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estoicismo:

por que
a escola
filosófica
grega de
2,3 mil
anos está
em alta
A ciênciA AjudA você A mudAr o mundo Ed. 385 ABriL dE 2024

atéquando?
A AtuAL EpidEmiA dE dEnguE não tEm prEcEdEntEs no pAís. pELA
primEirA vEz, porém, há novos métodos dE comBAtE Ao mosquito E
dE protEção individuAL. rEstA sABEr como os usArEmos
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COMPOSIÇÃO
ABRIL DE 2024

03
CAPA
É POSSÍVEL ACABAR COM A
DENGUE? ENTENDA POR QUE
ELA SEMPRE VOLTA

“A maioria das pessoas sequer


tem ideia do que é ser rico”
22 Entrevista com Morris Pearl

55 QUER QUE EU DESENHE?

43
SOCIEDADE

OQUEESTÁPORTRÁSDETANTOS
LIVROS SOBRE ESTOICISMO
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CAPA
TEXTO Marília Marasciulo EDIÇÃO Luiza Monteiro ILUSTRAÇÃO Davi Augusto DESIGN Flavia Hashimoto

DENGUE: ATÉ QUANDO?


DESDE O INÍCIO DE 2024, O BRASIL ENFRENTA UMA EPIDEMIA SEM
PRECEDENTES DA DOENÇA. PELA PRIMEIRA VEZ, PORÉM, TEMOS
NOVAS FERRAMENTAS, TANTO DE COMBATE AO MOSQUITO QUANTO
DE PROTEÇÃO INDIVIDUAL. RESTA SABER COMO AS USAREMOS
H
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Há pelo menos uma década, a história se repe-


te: à medida que as temperaturas aumentam,
os casos de dengue disparam, colocando vários
estados brasileiros em situação de epidemia ou
mesmo emergência sanitária. Mas a situação
nunca foi tão grave quanto em 2024: até o dia
27 de março, o país contabilizava 2.323.150 ca-
sos prováveis, 830 mortes confirmadas e 1.269
óbitos em investigação. Os dados são do Painel
de Monitoramento de Arboviroses do Ministério
da Saúde. A título de comparação, 2015, ano com
o maior número de casos nos últimos 10 anos,
registrou 1.696.340 diagnósticos e 986 óbitos —
em 2023, ano com maior letalidade, foram 1.094.

Neste ano, a doença também se espalhou mais


rápido e chegou a lugares onde nunca havia es-
tado. “Em geral, o pico da epidemia é em abril, e
em 2024 já começamos a ver picos em feverei-
ro”, aponta Ethel Maciel, secretária de Vigilância
em Saúde e Ambiente do Ministério da Saúde.
Há uma tendência de interiorização da doença
— em epidemias anteriores, ela se concentra-
va principalmente em regiões metropolitanas.
“Em geral, cidades menores têm menos servi-
ços de saúde, as pessoas têm mais dificuldade
para acessar serviços de alta complexidade”,
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completa Maciel. Até março, o Distrito Federal e mais dez estados


haviam decretado situação de emergência por causa da dengue:
Acre, Amapá, Espírito Santo, Goiás, Minas Gerais, Paraná, Rio de
Janeiro, Rio Grande do Sul, Santa Catarina e São Paulo.

A dificuldade em acessar serviços pode, em parte, explicar o alto


número de mortes da epidemia atual. Mas o buraco é mais embai-
xo: há décadas, o país repete erros no enfrentamento à doença, o
que torna o cenário cada vez mais alarmante. Em 2019, a dengue
chegou a ser listada pela Organização Mundial da Saúde (OMS)
como uma das dez ameaças à saúde global. “Ela é endêmica na
Ásia, e desde os anos 1980 temos epidemias de dengue no Brasil,
o que faz crer que ela é algo natural, mas não é”, afirma o infecto-
logista Kleber Luz, da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical
(SBMT) e membro do Grupo de Trabalho de acompanhamento das
arboviroses da OMS.

Se os números de casos e óbitos assustam, e continuamos fa-


lhando nas medidas de prevenção e controle, atualmente te-
mos à disposição novas formas de manejo clínico, de combate
ao vetor e — talvez o mais animador — uma vacina eficaz. Em
dezembro passado, o Brasil se tornou o primeiro país no mundo
a disponibilizar uma vacina contra a dengue no sistema público
de saúde. Também está prestes a se tornar produtor de um imu-
nizante, cujo desenvolvimento pelo Instituto Butantan está na
fase final de estudos. Estaríamos, então, diante de um ponto de
virada contra essa infecção?
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DOENÇA TRAIÇOEIRA
Transmitida por mosquitos Aedes aegypti, a dengue é uma arbovi-
rose provocada por um vírus da família Flaviviridae, a mesma dos
causadores de febre amarela, Zika e febre do Nilo Ocidental. A fê-
mea do inseto, que precisa de sangue para nutrir os ovos, se conta-
mina quando pica uma pessoa ou animal hospedeiro do vírus. Como
ela pode atacar mais de um indivíduo durante o ciclo de vida (saiba
mais na página 9), acaba transmitindo o vírus para mais pessoas.

Atualmente, existem quatro sorotipos de vírus da dengue distin-


tos: DENV-1, 2, 3 e 4. A infecção concede imunidade permanente à
respectiva cepa, mas é possível contrair os outros tipos virais. “Há
mais ou menos dez anos temos os quatro circulando no Brasil. Isso
causa mudanças na dinâmica de transmissão, pois as pessoas se
expõem mais rápido. Tudo muda na epidemiologia da doença”, ex-
plica a epidemiologista Claudia Codeço, pesquisadora da Fundação
Oswaldo Cruz (Fiocruz) e coordenadora do InfoDengue.

Embora possa ter casos assintomáticos, a manifestação da den-


gue se caracteriza principalmente por febre aguda, dor de ca-
beça, dores pelo corpo, náusea, cansaço e mal-estar. A origem
do termo, aliás, vem do espanhol dengue, que significa “mo-
leza” — e resume bem os sintomas. “Vindo do cenário da Co-
vid-19 com aquele grau altíssimo de mortalidade, muita gen-
te talvez pense em dengue como algo mais leve. Mas ela é
uma doença traiçoeira. Na maioria das vezes, a pessoa vai ficar
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bem, mas o quadro pode evoluir para algo grave rapidamente.


É importante não desprezá-la”, pontua Codeço. Em situações seve-
ras, os sintomas podem incluir manchas avermelhadas pelo corpo,
sinais de hemorragia, sangramento no nariz e garganta, além de
hematomas — condição chamada de “dengue hemorrágica”, que
exige maior atenção médica e pode levar à morte.

Os primeiros registros de uma infecção com sintomas semelhan-


tes aos da dengue datam da Dinastia Chin, na China, entre 265
e 420 d.C. “A doença era chamada de veneno d’água porque os
chineses achavam que, de alguma forma, estava conectada com
insetos voadores associados à água”, escreve o higienista estadu-
nidense Duane Gubler, especialista em doenças transmitidas por
insetos, em um artigo seminal sobre a dengue publicado em 1998
na revista Clinical Microbiology Reviews. Séculos depois, surtos
de doença semelhante ocorreram nas Índias Ocidentais Francesas
em 1635 e no Panamá em 1699, e epidemias continentais foram
registradas na Ásia, África e América do Norte entre 1779 e 1780.

A transmissão pelo mosquito foi confirmada em 1906. No ano se-


guinte, cientistas conseguiram identificar o vírus. Nessa época, o
Aedes aegypti já causava incômodo no Brasil. Acredita-se que a es-
pécie foi introduzida nas Américas durante o período colonial, par-
tindo da África por meio dos navios que traficavam pessoas escravi-
zadas — os primeiros relatos de dengue por aqui datam do final do
século 19, em Curitiba, e do início do século 20, em Niterói (RJ).
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Mas a ideia de que a dengue representa uma emergência em saú-


de pública só surgiu a partir de 1940. “A perturbação ecológica nos
fronts do Sudeste Asiático e do Pacífico durante e após a Segunda
Guerra Mundial criou condições ideais para o aumento de doenças
transmitidas por mosquitos, e foi naquele cenário que começaram
epidemias globais de dengue”, escreve Gubler. Segundo a OMS, a
dengue é endêmica em mais de 100 países, em todos os continen-
tes. Em 2019, a organização estimou um total de 5,2 milhões de
casos, número recorde que diminuiu com a pandemia de Covid-19.
Em 2023, as contaminações voltaram a aumentar, superando o ano
mais grave — no ano passado, mais de 6 milhões de pessoas con-
traíram o vírus no mundo, de acordo com o Centro de Prevenção e
Controle de Doenças Europeu.

O Brasil é líder mundial em número de casos: concentramos mais da


metade deles, de acordo com a OMS. Além dos danos à saúde e das
mortes, a doença tem impactos na economia — um estudo da Fede-
ração das Indústrias de Minas Gerais (FIEMG) mostra que seis em
cada dez infectados pela doença são trabalhadores. O levantamen-
to estima ainda que a atual emergência sanitária pode causar uma
queda de até R$ 7 bilhões no Produto Interno Bruto (PIB) do país,
e que os custos relacionados ao tratamento podem chegar a R$ 5,2
bilhões. Até março, o país havia gastado R$ 44 milhões do fundo de
R$ 1,5 bilhão reservado pelo Ministério da Saúde para apoiar es-
tados e municípios em ações emergenciais de prevenção, controle,
contenção de riscos e assistência à saúde.
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1
CICLO DE VIDA DO
AEDES AEGYPTI
Entenda como o mosquito
transmissor da dengue (e outras
doenças) se desenvolve

2
4
3

para receber oxigênio. Nesse


1 OVO 2 LARVA período — que leva entre um
Com forma alongada e Os ovos eclodidos dão e três dias —, os insetos não
medindo 0,4 milímetro, os origem às larvas de Aedes. se alimentam.
ovos do Aedes aegypti são São organismos alongados,
difíceis de ser identificados a visíveis a olho nu, que se
olho nu. Embora necessitem movimentam de forma 4 ADULTOS
de um ambiente aquoso sinuosa. Elas costumam ir Um Aedes aegypti demora
para se desenvolverem, à superfície em busca de em média 10 dias para se
são muito resistentes a locais oxigênio. Se alimentam de desenvolver, da eclosão
secos — podem sobreviver matéria orgânica presente na do ovo até a fase adulta.
sem umidade por até 450 água, como bactérias, fungos Os machos se alimentam
dias, o suficiente para a e protozoários. exclusivamente de néctar,
chegada do próximo verão, enquanto as fêmeas precisam
a estação mais chuvosa. Na Em ambientes de também de sangue para
água, os ovos são incubados, temperatura e alimentação nutrir os ovos — e é nessa
e demoram de dois a três favoráveis, costumam busca que acabam infectando
dias para se transformarem demorar cinco dias para se humanos com arboviroses.
em larvas. tornarem pupas.
As fêmeas costumam picar
Recentemente, cientistas durante o dia, quando são
identificaram uma adaptação
3 PUPA mais ativas, e podem infectar
no comportamento do É o estágio de transição entre mais de uma pessoa. Em
mosquito: em alguns a forma larval (aquática) e média, um mosquito adulto
locais, a espécie deposita a adulta (aérea). As pupas vive por um mês, período em
os ovos também em água são praticamente imóveis e que se reproduz e deposita
contaminada ou salobra. costumam ficar na superfície cerca de 120 ovos.
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NOVAS ESTRATÉGIAS
Apesar do cenário crítico, os novos métodos de enfrentamento pa-
recem promissores. A edição mais recente do manual de diagnósti-
co e manejo clínico de dengue elaborado pelo Ministério da Saúde
revisou as orientações sobre hidratação intravenosa, aumentando
o volume recomendado para ingestão de líquidos e, talvez o mais
importante, atualizou o diagnóstico diferencial de dengue em re-
lação a Chikungunya, Zika e outras doenças. A regra agora é tratar
tudo como dengue. É que, nos primeiros dias de sintomas, a dife-
rença entre as viroses é tênue, mas o risco de complicações e mor-
te é maior na dengue. Por isso, quanto antes forem adotadas as
medidas de manejo, melhor. “Em geral, as mortes ocorrem quando
não damos atenção aos sinais de alerta, os pacientes são negli-
genciados no atendimento médico ou negligenciam a si mesmos”,
aponta o infectologista Arnaldo Tanaka, do Hospital Nipo Brasilei-
ro, em São Paulo.

No combate ao vetor, a maior novidade é o projeto com a bacté-


ria Wolbachia. Comum na natureza — estima-se que afete cerca
60% dos insetos —, ela não é encontrada naturalmente no Aedes
aegypti. Mas, em 2010, cientistas da Universidade do Estado de
Michigan, nos EUA, descobriram que ela não só bloqueia a repro-
dução do mosquito (fêmeas com Wolbachia geram descendentes
com a bactéria, e as sem a bactéria que tentam se reproduzir com
machos infectados se tornam estéreis), como o impede de trans-
mitir arboviroses para humanos.
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Os pesquisadores decidiram introduzi-la em


mosquistos no laboratório. “Ela não causa pro-
blemas para os humanos, animais ou a nature-
za, pois já está amplamente disseminada. Não
fazemos modificação genética nem no mosqui-
to, nem na bactéria”, explica o pesquisador Lu-
ciano Moreira, coordenador do World Mosquito
Program no Brasil, iniciativa global que opera
em 14 países para introduzir a bactéria no Ae-
des aegypti. Trata-se também de uma solução
autossustentável de substituição da população
de mosquitos. “Há métodos de modificação ge-
nética que têm intenção de fazer a supressão
de insetos, mas não são sustentáveis, porque
se parar de soltar os mosquitos modificados,
eventualmente eles acabam. Os mosquitos com
Wolbachia você solta por um tempo e eles ficam
por ali, o efeito é duradouro”, completa.

“Vindo do cenário da Covid-19


com aquele grau altíssimo
de mortalidade, muita gente
talvez pense em dengue
como algo mais leve. Mas ela
é uma doença traiçoeira”
Claudia Codeço, epidemiologista e coordenadora do InfoDengue
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Os dados são animadores. Publicados no New England Journal of


Medicine em 2021, os resultados de um teste realizado com a po-
pulação de Yogyakarta, na Indonésia, entre 2017 e 2020, apontam
que a incidência da dengue nas áreas que receberam os mosqui-
tos com Wolbachia foi reduzida em 77%, e os casos que exigiram
hospitalização diminuíram 86%. Desde a publicação do estudo,
que abrangeu 350 mil pessoas, o projeto com os mosquitos foi ex-
pandido para cobrir uma população de 2,5 milhões de indivíduos.
Em Townsville, na Austrália, uma pesquisa conduzida entre 2014 e
2019 e publicada no periódico Scientific Reports, do grupo Nature,
em 2023 demonstra que após a intervenção com a Wolbachia, os
casos de dengue foram reduzidos em 99,32%. Na Colômbia, a inci-
dência da doença no Vale do Aburrá, um dos vales mais populosos
do país, foi reduzida de 95% a 97% desde a introdução da bactéria,
apontam dados do World Mosquito Program.

Por aqui, o projeto opera desde 2014 e está presente em cinco ci-
dades: Rio de Janeiro, Niterói, Belo Horizonte, Campo Grande e Pe-
trolina (PE). A estimativa é de que já tenha protegido 3,2 milhões
de pessoas. A partir deste ano, vai ser introduzido também em Na-
tal, Uberlândia (MG), Presidente Prudente (SP), Joinville (SC), Foz
do Iguaçu (PR) e Londrina (PR), cobrindo 1,8 milhão de indivíduos.
Embora promissor, o método ainda esbarra em entraves. O maior
deles é a capacidade de produção: a atual fábrica de mosquitos na
Fiocruz produz 10 milhões de espécimes por semana — nesse rit-
mo, levaríamos 100 anos para alcançar 70 milhões de habitantes.
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No ano passado, o programa assinou um acordo para a construção


de uma biofábrica em Belo Horizonte, cujo potencial de produção
semanal é de 100 milhões de insetos. A expectativa é de que as
obras sejam concluídas ainda no fim do primeiro semestre de 2024.
Mas não basta produzir mosquitos infectados: é preciso educar e
convencer a população a aceitar a enxurrada de novos mosquitos,
o que demanda tempo. “Ele é um método complementar e deve
ser usado em conjunto com outras estratégias de controle”, opina
o coordenador do World Mosquito Program no Brasil.

Uma delas é a vacina. Até 2023, a única vacina disponível contra


a doença era a Dengvaxia, fabricada pelo laboratório francês Sa-
nofi Pasteur e a primeira no mundo a obter registro. O problema
é que, embora promova imunidade contra os quatro sorotipos da
doença, a Dengvaxia vem com uma série de restrições que difi-
cultam seu uso em larga escala. A principal é que requer infecção
prévia: pessoas que nunca tiveram dengue e tomam a vacina po-
dem apresentar a forma mais grave da doença caso sejam infec-
tadas. Ela também é indicada para uma faixa etária limitada, de
9 a 45 anos, e exige a aplicação de três doses intercaladas em um
intervalo de seis meses. “O indivíduo leva mais de um ano para se
imunizar, a taxa de abandono é muito grande”, explica o pediatra
infectologista Renato Kfouri, vice-presidente da Sociedade Bra-
sileira de Imunizações (SBIm). Esses fatores praticamente invia-
bilizaram o uso da Dengvaxia.
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Em março de 2023, a Anvisa aprovou a Qdenga, imunizante da ja-


ponesa Takeda Pharma para uso na população com idades entre 4
e 60 anos. Elaborada com vírus atenuado, a vacina tem eficácia de
80,2% na prevenção dos quatro sorotipos, em quem teve ou não
dengue, e é administrada em duas doses em um intervalo de três
meses. Para este ano, o governo adquiriu 5,2 milhões de doses,
limite estabelecido pelo laboratório, e recebeu gratuitamente ou-
tras 1,32 milhão. Inicialmente, metade das doses foi disponibilizada
no sistema público para adolescentes de 10 a 14 anos que moram
em cidades com mais de 100 mil habitantes — a adolescência é a
segunda faixa etária com maior número de hospitalizações, atrás
somente de idosos, que por enquanto não podem tomar a Qdenga.
A outra metade foi disponibilizada no sistema privado.
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Mas o ritmo está aquém do esperado — e do ideal. Até o dia 19


de março, o Brasil havia vacinado 14,5% do público-alvo, apenas
0,2% da população. A baixa procura fez o Ministério da Saúde am-
pliar a quantidade de municípios que vão receber o imunizante,
visto que há doses que vão expirar em abril, maio e junho. “A va-
cina está chegando aos poucos. Três milhões de imunizados não
vão mudar o panorama da dengue no país, precisamos acumular
muito mais vacinados para ter algum efeito”, pontua Kfouri. Ain-
da assim, o governo aposta alto na vacina. “É a maior inovação,
porque mudaria radicalmente a forma como temos controlado
a doença. Seria uma mudança radical, pois deixaríamos de de-
pender do controle do mosquito, que é mais difícil e tem muitas
variáveis”, afirma Ethel Maciel, do Ministério da Saúde.

Mas a maior esperança não está na Qdenga, e sim no imunizante


sendo desenvolvido pelo Instituto Butantan há uma década. Tam-
bém feito com vírus atenuado, ele exige apenas uma dose e os da-
dos preliminares apontam eficácia de 79,6%. A fase três do estudo,
que deve ser concluída em julho, está em andamento desde 2016 e
envolve 16.235 voluntários de 2 a 59 anos. A expectativa é de que
depois ela possa ser incluída no Programa Nacional de Imuniza-
ções (PNI). “Esse é o objetivo final do Butantan, e nossa vacina tem
um custo bem menor do que as importadas”, diz a diretora médica
da instituição, Fernanda Boulos. “Enquanto não conseguimos aca-
bar com o vetor, a vacina é importante porque diminui os casos
sintomáticos, graves, as hospitalizações e as mortes.”
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Por outro lado, há quem peça cautela. Na opi-


nião de Kleber Luz, da SBMT, o foco deveria
continuar sendo no combate ao vetor. “Eu não
consigo entender por que, até hoje, ainda não
conseguimos transformar o mosquito em ini-
migo”, afirma. “Vejo ações nas escolas contra a
dengue, pegam a professora mais simpática e
ela se veste de mosquito, as crianças se vestem
de mosquito, e fica todo mundo tirando fotos e
achando aquilo uma coisa boa, como se o mos-
quito fosse um amigo. Deveria ser compromisso
de todos transformar o mosquito em inimigo.”
Ele lembra que 90% dos focos de Aedes aegypti
estão dentro de casa. “Falta o componente edu-
cativo, as pessoas não entendem que o mosqui-
to vive onde elas vivem. Não é na casa do vizi-
nho, é na sua casa mesmo”, alerta.

“A vacina está chegando


aos poucos. Três milhões de
imunizados não vão mudar o
panorama da dengue no país,
precisamos acumular muito mais
vacinados para ter algum efeito”
Renato Kfouri, pediatra infectologista e vice-presidente da Sociedade Brasileira de
Imunizações (SBIm)
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NÃO É
TUDO IGUAL
Nem todo mosquito CLIMA PROPÍCIO
que vemos por aí é
um Aedes aegypti; As condições para a proliferação do Aedes
conheça as principais aegypti nunca estiveram melhores: as cons-
espécies
tantes ondas de calor provocadas pelas mu-
danças climáticas, associadas a urbanização
e grande circulação de pessoas em deter-
minadas regiões, estão contribuindo para a
expansão da área de alcance da dengue. É o
que mostra o estudo Mudanças climáticas,
anomalias térmicas e a recente progressão
CULEX da dengue no Brasil, realizado por pesquisa-
QUINQUEFASCIATUS dores da Fiocruz e publicado na revista Scien-
O popular pernilongo, tific Reports no último dia 11 de março.
é considerada uma
espécie cosmopolita,
pois está presente Usando mineração de dados para avaliar a
em todos os
continentes, que vive relação entre anomalias térmicas, fatores
em regiões tropicais. demográficos e mudanças nos padrões de
Esses mosquitos
são hematófagos, incidência de dengue entre 2000 e 2020 no
e se alimentam Brasil, os pesquisadores relacionaram ma-
principalmente de
sangue humano ou de pas de onda de calor e anormalidades de
aves. Têm coloração temperatura com o aumento dos casos de
marrom e costumam
picar durante a dengue. Alerta semelhante já havia sido fei-
noite — fazem um to em 2021, em uma pesquisa desenvolvida
zumbido característico
para acordar as por estudiosos da Universidade do Estado
“presas” e provocar do Rio de Janeiro (Uerj) e da Universidade
a vasodilatação.
Suas picadas causam Federal do Paraná (UFPR).
bolinhas avermelhadas
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que coçam, incham 18


e endurecem. São
o vetor primário da
filariose bancroftiana,
uma doença
parasitária que pode Um ponto que chama a atenção no estudo da
causar elefantíase.
Fiocruz é a incidência da doença em zonas tem-
peradas e de altitude, até então consideradas
“imunes” ao mosquito. Isso porque ele necessita
de temperaturas entre 18 e 33°C para se repro-
duzir, além de umidade. Em áreas de alta latitu-
de e altitude, é comum as médias dos termôme-
tros ficarem abaixo de 18°C no inverno, o que
AEDES AEGYPTI interromperia o ciclo de reprodução do vetor.
Espécie conhecida Eventos como ondas de calor e o El Niño, que
por ser vetor de
dengue, febre provoca mais chuvas, não só ajudam a trans-
amarela, Zika e formar essas regiões em novos focos da doen-
Chikungunya. Como
o nome sugere, ça como aceleram a reprodução do mosquito. O
é originário do combo de populações inteiras suscetíveis à den-
Egito – embora seja
predominante na gue e explosão de vetores é receita para o au-
região tropical da mento descontrolado dos casos. A pesquisa da
África. Acredita-se
que chegou ao Brasil Uerj e da UFPR chama a atenção também para
no período colonial, o risco da perda do caráter sazonal da dengue,
dentro de navios
que transportavam visto que os dados epidemiológicos apontam
africanos crescimento de casos inclusive no inverno.
escravizados.
Diferenciam-se por
sua coloração preta, E o Brasil não é o único país que vê os casos
com listras brancas
nas patas. São de dengue crescerem, atrelados às mudanças
mosquitos sorrateiros climáticas. Em 2023, Itália, França e Espanha,
e silenciosos,
principalmente até então considerados livres do vírus, reporta-
diurnos, e suas ram transmissão local da doença, algo inédito
picadas não deixam
marcas nem coçam. na Europa. Além de relacionar a ocorrência ao
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aumento das temperaturas no continente eu-


ANOPHELES DARLINGI ropeu, a líder de pesquisas em arboviroses da
Existem cerca de 430 OMS, Diana Rojas Alvarez, afirmou em comuni-
espécies do gênero
Anopheles, das quais cado que essa ameaça requer “atenção máxima
40 são conhecidas e resposta em todos os níveis.”
principalmente por ser
vetores da malária.
Têm ampla distribuição Ela está certa. “A dengue é causada por um mos-
mundial, ocorrendo em
países da Europa, Ásia, quito que se adaptou completamente ao ser
África e América do humano, vive em nossas casas, aproveita cada
Sul. No Brasil, uma das
espécies mais comuns cantinho. E estamos tendo cada vez mais condi-
é o Anopheles darlingi, ções favoráveis para ele, não só no Brasil, mas
que se desenvolve em
água limpa, e é vetor da no mundo todo. O mosquito está expandindo
malária. Popularmente para novas áreas”, pontua Claudia Codeço, co-
conhecido como
mosquito-prego, tem cor ordenadora do Infodengue.
marrom e faixas brancas
na ponta das patas e
é mais encontrado ao APRENDER COM
entardecer e amanhecer. O PASSADO
O ponto mais crítico, porém, é não termos feito
o dever de casa de melhorar a infraestrutura ur-
bana. “Continuamos sem coleta de lixo adequa-
da, sem abastecimento de água [o que obriga as
pessoas a acumularem água em repositórios].
Não vamos nos livrar da doença sem lidar com
PSYCHODA ALTERNATA questões estruturais”, afirma Codeço. Embora o
Espécie popularmente mosquito pique qualquer um, é consenso na co-
conhecida no Brasil como munidade científica que a dengue tem relação
moscas ou mosquitos de
banheiro. Isso acontece direta com as desigualdades sociais.
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por preferirem inocular 20


suas larvas em locais
úmidos e escuros, como
ralos e encanamentos de
esgoto. São inofensivas
aos humanos, uma
vez que não são
hematófagos, pois se
Uma revisão sistemática de estudos de espa-
alimentam de matéria cialização da dengue no Brasil, feita em 2008
orgânica.
por pesquisadores da Universidade Federal de
Minas Gerais (UFMG), analisou 13 estudos origi-
nais e distintos, e mostrou que todos concluíram
que os aspectos socioeconômicos são relevan-
tes para a distribuição da doença no país. Em
2020, uma dissertação de mestrado da Univer-
sidade Federal Fluminense (UFF) relacionou os
LUTZOMYIA casos de dengue no Rio de Janeiro entre 2007
LONGIPALPIS e 2017 a métricas como taxa de alfabetização,
Conhecido no Brasil
Índice de Gini da renda domiciliar per capita,
como mosquito-palha,
é o principal vetor cobertura dos agentes comunitários de saúde e
da leishmaniose. A percentual de domicílios com coleta de lixo.
espécie está presente
majoritariamente
nas Américas do Sul É por isso que, na visão do historiador Rodrigo
e Central, em geral
próximos a criadouros Cesar da Silva Magalhães, autor do livro A Erra-
de animais. Mais dicação do Aedes aegypti: febre amarela, Fred
recentemente, no
Brasil, passaram a Soper e saúde pública nas Américas (1918-1968)
adentrar áreas urbanas, (Editora Fiocruz, 2016), é injusto responsabilizar
principalmente no
Nordeste. Altamente somente a população por problemas que ela não
resistentes a oscilações tem condições de resolver. “É óbvio que as pes-
de temperatura, têm
capacidade reduzida soas têm que cuidar das suas cisternas, de vasos
de voo, com dispersão de plantas, de pneus. Mas o Estado precisa fazer
média de cerca de
400 metros. O pico de seu papel em vez de só responsabilizar a popu-
atividade é do início da lação”, afirma. Segundo ele, a dengue sempre foi
noite até a madrugada.
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vista como um problema localizado e restrito à época do verão — em


1986, aliás, a epidemia foi chamada de “verão da dengue”. “Mas não
é verão, é ano da dengue. Porque para ela acontecer no verão, várias
coisas deixaram de ser feitas o ano inteiro para o problema ir crescen-
do como uma bola de neve até desembocar no verão”, reflete.

Em um resgate histórico, Magalhães destaca que essa não é a pri-


meira vez que estamos diante de um possível ponto de virada no
controle das arboviroses. Em 1958, o Brasil e outros 11 países e
territórios das Américas chegaram a ser declarados livres do mos-
quito Aedes aegypti. A preocupação, naquela época, era a febre
amarela. Além de usar métodos não mais aceitáveis pela socieda-
de, como a militarização dos agentes de saúde e o uso de produtos
altamente tóxicos (como o DDT, hoje proibido), o sucesso da Cam-
panha Mundial de Erradicação da Febre Amarela durou pouco.

O vetor voltou a se disseminar, a febre amarela só foi controlada


com a vacina e a dengue entrou para valer no país no fim dos anos
1980. “Ora pesamos para o lado científico, ora somente para o lado
sanitário — que foi o erro dessa campanha, que centrou todo o foco
no mosquito, esquecendo do entorno e das questões ambientais
que são relevantes para as doenças”, observa o historiador. Talvez
a experiência do passado recente possa servir de aprendizado para
não desperdiçarmos, mais uma vez, a chance de, senão erradicar a
dengue (algo que os especialistas consideram improvável), ao me-
nos evitar a repetição de epidemias como a que enfrentamos agora.
INÊS 249

22

EntrEvista

Foto: Beatrice Moritz

“A maioria das pessoas


sequer tem ideia do
que é ser rico”
COM Morris Pearl POr Marília Marasciulo
INÊS 249

Líder do Patriotic Millionaires, grupo


de super-ricos que querem pagar
mais impostos, Morris Pearl defende
a criação de um sistema tributário
global unificado e mecanismos de
redistribuição da riqueza

N
Na abertura da primeira reunião financeira do
G20, em fevereiro, o ministro da Fazenda, Fer-
nando Haddad, defendeu a criação de uma tribu-
tação progressiva para bilionários. Em 2024, o Brasil presi-
de a 19ª reunião de cúpula do grupo formado por ministros
de finanças e chefes dos bancos centrais das 19 maiores
economias do mundo, além da União Africana e da União
Europeia. O país colocou como prioridades da agenda a in-
clusão social e a reforma das instituições de atuação glo-
bal. Segundo Haddad, o governo aproveitará a presidên-
cia para propor temas como a tributação de empresas que
operam em vários países e o imposto sobre heranças.

Líder da Patriotic Millionaires, organização que reúne su-


per-ricos estadunidenses que pedem a taxação de suas
fortunas, Morris Pearl elogiou o esforço brasileiro no G20.
“Penso que seria uma vitória para todos se houvesse um
sistema mais unificado. Se tivéssemos as mesmas taxas de
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impostos, as pessoas ainda poderiam se mudar ocasional-


mente para outros países”, analisa Pearl, que foi executivo
da BlackRock, uma das maiores gestoras de investimentos
do mundo. “Mas eles não vão ter toda essa indústria de
especialistas em evasão fiscal. E alguns dos países que são
menos ricos terão mais dinheiro, porque poderão cobrar
mais impostos.”

O milionário, que reclama do fato de praticamente nunca


ter pagado impostos na vida, aponta alguns dos principais
mitos que envolvem o tema, como a necessidade de enco-
rajar investimentos ou fomentar empregos. “Não acredito
que as pessoas vão deixar de investir dinheiro só porque,
se investirem, terão que pagar impostos. A maioria prefe-
re ser rica e pagar alguns impostos do que não ser rica”,
pontua. “E a noção de que, se você cobra impostos de al-
guém, essa pessoa terá que pagar menos a outra pessoa
para compensar a diferença, não é correta.”

Na visão de Pearl, há problemas que só podem ser resolvi-


dos com a cobrança de taxas — a desigualdade é o princi-
pal deles. E, ao usarem suas fortunas para interferir na po-
lítica fiscal reclamando de impostos, os mais ricos acabam
interferindo na própria lógica da democracia. “Precisamos
ter impostos e depois fazer o povo, através dos seus re-
presentantes eleitos, decidir o que deve ser feito com o
dinheiro”, defende.
INÊS 249

25

Ele afirma também que o sistema ideal faria cada pessoa pagar
impostos com base em quanta riqueza possui, com taxas pro-
gressivas. A seguir, ele fala sobre por que considera a causa tão
urgente para a justiça social, as consequências da desigualdade
tributária e as possíveis soluções para o problema.

VOCê é uM ex-exeCutiVO da BlaCkrOCk e agOra defende PO-


lítiCas fisCais Mais justas. O que O leVOu a essa Causa?

Tenho 64 anos, já vivi um bom tempo e vi o que


acontece quando há uma grande desigualdade no
mundo. Lembro-me do apartheid na África do Sul
e como os protestos não terminaram bem para os
ricos. Estive em Atenas, na Grécia, há pouco mais
de dez anos, e lembro que um dia pensei que esta-
va vendo um desfile. Depois percebi que era algo
entre um protesto e um motim descendo a rua em
direção ao local onde o parlamento se reunia. Pre-
feriria não viver como as pessoas viveram na África
do Sul na década de 1980 ou na Grécia há dez anos.
A América Latina também teve problemas.

Tive a sorte de poder deixar de trabalhar pouco


depois daquele incidente na Grécia. Decidi que ti-
nha feito tudo o que precisava pelos acionistas da
INÊS 249

26

BlackRock e tenho feito esse trabalho de defesa


Morris Pearl
de direitos e políticas mais ou menos em tempo Aposentou-se
integral desde então. Imagino que posso fazer como executivo
da BlackRock,
mais mudando as políticas da nossa nação [os Es- uma das maiores
tados Unidos] para ajudar meus filhos, e agora a gestoras de
minha neta, do que ganhando mais US$1 milhão investimento do
mundo, em 2014.
para acionistas. Desde então, atua
como presidente
da Patriotic
VOCê POderia ter esCOlhidO Outras Causas. POr que COnsi- Millionaires,
deraadesigualdadedeiMPOstOsuMaquestãOtãOurgente? organização que
defende mais
tributos sobre
É algo muito visível para mim. Para ter ideia, vivo as fortunas dos
há dez anos de investimentos e pago uma fração super-ricos nos
Estados Unidos.
da taxa de imposto que as pessoas que traba-
lham para viver aqui nos Estados Unidos pagam.
No decorrer do meu trabalho e da minha vida, to-
mei consciência de muitas questões sobre como
funcionam os impostos.

Então, claro, eu poderia falar sobre prevenção


da violência armada, saúde pública, escolas para
crianças ou muitas outras coisas, mas tenho algu-
ma experiência na área financeira. Sei muito so-
bre impostos e hipotecas, por isso optei por tentar
contribuir para o discurso público em uma área
onde realmente posso contribuir.
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VOCê MenCiOnOu que POderia estar defendendO a eduCaçãO


sOBre O COntrOle de arMas. COMO a desigualdade triButá-
ria interseCta COM Outras questões de justiça sOCial?

As pessoas que são contra os impostos são con-


tra o governo fazer coisas. E sou a favor de que o
governo faça coisas. As pessoas se mudam para
Nova York, apesar de ser um dos locais com im-
postos mais elevados do nosso país, porque te-
mos um estado com uma economia vibrante onde
as pessoas podem abrir novos negócios. As pesso-
as não estão se mudando para as regiões com os
impostos mais baixos do país. Alguns até mudam
quando querem se aposentar, mas os jovens que
desejam abrir negócios estão indo para locais com
impostos elevados, e não para regiões com impos-
tos baixos. Acho que a maioria das pessoas quer
viver num lugar onde o governo cobra dos ricos
dinheiro suficiente em impostos para pagar coisas
como escolas, hospitais e parques.

qual O PaPel da COOPeraçãO e da COOrdenaçãO interna-


CiOnal nO COMBate à desigualdade triButária, esPeCial-
Mente nO COntextO das eCOnOMias glOBalizadas?

Cada país tem seu próprio sistema tributário em


sua maior parte. Mas, para o bem ou para o mal,
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as pessoas podem mudar de um país para outro


com bastante facilidade hoje em dia. Não que
todo mundo faça isso. Honestamente, não creio
que nosso maior problema aqui seja a mudança
de pessoas. Mas em muitos lugares, como a União
Europeia, a América do Sul e a América Central,
as pessoas se mudam para outras cidades. Di-
zem que as pessoas estão escondendo dinheiro
no Panamá ou em Liechtenstein, e digo que elas
não precisam escondê-lo, pois são perfeitamente
abertas sobre isso. Não está escondido — elas sa-
íram do país para não pagar impostos.

Penso que, se tivéssemos as mesmas taxas de


impostos, as pessoas ainda poderiam se mudar

“Acho que a maioria das


pessoas quer viver num lugar
onde o governo cobra dos
ricos dinheiro suficiente em
impostos para pagar coisas
como escolas e hospitais”
Morris Pearl analisa o impacto de tarifas tributárias na economia nacional e global
INÊS 249

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ocasionalmente para outros países. Mas eles não


vão ter toda essa indústria de especialistas em
evasão fiscal. E alguns dos países que são menos
ricos que os Estados Unidos terão mais dinheiro,
porque poderão cobrar mais impostos. Penso que
seria uma vitória se tivéssemos um sistema mais
unificado em todo o mundo. Não estou dizendo
que isso vai acontecer, mas agradeço o esforço do
povo brasileiro nas reuniões do G20. Talvez os jo-
vens sejam mais idealistas, mas desejo progresso.

O que VOCê Pensa sOBre MeCanisMOs de redistriBuiçãO


da riqueza, COMO renda BásiCa uniVersal Ou iMPOstOs
sOBre herança?

Sou a favor de ambos. No Alasca, eles têm uma for-


ma de renda básica universal para os nativos, as
pessoas que vivem lá, basicamente porque o gover-
no obtém muitos rendimentos com seus recursos
naturais. Existem modelos semelhantes em alguns
países do Oriente Médio.

Acho que isso é bom, porque a parte da desigual-


dade que mais me preocupa é a probreza, um gran-
de número de pessoas sem esperança. Pode haver
pessoas marchando nas ruas com forcados ou ini-
ciando um motim. Isso é o que eu gostaria de evitar.
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E sou a favor de tributar o dinheiro que você herda


da mesma maneira que tributamos o dinheiro que
você ganha de qualquer outra forma. Não vejo ne-
nhuma razão para que os herdeiros devam ter uma
isenção de impostos que os trabalhadores não têm.
Se você recebe dinheiro do seu trabalho e paga uma
certa quantia de impostos sobre isso, por que al-
guém que não trabalha, mas recebe dinheiro da fa-
mília, não deveria pagar pelo menos a mesma quan-
tia de impostos que os trabalhadores? Não é como
se tivéssemos que incentivar as pessoas a herdar.

PelO MenOs nO Brasil, questões que exigeM interVenções


POlítiCas se tOrnaraM MuitO POlarizadas. POr exeMPlO,
se VOCê defende Mais iMPOstOs, POde ser retratadO COMO
COMunista. quais sãO Os risCOs de POlitizar Ou POlarizar
assuntOs COMO esse?

É para isso que serve a política, para as pessoas


tomarem decisões votando. Sou a favor de que as
pessoas discutam essas coisas e votem em quem
fará isso. E se todos votarem, talvez tenhamos po-
líticas que sejam boas para a maioria das pesso-
as. Parte do nosso problema aqui [nos EUA] é que
nem todos votam. E as pessoas com mais dinheiro
têm mais influência política, porque gastam seu
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dinheiro em anúncios e coisas assim. Essas coisas


deveriam ser politizadas, porque esse é o trabalho
dos políticos. Em alguns casos, os rótulos podem
ser “bom” ou “mau”, “comunista” ou não.

Não, não sou a favor de um sistema comunista


como foi feito na Rússia nas décadas de 1960 e
1970 ou de um sistema econômico como o da Ve-
nezuela nas últimas décadas. Mas sou a favor de
políticas que são frequentemente chamadas de
socialistas. Embora, se você usa a palavra socialis-
ta, as pessoas pensam que isso é mau, porque os
ricos lhes disseram que isso é mau. Os ricos disse-
ram que partilhar é ruim.

“Sou a favor de políticas


chamadas de socialistas.
Embora, se você usa essa
palavra, as pessoas pensam
que isso é mau. Os ricos
disseram que partilhar é ruim”
Pearl se posiciona sobre a politização do debate em torno da taxação de fortunas
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Muitas pessoas que são ricas pensam que de algu-


ma forma são merecedoras. Deus decidiu que elas
deveriam ser ricas e estamos interferindo na obra
de Deus se ajudarmos alguém a ficar rico. Eu não
concordo com essa teoria.

Sou a favor de certas políticas; se você quiser ro-


tulá-las de liberais, progressistas, socialistas ou o
que quer que seja, ok, isso é um rótulo. Mas acho
que você tem que ir um pouco além do rótulo e di-
zer se é contra ou a favor, e não apenas tomar uma
decisão com base em ser contra políticas só porque
foram defendidas por alguém que você não gosta.

na sua VisãO, quais Os efeitOs e as COnsequênCias Práti-


Cas da desigualdade triButária?

Quando as pessoas que trabalham para viver ga-


nham dinheiro, os impostos são deduzidos do
salário: 20%, 30%, 40%, o que for. Portanto, elas
têm menos do que ganham para poupar. Por ou-
tro lado, alguém como eu, que não trabalha mui-
to, não paga impostos sobre tudo o que ganha
com investimentos. Posso sacar dinheiro de mi-
nhas contas de investimento sem ter que pagar
nenhum imposto, porque o principal imposto aqui
nos EUA é o de renda.
INÊS 249

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Essa é uma das vantagens de ser rico: você não


precisa de renda. Se eu conseguir ganhar dinhei-
ro no mesmo nível que alguém que trabalha para
viver, posso economizar muito e, no ano seguin-
te, ganhar ainda mais dinheiro. Minhas economias
aumentam de uma forma que a dos trabalhadores
simplesmente não aumenta.

Olhei para meus investimentos recentemente e te-


nho tanto valor agora como há dez anos. Isso por-
que consigo economizar muito do que ganho. E a ra-
zão é porque não tenho de pagar impostos. Mesmo
quando tenho o que chamamos de ganhos relativos,
pago impostos em uma porcentagem muito inferior
do que uma pessoa que trabalha. É por isso que,
nesse sistema tal como está estruturado nos Esta-
dos Unidos, e até em outros países, os ricos tendem
a ficar cada vez mais ricos, enquanto as pessoas que
realmente trabalham têm de trabalhar arduamente
apenas para sobreviver e não têm a oportunidade
de aumentar sua riqueza como eu tenho.

Mas VOCê teVe que Pagar iMPOstOs iniCialMente, quandO


estaVa ganhandO uMa renda e auMentandO essa riqueza?

Sim e não. Sim, eu tinha salário e pagava impostos,


INÊS 249

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mas nos anos em que trabalhei, grande parte da


minha remuneração veio na forma de opções de
ações. Portanto, o valor da renda sobre a qual pa-
guei impostos é uma fração da quantidade de di-
nheiro que tenho agora. Enormes quantias do meu
dinheiro foram para fundos onde os impostos são
adiados entre alguns anos e para sempre, preferi-
velmente para sempre.

Além disso, herdei parte do dinheiro que tenho.


Ninguém nunca pagou impostos sobre esse di-
nheiro também. A herança não faz parte da defini-
ção de renda aqui nos Estados Unidos. Então, não
é como se eu estivesse gastando dinheiro depois
dos impostos. É como se a maior parte da renda
que ganhei nunca tivesse sido tributada.

VOCê aCha que esse é O CasO da MaiOria das PessOas


riCas e MiliOnárias?

Com certeza. Vemos as notícias sobre pessoas mais


ricas, como Jeff Bezos, que pagam quase zero im-
postos. A razão disso é que elas têm renda quase
zero. E isso não deveria ser um choque — se você
é bilionário, não precisa de nenhuma renda. Às ve-
zes recebo perguntas do tipo “como Mark Zucker-
berg sobrevive com um salário de US$ 80 mil por
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“Herdei parte do dinheiro que


tenho. Ninguém nunca pagou
impostos sobre esse dinheiro
também”
O bilionário explica como acumulou riqueza pagando poucos impostos

ano?” Bem, ele não sobrevive; ele recebe US$ 80


mil por ano em salário, além de algumas centenas
de milhões de dólares por ano quando vende suas
ações ocasionalmente.

Então, acho que a maioria das pessoas sequer tem


ideia do que é ser rico. Elas pensam que uma pes-
soa rica é alguém que tem um salário alto; que a
pessoa rica é a estrela do futebol que recebe US$ 1
milhão por temporada ou algo assim. Não, aquela
estrela do futebol não é rica. O dono do time de
futebol pode ser rico.

VOCê aCha que hOje é POssíVel realMente traBalhar Para


se tOrnar uM BiliOnáriO Ou MiliOnáriO?

Há cem anos, poucas pessoas conseguiam; e poucas


conseguirão daqui a cem anos, independentemente
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do sistema fiscal. Alguns acreditam que basta tra-


balhar duro para isso. Não é verdade que todos os
que trabalham arduamente se tornarão bilionários,
mas é verdade que algumas pessoas se tornarão bi-
lionárias, e que aquelas que trabalham arduamente
têm mais chance do que qualquer outro de se tor-
narem bilionárias. Mas, no fundo, acho que a proba-
bilidade é maior se você comprar bilhetes de loteria.

uM dOs MaiOres arguMentOs COntra O auMentO dOs iM-


POstOs sOBre Os riCOs é que issO POderia leVar à fuga de
CaPitais Ou desenCOrajar O inVestiMentO eM eMPreendi-
MentOs PrOdutiVOs. COMO garantir que as POlítiCas fis-
Cais sejaM Pensadas Para PrOMOVer tantO O CresCiMentO
eCOnôMiCO COMO a equidade sOCial?

Acho que as pessoas não tomam decisões sobre


onde morar com base apenas nos impostos. Em-
bora, claro, aqui mesmo em Nova York, alguns dos
nossos líderes políticos tenham medo da fuga de
capitais e dizem que, se aumentarmos os impostos,
os ricos vão embora. Temos algumas dezenas de
pessoas que são realmente ricas e pagam muitos
impostos. E se um deles se mudar? Um deles [o ex-
-presidente Donald Trump] se mudou para Mar-a-
-Lago há alguns anos, e estou bem com isso.
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Os impostos não desencorajam os investimentos.


Posso decidir que não gosto de impostos, que que-
ro entrar em greve e manter todo meu dinheiro em
espécie e pegar uma grande caixa com notas de
US$100 e guardá-las no meu armário. Então paga-
rei zero impostos, mas também terei retorno zero
sobre meus investimentos. Isso não é uma coisa
lógica para alguém fazer.

Suponho que, se você for apenas religiosamente


contra os impostos, poderia fazer um voto de po-
breza e virar padre e não ganhar nenhum dinheiro.
Então, não acredito que as pessoas vão deixar de
investir dinheiro só porque, se investirem, terão
de pagar impostos. Nunca ouvi ninguém dizer que
estava pensando em abrir uma empresa e se tor-
nar um bilionário, mas depois descobriu que teria
que pagar impostos e achou melhor nem tentar.
A maioria das pessoas prefere ser rica e pagar al-
guns impostos do que não ser rica.

quais VOCê COnsidera OutrOs equíVOCOs Ou MitOs COMuns


sOBre a desigualdade triButária?

Penso que muito se resume ao fato de encorajar-


mos investimentos, o crescimento de empregos,
isso ou aquilo. Mas temos impostos mais baixos
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sobre pessoas com rendimentos de investimen-


tos, ou mesmo gestores de investimentos, do que
sobre pessoas que trabalham. E não é que faltem
indivíduos que queiram investir ou se tornar ges-
toras de fundos.

Se quisermos encorajar as pessoas a procurar de-


terminados empregos, eu concederia impostos
mais baixos, por exemplo, a enfermeiros ou pro-
fessores. Não vejo falta de pessoas que querem se
tornar gestoras de investimento ou investidoras, e
não vejo necessidade de encorajar mais pessoas a
seguirem nesse ramo. O argumento de que temos
de ter taxas de impostos mais baixas para os ricos
para encorajar as pessoas a serem ricas é ridículo.

que PaPel gruPOs COMO O PatriOtiC MilliOnaires deseMPe-


nhaM na fOrMaçãO dO disCursO PúBliCO e na influênCia de
deCisõesPOlítiCasrelaCiOnadasCOMadesigualdadefisCal?

Todos os membros da nossa organização são pes-


soas ricas. Muitos estão envolvidos com política e
coisas assim. E muitos deles conhecem nossos lí-
deres políticos. Parte do problema do nosso país
é que nossos líderes políticos têm de gastar muito
tempo arrecadando dinheiro. Quase todos os dias
recebo mensagens de que algum congressista quer
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falar ou se encontrar comigo. Nossos congressis-


tas conhecem nossos ricos, e pelo menos alguns
dos ricos e alguns dos congressistas se conhecem
muito bem porque passam muito tempo juntos, o
que é parte do problema.

Mas poderíamos tentar tirar vantagem disso. En-


tão tentamos fazer nossos membros explicarem
ao povo do Congresso que não queremos impostos
mais baixos; queremos menos desigualdade, para
que nossos filhos e netos também tenham as opor-
tunidades que tivemos para enriquecer. Portanto,
uma das coisas que pedimos aos nossos membros é
que aproveitem sua relação com líderes políticos e
defendam essas medidas.

se dePendesse de VOCê Criar uM nOVO sisteMa triButáriO,


O que faria?

Penso que faria cada pessoa pagar impostos


com base em quanta riqueza ela possui — seja
do trabalho, da herança, dos seus investimentos.
Colocaria todas as fontes de dinheiro em pé de
igualdade aos olhos das autoridades fiscais. E di-
ria que pagaremos taxas e valores mais elevados
conforme a riqueza.
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Talvez nada nos primeiros US$ 40 mil ou nos pri-


meiros US$ 100 mil se você tiver muitos filhos.
Mas então faria as taxas subirem cada vez mais
para que, talvez no segundo bilhão, cobrásse-
mos das pessoas impostos de 70% ou 80%; ou
90%, se o país estiver indo muito bem. Até por-
qe pagar 90% dos impostos sobre o segundo bi-
lhão não te desencoraja de ganhar o primeiro.

e POr que ainda nãO se faz issO?

Porque nosso processo político foi, em parte, cap-


turado pelos ricos que não querem pagar mais
impostos. E as pessoas acreditam que impostos

“Não creio que seja certo que


algumas pessoas ricas tomem
todas as decisões sobre como
o dinheiro será gasto. Não é
isso que queremos dizer com
democracia”
Pearl considera que a filantropia por parte de pessoas ricas não resolverá todos
os problemas ligados à desigualdade — para ele, isso caberia ao povo, por meio
de seus representantes eleitos democraticamente
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matam empregos. Muitos jovens do partido re-


publicano, o lado mais conservador, pensam que
a forma como os empresários trabalham é a se-
guinte: você vê quanto dinheiro ganha com a ven-
da do produto; aí, decide quanto quer levar para
casa no final e então diz “ok, qualquer que seja a
diferença, um pouco vai para os salários dos tra-
balhadores, um pouco para comprar produtos e
o restante para pagar impostos.” Então, aumen-
tando os impostos, os salários dos trabalhadores
teriam de diminuir.

Mas não é assim que funciona. O empresário ga-


nha uma certa quantia com a venda de seu produ-
to. Ele paga aos trabalhadores exatamente o sufi-
ciente para fazê-los trabalhar. Então ele subtrai os
impostos do que sobrou e fica com o restante. A
noção de que, se você cobra impostos de alguém,
essa pessoa terá que pagar menos a outra pessoa
para compensar a diferença, não é correta.

E existe essa crença de que se você cobrar impos-


tos dos ricos, eles vão parar de gastar dinheiro
porque não querem ser menos ricos. Pode ser ver-
dade que eles não queiram ficar menos ricos, mas
não é que não pagar impostos vá ajudar.
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e POr que é tãO iMPOrtante falar sOBre iMPOstOs e nãO


aPenas sOBre filantrOPia Ou dOar seu dinheirO?

Eu poderia doar meu dinheiro, e doo parte dele, mas


isso não resolverá o problema da desigualdade. E
nem qualquer forma de filantropia resolverá. Há
muitos problemas pelos quais temos impostos que
não podem ser resolvidos com filantropia. Poderia
facilmente arrecadar muito dinheiro se quisésse-
mos construir uma sala de concertos e colocar o
nome de alguém nela. Isso é bom, mas não resolve
todos os problemas. Também preciso de um cen-
tro de tratamento de esgoto na rua 143; de escolas
em bairros onde vivem pessoas pobres e ninguém
se importa com o nome que está na escola; que
estradas sejam reparadas.

E quero que essas decisões sejam tomadas demo-


craticamente pelos eleitores, a partir de represen-
tantes eleitos. Não creio que seja certo que algumas
pessoas ricas tomem todas as decisões sobre como
o dinheiro será gasto. Não é isso que queremos di-
zer com democracia. Precisamos ter impostos e de-
pois fazer o povo, por meio de seus representantes
eleitos, decidir o que deve ser feito com o dinheiro.
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SOCIEDADE
TEXTO Felipe van Deursen EDIÇÃO Luiza Monteiro DESIGN Flavia Hashimoto

A NOVA ONDA DO
ESTOICISMO POR QUE UMA
ESCOLA FILOSÓFICA
DE 2,3 MIL ANOS
ATRÁS, MUITAS
VEZES RETRATADA
COMO UMA LINHA
DE PENSAMENTO
INSENSÍVEL E
SEM EMOÇÕES,
ESTÁ EM ALTA?

Representação
de Zenão de Cítio,
filósofo grego
tido como pai
do estoicismo.
(Ilustração:
Getty Images)
INÊS 249

A
A Europa vivia tempos turbulentos nos idos dos anos 160 a 180
d.C. Os romanos travavam uma longa guerra contra os germânicos
e uma praga, que entrou para a história com o nome de Peste An-
tonina, ceifava vidas em quantidades bíblicas. Estima-se que a do-
ença, provavelmente varíola, tenha matado pelo menos 5 milhões
de pessoas em 15 anos.

Envolto em pensamentos sobre a morte, a brevidade e as vicissitu-


des da vida e a busca pela felicidade, um homem compilou pensa-
mentos, ideias, questões pessoais e outros assuntos ao longo da-
queles anos em uma série de livros introspectivos. Provavelmente,
nem foram escritos para ser publicados. Boa parte ele escreveu
durante as campanhas militares. Estava completamente mergu-
lhado no duro contexto da época, e não podia ser diferente, já que
estamos falando do homem mais poderoso do Ocidente naquele
tempo: Marco Aurélio, o último dos chamados “Cinco Bons Impe-
radores Romanos” e um dos filósofos mais conhecidos de uma cor-
rente que está em alta, o estoicismo.

Nos últimos tempos, é possível que você tenha reparado, nas vi-
trines de livrarias e nas listas de mais vendidos na categoria de
autoajuda, em livros com títulos como: A Arte de Viver, Um Café
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com Sêneca, O Pai Estoico e Diário Estoico, além da própria obra


de Marco Aurélio, Meditações. Modas editoriais do tipo, que dão
uma sensação de que de repente várias editoras estão lançando
muitos livros em torno de um mesmo tema ou com mesmo estilo,
são corriqueiras e naturais do mercado.

Só nos últimos anos, tivemos a onda dos livros de colorir e aque-


les de desenvolvimento pessoal com palavrões no título. Só que
esse novo movimento traz algo de diferente, pois tem como base
algo muito mais profundo, uma das principais correntes da filoso-
fia clássica. Mas por que o estoicismo está na moda?

VIRTUDE E HARMONIA
COM A NATUREZA

Marco Aurélio, Sêneca e Epiteto são os nomes mais conhecidos


do estoicismo. Os três pensadores viveram no Império Romano,
nos dois primeiros séculos da Era Comum. Porém, o pensamento
estoico surgiu bem antes, na Grécia do século 4 a.C. “Perdurou por
cerca de 500 anos e passou por modificações, como é natural em
uma corrente de pensamento que atravessou tanto tempo”, expli-
ca Roberto Bolzani Filho, professor de filosofia da Universidade de
São Paulo (USP) com especialização em história da filosofia antiga.
Além disso, sobraram poucos fragmentos desses textos estoicos
mais velhos, diferentemente dos três pensadores romanos, que,
por isso mesmo, acabaram ganhando mais evidência.
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Zenão, um bem-sucedido comerciante de Cítio (nome pelo qual a


ilha de Chipre era conhecida na Antiguidade), é tido como o pai do
estoicismo. Em cerca de 300 a.C., ele sobreviveu a um naufrágio
quando viajava para Atenas. Lá, desiludido com a grande perda
material que teve, conheceu a filosofia cínica, criada uns 100 anos
antes por Antístenes, discípulo de Sócrates que defendia que a
verdadeira felicidade dependia de se libertar de coisas efêmeras e
externas, como luxo e poder.

O cínico mais importante era Diógenes, que, segundo a lenda, vivia


em um barril. Tão prestigiado quanto humilde, ele teria recebido a
visita de ninguém menos que Alexandre, o Grande. O imperador pe-
diu ao sábio que lhe dissesse o que desejava, pois seria prontamen-
te atendido. Ao que Diógenes, com a astúcia de um Chaves sincerão
respondendo ao Quico, revidou apenas que queria que Alexandre
saísse da frente, pois estava encobrindo o sol. Assim, mostrou ao
grande imperador que era mais rico e mais feliz que ele.

Os cínicos defendiam que não devemos nos preocupar com o so-


frimento ou a morte — muito menos com o sofrimento dos outros
—, porque esses grandes dilemas são fatores externos. Tal aspec-
to “insensível” explica o uso moderno que damos a termos como
“cinismo” e “cínico”. Zenão assimilou os ensinamentos dos cínicos
e de outros pensadores mais antigos, como Heráclito de Éfeso. Ele
passou a reunir seus ouvintes sob um pórtico, que em grego é stoa.
Daí surgiu o nome “estoico”.
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Assim como Heráclito, os estoicos defendiam que cada pessoa era


um mundo em miniatura, parte de um mesmo macrocosmo, uma
razão universal, o “logos”. Para eles, não existia diferença entre o
indivíduo e o Universo nem entre espírito e matéria. Havia apenas
uma natureza e um direito natural, válido para todas as pessoas.

Eram essas leis da natureza que regiam, por exemplo, doenças e a


morte, então os humanos deveriam aprender a aceitar o destino.
Nada é por acaso. Trata-se de tomar uma atitude quanto ao que
podemos exercer algum poder — pensando no impacto que isso
terá sobre outras pessoas e mantendo o autocontrole — e aceitar
o que não podemos controlar. Hoje, chamar uma pessoa de “estoi-
ca” pode significar que se trata de alguém impassível, que reprime
emoções. Mas os antigos estoicos não defendiam isso.

Mais de 300 anos se passaram, a maior parte dos textos de Ze-


não se perdeu, e o estoicismo passou a ser representado mais pe-
las palavras de um homem chamado Epiteto, cujos ensinamentos
chegaram aos nossos tempos por meio de livros que teriam sido
publicados pela primeira vez por um discípulo dele, Arriano.

Epiteto nasceu na escravidão em cerca de 50 d.C. na Anatólia (atu-


al Turquia), emigrou para Roma, ganhou liberdade, mas acabou ba-
nido da capital no fim do século — assim como todos os filósofos,
por um decreto do imperador Domiciano. Uma vida bem diferente
da de Marco Aurélio.
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“OS GREGOS CRIARAM VÁRIAS


ESCOLAS DEDICADAS A PENSAR EM
COMO VIVER BEM, E MUITOS DESSES
PRINCÍPIOS SÃO UNIVERSAIS, ATUAIS
E FACILMENTE APLICÁVEIS HOJE”
Tomás da Veiga Pereira,
um dos sócios-fundadores
da editora Sextante

Marco Aurélio foi o último


dos chamados “Cinco Bons
Imperadores Romanos”
e um dos filósofos mais
conhecidos do estoicismo.
(Ilustração:
Getty Images)

Já o outro nome da trinca, Sêneca, cresceu em um ambiente rico


e intelectual, foi senador, mas acabou exilado, acusado de adulté-
rio. Foi perdoado, retornou a Roma e virou tutor de Nero em seus
primeiros anos no comando do império — não coincidentemente,
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foi a época mais tranquila da controversa passagem de Nero pelo


cargo. Em 65 d.C., acusado de participar em uma conspiração para
matar o imperador, Sêneca foi forçado a se suicidar. É provável
que ele fosse inocente, e a cena ficou eternizada nas artes plásti-
cas, pintada por nomes como Peter Paul Rubens.

Em suma, foram vidas bem diferentes. O que as três biografias


têm em comum é a carga dramática. Marco Aurélio, aliás, morreu
de causas desconhecidas, durante suas campanhas militares na
Europa Central. Alguns historiadores cravam que o episódio en-
cerrou os cerca de 200 anos da Pax Romana, a era de ouro do im-
pério. Todos os três tiveram, durante a vida, experiências mais que
o suficiente para exercer os princípios básicos do estoicismo.

Mas o sucesso deles dois milênios depois não se deve necessa-


riamente a suas vivênias, e sim a seus ensinamentos, úteis para
os dias de hoje e, o melhor, em um formato acessível. “Em linhas
gerais, em seus textos há maior ênfase nos temas morais, tra-
tados principalmente do ponto de vista do indivíduo que busca
ser feliz”, explica Bolzani. “Muitos foram escritos em tom exorta-
tivo, em proposições breves, de acesso menos complexo do que
é costume encontrar nos textos filosóficos.” Ou seja, o próprio
formato dos escritos estoicos já parece ter um forte apelo para
um público mais amplo. A obra de Epiteto é caracterizada por
diálogos curtos. O texto mais importante de Sêneca é uma troca
de correspondência (Cartas a Lucílio). Marco Aurélio deixou seus
pensamentos em máximas sucintas.
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FENÔMENO EDITORIAL

Ainda que esses textos de quase 2 mil anos possam ser conside-
rados acessíveis, não são eles que lideram a nova onda dos livros
estoicos. Os destaques são obras escritas por autores contem-
porâneos, com formações diversas. Sharon Lebell era uma mu-
sicista que, nos anos 1980, se tornou uma autora especializada
em livros de pegada filosófica. Em A Arte de Viver (Sextante), ela
conta que usa “linguagem e imagens simples” para interpretar,
improvisar e apresentar os ensinamentos de Epiteto “da maneira
mais direta e proveitosa possível.”

O publicitário Ryan Holiday se autointitula “especialista em mani-


pulação midiática” e aplica o estoicismo ao marketing — ou sim-
plesmente aos desafios do dia a dia. Publicou livros como O Pai
Estoico, A Vida dos Estoicos e Diário Estoico (todos lançados no
Brasil pela Intrínseca). Já David Fideler é um ex-professor univer-
sitário com doutorado em filosofia que lançou livros sobre Jesus,
poesia islâmica e textos pitagóricos. Sua obra mais famosa, no en-
tanto, é Um Café com Sêneca (Sextante).

Tomás da Veiga Pereira, um dos sócios-fundadores da editora Sex-


tante, acredita que essa tendência de livros baseados na filosofia
clássica ainda tem muita lenha para queimar. “Os gregos criaram
várias escolas dedicadas a pensar em como viver bem, e muitos
desses princípios são universais, atuais e facilmente aplicáveis nos
dias de hoje”, diz.
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“NO ESTOICISMO, A VIDA HUMANA


SÓ FAZ SENTIDO DO PONTO DE VISTA DE
UM TODO MAIS AMPLO, A NATUREZA”
Roberto Bolzani,
professor de filosofia
da USP

Sêneca é um dos expoentes


do estoicismo; seu texto
mais importante é uma
troca de correspondência,
Cartas a Lucílio. (Ilustração:
Getty Images)

Mas, segundo ele, não houve outra escola filosófica que tenha rendi-
do tanto para o mercado editorial. No Brasil, A Arte de Viver vendeu
90 mil exemplares em seis anos. Um Café com Sêneca, em dois anos,
passou dos 30 mil. São números “muito expressivos”, diz a Sextante.
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Rebeca Bolite, editora-executiva da Intrínseca, lembra que o inte-


resse do público por filosofia é cíclico. O fenômeno O Mundo de So-
fia, lançado nos anos 1990, é um grande exemplo. O “romance da
história da filosofia”, como diz a capa, vendeu dezenas de milhões
de cópias (mais de 1 milhão só no Brasil; é o livro mais vendido da
história da Companhia das Letras). “Além disso, nos anos 2000,
houve muita procura pelos grandes filósofos no geral”, lembra Bo-
lite. “A Intrínseca publicou alguns livros fazendo esse uso da filoso-
fia de forma mais ampla.”

As próprias Meditações, de Marco Aurélio, estão longe de ser no-


vidade nas livrarias. A obra esteve entre as mais vendidas nos Es-
tados Unidos em 2002 e já foi citada como livro de cabeceira de lí-
deres mundiais. Wen Jiabao, primeiro-ministro da China de 2003 a
2013, disse que o leu mais de 100 vezes. Bill Clinton, presidente dos
EUA entre 1993 e 2001, citou Meditações como seu livro preferido.

Segundo Bolite, a Intrínseca, que publica os livros de Ryan Holi-


day desde 2017, ficou muito satisfeita quando o autor enveredou
para o estoicismo. “Ele tem um público fiel no Brasil, seus livros já
venderam 300 mil exemplares”, conta. “O Diário Estoico, lançado
no início de 2023, está entre os dez mais vendidos da editora.” Ela
concorda com Bolzani e acredita que a acessibilidade do estoicismo
o torna popular. “As pessoas continuarão a buscar respostas para
seus anseios pessoais e existenciais em doutrinas filosóficas mais
palpáveis. O fato de o estoicismo ser baseado na prática vai ao
encontro das necessidades impostas por um ritmo cada vez mais
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acelerado de vida”, diz. “Me parece que abordagens mais pragmáti-


cas como essa seguirão em alta entre os leitores por muito tempo.”

A época em que vivemos também faz toda a diferença. “Talvez em


tempos mais estáveis, como foi a segunda metade dos anos 2000,
as pessoas se voltassem para questões existenciais, e em momen-
tos de mais instabilidade, como agora, elas procurem ferramentas
mais práticas para o dia a dia”, acredita Bolite. O professor da USP
lembra o evento histórico, traumático e monumental pelo qual to-
dos passamos e cujos reais impactos ainda levarão tempo para
ser medidos e assimilados. “A pandemia [de Covid-19] produziu em
muitas pessoas uma percepção mais clara da brevidade da vida,
uma questão muito explorada pelos estoicos”, diz Bolzani. “No es-
toicismo, a vida humana só faz sentido do ponto de vista de um
todo mais amplo, a natureza. O sábio estoico entende que é ape-
nas uma parte pequena de um todo maior. Isso lhe proporciona
as condições para viver uma vida de autodomínio em relação aos
sofrimentos do cotidiano.”

Não por acaso, as buscas por estoicismo no Google começaram a


subir em março de 2020, quando o mundo se fechou para enfren-
tar a Covid-19. Em 2023, o número de pesquisas já tinha dobrado.
Só que isso não quer dizer, necessariamente, que existe um in-
teresse mais aprofundado pela filosofia. “É mais provável que a
maioria das pessoas esteja apenas em busca de uma saída para
suas aflições pessoais”, observa Bolzani.
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Os livros mais populares dessa onda não são grandes tratados de fi-


losofia, afinal. Diário Estoico, por exemplo, é um compilado de 366
pequenas lições, uma para cada dia do ano. “Não há nada de erra-
do nisso, mas fica claro que, nesse caso, assistimos a um fenômeno
frequente: o da instrumentalização do pensamento, uma espécie de
transformação da filosofia em produto de consumo”, acredita Bolzani.

Se vale para os livros, vale mais ainda para a proliferação de vídeos


sobre estoicismo nas redes sociais. Só no Instagram são 1,2 milhão
de posts com “#stoicism”, no termo em inglês. “O ‘estoicismo de Ti-
kTok’ promete produtividade e felicidade”, escreveu o filósofo Mat-
thew Duncombe, da Universidade de Nottingham, no Reino Unido,
em artigo no site The Conversation. “Felicidade, para o estoico, era
uma questão de ter virtudes e não ter vícios. Todo o resto — incluin-
do saúde, riqueza e status — eram ‘indiferentes’, porque não faziam
diferença para a virtude e, portanto, para a felicidade”, explicou. “En-
tão, mesmo que os conselhos de autoajuda do ‘estoicismo de TikTok’
possam torná-lo mais produtivo, ser mais produtivo não o deixará
mais feliz, de acordo com a filosofia estoica.”

Até porque seguir os ensinamentos estoicos, sem mergulhar no


pensamento filosófico para valer, não é fácil. Que o diga Cômodo,
filho e sucessor de Marco Aurélio: ele rasgou e jogou para o alto a
apostila de autocontrole, dever e respeito ao próximo pregada pelo
pai. Tornou-se um ditador apegado à própria imagem, sanguinário e
fanático pelas lutas de gladiadores. Morreu assassinado.
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Quer Que eu desenhe?


Por Bernardo frança

A pesquisAdorA niède guidon foi desbrAvAdorA dos


estudos Arqueológicos no pArque nAcionAl dA serrA dA
cApivArA, no piAuí, considerAdo pAtrimônio culturAl dA
unesco. conheçA suA pesquisA e trAjetóriA
texto
Camilla almeida
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É impossível falar do Parque Nacional da


Serra da Capivara sem falar de Niède Guidon.
Nascida no dia 12 de março, seu trabalho
pioneiro na região do Piauí trouxe novas
informações sobre o que se sabia acerca da
chegada de humanos às Américas.
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Guidon nasceu em Jaú (SP). Em sua formação


como arqueóloga, passou pela Universidade
de São Paulo (USP) e pela Universidade
Paris-Sorbonne, na França. Seu principal
interesse de estudo era a arte rupestre.
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Em 1973, ela começou a liderar expedições


arqueológicas no Piauí. E foi a partir delas
que, seis anos depois, o governo brasileiro
criou o Parque Nacional da Serra da
Capivara — declarado Patrimônio Cultural
da Unesco em 1991.
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Em 1986, Guidon publicou um artigo na


revista Nature relatando restos de fogueira
e artefatos produzidos por humanos no atual
Piauí há quase 40 mil anos. O artigo gerou
debate, já que o consenso científico é de que
isso aconteceu há cerca de 15 mil anos.
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Niède Guidon foi uma das principais


mobilizadoras de esforços pela conservação
dos tesouros da Serra da Capivara. Em 2016,
aposentou-se dos trabalhos em campo, mas
seu legado para a ciência brasileira perdura,
assim como seus achados arqueológicos.

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