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Extensão fenomenológica

TEMAS LIVRES FREE THEMES


dos conceitos de saúde e enfermidade em Heidegger

Phenomenological extension
of Heidegger’s concepts of health and illness

Roberto Passos Nogueira 1

Abstract In the Zollikon seminars Heidegger gave Resumo Heidegger deu uma extraordinária con-
an extraordinary contribution to the phenome- tribuição ao estudo fenomenológico da saúde e da
nological study of health and disease. Through- enfermidade nos seminários de Zollikon, a única
out his life, this was the only chance the philoso- oportunidade, ao longo de sua vida, em que o filó-
pher had to deal in depth with these questions. sofo pôde tratar com profundidade dessas ques-
Disease was then determined as an ontological tões. Aí a enfermidade foi ontologicamente deter-
privation of health. Heidegger, however, did not minada como sendo uma privação da saúde. Con-
develop an explicit concept of health. The author tudo, Heidegger não desenvolveu explicitamente
intends to develop to their full consequences some o conceito de saúde. O autor busca extrair conse-
theses expounded in these seminars taking as ref- quências fenomenológicas das teses expostas nes-
erence two determinations then sketched: the es- ses seminários a partir de duas determinações aí
sence of human health is identical with Dasein’s esboçadas: a essência da saúde humana é a pró-
unfolding essence in its opening to being; any dis- pria essência extática do Dasein em sua abertura
ease is a “limitation of the possibility of living”. ao ser; toda enfermidade é uma “limitação da pos-
Key words Heidegger, Analytics of Dasein, Phe- sibilidade de viver”.
nomenology of health Palavras-chave Heidegger, Analítica do Dasein,
Fenomenologia da saúde

1
Instituto de Pesquisa
Econômica Aplicada. SBS,
Quadra 1, Ed. BNDES, sala
1.420, Asa Norte.
70776-900 Brasília DF.
roberto.nogueira@ipea.gov.br
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Nogueira RP

A enfermidade como privação ção à metafísica tradicional. Como se sabe, para


a metafísica, um dos modos de ser dos entes é a
Numa de suas exposições nos seminários de Zo- possibilidade: por exemplo, a madeira (ou a ár-
llikon, Heidegger1,2 afirma que a enfermidade deve vore) é a possibilidade de ser mesa. Mas, nesses
ser entendida mediante o conceito de privação, casos, a possibilidade se esgota na medida em
transmitido pela tradição metafísica desde Platão que é realizada. Em contraposição, o Dasein sem-
e Aristóteles. A privação (steresis, em grego) cons- pre se mantém como potencialidade de ser1; a
titui-se numa negação estabelecida através de uma tradução brasileira usa poder-ser para traduzir
afirmação implícita de algo que falta. No caso da Seinkönnen, quer atue ou não de acordo com tal
enfermidade, é sempre mantida uma relação de potencialidade.
pertinência essencial à saúde. A enfermidade não O que se depreende a partir da análise de
é a ausência da saúde, mas é um modo de existir Heidedgger nos seminários de Zollikon1 é que a
em que a saúde faz falta. A pessoa enferma tem enfermidade deve ser analisada fenomenologica-
necessidade de saúde, ou seja, carece de saúde: A mente como um modo de privação, mas sempre
pessoa enferma é não-sadia. O estar-saudável, o es- no sentido de privação da potencialidade de ser
tar-bem, o encontrar-se bem não está simplesmen- do Dasein. A enfermidade é um modo de carecer
te ausente, mas está perturbado. A enfermidade não do Dasein em que ele se compreende como es-
é a pura negação do estado psicossomático de saúde. tando numa falta de alternativas de poder-ser.
A enfermidade é uma privação. Toda privação im- Portanto, ele tem sempre a compreensão pré-
plica a pertinência essencial de algo ao que lhe faz ontológica da privação.
falta, do que tem necessidade1 (devido a algumas Essa interpretação rompe em definitivo com
incorreções da tradução brasileira dos Seminári- a base cartesiana da medicina moderna em que a
os de Zollikon, para citações desta obra baseio- enfermidade é entendida a partir de uma res ex-
me aqui na versão americana). tensa (o corpo físico) e analisada através das
Nesse sentido, a privação é um fenômeno modificações de seus constituintes anatômicos,
ontológico que jamais pode ser compreendido fisiológicos, bioquímicos etc. O corpo e suas
com base nas categorias da lógica formal. Heide- mudanças patológicas são apenas uma das inú-
gger fornece alguns exemplos extraídos do mun- meras bases para que o Dasein se compreenda
do físico: a sombra é a privação de luz; o frio é a em privação da saúde, sendo sempre essas bases
privação de calor; o repouso é a privação do mo- determinadas pelos modos de ser do Dasein.
vimento. Evidentemente, esses exemplos têm pou- Mas em nenhum momento dos seminários
ca utilidade para uma análise ontológica da saúde de Zollikon Heidegger1 expõe uma determinação
humana. A razão se radica num dos pressupos- rigorosa do que seja a saúde. Isto acaba por com-
tos da analítica existencial do Dasein: este ente es- prometer a própria consistência do conjunto das
pecial que nós mesmos somos não é passível de análises fenomenológicas ali realizadas. Com efei-
interpretação através de um ente simplesmente to, o que pode significar o conceito de enfermi-
dado. O Dasein não se entende a si mesmo nem dade como privação da saúde se não é feita uma
pode ser analisado como se fosse a propriedade determinação ontológica adequada do que é a
de um ente dado na efetividade (Wirklichkeit), saúde? A relação entre os conceitos de saúde e de
mas somente pela possibilidade que ele mesmo é enfermidade, de um lado, e o conceito de poten-
a cada momento: Dasein ist je seine Möglichkeit cialidade de ser, de outro, não foi devidamente
und es »hat« sie nicht nur noch eigenschaftlich als esclarecida.
ein Vorhandenes – O Dasein é a cada vez sua pos- Essas omissões, contudo, são perfeitamente
sibilidade e jamais a tem somente como uma pro- compreensíveis. O filósofo se impôs o encargo de
priedade dada3. Como ente, o Dasein se determi- pensar a saúde e a enfermidade num período tar-
na a partir de uma possibilidade, e nessa possibi- dio de sua carreira, em encontros esporádicos para
lidade já se compreende a si mesmo de algum os quais não chegou a escrever um texto-base ex-
modo. Heidegger agrega que este é o sentido for- tenso e sistemático como acontecera em inúme-
mal da constituição do Dasein. ros seminários anteriores, de caráter propriamen-
Em conversação com Medard Boss, Heide- te acadêmico. Os de Zollikon constituem uma
gger1 recomenda que, no plano da interpretação exceção entre seus seminários, já que acontece-
existenciária do Dasein, dever ser empregado o ram basicamente em virtude do vínculo de ami-
termo potencialidade de ser (Seinkönnen) no lu- zade que ele mantinha com Medard Boss. Mais
gar de possibilidade (Möglichkeit), para que fi- decisivo, entretanto, é o fato de que Heidegger
que bem demarcado um afastamento em rela- tinha um interesse de toda a vida voltado para as
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questões mais gerais da ontologia. De acordo com tado de linguagem, com sua habilidade de dis-
suas próprias definições, as questões da saúde tinguir o que “é” um ente como tal (uma mesa,
pertencem a uma “ontologia regional” e deveriam um livro), mas não de uma maneira individual,
ser abordadas no âmbito de uma disciplina ainda para cada coisa, como se a des-coberta do ente
inédita, a antropologia filosófica do normal e do resultasse de uma investigação. A abertura, na
patológico. Ele esperava, para o futuro, que hou- compreensão do que os entes “são”, está desde
vesse o desenvolvimento não só dessa nova disci- sempre dirigida à totalidade do mundo.
plina filosófica como também que fossem reali- O homem tem mundo como formador de
zadas sistematizações científicas consentâneas com mundo, diz Heidegger1 em Conceitos fundamen-
os fundamentos de sua ontologia4. tais da metafísica. Heidegger faz uma revisão de-
A intenção deste artigo é retirar certas conse- talhada e crítica da literatura científica de sua épo-
quências analíticas (que denomino de extensões ca nos campos da biologia e da zoologia que ain-
fenomenológicas) a partir de duas determina- da nos surpreende por sua atualidade. Leva a cabo
ções esboçadas por Heidegger: (1) a essência da um tratamento filosófico de temas específicos e
saúde humana é a própria essência extática do inéditos, tais como órgãos, sistemas orgânicos e
Dasein em sua abertura ao ser; (2) toda enfermi- conduta animal. Nessa obra é desenvolvida com
dade é restritiva da liberdade do Dasein, é uma grande profundidade a diferenciação de estatuto
“limitação da possibilidade de viver”. ontológico entre o homem, os animais e uma pe-
dra, brevemente referida na citação feita, estabe-
lecendo sinteticamente três determinações do es-
A essência extática do Dasein tatuto ontológico desses entes6:
(1) a pedra (qualquer ente puramente mate-
É preciso recordar sumariamente aquilo que rial) é desprovida de mundo;
Heidegger manteve como premissa ontológica (2) o animal é pobre no mundo;
fundamental a partir do início dos anos 1930: a (3) o homem é formador de mundo.
abertura ao ser que se dá ao Dasein. Aqui, não Aqui, “formador de mundo” é um conceito que
pretendo me deter nos conceitos muito sutis, mas nada tem a ver com a conhecida tese de Marx em O
correlatos, de clareira (Lichtung) e de evento de capital de que o homem é um animal que trabalha
apropriação (Ereignis). Para os fins de uma de- com base na antevisão da finalidade de sua ativida-
terminação preliminar da saúde, creio que basta de. Formar quer dizer trazer os entes do mundo à
ter em vista o conceito de abertura (Offenheit). manifestação, à presença; mas, como precondição,
Cito a partir de um texto pouco conhecido, A há o trazer-se a si mesmo à manifestação pela re-
essência da verdade, que se originou de um semi- soluta auto-des-coberta do Dasein. Esta auto-des-
nário dado na Universidade de Freiburg em 1931- coberta ocorre em referência ao Da do Dasein, no
2 e que tem, como um dos seus temas, o mito da estar-em um mundo, como ser lançado à sua pró-
caverna de Platão: O homem é o ser que entende o pria responsabilidade. Em meio à manifestação dos
ser e existe com base nesse entendimento, isto é, entes, o Dasein, pela resoluta abertura de si mes-
entre outras coisas, comporta-se diante dos entes mo, compreende-se como sendo sua potencialida-
como aquilo que é des-coberto. Existir e Dasein de de ser e se faz livre a si mesmo com tal compre-
não são usados aqui num sentido vago e desvane- ensão. Esse resoluto abrir-se para si é o momento
cido para significar um acontecer e o estar presen- da visão (Augenblick).
te, mas num sentido bem definido e adequadamente A abertura para o ser e para si mesmo no Da
fundado. Ex-istir e ex-istente: erguer-se acima de do Dasein não é só um trunfo, mas um grande
si mesmo em direção ao des-cobrimento, estar en- perigo, como relembra Heidegger quando men-
tregue aos entes em sua totalidade, e, assim, ao ciona a possibilidade de o Dasein se perder numa
confronto de si próprio com os entes, não fechado condição de privação, que é sempre restritiva de
em si como as plantas, não restrito ao seu ambien- sua liberdade. Isso tudo tem a ver com sua “vul-
te como os animais, não ocorrendo simplesmente nerabilidade”, palavra que Heidegger não usa,
como uma pedra5. mas que se acerca do sentido metafísico da pala-
A essência (Wesen) do homem tem sempre vra finitude: O Dasein está diante de possibilida-
esse caráter ex-tático, palavra que busca dar a des que ele não antevê. É sujeito a mudanças que
ideia de uma potencialidade de ser além de si não conhece. Move-se constantemente numa con-
mesmo, de projetar-se no espaço e na tempora- dição sobre a qual não tem domínio6.
lidade que o Dasein abre para si. Não haveria O homem, em sua essência extática, tem o
essa abertura se o homem não fosse um ser do- mundo em plenitude. Sua potencialidade de ser
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não encontra limitação nem no espaço nem no biologia e da zoologia, Heidegger cumpriu parci-
tempo, os quais, na verdade, são “abertos” pelo almente com certos requisitos preliminares acer-
próprio Dasein. Ele pode se fazer corporalmente ca do estudo da vida que ele havia exposto em
presente aqui enquanto também está presente ao Ser e tempo7. Ele diz aí que a vida é um modo de
que está lá, num local distante para onde se diri- ser ao qual somente se pode ter acesso por inter-
ge. Pode compreender o que é e o que foi, à luz de médio daquilo que é característico do Dasein e
sua potencialidade de ser, que está sempre volta- que a investigação da ontologia da vida deve ser
da para o que ainda lhe advirá, ou seja, para o conduzida pela via de uma interpretação “priva-
futuro. O animal, ao contrário, está limitado às tiva” em relação ao modo de ser do Dasein. É
possibilidades dadas em seu próprio ambiente e, assim que se chega a uma determinação do que
portanto, aos estímulos que dele recebe. É cativo seria o “mero viver”. Contudo, o Dasein em si
de um círculo de estímulos que se desencadeiam mesmo jamais pode ser interpretado dessa ma-
restritamente a partir do ambiente e que o levam neira, como vida, na medida em que vida não é
a suas formas de conduta peculiares. Não há um conceito ontologicamente determinado. Esse
como imaginar que o animal tenha qualquer sen- é um tipo de crítica que ele dirigiu de forma re-
tido da temporalidade que é o constituinte exis- corrente particularmente a Dilthey e Nietzsche,
tencial axial do Dasein. Em resumo, Heidegger autores pelos quais nutria admiração. Em rela-
repete exaustivamente: o animal é pobre no mun- ção a Nietzsche, parecia-lhe de todo inapropria-
do. Já a pedra é diferente desses outros dois en- do tentar erigir posições ontológicas com funda-
tes, porque simplesmente não tem mundo. mento em material retirado da fisiologia e da bi-
Esse esquema interpretativo que Heidegger1 ologia, porque cabe à filosofia fornecer funda-
adota para comparar o estatuto peculiar do ho- mentos para a ciência e não ao revés8.
mem em face do animal e do ente material funda- A medicina moderna, apelando para os crité-
se numa escala qualitativa da possibilidade de rios das ciências naturais, leva a vantagem de
abertura. É só no Dasein do homem que a aber- poder falar da saúde e da enfermidade como se
tura impera, o que implica que está sujeita a fe- não dispusesse de nenhum ponto de vista onto-
chamento como um fenômeno de privação mais lógico para defender seus posicionamentos, ou
ou menos duradouro. Enquanto o animal res- seja, como se constituísse uma pura sistematiza-
ponde a estímulos, o homem se expressa diante ção de fatos evidentes. René Leriche afirmou que
da totalidade dos entes por seu comportamento, a saúde é la vie dans le silence des organes (a vida
que é seu modo particular de responder livremente no silêncio dos órgãos). A despeito de empregar
às demandas do mundo. O animal move-se em uma metáfora inventiva, Leriche apenas ratifi-
pobreza no mundo, porque sua forma de ser se cou o ponto de vista da ontologia cartesiana: há
expressa numa conduta que não é um modo de saúde como vida sempre que os órgãos não emi-
ser livre, já que é sempre “tomado” pelos estímu- tem sinais de mudança patológica, detectáveis e
los que vêm do seu ambiente. Ao animal é dada mensuráveis pela medicina. De sua parte, Geor-
apenas uma abertura bastante limitada, própria ges Canguilhem9 fala da saúde e da enfermidade
de uma catividade. Quanto à pedra não cabe falar como diferentes modos de andar a vida. A enfer-
de qualquer tipo de abertura, ela não exibe aber- midade é apenas um modo relativamente desva-
tura, está fechada em si mesma. A pedra é o exato lorizado de andar a vida9. Também Canguilhem9
oposto do ser do homem, enquanto o animal se deixa levar pela tendência criticada por Heide-
ainda é comparável ao homem por meio de um gger, introduzindo o conceito de vida de forma a
modo de abertura que, neste caso, precisa ser ana- priori e a-teórica. Deve ser dito que essa compre-
lisado do ponto de vista ontológico como priva- ensão não logra caracterizar o que a saúde hu-
ção. O conceito de “abertura em catividade”, com mana tem de peculiar, porque certamente o ani-
o qual Heidegger se refere ao estatuto ontológico mal também tem suas enfermidades como mo-
do animal, traduz o modo de ser que é peculiar a dos diferentes de andar a vida.
tal privação. Esta ideia pode parecer antropocên- Sem sombra de dúvida, a vida é mais tenaz e
trica para certas correntes filosóficas, mas é coe- mais resistente que o Dasein. A vida continua a
rente com o pressuposto em cuja base Heidegger andar em situações extremas, em que o Dasein já
construiu sua ontologia: todos os demais entes se fechou para si e para o mundo. É o que aconte-
ganham seu sentido quando comparados com a ce, por exemplo, nos estados comatosos profun-
plena abertura que impera na essência do Dasein. dos, que podem ser definidos como “mera vida” e
Em Conceitos fundamentais da metafísica, ao que a medicina denomina de estados vegetativos.
empreender uma longa discussão de temas da Por sua vez, muitos pacientes em situação grave
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do chamado mal de Alzheimer podem apresentar responde aos motivos que se lhe apresentam na
um perfeito silêncio da vida nos seus órgãos, mas cotidianidade e não é o resultado de um operar
já nada ou quase nada compreendem de si e do de fatores causais. O motivo é uma resposta li-
mundo; são privados, inclusive, da ligação essen- vremente dada, um “mover-se diante de”, que se
cial do Dasein com a temporalidade. dá com base na compreensão que o Dasein tem
A despeito da firme posição defendida pela do mundo e de si mesmo.
religião cristã quanto à sacralidade da vida, é pre- Tal pressuposto rompe outro elo que a me-
ciso dizer que há algo mais precioso que a própria dicina mantém usualmente com a ontologia car-
vida. O dom mais precioso é o apanágio da aber- tesiana, o causalismo, que foi transposto a partir
tura ao ser. A saúde do homem radica-se não na das ciências naturais. O Dasein é livre justamente
vida, nem nos órgãos físicos, nem sequer na men- por ser sempre sua potencialidade de ser, porque
te, considerada como ente interno racional que habita a “clareira do ser”; está aberto em sua es-
guia o homem. A saúde humana, portanto, não é sência à compreensão dos entes do mundo em
um estado, nem uma condição que se encontra e sua totalidade e à compreensão de si mesmo: A
se mede na efetividade dos sinais, sintomas e alte- liberdade é a condição da manifestação dos entes,
rações bioquímicas do corpo. A saúde humana é do entendimento do ser. A causalidade, contudo, é
diferente da saúde animal porque ela é a própria apenas uma determinação ontológica entre outras.
essência extática do Dasein. Sendo lançado ao O problema da causalidade está fundado na liber-
mundo, o Dasein projeta-se sempre em suas po- dade e não vice-versa10.
tencialidade de ser; mas, como lembra Heidegger Mesmo numa condição privativa, como a da
em Ser e tempo7, o Dasein pode se fechar diante esquizofrenia ou outra qualquer, ainda vigora
dessas potencialidades e até perdê-las por com- esse existencial transcendente que é a liberdade
pleto. O Dasein pode ser privado de sua abertura, humana, apesar de a enfermidade a limitar em
enquanto a vida e o sistema de órgãos do corpo sua amplitude. Em definitivo, o homem não é
físico continuam em sua marcha tenaz. natureza, submetido a uma cadeia de causas.
Tampouco o corpo humano pode se visto como
natureza: O corpo humano não é pura natureza
Toda enfermidade é restritiva nem no seu modo imediatamente dado nem em seu
da liberdade humana modo de ser. Está suspenso como se fosse uma via de
passagem entre um e outro, entre seu pico e seu
É ao tratar da esquizofrenia que Heidegger deixa abismo, como um lugar aberto de morada para
claro como a privação da saúde deve ser sempre ambos, mas nunca está fechado para si mesmo,
referida a uma potencialidade de ser do Dasein. A nunca está na maneira da pura natureza, à qual
esquizofrenia não é uma enfermidade qualquer: é completamente falta um eu. O corpo pertence ao
uma privação da essência extática do homem, ou Dasein do homem. (...) A corporeidade do homem,
seja, da abertura do Dasein para o ser, o seu estar- contudo, não é natureza, nem mesmo quando ator-
aberto-para (offenstehen für). O Dasein está aberto menta o homem, deixando-o sem poder ou sem seu
para tudo o que vem à presença, ou seja, para a fundamento5.
totalidade dos entes do mundo e para sua pró- Assevera Heidegger que a essencial abertura
pria presença. A esquizofrenia se apresenta como humana para o ser contempla várias possibili-
uma privação desse modo essencial de ser; aqui a dades de privação, que são também possibilida-
abertura aparece modificada para uma “falta de des de fechamento. Por exemplo, quando esta-
contato”1. O esquizofrênico comporta-se em seu mos absortos de “corpo e alma” na execução de
ser-no-mundo como alguém privado de abertu- uma tarefa, há um fechamento do nosso Dasein
ra; por outras palavras, alguém que se encontra e deixamos de perceber muito do que acontece
fechado. Contudo, no comportamento do esqui- no nosso ambiente físico e prestamos pouca aten-
zofrênico, a abertura não desaparece, mas se ção às outras pessoas ao redor1. Outra possibili-
mostra em privação. Mesmo sofrendo de uma dade de modificação ôntica da abertura é a que
privação, o esquizofrênico “é” ainda sua potenci- se dá como “falta de contato”, condição peculiar
alidade de ser aberto para o mundo e precisa des- à esquizofrenia. A privação que se constata na
sa abertura. esquizofrenia é um fechamento do Dasein com
Para compreender a esquizofrenia ou qual- características bem especiais. Pode-se dizer que
quer outra enfermidade, não devemos ir em busca revela um fechamento da abertura que não é oca-
de suas “causas” na infância ou em qualquer ou- sional ou temporário, mas que se mantém como
tro tempo e lugar. O comportamento do Dasein tal e perdura. Desta maneira, Heidegger distin-
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gue uma possibilidade de fechamento que é pró- der-se, entregando-se ao que ele não é, isto é, a
pria do estar saudável (quando alguém fica ab- mundanidade mediana (a impropriedade). Isso
sorto numa tarefa) e uma possibilidade de fe- exige que se examine a pertinência da saúde à
chamento que é própria do estar-enfermo (a es- existencialidade nos modos da impropriedade e
quizofrenia). da propriedade.
Ora, a abertura é também fonte de perigo,
como acentua Heidegger, porque a essência do
homem é imperfeita: O homem é essencialmente Expandindo e concluindo
necessitado de ajuda, por estar sempre em perigo de
se perder, de não conseguir lidar consigo. Este peri- Qual a relação entre saúde e existencialidade, en-
go está relacionado com a liberdade do homem. tendida esta como a trama da estrutura ontoló-
Toda a questão do ser-doente está ligada à imper- gica do Dasein? Defendo aqui o posicionamento
feição de sua essência ex-tática. Cada doença é uma de que saúde não é um constituinte específico
perda de liberdade, uma limitação da possibilidade dessa estrutura, isto é, não é um existencial. A
de viver1. analítica existencial da saúde é tributária de uma
Assim, como fenômeno ontológico, a essên- articulação bem pensada dos constituintes da
cia da saúde se identifica com a própria essência estrutura do Dasein tal como exposta em Ser e
extática do Dasein, sendo o fundamento de to- tempo 7 e demais obras de Heidegger 1-3,7,8. Ao
das as potencialidades “saudáveis” do Dasein no modo existenciário da privação da saúde deno-
mundo, em sentido ôntico-existenciário. No caso mino “padecimento”, palavra que destaca a dis-
da esquizofrenia, do mal de Alzheimer grave etc., posição (Befindlichkeit) do Dasein na privação
o homem revela uma carência profunda e dura- como um estar mal, como sofrimento. Com re-
doura de sua potencialidade de ser, uma grande lação ao plano existenciário, proponho que a
restrição em sua liberdade de escolha e orienta- saúde e sua privação sejam analisadas nos três
ção na cotidianidade que o torna necessitado de modos fundamentais da existencialiade do Da-
ajuda. Essas são privações da própria essência sein: (1) a essência extática, em seu ser-em (o
da saúde. Da); (2) o modo impróprio de ser; e (3) o modo
Essa equivalência da essência da saúde com a próprio de ser.
essência do Dasein não é algo que possa ser visto O que está dito até aqui, quanto ao plano
pelo leigo, tampouco diagnosticado pelo médico, ontológico, é que a essência da saúde identifica-
porque é um pressuposto ontológico. Mas as se com a própria essência extática do Dasein, em
potencialidades saudáveis mostram-se a cada dia sua abertura primordial ao ser. A essência extáti-
em nosso comportamento e podem ser compre- ca é o que abre os modos da potencialidade de
endidas por qualquer um, em sentido pré-onto- ser do Dasein e os mantém abertos no Da do
lógico, tanto em relação a si mesmo quanto em Dasein, ou seja, no seu ser aí, no seu estar lança-
relação aos que convivem conosco. Sabemos do ao mundo. Da abertura resultam todas as
quando estamos bem de saúde ou quando nosso potencialidades de ser do Dasein no plano exis-
filho está bem. De que maneira isto acontece? Não tenciário. Essas potencialidades são também pos-
pelo uso de um meio de diagnóstico qualquer, sibilidades de escolha, que se fundam na liberda-
mas apenas porque temos a compreensão de nos- de transcendente do Dasein.
sas próprias potencialidades de ser, preocupamo- No modo de ser impróprio, o Dasein não
nos conosco; no entanto, o ser-com-os-outros existe de forma singularizada, mas numa condi-
que nós somos dá-se como preocupação ou soli- ção indiferenciada e repetitiva, que se conforma
citude (Fürsorge), o que significa que estamos aten- à medianidade (Durchschnittlichkeit) da mun-
tos ao modo como se comportam e compreen- danidade. Como diz Heidegger, a impropriedade
demos quando o seu comportamento revela uma determina o modo de ser do Dasein em tudo o
falta, uma carência de potencialidade. que tem de mais concreto: atividades, preferênci-
Mas essa indicação de características ônticas as, interesses e prazeres. Na cotidianidade medi-
já adianta muito a analítica existencial da saúde ana, o ser do Dasein, que é o cuidado (Sorge),
de tal modo a passar por cima de seus modos está desdobrado nos modos da ocupação (Be-
ontológicos. Em Ser e tempo7, Heidegger diz que sorge) e da preocupação ou solicitude com os
os modos fundamentais da potencialidade de ser outros (Fürsorge), de acordo com regras e pa-
dependem de o Dasein ganhar-se a si mesmo, drões já bem estabelecidos na história e na vida
escolher a si, projetando-se em sua potencialida- fática. Os modos da ocupação e da preocupação
de de ser mais própria (a propriedade) ou per- estão prenhes de potencialidades de ser do Da-
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sein: o trabalhar com...; o ser hábil para...; o se man nicht – A existência está manifesta como
divertir com...; o ser cuidadoso com...; o zelar peso. Por quê? Não se sabe).
por... etc. Estão aí reunidos todos os afazeres, É por referência à condição existencial da co-
deveres, diversões e relacionamentos que dizem tidianidade que a privação da potencialidade de
respeito a cada Dasein individual. ser do Dasein deve ser analisada ontologicamen-
É exatamente a constituição ontológica da te como privação do ser-sadio e onticamente
cotidianidade mediana que, por assim dizer, “mo- como padecimento. No padecimento, o homem
dula” a saúde no modo impróprio de ser. Modu- compara-se consigo mesmo e com os outros em
lar significa aqui conferir as determinações for- sua potencialidade de ser. Suas potencialidades
mais relevantes para análise das potencialidades de ser mostram-se mais rígidas ou restritas no
saudáveis e de sua privação. Ou seja, a potencia- sentido de serem capazes de responder às exigên-
lidade de ser, indiferenciada e nivelada, que lhe é cias da ocupação e da convivência cotidianas e
peculiar, delimita a compreensão do que seja a inclusive para responder às demandas que se ex-
saúde e o padecimento nesse modo. Não faz par- pressam como estresse. As restrições a sua liber-
te dessa potencialidade mediana qualquer com- dade tomam os modos da impotência, comuni-
portamento que pareça extremado ou exótico. cados assim: não poso mais fazer...; não posso mais
Nada similar a uma exigência de gestas de hero- me divertir com...; não mais suporto...; tive de dei-
ísmo ou de autossacrifícios de santidade. A deli- xar de... Portanto, essas expressões traduzem a
mitação ontológica da saúde no modo da im- privação de alguma potencialidade concreta de
propriedade deve sempre ter em consideração ser que é sentida como padecimento. Por exem-
essa base estrutural indiferenciada da cotidiani- plo, alguém que sofre de uma paralisia dos mem-
dade que pertence aos modos históricos do Da- bros inferiores não mais pode andar, nadar etc.
sein, sobretudo nas sociedades contemporâneas. Essa privação, contudo, não é avaliada pelo que
O que é, então, a saúde na manifestação ôn- representa de perda para o presente, mas pelo
tica do modo impróprio? Pode-se dizer que a que significa em relação a um projeto de vida, ou
saúde no modo impróprio é o tranquilo estar- seja, tendo em conta um horizonte de tempori-
em-casa do Dasein, com seu desdobrar-se na zação. O não mais posso quer dizer: aquilo que
ocupação e na coexistência da cotidianidade. É desejei ser não mais se dará, devo pensar em outra
um projetar-se à vontade ou animadamente em coisa; ou ainda: mantenho meu projeto, mas irei
todas as potencialidades de ser que já lhe estão realizá-lo de uma maneira diferente. Contudo, o
abertas regularmente a cada dia ou que ele mes- padecimento pode abrir uma potencialidade iné-
mo se dá com alguma inventividade. Mas isto dita de ser em sentido ôntico, o que tem a ver
não quer dizer que a saúde, nesse modo de ser, com o desenvolvimento de uma habilidade com-
seja equivalente a um completo bem-estar. A co- pensatória da sua perda de liberdade. Por exem-
tidianidade é sempre vivida de acordo com con- plo: quem tem sua perna amputada aprende a
tínuas demandas do mundo que são apresenta- usar uma prótese; quem apresenta paralisia dos
das ao Dasein e o sobrecarregam, na medida em membros inferiores aprende a usar uma cadeira
que ele, como ser aberto, compreende a natureza de rodas. A habilidade compensatória redefine o
dessas solicitações e deve fornecer respostas. Vem projeto: por exemplo, se alguém pretendia ser
à tona aqui o fenômeno do estresse (Belastung) atleta de basquetebol antes de sofrer uma parali-
que, segundo diz Heidegger1, é inerente ao exercí- sia, tem a opção de integrar uma equipe de joga-
cio da essência extática do Dasein. Ao estresse dores portadores de deficiência.
pertencem inúmeros tipos de “sobrecargas”: per- Mas para que possa emergir uma habilidade
turbações, sofrimentos e achaques, que somos compensatória, faz-se necessário manter a essên-
obrigados a suportar e para os quais temos de cia da saúde como fonte de potencialidades de ser.
dar algum tipo de resposta para seguir adiante Em condições graves de privação da abertura da
na cotidianidade. O estresse vem do carregar o essência extática do Dasein, o homem experimen-
fardo (Last), um existencial referido em Ser e tem- ta dificuldade de acesso a potencialidades inédi-
po7. A existência se revela como fardo que tem de tas. É-lhe difícil ou impossível desenvolver a habi-
ser carregado. O estresse, como manifestação lidade de finalidade adaptadora, que contorne ou
ôntica do fardo, está conectado com nossa liber- compense sua deficiência na vida cotidiana.
dade de ser; é ele que torna a vida mais intensa e Por fim, quero tecer breves considerações
digna de ser vivida. Por que isto acontece? Heide- acerca da saúde no modo de ser da propriedade,
gger3 responde, placidamente, “não se sabe” (Das um existencial que às vezes se traduz de maneira
Sein ist als Last offenbar geworden. Warum, weiß um pouco tendenciosa como autenticidade.
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Nogueira RP

Como deve ser entendida a modulação da saúde de acima de qualquer constituinte da mundani-
nesse modo? Por certo, não se deve recorrer à dade e dos juízos que daí possam advir. Mesmo
modulação determinada pela via da medianida- que o Dasein possa se reconhecer em padecimen-
de cotidiana, na medida em que a propriedade é to, sua eventual compreensão nessa privação
a determinação do Dasein por si mesmo, quan- (como um não posso, não consigo ou não me é
do percorre um caminho de escolhas de singula- mais possível) não tem o vigor determinante que
rização existencial e ao defrontar-se com seu an- está presente no modo impróprio, de acordo com
gustiar-se com sua própria existência. a modulação da medianidade cotidiana. É que
Nesse caminhar existenciário, o Dasein deve seu ser está resoluto noutro projeto de abertura,
se decidir por se trazer de volta a si mesmo, emer- como abertura para si. Mais ainda: pode ser que
gir de sua submissão à medianidade do impesso- a privação da saúde, o padecimento, forneça a
al (Man) e reparar sua falta de escolha. Sua esco- ocasião para que se abra a potencialidade do modo
lha far-se-á doravante por uma potencialidade próprio. É o que se pode denominar de reata-
de ser que é o seu ser si-mesmo em sentido pesso- mento do Dasein em seu ser-no-mundo.
al. Não pretendo repassar todas os constituintes O reatamento é o encontro do Dasein com
existenciais que balizam o percurso desse cami- sua potencialidade de ser própria, que se forma
nho (clamor da consciência, débito, projeto, vi- como projeto antevisto no modo do padecimento
são, decisão etc.). O que é importante aqui é ter e no angustiar-se verdadeiro com sua própria
claro que a modulação da saúde e, portanto, do existência, na perspectiva segura da possibilida-
padecimento não pode ser feita, por assim dizer, de da morte. O Dasein leva-se a si mesmo ao
em maneira heterônoma. A fonte dessa modula- momento da decisão e se refaz em sua totalidade
ção é sempre o ser próprio pessoal do Dasein, existencial. Como Dasein que sou reato-me co-
como escolha de sua escolha. Portanto, o Dasein migo e reato-me com o mundo, num só projeto
não mais precisa pautar sua potencialidade de ser quanto a minha potencialidade mais própria.
pelas normas e padrões da medianidade cotidia- Significa que me ato por inteiro e livre em mi-
na. Isto significa que o modo próprio traz a si a nhas potencialidades de ser, e não mais pautado
legítima determinação da saúde como abertura a pela mundanidade impessoal. Nesta condição
todas as potencialidades próprias de ser. Por ou- existencial, pode-se dizer que há saúde e saúde
tras palavras, o modo de ser próprio é saudável por inteiro, mesmo que o Dasein ainda se com-
por si mesmo, erguendo-se como padrão de saú- preenda estando em padecimento.

Referências

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2. Heidegger M. Seminários de Zollikon (editado por perSanFrancisco; 1991.
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sics world, finitude, solitude. Bloomington: Indiana Aprovado em 04/12/2007
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