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NOVO LIVRO

APRESENTA
DILEMAS
CIENTÍFICOS
SOBRE
OCUPAÇÃO
HUMANA NAS
AMÉRICAS

A CIÊNCIA AJUDA VOCÊ A MUDAR O MUNDO ED. 381 DEZEMBRO DE 2023

SENTENÇA
DE VID
A MAIORIA DOS 990 MIL
BRASILEIROS VIVENDO COM
HIV ESTÁ EM TRATAMENTO.
CONHEÇA AVANÇOS
RECENTES — E OS DESAFIOS
QUE PERSISTEM NA EPIDEMIA
COMPOSIÇÃO
DEZEMBRO DE 2023

03
CAPA

O QUE MUDOU NO
BRASIL E NO MUNDO
APÓS QUATRO
DÉCADAS DA
EPIDEMIA DE AIDS?

“O vício é uma das doenças


mais contagiosas que existem”
18 Entrevista com Anna Lembke

30
CIÊNCIA

OCUPAÇÃO DAS AMÉRICAS


EVIDENCIA FALTA DE 40
QUER QUE EU
CONSENSO NA CIÊNCIA DESENHE?
SAÚDE
TEXTO André Bernardo EDIÇÃO Luiza Monteiro ILUSTRAÇÃO Kako Arancibia DESIGN Flavia Hashimoto

SENTENÇA DE VID
O BRASIL TEM HOJE 990 MIL PESSOAS VIVENDO
COM HIV; DESSAS, 731 MIL ESTÃO EM TRATAMENTO
E PODEM LEVAR UMA VIDA SAUDÁVEL E NORMAL.
MAS NEM SEMPRE FOI ASSIM. CONHEÇA OS
AVANÇOS NO ENFRENTAMENTO À EPIDEMIA NAS
ÚLTIMAS QUATRO DÉCADAS
o
O momento do diagnóstico, não importa quanto tempo passou,
ninguém esquece. Para Américo Nunes, de 62 anos, foi uma sen-
tença de morte: “Você tem aids. A doença não tem cura. Sua ex-
pectativa de vida é de seis meses”, ouviu de uma enfermeira na
Unidade Básica de Saúde (UBS). “Saí de lá desolado”, recorda. Die-
go Krausz, de 33 anos, admite que levou um choque. “Tive muito
medo e achei que fosse morrer”, confessa. O sentimento de pânico
é compartilhado por Jenice Pizão, hoje com 64 anos. “Meu mun-
do desabou”, resume numa frase. Priscila Obaci, de 39, até tentou
manter a calma, mas não conseguiu. “Entrei em desespero ao saber
que não poderia mais amamentar meu primeiro filho”, diz. Lucas
Raniel, de 31, sentiu como se fosse uma bomba-relógio. “Cheguei a
pensar em suicídio”, revela.
5

Por muito tempo, receber esse diagnóstico parecia mesmo um ates-


tado de morte. Aids é a sigla em inglês para síndrome da imuno-
deficiência adquirida, uma doença que ataca as células do sistema
imunológico. Ela é causada pelo vírus da imunodeficiência humana,
o HIV. Ter o vírus não significa que a pessoa desenvolverá aids. No
entanto, uma vez infectada, ela viverá com HIV por toda a vida.

O primeiro registro oficial de uma pessoa com aids ocorreu em


1981 — mas a doença só passou a ter esse nome no ano seguinte.
Foi quando o Centro para Controle e Prevenção de Doenças (CDC),
dos Estados Unidos, relatou um quadro clínico de infecção pulmo-
nar rara em cinco homens gays jovens, até então saudáveis, em
Los Angeles. No Brasil, o primeiro caso foi notificado em setembro
de 1982, poucos dias antes do feriado da Independência. Inicial-
mente, a doença era associada apenas a homens que se relaciona-
vam sexualmente com homens.

Naquele ano de 1982, a dermatologista Valéria Petri atendeu um


rapaz de 32 anos que se declarava gay (o termo, lembra a médica,
ainda não era muito comum por aqui) e apresentava um nódulo ar-
roxeado no pé. “Será que eu tenho a bolha assassina?”, perguntou
o paciente. Dias depois, o exame patológico revelou um sarcoma
de Kaposi, tipo de câncer que atinge, principalmente, a pele. “Não
estávamos preparados para o impacto de uma doença de origem
obscura, nem para o tratamento dela, muito menos para as impli-
cações humanas e sociais que haveriam de sacudir, dali por diante,
corações e mentes”, relata a médica, em entrevista a GALILEU.
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UM PROBLEMA DE TODOS
Em 1983, começaram a pipocar casos de aids também em mulhe-
res e crianças. Descobriu-se que o vírus tinha a capacidade de con-
taminar fetos durante a gravidez e recém-nascidos no parto e na
amamentação — na chamada transmissão vertical. “Qualquer um
de nós estaria sujeito a ser contaminado e sequer a causa da in-
fecção e a forma de transmissão eram bem definidas, apesar da
intensa propaganda que responsabilizava os supostos transgres-
sores: homossexuais e usuários de drogas”, recorda Petri.

Em pouco tempo, o vírus se alastrou pelo globo. Desde o início da


epidemia, 85,6 milhões de pessoas foram infectadas pelo HIV, se-
gundo a Organização Mundial da Saúde (OMS). Dessas, 40,4 mi-
lhões morreram em razão da aids. Atualmente, 39 milhões de indi-
víduos vivem com o vírus no mundo, dos quais 29,8 milhões estão
em tratamento antirretroviral. Só em 2022, o Programa para Aids
das Nações Unidas (Unaids) registrou 1,3 milhão de novos casos;
em 1995, para ter ideia, foram 3,2 milhões.

No Brasil, 371,7 mil pessoas morreram de aids desde o início da


epidemia até dezembro de 2021, segundo o Ministério da Saú-
de. Algumas delas eram figuras icônicas da sociedade brasileira.
O cantor e compositor Cazuza (1958-1990), o jornalista e escritor
Caio Fernando Abreu (1948-1996) e o sociólogo Herbert de Souza,
o Betinho (1935-1997), estão entre elas. Hoje, 990 mil pessoas vi-
vem com HIV no país, segundo o Unaids. Só no ano passado, foram
51 mil novos casos e 13 mil óbitos relacionados à infecção.
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A boa notícia é que, paralelamente ao avanço da doença pelo mun-


do, a ciência também caminhou. O Brasil foi um dos primeiros países
a oferecer, em 1996, o tratamento antirretroviral de maneira gratui-
ta e universal. Hoje, existem 22 medicamentos disponíveis no Sis-
tema Único de Saúde (SUS). “O tratamento transformou a infecção
por HIV em doença crônica”, observa a infectologista Rosa de Alen-
car Souza, diretora-adjunta do Centro de Referência e Treinamento
DST/AIDS-SP. “Pessoas que vivem com HIV, usam a medicação cor-
retamente e estão com a carga viral indetectável têm qualidade e
expectativa de vida similares àquelas que não vivem com HIV.”

“INDETECTÁVEL É IGUAL
A INTRANSMISSÍVEL”
Do total de pessoas com o vírus no país atualmente, 731 mil estão
em tratamento antirretroviral, de acordo com o Ministério da Saú-
de. Os antirretrovirais (ARV) são medicamentos prescritos para
impedir a multiplicação do HIV no organismo e evitar o enfraqueci-
mento do sistema imunológico. O uso regular deles é fundamental
tanto para aumentar a expectativa de vida da pessoa que vive com
o vírus quanto para melhorar sua qualidade de vida. Os primeiros
ARV surgiram ainda na década de 1980 — o azidotimidina (AZT),
por exemplo, foi aprovado nos Estados Unidos em 1987.

Hoje, a associação de antirretrovirais considerada preferencial pe-


los médicos é a que combina dolutegravir (DTG), tenofovir (TDF) e
lamivudina (3TC). Esse esquema é indicado para cerca de 80% dos
8

“Não estávamos preparados


para o impacto de uma doença
de origem obscura, nem para
o tratamento dela, muito
menos para suas implicações
humanas e sociais”
Valéria Petri, dermatologista que atendeu, em 1982,
o primeiro caso de aids descoberto no Brasil

casos. “Tem alta eficácia e baixíssimos efeitos colaterais”, avalia o


infectologista David Salomão Lewi, doutor em Doenças Infecciosas
e Parasitárias pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e
médico do Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo. “Há pa-
cientes que já tomam há 20 anos, com uma evolução muito boa.”

Muitos brasileiros, porém, desconhecem seu status sorológico,


isto é, não sabem se estão infectados. Alguns podem ter HIV e nem
desconfiam. “Sem diagnóstico, não há tratamento. Sem tratamen-
to, há o risco de transmissão e adoecimento”, alerta o infectologis-
ta Alexandre Naime Barbosa, vice-presidente da Sociedade Brasi-
leira de Infectologia (SBI). “Não é possível eliminar a infecção. Mas
é possível controlá-la. Bastam duas coisas: diagnóstico precoce e
estratégias de prevenção.”

Passado o susto inicial, Américo, Diego, Jenice, Priscila e Lucas con-


seguiram transformar o que parecia o fim em recomeço. Hoje, eles
estão indetectáveis. “Com uma boa adesão aos antirretrovirais,
9

sua carga viral diminui e suas células de defesa aumentam. Assim,


você fica indetectável. Ou seja, a quantidade de vírus HIV em sua
corrente sanguínea é tão pequena que nem aparece nos exames”,
explica Jenice Pizão, professora aposentada. “Seis meses depois
de receber meu diagnóstico, eu já estava indetectável”, orgulha-se
o ator e produtor de conteúdo Diego Krausz. “Indetectável é igual
a intransmissível. Embora eu seja uma pessoa que viva com HIV,
não transmito mais o vírus para ninguém.”

CURA OU REMISSÃO?
O caso de Krausz, que se tornou indetectável depois de receber
o diagnóstico, não é isolado. A carga viral de quem segue o trata-
mento à risca tende a cair em seis meses. Se isso não acontecer,
o médico precisa avaliar a terapia que receitou para o paciente.
Pode ser o caso de ajustar a dosagem de algum medicamento ou,
então, mudar a combinação dos antirretrovirais. Mas atenção: não
é porque a carga viral está indetectável que o sujeito está livre do
HIV. O vírus permanece “adormecido” dentro de alguns agrupa-
mentos de células chamados de “reservatórios”. Se o tratamento
for interrompido, seja por alguns dias, seja por tempo indetermi-
nado, o vírus “acorda” e começa a se multiplicar. E corre o risco de
se tornar ativo (e transmissível) novamente. Pior de tudo: resisten-
te aos antirretrovirais que, até pouco tempo, faziam efeito.

Embora a ciência tenha avançado, ainda falta desenvolver uma


vacina que evite a infecção em pessoas soronegativas ou que for-
taleça o sistema imune para ajudar a controlar o vírus naquelas
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que já vivem com HIV. E essa não é uma missão qualquer. “Vacinas
são mais fáceis de produzir quando há cura espontânea, como a
gripe, ou quando, após curado, o organismo se torna resistente a
uma nova infecção, caso do sarampo. Nenhuma das duas coisas se
aplica à infecção pelo HIV”, contextualiza o infectologista Mauro
Schechter, professor titular de Doenças Infecciosas da Universida-
de Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). “Pelo contrário: o HIV, além de
infectar e destruir as células que comandam todo nosso sistema

“A melhor
coisa que uma
pessoa com HIV
pode fazer hoje
em dia é manter
sua carga viral
indetectável
por meio de
tratamento
antirretroviral”
Rico Vasconcellos, infectologista
e pesquisador da Faculdade de
Medicina da USP
11

de defesa, se integra ao patrimônio genético das células que são


nossa memória imunológica, e que vivem por décadas”, acrescenta
Shechter, que também é professor visitante do Laboratório de Re-
trovirologia da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).

A infectologista Mirian Dal Ben, doutora pelo departamento de Do-


enças Infecciosas e Parasitárias da Faculdade de Medicina da USP e
médica do Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo, aponta outro mo-
tivo: a alta mutabilidade do vírus. “O HIV sofre mutações o tempo
inteiro, há vários tipos espalhados pelo mundo. Não basta, portan-
to, uma vacina que proteja contra um específico. Precisamos de um
imunizante que proteja contra os mais variados tipos”, afirma Dal
Ben. Em janeiro deste ano, testes revelaram que a vacina contra o
HIV da Janssen, o braço farmacêutico da Johnson & Johnson, era
segura, porém ineficaz. Ou seja, não evitava infecções. Por essa ra-
zão, o estudo Mosaico, que envolveu 3,9 mil voluntários de nove
países, inclusive o Brasil, foi “descontinuado”.

Outro método apontado como promissor (mas nem tanto) é o


transplante de medula óssea. O alvoroço se deve ao fato de que
seis pessoas apresentaram remissão após se submeterem ao pro-
cedimento. Em outras palavras: foram consideradas curadas da
infecção pelo HIV. Todas elas sofriam de câncer no sangue e se
beneficiaram de um transplante de células-tronco que renovou
seu sistema imunológico. O primeiro caso aconteceu na Alemanha,
com o estadunidense Timothy Ray Brown (1966-2020), diagnosti-
cado com HIV em 1995 e com leucemia em 2006.
12

Conhecido como “paciente de Berlim”, foi o primeiro caso de uma


pessoa considerada curada do HIV. O diagnóstico negativo se deu
após um transplante em 2007. A pessoa doadora tinha uma rara
mutação genética que apresentava resistência ao vírus. “Só acredi-
tei que estava curado quando meu médico publicou um artigo sobre
meu caso numa importante revista científica. Ele não usou a palavra
cura. Chamou de ‘remissão de longo prazo’”, explicou Timothy em
entrevista ao médico brasileiro Drauzio Varella, no programa Fan-
tástico, exibido na noite de 14 de abril de 2019 na TV Globo. Timothy
Ray Brown morreu no dia 29 de setembro de 2020, de leucemia.

O mais recente caso de “remissão de longo prazo”, conhecido como


“paciente de Genebra”, chama atenção dos médicos pelo fato de o
doador não apresentar a famosa mutação genética. Mas, no geral,
especialistas consideram o transplante de medula óssea arriscado,
porque sua taxa de mortalidade é alta, podendo chegar a 20% nos
melhores serviços de saúde. “Esses seis casos foram os que tiveram
remissão. Houve dezenas de outros que não tiveram”, pondera o in-
fectologista Rico Vasconcellos, pesquisador da Faculdade de Medi-
cina da Universidade de São Paulo (USP). “A melhor coisa que uma
pessoa com HIV pode fazer hoje em dia é manter sua carga viral
indetectável por meio de tratamento antirretroviral”, recomenda.

95-95-95
Toda pessoa que tem uma vida sexual ativa ou passou por alguma
situação de risco, como fazer sexo desprotegido ou compartilhar
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agulhas, deve fazer teste de HIV. Há no Brasil dois tipos: os rápidos


(o resultado sai em cerca de 30 minutos) e os laboratoriais. “Minha
vida com HIV é tão normal quanto a de qualquer pessoa. Acredito
até que eu seja mais saudável. Não é todo mundo que vai ao médico
e faz exames a cada seis meses”, explica o comunicólogo Lucas Ra-
niel. “Testagem não é procurar doença, é encontrar saúde.”

Há, pelo menos, três formas de transmissão do vírus. Uma delas é


por meio de relações sexuais desprotegidas, sobretudo pelas vias
vaginal e anal. No caso do sexo oral, o risco é mínimo, de acordo com
o CDC, dos EUA. Mas, para garantir o máximo de proteção possível,
o órgão recomenda usar preservativo durante todo o ato — inclu-
sive para evitar outras infecções sexualmente transmissíveis (IST).
Outros possíveis meios de contaminação são o compartilhamento
de seringas (ou transfusão de sangue contaminado) e a transmis-
são vertical. Por outro lado, nunca é demais repetir que o contágio
não se dá através de relações sexuais com o uso correto de preser-
vativo (inclusive com pessoas que tenham o HIV em níveis indetec-
táveis), masturbação a dois, beijo no rosto ou na boca, aperto de
mão ou abraço, compartilhamento de talheres, copos e sabonete,
banho de piscina, doação de sangue...

Quanto às estratégias de prevenção, elas se dividem entre farma-


cológicas e não farmacológicas. As farmacológicas são as profilaxias
pré-exposição (PrEP) e pós-exposição (PEP). A PrEP — que começou
a ser oferecida no SUS em 2017— envolve o uso diário de antirre-
trovirais para prevenir a infecção em pessoas com maior risco de
14

exposição ao HIV, como homens que fazem sexo com homens, pro-
fissionais do sexo e usuários de drogas injetáveis, entre outros. Já
a PEP, disponível desde a década de 1990, é a utilização da terapia
após qualquer situação de exposição ao vírus: de uma simples cami-
sinha estourada a casos de violência sexual, por exemplo, ou até em
acidentes de trabalho (com objetos cortantes ou material biológico).

“A PrEP funciona como uma pílula anticoncepcional e a PEP, como


a pílula do dia seguinte”, compara a infectologista Márcia Rachid,
mestre em Doenças Infecciosas e Parasitárias pela UFRJ e auto-
ra do livro Sentença de vida: histórias e lembranças – A jornada
de uma médica contra o vírus que mudou o mundo (Máquina de
livros, 2020). “No primeiro caso, a pessoa toma um comprimido
todo dia e previne o HIV. No segundo, precisa começar em até 72
horas depois da exposição e por 28 dias consecutivos.”
15

“Para quem vive com HIV ou aids,


o medo de ser expulsa de casa,
demitida do trabalho ou maltratada
na rua é enorme. O sofrimento é
insuportável e pode levar à morte”
Jenice Pizão, 64 anos, professora aposentada

As estratégias de prevenção não farmacológicas abrangem prin-


cipalmente o uso de preservativo. A popular camisinha é indicada
contra o HIV e outras ISTs, como sífilis, gonorreia e alguns tipos de
hepatite. Para englobar as pessoas trans, os preservativos muda-
ram de nome: passaram a ser chamados de interno (feminino) e
externo (masculino). “É o método de prevenção mais democrático
que existe. Mas, sozinho, não resolve o problema”, pondera o infec-
tologista Vinícius Borges, idealizador do canal Doutor Maravilha
no YouTube. “As pessoas que vivem com HIV não têm culpa de ter
sido infectadas. Pode acontecer com qualquer um, uma única tran-
sa sem proteção já é suficiente.”

Por essas e outras, médicos recomendam a prevenção combinada:


testagem regular para HIV, ISTs e hepatites virais; prevenção da
transmissão vertical; imunização contra hepatite B e HPV; redução
de danos para usuários de álcool e drogas; e diagnóstico e trata-
mento para ISTs, hepatites virais e pessoas que já vivem com HIV.
Quanto mais proteção, melhor.
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EPIDEMIA EM
NÚMEROS Para 2030, o Unaids estipulou a seguinte meta:
No mundo…
95-95-95. Em outras palavras: diagnosticar 95%
das pessoas que vivem com HIV ou aids, tratar
39 milhões
de pessoas vivem
95% delas com antirretrovirais e alcançar a su-
com HIV pressão viral em 95% das que estão em trata-
mento. Qual é o status do Brasil? 91-81-95. Ou
29,8 milhões
estão em tratamento
seja, 91% das pessoas com HIV já conhecem seu
estado sorológico, 81% delas estão em trata-
1,3 milhão
contraíram o vírus
mento e 95% das que estão têm sua carga viral
indetectável. “O Brasil está muito próximo de
em 2022
bater a meta, mas ainda não chegou lá”, afirma a
620 mil
morreram de aids
bióloga Claudia Velasquez, diretora e represen-
tante do Unaids no Brasil. “Nos próximos sete
no ano passado
anos, o país precisa reduzir de maneira con-
… e no Brasil sistente as desigualdades que, potencializadas

990 mil
pessoas vivem
pelo estigma e a discriminação, ainda impedem
ou dificultam o acesso de populações em situa-
com HIV ção de vulnerabilidade às ações de prevenção,
diagnóstico e tratamento.”
731,4 mil
estão em tratamento
O estigma é mesmo outra realidade dura para
51o vírus
mil contraíram
em 2022
quem vive com HIV. “A parte mais difícil é lidar
com o preconceito”, garante a atriz, educadora
13de mil morreram e escritora Priscila Obaci, que conta ter sido ví-
aids no ano tima de racismo em um serviço de assistência a
passado
pessoas vivendo com HIV na região onde mora,
Fontes: Ministério da
Saúde e Unaids.
17

na capital paulista. “Sou uma mulher preta. Experimento o ódio


desde que nasci. Já sofri rejeição e tive crises de tristeza. Procuro
seguir meu caminho com força e leveza”. Jenice Pizão endossa o
desabafo: “Para quem vive com HIV ou aids, o medo de ser expulsa
de casa, demitida do trabalho ou maltratada na rua é enorme. O
sofrimento é insuportável e pode levar à morte. É cruel demais!”

Apesar de tudo, os personagens desta matéria são prova de que


é possível viver com HIV. Américo Nunes fundou uma ONG, o Ins-
tituto Vida Nova. Jenice Pizão faz parte do Movimento Nacional
das Cidadãs Posithivas (MNCP). Diego Krausz tem um canal no
YouTube, com 25,4 mil inscritos. Lucas Raniel dá palestras sobre
prevenção, diversidade e vivência com HIV. E Priscila Obaci acaba
de lançar uma coleção de livros infantis sobre deuses iorubás. In-
dagada sobre o que diria para alguém que recebeu o diagnóstico
positivo para o vírus, ela afirma: “Você não é o seu diagnóstico.
Há uma pessoa incrível que precisa ser acolhida e só você pode
fazer isso. Se abrace.”
18

ENTREVISTA

“O vício é
uma das
doenças mais
contagiosas
que existem”

COM Anna Lembke POR Marília Marasciulo


Professora da Universidade Stanford
e especialista em adicção fala
sobre como somos vulneráveis ao
vício e, ainda assim, falhamos ao
oferecer alternativas de prevenção e
tratamento contra o problema

D
Desde 1987, o vício é oficialmente classificado
como doença. Foi naquele ano que a terceira edi-
ção do Manual Diagnóstico e Estatístico de Trans-
tornos Mentais (DSM, na sigla em inglês) — organizado pela
Associação Americana de Psiquiatria e considerado a prin-
cipal referência de saúde mental no mundo — atualizou a
classificação do problema. Mesmo assim, o comportamento
que leva ao abuso de substâncias carrega até hoje um forte
estigma. Há quem ainda considere a dependência um des-
vio moral ou uma incapacidade de autocontrole. Além de
incorreta, essa visão é um dos maiores obstáculos para a
prevenção e o tratamento da condição — que, atualmente,
é encarada como algo que vai além de substâncias e pode
incluir, por exemplo, o excesso de uso de redes sociais.

Esse é um dos principais alertas da psiquiatra Anna Lembke,


professora da Universidade Stanford, nos Estados Unidos, e
especialista em adicção. Lembke é também autora dos livros
20

Nação dopamina (2022) e Nação tarja preta (2023), lança-


dos no Brasil pela editora Vestígio. “Algumas substâncias e
comportamentos são inerentemente mais viciantes do que
outros, porque sequestram de forma única os caminhos de
recompensa do nosso cérebro, mas também é verdade que
as pessoas chegam a este mundo com graus variáveis de vul-
nerabilidade ao vício”, afirma. Ela veio ao Brasil para partici-
par do HSM+, evento sobre tendências de gestão e inovação
que aconteceu nos dias 28 e 29 de novembro, em São Paulo.

Na visão de Lembke, vivemos em uma era de superabun-


dância de recursos que são importantes para a sobrevivên-
cia (e, portanto, mais viciantes), como comida, roupas, abri-
go e conexão com outros seres humanos. Tudo isso libera
dopamina, o neurotransmissor de recompensa, que leva
nosso cérebro a compreender que esse excesso de recursos
é importante para a sobrevivência. “O problema é que isso
não é verdade”, frisa.

Ao mesmo tempo, a medicina levou muito tempo para reco-


nhecer o vício como uma doença cerebral e seguimos com
um sistema que tende a punir comportamentos decorrentes
da doença, o que dificulta o acesso a terapias. “Temos mui-
tos tratamentos elaborados e caros que são amplamente
pagos pela sociedade para ajudar pessoas com outras do-
enças crônicas, recorrentes e remitentes. E, no entanto, não
fazemos o mesmo com as pessoas viciadas, embora as taxas
21

de dependência sejam muito mais elevadas do que as de câncer


e as de doença renal crônica”, destaca a psiquiatra. Leia a entre-
vista completa a seguir.

O QUE SIGNIFICA FALAR EM VÍCIO?

Há muitos mal-entendidos e ambiguidades em tor-


no da linguagem. De modo geral, o termo vício é
usado para descrever uma doença mental, definida
como o uso compulsivo contínuo de uma substân-
cia ou comportamento, a ponto de causar danos a
si mesmo e/ou a outras pessoas. É importante res-
saltar que não há exames cerebrais ou de sangue
para detectar a doença. Baseamos o diagnóstico,
como fazemos com todas as doenças mentais, na
fenomenologia, ou seja, em padrões de comporta-
mento que se repetem entre períodos de tempo,
populações, etnias e culturas.

Muitas vezes, usamos os 11 critérios do DSM [atu-


almente na quinta edição] que são usados para
diagnosticar o vício. Importante ressaltar que é
possível ficar viciado em um comportamento tanto
quanto é possível ficar viciado em uma substância.
Até o momento, o único processo ou dependência
comportamental incluído no DSM é o transtorno
22

do jogo. Penso que, com o passar do tempo, mais


e mais vícios comportamentais ou de processos
serão adicionados a essa lista, incluindo o vício na
internet e nas redes digitais.
ANNA LEMBKE
ENTÃO QUALQUER COISA PODE CAUSAR VÍCIO? É psiquiatra,
professora da
Universidade
Algumas substâncias e comportamentos são ine- Stanford (EUA)
rentemente mais viciantes do que outros, porque e chefe de
uma clínica
sequestram de forma única os caminhos de recom-
voltada para o
pensa do nosso cérebro. Normalmente, as subs- estudo sobre
tâncias que fazem isso são as que já produzimos, vício na mesma
instituição. Uma
mas que também ocorrem na natureza, e que po- das especialistas
demos ingerir em doses muito mais altas, em for- em dependência
química mais
mas muito mais potentes, sem ter que fazer o tipo
reconhecidas
de trabalho necessário para produzi-las sozinhos. da atualidade, é
autora dos livros
Nação dopamina
Mas também é verdade que as pessoas chegam a (2022) e Nação
este mundo com graus variáveis de vulnerabilidade tarja preta
(2023), lançados
ao vício. Se você pegar uma pessoa que realmente
no Brasil pela
não nasceu inata ou geneticamente com uma alta editora Vestígio.
vulnerabilidade ao vício, ela provavelmente preci-
saria de muita exposição a substâncias e compor-
tamentos altamente viciantes para ficar viciada.
Por outro lado, você poderia ter alguém com uma
carga genética muito alta para um tipo específico
23

de consumo excessivo compulsivo e, nesse caso,


não demoraria muito para que essa pessoa se vi-
ciasse, inclusive em coisas que outras pessoas tal-
vez não consigam se viciar.

Só para ilustrar com um exemplo, tive uma pacien-


te que tinha um vício em álcool muito grave e com
risco de vida. Ela conseguiu parar de beber álcool,
mas com o tempo tornou-se viciada em água, por-
que percebeu que, ao beber grandes quantidades
de água, poderia induzir hiponatremia [baixos ní-
veis de sódio no sangue], o que a colocava em um
estado alterado, que é o que ela queria. Ela que-
ria não estar em sua própria mente. Normalmente
seria muito, muito difícil para uma pessoa comum
ficar viciada em água. Mas para alguém que já era
viciado, que tinha uma carga genética para o vício,
isso foi possível.

NA SUA VISÃO, COMO A INTERNET E AS MÍDIAS SOCIAIS SE INSE-


REM NESSE CONTEXTO?

As coisas em que temos tendência a ficar viciados


são aquelas que, de maneira diferente ou menor,
realmente são importantes para a sobrevivência,
como encontrar comida, roupas, abrigo, outros se-
res humanos e fazer conexões profundas com es-
sas pessoas. Mas o que acontece no mundo hoje
24

é que a ciência, a tecnologia e a inovação trouxe-


ram muitas dádivas, mas também muitos perigos.
E um dos grandes riscos é o problema da supera-
bundância e o fato de que agora adotamos todos
esses comportamentos como se fossem necessá-
rios para sobreviver. Essa superabundância a que
temos acesso libera dopamina, neurotransmissor
de recompensa, o que faz nosso cérebro entender
que isso é algo importante para a sobrevivência. O
problema é que não é verdade.

E QUAIS OS SINAIS DE ALERTA PARA IDENTIFICAR QUE VOCÊ ESTÁ


SE VICIANDO EM ALGO?

As coisas a serem observadas são o controle, a


compulsão e as consequências, o que chamamos
de “três Cs”. Controle se refere a usar repetida-
mente, mais do que o planejado, e à dificuldade
em reduzir o consumo, mesmo quando há plano
de reduzir. É uma sensação de não ter controle ou
de não conseguir administrar o consumo.

Compulsão refere-se ao fato de que grande par-


te do nosso espaço mental fica ocupado pensando
na substância ou no comportamento, com um es-
treitamento do foco e um nível de automatismo.
Há sobreposição entre controle e compulsão. Mas
25

provavelmente a maior marca do vício é o uso con-


sequente, especialmente o uso continuado, mes-
mo quando reconheço essas consequências.

E QUAIS SÃO ALGUNS DOS MAIORES EQUÍVOCOS OU MITOS EM


TORNO DO VÍCIO?

É afirmar que as pessoas com vício grave nunca


vão melhorar e que são um caso perdido, quan-
do a verdade é que existem milhões de pessoas
em todo o mundo que lutaram contra a depen-
dência grave e que, agora, estão em recuperação
robusta e sustentada e são membros valiosos da
nossa sociedade.

“Um dos maiores desafios


é que a medicina levou
muito tempo para
reconhecer o vício como
uma doença cerebral”
Anna Lembke analisa as dificuldades ao implementar abordagens
baseadas em evidências para prevenção e tratamento da adicção
26

Quando as pessoas estão viciadas, elas essencial-


mente não são elas mesmas; elas são a doença,
que pode parecer um transtorno de personalida-
de e se tornar uma situação muito desesperadora.
Mas essas pessoas podem se recuperar e o fazem
todos os dias. A recuperação não só melhora a vida
delas, mas também a de todos aqueles com quem
convivem. Essa é uma das doenças mais contagio-
sas que existem: afeta famílias inteiras, bairros
inteiros, países inteiros. Acho que esse é o maior
equívoco, essa ideia de que as pessoas nunca po-
derão melhorar. Dito isso, é também, em alguns
casos, uma doença terminal e algumas pessoas
morrerão disso.

E QUAIS OS DESAFIOS DE SE IMPLEMENTAR ABORDAGENS BASEA-


DAS EM EVIDÊNCIAS PARA PREVENÇÃO E TRATAMENTO DE VÍCIOS?

Um dos maiores desafios é que a medicina levou


muito tempo para reconhecer o vício como uma
doença cerebral, para fazer com que as segurado-
ras paguem pelo tratamento, para construir uma
infraestrutura que direcione e trate o vício dentro
do sistema de saúde. E então, para preencher esse
vácuo, o que temos são muitas clínicas de reabili-
tação privadas, algumas das quais são boas e ou-
tras nem um pouco boas.
27

Mas a questão é que nem deveria haver neces-


sidade disso. Temos muitos tratamentos elabo-
rados e caros que são amplamente pagos pela
sociedade para ajudar pessoas com outras do-
enças crônicas, recorrentes e remitentes. E, no
entanto, não fazemos o mesmo com as pessoas
viciadas, embora as taxas de dependência sejam
muito mais elevadas do que as de câncer e as de
doença renal crônica.

VOCÊ ACHA QUE ISSO SE DEVE AO GRANDE ESTIGMA ATRELADO


AO VÍCIO?

Sim. Quando penso em estigma, penso como uma


espécie de “envergonhamento público” das pes-
soas. E certamente precisamos acabar com isso
porque, caso contrário, as pessoas não receberão
tratamento. Por outro lado, o vício é diferente de
outras doenças, porque as pessoas viciadas podem
se envolver em atividades criminosas como resul-
tado da doença da dependência. Por isso, o sistema
de justiça criminal e o sistema de tratamento médi-
co realmente precisam se unir. As pessoas devem
ser responsabilizadas pelos crimes que cometem,
mesmo que isso seja resultado do seu vício. Mas as
punições podem ser atenuadas com a compreensão
da doença e das opções de tratamento.
28

NA MAIORIA DOS PAÍSES, INCLUSIVE NO BRASIL, O USO DE SUBS-


TÂNCIAS PSICOATIVAS É PROIBIDO. ATÉ QUE PONTO ISSO CRI-
MINALIZA E PUNE PESSOAS QUE ESTÃO VICIADAS, ACIRRANDO O
ESTIGMA QUE ENFRENTAM?

Há um movimento nos Estados Unidos para carac-


terizar pessoas com dependência química como
“usuários de drogas” e sequer considerar isso um
comportamento desordenado ou um problema
de saúde mental. Eu acho que isso é errado. Pre-
cisamos deixar bem claro que as substâncias que
causam dependência e a doença da dependência
não são um estado que alguém desejaria para si ou
para alguém de quem gosta, e que temos de nos

“Precisamos deixar bem


claro que as substâncias
que causam dependência
e a doença da dependência
não são um estado que
alguém desejaria para si”
Lembke reflete sobre como lidar com o estigma em torno do vício
29

unir como sociedade para descobrir como ajudar


pessoas que se tornam viciadas. A resposta apro-
priada não será uma guerra contra as drogas nem
a descriminalização de todas elas. Será necessário
algum reconhecimento da letalidade das drogas,
do potencial viciante delas e, em seguida, criar bar-
reiras de proteção para uma sociedade segura.

Agora, certamente já existe uma enorme quanti-


dade de hipocrisia no sistema, basta observar que
algumas drogas muito perigosas e letais, como o
álcool e a nicotina, já são legais. Por outro lado,
não deixamos menores de idade comprarem ci-
garros, não permitimos que pessoas que fabricam
e vendem cigarros façam propaganda para meno-
res; não permitimos que pessoas dirijam veículos
motorizados embriagadas.

É ingênuo pensar que a situação se resolveria se


simplesmente descriminalizássemos todas as dro-
gas, se não usássemos o sistema de justiça criminal
de forma alguma para punir os comportamentos em
que as pessoas se envolvem por causa das drogas.
E é injusto com esses indivíduos que nós, como so-
ciedade, não os protejamos dessas drogas nocivas.
CIÊNCIA
TEXTO Marília Marasciulo EDIÇÃO Luiza Monteiro DESIGN Flavia Hashimoto

Pintura
antropomórfica na
Serra da Capivara,
em São Raimundo
Nonato, no Piauí.
(Foto: Getty Images)

CONTINENTE DE INCERTEZAS
LIVRO RECÉM-LANÇADO SOBRE OCUPAÇÃO HUMANA NAS AMÉRICAS
EVIDENCIA O QUE A FALTA DE CONSENSO NA COMUNIDADE
CIENTÍFICA TEM A VER COM A MANEIRA COMO O CONHECIMENTO É
CONSTRUÍDO E DISSEMINADO
A
Até o final do século 20, arqueólogos questio-
nados sobre quem foram os primeiros habitan-
tes do continente americano provavelmente
responderiam: o povo de Clóvis. O grupo de ca-
çadores de mamutes e outros grandes mamífe-
ros estava espalhado por praticamente todo o
atual território dos Estados Unidos há cerca de
13 mil anos, levando pesquisadores a crer que
teriam sido eles os primeiros colonizadores das
Américas Central e do Sul. O modelo, conhecido
em inglês como Clovis First, caiu por terra quan-
do, no fim dos anos 1980, especialistas encon-
traram provas de presença humana no extremo
sul do continente há 14,6 mil anos.

Desde então, qualquer consenso sobre como


se deu a ocupação humana nas Américas eva-
porou. “Por mais paradoxal que possa parecer,
hoje temos menos certezas sobre o povoamen-
to do continente do que tínhamos algumas
décadas atrás”, escreve o jornalista Bernardo
Esteves em Admirável novo mundo — uma his-
tória da ocupação humana nas Américas, lan-
çado em outubro pela Companhia das Letras.
“Os primeiros americanos eram asiáticos na sua
origem. Assim, os povos indígenas que existem
hoje são todos descendentes de uma população
32

que veio da Sibéria. Aí se interrompem as nossas certezas consen-


suais”, completa Esteves, que é doutor em História das Ciências e
das Técnicas e Epistemologia pela Universidade Federal do Rio de
Janeiro (UFRJ), em entrevista a GALILEU.

Fruto de uma década de pesquisa, que incluiu mais de uma cen-


tena de entrevistas com 59 pessoas, entre elas representantes de
povos indígenas e pesquisadores de diferentes áreas do conheci-
mento, o livro traça mais do que a história sobre a origem de nos-
sos antepassados — aliás, quem ler esperando uma resposta con-
clusiva provavelmente irá se decepcionar. O tema central e grande
motivação para a pesquisa de Esteves é, no fundo, a controvérsia
científica. “As controvérsias são, de certa maneira, uma janela para
a gente entender a construção do conhecimento científico. Quan-
do os cientistas discordam, eles se obrigam a questionar”, aponta.

Por mais que existam indícios arqueológicos de ocupação huma-


na nas Américas datados em pelo menos 30 mil anos, eles não são
aceitos pela ciência tradicional. Um exemplo brasileiro é o dos sítios
arqueológicos da Serra da Capivara, no Piauí. Em 1986, a arqueó-
loga franco-brasileira Niède Guidon publicou um artigo relatando
escavações feitas no local. A partir delas, foram encontrados restos
de fogueira e artefatos produzidos por humanos que viveram por
lá há quase 40 mil anos. Publicado na Nature, um dos periódicos
científicos mais respeitados do mundo, o estudo não foi o suficiente
para convencer outros pesquisadores, sobretudo aqueles da Europa
e dos EUA, sobre a presença desses antigos habitantes por aqui.
Escavações na Serra da Capivara revelaram indícios de presença humana há quase 40 mil
anos, segundo estudo publicado em 1986 na revista Nature. (Foto: Getty Images)

Muitos consideraram que as ferramentas não passavam de pe-


dras lascadas pela natureza e não bastavam para destronar o mo-
delo de Clóvis. “A maioria dos pesquisadores hoje defende que a
entrada [nas Américas] se deu em algum momento entre 16 mil
e 20 mil anos atrás”, explica Esteves. Isso provavelmente aconte-
ceu pela Beríngia, uma faixa de terra ligando a Ásia à América do
Norte que ficou emersa até cerca de 13 mil anos atrás, a partir de
quando o derretimento de gelo provocou o aumento do nível dos
oceanos. “Hoje, a barreira que parece dividir os estudiosos é o pe-
ríodo que os geólogos chamam de último máximo glacial”, explica
o autor de Admirável novo mundo.
34

A janela que vai de 16 mil a 19 mil anos atrás foi o último momento
que fez frio de verdade no planeta. De um lado, estão os que de-
fendem que a ocupação começou antes disso; de outro, os que se
apoiam na genética e nos estudos do DNA contemporâneo para
concluir que os humanos chegaram às Américas somente depois
do último máximo glacial.

Esse imbróglio científico é o que torna a já complexa pergunta “de


onde viemos?” ainda mais curiosa. “O estudo da ocupação humana
nas Américas levanta tanto a discussão processual de como a gen-
te busca evidências sobre a ocupação e quais delas são relevantes,
quanto a do que a gente considera uma evidência”, avalia o histo-
riador Luiz Alves, doutor em História das Ciências e da Saúde e
coordenador-adjunto do Observatório História e Saúde na Fiocruz.
Ao nos questionarmos “como sabemos o que sabemos?”, somos
provocados a refletir sobre como — e por quem — o conhecimento
científico é construído, e quais as consequências disso.

CONSTRUINDO PARADIGMAS
“O ponto de partida é entender que a ciência é uma atividade co-
letiva”, pontua Alves. Dentro dessa atividade, um conceito chave é
o de paradigma, elaborado pelo filósofo da ciência Thomas Kuhn,
dos Estados Unidos. Trata-se de um conjunto de práticas e pensa-
mentos que norteiam uma disciplina científica. “Estamos falando
de grandes teorias e formas de compreender o mundo que orien-
tam tanto a maneira como o cientista pensa quanto a como ele
age”, explica o historiador, que traz como exemplo de paradigma a
35

Mecânica Clássica, na física. Baseada nos estudos de Galileu Galilei


e Isaac Newton, no século 17, ela teve algumas de suas “certezas”
desbancadas no início do século 20, com as teorias da Relatividade
apresentadas por Albert Einstein.

Se um paradigma deixa de conseguir explicar resultados incon-


gruentes obtidos em experimentos, temos uma espécie de crise no
que Kuhn chama de “ciência normal” — isto é, quando há consenso
entre os cientistas sobre teorias centrais de suas disciplinas. Ocorre,
então, a ciência “extraordinária” ou “revolucionária”, ainda no lingua-
jar de Kuhn, e parte-se em busca de um novo paradigma. É mais ou
menos esse o momento em que se encontra o estudo da ocupação
humana nas Américas. “É como se a gente tivesse um céu estrelado,
e uma nova teoria acrescentasse novas estrelas naquele céu. A gen-
te tem uma mudança na geografia, mas [isso] não quer dizer que
outras estrelas desapareçam”, compara Alves, com base no pensa-
mento da historiadora das ciências Lorraine Daston, dos EUA, que
busca problematizar a ideia de objetividade científica.

“O ESTUDO DA OCUPAÇÃO HUMANA NAS AMÉRICAS


LEVANTA TANTO A DISCUSSÃO DE COMO A GENTE BUSCA
EVIDÊNCIAS E QUAIS DELAS SÃO RELEVANTES, QUANTO A
DO QUE CONSIDERAMOS UMA EVIDÊNCIA”
Luiz Alves, historiador e coordenador-adjunto do
Observatório História e Saúde na Fiocruz
36

Essa problematização é importante, pois os paradigmas existen-


tes foram construídos principalmente a partir de uma perspectiva
europeia e norte-americana. Esteves recorre à reflexão de outro
filósofo da ciência, o francês Bruno Latour, que afirmou que “o real
não é aquilo que existe, é aquilo que resiste.” Na visão de Latour,
a força de um enunciado científico ou de uma determinada teoria
não depende do mérito do conhecimento, e sim das relações de
poder que fazem a ideia ter aderência social. “Ou seja, uma inter-
pretação ameríndia sobre a ocupação humana não é mais ou me-
nos válida que uma europeia por conta da natureza do enunciado,
mas pela capacidade das pessoas e de todos na ciência, de modo

Desde 1991, o Parque Nacional Serra


da Capivara está na lista do Patrimônio
Mundial da Unesco. (Foto: Getty Images)
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geral, mobilizarem esse enunciado”, completa Alves. “Acho que


esse é um ponto de chegada na discussão do livro do Bernardo:
ao eleger um conjunto de ideias e valores como epistemicamente
virtuosos, você exclui outras formas de saber.”

MAIS SUJEITOS NO FAZER CIÊNCIA


Trazer tais discussões para o grande público não é tarefa fácil —
especialmente em tempos de negacionismo científico. “A gente vê
uma série de nós [cientistas] circulando na esfera pública. Uma sé-
rie de defesas incondicionais da ciência, mas que reforçam o mo-
delo que algumas escolas dos estudos sociais da ciência vêm se es-
forçando para combater”, aponta Esteves. Na visão dele, essa seria
uma rara oportunidade de mostrar para as pessoas que a ciência
não é mais fraca por ser incerta — pelo contrário, é justamente por
exigir um conjunto de elementos que ela se torna sólida.

“Se a população fosse mais familiarizada com a forma como os


cientistas chegam às suas convicções, acho que a gente teria
uma espécie de vacina para o negacionismo. As incertezas e as
limitações fazem parte do conhecimento”, destaca o jornalista.
“O que é verdade hoje não vai ser verdade daqui a 20 anos, nem
era verdade 50 anos atrás. Talvez a gente venha até a descartar
essa história que eu conto neste livro. Não sei o que vai ser des-
coberto pela arqueologia, pela genética, por outras ciências nas
próximas décadas. Parte da beleza da ciência está aí também,
e isso é o oposto da ideia de uma ciência universal, neutra, que
sempre esteve aí.”
38

“O QUE É VERDADE HOJE NÃO VAI SER VERDADE


DAQUI A 20 ANOS, NEM ERA VERDADE 50 ANOS
ATRÁS. TALVEZ A GENTE VENHA ATÉ A DESCARTAR
ESSA HISTÓRIA QUE EU CONTO NESTE LIVRO”
Bernardo Esteves, jornalista e autor de Admirável Novo Mundo

Essa seria uma oportunidade também de incluir outros atores nesse


conjunto de elementos. “Tem algo muito forte no livro, que é eu bus-
car valorizar a perspectiva indígena sobre a própria história”, conta
Esteves. “Fico muito orgulhoso de estar trazendo isso, porque acho
que é uma mosca que o jornalismo comeu por anos.” O principal
ponto em questão é a ética das pesquisas genéticas com amostras
biológicas de povos indígenas. Em 2015, um estudo genético iden-
tificou que alguns indígenas das etnias Paiter-Suruí e Karitiana, de
Rondônia, e Xavante, no Mato Grosso, têm sequências no DNA en-
contradas somente na Oceania e no Sudeste Asiático — a população
misteriosa foi batizada de “Y”.

O problema é que aspectos da cultura dos indígenas estudados fo-


ram ignorados e desrespeitados. Os Paiter-Suruí, por exemplo, têm
regras rígidas em caso de morte — não se pode sequer falar o nome
da pessoa que faleceu, caso contrário, o espírito pode se vingar,
que dirá realizar estudos com sangue imortalizado. “Quando a gen-
te noticiou a descoberta, a gente falou muito do que foi descoberto,
39

mas não se atentou para como foi feita essa descoberta. Os cientis-
tas não consideraram suficientemente os interesses desses povos
na maneira como desenharam as pesquisas”, destaca o jornalista.

Para o historiador da Fiocruz, é importante demarcar o que ele


define como processos coloniais que permeiam a ciência. “Ela se
produz a partir de encontros, mas eles são assimétricos e sempre,
por mais bem-intencionado, por mais participativo que seja, é um
processo baseado em relações de poder”, observa. Na busca por
equilíbrio dessas relações, Alves considera interessante a alterna-
tiva proposta principalmente por filósofas feministas — como as
estadunidenses Donna Haraway e Sandra Harding: para ampliar a
diversidade na ciência, é preciso pensar além da representativida-
de. “É fazer a presença de grupos sociais marginalizados implicar
mudanças no conhecimento produzido e nas estruturas de poder
que organizam a ciência. Que esses grupos passem a produzir co-
nhecimento não só no lugar de objetos de estudo, mas de sujeitos”,
explica o especialista da Fiocruz.

Ainda que lento e tímido, esse movimento vem acontecendo — a


própria ponderação de Esteves sobre a cultura indígena seria algo
improvável 20 anos atrás. “É uma consciência que vem surgindo aos
poucos”, avalia o autor. E aí, quem sabe um dia, diante de novos im-
bróglios científicos — ou até na própria solução do quebra-cabeça
da ocupação das Américas —, novos paradigmas possam surgir le-
vando em consideração outras perspectivas e visões de mundo.
QUER QUE EU DESENHE?
POR BERNARDO FRANÇA

A BAIANA FRANCISCA FRÓES ABRIU CAMINHOS NA


DEFESA DOS DIREITOS POLÍTICOS E DE SAÚDE DAS
MULHERES NO SÉCULO 20. CONHEÇA SUA HISTÓRIA
TEXTO
Beatriz Herminio
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Francisca Praguer Fróes foi uma das


primeiras mulheres médicas do Brasil.
Nascida em 21 de outubro de 1872 em
Cachoeira (BA), matriculou-se na Faculdade
de Medicina da Bahia (Fameb) em 1888 – nove
anos após o Império permitir o ingresso de
mulheres no ensino superior.
42

Formada aos 20 anos, dedicou-se à Obstetrícia


e à Ginecologia. Foi pioneira na defesa do
direito à saúde de mulheres com infecções
sexualmente transmissíveis e nos debates
da moral sexual e dos direitos políticos
femininos vinculados à maternidade.
43

Estreou a participação feminina na Gazeta


Médica da Bahia em 1903. Seu primeiro artigo
relatava um caso de gravidez extrauterina
abdominal, e naquele ano publicou um texto
exigindo que mulheres tivessem os mesmos
direitos que homens na faculdade.
44

Em 1917, escreveu um artigo em defesa do


divórcio, processo que só foi instituído
legalmente no país 60 anos depois, em 1977.
Foi ainda a primeira mulher a dar aulas na
Fameb, e chegou a ser eleita presidente da
União Universitária Feminina, fundada em 1929.
45

Francisca casou-se com o também médico João


Américo Garcês Fróes, e morreu aos 59 anos no
Rio de Janeiro, em 1931, ano em que participava
do Segundo Congresso Internacional
Feminista. Era, em suas palavras, “feminista
por herança e por convicção.”

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