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O ESTIGMA DA AIDS EM SERGIPE

Amael Oliveira1
INTRODUÇÃO

“A doença é a zona noturna da vida, uma


cidadania mais onerosa”.
Susan Sontag

Entre outubro de 1980 e maio de 1981, em São Francisco, Estados


Unidos, as autoridades de saúde notaram um aumento significativo na incidência
de enfermidades que geralmente não afetavam indivíduos saudáveis, como era
o caso do Sarcoma de Kaposi. Uma estranha sucessão de mortes entre os
circuitos homossexuais imediatamente alertou o Centro de Controle de Doenças
daquele país para a possibilidade do surgimento de uma nova enfermidade.
A doença logo foi relacionada à homossexualidade. Falava-se de “câncer
gay” e “peste rosa”. O primeiro nome extraoficial carregava o peso da
segregação: GRID (Gay Related Immune Deficiency ou Deficiência Imunológica
Relacionada à Homossexualidade). O fato não é surpreendente, principalmente,
se observado à luz do contexto da época. Naquele momento histórico, a própria
homossexualidade ainda era vista em muitos círculos como uma perversão
sexual. Ela era, em si mesma, uma doença.
Na história, essa não seria a primeira vez que uma doença era relacionada
a grupos socialmente marginalizados. Na Idade Média, por exemplo, os judeus
eram perseguidos sob a acusação de serem o motivo da ira divina, que castigava
a todos com a peste negra. A própria existência dos judeus era considerada uma
ofensa à Deus, uma vez que, no imaginário cristão, seriam eles os culpados pela
crucificação do Cristo.
Como explica o historiador Jean Delumeau (2009, p. 204), diante do
inexplicável surgimento de uma doença tão virulenta como era a Peste Negra na
Europa medieval, o movimento mais primitivo e natural na época era o de acusar
outrem. “Nomear culpados era reconduzir o inexplicável a um processo

1 Estudante de Medicina da Universidade Federal de Sergipe (UFS). E-mail:


amael.oliveira@hotmail.com
compreensível. Era também pôr em ação um remédio impedindo os semeadores
de morte de continuar sua obra nefasta”. (DELUMEAU, 2009, p. 204)
Assim, como aconteceu com as pestes medievais, no caso da Aids2
também era preciso encontrar os culpados pela criação desse mal tão virulento.
E o bode expiatório da vez foram os homossexuais. Néstor Perlongher (1987, p.
10) cita, por exemplo, o caso de um cabeleireiro, que, não estando sequer
doente, foi expulso da cidade de Araguari em 1985, em Minas Gerais, sob a
acusação de mergulhar malignamente na piscina do clube. Nesse sentido, a
doença representou um retrocesso nos avanços socioculturais do século XX.
De acordo com Perlongher (1987, p. 7), a Aids fez “o que nem a Igreja
nem os mais moralistas conseguiram: reverter os efeitos da Revolução Sexual,
as conquistas da pílula e do amor livre”. Agora um fantasma espreitava os flertes,
as paqueras. Inicialmente, acreditava-se que o mal estava restrito às rodas gays
dos Estados Unidos e, por essa razão, servia a um discurso conservador, que
utilizava a doença como um poderoso mecanismo moralizador de controle dos
comportamentos desviantes.

Da mesma maneira que a Aids transcendeu, no início, a dor particular


de suas vítimas para se estender aos corredores dos “guetos” como um
poderoso mecanismo de moralização e controle, derivados das ondas
de pânico, o fantasma parece abandonar os difusos limites dos circuitos
minoritários para apavorar também os heterossexuais. (PERLONGHER,
1987, p. 9)

Assim, a enfermidade foi utilizada desde o seu surgimento como um


instrumento de exclusão, que, como se verá ao longo deste trabalho, tem
ressonâncias ainda persistentes nos dias atuais, mesmo entre os profissionais
da saúde. Aqueles que carregam o vírus podem ter tido nos últimos anos uma
melhora significativa na sobrevida com a adoção de medicamentos cada vez
mais eficazes, porém, ao mesmo tempo, permanecem à margem da sociedade,
vistos com desconfiança pelo olhar moralista que resiste às conquistas das
ciências humanas.

2 Aids (Acquired Immunological Deficiency Syndrome, ou seja, Síndrome da


Imunodeficiência Adquirida) é o estágio final de uma infecção prolonga pelo vírus HIV (Vírus da
Imunodeficiência Humana). O HIV, do gênero Lentivirus, é um retrovírus. Ele tem duas fitas
idênticas de RNA, a enzima transcriptase reversa e um envelope de fosfolipídio. (TORTORA,
2012, p. 539-548)
Preso a esse dilema paradoxal em que os avanços científicos não refletem
um avanço na inclusão social do portador de HIV, o presente trabalho, partindo
de uma visita técnica ao Centro de Testagem e Aconselhamento (CTA) de
Aracaju, trata da relação entre Aids, discriminação e a homossexualidade em
Sergipe. Para tanto, considera-se que a abordagem atualmente adotada pelas
políticas públicas de saúde na área reforça o estigma e, consequentemente, o
preconceito aos gays, relegando essa parcela da população ao limbo dos
“grupos de risco”, nomenclatura que, ainda que seja inadequada, resiste no
imaginário popular e de muitos profissionais de saúde.

VISITA TÉCNICA AO CTA

“Estudamos a saúde, e consideramos nossos


alimentos, e bebidas, e ares, e exercícios, e
talhamos e polimos cada pedra que constitui
este prédio; de modo que nossa saúde é um
empreendimento demorado e constante; mas
num minuto um canhão tudo ataca, tudo derrota,
tudo derruba; uma doença que toda a nossa
diligência não pôde prevenir, e toda a nossa
curiosidade não pôde antever”.
John Donne

O Centro de Testagem e Aconselhamento (CTA) faz parte do Centro de


Especialidades Médicas de Aracaju (CEMAR), localizado na rua Bahia, S/N,
bairro Siqueira Campos. A unidade é composta por dois segmentos estruturais
que dividem o prédio na área Porta Aberta, responsável pela testagem daqueles
casos assintomáticos, e na área de Aconselhamento, que realiza o
acompanhamento dos doentes do estado, cadastrados no Sistema Único de
Saúde (SUS)3.
A área aberta ao público realiza exames de HIV, Sífilis e Hepatites B e C.
Para fazer o teste, basta que o visitante apresente identidade e o cartão do SUS.
O resultado dos exames sai entre 15 e 20 dias e, caso seja confirmada a infecção

3 O Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais estima aproximadamente 734 mil

pessoas vivendo com HIV/aids no Brasil no ano de 2014, correspondendo a uma prevalência de
0,4%. Na população de 15 a 49 anos, a prevalência é de 0,6%, sendo 0,7% em homens e 0,4%
em mulheres. Entre os jovens de 17 a 21 anos do sexo masculino, a prevalência estimada em
2007 foi de 0,12% e 1,2% nos homens que fazem sexo com homens (HSH) da mesma faixa
etária. Em Sergipe, de 1980 a 2014, foram registrados 3.827 casos da doença. (BOLETIM
EPIDEMIOLÓGICO, 2014)
por algum desses patógenos, o paciente será encaminhado para atendimento
médico especializado na própria unidade. Em média, mensalmente são
realizados 300 atendimentos.
Já área especializada no acompanhamento dos portadores de HIV, é
composta por uma equipe multidisciplinar com 8 infectologista, obstetra e
ginecologista, dentista, psicólogo, nutricionista, assistente social e enfermeira,
além de técnicos e recepcionistas. Na mesma ala, fica localizada a farmácia da
unidade que fornece, gratuitamente, os medicamentos do coquetel
antirretroviral. Atualmente são distribuídos 21 medicamentos, classificados, de
acordo com ação no organismo, em cinco tipos.
De acordo com a infectologista C. P4., que trabalha no local há 4 anos, em
média 12 pacientes são atendidos por médico. Todo o atendimento, segundo a
especialista, segue os protocolos do Ministério da Saúde para o acolhimento dos
portadores do vírus, que precisam periodicamente retornar à unidade para
realizar os exames de contagem dos linfócitos T CD4+ e da carga viral, que são
indicadores da progressão da infecção no organismo.
Segundo a especialista, o maior problema enfrentado pelo profissional de
saúde é convencer o enfermo a aderir ao tratamento. Conforme explica C. P., a
maioria dos pacientes desistem, faltam às consultas de retorno, o que demanda
um trabalho em conjunto com a Vigilância Epidemiológica, que liga para
reagendar os atendimentos.
Quando questionada sobre a relação entre a doença e o público gay, a
infectologia afirmou que ainda é persistente a alta incidência entre a população
homossexual, em especial na dos homens que fazem sexo com homens (HSH),
nomenclatura adotada pelo Ministério da Saúde para se referir à parcela da
população formada por homo e bissexuais. Contudo, destacou também que, nos
últimos anos, tem sido observado um aumento na incidência da doença na
população acima dos 50 anos, que tradicionalmente não tem a prática de fazer
sexo com o uso de preservativos.
A opinião da infectologista vai ao encontro da pesquisa de Jorge Beloqui
(2008, p. 442), que afirma também ser o grupo dos HSH mais vulneráveis à
contaminação. Para o pesquisador, as causas dessa vulnerabilidade podem

4 O nome da profissional foi omitido para preservar sua identidade e seu direito à imagem
e expressão.
incluir uma prevenção inadequada para a infecção pelo HIV no passado, o
diagnóstico tardio, por negação ou por falta de orientação adequada de saúde,
e o fato de essa epidemia ser mais antiga na população HSH.
Beloqui (2008, p. 442) destaca, entretanto, que dentro do grupo HSH há
subgrupos que apresentam diferenças no que se refere ao risco relativo de
contaminação. Nesse contexto, o risco relativo para homossexuais exclusivos
tem apresentado trajetória decrescente em todos os locais analisados na
pesquisa, o que não é observado para o grupo dos bissexuais que tem risco de
desenvolver Aids até 15 vezes superior àquele dos heterossexuais.
Apesar de se observar uma tendência de diminuição do número de casos
de Aids na população HSH e o aumento na população heterossexual, o
pesquisador é enfático ao afirmar que o estigma sobre a população HSH
permanece. “Iniciativas publicitárias voltadas à diminuição da discriminação em
relação a HSH têm sido censuradas, o projeto de lei de união civil não é votado
e os HSH são proibidos de doarem sangue”. (BELOQUI, 2008, p. 438-439)
Ainda que reconheça a inexistência de grupos de risco, a infectologista do
TAC afirmou, contrariando a pesquisa citada acima, que a elevada incidência da
doença entre os HSH se deve a um “comportamento de risco”, caracterizado
pelo hábito descuidado de manter relações sexuais com múltiplos parceiros,
escolhidos sem um critério seletivo.
Na declaração da profissional, embora fundada em sua experiência,
podem ser observados resquícios do estigma e de uma determinada opinião
preconcebida acerca das relações homoafetivas, disseminada em alguns
círculos sociais, notadamente entre segmentos religiosos conservadores. Essa
postura pode ser questionada sobre vários aspectos.
O primeiro ponto a se levantar é que esse tipo de argumento fundamenta-
se numa concepção de que a vítima, o infectado, é diretamente responsável pelo
seu flagelo. Isto porque, a Aids está associada, desde o seu surgimento na
década de 80, a práticas sexuais desviantes, vistas como pecaminosas pelo
pensamento cristão. Homens que fazem sexo com homens, trabalhadores do
sexo e usuários de drogas são os alvos históricos da utilização da doença como
argumento moralizador. Além disso, como explica Perlongher (1987, p. 9), “o
horror dos corpos que adoecem e morrem parece se tornar mais pavoroso
quando se adivinha, na origem das contorções da agonia, os espasmos do
gozo”.
O segundo ponto a se discutir acerca dessa posição é a lógica simplista
em que se baseia esse tipo de argumento, posto que estabelece uma relação
inapropriadamente racionalista ao comportamento, como se cada indivíduo
calculasse e decidisse suas ações numa esfera de relação entre os riscos e os
ganhos de sua atitude. Dentro dessa lógica, como a Aids não tem cura, o risco
seria maior que os ganhos, fazendo com que o indivíduo adotasse
automaticamente uma atitude prudente.

Talvez uma das “lições” mais importantes dadas pela epidemia da Aids
é a desmistificação de que a aquisição de informações implicaria
automaticamente uma mudança de comportamento. Essa concepção
está baseada numa forma racionalista e “economicista” de pensamento,
ao considerar que os indivíduos definem suas práticas a partir de um
cálculo racional entre “ganhos” e “perdas”. (KNAUTH; GONÇALVES,
2006, p. 92)

Dessa forma, o argumento comportamental fundado apenas no aspecto


da orientação sexual, rotulada como imprudente, não dá conta da complexidade
os fatores que determinam comportamentos de risco ou de prevenção. Seria
preciso levar em consideração fatores externos, tais como gênero, raça, classe
social, cultura, fase da vida, entre outros, que influenciam nos comportamentos
individuais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A medicina limita-se a tratar, com


desigual fortuna, as infecções
oportunistas e os cânceres que vão
aparecendo, procurando retardar o
mais possível a morte que se supõe
inexorável. Corre assim o risco comum
à maioria das doenças ‘graves’:
complicar a morte e tornar ainda mais
penosa a agonia.
Néstor Perlongher

De acordo com o dicionário Aurélio (FERREIRA, 2008, p. 377), estigma é


definido como cicatriz, sinal. Estigmatizar, por sua vez, é sinônimo de censurar,
condenar. Assim sendo, quando se fala em estigma da Aids, procura-se discutir
os modos como se é construída a identidade dos portadores de HIV na
sociedade contemporânea, tendo como ponto de partida o reconhecimento de
que ainda permanece o preconceito e a exclusão que relega ao isolamento social
o doente.

Como consequência desse isolamento, surge um outro problema, desta


vez, relacionado à dificuldade de adesão ao tratamento, como explica Garcia e
Koyama.

O estigma e a discriminação associados ao HIV/Aids podem


reduzir/dificultar a procura pela realização do teste, devido ao receio do
resultado, bem como a busca de tratamento adequado nos serviços de
saúde após a condição sorológica positiva revelada. (CARCIA;
KOYAMA, 2008, p. 73)

Em estudo introdutório, os autores (GARCIA; KOYAMA, 2008) ainda


apontaram que o maior nível de intenção de discriminação está naquela parcela
da população de menor escolaridade, pertencentes às faixas etárias acima de
45 anos, residentes nos estados do Norte/Nordeste. Os autores ainda ressaltam
o papel que determinados seguimentos religiosos têm tido na sociedade
brasileira em reproduzir e multiplicar discursos conservadores. A pesquisa revela
que os pentecostais apresentam médias superiores à dos praticantes de outra
religião ou daqueles sem religião, na intenção de discriminação. Um número que
tem aumentado anualmente.

Parte da explicação para esse aumento se deve ao fortalecimento das


lideranças político-religiosas por meio da participação na vida pública do
país, seja na ocupação de cargos eletivos nas Câmaras Estaduais e
Federais, seja pela aquisição de canais de televisão de expressão
nacional. Esse fortalecimento respaldaria a exigência do alinhamento de
seus fiéis às posições conservadoras, o que significa neste caso,
demarcar territórios morais a partir dos quais o HIV e a Aids são
percebidos e tratados como “o vírus e a doença dos que vivem em
pecado”. (GARCIA; KOYAMA, 2008, p. 82)

No centro dessa questão, estão as metáforas que a doença engendra e


que, por conseguinte, geram sentimentos de pavor e fantasias absurdas de
contágio. Uma doença, cuja forma de transmissão é sexual, torna-se no
imaginário popular um castigo dirigido àqueles que a portam, pois está associada
à promiscuidade e a determinadas práticas sexuais tidas como antinaturais.
Nesse contexto, “a Aids é uma doença concebida como um mal que afeta um
grupo perigoso de pessoas ‘diferentes’ e que por elas é transmitido, e que ataca
os já estigmatizados numa proporção maior do que ocorria no caso da sífilis”.
(SOTANG, 2007, p. 99)
Por fim, vale salientar que a discriminação e o preconceito, de uma forma
geral, refletem ideias e crenças que fazem parte de um contexto maior que inclui
a estrutura econômica e política. Por esta razão, não compete somente ao
Estado a implantação de políticas públicas que combatam o estigma da Aids,
promovendo, assim, o acesso igualitário aos serviços de saúde, mas também
faz-se necessário o engajamento da sociedade para promover uma cultura mais
humanitária e libertadora. Posicionar-se com consciência e visão ética diante do
sofrimento das pessoas é assegurar direitos e promover uma sociedade que
celebre a diversidade como parte integrante e constitutiva do todo. Talvez,
somente assim, a Aids deixará de ser uma doença do outro, a metáfora obscura
de uma transgressão sexual.

REFERÊNCIAS

BELOQUI, Jorge A. Risco relativo para Aids de homens homo/bissexuais em


relação aos heterossexuais. Revista de Saúde Pública, São Paulo, 2008, 437-
442.

BOLETIM EPIDEMIOLÓGICO – HIV/AIDS. Ministério da Saúde. Brasília: 2014.


DELUMEAU, Jean. História do medo no Ocidente: uma cidade sitiada. Tradução
de Maria Lúcia Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Dicionário Aurélio da língua


portuguesa. 7 ed. Curitiba: Positivo, 2008.

GARCIA, Sandra; KOYAMA, Mitti Ayako. Estigma, discriminação e HIV: Aids no


contexto brasileiro (1998-2005). Revista de Saúde Pública, São Paulo, 2008, 72-
83.

KNAUTH, Daniela Riva; GONÇALVES, Helen. Juventude na era da Aids: entre


o prazer e o risco. In: ALMEIDA, Maria Isabel Mendes de; EUGENIO, Fernanda
(orgs.) Culturas Jovens: novos mapas do afeto. Rio de Janeiro: Zahar, 2006, p.
92-104.

PERLONGHER, Néstor. O que é Aids. São Paulo: Brasiliense, 1987.

SONTAG, Susan. Doença como metáfora: Aids e suas metáforas. Tradução de


Rubens Figueiredo e Paulo Henriques Britto. São Paulo: Companhia das Letras,
2007.

TORTORA, Gerard J. Microbiologia. 10 ed. Tradução de Aristóbolo Mendes da


Silva. Porto Alegre: Artmed, 2012.

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