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BR

NOVEMBRO DE 2021 | ANO 22, N. 309

GEOGRAFIA
DOS
SABORES
Em duas décadas, país criou
88 indicações de origem
para produtos como cafés,
queijos e vinhos

Covid-19: Avaliação vai Apesar dos danos, O Cerrado Estudo mapeia Crise dos
adesão parar na Justiça Transamazônica está ainda a contribuição radiofármacos
à vacinação no e programas de permitiu a criação mais quente, de cientistas põe em
Brasil é maior do pós-graduação de comunidades de seco e brasileiras para a discussão
que em países vivem momentos pequenos propenso formação de novos o modelo de
desenvolvidos de incerteza agricultores a incêndios pesquisadores produção
SUA PESQUISA
RENDE
FOTOS BONITAS?

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Seu trabalho poderá ser
selecionado e publicado na revista.
Requisitos: beleza;
estar associada a pesquisa;
ter boa resolução (300 dpi)

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FOTOLAB O CONHECIMENTO EM IMAGENS

Sua pesquisa rende fotos bonitas? Mande para imagempesquisa@fapesp.br


Seu trabalho poderá ser publicado na revista.

Relógio da fertilidade
Alterações genéticas no relógio biológico podem estar ligadas a distúrbios na fertilidade. Isso aparece
nas células de testículo de camundongo cujos núcleos foram tingidos de azul. Deveria haver,
associada a cada núcleo, apenas uma estrutura verde. São os corpos cromatoides, responsáveis por
direcionar a formação dos espermatozoides. Quando há mais de um, como acontece em roedores com
o gene clock parcialmente silenciado – o principal regulador do ciclo circadiano –, a transformação
não se dá. O próximo passo será avaliar se também ocorre em homens, em quem genes alterados
podem levar a hábitos pouco comuns, como trocar a noite pelo dia.

Imagem enviada pela geneticista Rita Peruquetti, professora no Centro Universitário


Sagrado Coração, em Bauru (SP)

PESQUISA FAPESP 309 | 3


NOVEMBRO 2021
1

3 FOTOLAB COVID-19 CAPA CLIMA


6 COMENTÁRIOS 18 A adesão dos 34 Brasil criou 52 O Cerrado está mais
7 CARTA DA EDITORA brasileiros à imunização 88 indicações geográficas quente, seco e propenso
supera a de países para produtos como a grandes queimadas
8 BOAS PRÁTICAS desenvolvidos queijos, vinhos e cafés
Editoras científicas lançam ECOLOGIA
guia para lidar com imagens 24 Estudo da FGV FORMAÇÃO 58 Manejo de açaí ameaça
fraudadas em papers associa direita 42 Avaliação dos biodiversidade da floresta
conservadora à difusão de programas de pós-graduação de várzea amazônica
11 DADOS notícias falsas no Twitter vai parar na Justiça
FOTOS  1 LÉO RAMOS CHAVES  2 CORTESIA GALERIA VERMELHO

Índice de Especialização COSMOLOGIA


ENTREVISTA GÊNERO 60 Cratera em lua de
12 NOTAS 28 A matemática 46 O legado de Saturno pode ter sido
17 NOTAS DA PANDEMIA Marilda Sotomayor 50 cientistas brasileiras ambiente favorável
ajudou a internacionalizar na formação a formas primitivas de vida
a teoria dos mercados de pesquisadores
de matching SAÚDE
INICIAÇÃO CIENTÍFICA 62 A OMS recomenda
50 Colégio paulistano vacina contra a malária para
atrai projetos de todo crianças da África
o país e do exterior para
309 feira de ciências
MEDICINA NUCLEAR 90 MEMÓRIA WWW.REVISTAPESQUISA.FAPESP.BR
66 As propostas para A Guerra do Paraguai
evitar a paralisação na provocou mais mortes por Leia no site a edição da revista em português, inglês
produção de radiofármacos doenças do que por e espanhol, além de conteúdo exclusivo
ferimentos em batalhas
AMBIENTE
70 Novas ferramentas 94 RESENHA
tecnológicas podem Um falso mineiro: Memórias
ajudar a conter a destruição de política, ciência,
da Amazônia educação e sociedade, VÍDEO  YOUTUBE.COM/USER/PESQUISAFAPESP
de Simon Schwartzman.
ENGENHARIA DE MATERIAIS Por Claudio de Moura Castro
74 Nanopartículas de cobre
são usadas como aditivo 95 CARREIRAS
de produtos avançados Crise econômica e alto
índice de desemprego
ECONOMIA aumentam número
76 Pesquisas abordam de endividados do Fies
as ideias e as políticas
de ministros da Fazenda
Microrganismos estão por todos
ENTREVISTA os lados (e isso não é um problema)
82 O antropólogo Levantamento aponta 31 bactérias
Roberto Santos predominantes em locais públicos de
fala sobre os 50 anos 60 cidades do mundo
da Transamazônica bit.ly/igVMicrobiota

ARTES VISUAIS
86 Mulheres tiveram
participação ativa
na história da fotografia
latino-americana

1. Queijos da Serra
da Canastra (CAPA, P. 34)
2. Foto de Claudia
Andujar: Sem título,
Os novos mapas das mudanças
da série A Sônia, de 1971 no clima
(ARTES VISUAIS, P. 86) Relatório do IPCC mostra que o homem
Capa  intensifica o aquecimento global
LÉO RAMOS CHAVES bit.ly/igVClimaIPCC
2

PODCAST
bit.ly/PBRpodcasts
Desigualdade, resfriamento, polinização
Os impactos da pandemia na educação
brasileira, o papel dos aerossóis na
regulação do clima global e os serviços
de aluguel de abelhas oferecidos por
uma startup
bit.ly/igPBR09out21
COMENTÁRIOS cartas@fapesp.br
CONTATOS

revistapesquisa.fapesp.br
Diversidade na academia em desistir da pesquisa”, disponível apenas no
redacao@fapesp.br
Fiquei muito feliz de ter participado da belís- site da revista). Embora atue em outra área,
PesquisaFapesp sima reportagem de capa da revista Pesquisa penso como ela.
PesquisaFapesp
FAPESP sobre as ações afirmativas (“A fór- Paulo Henrique de Sousa
mula da equidade”, edição 308). A leitura é
pesquisa_fapesp imprescindível. Vídeos
@pesquisa_fapesp Adriano Senkevics O vídeo “Perfil: Guido Levi – vacinas” é per-
feito. Eu o utilizo com os meus alunos.
PesquisaFAPESP
Qualidade e quantidade Carol Scarpel
pesquisafapesp Gostei da reportagem “Novas réguas para me-
dir a qualidade” (edição 307). Valorizo muito Há reflexões interessantes em “Como o cres-
cartas@fapesp.br
meu tempo em sala de aula e na extensão. cimento dos evangélicos está transformando
R. Joaquim Antunes, 727
10º andar
Rosimere Santana a sociedade brasileira”.
CEP 05415-012 Rodrigo Flores
São Paulo, SP Gás carbônico
Será esse o caminho correto para o futuro Excelente “O que desmatamento tem a ver
do meio ambiente (“Uma usina para extrair com novas pandemias?”. Usarei em aula no
CO2 do ar”, edição 308)? Ou é apenas mais ensino fundamental.
ASSINATURAS,
RENOVAÇÃO E MUDANÇA
um modelo de negócio rentável para quem Leticia dos Santos 

DE ENDEREÇO fabrica e, no final, não resolve o problema?


Envie um e-mail para Gerenciar efetivamente o uso do solo, isso é Correções
assinaturaspesquisa@fapesp.br algo palpável. O teatro clássico grego era escrito em verso e
Carlos Antonio da Silva Junior não em prosa, como foi publicado na reporta-
gem “Arqueologia da mentalidade” (edição 308).
PARA ANUNCIAR  Não sairia mais barato reflorestar as florestas
Contate: Paula Iliadis 
do velho continente? Na reportagem “Elétricos movidos a etanol”
E-mail:
publicidade@fapesp.br Eliseu Moura (edição 308), a explicação correta sobre o
funcionamento com célula a combustível é:
Carlos Joly “A vantagem do novo sistema é que ele não
EDIÇÕES ANTERIORES Devemos conservar, salvar, estudar e restau- demanda hidrogênio puro, como ocorre no
Preço atual de capa rar mais do que nunca, como diz Carlos Joly modelo tradicional, e está apto a trabalhar
acrescido do custo em entrevista (“É tempo de biodiversidade”, com o etanol, que no processo se decompõe
de postagem.
edição 308). em moléculas de hidrogênio e de dióxido de
Peça pelo e-mail:
clair@fapesp.br
Victor Roberti Vera Monge carbono, estas últimas liberadas no ambiente”.

Pesquisa na quarentena
LICENCIAMENTO Relato impressionante o da bióloga Deyse Sua opinião é bem-vinda. As mensagens poderão ser resumidas
DE CONTEÚDO Ferreira (“Houve momentos em que pensei por motivo de espaço e clareza.
Adquira os direitos de
reprodução de textos
e imagens de Pesquisa FAPESP. Reportagens que você lê no site de Pesquisa FAPESP bit.ly/igCortesCiencia21
E-mail: Parlamentares promovem novos cortes nos recursos para a ciência e reduzem o
mpiliadis@fapesp.br orçamento suplementar da área para R$ 89,7 milhões
PEDRO FRANÇA / AGÊNCIA SENADO

Fachada do Congresso
Nacional, em Brasília

6 | NOVEMBRO DE 2021
FUNDAÇÃO DE AMPARO À PESQUISA DO ESTADO DE SÃO PAULO
CARTA DA EDITORA
PRESIDENTE
Marco Antonio Zago

VICE-PRESIDENTE
Ronaldo Aloise Pilli

CONSELHO SUPERIOR

Carmino Antonio de Souza, Helena Bonciani Nader, Ignácio


Maria Poveda Velasco, João Fernando Gomes de Oliveira,
Liedi Legi Bariani Bernucci, Mayana Zatz, Mozart Neves

Café, vinho, açaí


Ramos, Pedro Luiz Barreiros Passos, Pedro Wongtschowski,
Vanderlan da Silva Bolzani

CONSELHO TÉCNICO-ADMINISTRATIVO

DIRETOR-PRESIDENTE
Carlos Américo Pacheco

DIRETOR CIENTÍFICO Alexandra Ozorio de Almeida | DIRETORA DE REDAÇÃO


Luiz Eugênio Mello

DIRETOR ADMINISTRATIVO
Fernando Menezes de Almeida

H
á muito tempo percebeu-se que gens dos rios em que se costuma manejar
ISSN 1519-8774 as características locais de solo e a palmeira do açaí.
COMITÊ CIENTÍFICO clima, aliadas a técnicas de cultivo Cortando o Pará de leste a oeste está a
Luiz Henrique Lopes dos Santos (Presidente),
Américo Martins Craveiro, Anamaria Aranha Camargo, Ana Maria e manufatura de determinados produtos rodovia Transamazônica, inaugurada há
Fonseca Almeida, Carlos Américo Pacheco, Catarina Segreti Porto,
Claudia Lúcia Mendes de Oliveira, Deisy das Graças de Souza, Douglas agrícolas ou alimentares, resultavam em quase 50 anos durante o governo militar,
Eduardo Zampieri, Eduardo de Senzi Zancul, Euclides de Mesquita
Neto, Fabio Kon, Francisco Rafael Martins Laurindo, João Luiz atributos singulares. Há registros que re- que propôs a sua construção para povoar
Filgueiras de Azevedo, José Roberto de França Arruda, José Roberto
Postali Parra, Leticia Veras Costa Lotufo, Lucio Angnes, Luciana montam ao século V a.C., como referências e interligar o Norte e o Nordeste às de-
Harumi Hashiba Maestrelli Horta, Mariana Cabral de Oliveira, Marco
Antonio Zago, Marie-Anne Van Sluys, Maria Julia Manso Alves, Marta ao vinho da ilha grega de Quios, conside- mais regiões do país. Lembrada como
Teresa da Silva Arretche, Paula Montero, Richard Charles Garratt,
Roberto Marcondes Cesar Júnior, Rui Monteiro de Barros Maciel, rado um artigo de luxo na Grécia Antiga. exemplo de “obra faraônica” do período, a
Sérgio Robles Reis Queiroz, Wagner Caradori do Amaral e Walter Colli

COORDENADOR CIENTÍFICO
Foi na Europa que nasceu e se desen- BR-230 não alcançou seus objetivos e teve
Luiz Henrique Lopes dos Santos volveu o conceito de indicação geográfi- custos ambientais, humanos e financeiros
DIRETORA DE REDAÇÃO
Alexandra Ozorio de Almeida
ca (IG), e a região tem mais de 3.200 IG altíssimos. Sem reduzir esse legado nega-
EDITOR-CHEFE que representam hoje um mercado muito tivo, o antropólogo Roberto Santos Júnior
Neldson Marcolin
valioso. Ao indicar que certos produtos chama a atenção para uma consequência
têm uma origem geográfica específica, da pouco conhecida: a rodovia permitiu a
EDITORES Fabrício Marques (Política C&T), Glenda Mezarobba
(Humanidades), Marcos Pivetta (Ciência), Yuri Vasconcelos

qual derivam determinadas qualidades, criação de comunidades bem organiza-


(Tecnologia), Carlos Fioravanti e Ricardo Zorzetto (Editores
especiais), Maria Guimarães (Site)

REPÓRTERES Christina Queiroz, Rodrigo de Oliveira Andrade características e uma reputação, cria-se das de pequenos agricultores. Em entre-
REDATORES Jayne Oliveira (Site) e Renata Oliveira uma ferramenta importante de marke- vista, o pesquisador do Museu Paraense
do Prado (Mídias Sociais)

ARTE Claudia Warrak (Editora),


ting, mas também para políticas públicas. Emílio Goeldi conta que esses núcleos
Júlia Cherem Rodrigues e Maria Cecilia Felli (Designers),
Alexandre Affonso (Editor de infografia), Felipe Braz (Designer digital)
Esse tipo de propriedade intelectual desenvolveram culturas agrícolas, como
FOTÓGRAFO Léo Ramos Chaves
tem seu arcabouço no acordo TRIPs, trata- a do cacau, de formas mais sustentáveis
BANCO DE IMAGENS Valter Rodrigues do internacional de 1994, aprovado no âm- do ponto de vista ambiental (página 82).
RÁDIO Sarah Caravieri (Produção do programa Pesquisa Brasil) bito da Organização Mundial do Comércio, Matemática é uma das áreas do conhe-
REVISÃO Alexandre Oliveira e Margô Negro e foi introduzido no Brasil dois anos de- cimento mais difíceis de cobrir da pers-
COLABORADORES Ana Paula Orlandi, Camilo Martins, Carla pois, com a Lei da Propriedade Industrial pectiva do jornalismo sobre ciência, seja
Zimmermann, Claudio de Moura Castro, Diego Viana, Domingos
Zaparolli, Irene Almeida, Rita Peruquetti, Sarah Schmidt, Sidnei
Santos de Oliveira, Sinésio Pires Ferreira, Suzel Tunes, Tiago
n° 9.279/96. Reportagem de capa desta pelos bloqueios e dificuldades de mui-
Jokura, Zé Vicente edição conta que a primeira IG brasilei- tas pessoas com esse campo de estudo,
REVISÃO TÉCNICA Adriana Valio, Claudia Mendes de Oliveira,
Douglas Zampieri, José Roberto Arruda, Francisco Laurindo, Luciana
ra foi reconhecida em 2002 – a produção ou por seu elevado nível de abstração e
Hashiba, Maria Beatriz Florenzano, Paulo Artaxo, Rafael Oliveira,
Ricardo Ribeiro Rodrigues, Walter Colli
de vinhos e espumantes no Vale dos Vi- complexidade. Por isso, diante de uma
MARKETING E PUBLICIDADE Paula Iliadis
nhedos, na serra Gaúcha. De lá para cá, já oportunidade como a da entrevista com
CIRCULAÇÃO Clair Marchetti (Gerente), Aparecida Fernandes
e Greice Foiani (Atendentes de assinaturas)
são 88 IG de alimentos, bebidas, artesa- a matemática Marilda Sotomayor (pági-
OPERAÇÕES Andressa Matias
SECRETÁRIA DA REDAÇÃO Ingrid Teodoro
nato, pedras ornamentais e até serviços na 28), aproveitamos para tentar trazer
(página 34). o mundo dos números para mais perto
É PROIBIDA A REPRODUÇÃO TOTAL OU PARCIAL
DE TEXTOS, FOTOS, ILUSTRAÇÕES E INFOGRÁFICOS Hoje consumido em todo o Brasil e ex- do nosso público. Sua especialidade é o
SEM PRÉVIA AUTORIZAÇÃO
TIRAGEM  30.300 exemplares portado para muitos países, o açaí ainda mercado de matching, um dos ramos da
IMPRESSÃO  Plural Indústria Gráfica
DISTRIBUIÇÃO  RAC Mídia Editora não tem indicação geográfica reconhe- teoria dos jogos no qual os jogadores se
GESTÃO ADMINISTRATIVA FUSP – FUNDAÇÃO DE APOIO cida. A enorme procura pelo saboroso comportam de maneira cooperativa, den-
À UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
PESQUISA FAPESP Rua Joaquim Antunes, no 727, fruto, energético e antioxidante, pode tro de determinadas regras. Com impor-
10o andar, CEP 05415-012, Pinheiros, São Paulo-SP
FAPESP Rua Pio XI, no 1.500, CEP 05468-901,
ter consequências negativas para o am- tantes aplicações, não é por acaso que a
Alto da Lapa, São Paulo-SP
biente, mostra reportagem à página 58. teoria dos matchings foi reconhecida com
SECRETARIA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO,
CIÊNCIA, TECNOLOGIA E INOVAÇÃO
Concentrada no Pará, sua produção inten- o Nobel de Economia em 2012 – com um
GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO
siva reduz a biodiversidade e os serviços dos agraciados, Alvin Roth, Sotomayor es-
ecossistêmicos prestados pelas florestas creveu um livro que considera o trabalho
de várzea, que são áreas alagáveis às mar- mais importante de sua carreira.

PESQUISA FAPESP 309 | 7


BOAS PRÁTICAS

Guerra U
m grupo de empresas de comunicação
científica divulgou em setembro um ma-
nual de boas práticas para ajudar seus

ao Photoshop editores a lidar com um tipo de má conduta às


vezes difícil de detectar: a alteração ou a dupli-
cação de imagens em artigos e trabalhos acadê-
Editoras científicas criam micos. O documento, disponível no repositório
manual para identificar OSF (osf.io/xp58v/), está recebendo sugestões
de aperfeiçoamento e deve ganhar uma versão
artigos com imagens adulteradas definitiva em dezembro.
ou duplicadas e combater O guia fornece orientações precisas para três
esse tipo de má conduta diferentes níveis de manipulação. O nível 1 se
refere a fotos que foram duplicadas ou levemen-
te modificadas, mas sem que as mudanças in-
fluenciem as conclusões do trabalho. Isso inclui,
por exemplo, ajustes no contraste ou nas cores
para realçar algum achado ou a divulgação de
uma imagem duas vezes no mesmo manuscri-
to para ilustrar experimentos diferentes. Se o
problema for descoberto antes da publicação
do artigo e os autores provarem que não agiram
de má-fé, recomenda-se que o editor da revista
aceite uma versão corrigida das imagens e dê o
caso por encerrado. Todos os coautores do tra-
balho, contudo, devem ser informados sobre a
retificação e precisam concordar com ela. Caso
a alteração seja identificada após a publicação

8 | NOVEMBRO DE 2021
e não for mal-intencionada, o artigo deve rece­ com as conclusões das instituições”, disse Bik
ber uma correção. à revista Nature. “As regras podem não evitar
O nível 2 contempla modificações significa- a má conduta, mas estabelecem um escrutínio
tivas, em desacordo com padrões normalmente rigoroso tanto na fase de apresentação do artigo
aceitáveis, que alterem características críticas quanto após a publicação.”
de uma foto. Um exemplo é a inversão ou re- O guia propõe que acusações robustas sobre
posicionamento de “bandas” em resultados de adulterações sejam investigadas mesmo quando
testes de western blot, método usado na biolo- feitas de forma anônima – e diz que é dever dos
gia molecular para identificar proteínas. Nesse editores proteger a identidade dos denuncian-
caso, a instituição de origem dos autores deve tes. É comum que as suspeitas sejam informa-
ser notificada para investigar uma possível má das em plataformas de discussão de trabalhos
conduta e toda troca de mensagens e de infor- científicos da internet e até em redes sociais.
mações entre autores e editor deverá ficar re- Os editores podem a seu juízo responder a es-
gistrada no arquivo da revisão por pares. Se os ses comentários.
responsáveis conseguirem mostrar que se tra-

A
tou de erro, e não de fraude, os editores podem alteração e a duplicação de imagens são
aceitar uma versão corrigida da imagem. Caso problemas recorrentes na rotina dos
o trabalho já esteja publicado, a solução pode editores de revistas científicas. Uma
ser retratá-lo e republicá-lo, ou simplesmente análise manual realizada por Elizabeth Bik em
retratá-lo, se a manipulação for injustificada. 2016 vasculhou mais de 20 mil artigos da área
O nível 3 trata de artigos com modificações biomédica e encontrou algum tipo de adulte-
em várias fotos, por meio de ferramentas de ração em 4% dos papers (ver Pesquisa FAPESP
edição, em que a intenção de adulterar seja pa- nº 245). Esse tipo de fraude ainda depende, em
tente e os dados originais não estejam mais re- boa medida, do olhar humano para ser detec-
presentados devido a recortes seletivos. A me- tado, embora já estejam sendo desenvolvidos
nos que os pesquisadores tenham excelentes softwares que podem auxiliar nesse trabalho.
justificativas, o manuscrito deve ser rejeitado Os casos de má conduta envolvendo imagens
e as instituições dos autores informadas para falsificadas podem ser sofisticados e nem sem-
que uma investigação seja aberta. Se a fraude pre dizem respeito a mudanças aberrantes. Um
for descoberta após a publicação, o paper deve dos principais desafios dos editores atualmente
ser alvo de uma “expressão de preocupação”, é identificar manuscritos produzidos por “fá-
uma sinalização de que pode conter erros e está bricas de papers”, serviços ilegais que vendem
sendo reavaliado, e posteriormente retratado. trabalhos científicos sob demanda, frequen-
O documento foi produzido por representan- temente com dados falsificados (ver Pesqui-
tes das editoras Elsevier, Wiley, Springer Nature, sa FAPESP nº 296). Um grupo de pesquisado-
Embo Press e Taylor & Francis, das coleções de res recentemente identificou 400 artigos com
periódicos Jama e Cell e da American Chemi- imagens tão semelhantes que sugeriam uma
cal Society, sob coordenação da associação de origem comum – uma fábrica de papers. Pa-
editoras científicas STM, com sede no Reino ra detectar esse tipo de fraude, o olhar huma-
Unido. Ele oferece orientações mais detalhadas no não é suficiente. É preciso analisar todas as
do que as diretrizes criadas em 2018 pelo Com- imagens de um artigo de forma automatizada
mittee on Publication Ethics (Cope), fórum de e compará-las com bancos de dados de outros
editores sediado no Reino Unido que discute trabalhos. “Existem maneiras de realizar essa
temas relacionados à integridade na ciência. triagem de forma sistemática e universal utili-
O trabalho do Cope estabelece um fluxograma zando, por exemplo, métodos algorítmicos que
a ser seguido pelos editores, um passo a passo agora estão disponíveis on-line e precisam ser
sobre o que fazer quando surge uma suspeita. verificados quanto à eficácia, comparando-os
Mas não distingue categorias de manipulação. à triagem visual”, escreveu Mike Rossner, ex-
A microbiologista Elizabeth Bik, uma es- -editor do Journal of Cell Biology, no espaço
pecialista na identificação de adulterações de para propostas de aperfeiçoamento do guia de
imagens científicas, vê avanços no novo manual. boas práticas. Rossner é presidente da Image
Segundo ela, não é incomum que as instituições Data Integrity, empresa norte-americana que
a que os autores são vinculados demorem a ana- presta consultoria a instituições de pesquisa,
PAVEL ABRAMOV / GETTY IMAGES

lisar queixas, isentem os pesquisadores de culpa agências de fomento e revistas científicas sobre
mesmo quando a falsificação é clara ou deixem manipulação de fotos em estudos de ciências
de informar os editores sobre os resultados de biomédicas (ver Pesquisa FAPESP nº 287). “O
investigações internas. “As recomendações afir- grupo de trabalho das editoras poderia consi-
mam que os periódicos podem tomar medidas derar a formulação de recomendações para esse
por conta própria, inclusive em discordância processo de triagem.” n Fabrício Marques

PESQUISA FAPESP 309 | 9


Corrida para informar achados de ensaios clínicos

C
omeçam a vigorar em 31 de ja- cunas no registro de testes de medica- A evolução, contudo, não é homogê-
neiro de 2022 novas regras pa- mentos. Juntas, elas forneceram recen- nea entre todos os membros do bloco.
ra divulgação de resultados de temente os resultados de 641 testes, o A Itália e os Países Baixos destoam pe-
ensaios clínicos na União Europeia. As equivalente a 28% dos dados em atraso. lo atraso em cumprir as novas regras.
universidades e instituições de pesquisa A Universidade Médica de Viena, na Áus- Dados recentes mostram que 90% dos
envolvidas em testes de novos medica- tria, lidera em número de ensaios infor- ensaios holandeses e 83% dos italianos
mentos serão obrigadas a declarar as mados à base de dados da União Euro- aprovados até 2015 não têm ainda resul-
conclusões dos experimentos no máxi- peia: 198 no total. Em termos relativos, tados divulgados. As duas nações abri-
mo 12 meses após o término do traba- divulgou 96% dos dados que devia. Em gam cinco instituições que não fizeram
lho, no caso de fármacos para adultos, seguida, aparecem o Charité, hospital nenhum progresso até agora: nos Países
e em até seis meses, quando se tratar universitário vinculado às universidades Baixos, são as universidades de Gro-
de remédios pediátricos. Para avaliar Humboldt e Livre de Berlim, na capital ningen e Leiden, e na Itália, o Instituto
até que ponto os pesquisadores estão se alemã, com 81% das lacunas preenchidas; Nacional do Câncer, em Milão, e as po-
preparando para a mudança, a biblioteca o Hospital Universitário de Odense, na liclínicas de Sant’Orsola-Malpighi, em
Cochrane da Áustria e as organizações Dinamarca, com 80%; e a Universidade Bolonha, e Gemelli, em Roma. A divul-
não governamentais TranspariMED e Católica de Leuven, na Bélgica, com 69%. gação do relatório produziu efeitos. Um
Health Action International analisaram “É animador que tantas instituições euro- dia após sua divulgação, a policlínica
a transparência de ensaios clínicos de peias proeminentes, cada qual responsá- de Bolonha, que é o maior hospital da
26 grandes universidades e hospitais vel por mais de uma centena de estudos Itália, e o hospital oncológico de Milão
de pesquisa europeus e publicaram um de novas drogas, estejam limpando suas admitiram o problema e anunciaram que
relatório sobre o seu desempenho. pendências”, disse um dos autores do vão solucioná-lo o mais rapidamente
A conclusão foi bastante positiva. Vinte relatório, o cientista político alemão Till possível. Quem não cumprir as regras
instituições se destacaram pelo empenho Bruckner, fundador da TranspariMED, de estará sujeito a sanções de órgãos regu-
em resolver pendências e preencher la- acordo com o site da organização. latórios europeus.

Uma coleção de artigos retratados

U
m artigo sobre brócolis e seus benefícios à saúde foi
retratado pela revista Mini-reviews in Medicinal Che-
mistry, 12 anos após sua publicação. Não que as van-
tagens do vegetal estejam sendo reavaliadas. O problema
do paper estava nas práticas de seu autor, o médico indiano
radicado nos Estados Unidos Dipak Kumar Das (1947-2013).
Ele foi diretor do Centro de Pesquisa Cardiovascular da Uni-
versidade de Connecticut e já teve 22 artigos retratados por
fabricação de dados, falsificação de imagens, atribuição irre-
gular de autoria, autoplágio e desrespeito às normas éticas
de pesquisa. O trabalho sobre brócolis foi invalidado porque
trazia em suas referências outros papers de Das que haviam
sido retratados nos últimos anos.
Pesquisador prolífico, Das escreveu mais de 500 artigos,
sendo 117 deles sobre o resveratrol, um ingrediente do vinho
tinto com efeitos antioxidantes. Em 2008, ele foi alvo de uma
denúncia anônima que levou a Universidade de Connecticut
a investigar sua produção científica. Acabou demitido da
instituição em 2012, quando uma comissão identificou 145
exemplos de fabricação e falsificação de dados e imagens em
26 artigos publicados pelo autor em 11 revistas científicas. No
ano seguinte, anunciou que entraria com um processo contra
a universidade por difamação, pedindo uma indenização de
US$ 35 milhões, mas morreu antes que o caso fosse levado
à Justiça. As fraudes não chegaram a macular o campo de
pesquisa sobre o resveratrol, já que Das estudava aspectos
secundários do composto.

10 | NOVEMBRO DE 2021
DADOS Índice de Especialização

Uma forma de aferir em que medida determinado país ou Por exemplo, em 2020, do total de 68.401 publicações científicas1
região privilegia alguma área do conhecimento em suas do Brasil, 18.246 foram na área das ciências da saúde. A relação
publicações científicas é utilizar o Índice de Especialização entre esses valores corresponde a 0,267. Para o total mundial,
(IE). O IE corresponde à razão entre a fração das publicações obteve-se a relação equivalente de 0,255. Logo, o IE da área de
de certa região numa área do conhecimento sobre ciências da saúde para o Brasil, em 2020, foi de 1,05 (resultado de
o seu total e a fração do total mundial das publicações 0,267/0,255). Ou seja, a produção científica brasileira é pouco
naquela área em relação ao total de publicações do mundo mais concentrada nessa área do que a média mundial

ÍNDICE DE ESPECIALIZAÇÃO DAS PUBLICAÇÕES


CIENTÍFICAS NAS ÁREAS DO CONHECIMENTO Ciências da Terra/
Total mundial (1,0), Brasil, São Paulo e regiões matemática

escolhidas – 2020 1,5

Mundo = 1,00 OCDE Ciências


Interdisciplinar
Brasil Brics, menos Brasil biológicas
São Paulo ALC, menos Brasil
1,0

Ciências da Terra/
matemática
3,0 Ciências Linguística, 0,5
Interdisciplinar biológicas
2,5 linguagem
2,0 e artes Engenharias
1,5
Linguística,
linguagem 1,0 0,0
Engenharias
e artes
0,5

0,0

Ciências
humanas Ciências
da saúde Ciências Ciências
humanas da saúde

Ciências Ciências
sociais agrícolas
aplicadas

Ciências sociais Ciências


aplicadas agrícolas

Os gráficos acima Como se vê, tanto no Em contraste, a área O Brasil e São Paulo Nas ciências da Terra
apresentam os IE nas Brasil como em São Paulo, com menores IE, tanto ainda apresentam e matemática e nas
nove áreas do a área das ciências para o Brasil como para valores acima de 1 para engenharias, tanto
conhecimento da agrícolas se destaca, pois São Paulo, é a de ciências biológicas, tal Brasil quanto São Paulo
FAPESP2 para o Brasil, seus respectivos valores linguística, linguagem e como o conjunto dos apresentaram IE
São Paulo e diferentes (2,88 e 2,42) situam-se artes. Com IE de 0,25 países da América inferiores a 1, em
agrupamentos de em patamares muito e 0,21, respectivamente, Latina e Caribe, exceto contraste com os demais
países3. O IE para o total superiores aos dos demais a presença relativa Brasil. Também merece grupos e, sobretudo,
mundial será sempre agrupamentos de países de publicações nessa menção o IE de São com o do Brics,
igual a 1, em todas as selecionados. O que mais área é muito inferior Paulo para ciências da destaque dessas áreas
áreas, compondo se aproxima deles é o da à registrada nos outros saúde (1,29), superando
a poligonal regular América Latina e Caribe, grupos de países, salvo os do Brasil (1,05) e dos
em linha tracejada nos exceto Brasil, que, ainda o do Brics sem Brasil demais grupos de países
dois gráficos assim, não chega a 2 selecionados

NOTAS (1) PUBLICAÇÕES INDEXADAS DO WEB OF SCIENCE/CLARIVATE, INCLUÍDAS NA PLATAFORMA INCITES/CLARIVATE, DOS TIPOS ARTICLE, PROCEEDINGS PAPER E REVIEW (2) GRANDES ÁREAS FAPESP: 1. CIÊNCIAS DA TERRA/
MATEMÁTICA; 2. CIÊNCIAS BIOLÓGICAS; 3. ENGENHARIAS; 4. CIÊNCIAS DA SAÚDE; 5. CIÊNCIAS AGRÍCOLAS; 6. CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS; 7. CIÊNCIAS HUMANAS; 8. LINGUÍSTICA, LINGUAGEM E ARTES; E 9. INTERDISCIPLINAR
(3) OS AGRUPAMENTOS DE PAÍSES ADOTADOS FORAM: DA OCDE, BRICS, EXCETO BRASIL, E AMÉRICA LATINA E CARIBE (ALC), EXCETO BRASIL. OS PAÍSES DO GRUPO BRICS SÃO: BRASIL, RÚSSIA, ÍNDIA, CHINA E ÁFRICA DO SUL. OS DA
ALC CORRESPONDEM AOS 33 PAÍSES LISTADOS NA REGIÃO PELA ONU. HTTPS://WWW.CEPAL.ORG/EN/ESTADOS-MIEMBROS
FONTES INCITES/WEB OF SCIENCE/CLARIVATE, DADOS EXTRAÍDOS EM SETEMBRO/2021

PESQUISA FAPESP 309 | 11


NOTAS

Presença humana nas Américas há 23 mil anos


Pegadas fossilizadas encontradas no Parque Nacional White Sands, no estado do Novo México,
sul dos Estados Unidos, são uma das evidências mais importantes de que os seres humanos
teriam começado a ocupar a América do Norte há bem mais tempo do que se defendeu por
décadas. Descobertas em 2009, as pegadas se espalham por mais de 300 quilômetros
quadrados. Escavações feitas pela equipe de Matthew Bennett, da Universidade de
Bournemouth, no Reino Unido, e Daniel Odess, do Serviço Nacional de Parques dos Estados
Unidos, identificaram sementes da gramínea Ruppia cirrhosa em camadas de sedimento situadas
acima e abaixo das pegadas. A datação das sementes indicou idades variando de 23 mil a
21 mil anos (Science, 24 de setembro). Esses valores sugerem que os seres humanos teriam
alcançado a região ainda durante o último máximo glacial – entre 33 mil e 15 mil anos atrás,
quando geleiras cobriram até 25% dos continentes – e permanecido ali por quase dois milênios.
Por muito tempo, artefatos de pedra de 13 mil anos atrás encontrados em Clovis, também no
Novo México, serviram de base para arqueólogos afirmarem que os seres humanos só teriam 2

se disseminado pelo continente bem mais tarde, embora haja indícios mais recentes, alguns Pesquisador realiza
o mapeamento de um
considerados questionáveis, da presença de Homo sapiens nas Américas há pelo menos
dos locais no qual foram
26 mil anos. “White Sands fornece a primeira evidência inequívoca da presença humana nas encontradas pegadas
Américas durante o último máximo glacial”, disse Odess ao jornal The New York Times. em White Sands

12 | NOVEMBRO DE 2021
Os Lavoisier Mantido no ritmo atual,
o desmatamento deve

transformados reduzir a umidade do ar


na Amazônia

Usando técnicas de imagem que revelam camadas


ocultas de pinturas em quadros antigos, a pesquisadora
Silvia Centeno e seus colaboradores do Museu de Arte
Metropolitan, em Nova York, Estados Unidos,
descobriram diferenças importantes na composição
original do retrato icônico do cientista francês Antoine
Lavoisier (1743-1794) com sua esposa, pintado por
Jacques-Louis David (1748-1825). A análise revelou
que os instrumentos científicos sobre a mesa em
destaque na obra acabada não constavam no plano
original desenhado a carvão sobre tela (Heritage
4
Science, 30 de agosto). O fato sugere que Lavoisier não
posou para David enquanto arrumava os equipamentos Amazônia, uma savana
que usou no desenvolvimento da química moderna no
século XVIII, mas provavelmente enquanto se ocupava inóspita até 2100
do trabalho de coletor de impostos para o rei Luís XVI.
FOTOS  1 E 2 MATTHEW BENNETT / UNIVERSIDADE DE BOURNEMOUTH  3 MUSEU DE ARTE METROPOLITAN E CENTENO, S. A. ET AL. HERITAGE SCIENCE. 2021  4 LUOMAN / GETTY IMAGES  5 LÉO RAMOS CHAVES

Na primeira versão, Marie-Anne Pierrette Paulze- Retrato de Uma análise de modelos para o futuro do clima da
Lavoisier (1758-1836) usava um chapéu luxuoso. Antoine-Laurant Amazônia até o fim do século concluiu que os efeitos
Lavoisier e sua
Os pesquisadores cogitam que as modificações combinados do desmatamento e do aquecimento
esposa, de 1788,
foram realizadas pelo pintor na tentativa de salvar a e o projeto inicial global podem aumentar as temperaturas da região
reputação do casal, alvo dos revolucionários jacobinos. (à dir.) Norte para além do suportável pela população (Com-

3
munications Earth and Environment, 1º de outubro).
Beatriz Alves de Oliveira, da Fundação Oswaldo Cruz,
no Piauí, e seus colaboradores investigaram o efeito
na Amazônia de dois cenários para o clima global
desenvolvidos pelo Painel Intergovernamental sobre
Mudanças Climáticas (IPCC). As simulações combi-
naram os cenários com os efeitos do desmatamento
que, se continuar no ritmo atual, deve reduzir a umi-
dade do ar da região e transformar a floresta em sa-
vana. Segundo as projeções do estudo, os efeitos
podem expor de 6 a 11 milhões de habitantes da região
Norte a uma rotina diária de sensação térmica à som-
bra de 37 °C a 41 °C. Temperaturas superiores a 34 °C
estão associadas a um risco maior de morte.

Nova safra de pesquisadores eméritos do CNPq


Dez pesquisadores foram agraciados este ano recebeu a honraria na área de ecossistemas e
com o título de pesquisador emérito pelo a química Adelaide Faljoni-Alario, da Universidade
Conselho Nacional de Desenvolvimento Federal do ABC (UFABC), em bioquímica. Ana
Científico e Tecnológico (CNPq) pelo conjunto Maria Giulietti Harley e Erney Plessmann de
de suas obras científico-tecnológicas e seu Camargo, ambos da USP, foram os homenageados,
renome na comunidade científica. A distinção respectivamente, em botânica e parasitologia.
foi conferida ao engenheiro eletrônico Carlos O título na área de antropologia foi para Josildeth
Américo Pacheco, diretor-presidente do Gomes Consorte, da Pontifícia Universidade
Conselho Técnico-Administrativo (CTA) da Católica de São Paulo (PUC-SP), e da educação
FAPESP e professor da Universidade Estadual de para Magda Becker Soares, da Universidade
Campinas (Unicamp), e ao engenheiro químico Federal de Minas Gerais (UFMG). O engenheiro
e matemático Guilherme Ary Plonski, diretor civil Djairo Guedes Figueiredo e o químico
do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da Fernando Galembeck, professores aposentados
Universidade de São Paulo (USP). O ecólogo José da Unicamp, tornaram-se pesquisadores eméritos Pacheco, professor da Unicamp e
Galizia Tundisi, professor aposentado da USP, em matemática e química. diretor-presidente do CTA da FAPESP

PESQUISA FAPESP 309 | 13


A antropóloga Maria Manuela Ligeti Carneiro África Ocidental, a antropóloga participou de
da Cunha, professora titular aposentada da debates políticos em prol dos direitos de povos
Universidade de São Paulo (USP) e emérita da indígenas. Em 1986 fundou, na USP, o Núcleo
Universidade de Chicago, nos Estados Unidos, de História Indígena e do Indigenismo. De 2014
foi laureada com o Prêmio Almirante Álvaro a 2017, elaborou a pedido do Ministério da
Alberto para a Ciência e Tecnologia, na Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI) um
categoria Ciências Humanas e Sociais, Letras programa sobre conhecimento indígena
e Artes. Ela é autora de estudos de referência e colaborou com a produção de um diagnóstico
sobre direito indigenista, história indígena, sobre as contribuições dos povos indígenas
1 escravatura e teoria antropológica. Graduou-se e comunidades locais à conservação da
em matemática pela Faculdade de Ciências de biodiversidade e recuperação de solos
Prêmio para a Paris em 1967 e em 1976 defendeu doutorado no Brasil. O prêmio é concedido pelo MCTI,

estudiosa dos em ciências sociais na Universidade Estadual de o Conselho Nacional de Desenvolvimento


Campinas (Unicamp), na qual também lecionou. Científico e Tecnológico (CNPq), a Fundação
indígenas Com pesquisas realizadas na Amazônia e na Conrado Wessel (FCW) e a Marinha do Brasil.

Oásis de plantas do Protozoário fóssil em


gênero Tillandsia
encontrados em regiões
hiperáridas do Peru
âmbar brasileiro

FOTOS 1 MARIA LEONOR DE CALASANS  2 HUDSON YONJOY / HUARANGO NATURE  3 THIAGO DA SILVA PAIVA / UFRJ
Pesquisadores da Universidade Federal
do Rio de Janeiro (UFRJ) descreveram
uma nova espécie extinta de protozoário:
Palaeohypothrix bahiensis (Scientific Reports,
27 de setembro). Essa é a primeira espécie
a ser descoberta a partir de um fóssil
microscópico preservado em âmbar no
Brasil, onde é raro encontrar esse material.
Formado a partir de resina vegetal
solidificada, o âmbar é conhecido por
aprisionar e preservar pequenos organismos.
O zoólogo Thiago da Silva Paiva e o geólogo
Ismar de Souza Carvalho, ambos da UFRJ,
identificaram os remanescentes das
estruturas microscópicas do organismo
unicelular (abaixo) no âmbar coletado de
uma formação rochosa próxima à cidade de
2 Salvador, na Bahia. Concluíram se tratar
de uma espécie provavelmente extinta de
Oásis ameaçados da América do Sul protozoário ciliado, que teria habitado
rios e lagos de água doce da região entre
Ao longo de uma faixa de 3 mil quilômetros de extensão em uma das regiões mais 145 milhões e 125 milhões de anos atrás.
secas do planeta, entre o Pacífico e a cordilheira dos Andes, cresce uma vegetação
3
peculiar. São os oásis nebulares de deserto, compostos por campos de líquens, ar-
bustos e herbáceas – algumas dessas plantas florescem uma vez a cada 30 anos.
Alimentados quase exclusivamente pela água contida na neblina vinda do oceano,
esses oásis ocupam uma área de 17 mil quilômetros quadrados entre o norte do Peru,
onde são chamados de lomas, e a zona central do Chile, país no qual recebem o nome
de oasis de niebla. Analisando imagens de satélite das últimas duas décadas, pesqui-
sadores do Peru, do Chile e do Reino Unido concluíram recentemente o mapeamen-
to desses oásis, que se distribuem por uma área ao menos quatro vezes maior do
que a estimada anteriormente (International Journal of Applied Earth Observation and
Geoinformation, 7 de setembro). Liderado por Justin Moat, do Jardim Botânico Real
de Kew, na Inglaterra, o grupo calcula que esse ecossistema sul-americano abrigue
1.200 espécies de plantas exclusivas. Com apenas 4% de sua área protegida, os
oásis nebulares estão ameaçados pelo avanço das cidades, pela mineração, pelo
aumento da poluição do ar e por passeios off-road.

14 | NOVEMBRO DE 2021
NOBEL
3

Tudo como antes


Não foi neste ano que a Academia Real de Ciências da Suécia reconheceu com o Prêmio
Nobel os trabalhos que levaram ao desenvolvimento de vacinas à base de RNA mensa-
geiro. Essa era uma aposta de vários pesquisadores porque as vacinas contra a Covid-19
baseadas nessa tecnologia salvaram centenas de milhares de vidas. O comitê que
concede a láurea criada pelo químico, inventor e filantropo sueco Alfred Nobel (1833-
1896) parece ter seguido a tradição e premiado trabalhos de áreas consolidadas há
mais tempo. Um ano após uma edição mais equilibrada, com quatro mulheres laureadas,
a premiação de 2021 reassumiu um padrão antigo. Dos 13 premiados, só um era mulher.
Desde 1901, apenas 58 (6,2%) dos 943 indivíduos que receberam o Nobel são mulhe-
res. O prêmio em cada área tem o valor de 10 milhões de coroas suecas (R$ 6,3 milhões).

1 2

LITERATURA

Sobre os efeitos do
FOTOS 1 SCRIPPS RESEARCH  2 UNIVERSIDADE DA CALIFÓRNIA, SÃO FRANCISCO (UCSF)  3 TOLGA AKMEN / AFP VIA GETTY IMAGES  4 UNIVERSIDADE DE PRINCETON  5 DAVID AUSSERHOFER / MPG

colonialismo
Patapoutian O Nobel de Literatura de 2021 foi concedido
(à esq.) e Julius a um escritor africano, negro, de origem
MEDICINA muçulmana: Abdulrazak Gurnah, 73. Ele
nasceu na ilha de Zanzibar, na Tanzânia, e
A interface entre a pele e o mundo vive no Reino Unido desde os anos 1960,
quando deixou sua terra natal por causa da
A identificação de mecanismos associados à capacidade humana de sentir perseguição aos árabes muçulmanos. Publi-
a temperatura e o toque rendeu o Prêmio Nobel de Fisiologia ou Medicina de 2021 cou 10 romances, além de contos e crônicas.
ao bioquímico e biólogo molecular norte-americano David Julius, 65, e ao biólogo Seus textos dialogam com os repertórios das
molecular armênio-americano Ardem Patapoutian, 54. Em 1997, Julius, da Universidade literaturas árabe e suaíli. O exílio e a viagem
da Califórnia em São Francisco, nos Estados Unidos, identificou o gene codificador constituem temas centrais de sua obra, nun-
da proteína TRPV1, que reage à capsaicina (composto responsável pelo ardor da ca traduzida no Brasil. O comitê do Nobel
pimenta-malagueta) e funciona como um sensor de calor na superfície dos neurônios justificou a escolha por sua “rigorosa e com-
sensitivos. Patapoutian, do Instituto de Pesquisa Scripps em La Jolla, também na passiva investigação sobre os efeitos do
Califórnia, descobriu o gene responsável pela produção da Piezo1, proteína que torna colonialismo, os destinos dos refugiados e
as células sensíveis à pressão exercida sobre sua membrana. as lacunas entre culturas e continentes”.

QUÍMICA

Catálise mais sustentável


4 5
O alemão Benjamin List, do Instituto Max Planck, na Alemanha, e o britânico David
MacMillan, da Universidade de Princeton, nos Estados Unidos, receberam o Nobel de
Química deste ano por terem desenvolvido um método que facilita a produção de
compostos para as indústrias farmacêutica e agroquímica: a organocatálise assimétrica.
List e MacMillan, ambos de 53 anos, estudavam a modificação da velocidade de uma
reação química (catálise) por meio de uma substância que pode ser recuperada ao
final e as substâncias (catalisadores) usadas para acelerar as reações. Nos anos 2000,
eles ampliaram o conceito de catalisadores ao desenvolver um novo tipo de
catálise por meio de moléculas orgânicas. Até então só se conheciam dois tipos de
catalisadores: compostos contendo metais e as enzimas. Usados na produção de
medicamentos, os organocatalisadores são estáveis, de baixo custo e de baixa toxicidade. MacMillan (à esq.) e List

PESQUISA FAPESP 309 | 15


1

FÍSICA

Complexidade e previsão climática


O Nobel de Física de 2021 foi para três pesquisadores que ajudaram a
compreender e a prever o comportamento dos chamados sistemas complexos,
Parisi (ao lado),
formados por muitas componentes que podem interagir de modo aleatório, como Hasselmann (abaixo, à esq.)
o clima do planeta. O climatologista japonês Syukuro Manabe, da Universidade de e Manabe
Princeton, nos Estados Unidos, e o físico e oceanógrafo alemão Klaus Hasselmann,
do Instituto Max Planck, na Alemanha, ambos de 90 anos, compartilharão
metade do prêmio por suas contribuições para a compreensão de como funciona
o transporte de massas de ar na atmosfera, o aumento da temperatura próximo
à superfície terrestre e a influência da ação humana sobre esses fenômenos. Aos
73 anos, o físico italiano Giorgio Parisi, da Universidade de Roma, receberá a outra
metade. Seu trabalho teórico ajudou a identificar padrões de regularidade em
materiais e fenômenos desordenados e aleatórios, importantes em muitas áreas.

4 5

5 WIKIMEDIA COMMONS  6 ROXANNE MAKASDJIAN E ALAN TOTH / UNIVERSIDADE DA CALIFÓRNIA, BERKELEY  7 ANDREW BRODHEAD / UNIVERSIDADE DA CALIFÓRNIA, LOS ANGELES  8 WIKIMEDIA COMMONS
2 3

FOTOS 1 ALBERTO PIZZOLI / AFP VIA GETTY IMAGES  2 INSTITUTO MAX PLANCK DE METEOROLOGIA DE HAMBURGO  3 ACADEMIA REAL DE CIÊNCIAS DA SUÉCIA  4 DIA DIPASUPIL / GETTY IMAGES FOR CPJ 
ECONOMIA

A contribuição dos
experimentos naturais
O Prêmio de Ciências Econômicas em Memória de
Alfred Nobel de 2021, popularmente conhecido
como Prêmio Nobel de Economia, foi conferido a três
pesquisadores de instituições norte-americanas
por suas contribuições à economia do trabalho:
PAZ Ressa e Muratov o canadense David Card, o norte-americano Joshua
Angrist e o holandês Guido Imbens. A motivação
Em defesa da liberdade principal para a concessão do prêmio foi o uso da
metodologia dos experimentos naturais em economia.
de expressão Card, 65 anos, da Universidade da Califórnia em
Berkeley, levou a metade do prêmio por desenvolver
Em uma clara mensagem sobre a importância de experimentos naturais que mostraram que o aumento
uma imprensa livre para o fortalecimento das de- do salário mínimo não necessariamente ampliava
mocracias e a manutenção da paz entre as nações, o desemprego de trabalhadores com menor renda.
a Academia Real de Ciências da Suécia laureou os A outra metade do prêmio ficou com Angrist, 61 anos,
jornalistas Maria Ressa, das Filipinas, e Dmitry An- do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT),
dreyevich Muratov, da Rússia, com o Prêmio Nobel e Imbens, 58 anos, da Universidade Stanford, por
da Paz de 2021. Os dois criaram em seus países suas contribuições metodológicas para a análise de
veículos de comunicação independentes e irão relações de causa e efeito em experimentos naturais.
dividir igualmente o prêmio – ela é a única mulher
Card (à esq.), Imbens e Angrist
agraciada com o Nobel neste ano. “Não há demo-
cracia, nem frágil ou avançada, sem liberdade de
expressão”, destacou a advogada norueguesa
Berit Reiss-Anderson, presidente do Comitê do
Nobel, durante o anúncio do prêmio. De acordo
com a organização Repórteres sem Fronteiras (RSF),
Filipinas e Rússia são países em que o livre exercí-
cio do jornalismo profissional enfrenta restrições.
O país do Sudeste Asiático ocupa a 138ª posição
no Ranking Mundial da Liberdade de Imprensa. A
Rússia aparece no 150° lugar da lista.
6 7 8

16 | NOVEMBRO DE 2021
NOTAS DA PANDEMIA
2

Um antiviral
promissor
A empresa farmacêutica multinacional Merck,
Sharp & Dome (MSD) anunciou no início de
outubro que seu antiviral molnupiravir redu-
ziu praticamente pela metade a proporção
de hospitalizações e mortes por Covid-19 em
um ensaio clínico de fase 3 com pessoas com
quadro leve a moderado da infecção. No
Médico coleta amostra grupo tratado com a medicação, a doença
para teste de detecção do se agravou e exigiu a hospitalização de 28
coronavírus na Espanha
1 pessoas (7,3% de 385 participantes). A taxa
de internação foi de 14,1% entre os 377 indi-
Para evitar novas ondas sem lockdowns víduos que receberam placebo. Houve oito
mortes nesse grupo e nenhuma no outro. Em
Embora a situação da pandemia de Covid-19 esteja melhorando, ainda deve levar muito 11 de outubro, a MSD solicitou à FDA, a agên-
tempo para que a população mundial esteja imunizada ou a doença seja erradicada. cia federal de controle de medicamentos e
Diante desse cenário, um grupo de pesquisadores liderado pela física Viola Priesemann, alimentos dos Estados Unidos, uma autori-
do Instituto Max Planck, na Alemanha, avaliou o que seria necessário fazer para manter zação para uso emergencial do antiviral. A
o vírus sob controle sem a necessidade de seguidos lockdowns. Usando um novo mode- Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) informou
lo matemático, ela e seus colaboradores constataram que seria possível manter a doen- que coordenará a participação do Brasil em
ça sob controle (com o vírus presente na população, mas não se disseminando muito) um estudo para avaliar a eficácia do com-
com a adoção de restrições moderadas de isolamento social e um programa efetivo de posto em impedir a infecção pelo Sars-CoV-2
testagem de casos suspeitos e rastreamento de pessoas que tiveram contato com pos- e em evitar a transmissão do vírus. Ele será
síveis infectados. Desse modo, seria possível alcançar um equilíbrio estável com uma administrado a pessoas que foram expostas
taxa diária inferior a 10 novos casos por milhão de habitantes. Segundo os autores, essa ao causador da Covid-19, mas ainda não de-
estratégia permitiria uma redução quatro vezes maior no número de infecções e mortes senvolveram a doença. A Fiocruz negocia
do que apenas concentrar os esforços para evitar o colapso dos hospitais. para produzir o medicamento no país.

Vacinação em queda Mundo

Evolução da Mundo, exceto China


China
O ritmo da vacinação contra a Covid-19 vem diminuindo imunização no mundo Índia
no mundo desde 30 de agosto, quando a média móvel de
FOTOS 1 MORSA IMAGES / GETTY IMAGES  2 MSD  INFOGRÁFICO ALEXANDRE AFFONSO

Estados Unidos
50 milhões
aplicação dos últimos sete dias foi de 43,13 milhões de doses.
Em 15 de outubro, essa taxa já era 49% menor, com a
administração de 22,14 milhões de doses, segundo dados
40 milhões
do site Our World in Data, ligado à Universidade de Oxford,
no Reino Unido. O pico de vacinação foi observado em
Doses aplicadas por dia

27 de junho: 43,39 milhões de doses. Até meados de outubro, 30 milhões

mais da metade da população mundial (52,5%) não havia


recebido nenhuma dose de imunizante. Dos 6,65 bilhões
20 milhões
de doses até então administradas, apenas 2,7% tinham sido
aplicadas em pessoas vivendo em países de baixa renda.
No Brasil, depois de um início tímido, a média móvel de 10 milhões

vacinação tem se mantido acima de 1 milhão de doses por


dia desde junho. Do começo da campanha de imunização
0
até 24 de outubro, 153 milhões de brasileiros (71,8% da 2 dez. 24 fev. 4 jun. 24 jul. 17 out.
população) já haviam recebido ao menos uma dose e 109,7 2020 2021
milhões (51,4%) estavam com a vacinação completa. FONTE OURWORLDINDATA.ORG

PESQUISA FAPESP 309 | 17


COVID-19

9
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CONFIANÇA
NAS
VACINAS
ILUSTRAÇÃO E INFOGRÁFICO  ALEXANDRE AFFONSO
Estudos registram forte adesão dos
brasileiros à imunização contra a doença

Rodrigo de Oliveira Andrade


A
resistência ao uso de vacinas
contra a Covid-19 vem caindo no
país à medida que a imunização
avança, segundo um levantamento
feito pela Morning Consult, em-
presa internacional de inteligên-
cia de dados. Em abril, 20% dos
brasileiros entrevistados diziam
não pretender tomar a vacina –
ou estar em dúvida em relação à decisão. Esse
número despencou para 7% em outubro, com
um percentual de apenas 4% para os realmente
decididos a não se imunizar.
Desde abril a empresa realiza entrevistas em
diferentes países para monitorar as variações na
hesitação às vacinas contra o novo coronavírus
(Sars-CoV-2). A rodada mais recente aconte-
ceu entre 5 e 11 de outubro e contemplou cerca
de 50 mil pessoas de 15 nações. Os resultados
apontam para uma diminuição progressiva do
nível de resistência aos imunizantes em todos
os países, à exceção da Rússia. Ainda assim, em
vários lugares o índice de indivíduos reticentes
é maior que no Brasil. No Reino Unido, que saiu
à frente na imunização contra a Covid-19, 13%
da população não pretende ou está em dúvida
se irá se vacinar. Na Alemanha, são 17% e nos
Estados Unidos 27%. O desempenho norte-

DOSE -americano só não é pior que o da Rússia, onde

NO BRAÇO 85%
Vacinados
o índice chega a 43% da população.
A disposição relativamente maior dos bra-
sileiros em se imunizar já podia ser observada
A maioria dos antes mesmo do início da campanha de vacina-
brasileiros
quer vacina
8%
Têm planos
ção, conforme mostrou um estudo feito por pes-
quisadores atuando em diferentes instituições
contra a Covid-19, de se vacinar do Rio de Janeiro. Eles entrevistaram 173.178
independentemente pessoas de todas as regiões entre 22 e 29 de ja-
da origem dos neiro – antes, portanto, de a Agência Nacional
imunizantes* de Vigilância Sanitária (Anvisa) autorizar o uso
3%
Não têm certeza
emergencial da maioria das vacinas disponíveis

* Segundo levantamento

4%
realizado entre
5 e 11 de outubro

Não vão se vacinar


FONTE  MORNING CONSULT

PESQUISA FAPESP 309 | 19


no país. Verificaram que 154.928 (89,4%) pre- violações éticas envolvendo testes de medica-
tendiam se vacinar contra o novo coronavírus. mentos naquele continente.”
Dos 18.250 (10,5%) que apresentaram alguma Já em países desenvolvidos como Estados
resistência, apenas 4.401 estavam decididos Unidos, França e Reino Unido, a relutância
a não tomar a vacina. “O restante se mostrou estaria ligada a valores relacionados às liber-
relutante, mas aberto a mudar de ideia”, desta- dades individuais e à desconfiança em relação
ca a médica Daniella Cox Moore, do Instituto aos interesses da indústria farmacêutica. Em
Fernandes Figueira da Fundação Oswaldo Cruz 2019, um levantamento feito pelo Instituto Gal-
(Fiocruz), uma das autoras do estudo, publica- lup, por encomenda da organização britânica
do em setembro na revista Vaccine. Wellcome Trust, verificou que um terço da

A
população da França era cética em relação a
resistência às vacinas contra o vacinas em geral. Esse sentimento se intensi-
Sars-CoV-2 foi maior na região ficou após a campanha de imunização contra a
Centro-Oeste do país. Ao se de- pandemia de gripe em junho de 2009, durante a
bruçar sobre os dados fornecidos qual a Organização Mundial da Saúde (OMS) foi
pelos entrevistados, os autores acusada de ter sido influenciada por empresas
traçaram um perfil mais detalha- farmacêuticas (ver Pesquisa FAPESP nº 284).
do dos que se opunham à imuni- Há também nesses países um movimento que
zação. Observaram uma relutân- vai além da negação de consensos científicos.
cia mais elevada entre homens Segundo o sociólogo e físico italiano Yurij Cas-
com mais de 40 anos, baixa escolaridade e telfranchi, da Universidade Federal de Minas
renda mensal inferior a US$ 788,68. “Alguns Gerais (UFMG), “essas nações europeias não
disseram não ter medo de contrair a doença, são críticas à ciência em si, mas preocupadas
outros julgavam as vacinas desnecessárias, quanto aos seus usos políticos e econômicos por
pois já haviam se contaminado com o vírus”, governos e empresas privadas”. Esse fenôme-
comenta Moore. Ela destaca que homens cos- no, ele diz, estaria relacionado às experiências
tumam se expor mais a situações de risco e são traumáticas do nazismo na primeira metade
mais propensos a rejeitar práticas preventivas, do século XX e à percepção que muitos euro-
“o que ajudaria a explicar a resistência maior peus têm em relação aos efeitos colaterais do
entre eles”. A decisão em alguns casos também desenvolvimento industrial, como poluição e
esteve ligada ao país de origem das vacinas: degradação ambiental. “Muitos europeus têm
35,4% dos 18.250 participantes com alguma uma visão crítica sobre ciência e tecnologia
objeção disseram que não se vacinariam se a e, paradoxalmente, também podem ser mais
formulação disponível tivesse sido produzida sensíveis a teorias conspiratórias sobre inte-
na China. Segundo a médica, “é possível que resses ocultos dos governos e das multinacio-
essa rejeição resulte de disputas entre grupos nais em relação ao uso dos imunizantes e seus
políticos rivais ou mesmo de notícias falsas possíveis efeitos colaterais,
que acusam o país asiático de ter fabricado sobretudo em contextos de
intencionalmente o vírus para depois vender crise de confiança nas ins-
seu imunizante como solução”. tituições”, esclarece o pes-
Esses dados reforçam a noção de que o fe- quisador, que estuda como
nômeno da hesitação vacinal – a relutância, a as pessoas pensam e conso-
indecisão ou a recusa em se proteger, a despeito mem ciência e tecnologia no MESMO A
da disponibilidade de imunizantes nos servi-
ços de saúde – não é homogêneo no mundo e
Brasil e na América Latina.
A aversão a vacinas ga- PROPAGAÇÃO DE
tem causas diversas. “As razões associadas à
hesitação são complexas e podem ter peculia-
nhou corpo na Europa no
final da década de 1990,
NOTÍCIAS FALSAS
ridades de acordo com o país, o tipo de vacina
e o público que deve usá-las”, explica a médi-
após o cirurgião britâni-
co Andrew Wakefield ter
NÃO AFETOU
ca Camila Carvalho Matos, do Departamento publicado na revista Lan- A CONFIANÇA
de Ciências da Saúde da Universidade Federal
de Santa Catarina (UFSC). Elas podem estar
cet um trabalho fraudado
indicando que a vacina trí- DOS BRASILEIROS
associadas à falta de confiança na eficácia e
segurança dos imunizantes ou nas motivações
plice viral estaria associa-
da a casos de autismo em
NAS VACINAS
dos gestores e formuladores de políticas que as crianças. Estudos posterio-
recomendam. “A hesitação vacinal costuma ser res refutaram a conexão e,
alta em alguns países da África”, destaca Matos. em 2010, mais de uma dé-
“Em parte, isso se deve a questões culturais e cada após a publicação do
religiosas e, em grande medida, ao histórico de estudo, descobriu-se que

20 | NOVEMBRO DE 2021
RESISTÊNCIA EM ALTA
Índice de oposição às vacinas contra o novo coronarívus nos
Estados Unidos só não é maior do que na Rússia*

n Vacinados n Têm planos de se vacinar n Não têm certeza n Não vão se vacinar

11% 7% 9% 7% 5% 18% 9% 8% 7% 8% 28%


8% 5%
7% 5% 12% 5% 6%
8% 4% 15% 5%
6% 90% 4% 10%
5% 11% 88%
10% 85% 9% 84%
81% 83% 83% 83%
79% 76% 77% 77% 77%
7% 15%
66%
24%

32%

Alemanha Austrália Brasil Canadá China Coreia Espanha Estados França Índia Itália Japão México Reino Rússia
do Sul Unidos Unido

* Segundo levantamento realizado entre 5 e 11 de outubro FONTE  MORNING CONSULT

Wakefield tinha ações de uma empresa que Mais recentemente, os pesquisadores pas-
propunha o uso de uma vacina alternativa. O saram a observar a influência de aspectos reli-
artigo foi retratado e sua licença médica foi giosos no modo como alguns indivíduos lidam
cassada, mas o estrago estava feito. com determinadas formulações. “A cobertura

N
da vacina contra o HPV costuma ser menor em
o Brasil, esse fenômeno não pare- certos grupos religiosos pelo fato de se tratar de
ce ter se consolidado como movi- um imunizante associado a uma doença trans-
mento organizado, a exemplo do mitida sexualmente”, destaca Matos. Há casos
que acontece nos Estados Uni- de líderes religiosos desaconselhando seus fiéis
dos. “No geral, os brasileiros se a se vacinarem ou a não vacinarem seus filhos
preocupam, mas não se opõem à porque o imunizante daria início precoce à
imunização”, diz Matos. “Alguns vida sexual dos jovens. “Nota-se que a hesi-
rejeitam vacinas específicas, tação, nesse caso, está mais ligada à tentativa
mas aceitam outras. Uns são in- das pessoas de reafirmarem o que elas são e no
flexíveis, outros são suscetíveis à mudança. que acreditam do que à ideia de desqualificar
Alguns, no final das contas, estão dispostos a importância das vacinas em geral.”
a se imunizar, apesar das reservas.” Estudos A resistência às vacinas contra a Covid-19
recentes têm observado que as vacinas que se caracteriza por fatores mais específicos,
passaram a integrar o calendário nacional de segundo o imunologista Marcelo Napimoga,
imunização mais recentemente, como as contra da Faculdade de Medicina e Odontologia São
o papilomavírus humano (HPV) e o rotavírus, Leopoldo Mandic, em Campinas. Um deles diz
enfrentam mais resistência da população do respeito à velocidade com que os imunizan-
que as formulações mais tradicionais, como as tes foram concebidos. “As pessoas percebem o
de sarampo e de poliomielite. “As pessoas têm desenvolvimento de novas formulações como
a percepção de que as vacinas incorporadas um processo complexo, e, portanto, demora-
mais tardiamente no calendário não foram do, e isso acabou sendo algo conflitante com
suficientemente testadas, de modo que seus o fato de os imunizantes hoje usados contra o
INFOGRÁFICO ALEXANDRE AFFONSO

efeitos pudessem ter sido estabelecidos no Sars-CoV-2 terem passado por todas as fases
longo prazo”, comenta a médica. Há também de testes e começado a ser aplicados em larga
os que acreditam que seus hábitos de vida são escala em menos de um ano”, comenta. “Isso
fatores de proteção, como se uma alimentação fez com que grupos contrários à vacinação,
saudável, a prática de exercícios físicos ou o seja por razões políticas, ideológicas ou reli-
contato com a natureza fossem suficientes giosas, levantassem suspeitas em relação à se-
para prevenir infecções. gurança e eficácia das formulações.” Não por

PESQUISA FAPESP 309 | 21


OS MEDOS POR TRÁS DA HESITAÇÃO
As principais justificativas dos indivíduos que se disseram
em dúvida sobre se vacinar contra a Covid-19*
n Preocupados com os efeitos colaterais n Acreditam que os testes clínicos foram apressados n São contra vacinas em geral
n Não acham que a vacina será efetiva n Não confiam nas fabricantes n Supõem que o risco de contrair Covid-19 é mínimo n Outro

6% 5% 4% 5% 7% 7% 19%
10% 8% 6% 6% 7% 9% 5%
8% 13% 5% 9%
5% 5%
5% 20% 15% 9% 5%
6% 8% 14%
10% 9% 6% 9% 8% 9%
10%
5% 23%
32% 6% 28% 14% 6%
31% 72% 5% 30% 19%
24% 6% 28%
29%
25%

51% 50% 24%


46%
42% 42% 41%
38% 36% 39%
34%
29%

Alemanha Austrália Brasil Canadá Coreia Espanha Estados França Itália Japão Reino Rússia
do Sul Unidos Unido

* Segundo levantamento realizado entre 5 e 11 de outubro FONTE  MORNING CONSULT

acaso, uma das principais preocupações dos vacinação da população, apesar dos percalços
brasileiros identificada no levantamento da políticos. Em 18 de outubro, o percentual de in-
Morning Consult se refere aos possíveis efei- divíduos parcialmente vacinados e com o ciclo
tos colaterais das vacinas e à velocidade com vacinal contra a Covid-19 completo era de 73%,
que foram desenvolvidas (ver gráfico acima). um dos maiores no mundo, segundo dados do
“Imunizantes como os da Moderna e da Pfizer/ Our world in data, da Universidade de Oxford –
BioNTech envolvem novas tecnologias, o que esse percentual era de 49,6% se considerado
também serviu para alimentar campanhas de apenas as pessoas que receberam as duas doses
desinformação”, diz Napimoga. ou vacinas de dose única.

O
Quando se trata de confiança nos imunizan-
tes, o Brasil também se destaca entre as nações cenário é diferente em outros
de baixa e média renda, segundo um estudo países, inclusive em alguns com
publicado em maio na revista Vaccines por um ampla oferta de imunizantes. Mui-
grupo internacional de pesquisadores. Eles tos ainda enfrentam resistência
entrevistaram 10.491 pessoas de 83 países em de parte da população às vacinas.
desenvolvimento, entre eles Malásia e Tailân- A Rússia foi um dos primeiros
dia, no Sudeste Asiático, e Uganda e República países a anunciar a aprovação de
Democrática do Congo, na África: 88,9% dos uma formulação contra o novo
6.470 brasileiros ouvidos disseram que se vaci- coronavírus, a Sputnik V. Um ano
nariam contra o Sars-CoV-2 caso o imunizante depois, porém, apenas 32,4% da população está
disponível tivesse uma taxa de eficácia de 90%. totalmente imunizada, segundo o Our world in
Esse percentual subiu para 94,2% caso a eficá- data. A baixa cobertura vacinal naquele país fez
cia fosse de 95%, o melhor desempenho entre com que o número de mortes voltasse a subir – a
as nações avaliadas. média diária em setembro foi de 800 óbitos e
Os resultados apresentados nesses levan- é possível que haja subnotificação.
tamentos sugerem que mesmo a polarização Para além das incertezas sobre os protocolos
política e a propagação de notícias falsas e teo- éticos e de segurança usados durante o desen-
INFOGRÁFICO ALEXANDRE AFFONSO

rias conspiratórias nas redes sociais não con- volvimento da Sputnik V, o ceticismo dos russos
seguiram afetar a confiança e a aceitação dos em relação à imunização parece se originar de
brasileiros em relação às vacinas contra o novo uma mistura de complacência com a doença e
coronavírus. “O principal problema é a quan- desconfiança crônica nas autoridades, sobre-
tidade insuficiente de doses”, destaca Moore. tudo por parte da parcela da população mais
A alta aderência aos imunizantes foi impor- crítica ao governo do presidente Vladimir Putin,
tante para que o Brasil conseguisse avançar na segundo a socióloga russa Ekaterina Borozdina,

22 | NOVEMBRO DE 2021
do Departamento de Ciência Política e Sociolo- da pandemia as autoridades políticas divergiram
gia da Universidade Europeia de São Petersbur- sobre a melhor forma de contenção, ao mes-
go. “A resistência à imunização na Rússia não se mo tempo que integrantes do governo federal
deve tanto à desconfiança na ciência em si, mas se engajaram em galvanizar sua base eleitoral
a um antigo contexto de relações tensas entre à luz de uma campanha para desqualificar a
cidadãos e Estado”, disse em agosto para o site CoronaVac, desenvolvida pela farmacêutica
The Conversation. chinesa Sinovac Biotech e produzida no Brasil
Nos Estados Unidos, a resistência às vacinas pelo Instituto Butantan, de São Paulo”, diz o
em algumas unidades da federação fez com que pesquisador. Isso afetou a confiança e a acei-
o país ficasse para trás no ranking global de vaci- tação de parte da população ao imunizante de
nação, sendo ultrapassado pelo Brasil – somadas origem chinesa, mesmo a Anvisa tendo aprova-
as parcelas da população parcial e totalmente do seu uso emergencial no país. Essa objeção
protegidas contra o vírus. Com o avanço da va- foi percebida em um estudo com 2.771 pessoas
riante Delta, mais contagiosa, o número de casos publicado em maio por Gramacho e sua equipe
diários de Covid-19 no país também voltou a subir, na Vaccine. O trabalho mostrou que a probabili-
atingindo em agosto a média de 100 mil pela pri- dade de os entrevistados se imunizarem contra
meira vez desde fevereiro. Os estados governados o Sars-CoV-2 era menor quando informados de
pelo Partido Republicano concentram a maioria que a vacina que tomariam havia sido criada na
dos novos casos e hospitalizações, refletindo a China. “A resistência era significativamente me-
polarização política que acomete aquela nação: nor no caso dos imunizantes feitos nos Estados
as regiões que tendem a votar nos republicanos Unidos e no Reino Unido.”

E
apresentam adesão mais baixa à imunização. Al-
guns grupos do Partido Democrata demandam sse cenário mudou à medida que a
medidas mais duras do presidente Joe Biden para vacinação começou a avançar e os imu-
tentar incentivar a vacinação, como só repassar nizantes se mostraram seguros e efi-
verbas federais para os estados que cumprirem cazes. Na avaliação do especialista em
suas metas de inoculação. saúde coletiva Bruno Luciano Carneiro
Na Índia, segundo país mais populoso do Alves de Oliveira, do Departamento de
mundo, com mais de 1,3 bilhão de pessoas, a Medicina I da Universidade Federal
resistência às vacinas tem dificultado o pro- do Maranhão (UFMA), a mudança se
gresso da imunização, sobretudo nas regiões deve, em parte, à memória coletiva de
mais pobres. Até meados de outubro, apenas experiências bem-sucedidas do país no combate
20,2% dos indianos haviam sido totalmente va- de várias doenças por meio de campanhas de
cinados. No estado de Bihar, onde a hesitação imunização. Outro fator que contribuiu para a
é alta devido a campanhas de desinformação alta adesão dos brasileiros foi a percepção de
nas redes sociais que acusam os imunizantes risco relacionado à doença. “O Brasil é um dos
de causarem infertilida- países mais afetados pelo novo coronavírus”,
de e morte, há relatos de destaca o pesquisador, que vem monitorando a
ataques a centros móveis hesitação às vacinas de Covid-19 no Maranhão.
de vacinação. As autorida- O número de mortes pela doença no país pas-
des locais têm oferecido sou de 600 mil em outubro e é inferior apenas
eletrodomésticos, como ao dos Estados Unidos. “É razoável supor que
OS BRASILEIROS geladeiras e ventiladores, o medo de se infectar com o vírus, somado às

AINDA CONFIAM e até moedas de ouro aos


moradores como incentivo
notícias sobre a escalada do número de casos e
mortes e a falta de leitos de UTI tenham feito
MUITO NA CIÊNCIA para aumentar a adesão.
No Brasil, apesar do
com que a população aderisse à imunização.”
Na avaliação de Castelfranchi, é possível que
E NOS CIENTISTAS, baixo índice de hesitação,
houve desconfiança em re-
a alta aceitação também se deva ao fato de os
brasileiros serem historicamente mais otimistas
APESAR DOS lação aos imunizantes con- em relação aos avanços científicos e tecnológicos

ATAQUES RECENTES, tra a Covid-19 no início da


vacinação. A razão estaria
do que as sociedades europeias, mais céticas
em relação aos seus benefícios. “Comparados
SEGUNDO ligada a questões político-
-ideológicas, na avaliação
à Europa e à América do Norte, os brasileiros
continuam tendo muita confiança na ciência
CASTELFRANCHI do cientista político Wla-
dimir Gramacho, da Facul-
e nos cientistas, apesar dos ataques recentes”,
destaca o pesquisador. n
dade de Comunicação da
Universidade de Brasília Os projetos e artigos científicos consultados para esta reportagem
(UnB). “Desde o começo estão listados na versão on-line.

PESQUISA FAPESP 309 | 23


COVID-19
BOLHAS
DA PANDEMIA
Os principais
agrupamentos
identificados pelos
pesquisadores
e as pautas
que mobilizaram
as interações dos
perfis em cada
um deles

NO RASTRO
DA DESINFORMAÇÃO
Usuários alinhados à direita conservadora se engajaram
mais na difusão de notícias falsas e informações imprecisas
no Twitter, aponta levantamento da FGV

P
essoas alinhadas à direita conservadora a informações produzidas por sites com aparência
foram as que mais se engajaram na di- jornalística, mas com conteúdo enviesado, que busca-
fusão de notícias falsas e informações vam atribuir algum lastro científico às suas asserções
imprecisas sobre a Covid-19 no Twitter, e posicionamentos. “Essas publicações apresentavam
segundo levantamento feito no auge da links para páginas anônimas e devotadas à dissemi-
pandemia por pesquisadores da Fun- nação de informações falsas ou intencionalmente
dação Getulio Vargas (FGV), no Rio de distorcidas com o propósito de tentar legitimar a efi-
Janeiro. Eles avaliaram 3,3 milhões de cácia dos medicamentos que integram o que se con-
publicações na rede social entre janeiro vencionou chamar de tratamento precoce”, explica
e maio de 2021. Com base na análise dos links e dos o sociólogo Victor Piaia, da Diretoria de Análise de
indivíduos que os compartilharam, identificaram Políticas Públicas (Dapp) da FGV, um dos autores do
quatro agrupamentos de perfis (ver gráfico na página levantamento. O trabalho foi desenvolvido no âmbito
25). Um dos grupos, formado por políticos, blogueiros do projeto Democracia Digital: Digitalização e Esfe-
e ativistas da direita socialmente conservadora –­ ra Pública no Brasil, que tem apoio da embaixada da
equivalente a 21,5% da amostra –, respondeu por qua- Alemanha em Brasília e do Ministério das Relações
se metade das interações analisadas. Na maioria das Exteriores da Alemanha.
vezes, eles defendiam o uso de medicamentos que não Esses links costumam se ancorar em manchetes
têm efeito contra o novo coronavírus (Sars-CoV-2). exageradas. O que circulou por mais tempo na rede
As postagens feitas pelos usuários desse agrupa- social no período remetia para o site ivmmeta.com,
mento foram as que mais geraram comentários e que, em março, divulgou um estudo “atestando” a
compartilhamentos. Elas também circularam por eficácia do parasiticida ivermectina contra o novo
mais tempo na rede social, remetendo quase sempre coronavírus. A notícia ganhou fôlego na rede social,

24 | NOVEMBRO DE 2021
AZUL
QUEM SÃO: políticos de esquerda,
24,9%
dos perfis
34,5%
das interações
celebridades e ativistas sociais.

9,5%
O QUE DIZEM: criticam o tratamento
precoce e atribuem o atraso na
imunização à inércia do governo na
VERDE
dos perfis QUEM SÃO: cientistas
aquisição das doses e à desconfiança e jornalistas.
por ele propagada em relação às vacinas O QUE DIZEM: destacam
a ineficácia da ivermectina

7,7%
das interações
e da hidroxicloroquina
contra a Covid-19 e
criticam o governo federal
por insistir na promoção
desses medicamentos
e menosprezar as vacinas

LARANJA
QUEM SÃO: profissionais
da saúde e autoridades
sanitárias.
O QUE DIZEM: contestam
o tratamento precoce,
aludindo à sua ineficácia
contra a Covid-19.
Insistem na importância
LILÁS
QUEM SÃO: políticos, autoridades
do distanciamento social

21,5%
e influenciadores digitais
e do uso de máscara
da direita conservadora.
O QUE DIZEM: defendem o tratamento dos perfis
precoce por meio de postagens
com relatos pessoais de

11,6% 41,5%
recuperação da doença, supostos
estudos e declarações de
das interações “especialistas” internacionais das interações

29,6%
dos perfis
FONTE FGV

gerando um engajamento elevado entre os usuários, em humanos, e que tinha como foco o Sars-CoV,
o que chamou a atenção de agências de checagem de causador da Síndrome Respiratória Aguda Grave
fatos. Uma delas verificou que o estudo era, na ver- (Sars), uma doença diferente da Covid-19, provoca-
dade, uma síntese de resultados de outras pesquisas da pelo Sars-CoV-2. Piaia esclarece que os usuários
feita pelo próprio site. O levantamento apresentava desse agrupamento, mais do que os dos outros, têm
diversas falhas metodológicas – agrupava estudos dificuldade para entender como a ciência funcio-
não comparáveis, muitos publicados em formato na. “Ao mesmo tempo”, ele diz, “nota-se que esses
de preprint, sem revisão por pares – e ignorava os usuários valorizam a credibilidade da ciência e a
resultados de trabalhos robustos que não identifica- usam para tentar embasar seus posicionamentos
ram efeitos significativos no uso do fármaco contra e legitimar suas opiniões”. Não raro, as postagens
o novo coronavírus. “A conta responsável por lan- também se utilizam de declarações de “especia-
çar o conteúdo foi suspensa, mas o link para o site listas” internacionais para embasar a eficácia dos
continuou sendo compartilhado, circulando na rede remédios, como se o fato de serem do exterior lhes
por 159 dias”, diz Piaia. conferisse maior confiabilidade.
Outro link com ampla circulação entre os perfis Para Raquel Recuero, pesquisadora do Laborató-
INFOGRÁFICO  ALEXANDRE AFFONSO

desse agrupamento remete a um estudo publicado rio de Pesquisa em Mídia, Discurso e Análise de Re-
em 2005 na revista Virology Journal. Segundo a des da Universidade Federal do Rio Grande do Sul
manchete que o acompanhava, o trabalho compro- (Midiars-UFRGS), os resultados do estudo da FGV
varia a eficácia do antimalárico hidroxicloroquina reforçam as conclusões de outras pesquisas, segun-
no tratamento da Covid-19. A equipe de checagem do as quais estratégias discursivas específicas, como
da agência de notícias Reuters, porém, verificou a de autoridade científica, estão sendo amplamente
que o experimento havia sido feito em animais, não utilizadas nas redes sociais para tentar legitimar a

PESQUISA FAPESP 309 | 25


disseminação de informações falsas. “Essa é uma do tratamento precoce – ainda que se manifeste
estratégia comum e muito usada na pandemia como também no agrupamento de usuários situados à
forma de contrapor os cientistas com argumentos esquerda do espectro, composto por políticos, cele-
pseudocientíficos, quase sempre alegando uma outra bridades e ativistas sociais de oposição ao governo
interpretação”, ela diz. Esses trabalhos constataram federal. “O problema é que os links de veículos tra-
ainda que o usuário que dissemina desinformação dicionais de imprensa e de agências de checagem
tende a ser mais engajado, compartilhando e comen- só conseguem penetrar os agrupamentos em que a
tando esses conteúdos com muito mais frequência. desinformação circula quando o conteúdo divul-
“A análise desses estudos indica que a probabilidade gado está em linha com as opiniões e as ideologias
de um link defendendo o uso da hidroxicloroquina de seus usuários”, afirma Felipe Soares, pesqui-
contra a Covid-19 ser compartilhado no Twitter é sador do Midiars-UFRGS. “Na maioria das vezes,
quase três vezes maior do que a de um link com al- os links produzidos em cada bolha, seja de direita
gum conteúdo desafiando essa premissa.” ou de esquerda, tendem a circular apenas entre os
A resiliência da defesa da hidroxicloroquina e usuários que a compõem.” Esse fenômeno, segundo
da ivermectina é uma característica brasileira. Em ele, resulta do fato de a pandemia no Brasil, como
outros países, esses fármacos deixaram de atrair em outros países, ser percebida por vários grupos
atenção quando se demonstrou a sua ineficácia – a como um assunto político-ideológico e não como
desinformação nas redes sociais, nesses casos, pas- uma questão de saúde pública. “A discussão sobre
sou a recair principalmente sobre os supostos riscos as estratégias de tratamento e ações de contenção
das vacinas. Em Portugal, o site SciMed – Ciência do vírus está polarizada e, por isso, tende a ser con-
Baseada na Evidência se destacou ao denunciar e fundida como uma questão de filiação político-par-
combater a desinformação propagada por profis- tidária”, destaca Soares.
sionais da saúde ligados a terapias alternativas – A discussão sobre desinformação nas redes so-
um grupo denominado Médicos pela Verdade afir- ciais ganha contornos mais complexos à medida
mava, por exemplo, que os testes para detectar Co- que seus desdobramentos são estudados. Um dos
vid-19 não eram confiáveis e que a epidemia estava pontos mais problemáticos diz respeito à fronteira
superdimensionada. “São, na maioria, pessoas com entre o que é informação falsa e o que é informação
ligações com a pseudociência”, disse o médico João imprecisa. Há casos em que a notícia tem um fundo
Júlio Cerqueira, criador do site, em entrevista ao de verdade, mas é apresentada fora de contexto ou é
site Polígrafo. A Ordem dos Médicos de Portugal acompanhada de interpretações extremas. “Muitos
abriu processos disciplinares contra alguns desses usuários não percebem essas diferenças”, afirma
profissionais. Piaia. “Frequentemente, as pessoas compartilham
Uma das características mais marcantes da dinâ- publicações simplesmente porque elas reforçam
mica de publicação e compartilhamento no Twitter, seu ponto de vista.” E há também indivíduos que
segundo o estudo da FGV, é o fato de ela se restrin- disseminam desinformação em prol de vantagens
gir a públicos específicos. Esse caráter endógeno é econômicas, influência e prestígio. Houve casos
percebido na comunidade que defendeu a eficácia recentes de influenciadores digitais que compar-
tilharam informações falsas para ganhar dinheiro.
Conforme a Agência Pública informou em março, o
Ministério da Saúde e a Secretaria de Comunicação
repassaram mais de R$ 1,3 milhão para personalida-
des da internet divulgarem campanhas sobre a Co-
A PRÓPRIA IMPRENSA vid-19 em suas redes sociais – R$ 23 mil foram para

PODE SER USADA PARA aqueles que falavam sobre “atendimento precoce”.
Mesmo para os pesquisadores é difícil apontar
ESPALHAR DESINFORMAÇÃO quem são os propagadores de notícias falsas ou
mesmo identificar suas motivações. Isso porque as
QUANDO OS TÍTULOS ferramentas que eles usam para levantar os dados
de suas amostras são automatizadas e se baseiam na
DE REPORTAGENS ESTÃO identificação de palavras-chave. A fronteira entre

MAL FORMULADOS os perfis de pessoas reais e os controlados remo-


tamente, os perfis robôs, também é nebulosa: se-
gundo Piaia, existem hoje nas redes sociais muitos
perfis reais que se comportam como robôs e robôs
cada vez mais parecidos com usuários reais. “As
metodologias de detecção necessitam de constante
aprimoramento”, ele diz. “Mas é possível verificar
que muita da desinformação em circulação nas re-
des sociais nasce em núcleos formados por perfis

26 | NOVEMBRO DE 2021
EDUCAÇÃO CONTRA FAKE NEWS
A educação de mídia pode ser uma Paganotti é professor de atualidades em Em 2018, Paganotti e colegas
ferramenta no combate à desinformação. um colégio de São Paulo. Com os alunos, pesquisadores criaram, com apoio do
Nela, o público conhece o processo de discute a importância de selecionar fontes Facebook, o curso gratuito on-line Vaza,
produção de uma notícia, vê como é feita verificáveis de informação, convidando-os Falsiane. Além de explicar as armadilhas
a escolha das fontes de informação e como a refletir sobre as notícias e a procurarem da desinformação, em 2021
funcionam os veículos. “Com o aumento informações em mais de um veículo, com o curso ganhou um módulo especial
da circulação de fake news, aumentou perspectivas complementares. “Sempre sobre informações falsas e pandemia.
o debate sobre a importância da educação digo para se perguntarem como o conteúdo A experiência com o projeto foi detalhada
midiática”, avalia o jornalista Ivan Paganotti, chegou até eles, qual fonte originou em um artigo publicado em 2021 na
coordenador do grupo de pesquisa a informação, se ela tem credibilidade, se revista Intexto, da UFRGS. Com perfis
Checagem, Educação, Comunicação, costuma publicar notas quando erra. A nas principais redes sociais, o curso
Algoritmos e Regulação, da Universidade informação tem espaço para o contraditório – publica posts com alertas e dicas
Metodista de São Paulo. “Quanto mais se uma pessoa foi denunciada, por exemplo, bem-humoradas. “Não podemos
as pessoas souberem como funcionam ela foi ouvida? A data de publicação é combater a desinformação só no nosso
os meios de comunicação, mais poderão recente? Esses elementos ajudam a perceber site, precisamos ir à guerra no território
consumir notícias de forma crítica.” se o conteúdo é confiável”, explica. em que ela circula”, diz ele.

mais radicais para depois reverberar em perfis de em um ambiente mediado pela análise criteriosa
pessoas comuns, que muitas vezes não são radicais, dos dados, enquanto a produção de notícias falsas,
mas enxergam algum sentido nesses conteúdos e por não ter comprometimento com a verdade, dá-se
os compartilham.” de uma forma mais rápida e dinâmica. Um estudo

O
publicado na revista Science em 2018 por pesquisa-
utro desafio é compreender os motivos dores do Instituto de Tecnologia de Massachusetts
de a direita conservadora quase sem- (MIT), nos Estados Unidos, reforça essa ideia. Eles
pre ser o motor de propagação de de- analisaram 126 mil notícias, falsas e verdadeiras,
sinformação e o porquê de as notícias compartilhadas por aproximadamente 3 milhões de
falsas terem mais aderência a pessoas pessoas no Twitter entre 2006 e 2017. Verificaram
alinhadas a esse espectro político. Para que as notícias mentirosas são produzidas mais ra-
alguns especialistas, parte da resposta pidamente e, por isso, parecem ser sempre novas, e
residiria em uma suspeita genérica que os usuários na rede social são mais propensos a
que esses indivíduos têm em relação compartilhar informações novas. “As notícias inve-
a fontes robustas de informação, como a imprensa rídicas chegam mais longe e mais rápido do que as
e os cientistas. que passaram pelo processo de checagem, e o enga-
Dayane Machado, doutoranda do Departamento jamento em torno delas foi maior quando se tratava
de Política Científica e Tecnológica da Universidade de temas políticos”, escreveram os pesquisadores.
Estadual de Campinas (Unicamp), observa que as A própria imprensa profissional pode ser usada
campanhas de manipulação midiática costumam ser para espalhar desinformação quando os títulos de
organizadas por grupos pequenos, que produzem reportagens estão mal formulados e dão margem a
materiais com um direcionamento específico e ten- diferentes interpretações, segundo estudo publi-
tam atrair a atenção de celebridades e políticos para cado em março na revista M/C Journal. A análise
conseguir ampliar o alcance. “Uma das formas de de 20 endereços eletrônicos das reportagens bra-
atrair a atenção desses perfis com muitos seguidores sileiras mais compartilhadas sobre a pandemia em
é dar uma roupagem científica à desinformação, de 1.632 grupos no Facebook em 2020 mostrou que
modo que as pessoas não especialistas acreditem e em 43,8% deles os usuários só se interessaram por
passem esse material para frente como se ele fosse textos cujos títulos poderiam reforçar algum tipo de
legítimo”, explica a pesquisadora. informação distorcida. Ainda nesses grupos, 86,2%
Uma das dificuldades para conter a dissemina- das mensagens escritas pelos usuários sobre essas
ção de desinformação nas redes sociais é conseguir reportagens reproduziam algum tipo de desinfor-
fazer com que conteúdos de qualidade ganhem al- mação, minimizando a gravidade da pandemia, as
cance, penetrando em bolhas predominantemente medidas de contenção e as vacinas. n
alimentadas por notícias falsas. O problema, explica Rodrigo de Oliveira Andrade, com Sarah Schmidt
Machado, é que os atores responsáveis pela produ-
ção desse tipo de conteúdo – jornalistas, cientistas, Os projetos e artigos científicos consultados para esta reportagem estão
educadores etc. – trabalham em ritmos distintos e listados na versão on-line.

PESQUISA FAPESP 309 | 27


28 | NOVEMBRO DE 2021
ENTREVISTA MARILDA SOTOMAYOR VERSÃO ATUALIZADA EM 27/01/2022

UMA PENSADORA
DOS JOGOS
Matemática conviveu com economistas ganhadores
do Prêmio Nobel e se tornou uma das maiores
especialistas em teoria dos mercados de matching,
de amplas aplicações

Yuri Vasconcelos

N
IDADE 77 anos o início dos anos 1980, a mate- que agentes podem ser pareados de acordo
mática carioca Marilda Antonia com suas preferências.
ESPECIALIDADE
de Oliveira Sotomayor, na épo- Inspirada pela carreira da mãe, Sotomayor
Mercados de matching,
ca com 39 anos, partiu para um graduou-se em matemática e planejava tor-
uma subárea da teoria
pós-doutorado na Universidade nar-se professora do ensino superior. Mas, es-
dos jogos
da Califórnia, em Berkeley, com a esperança timulada pelo marido, o peruano naturalizado
INSTITUIÇÃO de trabalhar com o matemático norte-ameri- brasileiro Jorge Sotomayor, matemático como
USP, UFRJ e FGV-RJ cano David Gale (1921-2008) e ganhar inde- ela, entrou de cabeça na vida acadêmica. Ela
pendência científica em um ramo da mate- organizou congressos sobre teoria dos jogos
FORMAÇÃO
mática econômica conhecido como teoria do dentro e fora do Brasil e ajudou a internacio-
Graduação em matemática
crescimento econômico, área de pesquisa de nalizar e a tornar essa área conhecida no país.
pela UFRJ (1967),
seu doutorado. Sua expectativa foi frustrada Três congressos ocorreram na Universidade
mestrado em matemática
quando, no primeiro encontro com Gale, ou- de São Paulo (USP), onde lecionou durante
no Impa (1972), doutorado
viu dele: “Não trabalho mais com essa área”. 17 anos, com a participação de seis prêmios
em matemática na
Desapontada, passou os dois meses seguin- Nobel de Economia com quem mantinha re-
PUC-RJ e no Impa (1981)
tes na biblioteca em busca de um problema lação de amizade. Com um deles, Alvin Roth,
e pós-doutorado na
novo em crescimento econômico para tratar escreveu um livro, que considera “o trabalho
Universidade da
no pós-doutorado, até que seguiu uma suges- mais importante de sua carreira”.
Califórnia, em Berkeley
tão do marido. Pediu uma conversa com Gale No ano passado, em meio à pandemia, So-
PRODUÇÃO e perguntou em que ele estava trabalhando. tomayor foi eleita membro da American Aca-
Cerca de 50 artigos Ele lhe disse que estava intrigado com um demy of Arts and Sciences, selecionada na
científicos, um livro, problema na área de matching que acredi- categoria ciências sociais, na área de econo-
ALINE MASSUCA / VALOR / AGÊNCIA O GLOBO

em coautoria, e quatro tava ter solução, mas não tinha conseguido mia. “Essa honra mostra a alta consideração
capítulos de livros demonstrá-la. Sotomayor trabalhou no fim que especialistas de seu campo e membros
de semana e, na segunda-feira, apresentou em todo o país têm por você”, informou a
o resultado ao economista. Foi assim que instituição ao lhe comunicar a honraria. Mãe
ela entrou e aos poucos se tornou uma refe- de um casal de gêmeos, hoje com 34 anos, a
rência mundial no campo conhecido como matemática concedeu a entrevista a seguir
mercados de matching, um ramo da teoria por e-mail, em meio a uma longa reforma em
dos jogos com aplicações na economia, em sua casa, no Rio de Janeiro.

PESQUISA FAPESP 309 | 29


Poderia explicar de maneira simples a partir de um vestibular ou por meio foi designado ou prefere a universidade
o que é a teoria dos jogos e o ramo em de testes, como ocorre no mercado de a ficar sem escola, caso ele tenha fica-
que a senhora trabalha, os mercados admissão dos candidatos aos cursos de do sem escola pelo matching. Por outro
de matching? mestrado no Brasil. Naturalmente, cada lado, a universidade prefere o estudan-
A teoria dos jogos é uma teoria mate- universidade dispõe de um número má- te a algum outro que admitiu ou prefe-
mática que estuda situações de decisão, ximo de estudantes que poderia receber. re o estudante a ficar com uma vaga a
em que dois ou mais agentes interagem Nesse mercado, um matching é a distri- preencher, caso isso tenha ocorrido no
entre si, segundo regras bem determina- buição dos estudantes pelas universida- matching. Gale e Shapley mostraram que
das. Tem sido aplicada a diversas áreas, des, que respeita o número de vagas das um matching estável sempre existe para
como economia, biologia e computação. universidades de tal modo que nenhum o mercado de admissão de estudantes às
Na economia, um dos ramos em que ela estudante seja associado a mais de uma universidades e ofereceram um proce-
mais tem apresentado aplicações é a teo- universidade. Um estudante pode ficar dimento matemático para determiná-lo.
ria dos mercados de matching, que teve sem escola e uma universidade pode não
origem em 1962 com o artigo “College preencher todas as suas vagas. Essa ideia tem outras aplicações?
admissions and stability of marriage”, de Em outros mercados, além de um
autoria de David Gale e do matemático Quais os conceitos-chave para entender matching, são especificados os ganhos
Lloyd Shapley (1923-2016), publicado essas situações? monetários obtidos por cada participante
na revista científica The American Ma- A noção-chave é a de estabilidade, defi- nas negociações realizadas. É o que ocorre
thematical Monthly. Nesse trabalho, os nida por Gale e Shapley, que captura a num mercado de trabalho, formado por
autores descrevem o mercado de admis- ideia de equilíbrio do mercado. No exem- empresas e trabalhadores. Cada empresa
são dos estudantes às universidades nos plo das universidades e dos estudantes, deseja contratar certo número de traba-
Estados Unidos. um matching é estável se a distribuição lhadores e cada trabalhador deseja se
dos candidatos entre as vagas é feita de empregar em uma firma. Se uma empresa
Como se liga estudantes chegando à forma que os dois grupos estejam satis- e um trabalhador formam uma parceria,
universidade à teoria dos jogos e ao feitos, no sentido de que não seja pos- então esses agentes deverão negociar o
matching? sível a nenhum participante obter um salário do trabalhador com base na pro-
Um mercado de matching se configura parceiro mais preferível. Dito de outra dutividade dele, levando em conta o que
como um jogo cooperativo, do ponto de forma, a estabilidade se dá se não exis- os outros pares no mercado negociaram.
vista da teoria dos jogos. É um modelo tem uma universidade e um estudante Naturalmente, existe um valor de reserva
matemático que representa situações que que não estejam associados entre si pelo para cada agente [empresa e trabalha-
ocorrem em um ambiente em que os par- matching, mas tal que o estudante pre- dor], representando o ganho monetário
ticipantes podem se comunicar livremen- fere a universidade àquela para a qual mínimo que aceitaria receber em cada
te uns com os outros, fazer ofertas e con- parceria que puder formar – para o tra-
traofertas com a finalidade principal de balhador, o valor de reserva é o menor
formar pares. Em algumas situações, um salário que aceitaria receber de uma fir-
mesmo agente pode ser parte de vários ma; para a firma, é o menor lucro líqui-
pares. Se um par é formado, os parceiros do que estaria disposta a ganhar numa
negociam um contrato ou acordo sobre parceria com um trabalhador. Um resul-
os termos que definem sua participação tado para esse mercado consiste de um
na parceria. Naturalmente cada partici-
pante tem preferências sobre as possíveis A importância matching, que especifica quem trabalha
para quem, juntamente com os salários
transações em que poderiam entrar. Exis- dos trabalhadores e os lucros líquidos
tem regras determinando o que cada um da teoria dos das firmas. Um tal resultado é estável se
pode e não pode fazer. Um resultado da todos os agentes estão recebendo um va-
operação desse mercado pode ser apenas
um matching, isto é, um conjunto de pa-
matchings foi lor maior ou igual ao seu valor de reserva
e, além disso, não existem uma firma e
res que não violam as regras do mercado.
reconhecida um trabalhador não associados entre si
pelo matching, tal que a firma pode pagar
Poderia dar um exemplo? um salário ao trabalhador maior do que
É o caso do mercado de admissão de es- com o o que ele está recebendo e, ainda, obter
tudantes às universidades. Esse mercado um lucro líquido maior do que o que es-
consiste em um conjunto de universida- Prêmio Nobel tá obtendo com algum de seus parceiros
des e outro de estudantes. Os estudantes correntes, no caso, todos os trabalhadores
têm preferências sobre as universidades
nas quais gostariam de ingressar e [pelo
dado a associados a ela pelo matching.

sistema norte-americano] as universida-


des têm preferências sobre os estudantes Shapley e Por que os matchings interessam para
a economia?
que desejariam admitir. Essas preferên- Porque refletem o comportamento de
cias podem ser elaboradas, por exemplo, Roth em 2012 pessoas em mercados da vida real. A teo-

30 | NOVEMBRO DE 2021
tituto de Matemática Pura e Aplicada]
foi natural e motivado pelo meu desejo
de aprender mais e poder ser professora
de ensino superior. Ouvi falar do Impa
no último ano da licenciatura. A minha
turma convidou o professor Lindolpho
de Carvalho Dias, então diretor do Ins-
tituto de Matemática da UFRJ, para um
bate-papo informal. Nessa conversa sou-
be que ele também era diretor do Im-
pa e que lá eu poderia fazer cursos de
iniciação científica para complementar
minha licenciatura, visando um ingresso
posterior no programa de mestrado em
matemática. Fiquei muito animada com a
possibilidade de continuar os meus estu-
dos e no ano seguinte comecei a estudar
no Impa com uma bolsa da Capes [Coor-
denação de Aperfeiçoamento de Pessoal
de Nível Superior] em parceria com a
Fundação Ford. Durante o mestrado, no
início dos anos 1970, fui contratada pela
A pesquisadora e o matemático Alvin Roth, com quem escreveu um livro em 1990 PUC [Pontifícia Universidade Católica]
do Rio, onde trabalhei por 25 anos. O
ria dos matchings fornece modelos ma- com ele durante o pós-doutorado na Uni- ambiente de trabalho intelectualmente
temáticos para esses mercados. Por meio versidade da Califórnia, em Berkeley, em estimulante no Departamento de Ma-
desses modelos podemos compreender 1983. O artigo foi publicado no American temática da instituição, onde lecionei,
e detectar as falhas desses mercados, o Mathematical Monthly no ano seguinte. e meu casamento com um professor do
que pode ajudar a organizá-los melhor Impa, grande entusiasta da carreira cien-
ou a consertá-los quando eles quebram. Como a senhora conheceu esses aca- tífica, influenciaram minha decisão de
Em 2012, a teoria dos matchings recebeu dêmicos? ingressar no programa de doutorado do
o reconhecimento de sua importância Com exceção de Nash, que encontrei Departamento de Matemática da PUC,
para a economia com o prêmio Nobel pela primeira vez em 1995 em um con- realizado em parceria com o Impa. Nele,
em Economia concedido ao matemático gresso em Jerusalém em homenagem aos obtive o título de doutora em ciências
Alvin Roth e a Lloyd Shapley. Shapley, 65 anos de Aumann, todos os outros ain- matemáticas com uma tese na área de
juntamente com Gale, foi o fundador da da não eram Nobel quando os conheci. economia matemática. Meu interesse em
teoria e Roth liderou a sua aplicação aos Exceto Alvin e Gale, o primeiro contato tornar-me pesquisadora em mercados de
mercados da vida real. Gale também te- se deu nas conferências de teoria dos jo- matching surgiu no pós-doutorado na
ria ganhado o prêmio se estivesse vivo, gos em Stony Brook, o mais importante Universidade da Califórnia, em Berkeley.
mas faleceu em 2008. evento internacional da área, que come-
çou nos anos 1980. Em 1991 fui convi- Como era seu trabalho na PUC-RJ?
Como foi seu trabalho e sua amizade dada para dar uma palestra plenária e a Ensinar sempre foi muito absorvente e
com Gale e Roth? partir daí comecei a frequentá-lo. Fui a gratificante para mim. Quando voltei de
Escrevi com Roth o trabalho mais im- organizadora científica do congresso em Berkeley, necessitava de espaço para de-
portante de minha carreira, Two-sided 2006 e, no ano seguinte, organizei, em senvolver minha área de pesquisas. Porém,
matching: A study in game-theoretic mo- nova edição desse congresso, um even- teoria dos jogos não era uma área conside-
deling and analysis. O livro foi publicado to de um dia chamado Gale’s Feast, em rada de interesse pelo meu departamento
em 1990 e recebeu o prêmio Lanchester, homenagem aos 86 anos de David Gale. na PUC. Assim mesmo, assumindo uma
da Operations Research Society of Ame- Ele compareceu com a família. Quase sobrecarga de trabalho, consegui oferecer
rica, o mais cobiçado na área de pesquisa todos estiveram no Brasil por ocasião um curso de matching e atrair a melhor
operacional. Tenho uma relação de ami- dos congressos de teoria dos jogos que aluna do Departamento de Matemáti-
zade com ele e com Robert Aumann, Eric organizei na USP [Universidade de São ca, que fez sua dissertação de mestrado
Maskin, Roger Myerson e Paul Milgrom – Paulo], alguns mais de uma vez. em mercados de matching sob a minha
todos vencedores do Nobel. Também era orientação. Permaneci na PUC até 1993,
muito amiga de Shapley e de John Nash Como foi sua trajetória até chegar ao quando, por meio de um concurso para
(1928-2015) e construí uma relação mui- matching? professor titular, mudei para o Departa-
ARQUIVO PESSOAL

to especial com Gale, com quem escrevi O caminho a partir da graduação na mento de Economia da UFRJ. Quando lá
vários trabalhos. Meu primeiro artigo UFRJ [Universidade Federal do Rio de me aposentei, migrei para o Departamen-
sobre matchings foi feito em coautoria Janeiro] até o mestrado no Impa [Ins- to de Economia da USP, em 1997.

PESQUISA FAPESP 309 | 31


Em que momento a senhora se inte- sugerira. Gale me respondeu que estava desse resultado, encontrar uma prova
ressou pela teoria dos mercados de interessado em mercados de matching e mais curta para ele era um grande de-
matching? me entregou três artigos e um livro para safio. Fui para casa com aquele papel e
Pretendia fazer meu doutorado em pro- ler. Um dos artigos era o escrito por ele trabalhei, com afinco, no fim de semana.
cessos estocásticos [processos que evo- e Shapley sobre os estudantes e as uni- Foi difícil esperar pela segunda-feira pa-
luem conforme variáveis aleatórias, em versidades. Procurei entender as defini- ra mostrar minha demonstração ao Gale.
teoria das probabilidades]. Depois de dois ções e as demonstrações dos resultados. Quase no final de minha apresentação,
meses de leitura nessa área, meu orienta- Algumas semanas depois devolvi a Gale ele começou a bater palmas e a exclamar
dor, Jack Schechtman, me apresentou um o material que me emprestara. Eu não muito empolgado: “Você provou! Você
problema na área de crescimento econô- tinha nenhuma ideia do que fazer com provou”. Começou aí meu percurso num
mico: “Não é sobre processos estocásti- todo aquele conhecimento novo, mas ti- campo de pesquisas quase inexplorado
cos”, disse. “Mas não se preocupe, só que- nha a esperança de que ele pudesse me até então, que contava somente com uma
ro saber como você se sai em economia apontar alguma direção. Tive então ou- meia dúzia de artigos, mas que abria as
matemática.” O modelo econômico estava tro desapontamento: “Bem, eu não tenho portas para o surgimento de uma teoria
pronto e só precisei entrar com a mate- nenhum problema para você”. Quando já matemática, com muitas aplicações à
mática. Tratava-se de uma generalização estava saindo de sua sala ele me chamou economia, e que receberia, ao longo dos
do problema de tese do Jack, que fizera de volta com um papel nas mãos: “O úni- anos, a contribuição de inúmeros mate-
seu doutorado com Gale, então professor co problema que tenho é essa proposição, máticos e economistas, conquistando
titular do Departamento de Matemáti- que estou tentando demonstrar há algum finalmente o seu reconhecimento com
ca na Universidade da Califórnia. E foi tempo sem sucesso. Se ela for verdadeira, o Nobel de Economia em 2012.
assim que esse problema gerou a minha será possível demonstrar o teorema de
tese de doutorado em 1981. Foi publicada Lester Dubins [1920-2010] e David Freed- Seu marido também é matemático?
no Journal of Economic Theory, em 1984, man [1938-2008] em três linhas. Seria Sim. Em 1970, já professora da PUC-RJ,
com o título “On income fluctuations ótimo ter uma demonstração mais curta casei-me com ele, que já era um matemá-
and capital gains”. Ocorreu então que, desse resultado porque então se poderia tico renomado e me deu o seu exemplo,
depois do doutorado, para continuar tra- ensiná-lo em apenas uma aula”, disse ele. dividiu comigo as tarefas domésticas,
balhando nessa área, necessitava ganhar criou comigo dois filhos e foi o maior in-
independência científica. Surgiu, por fim, A senhora conseguiu? centivador na minha carreira. Atualmen-
a ideia de fazer um pós-doutorado com Mesmo sem me dar conta da importân- te, Jorge é professor titular aposentado
Gale. Pedi uma bolsa de pós-doutorado cia, tanto de ordem prática como teórica da USP. Trabalha em sistemas dinâmi-
ao CNPq [Conselho Nacional de Desen- cos [espécie de função que representa
volvimento Científico e Tecnológico] e os valores que uma variável assume ao
fui para Berkeley, em fevereiro de 1983, longo do tempo, como a que representa
com a esperança de aprender mais sobre o balanço do pêndulo de um relógio].
crescimento econômico e ganhar a inde- Eu o conheci no Impa, em 1970, onde
pendência científica almejada. Chegando ele foi professor titular por mais de 20
lá, expus a minha tese para Gale. No final anos. É peruano, hoje naturalizado bra-
de minha apresentação, ele me parabeni- sileiro. Veio para o Brasil em 1962 para
zou, mas para meu desapontamento me estudar sistemas dinâmicos com Maurí-
comunicou em tom solene: “Não estou
mais interessado nessa área”. Sempre fui cio Peixoto [1921-2019], professor e um
dos fundadores do Impa. Terminou o
doutorado em 1964.
E o que fez? boa aluna em
Passei dois meses frequentando a biblio- Quando surgiu seu interesse pela ma-
teca e tentando encontrar algum pro-
blema novo em crescimento econômico
matemática. temática?
Fui boa aluna em matemática desde
que me interessasse. Certo dia, meu ma-
rido, que também estava num programa
Aos 9 anos, criança. Aos 9 anos, recebi um prêmio
em dinheiro por ter tido, entre os estu-
de pós-doutorado em Berkeley, chamou dantes da quarta série primária [atual
minha atenção para o fato de que eu não recebi um ensino fundamental] do bairro de Jaca-
estava aproveitando a oportunidade de repaguá, no Rio de Janeiro, a maior nota
estar tão próxima de um matemático tão prêmio por na prova final de matemática. Foi sempre
notável como Gale. “Por que não lhe per- muito estimulante intelectualmente pa-
gunta qual o assunto sobre o qual ele está
interessado e tenta aprender esse assunto,
ter tirado ra mim o desafio de resolver problemas
matemáticos. Mas foi no quarto ano do
seja ele qual for?”, ele sugeriu. Por mais
absurda que a ideia de aprender algo no- a maior nota ginásio, da Escola Normal Carmela Du-
tra, no Rio, na qual me formei, em 1961,
vo em matemática, em tão pouco tem- professora primária, que descobri que
po, pudesse me parecer, fiz o que ele me na prova final queria ser docente de matemática de

32 | NOVEMBRO DE 2021
curso médio. Nosso professor de mate- Como está sua vida em meio à pande-
mática era muito temido entre as alunas, mia do novo coronavírus?
conhecido por dar provas difíceis. Tive Eu e meu marido estamos em confina-
nota 10 em todas as provas no decorrer mento desde o início da pandemia. Mas,
do ano, ganhando assim uma competi- Minha eleição após 20 anos morando em São Paulo,
ção com quatro de minhas colegas, que tornei-me muito caseira. Por outro la-
perderam o 10 na última prova. em 2020 do, temos a sorte de morarmos numa
casa grande e confortável aqui no Rio de
Sua mãe era professora de matemática?
Tradicionalmente, em todos os países
para Janeiro, onde podemos caminhar pelo
quintal e tomar sol. Temos uma pisci-
do mundo, os homens têm o respaldo na aquecida e coberta, que nos permite
da família e da sociedade para realizar integrar a exercitar em qualquer época do ano. É
com sucesso seu trabalho, enquanto as a casa onde cresci. Em janeiro do ano
mulheres, em geral, estão ainda buscan- American passado, iniciei uma reforma. Sou a ar-
do seus direitos. Para se ter sucesso na quiteta e a administradora ao mesmo
carreira científica, é necessário muito
tempo de dedicação à pesquisa, partici-
Academy tempo, e essas atividades, junto com as
de dona de casa, embora ambas sejam
pação em congressos importantes, visitas
a centros de pesquisa, interação com ou- of Arts and muito prazerosas, têm me consumido
bastante – descobri que gosto de co-
tros pesquisadores etc. As mulheres da zinhar e coleciono as queimaduras...
minha faixa etária viveram numa época Sciences Assim, tenho pouco tempo livre para
em que tudo isso era muito difícil para as minhas pesquisas, o que tem me an-
elas. Era inconcebível que uma mulher,
casada ou solteira, viajasse sozinha para
foi um sonho gustiado muito. Mas o que me incomoda
mais na pandemia é o fato de não poder
o exterior ou tivesse colegas de trabalho receber ninguém aqui que venha de ôni-
do sexo masculino e, se casada, tivesse bus ou não poder ter uma consulta mé-
compromissos outros que não fossem dica presencial.
com o trabalho no lar, com os filhos e o
marido. Elas viviam à sombra do suces- Profissionalmente, o que mudou com
so profissional do cônjuge. Perdiam sua a pandemia?
identidade, mas se orgulhavam de serem dos alunos de mestrado da instituição Quase nada. Desde 2014 estou aposen-
conhecidas como sra. X ou esposa do dr. eram mulheres. Esse cenário mudou. Ao tada da USP, onde obtive minha livre-
Y. A única profissão bem-vista para as longo desses anos, a mulher deixou de -docência em economia [na Faculdade
mulheres era a de professora de crian- ser apenas dona de casa e tem ido à luta de Economia, Administração e Conta-
ças, porque naquela época não havia pro- para realizar os seus sonhos. Entretan- bilidade, FEA]. Hoje tenho uma posição
fessores homens nas escolas primárias. to, não se exige dela um passo maior do na FGV-RJ [Fundação Getulio Vargas,
Uma minoria foi para a universidade. que fazer um curso superior e chegar ao do Rio de Janeiro], onde ofereço um mi-
No meu caso, tive o privilégio de ser fi- doutorado. Esse feito é comemorado pela nicurso anual de um mês e meio. Como
lha de uma professora de matemática de família. Se ela se aventura na pesquisa, pesquisadora, gosto de trabalhar em
ensino secundário que estava à frente não se costuma incentivar nem cobrar casa, pois produzo mais. No ano pas-
de seu tempo. Percebendo, desde cedo, dela sucesso nessa atividade. Ela ainda sado, consegui terminar três artigos,
o meu gosto por matemática, orientou- é muito requisitada na vida doméstica que estão submetidos para publicação.
-me para cursar uma faculdade e obter a e, quando a profissão do cônjuge não Também participei de um congresso on-
licenciatura. Ingressei na Faculdade de é a acadêmica, os interesses de ordem -line em Providence, nos Estados Uni-
Filosofia, Ciências e Letras, da então de- profissional podem conflitar. Talvez is- dos, como convidada. O ano de 2020 foi
nominada Universidade do Brasil [hoje, so explique a baixa representatividade muito gratificante. Em maio do ano pas-
UFRJ], em 1964. feminina em prêmios científicos e de sado, fui eleita membro da Associação
pesquisa. O prêmio TWAS [Academia American Academy of Arts and Scien-
Havia mulheres no curso? Mundial de Ciências do Terceiro Mun- ces, mas, por conta da pandemia, minha
Na graduação, embora minha turma fos- do], considerado o Nobel dos países em posse foi adiada para 2022. De qualquer
se pequena, as mulheres eram a maioria. desenvolvimento e que recebi em 2016, é forma, a minha eleição foi como um so-
Nessa época, os homens que gostavam um exemplo. Dentre os ganhadores nas nho bom no meio de um grande pesa-
de matemática faziam engenharia, que nove categorias, fui a única mulher. No delo. Ainda em 2021, tenho dois artigos
lhes dava uma profissão com mais status Brasil demos um salto grande na parti- para terminar e a participação em dois
do que o magistério. A licenciatura em cipação da mulher nas universidades, congressos internacionais como pales-
matemática era mais procurada pelas mas em alguns países mais desenvol- trante convidada. Considero-me uma
mulheres. Engenharia não era conside- vidos economicamente, como o Japão, pesquisadora realizada, cujo trabalho
rada profissão para mulher. Entretanto, ser professor de ensino superior ainda científico tem sido reconhecido no Brasil
quando ingressei no Impa, somente 30% é uma profissão de homens. e no exterior. n

PESQUISA FAPESP 309 | 33


CAPA

34 | NOVEMBRO DE 2021
País conta com 88 indicações geográficas
que norteiam a produção de queijos, vinhos, cafés,
frutas e outros produtos em áreas demarcadas

Marcos Pivetta

U
m movimento silencioso comerciais entre países ou blocos econômicos, algo
de valorização de produtos que ainda não ocorreu.
oriundos de áreas específicas Um quarto das IG brasileiras foi reconhecido de
do território nacional, quase 2020 para cá, conferindo um novo dinamismo a
todos derivados da agrope- um processo que começou duas décadas atrás. “No
cuária e do manejo de recur- momento, estão em análise técnica 27 pedidos para
sos naturais, consolidou-se e reconhecimento de outras indicações geográficas
ganhou corpo, literalmente, no país”, diz Pablo Regalado, chefe do setor do INPI
de norte a sul no Brasil nas duas últimas déca- que examina esse tipo de demanda. Atualmente,
das. Até meados de outubro deste ano, o Instituto demora em média 20 meses para o instituto dar um
Nacional da Propriedade Industrial (INPI) havia primeiro parecer, favorável ou não, ao reconheci-
aprovado 88 indicações geográficas (IG) brasilei- mento de uma nova IG. A lei que permitiu o esta-
ras, 68 na modalidade indicação de procedência belecimento de indicações geográficas brasileiras
(IP) e 20 na de denominação de origem (DO). Há é de 1996. Seis anos mais tarde, surgiu a primeira
IG em todas as grandes regiões do país. O Sudeste IG nacional. Em 2002, foi instituída legalmente a
e o Sul têm, respectivamente, 29 e 27 indicações indicação de procedência referente à produção de
geográficas reconhecidas. A seguir aparecem o vinhos e espumantes em uma pequena área delimi-
Nordeste (16 IG), o Norte (12) e o Centro-Oeste (4). tada da serra Gaúcha, o Vale dos Vinhedos.
Com 14 indicações geográficas reconhecidas, seis Desde então, o conceito de indicação geográfica
referentes à produção de café e duas de queijo, Mi- foi aplicado para outros produtos, como cafés, quei-
nas Gerais é o estado com maior número de áreas jos, cachaças, mel, frutas, pescados, carnes, além
legalmente delimitadas, ao lado do Rio Grande do de vinhos. Rochas e pedras ornamentais também
Sul. Os gaúchos detêm também 14 IG, das quais sete podem ser contempladas com indicações geográ-
de vinhos e espumantes. A seguir, surgem o Para- ficas. Três das quatro IG do Rio Janeiro dizem
ná (10), o Espírito Santo (8), Santa Catarina (6) e respeito a pedras ornamentais (a outra engloba a
o Amazonas (6). Como o Rio de Janeiro, São Paulo cachaça de Paraty). “A legislação brasileira permite
apresenta quatro áreas de produção demarcadas re- até o registro de IG nas áreas de artesanato e de
conhecidas pelo INPI, duas delas de café (ver mapa serviços”, destaca a professora de direito econô-
na versão eletrônica desta reportagem com todas as mico e do trabalho Kelly Bruch, da Universidade
Queijo Canastra, IG brasileiras). As IG brasileiras não têm validade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), estudiosa
LÉO RAMOS CHAVES

de Minas Gerais, legal no exterior. É preciso entrar com um pedido, do marco legal das IG brasileiras. Recentemente,
um dos cinco queijos
como se faz com uma patente, para cada uma delas a França também passou a reconhecer IG para o
nacionais com
indicação geográfica nos mercados de interesse. Outra possibilidade é setor de artesanato. As normativas brasileiras que
reconhecida seu reconhecimento coletivo por meio de acordos regem a criação de uma indicação geográfica no

PESQUISA FAPESP 309 | 35


O crescimento das regiões delimitadas
Um quarto das indicações geográficas foi criado de 2020 para cá 88
75
66
61
55
51
45
41
38
32

14
6 8
2 3 4 4
1 1 1

2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016 2017 2018 2019 2020 2021*

FONTE INPI *ATÉ AGOSTO

país são inspiradas pela legislação europeia, que obediência das normas da indicação geográfica.
valoriza produtos agropecuários fabricados em Embora uma IP ou uma DO seja concedida pelo
áreas delimitadas, geralmente com ingredientes INPI para uma pessoa jurídica (geralmente, uma
ou práticas tipicamente locais ou específicas (ver associação de fabricantes, uma cooperativa ou
box na página 40). um sindicato), produtores locais não membros
As duas modalidades de IG apresentam muitas dessa entidade de classe podem usar o nome da
semelhanças e algumas diferenças. Em comum, indicação geográfica em seus produtos desde que
indicações de procedência e denominações de ori- cumpram os requisitos legais da IG.
gem regulam as regras de fabricação de um deter- A designação de uma IG faz referência explícita
minado tipo de bem pelos produtores instalados a um determinado lugar, que não precisa obede-
no interior de uma área geográfica demarcada. cer aos limites administrativos de estados e mu-
Esse produto precisa ser feito de acordo com uma nicípios. Ela pode ser uma alusão a um aciden-
série de diretrizes, que podem ser relativamente te geográfico, como uma serra ou um rio, a uma
genéricas ou bastante restritivas. Os produtores área popularmente conhecida ou a uma cidade.
que seguem essas normas, discriminadas em um “O importante é que o nome geográfico tenha
caderno de especificações técnicas, podem usar o associação comprovada com o produto regulado
nome da IP ou DO em seus produtos. Um conse- pela IG”, explica a veterinária Débora Gomide
lho regulador interno é responsável por zelar pela Santiago, coordenadora de indicação geográfi-

O exemplo do vinho gaúcho


Talvez por ter sido a primeira indicação Jaime Milan, que foi dirigente da Aprovale número e o perfil dos associados da
geográfica brasileira, ou por fazer parte de e atualmente presta consultoria a essa Aprovale, a IG teve o efeito de estimular
um setor internacionalmente associado e a outras entidades, além de ser presidente o empreendedorismo na região, que cresce FOTO  GILMAR GOMES / APROVALE  INFOGRÁFICO ALEXANDRE AFFONSO

à valorização da produção dentro de da Associação Brasileira de Indicações à medida que o turismo local se desenvolve.
zonas demarcadas, o Vale dos Vinhedos Geográficas (Abrig), criada em julho deste Em 2001, 45 mil pessoas visitaram
é considerado a mais bem-sucedida IG ano. “Hoje, 26 vinícolas e cerca de 40 o Vale dos Vinhedos. Em 2019, antes do
nacional. O início dessa história se deu em estabelecimentos comerciais, como hotéis, início da pandemia de Covid-19, quase
1995, quando foi criada a Associação dos restaurantes e outros tipos de comércio, meio milhão de turistas passeou entre
Produtores de Vinhos Finos do Vale dos fazem parte da Aprovale.” os parreirais da região. “O Vale dos
Vinhedos (Aprovale), entidade que, com Em média, o Vale dos Vinhedos produz Vinhedos é uma referência para as demais
o apoio da Embrapa Uva e Vinho e parceiros, anualmente 5 milhões de garrafas de indicações geográficas”, comenta Hulda
deu início ao trabalho de caracterização física vinhos e espumantes finos. É uma Oliveira Giesbrecht, analista de inovação
(clima, solo, relevo) da área e entrou no INPI quantidade relativamente pequena, cerca do Serviço Brasileiro de Apoio às
com o pedido de reconhecimento de uma IG. de 17% do total de vinhos finos e 12% do de Micro e Pequenas Empresas (Sebrae), que
“Quando a IG foi concedida em 2002, espumantes do Rio Grande do Sul, estado coordena os trabalhos da entidade
a associação contava com apenas meia dúzia responsável por 90% da produção no território nacional com os produtores
de produtores associados”, lembra o enólogo nacional do setor. Mas, como indica o dos mais diversos tipos de IG.

36 | NOVEMBRO DE 2021
ca de produtos agropecuários do Ministério da uma extensão de 72 quilômetros quadrados (km2)
Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa). que se espalham por setores de três municípios.
Nas indicações de procedência, uma das mo- Bento Gonçalves abarca 61% da zona demarcada,
dalidades reconhecidas dentro do conceito de Garibaldi detém 34% da área da DO e Monte Belo
indicação geográfica, não é necessário demons- do Sul 5%. Entre suas normativas, a DO Vale dos
trar que as propriedades do produto decorrem Vinhedos prevê que a produção de vinhos tintos
das características geográficas do seu lugar de deve ser feita, total ou majoritariamente, com a
origem ou do domínio de técnicas de fabricação uva Merlot. Nos brancos, a maior parcela do vi-
típicas dessa região. Basta comprovar que uma nho deve vir da uva Chardonnay.
área apresenta um longo histórico de produção Os espumantes devem ser feitos com pelo me-
de um bem e adquiriu certa notoriedade ou re- nos 60% de uvas Chardonnay e/ou Pinot Noir e
putação por fabricar esse produto. “Nesse caso, o serem elaborados pelo chamado método tradicio-
fator determinante é indicar, por meio de pesquisa nal, similar ao empregado na França para a pro-
histórica em livros e meios de comunicação, que a dução de Champanhe. “Todas as uvas usadas nos
área adquiriu notoriedade na elaboração de certo vinhos que recebem o selo da DO devem ser plan-
produto”, explica Bruch. tadas na área delimitada do Vale dos Vinhedos”,
Nas denominações de origem, um caso mais esclarece Tonietto. É possível produzir vinhos
específico no campo das indicações geográficas, com outras uvas e outras características nesse
as exigências são mais rígidas. “É preciso demons- pedaço da serra Gaúcha? Claro que sim (muitos
trar que as propriedades do produto decorrem produtores fazem isso). Mas esses produtos não
de fatores naturais, como clima, solo e relevo, e podem trazer o nome da DO em seu rótulo. A
também de técnicas e conhecimentos dominados história do Vale dos Vinhedos é frequentemente
pelos produtores de uma região”, explica o en- apontada como um exemplo de sucesso para as
genheiro-agrônomo Jorge Tonietto, da Embrapa demais indicações geográficas brasileiras (ver

O
Uva e Vinho, de Bento Gonçalves, que trabalhou box na página 36).
no processo de caracterização geográfica das se-
te indicações gaúchas de vinhos. Especialista em setor de cafés, produ-
zoneamento climático para a viticultura, Tonietto to fortemente ligado
é uma referência para trabalhos cujo objetivo é à história econômica
fornecer uma base de informações técnicas para nacional, abriga 13 in-
amparar a estruturação de IP e DO. dicações geográficas, o
A primeira indicação geográfica brasileira, o maior número do país.
Vale dos Vinhedos, ilustra bem como funciona São oito indicações de
uma área legalmente demarcada para vinhos e procedência e cinco de-
espumantes. Reconhecida como IP em 2002, es- nominações de origem. Aprovada em junho deste
sa área da serra Gaúcha foi elevada à condição de ano, a DO Matas de Rondônia é a região demarcada
denominação de origem em 2012. O vale abrange que mais recentemente obteve esse tipo de per-

Parreiral no Vale
dos Vinhedos:
quase meio milhão
de turistas por ano

PESQUISA FAPESP 309 | 37


Os produtos
Sacas de café da
denominação de origem

representados
Cerrado Mineiro e cafezal
na área da indicação
de procedência da Alta
nas indicações Mogiana, no interior
paulista (foto mais abaixo)

geográficas
Além de alimentos e bebidas,
as IG incluem artesanato,
pedras ornamentais e até serviços

Cafés
13

Fruticultura
13

Artesanato e cerâmica
13

Outros produtos alimentícios


13

Vinhos e espumantes
9 1

Mel e própolis
6

Carnes, pescados e derivados


5

Queijos
5

Rochas e pedras ornamentais


5

Cachaças
3

Serviços
1

Calçados/Modas
1

Peixes ornamentais
1

88 no total

FONTE INPI

38 | NOVEMBRO DE 2021
2013 e abarca municípios nos arredores de Franca.
A segunda foi criada em 2016 e engloba os muni-
cípios paulistas de Espírito Santo do Pinhal, Santo
Antônio do Jardim, Aguaí, São João da Boa Vista,
Águas da Prata, Estiva Gerbi, Mogi Guaçu e Ita-
pira. “Tivemos a ideia de pedir a criação de uma
indicação geográfica para promover nossa região
e seus produtores de café”, diz Gabriel Borges,
gestor da Alta Mogiana Specialty Coffees (AMSC),
associação que reúne 90 produtores e requereu a
IG. Atualmente, a entidade estuda pedir uma pe-
quena expansão da área delimitada, para incluir
mais alguns municípios mineiros e paulistas. A
região produz entre 4 e 5 milhões de sacas (de 60
quilos) de café anualmente, mais da metade delas
destinadas à exportação.
“As indicações geográficas são mais um instru-
mento de proteção contra fraudes e de valorização
de nosso produto”, afirma Juliano Tarabal, supe-
rintendente da Federação dos Cafeicultores do
Cerrado, que obteve uma IP em 2005, a segunda
A produção de
guaraná é protegida mais antiga do país. Em 2013, a região do Cerrado
em duas áreas, no Mineiro, que se estende por 55 municípios, tam-
município amazonense bém foi reconhecida como uma DO. A produção
de Maués e na Terra
Indígena Andirá-Marau,
da denominação de origem é de cerca de 6 milhões
na divisa do Amazonas de sacas anuais de café arábica, das quais 70% são

O
com o Pará destinadas ao mercado externo.
2
3

missão legal. Ela abrange 15 municípios do estado s queijos artesanais feitos


amazônico, onde se planta o chamado café robusta dentro de indicações geo-
ou Connilon, da espécie Coffea canephora, mais gráficas também vêm ga-
rústico do que o café arábica (Coffea arabica), de nhando prestígio e espaço
maior prestígio no mercado. na mesa do consumidor.
Seis estados cultivam café dentro de áreas le- Há cinco áreas delimita-
galmente demarcadas e protegidas por uma IG. das: quatro como IP (Ca-
“Para as regiões de cafeicultura, ser reconheci- nastra e Serro, em Minas
INFOGRÁFICO  ALEXANDRE AFFONSO

da como uma IG tem uma função semelhante à Gerais, Colônia Witmarsum, no Paraná, e Marajó,
obtenção de outros tipos de certificação valo- no Pará) e uma DO (queijo artesanal Serrano, da
rizados pelo mercado, como o selo de fairtrade divisa de Santa Catarina com o Rio Grande do Sul).
[comércio justo], com a vantagem de ser em ge- Produzido com leite cru bovino, não pasteurizado,
ral um processo mais em conta e, por enquanto, em sete municípios da Serra da Canastra, o quei-
menos sujeito a auditorias externas”, comenta a jo homônimo é possivelmente o mais conhecido
NONOONO

agrônoma Flávia Bliska, do Centro de Café “Al- deles. O Canastra tornou-se uma alternativa com
cides de Carvalho” do Instituto Agronômico de maior valor agregado para uma área cujo destino
RAMOS CHAVES 
DAMBROS  3 LÉOILUSTRAÇÃO

Campinas (IAC). da produção sempre foi o genérico queijo Minas


A pesquisadora estuda a gestão econômica de Frescal. “A maturação de, no mínimo, 14 dias torna
empresas cafeeiras em São Paulo e em outros o queijo Canastra um produto mais complexo e
4 NONONONONO 

estados. Segundo Bliska, mesmo em regiões que valorizado”, explica Júnio Cesar de Paula, pesqui-
receberam indicações geográficas, nem sempre a sador do Instituto de Laticínios Cândido Tostes
qualidade do produto é elevada. “Conheço pro- da Empresa de Pesquisa Agropecuária de Minas
MINEIRO  2 LUCA

dutores da região do Caparaó, na divisa de Mi- Gerais (Epamig), em Juiz de Fora.


2 NONONONNO 

nas com Espírito Santo, que colhem café verde O valor de uma peça de queijo Minas Frescal,
em elevada proporção em relação ao maduro, com cerca de 1 quilo, vendido um ou dois dias
além de não secarem os grãos de forma adequada, depois de sua produção, gira em torno de R$ 15,
DO CERRADO
3 NONONONONO

deixando-os algumas vezes mofar”, diz a agrô- cerca de quatro vezes menos do que um pedaço
noma do IAC. equivalente de queijo Canastra, segundo de Paula.
1 EREGIÃO

São Paulo tem duas áreas protegidas por IG para “Recebemos a visita de produtores franceses de
a produção de café arábica: as IP Alta Mogiana e queijo no início dos anos 2000 e fomos estimu-
FOTOS 1
FOTOS 

Região do Pinhal. A primeira foi reconhecida em lados a estruturar uma indicação geográfica”,

PESQUISA FAPESP 309 | 39


1

Um mercado de € 77 bilhões


na Europa
A Europa é o berço das indicações geográficas, um conceito que,
aos poucos, vai se difundindo por outros continentes. Os produtos
agropecuários de maior prestígio e valor agregado de países
como França, Itália, Espanha e Portugal são elaborados em áreas
delimitadas, de acordo com a legislação e as práticas que norteiam
as diferentes modalidades de IG. Estudo divulgado neste ano pela
Comissão Europeia avaliou que o valor de mercado de produtos
agrícolas originários das 3.200 IG do continente chega a
€ 77 bilhões. Apenas o setor de vinhos movimenta pouco mais da
metade dessa cifra. Todos os produtos agropecuários franceses e
italianos de origem respondem, respectivamente, por um terço
O presunto
e um quinto do valor total da produção de IG europeias.
serrano espanhol
Segundo o Instituto Nacional da Origem e da Qualidade (Inao), é uma das
a França tem 55 tipos de queijo protegidos por uma IG, como 3.200 indicações
o Camembert de Normandie, o Brie de Meaux, o Roquefort e o geográficas
da Europa
Gruyère. A Itália não fica atrás, com 56 IG de queijos, como
o Gorgonzola, o Parmigiano Reggiano (o parmesão), o Grana Padano
e o Pecorino Romano. Tanto na França como na Itália o número de
áreas geograficamente delimitadas e regulamentadas para produção
de vinhos passa, com folga, o número de dias de um ano.

conta Higor Freitas, gerente da Associação dos A DO reconhece os métodos ancestrais dos
Produtores de Queijo Canastra (Aprocan). Ainda indígenas na produção e secagem das sementes
há um longo caminho para o Canastra se firmar de da planta. Os grãos são desidratados em fornos
vez na região. Dos cerca de 800 produtores locais de barro e passam por um processo de defuma-
de queijo, em geral empreendimentos familiares ção que lhes confere aromas e ajuda no processo
de pequeno porte, que fabricam em média 20 pe- de conservação. O cultivo do guaraná se dá, em
ças por dia, apenas 70 fazem parte da Aprocan e grande medida, nas chamadas terras pretas de
usam com regularidade o nome queijo Canastra índio, um tipo de solo frequentemente descrito

E
em seu produto. como de origem antrópica, que se formou a par-
tir de restos orgânicos produzidos por seguidos
m outubro do ano passado, a pri- assentamentos humanos. O alto teor de cafeína
meira IG brasileira abrangendo do guaraná da região, por vezes acima dos 5%, é,
um produto oriundo de terras em parte, atribuído ao seu cultivo nesse tipo de
indígenas protegidas pela Funai solo. A polinização dos guaranazais é feita pelas
foi reconhecida. A denominação chamadas abelhas canudo, do gênero Scaptotrigo-
de origem Terra Indígena Andirá- na, que não têm ferrão. A produção dos indígenas
-Marau foi concedida ao Consórcio é basicamente exportada para a Europa.
de Produtores Sateré-Mawé (CP- A DO na terra indígena é a segunda área demar-
FOTOS 1 WIKIMEDIA COMMONS 2 EDUARDO CESAR  3 PORTO DIGITAL

SM). Os membros da etnia podem usá-la em seu cada para produção de guaraná naquela região
guaraná (Paullinia cupana), produzido na região da amazônica. Desde janeiro de 2019, existe outra
bacia do médio Amazonas, na fronteira dos estados indicação geográfica, a IP Guaraná de Maués,
do Amazonas com o Pará. O território indígena se cuja zona delimitada é vizinha aos domínios dos
estende por 7.890 km2 e engloba partes dos municí- Sateré-Mawé, sem, no entanto, haver sobreposi-
pios de Aveiro, Itaituba e Juruti, no Pará, e Maués e ção de área. Como indica seu nome, a IP Maués
Barreirinha, no Amazonas. O guaraná, denominado abrange todo o território desse município, com
waraná pelos indígenas, é de origem amazônica. “A exceção do trecho que faz parte do território in-
planta foi domesticada pelos Sateré-Mawé e essa dígena. O produto é muito semelhante ao oriun-
região é considerada o berço genético da espécie”, do das terras dos Sateré-Mawé, mas há algumas
comenta Débora Gomide Santiago, do Mapa. “Os diferenças. “Cultivamos mudas de guaraná da
indígenas têm uma tradição e um saber-fazer in- região fornecidas pela Embrapa enquanto os in-
trínsecos à produção do guaraná.” dígenas preferem trabalhar apenas com as plan-

40 | NOVEMBRO DE 2021
tas de guaraná presentes em suas terras”, explica Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI) com
Luca Dambros, vice-presidente da Associação dos atuação no Amazonas, e com o cultivo do cacau
Produtores de Guaraná da Indicação Geográfica em Tomé-Açu, no Pará, entre outros produtos.
de Maués. “Também evitamos defumar nosso Em Linhares, no Espírito Santo, e no sul da Ba-
guaraná depois de seco.” A produção de guaraná hia, também há duas indicações geográficas que
de Maués atinge cerca de 300 toneladas por ano protegem a produção da matéria-prima do cho-
e engloba por volta de 1.200 produtores. “Mas, colate. O cultivo de mangas e uvas para consumo
no ano passado, apenas 2,5 toneladas receberam in natura no vale do Submédio São Francisco e o
o selo da IP Maués”, comenta Dambros. “Neste de melões em Mossoró, no Rio Grande do Norte,
ano, devemos aprovar 40 toneladas.” A maior van- são dois outros exemplos de IP de frutos.
tagem do produto certificado pela IP de Maués
é a obtenção de um melhor preço no mercado CERÂMICA E SERVIÇOS DIGITAIS
nacional, que pode chegar a R$ 28 por quilo em O território paulista tem duas indicações geo-

O
vez dos usuais R$ 15 ou R$ 20. gráficas de produtos normalmente não cobertos
por essa forma de proteção legal. Um deles é o
guaraná não é o único calçado de Franca. O outro é o polo de cerâmica
produto amazônico co- artística em Porto Ferreira, que, desde os anos
berto por IG. Três tipos 2000, contou, em diferentes momentos, com o
de farinha de mandioca apoio de pesquisadores do Centro de Desenvolvi-
— das regiões de Cru- mento de Materiais Funcionais (CDMF), um dos
O cacau plantado
zeiro do Sul, no Acre, de Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid)
no sul da Bahia (abaixo)
é reconhecido Bragança, no Pará, e do apoiados pela FAPESP.
por uma indicação Uarini, no Amazonas — “Em Porto Ferreira, transformamos os fornos
de procedência. tornaram-se recentemente indicações de proce- elétricos em a gás, antecedendo a crise energé-
O Porto Digital, no
Recife, é a única
dência. O mesmo ocorreu com o peixe pirarucu tica”, conta o químico Elson Longo, professor
indicação geográfica manejado dentro das terras do Instituto Mamirauá, emérito da Universidade Federal de São Carlos
brasileira de serviços organização social fomentada pelo Ministério da (UFSCar) e diretor do CDMF. “Também melho-
2
ramos a massa cerâmica e aprimoramos suas pro-
priedades mecânicas. Ainda demos assistência
pontual para resolver problemas nos pigmentos.”
Nenhuma indicação geográfica, no entanto, é
tão inusitada quanto a do Porto Digital, um polo
de tecnologia da informação criado no Recife
há pouco mais de duas décadas. Desde 2012, o
empreendimento ostenta a condição de única IG
brasileira da área de prestação de serviços, um
caso raro no universo das IP e DO. “O pessoal do
INPI estranhou quando demos entrada com o pe-
dido de uma indicação de procedência, mas eles
foram muito receptivos e nos ajudaram em todo
o processo”, recorda-se Heraldo Ourem, diretor
3 de Inovação e Competitividade do Porto Digital.
O coração do parque tecnológico, composto por
350 empresas de software que faturaram R$ 2,8
bilhões no ano passado, está no bairro do Recife
Antigo, uma ilhota margeada pelos rios Capibaribe
e Beberibe e pelo oceano Atlântico, onde nasceu
a capital pernambucana. “A história, a geografia
e nossa cultura de inovação e responsabilida-
de social permitiram que conseguíssemos nossa
indicação geográfica”, diz Ourem. A iniciativa
sui generis dos dirigentes do Porto Digital pode
servir de estímulo para que mais setores, seja da
área de produtos ou mesmo de serviços, tentem
obter uma IG. Para ajudar o consumidor a iden-
tificar os produtos de origem protegidos por IP e
DO nacionais, foi instituído recentemente o Selo
Brasileiro de Indicações Geográficas que poderá
ser usado por todas as IG. n

PESQUISA FAPESP 309 | 41


FORMAÇÃO

TURBULÊNCIA
NO HORIZONTE DA PÓS-GRADUAÇÃO

42 | NOVEMBRO DE 2021
Avaliação quadrienal dos cursos de mestrado
e doutorado é suspensa pela Justiça e incertezas
comprometem planejamento dos programas

Fabrício Marques

A
avaliação quadrienal às instituições reverem atos anteriores e gramas preencheram relatórios com uma
dos programas de pós- readequarem suas rotinas e procedimen- grande quantidade de informações co-
-graduação do Brasil, tos para atender aos novos parâmetros lhidas ao longo de quatro anos e a maio-
utilizada para aferir a pelos quais serão avaliadas”, escreveram ria se preparou, investiu e promoveu
qualidade dos 6,5 mil os procuradores. “Há violação ao direito aperfeiçoamentos com expectativa de
cursos de mestrado e de toda a sociedade de ser fiscalizada melhorar suas notas. O fluxo da avalia-
doutorado do país e adequadamente pela administração pú- ção é muito bem compreendido pelo
nortear a distribuição blica e de ver operada uma distribuição sistema de pós-graduação. A suspen-
de bolsas e verbas, está correta e impessoal de verbas públicas, são desmerece todo esse esforço.” Ma-
sofrendo uma contes- o que é desvirtuado e impactado pela ria Valnice Boldrin, pró-reitora de Pós-
tação na Justiça que é avaliação ilícita da Capes em relação aos -graduação da Universidade Estadual
inédita em seus 45 anos de existência. cursos fiscalizados.” Paulista (Unesp), conta que, em 2020,
Em resposta a uma ação civil pública Eles sugerem a adoção de critérios 24 programas da instituição foram alvo
do Ministério Público Federal (MPF), a idênticos aos utilizados na avaliação de fusões, gerando 12 programas novos –
juíza Andrea de Araújo Peixoto, da 32ª anterior, encerrada em 2016, para men- o objetivo era unir esforços e dar mais
Vara Federal do Rio de Janeiro, conce- surar a qualidade dos cursos em 2021. robustez aos cursos e consistência à for-
deu em setembro uma liminar deter- A ação tem como base um inquérito do mação dos mestres e doutores. “Há uma
minando a suspensão da avaliação do MPF instalado em 2018, que investiga grande expectativa para saber como será
período 2017-2021, que estava em sua as regras adotadas pela Capes e foi mo- o desempenho desses e também dos ou-
etapa final e deveria divulgar resultados tivado por críticas, que são habituais tros 116 programas, pois com a avaliação
em dezembro. na época da divulgação dos resultados, podemos rever metas e traçar políticas
A alegação dos procuradores Jessé formuladas por coordenadores de pro- mais assertivas.”
Ambrósio dos Santos Jr. e Antônio do gramas insatisfeitos com a metodologia A Capes monitora a qualidade da pós-
Passo Cabral é que a Coordenação Na- adotada ou com as notas que receberam. -graduação brasileira desde 1976 e segue
cional de Aperfeiçoamento de Pessoal de A juíza fluminense deu um prazo de 30 há mais de duas décadas um modelo em
Nível Superior (Capes), agência do Mi- dias para a Capes informar os critérios que os responsáveis pelos programas
nistério da Educação (MEC) responsável adotados. preenchem periodicamente um ques-
pela análise e classificação dos cursos, O embargo do processo de avaliação tionário com informações sobre vários
modifica os parâmetros ao longo dos causou perplexidade no ambiente aca- quesitos. Tais dados são analisados pri-
E_ZEBOLOV / GETTY IMAGES

quatro anos do processo e isso gera in- dêmico. “A insegurança é muito gran- meiro por comitês de especialistas de 49
segurança jurídica para os programas. de”, afirma Ricardo Pimenta Bertolla, áreas do conhecimento, aos quais cabe
“Aplicam-se retroativamente critérios pró-reitor adjunto de Pós-graduação apurar os resultados e recomendar no-
novos, às vezes, definidos no final do da Universidade Federal de São Paulo tas. Em um segundo momento, o Con-
período de avaliação, sendo impossível (Unifesp). “Os responsáveis pelos pro- selho Técnico-Científico da Educação

PESQUISA FAPESP 309 | 43


Superior (CTC) da Capes, composto por por decisão de comissões formadas pe-
coordenadores das áreas dos programas, los coordenadores de área, a depender

A
revisa os resultados e define as notas. do conjunto de dados coletados sobre a
produção científica. “Essa definição fica
decisão judicial traz para o final porque a avaliação é de cará-
incertezas porque a sis- ter comparativo e seu objetivo é mostrar
temática criticada pelo a posição dos programas uns em relação
Ministério Público é aos outros em 2021”, explica Carlotti.
considerada confiável “É preciso conhecer primeiro o univer-
pela comunidade cien- so da produção no período para definir
tífica. De acordo com uma métrica baseada na realidade des- RECLAMAR E PROPOR
Carlos Gilberto Carlot-
ti Júnior, pró-reitor de
ses quatro anos, que, espera-se, esteja
em um patamar mais elevado do que APERFEIÇOAMENTOS
Pós-graduação da Uni-
versidade de São Paulo
nos quatro anos anteriores.” O risco, ao
se adotar os mesmos critérios do pro-
É UMA COISA.
(USP), há uma certa confusão na ideia de
que os critérios são definidos a posteriori
cesso anterior, é de que muitos cursos
alcancem o patamar mais alto e não haja
OUTRA É SUSPENDER
e têm efeito retroativo. “A avaliação tem uma ferramenta para identificar nuan- A AVALIAÇÃO. ISSO
três focos: a estrutura dos programas,
a produção dos docentes e a produção
ças e distinguir a excelência. As notas
vão de 3 a 7. “Também não faria sentido ENFRAQUECE UM DOS
dos egressos. Isso está definido desde o
início”, explica. Na metade do período,
usar dados da avaliação anterior porque
os índices de impacto das publicações,
PILARES DA CIÊNCIA
após os dois primeiros anos do quadriê-
nio, é realizada uma reunião chamada
que orientam o Qualis, mudam todos os
anos. Haveria o perigo de valorizar uma
BRASILEIRA, DIZ
de “meio-termo”, em que se analisa o revista que perdeu reputação ou me- HELENA NADER, DA ABC
andamento da coleta de dados e se apro- nosprezar uma produção importante.”
vam documentos consolidando critérios. Para o presidente da Sociedade Brasi-
O que é calibrado perto do final do leira para o Progresso da Ciência (SBPC),
quadriênio é o peso atribuído aos tra- Renato Janine Ribeiro, que já foi diretor
balhos científicos de alunos e pesquisa- de avaliação da Capes, a judicialização
dores. Nos programas em que essa pro- do processo cria um problema delica-
dução é baseada em artigos, as notas são do, que é a Justiça se envolver em um
norteadas por uma tabela de classifica- assunto que ela pode não ter condição
ção de revistas conhecida como Qualis de compreender e examinar adequada-
Periódicos, vinculada a índices de cita- mente. “A situação é semelhante a você
ções das publicações. Mas o peso confe- ter um concurso para professor titular de
rido aos papers pode vir a sofrer ajustes língua grega e um juiz impugnar o resul-

FORMAÇÃO DE MESTRES E DOUTORES


Evolução do número de titulados por ano pelos programas de pós-graduação no Brasil

Mestrado acadêmico Doutorado Mestrado profissional 53.515

50.000 47.644

40.000 36.247

30.000
25.997 24.280
18.996
INFOGRÁFICO ALEXANDRE AFFONSO

20.000
15.362
12.351
11.314
8.094 9.023
10.000
3.915 3.343
1.652
0
0
1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016 2017 2018 2019

FONTE  CAPES / COORDENAÇÃO DE INDICADORES DE CIÊNCIA, TECNOLOGIA E INOVAÇÃO (MCTI)

44 | NOVEMBRO DE 2021
tado. É muito pouco provável que o juiz nal. A decisão foi tomada sob o argumen- cita como exemplo o Programa Institu-
saiba mais sobre a competência dos can- to de que a composição estava irregular cional de Internacionalização das Uni-
didatos do que a banca que os avaliou”, e continha 20 membros representando versidades Brasileiras (PrInt), lançado
afirma. Segundo Ribeiro, a turbulência as coordenações de áreas, quando o esta- pela Capes em 2017 com o objetivo de
provocada pela suspensão pode causar tuto da agência prevê apenas 18. Houve estimular parcerias internacionais nos
prejuízos à produção de conhecimen- temores de que o processo de avaliação programas de mestrado e doutorado. A
to, já que os programas se espelham na estivesse em risco, mas, na semana se- agência selecionou 36 instituições para
classificação para planejar seu futuro. guinte, foi convocada uma eleição que participar do PrInt, que se credenciaram
“A ciência brasileira tem uma rela- trouxe de volta 18 dos membros originais a receber recursos federais – a Unesp
ção umbilical com a pós-graduação”, – dois voluntariamente abriram mão de foi uma das instituições contempladas.
observa o neurocientista Luiz Eugênio participar para adequar o conselho às “Em 2020, por conta da pandemia, não
Mello, diretor científico da FAPESP. “A regras vigentes. foram concedidas bolsas de mobilidade,
paralisação do processo de avaliação da Antes da dissolução, a relação entre e agora em 2021 o programa foi suspen-
Capes tira o norte da produção da ciên- o CTC e a direção da agência já andava so. Já estamos no final do ano sem que
cia e deixa em voo cego um importante tensa. Em 10 de setembro, a presidência os recursos tenham sido destinados”,
vetor do desenvolvimento do país.” De da Capes publicou uma portaria con- conta. “É lamentável, porque se trata de
acordo com a bioquímica Helena Nader, solidando as regras do Qualis Periódi- uma iniciativa muito bem estruturada,
vice-presidente da Academia Brasileira cos para a avaliação de 2021, que am- que prometia investir numa política de
de Ciências (ABC), a classificação dos pliou a flexibilidade às coordenações internacionalização mais efetiva dos pro-
cursos é a grande responsável por am- de área para modular o peso atribuído gramas e fomentar a interlocução entre
pliar a excelência dos programas de pós- a publicações científicas, contrariando grupos de pesquisa alinhados a 70 redes
-graduação, que é onde se faz pesquisa o CTC. Também foram inseridos dispo- de pesquisa com membros nacionais e
de alto nível nas universidades, e por sitivos que geraram controvérsia, como internacionais. Esperamos que tudo se
permitir que o Brasil forme hoje mais a possibilidade de que algumas áreas normalize após a avaliação de novem-
de 24 mil doutores por ano. “Os crité- escolhessem entre regras sobre o Qua- bro do PrInt.” De acordo com Boldrin,
rios são definidos por pesquisadores e lis estabelecidas em 2021 ou em 2016. o embargo da avaliação faz parte de um
discutidos de forma exaustiva. É natural A portaria foi igualmente criticada por contexto desfavorável mais extenso. “O
que alguns programas fiquem chateados aspectos que alguns setores esperavam inquérito do MPF já vinha desde 2018,
com seus resultados ou se julguem injus- ver atualizados, mas que permaneceram mas só agora se chegou a esse impasse.
tiçados. Reclamar e propor aperfeiçoa- iguais. “A avaliação continua a se basear Tenho a percepção de que o momento
mentos é uma coisa. Outra é suspender em um impacto esperado da produção vulnerável do sistema de pós-graduação,
a avaliação. Isso enfraquece um dos pi- científica – que é o fator de impacto de com queda de investimentos e a disso-

P
lares da ciência brasileira.” revistas – e não no efetivamente obser- lução do CTC, abriu um flanco para a
vado, que são as citações recebidas por contestação judicial.”
rocurada por Pesquisa cada artigo produzido por docentes e Carlotti, da USP, também considera
FAPESP, a presidente da alunos dos programas de pós-gradua- que a suspensão da avaliação quadrie-
Capes, Cláudia Mansani ção”, afirma Abel Packer, coordenador nal fornece combustível adicional a um
Queda de Toledo, infor- da biblioteca de revistas de acesso aberto processo de enfraquecimento da pós-
mou por meio de nota SciELO Brasil. “Mas a principal decep- -graduação. “O sistema se baseia em
que está procurando so- ção é que a portaria se fechou a conceitos três pilares e agora todos eles estão fra-
luções para dar continui- da chamada ciência aberta, ao excluir gilizados”, afirma. Um deles, explica o
dade à avaliação e defen- da avaliação revistas que adotam algum pró-reitor, é o financiamento de bolsas,
deu o processo, que tem tipo de revisão aberta por pares, como a que tem sofrido sucessivos cortes nos
a participação de mais de British Medical Journal, por considerar últimos anos, principalmente nas agên-
1,5 mil pesquisadores nas que violam boas práticas de publicação. cias federais. Outro, que serve como ân-
49 coordenações de áreas do conheci- Isso parece estender-se a revistas que cora para orientar o aperfeiçoamento
mento. “Reitera-se publicamente a gra- em número crescente aceitam produ- dos programas, é o Plano Nacional de
tidão por todo o empenho demonstrado ção científica publicada previamente Pós-graduação, que tem duração de 10
pelos conselheiros e avaliadores que, ao sem revisão por pares em servidores da anos. “O último plano encerrou-se em
longo dos últimos anos, participaram de web especializados, na forma conhecida 2020 e um novo deveria ter sido dis-
todas as etapas da avaliação, bem como como preprints.” cutido, mas isso ainda não começou”,
pelo espírito público que pautou a atua- Boldrin, da Unesp, observa que a re- afirma. O terceiro pilar é o sistema de
ção de todos.” lação tensa entre a Capes e a comuni- classificação, agora contestado. “A ava-
A suspensão ocorre em um momento dade científica tem pano de fundo mais liação dá segurança para os alunos, pois
de turbulência na Capes. Nos dias que amplo do que os impasses na avaliação. sinaliza quais programas têm a melhor
antecederam a decisão da Justiça, foram “Nos últimos quatro anos, já tivemos qualidade. Sem um plano nacional, sem
destituídos os membros do Conselho quatro presidentes da Capes e essa ro- fomento adequado e com a avaliação
Técnico-Científico (CTC), o colegiado tatividade criou incertezas em relação questionada, todo o sistema pode so-
que delibera sobre a avaliação quadrie- a políticas fundamentais”, afirma. Ela frer prejuízos.” n

PESQUISA FAPESP 309 | 45


GÊNERO

ELAS
E SEUS DISCÍPULOS

FONTE  COMPUTATIONAL SYSTEMS BIOLOGY LABORATORY / HELDER NAYAKA


Estudo sobre a genealogia
acadêmica mostra o legado de
50 cientistas brasileiras na
formação de pesquisadores

U
m diagrama publicado
nas redes sociais animou
o debate sobre um tipo de
contribuição de mulhe-
res cientistas que é pouco
abordado em estudos de
gênero: o trabalho delas
na orientação de alunos e
na formação de novas gerações de pesquisado-
res. A imagem, que lembra uma copa de árvore
vista de cima, é formada por grafos – estruturas
compostas por nós ligados por arestas – e seus
galhos representam as redes de descendentes
acadêmicos de 50 pesquisadoras brasileiras. O
trabalho foi produzido e divulgado no Twitter
pelo imunologista Helder Nakaya, pesquisador
sênior do Hospital Israelita Albert Einstein, e
expôs um legado acadêmico denso e prolífico:
chegou a 32 mil pesquisadores o número de
descendentes diretos (alunos que elas orienta-
ram) e indiretos (as gerações seguintes formadas
por pupilos desses orientandos e seus alunos).
Parte das pesquisadoras mencionadas no
trabalho e seus discípulos compartilharam o
trabalho nas mídias sociais e celebraram seus
resultados. “É um privilégio ver quantos netos
e bisnetos acadêmicos eu já tenho e como foi
possível, na pesquisa sobre a química de produ-
tos naturais, formar grandes alunos”, comenta
Vanderlan Bolzani, do Instituto de Química de
Araraquara da Universidade Estadual Paulista
(Unesp), que tem 169 descendentes acadêmi-
cos distribuídos em três gerações. Ela desta-
ca que os dados sobre genealogia acadêmica
revelam uma influência do trabalho das mu-
lheres cientistas que não é captada por outros
indicadores. “Para formar bons pesquisadores,
é preciso fazer ciência de qualidade, garantir

PESQUISA FAPESP 309 | 47


financiamento para projetos, estabelecer cola- descendentes, entre os diretos e os indiretos.
borações internacionais”, afirma. Bolzani ob- Primeira professora, no Brasil, a fazer douto-
serva que, mesmo formando muitas pessoas, as rado em ciência da computação no exterior, ela
mulheres seguem tendo dificuldade de obter é uma incentivadora da participação feminina
reconhecimento e são poucas as que chegam a na área, que é muito baixa, e criou iniciativas
posições de comando. Um estudo realizado em para atração de talentos quando presidiu a So-
2018 mostrou que, dos 518 membros titulares ciedade Brasileira de Computação. “Hoje, qua-
da Academia Brasileira de Ciências (ABC), só se 20 anos depois daquele começo, a SBC tem
14% eram mulheres. Entre 67 reitores vincu- um programa permanente – o Meninas Digi-
lados à Associação Nacional dos Dirigentes tais – com milhares de jovens em todo o Brasil
das Instituições Federais de Ensino Superior dos 7 aos 18 anos, que aprendem a programar,
(Andifes), há apenas 13 mulheres. construir robôs, desenvolver projetos, graças
Para Bolzani, que também é membro do Con- a centenas de professores dedicados. É uma
selho Superior da FAPESP, dados sobre a con- alegria ter contribuído para isso.” Levando-se
tribuição feminina para a formação de recursos em conta a realidade desse campo do conheci-
humanos são especialmente relevantes em um mento, conseguiu atrair um número razoável
momento em que cientistas discutem como de alunas: dos 20 doutores que formou, cinco

N
colaborar para atingir os Objetivos de Desen- são mulheres, assim como 16 dos 53 mestres.
volvimento Sustentável (ODS) das Nações Uni-
das. “O equilíbrio de gênero é uma das metas a akaya fez o levantamento a
serem atingidas”, lembra ela. princípio por pura curio-
“Fiquei surpresa com esses resultados, por- sidade. Ele explorou um
que não considero que tenha formado muitos banco de dados sobre ge-
alunos”, pondera Belita Koiller, do Instituto nealogia acadêmica cria-
de Física da Universidade Federal do Rio de do por pesquisadores da
Janeiro (UFRJ). Primeira física eleita membro Universidade Federal do
titular da ABC, laureada em 2005 com o Prêmio ABC (UFABC) para mu-
Internacional L’Oréal – Unesco para Mulheres niciar um grupo de discussão de pesquisadores
na Ciência, Koiller tem 11 descendentes diretos do qual participa no WhatsApp. Fez a árvore
e 124 indiretos. O mais importante nesse le- genealógica de 19 cientistas mostrando o quan-
gado, ela diz, é a qualidade dos pesquisadores to eles tinham contribuído para formar novos
que orientou. “Busquei formar alunos melhores pesquisadores. Acabou criticado pela baixíssima
do que eu. Fiz questão de que todos tivessem presença feminina em sua amostra – dos 19, só
experiência no exterior”, afirma. Ela lamenta duas eram mulheres: a geneticista Mayana Zatz,
que a física esteja atrasada em relação a outros da USP, e a bioquímica Helena Nader, da Univer-
campos do conhecimento na capacidade para sidade Federal de São Paulo (Unifesp). Observou
atrair mais talentos femininos e dar condição que a contribuição delas não ficava atrás da dos
para que floresçam. Mas acredita que reconheci- homens, entre os quais rei-
mentos públicos, como o Prêmio Internacional tores e líderes de grandes
L’Oréal – Unesco que recebeu e o Prêmio pa- centros de pesquisa. “Resol-
ra Jovens Pesquisadoras ABC L’Oréal – Unes- vi então fazer um levanta-
co que ajudou a implantar no Brasil em 2006, mento exclusivamente com
quebrem algumas barreiras, deem visibilidade nomes femininos”, conta.
A Plataforma Acácia
a mulheres cientistas e reduzam disparidades. A escolha das 50 cientistas municia estudos
Claudia Bauzer Medeiros, do Instituto de seguiu critérios um tanto
Computação da Universidade Estadual de Cam- subjetivos. Ele buscou no- sobre genealogia
pinas (IC-Unicamp), foi avisada sobre o traba- mes de pesquisadoras ainda
lho de Nakaya por um ex-orientando. “Fiquei vivas em registros como o acadêmica e é
lisonjeada de estar em tão boa companhia”, da Academia Brasileira de
disse. Ainda hoje ela mantém contato com a Ciências e incluiu outras
consultada por
maioria de seus discípulos. “Dos 70 mestres e de que se lembrava. Teve o pesquisadores
doutores que orientei, acompanho a trajetória cuidado de contemplar no-
de uns 50 deles. No ano passado, eles fizeram mes das ciências humanas interessados em traçar
uma festa de aniversário on-line para mim. Teve e sociais, caso da demógra-
gente que se conectou dos Estados Unidos, da fa Elza Berquó, do Centro sua contribuição
Austrália e da Inglaterra. É um orgulho ter for- Brasileiro de Análise e Pla-
mado gente de qualidade que hoje trabalha na nejamento (Cebrap) e da
indústria, na academia e em centros de pesquisa Unicamp, e da economista
do exterior”, afirma a pesquisadora, que tem 325 Maria da Conceição Tava-

48 | NOVEMBRO DE 2021
3

Vanderlan Bolzani, Belita


1 Koiller, Claudia Bauzer 4

Medeiros, Maria da
FOTOS  1 E 5 LÉO RAMOS CHAVES 2 NATIONALACADEMIES.ORG / HUMANRIGHTS  3 MIGUEL BOYAYAN  4 ROBERTO BARROSO / AGÊNCIA BRASIL

Conceição Tavares e Helena


Nader: descendentes
2

res, da UFRJ. “Novamente fui criticado, mas pelas Estado de São Paulo (Ivepesp), uma organização
omissões. Todo mundo lembrava de um nome sem fins lucrativos formada por professores e
importante que ficou de fora”, conta. cientistas, para criar ou melhorar os perfis sobre
O levantamento de Nakaya foi possível gra- as 50 pesquisadoras na biblioteca virtual Wiki-
ças a um projeto sediado na UFABC que desde pédia – e pretende mobilizar os descendentes
2016 permite mapear a genealogia acadêmica acadêmicos das pesquisadoras nessa tarefa. Os
com base em dados extraídos da plataforma de verbetes da Wikipédia são construídos a partir de
currículos Lattes (ver Pesquisa FAPESP nº 249). informações confiáveis disponíveis na internet e
Batizado de Plataforma Acácia, em referência ao o objetivo do biólogo é produzir textos que em-
formato dos galhos da árvore nativa da Austrália, basem os perfis das pesquisadoras. “E queremos
dispõe de dados sobre 1,2 milhão de acadêmicos que os ex-orientandos ajudem a narrar a contri-
brasileiros, informando quantos descendentes buição dessas cientistas”, diz. O físico Helio Dias,
cada um deles tem, quantas gerações já formou, diretor do Ivepesp e pesquisador aposentado do
além do número de “primos”, pesquisadores que Instituto de Física da USP, planeja contratar bol-
compartilham o mesmo “avô” acadêmico. “Que- sistas que ajudem a fazer entrevistas e a levantar
remos ampliar os dados e as possibilidades de dados sobre as perfiladas. Quem também se dispôs
pesquisa na plataforma”, diz Jesús Pascual Mena- a colaborar é Yvonne Mascarenhas, do Instituto
-Chalco, do Centro de Matemática, Computação de Química de São Carlos da USP – ela própria
e Cognição da UFABC e coordenador do proje- uma das 50 pesquisadoras da lista.
to. “Hoje, as informações estão disponíveis em A iniciativa lembra um projeto realizado pela
nível de indivíduos. A ideia é que seja possível física britânica Jessica Wade, do Imperial Col-
fazer análises envolvendo universidades, para lege London, para combater a escassez de per-
mostrar como elas foram influenciadas por ou- fis femininos na Wikipédia. Em parceria com a
tras instituições, como é o caso da UFABC, que jornalista Angela Saini, Wade iniciou em 2017 o
tem a maioria de seus pesquisadores oriundos projeto “Uma cientista por dia na Wikipédia”,
da USP, ou apontar disciplinas e campos do co- um esforço para publicar biografias de pesqui-
nhecimento que forneceram recursos humanos sadoras de diversos países. Elas já emplacaram
para outras áreas.” centenas de biografadas (ver Pesquisa FAPESP
Ele conta que o banco de dados tem municia- nº 276). Em pelo menos um caso, o projeto brasi-
do estudos sobre genealogia acadêmica e vem leiro vai se sobrepor ao britânico. Helena Nader,
sendo objeto de consulta de pesquisadores in- da Unifesp, foi alvo de um dos perfis em inglês
teressados em traçar o impacto de seu trabalho construídos por Wade e Saini. “A Jessica Wade
na geração de recursos humanos. “A plataforma participou de um debate comigo no Museu do
permite várias leituras sobre trajetórias acadê- Amanhã, no Rio de Janeiro, em 2019, sobre mu-
micas, como se vê agora no trabalho sobre as 50 lheres na ciência. Ela foi procurar meu perfil
pesquisadoras brasileiras”, afirma. na Wikipédia e não encontrou. Então, a Angela
O estudo de Nakaya vai ter um desdobramento. Saini preparou”, lembra Nader, que, segundo os
O imunologista fez uma parceria com o Instituto registros da Plataforma Acácia, já tem 497 des-
para a Valorização da Educação e da Pesquisa no cendentes, 66 deles diretos. n Fabrício Marques

PESQUISA FAPESP 309 | 49


INICIAÇÃO CIENTÍFICA

O EXERCÍCIO
DA CURIOSIDADE
O
Colégio particular de s moradores de Paloti- de escamas de tilápia, cascas de uva e
na, no interior do Pa- de grão de café, que tem efeito inibidor
São Paulo atrai projetos raná, já enfrentaram sobre a atividade do sistema nervoso cen-
vários surtos de den- tral dos mosquitos. “Trabalhamos apenas
de outras regiões gue. No oeste do esta- com resíduos de materiais naturais, que
e do exterior para sua do, quase na fronteira não prejudicam o ambiente”, observa o
com o Paraguai, as vastas áreas rurais estudante. O projeto começou a ser feito
feira de ciências da região e o saneamento básico precá- no início de 2020, antes da pandemia.
rio facilitam a proliferação do mosquito Para conduzir os testes com ovos e larvas
Carla Zimmerman transmissor Aedes aegypti. O Paraná, do inseto, Armani montou um pequeno
como um todo, sofre com o problema: laboratório em sua casa sob a supervisão
entre janeiro e setembro deste ano, fo- de sua orientadora, a bióloga Carlise De-
ram confirmados mais de 27 mil casos da bastiani. “As análises referentes à eficácia
doença. “Como a dengue é muito comum do composto precisavam ser feitas de
aqui, comecei a pensar em maneiras de uma em uma hora”, lembra ela.
combater o problema de uma forma mais O projeto foi o vencedor na área de
prática”, conta o estudante João Pedro ciências da saúde da categoria Leonardo
Silvestre Armani, de 18 anos. Aluno do da Vinci, da 3ª Feira Nacional de Ciência
último ano do ensino médio da escola e Tecnologia Dante Alighieri (FeNaDan-
municipal Terra do Saber, de Palotina, te), realizada em setembro pelo colégio
Armani desenvolveu um inseticida à base Dante Alighieri, uma centenária escola

50 | NOVEMBRO DE 2021
Estudantes apresentam seus trabalhos na 3ª FeNaDante: programa de iniciação científica de escola deu origem à feira de ciências

particular de São Paulo fundada por imi- do conhecimento: ciências biológicas, meses, de R$ 100, que usufruíram entre
grantes italianos. Foram inscritos mais exatas e da Terra, humanas, da saúde, janeiro e junho deste ano. O auxílio foi
de 300 projetos – desses, 214 foram sele- agrárias, sociais aplicadas, além de en- utilizado para a gravação de um podcast
cionados, um salto em relação aos 180 na genharias e tecnologia. Os finalistas das sobre agrotóxicos.
edição anterior. São Paulo teve mais da categorias Leonardo da Vinci e Galileu Desde 2006 o Dante Alighieri vem in-
metade dos inscritos, mas a feira atraiu Galilei se credenciam para participar de vestindo na iniciação científica de alu-
projetos de outros 15 estados e do Distri- eventos científicos no Brasil e no exte- nos dos ensinos fundamental e médio,
to Federal. Este ano, o evento se tornou rior, como a Feira Brasileira de Ciências por meio do programa Cientista Apren-
internacional, com a participação de es- e Engenharia (Febrace), da USP, em São diz. “A produção tem sido excepcional,
colas de sete países – Canadá, Cuba, Ma- Paulo, a Feira Internacional de Innova- com reconhecimento em olimpíadas es-
lásia, México, Paraguai, Peru e Itália – por ción, Ciencia y Tecnología, em Juchitán, tudantis”, afirma a professora Tonidan-
meio de parcerias firmadas pelo colégio. México, e Muestra Cientifica Latinoame- del. Idealizadora do programa, ela rece-
Alguns projetos de alunos de fora do ricana, em Trujillo, no Peru. beu uma menção honrosa da mostra Ge-

E
Brasil chamaram a atenção da banca ava- nius Olympiad, dos Estados Unidos, pelo
liadora, formada por pesquisadores como ste ano, os trabalhos foram conjunto dessa contribuição. A criação
Marcelo Guzzo, do Instituto de Física apresentados de forma on- da feira de ciências, há três anos, foi um
da Universidade Estadual de Campinas -line e ao vivo, em um es- desdobramento natural e já rende frutos –
(Unicamp), e Cláudia Aparecida Soa- quema híbrido, em razão da o primeiro lugar na área de tecnologia
res Machado, que faz pós-doutorado na pandemia, entre os dias 21 e na FeNaDante coube a um aluno do pró-
Escola Politécnica da Universidade de 23 de setembro. Os partici- prio colégio, Henrique Rodrigues Hissa
São Paulo (USP). Um grupo de estudantes pantes foram orientados a gravar vídeos Amorim, que desenvolveu um ambiente
do Centro Educativo Departamental curtos e objetivos, em uma linguagem de realidade virtual para o ensino de as-
Municipal Dr. Eusebio Ayala, do Paraguai, acessível, sobre o projeto apresentado. trobiologia. O estudante criou diferentes
levou o terceiro lugar na área de ciências “Para nós é uma grande experiência”, diz espaços físicos, com planetas, por meio
da saúde com a criação de uma barra de Hiago de Oliveira Lacerda, de 17 anos, de um algoritmo de computação gráfica,
cereais à base de sementes de uma planta aluno do último ano da escola estadual o Marching Cubes, e outras ferramentas.
local, Amaranthus retroflexus, com alta Newton de Oliveira Paiva, de Santo An- Houve espaço também para a área
concentração de proteínas e aminoáci- tônio do Amparo, em Minas Gerais. Ao de ciências sociais aplicadas, em que
dos. “A troca de experiências com alu- lado de sua irmã gêmea, Letícia, e da a premiação máxima foi para Aine Ca-
nos de outros estados e países é muito colega Luana Peixoto Borges, Lacerda rolina Lima, aluna do Colégio Etapa,
enriquecedora”, diz Sandra Tonidandel, desenvolveu um projeto de conscien- de São Paulo. Lima fez uma parceria
diretora pedagógica de Ensino Funda- tização sobre uso de agrotóxicos, que com a fintech Avante, especializada em
mental 2 e Ensino Médio do Dante Ali- levou o primeiro lugar em ciências hu- microcrédito, para analisar o impacto
ghieri e idealizadora da feira. “Por isso, manas da categoria Leonardo da Vinci. desse tipo de financiamento para pe-
pretendemos aumentar cada vez mais a A dupla desenvolveu um biofertilizante, quenas empresárias no Nordeste. Um
abrangência da feira de ciências.” feito com cascas de ovo e pó de café, e dos resultados mostrou que as mulheres
Os projetos se distribuem por três um pesticida natural feito de folhas de costumam tirar mais proveito do que os
grandes categorias. A Leonardo da Vin- mamona. “Esses materiais são usados co- homens da oportunidade de obter mi-
ci inclui trabalhos que já têm resultados mo adubo orgânico onde moramos”, diz crocrédito. O aumento do faturamento
FOTOS  REPRODUÇÃO / FENADANTE 

parciais ou totais a apresentar. A Galileu o estudante. Os projetos começaram a ser das empreendedoras foi de quase 20%
Galilei reúne projetos com metodologia desenvolvidos antes da pandemia, com no período analisado, diante de 14,6%
definida, mas ainda sem resultado. E a bons resultados. Os alunos se inscreve- dos homens. “As ciências humanas e
Michelângelo contempla propostas de ram em uma feira de iniciação científica sociais aplicadas também têm apresen-
pesquisa que precisam de orientação para promovida pelo Conselho Nacional de tado projetos sofisticados. Precisamos
serem desenvolvidas. Em cada uma das Desenvolvimento Científico e Tecnológi- da contribuição de todas as áreas do co-
categorias, há premiações para oito áreas co (CNPq) e ganharam uma bolsa de seis nhecimento”, diz Tonidandel. n

PESQUISA FAPESP 309 | 51


CLIMA

CERRADO
AMEAÇADO
Com 45,6% de sua vegetação original alterada,
o bioma está se tornando mais quente,
seco e propenso a grandes queimadas

Ricardo Zorzetto

FABIO COLOMBINI

52 | NOVEMBRO DE 2021
O
Cerrado, o segundo bioma bra- (UnB), especialista em conservação e uso susten-
sileiro mais extenso e um dos tável desse ecossistema.
mais ricos em diversidade de Nos últimos 36 anos, o Cerrado perdeu qua-
plantas e animais, encontra-se se 20% do que restava de sua vegetação original.
ameaçado. A rápida eliminação De 1985 a 2020, cerca de 26,5 milhões de hecta-
da vegetação nativa – que neste res contendo os três principais tipos de formação
século ocorre ao ritmo de 0,5% de sua área ao ano, nativa (campos, savanas e florestas) deram lugar
duas vezes superior ao observado na Amazônia – a novas áreas de criação de gado e produção em
e a posterior conversão dessas terras em vastas larga escala das principais commodities agrícolas
pastagens e plantações de soja, milho, algodão e brasileiras, segundo o mais recente relatório do
cana estão alterando a ecologia e o clima desse Projeto de Mapeamento Anual do Uso e Cober-
ecossistema de maneira que pode se tornar irre- tura da Terra no Brasil, o MapBiomas, divulgado
versível em algumas regiões. O Cerrado está hoje, em setembro deste ano. A área de campos, savanas
nos meses de estiagem, até 4 graus Celsius (oC) e florestas perdida nesse período equivale quase
mais quente do que nos anos 1960, além de mais ao território do Equador e é maior do que a de
seco. Em algumas regiões, também vem sofrendo outros 120 países.
queimadas mais intensas, duradouras e frequentes Com 2 milhões de quilômetros quadrados (km2),
do que algumas décadas antes. o correspondente a um quarto do território nacio-
Essas mudanças, que começam a ser registra- nal, o Cerrado originalmente ocupava toda a região
das em medições sistemáticas e observações em central do Brasil, do sul do Piauí e do Maranhão,
campo feitas por pesquisadores brasileiros, têm o no Nordeste, ao norte do Paraná, na região Sul.
potencial de afetar a sobrevivência da fauna e da Hoje, no entanto, apenas 54,4% dessa área con-
flora do Cerrado, levando a extinções locais, e de tinua coberta por vegetação nativa – e uma pro-
reduzir a disponibilidade de água, prejudicando porção bem menor (em torno de 20%) permanece
os 20 milhões de pessoas que vivem no bioma e inalterada. Com 45,6% de sua área convertida em
o agronegócio, que prosperou em suas terras nas plantações, pastagens, estradas, hidrelétricas e
últimas décadas. “O Cerrado já sofre hoje as con- cidades, o Cerrado é o segundo bioma brasileiro
sequências de mudanças que estão ocorrendo em mais alterado pela ação humana. Perde apenas
escala local, regional e global”, afirma a ecóloga para a Mata Atlântica, suprimida de quase 90%
Mercedes Bustamante, da Universidade de Brasília do território que ocupava.

Chuva se formando
sobre área de
Cerrado no Parque
Estadual do Jalapão

PESQUISA FAPESP 309 | 53


O encolhimento
do Cerrado
Em 36 anos, o bioma perdeu
26,5 milhões de hectares de
vegetação nativa

1985 2020
FONTE MAPBIOMAS

Mudança da cobertura da terra


entre 1985 e 2020
Alguns efeitos associados a essa transformação
Proporção (em %) da área do Cerrado radical na paisagem e no uso do solo estão cada
por tipo de vegetação e uso do solo vez mais evidentes: o Cerrado está se tornando
mais quente, seco e, consequentemente, propenso
1985 2020 Desde 1985, a área a sofrer incêndios devastadores. Indícios da per-
da de umidade, do aquecimento e do crescimento
-7,3 Mha *
das formações
florestais diminuiu
(-20,6%) 20,6%, a das
do número de queimadas de grandes proporções
n Formação formações savânicas, foram apresentados nos últimos meses em estu-
18% 14,3% florestal
19,8% e a das dos conduzidos por equipes de pesquisadores de
formações não diferentes regiões do país.
florestais (campos)
18,6%; já a destinada
Em um artigo publicado em maio na revista
às pastagens Global Change Biology, o geógrafo Gabriel Ho-
-14,9 Mha aumentou 22,7% fmann, atualmente em seu segundo doutorado
(-19,8%) e à agricultura 460,7% na Universidade Federal do Rio Grande do Sul
n Formação (UFRGS), quantificou o aumento da temperatura
37,7% 30,3% savânica
no Cerrado nos últimos 60 anos. Com colabora-
dores do Instituto Nacional de Pesquisas Espa-
ciais (Inpe), do Museu Nacional da Universidade
-4,5 Mha Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e da Fundação
(-18,6%) Oswaldo Cruz (Fiocruz), Hoffmann avaliou os da-
n Formação
natural
dos de temperatura e umidade coletados de 1961 a
9,8% não florestal 2019 por 45 estações meteorológicas espalhadas
pelo bioma e os confrontou com medições por
satélites. Conclusão: na estação seca, a tempera-
tura média no Cerrado subiu de 2,2 oC a 4 oC e a
12,1%
+ 8,7 Mha umidade relativa do ar caiu 15%.
(+22,7%)
23,7% n Pastagem Uma possível explicação para o ressecamento é
a conversão da vegetação nativa em plantações e
pastagens. Em experimentos realizados em uma
área de Cerrado na região de Itirapina, interior
de São Paulo, a equipe do engenheiro especia-
19,3%
+ 21,6 Mha lista em recursos hídricos Edson Wendland, da
INFOGRÁFICOS  ALEXANDRE AFFONSO

(+460,7%)
13,2% n Agricultura Universidade de São Paulo (USP) em São Carlos,
verificou que em um ano uma área com arbustos
2,3% -4,1 Mha e árvores típicos da formação savânica lança 30%
(-22%)
n Mosaico de mais umidade na atmosfera do que outra com
agricultura
e pastagem
as mesmas dimensões coberta por cana ou pas-
9,3% 7,3%
to. “A substituição da vegetação de grande porte
n Outros FONTE MAPBIOMAS
* MILHÕES DE HECTARES por uma de menor estatura altera a circulação de

54 | NOVEMBRO DE 2021
água nos diferentes compartimentos do ambien- tos (glicose) por fotossíntese e liberar grande
te. Mais água penetra no solo e chega ao lençol quantidade de vapor-d’água na atmosfera por
freático, deixando a atmosfera menos úmida por evapotranspiração. Quando a vegetação nativa é
causa da menor transpiração das plantas. Ainda substituída por culturas que deixam a terra nua
não sabemos se esse efeito é local ou se pode gerar ou coberta de palha durante parte do ano (em
impacto em todo o ecossistema”, diz Wendland. geral na estação seca), a energia antes usada na
Nas seis décadas analisadas por Hofmann e fotossíntese e na evapotranspiração vai direto
colaboradores, houve mudanças importantes na para o solo, que aquece mais ao longo do dia e
paisagem e no padrão de uso do solo em boa parte aumenta a temperatura do ar perto da superfície.
do Cerrado. “O desmatamento, que inicialmen- “Se o efeito fosse decorrente exclusivamente das
te ocorria em áreas pequenas, para extração de mudanças climáticas, provocadas pelo aumento de
carvão ou o estabelecimento de pastagens para gases de efeito estufa na atmosfera, seria esperada
pecuária de subsistência, foi substituído pela der- uma elevação maior na temperatura noturna”,
rubada de extensos trechos de vegetação nativa, explica Hofmann. É que esses gases aprisionam o
que deram lugar a amplos pastos e grandes áreas calor que foi armazenado na superfície terrestre
de monocultura”, lembra o geógrafo gaúcho. de dia e liberado para atmosfera no fim da tarde,
Nesse período, o incremento maior ocorreu na reduzindo o resfriamento noturno.
temperatura máxima, registrada no início da tarde, No período analisado, os autores também no-
embora a mínima, aferida à noite, também tenha taram a tendência de a formação de orvalho se
apresentado um aumento importante. O aqueci- tornar mais difícil. Resultado da condensação do
mento foi mais evidente no mês vapor-d’água da atmosfera sobre superfície mais
de outubro, no fim da estação se- fria, o orvalho serve como fonte de água, em es-
ca e início da chuvosa. Com tem- pecial nos meses de seca, para plantas de raízes
Em 60 anos, peraturas da ordem de 33 oC, os curtas ou que crescem sobre pedras (por exem-
a temperatura média dias de outubro de 2019 foram,
em média, 4 graus mais quen-
plo, as do gênero Vellozia) ou apoiadas em outras
(bromélias, orquídeas e lianas). Essa água que se
do Cerrado subiu tes do que os do mesmo mês em condensa sobre a vegetação e o solo também é im-
1961. À noite, a temperatura mé- portante para insetos e outros animais de pequeno
de 2,2 oC a 4 oC dia ficou em torno dos 22 oC, até porte que se deslocam por distâncias muito curtas.
2,8 graus superior à de 60 anos “Muitas plantas do Cerrado parecem depender
na estação seca antes. Projeções realizadas pelo do orvalho. Se essa dificuldade de condensação da
e a umidade relativa grupo sugerem que o fenômeno
deve se agravar, com as tempera-
água se consolidar, o efeito pode ser desastroso
para parte da flora”, comenta o botânico Rafael
do ar diminuiu 15% turas diurna e noturna subindo Oliveira, da Universidade Estadual de Campinas
mais 2 graus até 2050. (Unicamp), que investiga a influência do fogo e da
O aquecimento observado no disponibilidade de água sobre certas formações do
Cerrado é bem superior ao in- bioma. O impacto da redução do orvalho, segundo
cremento de 0,2 oC por década Hofmann, poderia afetar a biodiversidade em dife-
indicado há poucos anos pelas projeções do Pai- rentes escalas. “Ele pode prejudicar o crescimento
nel Intergovernamental sobre Mudanças Climá- e a reprodução dos indivíduos, eliminar certas po-
ticas (IPCC) para o hemisfério Sul. E segue um pulações e alterar a relação ecológica entre dife-
padrão que, na avaliação dos autores do estudo, rentes espécies”, conta o pesquisador da UFRGS.
aponta para a mudança na cobertura e no uso Em paralelo ao aumento da temperatura e à di-
do solo como causadora principal desse aqueci- minuição da umidade, o Cerrado enfrenta uma
mento. O tal padrão é marcado por incrementos alteração no padrão de queimadas. Nas duas últi-
na temperatura diurna (máxima) maiores do que mas décadas, as de pequeno porte diminuíram em
na noturna (mínima). número e frequência e aumentaram os incêndios,

P
que atingem áreas maiores, de modo mais intenso.
ara entender como os pesquisadores A partir de dados coletados por satélite, o grupo
concluíram que as mudanças climáti- coordenado pela meteorologista Renata Libonati,
cas não são o fator principal, é preci- da UFRJ, avaliou a frequência, intensidade, duração,
so lembrar como os ecossistemas do sazonalidade e extensão das queimadas no Cerra-
planeta consomem grande parte da do de 2001 a 2019 e sobrepôs essas informações ao
energia luminosa que recebem do Sol mapa das 19 regiões com características ecológicas
nos processos de fotossíntese e evapotranspira- distintas (ecorregiões) em que se divide o bioma.
ção. Ao longo do dia, a radiação solar atravessa a Dois terços das áreas queimadas a cada ano es-
atmosfera quase sem aquecê-la e banha a vegeta- tão em apenas cinco das 19 ecorregiões, indicam
ção. Uma parte importante dessa energia (25%) os pesquisadores em artigo publicado em outu-
é usada pelas plantas para sintetizar carboidra- bro no Journal of Environmental Management.

PESQUISA FAPESP 309 | 55


As queimadas de maior intensidade, extensão e otimista de mudanças climáticas (com o aumento
frequência ocorrem na metade norte do Cerrado. de 1,7 oC na temperatura até a metade do século)
Lá estão quase 90% da vegetação nativa remanes- e outro pessimista (2 oC). Detalhados em um ar-
cente do bioma e, desde meados dos anos 1980, as tigo de 2020 na revista Science of the Total Envi-
principais frentes de expansão agrícola. ronment, os resultados indicam que em ambas as
As áreas mais afetadas são o centro-norte de situações a produção de soja e milho deve dimi-
Mato Grosso e o oeste do Maranhão, em uma zo- nuir no país, em especial no Matopiba, porque as
na de transição com a Amazônia muito alterada condições climáticas se tornarão desfavoráveis a
pela ação do homem e conhecida como Arco do essas culturas. Como resultado, parte delas deve
Desmatamento, e as ecorregiões localizadas no se deslocar para o Sudeste e o Sul.
Matopiba, formado pelo estado do Tocantins e Assim como as savanas da África e da Austrália,
parte do Maranhão, Piauí e Bahia. “A região sul o Cerrado é um ambiente moldado naturalmente
do Cerrado tem áreas agrícolas bem estabelecidas pelo fogo. Muitas das 12.699 espécies de plantas do
desde o século passado e remanescentes de vege- bioma apresentam características de resistência ao

FOTOS  RAFAEL OLIVEIRA / UNICAMP


tação nativa muito fragmentados, o que dificulta fogo – sementes que germinam só após queima-
as queimadas de grande porte”, explica Libonati. das, troncos recobertos por cortiça grossa e frutos
No que diz respeito ao risco de incêndios, a si- com revestimento espesso – que teriam surgido
tuação no Matopiba pode ainda se agravar. Com 337 há cerca de 4 milhões de anos, simultaneamente
municípios espalhados por 73 milhões de hectares ao aparecimento de gramíneas, que, na estiagem,
(quase um terço do Cerrado), essa região é uma têm seus ramos e folhas dessecados e se tornam
importante produtora nacional de soja, milho e inflamáveis. Há indícios de que o fogo de origem
algodão. Nas últimas três décadas, seu clima vem natural ocorra nas savanas do planeta há milhões de
apresentando uma mudança importante, com po- anos. Fragmentos de carvão aprisionados em cama-
tencial impacto na agricultura e na vegetação nativa. das profundas de sedimento permitiram concluir,

A
ainda nos anos 1990, que há 12 mil anos queima-
nálises da equipe do climatologista das já ocorriam com certa frequência no Cerrado.
José Marengo, recém-submetidas Também há indícios de que, há pelo menos 4 mil
para publicação em uma revista anos, os grupos humanos que habitavam o bioma
científica, confirmam as tendên- usavam o fogo para alterar a paisagem.
cias observadas pelo grupo da “Muitas espécies de plantas do Cerrado são
UFRGS e indicam que o Mato- beneficiadas pelo fogo. Produzem mais flores e
piba está hoje 1,2 oC mais quente do que em 1981. sementes após uma queimada”, afirma a enge-
Segundo a projeção do grupo, a temperatura ali nheira florestal Giselda Durigan, pesquisadora do
deve seguir aumentando à taxa de 0,45 oC por dé- Instituto de Pesquisas Ambientais (IPA) de São
cada neste século. Além disso, houve um aumento Paulo, que investiga há quase três décadas estra-
no número de dias secos consecutivos e o retardo tégias de manejo e restauração do Cerrado. Sob
de quase um mês do início do período de chuvas. sua orientação, a bióloga Natashi Pilon comparou
“Essas alterações parecem decorrer de uma o florescimento e a produção de sementes de 47
mistura de efeitos do aquecimento global e da mu- espécies de plantas de duas áreas de Cerrado – uma
dança de uso do solo na região”, conta Marengo, queimada seis meses antes e outra que não pegou
coordenador de pesquisa do Centro Nacional de fogo. Segundo os resultados, publicados em 2018
Monitoramento e Alerta de Desastres Naturais
(Cemaden), do Ministério de Ciência, Tecnolo-
gia e Inovações (MCTI), e coordenador-geral do
Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para
Mudanças Climáticas (INCT for Climate Change),
apoiado pela FAPESP. “O atraso das chuvas altera
o regime de abastecimento dos rios e aumenta o
risco de fogo”, afirma o climatologista.
Esse não é o único sinal de ameaça à agricultura
do Matopiba. Anos atrás, a engenheira ambiental
Marcia Zilli, hoje em estágio de pós-doutorado na Após uma queimada,
vegetação campestre
Universidade de Oxford, no Reino Unido, usou um floresce na Chapada
modelo computacional para avaliar o desempenho dos Veadeiros:
de 18 culturas agrícolas, cinco produtos florestais as ervas Bulbostylis
e sete pastoris nacionais até 2050. O modelo leva paradoxa (no alto)
e Lantana glaziovii
em consideração a competição por terra entre a (ao lado) e um campo
agricultura, a restauração da vegetação nativa e de Paepalanthus
a produção de energia renovável em um cenário chiquitensis

56 | NOVEMBRO DE 2021
na Plant Ecology & Diversity, 63% dos exempla- pelas equipes de Libonati e da ecóloga Isabel Sch-
res de plantas floresceram nas regiões queimadas, midt, da UnB. Elas e colaboradores acompanharam
diante de 19% no trecho não atingido pelo fogo. a evolução da dinâmica do fogo de 2003 a 2018 em
“O fogo induziu a floração em 79% das espécies duas áreas no Tocantins: a Terra Indígena Xerente
estudadas, incluindo 20 que só produziram flores e o Parque Indígena Araguaia – nas quais o ma-
após a queimada”, relata Durigan. nejo integrado do fogo foi implantado em 2015.

E
A adoção de queimadas em períodos específicos
specialistas dizem que o mosaico de reduziu a frequência, a dimensão e a intensidade
campos, savanas e matas caracterís- dos grandes incêndios, relataram em artigo publi-
tico do Cerrado é influenciado pe- cado em setembro na revista Fire.
las queimadas. O fogo iniciado pela “O Cerrado é o bioma que mais queima no Bra-
queda de raios no início do período sil. Em média, 6 milhões de hectares, o corres-
de chuvas – a região onde o Cerrado pondente a 3,3% da área total, pegam fogo a cada
predomina é uma das áreas de maior incidência ano”, afirma a geógrafa Ane Alencar, pesquisadora
de descargas elétricas no país – aparentemente do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia
tem menor intensidade e alcança uma extensão (Ipam) e coordenadora da equipe do MapBiomas
mais limitada, já que potencialmente é apagado que realiza as análises do Cerrado. Segundo os
pela precipitação. Essas queimadas de pequenas dados apresentados em setembro, 36% do bioma
proporções, também feitas de forma controlada pegou fogo ao menos uma vez nos últimos 36 anos.
pelo ser humano, consomem a biomassa morta Dessa área, 60% queimaram mais de uma vez e
acumulada e contribuem para manter o mosaico 15% mais de cinco vezes no período.
formado por manchas de vegetação O problema, como constatou o grupo de Libo-
aberta (campos) e savânica (com ár- nati, é a mudança no regime das queimadas. “O
vores em proporções variadas) que que se está observando não condiz com o regime
caracterizam o Cerrado. natural de fogo, que ocorre no início do período
Aliás, a predominância das paisa- chuvoso e tem intensidade e extensão baixas”,
gens abertas, que ocupam quase 40% afirma a bióloga Vânia Pivello, da USP, que estuda
do Cerrado, parece ser fundamental o efeito do fogo sobre o Cerrado. “O aumento da
para que esse bioma funcione como intensidade das queimadas e a redução do intervalo
um grande coletor de água. Sem a entre elas modificam a estrutura e a diversidade da
vegetação de maior porte, a água das vegetação”, diz. Há também indícios de que muitas
chuvas infiltra no solo e abastece o dessas queimadas sejam provocadas por ação hu-
lençol freático e os rios. “Esse é um mana (intencional ou acidental). Monitoramento
dos principais serviços ecossistêmi- por satélite realizado pelo Inpe desde 1998 mostra
cos que o Cerrado presta à socieda- que, em mais da metade desse período, foram re-
de”, afirma Durigan. gistrados mais de 60 mil pontos de queimada por
As queimadas controladas e de bai- ano no Cerrado. Em quase 90% dos casos, o fogo
xa intensidade também contribuem ocorreu na seca, quando há menos raios.
para evitar os grandes incêndios. O Com a diminuição das chuvas e o aumento da
efeito protetor dessa estratégia de frequência dos incêndios, o fogo passa a atin-
manejo da paisagem foi observado gir vegetações que, por serem mais úmidas, nor-
malmente não queimariam, como as matas que
margeiam os rios e servem de abrigo para muitos
animais (ver a reportagem “Incêndio na beira do
rio” no site de Pesquisa FAPESP). “A ocorrência de
queimada nessas matas atinge uma fauna muito
menos adaptada ao fogo”, afirma o zoólogo Reu-
ber Brandão, da UnB. “Em algumas regiões, esse
efeito do fogo é agravado pelo consumo de água
para irrigar as plantações”, diz. Há mais de 20 anos
ele estuda anfíbios e répteis no oeste da Bahia,
onde houve um aumento importante no uso de
água para a agricultura. Como resultado, o nível
do lençol freático baixou, fazendo lagos e grandes
áreas de veredas secarem e algumas populações
de sapos, lagartos e serpentes desaparecerem. n

Os projetos e artigos científicos consultados para esta reportagem


estão listados na versão on-line.

PESQUISA FAPESP 309 | 57


ECOLOGIA

Transporte de
frutos de açaí
recém-colhidos
em área alagadiça
da Amazônia

DESMATAMENTO
VERDE
A
produção de açaí impacta negativa-
Manejo intensivo de açaí mente a biodiversidade amazônica e os
chamados serviços ecossistêmicos ofe-
ameaça a biodiversidade da recidos pela floresta de várzea, como a
retenção de carbono e a regulação do
floresta de várzea amazônica clima. De acordo com um estudo publi-
cado em julho de 2021 no periódico científico Biological
Tiago Jokura Conservation, o aumento da quantidade de palmeiras de
açaí (Euterpe oleracea), por meio do manejo florestal,
PARALAXIS / GETTY IMAGES

tem causado a diminuição do número de espécies ve-


getais nas várzeas, áreas alagáveis das margens dos rios.
Ao analisar 47 áreas distintas de floresta no estuário
do rio Amazonas, no Pará, pesquisadores do Brasil e do
exterior observaram uma relação direta entre a densi-
dade de palmeiras e o empobrecimento florestal. De com copa ampla, para que a imagem de satélite faça
acordo com o biólogo Madson Freitas, da Universida- parecer que a cobertura vegetal é de 100% numa pe-
de Federal de Pernambuco (UFPE), principal autor do quena área. “Só quando essa área é examinada in loco
estudo, há uma perda de 60% das espécies lenhosas em é possível identificar que o sub-bosque encoberto por
áreas cuja concentração de palmeiras de açaí está no essas poucas árvores é tomado por açaí”, afirma a bió-
patamar de 200 touceiras por hectare. “A floresta tem loga Maria Fabíola Barros, que não assina o artigo na
uma média natural de mais ou menos 100 touceiras de Biological Conservation, mas estuda o açaí em em seu
palmeiras de açaí por hectare. Em regiões manejadas, estágio de pós-doutorado no MPEG. Para acabar com
o número dobra. O manejo só é considerado intenso o descompasso entre o que se vê por cima e o que se
quando ultrapassa as 400 touceiras por hectare. Mas observa por dentro da floresta, investir em imagens
já encontrei regiões com 1.200 touceiras”, descreve de satélite mais refinadas poderia ser uma solução.

O
Freitas. Touceira é o conjunto de ramos de uma mes-
ma planta que ficam muito próximos entre si. artigo questiona a visão dominante de
Além dos riscos à biodiversidade, o manejo inten- que a extração de produtos florestais
sivo da palmeira também pode resultar em outros não madeireiros (PFNMs), defendida
prejuízos. “A intensificação do manejo causa um em- como estratégia para aliar a preserva-
pobrecimento da vida e do funcionamento da floresta ção ambiental e a redução da pobreza
de várzea”, afirma a agrônoma Ima Vieira, do Museu de comunidades que dependem da
Paraense Emílio Goeldi (MPEG), uma das coautoras floresta, é um sistema que traz benefícios para todos. “O
do estudo. “Avaliar e medir as perdas funcionais é a açaí é sempre visto como exemplo de sustentabilidade.
grande contribuição do artigo”, diz. O estudo revela Teoricamente, seu manejo não derrubaria árvores e
que as funções e os serviços que as espécies desempe- seria uma fonte de renda e de melhoria da qualidade
nham na floresta caíram pela metade em regiões com de vida de muitos produtores ribeirinhos”, comenta
600 touceiras de açaí por hectare. Vieira. “Mas, a partir dos anos 1990, houve um boom
Entre os impactos decorrentes do empobrecimento comercial do açaí, que impulsionou um manejo cada
da floresta, destacam-se a diminuição da fertilidade do vez mais intensivo. Isso empobrece a floresta.” Segundo
solo, o afastamento de polinizadores e a menor diver- dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
sidade de espécies no sub-bosque florestal, o extrato (IBGE), a safra brasileira de açaí em 2020, mais de 90%
inferior da floresta, abaixo do dossel (a parte mais alta) dela proveniente do Pará, foi de 1,5 milhão de toneladas e
das árvores em que cresce a vegetação de baixa estatu- movimentou R$ 4,7 bilhões, o equivalente a 1% do valor
ra. Essa última alteração afeta a dinâmica da floresta e de toda a produção agrícola nacional do ano passado.
sua capacidade de recuperação e de resiliência diante Para outro coautor do estudo, o agrônomo Marcelo
de intempéries e das mudanças climáticas. Tabarelli, do Departamento de Botânica da UFPE, a
Freitas atribui esse cenário a um ciclo vicioso no situação do açaí ilustra o dilema de explorar a floresta
manejo do açaí: primeiro, há o raleamento do sub- sem sufocá-la: “O açaí virou uma commodity, com de-
-bosque, com a eliminação de plantas que disputam manda crescente dentro e fora do Brasil, uma estrela
espaço com o açaí e dificultam a sua proliferação. Em da bioeconomia. Mas, como toda atividade de base
seguida, vem o desbaste do dossel, que pode derrubar extrativista, se seu manejo não for bem-feito, o que é
árvores gigantes, como a samaúma e a munguba, para uma oportunidade vira uma ameaça à integridade do
não fazer sombra ao açaizeiro. As espécies que têm ecossistema”.
potencial madeireiro e, portanto, comercial, como a Tabarelli defende a ideia de que produtores e gesto-
ucuuba, também vão abaixo. Em conjunto, essas me- res devem adotar políticas mais rígidas de regulamen-
didas empobrecem também o solo porque há menos tação, capacitação e informação para que os modelos
raízes profundas para realizar o ciclo de nutrientes e de exploração do açaí sejam compatíveis com a ma-
menos folhas caindo para fornecer matéria orgânica. nutenção da floresta. “Em breve, o açaí deverá entrar
“Além disso, quando a floresta do entorno do açaí é em uma nova fase de produção, em que variedades
arrancada, também é destruída a ‘casa’ de diversos adaptadas à terra firme vão expandir seus limites de
polinizadores, agentes diretamente ligados à produ- plantio para zonas situadas fora das regiões de vár-
tividade e à qualidade dos frutos”, comenta o biólogo. zea. Se isso de fato ocorrer, essas novas áreas poderão,
O processo de eliminar algumas espécies vegetais por um lado, concorrer com a floresta de terra firme.
para o favorecimento da palmeira do açaí é chamado Mas, por outro, poderão ser uma melhor alternativa
de desmatamento verde. Não é simples identificar em relação a outras formas de uso da terra que hoje
o fenômeno. Somente o trabalho de observação em competem com a floresta, como as pastagens e a mo-
campo pode revelar o impacto de uma espécie exces- nocultura de soja.” n
sivamente abundante sobre a biodiversidade que a
rodeia. Algumas espécies que os produtores deixam
Artigo científico
permanecer ao lado das palmeiras de açaí passam uma
FREITAS, M. A. B. et. al. Intensification of açaí palm management largely
falsa ideia de uma densa cobertura vegetal, segundo impoverishes tree assemblages in the Amazon estuarine forest. Biological
os pesquisadores. Bastam algumas grandes árvores, Conservation. 20 jul. 2021.

PESQUISA FAPESP 309 | 59


COSMOLOGIA 1

UM
SUPERIMPACTO
EM TITÃ
Colisão de corpo celeste pode ter criado
ambiente favorável ao surgimento de formas
primitivas de vida na maior lua de Saturno

Sarah Schmidt

Imagem de Titã (no alto),


obtida pela sonda Cassini,
e mapa geomorfológico
da cratera Menrva
(área circular)
reconstituído a partir
de imagens de radar
H
á 65 milhões de anos a abrigar alguma eventual forma de vida pico central pode ter se elevado a 40 km
queda de um meteorito (ver Pesquisa FAPESP nº 248). A sonda de altura antes de se assentar. De acordo
onde hoje é o golfo do verificou que a temperatura média da com as simulações, o pico central e as
México abriu uma cra- superfície de Titã é de 180 graus Cel- bordas resultantes devem ter sido bem
tera de 200 quilôme- sius (˚C) negativos, tão baixa que faz mais altos do que os 500 metros atuais –
tros (km) de diâmetro e com que o gelo seja duro como as ro- eles teriam sido consumidos pela erosão
provocou mudanças na chas da Terra. durante centenas de milhões de anos.
atmosfera da Terra que Crósta e Lopes, com suas equipes, A temperatura de uma colisão como a
levaram à extinção de examinaram a formação de Menrva que formou Menrva pode ter sido sufi-
75% das formas de vi- por meio de dados colhidos pela sonda ciente para decompor moléculas, entre
da, entre elas os dinos- Cassini-Huygens e de simulações mate- elas as de água, da superfície de gelo.
sauros. No entanto, nem máticas, processadas em um supercom- “A energia resultante do impacto pode
sempre essas grandes colisões com pla- putador. Na simulação mais consistente, modificar e formar novas moléculas ou
netas ou seus satélites geram destruição. o cometa (corpo formado por gelo) ou gerar novos compostos”, avalia o astro-
Esses choques também podem precipitar asteroide (rochoso) que formou Menr- biólogo Fabio Rodrigues, do Instituto de
mudanças físicas e químicas capazes va teria 34 km de diâmetro e deve ter Química da Universidade de São Paulo
de resultar em aminoácidos, moléculas viajado pelo espaço à velocidade de 15 (IQ-USP), que não participou do estudo.
essenciais à vida, e até formas primitivas km por segundo (km/s) – ainda não se Ele argumenta que essas informações
de vida, como bactérias. É o que pode ter sabe qual seria a natureza do objeto. Ao poderiam orientar o desenvolvimento
ocorrido em Menrva, uma cratera com entrar na atmosfera de Titã, 50% mais de futuras missões a Menrva ou mesmo
425 km de diâmetro ao norte do equador densa que a da Terra, perdeu velocida- a escolha de eventuais locais de pouso.
de Titã, a maior lua de Saturno. Menrva de e atingiu o solo a 7 km/s (o equiva- “Desde a descoberta de Menrva nos
é a deusa etrusca das artes e da guerra na lente a 25,2 mil km por hora). perguntamos se a colisão pode-
qual os romanos parecem ter se baseado Como uma pedra lança- ria ter rompido essa cros-
para criar a deusa Minerva. da sobre a água, o im- ta de gelo”, comentou,
“A colisão que formou Menrva, a pacto que formou por e-mail, Ralph
maior cratera de Titã, pode ter sido su- Menrva, entre 500 IMPACTO PODE Lorenz, do Labo-
TER ROMPIDO CAMADA
FOTOS 1 NASA / JPL-CALTECH / STÉPHANE LE MOUÉLIC – UNIVERSIDADE DE NANTES / VIRGINIA PASEK – UNIVERSIDADE DO ARIZONA  2 CRÓSTA, A. P. ET AL. ICARUS. 2021

ficiente para romper a camada de gelo de milhões e 1 bilhão ratório de Física


75 km a 100 km de espessura que recobre de anos atrás, Aplicada da Uni-
um oceano líquido submerso”, explica o deve ter gerado DE GELO DE ATÉ 100 KM versidade Johns
geólogo Alvaro Crósta, do Instituto de ondas circula- DE ESPESSURA E MISTURADO Hopkins, nos
Geociências da Universidade Estadual de res sobre a su- Estados Unidos.
Campinas (IG-Unicamp), autor de um perfície de ge- MATERIAL DO OCEANO “Esse novo estu-
estudo que avaliou a formação da cratera, lo, aquecido pela SUBMERSO COM O do mostra resul-
publicado on-line no final de agosto na colisão. “Parcial- tados consistentes
revista Icarus. “Ao furar a crosta de gelo, mente liquefeita pe- DA SUPERFÍCIE DA LUA desse rompimento,
o impacto pode ter trazido material or- la energia do impacto, como esperávamos”,
gânico do oceano para a superfície e da a superfície de Titã deve afirmou.
superfície para o oceano”, complementa ter se comportado de forma Lorenz é o projetista-chefe
a astrônoma brasileira Rosaly Lopes, do elástica”, conta Crósta, que trabalhou da missão DragonFly, da Nasa, que
Laboratório de Propulsão a Jato (JPL) no JPL em 2018 e 2019 com apoio da FA- pretende enviar um drone à superfície
da Nasa, a agência espacial norte-ame- PESP. Isso teria permitido a formação de Titã para investigar sinais efetivos
ricana, que participou desse trabalho. de padrões semelhantes aos observados da presença de água ou de compostos
Lopes considera Titã, com bastante quando uma pedra cai na água. “Inicial- orgânicos. Uma sonda e o drone devem
material orgânico em sua superfície, o mente, surge um pico central cercado partir da Terra em 2027 e chegar à lua
corpo celeste conhecido que mais se as- por anéis. Em seguida, esse pico colap- de Saturno em 2035. O local escolhido
semelha à Terra. Com atmosfera, essa sa e afunda. Esse movimento de subida para o pouso é uma região próxima à
lua de Saturno é o único lugar do Sis- e colapso se repete algumas vezes”, ex- cratera de Selk, com 80 km de diâmetro.
tema Solar, além da Terra, em que cor- plica o geólogo. “Ela é pequena demais para ter rom-
rem rios – nesse caso, de metano, que Em Titã, de acordo com as simulações, pido a crosta de gelo logo abaixo da su-
também cai como chuva. Titã tem ainda o movimento de subida e descida do pi- perfície, mas o impacto que a formou
intensa atividade geológica, com ventos co central é que, em poucos segundos, permitiu que a água resultante intera-
que formam dunas e erosão que modifica deve ter rompido a grossa camada de gisse com os compostos orgânicos da
suas crateras. gelo, não o impacto inicial do cometa superfície”, explica Lorenz. Selk foi es-
A astrônoma trabalhou na missão ou asteroide. Segundo Crósta, depois do colhida por causa da facilidade de pou-
Cassini-Huygens, que orbitou Saturno rompimento, as camadas e os materiais so e da visibilidade a partir da Terra. n
e algumas de suas luas de 2004 a 2017, orgânicos teriam permanecido em mo-
e, com base nos dados coletados, estu- vimento por cerca de 150 minutos, até se Os projetos e artigos científicos consultados para esta
dou o potencial ainda incerto de Titã estabilizarem sob a ação da gravidade. O reportagem estão listados na versão on-line.

PESQUISA FAPESP 309 | 61


SAÚDE

IMUNIZAÇÃO
PIONEIRA
Frascos da Mosquirix,
a vacina contra a
malária recomendada
pela OMS que
diminuiu em 39%
o aparecimento de
novos casos da doença

Ihillandit ut ariaspel
moluptatet am seque
conecatia sincita
dolore volenda estore
videm quis dolupta ea
quodici tiorum a

62 | NOVEMBRO DE 2021
Vacina contra a malária recomendada pela OMS
para crianças da África é a primeira que protege
humanos de um parasita

Tiago Jokura

E
m uma decisão histórica, a Organi- queda de mais de 70% nas internações por quadros
zação Mundial da Saúde (OMS) veio graves e no número de mortes, de acordo com tra-
a público, em 6 de outubro de 2021, balho publicado por pesquisadores da Escola de
recomendar a adoção de uma vacina Higiene e Medicina Tropical de Londres no New
contra a malária para crianças em re- England Journal of Medicine. Os dados reforçam o
giões com alta ocorrência da doença, papel da imunização como estratégia adicional ao
como a África Subsaariana. O anúncio é resultado combate de P. falciparum na África. A vacina inte-
de mais de 50 anos de estudos em busca de uma grará um pacote de medidas de saúde pública que
forma de imunização contra a enfermidade que já conta com testagem rápida, distribuição de me-
mata, anualmente, 410 mil pessoas, das quais 260 dicamentos antimaláricos, uso de inseticida contra
mil crianças com menos de 5 anos. Quase 95% dos o mosquito Anopheles (transmissor do parasita da
óbitos ocorrem na África. malária) e de mosquiteiros na hora de dormir.
A vacina recomendada, a RTS,S/AS01, comer- Em comunicado à imprensa e investidores, a
cialmente batizada de Mosquirix, age contra o farmacêutica GlaxoSmithKline (GSK), desen-
parasita Plasmodium falciparum, que causa a for- volvedora da vacina, que já forneceu 10 milhões
ma mais letal da malária e é o mais prevalente de doses da Mosquirix para estudos-piloto, com-
no continente africano. Ela foi testada em um prometeu-se a disponibilizar 15 milhões de doses
programa-piloto que alcançou mais de 800 mil anuais do imunizante a um valor apenas 5% acima
crianças em Gana, no Quênia e no Malaui desde dos custos de produção. A empresa também con-
2019. A imunização ocorre com a aplicação de cordou em transferir a tecnologia para produção
quatro doses: a primeira aos 5 meses de vida, a do antígeno empregado na vacina para a farma-
segunda aos 8 meses, a terceira aos 11 meses e a cêutica Bharat Biotech, da Índia.
quarta dose, de reforço, aos 18 meses. “Este é um momento histórico. A tão esperada
Os resultados do estudo-piloto revelaram uma vacina contra a malária para crianças é um avan-
proteção de 39% contra o aparecimento de novos ço para a ciência, a saúde infantil e o controle da
PATRICK MEINHARDT / GETTY IMAGES

casos de malária e de 29% contra as ocorrências gra- doença”, declarou o diretor-geral da OMS, Tedros
ves. Embora a eficácia da vacina isoladamente seja Adhanom Ghebreyesus. “Usar essa vacina, além
baixa, houve ganhos significativos quando o imuni- das ferramentas existentes para prevenir a malá-
zante foi empregado ao lado de outras intervenções. ria, pode salvar a vida de dezenas de milhares de
O uso combinado da Mosquirix com medicamentos jovens a cada ano.”
antimaláricos, administrados nas épocas do ano em Um estudo publicado na PLOS Medicine em no-
que há maior ocorrência de casos, resultou em uma vembro de 2020 aponta que a aplicação anual de

PESQUISA FAPESP 309 | 63


30 milhões de doses da vacina nos países africanos casal quando estagiou no New York University
mais acometidos pela malária poderia evitar algo Medical Center sob supervisão de Victor, no fim
em torno de 4,3 milhões de novos casos e salvar a dos anos 1980.
vida de 22 mil de crianças com 5 anos ou menos. “Ruth Nussenzweig foi a primeira pesquisadora
A eficácia da vacina se mantém por aproximada- a demonstrar, em um trabalho publicado na Nature,
mente cinco anos. Outras versões do imunizante em 1967, que a imunização com esporozoítos ina-
também estão em testes em adultos. tivados com raios X era capaz de induzir imunida-
de protetora contra a infecção em camundongos”,
RAÍZES NO BRASIL destaca Irene da Silva Soares, do Departamento
Os avanços da Mosquirix não devem, por ora, de Análises Clínicas e Toxicológicas da Faculdade
impactar a saúde pública brasileira. Por aqui, a de Ciências Farmacêuticas da Universidade de São
malária, além de estar controlada, é mais amena Paulo (FCF-USP). “Posteriormente, Ruth, Victor e
e causada majoritariamente por outro parasita, seus colaboradores mostraram na Science, em 1984,
Plasmodium vivax, que não é alvo do novo imuni- como isolaram o gene que codifica a proteína que
zante. O Brasil, contudo, tem uma íntima ligação reveste os esporozoítos, chamada CSP.” Essa pro-
com a vacina recentemente chancelada pela OMS. teína, que ativa a resposta imune contra a malária,
Essa história começa na década de 1960, quan- é a base da vacina recentemente aprovada. “Por
do um casal de pesquisadores brasileiros, Ruth isso, ambos podem ser considerados ‘os pais’ da
(1928-2018) e Victor Nussenzweig, trabalhando vacina contra a malária. Do meu ponto de vista,
na Universidade de Nova York (NYU), nos Esta- foram estudos dignos de Prêmio Nobel”, declara
dos Unidos, dedicou-se a investigar o parasita da a parasitologista da USP.

A
malária africana a fim de identificar maneiras de
ativar anticorpos sensíveis a eles em organismos vacina contra a malária é a pri-
infectados. meira desenvolvida para proteger
O casal focava suas observações no estágio de humanos contra uma infecção cau-
desenvolvimento em que o parasita é semelhante a sada por parasitas e levou décadas
um esporo (esporozoíto) e é inoculado no sangue para tornar-se viável em razão de
pelo mosquito. De acordo com Sergio Schenkman, diversos complicadores. Para fins
do Laboratório de Biologia Molecular e Celular de de comparação com doenças e vacinas recentes e
Parasitas da Universidade Federal de São Paulo amplamente debatidas, P. falciparum tem mais de
(Unifesp), os Nussenzweig iniciaram os estudos 5 mil genes enquanto o Sars-CoV-2, o vírus da Co-
com esporozoítos de P. falciparum construindo vid-19, tem apenas 12. “Os parasitas têm um ciclo de
um insetário nos laboratórios da NYU. “Eles man- vida complexo, envolvendo várias fases morfológicas
tinham uma colônia de Anopheles e começaram e mudanças do ambiente no qual se desenvolvem
Os testes da vacina
da GSK foram
a expor os mosquitos à radiação. Depois, indu- dentro do corpo humano. Além disso, adotaram
feitos em 800 mil ziam os insetos a picar camundongos”, descre- várias maneiras de escapar do sistema imunológico
crianças africanas ve o microbiologista, que ouviu esses relatos do do hospedeiro. No caso da malária, é um grande

64 | NOVEMBRO DE 2021
2

desafio para os pesquisadores encontrar um alvo gica e não induz efeitos adversos significativos O uso de telas de
para desenvolver a vacina, já que o parasita apre- em camundongos e em coelhos. Em breve vamos proteção dificulta
a transmissão do
senta alto grau de polimorfismo genético”, explica submeter a documentação para a Anvisa e pedir a parasita da malária
Célia Regina da Silva Garcia, também da FCF-USP. autorização para realizar testes clínicos de fase 1, pelo mosquito
Silvia Beatriz Boscardin, do Departamento de em pessoas”, diz a pesquisadora da FCF-USP. Anopheles
Parasitologia do Instituto de Ciências Biomédicas Outro horizonte que se abre para as vacinas
da USP (ICB-USP), complementa o raciocínio da antimaláricas – atualmente há mais de 140 sendo
colega. “Além de terem um genoma bem maior que desenvolvidas mundo afora – tem a ver com os
o dos vírus, os parasitas podem se reproduzir em avanços tecnológicos recentemente estimulados
diferentes hospedeiros, tanto vertebrados quan- pela pandemia da Covid-19. Para Soares, novas es-
to invertebrados, e apresentam formas de desen- tratégias, como as vacinas de mRNA e de vetores
volvimento distintas. Essas formas normalmente virais baseados em adenovírus, estão gerando um
expressam proteínas diferentes”, diz Boscardin. conhecimento que será aplicado para melhorar
“Tudo isso torna o desenvolvimento de uma vacina imunizantes já existentes ou em desenvolvimento.
contra parasitas uma tarefa bem mais complicada.” “Estratégias de vacinação utilizando uma combi-
FOTOS 1 BRIAN ONGORO / AFP VIA GETTY IMAGES 2 J R RIPPER / BRAZIL PHOTOS / LIGHTROCKET VIA GETTY IMAGES

Mesmo com tamanho desafio, o grupo de pes- nação de diferentes vacinas já vêm sendo testadas
quisa de Soares vem desenvolvendo, desde 2008, em um modelo experimental de malária desde os
com apoio da FAPESP, uma vacina contra a forma anos 1990 pelo grupo que era chefiado pela Ruth
de malária que mais ocorre no Brasil, causada por Nussenzweig”, exemplifica Soares. “Temos em
P. vivax. O projeto é herança de um ex-aluno de mãos adenovírus recombinantes baseados na pro-
Ruth Nussenzweig, o imunologista Maurício Mar- teína CSP de P. vivax, que podem ser utilizados,
tins Rodrigues, que foi docente da Unifesp e era se necessário, para intensificar a resposta imune
casado com Soares (Rodrigues faleceu em 2015). da vacina que estamos desenvolvendo.” n
A formulação também é baseada na CSP, que, em
P. vivax, apresenta uma complexidade adicional: o
parasita tem três variantes geneticamente distintas, Projeto
dispersas pelo mundo. “Nosso objetivo é desen- Geração e análise da imunogenicidade de proteínas recombinantes
volver uma vacina universal, que cubra toda essa baseadas nas diferentes formas alélicas do antígeno circumsporozoíta
de Plasmodium vivax visando o desenvolvimento de uma vacina uni-
diversidade genética de P. vivax”, comenta Soares. versal contra malária (n° 12/13032-5): Modalidade Projeto Temático;
Segundo a pesquisadora, há grupos nos Estados Pesquisadora responsável Irene da Silva Soares (USP); Investimento
Unidos e no Reino Unido tentando desenvolver R$ 16.167.637,14.

vacinas semelhantes. Mas a de seu grupo seria a Artigos científicos


única que procura induzir imunidade protetora CHANDRAMOHAN, D. et al. Seasonal malaria vaccination with or
contra as três variantes do parasita, conforme es- without seasonal malaria chemoprevention. New England Journal of
tudo publicado este ano na Scientific Reports. “Os Medicine. 9 set. 2021.
HOGAN, A.B. et al. Estimated impact of RTS,S/AS01 malaria vaccine
testes pré-clínicos já foram finalizados e demons- allocation strategies in sub-Saharan Africa: A modelling study. PLOS
traram que a formulação gera resposta imunoló- Medicine. 30 nov. 2020.

PESQUISA FAPESP 309 | 65


MEDICINA NUCLEAR

RADIOFÁRMACOS
SOB
AMEAÇA
Especialistas propõem medidas para evitar que
a paralisação da produção de fármacos com
elementos radioativos, como a ocorrida neste ano,
torne-se recorrente no país
Domingos Zaparolli
O
Brasil sofreu no fim de setem- tonomia produtiva ao instituto e evitar riscos de
LÉO RAMOS CHAVES

bro um apagão na produção de desabastecimento dos fármacos. A primeira medida


radiofármacos, produtos químicos ataca o problema orçamentário e precisa do aval do
dotados de elementos radioati- Congresso Nacional. Consiste de uma autorização
vos empregados no diagnóstico e para que os recursos gerados com a venda dos radio-
tratamento de diversas doenças fármacos – algo em torno de US$ 30 milhões anuais
nas áreas de oncologia, cardiolo- – fiquem no Ipen e sejam aplicados na produção. Hoje
gia, hematologia e neurologia. A essa verba é encaminhada à conta única do Tesou-
produção dessas substâncias pelo ro Nacional e redistribuída de acordo com a LOA.
Instituto de Pesquisas Energéticas “Criaríamos um ciclo fechado para os recursos
e Nucleares (Ipen), em São Pau- e não haveria mais os recorrentes problemas or-
lo, foi interrompida entre 20 de çamentários”, detalhou Pontes, que em sua ida ao
setembro e 1° de outubro, pondo em risco 9 mil Parlamento indicou apoiar a proposta. A medida
procedimentos médicos diários, na estimativa da também daria fôlego financeiro para o Ipen inves-
Sociedade Brasileira de Medicina Nuclear (SBMN). tir em pesquisa e inovação, uma vez que hoje a ins-
A situação, decorrente da falta de recursos do Ipen tituição recebe apenas verbas para o seu custeio.
para importar insumos e produzir os materiais,
empregados principalmente na saúde humana, REATOR BRASILEIRO
demonstrou como pode ser frágil o atendimento A outra solução proposta pelos especialistas é a
a 2 milhões de brasileiros que dependem desses construção do Reator Multipropósito Brasileiro
fármacos. A escassez de recursos também com- (RMB), o que faria o país sair da condição de im-
promete a pesquisa e o desenvolvimento de novos portador de radioisótopos para uma maior auto-
produtos de medicina nuclear no país. nomia e eventual posição de exportador. O RMB
A produção de radiofármacos de meia-vida supe- também seria uma peça importante para o Brasil
rior a duas horas no Brasil é monopólio da União, se tornar um polo de desenvolvimento de novos
ou seja, é exclusiva de órgãos públicos do governo radiofármacos de interesse nacional. O projeto do
federal (ver box na página 69). Autarquia gerida pela reator foi concebido em 2008 no âmbito da CNEN
Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN), e desde 2012 está incluído entre as prioridades do
o Ipen atende 85% da demanda nacional de me- país listadas no Plano Plurianual do governo federal.
dicina nuclear. Grande parte da produção depen- Suas obras físicas, contudo, ainda não começaram.
de da importação de radioisótopos, substâncias Segundo José Augusto Perrotta, coordenador-
radioativas fabricadas em reatores nucleares que -técnico do projeto do RMB, o Brasil possui quatro
são a matéria-prima dos radiofármacos. O país reatores nucleares de pesquisa em funcionamen-
importa esses insumos principalmente da África to dedicados a atividades diversas como testes de
do Sul, Rússia e dos Países Baixos, algumas das combustível, desenvolvimento de novos materiais
poucas nações com excedente exportável. De acor- e insumos industriais e agrícolas. A produção na-
do com o Ipen, a despesa anual com importações cional de radioisótopos ocorre principalmente no
de radioisótopos é da ordem de US$ 15 milhões – reator IEA-R1, com potência máxima de 5 mega-
algo como R$ 82,6 milhões na cotação do dólar em watts (MW), instalado no Ipen, localizado no cam-
meados de outubro. pus da Universidade de São Paulo (USP), na capital
Em 2021, a destinação orçamentária para a im- paulista. Entre outras limitações, esse reator não
portação de insumos e para cobrir todas as demais tem capacidade para produzir em escala o molib-
despesas produtivas do Ipen foi de R$ 91 milhões, dênio-99, radioisótopo que dá origem ao radiofár-
montante 46% inferior ao do ano anterior. Em de- maco tecnécio-99m, empregado em 80% dos pro-
poimento na Câmara dos Deputados em 27 de se- cedimentos de medicina nuclear realizados no país.
tembro, o ministro da Ciência, Tecnologia e Inova- O projeto do RMB prevê um reator nuclear seis
ções (MCTI), Marcos Pontes, admitiu que, desde a vezes mais potente, de 30 MW, que, além de produ-
elaboração da Lei Orçamentária Anual (LOA) de zir radioisótopos para uso na medicina, indústria
2021, já era evidente que os recursos seriam insu- e agricultura, também seria utilizado em testes de
ficientes para o abastecimento de radiofármacos. materiais e combustíveis nucleares e na geração
Alertas nesse sentido foram feitos ao Ministério da de feixe de nêutrons para a pesquisa em vários
Economia, mas não surtiram efeito, resultando no campos da ciência. A ideia é que o reator conte
apagão produtivo de setembro. Em caráter emer- com laboratórios associados para cada atividade
gencial, o Ipen foi socorrido com a transferência de (ver Pesquisa FAPESP nº 221). “É o grande proje-
R$ 19 milhões de outros projetos da CNEN. A crise to estruturante da ciência e tecnologia nuclear no
Equipamento só foi contornada, temporariamente, após a libera- país”, diz Madison Coelho de Almeida, diretor de
onde é feita
a produção do
ção orçamentária de R$ 82,6 milhões em outubro. Pesquisa e Desenvolvimento da CNEN.
radiofármaco Profissionais da CNEN e do Ipen propõem duas Para Almeida, a construção do RMB complementa
iodo-131, no Ipen soluções complementares para garantir maior au- uma cadeia produtiva já estruturada no país. “Temos

PESQUISA FAPESP 309 | 67


grandes jazidas de urânio, que é o insumo básico, afirma. “Mas isso só ocorrerá se puderem compe-
e dominamos toda a tecnologia do ciclo produtivo. tir em igualdade de condições.” Segundo Cunha,
Com o RMB, poderíamos ser grandes fornecedores os preços do instituto não refletem o impacto de
globais de radioisótopos”, afirma. Para instalação variação cambial nos custos de importação de in-
da unidade, a CNEN tem uma área de 1,2 milhão sumos, configurando assim um subsídio ao con-
de metros quadrados (m2) em Iperó (SP), cedida sumidor. Além disso, a produção do Ipen é isenta
pelo Centro Tecnológico da Marinha em São Paulo de impostos. “Não há como uma empresa privada
(CTMSP), e 800 mil m2 destinados pelo governo do concorrer contra subsídios”, afirma.
estado de São Paulo. A CNEN já dispõe das licenças Os subsídios atualmente existentes são vantajo-
de instalação ambientais e de segurança nuclear. sos para os usuários do sistema de saúde público e
O projeto está orçado em US$ 500 milhões, que privado que necessitam de tratamento com radio-
seriam investidos em um prazo de cinco anos. “Os fármacos, mas geram um custo para os cofres da
estudos econômicos indicam que, com os recursos União que é pago por todos os contribuintes. Caso o
provenientes de sua produção, o RMB poderá se monopólio estatal seja quebrado, uma das possíveis
manter operacional e com capacidade de autoin- consequências é o aumento de preço do produto e
vestimento em pesquisa”, argumenta Perrotta. A o encarecimento dos tratamentos.
proposta do Ministério da Economia para a LOA Para o superintendente do Ipen, Wilson Apare-
2022 novamente não contempla recursos para o cido Calvo, a presença do Estado na fabricação de
RMB. O ministro Pontes mencionou em seu depoi- radioisótopos e radiofármacos é essencial para a
mento no Congresso que existe uma possibilidade expansão do atendimento a pacientes do Sistema
de o projeto receber recursos via Fundo Nacio- Único de Saúde (SUS) e para a democratização da
nal de Desenvolvimento Científico e Tecnológico medicina nuclear no país. Um modelo inspirador,
(FNDCT), gerido pela Financiadora de Estudos e segundo ele, é o da Argentina, em que houve uma
Projetos (Finep), que deve contar com um mon- quebra parcial do monopólio. “A Comissão Na-
tante de R$ 8,46 bilhões em 2022. O problema é cional de Energia Atômica [CNEA] da Argentina
que os recursos do fundo são constantemente con- produz radioisótopos com reatores próprios e se
tingenciados pelo governo federal. encarrega do processamento de radiofármacos.
Pontes também se posicionou favoravelmente Já a venda dos produtos é feita há algum tempo
à Proposta de Emenda à Constituição (PEC) n° pela Dioxitek, empresa criada por ex-servidores
517/2010, de autoria do senador Álvaro Dias (Po- da CNEA. Antes a própria CNEA fazia a comer-
demos-PR), que quebra o monopólio estatal dos cialização”, conta Calvo.
radiofármacos. A PEC já foi aprovada no Senado “É esse modelo que estamos propondo para o
e tramita na Câmara dos Deputados. “Não se trata Brasil. O importante é que os recursos oriundos da
de substituir a produção estatal por privada, mas venda de radiofármacos e radioisótopos retornem
de complementar”, defendeu o ministro. De acordo para as instituições que fazem sua produção”, diz
com Almeida, dados da Agência Internacional de Calvo. De acordo com ele, África do Sul e Austrália
Energia Atômica (Aiea) demonstram que a produção também têm sistemas híbridos, em que a fabrica-
privada de radiofármacos é predominante no mundo. ção dos produtos é de responsabilidade do Estado
Celso Cunha, presidente da Associação Bra- e sua comercialização fica por conta da iniciativa
Detalhe do sileira para Desenvolvimento de Atividades Nu- privada. Já o Chile, segundo o superintendente do
processamento do cleares (Abdan), diz que há empresas dispostas a Ipen, adotou um modelo que não deu certo. “Lá,
iodo-131 (abaixo); investir tanto na produção de radiofármacos no houve uma quebra total do monopólio. A política
etiquetagem dos
frascos que receberão
Brasil quanto no RMB. “A iniciativa privada pode adotada pela Comissão Chilena de Energia Nuclear
o radiofármaco complementar a produção do Ipen e resolver a foi de privatização de radiofármacos, o que deixou
(abaixo, à dir.) crise de abastecimento de radiofármacos no país”, a população muito vulnerável.”

68 | NOVEMBRO DE 2021
DIFERENTES TIPOS DE SUBSTÂNCIA
Os radiofármacos são agrupados de acordo com o tempo de seu decaimento radioativo

Os radiofármacos são divididos em dois os centros médicos usuários. A recente crise orçamentárias do órgão. São 37 radiofármacos,
grupos distintos de acordo com o tempo não afetou o abastecimento desses produtos. cada um com características próprias de
em que os átomos reduzem suas emissões Segundo a Sociedade Brasileira de meia-vida. O tecnécio-99m, por exemplo,
radioativas. Um grupo é formado por Medicina Nuclear (SBMN), cerca de 450 tem decaimento radioativo a cada seis horas.
radiofármacos com meia-vida igual ou clínicas e hospitais realizam serviços de Segundo o médico radiologista George
inferior a duas horas. O produto não perde medicina nuclear no país, concentrados nos Coura Filho, presidente da SBMN, o
a validade nesse prazo, mas há um grandes centros urbanos, principalmente desabastecimento de radiofármacos impacta
decaimento radioativo de metade de sua no Sudeste. Os insumos para os PET são diretamente o diagnóstico e o tratamento
carga a cada duas horas, o que exige providos por três ou quatro fornecedores dos pacientes com potencial de gerar efeitos
que a produção e o uso sejam calibrados principais, muitos deles com filiais regionais, irreversíveis a eles. Sem contar os gastos
de forma a tirar o melhor proveito das mas há outras empresas pequenas no ainda maiores para o sistema de saúde.
suas características. mercado – nem a SBMN nem a Associação Um exame de cintilografia de perfusão
Nesse grupo estão os radiofármacos Brasileira para Desenvolvimento de miocárdica, exemplifica Coura Filho, é capaz de
usados na tomografia por emissão de Atividades Nucleares (Abdan) sabem ao certo estratificar com precisão riscos de insuficiência
pósitrons, conhecido pela sigla PET, que quantas companhias atuam nesse segmento, coronariana e ajudar a indicar o melhor
é utilizada em diagnóstico para avaliar em que o domínio tecnológico das substâncias tratamento a ser seguido, seja medicação,
a estrutura de órgãos como pulmão, fígado já é consolidado, sem inovações relevantes. cateterismo ou cirurgia cardíaca. “Um
e cérebro, além de ossos. Essas substâncias O outro grupo de radiofármacos diagnóstico impreciso por falta de recursos
respondem por 15% da demanda da medicina é formado pelos produtos com meia-vida para a realização do procedimento adequado
nuclear. Desde 2006 é liberada a produção superior a duas horas. Monopólio da União pode levar a uma conduta equivocada,
privada no país, para permitir uma maior e produzidos exclusivamente pelo Ipen, esses provocando um prejuízo maior do que o custo
proximidade física entre os laboratórios e produtos foram afetados pelas dificuldades do exame que deixou de ser realizado”, avalia.

O
fim do monopólio, apontado por O principal esforço inovativo no Ipen hoje é re-
alguns especialistas como solução sultado de uma parceria com a FAPESP por meio
para o problema, gera apreensão do Plano de Desenvolvimento Institucional em
no Ipen. “Pode ser a desculpa per- Pesquisa (PDIP), iniciativa da Fundação voltada à
feita para o governo reduzir ainda modernização dos institutos estaduais de pesquisa.
mais os recursos para a produção A infraestrutura laboratorial está sendo adequada
de radiofármacos e abandonar para o desenvolvimento de novos radiofármacos,
de vez o projeto do RMB”, diz utilizando inclusive técnicas de nanotecnologia. O
o engenheiro químico Marcelo Ipen será o terceiro no mundo a contar com um
Linardi, ex-diretor de Pesquisa microscópio com resolução subnanométrica a la-
FOTOS  LÉO RAMOS CHAVES

e Desenvolvimento do instituto ser, conhecido como NSOM, sigla de Near-field


e autor do livro O Ipen e a saúde. Scanning Optical Microscopy. Não invasivo, o ins-
Para Linardi, também podem ser definitiva- trumento permite mapear o interior de uma molé-
mente comprometidas pesquisas de novos pro- cula, observar mudanças ultraestruturais e estudar
dutos inéditos no Brasil e no mundo, como o de- amostras biológicas.
senvolvimento com o apoio da FAPESP de um “A nanotecnologia é o futuro da inovação em ra-
novo radiofármaco específico para o diagnóstico diofármacos”, diz Linardi, que foi o responsável pelo
de câncer de mama do tipo HER-2 positivo, um desenvolvimento do projeto. A previsão é de que o
dos mais agressivos. “Hoje o método disponível NSOM seja instalado em dezembro e entre em ope-
para o diagnóstico desse tipo de câncer é a bióp- ração em meados de 2022. Entre as pesquisas em
sia seguida de imuno-histoquímica, que não são desenvolvimento no Ipen estão a de radioisótopos
100% conclusivas. Isso leva muitas vezes a trata- inéditos no mundo que utilizam nanopartículas de
mentos inadequados. Nosso projeto se baseia no ouro e paládio para braquiterapia, um procedimento
desenvolvimento de um radiofármaco capaz de que utiliza alta concentração de radiação diretamen­
identificar o marcador HER-2 na doença metastá- te no tumor, sem impactar células saudáveis, redu-
tica para acompanhar a evolução da enfermidade zindo os efeitos colaterais no tratamento do câncer. n
e auxiliar na escolha da melhor terapia para cada
caso”, diz Emerson Bernardes, gerente do Centro Os projetos consultados para esta reportagem estão listados na ver-
de Radiofarmácia do Ipen. são on-line.

PESQUISA FAPESP 309 | 69


AMBIENTE

TECNOLOGIA
A SERVIÇO
DAS FLORESTAS

Artérias da destruição:
montagem sobre
imagem aérea de
incêndio em trecho
da floresta amazônica
no Pará

70 | NOVEMBRO DE 2021
Inteligência artificial, dados de satélite e modelos estatísticos
preveem riscos de desmatamento e incêndios na Amazônia
e analisam o impacto do fogo em tempo real

Domingos Zaparolli

P
lataformas tecnológicas capazes de partir de imagens de satélites. Outras variáveis
prever riscos de desmatamento e preditivas do modelo de risco de desmatamento
do impacto do fogo na floresta po- incluem uso da terra, atividades socioeconômi-
dem se tornar importantes aliadas cas na região, topografia e rios. As imagens para
na proteção de biomas brasileiros, o mapeamento das estradas são coletadas pelo
principalmente a Amazônia. A pla- satélite Sentinel-2 da Agência Espacial Europeia
taforma PrevisIA, resultado de uma parceria do (ESA) e processadas na plataforma em nuvem
FOTO  FLORIAN PLAUCHEUR / AFP VIA GETTY IMAGES  ILUSTRAÇÃO WEKTORYGRAFIKA / ISTOCK / GETTY IMAGES PLUS

Instituto do Homem e Meio Ambiente da Ama- Azure, da Microsoft.


zônia (Imazon), da Microsoft e do Fundo Vale, da “Com esse conjunto de informações é possível
mineradora de mesmo nome, utiliza geoestatística entender a dinâmica do desmatamento e deter-
e inteligência artificial para mapear regiões de minar quais são as fronteiras ativas, as áreas de
florestas ameaçadas. “A ideia é disponibilizar floresta que correm mais risco no curto prazo,
informações que permitam aos agentes públicos algo como 12 meses”, detalha Souza Jr. Um exem-
agir preventivamente e evitar o desmatamento”, plo é o mapeamento de estradas não autorizadas
diz o geógrafo Carlos Souza Jr., pesquisador as- abertas na floresta – “artérias da destruição”, na
sociado do Imazon. definição do geógrafo.
Os dados geoestatísticos da plataforma são ob- Estudos mostram que 95% do desmatamento e
tidos com a análise automatizada dos informes 85% das queimadas na Amazônia se concentram
anuais sobre cortes rasos (rentes ao solo) da co- em distâncias de até 5,5 quilômetros (km) des-
bertura vegetal coletados por meio de satélites, sas estradas. A geoestatística permite conhecer
principalmente da série Landsat, e acumulados o histórico de ocupação do solo e do uso da terra
desde 1988 pelo Projeto de Monitoramento do nas proximidades de cada estrada. O algoritmo de
Desmatamento da Floresta Amazônica por Saté- inteligência artificial desenvolvido pelo Imazon
lite (Prodes), coordenado pelo Instituto Nacional permite detectar nas imagens de satélites estradas
de Pesquisas Espaciais (Inpe). que não constam nos mapas oficiais e estimar a
Com auxílio de inteligência artificial, os de- região de florestas sob influência delas. Essas es-
senvolvedores do PrevisIA acoplaram aos dados tradas estão geralmente associadas às atividades
do histórico de desmatamento informações so- extrativistas ilegais de madeira e garimpeiros e à
bre as estradas abertas na Amazônia, obtidas a ocupação irregular de terras públicas.

PESQUISA FAPESP 309 | 71


Para 2021, a PrevisIA detectou 9.635 quilôme-
tros quadrados (km²) sob risco de desmatamen-
to, o que inclui 18 unidades de conservação com
áreas de risco alto ou muito alto, 192 municípios,
48 terras indígenas, dois territórios quilombolas
e 789 assentamentos rurais. Ao longo do ano, a Algoritmo detecta
equipe da plataforma tem comparado a projeção
com os indicadores do Sistema de Alerta de Des- em imagens de satélites
matamento (SAD) do Imazon, que no seu boletim
referente ao mês de julho deste ano identificou
estradas que não
2.095 km² de desmatamento na Amazônia Legal. constam nos mapas
“Nosso nível de acerto está sendo bem elevado.
Por volta de 80% dos lugares desmatados cor- oficiais e estima
respondem a áreas que indicamos como de risco
médio, alto e muito alto”, constata Souza Jr. a região de florestas
A plataforma PrevisIA é aberta ao público e pode
ser acessada em https://previsia.org. Os gestores es-
sob influência delas
tão empenhados em realizar parcerias com usuários
que podem fazer o uso efetivo dos dados disponi-
bilizados, como governos municipais, estaduais e
órgãos federais. A ideia é que a ferramenta também
seja usada por bancos que estabelecem critérios sus-
tentáveis em suas políticas de crédito, seguradoras
que pretendem reduzir os riscos de suas atividades
e empresas empenhadas em estabelecer cadeias
produtivas abastecidas por insumos de procedência
legal. Um primeiro projeto já está em curso com o
Ministério Público do Pará, interessado em oferecer
300 km
aos promotores municipais informações para pre-
NÍVEL
venção e controle do desmatamento em escala local. DE RISCO
Outra iniciativa prevista pela equipe do Previ- Muito alto
sIA é conceber um mapa de ações que podem ser Alto
Médio
implementadas por agentes públicos e privados Baixo
Muito baixo
para evitar o desmatamento. Uma das propostas
é incentivar os agentes a gerar receitas finan-
ceiras com suas iniciativas por meio do sistema
de Redução das Emissões por Desmatamento
e Degradação Florestal Evitável (REDD+), um
mecanismo econômico criado pela Convenção-
-Quadro da Organização das Nações Unidas sobre
a Mudança do Clima (UNFCCC) com o objetivo
de remunerar quem realiza ações preventivas
voltadas à conservação da floresta.

T
odo avanço na devastação que
ocorre na Amazônia ganha gran- 30 km

de repercussão no planeta, pois


afeta as emissões de dióxido de
carbono (CO2) para a atmosfera,
que podem se sobrepor à absorção
de CO2 pela vegetação por meio da fotossíntese.
As emissões resultantes de queimadas associadas
ao desmatamento também podem impactar o
regime de chuvas na América do Sul, com reflexo
sobre a produção agropecuária e o abastecimento
de cadeias produtivas de alimentos ao redor do Mapa gerado pela
plataforma PrevisIA
mundo (ver Pesquisa FAPESP n° 285). classifica o risco de
Essa relevância levou pesquisadores da Escola desmatamento na
5 km
de Ciências Geográficas da Universidade de Ciên- floresta amazônica

72 | NOVEMBRO DE 2021
cia e Tecnologia da Informação de Nanjing, na úmida, onde esse tipo de ocorrência seria raro se
China, a avaliar opções tecnológicas capazes de não fosse a intervenção humana.
aperfeiçoar a obtenção de informações sobre in- O Projeto de Mapeamento Anual do Uso e Co-
cêndios na floresta amazônica e a sua disponibi- bertura da Terra no Brasil (MapBiomas) cons-
lização em tempo real. O estudo gerou um artigo tatou que entre 1985 e 2020 o Brasil queimou,
publicado em junho na revista científica Remote em média, 150.957 km² por ano, uma área maior
Sensing, indicando que a ferramenta Profundi- que a da Inglaterra. No acumulado do período,
dade Óptica de Vegetação, conhecida pela sigla 1.672.142 km², cerca de 20% do território nacio-
VOD, é a mais eficiente. nal, foi queimado. A época de seca, entre julho e
O VOD é um sistema que usa dados de satélite outubro, concentra 83% das queimadas e incên-
dotados de tecnologia de radar micro-ondas. Se- dios e, entre os cinco biomas do país, o Pantanal
gundo o engenheiro ambiental Ricardo Dal’Agnol, foi, proporcionalmente, o mais atingido, tendo
pesquisador na Divisão de Observação da Terra 57% da área de seu território queimada pelo me-
e Geoinformática do Inpe, que colaborou com os nos uma vez no período delimitado pelo estudo.

U
cientistas chineses e é um dos autores do artigo,
o VOD consegue captar a interferência de água ma equipe de alunos da disciplina
na vegetação e determinar se a floresta está mais de ciências ambientais do curso
ou menos úmida. “Com esses dados é possível de engenharia civil da Universi-
diferenciar uma vegetação em estado normal dade Federal do Paraná (UFPR)
daquela afetada pelo fogo”, diz Dal’Agnol, que desenvolveu um método que usa
desenvolve projeto de pesquisa de pós-doutorado recursos de inteligência artifi-
com bolsa da FAPESP. cial para prever riscos de incêndios florestais
Os sistemas tradicionais de monitoramento causados pelas condições climáticas. O modelo
de incêndios em florestas em todo o mundo uti- computacional considerou dados de focos de
lizam dados ópticos obtidos por satélites como o incêndios monitorados por satélites do Programa
Landsat, com o qual o Inpe vistoria a Amazônia. Queimadas do Inpe e dados meteorológicos da
Os instrumentos ópticos trabalham com a radia- rede automática do Instituto Nacional de Meteo-
ção visível ou infravermelha e identificam focos rologia (Inmet) como temperatura, radiação solar,
de calor. “É um bom instrumento para detectar o velocidade do vento, umidade e chuva.
que ocorre no dossel da floresta, mas não é bom Um primeiro teste do sistema foi realizado no
para determinar o que ocorre no chão. E a maior Parque Nacional Chapada das Mesas, no Mara-
parte do fogo na floresta ocorre primeiro no solo nhão. “Fizemos previsões de focos de incêndio
e muitas vezes não chega ao topo do dossel”, in- com até 12 horas de antecedência, com uma
forma Dal’Agnol. O dossel é a cobertura superior taxa de acerto de 83%”, diz o coordenador do
da floresta, o topo das árvores. projeto, o engenheiro civil Fábio Teodoro de
O radar de micro-ondas apresenta outra vanta- Souza, professor do Programa de Pós-graduação
gem sobre os de leitura óptica, segundo o pesqui- em Gestão Urbana da Pontifícia Universidade
sador. “O equipamento sofre menos interferência Católica do Paraná (PUC-PR). O resultado foi
da atmosfera na coleta de dados. A presença de alcançado com três leituras diárias de dados
nuvens e fumaça de fogo não impacta a medida, de uma estação meteorológica a 34 km de dis-
como ocorre com os sistemas ópticos”, afirma. tância do parque nacional. “Com leituras mais
O estudo realizado pela Universidade de Nan- frequentes em estações meteorológicas mais
jing utilizou informações de 2019 obtidas por próximas do ponto de análise, o índice de acerto
satélites da Agência Japonesa de Exploração Ae- pode chegar próximo a 100%”, estima o profes-
roespacial (Jaxa). A comparação foi feita entre o sor da PUC-PR. n
sistema VOD e três sistemas ópticos de satélite
mais usados atualmente: o índice de vegetação
de diferença normalizada (NDVI); o de vegeta-
Projeto
ção aprimorado (EVI); e a razão de queima nor-
Quantificando mortalidade de árvores com lasers: Usando uma aborda-
malizada (NBR). gem de fusão de dados e modelagem de última geração para estimar
Dal’Agnol relata que os pesquisadores da Uni- a perda de biomassa em florestas tropicais (nº 19/21662-8); Modali-
versidade de Nanjing já demonstraram disposição dade Bolsa de Pós-doutorado; Pesquisador responsável Luiz Eduardo
de Oliveira e Cruz de Aragão (Inpe); Investimento R$ 203.497,56.
de desenvolver um sistema de monitoramento em
tempo real de incêndios na floresta amazônica Artigos científicos
usando a tecnologia VOD, mas o governo brasi- ZHANG, H. et al. Forest canopy changes in the southern Amazon
leiro ainda não manifestou interesse em investir during the 2019 fire season based on passive microwave and optical
MAPAS PREVISIA

no projeto. De acordo com o Inpe, entre janeiro e satellite observations. Remote Sensing. 8 jun. 2021.
SOUZA, F. T. et al. A data-based model for predicting wildfires in Chapa-
agosto deste ano, foram registrados 39.427 focos da das Mesas National Park in the State of Maranhão. Environmental
de incêndio na Amazônia, uma região de floresta Earth Sciences. v. 74, p. 3603-11. ago. 2015.

PESQUISA FAPESP 309 | 73


ENGENHARIA DE MATERIAIS Material
nanoparticulado de
cobre em formato
de pó produzido
pela empresa Cecil
e pelo IPT

O
PODER
DO
COBRE
M
Nanopartículas do mineral ineral com comprovado parceiros entraram com pedido de pa-
efeito antimicrobiano, o tente de um processo produtivo para ob-
podem ser usadas cobre tem mostrado bom tenção de nanopartículas de cobre com
potencial como aditivo na uma tecnologia nacional. Foi o resultado
na elaboração de tecidos fabricação de produtos de um trabalho iniciado em 2018, que
com efeito biocida tecnologicamente mais ganhou relevância com a pandemia de
elaborados e com maior Covid-19. Materiais aditivados com cobre
e em um produto contra valor de mercado. Estu- podem ajudar a conter a contaminação
dos feitos por startups pelo Sars-CoV-2. Ao entrar em contato
pragas agrícolas e universidades mostram que, quando com o microrganismo, o mineral rom-
apresentado na forma de nanopartícula, pe sua membrana externa, levando-o à
Suzel Tunes o material pode ser incorporado a tecidos, destruição. Dessa forma, uma maçaneta
tintas e plásticos, oferecendo proteção ou um corrimão pintados com uma tinta
contra vírus e bactérias. O mineral tam- aditivada impediriam a sobrevivência do
bém tem potencial para ser empregado vírus, minimizando sua disseminação
como ingrediente na alimentação de aves pelas mãos dos indivíduos.
e suínos, em substituição a antibióticos, e Para ganhar o mercado, o Grupo Cecil
no combate a pragas agrícolas, emulando montou a spin-off Abluo, especialmente
o papel dos pesticidas convencionais. para projetar e desenvolver soluções tec-
FOTOS  LÉO RAMOS CHAVES

Um dos trabalhos mais avançados é nológicas com o uso do novo material. A


liderado pelo Grupo Cecil, do setor de ideia é que essas novas soluções tecno-
laminação de metais, e o Instituto de lógicas sejam criadas a partir de deman-
Pesquisas Tecnológicas do Estado de das dos clientes da startup e em parceria
São Paulo (IPT). No fim de 2020, os dois com eles. “Com a Abluo, passamos a in-
vestir não apenas em produtos do tipo A parceria estabeleceu-se há três anos nopartículas de cobre, segundo Longo,
commodity, mas também em materiais quando a Cecil resolveu criar um pro- vêm trazer mais opções a esse mercado.
de elevado valor, como tecidos aditiva- duto aproveitando a natureza biocida do
dos”, destaca o engenheiro de produção cobre e financiou dois pós-graduandos SUBSTITUTO VERDE
Clayton Lambert, gerente de Inovação do programa de mestrado profissional do A startup Brazilian Nano Feed (BNF), de
e Tecnologia da Cecil. IPT, Pedro Paulo Noronha Silva de Jesus Santo André (SP), também trabalha com
As nanopartículas de cobre, em forma e Rúbia Rodrigues Conti. Esses estudos o cobre nanoparticulado. Em um proje-
líquida ou em pó, podem ser utilizadas no resultaram na tecnologia patenteada e na to apoiado pela FAPESP, a empresa está
ramo hospitalar, na construção civil, na contratação dos pesquisadores – Jesus realizando a síntese de nanopartículas de
indústria automobilística, no setor têx- trabalha na Abluo e Rodrigues no IPT. cobre e prata para uso como aditivo na
til, entre outros. Elas são obtidas a partir A evolução do conhecimento sobre o alimentação de suínos e aves. O objeti-
de uma reação química de oxirredução novo coronavírus, demonstrando maior vo é substituir os antibióticos utilizados
de sulfato de cobre, com encapsulação risco de contágio por via aérea do que para reduzir bactérias patogênicas do
do elemento ativo, ou seja, a proteção pelo contato de superfícies contamina- trato intestinal dos animais e facilitar a
do nanocobre com um revestimento. O das, não deve reduzir o potencial de apli- absorção de nutrientes.
processo de nanoencapsulação, explica a cações do novo produto, dizem os pes- “O uso indiscriminado dos antibióticos
bióloga Patrícia Léo, gerente técnica do quisadores. “Toda forma de prevenção acaba levando à resistência”, justifica o
Laboratório de Biotecnologia Industrial é importante. Nanopartículas de cobre veterinário Joaquim Gonçalves, gerente
do IPT, foi a forma encontrada para con- podem ser utilizadas em dutos e filtros comercial da BNF. A empresa já formu-
tornar a instabilidade do cobre, um dos de ar-condicionado”, defende Léo. lou um produto para ser incorporado em
maiores desafios ao se trabalhar com o O químico Elson Longo, professor diferentes tipos de ração. Camila Neves
metal. “As nanopartículas resultantes da da Universidade Federal de São Carlos Lange, sócia-fundadora da startup, desta-
reação são instáveis e tendem a aglome- (UFSCar) e diretor do Centro de De- ca as vantagens do uso conjunto de cobre
rar. Para conferir estabilidade a elas, cria- senvolvimento de Materiais Funcionais e prata em um mesmo aditivo. “O cobre é
mos revestimentos à base de polímeros (CDMF), um dos Centros de Pesquisa, mais difícil de trabalhar, mas é mais ba-
e surfactantes”, detalha a pesquisadora. Inovação e Difusão (Cepid) apoiados rato e um nutriente já bastante utilizado,
Para aumentar a escala de produção, pela FAPESP, tem a mesma opinião. “É enquanto a prata tem ação bactericida
Cecil e IPT estão aprimorando o processo um campo que vai crescer de forma ex- mais eficiente”, diz. O próximo passo será
fabril. Léo explica que, inicialmente, se ponencial. A vacina garante alguma imu- a realização de ensaios em campo com
recorreu ao processo produtivo de bate- nidade, mas continua sendo importante pecuaristas para comparar a eficácia dos
lada. “Nele, os reagentes são colocados usar máscara, higienizar mãos, proteger antibióticos com as nanopartículas de
de forma ordenada em um tanque reator locais de grande circulação de pessoas, cobre e prata.
como se fossem os ingredientes de uma como bancos de ônibus, maçanetas, ca- Outra investigação na Universidade Fe-
sopa”, compara. “A quantidade produzida tracas. A proteção continuará sendo fun- deral do ABC (UFABC) tem como finali-
a cada batelada é limitada pelo tamanho damental no futuro.” dade pesquisar o uso de nanopartículas de
do tanque.” Essa restrição pode ser su- O CDMF tem entre as suas spin-offs a cobre na agricultura, em substituição aos
perada com o emprego de reatores mi- Nanox, startup especializada em nano- pesticidas convencionais. “Estamos utili-
crofluídicos, processo que o IPT está de- partículas de prata. O antimicrobiano zando o material para combater patógenos
senvolvendo. “Os microrreatores operam nanoparticulado, criado com apoio do das plantas e biofortificação. O cobre é um
em fluxo contínuo, sem interrupção”, es- Programa Pesquisa Inovativa em Peque- elemento importante para o crescimento
clarece a pesquisadora. O novo processo nas Empresas (Pipe), da FAPESP (ver vegetal”, destaca a química Amedea Ba-
garante maior precisão e homogeneidade Pesquisa FAPESP no 288), já vem sen- rozzi Seabra, que tem apoio da FAPESP.
no tamanho das nanopartículas, podendo do aplicado a diversos materiais, como A pesquisadora também trabalha com
elevar seu potencial biocida. papel, plástico e fibras têxteis. As na- nanopartículas de prata em um projeto
que visa eliminar fungos na pós-colheita.
Nesse projeto, em parceria com o Institu-
to Agronômico de Campinas, Seabra in-
corporou às nanopartículas revestimento
de quitosana, um polímero natural e bio-
degradável, modificada para a liberação
de óxido nítrico. “Esse elemento também
tem ação bactericida. Associada à nano-
partícula de prata, permite que usemos
menor quantidade do metal”, explica a
pesquisadora, que já entrou com pedido
de patente da tecnologia. n

Etapas da síntese de fabricação de nanocobre no IPT: solução de sulfato de cobre penta-hidratado, Os projetos e o artigo científico consultados para esta
agente de revestimento, agente redutor e solução líquida de nanopartícula de cobre (da esq. para a dir.) reportagem estão listados na versão on-line.

PESQUISA FAPESP 309 | 75


ECONOMIA

76 | NOVEMBRO DE 2021
NA PRÁTICA,
A TEORIA É OUTRA
Pesquisas abordam as ideias e as políticas
de ministros da Fazenda do Brasil republicano

Diego Viana  |  ILUSTRAÇÕES  Zé Vicente

N
as páginas finais de Teoria geral vem a ideia do livro sobre ministros da Fazenda:
do emprego, do juro e da moeda, como as ações dessas pessoas se articulam com
publicado em 1936, o economista sua maneira de pensar?”, recorda o economista.
britânico John Maynard Keynes “Os ministros da Fazenda são pessoas que li-
(1883-1946) escreve que “os ho- dam diretamente com a política, no dia a dia, e
mens práticos, que se julgam imu- por isso estão sempre confrontados com a tensão
nes a quaisquer influências inte- entre a teoria e a realidade”, observa Alexandre
lectuais, geralmente são escravos Macchione Saes, do Departamento de Econo-
de algum economista já falecido”. mia da Faculdade de Economia, Administração
O que acontece, porém, quando al- e Contabilidade da Universidade de São Paulo
guém com influências intelectuais (FEA-USP) e coautor de dois capítulos da obra.
e ideias sobre produção, consumo “Praticamente tudo que se pensou em economia
e comércio é levado a uma posição em que deve na história do Brasil foi fundado em problemas
conduzir a política econômica de um país? práticos, ligados ao processo de desenvolvimento
O encontro nem sempre harmonioso das ideias do país. Faz sentido examinar a história do pen-
econômicas com a atuação na vida pública é um samento econômico no Brasil por intermédio
dos temas centrais de Os homens do cofre: O que desses personagens.”
pensavam os ministros da Fazenda do Brasil re- O foco no Ministério da Fazenda (substituído
publicano (1889-1985), organizado por Ivan Co- em 2019 pelo atual Ministério da Economia) se
langelo Salomão, do Departamento de Economia justifica também pelo fato de o cargo ter sido ocu-
da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Os pado por alguns indivíduos célebres na trajetória
17 capítulos examinam a trajetória intelectual e do país, como o jurista Ruy Barbosa (1849-1923),
profissional dos principais titulares do Ministério mais conhecido por sua carreira parlamentar e
da Fazenda, desde a proclamação da República, diplomática, e o futuro presidente, ditador e pre-
em 1889, até o fim da ditadura militar (1964-1985). sidente eleito Getúlio Vargas (1882-1954), que
O livro é o primeiro volume a ser publicado de serviu à mesma Primeira República que viria a
uma trilogia que resgata a atuação dos ministros derrubar poucos anos depois.
a partir da Independência, em 1822, até 2016.
Salomão conta que trabalhava em outro proje- MINISTÉRIO DE PESO
to, dedicado a pensadores econômicos brasileiros O Brasil experimentou uma história econômica
do século XIX, quando percebeu que nenhum atribulada, com inflação persistente, ciclos de
dos personagens retratados tinha sido direta- recessão, moratórias. Muitos ministros passa-
mente responsável pela política econômica. “Daí ram quase toda sua gestão combatendo crises.

PESQUISA FAPESP 309 | 77


O último titular da pasta retratado no volume, cações sobre o tema”, afirma. Outros países não
o economista Ernane Galvêas, disse aos autores conferem tanta importância e autonomia a seus
do capítulo a ele dedicado que “não havia tempo ministros da área econômica. Salomão compara
para pensar e formular uma política econômi- o caso brasileiro com os Estados Unidos, onde o
ca. Todo dia tínhamos de apagar algum incên- cargo correspondente, de secretário do Tesouro,
dio, ficávamos presos ao curto prazo”, observa tem muito menos poder para decidir a política
Victor Cruz e Silva, do Instituto de Economia e econômica do país. “Uma das razões é que o Fe-
Relações Internacionais da Universidade Fede- deral Reserve é independente há muito tempo e
ral de Uberlândia (Ieri-UFU) e coautor de dois goza de autonomia de fato e de direito. Então o
capítulos. A gestão de Galvêas, de 1980 a 1985, secretário do Tesouro não tem voz sobre um ins-
coincidiu com o fim do período de crescimento trumento importantíssimo, a política monetária.
acelerado do país. No Brasil, ministros como Delfim Netto, o mais
A trajetória econômica atribulada fez do Mi- poderoso que já tivemos, podia simplesmente
nistério da Fazenda uma instituição central na colocar alguém de sua confiança na presidência

N
construção do Brasil. Sua criação é anterior à do Banco Central”, observa.
Independência: o primeiro titular da pasta, ain-
da sob dom João VI (1767-1826), foi o conde de o período imperial, era comum
Aguiar, dom Fernando José de Portugal e Castro que grandes figuras políticas
(1752-1817), que assumiu em 1808, ano da che- ocupassem tanto o Ministério
gada da corte portuguesa ao Brasil. A partir de da Fazenda quanto a presidência
1822, responsáveis pelas finanças de uma jovem do Conselho de Ministros, cargo
nação que precisava pagar indenizações a Portu- correspondente ao de primeiro-
gal pelo reconhecimento formal, endividar-se em -ministro. A era dos chamados
ouro para comprar produtos do exterior e garan- “czares da economia”, indivíduos
tir a rentabilidade das exportações agrícolas, os com grande poder político graças
ministros da Fazenda se tornaram personagens à posição de ministro, foi efeti-
particularmente relevantes. vamente inaugurada no período
Essa é uma característica que o Brasil compar- republicano, com Ruy Barbosa
tilha com alguns de seus vizinhos, como a Argen- e Joaquim Murtinho (1848-1911), diz Salomão.
tina, a Colômbia, o Peru e o México, segundo Sa- “No Brasil, os presidentes que não conheciam
lomão. “Mas nesses países a história do Ministério ou não se interessavam por economia delegavam
da Fazenda já foi estudada, analisada e contada esse papel a seus ministros, como fez [Emílio
inúmeras vezes. Aqui, ainda são poucas as publi- Garrastazu] Médici [1905-1985] com Delfim”,

78 | NOVEMBRO DE 2021
PESQUISAS EM HISTÓRIA
DO PENSAMENTO
ECONÔMICO TIVERAM
UM CRESCIMENTO
EXPRESSIVO NAS ÚLTIMAS
DUAS DÉCADAS

observa Salomão. “Por outro lado, presidentes No Brasil, as pesquisas em história do pensa-
com opiniões fortes em economia tinham mi- mento econômico tiveram um crescimento ex-
nistros opacos. Alguns chegaram a ser esque- pressivo nas últimas duas décadas, com desta-
cidos. O ministro da Fazenda mais longevo do que para o rápido desenvolvimento dos estudos
Brasil foi Artur de Souza Costa [1893-1957], que sobre como teorias foram assimiladas, adaptadas
ocupou o cargo de 1934 a 1945. Mas poucos são ou produzidas localmente, de acordo com Saes,
capazes de citar seu nome, porque foi ministro da FEA-USP. Nesse subcampo, uma das questões
de Vargas, que era quem realmente tocava a po- recorrentes diz respeito à existência de doutri-
lítica econômica.” nas surgidas ou desenvolvidas no país, mas com
No século XX, aumentaram as atribuições do aplicação universal.
cargo, com os esforços de industrialização exigin- Segundo os historiadores, ao longo do último
do a fundação de novas instituições e o desenvol- século, teóricos brasileiros tiveram papel funda-
vimento de novos instrumentos. Nesse período, mental em duas correntes com essa característica.
ministros da Fazenda foram diretamente respon- A primeira, desenvolvida nas décadas de 1940 e
sáveis pela instalação do Banco Central, que data 1950, é o estruturalismo cepalino, com a teoria da
de 1964 e foi precedido pela Superintendência da deterioração dos termos de troca, cujos pais são o
Moeda e do Crédito (Sumoc), criada em 1945; do argentino Raúl Prebisch (1901-1986) e o brasileiro
Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Celso Furtado (1920-2004). A segunda é a teoria
(mais tarde) Social (BNDES), de 1952; do Sistema da inflação inercial, desenvolvida na década de
Financeiro da Habitação (SFH), em 1964, e outros. 1980 por economistas como André Lara Resende,
“No tempo de [Francisco de Paula] Rodrigues Francisco Lopes e Persio Arida, que formariam o
Alves [1848-1919], fazer política econômica era núcleo do que viria a ser o Plano Real, implantado
basicamente administrar o câmbio, tomando al- em 1994. Embora tivessem como ponto de partida
gumas outras medidas aqui e ali. Era muito res- as questões concretas do Brasil, essas doutrinas
trito”, afirma Salomão, ao referir-se ao advogado se aplicam a situações que não se limitam ao país.
que foi ministro da Fazenda entre 1891 e 1892 e, Excluídos esses dois casos, explica Saes, “o pen-
mais tarde, presidiu a República (1902-1906). samento econômico que se desenvolveu aqui foi
“Entre 1974 e 1979, época de [Mario Henrique] quase sempre uma resposta a questões práticas,
Simonsen [1935-1997], havia muito mais instru- enfrentadas por pessoas que estavam na academia,
mentos e instituições. Nas décadas de 1960 e 1970, no mercado ou no governo”. “É assim que emergem
o problema da inflação estava em outro nível. As os temas da industrialização, do balanço de paga-
condições eram completamente diferentes do mentos, da pobreza e desigualdade, da estrutura
começo do século XX”, compara. de um país agrário-exportador. Esses problemas

PESQUISA FAPESP 309 | 79


são confrontados com modelos de interpretação econômico aparece como uma ilha separada de
trazidos de economias industrializadas, com es- tudo o mais que acontece na sociedade. A partir
truturas econômicas bastante distintas”, completa. do momento em que alguém assume o papel de
Como as condições em que se administraram formulador de políticas, deve lidar com as inte-
as finanças brasileiras, bem como os setores pro- rações sociais, que transcendem o sistema eco-
dutivos do país, nunca corresponderam perfei- nômico. Aí a questão passa a ser: qual é o limite
tamente ao que preconizavam as teorias desen- que ele aceita? Onde traça a fronteira do que não
volvidas nos países centrais, houve sempre uma vai mais fazer parte?”, questiona Cruz e Silva.
necessidade de “tropicalizar” ideias e princípios No caso de Gudin, pressões contra sua política

R
econômicos, aponta Salomão. Ainda no século anti-inflacionária levaram-no a pedir demissão.
XIX, uma das primeiras “vítimas da tropicali-
zação” foi o padrão-ouro, sistema em que esteve uy Barbosa, primeiro ministro da
fundado o valor relativo das moedas do mundo Fazenda do Brasil republicano,
ao longo do século XIX e parte do século XX. Por foi um “intelectual liberal” e um
esse sistema, a quantidade de moeda em circu- “político heterodoxo”, escreve
lação deveria corresponder ao ouro que o país Salomão. Suas ideias sobre pro-
mantinha em suas reservas, segundo uma taxa dução e comércio eram forte-
previamente fixada. “O padrão-ouro era uma mente baseadas na economia
realidade impossível para um país com balanço política clássica, sobretudo no
de pagamentos extremamente deficitário. Era filósofo e economista britânico
praticamente uma regra a não ser cumprida. Es- Adam Smith (1723-1790), um dos
tipulou-se a taxa de câmbio em 1846, mas sem- pais do liberalismo econômico.
pre constituiu uma exceção”, informa Salomão. Barbosa tinha grande admiração
Referindo-se a Eugênio Gudin Filho (1886- pela Inglaterra e defendia que o poderio do país
1986), Cruz e Silva afirma que sua experiência se fundava, em grande medida, em suas práticas
como ministro “serviu para mostrar a ele que for- liberais. Entretanto, ao assumir o cargo, “sua po-
ças externas ao livro-texto são às vezes grandes lítica foi de intervenção, defesa da produção na-
demais para serem ignoradas”. Pressionado pelas cional, política monetária expansionista”, pontua
circunstâncias do governo de Café Filho (1899- Salomão. “Ele dizia que um governo revolucio-
1970), que assumiu após o suicídio de Vargas, o nário não pode ser parcimonioso e conservador.”
pensador que defendia vigorosamente o livre Para Barbosa, o Império havia sido responsável
mercado teve de aceitar medidas de intervenção pela consolidação política do país e caberia à
do Estado na economia. “No livro-texto, o sistema República sua transformação econômica.

80 | NOVEMBRO DE 2021
CONDIÇÕES EM QUE
FINANÇAS BRASILEIRAS
FORAM ADMINISTRADAS
NÃO CORRESPONDERAM
ÀS TEORIAS FORMULADAS
EM PAÍSES CENTRAIS

Algo semelhante ocorreu com o jurista Horá- e expansão dos cursos de economia no Brasil. As
cio Lafer (1900-1965), ministro durante o último primeiras cadeiras dedicadas ao tema surgiram
governo Vargas (1951-1954). Conforme Saes, na na década de 1830, nas duas primeiras faculdades
tradição da historiografia econômica brasileira, de direito do país, de São Paulo e Olinda (PE), e,
Lafer é visto como um “fiel da balança” no gover- pouco depois, nas escolas de engenharia, come-
no, ou seja, alguém que “puxaria” as políticas de çando no Rio de Janeiro. Eram disciplinas minis-
um regime caracterizado pela intervenção estatal tradas nos anos finais da graduação, a partir de
na direção do liberalismo. O professor da FEA- textos canônicos, como os dos economistas bri-
-USP é contrário a essa interpretação. Lafer foi tânicos David Ricardo (1772-1823) e John Stuart
formado na geração de pensadores que orbitavam Mill (1806-1873), conta Salomão, da UFPR. Facul-
a esfera de influência de Roberto Simonsen (1889- dades de economia só foram criadas a partir da
1948), “uma geração ligada à industrialização, que década de 1940. As primeiras foram a Faculdade
vê seu crescimento pela via do Estado, com um Nacional de Ciências Econômicas, no Rio, na Uni-
claro projeto de Brasil”, contrapõe o historiador. versidade do Brasil, hoje Universidade Federal
Antes de assumir o ministério, Lafer foi de- do Rio de Janeiro (UFRJ), e na Universidade de
putado classista, compactuando com ideias que São Paulo (USP).
seriam sistematizadas na Carta de Teresópolis, Até então, comenta Cruz e Silva, os econo-
elaborada ao término do Congresso das Classes mistas e, por extensão, os ministros da Fazenda
Produtoras, em 1945, realizado naquela cidade assumiam o cargo egressos de escolas de direito
serrana do Rio de Janeiro. A carta defendia que ou de engenharia. Barbosa e Furtado, que assu-
o Estado combatesse diretamente a pobreza, pro- miu o Ministério do Planejamento de João Gou-
movesse a educação e incentivasse a industria- lart, são exemplos de ministros com formação
lização. “De fato, Horácio Lafer fez uma políti- jurídica e um pensamento mais humanístico.
ca de saneamento das contas públicas e sempre Graduados em engenharia, Gudin e Simonsen,
defendeu o equilíbrio fiscal, desde os anos 1930. por outro lado, “trouxeram um modo de pensar
Ele dizia: ‘Não podemos perder para a inflação’”, matemático e exato, típico de sua área de forma-
afirma Saes. Na prática, portanto, as medidas que ção”, observa o historiador. “Na série histórica
tomou pendiam mais para o lado liberal. “Mas essa de ministros da Fazenda, há uma linha divisória
filosofia tinha como horizonte criar mecanismos clara na década de 1960”, assinala Saes. A partir
para viabilizar o crescimento e a indústria, ali- de então, passariam a prevalecer ministros com
nhado com o projeto varguista”, contrapõe Saes. formação de economista, começando por Delfim
O desenvolvimento das instituições e políticas Netto, que integrou a terceira turma graduada
econômicas ocorreu paralelamente à instalação na FEA-USP. n

PESQUISA FAPESP 309 | 81


ENTREVISTA ROBERTO ARAÚJO OLIVEIRA SANTOS JUNIOR

OS LIMITES
DE UM SONHO
AMAZÔNICO
Antropólogo do Museu Goeldi diz que a Transamazônica
partiu de pressupostos equivocados, mas permitiu
a formação de comunidades de pequenos agricultores

Carlos Fioravanti

E
m um artigo publicado em 1966 no Jornal do Brasil, o engenheiro civil
Eliseu Resende (1929-2011), então diretor do Departamento Nacional de
Estradas de Rodagem (DNER), expôs as linhas gerais do plano da BR-
230, a rodovia Transamazônica, que começou a ser construída em 1970.
No ano seguinte, o recém-criado Instituto Nacional de Colonização e Reforma
Agrária (Incra) estabeleceu os primeiros lotes para pequenos agricultores entre
as cidades paraenses de Altamira e Itaituba e em agosto de 1972 o presidente
Emílio Garrastazu Médici (1969-1974) inaugurou o primeiro trecho, de 1.253
quilômetros (km), ligando Estreito, no Maranhão, a Itaituba, no Pará. A rodovia
havia sido planejada com 5.662 km, mas ficou com 4.260 km, unindo Cabedelo,
na Paraíba, a Lábrea, no Amazonas.
O historiador e antropólogo Roberto Araújo Oliveira Santos Junior, do Museu
Paraense Emílio Goeldi, diz que a Transamazônica não uniu o Norte e o Nordeste
a outras regiões do país, como desejava o governo. Mas permitiu a formação de
culturas agrícolas ambientalmente sustentáveis, como a do cacau, com um desma-
tamento menor do que o observado no sudeste do Pará, onde predominam grandes
fazendas de pecuária. Ele chegou à região em 1986, vindo de Paris, para estudar as
formas de organização social das comunidades agrícolas, e voltou muitas vezes.
De 2009 a 2014, no Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), ele coor-
denou projetos do Programa Geoma (Geoprocessamento e Modelagem Ambien-
tal da Amazônia), que associou a perda de vegetação nativa aos mecanismos de
grilagem de terras – era uma conclusão nova, que ressaltava um processo econô-
mico recorrente, a posse ilegal de terras, e não apenas atores isolados. Nascido
em Belém, capital do Pará, 61 anos, divorciado, com três filhos (dois na França e
um no Uruguai) e uma neta, Santos Junior falou de seus estudos sobre a região
e como vê os 50 anos da Transamazônica nesta entrevista concedida por vídeo.

82 | NOVEMBRO DE 2021
Santos, em frente
a uma sumaúma
do Museu Goeldi

Como avalia as transformações e os ciais. Muitos se tornaram professores ou de retirada ilegal de madeira, extrema-
impactos da Transamazônica? O que técnicos que ajudaram a implantar boas mente perigosas e violentas. O desma-
deu certo e o que fracassou? experiências com a agricultura perene, tamento sempre acompanha a abertura
A Transamazônica não integrou o Nor- como o cacau, uma cultura que precisa de estradas, como o [engenheiro compu-
deste e o Norte a outras regiões do país de ao menos uma parte da mata primária tacional] Diógenes Alves, do Inpe, mos-
nem foi até o Acre, como era o plano para assegurar sombra aos cacaueiros. trou em vários trabalhos. Mas na zona
inicial. A Amazônia também não virou Os pequenos agricultores dessa região de pequenos agricultores familiares en-
o celeiro do mundo, como os militares produzem cacau de alta qualidade usa- tre Altamira e Itaituba o desmatamento
pretendiam. Eles desconheciam comple- do para fabricar chocolates em Belém foi muito menor do que nas fazendas de
tamente as características da produção ou na Bélgica. As experiências agroflo- gado do sudeste do Pará ou nas bordas
agrícola na região. Mas se tornou um restais poderiam avançar ainda mais se da Amazônia. Mesmo em outro trecho
dos eixos principais de integração regio- recebessem apoio de uma política de da Transamazônica, entre Altamira e
nal, completado pela BR-316 [de Belém desenvolvimento sustentável. Marabá, há desmatamento, exploração
a Maceió]. A Transamazônica também ilegal de ouro, contrabando de carvão e
permitiu a criação de comunidades bem Pelo que você conta, parece que está muita violência.
organizadas de pequenos agricultores, tudo bem na região...
principalmente no trecho de quase 500 Claro que não. Ainda há muita grila- Por que no trecho entre Altamira e Itai-
km entre Altamira e Itaituba. gem. No início dos anos 1990, com mi- tuba foi diferente?
nha equipe fiz um mapa dos focos de Por ser uma área em que o governo fe-
Como isso ocorreu? conflitos de terra, e havia conflitos em deral instalou pequenos proprietários
Muito por conta da vivacidade das pes- todos os municípios da Transamazônica. e não grandes fazendas. Nesse trecho
soas que se instalaram lá e se dedicaram Depois publiquei uma análise de alguns existiam e ainda existem pequenos agri-
a construir um espaço de vida. Naquele casos com o geógrafo francês Philippe cultores, em consequência do Programa
IRENE ALMEIDA

trecho nasceram os filhos de produtores Léna no livro Desenvolvimento susten- de Integração Nacional, que o [sociólo-
familiares, que estudaram nas escolas tável e sociedades na Amazônia [Museu go] Octavio Ianni [1926-2004] analisou
rurais, criadas pelos movimentos so- Goeldi, 2010]. Existem também áreas no livro Colonização e contra-reforma

PESQUISA FAPESP 309 | 83


agrária na Amazônia [Petrópolis, 1979]. Como avalia o papel do Incra? quadas ao clima da região, as estradas
Com a Lei nº 1.106, de 1970, que criava O instituto tinha ficado encarregado de eram ruins... A Comissão Pastoral da Ter-
o programa, e a abertura da Transama- instalar 100 mil famílias em uma pri- ra constatou que, nos trechos entre Alta-
zônica, em 1971, o governo fazia uma meira fase do projeto de colonização mira e Itaituba e entre Marabá e Altami-
contrarreforma agrária. Nessa época, a da região de Altamira. Havia cotas: 75% ra, 48% dos primeiros 1.187 lotes haviam
questão fundiária era, como é ainda ho- dos colonos deveriam ser nordestinos e sido abandonados por seus ocupantes no
je, um dos grandes problemas do Brasil. 25% dos estados do Sul. Havia também início dos anos 1980. No PIC-Altamira, o
No Sul, o problema era o minifúndio: os um plano de criação e diversificação de Incra registrou uma deserção de 12,69%
colonos descendentes de alemães ou ita- núcleos urbanos: a cada 5 km haveria es- em 1971 para 32,97% em 1977. Mais tar-
lianos tinham de dividir as terras com os tradas vicinais, cortando a estrada prin- de, de 1988 a 1995 foram criados novos
filhos, cada um ficava com partes cada cipal, a cada 15 km haveria uma agrovila, projetos de assentamentos, com base em
vez menores e não era mais viável tra- com pequenos serviços e feiras para os lotes individuais de 100 hectares distri-
balhar dessa maneira. No Nordeste, era produtores venderem seus produtos; a buídos para as famílias. Nos anos 1990
o latifúndio. Desde os anos 1950 havia cada 50 km uma agrópolis, com um cen- começaram a aparecer outros tipos de
um movimento migratório das pessoas tro médico e escolas de segundo grau unidade fundiária, como as de conser-
do Nordeste que queriam escapar do lati- [ensino médio]; e a cada 100 km uma ci- vação de uso direto, que são habitadas.
fúndio e encontrar terras para trabalhar, dade com hospitais e estruturas urbanas A partir de 2006 foram criados os Pro-
pouco a pouco atravessando os grandes mais desenvolvidas. Essa hierarquia de jetos de Desenvolvimento Sustentável,
tributários do rio Amazonas. O [antro- centros urbanos deveria possibilitar a ou PDS, inspirados nas Resex, as reser-
pólogo] Otávio Velho fala disso no livro vida social, mas não funcionou, porque vas extrativistas do Acre. Agora não se
Capitalismo autoritário e campesinato. os colonos evitavam circular, para não atribuem mais lotes de 100 hectares a
Muitos desses migrantes trabalharam na deixar suas propriedades. famílias individuais e sim uma área to-
construção da Belém-Brasília e depois tal para uma associação de moradores,
tentaram se estabelecer ao longo dessa O que aconteceu com as 100 mil famílias? cada família com um terreno lá dentro.
estrada. Na época, o pequeno proprie- Foram para a região bem menos de 100 Os PDS são concedidos por meio da Con-
tário era chamado de posseiro. Era um mil famílias, que receberam lotes de 100 cessão de Direito Real de Uso, a CDRU,
camponês sem terra que ocupava uma hectares, a maioria, até 500 hectares, o para evitar a concentração fundiária que
área para trabalhar e logo era confron- que é pouco considerando o tamanho das nascia com os lotes individuais.
tado com a apropriação e a privatiza- grandes propriedades rurais na região.
ção das terras por pessoas que tinham A implementação dos lotes consistia na Quando você esteve na Transamazônica
o dinheiro dos incentivos fiscais para entrega de uma casa, cestas básicas e pela primeira vez?
criar gado. sementes de arroz. Mas as dificuldades Em 1986. Vivia em Paris desde 1981, fazia
eram muitas, as sementes não eram ade- o mestrado em antropologia na Univer-
Era uma situação que potencializava sidade de Paris X e tinha feito um traba-
os conflitos. lho bibliográfico sobre as comunidades
Foi a causa de muitos conflitos de ter- eclesiais de base para a revista Braise,
ritorialização a partir do final dos anos como parte de um dossiê temático sobre
1960. Os conflitos e a posição da Igreja religiões no Brasil. Um de meus orienta-
Católica, que havia lançado a campanha dores, Patrick Menget [1942-2019], leu o
“Terra para quem nela trabalha”, se radi- trabalho, gostou e disse: “Precisamos de
calizaram. Para resolver esse problema alguém que estude as comunidades de
sem tocar na estrutura agrária, o governo base na Transamazônica”. Essas comu-
criou o programa de integração nacional, nidades, apoiadas pela Igreja Católica
começando pelo Projeto Integrado de desde a criação da CNBB [Confederação
Colonização, o PIC, que adotou um mo- Nacional dos Bispos do Brasil] nos anos
delo fundiário diferente daquele do su- 1950, eram muito fortes. Os grupos se
deste do Pará, com as grandes fazendas. A dependência reuniam depois da missa e nas escolas
Na área do PIC-Altamira foram criados para discutir problemas como a falta de
lotes da colonização de 1972 até 1987. O
social [dos saúde, de pontes e de estradas boas. A
governo havia decretado que uma faixa colonos] perpetua Transamazônica já tinha 16 anos, mas
de terra de 100 km de cada lado das ro- na estrada principal as condições ainda
dovias federais planejadas ou construí- o uso da imagem eram ruins e, nos travessões, que a corta-
das passaria ao domínio do poder federal vam perpendicularmente, ainda piores.
para ser distribuída em programas de do pai-patrão Carros, ônibus e caminhões atolavam
colonização. O Incra havia sido criado na lama quando chovia muito. Os mo-
em 1970 exatamente para implantar o
como forma toristas e passageiros tinham de cavar
primeiro plano nacional da reforma agrá- de dominação buracos para tirar os ônibus e atolavam
ria, definido pelo Decreto nº 59.456, de também, a perna afundava, perdia a bota
1966, mas isso nunca ocorreu. política dentro do buraco...

84 | NOVEMBRO DE 2021
res a trabalhar com a Transamazônica e
examinou muito bem essa situação [ver
Pesquisa FAPESP nos 125 e 249]. Ele e
Millicent Fleming-Moran, médica es-
pecializada em saúde pública e prima
dele, escreveram o artigo “O surgimen-
to de classes sociais numa comunidade
planejada para ser igualitária”, publica-
do em 1978 pelo Museu Goeldi, que foi
uma das primeiras coisas que li sobre o
povoamento da Transamazônica. Eles
mostram que os nordestinos tinham a
mesma capacidade que os colonos de
outras regiões ou talvez mais ainda, por-
que usavam um círculo de parentes e
às vezes tinham mais conhecimento do
meio, o que lhes permitia encontrar boas
terras para plantar.
Santos Junior (à dir., de boné e camiseta branca) em reunião do programa Geoma
na região de Santarém em 2007 Seus pressupostos teóricos funcionaram
no trabalho de campo?
Como foi chegar lá, depois de anos vi- integrado para avaliar a experiência da Menget, que se tornou um grande amigo,
vendo em Paris? Transamazônica e se concluiu que era sempre me dizia: “O trabalho de campo
Sou de Belém, mas nunca tinha visita- necessário, eu cito agora, lendo as atas é decisivo. Você vai usar a teoria para
do o oeste do Pará. Uma vez me perdi do encontro, “transferir para a região explicar o que encontrar e não enfiar o
na floresta, passei o dia inteiro rodando homens do Sul do país”, onde houvera que vê dentro da teoria”. Não obstante,
até encontrar o caminho. Despenquei maior afluxo de migrantes europeus, cheguei com muito estruturalismo na
de uma ribanceira, um facão que estava “que insuflassem na colônia uma alma cabeça. Acabei me servindo muito da
na cintura entrou no meu pé. Depois o singular”. Essa “alma singular” era o es- teoria do carisma de Max Weber [1864-
dono da casa em que eu estava hospeda- pírito empreendedor, que fazia falta. É a 1920] e das representações sociais no
do me gozou: “Você é um ignorante, não chamada ideologia de fronteira, que ana- imaginário das pessoas, como propos-
sabe andar no mato”. Quando fui tomar liso com a ecóloga Ima Vieira, também to por Jacques Lacan [1901-1981]. Em
banho no igarapé lá perto é que tirei a do Museu Goeldi, em um capítulo de um 1996, com colegas franceses, organizei
bota e vi que o pé estava cheio de san- livro organizado pelo geógrafo Wagner um número especial da revista Lusotopie
gue. Passei óleo de copaíba que eu tinha Ribeiro e pelo economista Pedro Jacobi, sobre o paternalismo no Brasil. Mostrei
levado e cicatrizou. Fui para Altamira, a ser publicado em breve. Até hoje refli- que na Transamazônica e no Acre, onde
uma cidade antiga, da época da borracha, to sobre as consequências dessa visão. É também fiz trabalhos de campo, as re-
diferentemente das cidades que surgiram como se, em um determinado momen- lações de patronagem eram fortemente
com a abertura desse trecho da Transa- to, a gente dissesse que o importante é marcadas pelo uso de um significante pa-
mazônica. Eu ia para a sede do Incra em a capacidade de produzir mercadorias ternal, quer dizer, o patrão se apresenta
Brasil Novo, a 40 km de Altamira. Che- em grande escala e, portanto, quem não como um pai para seus dependentes. O
gando lá, expliquei que queria ir o mais tem essa capacidade deve liberar espaço papel do bom patrão ainda hoje é forte
longe possível para trabalhar com quem para quem a tem. Atualmente, o Projeto e ambíguo, mesmo dentro das unida-
tivesse chegado havia pouco tempo, de de Lei nº 490, em debate na Câmara dos des de conservação e dos PDS, criados
modo a ver como organizavam a vida Deputados, permite, em caso de inte- justamente para evitar a dominação do
social, como se apropriavam do espaço resse do Estado, diminuir unidades de mercado. Mas, como os sistemas de pro-
e formavam as comunidades eclesiais de conservação e terras indígenas, ribei- dução agroflorestais são pouco valori-
base. Um dos funcionários do Incra me rinhas e quilombolas, tendo em vista o zados, as madeireiras avançam. Quan-
respondeu assim: “Mas o que você vai aproveitamento econômico dessas áreas. do uma empresa abre uma estrada para
fazer lá? Vai ver esses bichos do mato A ideologia da fronteira continua forte, exploração ilegal de madeira, o colono
lá dentro?”. Ele estava falando dos ri- sobretudo nos últimos anos. se beneficia, porque ganha emprego ou
beirinhos e dos colonos. “Esses caras são pode pedir uma condução para levar um
preguiçosos! Pescam só uns peixinhos Pelo que você viu em campo, a ideia parente doente para o hospital da cidade.
de vez em quando, não têm capacidade sobre os chamados “bichos do mato” Essa dependência social perpetua o uso
de produzir”, ele dizia. Depois vi que es- fazia sentido? da imagem do pai-patrão, entre outras
sa não era só a opinião de funcionários Não tinha o menor sentido. O antropó- analogias domésticas, como forma de
ACERVO PESSOAL

preconceituosos. Em janeiro de 1977, a logo Emílio Moran [da Universidade Es- dominação política. n
Sudam organizou em Belém o primei- tadual de Michigan, nos Estados Uni-
ro seminário de desenvolvimento rural dos] foi um dos primeiros pesquisado- Leia a versão maior no site.

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ARTES VISUAIS

IMAGEM
Registro feito em
São Paulo por volta
de 1942 mostra
Hildegard Rosenthal
trabalhando
no ampliador

REVELADA
Estudos mostram que as mulheres tiveram participação ativa na história
da fotografia latino-americana, mas quase sem reconhecimento

Ana Paula Orlandi

A
s mulheres tiveram par- da comunidade LGBTQ+”, lembra Costa. Segundo Costa, ainda são poucos os
ticipação ativa na pro- “A meta é entender, por exemplo, de que estudos de fôlego que relacionam foto-
dução e no mercado forma o gênero criou ou não oportuni- grafia e gênero no mundo. No Brasil, o
fotográfico latino-ame- dades para que determinado grupo rea- interesse pelo tema intensificou-se há
ricano desde o século lizasse seu trabalho e fosse reconhecido cerca de 10 anos. O avanço das pesquisas
XIX, embora raramente por ele.” Com ela, concorda Zerwes. “No vem revelando detalhes sobre a trajetó-
tenham obtido reconhecimento por tal nosso caso, os estudos das questões de ria de personagens como a alemã Fanny
contribuição. É o que apontam as pesqui- gênero podem iluminar as relações de Paul Volk (c. 1867-1948), que migrou pa-
sadoras Helouise Costa e Erika Zerwes, poder que sustentam o circuito profissio- ra Curitiba (PR) com a família no final
organizadoras do recém-lançado Mulhe- nal e artístico da fotografia em diversos do século XIX. Em 1881 ela começou a
res fotógrafas/mulheres fotografadas – momentos históricos”, explica. trabalhar nos bastidores de um estúdio
Fotografia e gênero na América Latina fotográfico do conterrâneo Hermann
(Intermeios). Com textos em português, VAIADA POR SER MULHER Adolpho Volk, com quem se casaria cin-
espanhol e inglês, o livro reúne 29 artigos De acordo com o livro, a presença da mu- co anos mais tarde. “Fanny aprendeu a
escritos por estudiosos de países como lher na fotografia no século XIX e início fotografar muito cedo com a mãe, An-
Brasil, Chile, México e Alemanha. “A do século XX esteve vinculada, sobretu- na, que também trabalhava no estúdio”,
ideia é que esse conjunto de textos in- do, às atividades manuais nos bastidores conta Giovana Simão, autora da tese de
terdisciplinares possa ajudar a entender dos empreendimentos familiares e dos doutorado “Fanny Paul Volk: Pioneira
o papel das mulheres na constituição de estúdios comerciais. Isso ocorreu tanto na fotografia de estúdio em Curitiba”,
um campo profissional e artístico para em países da Europa quanto nos Estados defendida no curso de sociologia da Uni-
a fotografia, bem como a representação Unidos e na América Latina. “As mulhe- versidade Federal do Paraná (UFPR).
fotográfica do feminino na América Lati- res, cujo acesso era vetado às academias Mais tarde, em 1904, Volk decidiu re-
na”, explica Costa, professora e curadora de arte, buscavam dedicar-se a atividades gressar sozinho para a Alemanha. Antes,
do Museu de Arte Contemporânea da alternativas em que podiam exercer uma transferiu o estúdio para a ex-mulher,
Universidade de São Paulo (MAC-USP). ação criativa”, escrevem Costa e Zerwes que se tornou a principal fotógrafa e ad-
O livro é resultado de seminário homô- na apresentação da obra. “No campo da ministradora do empreendimento, fre-
nimo realizado em 2017, na instituição, a fotografia, elas eram valorizadas por uma quentado pela elite local. “Ela criou uma
partir de convocatória internacional. O suposta habilidade manual inerente, que rede de correspondentes no Brasil e na
evento, por sua vez, foi um desdobramen- as tornavam bem cotadas para os traba- Alemanha, importava equipamentos de
to da pesquisa de pós-doutorado desen- lhos de laboratório, assim como para o lá e anunciava vagas de emprego em pu-
volvida por Zerwes, com supervisão de retoque e colorização de cópias.” blicações de Berlim”, prossegue Simão,
Costa. As duas iniciativas contaram com No livro, Costa assina o artigo “No li- professora da Escola de Música e Belas
apoio da FAPESP. “Mais do que simples- mite da invisibilidade: Mulheres fotógra- Artes da Universidade Estadual do Paraná
AUTORRETRATO HILDEGARD ROSENTHAL / INSTITUTO MOREIRA SALLES

mente revelar fotógrafas desconhecidas fas no Brasil na primeira metade do sé- (Unespar). “Também fez fotos fora do es-
ou aspectos curiosos de suas biografias, culo XX”. Uma das quatro profissionais túdio, inclusive de homens, uma ousadia
nosso objetivo foi questionar os motivos cuja trajetória a pesquisadora analisa é a para a época.” Foi assim até 1918 quan-
que levaram as mulheres a ter menor vi- carioca Mary Zilda Grassia Sereno (1909- do, por volta dos 50 anos, Volk vendeu o
sibilidade nas narrativas hegemônicas 1998), que atuou na imprensa brasileira negócio e passou a se dedicar aos netos.
da história da fotografia e refletir como entre os anos 1940 e 1970. “Ela passou “Essa retirada de cena contribuiu para
vêm sendo retratadas”, aponta Zerwes, por diversas editorias, mas gostava mes- seu apagamento na história da fotogra-
hoje em temporada de estudo no Centro mo de fotografar futebol”, relata Costa. fia brasileira”, observa a pesquisadora.
Alemão de História da Arte em Paris. “Entre outros feitos, foi a única fotógrafa
Daí o recorte de gênero. “Muita gente escalada para cobrir a Copa do Mundo A FALTA DE ARQUIVOS
acha que os estudos de gênero são apenas de 1950. Ao entrar em campo, no Mara- Zerwes recorda que entre 1910 e 1930
sobre mulheres, mas é possível estudar canã, acabou sendo estrondosamente emergiu na Europa, sobretudo na Ale-
gênero sob a perspectiva dos homens ou vaiada pelo fato de ser mulher.” manha, a figura da “mulher moderna”,

PESQUISA FAPESP 309 | 87


impulsionada pela entrada feminina na da pesquisa de pós-doutorado que reali- também pela luta em prol dos Yanoma-
esfera pública e no mercado de trabalho. zou na Escola de Comunicações e Artes mi (ver Pesquisa FAPESP nº 276). “Ela
Tal imagem, propagandeada mundo afo- (ECA) da USP, Dines, que integra o Grupo fez muitas imagens do corpo feminino,
ra pela imprensa da época, foi particu- de Antropologia Contemporânea (Ge- sobretudo das mulheres indígenas, mas
larmente significativa para a história da pac) da Universidade Estadual Paulista não retratou as mulheres de forma idea-
fotografia latino-americana. “Ao mesmo (Unesp), campus de Araraquara, também lizada nem estereotipada. O que vemos
tempo que foi um traço cultural muito analisa dois ensaios fotográficos de cará- são registros de mulheres integradas à
forte na Alemanha da República de Wei- ter ficcional publicados por Rosenthal no simplicidade do cotidiano”, observa a
mar (1919-1933), de onde vieram ou por início da década de 1940. O primeiro reú- pesquisadora, autora de um dos artigos
onde passaram muitas das fotógrafas ne uma série de autorretratos, enquanto no livro organizado por Costa e Zerwes.
que se estabeleceram na América Lati- o outro, batizado pela pesquisadora de A obra de Andujar pode ser vista em
na durante a década de 1930, também o Alter ego, traz uma modelo circulando livros e em espaços como o Instituto
ofício da fotografia foi muito procura- pelo centro paulistano. “Nas duas séries, Inhotim, em Minas Gerais, que abriga
do por essas mulheres, por ser um dos ela busca criar a imagem de uma mulher uma galeria com mais de 400 imagens.
poucos já franqueados à participação moderna e independente”, analisa. “Andujar é exceção. A falta de arquivos

S
feminina naquele período”, explica a representa um empecilho para pesqui-
pesquisadora. egundo Kátia Hallak Lom- sadores interessados em investigar a tra-
Entre elas estão Alice Brill (1920-2013) bardi, professora do curso jetória de fotógrafas no país”, diz Lom-
e Hildegard Rosenthal (1913-1990), que de Comunicação Social da bardi. De acordo com Helouise Costa,
chegaram ao Brasil na década de 1930. Universidade Federal de muitos desses acervos se perderam ao
“Além da arquitetura e de cenas urbanas São João del-Rei (UFSJ), longo do tempo. “Alguns foram destruí-
da área central de São Paulo nos anos as fotógrafas começaram a dos pelas próprias fotógrafas ou por suas
1940 e 1950, elas fotografaram seus fre- ganhar visibilidade no cenário nacional famílias, que não viam o valor do que foi
quentadores, personagens anônimos de a partir da segunda metade do século produzido”, diz. “Na falta das imagens,
diferentes classes sociais”, conta a pes- XX, a exemplo de brasileiras como Nair para entender a trajetória dessas fotógra-
quisadora Yara Schreiber Dines, autora Benedicto e Rosa Gauditano. É também fas os pesquisadores acabam voltando-se
do livro Hildegard Rosenthal e Alice Brill, o caso de Claudia Andujar, suíça natu- para o contexto histórico e sociológico.”
fotógrafas de além-mar – Cosmopolitis- ralizada brasileira, que se mudou para “Não se pode tratar de fotógrafos ou
mo e modernidade nos olhares sobre São o país em 1955 e hoje é reconhecida não de séries fotográficas sem passar por
Paulo (Intermeios, 2020). No livro, fruto apenas por seu trabalho fotográfico, mas suas publicações ou pelos debates que
se consolidaram nas páginas impressas
1
dedicadas aos seus trabalhos”, defende
Eduardo Augusto Costa, da Faculdade de
Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP.
Especialista em arquivos e coleções, ele
identificou cerca de 1.300 livros e catá-
logos de fotografia lançados no Brasil ao
longo do século XX. A meta é criar uma
biblioteca pública sobre o assunto. Con-
forme o pesquisador, ainda que se tenha
publicado livros de fotógrafas como, por
exemplo, da carioca Claudia Jaguaribe e
da inglesa naturalizada brasileira Mau-
reen Bisilliat, e de historiadoras da fo-
tografia como Solange Ferraz de Lima
e Vânia Carneiro de Carvalho, o espaço
reservado à produção das mulheres segue
restrito no país. “E parte da história que
se conhece é resultado do que foi editado,
publicado e divulgado”, constata.
Segundo o professor da FAU, o mer-
cado editorial ligado à fotografia ganhou
força no Brasil a partir da década de 1970
graças à Fundação Nacional de Artes (Fu-
narte), órgão criado em 1975 e vinculado
Retrato de Angelo ao então Ministério da Educação e Cul-
Casagrande
e seu filho Elviro,
tura (MEC). “O núcleo de fotografia da
feito em Curitiba Funarte, estruturado em torno da galeria
por Fanny Volk da fundação, que viria a se consolidar de

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Captadas pelas lentes
de Claudia Andujar,
Susi e Mariazinha
Korihana thëri banham-se
em igapó, em Roraima.
A imagem integra a série
A floresta, de 1974

forma mais organizada por meio do Ins- ra metade do século XX, muitas dessas (GIF) da Ufal, parte de projeto de pes-
tituto Nacional de Fotografia da Funarte, mulheres que realizaram trabalhos de quisa sobre a cena fotográfica na capital
foi responsável pela edição de mais de 50 campo com seus maridos eram vistas alagoana. “Uma das ações da pesquisa foi
publicações entre os anos 1970 e 1980. como meras assistentes de pesquisa, a mapear as fotógrafas que atuaram em
Dentre elas estavam três catálogos sobre exemplo da antropóloga, etnóloga e mu- Maceió a partir da década de 1990. Outra
o lugar das fotógrafas no cenário brasi- seóloga Berta Gleiser [1924-1997], que frente se voltou para os coletivos fotográ-
leiro, algo pouco usual na época”, relata foi casada com o também antropólogo ficos compostos por jovens mulheres que
o especialista, também autor de artigo Darcy Ribeiro [1922-1997]. E essa função estão emergindo na cidade nos últimos
que integra o livro organizado por Costa nem sempre era reconhecida na autoria anos”, explica Rechenberg. “Queremos
e Zerwes. Para ele, a atuação da Funar- dos trabalhos, principalmente no que diz entender por que essas profissionais ti-
FOTOS 1 CASA DA MEMÓRIA – FUNDAÇÃO CULTURAL DE CURITIBA  2 GALERIA VERMELHO

te explicita a importância de políticas respeito à produção de imagens”, aponta veram e têm menor projeção do que os
públicas dedicadas à cultura. “Muitas a antropóloga Fabiene Gama, coordena- homens e como os marcadores de classe
dessas iniciativas voltadas à fotografia dora da pesquisa. e raça aprofundam essa assimetria de

E
no âmbito da Funarte se devem à par- gênero”, conclui. n
ticipação de mulheres que trabalhavam m parceria com as antropó-
na instituição naquele momento, como logas Barbara Copque, da
Elizabeth Carvalho e Solange Zúñiga.” Universidade do Estado do Projeto
Rio de Janeiro (Uerj), e Fer- As noções de humanismo na fotografia documental entre
as décadas de 1930 e 1950 (n° 14/14565-2); Modalida-
SEM CRÉDITO nanda Rechenberg, da Uni- de Bolsa de Pós-doutorado; Pesquisadora responsável
Resgatar a atuação de mulheres na fo- versidade Federal de Alagoas Helouise Lima Costa (USP); Bolsista Erika Cazzonatto
tografia etnográfica é o mote do proje- (Ufal), Gama também organiza um dossiê Zerwes; Investimento R$ 272.255,55.

to Antropologia, fotografia e patrimônio sobre gênero e imagem previsto para sair Livros
material no Brasil: Uma perspectiva de ainda este ano na revista Iluminuras, da COSTA, H. e ZERWES, E. (org.). Mulheres fotógrafas/
gênero, desenvolvido pelo grupo de pes- UFRGS. “A proposta é discutir não ape- mulheres fotografadas: Fotografia e gênero na América
quisa Gêneros, Imagens e Políticas da nas fotografia, mas também cinema e Latina. São Paulo: Intermeios, 2021.
DINES, Y. S. Hildegard Rosenthal e Alice Brill, fotógra-
Universidade Federal do Rio Grande do ilustração”, diz Rechenberg, à frente do fas de além-mar: Cosmopolitismo e modernidade nos
Sul (GIP-UFRGS). “Sobretudo na primei- Grupo de Estudo Imagens e Feminismos olhares sobre São Paulo. São Paulo: Intermeios, 2020.

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MEMÓRIA

O TERROR E
m 1982, o historiador Jorge Prata
de Sousa encontrou no Arquivo
Histórico do Exército, no centro
da cidade do Rio de Janeiro, uma

DAS DOENÇAS coleção com 27 livros, cada um com 100


a 370 páginas, documentando o movi-
mento dos 10 hospitais e enfermarias que

NA GUERRA
atenderam doentes ou feridos durante
a Guerra do Paraguai, o maior conflito
bélico entre países da América do Sul,
travado entre dezembro de 1864 e abril

DO PARAGUAI
de 1870. Sousa não pôde examiná-los de

FOTOS 1 WIKIMEDIA COMMONS 2 EXCURSÃO AO PARAGUAY / BIBLIOTECA NACIONAL


imediato porque saía para o mestrado
no México, mas voltou a eles em 2008
durante um pós-doutorado na Escola
Nacional de Saúde Pública da Fundação
A maioria dos soldados que participaram Oswaldo Cruz (Ensp/Fiocruz) e desde
2018 os estuda novamente, dessa vez
do maior conflito da América do Sul morreu trocando informações com a historiadora
Janyne Barbosa, da Universidade Federal
por causa de cólera e outras enfermidades Fluminense.
infecciosas, não de ferimentos em batalha As análises dos registros com os no-
mes, idade, graduação militar, razão da
Carlos Fioravanti internação, tratamento, datas de entra-
da e saída dos hospitais e números de
curados ou falecidos, sob os cuidados
de Barbosa, dimensionaram pela pri-
meira vez o impacto das doenças nessa
guerra: cerca de 70% dos participantes morte: Os escravos brasileiros na Guerra
das tropas aliadas (Brasil, Argentina e do Paraguai (Editora Mauad, 1996). Eram
Uruguai) podem ter morrido por causa as chamadas guerras de trincheira – es-
de doenças infecciosas, principalmen- cavações que serviam de abrigo às tro-
te cólera, malária, varíola, pneumonia pas, mas facilitavam a disseminação de
e disenteria. doenças infecciosas, por causa da falta
O trabalho deles oferece uma visão de higiene, abundância de roedores e
ampla sobre a causa da mortandade na insetos e inundações.
guerra que uniu a Tríplice Aliança – for- “A Guerra do Paraguai foi uma guerra
mada por Brasil, Uruguai e Argentina – epidêmica”, conclui Barbosa. “As doen-
contra o Paraguai e, somado a outros, ças infecciosas acompanharam o confli-
expõe as condições sanitárias precárias to, do início ao fim, sem contar os sur-
em que os soldados viviam e lutavam. Até tos, como os de cólera.” O historiador
então os historiadores contavam ape- Leonardo Bahiense, em estágio de pós-
nas com a conclusão genérica de que as -doutorado na Universidade Federal do
doenças haviam matado mais do que os Rio de Janeiro (UFRJ), reitera: “Apenas
ferimentos em batalhas. A guerra ter- a cólera foi responsável por no mínimo
minou com cerca de 60 mil mortos do 4.535 mortes de soldados brasileiros du-
Brasil; o Paraguai, derrotado no confli- rante toda a guerra”. Segundo ele, com
to que iniciou ao invadir a então pro- base em documentos do Instituto Histó-
víncia de Mato Grosso, perdeu cerca de rico e Geográfico Brasileiro, no primei-
280 mil combatentes, mais da metade ro semestre de 1868, 52,5% das mortes
da população. das tropas aliadas resultaram da intensa
Batalha do Avaí, “Altas taxas de mortalidade por doen- desidratação causada pela bactéria Vi-
travada em ças infecciosas marcaram também outras brio cholerae e 3,6% de malária e outras
dezembro de 1868 guerras da mesma época, como a da Cri- doenças caracterizadas genericamen-
e retratada nesta
pintura a óleo feita
meia, na Rússia, de 1853 a 1856, e a Civil te como febres. “Em muitos momen-
por Pedro Américo dos Estados Unidos, de 1861 a 1865”, ob- tos”, acrescenta a pesquisadora da UFF,
de 1872 a 1877 serva Sousa, autor do livro Escravidão ou “soldados e prisioneiros paraguaios com
1

Igreja adaptada
para servir de hospital
de campanha em
Paso de Patria, no
Paraguai, sem data

PESQUISA FAPESP 309 | 91


cólera eram abandonados nas estradas,
por ordem dos comandantes, quando as
tropas se moviam de um acampamento
para outro.”
Os relatos de quem viveu a guerra
apoiam suas conclusões. Em A retirada
da Laguna, publicado em francês em 1871
e em português três anos depois, o en-
genheiro militar Alfredo Taunay (1843-
1899) descreveu os surtos de cólera co-
mo “o adversário oculto”, “a ninguém
perdoando”. “A peste é a maior inimiga
que temos”, relatou o marechal de cam-
po Manuel Luís Osório (1808-1879) ao
ministro da Guerra, Ângelo Muniz da
Silva Ferraz (1812-1867), ao assumir o
comando das tropas, em julho de 1867.
Nos livros do Arquivo do Exército,
Barbosa encontrou registros de uma Militares e pacientes
em hospital
categoria de doenças infecciosas rara- da Marinha em
mente lembrada nos relatos da época, Assunção, no
as sexualmente transmissíveis: “A sífi- Paraguai, em 1869 1

FOTOS 1 CARLOS CESAR / BIBLIOTECA NACIONAL  2 ARQUIVO HISTÓRICO DO EXÉRCITO / REPRODUÇÃO JANYNE BARBOSA / UFF  3 EXCURSÃO AO PARAGUAY / BIBLIOTECA NACIONAL  4 REPRODUÇÃO
lis era comum. Os oficiais acusavam as
esposas ou amantes que viviam com os semanas depois em Campinas, onde Grosso do Sul, com base principalmente
soldados. Havia prostituição nos acam- havia um surto de varíola, que causou nos documentos do Arquivo da Mari-
pamentos, principalmente com as pa- a morte de seis integrantes da tropa”, nha, também no Rio de Janeiro. Auto-
raguaias, por causa da fome”. Peculia- conta o médico intensivista José Maria ra de A história esquecida da Guerra do
ridade dessa guerra, as mulheres que Orlando, autor de Vencendo a morte – Paraguai: Fome, doenças e penalidades
acompanhavam as tropas eram mães, Como as guerras fizeram a medicina evo- (UFMS, 2014), ela identificou outro ini-
filhas, irmãs ou companheiras dos solda- luir (Matrix, 2016). O grupo teve depois migo: o clima. “Por faltar roupas ade-
dos, para os quais lavavam os uniformes de enfrentar a malária, transmitida pe- quadas e por não estarem acostumados
e cozinhavam. los insetos abundantes nos brejos do com o clima do sul, soldados do norte
Pantanal, que precisavam atravessar até morreram por causa do frio congelante”,

A
té mesmo os deslocamentos chegar aos campos de batalha, quase relata. “A luta não era apenas contra o
eram arriscados. “Um gru- nove meses depois. inimigo, mas também pela sobrevivência
po de médicos e enfermeiros “Muitos soldados não eram vacina- nos acampamentos.”
que saiu em abril de 1865 da dos contra a varíola e levavam doenças O general Dionísio Evangelista de Cas-
cidade do Rio de Janeiro uniu-se a um de suas regiões”, comenta a historiado- tro Cerqueira (1847-1910), que esteve no
batalhão de 500 soldados na cidade de ra Maria Teresa Garritano Dourado, do front e escreveu Reminiscências da cam-
São Paulo, mas tiveram de parar duas Instituto Histórico e Geográfico de Mato panha do Paraguai, 1865-1870 (Biblioteca
do Exército, 1929), relatou que nos acam-
pamentos se bebia “água amarelenta e
grossa, poluída pela vizinhança dos ca-
dáveres”. Os mortos eram empilhados ou
jogados nos rios, contaminando a água.
Outro problema era o abate e o preparo
de animais para alimentação: as vísceras
e outras partes não aproveitadas per-
maneciam ao sol, causando mau cheiro.
“Os urubus e caranchos [ave de rapina]
encarregavam-se da limpeza, devorando
os restos”, descreveu o oficial.

FERIDOS EM BATALHA
Cirurgiões civis que foram para a frente
de batalha, concluiu Bahiense, apren-
deram inicialmente com os relatos das
2 equipes médicas que haviam atuado em
Registro do Arquivo Histórico do Exército de soldados atendidos em hospitais guerras anteriores. Nas Guerras Napo-

92 | NOVEMBRO DE 2021
O general argentino
Bartolomé Mitre com
seus oficiais na região
de Tuiuti, palco da mais
sangrenta batalha
da guerra, em maio
de 1866, com 7 mil
mortos e 10 mil feridos

4 Anna Nery, poderiam morrer logo depois por infec- tações se tornaram menos necessárias
enfermeira ção generalizada, resultado da pouca com o desenvolvimento de técnicas de
voluntária depois
reconhecida
preocupação – e conhecimento – com a cirurgia vascular.
pelo imperador assepsia. Ele verificou que medicamen- Bahiense indica outra razão da ele-
tos – principalmente clorofórmio, usado vada mortalidade por doenças infeccio-
como anestésico, e ópio, contra dor –, sas durante a Guerra do Paraguai: “Não
ataduras e roupas para os doentes inter- havia ainda no Brasil uma enfermagem
nados eram requisitados com frequência, profissional, como nos Estados Unidos
porque o estoque sempre zerava. e na Europa”. A equipe de suporte aos
“As guerras, como as epidemias, trans- cirurgiões era composta por soldados,
leônicas (1803-1815), Dominique Jean formam o mundo em um campo de ex- cabos ou prisioneiros paraguaios prepa-
Larrey (1766-1842), cirurgião-chefe do perimentação e, ainda que à custa de um rados às pressas com um curso rápido de
exército francês, insistia em colocar as imenso sofrimento, aceleram as desco- enfermagem e depois substituídos por
equipes cirúrgicas perto da frente de bertas de novas técnicas de cirurgia, de religiosas ou mulheres que acompanha-
batalha, para garantir um atendimento tratamento de queimados ou de doenças vam os militares.
rápido, e a retirada rápida dos homens infecciosas”, comenta Orlando. Segundo Entre elas se destacou Anna Nery
feridos com ambulâncias, então puxa- ele, somente a partir da Primeira Guerra (1814-1880), que se tornou uma referên-
das a cavalo. Na Guerra da Crimeia, a Mundial (1914-1918) é que o número de cia nessa área no Brasil. Inconformada
enfermeira inglesa Florence Nightinga- mortos por ferimentos de batalha come- com a separação de dois filhos, ambos
le (1820-1910) implantou o que Orlando çou a ser maior – nesse caso, duas vezes recrutados para o front, ela se apresen-
chamou de “filosofia da UTI [unidade de maior – do que o causado por doenças tou como voluntária para cuidar dos fe-
terapia intensiva]”: colocar os pacientes infecciosas. ridos. Com a autorização do governo da
em estado mais grave próximos do posto Bahia, Nery os acompanhou, aprendeu

A
de enfermagem, para serem acompanha- s causas dessa mudança fo- noções de enfermagem com freiras no
dos continuamente, e os menos graves ram a melhoria das condições Rio Grande do Sul e trabalhou como en-
mais distantes. de higiene, a implantação de fermeira em hospitais da frente de bata-
“Durante a Guerra do Paraguai, houve técnicas de tratamento – os lha. Em reconhecimento ao seu trabalho,
um debate fecundo sobre técnicas cirúr- feridos recebiam uma solução salina o imperador dom Pedro II concedeu-lhe
gicas”, reforça Bahiense. Discutia-se, diretamente na veia para compensar as uma pensão vitalícia, com a qual educou
por exemplo, se o melhor momento para consequências da perda intensa de san- os outros filhos.
amputar um braço ou perna [atingidos gue. A partir da Segunda Guerra Mundial Em março e abril de 2022, a Univer-
por balas, facões ou baionetas] seria logo (1939-1945), o uso de antibióticos como sidade Federal de Mato Grosso do Sul,
após o ferimento ou se deveria esperar o a penicilina reduziu ainda mais a mor- campus de Aquidauana, realizará um
combatente se acostumar à ideia de ter te de soldados por causa de infecções congresso internacional para debater os
sido ferido. Mesmo que as intervenções decorrentes dos ferimentos. Durante a 150 anos do final da guerra, completados
cirúrgicas fossem bem-feitas, os soldados Guerra da Coreia (1950-1953), as ampu- no ano passado. n

PESQUISA FAPESP 309 | 93


RESENHA

Memórias de um falso mineiro


Claudio de Moura Castro

R
esenhar um livro? Gostei? De amigo ou ad- já vinha perdendo o entusiasmo pelo autoritaris-
versário? Aceitei, pois sou amigo do Simon mo dessa filiação juvenil. Ao contrário da polari-
Schwartzman e gostei. Estudamos no Co- zação azeda de hoje, a faculdade era um arquipé-
légio Marconi. Depois, na mesma faculdade (Uni- lago de nuances ideológicas, cada uma defendida
versidade Federal de Minas Gerais – UFMG) e am- com certa sofisticação e muito fervor.
bos passamos também por Berkeley, na Califórnia. Em meio ao clima de exacerbadas discussões,
Perguntou-me ele: seria uma crônica dos assun- aproximou-se de movimentos que iam se tornan-
tos que tratou em sua vida profissional? Ou uma do cada vez mais radicais. Porém, desiludido com
autobiografia? Junte tudo, bradei! O lado pessoal as propostas, foi migrando para visões mais prag-
torna atrativas as descrições frias do mundo. Simon máticas e nada esquerdistas do mundo sonha-
optou por esse duplo caminho, com uma prosa se- do. Ainda assim, escapou por pouco do governo
rena, precisa e fluida. Não defende teses, é apenas militar. Chegou a ser detido e preferiu o exílio.
Um falso mineiro: um testemunho – mais crítico do que elogioso – Seu período no exterior pode ser visto como
Memórias de política, do que viveu. Intercala as análises com memó- uma transição. Passa da sociologia francesa pa-
ciência, educação
e sociedade
rias pessoais: nova visão da sociologia, seguida ra a sociologia americana, mas com três escalas.
Simon Schwartzman de suas peripécias ao usar o esqui como meio de No Chile, descobre como os números ajudam a
Intrínseca – transporte. Do uso de modelos matemáticos pula entender o mundo. Com o professor J. Galtung,
selo História Real para comentários desairosos sobre cerveja caseira. na Noruega, mergulha neles e no pensamento
400 páginas
R$ 69,90
Fala de sua passagem pela Escola de Admi- americano. Em Buenos Aires, tenta usar o que
nistração Pública (Fundação Getulio Vargas). aprendeu. Completa o ciclo fazendo o doutora-
Rememora a criação do Instituto Universitário mento em Berkeley.
de Pesquisas do Rio de Janeiro e as colisões com Sua ida à Polônia abriu-lhe os olhos para a
Cândido Mendes. Menciona a sua pesquisa sobre história conturbada da Europa. Ficou-lhe claro
brain drain e o seu estudo sobre Gustavo Capa- que a política tanto pode ser um instrumento
nema. Ao virar presidente do Instituto Brasileiro de dominação brutal quanto um mecanismo de
de Geografia e Estatística, antecipei o desastre de aprendizagem de tolerância e convivência. Dela
um intelectual em uma burocracia espinhenta. depende a democracia. Possivelmente, nasce daí
Estava errado, saiu-se bem. Seus estudos sobre a o seu permanente esforço para decifrar a relação
ciência e os cientistas brasileiros são uma clássi- conturbada da ciência com a política.
ca referência no campo. Nos últimos anos, con- Herdeira do Iluminismo, a ciência moderna
centra-se mais na educação, onde nos cruzamos se julga um produto da razão e da observação
sempre. Note-se, os tópicos acima não exaurem desapaixonada. Mas não é bem assim, pois a so-
a lista do muito que andou fazendo. ciologia da ciência sugere uma isenção duvidosa
Combinam-se nas suas narrativas a visão de e semeia dúvidas incômodas. A ciência não deixa
conjunto do assunto, seu rebatimento teórico e de ser produto do caldo de cultura do momento
os labirintos e manobras dos bastidores. Ante- e do local. Seus métodos dão aos resultados uma
cipando minha conclusão, o livro é imperdível robustez que resiste aos séculos. Mas não são
para entender nossa sociedade. conclusões sagradas e sua força está na capaci-
Simon encontrou suas raízes judias quando dade de se autocorrigir.
foi convidado a ir à Polônia, para um encontro Ao final, reconhece os avanços do Brasil, mas se
de famílias esparramadas pelo mundo que não mostra desapontado com os revezes. Afirma ser
se conheciam. O livro descreve, de forma bem- hoje “mais pessimista sobre o futuro da democra-
-humorada, o processo de ajustamento, o coti- cia e o triunfo da razão”. Mas torce para que “esta
diano, as dificuldades e as rivalidades dentro da percepção não seja verdadeira”. Lendo seu livro,
diáspora judia. Comenta a aculturação dela à podemos concordar ou discordar desse julgamento
sociedade brasileira e o progressivo, mas incom- algo negativo. Tendo a ser mais otimista que ele.
pleto, distanciamento das tradições.
Teve o seu momento comunista. Com 13 anos, Claudio de Moura Castro é economista e especialista em educação.
era membro do “Partidão”. Ao entrar para a UFMG, Publicou, entre outros, o livro Você sabe estudar? (Penso, 2015).

94 | NOVEMBRO DE 2021
CARREIRAS

Hora da conta
Crise econômica e alto índice de desemprego fazem disparar número de endividados do Fies

C
onstituído para financiar a colocação profissional que permitisse parcelas. “Fui informado de que preciso
educação superior em instituições a quitação, situação que persiste até acompanhar o site do programa e
privadas de ensino, desde que hoje. Os valores foram se acumulando aguardar a abertura das renegociações”,
foi criado, em 1999, o Fundo de e a dívida atual soma R$ 5 mil. “O que afirma Lima, que também viu seu nome
Financiamento Estudantil, mais me deixa aflita é a incerteza na abertura ser incluído no cadastro de maus
conhecido como Fies, tornou-se um dos das renegociações e o risco de perder pagadores. “Consegui trabalho numa
principais meios para tornar viável o controle da dívida, que cresce a cada imobiliária aqui em minha cidade, mas
o acesso à universidade. Com mais de mês. Além disso, minha irmã, que foi além do Fies preciso arcar também com
3,3 milhões de estudantes atendidos fiadora do contrato, está com o nome aluguel e outras despesas da casa”, conta.
em todas as regiões do país, em meados comprometido”, diz Silva, que já cogitou Atualmente podem requerer o
deste ano o programa atingiu uma fazer um empréstimo para tentar liquidar financiamento do Fies estudantes que
marca inédita em sua história: mais de o saldo devedor. “Fiquei frustrada por obtiveram pelo menos 450 pontos
1 milhão de inadimplentes, com parcelas não conseguir sequer um estágio na no Exame Nacional do Ensino Médio
atrasadas há pelo menos 90 dias. área em que me formei”, completa. (Enem) e não zeraram a nota da
Ao concluir o curso de tecnologia em O cearense Jenilson Lima, 29 anos, redação. Outro pré-requisito importante
gestão de recursos humanos no Centro recebeu em julho deste ano o primeiro está relacionado à renda familiar do
Universitário Curitiba (UniCuritiba), boleto referente ao financiamento solicitante, que não pode ultrapassar
em 2014, a gaúcha Bruna Silva, de 30 que possibilitou sua graduação em três salários mínimos. Publicados
anos, ingressou no período de carência administração de empresas no semestralmente, os editais orientam
ILUSTRAÇÃO  CAMILO MARTINS

contratual de 18 meses para pagamento Centro Universitário Estácio do Ceará, os interessados em frequentar um
da primeira parcela, de acordo com as no final de 2019. Sem ter como pagar curso superior a se cadastrar na página
regras vigentes do programa. No ano as prestações mensais de R$ 470, em do Fies e a indicar três opções de
seguinte, quando começaram a chegar setembro ele foi até a agência da Caixa graduação em instituições participantes
os boletos mensais no valor de R$ 250, Econômica Federal em que o contrato do programa. As faculdades devem
ela ainda não tinha conseguido uma foi firmado para negociar o valor das atender às exigências de avaliação

PESQUISA FAPESP 309 | 95


determinadas pelo Ministério da Número de contratos do Fies por ano
Educação (MEC) ao Fundo Nacional 800.000
de Desenvolvimento da Educação 732.510
(FNDE), órgão responsável por
700.000
executar as políticas nessa área.
Em 1992, com a publicação da Total
Lei nº 8.436, foi institucionalizado
o Programa de Crédito Educativo
600.000
3.353.083
(Creduc). O Creduc foi descontinuado 500.000
em 1999, depois da criação do Fies
por medida provisória, e seus ativos
incorporados ao patrimônio do novo 400.000

fundo. Em 2001, o Fies foi sancionado


pela Lei no 10.260. Em 2014 registrou 300.000

o ano mais expressivo em número de


contratos assinados, quando mais de 200.000 175.991
730 mil pessoas aderiram ao programa. 154.256
No ano anterior haviam sido 559.891
78.956
novos financiamentos. “O crescimento 100.000 67.524
66.348 53.567
33.146
da inadimplência que observamos hoje
está relacionado à grande quantidade 0
1999 2002 2005 2008 2011 2014 2017 2020
de contratos firmados naqueles dois
anos, cujas faturas estão sendo FONTE  ASSOCIAÇÃO NACIONAL DAS UNIVERSIDADES PARTICULARES (ANUP)

cobradas nesse momento”, explica o


especialista em gestão pública Flávio
Carlos Pereira, que trabalhou como De acordo com a Anup, a taxa de o profissional pode interromper
coordenador-geral de suporte juros utilizada no programa, que antes os pagamentos pelo tempo que for
operacional ao financiamento estudantil era fixa, deixou de ser subsidiada pelo necessário, arcando com os R$ 50
do MEC entre 2012 e 2020 e hoje é governo e passou a flutuar de acordo referentes à taxa de serviços prestados
consultor da Associação Nacional das com a inflação. Em 2015, por exemplo, pelo agente financeiro. Antes bancado
Universidades Particulares (Anup). a correção foi de 3,4% ao ano. Em 2017, pelo próprio programa, nessa nova
Para quem aderiu ao programa até chegou a 6,5%. Em 2018 os débitos configuração o contratante também fica
2017, caso de Silva e Lima, as regras passaram então a ser corrigidos pelo responsável pelo pagamento mensal
estipulam uma carência de três Índice Nacional de Preços ao de um seguro prestamista, aquele que
semestres contados a partir do término Consumidor Amplo (IPCA), que pode garante o pagamento de prestações
do curso, ou seja, o início do pagamento chegar a 10%. “Em uma época de ou quitação do saldo devedor em caso
da dívida deveria coincidir com o crise, em que o cenário de desemprego de morte, no valor de R$ 5.
ingresso ou a recolocação no mercado é grande e as perspectivas são pouco Diferentemente da versão anterior,
de trabalho, preferencialmente na área otimistas, muitos alunos desistem dos em que o aluno podia optar por faixas
de obtenção do diploma. Já o prazo cursos com receio de contraírem de financiamento de 50%, 75% e 100%,
máximo para quitação do empréstimo dívidas ainda maiores”, afirma Pereira. pelo Novo Fies é praticamente
é de três vezes o tempo do curso: Quem decide parar a faculdade no impossível receber apoio integral.
quem frequentou uma graduação de meio do caminho segue tendo de Desde o ingresso na faculdade, cabe
quatro anos, por exemplo, teria até arcar com a dívida acumulada até ao aluno arcar com uma parte do valor
12 anos para saldar o financiamento. a notificação da desistência. de cada mensalidade. Os cálculos do
“Nesse formato antigo do programa, Uma reformulação do financiamento percentual dessa contribuição levam
não importa se a pessoa está ou não foi instituída em 2018, em uma em consideração informações como a
empregada, ela precisa realizar o tentativa de conter o crescimento da pontuação do curso no Sistema Nacional
pagamento”, completa Pereira. inadimplência. Conhecido como de Avaliação da Educação Superior
Com o agravamento da crise Novo Fies, o programa deixou de lado (Sinaes), o valor da mensalidade e a
econômica, o sonho de concluir uma o período de carência pós-conclusão renda familiar. A análise, feita por meio
graduação acabou se transformando em do curso, vigente até 2017, passando de algoritmos, determina o percentual
pesadelo para milhares de diplomados. a atrelar os pagamentos à renda de apoio aprovado para cada solicitante.
Assim como acontece em qualquer imediata dos contratantes. Nesse caso, Em 2014, o financiamento máximo em
contrato de financiamento, o atraso no assim que termina a graduação, cada contrato estava na faixa dos 94%,
pagamento das parcelas acarreta o recém-formado precisa começar caindo para 76,4% em 2020, conforme
restrições de crédito não apenas a a quitar sua dívida de acordo com um a Anup. A situação torna-se mais
quem contraiu a dívida, mas também ao percentual que varia entre 8% e 12% de complicada nos cursos mais caros,
fiador dela. seu salário. Caso fique desempregado, como os de medicina, por exemplo, cuja

96 | NOVEMBRO DE 2021
mensalidade pode chegar a R$ 10 mil. as obrigações financeiras dos de 50 mil usuários, que diariamente
“Nesse caso, um estudante cuja família estudantes beneficiários do fundo, buscam orientações sobre como lidar
dispõe de renda mensal de até três tendo como justificativa a realidade com as regras dos contratos e, em
salários mínimos terá de arcar com uma enfrentada no país em decorrência parte considerável dos casos, com
mensalidade de R$ 3 mil, inviável para da pandemia de Covid-19. Até o a inadimplência. “Apesar do Fies ser
a maioria dos jovens”, avalia Pereira. fechamento desta edição, tramitava um programa social que envolve
Uma das formas apontadas para na Câmara dos Deputados o Projeto diversos agentes, essa é uma conta que
diminuir a quantidade de devedores de Lei nº 1.133/2021, que acrescenta acabou ficando majoritariamente no
do Fies é a migração dos contratos um ano a esse período de suspensão colo dos estudantes”, afirma Belinda
atrasados da versão antiga, fechados temporária do pagamento das dívidas. Mandelbaum, do Departamento
antes de 2018, para o novo formato, “Até quem tem condições de de Psicologia Social e do Trabalho
que vincula o pagamento à renda do antecipar o pagamento das parcelas do do Instituto de Psicologia da USP
contratante. “Isso já é previsto na financiamento encontra empecilhos”, e coordenadora do Laboratório de
Lei nº 13.530, de 2017, que descreve afirma o advogado Fábio Henrique Estudos da Família, Relações de Gênero
a possibilidade de transferência Pereira de Araújo, da Modal Assessoria e Sexualidade. “Houve um momento
voluntária dos contratos para o Novo Jurídica, que tem uma divisão em que os alunos foram estimulados
Fies, uma vez aprovada pelo comitê especializada em direito educacional. a fazer parte do programa. Em todo
gestor do programa”, explica o A dificuldade de solucionar problemas lugar se via propaganda sobre o
consultor da Anup. “Não há dúvidas de por meio dos canais de comunicação financiamento”, lembra Mandelbaum,
que muitos solicitariam a transferência do FNDE é uma das principais queixas reforçando o fato de a chegada da conta
dos contratos para essa modalidade, dos contratantes. “Tenho clientes coincidir com um momento de crise,
na expectativa de retirarem seus nomes que se formaram em medicina e que acentuado pela pandemia. “A realização
da lista de inadimplentes dos serviços buscam adiantar as quitações para pessoal e profissional não se dá apenas
de proteção ao crédito.” A lei, no serem aprovados em outros tipos de com a conclusão do curso superior,
entanto, não prevê que a repactuação financiamento”, explica Araújo. Como mas também pela capacidade de
das regras incida automaticamente a contratação do Fies pode influenciar honrar compromissos. Quando o
sobre o saldo devedor do contrato negativamente a análise e aprovação jovem não consegue, é claro que isso
antigo, o que mantém os devedores de crédito para, por exemplo, vira uma fonte de angústia”, avalia.
na mesma situação de inadimplência. a aquisição de imóveis, alguns Para Sólon Caldas, diretor
profissionais acabam recorrendo ao executivo da Associação Brasileira de

D
esde que o programa foi criado, Judiciário para regularizar, revisar ou Mantenedoras de Ensino Superior
oportunidades de renegociação mesmo renegociar a dívida. Procurado (ABMES), cada vez mais o Fies vem
das dívidas costumam ser pela reportagem, o FNDE não abandonando seu caráter social de
ofertadas pelo menos uma vez por ano, respondeu aos pedidos de entrevista. formação de novos profissionais para
porém sem datas definidas. Em 2019, O desafio envolvendo a obtenção de atender a política fiscal do governo,
por exemplo, houve a possibilidade informações sobre a renegociação o que desde 2015 tem levado a uma
de reparcelamento, mas sem redução de dívidas do Fies fez surgir diversos redução nas novas adesões ao programa.
de juros e multas. Já em 2020, a Lei grupos dedicados ao tema nas redes No primeiro semestre de 2021, foram
nº 14.024 suspendeu temporariamente sociais. Alguns chegam a reunir mais firmados 27 mil novos contratos.
“Não defendemos a anistia das dívidas,
mas uma política de renegociação
que vá ao encontro da necessidade
de quem está devendo”, considera.
Apesar das incertezas que
preocupam tantos jovens profissionais
nesse momento, especialistas
ILUSTRAÇÃO  CAMILO MARTINS  INFOGRÁFICO  ALEXANDRE AFFONSO

recomendam cautela, para que decisões


tomadas por impulso não piorem
ainda mais a situação. “Pedir outros
empréstimos para saldar as parcelas
atrasadas do Fies pode resultar em um
rombo financeiro ainda maior. Apesar
de ser um financiamento, o fundo faz
parte de uma política pública. Aguardar
pelos períodos de renegociação ou
pressionar pela revisão das regras de
migração ainda é o melhor a fazer, na
maioria dos casos”, aconselha Pereira,
da Anup. n Sidnei Santos de Oliveira

PESQUISA FAPESP 309 | 97


PERFIL

Saúde em
primeiro plano
Médica criadora de
série de TV estreia como
diretora de longa-metragem
sobre a pandemia Helena Lemos Petta:
potência do tema
redirecionou sua carreira
e virou tema de livro

A médica sanitarista Helena Lemos


Petta começou a se interessar pela
área da saúde aos 16 anos, quando
assistiu ao filme A peste, versão
adaptada da obra do escritor Albert
Camus (1913-1960). O longa-metragem
conta a história de um médico que
tenta conter uma epidemia que assola
a cidade de Orã, na Argélia. “Fiquei
encantada com a importância da
saúde coletiva e dos profissionais
de saúde para aquela comunidade
e, de certa forma, a potência do tema
quando retratado numa produção 1 2

audiovisual”, recorda Petta, que


desde 2009 tem se dedicado à nas séries e filmes, os profissionais comunitários. “Quisemos enfatizar
criação de séries de televisão e mais aparecem sempre correndo contra que esse é um trabalho de equipe”,
recentemente ao cinema, sempre o tempo”, avalia Petta, que procurou completa.
com abordagem de temas relacionados evidenciar uma rotina menos frenética. O protagonista da série, dr. Paulo,
à saúde pública. “Há o cuidado da enfermagem, de dar interpretado pelo ator Caco Ciocler, é
Prestes a lançar o documentário banho no paciente que está no leito, um médico que vai além das consultas
Quando falta o ar, cuja direção divide de fazer a barba ou mesmo uma trança e prescrições. “Como as UBS estão
com a irmã, a atriz Ana Petta, na obra no cabelo”, explica. O lançamento próximas do lugar em que as pessoas
a sanitarista paulista reúne histórias está previsto para o final deste ano. moram, o cotidiano dos pacientes
sobre a atual pandemia, em diferentes Graduada em medicina pela está muito presente”, diz. Na primeira
regiões do Brasil. “Fomos atrás de Santa Casa de São Paulo, durante temporada, os episódios baseiam-se
personagens que estiveram na linha a residência médica na área de em tópicos da saúde coletiva.
de frente no atendimento de saúde, infectologia, em 2008, Petta começou Na segunda, destacam-se temas como
evidenciando o papel essencial a trabalhar na UBS do Jardim Santa racismo, direito reprodutivo das
das mulheres nesse enfrentamento”, Lúcia, em Campinas. Foi quando mulheres, feminicídio e transfobia.
explica Petta. As filmagens, que percebeu o potencial dramático das O foco da terceira temporada, prevista
ocorreram nos meses de setembro histórias que acompanhava e que, para estrear no primeiro semestre
e dezembro de 2020, acompanharam mais tarde, seriam roteirizadas na de 2022, será a pandemia de Covid-19.
o trabalho de diferentes profissionais. série Unidade básica, exibida no canal Foi a partir da experiência de
Entre elas havia uma médica de Universal TV, disponível também concepção e produção da série, criada
família em um presídio em Salvador, em streaming. “Conversando com em parceria com o roteirista Newton
Bahia, e outra da etnia Baniwa que minha irmã, que na época atuava em Cannito, que Petta desenvolveu
trabalha em comunidades ribeirinhas uma série sobre o cotidiano de uma seu doutorado na área de medicina
FOTOS 1 LÉO RAMOS CHAVES  2 REPRODUÇÃO

na cidade de Castanhal, no Pará. delegacia de polícia de São Paulo, preventiva, concluído em 2018 na
O documentário aborda também tivemos a ideia de produzir algo Universidade de São Paulo (USP).
o cotidiano de uma unidade básica de semelhante no campo da saúde “Na tese, analiso o potencial da
saúde (UBS) no Morro da Conceição, coletiva”, recorda Petta, que cursou grande mídia na comunicação sobre
no Recife, Pernambuco, e de unidades o mestrado em saúde pública na saúde coletiva e atenção primária”,
de terapia intensiva do Hospital das Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). conta. O estudo resultou no livro
Clínicas, em São Paulo. “Em geral, Partiram, então, para as entrevistas Unidade Básica: A saúde pública na TV
as UTIs são bastante estereotipadas com médicos, enfermeiros e agentes (Hucitec, 2020). n S.S.O.

98 | NOVEMBRO DE 2021
CONFERÊNCIAS FAPESP 60 ANOS

6ª Conferência

DOENÇAS NEGLIGENCIADAS:
Química medicinal 17 NOV 2021
e produtos naturais 10 horas

ABERTURA As doenças negligenciadas afetam mais de dois bilhões


Ronaldo Aloise Pilli de pessoas, sobretudo as mais pobres e desfavorecidas
Vice-presidente do Conselho
em regiões tropicais e subtropicais do planeta, incluindo
Superior da FAPESP
as Américas, incapacitando homens, mulheres e crianças.
MODERADOR O número de mortes supera um milhão ao ano. Na 6a
Adriano Andricopulo Conferência FAPESP 60 anos, especialistas debaterão os
Universidade de São Paulo avanços da ciência, especialmente da Química Medicinal
(USP)
e de Produtos Naturais, para combater um dos maiores
problemas de saúde pública da atualidade e que expõe
uma das faces mais cruéis da desigualdade de um mundo
globalizado.

CONFERENCISTAS

Informações e inscrições,
acesse

https://60anos.fapesp.br Glaucius Oliva Sir Mike Ferguson Jon Clardy


Universidade de São Paulo University of Dundee Harvard University
À VENDA EM BANCAS
DE TODO O PAÍS

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