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APRESENTA
DILEMAS
CIENTÍFICOS
SOBRE
OCUPAÇÃO
HUMANA NAS
AMÉRICAS
SENTENÇA
DE VID
A MAIORIA DOS 990 MIL
BRASILEIROS VIVENDO COM
HIV ESTÁ EM TRATAMENTO.
CONHEÇA AVANÇOS
RECENTES — E OS DESAFIOS
QUE PERSISTEM NA EPIDEMIA
COMPOSIÇÃO
DEZEMBRO DE 2023
03
CAPA
O QUE MUDOU NO
BRASIL E NO MUNDO
APÓS QUATRO
DÉCADAS DA
EPIDEMIA DE AIDS?
30
CIÊNCIA
SENTENÇA DE VID
O BRASIL TEM HOJE 990 MIL PESSOAS VIVENDO
COM HIV; DESSAS, 731 MIL ESTÃO EM TRATAMENTO
E PODEM LEVAR UMA VIDA SAUDÁVEL E NORMAL.
MAS NEM SEMPRE FOI ASSIM. CONHEÇA OS
AVANÇOS NO ENFRENTAMENTO À EPIDEMIA NAS
ÚLTIMAS QUATRO DÉCADAS
o
O momento do diagnóstico, não importa quanto tempo passou,
ninguém esquece. Para Américo Nunes, de 62 anos, foi uma sen-
tença de morte: “Você tem aids. A doença não tem cura. Sua ex-
pectativa de vida é de seis meses”, ouviu de uma enfermeira na
Unidade Básica de Saúde (UBS). “Saí de lá desolado”, recorda. Die-
go Krausz, de 33 anos, admite que levou um choque. “Tive muito
medo e achei que fosse morrer”, confessa. O sentimento de pânico
é compartilhado por Jenice Pizão, hoje com 64 anos. “Meu mun-
do desabou”, resume numa frase. Priscila Obaci, de 39, até tentou
manter a calma, mas não conseguiu. “Entrei em desespero ao saber
que não poderia mais amamentar meu primeiro filho”, diz. Lucas
Raniel, de 31, sentiu como se fosse uma bomba-relógio. “Cheguei a
pensar em suicídio”, revela.
5
UM PROBLEMA DE TODOS
Em 1983, começaram a pipocar casos de aids também em mulhe-
res e crianças. Descobriu-se que o vírus tinha a capacidade de con-
taminar fetos durante a gravidez e recém-nascidos no parto e na
amamentação — na chamada transmissão vertical. “Qualquer um
de nós estaria sujeito a ser contaminado e sequer a causa da in-
fecção e a forma de transmissão eram bem definidas, apesar da
intensa propaganda que responsabilizava os supostos transgres-
sores: homossexuais e usuários de drogas”, recorda Petri.
“INDETECTÁVEL É IGUAL
A INTRANSMISSÍVEL”
Do total de pessoas com o vírus no país atualmente, 731 mil estão
em tratamento antirretroviral, de acordo com o Ministério da Saú-
de. Os antirretrovirais (ARV) são medicamentos prescritos para
impedir a multiplicação do HIV no organismo e evitar o enfraqueci-
mento do sistema imunológico. O uso regular deles é fundamental
tanto para aumentar a expectativa de vida da pessoa que vive com
o vírus quanto para melhorar sua qualidade de vida. Os primeiros
ARV surgiram ainda na década de 1980 — o azidotimidina (AZT),
por exemplo, foi aprovado nos Estados Unidos em 1987.
CURA OU REMISSÃO?
O caso de Krausz, que se tornou indetectável depois de receber
o diagnóstico, não é isolado. A carga viral de quem segue o trata-
mento à risca tende a cair em seis meses. Se isso não acontecer,
o médico precisa avaliar a terapia que receitou para o paciente.
Pode ser o caso de ajustar a dosagem de algum medicamento ou,
então, mudar a combinação dos antirretrovirais. Mas atenção: não
é porque a carga viral está indetectável que o sujeito está livre do
HIV. O vírus permanece “adormecido” dentro de alguns agrupa-
mentos de células chamados de “reservatórios”. Se o tratamento
for interrompido, seja por alguns dias, seja por tempo indetermi-
nado, o vírus “acorda” e começa a se multiplicar. E corre o risco de
se tornar ativo (e transmissível) novamente. Pior de tudo: resisten-
te aos antirretrovirais que, até pouco tempo, faziam efeito.
que já vivem com HIV. E essa não é uma missão qualquer. “Vacinas
são mais fáceis de produzir quando há cura espontânea, como a
gripe, ou quando, após curado, o organismo se torna resistente a
uma nova infecção, caso do sarampo. Nenhuma das duas coisas se
aplica à infecção pelo HIV”, contextualiza o infectologista Mauro
Schechter, professor titular de Doenças Infecciosas da Universida-
de Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). “Pelo contrário: o HIV, além de
infectar e destruir as células que comandam todo nosso sistema
“A melhor
coisa que uma
pessoa com HIV
pode fazer hoje
em dia é manter
sua carga viral
indetectável
por meio de
tratamento
antirretroviral”
Rico Vasconcellos, infectologista
e pesquisador da Faculdade de
Medicina da USP
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95-95-95
Toda pessoa que tem uma vida sexual ativa ou passou por alguma
situação de risco, como fazer sexo desprotegido ou compartilhar
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exposição ao HIV, como homens que fazem sexo com homens, pro-
fissionais do sexo e usuários de drogas injetáveis, entre outros. Já
a PEP, disponível desde a década de 1990, é a utilização da terapia
após qualquer situação de exposição ao vírus: de uma simples cami-
sinha estourada a casos de violência sexual, por exemplo, ou até em
acidentes de trabalho (com objetos cortantes ou material biológico).
EPIDEMIA EM
NÚMEROS Para 2030, o Unaids estipulou a seguinte meta:
No mundo…
95-95-95. Em outras palavras: diagnosticar 95%
das pessoas que vivem com HIV ou aids, tratar
39 milhões
de pessoas vivem
95% delas com antirretrovirais e alcançar a su-
com HIV pressão viral em 95% das que estão em trata-
mento. Qual é o status do Brasil? 91-81-95. Ou
29,8 milhões
estão em tratamento
seja, 91% das pessoas com HIV já conhecem seu
estado sorológico, 81% delas estão em trata-
1,3 milhão
contraíram o vírus
mento e 95% das que estão têm sua carga viral
indetectável. “O Brasil está muito próximo de
em 2022
bater a meta, mas ainda não chegou lá”, afirma a
620 mil
morreram de aids
bióloga Claudia Velasquez, diretora e represen-
tante do Unaids no Brasil. “Nos próximos sete
no ano passado
anos, o país precisa reduzir de maneira con-
… e no Brasil sistente as desigualdades que, potencializadas
990 mil
pessoas vivem
pelo estigma e a discriminação, ainda impedem
ou dificultam o acesso de populações em situa-
com HIV ção de vulnerabilidade às ações de prevenção,
diagnóstico e tratamento.”
731,4 mil
estão em tratamento
O estigma é mesmo outra realidade dura para
51o vírus
mil contraíram
em 2022
quem vive com HIV. “A parte mais difícil é lidar
com o preconceito”, garante a atriz, educadora
13de mil morreram e escritora Priscila Obaci, que conta ter sido ví-
aids no ano tima de racismo em um serviço de assistência a
passado
pessoas vivendo com HIV na região onde mora,
Fontes: Ministério da
Saúde e Unaids.
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ENTREVISTA
“O vício é
uma das
doenças mais
contagiosas
que existem”
D
Desde 1987, o vício é oficialmente classificado
como doença. Foi naquele ano que a terceira edi-
ção do Manual Diagnóstico e Estatístico de Trans-
tornos Mentais (DSM, na sigla em inglês) — organizado pela
Associação Americana de Psiquiatria e considerado a prin-
cipal referência de saúde mental no mundo — atualizou a
classificação do problema. Mesmo assim, o comportamento
que leva ao abuso de substâncias carrega até hoje um forte
estigma. Há quem ainda considere a dependência um des-
vio moral ou uma incapacidade de autocontrole. Além de
incorreta, essa visão é um dos maiores obstáculos para a
prevenção e o tratamento da condição — que, atualmente,
é encarada como algo que vai além de substâncias e pode
incluir, por exemplo, o excesso de uso de redes sociais.
Pintura
antropomórfica na
Serra da Capivara,
em São Raimundo
Nonato, no Piauí.
(Foto: Getty Images)
CONTINENTE DE INCERTEZAS
LIVRO RECÉM-LANÇADO SOBRE OCUPAÇÃO HUMANA NAS AMÉRICAS
EVIDENCIA O QUE A FALTA DE CONSENSO NA COMUNIDADE
CIENTÍFICA TEM A VER COM A MANEIRA COMO O CONHECIMENTO É
CONSTRUÍDO E DISSEMINADO
A
Até o final do século 20, arqueólogos questio-
nados sobre quem foram os primeiros habitan-
tes do continente americano provavelmente
responderiam: o povo de Clóvis. O grupo de ca-
çadores de mamutes e outros grandes mamífe-
ros estava espalhado por praticamente todo o
atual território dos Estados Unidos há cerca de
13 mil anos, levando pesquisadores a crer que
teriam sido eles os primeiros colonizadores das
Américas Central e do Sul. O modelo, conhecido
em inglês como Clovis First, caiu por terra quan-
do, no fim dos anos 1980, especialistas encon-
traram provas de presença humana no extremo
sul do continente há 14,6 mil anos.
A janela que vai de 16 mil a 19 mil anos atrás foi o último momento
que fez frio de verdade no planeta. De um lado, estão os que de-
fendem que a ocupação começou antes disso; de outro, os que se
apoiam na genética e nos estudos do DNA contemporâneo para
concluir que os humanos chegaram às Américas somente depois
do último máximo glacial.
CONSTRUINDO PARADIGMAS
“O ponto de partida é entender que a ciência é uma atividade co-
letiva”, pontua Alves. Dentro dessa atividade, um conceito chave é
o de paradigma, elaborado pelo filósofo da ciência Thomas Kuhn,
dos Estados Unidos. Trata-se de um conjunto de práticas e pensa-
mentos que norteiam uma disciplina científica. “Estamos falando
de grandes teorias e formas de compreender o mundo que orien-
tam tanto a maneira como o cientista pensa quanto a como ele
age”, explica o historiador, que traz como exemplo de paradigma a
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mas não se atentou para como foi feita essa descoberta. Os cientis-
tas não consideraram suficientemente os interesses desses povos
na maneira como desenharam as pesquisas”, destaca o jornalista.