA DA EDITORA ACESSO ABERTO BOAS PRÁTICAS MICROBIOLOGIA


6 NOTAS 28 Políticas de isenção 40 Revistas científicas 48 Aedes aegypti transmite
e desconto para publicar são punidas por negligência mais rapidamente dengue
CAPA artigos são inacessíveis na avaliação de papers de se infectado por outros
12 Estabelecer qual seria a autores do Brasil edições especiais dois vírus
um limite moderado
para o consumo de álcool CIENTOMETRIA DADOS IMUNOLOGIA
está cada vez mais difícil 32 Estudo indica 43 Cooperações 50 Roedores e macacos
quantos anos duram internacionais nas tratados com anticorpos
20 Bebidas alcoólicas colaborações de pesquisa publicações científicas sobreviveram à febre
acompanham as sociedades em 81 disciplinas de São Paulo amarela
desde o surgimento
das cidades FINANCIAMENTO AMBIENTE COVID-19
36 Orçamento para 44 Sem drenagem 52 Em testes, vacina
ENTREVISTA estudos sobre doenças e ocupação adequada similar à ButanVac
22 Luiz Eugênio Mello tropicais negligenciadas do solo, crateras gigantes produz resposta
examina os três anos vem caindo no país se expandem imunológica parecida
em que ocupou a Diretoria com a da Pfizer
Científica da FAPESP
›››

327

Onça com filhote no


Pantanal: pesquisa mediu
taxa de natalidade
(ECOLOGIA, P. 59)
EDU FRAGOSO / ONÇAFARI
NEUROCIÊNCIA ENTREVISTA
54 Como os neurônios 80 Andrés Roldán,
percebem a passagem dos diretor do Parque Explora,
segundos fala do impacto social
do museu em Medellín
SAÚDE PÚBLICA
56 Uma em cada sete HISTÓRIA
mulheres de 40 anos 84 Livro recém-lançado
já fez aborto, metade na trata da morte em suas
adolescência várias vertentes

ECOLOGIA 88 MEMÓRIA
59 Pesquisadores medem O jesuíta Buenaventura
taxa de natalidade de Suárez observou
onças-pintadas do Pantanal e descreveu eclipses com
precisão no século XVIII
MUNDO DIGITAL
62 Legislação brasileira 92 OBITUÁRIO
sobre segurança de Boris Fausto (1930-2023)
dados avança, mas
vulnerabilidade persiste 94 ITINERÁRIOS
Marco Nalon explica o uso
ENGENHARIA BIOMÉDICA de geoprocessamento de
66 Sensor para verificar dados no mapeamento
pressão intracraniana da vegetação nativa
poderá dar informações
em tempo real 96 RESENHA
Do Roraima ao Orinoco:
ENGENHARIA DE MATERIAIS Resultados de uma
70 Vidro bioativo tem viagem no Norte do Brasil
potencial para eliminar e na Venezuela nos anos
células cancerígenas de 1911 a 1913,
de Theodor Koch-Grünberg.
ANTROPOLOGIA Por Pablo de Castro Albernaz
74 Cartografias distintas
ajudam a reconhecer terras 97 COMENTÁRIOS Capa 
indígenas e quilombolas 98 FOTOLAB Aline van Langendonck

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VÍDEO VÍDEO PODCAST


Josué de Castro: Arte rupestre no Recarga, inclusão,
o alerta para a fome Paraná é a primeira mosquito
Médico pernambucano representação conhecida Os obstáculos que travam Este conteúdo está
chamou a atenção a partir de araucárias a expansão dos carros disponível no site
dos anos 1940 sobre a Sítio pré-histórico guarda elétricos no país, www.revistapesquisa.fapesp.br,
escassez alimentar imagem da árvore a participação de pacientes que contém, além de
que aflige o Brasil também denominada na elaboração de estudos edições anteriores, versões
e parte do mundo pinheiro-do-paraná clínicos e a interação entre em inglês e espanhol
ou pinheiro-brasileiro vírus que potencializa e conteúdo exclusivo
a disseminação da dengue
CARTA DA EDITORA

Pesos e medidas
Alexandra Ozorio de Almeida | DIRETORA DE REDAÇÃO

Q
ue álcool em excesso faz mal, todo mun- atividade não é realizada de modo contínuo por
do sabe. A pergunta, para governos que uma única área do cérebro, como se pensava. Ao
definem políticas públicas e para quem menos duas regiões trabalham de forma coor-
gosta de beber, é: como se define excesso? denada e consecutiva na execução dessa tarefa,
A resposta não é simples e muda à luz de novos mostram experimentos com ratos (página 54).
conhecimentos. O limiar do tolerável depende, A febre amarela, contra a qual não existe cura,
além do teor alcoólico da bebida e do tamanho da é objeto de pesquisa promissora, desenvolvida
dose, de fatores como a idade de quem bebe, sexo, por pesquisadores da USP e da Fiocruz em cola-
constituição física, genética, estilo de vida e estado boração com cientistas norte-americanos. Foram
geral da saúde. Mesmo estabelecidas as principais identificados dois anticorpos humanos com po-
variáveis, não há consenso na literatura científica. tencial de tratamento que, quando administra-
Há, sim, uma convergência na direção de que dos a roedores e macacos, permitiram que eles
inexiste medida segura. Mesmo em quantidades sobrevivessem à infecção pelo vírus causador
mínimas, o álcool traz riscos à saúde, principal- dessa febre hemorrágica.
mente de problemas no coração, câncer, distúr- Lembrando que os resultados ainda são preli-
bios mentais, cirrose, além de envolvimento em minares, a possibilidade de um tratamento a uma
acidentes e violência física. doença que mata entre 20% e 50% dos pacien-
Essa convergência tem levado à revisão, por tes indica um novo caminho nos estudos dessa
autoridades nacionais em diversos países, das doença endêmica no Brasil (página 50).
recomendações de ingestão moderada de bebi- Em pauta correlata, reportagem à página 36
das alcoólicas, mostra o editor Marcos Pivetta mostra que investimentos públicos em pesquisas
na reportagem que ilustra a capa desta edição sobre doenças tropicais negligenciadas diminuí-
(página 12). ram significativamente no país nas últimas duas
Quatro anos atrás, a revista reportou a mudan- décadas. Febre amarela não integra mais o gru-
ça na forma de mensurar o quilograma, a última po, composto por moléstias como hanseníase e
das sete unidades fundamentais até então ainda esquistossomose, que afetam principalmente
calculada com base em um objeto físico (veja o populações e países pobres.
vídeo https://revistapesquisa.fapesp.br/vale-quan- O tema é difícil, mesmo para adultos, então pa-
to-pesa/). A medição do tempo já havia sido alte- ra educadores é oportuno o lançamento recente
rada na década de 1960, com a adoção de relógios de livro gratuito com 62 verbetes sobre morte,
atômicos para calcular a duração de 1 segundo, luto e memória. Pensada para alunos do ensino
que passou a ser definida pelo tempo de transi- básico, a publicação organizada por dois historia-
ção de níveis de 1 átomo de césio 133 em repouso. dores das universidades federais de Uberlândia
É assim que a ciência mede o tempo, mas e o e Pelotas tem como meta levar a discussão so-
cérebro, como cronometra segundos? Pesquisa- bre como lidar com questões relativas à finitu-
dores da UFABC, que procuram decifrar como de humana para dentro das escolas desde cedo,
diferentes regiões cerebrais codificam a passa- de forma crítica, reflexiva, e fundamentada na
gem de intervalos breves, descobriram que essa ciência (página 84).

PESQUISA FAPESP 327 | 5


NOTAS

Idosos com a mente superafiada Volume e qualidade


das conexões
cerebrais
Por que algumas pessoas se tornam mais esquecidas, dade de planejamento e outras funções. Quatorze apre-
explicariam a
com maior dificuldade de realizar cálculos ou planejar sentaram um desempenho excepcional em uma das vivacidade mental
tarefas do dia a dia depois dos 80 anos, enquanto ou- provas de memória, com resultado igual ou superior ao de pessoas com
tras da mesma idade mantêm a mente afiada? A res- de indivíduos na faixa dos 50 aos 60 anos, e foram mais de 80 anos
posta parece estar na capacidade de preservar o volu- classificados como superidosos. Esses e os outros 17
me e a qualidade da conexão entre algumas regiões idosos com desempenho compatível com a idade pas-
cerebrais. A médica Laiz Laura de Godoy, da Universi- saram por exames de ressonância magnética funcional,
dade de São Paulo (USP), com colegas do Brasil, Cana- que analisa o cérebro em atividade. Das seis redes ce-
dá, Países Baixos e Reino Unido, analisaram imagens rebrais importantes para o envelhecimento neurológi-
de ressonância magnética funcional de 31 idosos da co saudável, três – uma ligada à memória, outra rela-
capital paulista com mais de 80 anos e sem sinais de cionada às funções de planejamento e atenção e a
problemas cognitivos ou neurológicos. Eles foram ini- terceira à linguagem – permitiram diferenciar os supe-
cialmente submetidos a testes de avaliação do quo- ridosos dos idosos com envelhecimento normal (Ame-
ciente de inteligência (QI), memória, atenção, capaci- rican Journal of Neuroradiology, 16 de março).

6 | MAIO DE 2023
Os sons das A forma de uma
colmeia se
plantas feridas assemelhava
a um suposto ser
de 550 milhões
Quando estressadas, por exemplo, de anos
pela falta de água, as plantas
apresentam alterações na cor, no cheiro
e na forma. Podem também liberar
compostos orgânicos voláteis. Ou ainda
emitir sons ultrassônicos, na frequência 2

de 20 a 150 quilohertz (kHz). Embora


não sejam captados pelos seres humanos, Fóssil era um ninho de abelhas-gigantes
poderiam alcançar outras plantas ou
insetos, de acordo com experimentos Em 2020, pesquisadores dos Estados Unidos, Índia e África do Sul apresentaram na
com plantas de tomate e de tabaco Gondwana Research um raro registro fóssil de Dickinsonia tenuis, que teria habitado
feitos por equipes das universidades a região hoje formada pela China, Rússia, Ucrânia e Austrália. Encontrado no teto de
de Tel-Aviv, em Israel, e Harvard, uma caverna na cidade de Bhopal, na Índia, o fóssil confirmaria que o supercontinente
nos Estados Unidos. Os pesquisadores Gondwana, que agrupava as atuais América do Sul, África, Índia e Oceania,
criaram quatro grupos – plantas formou-se há cerca de 550 milhões de anos. Mas foi um erro científico, reconhecido
de tomate estressadas pela seca, de em fevereiro na própria Gondwana Research. Após estudarem o registro por meio de
tomate com o caule cortado, de tabaco técnicas como espectroscopia Raman e difração de raios X, pesquisadores das
estressadas pela seca e de tabaco universidades da Flórida, nos Estados Unidos, e Rajastão, na Índia, concluíram que
também com o caule cortado –, o material é, na verdade, uma colmeia de abelhas-gigantes-asiáticas (Apis dorsata),
comparados a um grupo-controle, e que havia se agregado à superfície da rocha e originado uma imagem similar à do
colocaram microfones próximo a elas. ser primitivo. Havia semelhanças estruturais entre a suposta D. tenuis e estoques
As frequências dos sons de cada grupo de mel e pólen em ninhos de abelhas deteriorados recentemente. A velocidade da
se mostraram proporcionais aos níveis degradação do registro em apenas dois anos já era um indicador de que ele não
de lesões e diferenciaram os grupos. estava realmente gravado na pedra. Os autores do paper original admitiram o engano.
As plantas secas de tomate e tabaco
emitiram sons com frequência média
FOTOS 1 LÉO RAMOS CHAVES / REVISTA PESQUISA FAPESP  2 MEERT, J. G. ET AL. GONDWANA RESEARCH. 2023  3 JEAN WEBER / WIKIMEDIA COMMONS

máxima de 49,6 kHz e 54,8 kHz,


respectivamente. Já nas plantas cortadas Cinco novos CEPID
a frequência média máxima foi de Tomates cortados
emitem sons em
57,3 kHz e 57,8 kHz. Os pesquisadores A FAPESP anunciou em março os cinco novos Centros de
frequência mais
também gravaram sons de trigo, milho, alta que a dos Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) apoiados por um
videira e cactos (Cell, 30 de março). submetidos à seca período inicial de cinco anos, que pode ser estendido por
mais dois períodos de três anos. Na Universidade Federal
de São Paulo (Unifesp), Arnaldo Colombo vai coordenar
um centro para estudar a crescente resistência
antimicrobiana de vírus, bactérias, fungos e parasitas.
Na Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz da
Universidade de São Paulo (Esalq-USP), Carlos Eduardo
Cerri estará à frente de pesquisas sobre carbono na
agricultura tropical. No Centro de Hematologia e
Hemoterapia da Universidade Estadual de Campinas
(Hemocentro-Unicamp), Carmino Antonio de Souza, da
Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp, coordenará
um Cepid em uma área de teranóstica, que envolve o uso
de nanotecnologia para diagnóstico e tratamento do
câncer. Outro centro, no Instituto de Biociências da
Universidade Estadual Paulista (IB-Unesp), em Rio Claro,
sob a coordenação de Leonor Patricia Morellato, tratará
da dinâmica da biodiversidade no contexto das
mudanças climáticas. No Instituto de Química da USP,
Shaker Chuck Farah vai liderar pesquisas relacionadas à
biologia de bactérias e bacteriófagos (vírus que infectam
bactérias). Estabelecido em 1998, o Programa Cepid
3 apoia atualmente 17 centros.

PESQUISA FAPESP 327 | 7


1
Nomeado novo diretor científico da FAPESP
O engenheiro-agrônomo Márcio de Castro Silva Filho mento de plantas na Universidade Federal de Lavras
foi nomeado pelo governador paulista, Tarcísio de (Ufla), em Minas Gerais, e o doutorado em biologia
Freitas, para exercer o cargo de diretor científico da molecular na Universidade de Louvain (1994), na
FAPESP a partir de abril de 2023. A nomeação, publi- Bélgica. Foi professor visitante na Universidade de
cada em 6 de abril no Diário Oficial do Estado de São Melbourne, na Austrália, e na Universidade Estadual
Paulo, foi feita a partir de lista tríplice de candidatos de Ohio, nos Estados Unidos, membro titular da Co-
elaborada pelo Conselho Superior da Fundação. Cons- missão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio)
tavam da lista, encabeçada por Castro, também os e presidente do Fórum Nacional de Pró-reitores de
nomes do engenheiro de materiais Edgar Dutra Za- Pesquisa e Pós-graduação (Foprop). Na Coordenação
Castro, professor da Esalq-USP notto, professor da Universidade Federal de São Car- de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
e ex-diretor da Capes los (UFSCar), e o físico Antonio José Roque da Silva, (Capes), foi coordenador da área de Ciências Biológi-
diretor-geral do Centro Nacional de Pesquisa em cas I, diretor de Relações Internacionais e de Progra-
Energia e Materiais (CNPEM), em Campinas. O novo mas e Bolsas no país. Atualmente, é professor titular
diretor científico substituirá o neurocientista Luiz Eu- do Departamento de Genética da Escola Superior de
gênio Araújo de Moraes Mello, no cargo desde 2020, Agricultura Luiz de Queiroz da Universidade de São
que decidiu não se apresentar a um novo mandato. Paulo (Esalq-USP), em Piracicaba, e membro titular
Castro Filho, 62 anos, fez a graduação em engenha- da Academia Brasileira de Ciências (ABC) e da Aca-
ria agronômica e o mestrado em genética e melhora- demia de Ciências do Estado de São Paulo (Aciesp).

Governador reconduz diretor administrativo


2

Em resolução publicada no Diário Oficial do Estado de (Pites), um convênio firmado entre a USP e as univer-
São Paulo de 7 de abril de 2023, o governador de São sidades Jean Moulin Lyon 3, Lumière Lyon 2 e Jean
Paulo, Tarcísio de Freitas, reconduziu Fernando Me- Monnet de Saint Étienne, todas na França. A parceria
nezes de Almeida ao cargo de diretor administrativo permite aos alunos brasileiros obter o diploma de li-
da FAPESP por mais três anos. A escolha foi feita a cence en droit, expedido pelas universidades parceiras
partir da lista tríplice de candidatos elaborada pelo e com validade europeia. Menezes foi secretário ad-
Conselho Superior da Fundação, encabeçada por Me- junto de Ciência, Tecnologia e Desenvolvimento Eco-
nezes. Professor titular da Faculdade de Direito da nômico do Estado de São Paulo (2003-2006) e as-
Universidade de São Paulo (USP), onde fez a gradua- sessor da presidência da FAPESP (2007-2016). Des-
ção e o doutorado, desde 2014 coordena o programa de maio de 2017, ele exerce a função de diretor ad- Menezes, renomeado para mais
Parceria Internacional Triangular de Ensino Superior ministrativo da Fundação. um mandato de três anos

Mais poder para os filtros solares


Adicionar 0,1% de ácido rosmarínico, um o farmacêutico e bioquímico da USP André Rolim
antioxidante, a dois tradicionais filtros ultravioleta, Baby, coordenador do estudo. Encontrado em
um contra a radiação ultravioleta B (UVB), o plantas como alecrim, sálvia e hortelã, isolado pela
metoxicinamato de octila, e outro contra a primeira vez na Itália em 1958, o ácido rosmarínico
ultravioleta A (UVA), a avobenzona, aumentou em já havia sido caracterizado como antiviral,
41% o fator de proteção solar, sem a necessidade de anti-inflamatório, antibiótico e antineoplásico
aumentar as concentrações dos princípios ativos. (Cosmetics, 5 de janeiro). 
Os experimentos controlados em modelos animais
e em seres humanos na Faculdade de Ciências
Farmacêuticas da Universidade de São Paulo
(FCF-USP) indicaram que o composto poderia ter
outras funções, agindo, por exemplo, contra o
envelhecimento da pele. “Em outra investigação,
verificamos que o ácido rosmarínico tem
O ácido rosmarínico
potencial efeito no aumento da hidratação reforça o bloqueio
superficial da pele”, disse à Agência FAPESP aos raios ultravioleta

8 | MAIO DE 2023
Método para prever
os caminhos dos
incêndios no Cerrado
Quando começa um incêndio na vegetação, tão
importante quanto combater as chamas iniciais
é prever a direção para onde poderão avançar.
Suas rotas dependem principalmente do relevo,
do vento e da maior ou menor umidade do solo
e da vegetação. Com essas variáveis em vista,
pesquisadores das universidades federais de Minas
Gerais (UFMG) e de Brasília (UnB), do Instituto
Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade
(ICMBio) e do Instituto Nacional de Pesquisas
Espaciais (Inpe) criaram um sistema de previsão
FOTOS 1 MARCOS SANTOS / USP IMAGENS  2 EDUARDO CÉSAR / REVISTA PESQUISA FAPESP  3 MIKHAIL NILOV / PEXELS  4 JOSE CRUZ / AGÊNCIA BRASIL  INFOGRÁFICO  ALEXANDRE AFFONSO / REVISTA PESQUISA FAPESP

de propagação do fogo para o Cerrado. Elaborado


com apoio do Banco Mundial, o Fisc-Cerrado
(Sistemas de Prevenção de Incêndios Florestais
e Monitoramento da Cobertura Vegetal no
4
Cerrado Brasileiro) processa imagens de 10 satélites
de sensoriamento remoto e informações sobre (250 quilômetros quadrados) para todo o Cerrado Baixa umidade
o clima e o terreno coletadas três vezes por dia e de 0,04 hectare (400 metros quadrados) na época da
seca facilita
para simular o espalhamento de incêndios no para as unidades de conservação. Aberto a qualquer
o fogo, conduzido
Cerrado em geral e para as regiões de sete usuário no site  https://csr.ufmg.br/fipcerrado/pt/, pelo vento
unidades de conservação nacionais e dois parques fornece mapas que podem orientar as brigadas
estaduais. A resolução espacial é de 25 hectares  contra incêndio (Scientific Reports, 24 de março).

Documentos na língua
nativa, os preferidos
Uma equipe coordenada por Tatsuya Amano, da Como os autores escolhem suas fontes
Universidade de Queensland, Austrália, examinou 333 A preferência é por materiais não acadêmicos na própria língua (respostas múltiplas)
documentos sobre a situação da biodiversidade em
37 países ou territórios nos quais o inglês não é o Linguagem: n Não inglês n Inglês

idioma oficial. Publicações acadêmicas ou a literatura


Literatura acadêmica Literatura cinzenta
cinzenta (documentos do governo ou de empresas
Relevante
não controlados por editoras comerciais) escritas em (relevância)
língua não inglesa constituíram 65% das referências Alta qualidade
citadas e foram consideradas relevantes por seus (credibilidade)

autores. Em consequência, “informações locais e Fácil de encontrar


(acessibilidade)
regionais podem estar sendo ignoradas em
Fácil acesso
importantes relatórios internacionais, como os da (acessibilidade)
IPBES [Plataforma Intergovernamental de Políticas Fácil
Científicas sobre Biodiversidade e Serviços compreensão

Ecossistêmicos]”, diz o engenheiro ambiental Milton Fácil


de ler
Aurelio Uba de Andrade Junior, da Secretaria de Estado
Material
do Desenvolvimento Econômico Sustentável de Santa reconhecido
Catarina, que participou do estudo. No Brasil, as Material
referências bibliográficas dos documentos analisados recomendado

contêm 69% de literatura cinzenta em português, Material


já conhecido
17% de literatura cinzenta em inglês, 7% de artigos
0 25% 50% 75% 0 25% 50% 75%
acadêmicos em inglês e 7% de artigos acadêmicos em Proporção de respostas (%) Proporção de respostas (%)
português (Nature Sustainability, 16 de março). FONTE  AMANO, T. ET AL. NATURE SUSTAINABILITY. 2023

PESQUISA FAPESP 327 | 9


Cabeça do O vulcão submarino
Deus Serpente
(Kukulkan)
e pirâmide maia
que abalou uma ilha
ao fundo
Em 10 de maio de 2018, a ilha Mayotte,
território francês a noroeste de
Madagascar, foi atingida pelo primeiro de
uma série de tremores de terra. Durante
meses, centenas de abalos sísmicos quase
diários amedrontaram a população. Em
15 de maio, um terremoto de magnitude 5,9
danificou vários edifícios. Os cientistas
ficaram perplexos, porque não se pensava
1 que fosse uma região de alto risco sísmico.
Em maio de 2019, os pesquisadores a
Chuvas irregulares prejudicaram os Maias bordo do navio de pesquisa oceanográfica
Marion Dufresne identificaram a origem
A irregularidade da chuva foi decisiva para a desarticulação dos centros urbanos dos terremotos: um vulcão submarino que
do povo Maia, de acordo com uma análise de estalagmites da caverna Yok Balum, ganhou o nome de Fani Maoré, a 50
no sul de Belize. Formadas por gotejamento contínuo, essas estruturas minerais quilômetros (km) da ilha. Com 800 metros
mantiveram um registro das condições hidroclimáticas durante o chamado Colapso (m) de altura, a 3.500 m de profundidade,
do Período Clássico, quando essas sociedades se desestruturaram, entre 750 e 900 estava em intensa atividade, expelindo até
d.C. Nesse período, a inconstância da Zona de Convergência Intertropical (ZCIT), que 400 metros cúbicos (m3) de lava por
se desloca para o norte e para o sul ao longo do ano, causou uma imprevisibilidade segundo. Nos últimos três anos, 30
nos padrões de chuva, sem a sazonalidade de outros momentos. Para a equipe campanhas oceanográficas revelaram
coordenada por Tobias Braun, do Instituto de Potsdam de Pesquisa sobre Impactos centenas de vulcões submarinos formando
Climáticos, da Alemanha, a mudança do clima deve ter prejudicado as práticas uma província vulcânica até então
agrícolas e ampliado as vulnerabilidades socioeconômicas. “As instituições políticas desconhecida, estendendo-se por um
simplesmente não tinham como lidar com mudanças irregulares no padrão de chuvas corredor de 600 km de comprimento e
entre um ano e outro, desencadeando problemas sociais e impondo conflitos na 200 km de largura. Mayotte agora tem
sociedade”, argumenta o artigo (Communications Earth and Environment, 17 de março). 11 estações sísmicas e pontos de referência
GPS que acompanham a deformação da
superfície da Terra. Os dados chegam em
tempo real ao observatório do vulcão
Victora recebe o Prêmio Piton de la Fournaise, na ilha Reunião,
a leste de Madagascar, que monitora a área
Álvaro Alberto 24 horas por dia (Comptes rendus Géoscience,
17 de janeiro; CNRS News, 22 de março).
O epidemiologista gaúcho Cesar Gomes Victora, da Uni- 2

versidade Federal de Pelotas (UFPel), é o vencedor da 35ª


edição do Prêmio Almirante Álvaro Alberto para a Ciência
e Tecnologia na categoria Ciências da Saúde, anunciada
em abril. O prêmio é concedido pelo Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e pelo
Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), em
parceria com a Marinha do Brasil. Victora, de 71 anos, re-
ceberá medalha, diploma e R$ 200 mil oferecidos pelo
MCTI e CNPq. Graduado em medicina pela Universidade
Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), com doutorado
pela Escola de Higiene e Medicina Tropical de Londres,
Victora mostrou a importância da amamentação para pre-
venir a mortalidade infantil. Seus estudos nessa área leva-
ram a Organização Mundial da Saúde (OMS) a recomendar
às mães a alimentar seus bebês exclusivamente com leite Identificado em
2019, o Fani Maoré
materno durante os primeiros seis meses de vida (ver Pes-
(círculo branco) está
quisa FAPESP nº 208). Seus trabalhos também indicaram a 50 km de Mayotte
que os cuidados nos primeiros mil dias de vida podem in- (alto da imagem)
fluenciar a saúde física e mental da infância à idade adulta.

10 | MAIO DE 2023
FOTOS 1 T. ZUYUA / WIKIMEDIA COMMONS  2 MAYOBS – IPGP / CNRS / IFREMER / BRGM  3 ALEKSANDR OSIPOV / WIKIMEDIA COMMONS  4 L’HÉRITIER, M. ET AL. PLOS ONE. 2023

O futebol e o risco de demência Uma das cabeçadas


de uma final da
Liga Europeia em
Provavelmente por causa das colisões e pancadas na concluiu que os futebolistas corriam um risco 1,5 vez
Kiev em 2015
cabeça, os jogadores de futebol de elite correm risco maior de desenvolver doença neurodegenerativa do
maior do que o restante da população de desenvolver que as pessoas que não jogavam bola profissionalmen-
demência no final da vida. As evidências mais recentes te. Foi ainda um pouco mais elevada (1,62 vez) no pri-
estão em um estudo que acompanhou por quase 28 meiro grupo a probabilidade de ter especificamente a
anos a saúde de 6.007 jogadores que participaram en- doença de Alzheimer ou outro tipo de demência e de
tre 1924 e 2019 na primeira divisão do futebol sueco morrer (1,69 vez) em consequência delas. Quem corre
masculino, a Allsvenskan, e comparou o desfecho dos mais risco são os jogadores que atuam na linha de fren-
atletas com o de 56.168 indivíduos da população de te. Os 510 goleiros eram mais protegidos. Entre eles, a
mesmo sexo, idade e condição social. Analisando re- probabilidade de apresentar doenças neurodegenera-
gistros médicos e atestados de óbito, o epidemiologis- tivas foi semelhante ao do resto da população (The
ta Peter Ueda, do Instituto Karolinska, em Estocolmo, Lancet Public Health, 16 de março).

Usados para fixar os


blocos de pedra,
os grampos pesavam
Grampos de ferro dentro das paredes de Notre-Dame entre 2 e 4 kg

Ao reconstruírem a catedral de Notre-Dame, em Paris, destruída por um incêndio


em abril de 2019, arqueólogos examinaram 12 grampos de ferro, usados para fixar
os blocos de pedra das paredes, colunas e tribunas (sacadas), cada um com peso
entre 2 e 4 quilogramas (kg) e comprimento de 20 a 50 centímetros (cm). O total
de grampos estimado em toda a construção é de 300 a 400. Um método de
datação baseado em radiocarbono indicou que seis grampos foram usados na
construção original de Notre-Dame, em 1163, e não de reformas nos séculos XVIII
e XIX. A conclusão faz dessa catedral a primeira a usar ferro extensivamente,
enquanto outras da mesma época usavam arcos de madeira. Construída ao longo
de mais de meio século, com uma nave de 37 m de largura por 125 m de
comprimento, a igreja era o edifício mais alto do mundo, com 32 metros. Sua
restauração deve terminar em 2024 (PLOS ONE, 15 de março; Big Think, 27 de março). 4

PESQUISA FAPESP 327 | 11


CAPA

O TAMANHO
DA DOSE
Estabelecer se há um limite moderado para o consumo
do álcool está cada vez mais difícil

Marcos Pivetta  |  ILUSTRAÇÕES  Aline van Langendonck

B
eba com moderação. A frase que bar com os amigos ou um brinde numa festa de
embala as propagandas de be- casamento ou aniversário?
bidas alcoólicas recorre ao bom Não há consenso na literatura científica sobre
senso das pessoas, mas deixa em quanto seria beber com parcimônia, algo como
aberto um ponto central: com um padrão de consumo sem repercussões negati-
quantos copos de cerveja, taças vas ou com impactos quase desprezíveis na saúde
de vinho ou doses de destilado física e mental. Nas últimas décadas, alguns estu-
se faz um consumidor regrado? dos sugeriam que o consumo de pequenas doses
É razoável argumentar que não de álcool, geralmente vinho tinto, poderia ser
há um número mágico universal, benéfico ao coração, mas o tema permanece po-
que se adéque a todos os públi- lêmico e hoje é contestado por muitos trabalhos.
cos. Esse limite dependeria de O pouco que se ganharia em termos de proteção
uma série de fatores, como idade, sexo, consti- cardiovascular seria anulado pelo aumento da
tuição física, características genéticas, estilo de probabilidade do surgimento de outras doenças
vida e estado geral de saúde do indivíduo, além (ver quadro na página 17).
do teor alcoólico do líquido ingerido. A conclusão dominante de um conjunto de es-
A maioria das cervejas tem cerca de 5% de tudos e recomendações mais recentes é a de que
álcool, aproximadamente dois quintos do teor não há dose, por pequena que seja, com risco zero
de etanol predominante em vinhos e espuman- à saúde. Quanto menor for a ingestão de álcool,
tes. A cachaça, o uísque, a vodca, o gim – enfim, menor o risco de desenvolver doenças relacionadas
os destilados – têm por volta de oito vezes mais a esse hábito, como problemas no coração, alguns
álcool do que a cerveja. Então, além da quanti- tipos de câncer, cirrose hepática, distúrbios men-
dade, o tipo de bebida consumida também entra tais e alcoolismo, sofrer ou provocar acidentes e se
na equação da moderação. Isso sem falar que, envolver em violência física. Essa é a mensagem
não raro, a ocasião às vezes induz o bebedor ao central da Organização Mundial da Saúde (OMS)
copo. Quem recusa um chopinho numa mesa de e de boa parte dos trabalhos científicos atuais.

PESQUISA FAPESP 327 | 13


“Álcool é uma substância psicoativa, não é re- Em razão de avanços no conhecimento cien-
médio”, diz o psiquiatra Arthur Guerra Andrade, tífico, as autoridades de saúde de alguns países
supervisor chefe do Grupo Interdisciplinar de revisam periodicamente as recomendações re-
Estudos de Álcool e Drogas (Grea) do Hospital ferentes à ingestão moderada de bebidas alcoó-
das Clínicas da Universidade de São Paulo (HC- licas. No início deste ano, o governo do Canadá
-USP). “Pessoas bebem há milhares de anos e fez esse movimento e suas novas orientações
esse hábito provavelmente não vai desaparecer são muito restritivas. Elas preconizam o consu-
das sociedades humanas no futuro. Mas não se mo de até duas doses de álcool por semana para
sabe com que frequência e em que medida seria manter em níveis baixos a probabilidade de de-
seguro ingerir álcool.” senvolver a longo prazo doenças relacionadas a
Segundo a OMS, os efeitos negativos do con- esse hábito. A ingestão de três a seis doses por
sumo de álcool estão associados à ocorrência de semana, nunca mais do que duas por dia, eleva
mais de 200 tipos de doenças e acidentes danosos de forma moderada os riscos. Do sétimo drinque
à saúde. No mundo, cerca de 3 milhões de mor- em diante, o risco de vir a sofrer consequências
tes por ano, 5,3% de todos os óbitos, decorrem na saúde é alto e aumenta a cada dose extra. A
dos efeitos do álcool. As vítimas fatais entre os diretriz é a mesma para homens e mulheres e
homens, os maiores consumidores de bebidas vale para qualquer tipo de bebida.
alcoólicas, representam 7,7% do total de mortes “Nos últimos 10 anos houve realmente um
masculinas. Nas mulheres, são 2,6%. O impacto avanço significativo no nosso entendimento da
negativo da bebida entre jovens adultos é ainda associação entre mortalidade e morbidade e uso
maior: 13,5% das mortes de indivíduos na faixa de álcool. Temos uma compreensão muito me-
dos 20 aos 39 anos são atribuídas a problemas lhor da ligação entre álcool e câncer”, disse, em
causados pelo álcool. comunicado de imprensa, Catherine Paradis, di-
Dados globais, divulgados por um relatório de retora associada de pesquisa do Canadian Centre
2018 da OMS, indicavam que quase 29% das mor- on Substance Use and Addiction (CCSA), uma
tes associadas ao álcool eram causadas por aci- das coordenadoras de um painel de especialistas
dentes (de carro, quedas, violência interpessoal), que revisaram as orientações. Desde o início da
21% por doenças digestivas, 19% por problemas década passada, o álcool é classificado como uma
cardiovasculares, 13% por doenças infecciosas, substância carcinogênica, com papel conhecido
12% por cânceres e o restante devido a outras en- no surgimento de pelo menos sete tipos de cân-
fermidades. No Brasil, a porcentagem de mortes cer: cavidade oral, faringe, laringe, esôfago, fíga-
atribuída ao álcool também gira em torno de 5%, do, mama e colorretal (ver quadro na página 19).
com destaque aos óbitos relacionados a acidentes “No caso do tabaco, que também é carcinogê-
de trânsito e cirrose hepática. Aqui quase 70% das nico, sabemos que o tempo de adoção do hábito
mortes de homens por cirrose estão associadas ao de fumar tem grande peso no aparecimento de
consumo de álcool. Na Arábia Saudita, que proíbe câncer. Quem fuma há mais tempo, tem um risco
a venda desse tipo de bebida, essa fração é de 4%. maior”, diz o médico sanitarista Victor Wünsch

QUANTO ÁLCOOL TEM EM UM DRINQUE


A OMS trabalha com a definição de que uma dose padrão contém 10 gramas (12,7 mililitros)
de etanol puro. Mas não há consenso internacional sobre o valor desse parâmetro.
Veja a quantidade de álcool associada a uma dose em alguns países

(em gramas de álcool) Na definição adotada pela OMS,


INFOGRÁFICOS  ALEXANDRE AFFONSO / REVISTA PESQUISA FAPESP

UMA DOSE DE ÁLCOOL equivale a:


20

285 ML 100 ML
14 13,45 10-14 de uma cerveja com de vinho com
12 4,9% de álcool 13% de álcool
10 10
8

30 ML
de destilados
com 40%
Áustria EUA Canadá Itália Brasil* França Austrália Reino Unido
de álcool

FONTE  OMS / CANADIAN CENTRE ON SUBSTANCE USE AND ADDICTION *Não há um valor oficial

14 | MAIO DE 2023
Filho, da Faculdade de Saúde Pública da USP e
diretor-presidente da Fundação Oncocentro de AS NOVAS DIRETRIZES DO CANADÁ
São Paulo (Fosp). “Com o álcool, parece que o tem-
po de uso da substância tem um peso menor do No início de 2023, o país divulgou uma das
que o tamanho da dose ingerida no surgimento de recomendações mais restritivas entre as nações
cânceres.” Essa seria uma das explicações para as que não proíbem o consumo de álcool
mulheres, que metabolizam mais lentamente o ál-
cool, terem um risco maior de desenvolver câncer
Alto e
de mama devido ao consumo regular da bebida. crescente a
Sete ou mais
Wünsch participou de um grande trabalho cada dose
Risco de
realizado pelo projeto International Head and Quantidade extra tomada
desenvolver
Neck Cancer Epidemiology que analisou a cor- de doses doenças
relação estatística entre a incidência de câncer de álcool por causa da
na cavidade oral, laringe e orofaringe (a parte da por semana*
3a6 Moderado
bebida
garganta logo atrás da boca) e hipofaringe (pouco
antes do esôfago), a dose de álcool consumida e
há quanto tempo os pacientes bebiam. O estudo, 1a2 Baixo
* A dose canadense
que se baseou em resultados de 26 trabalhos an- tem 13,45 gramas
de etanol puro
teriores, analisou dados de mais de 62 mil pes- e é mais de um terço
maior do que a
soas, das quais cerca de 40% tinham recebido um FONTE  CANADIAN CENTRE ON SUBSTANCE USE AND ADDICTION definida pela OMS

diagnóstico de câncer e 60% faziam parte de um


grupo de controle. “O risco de câncer aumentou
em todos os sítios da cabeça e pescoço em função adotado para estabelecer o que é uma dose de
do número de doses tomadas por dia, mas não álcool, um drinque. Para a OMS, uma dose pa-
em razão do tempo que o indivíduo bebia”, conta drão contém 10 gramas (g) – ou 12,7 mililitros
o médico sanitarista, que desenvolve pesquisas (mL) – de etanol puro. Ela equivale a 285 mL de
que tiveram apoio da FAPESP. A única exceção uma cerveja comum, 100 mL de vinho ou 30 mL
ocorreu para o câncer de hipofaringe, cuja pro- de destilados. Mas a dose no Canadá é definida
babilidade de ocorrência se elevou em função da como tendo 13,45 g de álcool. No Reino Unido, 8
dose e do tempo que a pessoa consumia bebidas g; nos Estados Unidos, 14 g (ver quadro na página
alcoólicas. O estudo foi publicado no British Jour- 14). “No Brasil costumamos adotar a definição de

O
nal of Cancer em outubro de 2020. dose recomendada pela OMS”, comenta a psicó-
loga Clarice Madruga, da Unidade de Pesquisa
s novos limites recomendados no em Álcool e Drogas da Universidade Federal de
Canadá são bem mais severos do São Paulo (Uniad-Unifesp). “Hoje sabemos que
que os preconizados na revisão não há dose segura para consumo de álcool. Em
anterior, de 2011, que aconse- pesquisa é muito comum usarmos o indicador que
lhava até 15 doses semanais pa- chamamos de binge drinking, caracterizado pela
ra homens e 10 para mulheres. ingestão, em uma única ocasião, de quatro ou mais
Também difere bastante das re- doses de bebida para mulheres e cinco ou mais
comendações difundidas pelos para homens.” Além de levar a eventuais danos
serviços de saúde de outros paí- de longo prazo à saúde, esse nível do consumo
ses para consumo moderado de de álcool causa embriaguez e aumenta o risco
bebidas alcoólicas entre adultos imediato de acidentes e de violência interpessoal.
saudáveis. Nos Estados Unidos, Para formular diretrizes sobre o que seria um
o limite indicado é de até duas doses diárias para consumo baixo ou moderado de álcool é preciso
homens e uma para mulheres. No Reino Unido, ter em mãos estudos epidemiológicos de amplo
é de 14 doses semanais para ambos os sexos. Na alcance, que levem em conta os mais variados
Austrália, que atualizou suas diretrizes no fim de tipos de impacto, de curto e de longo prazo, so-
2020, as recomendações estipulam até 10 drin- bre a saúde das pessoas. O Canadá, por exemplo,
ques por semana, nunca mais de quatro doses em constituiu um painel com 23 especialistas que
uma única ocasião. Na França, a quantidade de procuram por estudos sobre álcool e saúde dis-
drinques considerada de baixo ou moderado risco poníveis em 10 bases de dados científicos. Foram
é a mesma da Austrália, mas ainda é aconselhado considerados trabalhos de revisão e meta-análi-
não ultrapassar duas doses em uma jornada e ses publicados entre 6 de janeiro de 2017 e 17 de
ficar ao menos um dia por semana sem beber. fevereiro de 2021 que abordassem uma questão
É preciso tomar cuidado ao comparar as quan- central: riscos e benefícios do álcool à saúde de
tidades de doses de bebida alcoólica de diferen- curto e longo prazo e durante a gestação e o de-
tes países. Não há um padrão universalmente senvolvimento infantil.

PESQUISA FAPESP 327 | 15


As meta-análises são um tipo de estudo epi- para a saúde provavelmente se deve a uma falsa
demiológico que usa técnicas estatísticas para associação. As pessoas que o consomem são mais
sintetizar ou reunir dados de trabalhos indepen- ricas e têm hábitos mais saudáveis do que outros
dentes e produzir uma avaliação mais ampla so- bebedores”, pondera Stockwell. “Os polifenóis
bre um tema. No final do levantamento, o painel podem fazer bem, mas o etanol na bebida não faz.
encontrou 16 estudos que passaram pelo crivo É melhor comer uva todo dia.” Os polifenóis são
dos especialistas. Os dados desses trabalhos fo- substâncias presentes na casca de uvas tintas e em
ram usados em uma modelagem matemática que outras frutas e alimentos. A despeito das críticas,
levou em conta dados de incidência de doenças as pesquisas sobre possíveis benefícios da ingestão
e longevidade da população canadense. moderada de vinho tinto permanecem ativas em

A
“Atualmente, os painéis de especialistas es- vários lugares do mundo (ver quadro na página 17).
tudam as ligações que existem entre o nível de
consumo de álcool e as probabilidades de morte rtigo de pesquisadores da Uni-
por causas [doenças] sabidamente relacionadas versidade de Brasília (UnB)
ao uso dessa substância, como cirrose, câncer de publicado em outubro de 2022
mama, derrames e problemas de coração”, expli- na revista científica PLOS ONE
ca, em entrevista por e-mail a Pesquisa FAPESP, calculou que os custos diretos
o psicólogo Tim Stockwell, da Universidade de e indiretos (faltas ao trabalho)
Vitória, um dos participantes do painel canaden- com problemas de saúde rela-
se. “Foi assim que nosso painel estimou recen- cionados ao consumo de álcool
temente que apenas seis drinques por semana no Brasil entre 2010 e 2018 fo-
aumentava o risco de morte por doenças em 1%.” ram de cerca de US$ 1,5 bilhão
O número pode parecer pequeno, mas a dis- (aproximadamente R$ 7,5 bi-
cussão se dá em níveis de consumo de álcool que lhões). Foram gastos US$ 740
são socialmente toleráveis e percebidos por mui- milhões com hospitalização, US$ 420 milhões em
tas pessoas como plenamente aceitáveis. Então cuidados com pacientes que não foram internados
estavam errados os estudos que apontavam que e US$ 330 milhões devido ao absenteísmo laboral.
um consumo modesto de álcool, geralmente de Em 2018, por exemplo, os custos diretos referen-
vinho tinto, poderia fazer bem ao coração? “A tes ao consumo de álcool representaram 0,56%
ideia de que o vinho está associado a benefícios dos US$ 22,8 bilhões gastos naquele ano pelo

16 | MAIO DE 2023
Sistema Único de Saúde (SUS) com internações álcool (62,9% entre os homens e 83,0% entre as
e despesas com paciente. Os valores se baseiam mulheres). Mais de 60% dos que bebiam regu-
em dados do SUS e do sistema nacional de segu- larmente disseram ingerir menos de 12 gramas
ridade. No trabalho, foram considerados 21 tipos de etanol por dia, o índice mais baixo entre os
de complicações de saúde e acidentes que podem que não se declararam abstêmios. Mesmo assim,
ter relação com o consumo de álcool, de acordo por representar a maior faixa dos consumido-
com o padrão adotado no estudo internacional res, essa fatia de pessoas vistas como bebedores
The global burden of disease (O peso global das moderados é a que mais impacta o SUS em ter-
doenças, em tradução livre). mos de custos de saúde relacionados a proble-
Alcoolismo, acidentes não intencionais e ba- mas por conta de ingestão de álcool. “Apesar de
tidas no trânsito foram, nessa ordem, os proble- a categoria de 12 gramas por dia ser a menor em
mas que mais geraram gastos de hospitalização. quantidade de álcool consumida, ela é uma das
Só o tratamento do câncer de mama, um dos sete principais em termos de risco atribuído à popu-
tipos de tumor cujo aparecimento pode ser cau- lação, dada a sua maior prevalência”, escrevem
sado pela ingestão de álcool, respondeu por mais no artigo Mariana Gonçalves de Freitas e Everton
de 45% das despesas com doenças associadas a Nunes da Silva, do Programa de Pós-graduação
esse hábito que não requereram internações. O em Saúde Pública da UnB.
estudo levou em conta dados de consumo de ál- Um dado preocupante é que o consumo entre
cool no Brasil coletados em 2019 na população as mulheres, embora ainda em menor escala e
adulta, com 18 anos ou mais, pela Pesquisa Nacio- menos abusivo do que o dos homens, apresenta
nal de Saúde (PNS), uma iniciativa do Instituto tendência de crescimento no Brasil. Na PNS de
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 2019, 17% das mulheres disseram beber uma vez
parceria com o Ministério da Saúde. por semana diante de 13% na PNS anterior, de
Segundo essa PNS, 73,4% da população brasi- 2013. Entre os homens houve uma ligeira queda
leira declarou que não consome semanalmente na quantidade de bebedores entre as duas pes-

O FIM DO PARADOXO FRANCÊS?


Em 17 de novembro de 1991, um dos mais depois da forte disseminação desse conceito, associados a eventuais benefícios
bem-sucedidos programas da televisão destacam-se dois pontos com repercussões cardiovasculares por meio da ingestão de
norte-americana, o 60 Minutes, da rede CBS, distintas sobre o consumo de bebidas polifenóis presentes no vinho tinto, no suco
levou ao ar um segmento intitulado alcoólicas, sobretudo o vinho tinto. de uva e em outros alimentos. “Essa
Paradoxo francês. Em linhas gerais, a emissão O primeiro é que, em uma série de associação não ocorre com todas as bebidas
dava conta de que a incidência de problemas estudos observacionais, comparativos e não alcoólicas, apenas com o vinho tinto”, diz o
cardíacos era 40% menor na França do controlados, os benefícios conferidos à cardiologista Protásio Lemos da Luz, do
que nos Estados Unidos, a despeito de os bebida podem estar mais ligados a outros Instituto do Coração (InCor), ligado à
europeus terem uma dieta rica em gorduras. hábitos saudáveis dos consumidores Universidade de São Paulo (USP), estudioso
Um dos segredos, talvez o principal, dessa moderados de vinho tinto (como se exercitar do tema há décadas. “Os polifenóis melhoram
aparente contradição seria o consumo e ter um padrão de vida melhor) e a a vasodilatação, tem ação antiplaquetária
moderado de vinho tinto nas refeições entre problemas prévios de saúde dos abstêmios [impede a formação de coágulos sanguíneos]
os franceses. A bebida contém polifenóis, que fizeram parte desses trabalhos. Esses e são anti-inflamatórios. Se não houver
substâncias presentes na casca das uvas fatores, se não levados em conta, podem nenhum problema de saúde em que se proíba
vermelhas, que evitariam o entupimento das fazer com que a saúde dos que bebem um beber, não desaconselho a ingestão de uma
vias circulatórias. pouco pareça melhor do que a dos que não taça e meia de vinho por dia, que tem cerca
Mesmo antes da popularização dessa ingerem uma gota de álcool. “Embora seja de 25 gramas de álcool.”
ideia no programa, já havia estudos que bem estabelecido que o álcool aumenta Um estudo recente coordenado por Luz,
sugeriam algum grau de proteção o risco de cânceres, acidentes e cirrose publicado em dezembro de 2022 no
cardiovascular em razão da ingestão de hepática, há muita variabilidade nos achados American Journal of Clinical Nutrition, sugere
quantidades pequenas de bebidas alcoólicas de estudos sobre a relação do álcool e de que o consumo diário de 250 mL de vinho
(o excesso sempre foi visto como prejudicial, várias outras patologias, sobretudo da tinto remodela a flora intestinal, promovendo
inclusive ao coração). Mas seu impacto doença cardíaca isquêmica”, comenta Dana um perfil considerado geralmente mais
nem de perto se assemelhou ao efeito que Bryazka, do Instituto de Métricas e Avaliação favorável. O efeito foi medido em 42 homens,
o chamado paradoxo francês, atribuído da Saúde (IHME) da Universidade de com idade média de 60 anos, que passaram
em grande parte ao vinho tinto, teve sobre Washington, nos Estados Unidos. por períodos de três semanas sem tomar
a opinião pública, médicos e pesquisadores O segundo ponto é que, de fato, há a bebida e três semanas consumindo vinho
nas últimas décadas. Hoje, mais de 30 anos trabalhos científicos indicando mecanismos tinto de forma alternada.

PESQUISA FAPESP 327 | 17


quisas, de menos de 1 ponto percentual. Feita Apesar de um número cada vez maior de estu­
desde 2006 pelo Ministério da Saúde, a pesquisa dos e levantamentos enfatizar que não há quanti­
de vigilância de fatores de risco e proteção para dade segura de álcool a ser ingerida, alguns tra­
doenças crônicas por inquérito telefônico (Vigi­ balhos de grupos importantes apontam eventuais
tel) sinaliza que as mulheres também passaram benefícios associados ao consumo de pequenas
a beber em excesso (mais de quatro doses de quantidades de bebida para alguns segmentos da
12 g de álcool em uma ocasião) nos últimos 15 população. Artigo publicado na revista médica
anos. No levantamento de 2006, menos de 8% Lancet em julho de 2022 indica que, entre jovens
tinham apresentando esse comportamento nos adultos com idade de 20 a 39 anos, o consumo
últimos 30 dias, metade da porcentagem verifi­ de álcool só aumenta riscos e não proporciona

N
cada em 2020. nenhum benefício à saúde. Para pessoas acima
dos 40 anos, o risco varia conforme a idade e a
o caso das mulheres, um dos região geográfica que a pessoa vive. No entanto, o
principais problemas associados trabalho indica que indivíduos mais velhos, sem
ao consumo de álcool é o aumento problemas de saúde, poderiam se beneficiar com
do risco de câncer de mama, o consumo diário de um a dois drinques, cada um
o mais comum na população deles com 10 g de etanol. Esses eventuais efeitos
feminina. Segundo estudo positivos se concentrariam na área cardiovascular.
publicado em 2018 no periódico “Consumido com moderação, o álcool reduz o
Asian Pacific Journal of Cancer risco de doença arterial coronariana, de derrame
Prevention, mulheres com menos e de diabetes. Mas ele também aumenta a proba­
de 50 anos que consumiam bilidade de muitos cânceres, de acidentes, de cirrose
regularmente álcool há pelo e de doenças infecciosas, como tuberculose”,
menos uma década tinham um comenta, em entrevista a Pesquisa FAPESP,
risco três vezes maior de desenvolver esse tipo a pesquisadora Dana Bryazka, do Instituto
de tumor. O estudo foi feito com 1.506 mulheres de Métricas e Avaliação da Saúde (IHME) da
atendidas no Instituto Fernandes Figueira da Universidade de Washington, dos Estados Unidos,
Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), do Rio de coordenadora do estudo. Com apoio da OMS e de
Janeiro, das quais 1.100 formaram um grupo de outras agências, esse grupo do IHME coordena
controle (não tinham a doença) e 406 tinham o projeto The global burden of disease. Trata-se
recebido esse diagnóstico. O estudo, no entanto, de um grande esforço internacional que, há mais
não detalhou qual era o nível de consumo médio das de 30 anos, estuda o impacto das patologias na
participantes, apenas se eram abstêmias ou bebiam. mortalidade e morbidade da população do planeta.

18 | MAIO DE 2023
ÁLCOOL É CONSIDERADO CARCINOGÊNICO
HÁ MAIS DE UMA DÉCADA
Desde 2012, o etanol presente nas comenta o médico sanitarista Victor Wünsch provocada, em muitos casos, pela ação
bebidas alcoólicas faz parte do grupo 1 Filho, da Faculdade de Saúde Pública da conjunta de múltiplos fatores de risco. Mas
de agentes e substâncias classificados Universidade de São Paulo (FSP-USP) e algumas alterações biológicas associadas
como carcinogênicos pela Agência diretor-presidente da Fundação Oncocentro ao surgimento de tumores já são conhecidas.
Internacional de Pesquisa em Câncer (Iarc) de São Paulo (Fosp). Apenas sinaliza o grau “O acetaldeído, por exemplo, é capaz de
da Organização Mundial da Saúde (OMS). de confiabilidade da informação científica promover danos no DNA celular”, diz Thainá
Essa categoria abrange atualmente sobre sua capacidade de gerar tumores. Alves Malhão, do Instituto Nacional de
126 itens, sobre os quais há evidência Uma gama diversa de compostos Câncer (Inca). “O maior consumo de etanol
científica suficiente de que são capazes químicos, misturas complexas, moléculas também pode induzir estresse oxidativo por
de causar câncer em seres humanos. farmacêuticas, agentes físicos e biológicos meio do aumento da produção de espécies
É a classificação mais severa que um aparecem na listagem da entidade. reativas de oxigênio, que são tóxicas ao
agente pode receber. Substâncias provável O tabaco, a poluição atmosférica, a luz solar, material genético e carcinogênicas.” Nas
e possivelmente carcinogênicas são os raios gama e X, os vírus HPV e Epstein- mulheres, o álcool pode elevar os níveis
catalogadas, respectivamente, nos grupos Barr são exemplos de carcinógenos dentro circulantes do hormônio estradiol, alteração
2A e 2B. As que não provocam câncer do grupo 1 ao lado do etanol. O acetaldeído, que aumenta o risco de câncer de mama.
são listadas no grupo 3. um composto químico produzido no Por fim, há ainda um efeito indireto
A classificação da Iarc não indica a processo de metabolização do álcool no da presença do álcool no organismo.
probabilidade de um agente provocar câncer organismo e associado à sensação de Ele age como um solvente e favorece a
em função do grau de exposição dos seres ressaca, também faz parte dessa categoria. penetração nas células de outras
humanos a ele. “Ela não mede se um agente Não se sabe em detalhes os mecanismos substâncias carcinogênicas, como
causa mais ou menos câncer do que outro”, que levam o álcool a causar câncer, doença as presentes no tabaco.

O artigo na Lancet levou em conta dados do consumo 1920 e 1933 nos Estados Unidos. A chamada Lei
de bebidas alcoólicas de 204 países e seu impacto Seca norte-americana foi uma medida radical,
sobre 22 doenças ou tipos de acidentes. sem efetividade, e socialmente insustentável. Hoje
Atingir um consenso sobre o que seria uma pouco mais de 10 países, a maioria por motivos
ingestão moderada, ou tolerável, de álcool é religiosos, proíbem total ou parcialmente a venda
muito difícil. Alguns pontos, no entanto, são hoje de bebidas alcoólicas. No Brasil, bebe-se, em média,
inegociáveis. Certas parcelas da população não entre 7 e 8 litros de etanol por ano por habitante.
devem beber de forma nenhuma. Esse é o caso dos Boa parte dos países da Europa, onde o consumo
menores de idade, cujo desenvolvimento cerebral é mais elevado, ultrapassa 12 litros por ano.
pode ser afetado pelo álcool, e das grávidas e Na pandemia, a bebida se tornou um companheiro
lactantes. “O álcool passa pela placenta, chega ao de muitas pessoas que estavam isoladas em casa. O
feto e também é repassado ao bebê na amamentação”, consumo aumentou em todo o mundo e a incidência
afirma Arthur Guerra. Certas situações requerem de doenças relacionadas ao álcool também. “O
uma política de tolerância zero com o álcool, como mercado brasileiro é pouco controlado. Não há
antes de dirigir ou realizar tarefas que possam causar nem uma licença específica que regulamente quem
acidentes ou oferecer perigo à vida. É igualmente pode e quem não pode vender álcool”, diz Clarice
prudente não beber em excesso antes de tomar Madruga, da Unifesp. “Precisamos de políticas
decisões importantes. Há inúmeros casos – alguns públicas mais claras e definidas para o setor.” A
anedóticos – sobre situações que ocorrem sob o efeito OMS e autoridades sanitárias pressionam por mais
do álcool, como casamentos entre desconhecidos em controles na venda do álcool. O governo da Irlanda
uma capela de Las Vegas, nos Estados Unidos, que, estuda colocar nos rótulos das bebidas avisos sobre
logo em seguida, se arrependem do ato. os possíveis malefícios decorrentes do consumo
Informar a população e os formuladores de de álcool, como ocorre com o tabaco. Se vier a ser
políticas públicas sobre os riscos associados ao implementada, a medida poderá ser um sinal de
consumo de álcool, um hábito arraigado na maior uma nova era na relação milenar do homem com
parte das sociedades, é a tônica dos estudos mais as bebidas alcoólicas. n
recentes. Mesmo os mais combativos críticos do
papel do álcool nas sociedades não defendem Os artigos e relatórios citados nesta reportagem estão listados na
atualmente sua proibição, como ocorreu entre versão on-line.

PESQUISA FAPESP 327 | 19


UMA
PARCERIA
DE
1

MILÊNIOS
As bebidas alcoólicas
acompanham a sociedade
desde o surgimento
das cidades e a adoção
da agricultura

H
á cerca de 10 mil anos, Em sua longa história, o álcool se tor- do a Jesus é a transformação da água
no chamado período nou a droga psicoativa mais difundida em vinho, bebida que, posteriormente,
Neolítico, marcado nas sociedades. Ligadas ao convívio so- seria adotada como o sangue de Cristo
pelo surgimento dos cial, a rituais metafísicos ou a cerimônias na cerimônia da eucaristia.
esboços das primei- religiosas, as bebidas estiveram presen- Essa dimensão espiritual e ligada a
ras cidades e início do tes em todas as civilizações do passado festividades está presente nas mais di-
processo de domesti- e hoje permanecem aceitas na maioria versas culturas. No livro Selvagens be-
cação de plantas para a dos países, com exceção de pouco mais bedeiras: Álcool, embriaguez e conta-
nascente agricultura, o de uma dezena de nações islâmicas. Na tos culturais no Brasil colonial (séculos
homem provavelmente Mesopotâmia, há cerca de 6 mil anos, XVI-XVII) (Alameda Editorial, 2011),
passou a conviver mais os sumérios já consumiam vinho e cer- o historiador João Azevedo Fernandes

FOTOS 1 PHILLIP MAIWALD / WIKIMEDIA COMMONS  2 UFFIZI GALLERY / WIKIMEDIA COMMONS 


intimamente com um veja, hábito imortalizado em desenhos (1963-2014), que foi professor da Uni-
elemento constituinte dessa nova socie- feitos em tabletes de pedra. No Antigo versidade Federal da Paraíba (UFPB),

3 STAATLICHE MUSEEN ZU BERLIN, ÄGYPTISCHES MUSEUM UND PAPYRUSSAMMLUNG


dade: as bebidas alcoólicas fermentadas Egito, a cerveja era a bebida do povo e fala, por exemplo, da produção do cauim,
(os destilados apareceriam milênios o vinho da elite. um fermentado à base de mandioca fei-
mais tarde). Em 2004, a equipe do A Antiga Grécia e depois Roma, com to exclusivamente pelas mulheres de
arqueólogo norte-americano Patrick sua enorme influência cultural, difun- povos indígenas do Brasil. “Os cauins
McGovern, da Universidade Estadual diram e legitimaram o hábito de beber, eram fundamentais para as cerimônias
da Pensilvânia, detectou por métodos sobretudo vinho, no Ocidente. O termo que marcavam alguns dos momentos
químicos resíduos de um fermentado de origem grega simpósio, hoje usado mais importantes do ciclo de vida dos
elaborado a partir de uma mistura de para designar encontros intelectuais Tupinambá, como os casamentos e fu-
arroz, mel e frutas, que poderia moder- com a finalidade de discutir algum tema, nerais”, escreveu Azevedo na sua tese
namente ser definido como algo entre significa originalmente beber junto – e de doutorado em que se baseia a obra.
um vinho e um saquê, em pedaços de era isso que homens influentes faziam Hoje, o consumo de bebidas alcoólicas
vasos de 9 mil anos atrás encontrados no à mesa após festivas refeições em casas não está associado aos árabes, provavel-
sítio arqueológico de Jiahu, no centro- abastadas. O cristianismo também teve mente devido à grande penetração, entre
-leste da China. Esse é o registro mais um papel importante na disseminação esses povos, da religião islâmica, que, a
antigo conhecido da produção de uma do vinho. Na Bíblia, a planta mais citada partir do século VII, baseada no livro sa-
bebida alcoólica. é a videira e o primeiro milagre atribuí- grado do Alcorão, passou a condenar seu

20 | MAIO DE 2023
2

Detalhe de relevo
persa na escadaria de
Apadana (página
oposta), pintura de
Baco, o deus grego do
vinho, e representação
de consumo de
cerveja no Antigo Egito

consumo. Mas o próprio termo álcool é germes em seu líquido, do que a água que Embora por vezes resvalem em argu-
de origem árabe, a exemplo da palavra se conseguia nas cidades. mentos econômicos ou morais, as dis-
alambique. Não por acaso, é atribuída Para o historiador Henrique Soares cussões atuais sobre quanto um bebedor
aos árabes a introdução na Europa me- Carneiro, da Faculdade de Filosofia, Le- moderado poderia consumir de álcool
dieval, por volta do século X, do processo tras e Ciências Humanas da Universidade se insere, em grande medida, dentro do
de destilação, que consiste na separação de São Paulo (FFLCH-USP), o álcool e as debate científico a respeito de (novos)
dos constituintes de uma mistura líqui- drogas em geral são um dos elementos efeitos deletérios associados a essa subs-
da por meio de sua vaporização parcial. fundadores da civilização humana por tância intoxicante. Mas sempre há quem
Essa operação é a base da elaboração de seu valor econômico, social e cultural. prefira também colocar nessa equação ar-
uma categoria de bebidas, a dos destila- “Desde o fim do século XIX, a história das gumentos socioculturais, além da questão
dos, que engloba o conhaque, o uísque, drogas é, antes de tudo, a história de suas física. “Não sou médico, mas, pelo que li,
o gim e um sem-número de aguardentes. regulações, de como elas são autorizadas aceito que o álcool é prejudicial ao ser
Embora embriaguez, comportamentos a circular nas sociedades e das políticas humano no sentido fisiológico. Porém,
antissociais e eventuais malefícios físicos de repressão, incitações e tolerância a se olharmos para as pessoas de forma
tenham sido associados à ingestão exces- seu uso”, comenta Carneiro, coordenador holística, pode ser que os efeitos de seu
siva de líquidos fermentados e destilados do Laboratório de Estudos Históricos de consumo moderado sejam benéficos em
em diferentes momentos da história e Drogas e Alimentação da FFLCH. Mais do geral – ou seja, que seu dano fisiológico
sociedades, o álcool, em suas variadas que possíveis danos à saúde, a proibição seja equilibrado ou superado pelos be-
formas, foi um companheiro da prática do uso de certas substâncias na sociedade nefícios emocionais, uma sensação de
médica desde a Antiguidade. Vinhos, cer- industrial, como conta o historiador no bem-estar, de relações sociais lubrifica-
vejas e destilados foram empregados co- livro Drogas – A história do proibicionis- das, ou desfrutar de ocasiões sociais”,
mo tentativas de amenizar os sofrimentos mo (Autonomia Literária, 2018), se dá por diz, em entrevista a Pesquisa FAPESP, o
do corpo, ora como se fosse um remédio razões religiosas, econômicas (não afetar historiador neozelandês Rod Phillips, da
propriamente dito, ora como o veículo no a produção de bens) ou simplesmente por Universidade Carleton, no Canadá, autor
qual se misturava um tratamento, ou, no controle do Estado. Nasce assim o con- de livros sobre a história do álcool e do
caso das bebidas mais potentes, fazendo ceito moderno de três tipos de drogas: as vinho. “É verdade que não precisamos do
o papel dos modernos anestésicos. Até o ilícitas, as lícitas medicinais e as também álcool para obter esses benefícios, mas
século XVIII, era mais seguro beber vi- legais de uso recreativo, como o tabaco e nos acostumamos culturalmente a usá-lo
nho, cuja fermentação matava parte dos as bebidas alcoólicas. para esses fins.” n Marcos Pivetta

PESQUISA FAPESP 327 | 21


ENTREVISTA Luiz Eugênio Mello

TEMPOS
INTENSOS
Neurocientista passa em revista
os três anos em que ocupou
a Diretoria Científica da FAPESP

Alexandra Ozorio de Almeida,


Fabrício Marques e Neldson Marcolin 
RETRATO  Léo Ramos Chaves

N
este mês, o neurocientista Luiz Eugênio gerenciar ações que pudessem ser úteis no combate
Araújo de Moraes Mello estará de volta à doença. Também lidou com situações urgentes,
às bancadas dos laboratórios da Univer- como repatriar bolsistas que estavam no exterior
sidade Federal de São Paulo (Unifesp) quando as fronteiras fechavam. Agindo de modo rá-
com frequência maior do que nos últi- pido, a Fundação apoiou pesquisas, ensaios clínicos,
mos anos. Também se engajará em novos projetos, alavancou recursos privados para a área da saúde
um deles relacionado à divulgação de ciência para e estimulou pesquisadores a se empenharem para
jovens. Diretor científico da FAPESP desde abril de entender a Covid-19 e sugerir formas de tratamento.
2020, Mello decidiu não se candidatar à recondução Nas atividades internas de sua diretoria, Mello
do cargo no final do ano passado e deixou a institui- dedicou-se a melhorar processos em curso. Apoia-
ção, em 26 de abril. Será substituído pelo geneticista do pelo colegiado de pesquisadores e servidores,
Márcio de Castro Silva Filho, da Escola Superior de procurou reduzir a documentação para a submis-
Agricultura Luiz de Queiroz, da Universidade de São são de propostas e tornar mais visível a busca de
Paulo, a Esalq-USP (ver nota na página 8). informações no site da Fundação. Procurou ainda
Mello assumiu a Diretoria Científica (DC) em ajustar as informações solicitadas quanto ao perfil
meio à pandemia de Covid-19. No primeiro ano e dos candidatos que pedem auxílios e bolsa. Criou
parte do segundo, ficou concentrado em buscar e e extinguiu programas, além de modificar e forta-

22 | MAIO DE 2023
Mello (de gravata),
com assessores da
Diretoria Científica

lecer outros. Dos 30 Centros de Pesquisa em Enge- IDADE 65 anos FORMAÇÃO


nharia/Centros de Pesquisa Aplicada (CPE/CPA) Graduação em
ESPECIALIDADE
criados desde 2013, por exemplo, 14 surgiram nos medicina, mestrado
Biologia molecular,
últimos três anos. e doutorado em
neurociência,
No plano internacional, ampliou a participação biologia molecular
gestão de ciência
da FAPESP no Global Research Council (GRC), en- pela Unifesp
e tecnologia
tidade que reúne mais de 60 agências de fomento
PRODUÇÃO
à pesquisa de todos os continentes, emplacando INSTITUIÇÃO
163 artigos e
um dos membros da Coordenação Adjunta da DC, Universidade
2 patentes triádicas
Euclides Mesquita Neto, à frente do secretariado Federal de São Paulo
executivo do organismo e propondo a FAPESP co- (Unifesp)
mo coanfitriã (em conjunto com a NWO) do evento
em Haia, nos Países Baixos, neste ano.
Nesta entrevista, Mello faz um balanço de sua
gestão e fala das pesquisas em neurociência que
desenvolve e da pouca atratividade que a atividade
científica parece ter hoje para os jovens.
No início do mandato, a sua perspectiva ente familiar de uma maneira intensa, Não é importante dar visibilidade a
era de que seria possível fazer mudan- pediu-se para descrever isso de forma essas ações?
ças internas na Diretoria Científica de clara, porque pode impactar no desem- Sim, para as pessoas terem consciência.
modo a contribuir para uma maior efi- penho acadêmico, por exemplo. Essa foi Caso contrário, há casos em que as pes-
ciência da Fundação. Três anos depois, umas das medidas que criamos porque soas podem se autoexcluir de um pro-
o que deu para fazer? não há como estabelecer políticas no- grama ou projeto que acham que não é
Muitos ajustes. Vou falar de uma me- vas sem que sejam pautadas em dados. para elas. Temos várias chamadas que
dida simples, que teve um bom efeito foram um sucesso, porque elas estavam
em termos de prazo. Nós concedíamos Quais políticas novas se estabeleceram bem focadas. Vejam esse exemplo: a FA-
30 dias, no máximo, para um assessor como base nesse ajuste? PESP tem alguns programas que todo
emitir o parecer sobre o mérito de um Foi criado um programa transversal mundo conhece, como o Biota, o Bioen
projeto de pesquisa. A resposta vinha de Equidade, Diversidade e Inclusão, e o de Mudanças Climáticas Globais. Já
em 25 dias, em média. Ajustamos esse que já vinha sendo discutido há muito o eScience é um programa sobre o qual
prazo de 30 para 21 dias. O tempo médio tempo, e resulta da participação ativa pesquisadores ouvem falar menos. No
caiu para 18 dias, ganhamos uma semana da professora Ana Maria Fonseca de entanto, a ciência de dados é importan-
de eficiência no processamento só com Almeida no GRC, no qual ela lidera o te para todas as áreas da pesquisa cien-
esse pequeno ajuste. Há vários outros grupo de trabalho que debate esse te- tífica. Pensando nisso, decidimos fazer
que foram feitos, que dizem respeito ao ma. Uma das discussões que se iden- uma chamada para o eScience, em 2022,
SAGe [plataforma de submissão e geren- tificou nas agências do mundo inteiro e escolhemos estimular as áreas de ciên-
ciamento de projetos da Fundação], no é a falta de dados granularizados, isto cias humanas e sociais. Olhando para as
qual os formulários de apresentação de é, mais refinados. Isso pode ser mais redes sociais, por exemplo, é possível
propostas foram reduzidos – em alguns verdade em países onde as restrições entender interações humanas e mais um
casos, o número de campos foi cortado de direitos das mulheres possam ainda monte de coisas. Isso pode ser visto nos
pela metade. Criamos um vínculo com o ser presentes, como alguns do Oriente estudos da antropologia, da sociologia,
Orcid [sequência de números que iden- Médio. A iniciativa da FAPESP é retar- da ciência política... Sem contar as ques-
tificam o pesquisador e aglutinam sua datária na questão das políticas afir- tões que impactam as eleições. Tudo is-
produção de forma automática] no SAGe, mativas, se compararmos com o que so entra em ciência de dados. Por isso,
que facilita o cadastro dos pesquisadores as universidades já fizeram. Estamos abrimos uma chamada só para ciências
e assessores. Isso é especialmente impor- adotando ações nesse campo 15 ou 20 humanas e sociais, que foi um sucesso.
tante para quem é estrangeiro, de modo anos depois, mas no mesmo momento Se tivéssemos feito uma chamada geral
que, agora, a inclusão no sistema come- histórico em que outras agências no país para todas as áreas, é possível que tivés-
ça com o Orcid, que puxa quase todas as ou no resto do mundo passam a discutir semos autoexclusão.
informações relevantes. O efeito prático mais ativamente essa questão. Dá para
é expandirmos nossa assessoria inter- analisar, por exemplo, que a submissão Vamos falar da pandemia. O que deu pa-
nacional. São mudanças muitas vezes de propostas de homens ou mulheres ra a FAPESP fazer e qual foi o impacto?
simples e pequenas, mas com impacto para bolsas diferentes é parecida, varia Para mim, a pandemia representou um
grande. Fico satisfeito de ter conseguido de acordo com a área do conhecimento, conjunto de desafios: gerenciar uma
ajustar e melhorar o que já era bom, e mas na média é semelhante. Nas ciên- equipe nova, trabalhar processos de
fico triste de não ter feito tanto quanto cias exatas têm menos mulheres apre- forma virtual em sistemas que não nos
acho que seria possível fazer. sentando pedidos do que homens, o que eram familiares, e isso em uma posição
decorre também de um menor número que é muito desafiadora. De outro lado,
Algumas informações solicitadas tam- de graduandas ou egressas. Já a taxa quando a pandemia começou, em março,
bém são novas, como as relacionadas de sucesso é parecida se eu olho para havia mais de 400 bolsistas da FAPESP
a gênero. as bolsas de nível inicial, mas para as no exterior que precisavam voltar, mas
Tem toda razão. O campo era restrito bolsas de nível de pós-doutorado a taxa não tinha voos disponíveis e as frontei-
– homem e mulher. Hoje, é o mesmo de sucesso das mulheres é menor. Por ras estavam sendo fechadas. Tivemos de
utilizado pelo IBGE, o que ajuda a es- quê? Talvez refletindo os cuidados com trabalhar, primeiro, para resolver essa
tabelecer políticas com base em dados. os filhos. Ainda não temos o resultado questão, estender os prazos das bolsas.
O campo de cor de pele também não do ajuste que promovemos. Mas hoje Depois, para garantir as excepcionali-
existia. Eu não saberia dizer quantas se tivermos um homem e uma mulher dades de marcação de passagem. Isso
pessoas de cor de pele preta manda- pedindo uma bolsa e só houver uma tudo foi resolvido. A equipe da Fundação
ram projetos para a FAPESP, porque para conceder, e essa mulher tiver um fez um trabalho excepcional de resgate
não tinha esse campo. Agora está lá. ou dois filhos ou se ela estiver cuidando dessas pessoas.
Tem outros ajustes na súmula curricu- de um ente, e os currículos forem seme-
lar, tanto para quem apresenta e escreve lhantes, a bolsa deve ser concedida para Por outro lado, havia a preocupação
como para quem vai ler e avaliar. Outro a mulher. Porque ela tem um aspecto a com tratamentos e vacinas.
exemplo: a pandemia implicou cuidados mais a ser considerado no processo de Tinha as ações relevantes na procura por
familiares importantes. Para aquelas análise. Não fizemos muita publicidade uma vacina e o trabalho para entender a
pessoas que tiveram que cuidar de um dessa mudança. infecção causada pelo vírus Sars-CoV-2.

24 | MAIO DE 2023
Apenas como exemplo, lembro de um os exames de Covid feitos no Fleury?
trabalho sobre o anticoagulante hepari- E os dados de internação do Sírio e do
na, feito pela Elnara Negri, da Faculdade Einstein? Muito dinheiro. Esses dados
de Medicina da USP e pneumologista do
Sírio-Libanês. As primeiras variantes do Durante são excepcionais e nós os disponibili-
zamos livremente para o Brasil e para
vírus promoviam fenômenos vasculares o mundo. Dados abertos são algo que
muito complexos, que contribuíram se- a pandemia, têm de ser uma mudança cultural. Não
veramente para a mortalidade. A FA- é trivial porque quem produz se sente
PESP financiou as pesquisas da Elnara,
assim como as da Helena Nader, da Uni-
a FAPESP o dono dos dados. O dado de origem do
produto final do estudo, que é o paper,
fesp, que também trabalha com hepari-
na, a linha central de pesquisa dela há
mobilizou também deveria tornar-se público, isto
é, de livre acesso.
muito tempo. Temos apoiado 17 centros
de excelência – com os novos, aprovados a comunidade O Brasil é um lugar atraente para pes-
em abril, agora são 22 –, os Cepid [Cen- quisadores estrangeiros?
tros de Pesquisa, Inovação e Difusão], científica paulista Já foi mais. Nos últimos anos vários as-
há mais de duas décadas. Fizemos uma pectos da sociedade brasileira, talvez
reunião com todos os coordenadores dos
Cepid para dizer que teriam mais apoio
e contribuiu da política, progressivamente tornaram
o Brasil menos atraente. Outro ponto é
para investigar a doença e seus trata-
mentos. Não foi uma atuação passiva. para os que o grau de internacionalização da
nossa ciência é ainda muito baixo. Pou-
Não fiquei aqui sentado para receber e cos falam inglês. Independentemente
analisar as propostas que chegavam. A ensaios clínicos disso, eu acho que São Paulo pode ser
FAPESP mobilizou a comunidade cientí- visto como uma referência. Enquanto
fica paulista e contribuiu para os ensaios
clínicos de vacinas. Tivemos duas delas
de vacinas os nossos pesquisadores e estudantes
podem almejar o Norte Global, nós pode-
testadas no Brasil: a da AstraZeneca/Ox- mos ser almejados por vários outros do
ford, na Escola Paulista de Medicina; e a linhas de fomento de maior agilidade e, Sul Global. Mesmo para o Norte Global,
do Butantan, a CoronaVac. Apoiamos os por fim, capitaneou uma ação que era nós podemos ser atraentes se pensarmos
dois ensaios. No caso do Butantan, en- muito mais abrangente. Na maior parte em pesquisas sobre a Amazônia. O fluxo
tramos com R$ 82,5 milhões. Só que R$ das vezes, a ciência é feita com recursos de ideias e de pessoas é fundamental e
50 milhões desse dinheiro não foram da públicos. Se é assim, entende-se que o temos de continuar trabalhando para a
FAPESP, mas do consórcio Todos pela resultado que essa ciência produziu tam- nossa internacionalização, mandando os
Saúde. E o pessoal do consórcio afirma bém deveria ser público. Essa é a base nossos pesquisadores e estudantes pa-
que só entrou com R$ 50 milhões por- do Open Science, de trabalhar com os ra fora – o que já fazemos com sucesso
que a Fundação desembolsou R$ 32,5 dados que são publicados com acesso –, mas nos esforçando ainda mais para
milhões, foi a avalista. É como se tivés- geral. Mas uma das coisas é o dado pa- receber as pessoas de fora. Não estou
semos alavancado R$ 50 milhões para o ra produzir essa ciência, que poderia falando de “roubar cérebros”, mas de
orçamento da Fundação porque, afinal, ser aberto também. Isso se chama Open fluxo, de pessoas que vão e vêm.
é dinheiro a mais para ações que que- Data – é muito mais abrangente do que
ríamos fazer: apoiar a pesquisa contra Open Science. Criamos uma iniciativa de Nesse tema caberia falar da participa-
a doença. Open Data, em que o apoio da Cláudia ção da FAPESP no GRC, que avançou
Medeiros, do Instituto de Computação bastante no seu mandato. Qual foi a
As ações começaram na transição do da Unicamp e da Coordenação do Pro- importância disso?
período do diretor científico anterior, grama FAPESP de Pesquisa em eScience Esse foi um grande desafio que tive ao
Carlos Henrique de Brito Cruz, para e Data Science, foi fundamental. Essa ini- assumir. Já tínhamos sediado um even-
sua gestão, não é? ciativa chama-se Covid-19 Data Sharing to do GRC, em 2018/2019, em parceria
Isso mesmo, essa ação foi discutida no Brazil [repositoriodatasharingfapesp. com a National Science Foundation, dos
CTA [Conselho Técnico-Administrativo uspdigital.usp.br/]. Estados Unidos. O Brito Cruz se tornou
da FAPESP]. O primeiro projeto apoia- presidente do conselho executivo. Onde
do pela Fundação durante a pandemia, Você se refere ao compartilhamento mais conseguiríamos chegar? Na minha
nessa área, foi aprovado quatro dias de- de informações das pesquisas sobre a gestão, trabalhamos para expandir as
pois de ter sido apresentado. Esse prazo Covid-19? nossas atividades no GRC, não só com a
é sensacional, mostra que tivemos uma É disso que se trata. As primeiras insti- Ana Maria Fonseca à frente do grupo de
resposta muito rápida para uma questão tuições a compartilhar os dados foram trabalho sobre equidade, diversidade e
urgentíssima. A Fundação fez tudo o que o laboratório Fleury e os hospitais Sírio- inclusão, mas também com a Alicia Ko-
estava a seu alcance: buscou outros re- -Libanês e Albert Einstein, três insti- waltowski passando a compor o grupo
cursos, estimulou grupos que talvez não tuições privadas de São Paulo. Quanto sobre métricas responsáveis para avaliar
fossem trabalhar na área, estabeleceu custaria comprar os resultados de todos a pesquisa. Depois, nos voluntariamos

PESQUISA FAPESP 327 | 25


para assumir a comunicação institucio- cursos acumulados da ordem de R$ 500 melhores agências de fomento do mun-
nal do GRC e o secretariado executivo. milhões. Esse dinheiro tem rendimentos do. Deve fazer mais coisas? Talvez sim.
É um mandato de cinco anos – o GRC é que aumentam todos os anos e alocamos Temos, no entanto, de discutir novas
novo, tem 11 anos. Nos primeiros cinco uma parte desses recursos aqui. Durante missões e incumbências com novos re-
anos, o secretariado executivo foi exer- a minha gestão houve um processo ati- cursos. Precisa ver o tamanho do co-
cido pela DFG [Fundação Alemã de Pes- vo de busca de oportunidades de como bertor. Se for grande o suficiente, está
quisa]; o segundo período de cinco anos usar, aplicar e investir esses recursos no bom. Temo que o cobertor ficará curto
pelo Ukri [Agência de Pesquisa e Inova- desenvolvimento de ciência e tecnolo- em algum momento muito próximo se
ção do Reino Unido]. gia. Uma das formas é a construção dos passarmos a ter tantas outras incum-
Centros de Pesquisa Aplicada. A mais bências que talvez não caibam no que
E no terceiro período... recente chamada nesse caso é na área de é a missão definida na Constituição de
Pela FAPESP. É notável. É uma posição computação de alto desempenho, que vai 1989 do estado de São Paulo.
estratégica, como se fosse o secretaria- desembolsar R$ 100 milhões.
do executivo das Nações Unidas para a A concessão de bolsas caiu em 2021 em
ciência. Só conseguimos por causa de um Existe uma tendência das agências de relação a 2020, enquanto o auxílio à
trabalho que extrapola apenas uma ges- fomento de vários países de direcio- pesquisa cresceu. Por quê?
tão. Começou com o Brito e continuou na nar maior financiamento para a ciência Na prática, a nossa demanda como um
minha gestão, o que permitiu à FAPESP aplicada. Como a FAPESP se posiciona? todo caiu, de 2020 em relação a 2019,
uma posição muito prestigiosa. No secre- Há diferentes visões e, como um colega 34%. De 2021 sobre 2020, continuou
tariado executivo não impomos a nossa costuma dizer, ambas de boa-fé e quali- caindo 14%. Em 2022 sobre 2021, co-
agenda, mas buscamos conciliar e com- ficadas. Diversas lideranças da FAPESP meçou novamente a subir elevando-se
por. O titular é o Euclides Mesquita Ne- têm diferentes entendimentos sobre o em 13%; e em 2023 sobre 2022 continua a
to, professor da Unicamp e coordenador assunto. Há espaço para trabalhar e fazer subir, mas ainda estamos abaixo de 2019.
adjunto da FAPESP. Ele está aqui e, claro, crescer outras linhas de fomento. A FA- É por isso que nós lançamos, ao longo
ouve e observa o que acontece e acaba, PESP não é a Finep [Financiadora de Es- desses anos, vários programas novos e
mesmo que involuntariamente, influen- tudos e Projetos], não é o BNDES [Banco aprovamos cinco Cepid em 2023. Sozi-
ciando a pauta e levando para a agenda Nacional de Desenvolvimento Econô- nho, o conjunto de Cepid vai requerer
tópicos que são relevantes para nós. mico e Social], não é a Embrapii [Em- a realocação de até R$ 1 bilhão. É um
presa Brasileira de Pesquisa e Inovação investimento expressivo.
Em sua gestão, houve avanços impor- Industrial]. Não precisamos emular es-
tantes no programa dos Centros de Pes- sas agências. Hoje, a FAPESP é uma das E quanto a outros programas?
quisa em Engenharia (CPE), com novas Há vários em que a Fundação ajudou a
parcerias com empresas. Por que houve induzir o surgimento de uma demanda
essa ênfase? qualificada. Para a Iniciativa Geração
Em março deste ano anunciamos mais serão mais de 30 projetos, com recursos
dois CPE. Estamos multiplicando esses na ordem de pouco mais de R$ 1 milhão
centros e há vários aspectos importan- para cada projeto. Esse programa é pa-
tes. Um deles é que multiplica o nosso
orçamento. Na hora em que a FAPESP
Na minha gestão ra pessoas que concluíram o doutorado
há não mais de seis anos e não podem,
põe R$ 10 em um centro, a empresa A,
B ou C coloca outros R$ 10 ou mais para houve um na hora de apresentar a proposta, ter
um vínculo empregatício. É gente que
amplificar os resultados do investimen- não está no sistema. Para a rodada mais
to. E, para várias áreas em que o recurso processo ativo recente do programa Jovem Pesquisa-
de pesquisa e desenvolvimento é incen- dor 2, foram alocados R$ 94 milhões.
tivado – por exemplo, no setor de óleo
de gás –, não fazemos parcerias de um
de busca de Na chamada do Pró-Educa, em parceria
com a Secretaria de Educação do Estado,
para um, mas de dois para um, de três
para um, de quatro para um. Para cada
oportunidades colocamos R$ 18 milhões na primeira
rodada. Se somarmos todas as ações in-
R$ 1 que a FAPESP coloca, a empresa do duzidas durante esse período, de abril de
setor de óleo e gás coloca R$ 2, R$ 3 ou de como usar, 2020 a abril de 2023, vão passar de R$
R$ 4. E esse dinheiro vai sempre para 2 bilhões. Estamos estimulando, incen-
uma instituição de ciência e tecnologia no aplicar e investir tivando, empurrando o sistema. Mas a
estado de São Paulo, servindo tanto para carreira científica talvez esteja perdendo
reagentes, equipamentos, como para bol-
sas. Isto é, as empresas pagam as bolsas
recursos em a atratividade no mundo inteiro.

ou complementam o valor. Temos uma


parceria com o Comitê Gestor da Inter- C&T de fora da Por quais razões?
Minha opinião é de que as gerações atuais
net, junto com o Ministério da Ciência, talvez tenham se acostumado com certo
Tecnologia e Inovação, que resulta em re- Fundação potencial de sucesso fácil. O meu filho, por

26 | MAIO DE 2023
exemplo, estuda em uma faculdade e tem Nesses três anos na Diretoria Científica sutis, extrapolados por essa situação que
uma colega que é influencer, com 1 milhão você conseguiu fazer pesquisa? é atípica – a epilepsia.
de seguidores. Ela deve ter agora uns 25 Consegui. Em 2009, eu me tornei diretor
anos. Não estou falando que é fácil – fa- de Pesquisa, Desenvolvimento e Inova- Você voltará para a Unifesp agora?
zer bem qualquer coisa nunca é simples. ção da Vale. Quando assumi essa posição, Nunca saí de lá. Vou continuar pesqui-
Mas parece uma coisa de acesso imediato: modifiquei o meu regime de trabalho na sando em paralelo às novas funções. Uma
vou estalar o dedo e virar o Whindersson Unifesp e apresentei um plano de ação delas é a posição como diretor de um novo
Nunes [comediante e youtuber]. na Comissão Permanente de Pessoal Do- museu de ciências para crianças. É um pro-
cente, que foi aprovado. Mantive o meu jeto que se inicia com a perspectiva de se
Nunca é assim, não é? vínculo acadêmico e, portanto, minha deixar um legado, pelo Patrice de Camaret,
Não é assim. Só tem um Whindersson atividade de pesquisador, como neuro- empresário e filantropo franco-brasileiro.
Nunes, e ele deve ter gramado muito, cientista. O que fui fazer na Vale tinha ze-
está sempre se reinventando, fazendo ro de neurociência. Entrei na Vale como Passados esses três anos, o que você
coisas novas. Esse é um mundo em que pesquisador nível 1A do CNPq. Nove anos diria para o futuro diretor científico?
tudo parece imediato. Entre eu ter que depois, eu saí como pesquisador nível 1A A primeira é que a posição é notável por-
estudar matemática e me tornar um in- do CNPq. Então, eu mantive uma ativida- que há a possibilidade de agir sobre o
fluencer, a segunda opção é mais atraen- de intensa de pesquisa. É a minha vida. ambiente de pesquisa no estado de São
te. Agora, quantas pessoas vão virar um Paulo, moldar e influenciar, direcionar
Neymar ou um Whindersson Nunes? Seus estudos continuam direcionados em diferentes aspectos, e isso é muito
Não é fácil ser um jogador de megassu- para a epilepsia? gratificante. O aspecto de se nortear por
cesso, um influencer ou um cientista de Têm a ver com epilepsia. Na época que princípios maiores e gerais e procurar
megassucesso. Mas acho que tem muito comecei a estudar a epilepsia, havia uma não abrir exceções é muito importante.
mais espaço para se tornar um cientista série de textos importantes sobre o as- Vão sempre existir pressões, das mais va-
de bom nível do que ser um jogador de sunto e meu orientador, Esper Abrão riadas naturezas, para quaisquer pessoas,
futebol ou um influencer de bom nível. Cavalheiro, sempre destacava o conceito o tempo inteiro, em qualquer posição.
de “epilepsia, uma janela para o cérebro”. Na FAPESP, talvez as pressões sejam
Mas tem de estudar. A epilepsia permite entender fenôme- maiores ainda e cabe a quem ocupa a
Estudar é gostoso, aprender as coisas é nos fundamentais do sistema nervoso cadeira de diretor científico considerar
muito bom. É algo que dá prazer. Quando que não têm nada a ver com a doença. o que faz sentido, dentro de princípios
se aprende alguma coisa, há uma ilumi- Na epilepsia, muitas vezes, o que temos gerais, idealmente discutidos colegia-
nação que indica que o conhecimento são muitos neurônios disparando poten- damente e compartilhados com outras
já está dentro de você. Santo Agostinho ciais de ação, funcionando juntos e em instâncias diretivas da instituição. Mas
escreveu sobre isso, embora atribuísse à sincronia. Um dos problemas do sistema nunca como decisões unilaterais.
presença de Deus. Se conseguimos encai- nervoso é que os fenômenos são em pe-
xar as peças, temos essa iluminação. E es- quena escala e é difícil enxergá-los. Com Por que você decidiu não se candidatar
sa sensação, que é o aprender, é incrível. o refino das técnicas, tornou-se cada vez à recondução como diretor científico?
mais fácil fazer isso, mas ainda assim, Tenho o entendimento de que certas
A Iniciativa de Mentoria vai na direção quando observamos uma manifestação conjunturas de forças facilitam ou difi-
de fortalecer a carreira de pesquisador? epiléptica, o fenômeno biológico se tor- cultam a execução do trabalho. Em um
Criamos esse programa, graças à lide- na mais claro, mais inequívoco. Muitas dado momento, ainda em 2022, para mim
rança de Catarina Porto, com a intenção vezes, o que temos de fazer é separar o era claro que a conjuntura existente na
de termos um profissional experiente, que é sinal do que é ruído. FAPESP não ajudava para que eu pudes-
o mentor, orientando os pesquisadores se contribuir de uma maneira relevante.
mais jovens na superação dos obstáculos Tudo para entender o funcionamento Talvez outras pessoas, com outros perfis,
e desafios que enfrentam na carreira pro- do cérebro? outros traços de personalidade, possam
fissional. O programa começou em 2022 O tempo inteiro, os nossos 80 bilhões fazer isso melhor. Quando isso ficou claro
e é composto por diferentes atividades de neurônios estão funcionando e de- para mim, busquei trabalhar para preser-
pertinentes à consolidação da carreira de flagrando potencial de ação. Para quem var o que eu entendo que deva ser a visão
pesquisador na academia, na indústria e apenas observa essas ações, é uma bal- da Diretoria Científica. Minha opinião é
no governo. As atividades são desenvol- búrdia. Essa balbúrdia somos nós pen- de que a FAPESP é o que é, não apesar
vidas por meio de módulos: a FAPESP e sando, comendo, sorrindo, lembrando, dos seus diretores científicos, mas por
o sistema de pesquisa paulista; a consoli- dormindo... Conseguir entender essa causa deles. Eu tenho o maior orgulho
dação da carreira científica; o treinamen- complexidade é muito difícil. Trabalhar de suceder ao Brito, ao [José Fernando]
to em ética e integridade da pesquisa; o com epilepsia permite olhar para os neu- Perez, ao Flávio Fava, ao William Saad
treinamento como assessor ad hoc em rônios em atividade síncrona, organi- Hossne [1927-2016] e tantos outros que
fomentos à pesquisa; e os tópicos espe- zada, na qual há algumas respostas: as estiveram à frente da Diretoria Científica.
cíficos para subsidiar as atividades rela- proteínas e genes que estão por trás das Espero ter contribuído para o aprimora-
cionadas à carreira de pesquisador nas ações, os canais iônicos que se abriram mento da instituição e ter atrapalhado
áreas de ciência, tecnologia e inovação. ou fecharam. Dá para estudar fenômenos pouco o seu funcionamento. n

PESQUISA FAPESP 327 | 27


SEGUNDO
OS CRITÉRIOS DO
BANCO MUNDIAL*

27,65%
Países de renda
média alta

1,32%
Países de renda
média baixa
(DESCONTOS)

ACESSO ABERTO

0,35%

DORES
Países de renda
baixa (ISENÇÕES)

DA
EXCLUSÃO
70,66%
Países de
renda alta

Estudo mostra que as políticas


de isenção e desconto de grandes
editoras para publicação de
artigos científicos são restritivas
e ignoram as dificuldades
de autores de países como o Brasil
Fabrício Marques

*CRITÉRIOS RECOMENDADOS PELO PLANO S

28 | MAIO DE 2023
U
m estudo de pesquisadores das
BENEVOLÊNCIA RESTRITA universidades de São Paulo (USP)
e Estadual de Campinas (Unicamp)
Percentual de artigos científicos provenientes de chamou a atenção para um obstáculo
países/territórios que poderiam ser incluídos em enfrentado por cientistas de países
políticas de desconto ou isenção de taxas para em desenvolvimento quando bus-
publicação em acesso aberto, em relação ao total – cam publicar seus artigos em revistas
base de dados Scopus internacionais de prestígio. Com o
avanço do modelo de acesso aberto,
por meio do qual os leitores têm acesso livre na
internet ao conteúdo de artigos sem precisar
25,6% SEGUNDO pagar taxas ou assinaturas de revistas, os custos
Países de renda OS CRITÉRIOS DO de publicação passaram a recair sobre autores de
papers e suas instituições e órgãos de fomento,
média alta
RESEARCH4LIFE ** que são obrigados a desembolsar aos periódicos
4,05% valores muitas vezes proibitivos. O levantamento,
Grupo B publicado em março no fórum sobre publicações
(50% DE acadêmicas The Scholarly Kitchen, mostra que a
DESCONTO) solução para o problema oferecida por editoras
científicas é ineficaz: as políticas de isenção e
desconto concedidas por revistas a autores são
muito restritivas e inacessíveis a pesquisadores
1,12% de países de renda média, como o Brasil.
De acordo com o trabalho, se forem conside-
Grupo A
(ISENÇÕES)
rados os critérios adotados pelo Research4Life,
uma coalizão de editoras como Wiley, PLOS,
Elsevier, Sage e Science, apenas 1,12% dos ar-
tigos publicados entre 2012 e 2021, disponíveis
na base de dados Scopus, seria beneficiado por
isenções, as quais são concedidas porque seus
autores vivem em nações de renda muito baixa,
principalmente na África, mas também em locais
conflagrados como Iêmen, Síria ou Afeganistão.
Outros 4,05% poderiam receber descontos de
69,22% até 50% das taxas de processamento de artigos
porque provêm de nações de renda média baixa,
Países de
renda alta
a exemplo de países do norte da África, da Amé-
rica espanhola e do sul da Ásia. Em um segundo
cenário, a restrição é ainda maior. Quando são
observadas as normas estabelecidas pelo Pla-
no S, um programa de disseminação de acesso
aberto que começou a ser adotado em 2021 por
um conjunto de agências de fomento de países
europeus e instituições como a Fundação Bill &
Melinda Gates, só 0,35% dos artigos seria isento
de taxas e 1,32% passível de descontos. O recorte
de renda dos países, nesse caso, segue os padrões
do Banco Mundial e é adotado atualmente por
editoras como Springer Nature e Taylor&Francis.
“Na minha especialidade, revistas científicas
cobram entre US$ 3 mil e US$ 5 mil para publicar
um artigo, mas existem casos extremos, como em
periódicos da coleção Nature, em que esse cus-
to supera os US$ 11 mil”, explica a bioquímica
Alicia Kowaltowski, do Instituto de Química da
USP, autora principal do estudo, também assina-
FONTE ARTICLE do pelo físico Paulo Nussenzveig e pelo biólogo
PROCESSING CHARGES
ARE A HEAVY BURDEN FOR Ariel Silber, da USP, e por José Roberto Arruda,
MIDDLE-INCOME COUNTRIES/
**CRITÉRIOS ADOTADOS POR WILEY, PLOS, ELSEVIER, SAGE E SCIENCE THE SCHOLARLY KITCHEN engenheiro mecânico da Unicamp.

PESQUISA FAPESP 327 | 29


A análise mostra que o custo proibitivo dos O trabalho propõe a ampliação das políticas
artigos prejudica os países de renda média. Em de isenção total dessas taxas, como estratégia
nações muito pobres, que têm acesso a políticas de inclusão de autores de países de renda bai-
de isenção e desconto seguindo os critérios do xa e média baixa, e a aplicação de descontos de
Research4Life, 52% dos artigos de seus pesquisa- 50% a todas as economias de renda média alta.
dores estão disponíveis em acesso aberto. Entre “Na prática, isso implicaria conceder renúncias
países ricos, o percentual é de 45%. Mas em países totais a cerca de 2% dos autores e descontos a
de renda média como o Brasil, não beneficiados aproximadamente 25%. Isso poderia ser facil-
por isenção e desconto, a fração de artigos em mente absorvido pela maioria das editoras, já
acesso aberto cai para 32%. “Esses países têm que esse setor é conhecido por suas margens
orçamentos de pesquisa muito menores do que de lucro elevadas, acima de 30%”, afirma Ko-
as economias de alta renda, mas se espera que waltowski. Ela reconhece que muitas editoras
paguem taxas de processamento de artigos [APC] dizem aceitar negociar pedidos individuais de
integrais. Os dados mostram que, devido ao custo isenções e descontos. “Mas as solicitações pes-
elevado, estão sendo excluídos desse modelo de soais têm desvantagens, como poder de barga-
publicação”, diz Kowaltowski. nha reduzido. A FAPESP financia a publicação
de artigos de pesquisadores beneficiados com
bolsas e projetos de pesquisa, mas estabeleceu
um limite máximo de R$ 12 mil, um valor que
TERRITÓRIOS BENEFICIADOS está mais do que bem pago. Eu uso esse limite
para pedir descontos a editores, mas é preciso
Países que podem ser incluídos em políticas de desconto mandar cinco ou seis e-mails até que alguém
ou isenção de taxas para publicação em acesso aberto comece a escutar”, diz a pesquisadora.
A proposta despertou reações. O cientista da
informação e consultor norte-americano Phil
SEGUNDO CRITÉRIOS DO BANCO MUNDIAL n Isenções n Descontos
Davis criticou a ideia de expandir as políticas
de isenção e desconto e seu argumento é de que
poderiam sufocar financeiramente pequenas
editoras regionais que atendem predominante-
mente autores de países de renda baixa e média.
“Aqueles que são rápidos em culpar os editores
comerciais por seu monopólio no mercado e suas
‘margens de lucro excepcionalmente altas’ po-
dem se surpreender ao descobrir que sua polí-
tica, se adotada, só levaria ao fortalecimento da
publicação comercial”, escreveu, no fórum de

P
comentários sobre o trabalho.

ara Abel Packer, coordenador da bi-


blioteca de revistas científicas SciELO
Brasil, o trabalho liderado por Ko-
waltowski tem o mérito de levantar
SEGUNDO CRITÉRIOS DO RESEARCH4LIFE n Isenções n Descontos
o debate sobre o custo das APC para
pesquisadores de países em desenvol-
vimento, que vem sendo relevado nas
discussões sobre o avanço do acesso
aberto. “É necessária uma abordagem
mais equitativa. Um pesquisador brasileiro não
pode pagar a mesma quantia de um da Suécia. O
poder aquisitivo aqui não condiz com essas taxas,
é uma questão de equidade”, afirma.
Ele observa, porém, que o trabalho abordou
apenas um dos aspectos do problema. “É preci-
so também questionar o sistema como um todo
e observar que a necessidade que o pesquisador
tem de publicar em um periódico com APC caro
se deve a exigências dos sistemas de avaliação
para a progressão na carreira.” Ele destaca que a
FONTE  ARTICLE PROCESSING CHARGES ARE A HEAVY BURDEN FOR MIDDLE-INCOME COUNTRIES / THE SCHOLARLY KITCHEN missão da SciELO, financiada pela FAPESP nos

30 | MAIO DE 2023
que redirecionariam os valores hoje desembol-
sados com assinaturas de revistas para o paga-
mento das taxas de publicação de artigos e sua
EM PAÍSES DE RENDA MÉDIA, oferta livre na internet.

A FRAÇÃO DE ARTIGOS EM ACESSO As perspectivas de que isso aconteça, explica


Kowaltowski, ainda são incertas. “Não está claro
ABERTO É MENOR QUE A DOS o que vai acontecer, já que a adesão ao Plano S se
concentrou na Europa e foi pequena fora dela.”
DE RENDA BAIXA, AGRACIADOS A China, que ultrapassou os Estados Unidos em
volume de artigos científicos, está fora do arran-
COM DESCONTOS E ISENÇÕES jo. Já o governo dos Estados Unidos estabeleceu
tardiamente, no final do ano passado, que as agên-
cias federais terão de criar até 2025 políticas para
garantir que todas as publicações financiadas por
elas sejam disponibilizadas ao público em acesso
aberto. O formato a ser adotado ainda não está
últimos 25 anos, tem sido o de qualificar mais de definido e pode vir a incluir o uso de repositó-
300 periódicos do Brasil de acesso aberto, mui- rios de preprints. Quando isso acontecer, vai ficar
tos dos quais nem sequer exigem o pagamento mais clara a velocidade das mudanças no cenário

O
de APC para disseminar a produção científica internacional da comunicação científica.
nacional, ainda que esses títulos não disponham
do impacto e da visibilidade de revistas de elite. Brasil se manteve até agora ao largo
“Temos periódicos nacionais de alta qualidade desse debate, embora tenha inves-
que estão disponíveis para disseminar bons ar- tido em 2020 R$ 380 milhões em
tigos de autores brasileiros”, afirma. contratos com editoras científicas
Para José Roberto Arruda, coautor do levanta- para franquear o conteúdo de suas
mento, não houve menosprezo da importância de revistas a pesquisadores brasileiros
iniciativas de acesso aberto como a SciELO, mas por meio do Portal de Periódicos da
a preocupação em cobrar políticas mais eficazes Capes (Coordenação de Aperfeiçoa-
de renúncia das grandes editoras comerciais. mento de Pessoal de Nível Superior),
“Isso é vital para permitir que pesquisadores de agência do Ministério da Educação responsável
países de renda média alta continuem a publicar por avaliar e financiar programas de pós-gradua-
em revistas científicas de prestígio e altamente ção. Isso agora começa a mudar. Em comunicado
visíveis enquanto os modelos de acesso aberto enviado a Pesquisa FAPESP, a Capes informou
baseados em APC não mudam”, afirmou. Em que “está empenhada em realizar acordos trans-
resposta à crítica de Phil Davis, Arruda disse formativos no sentido de ofertar à comunidade
que não se trata necessariamente de diminuir acadêmica, além da assinatura de publicações
a receita das editoras, mas de distribuir melhor científicas, a publicação de artigos em acesso
os custos entre os pesquisadores de países com aberto”. Segundo a agência, ela está liderando
diferentes níveis de renda e diferentes realidades no país, em parceria com instituições como a
de financiamento à pesquisa. Academia Brasileira de Ciências, a Sociedade
Em tese, o modelo de acesso aberto basea- Brasileira para o Progresso da Ciência e o Con-
do em APC deveria mudar em breve. Em sua selho Nacional de Desenvolvimento Científico e
concepção original, o Plano S determinava que Tecnológico, um movimento para que os pesqui-
todos os artigos resultantes de pesquisas apoia- sadores consigam publicar a preços compatíveis
das por agências e países signatários deveriam com a realidade socioeconômica do país.
ser publicados exclusivamente em revistas de Recentemente a agência iniciou consulta à
INFOGRÁFICO  ALEXANDRE AFFONSO / REVISTA PESQUISA FAPESP

acesso aberto a partir de 2020. A data do início comunidade científica sobre o tema e, em maio,
da implementação foi postergada para 2021 e as será realizado workshop colaborativo para de-
regras foram flexibilizadas, permitindo-se, por bater a publicação de artigos em acesso aberto.
exemplo, a existência até 2024 de modelos híbri- “Um dos pontos abordados será o pagamento
dos de publicação, nos quais os autores podem de taxas de processamento de artigos no âmbito
pagar para publicar artigos em acesso aberto dos contratos do Portal de Periódicos”, informa
em periódicos que também vendem assinaturas. a nota da Capes. O assunto entrou na pauta da
Já a partir de 2025, esse formato intermediário agência em novembro passado, na quinta edição
deixará de ser aceito e se espera que as edito- do Seminário do Portal de Periódicos. “Agora,
ras passem a publicar artigos apenas em acesso com o workshop, o objetivo é dar continuidade
aberto, celebrando acordos abrangentes com ao tema e aprofundar as discussões na comuni-
países, agências ou bibliotecas de instituições, dade acadêmica.” n

PESQUISA FAPESP 327 | 31


CIENTOMETRIA

CAMINHOS
E
ntre os pesquisadores brasileiros da
área médica, colaborações científicas
podem durar cerca de cinco anos – esse
é o prazo aproximado em que duplas
de cientistas atuam conjuntamente

COMPARTILHADOS
compartilhando a autoria de trabalhos
acadêmicos. Em engenharia nuclear e
engenharia biomédica, a longevidade
média dessas coautorias chega a oito
anos. Já em história, letras, filosofia e artes, é bem
Estudo indica quantos anos duram as mais curta, próxima a dois anos – nesses campos
do conhecimento não há ainda uma tradição de
parcerias entre autores de artigos científicos trabalho em cooperação e parte significativa de
sua produção é assinada por poucas pessoas, fre-
do país em 81 áreas do conhecimento quentemente uma só.
O panorama inédito sobre a longevidade de par-
Fabrício Marques  |  ILUSTRAÇÃO  Felipe Mayerle cerias científicas faz parte de um levantamento
sobre a produção acadêmica de doutores do Brasil
em 81 áreas do conhecimento, baseado em dados
da plataforma de currículos Lattes, do Conselho
Nacional de Desenvolvimento Científico e Tec-
nológico (CNPq). “Colaborações que resultam
em coautoria de artigos dependem de variáveis
subjetivas, como a criação de laços de afinidade
e confiança, e da cultura de publicação de cada lho. Foram excluídos do cômputo os que tinham
disciplina. Buscamos observar a probabilidade autores únicos – eram, aliás, mais da metade dos
de pesquisadores se agruparem e amadurecerem trabalhos em áreas mais refratárias às parcerias
relações desse tipo”, explica o cientista da com- científicas, como educação, direito e letras. Para
putação Jesús Pascual Mena-Chalco, do Centro evitar distorções, também foram descartados es-
de Matemática, Computação e Cognição da Uni- tudos com mais de 40 coautores – a física, uma
versidade Federal do ABC (UFABC). área em que vicejam consórcios internacionais
O estudo é resultado da pesquisa de doutorado de pesquisa com milhares de participantes, foi a
ainda em andamento da cientista da computação disciplina com mais trabalhos desconsiderados.
Andréia Gusmão, aluna da UFABC sob orienta- Já o terceiro indicador, batizado de “caminhar
ção de Mena-Chalco, e foi publicado em 2022 na de coautores”, foi estabelecido pelo próprio grupo
revista científica Em Questão. Foram compilados e é determinado pela relação entre longevidade e
artigos, apresentações em congressos, livros e ca- dimensão de coautoria. Os caminhares são mais
pítulos de livro de mais de 200 mil doutores que longos quanto menor é o grupo de pesquisadores
atualizaram sua produção na plataforma Lattes envolvidos – afinal, é mais difícil manter unido
entre 2019 e 2020. Os responsáveis pelo estudo ao longo do tempo um time de quatro coautores
extraíram três indicadores desse volume notável do que três ou dois. Mas o comportamento varia
de dados. Um deles é a durabilidade de uma coau- bastante entre as disciplinas. “Em matemática, os
toria acadêmica: o tempo, em anos, em que vigo- grupos são menores, formados principalmente por
ram colaborações entre grupos de pesquisadores orientadores e alunos ou ex-alunos, mas eles per-
a ponto de isso gerar publicações. manecem unidos ao longo de vários anos. Já nas
O segundo indicador é a dimensão de uma coau- áreas da saúde, como medicina, farmacologia, en-
toria acadêmica: o número de pessoas que parti- fermagem e odontologia, os parceiros podem ser
cipam concomitantemente de um mesmo traba- bem mais numerosos, mas o grupo tende a se man-

PESQUISA FAPESP 327 | 33


ter estável por menos tempo”, observa. Há sempre pesquisadores da UFABC. “Recentemente, mesmo
pontos fora da curva e a área médica registrou o em áreas mais avessas a colaborações tem havido
caminhar mais duradouro do levantamento: o caso um progressivo crescimento na quantidade dos

E
de dois pesquisadores que escreveram papers jun- trabalhos em coautoria.”
tos por 46 anos, em uma cooperação classificada
como vitalícia. O estudo observou perfis de cola- studos anteriores publicados por Mena-
boração semelhantes em disciplinas que tiveram -Chalco e parceiros haviam se debruçado
uma origem comum, como física e astronomia, sobre outras características das colabora-
biologia e medicina, computação e engenharia ções no Brasil – aproveitando-se do de-
elétrica. “São áreas irmãs, que se desmembraram, senvolvimento de ferramentas da ciência
mas seguem compartilhando práticas de publica- da computação que permitiram extrair
ção”, diz Mena-Chalco. e analisar grandes volumes de informa-
Há muito tempo existe consenso de que a pes- ções da plataforma Lattes. Uma dessas
quisa em colaboração é essencial para o progresso facetas foi o aumento da frequência das
da ciência. Muitos campos de pesquisa se tornaram parcerias: entre 2008 e 2010 foi registrado pouco
tão complexos e especializados que demandam mais de 1 milhão de colaborações, em contraste com
esforços cooperativos e interdisciplinares para apenas 63.944 observadas entre 1990 e 1992 (ver
alcançar avanços do conhecimento. Em algumas Pesquisa FAPESP nº 218). Também foi estudada a
áreas, formaram-se consórcios internacionais cuja influência da proximidade geográfica na formação
produção deu origem a um fenômeno, não aborda- de redes de cooperação (ver Pesquisa FAPESP nº
do pelo estudo da UFABC, conhecido como hipe- 241). No novo trabalho, eles buscaram pistas de
rautoria, que é a publicação de artigos com mais como as colaborações se mantêm ao longo do tempo
de mil nomes de autores, cada qual responsável e os fatores que podem influir em sua estabilidade.
por uma contribuição muitas vezes pequena, por Não é só com dados da plataforma Lattes que
exemplo, na coleta ou na análise de dados (ver o grupo está trabalhando. No ano passado, Mena-
Pesquisa FAPESP nº 289). -Chalco e Gusmão apresentaram os resultados de
“Políticas públicas vêm incentivando e ampliando um estudo no XXII Encontro Nacional de Pesqui-
as colaborações no mundo inteiro. Por isso, conhe- sa em Ciência da Informação (Enancib), em Porto
cer as características e a eficiência dessas parce- Alegre, em que levantaram o perfil de colaborações
rias tornou-se relevante para avaliar os resultados de pesquisadores em ciência da informação. Foram
do trabalho dos pesquisadores”, diz a cientista da analisados artigos publicados entre 1968 e 2021 in-
informação Solange Santos, coordenadora de pro- dexados na Web of Science, base de dados que não
dução e publicação da coleção de revistas SciELO abrange uma produção tão extensa quanto a regis-
Brasil, que também é coautora do artigo feito pelos trada nos currículos Lattes e que se concentra em

O CAMINHAR DOS COAUTORES


O tempo médio de colaborações formadas por grupos
de dois pesquisadores em 81 áreas do conhecimento
15
Longevidade em anos

10

0
Engenharia nuclear
Eng. de mat. e metalúrgica
Engenharia agrícola
Engenharia de minas
Engenharia sanitária
Engenharia química
Eng. naval e oceânica
Engenharia mecânica
Engenharia civil
Engenharia biomédica
Engenharia elétrica
Engenharia aeroespacial
Astronomia
Odontologia
Geociências
Parasitologia
Química
Recursos florestais
Recursos pesqueiros
Robótica, mecatrônica e automação
Oceanografia
Morfologia
Microbiologia
Medicina veterinária
Medicina
Imunologia
Administração
Física
Fisiologia
Farmacologia
Engenharia de transportes
Engenharia de produção
Agronomia
Engenharia de energia
Demografia
Ciência e tecnologia de alimentos
Ciência da computação
Botânica
Bioquímica
Biofísica
Zoologia

34 | MAIO DE 2023
revistas internacionais tradicionais e consolidadas. São Paulo (EACH-USP) mostrou que artigos assina-
Os resultados evidenciaram, como esperado, que dos conjuntamente por orientadores e orientados
grupos menores publicam juntos por mais tempo cresceram em volume em todas as áreas do conheci-
do que os maiores e que as colaborações institucio- mento desde a década de 1980, com destaque maior
nais, que se caracterizam por conter pesquisadores para as ciências biológicas e agrárias e, mais tardia-
de uma mesma afiliação, são as mais longevas, com mente, para disciplinas como letras e linguística.
duração de 10 anos para grupos de dois coautores. “Mesmo nas humanidades, em que essas coautorias
Em parcerias internacionais, o maior período de co- eram raras porque se dizia que a tese pertence ao
laboração entre dois pesquisadores foi de sete anos. aluno e não ao orientador, observou-se um cresci-
Segundo o cientista da computação da UFABC, mento notável de artigos assinados por professores
os indicadores propostos são objetivos, mas não e estudantes de pós-graduação nos últimos anos,
medem as colaborações em toda a sua complexi- ainda que elas estejam em um patamar menor do
dade. “Nem toda parceria resulta na publicação de que outros campos do conhecimento”, diz um dos
um artigo, assim como há papers com uma grande autores do trabalho, o cientista da computação Lu-
quantidade de coautores em que a relação entre ciano Digiampietri, professor do bacharelado em
eles não necessariamente configura uma colabo- sistemas da informação da EACH-USP. “De modo
ração”, afirma. “Analisamos as interações sociais geral, o progressivo aumento da produção cien-
estabelecidas quando pesquisadores compartilham tífica brasileira nos últimos 40 anos resultou em
a autoria de artigos, mas há muito mais gente envol- um aumento dos estudos feitos em colaboração.”
vida nesse processo, como orientadores, revisores O grupo da UFABC busca agora avaliar os cami-
dos artigos, editores das revistas. Por trás de cada nhares em maior profundidade. “Vamos analisar a
artigo tem o trabalho cooperativo de um número questão do gênero para saber se os caminhares são
INFOGRÁFICO  ALEXANDRE AFFONSO / REVISTA PESQUISA FAPESP

bem maior de pessoas.” diferentes em grupos mais homogêneos ou mais


Um dos aspectos abordados no estudo da Em diversos”, diz Mena-Chalco. Outro foco é a lon-
Questão foram as interações entre orientadores gevidade das colaborações vista em recortes mais
e estudantes, que podem se manter por períodos amplos, como instituições e campos do conheci-
mais ou menos longos, a depender da área. “Em mento a que os coautores são vinculados. “Seria
economia, por exemplo, os ex-alunos comumente interessante saber a relação entre a longevidade
interrompem as colaborações com o orientador, ao das colaborações e a inserção internacional de
contrário do que acontece em muitas disciplinas”, pesquisadores brasileiros em grandes áreas – por
diz Mena-Chalco. exemplo, em físicas de altas energias, em que as
Em um artigo publicado em 2021 também na Em redes de coautoria são gigantes – e gerar dados
Questão, um grupo de pesquisadores da Escola de que ajudem as agências de fomento à pesquisa a
Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de nortear seus investimentos.” n

15

Longevidade em anos
10

0
Zootecnia
Enfermagem
Educação física
Ecologia
Planejamento urbano e regional
Nutrição
Saúde coletiva
Geografia
Genética
Fonoaudiologia
Fisioterapia
Farmácia
Economia
Educação
Probabilidade e estatística
Ciência da informação
Desenho industrial
Ciências ambientais
Arqueologia
Divulgação científica
Comunicação
Psicologia
Sociologia
Biotecnologia
Serviço social
Biologia geral
Linguística
Matemática
Museologia
Turismo
Arquitetura e urbanismo
Ciência política
Teologia
Antropologia
Letras
História
Direito
Defesa
Artes
Filosofia

FONTE  ANÁLISE DA LONGEVIDADE E DO TAMANHO DAS COAUTORIAS ACADÊMICAS: OS CAMINHARES NA CIÊNCIA BRASILEIRA — 2022
FINANCIAMENTO

Orçamento público para estudos


sobre doenças associadas à pobreza
diminui nos últimos anos no Brasil

PESQUISA
Rodrigo de Oliveira Andrade

NEGLIGENCIADA

Paciente com
malária em tratamento
na Fundação de
Medicina Tropical
Dr. Heitor Vieira
Dourado, em Manaus
O
s investimentos públicos em pesquisas sobre essas enfermidades. Foram US$
pesquisas sobre doenças tropi- 3,8 milhões despendidos em 2020, 73% a menos
cais negligenciadas, aquelas que do que em 2019. A reportagem entrou em con-
atraem pouco interesse da in- tato com o MS para um posicionamento sobre
dústria farmacêutica por afeta- os resultados do levantamento, mas não obteve
rem principalmente populações resposta até o fechamento desta edição.
e países pobres, diminuíram significativamente As doenças negligenciadas atingem aproxima-
nas últimas duas décadas no Brasil, de acordo damente 1,7 bilhão de pessoas no mundo, sobretu-
com levantamento feito por pesquisadores do do em países da África, do Sudeste Asiático e da
Ministério da Saúde (MS), da Universidade de América Latina, segundo a Organização Mundial
Brasília (UnB) e do Hospital do Coração, em São da Saúde (OMS). O Brasil ainda é vulnerável a
Paulo. O grupo analisou a evolução dos valores várias delas, com destaque para a dengue, a han-
para estudos sobre moléstias como doença de seníase e as leishmanioses, mas conseguiu avan-
Chagas, hanseníase e esquistossomose entre 2004 çar na redução de outras, como esquistossomose
e 2020 com base em dados do Departamento de e Chagas. Das 20 moléstias que integram esse
Ciência e Tecnologia (Decit), órgão vinculado ao grupo, apenas duas não estão presentes no país, a
MS que financia pesquisas em áreas estratégicas dracunculíase, causada por um parasita chamado
para o Sistema Único de Saúde (SUS) sozinho ou verme-da-guiné, que produz úlceras, principal-
em parceria com outras instituições. mente nas pernas, e a tripanossomíase africana,
O Brasil investiu aproximadamente US$ 230,9 desencadeada por diferentes subespécies de Try-
milhões em 1.158 projetos de pesquisa no período. panosoma brucei, transmitidos pela mosca tsé-tsé
Os valores foram atualizados para 2021 e ajusta- (Glossina), e que, em humanos, afeta o sistema
dos pela paridade de poder de compra, métrica nervoso, levando as vítimas, no extremo, ao coma
usada para equiparar moedas de diferentes países e à morte. Indivíduos em situação de vulnerabi-
de acordo com sua capacidade de adquirir bens e lidade, sem acesso a saneamento básico, saúde e
serviços. O MS respondeu por 69,8% desse valor. educação, são os mais afetados. Estima-se que até
O restante veio de fundos setoriais (14,7%), de 10 mil brasileiros morram por ano em decorrên-
agências estaduais de apoio à pesquisa (11,5%) e cia de alguma doença do rol das negligenciadas,
dos ministérios da Educação e da Ciência, Tecno- sobretudo nas regiões Norte e Nordeste.
logia e Inovação (0,5%). A Fundação Bill e Melin- Coordenadora do Programa Nacional de Han-
da Gates, organização filantrópica com sede nos seníase e Doenças em Eliminação do MS entre
Estados Unidos reconhecida por seus esforços no 2004 e 2007 e de 2011 a 2016, a médica Rosa Cas-
combate a doenças como malária, contribuiu com tália lembra que essas doenças costumam en-
3,6% do quinhão destinado a pesquisas sobre es- curtar a vida produtiva de suas vítimas ou de-
sas moléstias no Brasil – os recursos, nesse caso, sencadeiam condições crônicas que demandam
foram para trabalhos sobre dengue e tuberculose. assistência de serviços de saúde caros e de maior
De acordo com o artigo publicado em março na complexidade por toda a vida, como a cardiopatia
revista PLOS Neglected Tropical Disease, tanto os decorrente da doença de Chagas e as epilepsias
valores aportados quanto a quantidade de estudos associadas à cisticercose.
apoiados variaram bastante ao longo dos anos, Indústrias farmacêuticas, de modo geral, de-
inclusive em períodos com maior disponibilida- monstram pouco interesse em desenvolver me-
de de recursos para a ciência, com quedas mais dicamentos contra essas moléstias – como atin-
acentuadas em anos de troca no governo federal. gem populações pobres, tais remédios teriam um
“A criação de novos conhecimentos para o con- potencial restrito de exploração econômica. “É
trole dessas moléstias depende de investimento importante que os países afetados invistam em
RICARDO FUNARI / BRAZIL PHOTOS / LIGHTROCKET VIA GETTY IMAGES

contínuo e previsível”, destaca o químico Luiz soluções próprias de prevenção, diagnóstico e


Carlos Dias, do Instituto de Química da Univer- tratamento”, afirma Dias.
sidade Estadual de Campinas (Unicamp), que não Os números descritos no estudo na PLOS Neglec-
participou da elaboração do trabalho. “No Brasil, ted Tropical Disease mostram que os investimentos
no entanto, parece que ele ainda é encarado como do Brasil são modestos em comparação com outros
uma política de governo, e não de Estado, podendo países. Em 2018, por exemplo, somaram US$ 3,5
receber mais ou menos atenção a depender de no- milhões, 16,6% a menos do que no ano anterior.
vas gestões”, completa o pesquisador, coordenador No mesmo período, os Estados Unidos investiram
de um consórcio internacional de instituições para quase US$ 1,8 bilhão, ao passo que o financiamento
o desenvolvimento de novos fármacos para doen- global alcançou US$ 4,05 bilhões, 7% a mais do que
ças parasitárias tropicais, apoiado pela FAPESP. em 2017, segundo dados da organização G-Finder,
A pandemia agravou esse cenário. O redirecio- que monitora investimentos em pesquisa e desen-
namento de dinheiro e recursos humanos para volvimento (P&D) sobre produtos e tecnologias
combater o novo coronavírus desfalcou o apoio a em saúde (ver Pesquisa FAPESP nº 302).

PESQUISA FAPESP 327 | 37


É certo que o levantamento do G-Finder consi-
dera como negligenciadas doenças não mais clas- O peso das doenças
sificadas assim pela OMS, como a malária, que se
tornou alvo de mais investimentos nos últimos anos. Enfermidades negligenciadas que mais impactaram
Em 2021, a OMS anunciou a aprovação do primeiro a saúde dos brasileiros entre 1990 e 2016, em total
imunizante para combater a doença. Desenvolvida de anos de vida perdidos ou prejudicados por elas
pela farmacêutica britânica GlaxoSmithKline, a DOENÇA DALYS* n 1990 n 2016
vacina age contra Plasmodium falciparum, o mais

N
223.878
letal dos cinco parasitas que causam a malária. Doença de Chagas
141.640
20.081
Leishmaniose
o Brasil, as pesquisas sobre dengue, 40.967

leishmaniose e tuberculose foram Leishmaniose visceral


17.168
37.776
as que mais receberam apoio entre
Leishmanioses cutânea 2.913
2004 e 2020. As três doenças res- e mucocutânea 3.190
ponderam por 56,1% dos estudos 98.546
Esquistossomose
realizados e 60,2% dos recursos 102.259

investidos. “Do rol das moléstias negligenciadas, Cisticercose


26.627
15.142
a dengue foi talvez a que teve maior planejamento * Medida da carga geral de determinada doença, expressa com base nos anos de vida
público de pesquisa, com desdobramentos impor- prejudicados ou perdidos em consequência dela.

tantes, entre eles um composto candidato a vacina FONTE  MARTINS-MELO, F. R. ET AL. PLOS NEGLECTED TROPICAL DISEASES. 2018

em desenvolvimento pelo Instituto Butantan”,


afirma Dias. Na outra ponta, enfermidades como Tendência de queda
oncocercose, equinococose e tracoma responde-
Orçamento para estudos sobre doenças negligenciadas
ram por apenas 0,3% das pesquisas e 0,1% dos
oscilaram nos anos, com quedas mais acentuadas
recursos despendidos – entre 2008 e 2019, o Brasil
em períodos de troca no governo
registrou mais de 191 mil casos de tracoma.
O investimento em pesquisa é considerado INVESTIMENTO (PPP* – EM US$ MILHÕES)
fundamental para o avanço do conhecimento que
dará base para a implantação, o monitoramento e 41,7
a avaliação de políticas de saúde. Com as doenças 35,5
negligenciadas, porém, parece haver uma falta de
27,3
coordenação entre as necessidades de saúde e os
alvos de estudo. Moléstias como chikungunya e 20,9
15,7 15,8 16,1
malária têm, respectivamente, a segunda e a ter- 14,1
ceira maior prevalência dentre as enfermidades 9,8 7,6 6,2
7,3 3,8
negligenciadas no Brasil. Entre 2004 e 2020, no 4,2
1,3 0,1 3,5
entanto, ocuparam a 9ª e a 5ª posição no finan- 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016 2017 2018 2019 2020
ciamento de pesquisa. Lula 1 Lula 2 Dilma 1 Dilma 2 Temer Bolsonaro
Não estão claras as razões do baixo número de * Paridade de Poder de Compra, métrica usada para equiparar moedas de diferentes
estudos sobre chikungunya, que já atingiu mais países de acordo com sua capacidade de adquirir bens e serviços.

FONTE  MELO, G.B.T. ET AL. PLOS NEGLECTED TROPICAL DISEASES. 2023


de 250 mil brasileiros e cuja taxa de mortalidade
é semelhante à da dengue. A suspeita dos pesqui-
sadores é que seja porque a doença surgiu mais Origem do dinheiro
recentemente no país, com os primeiros casos de
As instituições e fontes que financiaram pesquisas
transmissão interna registrados em 2014. Para as
sobre doenças negligenciadas no Brasil no período
outras, como teníase e cisticercose, o mais pro-
vável é que a falta de políticas públicas para seu 69,8% 14,7%
Ministério da Saúde Fundos Setoriais
enfrentamento tenha feito com que a comunidade
científica simplesmente não se interessasse em 11,5%
Fundações
estudá-las. “Na minha percepção, quanto mais Estaduais de
vulnerável socialmente é determinada população, Apoio à Pesquisa
mais negligenciadas são as doenças que a atin-
3,6%
gem”, diz Castália. “No Brasil, por exemplo, uma Fundação Bill e
das mais esquecidas tem sido a oncocercose, que Melinda Gates
afeta exclusivamente a população Yanomami.”
0,5%
Na avaliação do imunologista João Santana da Ministérios da
Silva, da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto Educação e da
FONTE MELO,
da Universidade de São Paulo (FMRP-USP), os G.B.T. ET AL. PLOS Ciência, Tecnologia
NEGLECTED TROPICAL
resultados do estudo evidenciam a falta de pla- DISEASES. 2023
e Inovação

38 | MAIO DE 2023
Áreas de interesse
Distribuição do número de pesquisas sobre cada moléstia
no Brasil e o valor investido entre 2004 e 2020

DOENÇA ESTUDOS VALOR (PPP* – EM US$ MILHÕES)


Dengue 232
Leishmaniose 272
Tuberculose 205
Doença de Chagas 127
Malária 118
Hanseníase 147
Esquistossomose 64
Outras 12
Helmintíases 17
Chikungunya 41
Teníase e cisticercose 5
Filariose linfática 14
Raiva 5
Equinococose 2
Tracoma 1
Oncocercose 1
0,0 10,0 20,0 30,0 40,0 50,0 60,0 70,0

* Paridade de Poder de Compra, métrica usada para equiparar moedas de diferentes países de acordo com sua capacidade de adquirir bens e serviços.
FONTE  MELO, G.B.T. ET AL. PLOS NEGLECTED TROPICAL DISEASES. 2023

nejamento dos esforços governamentais nessa e de avaliação e aprimoramento dos serviços de


área. “Estamos sempre correndo atrás do prejuí- saúde receberam apenas 7% dos recursos totais.
zo, dando prioridade às doenças mais urgentes Os resultados reforçam os achados de outro
do momento, sem resolver os problemas causa- trabalho, publicado em fins de 2020 na revista
dos pelas anteriores”, comenta. A parasitologis- Tropical Medicine and International Health por
ta Angela Kaysel Cruz, também da FMRP-USP, pesquisadores do Centro de Desenvolvimento
acrescenta que certas doenças costumam ser mais Tecnológico em Saúde da Fundação Oswaldo
negligenciadas do que outras, e isso pode resul- Cruz (CDTS-Fiocruz), no Rio de Janeiro. Foram
tar em um desequilíbrio nos investimentos para analisados os investimentos em pesquisas sobre
pesquisas. “Algumas têm mais dificuldade para sete doenças negligenciadas incluídas na Agenda
atrair o interesse dos pesquisadores, que prefe- Nacional de Prioridades de Pesquisa em Saúde do
rem concentrar seus esforços em temas para os Brasil pelo MS e sua correlação com a carga dessas
quais há mais recursos e interesse da comunidade doenças na população. Dos 4.817 estudos iden-
internacional”, ela diz. Esse fenômeno criaria um tificados, 30% eram pesquisa biomédica básica.
círculo vicioso, segundo Silva, no qual a falta de “O apoio à pesquisa biomédica básica é impor-
dinheiro para pesquisas sobre determinada doen- tante para a obtenção de respostas para problemas
ça resulta em um baixo interesse dos cientistas envolvendo essas moléstias, mas elas não abordam
por estudá-las. “Com isso, deixa-se de produzir fatores sociais e contextuais que contribuem para
novos conhecimentos e de formar cientistas es- que elas persistam como um problema de saúde
INFOGRÁFICOS  ALEXANDRE AFFONSO / REVISTA PESQUISA FAPESP

E
pecializados nessas moléstias.” pública em muitas regiões do Brasil”, comen-
ta a bióloga Bruna de Paula Fonseca, do CDTS-
sse efeito foi captado no estudo pu- -Fiocruz, uma das autoras do estudo. “Trabalhos
blicado na PLOS Neglected Tropical centrados no comportamento epidemiológico da
Disease. Os autores identificaram doença ou no aperfeiçoamento de seu diagnósti-
uma alta concentração de recursos co, prevenção e tratamento também são cruciais
para trabalhos em biomedicina bá- para a redução da carga dessas doenças para pa-
sica (81,6% do total), desenvolvidos tamares que causem menos danos individuais e
em laboratório e majoritariamente voltados à in- coletivos”, completa Castália. n
vestigação dos mecanismos de ação dos patógenos
e desdobramentos da infecção no organismo. En- O projeto e os artigos científicos consultados para esta reportagem
quanto isso, pesquisas de caráter epidemiológico estão listados na versão on-line.

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BOAS PRÁTICAS

O milagre da A
Clarivate Analytics, empresa responsá-
vel pela base de dados acadêmicos Web
of Science (WoS), anunciou em março

multiplicação sanções contra cerca de 50 revistas científicas


que fazem parte de sua extensa seleção. Elas des-

de artigos
respeitaram normas de qualidade exigidas pela
companhia e perderão uma credencial fundamen-
tal para atrair novos autores: foram excluídas do
Journal Citation Report (JCR), plataforma que
Prática controversa, a publicação de determina o fator de impacto de periódicos, me-
milhares de papers em edições especiais dida consagrada para mensurar a sua visibilidade
e repercussão ao calcular quantas citações seus
de periódicos levanta suspeitas sobre artigos receberam em outros estudos.
rigor na avaliação de seu conteúdo Esse tipo de exclusão acontece todos os anos,
mas, em 2023, chamou a atenção por incluir 21
títulos de duas editoras de acesso aberto que se
notabilizaram por um rápido crescimento. A pu-
nição também põe sob escrutínio uma prática dis-

40 | MAIO DE 2023
seminada nessas empresas que já era considerada cerca de 20 mil artigos em seus primeiros 15 anos,
controversa: a publicação de números especiais mas começou a multiplicar a produção a partir
temáticos organizados por editores convidados, de 2015. Em 2021, foram 240,5 mil trabalhos,
sem vínculo formal com os seus quadros, que cos- cobrando uma taxa média de processamento de
tumam gerar uma enorme quantidade de artigos 1.258 francos suíços (o equivalente a R$ 6,9 mil)
e, em alguns casos, não seguem o mesmo rigor por paper. Em 2023, seus dois principais títulos,
na avaliação das edições regulares. Sustainability e International Journal of Molecular
Dezenove revistas excluídas são da Hindawi, Sciences, deverão publicar cada um cerca de 3,5
que edita cerca de 250 periódicos de acesso aber- mil edições especiais – nove por dia.
to – 64 deles estavam indexados na WoS. A em-

U
presa, fundada no Cairo, Egito, em 1997, hoje ma análise feita por Paolo Crosetto, do
pertence à norte-americana John Wiley & Sons. Instituto Nacional de Pesquisa em Agri-
Outras duas publicações punidas são da MDPI, cultura, Alimentação e Meio Ambiente
sediada na Basileia, Suíça, responsável por 390 da França, e Pablo Gómez Barreiro, do Jardim
periódicos. Um dos que receberam sanção foi o Botânico Real de Kew, em Londres, mostrou que
International Journal of Environmental Research apenas em 2022 uma centena de periódicos do
and Public Health, que publicou cerca de 17 mil MDPI lançou 17 mil edições especiais com um
artigos em 2022. Seu último fator de impacto foi total de 187 mil artigos. A dupla avaliou o tempo
de 4.614, desempenho notável para um título com que demorou para que o mérito dos papers fosse
produção tão extensa. avaliado, entre a submissão da primeira versão do
A Clarivate não forneceu detalhes sobre os pro- texto e a sua publicação. O prazo médio foi de 37
blemas encontrados em cada caso, mas a editora dias, ante mais de 200 dias das revistas de acesso
chefe e vice-presidente da WoS, Nandita Quaderi, aberto da coleção PLOS. “Não tenho provas de
informou que o uso de uma ferramenta de inte- que eles fizeram algo errado”, disse Crosetto à
ligência artificial capaz de detectar mudanças Science. “Mas é lógico que a confiança fica com-
atípicas no desempenho de periódicos apontou prometida quando você delega a responsabili-
500 que mereciam ser investigados. Segundo ela, dade a um editor convidado qualquer”, afirma,
foi possível reunir evidências de que ao menos 50 referindo-se a casos documentados de conflitos
deles não estavam cumprindo os padrões exigi- de interesse e revisão por pares fraca e até frau-
dos de avaliação. “Nos últimos meses, tomamos dulenta nesse tipo de título. Carlos Peixeira Mar-
medidas proativas adicionais para combater as ques, da Universidade de Trás-os-Montes e Alto
crescentes ameaças à integridade do registro aca- Douro, em Vila Real, Portugal, disse à Science que
dêmico”, afirmou Quaderi em um comunicado. a MDPI o convidou várias vezes para atuar co-
“Quando determinamos que um periódico não mo editor de números especiais em áreas como
atende mais aos nossos critérios de qualidade, agricultura e engenharia, mas nunca em negó-
temos a responsabilidade de agir.” cios e turismo, que são suas áreas de pesquisa.
No final do ano passado, a Hindawi anunciou a “O volume insano de edições especiais torna im-
suspensão temporária de edições especiais. Isso possível manter um padrão mínimo de avaliação
depois de identificar em várias delas a publicação por pares”, afirmou.
de centenas de trabalhos fraudulentos, produ- Em um comunicado, a MDPI atribuiu a re-
zidos por “fábricas de papers”, serviços ilegais moção a um critério relacionado à “relevância
que criam manuscritos sob encomenda, em geral de conteúdo”. Em manifestações anteriores, a
com dados ou imagens falsas. Em outubro, mais empresa defendeu seu modelo com o argumen-
de 500 artigos de 16 títulos da editora foram re- to de que a revisão expressa permite aos auto-
tratados por manipulação na revisão por pares. res difundirem rapidamente seus resultados de
As investigações tiveram início em abril, após pesquisa, e o trabalho de editores convidados é
o editor-chefe de uma das revistas da Hindawi útil para dar treinamento a jovens pesquisadores
ter manifestado preocupação sobre o conteúdo em processos de comunicação científica. Giulia
de uma edição especial. Pareceres de revisores Stefenelli, presidente do Conselho Científico do
tinham textos duplicados. Também houve casos MDPI, disse à revista Times Higher Education
de pareceristas que participaram da avaliação de que as edições especiais “são iniciadas por pes-
muitos manuscritos e de outros que entregaram quisadores experientes em disciplinas específi-
LAWRENCE THORNTON / GETTY IMAGES

suas revisões muito rapidamente. A Hindawi re- cas como uma oferta à comunidade acadêmica”.
latou um prejuízo de US$ 9 milhões com a pausa Segundo ela, os periódicos avaliam propostas de
nas edições especiais entre novembro e janeiro. edições especiais formuladas por cientistas e os
O modelo das edições especiais também foi res- artigos selecionados são submetidos a uma revi-
ponsável pelo crescimento exponencial da MDPI, são por pares rigorosa, com uma taxa de rejeição
fundada há apenas 13 anos e hoje a quarta maior de manuscritos “próxima da marca de 50%”. n
editora científica do mundo. A empresa publicou Fabrício Marques

PESQUISA FAPESP 327 | 41


Autor de mais de 700 artigos é suspenso
por 13 anos por infração contratual

U
m dos mais prolíficos pesquisado- áreas como nanomateriais, nanocatálise recursos para viagens e hospedagens,
res da Espanha, o químico Rafael e química verde, que já receberam mais além de dinheiro para pesquisa.
Luque Alvarez de Sotomayor re- de 29 mil citações. Só nos três primeiros Sua produtividade extraordinária
cebeu uma punição severa da Universi- meses de 2023, ele já publicou 58 papers atraiu a atenção de especialistas em má
dade de Córdoba, onde se doutorou em – um a cada 37 horas. Desde 2018, figura conduta. O engenheiro britânico Nick
2005 e, desde então, trabalhava como na lista dos pesquisadores altamente ci- Wise, por exemplo, diz que um dos tra-
docente do Departamento de Química tados do mundo produzida pela empresa balhos assinados por Luque foi anun-
Orgânica. Ele foi suspenso de suas fun- Clarivate. Tais credenciais são valoriza- ciado em um site que vende coautoria
ções, sem direito a vencimentos, pelos das por rankings como o da Shangai Jiao de papers para interessados. O químico
próximos 13 anos. A sanção, que em ter- Tong University, da China, que conferem diz que jamais compraria um artigo, mas
mos práticos equivale a uma demissão, pontos extras a instituições com pesqui- admite que não conhece alguns dos ira-
foi aplicada porque Luque também tra- sadores altamente prolíficos. Luque foi nianos que assinam como coautores. Já
balhava em duas instituições no exterior, convidado a integrar os quadros das uni- o matemático russo Alexander Maga-
a Universidade King Saud, em Riad, ca- versidades da Arábia Saudita e da Rússia zinov afirma que algumas publicações
pital da Arábia Saudita, e a Universidade justamente para reforçar a posição delas de Luque contêm “frases torturadas”,
RUDN, em Moscou, na Rússia, embora em rankings. Ele precisa ir às instituições expressões que parecem mal traduzi-
fosse contratado em regime de tempo poucas semanas por ano, mas as mencio- das e aparecem em textos que tentam
integral em Córdoba. na nos artigos que assina. “Sem mim, a escamotear a prática de plágio (ver Pes-
Para além da infração contratual, o Universidade de Córdoba vai cair 300 quisa FAPESP nº 317). O espanhol nega
caso é revelador de um tipo de estraté- posições no ranking de Shangai. Eles de- irregularidades, mas admite que, nos
gia anômala adotada por universidades ram um tiro no pé”, disse Luque a propó- últimos meses, tem usado o software
para ascender em rankings acadêmicos sito da punição, segundo o jornal El País. de inteligência artificial ChatGPT para
internacionais. Luque, de 44 anos, tem Ele atribuiu a sanção à “inveja pura” e auxiliá-lo. “Agora consigo escrever em
uma produção extraordinariamente ele- garantiu que nunca recebeu salário das um dia artigos que antes exigiam dois ou
vada. Escreveu mais de 700 artigos, em universidades estrangeiras, mas apenas três dias de dedicação”, disse ao El País.

Transparência em casos de
assédio sexual na Austrália

A
Universidade de Melbourne, na Austrália, registrou 11 de-
núncias de má conduta sexual contra funcionários e pro-
fessores em 2022. Nove foram investigadas formalmente,
o que resultou na demissão de quatro indivíduos e na instauração
de processos disciplinares contra outros dois. Na maioria dos casos,
as denúncias partiram de mulheres – funcionárias e estudantes – e
tinham como alvo homens. Os números constam da segunda edi-
ção do relatório anual sobre má conduta sexual da universidade,
divulgado no final de março. A instituição registrou 20 queixas
contra estudantes, as quais resultaram em sete suspensões.
“Esperamos que as medidas que estamos adotando e a trans-
parência que estamos dando a esse assunto ajudem a aumentar a
confiança em nossos sistemas e processos voltados para erradicar
esse problema da nossa comunidade”, afirmou Nicola Phillips, rei-
tora da instituição. Segundo ela, um programa educacional criado
para fomentar um ambiente seguro e respeitoso na universidade
já teve a participação de mais de 4.500 funcionários. Casos de
assédio sexual são comuns em escolas de ensino superior austra-
lianas. Uma pesquisa com 44 mil alunos de graduação do país em
2022 descobriu que 1,1% deles sofreu abuso sexual nos 12 meses
anteriores ao levantamento – o índice chega a 5% ao longo da vida
universitária (ver Pesquisa FAPESP nº 316). De acordo com o le-
vantamento, mais de 85% dos agressores eram do sexo masculino
e 5% funcionários das universidades.

42 | MAIO DE 2023
DADOS Colaborações internacionais nas
publicações científicas de São Paulo

Nos últimos 10 anos, o A participação no total Em números absolutos3, O crescimento no período


percentual de colaboração das publicações passou de correspondiam, no primeiro para as publicações em
internacional nas 27,1% para 45,5%, entre período, a 4.824 do total de colaboração (162%) foi
publicações científicas1,2, os quadriênios 2009-2012 17.824 publicações com quase três vezes maior do
com autores sediados em e 2019-2022 autores sediados no estado e, que para o total (55%)
São Paulo, aumentou de no segundo, chegaram a
forma contínua e significativa 12.617 das 27.732 publicações

Publicações científicas de São Paulo com colaboração internacional e sua participação no total
Médias anuais, quadriênios (2009-2012 a 2019-2022)

14.000 n Publicações de São Paulo com colaboração internacional


44,4% 45,5%
12.000 % participação no total de publicações 43,0%
41,6%
10.000 39,9%
37,7%
8.000 35,2%
32,4%
30,2%
6.000 28,4%
27,1%
4.000

2.000

0
2009-2012 2010-2013 2011-2014 2012-2015 2013-2016 2014-2017 2015-2018 2016-2019 2017-2020 2018-2021 2019-2022

As colaborações com países com maior número de O país cuja participação mais cresceu França (+125%) e Argentina
coautorias com pesquisadores de São Paulo também foi a Austrália, que passou de 268 (+100%) também ampliaram
cresceram significativamente, como é o caso do para 1.212 publicações, com variação o número de coautorias, mas em
principal deles, os Estados Unidos. As parcerias com de 352%, movendo-se da 12ª para ritmo menor que outros países,
São Paulo atingiram 5.185 publicações no quadriênio a 8ª posição nesse grupo de países levando-os a perder posições no
2019-2022, ou seja, 41,1% do total das publicações grupo: a França de 2º para 5º
do estado com colaboração internacional4 e a Argentina de 8º para 15º lugar

Publicações de São Paulo com principais países colaboradores no período 2019-2022


Médias anuais – quadriênios (2009-2012/2019-2022)

6.000

5.000 n 2009-2012 n 2019-2022

4.000

3.000

2.000

1.000

0
EUA Reino Unido Alemanha Espanha França Itália Canadá Austrália Portugal China Holanda Suíça Japão Índia Argentina

NOTAS (1) PUBLICAÇÕES DAS CATEGORIAS ARTICLE, PROCEEDING PAPER E REVIEW DA BASE WEB OF SCIENCE/CLARIVATE. (2) UMA PUBLICAÇÃO É CONSIDERADA COLABORAÇÃO INTERNACIONAL SE, ALÉM DOS AUTORES SEDIADOS
NO ESTADO DE SÃO PAULO, HOUVER AUTORES SEDIADOS EM OUTROS PAÍSES. (3) OS VALORES ABSOLUTOS CORRESPONDEM ÀS MÉDIAS ANUAIS DO PERÍODO CONSIDERADO. (4) UMA PUBLICAÇÃO PODE TER AUTORES DE VÁRIOS
PAÍSES, PORTANTO. A SOMA DAS PARCIAIS DOS PAÍSES PODE SER MAIOR DO QUE O TOTAL DE PUBLICAÇÕES COM COLABORAÇÃO INTERNACIONAL PARA SÃO PAULO.

FONTES INCITES/WEB OF SCIENCE/CLARIVATE. DADOS BAIXADOS EM 04/04/2023 ELABORAÇÃO FAPESP, DPCTA/GERÊNCIA DE ESTUDOS E INDICADORES

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AMBIENTE

VOÇOROCAS
 RASGANDO CIDADES
Pesquisadores alertam há anos que crateras gigantes como
as de Buriticupu, no Maranhão, cresceriam se não houvesse
drenagem e ocupação adequada do solo

Sarah Schmidt

A
o percorrer Buriticupu, no oeste As fendas que se agigantam com as chuvas in-
maranhense, em 2015 e 2016, o tensas não são fenômenos exclusivos dessa região.
geógrafo Marcelino Silva Farias Também conhecidas como boçorocas ou bura-
Filho, da Universidade Federal cões, as voçorocas se formam em áreas urbanas
do Maranhão, contou ao menos 15 e rurais das cinco regiões do país. No estado de
crateras gigantes rasgando o chão São Paulo, um relatório técnico do Instituto de
da área urbana do município. Ele e Pesquisas Tecnológicas (IPT), apresentado em
seus estudantes também ouviram 2015 em um congresso realizado em Natal, no
relatos de moradores cujas casas Rio Grande do Norte, identificou 1.398 processos
tinham sido engolidas pelas voçorocas, fenômeno erosivos em áreas urbanas de 326 municípios,
erosivo em que a água da chuva concentrada dos quais 949 foram classificados como voçoro-
escava grandes buracos em solos mais frágeis e cas e 449 como ravinas, como são chamados os
atinge o lençol freático. Dependendo do volume processos erosivos com profundidade acima de
de água e das condições geológicas, elas podem 1 metro (m), que podem evoluir para voçorocas.
se expandir rapidamente. Nas áreas rurais paulistas, foram cadastrados
Casas em encostas dos morros nos bairros San- 39.864 processos erosivos de 593 municípios, dos
tos Dumont, Vila Isaías e Caeminha corriam risco quais 30.004 se enquadravam como voçorocas e
de deslizamento. Muitos moradores que pode- 9.860 como ravinas. De acordo com esse estudo,
riam perder suas casas foram remanejados de ou- a predominância de voçorocas em áreas urbanas
tros lugares da cidade ameaçados por voçorocas. seria um indício de formas inadequadas de ocu-
“Quando concluímos o trabalho, procuramos as pação e de drenagem do solo, e, nas áreas rurais,
autoridades públicas da cidade para avisar que do uso agrícola, sem a utilização de técnicas de
a situação iria piorar, mas não deram atenção”, conservação do solo e da vegetação nativa.
afirma. Piorou. As condições que levam à formação de voço-
Em 24 de março de 2023, após chuvas intensas, rocas variam de acordo com a localidade, o tipo
o Ministério Público do Maranhão havia acionado de solo, a inclinação do terreno e o volume de
juridicamente o município pelo descumprimen- água que ele recebe. Em geral, elas começam
to de um acordo judicial, de abril de 2022, que como sulcos menores, que podem evoluir para
previa a implantação de uma série de medidas ravinas e, depois, voçorocas.
para evitar o avanço dos processos de erosão e “Considerando o desmatamento e o uso ina-
garantir a segurança dos moradores das áreas de dequado do solo, se a água da chuva é lançada de
risco. No dia 26, a prefeitura do município de- forma concentrada em uma velocidade acima do
clarou estado de calamidade pública por causa que o solo suporta, começa o processo erosivo”,
de 23 voçorocas que chegavam a 70 metros (m) explica o tecnólogo em construção civil Claudio
MARCELINO FARIAS / UFMA

de profundidade e 600 m de extensão e amea- Luiz Ridente Gomes, um dos autores do relató-
çavam 880 pessoas em 220 casas localizadas em rio do IPT.
encostas da cidade. Dois dias depois, o Ministé- Em Buriticupu, as voçorocas urbanas decor-
Voçoroca no bairro
Santos Dumont, em rio de Integração e Desenvolvimento Regional rem de uma combinação de fatores resultantes
Buriticupu, em 2018 reconheceu o estado de calamidade. das condições naturais e da ocupação humana.

PESQUISA FAPESP 327 | 45


São eles: geologia frágil, com solos suscetíveis à estadual informou que o Corpo de Bombeiros
erosão, pobres em nutrientes e formados sobre Militar do Maranhão, “como medida prioritária,
rochas sedimentares menos resistentes; volume auxiliou a operação de isolamento da área e re-
intenso de chuvas, ou seja, por volta de 2 mil litros tirada de famílias da área de risco”.
por metro quadrado por ano; e urbanização com Houve outros alertas: em dois estudos, de 2014
planejamento inadequado e sem canalização ade- e 2018, o Serviço Geológico do Brasil (SGB) apon-
quada da água pluvial, de acordo com dois artigos tou o risco de expansão de voçorocas de Buriti-
de Farias Filho publicados em janeiro e março cupu e estimava que aproximadamente 1,4 mil
de 2019 nas revistas GeoUECE e Geografia em pessoas viviam em 10 locais identificados como
Atos. Segundo o pesquisador, há relatos de áreas de alto risco geológico.
atingidas há pelo menos 50 anos naquela região.
O solo do município é ácido (pH em torno de DESVIANDO A CHUVA
4), uma característica comum em regiões tropi- Para amenizar a expansão das voçorocas, segundo
cais, com baixos teores de alumínio, que ajudaria Farias Filho, é preciso canalizar o fluxo da água
a agregar os sedimentos, e alta concentração de da chuva, isolar as áreas de risco, retirar seus mo-
hidrogênio, que auxilia a dispersar os materiais radores e fazer obras para direcionar a água das
do solo, favorecendo a erosão, de acordo com o ruas para áreas mais baixas da periferia da cidade.
artigo da Geografia em Atos. Nas encostas, o relevo O geógrafo Jurandyr Ross (ver Pesquisa FA-
torna-se mais irregular, com desníveis acentuados. PESP no 302), da Universidade de São Paulo (USP),
Nos últimos anos, a cidade cresceu de forma que já acompanhou voçorocas em outras regiões
desordenada, em direção às bordas do platô on- do país, complementa: “Existem muitas técnicas
de o município se originou. “As ruas tornam-se de engenharia para conter a água das chuvas, mas
canais que escoam a água pela sarjeta em dire- custam caro”. Caixas de retenção, por exemplo,
ção às bordas do platô abrindo e expandindo as podem armazenar a água temporariamente, redu-
voçorocas”, comenta Farias Filho. zir sua velocidade e depois direcioná-la para um
Muitas dessas encostas se enquadram como rio ou córrego, por meio de canais de escoamento.
Áreas de Preservação Permanente (APP), de acor- A canalização, por si só, pode ser insuficien-
do com o Código Florestal Brasileiro e, portan- te, já que nem sempre a água escoa para o local
to, deveriam ser protegidas, ressalta o artigo da desejado. “Um dos grandes problemas dos sis-
GeoUECE. O pesquisador conta que a prefeitura temas pluviais é que muitos terminam no meio
o convidou em 2022 para se reunir com um grupo do caminho e não chegam até um curso d’água”,
de trabalho e estudar ações para conter o avan- conta o geógrafo Antônio Vieira, da Universida-
ço das voçorocas. “Apresentei os resultados de de Federal do Amazonas (Ufam). “Em meados
nossas pesquisas em maio de 2022, mas depois da década de 1990, em um conjunto habitacional
não soube se os trabalhos avançaram”, ele relata. da zona norte de Manaus, a água foi desviada de
Questionada sobre o encontro e seus desdobra- uma voçoroca e conduzida para o outro lado da
mentos, a prefeitura não se pronunciou. Por meio mesma encosta. Resultado: surgiram duas voço-
de nota enviada a Pesquisa FAPESP, o governo rocas novas nesse lugar.”

COMO O SOLO SE ABRE


A água da chuva se acumula e as camadas superficiais do terreno colapsam

1 A água da chuva penetra em solos 2 O acúmulo de água satura o solo 3 Em áreas urbanas, estradas e rodovias,
porosos e se acumula sobre rochas ou solos e acelera a erosão, aprofundando a erosão, a partir dos pontos de chegada
menos permeáveis. O fluxo de água e alargando a vala da água da chuva, é também superficial.
subterrâneo geralmente forma um túnel Os processos subsuperficiais somados aos
superficiais levam à formação de grandes
valas, que crescem continuamente

Fluxo Túnel erosivo


Solo MENOS subsuperficial
resistente

Solo MAIS
resistente

FONTES MARCELINO FARIAS FILHO / UFMA, JURANDYR ROSS / USP

46 | MAIO DE 2023
Crateras em 2014 (à Em um artigo publicado em dezembro de 2022 tora do trabalho. “Por isso, ao pensar em ações
esq.) e 2022: expansão na Revista do Instituto de Geociências –USP, Viei- de contenção e de mitigação, é preciso ver o to-
em direção à periferia
de Buriticupu
ra caracteriza três voçorocas que se formaram na do. Caso contrário, se cuidamos apenas de uma,
área urbana da cidade de Rio Preto da Eva, a cerca a tendência é que o processo erosivo retorne.”
de 80 quilômetros (km) de Manaus. Como o solo O engenheiro-agrônomo Aluísio Andrade, da
era argiloso, mais resistente à erosão, ele atribuiu Embrapa, concorda: “O primeiro passo é estu-
as crateras à expansão urbana e consequente falha dar a região para fazer um diagnóstico do pro-
na drenagem da água pluvial. De julho de 2019 cesso erosivo e, assim, traçar um planejamento
a julho de 2021, a maior delas aumentou de 116 personalizado”. Dependendo do caso, é possível
m para 127 m de comprimento e de 17,9 m para combinar práticas mecânicas – como a realoca-
22,9 m de profundidade. “Pelo menos duas casas ção da terra, obras de contenção e drenagem – e

A
correm o risco de ser engolidas”, alerta. cobertura vegetal.
Foi o que uma equipe da Empresa Brasilei-
s três fendas causaram a perda de ra de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) fez em
uma área de 6.117,20 metros qua- uma voçoroca no Morro do Radar, próximo ao
drados (m2) e de 123.267,29 metros Aeroporto Internacional Tom Jobim (antigo Ga-
cúbicos (m3) de terra, acumulada leão), no Rio de Janeiro. Como descrito em um
nos canais próximos, de acordo com comunicado técnico da Embrapa de dezembro de
esse estudo. Os danos somam cerca 2005, a primeira medida foi controlar o fluxo de
de R$ 170 mil e os custos de conten- água com a construção de terraços no morro, que
ção ficariam em quase R$ 2 milhões. a desviavam e evitavam que caísse na voçoroca.
“É mais barato monitorar os riscos Em seguida, a construção de patamares corrigiu
FOTOS  GOOGLE MAPS  INFOGRÁFICO  ALEXANDRE AFFONSO / REVISTA PESQUISA FAPESP

e prevenir problemas. Quanto antes o dano for a inclinação do térreo e permitiu a reocupação
contido, melhor”, ressalta Vieira. Ele encontrou da terra com espécies de árvores de rápido cres-
voçorocas também próximas a rodovias que unem cimento, como a maricá (Mimosa bimucronata),
Manaus ao interior do estado. que pode chegar a 10 m de altura, e sabiá (Mimosa
Na bacia do córrego Palmital, entre as cidades caesalpiniaefolia), de até 8 m, também bastante
de Nazareno e Conceição da Barra, próximo a São usada na recuperação de áreas degradadas.
João Del Rei, no sul de Minas Gerais, há quase 100 “Dependendo do solo, das condições climáticas
delas, e boa parte está conectada, de acordo com e de suas dimensões, o que funciona para uma
um estudo de março de 2020 na revista científica voçoroca não funciona para outra”, ressalta An-
Catena. Portanto, a recuperação em uma única drade. Rodrigues reforça: “Cada região tem suas
voçoroca pode não ser o suficiente para deter o particularidades. Não há fórmulas prontas para
processo erosivo. lidar com as voçorocas, mas é preciso sempre
“Por meio das águas subsuperficiais e super- monitoramento, planejamento do uso do solo e
ficiais, uma voçoroca pode interferir nas outras, drenagem correta da água.” n
como um efeito cascata”, explica a geóloga Valéria
Rodrigues, da Escola de Engenharia de São Carlos Os artigos científicos consultados para esta reportagem estão listados
da Universidade de São Paulo (EESC-USP), coau- na versão on-line.

PESQUISA FAPESP 327 | 47


MICROBIOLOGIA

A carga do vírus da
dengue em Aedes
aegypti com a dupla
infecção é, em média,

TRANSMISSÃO
cinco vezes maior
do que nos mosquitos
sem PCLV e HTV

TURBINADA
N
Se infectado por dois vírus específicos a pequena carcaça de Aedes
aegypti prospera um micro-
de insetos, mosquito Aedes aegypti bioma peculiar que pode
aumentar a capacidade de o
passa a propagar mais rapidamente mosquito carregar certos ví-
dengue e zika ao homem rus e transmiti-los ao homem e a outros
animais. Segundo um trabalho publicado
Renata Fontanetto em janeiro na revista científica Natu-
re Microbiology, a chance de o vírus da
dengue estar presente em Aedes aegypti
é três vezes maior se os mosquitos esti-
verem infectados de forma simultânea
por dois vírus específicos de insetos – o
Phasi Charoen-like (PCLV) e o Humaita
Tubiacanga (HTV).
A carga do vírus da dengue nos mos-
quitos infectados por ambos os vírus de
insetos é, em média, cinco vezes maior
do que em A. aegypti sem o PCLV e o
HTV, que não são transmitidos a animais
vertebrados. O aumento de carga acelera
o ciclo de replicação do vírus da dengue
nos mosquitos, que passam a transmitir
mais rapidamente a doença e elevam o
risco de aparecimento de surtos da mo-
léstia em seres humanos.
“Vírus formados pela molécula de tificados somente em amostras de A. pulação humana, um fator de risco para
RNA, como o PCLV e o HTV, normal- aegypti. O primeiro estava presente em a eclosão de surtos.
mente competem entre si pelos recursos 61% das amostras e o segundo em 85%. Para o bioquímico José Henrique Oli-
dos insetos que infectam, mas observa- “Os mosquitos com ambos os vírus ti- veira, da Universidade Federal de Santa
mos o efeito contrário em A. aegypti”, co- nham em torno de três vezes mais chan- Catarina (UFSC), que não participou do
menta o biólogo João Trindade Marques, ce de estarem infectados com dengue estudo, o trabalho dos colegas da UFMG
da Universidade Federal de Minas Gerais do que aqueles que não carregavam o indica a importância de se determinar a
(UFMG), coordenador da equipe que fez PCLV e o HTV”, afirma o bioinformata prevalência da dupla infecção pelo ví-
o trabalho. Os dados do estudo indicam Roenick Olmo, primeiro autor do artigo, rus PCLV e HTV nas populações de A.
que, nessa espécie de mosquito, parece que defendeu doutorado na UFMG sob aegypti do país. “Dessa forma, podería-
haver uma associação positiva entre es- orientação de Marques e atualmente faz mos antever as regiões com maior pro-
ses dois vírus específicos de insetos e os estágio de pós-doutorado na Universi- babilidade de apresentar novos surtos
vírus que causam dengue e zika. dade de Estrasburgo, na França. “Em de arboviroses e intensificar a vigilância
A pesquisa teve início com a análise um surto de dengue, geralmente de 2% para reduzir o contingente de mosquitos
dos tipos de vírus de RNA encontrados a 3% dos mosquitos estão infectados vetores”, diz Oliveira.
em 815 mosquitos adultos coletados em com o vírus da doença. Mas, no material O próximo passo dos estudos da equi-
seis países de quatro continentes: Brasil, de Caratinga, 5% de A. aegypti estavam pe da UFMG é tentar identificar os me-
Suriname, França, Gabão, Senegal e Sin- com dengue, ou seja, uma porcentagem canismos que levam ao estabelecimento
gapura. As amostras vieram de A. aegyp- acima do normal.” da dupla infecção pelo PCLV e HTV nos
ti e de Aedes albopictus, espécies cujas A etapa seguinte da pesquisa levou mosquitos, principalmente os genes en-
fêmeas transmitem arboviroses, como a equipe da UFMG a produzir evidên- volvidos nesse processo. Assim, talvez
dengue, zika e chikungunya. A primei- cias laboratoriais de que a coin- seja possível descobrir por que
ra é mais predominante em ambientes fecção por PCLV e HTV a presença de ambos os
urbanos; a segunda, em áreas rurais e de afeta a replicação dos vírus torna A. aegyp-
transição entre o campo e a cidade. No vírus da dengue e da Mosquitos de ti mais competen-
total, foram identificados 12 vírus, cinco zika no interior do te para transmitir
completamente novos e sete já conheci- mosquito. Linha- áreas da América do Sul dengue e zika pa-
dos, no material genético de A. aegypti. gens diferentes e da Ásia com alta ra o homem. Um
Os dois vírus encontrados com mais de fêmeas de A. primeiro acha-
frequência na análise, o PCLV e HTV, aegypti foram ge- incidência de dengue do nesse senti-
são exclusivos de A. aegypti e estavam radas em labora- do já foi obti-
presentes em mais da metade das amos- tório a partir de e de zika tendiam a ter do. A equipe de
tras. O HTV foi descoberto em 2015 no uma população de Marques consta-
dupla infecção por
Brasil. As cargas virais mais elevadas mosquitos da natu- tou que o padrão
de ambos os vírus vinham de mosqui- reza – uma com a du- PCLV e HTV de expressão (ativa-
tos coletados em localidades com alta pla infecção por PCLV ção) de uma das pro-
incidência de dengue e zika na Améri- e HTV, outra sem ambos teínas responsáveis pelo
ca do Sul (Brasil e Suriname) e na Ásia os vírus – e foram postas para empacotamento do material
(Singapura). Nas Américas, o Brasil foi se alimentar do sangue de camundon- genético de A. aegypti no núcleo de suas
o país com mais casos de dengue e zika gos infectados com os vírus da dengue células, a histona H4, é alterado em mos-
em 2022: 2,3 milhões e 34,1 mil, respecti- e da zika. Em comparação ao grupo que quitos com dengue que apresentam a du-
vamente, segundo dados da Organização não foi infectado pelo PCLV e HTV, os pla infecção por PCLV e HTV. Os dados
Pan-americana da Saúde (Opas). Essa mosquitos com a dupla infecção apre- do grupo sugerem que, quando a histona
coincidência levou a equipe do estudo sentaram cargas virais de dengue e de H4 é menos expressa, o vírus da dengue
a formular uma hipótese: a presença zika cerca de cinco vezes maior. parece se replicar mais lentamente nos
do PCLV e do HTV poderia favorecer O trabalho ainda constatou que a pre- mosquitos. Em estudos futuros, a histona
a transmissão de arboviroses pelas fê- sença do PCLV e do HTV no mosquito H4 pode ser um alvo a ser testado como
meas do mosquito. encurta entre um e cinco dias o período uma forma de modulação da capacida-
Para testar essa ideia, os pesquisado- de incubação extrínseco do vírus da zika de do mosquito de transmitir dengue e
res fizeram uma nova análise em amos- – tempo necessário para que o inseto se outras doenças. n
tras de RNA de 515 exemplares de A. torne capaz de infectar o homem ou um
LAUREN BISHOP / CDC

aegypti e 24 de A. albopictus, coletados animal com o patógeno. Segundo mo-


Artigo científico
entre 2010 e 2011 na cidade mineira de delos matemáticos, a diminuição desse
OLMO, R. P. et al. Mosquito vector competence for dengue
Caratinga. Os resultados reforçaram a período em dois dias leva a um número is modulated by insect-specific viruses. Nature Micro-
hipótese. O PCLV e o HTV foram iden- de infecções cinco vezes maior na po- biology. 5 jan. 2023

PESQUISA FAPESP 327 | 49


IMUNOLOGIA

ANTICORPOS
CONTRA A
FEBRE AMARELA
Roedores e macacos tratados com
Na ausência de anticorpos,
células de rim de macaco
infectadas pelo vírus da
febre amarela morrem e se
agrupam formando pontos
azuis (linhas A, B, C e H);
na presença dos anticorpos
os compostos sobreviveram à infecção MBL-YFV-01 (linhas D e E)
e MBL-YFV-02 (linhas F e G),
pelo vírus causador da doença mesmo em concentrações
decrescentes (da esq. para
a dir.), o vírus não consegue
Ricardo Zorzetto infectar as células

50 | MAIO DE 2023
U
ma colaboração internacional as pessoas adoecem gravemente e preci- repetiu os experimentos com macacos
da qual participaram pesqui- sam ser internadas, a terapia consiste em rhesus, nos quais a infecção costuma ser
sadores da Universidade de adotar medidas de suporte para manter mais agressiva e matar a partir do tercei-
São Paulo (USP) e da Fun- o corpo hidratado e evitar hemorragias e ro dia, e obteve resultados semelhantes.
dação Oswaldo Cruz (Fio- sinais de lesão renal. A melhor proteção “Pela capacidade de neutralização do
cruz), no Rio de Janeiro, identificou dois contra a doença é a vacina, elaborada vírus que demonstraram, esses anticor-
anticorpos humanos com o potencial com o vírus atenuado (enfraquecido). pos estão prontos para ir para os testes
de tratar a febre amarela, uma doença Desenvolvida há quase um século, ela é clínicos”, afirma Kallás, que atualmente
que mata de 20% a 50% das pessoas que eficaz e segura. Algumas semanas após dirige o Instituto Butantan. “Em uma
desenvolvem sua forma grave. Admi- a imunização, ela evita que quase 100% próxima fase, talvez seja interessante
nistradas a roedores e macacos, as duas dos vacinados desenvolvam a forma gra- usar os dois anticorpos combinados, por-
moléculas permitiram aos animais so- ve da doença. Embora faça parte do pro- que cada um deles reconhece uma região
breviver à infecção pelo vírus causador grama de vacinação de cerca de 40 países diferente do envelope do vírus”, propõe
dessa febre hemorrágica que danifica o onde a infecção é endêmica, entre eles Bonaldo, da Fiocruz.
fígado e os rins e, com menor intensida- o Brasil, a proporção de pessoas que a Antes do início dos testes em seres
de, o coração e os pulmões. Os não trata- tomam é baixa. Dados da Organização humanos, porém, será preciso superar
dos, que integravam o grupo de controle, Pan-americana da Saúde (Opas) indi- um gargalo comum no desenvolvimen-
adoeceram gravemente e tiveram de ser cam que, em média, metade das pessoas to de medicamentos e vacinas no Brasil:
sacrificados cerca de uma semana após a nessas nações recebe o imunizante, que produzir os anticorpos seguindo as boas
infecção experimental pelo vírus. pode causar um evento adverso raro. Em práticas de manufatura, exigidas pelas
“Para nossa surpresa, os anticorpos aproximadamente 1 em cada 250 mil agências sanitárias para os compostos a
ofereceram proteção total contra a febre vacinados, o vírus pode adquirir nova- serem usados por seres humanos. “Ho-
amarela”, conta o infectologista Esper mente a capacidade de se multiplicar e je, produzir no exterior um lote-piloto
Kallás, da USP, um dos autores do estudo, causar a forma grave da doença. desses anticorpos para os testes clínicos

D
publicado em março na revista Science custa no mínimo US$ 5 milhões”, relata
Translational Medicine. Como os efeitos e volta aos Estados Unidos, o infectologista da USP.
observados em organismos de outras es- Watkins entrou em contato “Caso se mostrem eficientes em en-
pécies nem sempre são os mesmos que com a imunologista Laura saios com seres humanos, esses anti-
ocorrem em seres humanos, ainda são Walker, atualmente na em- corpos podem representar um grande
necessários testes com pessoas para con- presa Adagio Therapeutics, avanço na terapia da febre amarela”,
firmar os resultados e, se tudo sair como que havia isolado cerca de 1.200 anticor- comenta o médico e virologista Pedro
o esperado, em algum tempo, tornar o pos diferentes produzidos pelo organis- Vasconcelos, do Instituto Evandro Cha-
uso desses anticorpos uma terapia efe- mo de pessoas vacinadas. A equipe de gas (IEC) e Universidade do Estado do
tiva contra a febre amarela. Watkins selecionou os 37 anticorpos mais Pará (Uepa), em Belém, no Pará, que
A busca por um tratamento à base de promissores e, em laboratório, testou a não participou da pesquisa. Provocada
anticorpos para controlar a doença come- capacidade de cada um deles bloquear por um vírus da família Flaviviridae, a
çou há cerca de seis anos, durante o surto a ação do vírus da vacina. Os cinco que mesma dos causadores de dengue e da
de 2016-2019, o mais grave registrado no se saíram melhor foram encaminhados zika, a febre amarela atinge a cada ano
Brasil nas últimas oito décadas, no qual para a bióloga Myrna Bonaldo, no Rio cerca de 200 mil pessoas no mundo e
2.237 pessoas adoeceram e 759 morreram. de Janeiro. Na Fiocruz, o grupo de Bo- se manifesta em duas fases. A primei-
Em visita ao Hospital das Clínicas da USP, naldo testou o poder de esses anticorpos ra, chamada de infecciosa, dura três ou
o patologista David Watkins, da Univer- neutralizarem quatro cepas do vírus que quatro dias e causa febre alta, calafrios,
sidade George Washington, nos Estados circularam entre 2008 e 2019 no Brasil. cansaço, dor de cabeça, dor muscular,
LIDIANE MENEZES / LABORATÓRIO DE BIOLOGIA MOLECULAR DE FLAVIVÍRUS / FIOCRUZ

Unidos, coautor do estudo e antigo co- Dois dos anticorpos avaliados na Fio- náuseas e vômitos. Na fase seguinte, a
laborador dos pesquisadores brasileiros, cruz, o MBL-YFV-01 e o MBL-YFV-02, viscerotrópica, o vírus se aloja em ór-
acompanhou o caso de pessoas infectadas revelaram-se de especial interesse por gãos como rins, fígado, coração e pul-
com o vírus que chegavam caminhando neutralizarem bem o vírus e seguiram mão e causa danos que podem ser fatais.
ao serviço de saúde e dias mais tarde pre- para a fase de teste em animais. Admi- “Dispor de anticorpos monoclonais para
cisavam ser intubadas e submetidas à he- nistrados isoladamente e em dose única evitar a evolução da fase infecciosa para
modiálise, para suprir o papel de órgãos a hamsters três dias após a infecção com a viscerotrópica pode levar ao aumento
e sistemas comprometidos pela doença. o vírus da febre amarela, os anticorpos de sobrevida dos indivíduos infectados
Watkins perguntou como poderia ajudar amenizaram a gravidade da doença e e à redução da letalidade da doença”,
e Kallás sugeriu que tentassem desen- permitiram que os animais vivessem pe- afirma Vasconcelos. Os pesquisadores
volver uma terapia à base de uma versão los 21 dias em que foram acompanhados. imaginam que esses anticorpos também
sintética de anticorpos, moléculas que na- Os roedores do grupo de controle come- possam servir para combater os eventos
turalmente são produzidas pelo sistema çaram a morrer a partir do sexto dia após adversos raros da vacina. n
de defesa contra organismos invasores. o contato com o vírus. Na Universidade
Até hoje não existe um tratamento es- de Saúde e Ciência do Oregon, Estados O projeto e os artigos científicos consultados para esta
pecífico contra a febre amarela. Quando Unidos, o biólogo Benjamin Burwitz reportagem estão listados na versão on-line.

PESQUISA FAPESP 327 | 51


COVID-19

APOSTA
U
m artigo publicado em fe-
vereiro na revista Science
Translational Medicine trou-
xe resultados animadores

TAILANDESA
dos ensaios clínicos de fase
1 da HXP-GPOVac, a versão
tailandesa de uma candidata
a vacina contra a Covid-19
desenvolvida a partir da
plataforma tecnológica NDV-HXP-S,
Em testes iniciais, vacina similar concebida pela rede de hospitais Monte
Sinai, dos Estados Unidos. O imunizante
à ButanVac produz mais foi testado em 210 pessoas na Tailândia
e produziu uma resposta imunológica
anticorpos neutralizantes do que contra o Sars-CoV-2 similar à propor-
imunizante da Pfizer cionada pela vacina baseada na ação do
RNA mensageiro (RNAm) fabricada pela
farmacêutica norte-americana Pfizer em
Meghie Rodrigues conjunto com a alemã BioNTech.

Candidata a vacina pode


ser fabricada com o uso
de ovos embrionados,
técnica já empregada
pelo Instituto Butantan
na produção do
imunizante contra gripe

52 | MAIO DE 2023
da HXP-GPOVac com os produzidos por
20 pessoas imunizadas com a vacina da
Pfizer/BioNTech e outras 18 que haviam
naturalmente se recuperado da infecção
pelo novo coronavírus. Os anticorpos
desenvolvidos pelos três grupos foram
capazes de neutralizar a cepa original
Frascos da do Sars-CoV-2, surgida no final de 2019
HXP-GPOVac,
em Wuhan, na China, e, em menor pro-
a vacina contra
Covid-19 em porção, as variantes beta e delta.
2 testes na Tailândia Uma avaliação inicial, apresentada
em março de 2022 na revista eClinical-
Houve, no entanto, uma diferença no o nome de ButanVac. No Vietnã ela se Medicine, já havia mostrado que a HXP-
perfil dos anticorpos produzidos pelos chama CoviVac. -GPOVac era segura e causava eventos
dois imunizantes. A HXP-GPOVac ge- HXP-GPOVac, CoviVac e ButanVac adversos leves: dor no local da aplicação
rou mais anticorpos neutralizantes do compartilham uma base comum. As três em 63% dos casos, cansaço em 35% e dor
que a vacina da Pfizer/BioNTech, mas formulações utilizam uma versão inati- de cabeça ou muscular em 32%. Uma
menos não neutralizantes (ligantes). Os vada do vírus da doença de Newcastle – proporção um pouco menor desses even-
primeiros impedem os vírus de invadir causador de uma infecção respiratória tos, também leves, foi observada entre
as células e se multiplicar no interior em aves, mas inofensivo aos seres huma- os 120 voluntários que participaram da
delas. Os do segundo tipo, os ligantes, nos –, ao qual foi acrescida a informação fase 1 de testes clínicos da CoviVac, no
marcam os vírus e sinalizam para o sis- genética para produzir uma forma mais Vietnã. Cinquenta e oito por cento senti-
tema imune destruir as células ocupadas estável da spike do coronavírus. A equi- ram dor no local da picada, 22% cansaço,
pelo agente infeccioso. “Isso significa pe do virologista Peter Palese, da rede 21% dor de cabeça e 14% dor muscular,
que a resposta imunológica estimula- Monte Sinai, concebeu essa plataforma segundo dados preliminares, publicados
da pela HXP-GPOVac é mais focada em vacinal com o objetivo de gerar um pro- em junho de 2022 na revista Vaccine.
neutralização”, explicou, em entrevista duto barato que pudesse ser fabricado No Brasil, os testes de fase 1 da Bu-
à Pesquisa FAPESP, o microbiologista por países de renda baixa e média (ver tanVac, com 320 participantes, já foram
Florian Krammer, da Escola de Medici- Pesquisa FAPESP nos 302 e 303). concluídos e os resultados analisados
na Icahn, da rede Monte Sinai, em Nova “Como originalmente infecta galinhas, pela Agência Nacional de Vigilância Sa-
York, e coordenador do estudo. esse vírus se desenvolve muito bem em nitária (Anvisa). Embora não tenha si-
Vacinas que produzem grande quan- ovos”, comentou Krammer. Isso permite do publicado um artigo científico sobre
tidade de anticorpos neutralizantes são que se use na síntese desse candidato a a fase 1, a Anvisa autorizou o início da
consideradas esterilizantes por terem o imunizante a mesma tecnologia empre- etapa seguinte. “A ButanVac se mostrou
potencial de bloquear a infecção e impe- gada na elaboração de vacinas contra o altamente imunogênica”, afirma Érique
dir o desenvolvimento da doença. Já as vírus influenza, da gripe, dominada por Peixoto de Miranda, gestor médico de

N
que produzem uma mistura desses an- vários países, entre eles o Brasil. desenvolvimento clínico do Instituto
ticorpos não evitam a infecção, mas pro- Butantan. “Os títulos de anticorpos li-
tegem das formas graves da doença. No o estudo de fase 1 na Tai- gantes e neutralizantes medidos no san-
caso da Covid-19, o efeito neutralizante lândia, a primeira dos testes gue das pessoas imunizadas com ela são
é conferido por anticorpos que aderem a em seres humanos, desti- parecidos com os das duas formulações
FOTOS 1 INSTITUTO BUTANTAN  2 THAILAND'S GOVERNMENT PHARMACEUTICAL ORGANIZATION

uma região muito específica da proteína nada a avaliar a segurança irmãs em teste na Ásia. Isso mostra um
da espícula (spike), usada pelo vírus para da formulação, 210 volun- efeito consistente.” Os eventos adversos
invadir as células, chamada domínio de tários foram separados em observados nos testes de fase 1 da Butan-
ligação ao receptor (RDB), uma espécie seis grupos. Os integrantes Vac também foram leves e semelhantes
de calcanhar de aquiles do vírus. de cinco deles receberam aos verificados na Tailândia e no Vietnã.
Os dados apresentados no estudo são duas aplicações de diferen- Apesar de usarem a mesma cepa viral
uma boa notícia não só para os tailan- tes doses do candidato a imunizante ou mestre e serem produzidas em ovos, as
deses. A formulação ali avaliada, fabri- do composto combinado com um ad- três formulações seguem procedimen-
cada pela Organização Farmacêutica juvante, substância que potencializa a tos de produção, controle de qualidade,
Governamental (GPO) da Tailândia, resposta do sistema de defesa, separadas testes de potência e estabilidade dife-
é praticamente idêntica às que foram por um intervalo de quatro semanas. O rentes. Por essa razão, a Anvisa conside-
desenvolvidas e estão sendo testadas sexto grupo foi tratado apenas com duas ra que se trata de formulações distintas
no Vietnã e no Brasil. Aqui, a potencial doses de uma solução inócua (placebo). e os dados dos compostos em testes na
vacina foi elaborada pelo Instituto Bu- Duas semanas após a conclusão do Ásia não substituem os dos ensaios clí-
tantan, de São Paulo, em parceria com esquema vacinal, Krammer e colabora- nicos da ButanVac. n
o mesmo consórcio internacional do dores coletaram amostras de sangue dos
qual participam os norte-americanos, os participantes para comparar os níveis de Os artigos científicos consultados para esta reportagem
tailandeses e os vietnamitas, e recebeu anticorpos gerados pela administração estão listados na versão on-line.

PESQUISA FAPESP 327 | 53


NEUROCIÊNCIA

M
APRENDENDO A esmo sem um relógio

CONTAR
por perto, não é difícil
calcular com precisão
razoável a duração de
1 segundo. É o tempo

O TEMPO
aproximado de uma ba-
tida do coração ou de uma piscada mais
lenta dos olhos. Intervalos tão curtos cos-
tumam passar despercebidos no dia a dia,
mas são cruciais para a sobrevivência.
Podem representar a diferença entre cap-
Neurônios de uma região do cérebro turar ou não uma presa ou atravessar uma
rua em segurança. Se são tão importantes,
treinam os de outra para como o cérebro aprende a cronometrá-
-los? Em estudos realizados com ratos,
perceber a passagem dos segundos pesquisadores da Universidade Federal
do ABC (UFABC) estão ajudando a de-
cifrar como diferentes regiões cerebrais
atuam para codificar a passagem de pe-
ríodos tão curtos de tempo.
Os resultados mais recentes, publi-
cados em setembro de 2022 na revista
eLife, revelaram algo inesperado: con-
tabilizar intervalos breves não é uma nunca se consegue acompanhar a ativi- cogumelo que reduz temporariamente a
atividade estática, realizada de modo dade cerebral em todos esses estágios. O atividade dos neurônios. Quando o córtex
contínuo por uma única área do cére- principal empecilho é técnico. O aprimo- era inativado no início dos experimentos,
bro, como sugeriam trabalhos anterio- ramento na execução das tarefas costu- os animais não conseguiam aprender a
res. Em vez disso, a equipe coordenada ma levar dias e, durante esse tempo, os aguardar 1,5 s e se saíam mal na tarefa. Já
pelo neurocientista Marcelo Bussotti eletrodos implantados no cérebro podem se o muscimol era aplicado no córtex pré-
Reyes verificou que ao menos duas re- mudar de posição ou perder sensibili- -frontal depois que os roedores estavam
giões parecem agir de modo coordenado dade por causa da cicatriz que se forma experientes, eles continuavam experts
e consecutivo na tarefa. ao redor. “Isso nos impedia de saber se em obter a recompensa. A aplicação de
Uma delas é o córtex pré-frontal me- estávamos registrando sempre a mesma muscimol no estriado depois que os ratos
dial. Associado ao planejamento de população de neurônios”, explica Reyes. já sabiam quanto tempo aguardar, no en-
ações, ao controle de impulsos e à iden- “No experimento atual, em que os ani- tanto, revertia o efeito do aprendizado e
tificação de regras, essa camada mais mais aprendem em menos de uma hora, eles passavam a errar o momento de tirar
superficial situada na parte anterior da temos segurança de que estamos acom- o focinho do orifício.
cabeça atua nos estágios iniciais, apren- panhando a todo momento a atividade “Esses experimentos são surpreenden-
dendo a identificar a duração do interva- dos mesmos neurônios”, afirma. tes porque os autores capturam o apren-

O
lo. À medida que esse conhecimento se dizado muito precoce e mostram que,
consolida, no entanto, a cronometragem que acontece no cérebro embora estejam diretamente conectados,
passa a ser executada por uma região durante a aprendizagem o córtex frontal e o núcleo estriado de-
mais profunda: o núcleo estriado dorsal, da tarefa? Na fase inicial, sempenham papéis diferentes”, afirmou o
responsável pela execução automática antes de os animais se neurologista norte-americano Nandaku-
de tarefas aprendidas. tornarem experts, a ati- mar Narayanan, da Universidade de Iowa,
No Centro de Matemática, Computa- vação ocorre apenas no nos Estados Unidos, que não participou
ção e Cognição da UFABC, Reyes e seus córtex pré-frontal. À medida que se apro- desse trabalho, a Pesquisa FAPESP.
colaboradores observaram a migração xima o momento em que podem retirar o “O trabalho é interessante por sugerir
da atividade de uma área cerebral para focinho do orifício e ganhar o prêmio ado- que, no início do aprendizado, a infor-
outra ao registrar a atividade dos neurô- cicado, os neurônios dessa região cerebral mação sobre o tempo é codificada por
nios de ratos durante o aprendizado de passam a ser ativados um número maior neurônios de uma área executiva alta-
uma tarefa simples. No interior de uma de vezes por segundo. Os neurocientistas mente evoluída, o córtex pré-frontal,
caixa de acrílico, os roedores tinham de chamam esse padrão de “sinal em rampa”, e, após o aprendizado, pelos neurônios
colocar o focinho em um pequeno orifí- por causa da reta inclinada que surge no de uma área classicamente associada a
cio contendo um sensor infravermelho gráfico que mostra o número de vezes em comportamentos automáticos e à forma-
e mantê-lo ali por ao menos 1,5 segundo que cada população de neurônio é ativada ção de hábitos”, afirma o neurocientista
(s). Se o animal retirasse o focinho antes por intervalo de tempo. “Para nossa sur- Adriano Tort, do Instituto do Cérebro
do prazo, não ganhava nada. No entan- presa, o sinal em rampa estava presente da Universidade Federal do Rio Grande
to, quando aguardava ao menos o tempo no córtex pré-frontal desde as primeiras do Norte (UFRN). “É uma descoberta
predeterminado pelos pesquisadores, ele tentativas, antes de o animal aprender a importante que precisa ser corrobora-
recebia uma recompensa prazerosa: go- aguardar aquele tempo específico”, conta da por outros grupos. Como o número
tas de uma solução de água com açúcar. a engenheira biomédica Gabriela Chiuffa de animais acompanhados foi pequeno,
Nas primeiras tentativas, os roedores Tunes, uma das autoras dos experimen- provavelmente devido à complexidade
não se saíam bem. Tiravam o focinho tos, realizados no doutorado feito sob a da pesquisa, as análises estatísticas são
antes da hora e ficavam sem a recom- orientação de Reyes. mais limitadas”, explica o neurocientista.
pensa ou esperavam tempo demais e À medida que os roedores ganhavam “Os resultados atuais trazem evidên-
perdiam oportunidade de tomar água experiência, o sinal deixava de ser ob- cias de que a contagem do tempo não é
com açúcar mais vezes. Só de vez em servado no córtex pré-frontal e passa- realizada continuamente pela mesma
quando acertavam. Cerca de uma hora va a ser identificado no núcleo estria- região do cérebro, ao menos nos inter-
após o início do treinamento, porém, do. “Inicialmente pensamos que fosse valos mais curtos”, afirma o pesquisa-
eles já haviam aprendido o quanto era consequência da perda de qualidade do dor da UFABC. Eles reforçam uma ideia
preciso aguardar e se tornado hábeis registro”, lembra Reyes. Também era surgida nas últimas décadas na neuro-
ganhadores de recompensa possível que o efeito observado fosse ciência de que, para intervalos conside-
Evolução tão rápida no desempenho consequência do acaso. rados curtos, o registro da passagem do
da tarefa deu aos pesquisadores a opor- A confirmação de que a codificação da tempo ocorre de modo difuso, feito por
tunidade rara de investigar como as duas informação sobre o tempo havia migra- diferentes regiões do cérebro. “Nossa
regiões cerebrais sabidamente ligadas do de uma região para outra veio com hipótese agora é de que o córtex pré-
INCHENDIO / GETTY IMAGES

à percepção do tempo atuavam em três outro experimento. Tunes e o também -frontal ‘treine’ outras regiões e depois
estágios do teste: antes, durante e depois engenheiro biomédico Eliezyer Fermi- saia de cena.” n Ricardo Zorzetto
do aprendizado. Embora muitos expe- no de Oliveira injetaram, ora no córtex
rimentos de percepção da passagem do pré-frontal, ora no estriado, uma dose de Os projetos e os artigos científicos consultados para esta
tempo sejam feitos com animais, quase muscimol, um composto extraído de um reportagem estão listados na versão on-line.

PESQUISA FAPESP 327 | 55


SAÚDE PÚBLICA

UM
RETRATO
DO
ABORTO
NO
BRASIL
O
assunto é espinhoso e cos- uma técnica que protege a identidade da
tuma despertar posições entrevistada, indica que a cada ano são
extremas. Talvez por esses realizados cerca de 500 mil abortos no
Uma em cada sete motivos e por ser qualifi- Brasil. Em quase metade dos casos, mais
cado como crime pela le- especificamente 43%, surgem complica-
mulheres de 40 anos gislação brasileira, o abor- ções que exigem a internação da mulher
to permaneceu um tema em hospitais ou prontos-socorros para
já interrompeu velado por muito tempo e concluir o procedimento.
intencionalmente só recentemente passou a “O aborto é um problema de saúde
ser mais discutido. Apesar da proibição pública que afeta a mulher comum, em
ao menos uma gestação, legal e da frequente condenação moral particular as brasileiras mais jovens e
ou religiosa, o fato é que ele ocorre e mais vulneráveis, como as mulheres ne-
cerca de metade é comum, praticado em boa parte das gras”, afirma a antropóloga Debora Di-
vezes de modo inseguro (sem o auxí- niz, da Universidade de Brasília (UnB),
o fez na adolescência lio de profissionais da saúde e os meios uma das coordenadoras da Pesquisa Na-
adequados), o que coloca em risco a cional do Aborto (PNA). Atualmente em
Ricardo Zorzetto
vida das mulheres. A estimativa mais sua terceira edição, esse levantamento,
ILUSTRAÇÃO  Juliana Freire recente e confiável, obtida por meio de repetido em média a cada cinco anos,
tenta compreender a magnitude do pro- havia interrompido uma gestação. Tam- sistência adequada e coloca em risco a
blema no país. Na PNA mais recente, bém se aproximava de 10% a proporção vida da mulher. A quase totalidade (97%)
entrevistadoras foram a 125 municípios de católicas, evangélicas ou protestantes dessas interrupções inseguras acontece
brasileiros em novembro de 2021 coletar ou mulheres sem religião que já haviam nos países em desenvolvimento.

A
informações sociodemográficas de 2 mil abortado (ver gráficos na página 58). No Brasil, de acordo com a evolução
mulheres com idades entre 18 e 39 anos. registrada nas três edições da PNA, a
Na ocasião, também entregavam a cada pesar de o cenário indicar gravidade das complicações de saúde
participante um questionário com sete uma tendência de redução decorrentes do aborto aparentemente
perguntas sobre aborto, que era preen- na proporção de mulheres está diminuindo. Em 2010, 55% das mu-
chido e depositado por ela própria em que realizam aborto, os lheres que realizaram aborto precisaram
uma urna lacrada, para evitar a quebra números são vistos com ser internadas. Em 2021, essa propor-
do sigilo. Sorteadas de modo aleatório cautela pelos próprios ção foi de 43%. Ainda assim, um núme-
para fazer parte do levantamento, es- pesquisadores, porque a ro importante, que representa cerca de
sas mulheres representam a população queda pode ser menor do 200 mil hospitalizações por ano. “Isso
feminina brasileira em idade fértil que que aparenta. A margem de gera um impacto para as mulheres e um
sabe ler e escrever e vive nas cidades. erro em cada levantamento é de dois custo elevado para o sistema público de
Os resultados do levantamento, acei- pontos percentuais para mais ou para saúde”, lembra Diniz.
tos para publicação na revista Ciência & menos e pode haver uma oscilação es- “A diminuição na taxa de complica-
Saúde Coletiva, mostram que o aborto é tatística de uma edição para outra da ções sugere uma possível transição do
um evento comum entre as brasileiras: pesquisa, o que tornaria os valores mais uso de métodos mais perigosos, que en-
uma em cada sete mulheres de 40 anos já próximos entre si. Existe ainda a possibi- volvem a manipulação do útero, como
fez ao menos um aborto. “Qualquer pro- lidade de os dados sofrerem influência de o uso de agulhas e outros objetos, para
blema que afete tamanha proporção de uma mudança na estrutura da população. outras estratégias mais seguras, que uti-
pessoas é uma questão de saúde gigan- Nos 11 anos que separam a primeira da lizam medicamentos, ainda que obtidos
tesca para um país”, enfatiza o sociólogo última PNA, a taxa de fecundidade da de maneira ilegal”, comenta o ginecolo-
Marcelo Medeiros, professor visitante brasileira diminuiu de quase 1,9 filho por gista e obstetra Luiz Francisco Baccaro,
na Universidade Columbia, nos Estados mulher para 1,5 e, com menos gestações, da Universidade Estadual de Campinas
Unidos, coautor do estudo. haveria menos aborto. Alguns estudos (Unicamp), que não fez parte da PNA.
Essa proporção, no entanto, parece apontam ainda para um aumento no uso Ele coordenou a participação do Brasil
estar diminuindo. Essa taxa era de apro- de métodos contraceptivos de longa du- em um estudo recente da OMS que ana-
ximadamente 20% nos levantamentos ração na América Latina. lisou a severidade das complicações de-
de 2010 e 2016 e caiu para 15% em 2021. Se a evolução registrada nas três PNA correntes do aborto em 70 hospitais de
Embora as entrevistadas tivessem entre for real, ela pode indicar que o Brasil se- seis países da América Latina (20 deles
18 e 39 anos de idade, os pesquisadores gue uma tendência verificada nas últimas brasileiros). Publicados em 2021 na re-
usam uma ferramenta estatística para fa- décadas nos países mais desenvolvidos, vista BMJ Global Health, os resultados
zer uma projeção da taxa de abortos aos oposta à que aconteceu na América do sugerem que a maior parte dos casos que
40 anos e corrigir eventuais distorções Sul. Uma análise das estatísticas sobre chegam aos serviços de saúde no Brasil e
nos dados causadas pelo envelhecimento aborto registradas entre 1990 e 2014 em no Peru é menos grave do que os atendi-
da população e pelo fato de o aborto ser 186 países mostrou que, em um quarto dos na Argentina, Bolívia, República Do-
um fenômeno cumulativo. de século, a frequência de interrupção minicana e El Salvador – os dados foram
Em 2021, pela primeira vez, a sonda- de gravidez diminuiu expressivamente coletados antes da legalização do aborto
gem avaliou a idade em que as participan- nas nações mais desenvolvidas – caiu de, na Argentina no final de 2020. No Brasil,
tes realizaram o primeiro aborto induzi- em média, 46 abortos em cada grupo de 83% são leves, pequenos sangramentos,
do e revelou que esse é um problema que mil mulheres em idade reprodutiva para e 14% moderados, em geral hemorragias
começa cedo na vida das brasileiras: 52% 27 por mil. No mesmo período, segundo um pouco mais intensas.
haviam interrompido uma gestação antes os dados publicados em 2016 na revista Ainda que o grau das complicações
dos 19 anos. “A gravidez é um problema The Lancet, essa taxa cresceu de 43 para varie de um país para outro por carac-
social e econômico importante para as 47 por mil na América do Sul. terísticas dos sistemas de saúde locais,
jovens nessa faixa etária, porque impede A interrupção intencional da gravidez a OMS estima que 13% das mortes ma-
de continuar os estudos, prejudica a for- é um fenômeno comum no mundo. A Or- ternas – aquelas que ocorrem durante
mação profissional e restringe o acesso ao ganização Mundial da Saúde (OMS) esti- a gestação ou após o seu término – se-
mercado de trabalho”, explica Medeiros. ma que, a cada ano, ocorram 73 milhões jam consequência de abortos inseguros.
De acordo com a PNA, quem faz aborto de abortos induzidos, o equivalente a um A solução para o problema, na opinião
é hoje a mulher comum. Todas as edições terço das gestações. A agência sanitária dos especialistas, passa pela oferta de
da pesquisa mostraram que uma pro- internacional considera o procedimento condições seguras para a interrupção da
porção praticamente igual de brancas, seguro “se for realizado com os métodos gravidez, algo que no Brasil exigiria uma
pretas e pardas já realizou aborto. Em adequados para a idade gestacional e mudança na legislação, além de acesso
2021, era da ordem de 10% a parcela de por uma pessoa treinada”. Em 45% dos ao planejamento reprodutivo para evitar
mulheres de cada um desses grupos que casos, no entanto, ele ocorre sem a as- gestações não desejadas.

PESQUISA FAPESP 327 | 57


AS CARACTERÍSTICAS DO ABORTO NO PAÍS
Na PNA de 2021, foram entrevistadas 2.000 mulheres de 125 municípios;
205 delas já haviam interrompido ao menos uma gestação

Proporção de JÁ REALIZARAM ABORTO Idade da primeira interrupção,


mulheres que entre as 205 mulheres que
Por etnia Por religião
interromperam relataram na PNA de 2021 ter
uma gestação Brancas 9% Católicas 10% realizado aborto
até os 40 anos
37% 32%
Evangélicas ou 16 a 19 anos 20 a 24 anos
20% 20% Pretas 11% 10%
protestantes

15% Pardas 11% Outra religião 11%

7%
25 a 29
Amarelas 8% Sem religião 12%
anos

Não souberam 15% 9%


Indígenas 17% 15% 12 a 15 anos 30 a 39 anos
2010 2016 2021 responder

FONTE  PNA 2021

O Código Penal brasileiro qualifica o gestações decorrentes de estupro (esti- educar a população para exercer a sexua-
aborto como um crime contra a vida. A madas em 18 mil por ano) e que, portanto, lidade de modo responsável e informá-la
mulher que opta por fazê-lo pode ser poderiam ser legalmente interrompidas. sobre os métodos contraceptivos, além
condenada a até três anos de prisão e Uma norma técnica de 2005 do Minis- de torná-los disponíveis. “Todo mundo
quem a auxilia (seja um profissional da tério da Saúde oferece aos profissionais faz sexo. Temos de parar de tratar esse
saúde ou não) pode pegar até 10 anos em da saúde orientações de como tratar e tema como tabu e passar a falar na es-
regime fechado. Essa lei de 1940 só prevê acolher os casos de aborto. Segundo o cola, na televisão, na igreja, sobre como
duas condições em que a punição não é documento, “o abortamento seguro, nas prevenir a gravidez”, afirma Medeiros.
aplicada: no caso de gravidez decorrente razões legalmente admitidas no Brasil, e Ele defende a necessidade de que os ho-
de estupro ou se o procedimento for o o tratamento do abortamento constituem mens assumam uma parte da responsa-
único meio de salvar a vida da mulher. direito da mulher que deve ser respeita- bilidade no controle da reprodução. “Se
Desde 2012, uma decisão do Supremo do e garantido pelos serviços de saúde”. os homens usassem camisinha em todas
Tribunal Federal (STF) também autoriza Essa diretriz, no entanto, é insuficien- as relações, a taxa de gravidez indesejada
a interrupção da gravidez nos casos de te para que o serviço seja oferecido à po- cairia próximo a zero e, consequente-
anencefalia, quando o feto não desenvol- pulação mesmo nas situações previstas mente, os abortos diminuiriam”, conclui.
ve completamente o cérebro ou outros em lei. A psicóloga Marina Gasino Ja- Especialistas afirmam ainda que é
órgãos do encéfalo e não tem condições cobs, durante o doutorado, realizado na necessário descriminalizar o aborto.

A
de sobreviver após o parto. Universidade Federal de Santa Catarina Vários estudos indicam que tornar o
(UFSC) sob a orientação da sanitarista procedimento legal e oferecer à mu-
pesar dessa possibilidade, a Alexandra Boing, procurou em três ba- lher a possibilidade de realizá-lo leva à
proporção de abortos legal- ses de dados do SUS informações sobre redução no número de casos. “O número
mente permitidos é muito estabelecimentos cadastrados para fa- cai porque as mulheres são acolhidas e
inferior à esperada. Em zer ou que tinham feito aborto legal em passam a ter acesso a métodos contra-
INFOGRÁFICOS  ALEXANDRE AFFONSO / REVISTA PESQUISA FAPESP

um levantamento publica- 2019. Encontrou 290 serviços de saúde, ceptivos e orientação de como evitar
do em 2020 nos Cadernos localizados em apenas 200 dos 5.568 uma nova gestação não desejada”, diz
de Saúde Pública, o médico municípios brasileiros. Segundo os dados a epidemiologista Rosa Domingues, da
sanitarista Bruno Cardoso, publicados em 2021 nos Cadernos de Saú- Fundação Oswaldo Cruz, no Rio de Ja-
da Secretaria Municipal da de Pública, 40% deles se concentravam neiro, autora de revisões recentes sobre
Saúde do Rio de Janeiro, e colaboradores na região Sudeste. “Em 2019, 58,3% das a realização de aborto legal e ilegal no
analisaram os dados de nascimento, morte mulheres em idade fértil viviam em mu- Brasil. “A criminalização do aborto não
e internação no Sistema Único de Saúde nicípios em que o aborto previsto em lei resolve o problema. Só o torna insegu-
(SUS) no período 2008-2016 e consta- não era ofertado”, escreveram as autoras. ro”, afirma Diniz. n
taram que, a cada ano, são feitos cerca Uma questão importante é como redu-
de 1.600 abortos por indicação médica zir os abortos, em especial os inseguros? Os artigos científicos consultados para esta reportagem
ou legal. Esse número é bem inferior às A saída, segundo estudiosos do assunto, é estão listados na versão on-line.

58 | MAIO DE 2023
ECOLOGIA

Maioria das
gestações dá origem
a um único filhote

QUANTOS
N
o Natal de 2021, o biólogo Edu
Fragoso ganhou um presente
inusitado da mãe: um álbum de

FILHOTES TEM
fotografias. A diferença é que a
coletânea não reunia momentos
em família nem de viagens, como
se costumava fazer antes da era digital, mas

UMA ONÇA?
imagens do pesquisador em seu ambiente de tra-
balho, o Pantanal, com o seu objeto de pesquisa,
as onças-pintadas. Toda vez que ele e sua equipe
se aproximavam de uma onça para coletar dados
Com a ajuda da tecnologia, pesquisadores para pesquisa, ele mandava uma foto para a mãe,
EDU FRAGOSO / ONÇAFARI

Bernadete, por WhatsApp, contando detalhes


conseguem medir taxa de natalidade de como o tamanho do animal, o nome que a equipe
lhe dera ou alguma característica interessante.
onças-pintadas do Pantanal Atrás de cada foto, a mãe do pesquisador incluiu
Letícia Naísa essas informações.

PESQUISA FAPESP 327 | 59


Desde 2015, Fragoso trabalha com monitora- GPS, que tem uma espécie de timer – cai sozinho
mento de onças-pintadas no Pantanal. Em estudo por volta de 1,5 ano depois. O colar é colocado
publicado recentemente, ele e sua equipe de 11 apenas em animais adultos, que não vão crescer
pesquisadores das organizações não governa- mais, e o anestésico não é prejudicial para as fê-
mentais Onçafari e Panthera descrevem como meas grávidas, de acordo com os pesquisadores.
conseguiram avaliar os hábitos reprodutivos de “Na hora, fazemos o que é estritamente neces-
180 indivíduos da espécie que vivem livremente sário com o animal, mas ter o bicho ali nas mãos
na fazenda Caiman Pantanal, em Mato Grosso do é algo indescritível”, diz Fragoso. Para os pes-
Sul, uma área de 53 mil hectares que inclui 56 qui- quisadores, cada onça é única e, por isso, recebe
lômetros quadrados de área de preservação legal. um nome: Esperança, Flor, Troncha (por causa
A gestação de uma onça dura, em média, três da orelha caída), Ipê, Aroeira, Fera (e seu filhote,
meses. A idade reprodutiva das fêmeas começa aos Ferinha). A favorita de Fragoso é Natureza. “Foi
2,5 anos e pode ir até os 13 anos – elas vivem cerca a primeira que vi em vida livre quando cheguei
de 15 e se reproduzem a cada dois anos. Ao longo no Pantanal”, relembra. Desde que o biólogo a
da vida, têm em média oito filhotes. A maioria acompanha, ela já teve 10 filhotes.
(65,7%) dos nascimentos registrados pelo estudo Os pesquisadores precisam de mais atenção
foi de apenas um filhote, um quarto dos casos foi e rapidez para entrar na toca das mães, o que
de gêmeos e o restante de trigêmeos, conforme só é possível por causa dos colares. As fêmeas
artigo publicado em janeiro na revista Journal saem muito pouco de perto dos filhotes recém-
of Mammalogy. Com cerca de 1,5 ano de vida, -nascidos, mas, quando a armadilha fotográfi-
os filhotes se tornam independentes das mães. ca captura a imagem de uma delas longe da ni-
Os resultados animaram Fragoso e sua equipe. nhada, o time se divide para contar o número de
“São números relevantes, conseguimos detectar crias – tarefa importante porque permite saber
certo crescimento da população na região porque quantos filhotes de fato nasceram, não apenas
o ambiente é saudável e elas podem continuar os que sobrevivem e emergem da toca quando
sobrevivendo por muitos anos ali”, afirma o coor- já estão mais independentes. Metade do grupo
denador científico do Onçafari. “As fêmeas têm segue a mãe e a outra metade visita os filhotes.
sido muito bem-sucedidas em criar os filhotes “As equipes se comunicam por rádio e têm que
até a independência deles.” ser muito rápidas”, conta Fragoso, que ressalta

O
só usar o método quando a toca está acessível,
sucesso das onças do Pantanal para evitar alterações que exponham os filhotes
se deve muito à quantidade de a riscos. “Antes só víamos os filhotes já com 2, 3
presas às quais elas têm acesso. meses de idade pelas câmeras, mas não sabíamos
“Esses felinos têm uma vida boa quantos de fato tinham nascido e sobrevivido.”
e tranquila aqui”, diz Fragoso. Os Uma das próximas missões é medir a taxa de
dados que permitiram as desco- mortalidade infantil das onças.
bertas foram coletados por quase uma década Além de experiência, para fazer parte de uma
com a ajuda da tecnologia: câmeras com sensores equipe como a de Fragoso, é necessário respeitar
de movimento para observar os animais – são as os protocolos de segurança. Só se pode chegar
chamadas armadilhas fotográficas. Ao detectar a perto de uma onça acordada dentro de um carro.
presença do bicho, a câmera começa a registrar.
Colares com equipamento de localização por GPS
ajudam os cientistas a saber exatamente onde
as onças estão, por onde andam e a identificar
as fêmeas grávidas, já que seus deslocamentos
diminuem consideravelmente durante a gestação.
Para colocar os colares, outro tipo de armadi-
lha é usado: o laço. Como sugere o nome, trata-se
de um laço conectado a um transmissor, armado
no meio da trilha e camuflado. Quando a onça
pisa na armadilha, sua pata fica presa e a equipe
recebe um sinal de que houve captura e, então,
corre até o local e dispara um dardo anestésico
que põe o animal para dormir.
Com o tranquilizante aplicado por um veteri-
nário, eles têm entre 40 minutos e uma hora pa-
ra tirar medidas, como peso e tamanho, coletar
material para análise em laboratório, como pelos,
saliva, sangue, e colocar o colar com o localizador

60 | MAIO DE 2023
Na região onde o Onçafari atua, elas já estão acos- Isso porque o Pantanal é um bioma conservado
tumadas ao barulho dos veículos e não alteram e com alta densidade de onças-pintadas, destaca
seu comportamento natural. Além de abrigar o veterinário Ronaldo Morato, coordenador do
pesquisadores, a Caiman também recebe turistas. Centro Nacional de Pesquisa e Conservação de
Até hoje, o biólogo nunca presenciou nenhum Mamíferos Carnívoros do Instituto Chico Men-
acidente grave, mesmo lidando com as maiores des de Conservação da Biodiversidade (Cenap/
onças do mundo. “As onças não enxergam os se- ICMBio). “Elas têm alguns comportamentos mais
res humanos como presas”, afirma o biólogo Alan relaxados ali, a competição é menor por terem
Eduardo de Barros, estudante de doutorado na mais alimento disponível”, avalia. “Ter essa re-
Universidade de São Paulo (USP), que estuda as ferência pode nos permitir fazer previsões para
consequências dos incêndios sobre a população regiões em que há menos possibilidade de coletar
de onças pantaneiras. informações”, aponta.

N
Outra vantagem foi poder observar onças em
o Pantanal, machos adultos chegam a uma propriedade que também tem investimento
pesar mais de 140 quilogramas (kg) e na atividade turística, à qual os animais estão ha-
as fêmeas mais de 80 kg. Adultos da bituados: entre os passeios oferecidos na região,
Caatinga são mais leves, com machos está a experiência de observar onças-pintadas.
adultos pesando menos de 50 kg. É essencial que os interesses do turismo sejam
EDU FRAGOSO / ONÇAFARI

Nesse sentido, Barros, que não tem aliados à pesquisa científica e à preservação da
relação com a Onçafari, avalia que a equipe de Fra- espécie, diz Barros. “O potencial é positivo se for
goso foi privilegiada por desenvolver o estudo no feito da maneira correta”, avalia.
bioma. “Existe uma facilidade para observar bichos O avanço da tecnologia foi mais um fator que
de grande porte e aves no Pantanal”, comenta. permitiu uma observação tão intensa do compor-
tamento desses animais. Nos anos 1970, pesqui-
sadores utilizavam colares que emitiam sinais
de rádio em frequência muito alta (VHF) – e não
com GPS. Para captar os sinais, Peter Crawshaw
(1952-2021), brasileiro pioneiro no estudo de
onças-pintadas, sobrevoava o Pantanal em ul-
traleves. “Antigamente, um estudo muito bom
conseguia cerca de 60 pontos de localização em
dois, três anos”, lembra Morato, um dos primei-
ros a usar GPS para monitorar onças-pintadas.
“Hoje, coletamos 60 localizações em três dias,
então a informação aumentou muito em quan-
tidade e tornou-se mais precisa.”
O acompanhamento O avanço dos computadores também permite
de longo prazo fornece que os pesquisadores analisem o grande volume
dados detalhados
sobre a demografia
de dados coletados. “Existem métodos para es-
das onças-pintadas miuçar essas informações de maneira muito mais
do Pantanal detalhada”, comenta Morato. “Podemos fazer
associações mais complexas que nos ajudam a
entender melhor a história natural das espécies.”
Reproduzir o estudo da equipe de Fragoso em
outros biomas brasileiros pode ser um desafio,
principalmente naqueles onde as onças estão
ameaçadas de extinção, como a Mata Atlântica
e o Cerrado, ou fora do país. A expectativa é de
que os dados coletados no Pantanal possam aju-
dar em avaliações da viabilidade de populações e
no planejamento para reintrodução da espécie.
Morato vê as onças-pintadas como um símbolo
para engajar a sociedade na preservação do meio
ambiente e da biodiversidade. n

Artigo científico
FRAGOSO, C. E. et al. Unveiling demographic and mating strategies
of Panthera onca in the Pantanal, Brazil. Journal of Mammalogy.
On-line. 12 jan. 2023.

PESQUISA FAPESP 327 | 61


MUNDO DIGITAL

MAIS
BARREIRAS
CONTRA
CIBERATAQUES

62 | MAIO DE 2023
Legislação brasileira focada em segurança
de dados avança, mas aparelhos conectados
à internet ainda continuam vulneráveis

Sarah Schmidt

H
á boas razões para temer que infor- tentaram roubar dinheiro de usuários e institui-
mações pessoais ou de empresas va- ções usaram programas de ransomware, que se-
zem do celular ou do computador e questram dados e contas, só devolvidos aos seus
sejam usadas sem o controle de seus donos após pagamento de um resgate.
donos. No Brasil, a chamada segu- Mesmo assim, de 2018 para 2020, o país saltou
rança cibernética ainda precisa me- da 70ª posição para a 18ª no mais recente Índi-
lhorar, embora a legislação brasileira ce Global de Segurança Cibernética, elaborado
esteja avançando, com a participação pela União Internacional de Telecomunicações
de especialistas de universidades, (ITU), que avalia as ações dos países mais bem
empresas e centros de pesquisa. Definida como preparados para lidar com ataques de hackers.
um conjunto de ações para proteger máquinas e Provavelmente o avanço se deve aos aprimo-
pessoas contra invasões, a segurança cibernética ramentos da legislação, um dos itens avaliados
implica aprimoramentos contínuos no campo da pela ITU, no qual o país obteve a nota máxima.
regulação, tecnologia e processos por parte de Embora sejam fundamentais, apenas instrumen-
governos, usuários e setor privado. tos legais não bastam, advertem os especialistas.
O engenheiro eletricista Edmar Gurjão, da “O desafio principal do Brasil não é ter boas
Universidade Federal de Campina Grande medidas regulatórias, mas implementá-las e mo-
(UFCG), na Paraíba, deve apresentar em agosto nitorá-las”, diz a advogada Ana Luíza Calil, dou-
à Agência Nacional de Telecomunicações (Ana- toranda em direito administrativo na Universida-
tel), em Brasília, propostas de medidas legais pa- de de São Paulo (USP). Em artigo publicado em
ra reduzir a vulnerabilidade da tecnologia 5G, a maio de 2022 na revista científica International
internet de quinta geração, que começa a ser im- Cybersecurity Law Review, ela e o advogado Ro-
plantada no Brasil. Gurjão lidera um estudo que berto Carapeto, da Universidade de Nagoya, no
reúne 52 pesquisadores brasileiros cujo objetivo Japão, analisaram a legislação brasileira e de ou-
é oferecer subsídios para que a agência avalie a tros quatro países da América Latina: Argentina,
necessidade de criar medidas legais específicas Chile, Colômbia e México. Segundo eles, todos
para esse tipo de tecnologia. Uma das recomen- têm criado seus próprios mecanismos legais para
dações que pretende fazer é que a Anatel exija reforçar a segurança cibernética, mas estão em
certificação de fábrica dos softwares instalados estágios diferentes. “Entre os cinco países, o Bra-
nos dispositivos aptos a funcionar com 5G, ga- sil tem o conjunto de regulações mais avançado,
rantindo que os parâmetros de segurança este- seguido pelo Chile”, observa Calil. Segundo ela,
jam atualizados. “A alta velocidade e a conexão o México ainda está em fase inicial.
FOTOMONTAGEM  LÉO RAMOS CHAVES / REVISTA PESQUISA FAPESP

entre os aparelhos 5G expõem mais os usuários O Marco Civil da Internet, aprovado em abril
a ataques cibernéticos”, diz o pesquisador. de 2014, abriu caminho para outras normas im-
Há muito por fazer. Entre os países da América portantes. Entre as mais recentes, destaca-se a
Latina, as redes e os aparelhos ligados à internet Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), em vi-
no Brasil estão entre os mais vulneráveis. O país gor desde agosto de 2020, que regulamenta o
sofreu 103 bilhões de tentativas de ataques ciber- tratamento de dados pessoais (por exemplo, no-
néticos em 2022, atrás apenas do México (com me, sobrenome, CPF, RG, endereço residencial e
187 bilhões), segundo levantamento da empre- identificação do computador). “É a única no Brasil
sa norte-americana de cibersegurança Fortinet. que prevê objetivamente multa por vazamento e
Em comparação com 2021, o número de ataques armazenamento inadequado de dados pessoais”,
no país aumentou 16%. Mundialmente, de acor- afirma o engenheiro da computação Roberto Gal-
do com esse mapeamento, 82% dos ataques que lo, diretor da empresa de criptografia Kryptus e

PESQUISA FAPESP 327 | 63


presidente da Associação Brasileira das Indústrias Mesmo assim, ela ressalta os desdobramen-
de Materiais de Defesa e Segurança (Abimde). tos desse plano, como uma resolução do Banco
“A LGPD deixa claro que é preciso proteger Central, de abril de 2021, com diretrizes de se-
os dados pessoais porque a empresa responsá- gurança cibernética para instituições financeiras.
vel por eles vai responder pelos vazamentos”, Em junho daquele ano, o Conselho Nacional de
comenta Gallo. “Seria importante expandi-la ou Justiça (CNJ) divulgou normas de cibersegu-
criar uma legislação para proteger outros tipos rança para os órgãos do Poder Judiciário para
de dados, como os comerciais, industriais e dos proteger as informações de mais de 77 milhões
sistemas críticos.” de processos digitalizados.
Um caminho importante para o setor avançar, A Estratégia vigora até o final de 2023. Consul-
além de contar com regulamentações estruturadas, tado sobre os planos de atualização do decreto,
é garantir investimentos das empresas em seguran- o Gabinete de Segurança Institucional (GSI) da
ça da informação. Em 2020, Gallo estimou que, no Presidência da República, responsável pela elabo-
Brasil, eles não chegavam a 4% do orçamento da ração do documento, observou, em nota enviada
área de tecnologia da informação das companhias, a Pesquisa FAPESP, que tem avaliado desde 2022
enquanto em países mais desenvolvidos o valor era tópicos que precisam ser aprimorados.
de 10% a 15%. Segundo ele, a Abimde ainda não O órgão informou que analisará também contri-
tem dados atualizados sobre essa média no país, buições “da comunidade de segurança cibernética
mas estima que não houve grandes mudanças. e das que resultarem de consulta pública”, indi-
Segundo projeções da consultoria de inteligência cando que, assim como na formulação da Estra-
de mercado norte-americana IDC, os gastos com tégia atual, apresentará o projeto do documento
soluções de segurança no Brasil devem atingir US$ para avaliação prévia da sociedade. Não revelou,

O
1,3 bilhão em 2023, 13% a mais que o ano anterior. porém, quando isso deve ser feito.
Gurjão, da UFCG, ressalta a importância de
utro marco legislativo importante é criar um centro unificado para registros de in-
a Estratégia Nacional de Seguran- cidentes cibernéticos, previsto na Estratégia. A
ça Cibernética (E-Ciber), aprovada seu ver, esse centro poderia permitir ações con-
como decreto em fevereiro de 2020, juntas mais rápidas de defesa entre instituições
com diretrizes e ações estratégicas de responsáveis por serviços essenciais como for-
segurança cibernética, como incenti- necimento de água, energia, telecomunicações e
vo à pesquisa. “A Estratégia Nacional segurança pública, em caso de ataques.
procura harmonizar os objetivos de “É importante formar uma coalizão com os
quem lida com cibersegurança, mas diversos setores do governo e da sociedade ci-
falta clareza sobre as atribuições de cada parti- vil, já que a segurança cibernética lida ao mesmo
cipante e as formas de monitoramento das ações, tempo com uma ameaça difusa e híbrida, que
incluindo a interação da União com estados e pode atingir qualquer pessoa, empresa ou ins-
municípios”, comenta Calil. tituição”, diz Raquel Jorge de Oliveira, analista

PARA NAVEGAR COM MAIS SEGURANÇA


Algumas recomendações para uso de dispositivos com acesso à internet

NO SEU CELULAR EM QUALQUER DISPOSITIVO COM ACESSO À INTERNET


Configure uma senha forte Altere o código do pin padrão Não clique em qualquer link Use senhas distintas para
para bloquear a tela inicial que vem no seu chip que receber. Entre em contato aplicativos diferentes
com a pessoa que o enviou,
Desabilite funções com a tela por outro meio, para checar Não encaminhe códigos de
bloqueada, como a se foi ela quem mandou acesso recebidos em
visualização de mensagens mensagens para terceiros
Crie uma senha para Não publique seus dados
o seu chip pessoais em redes sociais Não reencaminhe mensagens
de origem desconhecida
Lembre-se de guardar Nunca responda ou com links duvidosos
Quando trocar de aparelho, o número Imei (identidade a mensagens ou ligações
apague todos os dados internacional de equipamento que solicitem Não acesse contas de banco
e desvincule-o de contas móvel), que permite bloquear seus dados pessoais, quando estiver logado em
bancárias e outros aplicativos e desbloquear o celular bancários ou senhas Wi-Fi público
FONTE  CAMPANHA #FIQUE ESPERTO DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE EMPRESAS DE INTERNET

64 | MAIO DE 2023
SOCIEDADE CIVIL
SEGURANÇA NACIONAL
Coalizão Direitos na Rede
ONGs
Gabinete de Segurança

QUEM CUIDA DA Institucional (GSI) da Presidência


da República — Departamento de
DEFESA NACIONAL
Comando de Defesa Cibernética
CIBERSEGURANÇA Segurança da Informação (DSI)

do Exército (ComDCiber) NO PAÍS Centro de Prevenção,


Centro de Defesa Cibernética
Participação social é ampla, Tratamento e Resposta
(CDCiber)
mas especialistas criticam a Incidentes Cibernéticos de
a falta de um órgão apto a Governo (CTIR Gov)
articular os objetivos dos
COMUNIDADE TÉCNICA
diferentes grupos Centro de Pesquisa
Centro de Estudos, Resposta e Desenvolvimento para
e Tratamentos de Incidentes de a Segurança das Comunicações
Segurança no Brasil (Cert.br) (Cepesc/Abin)
Centro de Atendimento a Incidentes
de Segurança da Rede Nacional de Obs.: a governança conta ainda com a participação dos setores público,
privado e financeiro, das agências reguladoras e do Poder Legislativo
Ensino e Pesquisa (Cais/RNP)
FONTE  HUREL, L. M. INSTITUTO IGARAPÉ. 2021 (ADAPTADO)

de inteligência na startup de cibersegurança Questionado sobre essa militarização, o GSI


Harpia Tech, do Rio de Janeiro. informou, em nota, que a defesa cibernética na-
Em seu mestrado, concluído em 2021 na Uni- cional está, de fato, entre as competências do Mi-
versidade de Brasília (UnB), ela comparou a nistério da Defesa. Mas a segurança cibernética
política brasileira com a de quatro países euro- do país, segundo o órgão, “compete majoritaria-
peus – Finlândia, Suécia, Dinamarca e Norue- mente a organizações civis”. Como instituições
ga – considerados referências internacionais civis importantes nessa área, o GSI cita o Centro
em cibersegurança. Nos quatro, há um diálogo de Atendimento a Incidentes de Segurança (Cais)
permanente entre as instituições e os usuários da Rede Nacional de Ensino e Pesquisa (RNP), e
de internet, o que, segundo ela, não ocorre no o Centro de Estudos, Resposta e Tratamentos de
Brasil. Oliveira detalhou as conclusões em um Incidentes de Segurança no Brasil (Cert.br), que
artigo publicado em fevereiro de 2022 na revista faz a gestão de incidentes para redes do Comitê
Brasiliana: Journal for Brazilian Studies. Gestor da Internet no Brasil (CGI.br). Essas en-
“A legislação sobre cibersegurança no Brasil tidades se articulam com o Centro de Prevenção,
prevê a interação entre setores do governo e a Tratamento e Resposta a Incidentes Cibernéticos
sociedade civil, mas sempre sob o comando do de Governo (CTIR Gov).
GSI ou do Ministério da Defesa, sem estruturas Para Calil, a Anatel ajuda a equilibrar esse jogo
permanentes de coordenação e de interação entre de forças, ampliando a participação social. Em

G
órgãos do governo e os usuários”, diz Oliveira. 2021, a agência criou o Grupo Técnico de Segu-
rança Cibernética e Gestão de Riscos de Infraes-
raduada em relações internacionais, trutura Crítica (GT-Ciber), reunindo empresas
Louise Marie Hurel, mestranda na de telecomunicações. O grupo editou o Ato 77,
London School of Economics, no da Anatel, de julho de 2021, que estabelece re-
INFOGRÁFICO  ALEXANDRE AFFONSO / REVISTA PESQUISA FAPESP

Reino Unido, tem uma visão seme- quisitos de segurança cibernética para aparelhos
lhante. Em uma análise publicada de telecomunicações e dispositivos conectados
pelo Instituto Igarapé, instituição à internet, como roteadores, modems, celulares,
não governamental do Rio de Janei- câmeras de segurança e televisões.
ro dedicada à segurança climática e “Agora, aguardamos a interação com o novo
digital, ela comentou: “Por mais que governo e uma participação mais intensa na atua-
o GSI já desempenhe a função de coordenação e lização da estratégia nacional”, afirma Gustavo
facilitação na administração pública federal, sua Santana Borges, superintendente de controle de
relação com a sociedade civil permanece frágil, obrigações da agência e integrante do GT-Ciber. n
com grupos frequentemente apontando a falta de
transparência e militarização da agenda do De- Os artigos científicos consultados para esta reportagem estão listados
partamento de Segurança da Informação do GSI”. na versão on-line.

PESQUISA FAPESP 327 | 65


ENGENHARIA BIOMÉDICA

PRESSÃO
DENTRO
DO CRÂNIO
VIA WI-FI
Inédito, sensor ainda em desenvolvimento
poderá disponibilizar informações em tempo real
nos smartphones da equipe médica

Domingos Zaparolli

O
monitoramento contínuo da pressão pequeno sensor nos ventrículos cerebrais, cavi-
intracraniana (PIC) é uma necessi- dades internas do órgão, ou no córtex cerebral, a
dade médica no tratamento de pa- camada externa. O dispositivo é ligado por cabos
cientes com problemas neurológicos a um equipamento posicionado nas proximidades
graves, aqueles que demandam cui- do leito onde é feita a leitura da pressão. “Os ca-
dados intensivos ou são submetidos bos são um incômodo para o paciente e fonte de
a neurocirurgias. São pessoas vítimas insegurança. Um movimento mais brusco pode
de hidrocefalia, traumatismos cra- desconectá-los do monitor. Outra desvantagem
nianos, acidente vascular cerebral é que os cabos podem ser indutores de bactérias
(AVC) ou tumor no cérebro. Uma pesquisa em e gerar infecções”, descreve Barros.
desenvolvimento na Universidade Positivo, em O sensor em desenvolvimento na Universi-
Curitiba, no Paraná, pretende disponibilizar o dade Positivo não é influenciado por movimen-
primeiro sensor invasivo feito no mundo capaz tos nem pela posição do paciente, uma vez que
de gerar informações em tempo real da PIC e não será conectado por cabos a um monitor. Os
viabilizá-las por conexão de internet via Wi-Fi a dados coletados serão encaminhados via Wi-Fi
smartphones e computadores da equipe médica. a um servidor em nuvem acessível por meio de
“A proposta é levar os benefícios da conectivi- aplicativo de smartphone ou computador.
dade ao dia a dia dos neurologistas. O dispositivo A primeira versão do dispositivo implantável
projetado por nós proporcionará agilidade na foi projetada com dois componentes: um tubo
obtenção de informações críticas e dará mais se- com um cateter para coleta de dados da PIC,
gurança e conforto aos pacientes”, diz o neuroci- medindo 35 mm de comprimento por 3,5 mm de
rurgião oncológico Erasmo Barros da Silva Junior, diâmetro, e uma peça quadrada com o circuito
idealizador do estudo que está sendo desenvolvido eletrônico responsável pela comunicação via Wi-
no âmbito do Programa de Pós-graduação em Bio- -Fi. Este último item, com 34 mm de lado por 15
tecnologia Industrial (PPGBiotec) da Positivo. A mm de espessura, continha chipset (conjunto de
iniciativa tem parceria do Instituto de Neurologia chips), placa-mãe e bateria de polímero de íon
de Curitiba e das empresas paranaenses Orakolo de lítio recarregável.
Tecnologia e BMR Medical. O sensor invasivo está sendo desenvolvido em
Apesar de existirem sensores não invasivos que fibra óptica, o que proporciona uma vantagem
monitoram a PIC por meio de indicadores indire- importante sobre os tradicionais sensores eletro-
tos (ver box na página 68), os sensores invasivos, mecânicos existentes no mercado. Como a fibra
IMAGEM  SUNNYCHICKA / GETTY IMAGES  FOTO  GUSTAVO BENKE / REVISTA PESQUISA FAPESP

implantados diretamente no cérebro, são os úni- óptica é imune à interferência eletromagnética,


cos que medem diretamente a pressão craniana o aparelho não precisa ser retirado e reinstala-
calibrada em milímetros de mercúrio (mmHg),
a unidade de medida da pressão. Um paciente é
considerado em condições normais quando a PIC
está entre 5 e 15 mmHg. Registros acima de 20
mmHg requerem atenção.
“Em circunstâncias de alto risco, principalmen-
te entre pacientes que passam por neurocirurgias, Protótipo do sensor
o sensor invasivo é insubstituível”, reconhece o de Curitiba: a caixa
preta abriga o circuito
neurologista Fabiano Moulin, professor e médico eletrônico, o sistema
do pronto-socorro e da Unidade de Terapia Inten- Wi-Fi e a bateria;
siva (UTI) da Universidade Federal de São Paulo o tubo com o cateter faz
(Unifesp), estudioso dos métodos não invasivos. a coleta de dados da PIC.
O cabo branco pertence
O monitoramento da PIC classificado como ao sensor convencional
padrão ouro, ou seja, a referência na comunidade usado para fazer
médica, é realizado por meio do implante de um a medida comparativa

PESQUISA FAPESP 327 | 67


do para a realização de exames de ressonância entre os sensores, considerados compatíveis, fo-
magnética, comuns em pacientes com problemas ram publicados em artigo científico na edição de
neurológicos graves. março da revista Neurosurgery.
Uma segunda etapa da pesquisa pré-clínica,
VALIDAÇÃO EM PORCOS ainda sem data para ser iniciada, prevê o implan-
Os estudos para desenvolvimento do sensor e te em um animal vivo por um período de 7 a 10
transmissão de dados estão em fase de validação dias, tempo necessário para entender a eficiência
pré-clínica, com ensaios em animais. Na primei- da monitorização prolongada. Normalmente, o
ra etapa da pesquisa, finalizada no início do ano, acompanhamento com sensores invasivos em pa-
o dispositivo foi implantado em porcos por 120 cientes neurológicos graves é realizado durante
minutos e os indicadores da pressão intracrania- alguns dias, no máximo duas semanas.
na captados foram comparados aos obtidos por O passo seguinte da pesquisa é a avaliação em
um equipamento padrão, conectado por cabo humanos. Tudo correndo bem, a expectativa de
no mesmo animal. Os resultados da comparação Barros é que o sensor Wi-Fi se torne uma rea-

EMPRESA BRASILEIRA CRIOU


Dispositivo da brain4care
já é usado em mais
de 50 hospitais do país
O PRIMEIRO SENSOR NÃO INVASIVO
Lançado em 2019, deve chegar ao mercado internacional ainda este ano

O primeiro sensor não invasivo para nanométricas na deformação do crânio”,


monitoramento de variações de pressão explica o engenheiro de controle e automação
(PIC) e complacência intracraniana (CIC) Rodrigo Andrade, cofundador e diretor de
foi desenvolvido pela empresa brasileira pesquisa e desenvolvimento da empresa.
brain4care com apoio da FAPESP. O método de monitoramento não invasivo
O dispositivo chegou ao mercado nacional da PIC foi criado a partir de estudos do físico Ihillandit ut ariaspel
em 2019 (ver Pesquisa FAPESP nº 280) e químico Sérgio Mascarenhas de Oliveira moluptatet am seque
conecatia sincita
e é utilizado em comodato por mais de (1928-2021), professor do Instituto de Física
dolore volenda estore
50 hospitais e clínicas a um custo mensal de São Carlos da Universidade de São Paulo videm quis dolupta ea
de até R$ 5,5 mil por unidade. (IFSC-USP) e um dos fundadores da quodici tiorum a
A tecnologia da brain4care foi liberada brain4care. Ele questionou o que era
em dezembro de 2021 para uso comercial considerada até então uma certeza médica,
nos Estados Unidos pela Food and Drug a doutrina Monro-Kellie, estabelecida nos
Administration (FDA), a agência federal anos 1820 pelos cirurgiões escoceses
de drogas e alimentos norte-americana. Alexander Monro Secundus (1733-1817) e
A expectativa dos gestores da empresa é de George Kellie (1770-1829). Os dois avaliaram
que o lançamento comercial ocorra ainda que o cérebro é encerrado em uma estrutura diversos parâmetros associados à
em 2023. A FDA autorizou o uso do aparelho esquelética e que é constante o volume ali hemodinâmica cerebral. Esses parâmetros são
com restrições. Ele não pode ser utilizado presente, formado por líquor (líquido extraídos da onda, pulso a pulso, e são usados
por menores de 18 anos, pessoas com cefalorraquidiano), sangue e tecido cerebral. para gerar informações sobre a complacência
defeitos cranianos ou pacientes que sofreram Mascarenhas, no entanto, observou que intracraniana, ou seja, a capacidade do crânio
cirurgias envolvendo a retirada de parte do o batimento cardíaco gera ondas de pressão de tolerar acréscimos de volume sem aumento
osso do crânio (craniectomia descompressiva capazes de causar deformações no crânio significativo na pressão intracraniana.
ou craniotomia). na ordem de 5 micrômetros (μm). “Conforme O índice de acerto no diagnóstico da PIC,
O sensor, um dispositivo vestível cada onda distorce o crânio, é possível segundo Moulin, é bastante elevado, próximo
posicionado na cabeça do paciente com uma saber as condições de saúde do indivíduo”, a 98%. “É um sistema de monitoramento
banda de fixação, é conectado via internet conta o neurologista clínico Fabiano Moulin, bastante efetivo para o diagnóstico de
a uma plataforma analítica, que gera dados da Universidade Federal de São Paulo problemas neurológicos de baixo e médio
disponibilizados em tempo real em tablets (Unifesp), autor de três dos 59 artigos risco e evita a necessidade de intervenções
ou celulares. Como o aparelho não coleta científicos publicados sobre as observações cirúrgicas para o implante do sensor”,
dados numéricos da pressão registrados em de Mascarenhas e o monitoramento não afirma. Segundo Andrade, uma nova versão
milímetros de mercúrio, não substitui invasivo da PIC. miniaturizada do dispositivo não invasivo
os sensores invasivos. “Nosso sensor faz O método não invasivo da brain4care está em desenvolvimento na brain4care,
um monitoramento indireto, por meio da monitora a pressão intracraniana através com previsão para ser apresentada ao
observação de pequenas alterações do acesso à forma de onda da PIC e calcula público em 2024.

68 | MAIO DE 2023
DIFERENTES FORMAS DE MONITORAR A PRESSÃO INTRACRANIANA
Dispositivos implantáveis medem o parâmetro de forma precisa, enquanto os não invasivos
se baseiam em indicadores indiretos

SENSOR INVASIVO TRADICIONAL SENSOR INVASIVO SEM FIO SENSOR NÃO INVASIVO
Transdutores de pressão instalados A diferença para os aparelhos tradicionais Acoplado na cabeça e conectado via
no córtex cerebral medem diretamente é a inexistência de cabos ligando o sensor internet a uma plataforma analítica,
a pressão intracraniana em milímetros colocado no cérebro a um equipamento monitora parâmetros indiretos como a onda
de mercúrio (mmHg). Os dados são externo. O registro da pressão é enviado de pressão sanguínea que chega ao cérebro
transmitidos a um módulo de leitura por por Wi-Fi ou captado por um módulo e a capacidade de o crânio tolerar aumentos
cabos conectados ao sensor implantado dedicado posicionado junto ao paciente de volume sem elevar a pressão craniana

FONTES  ERASMO BARROS DA SILVA JÚNIOR E BRAIN4CARE

lidade de mercado em um prazo de cinco anos. e computadores não beneficiará apenas a área
Antes, precisará obter a aprovação da Agência de neurologia. “Será possível utilizar o mesmo

D
Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). conceito para desenvolver sensores para serem
usados para medir a pressão do tórax, do abdome,
ois modelos de sensores de pressão da bexiga e dos olhos”, exemplifica.
intracraniana sem fio já estão dis- O neurocirurgião André Giacomelli Leal, pre-
poníveis no mercado global. Um foi sidente eleito da Academia Brasileira de Neuro-
desenvolvido pela empresa alemã cirurgia (ABNc), avalia que a possibilidade de
Raumedic AG e outro pela norte- obter informações em tempo real de pacientes
-americana Branchpoint Technolo- neurológicos sem que seja necessário o deslo-
FOTO  LÉO RAMOS CHAVES / REVISTA PESQUISA FAPESP  INFOGRÁFICO  ALEXANDRE AFFONSO / REVISTA PESQUISA FAPESP

gies. Os equipamentos atuais, porém, camento até a sala de UTI irá gerar um benefí-
não têm conexão Wi-Fi e utilizam cio imenso ao trabalho do médico. “Se tudo der
um aparelho dedicado que depende certo, vamos ganhar tempo e com isso podere-
da aproximação com o crânio do paciente para mos ser mais proativos. O uso da tecnologia vai
a obtenção dos dados captados pelo sensor im- proporcionar maior segurança na assistência a
plantado. O custo dos dispositivos comerciais, pacientes graves”, comenta. n
segundo levantamento de Barros, está entre US$
12 mil e US$ 15 mil.
O dispositivo em desenvolvimento na Positi-
Projetos
vo passará por uma revisão em seu design para
1. Desenvolvimento de um equipamento para monitoramento mini-
uma miniaturização. Sendo assim, seus custos de mamente invasivo da pressão intracraniana (nº 08/53436-2); Moda-
produção ainda não foram definidos. Segundo lidade Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe); Pesquisador
o médico cirurgião digestivo Marcelo de Paula responsável Sérgio Mascarenhas Oliveira (Sapra); Investimento R$
654.281,90.
Loureiro, professor da PPGBiotec e orientador de 2. Registro e comercialização de um equipamento para monitoramen-
Barros no doutorado, a proposta de trabalho da to minimamente invasivo da pressão intracraniana (nº 11/51080-9);
equipe de pesquisadores da Universidade Positivo Modalidade Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe); Pesqui-
sador responsável Sérgio Mascarenhas Oliveira (Sapra); Investimento
é que o sensor Wi-Fi tenha um preço final que lhe R$ 348.684,81.
permita concorrer com os sensores conectados
Artigo científico
com cabo. Esses modelos custam entre R$ 1 mil
SILVA JUNIOR, E. B. et al. Fiber-optic intracranial pressure monitoring
e R$ 5 mil por unidade descartável. system using Wi-Fi – An in vivo study. Neurosurgery. n. 92(3), p.
Loureiro avalia que a pesquisa para o desenvol- 647-56. mar. 2023.
vimento de sensores de fibra óptica para medir Os demais projetos e os artigos científicos consultados para esta
a pressão conectados por Wi-Fi a smartphones reportagem estão listados na versão on-line.

PESQUISA FAPESP 327 | 69


ENGENHARIA DE MATERIAIS

VIDRO
CONTRA
O
CÂNCER

Biovidro em pó
e no formato de
pastilhas: partículas
magnéticas conferem
a coloração preta

70 | MAIO DE 2023
Pesquisadores desenvolvem material
compósito com potencial para matar
células cancerígenas e regenerar o osso

Suzel Tunes

A
engenheira de materiais paraibana a pesquisadora, que hoje faz doutorado no mesmo
Geovana Lira Santana conheceu as departamento. Além disso, o biovidro F18 tem
propriedades do F18, um vidro bioa- forte ação bactericida, que dificulta infecções
tivo capaz de estimular a regenera- no pós-cirúrgico.
ção óssea, ao chegar à Universidade Iniciado em 2018, o projeto teve a orientação
Federal de São Carlos (UFSCar) do engenheiro de materiais Edgar Dutra Zanotto,
para fazer mestrado. Viu no novo coordenador do LaMaV e do CeRTEV, e colabo-
material a possibilidade de realizar ração do professor do DEMa Murilo Crovace. Os
o desejo antigo de virar cientista e resultados preliminares, publicados no periódico
fazer pesquisas sobre câncer. A partir do F18, científico Materials em 2022, são promissores.
uma criação do Laboratório de Materiais Vítreos Outra característica relevante do novo mate-
(LaMaV), do Departamento de Engenharia de rial é que ele pode ser aquecido até no máximo
Materiais (DEMa) da UFSCar, Santana traba- 45 graus Celsius (oC). Dessa forma, evita-se o
lhou no desenvolvimento de um compósito com superaquecimento do local e danos a células sa-
partículas magnéticas para tratar câncer ósseo. dias vizinhas ao tumor. Em testes laboratoriais,
Com a colaboração do Centro de Pesquisa, as partículas magnéticas do compósito chegaram
Educação e Inovação em Vidros (CeRTEV) e do a 40 oC em poucos minutos ao serem submetidas
Centro de Desenvolvimento de Materiais Fun- a um campo magnético externo.
cionais (CDMF), dois Centros de Pesquisa, Ino- “É uma temperatura bem próxima à ideal pa-
vação e Difusão (Cepid) apoiados pela FAPESP, ra o tratamento do tumor, por volta de 43 °C”,
Santana desenvolveu um novo material para ser conta Santana. “A formação de uma camada de
aplicado como enxerto no osso afetado por cân- hidroxicarbonato apatita, naturalmente presente
cer. À matriz vítrea formada pelo vidro bioativo no osso humano, permite a ligação do compósi-
(ou biovidro) F18, patenteado pela UFSCar em to com o tecido ósseo”, explica a pesquisadora.
2015, ela incorporou manganitas de lantânio do- Além de buscar os níveis ideais de aquecimento,
padas, ou seja, enriquecidas com estrôncio, um as próximas etapas do projeto compreendem a
material que aquece quando exposto a um campo realização de testes in vitro e estudos clínicos,
magnético alternado externo. ainda sem data prevista. Um pedido de patente
O resultado foi um compósito – material for- do compósito foi depositado em 2021.
mado por dois ou mais componentes com pro- O médico radiologista Marcos Roberto de Me-
priedades complementares ou superiores às dos nezes, coordenador da área de radiologia e inter-
itens que lhe deram origem – com dupla função. venção guiada por imagem do Instituto do Câncer
A primeira é o combate às células tumorais pelo do Estado de São Paulo (Icesp), avalia que, uma
LÉO RAMOS CHAVES / REVISTA PESQUISA FAPESP

aquecimento controlado das partículas magné- vez validado por estudos clínicos, o novo material
ticas; a segunda é a regeneração do tecido ósseo, poderá trazer boas perspectivas ao tratamento
em razão da capacidade de osteoindução do bio- oncológico. Menezes é especialista no tratamento
vidro. “O vidro bioativo libera íons que alteram de câncer por termoablação, técnica que consiste
o pH do meio, estimulando a proliferação de cé- na inserção de agulhas guiadas por imagem pa-
lulas ósseas. Ele não apenas cria um ambiente ra destruição da célula tumoral por aumento de
favorável à regeneração do osso, como fazem os temperatura ou congelamento.
substitutos ósseos disponíveis no mercado, mas Segundo o radiologista, o uso da temperatura
também promove a formação de tecido”, resume como recurso terapêutico na oncologia pode ser

PESQUISA FAPESP 327 | 71


uma alternativa menos invasiva à cirurgia em 241), e hoje o fornece para empresas especiali-
casos específicos, como no tratamento de metás- zadas em produtos médicos e odontológicos.
tases. “A terapêutica por hipertermia [aumento O projeto de Santana é herdeiro de uma histó-
acentuado da temperatura do corpo] para a des- ria ainda mais antiga, que remonta a 1977, quando
truição da célula tumoral já está bem estabeleci- Zanotto criou o LaMaV na UFSCar. Naquela épo-
da. A grande vantagem desse novo material seria ca, o vidro bioativo ainda era novidade no Brasil.
a possibilidade de destruir o tumor mantendo a Tinha sido inventado havia menos de 10 anos, em
estrutura e a função do osso”, avalia Menezes. Ele 1969, pelo engenheiro de materiais norte-ameri-
explica que o tratamento por hipertermia destrói cano Larry Hench, da Universidade da Flórida,
o tumor, mas dependendo da extensão e gravi- nos Estados Unidos, a partir de uma composição

O
dade da lesão pode haver um enfraquecimento de sódio, cálcio, silício e fósforo.
do osso afetado, gerando perda de função e dor.
A capacidade de osteoindução do vidro bioativo novo material chamou a atenção pela
poderia solucionar esse problema. capacidade de reagir com fluidos
Mesmo faltando várias etapas para chegar ao corpóreos formando uma camada
mercado, o vidro bioativo com partículas magné- de hidroxicarbonato­apatita, o que
ticas da UFSCar já tem uma empresa interessada lhe permitia ligar-se quimicamen-
em promover sua comercialização: a startup Ve- te ao tecido ósseo e promover sua
tra, fundada em 2014 por ex-alunos do CeRTEV regeneração. Foi patenteado como
e incubada no Supera, o parque de inovações Bioglass 45S5, nome que se popu-
tecnológicas de Ribeirão Preto. larizaria para materiais similares
O biovidro utilizado como matriz do compó- com diferentes composições.
sito desenvolvido por Santana nasceu do projeto Em pouco tempo, o biovidro ganhou lugar de
de mestrado da dentista Marina Trevelin, sócia- destaque no mercado de biomateriais. “Na Euro-
-fundadora da Vetra, realizado no LaMaV-DEMa- pa e nos Estados Unidos, ele vem sendo utilizado
-UFSCar entre 2009 e 2011. No doutorado, a pes- para produzir enxertos ósseos, membranas para
quisadora expandiu o projeto avançando para a regeneração de úlceras da pele e, em forma de
os ensaios pré-clínicos e explorando diferentes pó, produtos odontológicos para a reparação de
aplicações para a tecnologia, como regeneração defeitos no esmalte e tratamento da hipersensi-
de feridas da pele e de nervos. bilidade dentinária”, destaca Zanotto.
Trevelin recebeu bolsa da FAPESP para a rea- O material inventado por Hench, entretanto,
lização do doutorado em ciência e engenharia de apresentou limitações, devido a sua baixa resis-
materiais e a Vetra teve apoio do Programa Pes- tência mecânica. Essa característica impede o uso
quisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe), como implante em locais submetidos a grandes
da Fundação, para a produção industrial do F18. cargas e limita a capacidade de moldá-lo em dife-
A startup tem a patente do material, licenciada rentes formatos. Um dia, numa conversa informal
pela UFSCar em 2016 (ver Pesquisa FAPESP no à mesa de um bar, Zanotto e Hench especulavam

SAIBA COMO NOVO COMPÓSITO ATUA NO ORGANISMO


Material vítreo implantado ajuda na recomposição do osso

Tumor Biovidro Campo


magnético

Osso

1. Para tratar o câncer ósseo, 2. Médicos fazem o 3. Depois, é aplicado um 4. O compósito vítreo é
o tecido comprometido é implante de enxerto ósseo campo magnético alternado gradualmente absorvido
removido. Após a intervenção, de biovidro F18 com LSM externo na região, levando pelo organismo e
há risco de recorrência de (manganitas de lantânio à morte as células tumorais substituído pelo novo
células cancerígenas dopadas com estrôncio) remanescentes tecido ósseo formado

FONTE  GEOVANA SANTANA

72 | MAIO DE 2023
Amostras do biovidro fórmula ideal, a F18. “Chegamos a uma compo-
com diferentes sição estável e altamente bioativa, além de bac-
composições do
material magnético
tericida. Desde o início dos testes pré-clínicos,
em 2011, o F18 tem se mostrado promissor na
regeneração tecidual”, diz Trevelin.
Valendo-se das propriedades bactericidas do
F18, Trevelin, da Vetra, pretende empregá-lo
como enxerto ósseo em pacientes acometidos
por osteomielite, uma infecção óssea causada
por microrganismos patogênicos. Ela já iniciou
pesquisas nessa direção, com financiamento do
Pipe. A realização de testes clínicos depende ago-
ra de investimentos na infraestrutura da startup,
que a pesquisadora espera fazer com auxílio do
Pipe Invest, modalidade de apoio a startups e

N
pequenas e médias empresas.

a Universidade Federal do ABC


(UFABC), em Santo André (SP),
um grupo de pesquisa liderado pe-
sobre essas limitações quando surgiu a ideia de la engenheira de materiais Juliana
um novo projeto. “Imaginamos que seria possível Marchi também desenvolve um
cristalizar o biovidro para conferir a ele maior compósito vítreo para o combate
resistência”, recorda-se o brasileiro. Esse projeto ao câncer ósseo usando hipertermia.
acabou sendo o tema do doutorado do engenhei- Além de nanopartículas magnéticas
ro de materiais Oscar Peitl, hoje professor do para o aquecimento da região afeta-
DEMa-UFSCar. Dessa pesquisa, concluída em da, o material compósito tem mais dois agentes
1995, nasceu o biosilicato, patenteado em 2003. terapêuticos: o elemento químico hólmio (Ho)
Zanotto explica que o biosilicato é uma vi- para aplicação de braquiterapia, uma espécie de
trocerâmica (ver Pesquisa FAPESP no 191). No radioterapia interna para a destruição do tumor,
processo de cristalização, realizado a partir da e ácido zoledrônico, fármaco usado para o trata-
inserção de aditivos e exposição a altas tempera- mento de metástases ósseas.
turas, o material, que inicialmente tem uma es- Segundo Marchi, essa abordagem multidis-
trutura desordenada, passa a ter uma ordenação ciplinar permitiu o desenvolvimento de uma
geométrica regular. A cristalinidade confere à vi- nova metodologia, descrita em artigo publica-
trocerâmica propriedades mecânicas superiores do na revista Biomaterials Advances, em 2022,
FOTO  LÉO RAMOS CHAVES / REVISTA PESQUISA FAPESP  INFOGRÁFICO ALEXANDRE AFFONSO / REVISTA PESQUISA FAPESP

às dos vidros bioativos, mas geralmente reduz o que resultou em um vidro com alta bioativida-
índice de bioatividade. O desafio da equipe da de e magnetização. Um diferencial do material
UFSCar foi, então, projetar uma formulação que é a possibilidade de dosar a taxa de entrega dos
conferisse uma bioatividade similar à do biovidro agentes terapêuticos associados ao compósito.
mantendo a alta resistência mecânica. O resul- “Podemos modular a dose da braquiterapia no
tado agradou os pesquisadores. momento da implantação dos vidros bioativos
“Nos últimos anos realizamos três estudos contendo a propriedade radioativa de hólmio
clínicos distintos com o biosilicato, todos com incorporado”, explica. O projeto, apoiado pela
sucesso”, informa o coordenador do LaMaV. De FAPESP, está na fase de testes in vitro. n
acordo com Zanotto, além de eficiente no tra-
tamento de hipersensibilidade dentinária, na
forma de pó, o material permitiu a produção de Projetos
implantes de ossículos do ouvido médio e de um 1. Desenvolvimento e caracterização de tecidos vítreos flexíveis alta-
mente bioativos (nº 11/22937-9); Modalidade Bolsa de Doutorado;
implante oftálmico. Essa prótese ocular de vidro Pesquisador responsável Edgar Dutra Zanotto (UFSCar); Bolsista Marina
apresenta aspecto e movimentação muito seme- Trevelin Souza; Investimento R$ 168.950,29.
lhantes ao olho natural. 2. Desenvolvimento de metodologia para a produção de vidros bioativos
particulados de alta pureza em escala industrial (nº 15/17175-3); Moda-
Anos depois, na criação do biovidro F18, os lidade Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe); Pesquisadora
pesquisadores queriam resultado oposto ao do responsável Marina Trevelin Souza (Vetra); Investimento R$ 600.150,88.
biosilicato: que ele não cristalizasse quando sub- Artigo científico
metido a altas temperaturas, permitindo maior SANTANA, G. L. et al. Smart bone graft composite for cancer therapy
controle do material na produção de fibras, teci- using magnetic hyperthermia. Materials. abr. 2022.
dos vítreos e peças 3D complexas. Trevelin conta Os demais projetos e o artigo científico consultados para esta reportagem
que foram feitas 17 tentativas até a obtenção da estão listados na versão on-line.

PESQUISA FAPESP 327 | 73


ANTROPOLOGIA

QUANDO O MAPA
 É O TERRITÓRIO
Reconhecimento de terras indígenas e quilombolas
se vale de diversas formas de cartografia

Diego Viana

A
o reconhecer aos povos indígenas “territorialidade”. Trata-se do território vivido,
o direito às terras que habitam, a ou “os modos como a terra ganha significado, a
Constituição Federal de 1988 fa- partir de sua simbologia, de seu uso, de sua re-
voreceu processos de demarcação presentação”, segundo o geógrafo Maurice Seiji
e delimitação de territórios, que Tomioka Nilsson, que cartografa terras indíge-
continuam a ser feitos até hoje. Em nas desde a década de 1980 e hoje é consultor da
todas as regiões do Brasil, as rei- organização não governamental Centro de Tra-
vindicações geraram uma profusão balho Indigenista (CTI), sediada em São Paulo.
de relatórios, laudos e pareceres, De acordo com Andrade, a cartografia vem
produzidos pelos grupos técnicos (GT) que rea- ganhando importância crescente na área da an-
lizam os estudos etno-históricos, antropológicos, tropologia, em contextos como a formação de
ambientais e cartográficos exigidos pela legisla- professores indígenas, a demarcação e a gestão
ção. Em cada uma dessas iniciativas, consta um ambiental de suas terras, a produção de laudos
elemento em comum: os mapas. para a regularização fundiária. “Os próprios in-
Durante os trabalhos, antropólogos, cartó- dígenas têm uma demanda por se apropriar das
grafos, gestores ambientais e historiadores en- ferramentas de georreferenciamento para for-
volvidos nos GT recorrem a mapas de diversas talecer sua luta por direitos territoriais”, afirma.
naturezas. Há representações oficiais, feitas no Nas demarcações, tem sido fundamental a car-
período colonial, no Império e na República. Há tografia histórica, sobretudo na análise de mapas
desenhos feitos à mão pelos moradores ou pro- produzidos na segunda metade do século XVIII,
duzidos com a ajuda de sistemas de navegação após a assinatura do Tratado de Madri, que de-
por satélite, como GPS, e aplicativos. Outros são limitou os territórios pertencentes a Portugal e
transpostos de relatos orais ou recuperados de Espanha na América do Sul em 1750, segundo a
antigas descrições. Ao longo de duas décadas historiadora Íris Kantor, coordenadora do Labo-
trabalhando com regularização fundiária, o an- ratório de Estudos de Cartografia Histórica da
tropólogo Estêvão Palitot, da Universidade Fede- Cátedra Jaime Cortesão (Lech), da Faculdade de
ral da Paraíba (UFPB), acumulou um acervo de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, da Univer-
mapas que materializam a diversidade de formas sidade de São Paulo. “Nesse período, os mapas
de cartografar necessárias para que os povos in- foram confeccionados por expedições militares
dígenas recuperassem suas terras e identidades. e científicas que visavam urbanizar os indígenas,
Reunindo esses e outros documentos, Palitot além de facilitarem a construção de fortalezas, a
e a também antropóloga Lara Erendira Almeida instalação de registros fiscais e o reconhecimen-
de Andrade, doutora pela Universidade Fede- to das vias de comunicação terrestres e fluviais.”
ral de Pernambuco (UFPE) e pós-doutoranda Hoje, “a disponibilização da cartografia digital
pelo Instituto Nacional de Pesquisa Científica em alta resolução e a catalogação dos espécimes
do Canadá, criaram o website Atlas do Pernam- cartográficos permitem fazer um uso ‘contraco-
buco Indígena. Andrade conta que, graças a sua lonial’ desses suportes de informação geográfica
experiência como produtora cultural no Recife, bidimensionais”, afirma.
viu no material uma oportunidade de colocar a O uso dos mapas históricos exige conhecimen-
BIBLIOTECA DIGITAL DE CARTOGRAFIA HISTÓRICA DA USP

documentação à disposição do público. “Esco- tos variados, explica a pesquisadora. Eles são
lhemos usar uma linguagem não especializada, classificados segundo critérios como o suporte
Detalhe da carta com textos curtos acompanhando cada mapa, e material, a linguagem gráfica e o público destina-
Praefecturae de uma ferramenta de busca para que os visitantes tário. “É fundamental evidenciar o processo social
Paraiba et Rio Grande,
executada pelo
possam navegar entre eles”, diz. O primeiro con- de sua produção, circulação e apropriação”, diz.
naturalista alemão junto de documentos, com 23 textos, está no ar Na elaboração dos laudos técnicos, a presença
Georg Marcgraf desde janeiro. ou ausência de topônimo nos mapas possibilita
(1610-1644) em torno O Atlas apresenta a variedade dos processos reconstituir as sucessivas formas de ocupação de
de 1640, que mostra
uma tropa de indígenas
cartográficos que expressam a relação de um uma área geográfica. “Essa transposição não po-
comandada por grupo humano a um território, naquilo que o de ser imediata ou inadvertida, porque os nomes
um militar holandês geógrafo Milton Santos (1926-2001) denominou de lugares variam de cartógrafo para cartógrafo.

PESQUISA FAPESP 327 | 75


O mapa Praefecturae
Paranambucae pars
Meridionalis, também
de Marcgraf, apresenta
sinais convencionados
que representam vilas,
povoados, aldeias
indígenas, fortalezas e
engenhos. O interior
é preenchido por uma
possível representação
do quilombo de Palmares

Os estudos devem levar em conta as famílias de sem na bruma do tempo. “Cerca de 100 pequenas
mapas da região”, observa. Esse método de aná- cidades da região têm origem em aldeamentos. Boa
lise também exige um conhecimento da história parte do nosso trabalho consiste em descobrir, nos
das línguas indígenas e suas interações com as documentos históricos, o que aconteceu nesses

O
línguas dos colonizadores. lugares”, diz o antropólogo da UFPB.
Palitot aponta que o Nordeste é onde os regis-
tros da ocupação indígena feitos por europeus são s pesquisadores constataram a al-
os mais antigos do Brasil. “Mas as terras não estão ternância de períodos com intensa
plenamente demarcadas, contêm muitos conflitos documentação e outros sem infor-

MAPAS 1 BIBLIOTECA DIGITAL DE CARTOGRAFIA HISTÓRICA DA USP  2 BIBLIOTECA NACIONAL


e judicialização. O ofício antropológico no Nor- mação. Em seus estudos sobre o Al-
deste lida muito com a história e a cartografia, deamento do Macaco, na serra do
porque temos que retornar constantemente aos Catimbau, em Pernambuco, onde vi-
mapas e à reconstrução do que foi feito com os ve o povo Kapinawá, Andrade relata
territórios ao longo dos séculos”, explica. que há fartos documentos durante o
Dois momentos cruciais na história da ocupação período colonial, ao qual se sucedem
indígena do Nordeste são os aldeamentos missio- 100 anos de “vazio cartográfico”. “E, de repente,
nários, ocorridos no período colonial, e as doações já no fim do século XX, reaparecem os Kapinawá
de terras, no Império. Os aldeamentos foram reali- ali. Por quê? Entender esse ‘de repente’ exige um
zados por missionários jesuítas, com o objetivo de estudo histórico rigoroso”, observa a antropóloga.
catequizar a população local. As doações também Algo semelhante ocorre na sucessão dos cen-
tinham o objetivo de integrar esses povos ao modo sos, argumenta Palitot, e ajuda a explicar a sú-
de vida ocidental, afastando-os de suas próprias bita reaparição de indígenas em determinados
tradições e crenças. Igrejas construídas nas ter- territórios. Em cada contagem da população do
ras doadas se tornavam o centro da vida comum. país está envolvida a decisão de como contabi-
Havia a expectativa de que aqueles indivíduos se lizar os grupos sociais que o habitam. Caso um
tornassem cristãos e as raízes indígenas se perdes- governo considere que os indígenas de alguma

76 | MAIO DE 2023
área foram assimilados ao restante da população, promoveram a recuperação de suas identidades. O
eles podem ser desconsiderados. aumento do registro da população indígena tam-
Nos dois primeiros censos brasileiros, em 1872 bém decorre do fato de que, entre 1991 e 2000, o
e 1890, os indígenas apareciam como “caboclos”, Censo passou a visitar comunidades mais afas-

D
sem distinção de etnia ou grupo linguístico, ex- tadas das cidades da Amazônia.
pressando a aspiração da época por uma popu-
lação homogênea e mestiça. Ao longo do século e acordo com o antropólogo, a conta-
XX, houve grande variação nos critérios, com gem mostra que esses povos sempre
a ausência até mesmo do item “cor e raça” em estiveram naqueles lugares e jamais
alguns recenseamentos. A partir de 1991, como deixaram de ser indígenas. Apesar
reflexo da nova Constituição, a população indí- dos séculos de aldeamento e expul-
gena passou a ser contabilizada em mais detalhe, sões, suas identidades nunca desapa-
incluindo seus idiomas. Naquele ano, foram re- receram por completo, manifestan-
No século XVII, o mapa
do Brasil “novo e
gistrados 294.131 indivíduos, número que cresceu do-se em costumes preservados por
acurado” elaborado pelo para 734.172 em 2000 e 817.963 em 2010. trás da adoção de hábitos ocidentais.
cartógrafo holandês Palitot associa o rápido aumento, em parte, “Diversos elementos mostram um protagonismo
Joan Blaeu (1596-1673) aos “processos de valorização das identidades indígena significativo. No Nordeste, há mitos em
assinala a presença de
povos indígenas dentro
indígenas” e, em parte, às políticas públicas que que a imagem de uma santa foi mudada de lugar
e no entorno das começaram a ser implementadas com foco nes- e voltou sozinha: a terra era dela e ela queria ficar
capitanias portuguesas ses povos, sobretudo em educação e saúde, e que com seus filhos, os indígenas”, diz.

PESQUISA FAPESP 327 | 77


O mecanismo constitucional que impulsionou indígenas, que se tornou política pública em 2012,
esse processo foi o artigo 231, parágrafo primeiro com a instalação da Política Nacional de Gestão
da Carta Magna, que reconhece as distintas ter- Territorial e Ambiental de Terras Indígenas (PN-
ritorialidades, afirma Nilsson. As terras indíge- GATI). “Essa é uma iniciativa que foi sendo feita
nas são definidas como “as habitadas em caráter primeiro, para ser pensada depois. Durante as
permanente; as utilizadas para suas atividades assessorias aos povos indígenas, tanto na políti-
produtivas; as imprescindíveis à preservação dos ca territorial quanto na educacional, eles sempre
recursos ambientais necessários a seu bem-estar; manifestavam sua preocupação social e ambiental,
e as necessárias a sua reprodução física e cultu- porque havia alguém tentando invadir e devastar
ral, segundo seus usos, costumes e tradições”. suas terras”, relembra Nilsson, que participou de
Segundo o geógrafo, consultor do CTI, trata-se diversos processos de demarcação e vários traba-
de “uma grande transformação jurídica, porque lhos no âmbito da PNGATI. Colocar o território

O
vincula a terra não a uma pessoa, mas a um povo”, no papel foi o modo encontrado para resguardá-lo.
estabelecendo uma ponte entre o regime fundiá-
rio nacional e as territorialidades tradicionais. A mapeamento participativo envol-
partir dessa definição, populações que hesitavam ve o recolhimento de depoimentos
em se reconhecer como indígenas passaram a dos indígenas, particularmente os
reivindicar esse estatuto e a buscar reconstruir anciãos, que descrevem os problemas
seus territórios. A hesitação era fruto das pres- enfrentados e os pontos-chave da área
sões oficiais por aculturação e também, muitas reivindicada. Em seguida, são feitos
vezes, do medo da violência. os chamados mapas mentais, em
Além de recorrer a documentos históricos, que o território pode ser desenhado À esquerda, mapa
também é preciso produzir mapas novos, capa- à mão livre. Em algumas ocasiões, o elaborado a partir de
zes de representar os pontos-chave da vida do processo também inclui a realização de oficinas croqui do povo Kariri-Xokó
grupo, como montes sagrados ou rios propícios de cartografia. Segue-se o trabalho de campo, em indica pontos de cultivo
e moradia, mas também
à pesca. Ou seja, a territorialidade. A iniciativa que as áreas mais significativas são visitadas e conflitos com não
em que uma população participa diretamente registradas com GPS. Os dados recolhidos são indígenas; à direita,
do mapeamento de sua terra recebe diferentes sobrepostos a imagens de satélite. os impactos da
designações, como “mapeamento participativo”, As ferramentas de mapeamento pelas próprias implantação de um
projeto de energia eólica
“mapa mental” ou “etnomapeamento”. comunidades envolvidas estão no cerne do projeto sobre comunidades
Os mapeamentos participativos constituíram “Nova cartografia social da Amazônia”, idealizado de pescadores
parte importante da gestão ambiental das terras pelo antropólogo Alfredo Wagner Berno de Almei- no litoral maranhense

78 | MAIO DE 2023
da, da Universidade do Estado do Amazonas (UEA), o rio por meio da mancha azul que é a antiga con-
e que vem sendo desenvolvido desde 2005. A car- venção cartográfica. “Com a cartografia social, os
tografia social de Almeida tem origem nos proces- indígenas puderam mapear os poços, áreas mais
sos de mapeamento do projeto Grande Carajás, da profundas do rio, onde se podem pescar determi-
década de 1980, que visava industrializar a região nados peixes ausentes das partes rasas. Os signi-
paraense por meio de uma grande ferrovia e si- ficados se multiplicam muito além do que consta
derúrgicas instaladas no entorno de Marabá, no dos mapas oficiais. Assim, quem toma decisões
Pará. A experiência de Almeida é relatada no livro acerca do impacto ambiental ou social, como o
Carajás: A guerra dos mapas (Farangola, 1993). Ministério Público ou a Defensoria Pública, tem
“Para fazer um mapa de projetos econômicos uma visão mais clara do que se passa ali”, diz.
como esse, é possível encontrar todas as informa- Para Farias Júnior, a “Nova Cartografia Social da
ções necessárias em instituições como o Instituto Amazônia” funciona como ponto de ligação entre
Brasileiro de Geografia e Estatística [IBGE] ou o pesquisadores e movimentos sociais. Almeida deu
Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Re- a sua técnica o nome de “cartografia social” para
cursos Naturais Renováveis [Ibama]”, observa o ressaltar essa conexão, que deve ser contínua, o
antropólogo Emmanuel de Almeida Farias Júnior, que não é necessariamente o caso no mapeamento
da Universidade Estadual do Maranhão (Uema) e participativo em geral. As oficinas e demais etapas
pesquisador do projeto. Segundo o pesquisador, do processo são feitas por solicitação de grupos
estão lá as diferentes áreas, as linhas de trans- envolvidos em algum conflito, seja territorial, lin-
missão, as estradas e ferrovias, os rios e cidades. guístico ou cultural. A cartografia social também
Mas isso não diz tudo. “Essa informação tem as pode ser aplicada ao espaço urbano. Farias Júnior
MAPAS  PROJETO NOVA CARTOGRAFIA SOCIAL DA AMAZÔNIA

limitações típicas de um documento feito com fi- cita as comunidades LGBT+ de Manaus, no Ama-
nalidade oficial”, diz. “A cartografia social surgiu zonas e Belém, no Pará, e dos catadores de reci-
da constatação de que os impactos sociais de uma cláveis manauaras. Esses grupos indicaram aos
iniciativa desse porte não aparecem no mapa se pesquisadores a necessidade de registrar em ma-

N
não forem indicados pelas pessoas que vivem no pas os pontos relevantes para eles dessas capitais.
lugar. E o que entra nesse mapa? Tudo que essas
pessoas indicarem como relevante e significativo.” a cartografia social e nas demais formas
A região do rio Tapajós, no Pará, é o exemplo de mapeamento participativo, a conju-
escolhido por Farias Júnior. Os mapas usados nos gação das duas técnicas, a mental e a
relatórios de impacto ambiental do complexo de via satélite, constitui um momento de-
hidrelétricas, previsto para a região, representam licado. Existe um risco de que o aparato
tecnológico sufoque as informações
trazidas pela comunidade, em razão
da disponibilidade por vezes imediata
das imagens e seu alto grau de deta-
lhamento. “O fundamento da boa transposição das
informações é o efetivo conhecimento do território,
que se obtém nas etapas anteriores”, diz Nilsson.
“Na verdade, a informação que vem dos relatos é
mais rica e relevante. Então é preciso pensar em
parâmetros para obter a simetria entre as duas téc-
nicas, que não são naturalmente harmônicas”, alerta.
Kantor chama a atenção para a mesma dificul-
dade no âmbito da cartografia histórica. “Conjugar
as diferentes práticas de representação do espaço
em uma mesma base de dados é questão crucial.
A sobreposição das camadas de informação tem
que ser feita com método, para que seja possível
fazer comparações e cruzamento de referências”,
observa. Para melhor cumprir suas funções, o repo-
sitório de imagens “deve contar com a colaboração
de etnógrafos, arqueólogos, botânicos, geólogos,
historiadores da cartografia, linguistas, especialis-
tas em tecnologia da informação, em inteligência
artificial, entre outros”. n

O livro e os artigos científicos consultados para esta reportagem


estão listados na versão on-line.

PESQUISA FAPESP 327 | 79


ENTREVISTA ANDRÉS ROLDÁN

VOCAÇÃO
CIENTÍFICA
E CÍVICA
Parque Explora, em Medellín,
fomenta a transformação urbana

Christina Queiroz, de Medellín

S
ímbolo de transformação social em científico, tecnológico, de biodiversidade e ino- Roldán em uma das
uma cidade que, na década de 1990, vação. Além disso, conta com aquário e viveiro, instalações do Parque
Explora, que atua
foi considerada a mais violenta do que abrigam mais de 2 mil animais resgatados como uma empresa
mundo, o Parque Explora, em Me- do tráfico de espécies e de posses irregulares. cultural, prestando
dellín, é um dos museus mais visi- O Parque Explora também funciona como uma serviço para terceiros 
tados da Colômbia e centro de referência na empresa cultural, prestando serviços de consul-
América Latina. O município, segundo maior toria para terceiros e oferecendo espaços para
do país, localizado na cordilheira dos Andes, a realização de eventos, seminários e shows.
foi um dos que mais sofreram os impactos do Em entrevista concedida a Pesquisa FAPESP
conflito armado que teve início na década de no marco da Conferência Mundial de Jornalis-
1960 e terminou oficialmente em 2016, quan- tas de Ciência (WCSJ), Andrés Roldán, diretor-
do o governo assinou o Acordo de Paz com as -executivo do museu há quase uma década, falou
Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia – sobre os impactos sociais da instituição na cidade
Exército do Povo (Farc-EP). Medellín tornou-se que, nos últimos 20 anos, se tornou referência
o epicentro da violência urbana desencadeada em urbanismo social, por meio da adoção de po-
entre paramilitares, guerrilheiros, narcotrafi- líticas públicas e projetos de inovação. Graduado
cantes e agentes do Estado, especialmente entre em desenho industrial pela Universidade Ponti-
as décadas de 1980 e 1990. fícia Bolivariana, na entrevista Roldán abordou
Criado em 2007 em um bairro onde há cerca os modelos de negócio do Parque Explora, que
de 40 anos funcionava um aterro sanitário, o asseguram sua sustentabilidade financeira, tor-
museu oferece mais de 300 experiências para nando-o praticamente independente do aporte
promover a apropriação social do conhecimento de recursos públicos.

80 | MAIO DE 2023
Como o Parque Explora foi criado? Universidade dos Andes, em Bogotá, ca- da Comuna 13, que tem uma história de
O Explora abriu suas portas em dezem- pital do país. Pelayo considerava que um transformação e, hoje, se tornou ponto
bro de 2007. O museu foi criado a partir museu de ciências seria estratégico para turístico. Parques, espaços recreativos,
de um investimento público feito pela ci- a cidade e, por essa razão, começou a in- artísticos e esportivos e bibliotecas fo-
dade de Medellín, que viabilizou a cons- vestir no desenvolvimento de um grande ram construídos no coração de favelas
trução do edifício, da infraestrutura e da projeto. A criação do Parque Explora faz que, atualmente, também podem ser
primeira versão das experiências. Me- parte de um movimento, desencadeado acessadas por meio de modernos siste-
dellín recebe recursos de uma empresa nos últimos 20 anos, para criar espaços mas de teleféricos, facilitando a conexão
de serviços públicos chamada Empresas culturais, museus, bibliotecas, parques com o centro da cidade.
Públicas de Medellín, uma das maiores e complexos esportivos em bairros mar-
da Colômbia. Essa companhia pertence ginais e periféricos da cidade. Como é a região onde o museu foi criado?
à prefeitura e desenvolve trabalhos in- Estamos localizados no bairro de Aran-
clusive no exterior, incluindo projetos Em 2007, como era a questão da vio- juez. Apesar de ser uma zona relativa-
de saneamento, distribuição de energia lência e do conflito armado na cidade? mente central, ficamos nos limites da
elétrica e gestão de resíduos sólidos. Is- O período mais violento em decorrên- cidade planejada e da chamada cidade
MÁRIO QUINTERO / PARQUE EXPLORA

so permite que a cidade tenha um orça- cia do narcotráfico e do conflito arma- autoconstruída, que seria o equivalente
mento mais robusto do que o de outros do durou até 2002. Nos anos seguintes, às favelas no Brasil. Ao nosso lado está
lugares do país. Em 2004, a prefeitura a cidade passou por mudanças e a vio- a região de Moravia, onde funcionava o
era dirigida pelo matemático colombiano lência caiu radicalmente. A queda tem antigo aterro sanitário da cidade, que
Sérgio Fajardo, doutor honoris causa da a ver com grandes investimentos volta- chegou a abrigar 30 metros de altura de
Universidade Internacional Menéndez dos à integração social, especialmente lixo, espalhado em uma extensão de 7
Pelayo, na Espanha, e ex-professor da em bairros periféricos, como é o caso hectares. Saturado, esse lixão foi fecha-

PESQUISA FAPESP 327 | 81


do na década de 1980. Posteriormente, sem dinheiro público. Para isso, con- a pessoa mora em um bairro vulnerável.
passou a ser habitado por migrantes de tamos com quatro linhas de trabalho. Ao apresentar a conta, ela pode ingressar
zonas rurais, que aqui se instalaram de- A primeira é a atividade do museu, o gratuitamente com outras cinco pessoas.
pois de fugir da violência e do conflito mais visitado da Colômbia. Recebemos Para subsidiar essas gratuidades, tam-
interno, em busca de melhores opor- cerca de 700 mil visitantes por ano só bém temos acordos com aliados sociais,
tunidades de vida. O bairro cresceu e nas exposições e atividades museológi- como a Caixa de Compensação Fami-
se desenvolveu e, atualmente, é um dos cas, além de outros 200 mil em eventos, liar da Antioquia, o equivalente ao Sesc
mais densamente povoados do mundo. seminários e shows. Ou seja, nossa pri- [Serviço Social do Comércio], no Brasil.
Moravia é uma zona pequena e popular meira linha de negócios para assegurar a
que há 30 anos era composta por casas sustentabilidade é a própria operação do Além do museu, quais outras fontes de
de papelão e hoje tem residências de museu, o que inclui a venda de ingressos, renda do parque?
alvenaria, de três ou quatro andares. O a organização de eventos, os congressos Nossa segunda fonte envolve a oferta de
lugar onde o museu está localizado faz e as atividades de lojas e restaurantes. serviços de consultoria para a criação de
parte de um grande projeto de transfor- Também recebemos um subsídio da pre- museus e exposições. Estamos desenvol-
mação urbana. Na mesma área do Parque feitura para oferecer entrada gratuita vendo os conceitos para a construção de
Explora funcionam o Jardim Botânico, para moradores das comunidades mais um museu de história natural em Cali,
reformado entre 2005 e 2007, um pla- pobres. Cerca de 100 mil pessoas usu- acabamos de concluir o projeto de um
netário e o Parque dos Desejos, praça fruem desse benefício por ano. Em 2022, centro de visitantes no canal do Pana-
pública com árvores e espelhos d’água, 120 mil estudantes de colégios públicos má e trabalhamos para desenvolver um
destinada a atividades culturais e cien- e privados também ingressaram no mu- centro cultural para a República Domini-
tíficas. Em 2021, essa praça foi o centro seu de forma subsidiada. cana. Nossa equipe encarregada de pro-
de manifestações e protestos contra a jetos para terceiros reúne cerca de 100
crise social no país, que se agravou com E como se define quem tem direito a pessoas, entre divulgadores, pesquisado-
a chegada da pandemia. Esse território esses subsídios? res, arquitetos e projetistas. Oferecemos
se tornou um campo de batalha entre Não pagam entrada os moradores de serviços de consultoria para criar mu-
jovens e a polícia. bairros classificados como fazendo par- seus, exposições e estratégias itinerantes,
te dos estratos 1, 2 e 3 de Medellín. São desde o conceito até o desenvolvimento.
O que esses espaços têm em comum? os mesmos habitantes de bairros mais A terceira fonte de renda abarca proje-
O Parque Explora e as outras instituições vulneráveis que pagam um valor menor tos de educação em ciência, tecnologia,
têm como missão primordial promover e pela energia elétrica consumida, se com- engenharia e matemática para escolas.
disseminar a cultura científica e tecno- parada à tarifa cobrada de quem vive em Somos contratados por governos locais
lógica na sociedade. Estamos ao lado da bairros de alto padrão. Com isso, pela e regionais, empresas e instituições pri-
Universidade da Antioquia e próximos à conta de luz, conseguimos identificar se vadas para criar, por exemplo, clubes e
Rota N, um hub de empreendimentos fo- feiras de robótica, ciência e astronomia.
cados em tecnologia e inovação, em uma Nessa frente de trabalho, temos em curso
zona que também dispõe de hospitais e um grande projeto de cooperação inter-
centros de pesquisa médica. Além da vo- nacional com os Estados Unidos, voltado
cação científica, a visão que está por trás a 150 colégios de cinco cidades da Co-
do projeto é a de colaborar com a trans- lômbia que acolhem a principal comu-
formação da cidade e a de desempenhar nidade de imigrantes venezuelanos. A
um papel cívico, na medida em que se quarta fonte de recursos vem de projetos
localiza em um bairro onde acontecem educativos não vinculados a escolas e
manifestações e atividades culturais, co- voltados a jovens de comunidades. Esses
mo, por exemplo, a Festa do Livro, prin- projetos geralmente são contratados por
cipal evento literário da cidade. Parque Explora governos locais. Em 2022, realizamos um
programa de formação com lideranças
Como é assegurada a sustentabilidade faz parte femininas de bairros periféricos para en-
financeira do museu? siná-las a formular projetos e a organizar
O Parque Explora é administrado por
de um amplo trabalhos em seus entornos. Para apoiar
uma entidade sem fins lucrativos, cha- projeto da essas atividades, contamos com um es-
mada Corporação Parque Explora. Dessa paço chamado Exploratório. Nele dese-
corporação fazem parte organizações prefeitura nhamos e testamos diferentes ideias de
sociais educativas, de divulgação e fun- projetos com comunidades. Além disso,
dações privadas sociais. A prefeitura in- de Medellín o Exploratório também funciona como
tegra a junta diretiva. Recebemos um pe- laboratório cidadão para realizar expe-
queno aporte financeiro da cidade para
para promover rimentações de arte e ciência.
pagar serviços públicos como vigilância, mudanças
limpeza, luz e água, mas precisamos ser Ou seja, o Parque Explora é uma em-
autossustentáveis, capazes de operar sociais  presa cultural.

82 | MAIO DE 2023
Museu funciona em um bairro que fica nos limites entre a cidade planejada e a cidade autoconstruída 

Isso mesmo. No ano passado, chega- a disseminar a cultura científica. Ao re- como cocriadores em diferentes iniciati-
mos a ter 600 pessoas contratadas. Ho- conhecer essas organizações, o minis- vas. Assessoramos quem nunca elaborou
je estamos com 450, porque crescemos tério permite que pleiteiem recursos no um museu para que faça as perguntas
e decrescemos conforme os projetos Sistema Geral de Royalties, que inclui estratégicas necessárias para começar a
em andamento. Atuamos com um le- royalties do petróleo e da mineração, desenhar o conceito, a missão temática
que grande e desafiador de atividades para financiar seus projetos. e, por fim, para construir o espaço. Com
e trabalhamos muito. Conforme nosso o Museu Casa da Memória foi assim. Em
ordenamento jurídico e nosso estatuto, Como a pandemia impactou a insti- 2008, como parte das ações do Progra-
precisamos ser capazes de operar sem tuição? ma de Atenção às Vítimas do Conflito
dinheiro público. Por isso, devemos es- Foi um período duro, tivemos anos ne- Armado, o governo decidiu criar a ins-
tar sempre em busca de novos projetos gativos, ou seja, perdemos dinheiro. tituição, inaugurada em 2012. A equipe
e oportunidades. Mesmo assim, decidimos não demitir do Explora elaborou a experiência e o
ninguém. Por outro lado, nos conver- conteúdo do museu, desenvolvido com
Museus de ciência são uma tradição temos em um hub de recursos digitais base em pesquisas e consultas cidadãs,
na Colômbia? para famílias e professores, oferecendo por meio de exercícios de construção
Não. Temos poucos museus do porte eventos e experiências gratuitas on-line coletiva de memórias e reparação sim-
do Parque Explora. Em Bogotá, há um por meio da plataforma Parque Explora bólica. Sua finalidade é contribuir para a
chamado Maloka. No geral, contamos em Casa. A plataforma segue em uso, em superação do conflito e da violência em
com zoológicos e instituições mais tra- níveis inferiores aos do pico na pande- Medellín, na Antioquia e no país. Não é
dicionais. Ainda falta muito para che- mia. Mas já nos recuperamos dos im- fácil atuar com projetos museológicos
garmos a um patamar ideal, mas obser- pactos da Covid-19. O ano de 2022 foi o porque, muitas vezes, há vontade políti-
vo um interesse crescente das cidades que registramos os melhores resultados ca, mas não há recursos econômicos. Por
para investir em projetos e centros de financeiros de toda nossa história. isso, é preciso trabalhar em etapas. O pri-
ciência. Na Colômbia, o engajamento meiro passo é conceber uma declaração
com a ciência é chamado de apropriação Medellín conta também com o Museu que contenha a missão e os objetivos do
MÁRIO QUINTERO / PARQUE EXPLORA

social do conhecimento. E o Ministério Casa da Memória. Poderia falar um projeto, incluindo seu público-alvo e o
de Ciência, Tecnologia e Inovação tem pouco sobre esse outro espaço de refe- tipo de experiência que pretende ofere-
feito um grande esforço para reconhecer rência na cidade? cer. Esse primeiro documento funciona
centros de ciência no país, como jardins Na Colômbia não há tantas pessoas ca- como um pontapé inicial e permite sub-
botânicos, zoológicos, museus interati- pacitadas para desenvolver e adminis- sidiar a busca por recursos financeiros
vos, universitários e de história natural, trar museus e exposições. Então, muitas que tornarão viável o desenvolvimento
além de outras organizações que ajudam instituições nos buscam para atuarmos do projeto até o fim. n

PESQUISA FAPESP 327 | 83


HISTÓRIA

PRECISAMOS
FALAR
SOBRE
A MORTE
Imagens que integram
memorial aos mortos
no Cemitério São Luiz,
na cidade de São Paulo
Em livro recém-lançado, pesquisadores tratam
do tema em suas várias vertentes com o objetivo
de levar a discussão para dentro da escola

Ana Paula Orlandi

P
ublicado desde 1851, o obituário por vezes, com abordagem sensacionalista e pou-
do jornal norte-americano The co educativa”, relata Dillmann, da Universidade
New York Times criou em 2020 Federal de Pelotas (UFPel). “A meta do Guia é
um memorial virtual intitulado levar essa discussão para dentro da escola e co-
Those We’ve Lost para home- meçar a falar sobre a morte desde cedo, a partir
nagear os mortos vítimas de do fundamental II, de forma crítica, reflexiva e
Covid-19. Entre eles está o ator fundamentada na ciência.”
e humorista fluminense Paulo Os textos foram escritos por 39 pesquisadores,
Gustavo (1978-2021), apontado do Brasil e de Portugal, e de múltiplas áreas do
pelo periódico como um dos conhecimento como história, ciências sociais,
intérpretes mais queridos pelos religião, direito e medicina. “Graças a essa va-
brasileiros, que pouco antes de riedade de especialistas, não tratamos apenas
adoecer teria dito que rir era “um belo ato de do passado, como é praxe entre historiadores,
resistência”, como escreve a historiadora Mariana mas também de questões contemporâneas, a
Antão de Carvalho Rosa, do Instituto Estadual exemplo de eutanásia e de necropolítica, observa
de Educação, Ciência e Tecnologia do Maranhão Nascimento, ao referir-se ao conceito proposto
(Iema), no texto a respeito de obituários que in- pelo filósofo camaronês Achille Mbembe, em
tegra o recém-lançado Guia didático e histórico ensaio publicado em 2003, que discute como o
de verbetes sobre a morte e o morrer. Estado escolhe quem vive e quem morre. Para
Organizada pelos historiadores Mara Regina a historiadora da arte Maria Elizia Borges, do
do Nascimento e Mauro Dillmann, a obra reúne Programa de Pós-graduação de História da Uni-
62 verbetes sobre temas como luto, velório e me- versidade Federal de Goiás (UFG), a morte é um
mória. “Vivemos em uma sociedade que cultua tema multidisciplinar. “No caso dos cemitérios,
a juventude e a ilusão de que seremos eternos. por exemplo, podemos estudar, entre outras coi-
Temos, portanto, grande dificuldade em lidar sas, a história e a geografia do local, a trajetória
com a finitude da vida”, observa Nascimento, das famílias dos mortos ali enterrados e a ico-
da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). nografia dos túmulos”, explica a pesquisadora,
“Mas, como a morte é uma questão inescapável que assina os verbetes “cemitério-necrópole” e
para todos os seres humanos, precisa ser mais “lápides e epitáfios”.
LÉO RAMOS CHAVES / REVISTA PESQUISA FAPESP

discutida pela população.” Borges começou a investigar a temática dos


Com financiamento da Coordenação de Aper- cemitérios durante sua pesquisa de doutorado,
feiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Ca- que resultou em tese defendida há mais de três
pes), o livro pode ser baixado de forma gratuita décadas na Escola de Comunicações e Artes da
e é voltado para professores do ensino básico. Ao Universidade de São Paulo (ECA-USP). Atual-
final de cada verbete, encontram-se atividades mente é presidente de honra da Associação Bra-
didáticas para serem feitas em sala de aula. “Al- sileira de Estudos Cemiteriais (Abec), institui-
guns estudos apontam que o tema da morte está ção que ajudou a criar em 2004, em São Paulo,
presente no cotidiano dos brasileiros em diversas e reúne cerca de 70 integrantes de todo o país,
mídias, como a televisão e as redes sociais, mas, sobretudo do meio acadêmico.

PESQUISA FAPESP 327 | 85


Segundo a estudiosa, os cemitérios passaram quisa se acentuou de forma gradativa nos cursos
por várias configurações ao longo da história oci- de pós-graduação pelo país há pouco mais de
dental. Foi na Idade Média, por exemplo, com a três décadas, estimulado, entre outros motivos,
expansão do cristianismo, que os corpos começa- pela publicação do livro A morte é uma festa,
ram a ser sepultados no interior ou nos arredores do historiador João José Reis, da Universidade
de igrejas. “Na virada para o século XIX, os ce- Federal da Bahia (UFBA), em 1991, pela editora
mitérios se tornaram secularizados, ou seja, gra- Companhia das Letras. “É o primeiro livro sobre
dativamente foram perdendo a influência direta a história da morte publicado no Brasil, tendo
da Igreja Católica e se distanciando dos centros como base pesquisas em arquivos brasileiros e
das cidades, em observância a preceitos higienis- as obras europeias como as de Michel Vovelle e

D
tas que despontavam naquele momento”, conta. Philippe Ariès”, conta a pesquisadora, que inves-
tiga a temática da morte há mais de 30 anos e no
e acordo com a historiadora Guia assina o verbete sobre o morrer católico.
Claudia Rodrigues, da Univer- Rodrigues é uma das coordenadoras de Ima-
sidade Federal do Estado do Rio gens da morte: A morte e o morrer no mundo
de Janeiro (Unirio), foi a partir ibero-americano, grupo de pesquisa do Depar-
da década de 1960 que os estu- tamento de História da Unirio, certificado pelo
dos sobre a morte ganharam im- Conselho Nacional de Desenvolvimento Cien-
pulso, na área de humanidades. tífico e Tecnológico (CNPq). Criada em 2011,
Isso se deu inicialmente na Eu- a iniciativa tem cerca de 50 integrantes, entre
À esquerda, cruz ropa e nos Estados Unidos, por professores universitários e estudantes de pós-
remanescente de meio de trabalhos de pesqui- -graduação de países como Brasil, Argentina,
cemitério protestante
instalado em área da
sadores como os historiadores Espanha e Colômbia. Em julho, o grupo deve
fazenda Ipanema, franceses Philippe Ariès (1914- apresentar um painel temático no 32º Simpósio
em Iperó, no interior 1984) e Michel Vovelle (1933-2018). No Brasil, um Nacional de História da Associação Nacional dos
do estado de São dos pioneiros nesse campo foi o educador baiano Professores Universitários de História (Anpuh),
Paulo. À direita, lápides
no Cemitério do Caju,
Clarival do Prado Valladares (1918-1983), que em São Luís, no Maranhão. “Nosso eixo é a histó-
na zona norte iniciou suas pesquisas na década de 1960 e pu- ria, mas dialogamos com várias áreas do conhe-
do Rio de Janeiro blicou livros como Arte e sociedade nos cemitérios cimento”, diz Rodrigues, editora da publicação
brasileiros (Conselho multidisciplinar Revista M. – Estudos sobre a
Federal de Cultura/ Morte, os Mortos e o Morrer. “Esse intercâmbio
Departamento de Im- é fundamental para, entre outros motivos, ex-
prensa Nacional, 1972). pandir a inserção de disciplinas como história
Seus dois volumes tra- da morte em cursos da área da saúde.”
tam do tema em 1.487 A lacuna é gigantesca, pelo menos no campo
páginas. Segundo Ro- da medicina, indica levantamento realizado pelos
drigues, no campo da pesquisadores George Felipe de Moura Batista e
história, o interesse Gustavo da Cunha Lima Freire, da Universida-
por esse objeto de pes- de Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), em
OS ESTUDOS SOBRE A MORTE
GANHARAM IMPULSO,
NA ÁREA DE HUMANIDADES,
A PARTIR DA DÉCADA DE 1960

Natal. O estudo publicado na Revista Brasileira menta final costumam


de Bioética, em 2019, mostra que apenas duas, ser decisão da família
dentre as 50 universidades de medicina incluídas e não previamente do
em ranking do jornal Folha de S.Paulo, ofereciam próprio falecido. Isso,
disciplinas obrigatórias voltadas à tanatologia, entretanto, pode estar
ciência que abarca o estudo dos estágios da morte mudando. Como Sch-

N
e do processo de luto. mitt escreve no Guia,
observa-se atualmente,
o decorrer do século XIX famí- no mundo todo, movi-
lias burguesas contratavam fotó- mentos oriundos prin-
grafos para registrar uma última cipalmente das redes
imagem dos mortos, segundo a sociais que “encorajam
historiadora Juliana Schmitt, as pessoas a refletirem
professora do curso de artes vi- sobre a própria morte,
suais da Universidade Federal de tomando as decisões
Pernambuco (UFPE), no Recife. sobre as etapas pelas quais seus restos mortais Estátua do Sagrado
A ideia era guardar a memória passarão (o que inclui as roupas com as quais Coração de Jesus
no cemitério
daquele ente querido. “A prática seus corpos mortos serão vestidos) e deixando da Vila Alpina,
começou na Europa em meados explícitos, ainda em vida, esses desejos”. na região sudeste
do século XIX e algum tempo Conforme a estudiosa, o rigor em relação aos da capital paulista
depois chegou ao Brasil”, conta Schmitt, autora trajes de luto na sociedade ocidental foi reforça-
do verbete sobre fotografia mortuária. O acervo do no século XIX pela rainha Vitória (1837-1901),
do Museu do Ipiranga da Universidade de São do Reino Unido. Após a morte do marido, Albert,
Paulo (USP), por exemplo, guarda cerca de 20 em 1861, a regente usou roupas e acessórios na
retratos de mortos feitos por Militão Augusto cor preta até o final de sua vida, ou seja, por 40
de Azevedo (1837-1905), fotógrafo que atuou em anos. “Dessa forma, disseminou o culto ao luto
São Paulo no século XIX. “Entretanto, a partir para todas as classes sociais de sua época. Mas
das primeiras décadas do século XX esse tipo de manter esse rito ao longo de cerca de dois anos e
imagem ganhou fama na sociedade ocidental de meio e com as roupas adequadas, de preferência
algo mórbido e de mau gosto.” novas e seguindo a silhueta da moda, como pre-
Uma das explicações para que isso tenha ocor- conizavam os manuais de etiqueta da época, era
rido, segundo a pesquisadora, está no progressivo privilégio de poucas pessoas”, conta a pesquisa-
distanciamento da sociedade ocidental em relação dora, autora de Três lições da história da morte.
à morte. “Até o final do século XIX, morria-se, No decorrer do século XX, após as duas guerras
sobretudo, em casa, na companhia de familia- mundiais, as regras foram sendo afrouxadas. “Ho-
res, amigos e vizinhos. Depois a morte passou a je mantém-se a tradição do uso da cor preta no
FOTOS  LÉO RAMOS CHAVES / REVISTA PESQUISA FAPESP

ocorrer fora do ambiente doméstico, nos hospi- mundo ocidental e de peças de modelagem dis-
tais. Além disso, a profissionalização dos serviços creta, mas não há mais nenhuma obrigatoriedade
funerários liberou, em parte, as famílias da lida nesse sentido”, conclui Schmitt. n
com o cadáver”, relata Schmitt.
No Guia, a pesquisadora também assina um
verbete sobre vestuário fúnebre, termo que se Livros
aplica tanto às roupas vestidas por cadáveres DILLMANN, M. e NASCIMENTO, M. R. (orgs.). Guia didático e histórico
quanto as usadas pelos enlutados. Em sua avalia- de verbetes sobre a morte e o morrer. Porto Alegre: Casaletras, 2022.
http://guaiaca.ufpel.edu.br/handle/prefix/8988
ção, por fugirmos do debate em torno da finitude SCHMITT, J. Três lições da história da morte. Rio de Janeiro: Editora
no mundo contemporâneo, questões como a vesti- UFRJ, 2023.

PESQUISA FAPESP 327 | 87


MEMÓRIA
Ilustração anônima
de Buenaventura Suárez
e desenho de Alfred
Demersay das ruínas
da igreja de São Miguel
Arcanjo em 1846

O CÉU
VISTO DAS
MISSÕES
Com telescópios feitos com
os Guarani do sul do Brasil, o jesuíta
Buenaventura Suárez observou
eclipses lunares e solares e luas de
Júpiter, com precisão, no século XVIII
Danilo Albergaria
1

88 | MAIO DE 2023
N
o início do século XVIII, uma finalidade religiosa e colaborava com do sol observada com um quadrante, um
nos aldeamentos das Mis- o processo de difusão do cristianismo.” aparelho astronômico rudimentar, a me-
sões Jesuíticas da bacia Em San Miguel Arcanjo, atualmente dição de eclipses dos satélites jovianos,
do rio da Prata, territó- no município gaúcho de São Miguel das de acordo com um método desenvolvi-
rio hoje dividido entre Missões, Suárez registrou dois eclipses do pelo próprio Galileu, era usada pa-
o Brasil, a Argentina e o lunares, um em 1728 e outro, com um te- ra encontrar a diferença da longitude
Paraguai, o jesuíta Buenaventura (ou lescópio refrator (de tecnologia simples, entre o local de observação e um local
Boaventura) Suárez (1679-1750) tinha com duas lentes convexas) de 3 metros de referência no globo com longitude
um profundo interesse nos fenômenos (m) de comprimento, em 1747. Nesse conhecida, como hoje é o meridiano de
celestes, mas enfrentou dificuldades pa- mesmo ano e com o mesmo telescópio, Greenwich, em Londres. “Suárez usou o
ra ser um astrônomo. Como a Compa- na missão de Santa Maria la Mayor, na método mais preciso e, ao mesmo tem-
nhia de Jesus, na Espanha, não enviava atual Argentina, observou outro eclipse po, exequível em sua época”, reconhece
equipamentos de medição e observação, lunar. Os registros de 1747 foram publi- o astrofísico Oscar Matsuura, professor
ele construiu seus próprios telescópios cados na Philosophical Transactions, re- aposentado da Universidade de São Pau-
e fez observações consideradas consis- vista científica da Royal Society, a acade- lo e organizador do livro História da as-
tentes por especialistas em centros cien- mia de ciências britânica, em 1749 e 1750. tronomia no Brasil (Cepe, 2014).
tíficos europeus dotados de aparelhos Mais importantes são suas observa- Nos 13 anos em que viveu em San Cos-
muito melhores. ções sistemáticas das quatro maiores luas me, o jesuíta observou 147 eclipses de
Suárez era da elite criolla da região, de Júpiter, descobertas pelo matemático satélites de Júpiter e usou essas infor-
filho de uma bisneta do conquistador italiano Galileu Galilei (1564-1642) e já mações para estabelecer a longitude de
espanhol Juan de Garay (1528-1583), de amplo conhecimento no século XVIII. todas as 30 missões. O astrônomo sueco
fundador de Santa Fé, atualmente na Com um relógio ajustado pela posição Pehr Wilhelm Wargentin (1717-1783) usou
Argentina, onde ele nasceu. Estudou no
colégio jesuíta da cidade, ingressou na 3

Companhia de Jesus aos 16 anos e, em


seguida, na Universidade de Córdoba,
também em território argentino. Nessa
época, além de se dedicar à filosofia e à
teologia, entrou em contato com as ciên-
cias exatas e se tornou um matemático
e astrônomo autodidata.
Ele observou o primeiro eclipse lunar,
a olho nu, em 1700, em Corrientes, pró-
ximo da divisa da Argentina com o Pa-
raguai. Ordenado padre em 1704, Suárez
foi para as missões jesuíticas nas terras
FOTOS 1 MISSIONESONLINE  2 WIKIMEDIA COMMONS  3 ARQUIVO GERAL DE SIMANCAS

dos Guarani. As 30 missões ocupavam


uma área correspondente atualmente
ao sul do Paraguai, à província argentina
de Misiones e ao oeste do estado do Rio
Grande do Sul.
O jesuíta astrônomo construiu sua base
em San Cosme y Damián, no atual Para-
guai, e fez observações lunares e solares
nas missões durante quase cinco déca-
das. “Seu trabalho científico servia aos
interesses das Missões, por exemplo, ao
estabelecer as datas de festas móveis no
calendário, como a Páscoa”, diz o his- Mapa das Missões
dos Guarani a cargo
toriador da ciência Miguel de Asúa, da dos jesuítas em
Universidade Nacional de San Martín, na 1768, com menção
Argentina. “A astronomia de Suárez tinha a dados de Suárez

PESQUISA FAPESP 327 | 89


Tabelas do lunário, com
predições de fases
da lua e eclipses lunares
e solares de janeiro de 1740
a dezembro de 1841

mento indígena das rochas pode ter dado


a Suárez cristais muito transparentes que,
cuidadosamente polidos, poderiam substi-
tuir as lentes de vidro. O historiador argen-
tino Guillermo Furlong (1889-1974), que
fez a primeira pesquisa histórica profis-
sional sobre Suárez, encontrou documen-
tos com relatos de instrumentos usados
na fabricação de lentes na missão de São
Borja, no atual Rio Grande do Sul, logo
após a expulsão dos jesuítas das colônias
espanholas em 1767.
Construir o tubo – ou corpo – dos te-
1 lescópios foi menos complicado, já que,
segundo Barcelos, os indígenas tinham
dados colhidos por Suárez em seu artigo afirma o historiador alemão Karl Heinz muita habilidade em marcenaria e car-
publicado em 1748 sobre a lua Io, o mais Arenz, da Universidade Federal do Pará pintaria. Os telescópios, mesmo os maio-
interno dos satélites galileanos de Júpiter. (UFPA). Segundo ele, os missionários res, podem ter sido feitos de madeira ou

S
procuravam produzir nas próprias mis- de metal. Em algumas missões, Suárez e
eu conhecimento de mate- sões tudo de que precisavam, como equi- os indígenas fundiam sinos e fabricavam
mática lhe serviu também pamentos agrícolas, culinários ou mu- instrumentos musicais, como tubos de ór-
para elaborar lunários – sicais. “O vidro de qualidade suficiente gão. “Muitas crônicas jesuíticas destacam
compêndios de predições para produzir lentes para telescópios era a capacidade dos Guarani de fazer relógios
astronômicas como fases de acesso restrito, porque tinha de ser e astrolábios como os europeus”, relata
da lua e eclipses lunares e comprado via Buenos Aires ou Assun- Asúa. Impulsionadas pela astronomia de
solares. “O lunário era importante para ção”, esclarece o historiador Artur Henri- Suárez, as Missões produziram relógios de
a organização da vida nas missões”, diz que Barcelos, da Universidade Federal do sol, relógios mecânicos, globos terrestres
o historiador argentino Carlos Daniel Rio Grande (Furg), no Rio Grande do Sul. e celestes, perdidos após a expulsão dos
Paz, da Universidade do Vale do Rio dos O mais provável é que ele tenha cons- jesuítas das terras espanholas em 1767.
Sinos (Unisinos), em São Leopoldo, no truído as lentes a partir de materiais lo- Suárez e os Guarani fabricaram oito
Rio Grande do Sul. “Era uma forma de cais. Havia cristais de quartzo em abun- telescópios, com comprimento que va-
organizar o tempo das missões e orientar dância no Chaco paraguaio, e o conheci- riou entre 2,3 m e 9 m. Para operar os

FOTOS 1 OPENLIBRARY  2 BIBLIOTECA NACIONAL DE PORTUGAL / WIKIMEDIA COMMONS  3 E 4 YGUAMORINGA


melhor os ciclos da agricultura.” instrumentos, eram necessárias uma base
2
As predições de eclipses, fases da lua plana e uma posição privilegiada, como
e datas festivas projetadas para cada ano uma torre. Ele fez observações da torre
dos 100 anos seguintes foram reunidas da igreja de Assunção, mas não há do-
no livro Lunario de um siglo, publicado cumentos descrevendo como ele fixou e
em Lisboa em 1740. Na introdução, ele operou os instrumentos. “A própria mon-
lamenta que as Missões não tivessem ins- tagem mecânica de um telescópio não é
trumentos de observação astronômica nada trivial”, diz Matsuura.
por “não florescer [nessas províncias] o
estudo das ciências matemáticas”. A his- REDE MUNDIAL DE ASTRÔNOMOS
toriadora brasileira Maria Cristina Bohn Para construir os telescópios, Suárez ba-
Martins, da Unisinos, confirma: “Ao con- seou-se em informações que circulavam
trário do que se possa imaginar, as Mis- por meio de cartas entre jesuítas e astrô-
sões não eram ricas e importavam apenas nomos espalhados pelo mundo. “O reli-
o que era essencial. Livros e instrumentos gioso se correspondia com astrônomos da
científicos eram muito caros e demora- América e da Europa”, diz Asúa. Segundo
vam meses para chegar ao destino”. o pesquisador, o jesuíta trocava cartas,
Ele fez seu telescópio nas próprias por exemplo, com o matemático peruano
Missões, com o que tinha à mão. “Os je- Pedro Peralta y Barnuevo (1663-1743) em
O médico português Jacob Sarmento,
suítas eram excelentes artesãos e geral- que lia os trabalhos do jesuíta argentino Lima, no Peru, e o jesuíta germânico Ni-
mente tinham oficinas especializadas”, nas reuniões da Royal Society casius Grammatici (1684-1736) na Baviera

90 | MAIO DE 2023
3

e depois na China. Wargentin obteve os Relógio do sol


dados de Suárez sobre as luas de Júpiter construído
por Suárez em
pelas mãos de seu compatriota sueco An- São Cosme e Damião,
ders Celsius (1701-1744), que, por sua vez, no Paraguai, em
recebera de Grammatici os resultados das detalhe ao lado
observações feitas nas Missões – Celsius
se tornou mais c​ onhecido por ter criado
a escala centígrada de temperaturas, que
recebeu seu nome. Já Suárez recebia de
Grammatici dados de longitude e resulta-
dos de observações astronômicas, impor-
tantes para estabelecer, por comparação,
a longitude das missões guaranis.

O
4

jesuíta traduziu para o A tradução indica, ainda, que Suárez que utilizou a teoria newtoniana em seu
espanhol o livro Theori- ultrapassava o aspecto pragmático da texto Sistema físico-matemático dos co-
ca verdadeira das marés, astronomia como fazer calendários para metas, de 1759.
publicado em Londres atividades religiosas. É também um tra- Suárez não foi o primeiro astrônomo
em 1737. O autor é o mé- balho intrigante, porque a Companhia de nem o primeiro jesuíta a fazer astrono-
dico judeu português Jesus não dava muita abertura para as mia na América do Sul. Desde o século
Jacob de Castro Sarmento (1692-1762), novidades teóricas – a mecânica newto- XVII, astrônomos, principalmente je-
um dos primeiros a introduzir a física niana ainda não era aceita nem ensinada. suítas, faziam observações com objeti-
newtoniana em Lisboa, antes de fugir da “O ensino jesuítico para os nativos vos cartográficos pelo continente, em
perseguição antissemita para Londres e era escolástico, com conteúdos antigos especial na Amazônia. Mas foi o pri-
se tornar membro da Royal Society. Era e cristalizados, mas entre os clérigos meiro indivíduo nascido na América
Sarmento quem lia as observações de era permitido ter curiosidade, tomar que produziu conhecimento astronô-
Suárez nas reuniões científicas e abriu conhecimento das novidades e deba- mico relevante para a nascente ciên-
caminho para o jesuíta publicar seus tra- tê-las”, conta Matsuura. “Era normal cia moderna, com seus próprios meios,
balhos em várias edições da Philosophical que uns aderissem às novidades e até as construindo os próprios instrumentos.
Transactions. Sarmento recebia os dados defendessem publicamente, enquanto “Sua história é importante para a com-
por intermédio do médico carioca Ma- outros, não.” Como exemplo, ele cita o preensão de que a América do Sul não
teus Saraiva (?-?), também membro da matemático e astrônomo português José foi um mero apêndice na produção de
Royal Society e interessado em astrono- Monteiro da Rocha (1734-1819), educa- conhecimento do século XVIII”, arre-
mia, com quem o jesuíta se correspondia. do pelos jesuítas no Colégio da Bahia, mata Paz. n

PESQUISA FAPESP 327 | 91


OBITUÁRIO

HISTÓRIA
AOS
DOMINGOS
Pioneiro nos estudos sobre a
revolução de 1930, Boris Fausto explorou
a micro-história e a autobiografia
Diego Viana

A
o evocar o último encontro Fausto dizia que sua carreira atípica era No artigo “O Estado Novo e o debate
que teve com o historiador fonte ao mesmo tempo de limitações e de sobre o populismo no Brasil”, a historia-
Boris Fausto, morto em 18 liberdade. Como não podia se afastar por dora Ângela de Castro Gomes, da Uni-
de abril, aos 92 anos, a cien- longos períodos do posto de trabalho na versidade Federal do Estado do Rio de
tista política Lourdes Sola USP, decidiu se dedicar a temas ligados à Janeiro (Unirio), afirma que esse livro foi
recorda que as conversas giraram em tor- cidade de São Paulo e à historiografia. Por “a primeira grande contribuição historio-
no da “carreira solo” de ambos. Apesar de outro lado, como não estava imerso no dia gráfica que tomou a revolução de 1930
pertencerem ao Departamento de Ciên- a dia da carreira acadêmica, que começa- como objeto” e influiu decisivamente
cia Política da Faculdade de Filosofia, va a se profissionalizar nessa época, pôde na compreensão desse evento histórico.
Letras e Ciências Humanas da Universi- escolher temas, métodos de pesquisa e A obra de Fausto caracteriza-se pelo
dade de São Paulo (DCP-FFLCH-USP), estilos de texto mais afinados a seu gosto. diálogo com as ciências sociais que apare-
suas trajetórias sofreram influência de “Sem levar em conta seu alto grau de ce, por exemplo, em sua tese de livre-do-
golpes de Estado, circunstâncias fami- autonomia e independência intelectual, cência no DCP, concluída em 1975: Tra-
liares e interesses de pesquisa. é impossível definir o Boris”, declara So- balho urbano e conflito social, 1890-1920
Fausto deu a um de seus livros de teor la. “Não tem uma fórmula para chegar (Difel). Nela, Fausto trata da formação
autobiográfico o título Memórias de um a essa autonomia. É a característica de da classe trabalhadora e do movimento
historiador de domingo (Companhia das quem vai navegando motivado por um operário em São Paulo e no Rio de Ja-
Letras, 2010). O nome expressa um senso impulso, uma curiosidade, uma formação neiro durante a Primeira República. Sua
de humor autoirônico, mas não é exage- intelectual sólida, uma escrita excelente. motivação foi o diálogo com o cientista
rado. De fato, nas primeiras décadas de Boris foi atípico na história e foi atípico político Francisco Weffort (1937-2021),
sua atividade intelectual, a pesquisa era na ciência política.” no âmbito do Centro Brasileiro de Aná-
uma atividade paralela à atuação profis- A característica aparece em seu pri- lise e Planejamento (Cebrap), que ambos
sional como advogado, consultor jurídico meiro livro, resultado de sua tese de dou- integravam desde 1971. A convite de seu
da USP e procurador do estado. Nasci- torado: A revolução de 1930: História e orientador Sérgio Buarque de Holanda,
do em 1930, formou-se pela Faculdade historiografia (Brasiliense, 1970). A in- organizou os quatro volumes dedicados
de Direito da mesma universidade em tenção declarada do estudo era criticar ao Brasil republicano da coleção Histó-
1953. Dez anos mais tarde, ingressou na a interpretação hegemônica da época, ria geral da civilização brasileira (Difel),
graduação em história, também na USP, formulada pelo historiador Nelson Wer- publicados em 1980.
incentivado por sua mulher, a educa- neck Sodré (1911-1999), que via o levante Sola aponta dois livros posteriores
dora Cynira Stocco Fausto (1931-2010). que levou Getúlio Vargas (1882-1954) como representativos do caráter mul-
Concluiu o curso em 1966 e completou o ao poder como momento de triunfo da tidisciplinar do trabalho de Fausto: sua
doutorado em 1969, orientado por Sérgio burguesia nacional, em conflito com eli- História do Brasil (Edusp, 1994) e a obra
Buarque de Holanda (1902-1982). tes agrárias, que seriam mais atrasadas. Argentina-Brasil 1850-2002: Um ensaio

92 | MAIO DE 2023
Em registro de dezembro
de 2014, por ocasião
do lançamento de
O brilho do bronze, Fausto
em sua casa, no bairro
do Butantã, em São Paulo

de história comparada (Editora 34, 2004), repressão. O tema voltaria em obras pu- resse pela disciplina e, mais tarde, seria
uma parceria com o historiador argen- blicadas bem mais tarde, como O crime sua amiga e professora na universidade.
tino Fernando Devoto. “Sua abordagem do restaurante chinês (Companhia das Sola atribui o senso de humor, o gosto
é sobretudo de história política, mas é Letras, 2009), baseado em um assassi- pelas memórias e o interesse pelo tema da
mais multidisciplinar do que se poderia nato ocorrido em São Paulo em 1938, imigração a essa origem familiar. O livro
esperar. Ele tem consciência das dimen- que chamou a atenção de Boris quan- Negócios e ócios: Histórias da imigração
sões econômicas dos problemas de his- do menino, ao ler sobre ele nos jornais. (Companhia das Letras, 1997) é ao mesmo
tória do Brasil, algo que os historiadores Nesses livros, o historiador exercita tempo autobiográfico e um ensaio sobre a
e os cientistas políticos muitas vezes não uma linguagem menos técnica, que mui- vida dos estrangeiros em São Paulo. Seu
têm”, observa. tos leitores consideraram próxima à lite- último livro memorialístico foi lançado há

N
ratura. A inspiração é a micro-história, cerca de dois anos: Vida, morte e outros
as décadas de 1980 e 1990, corrente originada na Itália dos anos detalhes (Companhia das Letras). Desde
embora tenha mantido sua 1970, que parte de episódios pontuais, 2021, sofria as consequências de um aci-
atenção sobre a Primeira muitas vezes notícias da imprensa, para dente vascular cerebral (AVC).
República, enveredou por traçar o retrato de um período histórico. Para o pesquisador nas áreas de filoso-
um novo tema: a criminali- Nascido em São Paulo no mesmo ano fia da lógica e de história da filosofia Luiz
dade, que lhe permitiu explorar a socio- da revolução que estudaria mais tarde, Henrique Lopes dos Santos, da FFLCH-
logia urbana e o tema da imigração, pelo o historiador era filho de imigrantes -USP e coordenador adjunto da Diretoria
qual nutria grande interesse. O primeiro judeus e contava que o gosto pelo co- Científica da FAPESP, na condição de
RAQUEL CUNHA / FOLHAPRESS

resultado foi Crime e cotidiano: A crimi- nhecimento vinha da herança judaica coordenador de área na segunda metade
nalidade em São Paulo, 1880-1924 (Bra- e o interesse pela história, da leitura de dos anos 1980, Fausto desempenhou um
siliense, 1984), que examina as relações jornais para um avô cego. Na escola, foi papel fundamental na consolidação das
sociais que circundavam os delitos, além aluno da historiadora Emilia Viotti da áreas de ciências humanas e humanida-
do papel de controle social exercido pela Costa (1928-2017), que aguçou seu inte- des na FAPESP. n

PESQUISA FAPESP 327 | 93


ITINERÁRIOS DE PESQUISA

DA FÍSICA
AO MEIO
AMBIENTE
Marco Aurélio Nalon fala do uso
de geoprocessamento de dados no
mapeamento da vegetação nativa
do estado de São Paulo

M
inha carreira científica come- dição de pesquisador contratado, sem de análise, pautado no geoprocessamen-
çou no meu primeiro estágio estabilidade financeira ou profissional, to e geoestatística, dos escorregamentos
acadêmico. Em 1982, ingres- e subordinado à duração dos projetos em Cubatão. Por ser o único físico entre
sei no curso de física na PUC dos quais participava. Por 18 anos aguar- os estudantes do mestrado, no começo
[Pontifícia Universidade Católica], em dei ansioso a abertura de concurso. Isso minha presença gerou certa estranheza.
São Paulo, e passei a buscar um trabalho ocorreu em 2005, quando me tornei pes- Mas com outros colegas contribuímos
que me ajudasse a custear as despesas quisador concursado. Nesse ínterim, fui para que ferramentas de geotecnologia
básicas. Queria uma atividade instigante, professor de física no ensino médio por começassem a ser mais utilizadas em
que agregasse algo à minha formação. 12 anos. Tal vivência revelou-se muito estudos florestais e ecológicos, poten-
Em 1985, inscrevi-me na Fundap [Fun- importante; me reconheci como educa- cializando a adoção de modelos mate-
dação do Desenvolvimento Adminis- dor e absorvi conhecimentos. máticos e de geoestatística. O uso do
trativo], que direcionava para estágios Em 1996, ingressei no mestrado em geoprocessamento, aplicado ao meio
no serviço público do estado. Indiquei ciências florestais na Esalq [Escola Su- ambiente, tornou-se minha marca regis-
ciência, meio ambiente e informática perior de Agricultura Luiz de Queiroz trada. Tive a oportunidade de encabeçar
como áreas de interesse. Fui encami- da Universidade de São Paulo], em Pi- a criação do laboratório de geoproces-
nhado para o antigo Instituto Florestal racicaba. Sob a orientação de Hilton samento no Instituto Florestal.
de São Paulo, com os pesquisadores da Thadeu Zarate do Couto, pesquisei, com Em 2021, o instituto fundiu-se aos
climatologia, no Horto Florestal, aos financiamento da FAPESP, as áreas de institutos Geológico e de Botânica, que
25 anos. A experiência foi tão rica, que risco de escorregamentos do Parque igualmente funcionavam de forma in-
não consegui deixar a instituição. Em Estadual da Serra do Mar, em Cubatão. dependente. A fusão deu origem ao Ins-
1987, fui contratado como pesquisador. Couto era um parceiro de pesquisas do tituto de Pesquisas Ambientais [IPA],
Olhando retrospectivamente, sou um da- Instituto Florestal e sempre me incen- ligado à Secretaria da Infraestrutura e
queles casos de sucesso. Comecei como tivou a sistematizar, academicamente, Meio Ambiente. Estamos em pleno pro-
estagiário e me tornei diretor. as investigações realizadas em campo. cesso de estruturação que já colhe resul-
Minha situação nem sempre foi está- Desse modo, utilizei os dados de outros tados efetivos. Como exemplo, temos a
vel. Durante muito tempo, atuei na con- projetos para desenvolver um modelo atuação do IPA no litoral norte de São

94 | MAIO DE 2023
Nalon na sede Paulo, em decorrência das fortes chuvas Sobre o inventário florestal, é uma das
do Instituto na região. As ações têm ocorrido de ma- ferramentas mais relevantes da área de
de Pesquisas
Ambientais:
neira integrada entre diferentes áreas biodiversidade que dispomos no IPA,
de estagiário técnicas. Se estivéssemos no contexto justamente por proporcionar um retrato
a diretor anterior, provavelmente as interven- atualizado da vegetação nativa existente.
ções seriam fragmentadas, cada institu- Esse levantamento aponta as áreas que
to assumindo uma demanda específica. necessitam de restauração ambiental,
Atualmente sou diretor do Departamen- manutenção ou mesmo a criação de uni-
to Técnico-Científico do IPA. Tenho dades de conservação. Além disso, é um
sob minha gestão 114 pesquisadores e relevante instrumento para fiscalização
202 técnicos, distribuídos em centros e florestal e desenvolvimento de políti-
núcleos de pesquisa. Esses profissionais cas públicas. O pesquisador que vai a
cuidam de 18 laboratórios das áreas de campo utiliza esse mapeamento em sua
botânica, florestal e geociências, além pesquisa, e toda sociedade tem acesso
de sete coleções biológicas, geológicas aos dados. O governo do estado deve
e hidrológicas. As tarefas administra- destinar a partir do ano que vem uma
tivas absorvem bastante tempo. Meu cota adicional do ICMS aos municípios
papel é garantir o bom andamento das que preservarem 30% ou mais de mata
investigações científicas e promover nativa, fora de unidades de conservação
a interface com as diversas áreas. Na de proteção. Com o ICMS ecológico, os
PESQUISA FAPESP  2 ARQUIVO PESSOAL
FOTOS 1 LÉO RAMOS CHAVES / REVISTA

condição de presidente do conselho municípios com maior cobertura ve-


científico participo da avaliação e da getal, mas muitas vezes menos desen-
aprovação de projetos de pesquisa ex- volvidos do que aqueles amplamente
ternos ao IPA, desenvolvidos em uni- desmatados, receberão uma espécie de
dades de conservação, principalmente pagamento pelos serviços ambientais
por universidades. Também fazemos prestados. Esse mecanismo tributá-
o cadastramento e o acompanhamento rio serve para compensar e, ao mesmo
1 das pesquisas realizadas no IPA. tempo, engajar os prefeitos na defesa

U
ambiental, e não seria possível sem os
m dos destaques da minha dados do inventário.
carreira tem sido o Inven- As quase quatro décadas em uma
tário Florestal da Vegetação instituição ambiental refletem minha
Nativa do Estado de São Paulo. ligação com a natureza, que começou
Integro, desde a primeira edição, em ainda na infância, quando percebi que
1990, a equipe de pesquisadores-au- meu entendimento do mundo passa-
tores responsáveis. No início, quando va por esse contato. Desde adolescen-
não tínhamos dispositivos digitais de te pratico o montanhismo. A primeira
processamento de dados, fizemos um escalada foi na Pedra do Baú, em São
mapeamento completamente analógi- Bento do Sapucaí, no interior do es-
co. No segundo inventário, divulgado tado, mas já me aventurei em relevos
10 anos depois, pudemos usar técnicas em outros países da América do Sul,
de geoprocessamento, que resultou em do Norte e na Europa. Em 2016, após
um mapeamento digital. Essa passagem dias chuvosos no vale de Cochamó, no
do papel para o digital, com a adoção Chile, comecei a rabiscar uma paisagem
de novos recursos metodológicos, foi montanhosa para espantar o tédio. Há
possível graças ao projeto Biota, finan- sete anos, com a técnica do nanquim,
ciado pela FAPESP. O último inventá- crio no papel uma diversidade de mon-
rio, de 2020, evidencia um refinamento tanhas imaginadas. n
inédito: as imagens de satélite que o DEPOIMENTO CONCEDIDO A ALINE NOVAIS DE ALMEIDA
compõem são compatíveis com as pro-
cessadas pelo Google. Atualmente, meu
desafio, como pesquisador e diretor, é
viabilizar que a edição se torne anual. A
SAIBA MAIS
ideia é oferecer balanços mais imediatos
2 da cobertura vegetal nativa. Não neces- Website do IPA

Em nanquim, paisagem montanhosa desenhada sitamos de uma década para colocar de


pelo pesquisador em suas horas vagas pé um novo levantamento.
RESENHA

Do americanismo alemão ao protagonismo


dos saberes indígenas
Pablo de Castro Albernaz

F
inalmente, o público brasileiro tem acesso do e detalhado sobre as condições de viagem e
aos três primeiros volumes de Do Roraima pesquisa, bem como sobre as culturas dos povos
ao Orinoco: Resultados de uma viagem no indígenas da região. O segundo volume é uma co-
Norte do Brasil e na Venezuela nos anos de 1911 a leção de mitos dos povos Taurepang e Arekuna.
1913. Obra clássica da etnologia alemã, foi publi- Lá estão as façanhas de Makunaíma, herói míti-
cada originalmente em cinco tomos pelo Instituto co dos povos da região, que serviu de inspiração
Baessler de Berlim, entre 1917 e 1928. Depois de para a obra de Mário de Andrade (1893-1945). No
lançar em 2006 o diário da viagem, a editora da terceiro tomo são detalhadas descrições etnográ-
Universidade Estadual Paulista (Unesp) publica ficas das culturas dos Taurepang e seus vizinhos,
agora os três volumes, com ilustrações do artista dos Schiriana e dos Waika, dos Ye’kwana e dos
Macuxi Jaider Esbell (1979-2021). Guinau. A parte final desse volume foi escrita
Do Roraima ao Orinoco: Desde o seu lançamento, o livro tem sido o pon- por Erich von Hornbostel (1877-1935), pioneiro
Resultados de uma to de partida para os etnógrafos que trabalham da musicologia comparada alemã. A partir dos
viagem no Norte do
Brasil e na Venezuela
com povos indígenas na região. Muito mais do que materiais resultantes da viagem, Hornbostel ana-
nos anos de 1911 a 1913 observações de viagem, como sugere o subtítulo, lisou a música vocal e os instrumentos musicais
Theodor Koch-Grünberg as descrições são ricas e minuciosas, abordando dos Macuxi, dos Taurepang e dos Ye’kwana.
(tradução de Cristina diversos aspectos de seus modos de vida como A relevância da publicação de Do Roraima ao
Alberts-Franco)
Unesp
a cultura material, a organização social, a mito- Orinoco deve ser analisada sob dois pontos de
1.085 páginas logia, o xamanismo, o uso de plantas sagradas, vista. Primeiro, o da importância que os resulta-
R$ 480,00 os cantos, a música instrumental, dentre outros. dos da pesquisa tiveram para a consolidação da
Durante um período de dois anos, o etnólogo etnologia americanista sobre os povos da região.
alemão Theodor Koch-Grünberg (1872-1924) rea- Em segundo lugar, merece destaque o grande
lizou sua pesquisa partindo do Brasil em direção valor da obra para os acadêmicos indígenas que,
à nascente do rio Orinoco, na Venezuela. Visitou desde a instauração das políticas afirmativas nas
aldeias e fez coletas e registros etnográficos, fíl- universidades brasileiras, têm, de modo crescen-
micos, fotográficos e fonográficos. te, adentrado esses espaços não apenas como
O etnólogo percorreu o rio Negro até o rio estudantes, mas como detentores de saberes de
Branco, depois seguiu os cursos dos rios Urari- valor inestimável para a ciência e para as artes.
coera e Tacutu, até chegar à fazenda São Marcos, Na Universidade Federal de Roraima, mais de
em Roraima, base a partir da qual realizou a pri- mil alunos indígenas, em sua maioria Macuxi,
meira parte de sua pesquisa na região de savanas Taurepang, Wapixana e Ye’kwana, frequentam
e serras, junto aos povos Macuxi, Taurepang e cursos de graduação e de pós-graduação. E em
Wapixana. Seguiu então para o monte Roraima, 2019, Vicente Castro Ihuruana, considerado o
onde visitou aldeias e realizou um filme mudo último grande sábio do povo Ye’kwana, recente-
sobre a vida dos Taurepang na Guiana. mente falecido, ministrou um curso sobre cosmo-
Iniciou a segunda parte da viagem no rio Ura- logia e artes de cura para os alunos de antropolo-
ricoera e adentrou a floresta a oeste de Roraima. gia social, abordando muitos dos temas presentes
Nessa etapa, Koch-Grünberg manteve contatos na etnografia de Koch-Grünberg sobre seu povo.
com grupos Waika, Schiriana, Guinau e Ye’kwana. Com a publicação de Do Roraima ao Orinoco
A expedição seguiu por um afluente do rio Ura- em português, os povos indígenas passam a ter
ricoera até o rio Merewari, na Venezuela. Depois acesso a um material de valor inestimável sobre
navegou pelo rio Ventuari até o rio Orinoco, su- a sua história. A obra deverá contribuir para a
bindo até o canal do rio Casiquiare, de onde se- formação dos acadêmicos indígenas e para a di-
guiu pelo rio Negro até chegar novamente ao ter- vulgação dos seus saberes, inclusive entre o pú-
ritório brasileiro. No estabelecimento São Felipe, blico em geral.
no rio Içana, ele concluiu sua viagem, em 1913.
O primeiro volume da obra compreende o diá- Pablo de Castro Albernaz é professor de antropologia social na
rio de campo do etnólogo, com um relato vívi- Universidade Federal de Roraima (UFRR).

96 | MAIO DE 2023
FUNDAÇÃO DE AMPARO À PESQUISA DO ESTADO DE SÃO PAULO
COMENTÁRIOS cartas@fapesp.br

PRESIDENTE
Marco Antonio Zago

VICE-PRESIDENTE
Ronaldo Aloise Pilli

CONSELHO SUPERIOR

Carmino Antonio de Souza, Helena Bonciani Nader, Herman


Jacobus Cornelis Voorwald, Ignácio Maria Poveda Velasco, Liedi
Legi Bariani Bernucci, Mayana Zatz, Mozart Neves Ramos, Pedro
Luiz Barreiros Passos, Pedro Wongtschowski, Thelma Krug

CONSELHO TÉCNICO-ADMINISTRATIVO

DIRETOR-PRESIDENTE
Carlos Américo Pacheco

DIRETOR CIENTÍFICO
Luiz Eugênio Mello

DIRETOR ADMINISTRATIVO
Fernando Menezes de Almeida

Vídeos sobre pesquisas na


serra do Imeri (à esq.) e descoberta
ISSN 1519-8774 de pinturas de araucárias

COMITÊ CIENTÍFICO
Luiz Nunes de Oliveira (Presidente),
Agma Juci Machado Traina, Américo Martins Craveiro, Anamaria
Vídeos
Aranha Camargo, Ana Maria Fonseca Almeida, Angela Maria Alonso,
Carlos Américo Pacheco, Claudia Lúcia Mendes de Oliveira, Deisy
Impressionante tanta riqueza de espécies Maravilhoso saber sobre os habitantes
das Graças de Souza, Douglas Eduardo Zampieri, Eduardo de Senzi
Zancul, Euclides de Mesquita Neto, Fabio Kon, Flávio Vieira Meirelles,
e detalhes (“Pesquisadores chegam pela e suas culturas que existiam antes dos
Francisco Rafael Martins Laurindo, João Luiz Filgueiras de Azevedo,
José Roberto de França Arruda, Lilian Amorim, Lucio Angnes, Luciana
primeira vez à serra do Imeri”). Parabéns europeus chegarem aqui.
Harumi Hashiba Maestrelli Horta, Luiz Henrique Lopes dos Santos,
Mariana Cabral de Oliveira, Marco Antonio Zago, Marie-Anne Van Sluys,
à equipe. Heloisa Berenger
Maria Julia Manso Alves, Marta Teresa da Silva Arretche, Reinaldo
Salomão, Richard Charles Garratt, Roberto Marcondes Cesar Júnior,
Sebastiana Souza
Wagner Caradori do Amaral e Walter Collii
Boa pesquisa e linda narrativa, muito
COORDENADOR CIENTÍFICO
Luiz Nunes de Oliveira A falta de emprego e renda é um dos prin- bem ambientada.
DIRETORA DE REDAÇÃO cipais motivos para a fome no país (“Jo- Modesto Pereira
sué de Castro: o alerta para a fome”). É
Alexandra Ozorio de Almeida

EDITOR-CHEFE
Neldson Marcolin fundamental que o governo crie políticas
EDITORES Fabrício Marques (Política C&T), Glenda Mezarobba
(Humanidades), Marcos Pivetta (Ciência), Yuri Vasconcelos
efetivas para o desenvolvimento social, IA e plágio
(Tecnologia), Carlos Fioravanti e Ricardo Zorzetto (Editores especiais) econômico, tecnológico e de inovação, Que os seres humanos consigam apri-
REPÓRTERES Christina Queiroz e Rodrigo de Oliveira Andrade
para a geração de empregos. E, na base morar tecnologias capazes de salvar os
MÍDIAS DIGITAIS Fabrício Marques (Coordenador), Maria
Guimarães (Editora executiva), Renata Oliveira do Prado (Editora
de tudo, educação pública de qualidade. próprios seres humanos do mau uso da
de mídias sociais), Jayne Oliveira (Analista digital), Kézia Stringhini
(Redatora on-line), Vitória do Couto (Designer digital) e
Martha Stoffella tecnologia (“O plágio encoberto em tex-
Sarah Caravieri (Produtora do programa de rádio Pesquisa Brasil)
tos do ChatGPT”, edição 326). É uma
ARTE Claudia Warrak (Editora),
Júlia Cherem Rodrigues e Maria Cecilia Felli (Designers), Fantástica a perfeição dos desenhos questão de ética e educação, que preci-
Alexandre Affonso (Editor de infografia), Felipe Braz (Designer digital),
Amanda Negri (Coordenadora de produção) (“Arte rupestre no Paraná é a primeira sam ser mais valorizadas.
FOTÓGRAFO Léo Ramos Chaves representação conhecida de araucárias”). Regina Magdabosco
BANCO DE IMAGENS Valter Rodrigues Bom saber e divulgar para as pessoas
REVISÃO Alexandre Oliveira e Margô Negro entenderem quem estava aqui primeiro... Sua opinião é bem-vinda. As mensagens poderão ser re-
COLABORADORES Aline Novais de Almeida, Aline van
Langendonck, Ana Paula Orlandi, Danilo Albergaria, Diego Viana,
Marilene Nunes de Souza sumidas por motivo de espaço e clareza.
Domingos Zaparolli, Fabiana Machado, Felipe Mayerle, Joana
Santa Cruz, Juliana Freire, Letícia Naísa, Meghie Rodrigues,
Pablo de Castro Albernaz, Renata Fontanetto, Sarah Schmidt,
Sinésio Pires Ferreira, Suzel Tunes

REVISÃO TÉCNICA Célio Haddad, Deisy de Souza, Fabio Kon,


ASSINATURAS, RENOVAÇÃO CONTATOS
Francisco Laurindo, José Roberto Arruda, Marta Arretche, Rafael
Oliveira, Ricardo Hirata, Walter Colli
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PESQUISA FAPESP 327 | 97


FOTOLAB O CONHECIMENTO EM IMAGENS

Sua pesquisa rende fotos bonitas? Mande para imagempesquisa@fapesp.br


Seu trabalho poderá ser publicado na revista.

Combate pré-natal
A lagarta-do-cartucho (Spodoptera frugiperda) causa graves
danos a culturas agrícolas, com destaque para o milho. Os métodos
de eliminar esse inseto-praga, nem sempre eficazes, costumam
funcionar quando as folhas já começaram a ser devoradas,
causando danos à lavoura. Uma nova forma de combate, usando
uma bactéria que ataca insetos, pode controlar a lagarta em sua
fase embrionária. Na imagem obtida por microscopia eletrônica de
varredura, ela aparece morta antes de sair completamente do ovo.
Ainda em pesquisa, pode ser uma estratégia promissora.

Imagem enviada pela engenheira-agrônoma Fabiana Machado,


estudante de mestrado em entomologia agrícola no campus de
Jaboticabal da Universidade Estadual Paulista (Unesp)

98 | MAIO DE 2023
I N V I TAT I O N

The German Centre for Research and Innovation São Paulo (DWIH São Paulo)
and the São Paulo Research Foundation (FAPESP) announce the

10th German-Brazilian Dialogue


on Science, Research and Innovation
“Sustainable Energy Transition”

MAY 16th to 17th

The German-Brazilian Dialogues on Science, Research, and Innovation foster international


collaboration and discussions of current pressing issues. This year, the Dialogue focuses
on the important topic of sustainable energy transition. How can we accelerate the journey
to net zero, given our present-day social and economic settings? At the Dialogue we share
knowledge, best practices, lessons learned, and discuss challenges that have to be overcome.
In addition to renowned German and Brazilian academic researchers, we will have
the participation of business managers, as this urgent matter needs joint efforts to be solved.
We invite you to join us in this debate, in-person or online.

More information:

In partnership with
Brasil

In person at FAPESP. Location: Rua Pio XI, 1500 – Alto da Lapa – São Paulo, SP
À VENDA EM BANCAS
DE TODO O PAÍS

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