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Extensão fenomenológica
Phenomenological extension
of Heidegger’s concepts of health and illness
Abstract In the Zollikon seminars Heidegger gave Resumo Heidegger deu uma extraordinária con-
an extraordinary contribution to the phenome- tribuição ao estudo fenomenológico da saúde e da
nological study of health and disease. Through- enfermidade nos seminários de Zollikon, a única
out his life, this was the only chance the philoso- oportunidade, ao longo de sua vida, em que o filó-
pher had to deal in depth with these questions. sofo pôde tratar com profundidade dessas ques-
Disease was then determined as an ontological tões. Aí a enfermidade foi ontologicamente deter-
privation of health. Heidegger, however, did not minada como sendo uma privação da saúde. Con-
develop an explicit concept of health. The author tudo, Heidegger não desenvolveu explicitamente
intends to develop to their full consequences some o conceito de saúde. O autor busca extrair conse-
theses expounded in these seminars taking as ref- quências fenomenológicas das teses expostas nes-
erence two determinations then sketched: the es- ses seminários a partir de duas determinações aí
sence of human health is identical with Dasein’s esboçadas: a essência da saúde humana é a pró-
unfolding essence in its opening to being; any dis- pria essência extática do Dasein em sua abertura
ease is a “limitation of the possibility of living”. ao ser; toda enfermidade é uma “limitação da pos-
Key words Heidegger, Analytics of Dasein, Phe- sibilidade de viver”.
nomenology of health Palavras-chave Heidegger, Analítica do Dasein,
Fenomenologia da saúde
1
Instituto de Pesquisa
Econômica Aplicada. SBS,
Quadra 1, Ed. BNDES, sala
1.420, Asa Norte.
70776-900 Brasília DF.
roberto.nogueira@ipea.gov.br
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Nogueira RP
não encontra limitação nem no espaço nem no biologia e da zoologia, Heidegger cumpriu parci-
tempo, os quais, na verdade, são “abertos” pelo almente com certos requisitos preliminares acer-
próprio Dasein. Ele pode se fazer corporalmente ca do estudo da vida que ele havia exposto em
presente aqui enquanto também está presente ao Ser e tempo7. Ele diz aí que a vida é um modo de
que está lá, num local distante para onde se diri- ser ao qual somente se pode ter acesso por inter-
ge. Pode compreender o que é e o que foi, à luz de médio daquilo que é característico do Dasein e
sua potencialidade de ser, que está sempre volta- que a investigação da ontologia da vida deve ser
da para o que ainda lhe advirá, ou seja, para o conduzida pela via de uma interpretação “priva-
futuro. O animal, ao contrário, está limitado às tiva” em relação ao modo de ser do Dasein. É
possibilidades dadas em seu próprio ambiente e, assim que se chega a uma determinação do que
portanto, aos estímulos que dele recebe. É cativo seria o “mero viver”. Contudo, o Dasein em si
de um círculo de estímulos que se desencadeiam mesmo jamais pode ser interpretado dessa ma-
restritamente a partir do ambiente e que o levam neira, como vida, na medida em que vida não é
a suas formas de conduta peculiares. Não há um conceito ontologicamente determinado. Esse
como imaginar que o animal tenha qualquer sen- é um tipo de crítica que ele dirigiu de forma re-
tido da temporalidade que é o constituinte exis- corrente particularmente a Dilthey e Nietzsche,
tencial axial do Dasein. Em resumo, Heidegger autores pelos quais nutria admiração. Em rela-
repete exaustivamente: o animal é pobre no mun- ção a Nietzsche, parecia-lhe de todo inapropria-
do. Já a pedra é diferente desses outros dois en- do tentar erigir posições ontológicas com funda-
tes, porque simplesmente não tem mundo. mento em material retirado da fisiologia e da bi-
Esse esquema interpretativo que Heidegger1 ologia, porque cabe à filosofia fornecer funda-
adota para comparar o estatuto peculiar do ho- mentos para a ciência e não ao revés8.
mem em face do animal e do ente material funda- A medicina moderna, apelando para os crité-
se numa escala qualitativa da possibilidade de rios das ciências naturais, leva a vantagem de
abertura. É só no Dasein do homem que a aber- poder falar da saúde e da enfermidade como se
tura impera, o que implica que está sujeita a fe- não dispusesse de nenhum ponto de vista onto-
chamento como um fenômeno de privação mais lógico para defender seus posicionamentos, ou
ou menos duradouro. Enquanto o animal res- seja, como se constituísse uma pura sistematiza-
ponde a estímulos, o homem se expressa diante ção de fatos evidentes. René Leriche afirmou que
da totalidade dos entes por seu comportamento, a saúde é la vie dans le silence des organes (a vida
que é seu modo particular de responder livremente no silêncio dos órgãos). A despeito de empregar
às demandas do mundo. O animal move-se em uma metáfora inventiva, Leriche apenas ratifi-
pobreza no mundo, porque sua forma de ser se cou o ponto de vista da ontologia cartesiana: há
expressa numa conduta que não é um modo de saúde como vida sempre que os órgãos não emi-
ser livre, já que é sempre “tomado” pelos estímu- tem sinais de mudança patológica, detectáveis e
los que vêm do seu ambiente. Ao animal é dada mensuráveis pela medicina. De sua parte, Geor-
apenas uma abertura bastante limitada, própria ges Canguilhem9 fala da saúde e da enfermidade
de uma catividade. Quanto à pedra não cabe falar como diferentes modos de andar a vida. A enfer-
de qualquer tipo de abertura, ela não exibe aber- midade é apenas um modo relativamente desva-
tura, está fechada em si mesma. A pedra é o exato lorizado de andar a vida9. Também Canguilhem9
oposto do ser do homem, enquanto o animal se deixa levar pela tendência criticada por Heide-
ainda é comparável ao homem por meio de um gger, introduzindo o conceito de vida de forma a
modo de abertura que, neste caso, precisa ser ana- priori e a-teórica. Deve ser dito que essa compre-
lisado do ponto de vista ontológico como priva- ensão não logra caracterizar o que a saúde hu-
ção. O conceito de “abertura em catividade”, com mana tem de peculiar, porque certamente o ani-
o qual Heidegger se refere ao estatuto ontológico mal também tem suas enfermidades como mo-
do animal, traduz o modo de ser que é peculiar a dos diferentes de andar a vida.
tal privação. Esta ideia pode parecer antropocên- Sem sombra de dúvida, a vida é mais tenaz e
trica para certas correntes filosóficas, mas é coe- mais resistente que o Dasein. A vida continua a
rente com o pressuposto em cuja base Heidegger andar em situações extremas, em que o Dasein já
construiu sua ontologia: todos os demais entes se fechou para si e para o mundo. É o que aconte-
ganham seu sentido quando comparados com a ce, por exemplo, nos estados comatosos profun-
plena abertura que impera na essência do Dasein. dos, que podem ser definidos como “mera vida” e
Em Conceitos fundamentais da metafísica, ao que a medicina denomina de estados vegetativos.
empreender uma longa discussão de temas da Por sua vez, muitos pacientes em situação grave
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gue uma possibilidade de fechamento que é pró- der-se, entregando-se ao que ele não é, isto é, a
pria do estar saudável (quando alguém fica ab- mundanidade mediana (a impropriedade). Isso
sorto numa tarefa) e uma possibilidade de fe- exige que se examine a pertinência da saúde à
chamento que é própria do estar-enfermo (a es- existencialidade nos modos da impropriedade e
quizofrenia). da propriedade.
Ora, a abertura é também fonte de perigo,
como acentua Heidegger, porque a essência do
homem é imperfeita: O homem é essencialmente Expandindo e concluindo
necessitado de ajuda, por estar sempre em perigo de
se perder, de não conseguir lidar consigo. Este peri- Qual a relação entre saúde e existencialidade, en-
go está relacionado com a liberdade do homem. tendida esta como a trama da estrutura ontoló-
Toda a questão do ser-doente está ligada à imper- gica do Dasein? Defendo aqui o posicionamento
feição de sua essência ex-tática. Cada doença é uma de que saúde não é um constituinte específico
perda de liberdade, uma limitação da possibilidade dessa estrutura, isto é, não é um existencial. A
de viver1. analítica existencial da saúde é tributária de uma
Assim, como fenômeno ontológico, a essên- articulação bem pensada dos constituintes da
cia da saúde se identifica com a própria essência estrutura do Dasein tal como exposta em Ser e
extática do Dasein, sendo o fundamento de to- tempo 7 e demais obras de Heidegger 1-3,7,8. Ao
das as potencialidades “saudáveis” do Dasein no modo existenciário da privação da saúde deno-
mundo, em sentido ôntico-existenciário. No caso mino “padecimento”, palavra que destaca a dis-
da esquizofrenia, do mal de Alzheimer grave etc., posição (Befindlichkeit) do Dasein na privação
o homem revela uma carência profunda e dura- como um estar mal, como sofrimento. Com re-
doura de sua potencialidade de ser, uma grande lação ao plano existenciário, proponho que a
restrição em sua liberdade de escolha e orienta- saúde e sua privação sejam analisadas nos três
ção na cotidianidade que o torna necessitado de modos fundamentais da existencialiade do Da-
ajuda. Essas são privações da própria essência sein: (1) a essência extática, em seu ser-em (o
da saúde. Da); (2) o modo impróprio de ser; e (3) o modo
Essa equivalência da essência da saúde com a próprio de ser.
essência do Dasein não é algo que possa ser visto O que está dito até aqui, quanto ao plano
pelo leigo, tampouco diagnosticado pelo médico, ontológico, é que a essência da saúde identifica-
porque é um pressuposto ontológico. Mas as se com a própria essência extática do Dasein, em
potencialidades saudáveis mostram-se a cada dia sua abertura primordial ao ser. A essência extáti-
em nosso comportamento e podem ser compre- ca é o que abre os modos da potencialidade de
endidas por qualquer um, em sentido pré-onto- ser do Dasein e os mantém abertos no Da do
lógico, tanto em relação a si mesmo quanto em Dasein, ou seja, no seu ser aí, no seu estar lança-
relação aos que convivem conosco. Sabemos do ao mundo. Da abertura resultam todas as
quando estamos bem de saúde ou quando nosso potencialidades de ser do Dasein no plano exis-
filho está bem. De que maneira isto acontece? Não tenciário. Essas potencialidades são também pos-
pelo uso de um meio de diagnóstico qualquer, sibilidades de escolha, que se fundam na liberda-
mas apenas porque temos a compreensão de nos- de transcendente do Dasein.
sas próprias potencialidades de ser, preocupamo- No modo de ser impróprio, o Dasein não
nos conosco; no entanto, o ser-com-os-outros existe de forma singularizada, mas numa condi-
que nós somos dá-se como preocupação ou soli- ção indiferenciada e repetitiva, que se conforma
citude (Fürsorge), o que significa que estamos aten- à medianidade (Durchschnittlichkeit) da mun-
tos ao modo como se comportam e compreen- danidade. Como diz Heidegger, a impropriedade
demos quando o seu comportamento revela uma determina o modo de ser do Dasein em tudo o
falta, uma carência de potencialidade. que tem de mais concreto: atividades, preferênci-
Mas essa indicação de características ônticas as, interesses e prazeres. Na cotidianidade medi-
já adianta muito a analítica existencial da saúde ana, o ser do Dasein, que é o cuidado (Sorge),
de tal modo a passar por cima de seus modos está desdobrado nos modos da ocupação (Be-
ontológicos. Em Ser e tempo7, Heidegger diz que sorge) e da preocupação ou solicitude com os
os modos fundamentais da potencialidade de ser outros (Fürsorge), de acordo com regras e pa-
dependem de o Dasein ganhar-se a si mesmo, drões já bem estabelecidos na história e na vida
escolher a si, projetando-se em sua potencialida- fática. Os modos da ocupação e da preocupação
de de ser mais própria (a propriedade) ou per- estão prenhes de potencialidades de ser do Da-
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Como deve ser entendida a modulação da saúde de acima de qualquer constituinte da mundani-
nesse modo? Por certo, não se deve recorrer à dade e dos juízos que daí possam advir. Mesmo
modulação determinada pela via da medianida- que o Dasein possa se reconhecer em padecimen-
de cotidiana, na medida em que a propriedade é to, sua eventual compreensão nessa privação
a determinação do Dasein por si mesmo, quan- (como um não posso, não consigo ou não me é
do percorre um caminho de escolhas de singula- mais possível) não tem o vigor determinante que
rização existencial e ao defrontar-se com seu an- está presente no modo impróprio, de acordo com
gustiar-se com sua própria existência. a modulação da medianidade cotidiana. É que
Nesse caminhar existenciário, o Dasein deve seu ser está resoluto noutro projeto de abertura,
se decidir por se trazer de volta a si mesmo, emer- como abertura para si. Mais ainda: pode ser que
gir de sua submissão à medianidade do impesso- a privação da saúde, o padecimento, forneça a
al (Man) e reparar sua falta de escolha. Sua esco- ocasião para que se abra a potencialidade do modo
lha far-se-á doravante por uma potencialidade próprio. É o que se pode denominar de reata-
de ser que é o seu ser si-mesmo em sentido pesso- mento do Dasein em seu ser-no-mundo.
al. Não pretendo repassar todas os constituintes O reatamento é o encontro do Dasein com
existenciais que balizam o percurso desse cami- sua potencialidade de ser própria, que se forma
nho (clamor da consciência, débito, projeto, vi- como projeto antevisto no modo do padecimento
são, decisão etc.). O que é importante aqui é ter e no angustiar-se verdadeiro com sua própria
claro que a modulação da saúde e, portanto, do existência, na perspectiva segura da possibilida-
padecimento não pode ser feita, por assim dizer, de da morte. O Dasein leva-se a si mesmo ao
em maneira heterônoma. A fonte dessa modula- momento da decisão e se refaz em sua totalidade
ção é sempre o ser próprio pessoal do Dasein, existencial. Como Dasein que sou reato-me co-
como escolha de sua escolha. Portanto, o Dasein migo e reato-me com o mundo, num só projeto
não mais precisa pautar sua potencialidade de ser quanto a minha potencialidade mais própria.
pelas normas e padrões da medianidade cotidia- Significa que me ato por inteiro e livre em mi-
na. Isto significa que o modo próprio traz a si a nhas potencialidades de ser, e não mais pautado
legítima determinação da saúde como abertura a pela mundanidade impessoal. Nesta condição
todas as potencialidades próprias de ser. Por ou- existencial, pode-se dizer que há saúde e saúde
tras palavras, o modo de ser próprio é saudável por inteiro, mesmo que o Dasein ainda se com-
por si mesmo, erguendo-se como padrão de saú- preenda estando em padecimento.
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University Press; 2001. Versão final apresentada em 04/01/2008