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SETEMBRO DE 2023 | ANO 24, N. 331

A TERRA
ESQUENTA
Sem freio, aquecimento
global provoca o mês
mais quente dos
últimos 150 anos
e agrava crise climática

Censo mapeia No pós-pandemia, Redes de apoio Estudos País discute Criado para
populações queda da produção buscam ampliar identificam ações legislação receber arquivo
quilombolas pela científica do a participação de células de para regular de Getúlio
primeira vez e Brasil é feminina em defesa que lesam o uso da Vargas, CPDOC
refina a contagem das maiores registros o organismo inteligência completa
de indígenas do mundo de patentes na sepse artificial 50 anos
CONFERÊNCIAS EVENTOS PRESENCIAIS
2023

5ª CONFERÊNCIA

O mundo dos meios porosos


da agricultura e do meio ambiente
29 de setembro de 2023 | das 10h às 11h30

Martinus Theodorus (Rien) van Genuchten


Departamento de Engenharia Nuclear da Universidade Federal
do Rio de Janeiro e Departamento de Ciências da Terra
da Universidade de Utrecht na Holanda
Foto: Acervo pessoal

Moderação: Ciro Antonio Rosolem, Universidade Estadual Paulista (Unesp)

6ª CONFERÊNCIA

As mais recentes novidades sobre


a origem do Homo sapiens
10 de outubro de 2023 | das 10h às 11h30
Bernard Anthony Wood
Diretor do Centro de Estudos Avançados de Paleobiologia
Humana da Universidade George Washington (GWU)

Foto: Smithsonian Institution


Moderação: Carlos Alfredo Joly, Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)

Local: Auditório FAPESP Inscrições e mais informações, acesse


Rua Pio XI, 1500 – Alto da Lapa, São Paulo, SP fapesp.br/conferencias2023
331 SETEMBRO 2023

5 CARTA DA EDITORA ENTREVISTA BOAS PRÁTICAS SAÚDE


6 NOTAS 22 A antropóloga 40 Atuação de conselheiros 50 Heranças materna
Guita Debert pesquisa de integridade científica e paterna são igualmente
CAPA o cuidado e a velhice é avaliada na Austrália relevantes em distúrbio que
12 Mês mais quente dependente leva à puberdade precoce
da história recente, DADOS
julho indica agravamento INDICADORES 43 Impactos dos ECOLOGIA
da crise climática 28 Tombo na produção resultados do Censo de 2022 52 Homo sapiens captura
científica brasileira mais espécies de presas
18 Efeito das ilhas superou o de outros países IMUNOLOGIA do que outros 19 grandes
de calor é registrado até no pós-pandemia 44 Estudos identificam carnívoros
em municípios de médio ações das células de defesa
e pequeno porte GÊNERO que danificam o organismo GEOLOGIA
32 Redes de apoio na sepse 54 Em 90 mil anos, rio
20 Temperaturas buscam ampliar presença São Francisco alinhou-se
extremas podem provocar feminina em registros EPIDEMIOLOGIA e aprofundou-se
a morte de até 5 milhões de patentes 48 Queda na aplicação da
de pessoas por ano vacina tríplice viral foi ASTROFÍSICA
DIVULGAÇÃO DE CIÊNCIA acelerada nos municípios 58 Pesquisadores
36 Histórias de mulheres mais pobres classificam mais de
cientistas viram peça de 160 mil galáxias no céu
teatro e websérie do hemisfério Sul
›››
FOTO  CHEN JIMIN / CHINA NEWS SERVICE / VCG VIA GETTY IMAGES

Panda se refresca no gelo:


China registra recorde
de temperatura em julho
(CAPA, P. 12)
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VÍDEO
Tomate representa
apenas 25% da composição
de ketchups
Estudo com 25 marcas
vendidas em Piracicaba (SP)
revelou os principais
ingredientes do produto

VÍDEO
1 Vídeo traz imagens únicas
Recenseador visita aldeia indígena para coleta de informações (DEMOGRAFIA, P. 72) de filhotes de onça-pintada
ONG combina atividades
de pesquisa e ecoturismo
COMPUTAÇÃO ARQUIVOLOGIA ITINERÁRIOS DE PESQUISA para estudar mais de 180
60 Brasil prepara 77 Criado para 94 Janaína Damaceno animais que vivem
legislação para reduzir receber arquivo de transita pelo audiovisual em reserva no Pantanal
os riscos de mau uso Getúlio Vargas, CPDOC e arquivos fotográficos
da inteligência artificial completa 50 anos da luta antirracista

BIOTECNOLOGIA LITERATURA RESENHA PODCAST

FOTOS 1 GUILHERME GNIPPER / FUNAI  2 FABRÍCIO FERREIRA SILVA / WIKIMEDIA COMMONS


65 Curativo feito com 82 Nova edição dos 96 Negro sou: A questão Genômica, saúde mental
pele de tilápia ajuda diários e pesquisas étnico-racial e o Brasil: e oceanos
a tratar lesões de córnea revigoram figura do Ensaios, artigos e outros O sequenciamento completo
em animais escritor Lúcio Cardoso textos (1949-73), de genomas, as relações
org. Muryatan S. Barbosa. entre saúde física e mental,
NOVOS MATERIAIS OBITUÁRIOS Por Márcio Ferreira e detritos nos oceanos
68 Tecidos eletrônicos 86 José Murilo de de Souza
podem gerar calor Carvalho (1939-2023)
e eletricidade em botas, 88 Joaquim José 97 COMENTÁRIOS Este conteúdo está disponível no
luvas e roupas de Camargo Engler 98 FOTOLAB site www.revistapesquisa.fapesp.br,
(1942-2023) que contém, além de edições
DEMOGRAFIA anteriores, versões em inglês
72 Censo faz MEMÓRIA e espanhol e conteúdo exclusivo
levantamento inédito de 90 Os 100 anos
populações quilombolas do estabelecimento da
e indígenas fora de áreas Previdência Social
demarcadas no Brasil

Foz do rio
São Francisco
(GEOLOGIA, P. 54)

Capa 
Marília Navickaite
CARTA DA EDITORA

Tempo quente
Alexandra Ozorio de Almeida | DIRETORA DE REDAÇÃO

J ulho foi o mês mais quente já registrado pelas


principais agências meteorológicas que mo-
nitoram o ambiente há décadas. Identificada
há anos, a tendência de aumento da temperatura
fapesp.br/demarcacao-refloresta-terra-indigena-
-na-mata-atlantica/). Levantamento detalhado
feito pelo IBGE, no Censo de 2022, mostra que
a porcentagem da população indígena quase do-
média global culminou no atual recorde, que não brou em relação a 2010, passando de 0,43% para
demorará a ser quebrado. 0,83% (página 72). Vários fatores podem explicar
A elevação da temperatura média do planeta, o crescimento, além do aumento demográfico
mesmo na casa decimal, afeta a quantidade de resultante de mais nascimentos do que mortes,
episódios de seca, chuvas fortes, além da frequên- como mudanças metodológicas importantes no
cia e intensidade de ondas de calor. O impacto recenseamento e a valorização da identidade in-
não é linear, e alguns fenômenos são mais fáceis dígena, que incentiva a autodeclaração.
de prever – ondas de calor, por exemplo – do que Embora tenha sido aperfeiçoada na última
outros, como oscilações de chuvas. edição, a atenção aos povos originários já estava
A ciência aperfeiçoa os modelos, simulando o presente em censos anteriores. Totalmente iné-
futuro e verificando a precisão das estimativas, ditos são os dados sobre as populações quilom-
comparando-as com eventos passados. O papel bolas no Brasil, que nunca haviam sido objeto de
das mudanças climáticas no processo de aque- levantamento pelo IBGE. Impressionantes, os
cimento global é cientificamente inconteste; o números dão visibilidade a comunidades que não
que falta é a ação de governos, setor privado e a tinham: os quilombolas somam 1,3 milhão de
sociedade civil para impedir que a vida na Ter- pessoas, ou 0,65% dos brasileiros. Quase 70% se
ra, como a conhecemos, torne-se insustentável. concentram na região Nordeste, com a primazia
A reportagem de capa desta edição traz dados da Bahia (30% do total). O quilombo Pitanga dos
atuais sobre a elevação da temperatura no pla- Palmares, na Região Metropolitana de Salvador,
neta, destacando impactos na saúde e os riscos esteve no noticiário recente devido ao assassinato
das chamadas ilhas de calor (página 12). da liderança Bernadete Pacífico.
O papel das ações humanas no desequilíbrio do Tesouro da documentação de história recente
ecossistema terrestre também é tema de reporta- do país, o CPDOC, da Fundação Getulio Vargas,
gem à página 52. A espécie humana afeta direta- completa 50 anos (página 77). Criado inicialmen-
mente 14 mil espécies de vertebrados, segundo te para armazenar os arquivos do ex-presidente
estudo internacional, o que equivale a quase um que dá nome à instituição, o Centro de Pesquisa
terço das espécies avaliadas no trabalho. No mesmo e Documentação de História Contemporânea do
ambiente da África no qual leões caçam 40 espé- Brasil preserva a memória da política nacional
cies vertebradas, o predador humano afeta 3,2 mil. desde 1930. Hoje digital, o Dicionário histórico-
A importância dos povos originários na pre- -biográfico brasileiro, lançado em 1984 e atualiza-
servação da natureza é bem documentada. Um do em novas edições, trouxe verbetes de referên-
exemplo recente de pesquisa demonstrando esse cia para historiadores, jornalistas e interessados
serviço ambiental foi publicado no site de Pes- pelo tema. É fácil se perder por lá – mas não é
quisa FAPESP em julho (https://revistapesquisa. tempo perdido.

PESQUISA FAPESP 331 | 5


NOTAS

Grãos de pólen revelam a história da Caatinga


Formada há milhões de anos, a Caatinga foi ocupada 12 mil anos, o clima ficou menos úmido na região Nor- A paisagem
inicialmente por uma floresta semelhante à Amazônia deste do Brasil, mas foi depois, a partir dos 5 mil anos, atual do sertão
nordestino se
e à Mata Atlântica, com predomínio de espécies mais que a Caatinga começou a tomar a forma que conhece-
estabeleceu
resistentes a longos períodos de seca. As que vemos mos”, diz o geógrafo José João Lelis Leal de Souza, da há pelo menos
hoje devem ter se estabelecido há pelo menos 5 mil Universidade Federal de Viçosa (UFV), um dos autores 5 mil anos
anos. Pesquisadores de Minas Gerais, Paraíba, Pernam- do estudo. Micropartículas de madeira carbonizadas
buco e São Paulo reconstituíram a história mais recente indicaram incêndios locais e ocupação humana na re-
do sertão nordestino examinando grãos de pólen de uma gião. Por volta de 2,1 mil anos, a concentração de espo-
profundidade de até 1,7 metro do fundo de uma lagoa ros de ervas aquáticas e algas sugere oscilações entre
temporária em São João do Cariri, na Paraíba. Espécies um clima semiárido mais úmido e mais seco, associadas
nativas, adaptadas ao clima semiárido, como as árvores aos fenômenos El Niño e La Niña. Por volta de 1,6 mil
dos gêneros Licania e Apterokarpos, estavam em cama- anos, o clima assentou, com longos períodos de seca e
das de sedimentos com idade entre 4,9 mil e 2,2 mil chuvas fortes ocasionais (Frontiers in Ecology and Evolu-
anos. “Quando terminou a última glaciação, há cerca de tion, fevereiro de 2022; Mercator, julho de 2023). 

6 | SETEMBRO DE 2023
Luzio, semelhante O primeiro passo para
a independência da Bahia,
aos indígenas atuais óleo sobre tela de
Antônio Parreiras, 1931

Luzio, o esqueleto humano mais antigo


encontrado no estado de São Paulo,
que viveu há cerca de 10.400 anos
onde agora é o Vale do Ribeira, descende
da mesma população ancestral que
povoou a América há 16 mil anos e era
geneticamente muito parecido com os
indígenas atuais do interior do país, sem
relação direta com os povos litorâneos.
Análises de 33 amostras de material
genético de ossadas humanas de todas
as regiões do Brasil, realizadas por 20 3

instituições nacionais e seis estrangeiras,


reforçaram a hipótese de que uma única Site reúne títulos de 16 mil obras
leva migratória ocupou a América. “Todos
os povos antigos ou atuais da América do sobre a Independência
Sul tiveram origem nesse primeiro grupo
de migrantes”, comentou o arqueólogo Dois de julho é uma importante data festiva em Salvador, na Bahia, porque nesse dia, em
André Strauss, do Museu de Arqueologia 1823, as tropas portuguesas abandonaram o Brasil, após intensa mobilização popular,
e Etnologia da Universidade de São Paulo com a participação de homens e mulheres indígenas, mestiços e negros libertos ou es-
(MAE-USP) e um dos autores do trabalho. cravizados. O episódio é um dos verbetes de Independências-memórias, um repositório
Os primeiros habitantes do Brasil não on-line recém-aberto para consulta pública gratuita, com um índex bibliográfico de, até
formavam, porém, um grupo único e agora, cerca de 16 mil títulos de obras (livros, artigos, teses e dissertações) sobre a histó-
homogêneo. Luzia, o fóssil com cerca ria do Brasil de 1808 a 1831. As referências completas das obras podem ser encontradas
de 12 mil anos encontrado em uma por meio de autores, títulos, palavras-chave, ano ou local de publicação. Elaborado desde
caverna de Minas Gerais, Luzio e outro 2013 por uma equipe de pesquisadores e estudantes das universidades de São Paulo
esqueleto descoberto no município de (USP) e Federal de São Paulo (Unifesp), o site independencias-memorias.com.br tem tam-
Pains, em Minas Gerais, tinham trechos bém um atlas de 29 cidades relevantes para os debates sobre a Independência nas capi-
do DNA que os distinguiam uns dos tais brasileiras. Além de datas, os verbetes, em uma das abas, incluem personalidades e
outros e apresentavam diferenças monumentos históricos.
culturais: eram todos caçadores-coletores,
mas o povo de Luzio erigia sambaquis
(depósitos de conchas) na beira de rios,
enquanto o de Luzia, não (Nature Ecology Os riscos dos casamentos entre primos
and Evolution, 31 de julho).
2 No Brasil, filhos de casamentos entre primos têm 4,16 vezes mais risco de nascer
com doenças genéticas raras do que os de casamentos entre não parentes, estimou
um levantamento de pesquisadores da Universidade Federal do Rio Grande do Sul
FOTOS 1 HECKEPICS / GETTY IMAGES  2 ANDRÉ STRAUSS / USP  3 WIKIMEDIA COMMONS 

(UFRGS). No Nordeste, a taxa de casamentos consanguíneos foi até 13 vezes mais alta
do que no Sul. O maior coeficiente de consanguinidade, que mede a probabilidade de
duas pessoas terem as variações (alelos) do mesmo gene, foi encontrado no município
de Lagoa, na Paraíba (0,01182), e o menor (0,00017) em Belo Horizonte, em Minas
Gerais. “A região Nordeste concentra mais populações isoladas geográfica e
culturalmente, como os povos ribeirinhos e quilombolas, nas quais os casamentos
entre parentes ainda são relativamente comuns”, explica Luzivan Costa Reis, da
UFRGS, principal autor do mapeamento. As uniões entre parentes se mostraram
associadas à maior ocorrência de doenças genéticas do que na população geral.
O levantamento registrou 15 doenças genéticas, das quais duas apresentaram novas
mutações, que poderiam agravar os sintomas: a picnodisostose, que causa baixa
estatura e deformidades no crânio; e a síndrome de Raine, que inflama o cérebro e
danifica o fígado. Para amenizar o problema, segundo Reis, os profissionais da saúde
deveriam aprimorar sua formação em genética médica para expor aos casais
Reconstrução tridimensional do crânio de Luzio, aparentados os riscos de gerar crianças com doenças genéticas, além de recomendar
que viveu há cerca de 10,4 mil anos o aconselhamento genético (International Journal of Medical Reviews, março).

PESQUISA FAPESP 331 | 7


Crianças e
adolescentes em
Conselho no Chile
O Ministério da Ciência, Tecnologia,
Conhecimento e Inovação (MCTCI) do
Chile formou seu primeiro Conselho
de Meninas, Meninos e Adolescentes,
com o objetivo de conhecer a visão
desses grupos e incorporá-la nos
planos e programas do governo.
O ministro da pasta, Aisén Etcheverry,
Representação a subsecretária da Criança, Verónica
das placas Silva, e a chefe de Educação Geral do
tectônicas com
Ministério da Educação, Andrea Osorio,
as rachaduras
por onde emerge presidiram a cerimônia de constituição
o magma do Conselho, no final de junho, no
(em vermelho) Palácio de La Moneda, sede do
1 governo. “Os adultos se acostumaram
a construir políticas públicas,
Quando a Terra começou a trincar programas e ações acreditando que
temos as respostas para as
As placas tectônicas – grandes blocos rochosos da superfície da Terra, responsáveis pelos ter- necessidades, interesses e ideias de
remotos e pela formação de cordilheiras – devem ter se formado há 3,2 bilhões de anos. Em- meninas, meninos e adolescentes,
bora não se saiba exatamente quando a Terra deixou de ser uma bolha de rocha quente e as- e raramente assumimos o desafio
sumiu o aspecto atual, a superfície começou a trincar cerca de 1,3 bilhão de anos após a forma- de implementar mais e mais espaços
ção do planeta, em resposta, provavelmente, ao resfriamento de um oceano de magma, a melhores para a escuta ativa”,
camada pastosa abaixo da mais externa e sólida. Uma equipe da Universidade Curtin, na Aus- comentou Etcheverry em um
trália, chegou a essa conclusão examinando a composição isotópica de urânio, tório e chumbo comunicado do ministério. A primeira
de antigos depósitos daquele país. As proporções entre elas foram usadas como um relógio turma de 16 integrantes dos programas
para identificar quando as camadas da Terra começaram nessa época a se misturar, indicando Explora, Mineduc Cosoc e Mejor Niñez
a formação das placas. Por volta de 3,2 bilhões de anos, a Terra teria se diferenciado e assumi- formou temporariamente um grupo
do a atual forma de bolo em camadas, com núcleo, manto e crosta. Sob a ação da gravidade, para compor o Conselho Nacional,
os elementos químicos mais pesados teriam afundado e os mais leves subido para a superfície. que contemplará a paridade de gênero
Assim, rochas da crosta migraram para o manto e as do manto subiram, caracterizando a com- e a representação regional, com
posição atual das placas tectônicas (Live Science, 26 de julho, Earth-Science Reviews, agosto). duração de dois anos.

Ancestral de pterossauro tinha bico


Um réptil de bico curvo capaz de rasgar pedaços de carne, e “mãos” de
dedos longos com garras em foice, ideais para agarrar galhos. Esse é
Venetoraptor gassenae, animal do grupo dos lagerpetídeos que, há cerca
de 230 milhões de anos, media aproximadamente 1 metro, pesava entre
4 e 8 quilogramas e andava em duas pernas com as mãos livres. A des-
crição parte de um fóssil encontrado no município gaúcho de São João
do Polêsine, com partes importantes preservadas: o crânio com a ponta
da mandíbula e a porção posterior, incluindo a órbita, e a mão com dedos
compridos, especialmente o quarto dígito. “Esse dedo é o que, nos pte-
rossauros, é alongado e suporta a asa”, explica o paleontólogo Rodrigo
Temp Müller, da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Mais in-
teressante ainda é que o achado derruba a ideia de que os animais da-
Interpretação artística
quele tempo fossem genéricos e uniformes. “Com essa descoberta fora
de Venetoraptor gassenae,
da curva, começamos a perceber que essa hipótese estaria equivocada”, que devia ser carnívoro
diz Müller. “Dessas linhagens bem diversas teriam sido selecionados os e subir em árvores
dinossauros e pterossauros” (Nature, 16 de agosto).

8 | SETEMBRO DE 2023
Poeira formada
pelos grãos finos Uma combinação
com pigmentos
de sílica causa
doença agressiva

de longa duração
Extratos naturais extraídos da páprica e da
canela e combinados por meio de uma técnica
própria formaram micropartículas lipídicas de
cor alaranjada e duas propriedades relevantes.
A primeira é a capacidade de manter por
3 até 49 dias, a temperatura ambiente, a
25 graus Celsius (°C), ou sob refrigeração,
A poeira letal das pedras artificiais a 5 °C, os pigmentos chamados carotenoides,
bastante usados como corantes naturais
Uma forma bastante agressiva de uma doença pulmonar chamada silicose vem sendo em alimentos, mas que se degradam
registrada em trabalhadores que atuam no corte, lixamento e polimento de pedras facilmente sob o efeito da luz, do oxigênio e
artificiais de quartzo usadas em pias e bancadas de cozinha. Produzidas também no da temperatura. “A quantidade de carotenoides
Brasil a partir da prensagem de grão de quartzo e uma mistura com resinas, polímeros no dia 1 foi a mesma encontrada no dia 49,
e pigmentos, essas pedras contêm de 3 a 30 vezes mais sílica (SiO2) do que as naturais, independentemente de o pó estar em
de granito ou mármore. O preparo para a produção de tampos e bancadas libera temperatura ambiente ou sob refrigeração”,
grãos muito finos de sílica, que, inalados, se acumulam no pulmão e geram cicatrizes, afirmou à Agência FAPESP a engenheira 
as quais, com o tempo, deixam o órgão rígido e a respiração difícil. Não há tratamento de alimentos Fernanda Ramalho Procópio, da
eficiente para a silicose, exigindo, nos casos graves, o transplante de pulmão. Nos Universidade Estadual de Campinas (Unicamp),
Estados Unidos, o primeiro caso de silicose associada à manufatura de pedras artificiais uma das autoras do processo, desenvolvido
de quartzo foi descrito em 2014, no Texas, e outros 18 entre 2015 e 2019. Uma equipe em conjunto com o Centro de Pesquisa em
da Universidade da Califórnia em São Francisco relatou 52 casos de silicose em Alimentos (FoRC ), um dos Centros de Pesquisa,
trabalhadores da indústria de pedras artificiais californiana entre 2019 e 2022. As Inovação e Difusão (Cepid) apoiados pela
pessoas com silicose trabalharam de 10 a 20 anos no setor e receberam o diagnóstico FAPESP. A segunda propriedade é
entre 40 e 50 anos de idade. Quase metade (48%) continuou trabalhando na área após a ação antimicrobiana e antifúngica. Algumas
a confirmação da doença. O diagnóstico foi tardio em 58% dos casos, inicialmente aplicações estão sendo estudadas, como
confundidos com tuberculose ou pneumonia. Onze delas foram encaminhadas em filmes de proteínas de soja, usados para
para transplante, mas só três conseguiram. Para seis, o procedimento foi negado proteger alimentos (Food and Bioprocess
e uma morreu antes de entrar na lista de espera (JAMA Internal Medicine, 24 de julho). Technology, outubro de 2022 e maio de 2023).

Um drone resistente ao fogo


4

Pesquisadores da Suíça e do Reino Unido construíram um drone resis-


tente a altas temperaturas que pode ser usado para avaliar de perto o
foco de incêndios e permitir a ação mais segura de bombeiros. Drones
FOTOS 1 VISDIA / GETTY IMAGES  2 CAIO FANTINI  3 TUAINDEED / GETTY IMAGES  4 EMPA

que fazem fotos aéreas, transportam mangueiras ou lançam material


extintor precisam se manter a distância do fogo para não se danifica-
rem. O engenheiro mecânico David Häusermann, dos Laboratórios Fe-
derais Suíços de Ciência e Tecnologia de Materiais (Empa) e do Imperial
College London, foi atrás de quem pudesse desenvolver um material de
revestimento leve e resistente a temperaturas elevadas. No Empa, as
equipes de Shanyu Zhao e Wim Malfait sintetizaram um aerogel à base
de poli-imida, polímero que mantém sua estrutura estável a quase 500
graus Celsius e vem sendo estudado como potencial isolante térmico
de trajes espaciais. Häusermann usou placas de 1,5 centímetro de es-
pessura do aerogel revestidas por um filme de alumínio para proteger
os componentes eletrônicos do drone. Um protótipo do FireDrone foi
testado com sucesso em um centro de treinamento de bombeiros pró-
ximo a Zurique. “Mesmo depois de vários voos, os componentes eletrô-
nicos, a câmera de imagem térmica e os sensores de CO2 não sofreram
danos”, disse Häusermann em um comunicado à imprensa (Advanced
Intelligent Systems, 13 de junho; Swissinfo.ch, 26 de junho). Componentes cobertos com poli-imida sobrevivem ao calor intenso

PESQUISA FAPESP 331 | 9


Em vida livre, um cérebro maior
Um efeito conhecido da domesticação é o encolhimento do cérebro, que ocorre com
ovelhas, vacas e porcos. Também é o caso do vison-americano (Neovison vison), criado
na Europa para produção de casacos de pele. Esses animais, às vezes, escapolem do
cativeiro e tornam-se selvagens. Ao comparar os dois, pesquisadores do Instituto Max
Planck de Comportamento Animal fizeram uma descoberta inesperada: em cerca de
50 gerações, os descendentes de animais originalmente cativos conseguiram recuperar
um volume cerebral quase igual ao de exemplares selvagens dos Estados Unidos. O
estudo envolveu uma comparação entre o tamanho do cérebro (por meio de medições
do crânio) de animais em cativeiro e de populações que se tornaram selvagens na Eu-
ropa, incluindo medidas de crânios depositados em museus de zoologia. Essa possibi-
lidade de recuperação não era conhecida, mas pode não estar ao alcance das gerações
Em 50 gerações,
futuras de qualquer animal que escape de uma fazenda. Os visons, assim como toupei-
crânio do
vison-americano ras e musaranhos, passam naturalmente por alterações cerebrais conforme a estação
torna-se maior do ano. Talvez seja uma plasticidade fora do comum que permite a readaptação bem-
-sucedida à natureza (Max Planck Gesellschaft e Royal Society Open Science, 5 de julho).
1

A dramática situação das Três prêmios


casas de repouso para cientistas
Em geral, a situação das casas de repouso públicas e filantrópicas no Brasil não é brasileiros

FOTOS 1 JONN LEFFMANN / WIKIMEDIA COMMONS  2 MATTHIAS ZOMER / PEXELS  3 NASA  4 REPRODUÇÃO DO LIVRO IMMORTAL LIFE OF HENRIETTA LACKS, DE REBECCA SKLOOT
boa, indicou um estudo da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), que ana-
lisou 1.665 das também chamadas Instituições de Longa Permanência para Idosos O biólogo paulista de 67 anos Adalberto
(ILPI). “Um alto número de instituições não cumpre itens exigidos na regulamenta- Luis Val receberá em setembro na capital
ção técnica da Anvisa [Agência Nacional de Vigilância Sanitária]”, comenta Mirna paulista o Prêmio Fundação Bunge na
Rodrigues Costa Guimarães, da Secretaria de Estado de Saúde de Minas Gerais. categoria Vida e Obra da área de ciências
Parte de seu doutorado, na UFMG, utilizou dados do censo do Sistema Único de As- agrárias. Especialista em peixes regionais,
sistência Social de 2018. Quase 90% das casas de repouso não tinham cuidadores ele trabalha desde 1981 no Instituto Nacional
suficientes para seus moradores; 82% não cumpriam todos os requisitos de acessi- de Pesquisas da Amazônia (Inpa), em Manaus,
bilidade; 48% estavam sem um coordenador na instituição, com nível superior, que e coordena o Instituto Nacional de Ciência e
trabalhasse ao menos 20 horas por semana no local; e 5,8% apresentavam super- Tecnologia para Adaptações da Biota Aquática
lotação. Na região Sudeste, 19,1% das instituições tinham uma equipe multiprofis- na Amazônia (INCT-Adapta). Como premiação,
sional da saúde; na região Norte, apenas 2,9%. Um aspecto positivo: 94% das ins- receberá R$ 200 mil. O parasitologista
tituições promoviam ações para reforçar o vínculo familiar dos idosos com seus baiano de 73 anos Wanderley de Souza, da
parentes e reduzir a sensação de abandono e solidão. Estimada em 1,3 milhão, a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ),
população de idosos em ILPI cresce continuamente. De 2010 a 2021, o grupo de e o engenheiro mecânico e cientista da
pessoas com 60 anos ou mais subiu de 11,3% para 14,7% da população, passando computação mineiro de 77 anos Nivio Ziviani,
de 22,3 milhões para 31,2 milhões (Ciência e Saúde Coletiva, julho de 2023).  da Universidade Federal de Minas Gerais
(UFMG), venceram a 5ª edição do Prêmio
CBMM nas categorias Ciência e Tecnologia,
respectivamente. Cada um receberá
R$ 500 mil em reconhecimento às
contribuições científicas em suas áreas.
Por sua vez, o cientista da computação Virgílio
Almeida, professor emérito da UFMG e titular
da cátedra Oscar Sala do Instituto de Estudos
Avançados da Universidade de São Paulo
(IEA-USP), receberá o Prêmio Fundação
Conrado Wessel de Ciência de 2023,
oferecido pela Fundação Conrado Wessel
desde 2003. Mineiro de 73 anos e uma das
O reforço do vínculo
familiar é uma das referências do país em inteligência artificial,
prioridades das ILPI ele receberá R$ 400 mil em cerimônia a ser
2 realizada em outubro, em São Paulo.

10 | SETEMBRO DE 2023
Partes da Lua ganham novas idades
Idades mais antigas do que se esperava e uma gigantesca placa de da agência espacial norte-americana (Nasa), eram discrepantes. A
granito despontaram entre as novidades sobre a Lua em uma confe- equipe levou quase 10 anos examinando dados de espectroscopia co-
rência realizada em julho em Lyon, na França. Um grupo da Noruega lhidos por outras missões. A estimativa para a formação de uma região
e da França descreveu como refez a forma de estimar a idade da su- conhecida como Mare Imbrium mudou de 3,9 bilhões para 4,1 bilhões
perfície do satélite, formado há cerca de 4,5 bilhões de anos – segun- de anos atrás. Outro grupo internacional anunciou uma mancha de
do a hipótese mais aceita, foi o resultado da colisão de um asteroide cerca de 50 quilômetros de largura mais quente do que se imaginava.
contra a Terra, que tem 4,7 bilhões de anos. A superfície atual, no en- Pode ser lava resfriada ainda dentro de um vulcão cuja última erupção
tanto, é mais jovem. Algumas partes parecem ser 200 milhões de anos teria sido há 3,5 bilhões de anos. Na Terra, esse tipo de rocha depende
mais recentes do que se achava com base em análises das crateras. de água e atividade tectônica para se formar, condições inexistentes
Os resultados de datação de amostras colhidas pelas missões Apollo, na Lua (EurekAlert, 6 e 11 de julho; Nature, 5 de julho).

Mare Imbrium, cuja idade


estimada agora é de 4,1
bilhões de anos

Acordo com a família de Henrietta Lacks


Em outubro de 1951, aos 31 anos, mãe de cinco filhos, Henrietta Lacks morreu em consequência de
um câncer de útero no Hospital Johns Hopkins, em Baltimore, nos Estados Unidos. Sem sua autorização,
os médicos retiraram amostras de células tumorais, que, cultivadas em laboratório, continuaram a
se multiplicar, em vez de morrer em poucos dias, como era habitual. Os pesquisadores usaram as
então chamadas células HeLa (sílabas iniciais de seu nome) para estudar a ação do vírus da poliomielite
e desenvolver vacinas e tratamentos contra câncer e outras doenças. A família só soube em 1973
dessa linhagem celular, utilizada em laboratórios de todo o mundo, e nunca foi indenizada. No
início de agosto, seus descendentes anunciaram um acordo com a Thermo Fisher, também dos Estados
Unidos, que acusaram de ter ganhado bilhões de dólares com as células HeLa. A empresa pediu
o arquivamento do caso, argumentando que o processo foi aberto depois que o prazo de prescrição
expirou, mas os advogados da família argumentaram que o limite não deveria ser aplicado porque a
Lacks, cuja família foi finalmente empresa continuou a se beneficiar financeiramente das células. Os termos do acordo são confidenciais,
indenizada pelo uso de suas células disseram os advogados de ambas as partes (Associated Press e New York Times, 1° de agosto).

PESQUISA FAPESP 331 | 11


CAPA

No início de agosto,

O MUNDO
incêndios florestais
levaram fogo, destruição
e mortes para cidades
havaianas como Lahaina,
na ilha de Maui

FERVE
Mês mais quente da história recente,
julho de 2023 quebrou recordes
de temperaturas e amenizou
até o inverno no hemisfério Sul
Marcos Pivetta
U
m dado climatológico costuma passar causado pelo aumento nas emissões de gases de
despercebido pelos habitantes do efeito estufa, o sétimo mês deste ano bateu vá-
hemisfério Sul, que correspondem a rios recordes históricos de temperatura, causou
cerca de 12% da população global de incêndios florestais e provocou mortes, sobretu-
8 bilhões de pessoas: julho, em pleno do no hemisfério Norte. Por ora, o episódio mais
inverno abaixo do Equador, é usual- grave desta temporada escaldante ocorreu no
mente o mês mais quente da Terra. início de agosto na ilha de Maui, no Havaí. Ali,
A explicação para essa ocorrência se uma combinação fatal de tempo quente e seco
deve às características geoclimáticas e ventos fortes espalhou as chamas originadas
das duas metades do planeta. Por ter menos su- na vegetação para zonas residenciais e matou
perfície oceânica e o dobro de área continental mais de 110 pessoas. Os prejuízos materiais são
em relação à parte abaixo da linha do Equador, o calculados em US$ 5,5 bilhões e 1.300 pessoas
hemisfério Norte, que está no verão em meados do ainda não tinham sido encontradas quando esta
ano, tem um peso maior na determinação da tem- reportagem foi escrita.
FOTO  GONZALO MARROQUIN / GETTY IMAGES

peratura média do planeta. A água é um elemento Os números finais relativos à temperatura


moderador do clima, que atenua os extremos global média de julho de 2023 variaram por al-
de calor. Por isso, quando o verão no hemisfério guns décimos, de acordo com a série histórica e
Norte é muito quente, como tem ocorrido nos a metodologia de monitoramento adotadas por
últimos anos, a temperatura global sobe. três grandes serviços que acompanham o clima
Julho de 2023 confirmou essa tendência com terrestre. Todos foram convergentes. Em julho,
uma intensidade sem precedentes e assustadora. a atmosfera do planeta registrou, em média, tem-
Turbinado pelo crescente aquecimento global peraturas na casa dos 17 graus Celsius (ºC).

PESQUISA FAPESP 331 | 13


Mesmo no hemisfério Sul, o calor recente ba-
teu recordes e tornou o inverno atual mais ame-
no, uma tendência que se observa há anos. Em
A TEMPERATURA 1º de agosto, a temperatura máxima em Buenos

MÉDIA GLOBAL ATINGIU Aires passou dos 30 ºC e foi a maior registrada

FOTOS 1 STR / AFP VIA GETTY IMAGES  2 LÉO RAMOS CHAVES / REVISTA PESQUISA FAPESP  INFOGRÁFICO  ALEXANDRE AFFONSO / REVISTA PESQUISA FAPESP  ILUSTRAÇÃO  MARÍLIA NAVICKAITE
nesse dia nos últimos 117 anos, quando o Serviço
20,96 ºC EM 31 DE Meteorológico Nacional (SMN) passou a colher
sistematicamente esse tipo de dado. No norte
JULHO, DIA MAIS QUENTE do Chile, as máximas chegaram a 37 ºC, cerca de
15 ºC acima dos valores normais para essa época,
NA HISTÓRIA RECENTE

C
normalmente a mais fria do ano.

DO PLANETA om temperatura média de 22,97 °C,


julho deste ano foi o julho mais quente
registrado no Brasil desde 1961, quan-
do o Instituto Nacional de Meteorolo-
gia (Inmet) começou a realizar medi-
ções regulares em diversas partes do
país. A marca foi 0,2 °C maior do que o
recorde anterior – de 22,77 °C, medido
em julho de 2022 – e 1,04 °C acima da
O Serviço de Mudança Climática Copernicus média histórica do mês. A temperatura média do
(C3S), da União Europeia, divulgou que a tem- Brasil é calculada a partir dos valores registrados
peratura média global de julho de 2023 foi de por mais de 650 estações meteorológicas do Inmet
16,95 °C, a maior observada em qualquer mês espalhadas pelo território nacional. As estações
desde o início de sua série histórica, em 1940. O automáticas captam a temperatura de hora em
recorde anterior era julho de 2019, com 16,63 °C. hora e as convencionais três vezes ao dia.
Dados da Administração Nacional Oceânica e “Um conjunto de fatores contribuiu para a ele-
Atmosférica (Noaa), dos Estados Unidos, indi- vação das temperaturas, desde mudanças no uso
caram que julho de 2023 foi o julho mais tórri- do solo, como a diminuição de áreas verdes e o
do dos últimos 174 anos, com temperatura mé- aumento das áreas urbanizadas, até a presen-
dia de 16,92 ºC. Foi também provavelmente o ça do El Niño neste ano [aquecimento anormal
mês mais quente da história moderna. “Julho das águas superficiais do centro-leste do Pacífico
deste ano foi muito mais quente do que qual- Equatorial que tende a alterar o regime de chu-
quer julho precedente e do que qualquer mês vas e o padrão de temperatura em várias partes
em nosso registro, que retrocede a 1880”, disse, do globo]”, comenta a meteorologista Danielle
em comunicado de imprensa, o climatologista Barros Ferreira, do Inmet. “Mas, nos últimos 10
Gavin Schmidt, diretor do Instituto Goddard de anos, o papel das mudanças climáticas no aque-
Estudos Espaciais (Giss), da agência espacial cimento terrestre é inegável.”
norte-americana (Nasa), outra instituição que Uma análise divulgada no fim de agosto pelo
monitora o clima global. Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe)

A DANÇA 1,20 ºC

DO TERMÔMETRO
1,00 ºC

0,80 ºC
EM JULHO 0,60 ºC

Quanto subiu ou diminuiu 0,40 ºC


a temperatura média
global no mês em relação 0,20 ºC

à média histórica do 0,00 ºC


período de 1900 a 2001
-0,20 ºC

-0,40 ºC

-0,60 ºC
FONTE NOAA 1850 1870 1890 1910

14 | SETEMBRO DE 2023
1 2

A China (acima) indica que a atual temperatura máxima na maior Organização das Nações Unidas (ONU) por 195
registrou 52,2 ºC parte do Brasil já é 1,5 °C acima da média histórica países, o Acordo de Paris tem como meta prin-
em julho, sua maior
temperatura, enquanto
registrada entre 1960 e 2020. Em alguns pontos cipal estimular ações com o intuito de limitar o
o inverno no hemisfério do interior do Nordeste e no noroeste da Amazô- aumento do aquecimento global – ou seja, a ele-
Sul (como na imagem da nia, o aquecimento chega a 2,5 e 3 °C. Na Região vação atual da temperatura média da atmosfera
capital paulista) Metropolitana de São Paulo, o aumento também é em relação ao nível da era pré-industrial – a me-
foi bastante ameno
dessa ordem. “Em nível regional, o aquecimento nos de 2 ºC, preferencialmente menos de 1,5 ºC.
é por vezes muito maior do que a média global. Cada elevação de 0,5 ºC na temperatura mé-
Isso ocorre não só no Brasil, mas em várias partes dia do planeta repercute de forma não linear na
do mundo”, diz o climatologista Lincoln Muniz frequência e intensidade de ondas de calor e de
Alves, do Inpe, coordenador do estudo. episódios de seca ou chuvas exacerbadas. O au-
Segundo as contas do serviço Copernicus, o mento parece pequeno, mas é o suficiente para,
novo recorde de calor indica que, durante pra- às vezes, dobrar ou triplicar a ocorrência ou in-
ticamente todo julho deste ano, a temperatu- tensidade de um fenômeno climático.
ra média global esteve cerca de 1,5 ºC acima do Em tese, o teto de 1,5 ºC de aumento não seria
valor médio entre 1850 e 1900. O período entre ainda tão prejudicial para o planeta e deixaria
meados e final do século XIX serve como base alguma margem de manobra para adotar me-
para calcular quanto o mundo esquentou desde didas de mitigação e adaptação à crise climáti-
o início da chamada Segunda Revolução Indus- ca. No entanto, o objetivo parece cada vez mais
trial. Firmado em dezembro de 2015 no âmbito da distante. As emissões de gases de efeito estufa

1930 1950 1970 1990 2010 2023

PESQUISA FAPESP 331 | 15


decorrentes da queima de combustíveis fósseis com previsões sombrias para o pior cenário de
e de mudanças de uso do solo, como o dióxido aquecimento global em meados deste século.
de carbono (CO₂) e o metano (CH₄), caíram le- Os modelos climáticos atuais são mais eficien-
vemente apenas durante o auge da pandemia de tes em prever oscilações térmicas e ondas de calor
Covid-19, entre 2020 e 2021, mas logo voltaram a do que variações de chuvas em diferentes partes
crescer (ver Pesquisa FAPESP nº 323). do globo. A formação de nuvens de pluviosidade
“Dificilmente conseguiremos manter o aque- é um processo complexo, muito mais complica-
cimento global em 1,5 ºC”, comenta José Ma- do de ser simulado virtualmente do que o sobe
rengo, especialista em mudanças e riscos climá- e desce dos termômetros. Muitos estudos sina-
ticos do Centro Nacional de Monitoramento e lizam essa limitação, como um artigo publicado
Alertas de Desastres Naturais (Cemaden). “Mas por Marengo e colaboradores no International
isso não pode ser usado como desculpa para Journal of Climatology em abril de 2022. No tra-
não adotarmos ações imediatas que reduzam a balho, eles compararam a eficácia de 31 modelos
emissão de gases de efeito estufa.” Ao olhar os climáticos em reproduzir variações de chuva e
mapas da Noaa que mostravam as variações de de temperatura já ocorridas na América do Sul
temperatura em todo o globo em julho deste e o grau de convergência de suas projeções fu-
ano, o climatologista teve uma surpresa. Eles turas para esses dois parâmetros. Os resultados
se pareciam muito com os mapas divulgados foram mais consistentes para emular a dinâmica
nos últimos relatórios do Painel Intergover- da temperatura do que da chuva.
namental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) A atual onda de calor promoveu a quebra de
vários recordes em diferentes partes do globo.
Em 16 de julho, a temperatura máxima na China
COMO VARIOU A TEMPERATURA MÉDIA chegou a 52,2 °C, temperatura nunca medida no

NO BRASIL EM JULHO DE 2023 país. Segundo dados do serviço Copernicus, 31


de julho de 2023 foi o dia mais quente registrado
Maiores elevações ocorreram na Amazônia, no Centro-Oeste e Sul no planeta desde 1940. Nessa data, a temperatura
média global atingiu 20,96 ºC. A Noaa destacou
que julho de 2023 foi também o mês com tem-
Aumento ou diminuição em relação à média histórica do período entre 1991 e 2020
peraturas mais elevadas em três continentes:
Ásia, África e América do Sul (na do Norte foi o
3 2 1,5 1 0,5 -0,5 -1 -1,5 -2 -3

N
segundo mês mais quente).

(ºC)
ão houve refresco nem no mar. Em
julho, a extensão da cobertura de
gelo sobre a Antártida exibiu uma
retração de 17%, um recuo sem pre-
cedentes, e, pelo quarto mês conse-
cutivo de 2023, a temperatura média
sobre a superfície dos oceanos foi
recorde. Esteve 0,99 °C acima da
média histórica, de acordo com a
Noaa. No Atlântico Norte, estão ocorrendo nes-

FOTO  PEDRO SZEKELY  INFOGRÁFICOS  ALEXANDRE AFFONSO / REVISTA PESQUISA FAPESP


te ano ondas de calor marinho que colocam em
risco a vida aquática. “Há previsões de 100% de
branqueamento [processo de perda da cor] dos
corais do Caribe até o fim do verão boreal, o que
pode causar mortalidade em massa”, comenta a
oceanógrafa Regina Rodrigues, da Universida-
de Federal de Santa Catarina (UFSC). “Com o
aquecimento global, as ondas marinhas de calor
ficaram mais frequentes, intensas e longas.”
Rodrigues estuda os impactos dos oceanos so-
bre o clima, em especial na América do Sul. Além
do El Niño, que aquece o centro-leste do Pacífico
Equatorial e altera o padrão de chuvas e tempera-
tura, a Corrente de Revolvimento Meridional do
Atlântico (Amoc) é um dos temas mais frequentes
de seus trabalhos. Essa corrente leva água morna
FONTE INMET e superficial da parte meridional desse oceano, da

16 | SETEMBRO DE 2023
VALOR ABSOLUTO DA TEMPERATURA MÉDIA DO PLANETA
Julho é usualmente o mês mais quente do ano e em 2023 chegou a apresentar valores
até 1,5 ºC acima dos níveis da era pré-industrial

18 ºC
31 de julho de 2023
2023
17 ºC
2016
1,5 ºC acima do nível
16 ºC de 1850 a 1900 2020
2010
Temperatura

15 ºC 2016
2000

Por década
1990
14 ºC
1980
13 ºC 1970
1960
12 ºC 1950
1940
11 ºC

Jan. Fev. Mar. Abr. Mai. Jun. Jul. Ago. Set. Out. Nov. Dez.
FONTE  SERVIÇO DE MUDANÇA CLIMÁTICA COPERNICUS (C3S)

Antártida, para o hemisfério Norte e traz do Ártico “O El Niño está apenas começando e é pouco
águas mais frias e profundas para o sul. Há indícios provável que ele já tenha influenciado de forma
de que o aquecimento global levará à diminuição significativa as atuais altas nas temperaturas
da Amoc, talvez até ao seu colapso, daqui a algumas globais”, comenta o climatologista Carlos No-
décadas. As consequências do declínio da corren- bre, pesquisador sênior do Instituto de Estudos
te poderiam bagunçar ainda mais o clima global. Avançados da Universidade de São Paulo (IEA-
O contexto global em que ocorreram as quebras -USP). Os maiores impactos do fenômeno, que
de recordes de temperatura em julho passado é tem pelo menos 80% de chance de ser de inten-
preocupante. Nada indica que esse fenômeno se- sidade entre moderada e forte, devem ocorrer
ja passageiro ou tenha sido um caso isolado. Ao no final do ano (ver Pesquisa FAPESP nº 330).
contrário. Os 10 anos mais quentes da história re- Até março deste ano, as águas do centro-leste
cente ocorreram de 2010 para cá. O ano de 2016, do Pacífico Equatorial estavam mais frias do que
que marca o final do El Niño mais forte já regis- o normal, sob influência do La Niña, fenômeno
trado, é o de temperaturas mais altas de acordo de características inversas às do El Niño. “Fo-
A extensão da com a maioria dos levantamentos dos serviços ram três anos de La Niña, o mais longo que já se
cobertura de gelo na
Antártida foi em julho
climáticos. Os cientistas da Noaa estimam que viu”, diz Nobre. Em tese, o resfriamento dessa
17% menor do que a 2023 tem 50% de chance de se tornar o ano mais parte do Pacífico Equatorial deveria amenizar
média histórica quente já registrado. a intensidade do aquecimento global. Talvez
até tenha, mas não foi o suficiente para retirar
os últimos três anos da lista dos 10 mais quen-
tes da história.
No final de julho passado, quando já era qua-
se inevitável que o mês terminasse como o mais
tórrido da história recente, António Guterres,
ex-primeiro-ministro de Portugal e atual secre-
tário-geral da ONU, sentenciou, talvez com uma
ponta de exagero. “A era do aquecimento global
terminou; a era da fervura chegou. Tudo é con-
sistente com as previsões e os avisos repetidos.
A única surpresa é a velocidade da mudança. A
mudança climática está aqui. É terrível, e é só
o começo.” A saída? Cortar de forma drástica e
profunda as emissões de gases de efeito estufa
e adotar formas de mitigar os impactos de um
clima mais quente. n

Os projetos e os artigos científicos consultados para esta reportagem


estão listados na versão on-line.

PESQUISA FAPESP 331 | 17


Em Presidente Prudente,
no interior paulista,
as diferenças de
temperatura entre as áreas
urbanas e as campestres
são maiores à noite
durante a estação seca

CIDADES

A
MAIS emissão de gases de efeito
estufa é o principal motivo
que torna o clima na Ter-
do meio urbano, as zonas com menos ár-
vores e vegetação são ainda mais quentes
e formam bolsões de clima abafado. Esse

QUENTES
ra progressivamente mais efeito é denominado ilha de calor urba-
quente a partir de meados na. Até poucos anos atrás, ele era mais
do século XIX. Do início sentido e estudado em grandes cidades,
da Segunda Revolução com milhões de habitantes, como São
Industrial até hoje, a tem- Paulo, Rio de Janeiro ou qualquer outra
Efeito das ilhas de peratura média do plane- grande metrópole. Hoje, as ilhas de ca-
ta subiu cerca de 1,1 grau Celsius (ºC). lor se manifestam em cidades de qual-
calor urbanas aumenta No plano local, o estilo de vida urbano quer tamanho, das menores às maiores.
adotado atualmente pela maior parte da As diferenças de temperatura entre um
a temperatura até população global potencializa ainda mais bairro arborizado e outro com o solo to-
em municípios de médio o calor de fundo criado pelas mudanças talmente impermeabilizado chegam fre-
climáticas. Desde 2007, segundo estima- quentemente a 5 ºC, com picos de 10 ºC
e pequeno porte tivas da Organização das Nações Unidas de disparidade em certas horas do dia.
(ONU), mais pessoas vivem em cidades Ao lado de colaboradores espalhados
Marcos Pivetta do que no campo, um padrão de habita- pelo país, a geógrafa Margarete Cristiane
ção e ocupação do solo provavelmente de Costa Trindade Amorim, da Univer-
inédito na história da humanidade. Hoje, sidade Estadual Paulista (Unesp), tem
mais de 55% dos 8 bilhões de habitantes estudado o fenômeno das ilhas de calor
do planeta moram em centros urbanos. em cidades brasileiras de médio e pe-
Em muitos países, esse percentual é bem queno porte, como Florianópolis (meio
maior e, no Brasil, chega a 88%. milhão de moradores), a matogrossense
Com menos áreas verdes, mais con- Sinop (200 mil habitantes) e a paulista
creto e asfalto e ocupação geralmente Rancharia (30 mil munícipes). “Embo-
desordenada do solo, as cidades são mais ra as cidades de médio e pequeno porte
abafadas do que as áreas rurais. Dentro tenham menos poluição e muito menos
pessoas amontoadas em uma pequena vegetação e demoram mais tempo para
área do que as metrópoles, o impacto liberar essa energia térmica. Como resul-
das ilhas de calor também é assustador tado, boa parte do calor do dia é disper-
nelas”, diz Amorim. O projeto de mais sado apenas tarde da noite nos setores 55% DA POPULAÇÃO
longo prazo tocado pela geógrafa, finan-
ciado em grande parte pela FAPESP, é
de urbanização mais precária. Durante
o dia, a disparidade térmica nas distin- GLOBAL MORA EM
uma comparação do efeito das ilhas de tas áreas da cidade paulista giraram em
CENTROS URBANOS,

U
calor em duas cidades de médio porte torno de 3 ºC.
situadas em zonas climáticas distintas.
Como representante de uma área tro- ma das particularidades
MAIS QUENTES DO QUE
pical foi escolhida Presidente Prudente, que mudam a magnitude A ZONA RURAL
no oeste paulista, cidade de 230 mil ha- do efeito das ilhas de calor
bitantes onde se situa o campus da Unesp é o padrão de ocupação do
em que a geógrafa trabalha. Rennes, no solo nas áreas urbanas. Em
oeste da França, com 220 mil moradores, Presidente Prudente, por
foi tomada como exemplo de centro ur- exemplo, a presença de
bano de clima temperado. Durante nove habitações populares cons-
meses, com o auxílio de 26 sensores que truídas em lotes pequenos,
mediam diariamente o calor em 26 pon- praticamente desprovidos de áreas de
tos distintos de Presidente Prudente, dos terra exposta ou de vegetação entre o es-
quais 5 em áreas rurais e 21 em setores paço ocupado por duas casas, é um traço
urbanos, Amorim acompanhou o compor- urbano nacional que exacerba ainda mais “A geometria das construções influi
tamento da temperatura em diferentes o calor sentido nas cidades brasileiras. na circulação dos ventos e pode gerar
zonas da cidade. Colegas da Universi- Depois de realizarem uma revisão da maior ou menor sombreamento”, diz o
dade de Rennes fizeram algo semelhante literatura científica, pesquisadores das geógrafo Victor Fernandez Nascimento,
na localidade francesa, onde chove em universidades federais do ABC (UFABC) da UFABC, um dos autores do trabalho.
média 600 milímetros por ano, metade e do Rio Grande do Sul (UFRGS) e do “Isso pode exacerbar ou diminuir o efei-
da pluviosidade típica no oeste paulista. Instituto Nacional de Pesquisas Espa- to das ilhas de calor em uma área.” Con-
Grosso modo, o peso do efeito das ilhas ciais (Inpe) propuseram um refinamento juntos de prédios excessivamente altos,
de calor foi o dobro em Presidente Pru- da metodologia usada para classificar as construídos muito próximos entre si, ou
FOTO  LÉO RAMOS CHAVES / REVISTA PESQUISA FAPESP  INFOGRÁFICO  RODRIGO CUNHA / REVISTA PESQUISA FAPESP  ILUSTRAÇÃO  MARÍLIA NAVICKAITE

dente do que em Rennes, como mostra diferentes zonas climáticas dentro das ruas estreitas podem dificultar a circu-
um estudo publicado pela brasileira e os cidades em função do efeito das ilhas lação do vento e aumentar a sensação
colegas franceses na revista Urban Clima- de calor. A proposta foi apresentada em térmica em certos pontos das cidades.
te em julho de 2021. “De julho a agosto, um artigo científico publicado neste ano Já avenidas mais largas, com edificações
na nossa estação seca, a diferença notur- na revista Remote Sensing. Além de le- baixas, pontuadas por árvores e jardim,
na de temperatura entre uma área mais var em conta a quantidade de árvores e deixam o vento penetrar nas cidades e
urbanizada e uma rural em Presidente vegetação, os pesquisadores defendem amenizam os rigores do clima. “As mu-
Prudente pode chegar a 9 ou 10 °C”, co- a adoção de dados provenientes de le- danças climáticas globais afetam muito
menta a geógrafa. “Em Rennes, ela rara- vantamentos de sensoriamento remoto as cidades, onde mora a maioria das pes-
mente ultrapassa os 5 ºC.” O asfalto e o para determinar os pontos mais críticos soas. Precisamos repensar nosso padrão
concreto absorvem mais calor do que a para o efeito das ilhas de calor. de urbanização”, comenta Nascimento. n

MODELO DE VARIAÇÃO TÉRMICA EM UM MUNICÍPIO


Setores com mais asfalto e concreto são mais quentes do que os trechos arborizados
33,3 ºC

32,8 ºC

32,2 ºC
Temperatura

31,7 ºC

31,1 ºC

30,6 ºC

30,0 ºC

29,4 ºC
Tipo de área

Rural Periferia Comercial Centro Residencial Verde Periférica Rural


FONTE  ROYAL METEOROLOGICAL SOCIETY

PESQUISA FAPESP 331 | 19


Em São Paulo, mulher
se protege com um
guarda-chuva em um
dia quente no inverno
paulistano deste ano

O TERMÔMETRO
DA VIDA
A FOTO  LÉO RAMOS CHAVES / REVISTA PESQUISA FAPESP  INFOGRÁFICO  RODRIGO CUNHA / REVISTA PESQUISA FAPESP  ILUSTRAÇÃO  MARÍLIA NAVICKAITE
s ondas de calor no verão expressivo: 8.100 habitantes sucumbiram
europeu de 2022, de mag- a temperaturas que bateram na casa dos
nitude semelhante às que 40 graus Celsius (°C).
Variações bruscas de se repetem agora naquelas O número de mortes na Europa, uma
latitudes, foram responsá- das áreas mais ricas do planeta, impres-
temperaturas podem veis pela morte de cerca siona por causa de episódios de calor in-
de 61.600 pessoas entre o tenso. Não se pode esquecer que a região
provocar a morte final de maio e o início de tem uma população com expressiva pro-
de até 5 milhões de setembro do ano passado, porção de pessoas com mais de 65 anos,
a maioria idosos e mulheres. Essa foi a mais vulneráveis às variações de tempera-
pessoas por ano principal conclusão de um artigo publi- tura, e historicamente preparada e acostu-
cado em julho de 2023 na revista cientí- mada a lidar com os rigores do frio – não
Marcos Pivetta fica Nature Medicine. com o ar sufocante e incêndios florestais
A população dos países mediterrâneos de verões tórridos. A quantidade de óbi-
foi a mais atingida. Apenas na Itália e tos globais anuais associados a variações
na Espanha houve, respectivamente, 18 extremas de temperatura, tanto para cima
mil e 11.300 óbitos, segundo o estudo. “O como para baixo da zona de maior con-
Mediterrâneo é afetado pelo processo forto térmico para o ser humano (de 22
de desertificação. As ondas de calor são a 26 °C), é da ordem de milhões e coloca
amplificadas no verão somente por cau- os números de vítimas fatais no verão
sa dessas condições mais secas”, disse à europeu sob outra perspectiva.
agência de notícias Reuters o climatolo- Não há consenso sobre o total de óbi-
gista espanhol Joan Ballester, do Institu- tos em todo o mundo associados a alte-
to de Saúde Global de Barcelona, autor rações bruscas ou expressivas de tempe-
principal do estudo. ratura. Estudos com diferentes metodo-
Mas na Alemanha, país de clima tem- logias atribuem um número distinto de
perado, o impacto do calor também foi óbitos à dança dos termômetros. Artigo
publicado em 2021 na revista Lancet Pla-
net Health calculou que 5 milhões de MORTES ASSOCIADAS A VARIAÇÕES
pessoas morram anualmente devido a
variações térmicas bruscas ou expres- EXTREMAS DE TEMPERATURA*
sivas. O número equivale a 9,5% de to- Segundo estudo publicado em 2021, quase 9,5%
dos os óbitos globais. Pouco mais de três
dos óbitos globais que ocorrem anualmente estão ligados
quartos das vítimas fatais moram na Ásia
a episódios de frio ou calor excessivo
ou na África (ver quadro ao lado). Cerca
de 10% das mortes se dão em razão do Por qualquer

O
calor excessivo e 90% devido ao frio. EM MILHÕES DE PESSOAS Por frio Por calor alteração térmica

Ásia 2,4 0,2 2,6


utro estudo epidemiológico,
África 1,18 0,02 1,2
coordenado por um grupo
do Instituto de Métrica da Europa 0,65 0,18 0,8
Saúde e Avaliação, da Uni- América 0,33 0,05 0,4
versidade de Washington,
Oceania 0,02 0,004 0,02
nos Estados Unidos, cal-
culou em quase 1,7 milhão Mundo 4,6 0,5 5,1
as vítimas fatais em todo *  OS NÚMEROS FORAM ARREDONDADOS PARA FACILITAR A COMPREENSÃO
o mundo de extremos de FONTE  ZHAO, Q. ET AL. LANCET PLANET HEALTH. 2021

temperatura em 2019. O trabalho saiu


no periódico Lancet em agosto de 2021. sidade de São Paulo (FM-USP), coautor publicado em maio deste ano na revista
O artigo estimou em aproximadamente dos dois estudos publicados na Lancet Science of The Total Environment, Sal-
17.300 as mortes anuais por variações Planet Health, a área de saúde pública diva e colegas da FM-USP estimaram
térmicas no Brasil, dois terços delas as- precisa considerar a previsão climática que as perdas econômicas decorrentes
sociadas ao frio e um terço ao calor. como uma das variáveis que influenciam do exercício do trabalho em condições
Um terceiro levantamento ainda mais sua prática. “Há tempos, a agricultura se térmicas inadequadas (muito quente ou
recente, publicado em maio do ano pas- planeja em função das variações do cli- frio) foram de US$ 105 bilhões no Brasil
sado novamente na Lancet Planet Health, ma, se vai chover mais ou menos, se vai entre 2000 e 2019.
calculou que, entre 2000 e 2019, pouco estar mais quente ou frio”, diz Saldiva. O estudo analisou indicadores de 510
mais de 1,7 milhão de pessoas perderam “Precisamos fazer isso também.” regiões do país e os associou a mortes e
a vida por ano em razão de variações sig- Ele cita um exemplo do que ocorre menor produtividade laboral. Homens
nificativas de temperatura. O estudo foi na capital paulista. Nas jornadas mais entre 15 e 44 anos foram os que tiveram
coordenado por uma equipe australiana quentes, aquelas que entram na casa seu rendimento profissional mais afetado
da Universidade Monash. Independen- dos 2% dos dias mais tórridos de um pelos movimentos radicais do termôme-
temente de qual trabalho esteja mais ano, há um aumento de 50% no número tro. Na região Sul, o frio extremo foi o
perto da realidade, um ponto central e de mortes em São Paulo. Em vez de 200 desconforto térmico de maior impacto.
comum é que calor ou frio em demasia óbitos diários, ocorrem 300. As pessoas No Nordeste e no Centro-Oeste, foi o
mata aos milhões. podem ter um mal-estar súbito devido calor acentuado.
Para o médico patologista Paulo Saldi- às altas temperaturas, acompanhadas às Artigo publicado na revista Science
va, da Faculdade de Medicina da Univer- vezes de baixa umidade e quase sempre em maio deste ano estimou que o fe-
de altas doses de poluição atmosférica. nômeno climático El Niño, que aquece
As condições térmicas adversas inter- as águas superficiais a leste do Pacífico
ferem no metabolismo do corpo humano. Equatorial e altera o padrão de chuvas
Alteram as funções cardiovascular, renal e de temperatura no planeta, promove
e de controle da pressão arterial, além perdas colossais na economia global. O
IDOSOS E CRIANÇAS dos níveis de hormônios como o corti- evento de 1983-1984 estaria associado a

SÃO OS QUE sol e o da tiroide. Os vasos periféricos se


dilatam, podem ocorrer tonturas, o cora-
prejuízos planetários de US$ 4,1 trilhões
e o de 1997-1998 teria atingido US$ 5,7
MAIS SOFREM ção passa a bater mais forte. “Os idosos
e as crianças são os mais expostos a essa
trilhões, algo correspondente a 20% ou
25% da economia norte-americana. Ao
COM OS EXTREMOS situação”, diz o patologista.
Os óbitos são a perda mais extrema
longo deste século, em meio a um cená-
rio de mudanças climáticas, os autores
DE FRIO E CALOR diante de um grande desconforto térmi- do trabalho projetam perdas globais da
co. Há impactos mais sutis, que afetam ordem de US$ 84 trilhões por conta do
de forma menos acentuada a qualida- aparecimento do El Niño, como é o caso
de de vida e levam a prejuízos mate- deste ano. Esse é mais um motivo sério
riais. Em um artigo feito em parceria para incluir as mudanças climáticas na
com o grupo da Universidade Monash, agenda social e da saúde. n

PESQUISA FAPESP 331 | 21


ENTREVISTA Guita Grin Debert

AS VÁRIAS
FASES
DO FEMININO
Estudiosa das questões de gênero e envelhecimento,
antropóloga investiga no momento a pauta do cuidado
e da velhice dependente

Ana Paula Orlandi  |  RETRATO  Léo Ramos Chaves

O
s primeiros dados do Censo De- Debert lecionou no Departamento de An- IDADE 74 anos
mográfico de 2022, divulgados tropologia do Instituto de Filosofia e Ciências
ESPECIALIDADE
pelo Instituto Brasileiro de Geo- Humanas da Universidade Estadual de Cam-
Antropologia
grafia e Estatística (IBGE) em pinas (IFCH-Unicamp), entre 1984 e 2018,
julho, mostram que o país vem quando se aposentou. Mas segue vinculada aos INSTITUIÇÃO
envelhecendo mais rápido do que o previsto. Programas de Pós-graduação em Antropologia Universidade Estadual
A informação não surpreendeu a antropóloga Social e em Ciências Sociais do IFCH, orien- de Campinas (Unicamp)
paulista Guita Grin Debert, uma das pioneiras tando pesquisadores. Além disso, participa
FORMAÇÃO
no campo das ciências sociais no Brasil em do Pagu – Núcleo de Estudos de Gênero, da
Graduação em ciências
estudos sobre a velhice, tema a que se dedica Unicamp, que coordenou entre 2007 e 2009.
sociais (1973), mestrado
há quatro décadas. No ano passado se tornou professora emé-
(1977) e doutorado
A pauta do envelhecimento chamou a aten- rita daquela universidade. De acordo com o
(1986) em ciência
ção da pesquisadora na década de 1980. Na parecer da comissão especial que aprovou a
política na Universidade
época, ela fazia doutorado sobre nacionalis- concessão do título, Debert contribuiu não
de São Paulo (USP)
mo no Departamento de Ciência Política da apenas para o desenvolvimento de estudos
Universidade de São Paulo (USP). Pouco antes sobre velhice e gênero, como também para
de defender a tese, em 1986, escreveu um ar- a institucionalização das ciências sociais no
tigo a partir de entrevistas que havia realiza- país. A pesquisadora foi, por exemplo, secre-
do, por vontade própria, com oito mulheres tária adjunta da Associação Nacional de Pós-
idosas. Desde então, está imersa na temática. -graduação e Pesquisa em Ciências Sociais
Em 2000, o livro A reinvenção da velhice – (Anpocs), entre 1992 e 1996, e vice-presiden-
Socialização e processos de reprivatização do te da Associação Brasileira de Antropologia
envelhecimento (Edusp, 1999) ficou em ter- (2000-2002). Também integrou a Coordena-
ceiro lugar na categoria Ciências Humanas e ção de Área de Ciências Humanas e Sociais da
Educação do Prêmio Jabuti. Diretoria Científica da FAPESP (2007-2014).

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PESQUISA FAPESP 331 | 23
Atualmente, Debert pesquisa a questão te o curso de ciências sociais, que en-
do cuidado e da velhice dependente. Em tão havia sido transferido para a Cidade
2019 lançou o e-book Desafios do cuidado: Universitária, no campus do Butantã. As
Gênero, velhice e deficiência (Unicamp/ aulas aconteciam em barracões, ainda
IFCH), que organizou com a antropóloga Fui estudar não tinha a atual sede da FFLCH [Fa-
Mariana Marques Pulhez. Viúva do médi- culdade de Filosofia, Letras e Ciências
co Zelman Debert (1940-2021), é mãe de
Paula, psicóloga, e Iara, oftalmologista, e
ciências sociais Humanas]. Foi quando conheci duas
pessoas fundamentais na minha traje-
avó de Tom, de 9 anos. Pouco antes de em-
barcar para um congresso na Costa Rica,
para pensar tória acadêmica: as antropólogas Ruth
Cardoso [1930-2008] e Eunice Durham
recebeu Pesquisa FAPESP no apartamen- [1932-2022]. Elas ministravam aulas in-
to onde vive sozinha, na capital paulista, em formas de críveis e me inspiraram a seguir carreira
para a entrevista a seguir. na antropologia. Eu me formei em 1973.
mudar esse Logo me casei e minha primeira filha,
Onde a senhora nasceu? Paula, nasceu em 1975. Na época eu já
Em Santo André, na Região Metropoli-
tana de São Paulo. Aos 9 anos me mu-
cenário tão estava no mestrado.

dei para a capital com minha família, de


origem judaica. Meus pais chegaram ao desigual que O que pesquisou no mestrado?
Fui orientada por Ruth Cardoso, que
Brasil na década de 1920. Ele veio da Pa- naquele momento estava no Departa-
lestina e ela da Lituânia. Sou a filha mais marca o Brasil mento de Ciência Política da USP. Ado-
velha. Minha irmã, Bila Sorj, é socióloga rava seu senso de humor transgressor,
e professora aposentada da Universida- irreverente. Na pesquisa, analisei dis-
de Federal do Rio de Janeiro [UFRJ]. E cursos de líderes políticos antes do gol-
meu irmão, Ezequiel Grin, é advogado, pe de 1964: Miguel Arraes [1916-2005],
também aposentado. Meu pai tinha o Leonel Brizola [1922-2004], Carlos La-
curso técnico de química e minha mãe cerda [1914-1977] e Adhemar de Barros
concluiu o ginásio [atual ensino funda- [1901-1969]. Investiguei o significado da
mental II]. Eles não fizeram faculdade, palavra “povo” nesses quatro casos. Para
mas valorizavam muito os estudos, que- Lacerda, por exemplo, povo era quem
riam que os filhos estudassem. pagava impostos, enquanto para Arraes
versar, propor ideias e estudar modelos estava nas mãos do povo a capacidade de
O que seus pais faziam? de vida. Era um ambiente muito eferves- lutar e derrotar o imperialismo. Terminei
Minha mãe era dona de casa e meu pai cente, apesar da crescente repressão da o mestrado em 1977.
tinha uma fábrica têxtil, primeiro em ditadura militar [1964-1985]. Na época, o
Santo André e depois em São Paulo. Na curso de ciências sociais funcionava na Na sequência a senhora foi para o Rei-
década de 1970, quando se aposentou, rua Maria Antônia, em Higienópolis, e o no Unido?
virou colecionador de artes plásticas. prédio foi ocupado pelos estudantes em Meu marido, Zelman, era médico. Na
Estava sempre em contato com artis- 1968. Em dezembro daquele ano surgiu época, ele trabalhava com o sanitarista
tas. Aldemir Martins [1922-2006], Cló- a oportunidade de ir estudar na França, Walter Leser [1909-2004], que era en-
vis Graciano [1907-1988] e Alfredo Vol- onde fiquei por volta de três anos. Entrei tão secretário estadual da Saúde de São
pi [1896-1988] iam muito à minha casa, para fazer ciências sociais na Sorbonne, Paulo. Em 1977, Zelman foi fazer uma
mas meu pai adorava visitar os ateliês mas queria mesmo estudar linguística, especialização na Escola de Higiene e
para ver os trabalhos, saber o que esta- disciplina que estava muito em voga na- Medicina Tropical de Londres e levou a
va acontecendo. Eu já era adulta nessa quele momento. Escolhi linguística co- família. Quando eu estava no mestrado,
época e tinha um prazer imenso de estar mo primeira opção e sociologia como havia assistido a uma conferência que
com esses artistas, conversar com eles. segunda. Na época, Paris estava cheia de o [teórico político argentino] Ernesto
brasileiros, muitos eram exilados, mas Laclau [1935-2014] fez em São Paulo, a
Por que foi estudar ciências sociais? também havia gente que estava ali por convite do Cebrap [Centro Brasileiro de
Queria entender melhor a realidade bra- opção, porque não queria viver sob o Análise e Planejamento]. Ele tinha uma
sileira e pensar em formas de mudar esse jugo do regime militar. Até hoje tenho visão muito interessante a respeito do po-
cenário tão desigual que marca o Brasil. amigos daquela época. pulismo, de que havia muitas formas de
Ingressei em 1968, na USP. Dois anos tratar o conceito e não apenas pela chave
antes havia morado em Jerusalém, Is- Quando voltou ao Brasil? da manipulação dos interesses de classe.
rael, quando estudei hebraico e viajei Em 1972. A princípio, para passar um Laclau aceitou orientar minha pesquisa
pelo país. Foi uma experiência muito tempo, ver como estava a situação do de doutorado na Universidade de Essex
interessante, mas que não se compara à país, matar saudade da família, mas aca- [Reino Unido] para estudar o naciona-
minha entrada na faculdade. Ali, era o bei ficando em São Paulo. Como estava lismo no Brasil dos anos 1960, antes do
reino da liberdade onde podíamos con- inscrita na USP, retomei no ano seguin- golpe militar. Um ano depois de chegar a

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Debert, de branco, na
comemoração de sua
livre-docência, em 1997, com
os antropólogos (a partir da
esquerda) Simone Coelho,
Helena Sampaio, Ruth
Cardoso e Gilberto Velho

o golpe de 1964. Minha pesquisa aponta


que ambas as instituições desejavam um
crescimento econômico acelerado para
o Brasil. Além disso, Cuba era um ele-
mento presente nos dois lados. O Iseb
avaliou os dilemas do modelo da revo-
Londres fiquei grávida da minha segun- mas reunia muitas pessoas interessadas lução cubana, enquanto a ESG defendia
da filha, Iara. Por causa disso, eu e meu nessa questão, como a antropóloga Tere- a formulação de uma espécie de Plano
marido resolvemos voltar para o Brasil. sa Caldeira, que no mestrado pesquisou Marshall para que o Brasil não “virasse
movimentos de mulheres em bairros da Cuba”. Eu concluí o doutorado em 1986,
Foi através da companheira de La- periferia paulistana. mas minha cabeça de pesquisadora já
clau, a filósofa e cientista política belga estava em outro lugar.
Chantal Mouffe, que a senhora entrou Mas a senhora não foi por esse caminho
em contato com o feminismo? no doutorado. Quando a senhora se interessou pela
Sim. Laclau trabalhava em Essex, mas Retomei na USP a pesquisa de doutora- questão do envelhecimento?
morava em Londres, assim como eu. do que interrompi na Inglaterra. A tese, Ainda durante o doutorado, na década
Conversávamos muito no trem, no tra- também orientada por Ruth Cardoso, foi de 1980. Como disse, vários orientandos
jeto de ida e volta. Tínhamos uma ótima um desdobramento do mestrado. Estu- de Ruth Cardoso estavam trabalhando
relação e morávamos perto. Ele costuma- dei o Iseb [Instituto Superior de Estudos a questão de gênero e eu estava muito
va nos convidar para jantares em sua ca- Brasileiros], que era alinhado à esquerda, interessada nessa temática. Mas preci-
sa. Chantal estava muito envolvida com e a Escola Superior de Guerra [ESG], po- sava terminar a tese, que já estava bem
o feminismo e nesses encontros me dava sicionada à direita, para entender as dis- avançada. Pouco antes de defender a pes-
as dicas, dizendo: “Você não pode dei- putas políticas no país que precederam quisa, entrevistei, por conta própria, oito
xar de ver ou ler tal coisa”. Em Londres mulheres de classe média que tinham 70
as questões de gênero estavam pegando anos ou mais. Algumas delas abordei no
fogo naquela segunda metade dos anos parque Jardim da Luz, no centro de São
1970. Voltei ao Brasil muito entusiasma- Paulo. Outras foram indicadas por ami-
da com essas ideias e vi que as discussões gas, que me recomendavam as próprias
já estavam acontecendo aqui também. avós, por exemplo. Na época, eu estava
na faixa dos 30 anos. Queria entender
Onde, por exemplo?
Minha irmã, que era então professora da Em Londres as a especificidade da situação da mulher
na velhice, momento em que a reprodu-
UFMG [Universidade Federal de Minas ção e o cuidado com os filhos pequenos
Gerais], tinha começado a estudar vio- questões de não eram mais a marca definidora do
lência de gênero e o feminicídio de Ân- ser feminino.
gela Diniz [socialite mineira morta com
quatro tiros, em dezembro de 1976, pe-
gênero estavam Como foi a entrada nesse universo?
lo namorado Raul Fernando do Amaral
Street, o Doca Street, em Búzios, litoral
pegando fogo Entrei cheia de ideias preconcebidas.
Como se sabe, entrevistas fazem parte
do Rio de Janeiro]. Bila é uma das pio- do trabalho dos antropólogos, mas nem
neiras em estudos de gênero no Brasil e, nos anos 1970. sempre rendem um bom material. Nesse
inclusive, chegou a participar das mani- caso, ouvi muitas coisas interessantes.
festações pela condenação do assassino Quando voltei ao Essas mulheres me contaram, por exem-
no início dos anos 1980. Lembro que nes- plo, que se sentiam livres, principalmen-
sa época, década de 1970, Mariza Corrêa Brasil, vi que essas te depois que ficaram viúvas. E que, para
FOTO  ARQUIVO PESSOAL

[1945-2016] e Heloísa Pontes, ambas an- elas, o trabalho doméstico não era um
tropólogas, já pesquisavam feminismo na
Unicamp. E Ruth Cardoso tinha um gru- discussões já símbolo da opressão feminina: poder
realizá-lo mostrava que tinham a auto-
po de estudos de gênero na USP, desde o nomia e a independência que negavam
final dos anos 1970. Não era nada formal, aconteciam aqui o envelhecimento. Na opinião delas, os

PESQUISA FAPESP 331 | 25


homens brasileiros envelheciam de for- contra HIV/Aids no Rio de Janeiro. Fi- voltados para idosos, como as universi-
ma prematura em razão da sua depen- camos amigas. Em 2000 organizamos o dades para a terceira idade.
dência do trabalho feminino. Na época, livro Políticas do corpo e o curso da vida
a socióloga Eva Blay me convidou para [Editora Sumaré], compilação de artigos Essas iniciativas não eram positivas?
apresentar essas entrevistas em forma de apresentados em dois eventos que reali- Sim, no sentido de estimular o convívio
artigo em um seminário que organizou zamos na Unicamp, dois anos antes, com social e transformar o idoso em um su-
sobre histórias de vida na USP, onde le- foco no envelhecimento. Esse período na jeito político. Porém a visibilidade con-
cionava. Logo depois Anne-Marie Guil- Califórnia foi muito gostoso, mas passei quistada pelas experiências inovadoras
lemard, também socióloga, que pesqui- um susto quando um terremoto atingiu e bem-sucedidas fechava o espaço para
sava o tema desde a década de 1970 na São Francisco [a 22 quilômetros de Ber- se discutir situações de abandono e de-
França, perguntou a Ruth Cardoso se ela keley] e deixou mais de 60 mortos na ci- pendência. Essas situações passavam a
conhecia alguém que estava trabalhando dade. Os efeitos do tremor foram brandos ser vistas como consequência da falta de
com velhice no Brasil. Era para falar em em Berkeley, mas, mesmo assim, fiquei envolvimento em atividades motivadoras
um congresso internacional no México, apreensiva, sem saber direito o que fazer. ou da não adoção de formas de consumo
onde aconteceria uma reflexão sobre o e estilo de vida adequados. Na pesquisa
tema em várias partes do mundo. Fui Foi esse estágio de pós-doutorado que que realizei ao longo de mais de 10 anos
para lá apresentar as conclusões do meu originou o livro A reinvenção da ve- ouvi mulheres e homens velhos de várias
artigo. Isso me abriu portas e mergulhei lhice (1999)? classes sociais. Pessoas casadas, viúvas,
nesse assunto desde então. O livro é resultado de mais de 10 anos solteiras, que moravam sozinhas, com
de pesquisa, iniciada com as entrevistas cônjuge, com a família ou em asilo. Re-
Quem pesquisava essa temática no que fiz com as oito mulheres idosas na sumindo, as mulheres tinham medo da
Brasil? década de 1980. Trata-se de uma ver- falta de autonomia, enquanto os homens
Pouca gente nas ciências sociais. A antro- são retrabalhada da minha tese de livre- temiam a perda da lucidez.
pologia, por exemplo, se preocupava com -docência, que defendi em 1997, na Uni-
a situação dos idosos nas ditas sociedades camp. Meu objetivo foi tentar entender Na década de 1980 a senhora também
primitivas, mas não olhava para o con- as novas formas de pensar a velhice que começou a pesquisar violência de gê-
texto urbano e contemporâneo. Uma das emergiam naquele momento e mostrar nero. Como isso se deu?
pesquisadoras que estavam interessadas os conflitos envolvidos na reinvenção do Logo após o doutorado passei a integrar o
nessa temática, com recorte urbano e con- envelhecimento por meio de três atores: Cedac [Centro de Estudos e Documenta-
temporâneo, era a antropóloga Myriam os gerontólogos e outros especialistas, as ção para a Ação Comunitária], criado por
Lins de Barros. Ela defendeu sua disser- pessoas idosas e a mídia. Na década de Ruth Cardoso, Eunice Durham e [o soció-
tação de mestrado “Testemunho de vida: 1980 proliferaram no Brasil programas logo] José Augusto Guilhon Albuquerque,
Um estudo antropológico de mulheres na na década de 1980, em São Paulo. Naquele
velhice”, na UFRJ, em 1980. No meu caso, momento, a socióloga Jacqueline Pitan-
um momento importante aconteceu em guy estava à frente do Conselho Nacional
1989, quando fui fazer pós-doutorado na dos Direitos da Mulher [CNDM], no go-
Universidade da Califórnia, em Berkeley, verno José Sarney [1985-1990]. Ela que-
nos Estados Unidos. Tinha muita coisa ria entender o que acontecia com quem
interessante para ler sobre a velhice na fazia denúncia nas delegacias da mulher,
biblioteca de antropologia. Dentre o ma-
terial que encontrei lá, uma grande ins- Em geral, a que começaram a surgir no país em 1985.
No ano seguinte, Jacqueline contratou o
piração foram os trabalhos do sociólogo Cedac para fazer uma pesquisa, que foi
inglês Mike Featherstone, que discutia tarefa do cuidado realizada por mim e pela antropóloga
como o envelhecimento ativo estava sen- Danielle Ardaillon. Ao longo de 1986 ana-
do constituído na sociedade contemporâ-
nea, impondo a obrigação da juventude.
recai sobre as lisamos processos judiciais envolvendo
estupro, espancamento e feminicídio em
Posteriormente eu o convidei para vários
eventos acadêmicos no Brasil.
mulheres e seis capitais brasileiras, como São Paulo,
Belo Horizonte e Recife, para entender
a lógica dos argumentos da defesa e da
A senhora passou um ano na Califórnia? algumas delas, acusação nos processos penais.
Oito meses. Minhas filhas, que estavam
no início da adolescência, ficaram três inclusive, são O que concluíram?
meses comigo. Elas iam para a escola No caso de estupro, a vítima era coloca-
e eu ficava imersa na biblioteca, lendo
tudo o que podia sobre velhice. Tam-
idosas. Ou seja, da sob suspeita. Ou seja, de que ela teria
provocado a situação ou então inventado
bém conheci muitos pesquisadores, co-
mo Donna Goldstein, antropóloga. Na são idosos o crime para culpar o homem. Em relação
ao espancamento e feminicídio, a legíti-
época, ela fazia doutorado em Berkeley ma defesa da honra do homem era usada
e pesquisou o engajamento de mulheres cuidando de idosos para justificar essas ocorrências. O estu-

26 | SETEMBRO DE 2023
do virou livro, Quando a vítima é mulher 2019 lancei o e-book Desafios do cuidado:
[CNDM, 1987], e foi muito divulgado pelo Gênero, velhice e deficiência [Unicamp/
Conselho. Durante a pesquisa tivemos IFCH], organizado em parceria com Ma-
assessoria de Mariza Corrêa e da antro- riana Marques Pulhez, que foi minha
póloga Maria Filomena Gregori, a Bibia. A velhice orientanda no mestrado e doutorado.
A dissertação de mestrado de Mariza, “Os Trata-se de uma coletânea de artigos,
atos e os autos: Representações jurídicas
de papéis sexuais”, defendida em 1975, na
dependente assinados por pesquisadores estrangei-
ros, que abordam a questão do cuidado e
Unicamp, gerou dois importantes livros:
Os crimes da paixão [Brasiliense, 1981] e
que necessita da velhice dependente no mundo. Entre
outros assuntos discute-se a situação des-
Morte em família [Graal,1983]. Já Bibia sas trabalhadoras oriundas das Filipinas,
fazia na época sua pesquisa de mestra- de cuidadores grande exportadora de cuidadoras para a
do sobre o cotidiano do grupo feminista Europa, Estados Unidos e Japão.
SOS-Mulher, de São Paulo. O trabalho, em tempo
defendido em 1988, na USP, rendeu o li- O feminismo refletiu sobre a velhice?
vro Cenas e queixas [Paz e Terra, 1992].
integral é Acho que não se pensou como deveria,
há uma lacuna até hoje. O feminismo
A senhora já era professora da Unicamp?
Comecei minha carreira de docente tabu em permanece muito focado na fase repro-
dutiva da mulher e é preciso ampliar
na Pontifícia Universidade Católica de essa visão. No livro A velhice: Realidade
São Paulo [PUC-SP] no início dos anos sociedades incômoda, publicado no Brasil em 1970,
1980. Em 1984 me tornei professora da Simone de Beauvoir [1908-1986] fala que
Unicamp, onde sempre foi muito forte
a pesquisa antropológica com viés con-
como a nossa queria quebrar a “conspiração do silên-
cio” em torno desse assunto. Desde en-
temporâneo e urbano. Na época, eu tinha tão, o mundo mudou muito, claro. Hoje
apenas mestrado. Na Unicamp me envol- se fala muito mais da velhice, da velhi-
vi com o Pagu – Núcleo de Estudos de ce ativa, da terceira idade, das pessoas
Gênero, criado em 1993, por pesquisado- idosas com alto nível de autonomia que
ras como Mariza Corrêa, que sempre foi podem participar ativamente de ativi-
um espaço muito interessante de debate. dades de lazer, das universidades para
Ali desenvolvi, entre outros, o projeto te- a terceira idade, mas a velhice depen-
mático “Gênero e corporalidade” [2004- tarefa do cuidado recai sobre as mulhe- dente, que necessita de cuidadores em
-2008], com financiamento da FAPESP. res e algumas delas, inclusive, são idosas. tempo integral, continua sendo um as-
Ao lado da pesquisa, dar aulas é minha São idosos cuidando de idosos. sunto tabu em sociedades como a nossa,
grande paixão. Estou aposentada, mas que cultuam a juventude.
continuo orientando trabalhos na gra- Como surgiu o interesse por esse recorte?
duação e na pós-graduação da Unicamp. Como a população de idosos está cres- O que gosta de fazer nos momentos de
cendo muito, a questão do cuidado pas- lazer?
O que está pesquisando atualmente? sou a ser central [ver Pesquisa FAPESP Meu esporte preferido é a caminhada.
Meu foco hoje é a questão do cuidado. nº 299]. Em 2012 fui contemplada pelo Recentemente li Um defeito de cor [Edi-
No momento, participo do projeto in- programa Erasmus Mundus, financiado tora Record, 2006], de Ana Maria Gon-
ternacional “Who cares? Rebuilding ca- pela União Europeia, para uma especiali- çalves, e fiquei fascinada por esse livro
re in a post-pandemic world”, apoiado zação em estudos de gênero. Isso englo- que acompanha a saga de Kehinde, uma
pela FAPESP, entre outras instituições, bava ministrar aulas na Universidade de menina que é sequestrada na África para
e coordenado por Nadya Araújo Guima- Bolonha [Itália] e realizar uma pesqui- ser escravizada no Brasil no século XIX.
rães, do Departamento de Sociologia da sa de campo naquela localidade. Minha Aqui, ela conquista a liberdade, vê o filho
USP e pesquisadora do Cebrap. Sou uma ideia inicial era fazer uma pesquisa sobre ser vendido pelo pai da criança e volta
das responsáveis pelas análises acerca mulheres que saíam do Peru e do Equa- para a África, já idosa. Em termos cul-
do cuidado de idosos no contexto an- dor para cuidar de idosos na Itália. Mas turais, sou bem eclética. Ouço música
tes, durante e depois da pandemia de quando cheguei lá percebi que o maior erudita e popular. Meus compositores fa-
Covid-19. O projeto, que está em anda- fluxo dessas trabalhadoras vinha do Les- voritos são Gilberto Gil e Chico Buarque.
mento e deve ser concluído em 2025, te Europeu, da antiga União Soviética, No cinema vejo tanto dramas franceses
também conta com pesquisadores do sobretudo da Moldávia. Eram mulheres quanto comédias norte-americanas. Ado-
Reino Unido, Canadá, Colômbia, Fran- muito qualificadas profissionalmente, ro ir ao teatro e também assisto a séries.
ça e Estados Unidos. Além disso, desen- formadas em cursos como engenharia. Gostei muito de Sintonia, porque trata
volvo um projeto financiado pelo CNPq Mas, como ganhavam pouco onde vi- de questões centrais do Brasil contem-
[Conselho Nacional de Desenvolvimento viam, migravam para a Itália em busca porâneo: o crime organizado, a expansão
Científico e Tecnológico], “Velhice e a de melhores salários. Venho pesquisando de religiões evangélicas e a música funk.
responsabilidade familiar”. Em geral, a as questões de cuidado desde então. Em É pura antropologia. n

PESQUISA FAPESP 331 | 27


INDICADORES

AVANÇO
INTERROMPIDO

A
Bases de dados mostram produção acadêmica bra-
sileira levou um tombo
que a produção acadêmica em 2022, de acordo com
dados das duas principais
brasileira caiu pela bases de artigos científi-
primeira vez desde 1996 cos, a Scopus, da editora
Elsevier, e a Web of Scien-
Christina Queiroz ce (WoS), da empresa Cla-
rivate Analytics. Segundo
relatório divulgado no fim de julho pela
Elsevier e pela Agência Bori, autores do
Brasil publicaram 74,5 mil documentos
científicos em 2022, 7,5% menos do que
os 80,5 mil do ano anterior. Só a Ucrânia,
que está em guerra, sofreu um efeito
dessa magnitude. Entre 1996 e 2021, a
produção brasileira havia crescido inin-
terruptamente, embora o ritmo tivesse
desacelerado no início da pandemia. A
análise mostra que 23 países analisados
registraram queda na quantidade de ar-
tigos publicados, como Reino Unido,
Estados Unidos e Alemanha, enquanto
28 aumentaram sua produção, a exemplo
de China, Índia e Paquistão.
A WoS aponta um cenário ainda mais
difícil: 61,2 mil publicações científicas
foram produzidas por autores brasileiros
em 2022, ante 72,9 mil em 2021, uma re-
dução de 16,1%. Com essa queda, maior
que a de 14% do Reino Unido, dos Es-

28 | SETEMBRO DE 2023
90.000

80.000
FREIO NA PESQUISA
70.000
DO BRASIL Todas as áreas

Quantidade de artigos científicos


60.000
do país publicados de 1996 a 2022
– por área do conhecimento

50.000

40.000
Ciências da
natureza

30.000
Ciências médicas

20.000
Engenharias
e tecnologias
Ciências sociais
10.000
Ciências agrárias

Humanidades
0

1995 2000 2005 2010 2015 2020 2022


FONTE  ELSEVIER SCIVAL (2023)

tados Unidos e da Rússia e menor que tarefas, como cuidados com os filhos. buco (UFRPE) as mais afetadas. “Ambas
a de 16,4% da Argentina, a participa- “Mas essa situação se ampliou e acabou são centradas em pesquisas em ciências
ção brasileira na ciência mundial foi de por impactar todos os pesquisadores, agrárias, área mais impactada pela queda
2,78% dos artigos para 2,46%, regredin- resultando no panorama descrito pelo da produção científica nacional”, obser-
do ao patamar em que estava em 2014. relatório”, comentou Cid. O relatório vou. Nos cálculos, o relatório utilizou a
Os resultados das duas bases de dados da Elsevier, intitulado “2022: Um ano ferramenta analítica SciVal para acessar
são diferentes porque elas reúnem um de queda na produção científica para 23 a base de dados Scopus, que abarca cerca
conjunto distinto de revistas científicas países, inclusive o Brasil”, analisou dados de 85 milhões de publicações editadas
indexadas – a Scopus é um pouco mais de todos os países que publicaram mais por mais de 7 mil editoras científicas
ampla e costuma captar mais publica- de 10 mil artigos científicos em 2021, do mundo.
ções feitas no Brasil do que a WoS. totalizando 51 nações. Já em números absolutos, a maior per-
Como a queda atingiu vários países, a Alguns campos do conhecimento fo- da ocorreu nas ciências da natureza, de
FOTO  MIRAVISION / GETTY IMAGES  INFOGRÁFICO  ALEXANDRE AFFONSO / REVISTA PESQUISA FAPESP

principal explicação para o resultado es- ram mais atingidos do que outros. Se- 44.616 artigos em 2021 para 40.964 no
tá na pandemia, que, contudo, alcançou gundo os dados da Scopus, as ciências ano passado. As ciências sociais foram
a comunidade científica brasileira com agrárias registraram 13,7% de queda em as menos afetadas: contabilizaram 12.947
maior intensidade. “A hipótese que con- sua produção científica, a maior, em ter- publicações em 2021 e 12.839 em 2022.
sideramos mais provável no momento é mos proporcionais, entre as áreas, cain- Renato Pedrosa, assessor da FAPESP na
a de que o decréscimo de 2021 para 2022 do de 14.243 para 12.289 artigos entre área de Indicadores de Ciência, Tecnolo-
ocorreu por causa de efeitos da pande- 2021 e 2022. O levantamento também gia e Inovação e pesquisador do Instituto
mia, como os cortes de verbas, a indis- verificou a quantidade de publicações de Estudos Avançados da Universidade
ponibilidade de recursos laboratoriais em universidades e centros de pesquisa de São Paulo (IEA-USP), vê um vínculo
e insumos, os lockdowns e as restrições que tiveram mais de mil artigos científi- entre a queda da produção científica e a
de deslocamento”, afirmou, por e-mail, cos editados em 2021. Foram 35 institui- diminuição de titulações no doutorado
Dante Cid, vice-presidente de relações ções e todas sofreram perdas, com ex- durante a pandemia. Em 2020 e 2021,
acadêmicas da Elsevier para a América ceção da Universidade Federal de Santa foram formados no Brasil cerca de 20
Latina. Segundo ele, uma análise anterior Maria. Estêvão Gamba, cientista de da- mil doutores por ano, ante 24,4 mil em
realizada pela Elsevier durante a pande- dos da Agência Bori, destacou que, das 2019 (ver Pesquisa FAPESP nº 315). “Com
mia constatou que as pesquisadoras eram instituições com quedas na produção, 29 menos doutores formados, houve menor
mais afetadas do que os colegas homens são federais, sendo a Empresa Brasileira produção de teses e artigos científicos em
durante os períodos de confinamento de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) e a 2020 e 2021, que só foi ser detectada pe-
porque se desdobravam em múltiplas Universidade Federal Rural de Pernam- las estatísticas em 2022”, afirma.

PESQUISA FAPESP 331 | 29


O VIGOR DA CHINA
O vigor da pesquisa da China se destaca Unidos nas ciências naturais, que englobam
também em métricas qualitativas. No ano ciências físicas, químicas, biológicas, da
passado, um relatório do Ministério da Terra e ambientais. Os chineses alcançaram
Potência científica asiática Ciência e Tecnologia do Japão com base 19,3 mil pontos no Nature Index nesse campo
se destaca também em em dados da empresa Clarivate Analytics do conhecimento – que avalia a produção em
indicadores de qualidade demonstrou que a pesquisa chinesa foi 82 revistas de alto impacto –, enquanto os
responsável por 27,2% do 1% de artigos norte-americanos ficaram com 17,6 mil
A quantidade de artigos científicos mais citados do mundo, à frente dos Estados pontos. Já nas ciências da saúde, a liderança
publicados pela China cresceu mais de 20% Unidos, com 24,9%. Os dados se baseiam é inequivocamente dos Estados Unidos, que
entre 2021 e 2022, enquanto a dos Estados em médias obtidas entre 2018 e 2020. Já marcaram quatro vezes mais pontos do que
Unidos caiu cerca de 1,6% no mesmo quando se analisam os 10% de artigos mais a China. “A China tem buscado aumentar
período, segundo o relatório da editora citados, a China respondeu por 26,6% das suas publicações internacionais e tem como
Elsevier com a base de dados Scopus. publicações e os Estados Unidos por 21,1%. alvo principalmente os periódicos mais
O desempenho chinês no pós-pandemia Em junho passado, o banco de dados bem classificados”, disse à Nature Xin Xu,
ampliou a rivalidade científica entre as duas Nature Index divulgou indicadores pesquisadora da área de ensino superior da
principais potências do planeta e deve atualizados sobre os países e as instituições Universidade de Oxford, no Reino Unido.
consolidar a dianteira do país asiático, que mais prolíficos em ciência de alta qualidade Segundo ela, a participação da China nas
já vinha superando o adversário geopolítico e mostrou que o desempenho da China revistas multidisciplinares Nature e Science
em indicadores quantitativos desde 2019. superou pela primeira vez o dos Estados aumentou 26% de 2021 a 2022.

A QUEDA COMPARADA As áreas em que houve maior redução


de titulados, como ciências biológicas e
Redução na produção científica em 20 países entre 2021 e 2022 agrárias, também registraram as perdas
mais expressivas na produção científica.
8% 7% 6% 5% 4% 3% 2% 1% 0 “São disciplinas que sofreram mais com
o fechamento dos laboratórios e a sus-
Suécia pensão de pesquisas de campo durante
mais de um ano na pandemia”, explica
Reino Unido
Pedrosa, que analisou recentemente
Suíça os registros da Web of Science sobre a
queda na produção científica do estado
Irlanda
de São Paulo (ver Pesquisa FAPESP nº
Estados Unidos 330), que foi de 30,6 mil em 2021 para
Áustria
25,1 mil em 2022. Nas ciências agrárias
a retração foi de 23,9%, ante uma média
Alemanha de 18% das demais áreas.
Espanha Curiosamente, bem no início da pan-
demia, houve até um efeito positivo so-
Bélgica
bre a produção científica. Abel Packer,
México coordenador da biblioteca SciELO Bra-
sil, que compreende quase 300 revis-
Itália
tas científicas do Brasil publicadas em
França acesso aberto, explica que entre 2019
Japão
e 2022 foram publicados, respectiva-
mente, 21.223, 22.312, 22.268 e 21.204
Rússia artigos. “Ou seja, tivemos um aumento
Chile de 5% em 2020, mantendo o valor em
2021, seguido de queda de 5% em 2022,
Argentina
quando retomamos o nível de 2019”,
Polônia observa. Segundo ele, as submissões
de manuscritos aumentaram de 90 mil
Rep. Checa
para 110 mil em 2020, ano em que a re-
Ucrânia clusão social foi mais intensa e muitos
Brasil pesquisadores, sem poder sair a campo
e com mais tempo para escrever artigos,
FONTES  “2022: UM ANO DE QUEDA NA PRODUÇÃO CIENTÍFICA PARA 23 PAÍSES, INCLUSIVE O BRASIL” / ELSEVIER / AGÊNCIA BORI debruçaram-se sobre dados que haviam

30 | SETEMBRO DE 2023
coletado antes da emergência sanitária
e publicaram análises a respeito deles. O IMPACTO NAS INSTITUIÇÕES
“Logo, entretanto, as submissões caíram
em relação a 2020, para 92,5 mil em Variação no número de artigos publicados por 35 universidades federais
2021 e 78 mil em 2022, o que refletiu e estaduais e organizações de pesquisa do Brasil entre 2021 e 2022
na produção de 2022 e vai novamente
-20% -15% -10% -5% 0 5%

P
impactar a de 2023”, projeta Packer.
U. F. de Santa Maria
ara Renato Pedrosa, a recu- U. F. de Goiás
peração do Brasil deve ser U. F. do Pará
lenta. “Há uma estabilida- U. F. do Espírito Santo
de na produção brasileira U. F. de Pernambuco
em relação ao ano passado, U. de Brasília
enquanto em outros paí- U. F. de Juiz de Fora
ses há uma recuperação U. F. da Paraíba
mais veloz. E as perdas U. E. do Rio de Janeiro
acumuladas do Brasil nos U. E. de Londrina
últimos dois anos são maiores do que U. F. do Ceará
as da maioria dos países.” Segundo o U. F. de Lavras
relatório da Elsevier, outras nações U. E. de Maringá
exibem fôlego crescente. A Índia, por U. F. de Minas Gerais
exemplo, teve mais de 177 mil artigos U. F. de Mato Grosso do Sul
publicados em 2022 – um aumento de U. F. de São Carlos
19% em relação ao ano anterior. Com U. F. de Uberlândia
isso, superou o Reino Unido e se tornou U. F. da Bahia
o terceiro país com mais publicações, USP
depois da China e dos Estados Unidos. U. F. do Rio Grande do Norte
 Iraque, Arábia Saudita, Emirados U. F. de Santa Catarina
Árabes Unidos e China registraram U. F. de São Paulo
avanços de mais de 20% de 2021 para U. F. do ABC
2022 na publicação de artigos cientí- U. F. Fluminense
ficos. O pesquisador não descarta que U. F. do Rio de Janeiro
o Brasil, atualmente em 14º lugar no Fundação Oswaldo Cruz
ranking de países com maior produção Unesp
científica, perca posições em levanta- Unicamp
mentos futuros. U. F. do Paraná
O documento da Elsevier foi divul- U. T. Federal do Paraná
gado durante a 75ª Reunião Anual da U. F. do Rio Grande do Sul
Sociedade Brasileira para o Progres- U. F. de Viçosa
so da Ciência, que aconteceu em ju- U. F. de Pelotas
lho em Curitiba, servindo de subsídio U. F. Rural de Pernambuco
para o debate sobre o futuro da ciência Embrapa
brasileira e as dificuldades de finan-
ciamento que a comunidade científi- FONTES  “2022: UM ANO DE QUEDA NA PRODUÇÃO CIENTÍFICA PARA 23 PAÍSES, INCLUSIVE O BRASIL” / ELSEVIER / AGÊNCIA BORI

ca enfrentou nos últimos anos. “É um


processo de pelo menos oito anos, mas
que se acentuou de forma grave no úl- O LUGAR DO BRASIL NO MUNDO
INFOGRÁFICOS  ALEXANDRE AFFONSO / REVISTA PESQUISA FAPESP

timo governo, e ainda por cima teve a


pandemia”, disse a presidente da Aca- Participação de publicações científicas
demia Brasileira de Ciências, Helena originadas no Brasil no total mundial
Nader, segundo o jornal O Globo. “É 2,80% 2,78%
uma coisa muito séria e preocupante
2,69%
a diminuição da demanda por gradua- 2,68%
ção e pós-graduação. Isso significa que,
para reverter esse quadro, nós vamos
precisar de muito diálogo e muito tra- 2,46%

balho com os jovens para motivá-los a


voltar para essa área.” n 2018 2019 2020 2021 2022
Colaborou: Fabrício Marques FONTE WEB OF SCIENCE ELABORAÇÃO FAPESP, DPCTA / GERÊNCIA DE ESTUDOS E INDICADORES

PESQUISA FAPESP 331 | 31


GÊNERO

ENTRE
MULHERES

32 | SETEMBRO DE 2023
Redes de apoio buscam ampliar a presença feminina
no empreendedorismo inovador e no sistema
de proteção à propriedade intelectual do país

Carla Zimmerman  |  ILUSTRAÇÕES  Paola Saliby

A
penas 31% dos pedidos de patentes de mais mulheres. A Anprotec encerrou no mês
internacionais continham o nome passado as inscrições de um processo seletivo,
de uma mulher na equipe de pro- cujos resultados devem sair em breve, para sele-
ponentes em 2020, segundo dados cionar 10 profissionais de empresas e instituições
do relatório “The global gender ligadas ao ecossistema de inovação incumbidas
gap in innovation and creativity”, de montar essa rede. “O principal desafio é criar
publicado este ano pela Organi- oportunidades mais igualitárias e promover o
zação Mundial da Propriedade engajamento de mulheres em empreendimentos
Intelectual (Wipo). É certo que tecnológicos”, afirma Rosana Jamal Fernandes,
esse panorama vem melhorando – em 2005, a diretora de empresas da Anprotec, que articula
proporção era bem menor, de 20%. Se o ritmo de a iniciativa. Ela é uma das sócias-fundadoras da
crescimento se mantiver, a equidade de gênero aceleradora de startups Baita, em Campinas. “É
seria atingida somente em 2061, mas é pouco preciso investir mais na participação de mulheres
provável que isso aconteça enquanto as mulheres nas carreiras Stem e em empresas inovadoras.”
continuarem a ser franca minoria em algumas Outras instituições se mobilizam na mesma
carreiras ligadas às engenharias e à ciência da direção. O Instituto Nacional da Propriedade
computação, das quais sai parte dos inventores Industrial (INPI), autarquia federal responsável
e dos profissionais que criam inovações. Uma pelo registro e concessão de marcas, patentes,
série de iniciativas no Brasil capitaneadas por softwares, desenhos industriais, entre outros,
mulheres está tentando reforçar a presença fe- criou recentemente o Comitê Estratégico de
minina no empreendedorismo inovador e na Gênero, Diversidade e Inclusão, com o objetivo
proteção da propriedade intelectual. de implementar políticas que ampliem a parti-
A Associação Nacional de Entidades Promoto- cipação de grupos minoritários, como mulheres
ras de Empreendimentos Inovadores (Anprotec) e negros, entre as pessoas que registram pedidos
associou-se no ano passado ao Female Sci-Tech de patente ou trabalham com proteção à proprie-
Capacity Building Center Talent, plataforma dade intelectual no Brasil (ver quadro).
criada em Beijing, na China, para ampliar a par- A Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), no Rio de
ticipação de mulheres nas chamadas carreiras Janeiro, está elaborando um estudo, que deverá
Stem (ciências, tecnologia, engenharias e ma- ficar pronto em 2024, sobre questões de gênero
temática) e na inovação de base tecnológica. A relacionadas ao registro de patentes da institui-
iniciativa conta com membros de vários países, ção. “Estamos fazendo uma análise aprofundada,
como Canadá, Croácia, Portugal e África do Sul. já que faltam informações e estatísticas relacio-
No Brasil, uma das primeiras ações propostas é nadas ao tema”, diz Carla Maia, coordenadora
a construção de uma rede de talentos femininos de Gestão Tecnológica da Fiocruz. “A ideia é
encarregada de apoiar inventoras e empreende- promover iniciativas direcionadas a inventoras
doras, organizar eventos e estabelecer canais com da fundação e incentivar uma maior participa-
grupos de outros países – o intuito é desmistifi- ção das mulheres na inovação”, complementa.
car conceitos de inovação e atrair a participação Graduada em biologia e biomedicina, Maia já

PESQUISA FAPESP 331 | 33


trabalhou no INPI e na Associação Brasileira de Disparidades de gêne-
Desenvolvimento (ABDE), entidade voltada ao ro em atividades ligadas
desenvolvimento sustentável econômico, social à inovação são um fenô-
e ambiental. Trabalha na Fiocruz desde 2012 meno conhecido. Vários
como analista de gestão de inovação e há cinco trabalhos mostram que a
anos assumiu o cargo de coordenadora. “Não é participação de mulheres ENGAJAMENTO DAS
uma trajetória comum no universo de mulheres
que atuam em áreas da tecnologia e ciência”,
é mais frequente em pa-
tentes apresentadas por MULHERES EM ATIVIDADES
diz ela, referindo-se à forte presença masculina
em cargos de gestão. “Tive a sorte de ter chefes
grupos do que em pedi-
dos feitos por um único
DE PATENTEAMENTO
muito bons, homens e mulheres, que me deram
oportunidades. Precisamos promover esse tipo
inventor e é mais fácil en-
contrar um nome femini-
É MAIOR NAS CIÊNCIAS
DA VIDA, CARREIRA

A
de ambiente igualitário em mais organizações.” no em registros obtidos

médica Patrícia Veras é uma das


por instituições públicas
do que por empresas – em EM QUE A PRESENÇA
pesquisadoras da Fiocruz que já
submeteram pedido de patente ao
uma evidência de que elas
encontram ambientes mais
FEMININA É MARCANTE
INPI: em 2020, ela solicitou o re- amigáveis em equipes e na
gistro de um novo tratamento pa- academia. Um estudo pu-
ra leishmaniose cutânea, doença blicado em 2020, que cor-
causada por um protozoário. Ela relacionou patentes e gê-
testou, nos laboratórios da fun- nero em 11 países latino-americanos, constatou
dação, uma molécula descoberta que o engajamento feminino em atividades de pa-
pelo Instituto Nacional do Câncer, nos Estados tenteamento é maior nas ciências da vida, campo
Unidos, com propriedades para tratar tumores em que as mulheres têm presença marcante na
e parasitas. “Resolvemos analisar a eficácia da carreira científica (ver Pesquisa FAPESP n° 298).
molécula contra leishmaniose, uma doença que “O processo de registro de patente é complexo
atinge uma população negligenciada e está pre- e demorado. O grande gargalo está na transfe-
sente em mais de 80 países, e os resultados foram rência de tecnologia, que é levar a descoberta ao
satisfatórios”, diz Veras. A tecnologia está em fase mercado”, afirma a engenheira química Adriana
de testes laboratoriais e a intenção é transferi-la Faria, diretora-executiva do Parque Tecnológico
para uma empresa de medicamentos interessada. de Viçosa, da Universidade Federal de Viçosa,

MAIS DIVERSIDADE NO SISTEMA DE PROPRIEDADE INTELECTUAL


O Instituto Nacional da Propriedade O cruzamento dos resultados mostra que o propriedade intelectual. O instituto
Industrial (INPI) divulgou em maio um principal grupo de usuários do sistema do também pretende levantar dados mais
estudo sobre aspectos étnicos e de gênero INPI, o equivalente a 40%, é formado abrangentes e estabelecer uma rede de
dos usuários de seus serviços, baseado por homens brancos. O estudo também análise de estatísticas para monitorar
em questionários on-line respondidos por analisou o local de trabalho dos o perfil dos usuários. “Escritórios de
uma amostra de 139 indivíduos que reuniu, respondentes e concluiu que as mulheres patentes de muitos países estão engajados
por exemplo, pessoas que têm algum superam os homens entre os profissionais em ampliar a diversidade no sistema de
ativo depositado na instituição ou que trabalham em grandes empresas, propriedade intelectual, para torná-lo
frequentaram cursos sobre propriedade aquelas com mais de 500 empregados. Elas mais inclusivo e eficiente”, explica
intelectual que ela oferece. Em relação também se concentram em departamentos Rafaela Di Sabato Guerrante, pesquisadora
ao gênero, 57% eram homens e 40% jurídicos. Poucas mulheres negras do INPI e coordenadora do Comitê
mulheres, enquanto 2% não responderam participaram do estudo e elas, em geral, Estratégico de Gênero, Diversidade e
e 1% se declarou não binário. Setenta e nove trabalham com propriedade intelectual em Inclusão da instituição, criado em 2022.
por cento se declaram cisgênero, ou seja, instituições públicas. “O estudo que levantou o perfil étnico e
identificam-se com o gênero designado O estudo foi promovido pela de gênero é um primeiro passo para
quando nasceram, 21% não responderam Coordenação-Geral de Desenvolvimento disseminar nossas ações com públicos
e ninguém se disse transgênero. da Propriedade Industrial, Negócios e hoje minoritários e propor iniciativas
Já em relação à origem étnica, 71% se Inovação do INPI e será usado para de treinamento e mentoria em propriedade
declararam brancos, 21% pardos e pretos, propor estratégias e políticas públicas intelectual endereçadas a mulheres e
1% asiático e 8% não responderam. para ampliar a inclusão no sistema de pessoas negras”, afirma.

34 | SETEMBRO DE 2023
em Minas Gerais. Segundo ela, são necessários de escritórios especializados em patentes. É
conhecimentos para lidar com riscos financeiros importante ampliar essa presença feminina em
e anos de dedicação a um projeto. “Nessa tra- empresas inovadoras e em cargos de liderança”,
jetória, é mais comum vermos homens do que reflete Siqueira. O PI Female vem preparando
mulheres, até porque muitas vezes elas precisam ações como o lançamento de um programa de
lidar com duplas ou triplas jornadas de trabalho mentoria para mulheres que desejam se tornar
e são mães”, afirma. Faria diz que sempre en- empreendedoras ou atuar na área de propriedade
controu ao longo de sua trajetória profissional intelectual, previsto para este ano. “É necessária
mulheres brilhantes em carreiras Stem. “Mas uma mudança de cultura”, explica.
muitas acabam não conseguindo se desenvolver O meio acadêmico também tem incentivado
por questões que envolvem desde dificuldade a participação feminina no empreendedorismo
de viajar a trabalho ou estudo por ter de cuidar e na inovação tecnológica. Em São Paulo, o Ins-
dos filhos”, diz ela, que é casada e mãe de dois per, instituição privada de ensino e pesquisa com
filhos. Em sua visão, trata-se de uma realidade cursos nas áreas de economia, administração,
global. “Em outros países não é tão diferente, direito, engenharias e ciência da computação,
e talvez por isso estejam surgindo iniciativas lançou um programa, o Women in Tech, no fi-
globais para promover a inserção de mulheres nal de 2021, que promoveu treinamentos em li-
no empreendedorismo”, afirma a engenheira, derança para pesquisadoras, empreendedoras e
docente do Programa de Mestrado em Inovação profissionais de carreiras Stem, em parceria com
Tecnológica e Propriedade Intelectual da Uni- o British Council, que tiveram a participação

E
versidade Federal de Minas Gerais. de cerca de 60 mulheres. A iniciativa também
já ofereceu mais de 30 bolsas de estudo para
m março, foi realizado na sede da As- alunas do ensino médio para o curso de inovação
sociação Brasileira da Propriedade e temas ligados à tecnologia do Insper durante
Intelectual (ABPI), no Rio de Janeiro, as férias de julho. Neste ano, deverá ser criado
o 1º Seminário Internacional de Mu- um programa de mentoria para mulheres pa-
lheres em Propriedade Intelectual. ra cargos de lideranças em carreiras relaciona-
O evento foi organizado pelo PI Fe- das à tecnologia. “Precisamos avançar mais na
male, um grupo criado em 2019 pela promoção de equidade nas áreas de ciência e no
empreendedora Jussiane Siqueira, empreendedorismo, já que esses universos ainda
da Inomapi Inovação em Proprieda- possuem uma presença masculina bem maior”,
de Intelectual, empresa dedicada ao registro diz Carolina Fouad, gerente de projetos do Hub
de patentes. Fundado para estimular trocas de de Inovação do Insper, responsável pela criação
experiências e fortalecer a inclusão no setor, o do programa Women in Tech. Ela menciona uma
grupo, que funciona pelo WhatsApp, conta com pesquisa do Sebrae, segundo a qual as mulheres
mais de 300 mulheres hoje, o dobro de quando são donas de apenas 34,4% dos negócios exis-
começou. “Muitas mulheres se formam na uni- tentes no país. “Promover a diversidade trará
versidade e acabam se tornando funcionárias benefícios para a sociedade e o país”, afirma. n

PESQUISA FAPESP 331 | 35


DIVULGAÇÃO DE CIÊNCIA

HOLOFOTES
SOBRE AS
CIENTISTAS

As atrizes Thaís
Medeiros, Julia Ianina
e Cecília Magalhães
encenam a peça
Mary e os monstros
marinhos, sobre a
caçadora de fósseis
inglesa Mary Anning

36 | SETEMBRO DE 2023
Companhia de teatro transforma histórias de mulheres
da ciência em peças infantis e websérie para o YouTube,
com a ajuda de especialistas

Letícia Naísa

Q
uando a bióloga e pedagoga Elaine nacionalidades diversas selecionadas por serem
Ferreira Machado recebeu pe- ecologistas. “A pesquisa surgiu no teatro e a pri-
lo Facebook uma mensagem da meira de todas, Mary Anning, foi uma inglesa
atriz Thaís Medeiros, em 2019, porque queríamos inscrever a peça em um edital
não imaginou que se tratava de da Cultura Inglesa”, conta Medeiros. “Depois que
uma proposta para ver seu objeto estreamos episódios baseados na nossa pesquisa
de pesquisa ganhar vida em um palco de teatro e teatral, a convite do Sesc Consolação, veio a ideia
em um episódio de websérie no YouTube. Fazia de falar sobre mulheres reconhecidas por ação
cinco anos que Machado estudava a vida e a obra ambientalista, e o Itaú Cultural nos convidou
de Maria Sibylla Merian (1647-1717), uma natura- para falar sobre as brasileiras”, relembra a atriz.
lista e ilustradora científica alemã do século XVII No universo das pesquisadoras brasileiras fo-
que publicou livros sobre plantas e insetos com ram escolhidas a arqueóloga Niède Guidon, a
riqueza de detalhes científicos. A forma como arte bióloga e ativista feminista Bertha Lutz (1894-
e ciência se uniam nas pinturas foi um dos fatores -1976), a oceanógrafa Marta Vanucci (1921-2021)
que encantaram a pesquisadora, que escreveu sua e a socióloga e psicanalista Virgínia Leone Bicu-
dissertação sobre o potencial da obra de Merian do (1910-2003). “Estávamos contando histórias
para o ensino de ciências em escolas. Mais tarde, do mundo e percebemos que as brasileiras são
também atraiu as atrizes da Companhia Delas pouco divulgadas, então escolhemos algumas e
de Teatro, fundada em 2001 por Medeiros e seis decidimos quebrar um padrão de homenagear
amigas. Juntas, elas decidiram adaptar as histó- mulheres que já haviam morrido: abrimos a sé-
rias de Merian e de outras mulheres da ciência rie com a Niède, que está viva”, lembra Medeiros.
para os palcos e para o YouTube de uma forma Além de criar e roteirizar histórias, o trabalho da
que fosse acessível não só para adultos leigos em Companhia Delas de Teatro também está atrelado
ciências biológicas, mas também para crianças. à pesquisa. Para alguns dos episódios de Olho má-
Olho mágico é uma websérie que só nasceu gico, as atrizes buscaram a ajuda de especialistas.
por causa da pandemia de Covid-19. Inicialmen- A websérie estreou com Caroline Herschel
te, todas as histórias haviam sido pensadas para (1750-1848), uma astrônoma que foi a primeira
o teatro – uma trilogia de biografias de cientis- mulher a ser paga como cientista na corte britâ-
tas europeias contadas pela Companhia Delas. nica. A história da inglesa Mary Anning (1799-
Duas peças já tinham chegado aos palcos quan- -1847), “a maior caçadora de fósseis do mundo”,
do a pandemia forçou o fechamento dos teatros, segundo a companhia, também foi adaptada para
FOTO  MARIA TUCA FANCHIN

em 2020. O projeto foi então parar no YouTube a série a partir da peça de teatro que montaram
com um formato bem diferente, e cresceu. Com em 2018. Ela viveu no século XIX e, aos 12 anos,
o sucesso dos primeiros vídeos, as três biografias descobriu o primeiro fóssil de ictiossauro, um
viraram 10: três sobre europeias, quatro sobre réptil marinho de 250 milhões de anos, e dedicou
brasileiras e três a respeito de pesquisadoras de a vida a descobrir outros fósseis. “A história dela

PESQUISA FAPESP 331 | 37


parecia um conto de fadas, era muito incrível e leontólogo Luiz Eduardo Anelli, da Universida-
teatral”, conta Julia Ianina, atriz e uma das fun- de de São Paulo (USP), que depois acompanhou
dadoras da Companhia Delas. ensaios e revisou o conteúdo científico da peça.
Tudo foi gravado individualmente com cada “Nossas escolhas são artísticas, então algumas me-
atriz em sua casa durante o período de isolamen- táforas são parte da liberdade poética, como cha-
to mais crítico em 2020, em formato pensado mar um fóssil de ‘tempo petrificado’ ou de ‘carta
para a veiculação pela internet. A websérie foi do passado para o futuro’”, diz Ianina. Os fósseis
inscrita em um edital emergencial da Secretaria usados no cenário são rigorosamente verossímeis:
Municipal de Cultura. “Optamos por um mode- vieram do laboratório de réplicas da USP.
lo diferente daqueles em que as pessoas abriam Com o sucesso de Mary Anning no teatro, o
a câmera e saíam contando as histórias. Era o grupo montou uma nova peça, inspirada em Me-
mais simples de fazer, mas decidimos por uma rian. A naturalista foi uma das primeiras mulheres
produção com edição, trilha sonora e efeitos vi- a estudar ciclos de vida de insetos e o processo
suais”, comenta a atriz Cecília Magalhães, outra de metamorfose de borboletas, além de ser pio-
fundadora da companhia. neira em uma expedição científica para o Novo

O
Mundo. Em 1699, ela viajou para o Suriname, na
formato e a linguagem são os di- América do Sul, acompanhada pela filha mais
ferenciais da websérie, que foi nova, Dorothea Maria, para observar, coletar e
premiada pela Associação Pau- registrar espécies – 132 anos antes de Charles
lista dos Críticos de Arte (APCA) Darwin (1809-1882). “Havia pouquíssimo sobre
e virou objeto de análise do Gru- ela em português, toda a sua obra original é em
po de Pesquisa em Arte, Ciência alemão”, conta Elaine Machado. Com a ajuda de
e Tecnologia (GPACT), de Machado, na Univer- um colega fluente no idioma, ela escreveu a dis-
sidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR). sertação sobre a cientista-artista e publicou, em
No artigo, os pesquisadores classificaram Olho 2018, o artigo encontrado por Medeiros na revista
2
mágico como um “theaweb”, um conceito criado científica História da Ciência e Ensino, que foi o
pelo próprio grupo de pesquisa para uma obra feita pontapé para a montagem de Maria e os insetos.
para a internet, mas que emprega conhecimento, Ela atuou como consultora para a montagem da
técnicas e cultura do teatro – a classificação de peça de teatro e pôde revisar os conceitos cien-
websérie só foi adotada mais tarde. Eles também tíficos antes da apresentação.
consideraram o trabalho como uma obra de di- “Elas conseguiram transformar um artigo cien-
vulgação científica que pode ser utilizada como tífico em arte, fiquei muito emocionada de ver”,
material didático para jovens em idade escolar. diz a bióloga, que se dedica a estudar a linguagem
“Não tínhamos a pretensão de fazer divulgação artística sobre as ciências biológicas e o ensino da
científica, mas vimos que estávamos fazendo quan- biologia no GPACT. Machado viu a estreia de Ma-
do cientistas começaram a ver nossas histórias e ria e os insetos na capital paulista em 2020. “Elas
nos procuravam para comentar”, conta Medeiros. colocam poesia, música e trejeitos na personagem
Antes da emergência sanitária, as histórias de que de forma alguma desmerecem o conteúdo
Maria Sibylla Merian e Mary Anning ocuparam científico, não caem em um estereótipo sobre
os palcos de teatro em São Paulo. Mary e os mons- o conhecimento científico e sobre cientistas.”
tros marinhos estreou em 2018 e foi premiada no Para Machado, é importante que a divulga-
22° Cultura Inglesa Festival. Medeiros, Ianina e ção de ciência e da biografia de pesquisadores
O elenco de Maria e os
Cecília Magalhães fazem o papel da caçadora de seja feita de forma mais acessível. “A linguagem insetos, obra teatral
fósseis, cada uma em uma fase da vida. Para dar da ciência é escrita para o público de pares, que sobre a naturalista alemã
vida à personagem, elas assistiram a aulas do pa- consegue entender um artigo científico, mas não Maria Sibylla Merian

Fósseis cenográficos
FOTOS 1 LIGIA JARDIM  2-5 REPRODUÇÃO

usados em peça
são verossímeis:
vieram do laboratório
de réplicas da USP
Personagens brasileiras da websérie
Olho mágico: a socióloga e psicanalista
Virgínia Leone Bicudo (1910-2003);
Marta Vannucci (1921-2021), especialista
em manguezais; Bertha Lutz (1894-1976),
Ihillandit ut ariaspel bióloga e ativista feminista; e Niède
moluptatet am seque Guidon, arqueóloga (abaixo)
conecatia sincita
dolore volenda estore
videm quis dolupta ea
quodici tiorum a

representação da diversidade dentro do teatro


científico. “É uma linguagem muito rica, que po-
de ser trabalhada em várias dimensões e mostrar,
por exemplo, que a ciência é diversa e não feita
apenas por pessoas brancas e europeias.” Escritor
e ator de mais de 10 peças, Moura, que é negro,
já interpretou o físico Isaac Newton (1643-1727)
no palco. “Um Newton negro não aconteceria no
cinema, mas o teatro permite essa interpretação.”
5
Com Olho mágico, Maria e os insetos, Mary e
é acessível para pessoas leigas naquela ciência, os monstros marinhos e outras criações, a Com-
crianças ou adolescentes”, observa. Segundo Iani- panhia Delas espera inspirar mais meninas e
na, a linguagem teatral ajuda a abordar assuntos mulheres a seguir carreiras tanto em áreas ainda
espinhosos e complexos de um jeito mais fácil. muito mais ocupadas por homens, como a pro-

O
dução e o ensino de ciência, quanto nas artes,
grande trunfo de trabalhos como como o teatro ou o audiovisual. “Essas histórias
o da Companhia Delas e de ou- precisam ser contadas porque são histórias de
tros grupos que abordam temas injustiça”, diz Medeiros. “Essas mulheres não
científicos na arte é aproximar a tiveram reconhecimento em vida e realizaram
figura do pesquisador e da ciência grandes feitos no passado, viveram para a pes-
de um público mais amplo. “Seja quisa e merecem esse espaço.” Mesmo com a
um filme, uma série ou uma peça de teatro, os ato- websérie encerrada, a Companhia Delas conti-
res conseguem personificar o cientista, mostrar nua trabalhando em prol de levar mais ciência,
os dilemas humanos daquela figura”, diz Daniel arte e histórias de mulheres cientistas para me-
Moura, físico e arte-educador no Instituto Federal ninas e mulheres. O foco, agora, está nos palcos
de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo de teatro e, em breve, no formato de podcast. O
(IFSP), que se dedica à criação e ao estudo do canal do YouTube da companhia abriga, além da
teatro científico há quase 20 anos. “Existe muita websérie premiada, outra mais recente chamada
Para assistir
ciência na arte e vice-versa, não consigo separar Pergunte à cientista. n
à websérie tanto as coisas”, opina.
Olho mágico Segundo Moura, obras como as da Companhia
Delas fazem parte de uma educação não formal: Artigos científicos
“Mesmo que o produtor da peça não esteja preo- MACHADO, E. F. et al. O theaweb “Olho Mágico”: Potencialidades
cupado em ensinar ou educar, uma pessoa pode para a divulgação científica e ensino de ciências. Educação Pública
– Divulgação Científica e Ensino de Ciências. On-line. mar. 2022
aprender mais com ela do que em uma sala de MACHADO, E. F. et al. Maria Sibylla Merian: Uma mulher transformando
aula”. Por isso, o pesquisador vê muito valor na ciência em arte. História da Ciência e Ensino. On-line. 30 jun. 2018

PESQUISA FAPESP 331 | 39


BOAS PRÁTICAS
Conselheiros P
esquisadores australianos analisaram a
eficiência e a utilidade de um cargo aca-
dêmico estabelecido nas universidades do

da integridade país em 2007 cuja missão é disseminar boas prá-


ticas científicas: o consultor em integridade de
pesquisa. Atualmente, estão em atividade cerca
Austrália avalia o trabalho de de 750 instrutores, vinculados ao organograma
consultores encarregados de orientar de mais de uma centena de instituições de en-
sino superior na Austrália e recrutados entre os
docentes e alunos sobre condutas cientistas das próprias universidades. Eles estão
responsáveis, um modelo que avança disponíveis para dar orientação a colegas e a es-
em outros países tudantes sobre quaisquer temas relacionados à
integridade, como as normas que regem a auto-
ria de um trabalho científico ou o que fazer em
situações de assédio ou de conflito de interesses.
A função foi estabelecida há 16 anos pelo Código
Australiano para a Conduta Responsável da Pes-
quisa e sua natureza é exclusivamente consultiva.
Eles estão lá para dar conselhos, não para inves-
tigar ou julgar suspeitas de má conduta, embora
sejam obrigados a relatar eventuais violações do
código a instâncias superiores.
De acordo com o levantamento, divulgado no
final de julho na revista Accountability in Re-
search: Ethics, Integrity and Policy, o saldo da ex-
periência australiana é desigual. Um questionário

40 | SETEMBRO DE 2023
respondido por 192 conselheiros mostrou que tante prevalente nas universidades australianas
uma parcela das universidades dá pouco apoio (ver Pesquisa FAPESP n° 316).
aos consultores e eles, embora considerem seu Outra conclusão do estudo é que há muito es-
trabalho produtivo, são menos utilizados do que paço para melhorar. Cerca de 80% dos entrevis-
poderiam. Treze por cento deles disseram não tados concordaram que seu papel deveria ser
ter recebido nenhum tipo de treinamento para mais ativo e incluir a promoção de boas práticas,
exercer a função. “Várias instituições australianas em vez de apenas apoiar pesquisadores com dú-
parecem não estar em conformidade com a políti- vidas. Por volta de dois terços deles corrobora-
ca nacional de integridade”, afirmou o estatístico ram a ideia de que é preciso divulgar de forma
Adrian Barnett, o autor principal do estudo, em mais efetiva o trabalho dos conselheiros para
seu perfil na rede profissional LinkedIn – Bar- estudantes e docentes. Uma limitação apontada
nett é professor da Universidade de Tecnologia pelos autores do estudo é o fato de os mento-
de Queensland e assina o trabalho com colegas res serem cientistas seniores que muitas vezes
das universidades de Newcastle e Bond. O estu- ocupam cargos executivos em suas instituições,
do constatou que duas instituições descumprem como a Pró-reitoria de Pesquisa, circunstância
a legislação e não dispõem de consultores. Em que poderia inibir colegas mais jovens de expo-
outras, o cargo parece ter sido criado apenas co- rem conflitos com receio de sofrer prejuízos na
mo uma formalidade. Um dos entrevistados só carreira. Uma sugestão para aperfeiçoamento do
descobriu que fora nomeado para a função de- sistema, segundo Barnett e seus colegas, seria o
pois de ser procurado pelos pesquisadores para modelo adotado na universidade holandesa de
responder ao questionário. Delft, que dispõe de conselheiros vinculados a
outras instituições.

M
as várias instituições investiram seria- A Austrália foi pioneira ao disseminar a figura
mente nesses profissionais, a exem- dos consultores em integridade científica, mas
plo das universidades James Cook, de não é o único país a adotar esse tipo de estratégia
Queensland, de Newcastle, de Adelaide, entre para promover boas práticas e criar um ambien-
outras. Muitos entrevistados classificaram seu te seguro para discutir dilemas éticos nas insti-
trabalho como rico e produtivo. “Quatro vezes por tuições de pesquisa. Algumas universidades da
ano eu me reúno com meus colegas conselheiros Dinamarca, como a de Aarhus, e do Reino Unido,
e apresentamos casos uns aos outros de forma como a de Glasgow, na Escócia, e o King’s College
anonimizada. E isso é um grande aprendizado”, London, na Inglaterra, também contrataram re-
relatou um deles. Na avaliação dos consultores, centemente consultores desse tipo. A Agência de
a orientação que fornecem é proveitosa: 58% re- Integridade em Pesquisa de Luxemburgo instituiu
lataram que seu trabalho foi útil “na maioria das a figura desses mentores, enquanto o Conselho
vezes” e só 2% disseram não ter sido capazes de Nacional de Integridade Científica da Finlândia
ajudar. Os consultores se dizem pouco requisita- vem treinando consultores encarregados de atuar
dos – em média, dedicam menos de um dia por nas universidades do país.
mês aos afazeres da função. “Não sou consultado Em 2017, a França aprovou uma legislação que
com frequência, mas, quando isso acontece, acre- permitiu às universidades nomear oficiais de
dito que as respostas ajudam quem busca aconse- integridade científica, pesquisadores indepen-
lhamento e evitam que uma situação negativa se dentes, não vinculados aos processos de decisão
agrave”, disse um deles. Alguns se queixaram da nas instituições. Há dois anos, o trabalho desses
complexidade da tarefa. “As situações envolvendo oficiais foi regulamentado: eles estão incumbidos
desequilíbrios de poder costumam ser extrema- de promover condutas responsáveis de pesqui-
mente complicadas”, afirmou um dos consultores. sa, de monitorar eventuais desvios e de notificar
O relato dos conselheiros permitiu identificar casos suspeitos à direção da instituição. Em um
os temas em que alunos e pesquisadores mais ca- estudo publicado neste ano também na revista
recem de orientação. O assunto mais corriquei- Accountability in Research Ethics, Integrity and
ro, reportado por 83% dos consultores, envolve Policy, Nicolas Deniau, da Université de Versail-
quem deve assinar como autor um artigo cientí- les Saint-Quentin-en-Yvelines, entrevistou 11
fico – e situações em que a atribuição de autoria oficiais de integridade escolhidos recentemente
FOTO VALERII EVLAKHOV / GETTY IMAGES

é duvidosa. Em seguida, aparecem desafios re- por escolas médicas francesas e concluiu que eles
lacionados ao trabalho em colaboração, além de desempenham sua missão de forma ativa. “Es-
relatos de práticas questionáveis, de conflitos de ses oficiais enfatizam seu papel independente e
interesse, de supervisão inadequada e de impas- buscam ser facilitadores de uma condução res-
ses no compartilhamento de dados. Já o tema de ponsável da pesquisa”, escreveu Deniau. Segundo
interesse menos frequente foi o assédio sexual, o autor, os resultados obtidos são animadores e
provavelmente porque há outras instâncias en- evidenciam o impacto potencial dos oficiais na
carregadas de lidar com o problema, que é bas- promoção da integridade. n Fabrício Marques

PESQUISA FAPESP 331 | 41


Reitor de Stanford renuncia após investigação
de manipulação de imagens

O
neurocientista canadense- várias ocasiões em que teve oportuni- dade de liderar Stanford”. As evidências
-americano Marc Tessier-La- dade de fazê-lo. contra o reitor foram apontadas inicial-
vigne, de 63 anos, renunciou ao O reitor publicou um comunicado mente no PubPeer, um fórum on-line em
cargo de reitor da Universidade Stan- afirmando que pediria a retratação de que é possível publicar comentários so-
ford, que ocupava desde 2016. O anún- um artigo que saiu em 1999 na revis- bre artigos científicos, inclusive de forma
cio seguiu-se à divulgação de um relató- ta Cell e de outros dois divulgados na anônima, e dizem respeito à adulteração
rio de um comitê especial do Conselho Science em 2001. Dois artigos publica- ou duplicação de bandas em resultados
de Curadores da instituição, que avaliou dos na Nature, segundo ele, passarão de testes de western blot, método usado
artigos com indícios de má conduta que por uma correção abrangente. “Estou na biologia molecular para identificar
tinham o reitor como um dos autores – satisfeito pelo fato de o painel ter con- proteínas.
em cinco deles, ele era o autor principal. cluído que não participei de nenhuma Após a renúncia, Tassier-Lavigne se-
Segundo o comitê, foram encontradas fraude ou falsificação de dados científi- guirá trabalhando como docente do De-
evidências de que em ao menos qua- cos”, afirmou o reitor de Stanford, que, partamento de Biologia. Especialista em
tro artigos pesquisadores sob a super- no entanto, reconheceu erros. “Eu de- desenvolvimento do cérebro, suas linhas
visão do neurocientista manipularam veria ter sido mais diligente ao buscar de pesquisa se concentram em causas e
imagens e se envolveram em práticas correções. A revisão do painel identifi- tratamentos de doenças como Parkinson
questionáveis. cou instâncias de manipulação de dados e Alzheimer e de lesões da medula espi-
Embora não existam indícios de que de pesquisa por outras pessoas em meu nhal. Ele começou a carreira na Univer-
Tessier-Lavigne tenha envolvimento laboratório. Embora eu não soubesse sidade da Califórnia, em São Francisco,
direto na manipulação ou mesmo que dessas questões, quero deixar claro que em 1991, e se transferiu para Stanford
soubesse dos problemas antes da publi- assumo a responsabilidade.” em 2001. Em 2003, tornou-se diretor
cação dos artigos, o relatório observou Jerry Yang, presidente do Conselho de científico da empresa de biotecnologia
que ele “não foi capaz de fornecer uma Administração de Stanford, afirmou que Genentech, deixando o cargo em 2011
explicação adequada” sobre por que Tessier-Lavigne deixará o cargo “à luz do para assumir a direção da Universidade
não corrigiu os registros científicos em relatório e seu impacto em sua capaci- Rockefeller, em Nova York.

Militares são punidos por abuso sexual


de pesquisadora na Antártida

D
ois militares da Marinha brasileira foram condenados pelo Superior Tri-
bunal Militar por abusar sexualmente de uma pesquisadora na estação
Comandante Ferraz, base científica brasileira na Antártida que é adminis-
trada pela Arma. Um deles, um oficial superior, foi condenado por ato libidinoso
em área militar e recebeu pena de um ano de detenção. O outro, que pertence ao
quadro de praças, foi condenado a dois anos e meio de reclusão por atentado vio-
lento ao pudor e expulso das Forças Armadas.
Os dois haviam sido absolvidos por quatro votos a um em julgamento realizado
na Auditoria Militar de Brasília, circunscrição judiciária que investiga casos en-
volvendo militares fora do território nacional. Mas o Ministério Público Militar
apelou ao STM, que é composto por um colegiado de 15 juízes, e a decisão foi re-
vertida. O caso está sob segredo de Justiça e os nomes dos condenados e da vítima
não foram divulgados. Casos de assédio e de agressão sexual não são incomuns
nos ambientes isolados das estações de pesquisa na Antártida, onde cientistas,
IMAGEM ALEXANDRE AFFONSO

estudantes e servidores convivem 24 horas por dia e há protocolos para prevenir


importunações. Recentemente, dois relatórios apontaram dimensões desse pro-
blema em bases científicas dos Estados Unidos e da Austrália no continente gelado
(ver Pesquisa FAPESP nº 321). No caso australiano, o documento trouxe relatos de
contatos físicos indesejados, exibição de material ofensivo ou pornográfico, piadas
sexistas, entre outros, nas quatro estações de pesquisa do país.
DADOS Impactos dos resultados
do Censo de 2022

A população do Brasil registrada pelo A revisão do tamanho da população Para os estados com mais de 10 milhões de
Censo de 2022 e divulgada recentemente atingiu todas unidades da federação, à habitantes, o Rio de Janeiro apresentou a
pelo IBGE (203.062.512 pessoas) exceção de Mato Grosso e Santa Catarina. maior superestimação (8,6%). Em seguida
revelou-se 5,5% menor do que a até então As maiores diferenças (acima de 8%) vieram Bahia (6,0%), São Paulo e Rio
utilizada (214.828.540), oriunda das ocorreram nos estados da região Norte, Grande do Sul (5,5%), Minas Gerais (4,6%)
projeções populacionais de 2018, que no Distrito Federal e no Rio de Janeiro e Paraná (2,0%)
tomavam como base a contagem de 2010

Diferença relativa (%) da população residente: Censo de 2022 sobre projeção para 2022
AP RO DF AC AM RJ PA RN ES AL TO PE SE BA MA SP BR RS CE RR MG MS GO PB PR PI MT SC
2,5
1,4

-0,8
-2,6 -2,0
-3,9 -3,4
-5,1 -4,6
-6,3 -6,0 -5,8 -5,5 -5,5 -5,5 -5,4
-6,9 -6,9
-7,9 -7,7 -7,4
-9,0 -8,6 -8,4
-10,0 -9,7

-13,8

-17,9

Os novos valores para a população residente afetam dados utilizados No caso de indicadores de ciência, tecnologia e inovação, há,
para políticas governamentais. Indicadores que tomam a população como por exemplo, os de publicações científicas e o número de doutores
denominador, como o Produto Interno Bruto (PIB) per capita, também titulados por 100 mil habitantes
sofrerão impactos dos novos números populacionais

Publicações científicas e titulação de doutores por 100 mil habitantes, segundo fontes dos dados demográficos

Brasil e unidades da federação com pelo menos 10 milhões de habitantes: 2022

Publicações por 100 mil habitantes Doutores(1) por 100 mil habitantes
Unidade geográfica Projeção Censo Projeção Censo

BR 27,9 29,5 9,6 10,2

SP 53,5 56,6 12,6 13,3

MG 44,1 46,2 10,1 10,5

RJ 52,8 57,8 14,6 16,0

BA 17,5 18,6 4,0 4,3

PR 47,4 48,4 12,8 13,1

RS 62,8 66,4 18,9 20,0

O número de publicações científicas por 100 mil habitantes para o Brasil Em relação à titulação de doutores por 100 mil habitantes, o
passou de 27,9 para 29,5, ao se utilizar a população censitária, e, para comportamento foi semelhante. Nesse caso, São Paulo manteve-se
São Paulo, de 53,5 para 56,6 na quinta posição, nacionalmente, com 13,3 doutores titulados por
100 mil habitantes, acima da média nacional (10,2), mas ganhou
Apesar desse aumento, São Paulo perdeu a terceira posição, uma posição entre aqueles com mais de 10 milhões de habitantes,
nacionalmente, para o Rio de Janeiro (e a segunda posição, entre os superando o Paraná, mas ainda abaixo do Rio Grande do Sul (20,0)
estados com pelo menos 10 milhões de habitantes). A revisão da população e do Rio de Janeiro (16,0) (ver acima)
fluminense foi expressiva, o que implicou aumento do seu indicador,
que passou de 52,8 para 57,8 publicações por 100 mil habitantes

NOTA (1) DADOS REFERENTES A 2021, UMA VEZ QUE OS DE 2022 NÃO ESTÃO DISPONÍVEIS.
FONTES INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE); INCITES, WEB OF SCIENCE, CLARIVATE, DADOS BAIXADOS EM 01/07/2023; MICRODADOS DA BASE SUCUPIRA, CAPES/MEC, BAIXADOS EM JANEIRO/2023
ELABORAÇÃO FAPESP, DPCTA/GERÊNCIA DE ESTUDOS E INDICADORES

PESQUISA FAPESP 331 | 43


IMUNOLOGIA

Em ato suicida, os

PARA FREAR
neutrófilos (azuis e
brancos) liberam seu
material genético
emaranhado (verde)
para o meio externo
durante a sepse

A SEPSE
N
Estudos brasileiros identificam o Brasil, um em cada três leitos
nas unidades de terapia intensiva
ações das células de defesa (UTIs) é ocupado por uma pessoa
com sepse, uma resposta desajus-
que lesam o organismo ao combater tada do sistema de defesa que surge
infecções e propõem estratégias em consequência de uma infecção.
Estima-se que, a cada ano, cerca de
para amenizar os danos 420 mil pessoas sejam internadas
com a síndrome no país e que quase
Ricardo Zorzetto 230 mil morram. Publicados em 2017 na revista
The Lancet Infectious Diseases, esses cálculos
resultam do primeiro estudo que avaliou em uma
amostra representativa das UTIs brasileiras – um
total de 227, de todas as regiões – a frequência
dos casos de sepse e de mortes relacionadas a
ela. Bastante elevada, na casa dos 55%, a taxa
de mortalidade por esse problema no Brasil é
bem superior à de nações mais ricas (26%) e está
estagnada há mais de uma década.
“Hoje a mortalidade por sepse no país é seme- por ter sintomas que podem ser confundidos com
lhante à que havia sido estimada no início dos outros problemas (febre, taquicardia, respiração
anos 2000”, conta o médico intensivista Luciano ofegante e confusão mental). Um levantamento
Pontes de Azevedo, do Hospital Israelita Albert feito anos atrás pelo Ilas com 2.126 pessoas em 134
Einstein (HIAE), que coordenou a pesquisa de municípios brasileiros mostrou que 93% nunca
2017 em parceria com a infectologista Flávia Ri- tinham ouvido falar em sepse e desconheciam o
beiro Machado, da Universidade Federal de São que era preciso fazer, enquanto 98% sabiam o que
Paulo (Unifesp). era infarto, que tem mortalidade 10 vezes inferior
O comportamento da mortalidade observado à da sepse, e que deveriam buscar ajuda médica.
entre adultos não é muito diferente do encontra- “Retardar o diagnóstico e o início do tratamento

A
do entre crianças e adolescentes. A frequência de aumenta o risco de morte”, comenta Souza.
sepse é menor entre elas. Estima-se que ocorram
75 casos em cada 100 mil crianças (ante 290 por lgumas iniciativas já mostraram que
100 mil entre adultos), o que significa 42 mil ca- é possível reduzir a mortalidade por
sos por ano. Mas há quase três décadas a taxa de sepse. De 2004 a 2015, um grupo do
mortalidade permanece em 20%. “Nos anos 1960, Ilas auxiliou 63 hospitais brasileiros
a mortalidade infantil por sepse superava 60%. (25 públicos e 38 privados) a criar
Conseguimos reduzir para 20%, mas depois não equipes para lidar com a sepse e im-
caiu mais”, relata a médica intensivista Daniela de plantar procedimentos desenhados
Souza, do Hospital Universitário da Universidade por uma comissão internacional de
de São Paulo (HU-USP). Ela é a atual presidente especialistas para reduzir os óbitos.
do Instituto Latino-americano de Sepse (Ilas) e São medidas padronizadas que devem ser adotadas
a autora principal do estudo publicado em 2021 nas seis primeiras horas após a internação, como o
na revista The Lancet Child & Adolescent Health monitoramento e o controle da pressão arterial, a
que avaliou a frequência de sepse em UTIs pe- avaliação do nível de oxigenação dos tecidos, a cole-
diátricas brasileiras. ta de sangue para identificar a presença de agentes
Algumas características do sistema de saúde infecciosos e a administração de antimicrobianos.
ajudam a entender esses números. Uma é a falta Em quatro anos de acompanhamento, a taxa de
de atendimento e monitoramento adequados a mortalidade dos hospitais caiu de 54%, em média,
partir do momento em que a pessoa com sepse para 39%, segundo dados publicados em 2017 na
chega ao hospital. Diante da alta mortalidade nas revista Critical Care Medicine. A redução foi maior
UTIs, Azevedo e Machado decidiram investigar e mais duradoura nas instituições privadas, onde
o que se passava nos prontos-socorros, a porta passou de 48% para 27%, e menor (de 61% para
de entrada das internações. Por três dias, eles e 55%) e mais breve nas públicas, que costumam ter
colaboradores registraram os casos suspeitos de menos recursos e leitos de UTI, além de equipes
sepse atendidos no setor de emergência de 74 menores. “Para mudar as taxas atuais, é preciso
instituições de saúde brasileiras. conscientizar a população, os profissionais da
Das 331 pessoas com quadro compatível com saúde, os gestores de hospitais e a administra-
sepse atendidas nos prontos-socorros, só 53% ção pública da relevância do problema”, afirma
foram encaminhadas em até 24 horas para um a presidente do Ilas.
leito de enfermaria ou UTI, onde há condições É uma questão de saúde pública internacional.
melhores de tratar casos graves. Por falta de va- Afinal, calcula-se que 20% das mortes no mundo
gas nas UTIs, 39% dos pacientes com sepse aten- sejam decorrentes de sepse. A cada ano são cer-
didos em instituições públicas permaneceram ca de 49 milhões de casos e 11 milhões de óbitos,
no pronto-socorro durante toda a internação, segundo estimativas publicadas em 2020 na re-
que em alguns casos durou 13 dias, e pouco mais vista The Lancet. Quarenta por cento dos casos
da metade deles (55%) morreu ali mesmo. Nas ocorrem em crianças menores de 5 anos.
instituições particulares, 9% ficaram no setor “A mortalidade por sepse pode ser bastante re-
de emergência, segundo os resultados do traba- duzida no Brasil e em outros países apenas com
lho, publicado este ano na revista Internal and os instrumentos de que dispomos hoje”, afirma
Emergency Medicine. “Tratar casos de sepse em o infectologista Reinaldo Salomão, chefe do La-
pronto-socorro é inadequado. Não há condições boratório de Pesquisa em Sepse da Unifesp e um
IMAGEM  FLAVIO PROTASIO VERAS / USP

de fazer o monitoramento de que esses pacientes dos fundadores do Ilas. Ele fala com a experiên-
necessitam”, afirma Azevedo. cia de quem estuda sepse há mais de 30 anos e
Além do atendimento em instalações inapro- já viu promessas de tratamentos mais eficazes
priadas, os especialistas citam dois outros fato- surgirem e serem descartadas por se mostrarem
res que podem retardar o início do tratamento: a ineficientes. Desde que se interessou pelo tema,
população desconhece o que é sepse e os profis- ainda na residência médica, Salomão testemunhou
sionais da saúde têm dificuldade de identificá-la, o conceito de sepse mudar três vezes.

PESQUISA FAPESP 331 | 45


da como uma disfunção orgânica com risco de
morte causada por uma resposta desregulada do
hospedeiro a uma infecção.
“Essas mudanças foram importantes para in-
corporar novos conhecimentos ao conceito e
direcionar a busca de alvos terapêuticos”, conta
Salomão. “Nesse tempo todo, descobrimos que
os pacientes são heterogêneos e respondem à
infecção de acordo com as características genéti-
cas, a idade e as doenças preexistentes. Também
aprendemos que a sepse envolve a modulação
simultânea de genes que coordenam processos
biológicos de combate à infecção e de outros
que tentam evitar danos aos tecidos”, afirma o
pesquisador, que discute essas ideias em uma
revisão publicada em 2019 no Brazilian Journal
of Medical and Biological Research.
Na Unifesp, Salomão e sua equipe realizam
experimentos com células de defesa isoladas do
sangue de pacientes com sepse com o objetivo
Equipe médica atende Em sua definição mais antiga, que vigorou por de compreender quais fenômenos representam
paciente em UTI, o décadas, a sepse era considerada uma infecção uma resposta disfuncional do organismo – e, em
ambiente mais adequado
para o monitoramento
generalizada. O agente patogênico (bactéria, fun- princípio, deveriam ser combatidos – e quais in-
da sepse go, vírus ou outro microrganismo) se disseminava dicam uma tentativa de adaptação a um ambiente
pelo organismo, que, na tentativa de combatê-lo, hostil e poderiam ser estimulados.
originava uma inflamação que atingia todo o corpo. Em uma das contribuições recentes, o grupo
Essa ideia começou a vir por terra nos anos 1980, verificou que, no início da sepse, as células do
quando se descobriu que moléculas de comuni- sistema imune adotam uma estratégia aparen-
cação (citocinas) liberadas pelas células de defesa temente menos eficiente de produzir energia,
podiam ativar uma inflamação disseminada, mes- mas que favorece a eliminação dos agentes in-

O
mo que a infecção continuasse restrita a um órgão. fecciosos. A biomédica Bianca Lima Ferreira
identificou essa alteração no funcionamento das
peso recaiu, então, sobre a inflamação células ao comparar a produção de proteínas de
e, em 1991, um grupo internacional monócitos e linfócitos extraídos do sangue de
de especialistas propôs o seguinte pacientes em dois momentos – no dia da inter-
conceito para a sepse: uma inflama- nação e uma semana mais tarde.
ção sistêmica que surge em decor- Na ausência de infecção, essas células, as-
rência de uma infecção. Dez anos sim como as demais do corpo, usam a glicose
depois o conceito foi refinado para dos alimentos para produzir energia por meio
caracterizar melhor os níveis de gra- da respiração celular, um processo químico que
vidade e definir sintomas e critérios consome oxigênio e gera 32 moléculas de trifos-
laboratoriais que indicassem o grau de danos aos fato de adenosina (ATP), o combustível celular.
órgãos. Ao testar estratégias para controlar essa Ferreira notou que, já no início da infecção, os
inflamação, no entanto, os médicos perceberam monócitos e os linfócitos das pessoas com sepse
que o fenômeno era bem mais complicado. Havia haviam desligado a respiração celular e produ-
pessoas que, sim, respondiam à infecção com uma ziam energia por meio da glicólise anaeróbica,
inflamação exacerbada. Mas havia outras em que como haviam observado um pouco antes pes-
a resposta inflamatória estava diminuída. Em quisadores do Rio de Janeiro. Embora renda
2016, a sepse passou, então, a ser compreendi- apenas duas moléculas de ATP, esse processo é

49
mais rápido e evita o consumo de ingredientes
que entram na produção de espécies reativas
de oxigênio, compostos usados no combate aos

MILHÕES DE CASOS invasores, e na produção de citocinas, sinaliza-


FOTO  BLOOMBERG / GETTY IMAGES

dores que atraem outras células de defesa para


DE SEPSE OCORREM o local da infecção.
Uma semana mais tarde os monócitos e os lin-
POR ANO NO MUNDO, SEGUNDO fócitos diminuíram o uso da glicólise e da pro-
dução de citocinas, o que pode evitar danos às
ESTIMATIVAS RECENTES células sadias, mostraram os pesquisadores em
11
artigo publicado em 2022 na Frontiers in Immuno-
logy. “Essa desativação parece ser uma tentativa
de retorno à normalidade, e não um esgotamento
da célula, já que a maioria desses pacientes so- MILHÕES DE PESSOAS
MORREM POR ANO POR CAUSA

E
breviveu à sepse”, conta Ferreira.

m outro trabalho, realizado em parceria


com a equipe do imunologista Tom van
DA SÍNDROME, O CORRESPONDENTE
der Poll, da Universidade de Amster- A 20% DOS ÓBITOS MUNDIAIS
dã, nos Países Baixos, o bioinformata
Giuseppe Leite analisou o perfil de
expressão dos genes e da produção
de proteínas de uma gama maior de constatou que a liberação dessas armadilhas de
células de defesa encontradas no san- DNA era um dos mecanismos de lesão nos ór-
gue de pessoas com sepse. Publicados gãos. Sua produção aumenta muito após o início
em 2021 também na Frontiers in Immunology, os da infecção – algo observado também no sangue
resultados indicaram tanto o aumento da ativi- de pessoas com sepse –, assim como os danos aos
dade das células que integram a primeira linha tecidos. A infecção e as lesões só foram controla-
de defesa, como os monócitos e os neutrófilos, das com o uso de um antibiótico associado a uma
quanto a supressão dos linfócitos, células do sis- enzima que degrada o DNA e é usada para tratar
tema imune que entram em ação em um segundo fibrose cística, segundo resultados publicados em
momento de uma infecção. “Mostramos que, na 2016 na revista PLOS ONE. “Essa e outras formas
sepse, os dois fenômenos ocorrem simultanea- de tentar desfazer essas armadilhas estão sendo
mente”, explica Salomão. avaliadas em testes clínicos”, conta Cunha. Seu
Enquanto o grupo da Unifesp trabalha para grupo, que participou da força-tarefa da USP
conhecer a capacidade de resposta das células para estudar a Covid-19, mostrou em um artigo
de defesa, a equipe do imunofarmacologista Fer- publicado no Jornal of Experimental Medicine
nando de Queiroz Cunha, no campus da USP em em 2020 que esse também é o mecanismo por
Ribeirão Preto, investiga como a ação do sistema trás de parte das lesões pulmonares causadas
imunológico, além de destruir o agente causa- pelo novo coronavírus.
dor da infecção, danifica o próprio organismo e Em paralelo à identificação desses mecanis-
agrava a situação. Nas duas últimas décadas, ele mos, o imunofarmacologista José Carlos Alves
e seus colaboradores identificaram ao menos Filho e a biomédica Daniele Nascimento des-
dois mecanismos que lesam os tecidos saudáveis. cobriram duas causas da imunossupressão du-
O primeiro, detalhado em artigos publicados radoura observada nos sobreviventes da sepse.
entre 2006 e 2010, é a produção de óxido nítrico Uma, descrita em 2010 na Critical Care Medi-
(NO), uma molécula altamente reativa que inte- cine, é a proliferação de linfócitos T regulado-
rage com as estruturas das células e as danificam. res, células do sistema imune que suprimem a
Diferentes células do sistema imune sintetizam reposta inflamatória e desativam outras células
NO e o lançam sobre os patógenos. Na sepse, po- de defesa. Tecidos lesionados liberam citocinas
rém, essa produção atinge níveis mil vezes supe- que ativam mecanismos de reparo e estimulam
riores ao normal, o que prejudica o desempenho a multiplicação desses linfócitos. Em 2021, na
das células de defesa, faz baixar drasticamente revista Immunity, a dupla demonstrou que uma
a pressão arterial e avaria as células de órgãos subpopulação de linfócitos B libera altas doses
como o coração (ver Pesquisa FAPESP nos 146 de um composto que desativa os macrófagos,
e 172). Mais recentemente a equipe de Cunha células que englobam e destroem os patógenos.
encontrou um segundo mecanismo: a liberação “Nos experimentos com roedores, esses linfóci-
de armadilhas extracelulares pelos neutrófilos. tos B permaneceram ativos por muito tempo”,
Neutrófilos são as células de defesa muito relata Alves Filho.
abundantes no sangue e uma das primeiras a Apesar dos avanços na compreensão dos me-
migrar para o foco de infecção. Ao encontrar um canismos envolvidos na sepse, o tratamento não
patógeno, o neutrófilo o envolve e lança sobre ele deve mudar tão cedo. Por ora, afirmam os espe-
um banho corrosivo de óxido nítrico. Se a situa- cialistas, o mais eficaz ainda é combater a infec-
ção foge ao controle, sinais do ambiente levam ção com antimicrobianos o mais cedo possível,
o neutrófilo a desenovelar o seu DNA e, em um para evitar que saia do controle, o que já seria
evento explosivo e suicida, lançá-lo embebido em suficiente para reduzir a mortalidade. n
compostos tóxicos sobre os invasores.
Em experimentos simulando a sepse em ca- Os projetos e os artigos científicos consultados para esta reportagem
mundongos, a farmacologista Paula Czaikoski estão listados na versão on-line.

PESQUISA FAPESP 331 | 47


EPIDEMIOLOGIA

Vacina tríplice viral,


produzida
integralmente no
Brasil desde 2004
pela Fiocruz

RITMOS
P
ouco depois de receber em
2016 a certificação inter-
nacional de país livre do
sarampo, o Brasil voltou a

DESIGUAIS
apresentar surtos dessa in-
fecção viral que debilita o
sistema imune, em especial
das crianças, e pode levar à
morte. Foram 9,3 mil casos
em 2018, 20 mil em 2019 e 8,1 mil em
Queda na aplicação da 2020, números muito mais elevados
que os das duas décadas anteriores e
vacina tríplice viral de semelhantes aos dos anos 1990, segundo
dados do Ministério da Saúde. O ressur-
2006 a 2020 foi acelerada gimento recente da doença parece ser
nos municípios mais pobres consequência de um fenômeno que vem
se instalando no país há algum tempo e
Giselle Soares se acelerou nos últimos anos: a queda
nas taxas de vacinação infantil (ver Pes-
quisa FAPESP nºs 270 e 313). Um estudo
FOTO  BERNARDO PORTELLA / BIO-MANGUINHOS

conduzido por pesquisadores do Brasil


e do Reino Unido, publicado no início
de agosto na revista PLOS Global Public
Health, mapeou a evolução da cobertura
da vacina tríplice viral em 5.565 municí-
pios brasileiros – quase a totalidade – e
identificou três fases de declínio entre
2006 e 2020, sempre mais intenso nas
cidades e regiões mais carentes.

48 | SETEMBRO DE 2023
A vacina tríplice viral protege con- 2006-2013 e 2019-2020. A cobertura A epidemiologista Júlia Pescarini, ou-
tra as infecções causadas pelos vírus do do imunizante caiu, respectivamente, tra coautora do artigo, acrescenta mais
sarampo, da caxumba e da rubéola. No 1,59 e 14,1 ppa nos municípios mais ca- um fator: o econômico. “A velocidade de
Brasil, desde 2004, ela é administrada rentes. Nos mais ricos, esses números queda na cobertura da tríplice viral au-
a crianças de até 8 anos em ao menos foram 0,68 e 5,31 ppa. Como resultado mentou em períodos de crise econômica,
duas doses, a primeira delas aos 12 me- dos ritmos distintos, o imunizante foi que coincidem com cortes de investimen-
ses de vida – são indicadas duas doses aplicado, em média, a 92% das crianças tos na área da saúde”, afirma Pescarini,
de reforço para adultos de até 29 anos nas cidades menos carentes em 2020 e pesquisadora da Fiocruz na Bahia e pro-

O
e mais uma dos 30 aos 59 anos. Autori- a 87% nas mais pobres. fessora na Escola de Higiene e Medicina
dades sanitárias internacionais, como a Tropical de Londres. “Nossos dados vão
Organização Pan-americana da Saúde artigo publicado na PLOS ao encontro dos de outros estudos que
(Opas), recomendam que ao menos 95% Global Public Health corro- demonstram que a falta de investimen-
da população seja vacinada para evitar a bora resultados de outros to em unidades básicas de saúde ou em
transmissão dessas doenças. Em 2006, trabalhos que analisaram campanhas de vacinação pode ter leva-
praticamente 100% das crianças brasi- a queda de cobertura vaci- do à piora de vários outros indicadores
leiras haviam tomado a primeira dose nal no país. Em um estudo de saúde. Além disso, o financiamento
da tríplice viral, mas, desde então, esse publicado em 2020 nos Ca- do SUS [Sistema Único de Saúde] é tri-
número vem caindo. dernos de Saúde Pública, o partite, federal, estadual e municipal. Os
De modo geral, a aplicação do imuni- pesquisador Luiz Henri- municípios mais pobres dependem mais
zante diminuiu de 2006 a 2020 ao rit- que Arroyo e colaboradores da Escola de verbas federais e estaduais do que um
mo médio de 1,22 ponto percentual por de Enfermagem de Ribeirão Preto da município rico”, comenta. 
ano (ppa), constatou o grupo coorde- Universidade de São Paulo (USP) ava- Carla Domingues, socióloga e epide-
nado pelos epidemiologistas Maurício liaram a heterogeneidade regional na miologista que coordenou o PNI de 2011
Lima Barreto, da Fundação Oswaldo cobertura de três vacinas (BCG, contra a 2019, levanta outra consequência da re-
Cruz (Fiocruz) na Bahia, e Elizabeth a poliomielite e tríplice viral) no Brasil cessão econômica. “Uma parcela impor-
Brickley, da Escola de Higiene e Medi- entre 2006 e 2016. Eles identificaram no tante da população está desempregada
cina Tropical de Londres, ao analisar os Pará, no Maranhão e na Bahia, estados ou no mercado informal, o que dificul-
dados oficiais do Programa Nacional de nos quais a proporção de crianças que ta a ida aos postos de vacinação. Além
Imunizações (PNI). A queda, no entanto, receberam a vacina tríplice viral dimi- disso, no governo passado deixou-se de
não foi homogênea. O declínio ocorreu nuiu em um ritmo anual mais rápido exigir que a caderneta de vacinação dos
à taxa de 0,78 ppa no período de 2006 a do que no restante do Brasil, aglome- filhos estivesse em dia para que as fa-
2013, pré-crise econômica. Esse ritmo rados de alto risco para o surgimento mílias mais pobres recebessem auxílio
subiu para 2,33 ppa durante a recessão de surtos. Em outro trabalho, publicado econômico”, acrescenta.
econômica e a crise política de 2014 a este ano na Ciência & Saúde Coletiva, a Para o infectologista Julio Croda, da
2019 e saltou para 9,75 ppa em 2019 e epidemiologista Ana Paula Sayuri Sato, Universidade Federal de Mato Grosso
2020, respectivamente, o anterior ao da pesquisadora da Faculdade de Saúde do Sul (UFMS), o incentivo econômico é
pandemia de Covid-19 e o primeiro ano Pública da USP em São Paulo e coau- algo a ser levado em consideração quan-
da crise sanitária mundial. Em 2020, tora do artigo da PLOS Global Public do se avaliam estratégias para retomar
apenas 80% das crianças brasileiras com Health, constatou que a pandemia de a cobertura vacinal no Brasil. “Alguns
1 ano de idade receberam a primeira dose Covid-19 intensificou as disparidades em estudos demonstram que uma forma de
da tríplice viral. saúde no Brasil, reduzindo ainda mais estimular a vacinação é proporcionar
Quando agruparam os municípios pe- a cobertura da vacina contra o sarampo algum tipo de benefício financeiro ou
lo nível de desenvolvimento socioeco- nos municípios com maior vulnerabili- social. Na prática, existe uma forte re-
nômico, aferido pelo Índice Brasileiro dade social. A queda foi acentuada nas lação entre queda de cobertura vacinal
de Privação (IBP), criado pela Fiocruz e regiões Norte e Nordeste, que são mais e renda”, afirma.
pela Universidade de Glasgow, na Escó- pobres, desiguais e com menor cober- Retomar as elevadas coberturas vaci-
cia, os pesquisadores notaram que nos tura da Estratégia de Saúde da Família, nais do passado, no entanto, deve exigir
2.565 municípios mais carentes, que ini- programa em que equipes multiprofis- mais do que investimento econômico. “É
cialmente apresentavam as taxas mais sionais prestam atenção básica à saúde necessário pensar abordagens que levem
elevadas de cobertura vacinal no país, nas comunidades. em consideração as características de
a redução ocorreu de modo mais acele- São várias as possíveis razões para cada localidade e região para formular
rado: 1,64 ppa de 2006 a 2020. Nos 224 explicar a queda na cobertura vacinal. estratégias de enfrentamento da queda
que integravam o grupo menos carente, Da recusa crescente da vacinação à falta de cobertura. A dinâmica da população
todos situados nas regiões Sul e Sudes- de conhecimento dos riscos associados a que vive na região amazônica não é a
te, a queda ocorreu a uma velocidade doenças que podem ser prevenidas com mesma da que mora na cidade de São
2,7 vezes menor (0,61 ppa) no mesmo os imunizantes, além de um esquema de Paulo”, explica Domingues. n
período. As cidades mais pobres tam- vacinação cada vez mais complexo – o
bém enfrentaram um declínio em rit- PNI inclui atualmente 17 imunizantes Os artigos científicos consultados para esta reportagem
mo bem mais acentuado nos períodos no calendário infantil. estão listados na versão on-line.

PESQUISA FAPESP 331 | 49


SAÚDE

PUBERDADE
ANTES
DOS 8 ANOS
Heranças materna e paterna são igualmente relevantes
em tipo de distúrbio genético que leva ao início precoce
de mudanças no corpo de crianças

Laura Segovia Tercic

É
comum os pais se preocuparem por meio da pesquisa científica é en- A comunidade científica buscava as
com o momento em que seus tender os fatores hereditários por trás causas da PPC, como tumores e lesões no
filhos entrarão na puberdade, desse problema, e é o que vem fazendo sistema nervoso central, além de síndro-
um período que envolve mu- o grupo da endocrinologista Ana Claudia mes mais complexas já identificadas. A
danças importantes nas carac- Latronico, do Hospital das Clínicas da ideia de causas genéticas era em grande
terísticas físicas e psicológicas das crian- Faculdade de Medicina da Universidade parte deixada de lado, até que, em 2013, o
ças. Preocupação maior causa a puber- de São Paulo (FM-USP). grupo liderado por Latronico encontrou
dade precoce, uma condição médica rara Há dois tipos de puberdade precoce: defeitos em um gene frequentemente
que afeta menos de 0,5% da população. O central ou periférica. A puberdade pre- associado à condição, o MKRN3, situa-
diagnóstico depende do aparecimento de coce central (PPC) se diferencia da pe- do no cromossomo 15. Agora, o grupo
FOTO  LÉO RAMOS CHAVES / REVISTA PESQUISA FAPESP

características sexuais secundárias, como riférica (PPP) por sua origem no sistema verificou que é tão comum herdar a pu-
mamas e pelos axilares e pubianos, além nervoso central do organismo e é a causa berdade precoce central da mãe quanto
de avanço no desenvolvimento ósseo da mais comum de puberdade precoce. Ela do pai, conforme indica artigo publicado
criança. Quando a puberdade se instala faz com que o eixo entre o hipotálamo em janeiro na revista Journal of Clinical
antes dos 8 anos de idade (em meninas) (que coordena a maior parte das funções Endocrinology & Metabolism.
ou dos 9 anos (em meninos), é prática endócrinas), a hipófise e as gônadas seja Os casos de puberdade precoce nas
comum a recomendação de tratamento acionado antes do tempo, despertando a famílias que Latronico avaliou pulavam
de bloqueio hormonal, que pode ser feito ação dos hormônios sexuais, enquanto gerações: a condição não aparecia em fi-
pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Um na PPP o aumento dos mesmos hormô- lhos e filhas de mulheres portadoras, mas
dos enfoques para abordar essa questão nios independe do hipotálamo. voltava a surgir na geração seguinte. “A

50 | SETEMBRO DE 2023
falta de um padrão claro de transmissão Para a psicóloga Marlene Inácio, que crianças que herdaram a doença direta-
nas famílias dificultou o entendimento da atende principalmente crianças com mente da mãe. Tinano foi encarregada de
puberdade precoce central”, comenta ela idades entre 5 e 12 anos com puberdade fazer uma revisão dos dados e das amos-
sobre a descoberta da influência genética precoce no ambulatório do Hospital das tras já coletadas, totalizando 276 crian-
pelo MKRN3. Seu grupo verificou que Clínicas, as alterações de comportamen- ças com puberdade precoce central do
esse é um caso de imprinting, que acon- to que acompanham o diagnóstico vêm tipo familial. Entre os genes apontados
tece quando a expressão de um gene é tanto das mudanças hormonais quanto como possíveis candidatos para o padrão
silenciada em determinadas circunstân- de aspectos psicossociais. Inácio expli- encontrado, as pesquisadoras não che-
cias. Isso significa que, mesmo presente ca que as crianças com PPC lidam com a garam a uma definição, mas verificaram
no DNA, o gene pode não dar origem à mudança de imagem e com a sensação de que herdar a puberdade precoce central
característica sob o seu comando. isolamento e vergonha em relação às ou- da mãe não é exceção.
Para a PPC causada pelo MKRN3, o tras da mesma idade. “As crianças chegam “Eu via no ambulatório casos em que
que importa é quem transmitiu o gene. Se aqui já com quadros de estresse, ansie- avó, mãe e filha apresentavam os sinto-
veio do pai, os descendentes apresenta- dade e até depressão”, conta a psicóloga. mas, então sabia que não tinham relação

O
rão a doença. Se a mãe transmitiu, o gene com o MKRN3”, conta Latronico. “Não
é silenciado por mecanismos químicos grupo de Latronico se tor- vou negar, eu tinha grandes expectativas
que alteram a ação do DNA e a criança nou referência mundial no de encontrar a causa genética da herança
entra na puberdade em idade normal, assunto quando, em 2017, materna da PPC, como aconteceu com
depois dos 8 ou 9 anos. identificou um segundo o MKRN3 e o DLK1.” Ao mesmo tempo,
O início da puberdade fora do tempo gene causador da puber- ela explica que o estudo de Tinano es-
comum, para mais ou para menos, traz dade precoce, o DLK1, localizado no tabeleceu de forma contundente a rela-
consequências mentais e físicas para a cromossomo 14. Durante um estudo em ção paritária entre as heranças paterna
criança. Tanto a do tipo central quanto parceria com universidades dos Esta- e materna e abriu novas possibilidades
a periférica levam a uma preocupação dos Unidos e da Espanha, envolvendo de investigação.
médica com o crescimento. Isso porque crianças com puberdade precoce que A resposta pode estar nas regiões re-
a circulação antecipada dos hormônios buscaram o ambulatório da USP, o DLK1 gulatórias do genoma, e não em genes
sexuais provoca um surto inicial e acele- apareceu como mais um causador da for- específicos em si. “Ou talvez sejam genes
rado de desenvolvimento na estatura (o ma familial da PPC. Bem mais rara que mitocondriais, que não estão no DNA do
famoso estirão). Com isso, as extremida- a do MKRN3, a mutação no DLK1 está núcleo”, especula Latronico. “Seja como
des dos ossos longos do corpo se fecham associada a um quadro metabólico de for, vemos a continuidade desse estudo
antes da hora e a criança logo para de obesidade na fase adulta e tem transmis- como um futuro próximo.”
crescer. Sem tratamento, a puberdade são exclusivamente paterna. “Isso nos Conhecer as causas genéticas pode
precoce resulta em um adulto com baixa faz perceber que o papel da epigenética trazer benefícios cruciais para a vigilân-
estatura. Os casos de PPC são cerca de 20 é essencial no desenvolvimento e nos co- cia da condição e o início do tratamento
vezes mais comuns em meninas do que mandos de início da puberdade”, afirma o quanto antes. “Explicamos o modo de
em meninos. Além do prejuízo na altura, Latronico, sobre o efeito das condições transmissão às famílias que planejam ter
Latronico cita consequências médicas ambientais na ativação ou inativação de filhos, tentando evitar o mais comum,
como obesidade, hipertensão arterial e genes, que pode ser transmitido de uma que é as crianças chegarem ao ambula-
doenças cardiovasculares. geração a outra. tório quando já é praticamente certeza
Entre os casos de PPC familial, cer- de terem prejuízo de estatura por causa
ca de 40% das crianças têm mutação do avanço da idade óssea”, relata Tinano.
no MKRN3, o que é uma participação O tratamento é baseado em um análo-
significativa, enquanto cerca de 4% são go do hormônio sexual produzido pelo
devido ao DLK1 – falta identificar a ori- hipotálamo, o GnRH, que na puberdade
gem dos outros 56%. As proporções são normal não deveria ser produzido.
semelhantes nos países e etnias já estu- Marlene Inácio também relata me-
dados. Os achados sugerem que genes lhoras nas condições psicológicas pós-
paternos e sujeitos a imprinting têm um -tratamento nas crianças que acompa-
A falta de um papel importante no controle da puber- nha. Ela as descreve como “menos an-
padrão claro dade. Faltava ainda ao grupo da USP en- siosas e menos estressadas” e aponta
contrar a participação dos genes mater- os cuidados até os 12 anos, quando o
de transmissão nos na condição. fármaco deixa de ser administrado, co-
Quando a endocrinologista Flávia Ti- mo fundamentais para a qualidade de
dificultou o nano procurou o laboratório de Latro- vida e maior sociabilidade. n
nico para cursar o doutorado, em 2018,
entendimento encontrou a líder de pesquisa intrigada
Artigo científico
da puberdade com observações de que, além das famí-
MEDEIROS, P. C. de S. et al. Puberdade precoce e as
lias afetadas pelo MKRN3 transmitido
precoce central
consequências emocionais no desenvolvimento infantil.
pela linhagem paterna, havia também Revista Eletrônica Acervo Saúde. v. 13, n. 4. 29 abr. 2021.

PESQUISA FAPESP 331 | 51


ECOLOGIA
Homo sapiens captura uma diversidade de presas
muito maior do que outros 19 grandes carnívoros,
nem sempre para alimentação

Felipe Floresti

C
om uma altura que pode che- mo ambiente em que vive o bufo-real,
gar a quase 80 centímetros o ser humano preda 3.007 espécies de
e 2 metros de uma ponta da vertebrados, nem sempre para comer.
asa a outra, a coruja bufo- Com quase 7,9 bilhões de indivíduos
-real (Bubo bubo) é a maior espalhados por todos os continentes e
ave de rapina noturna do com técnicas de caça e pesca cada vez
mundo e um dos grandes mais eficientes, a espécie humana pro-
predadores do planeta. Em duz um impacto direto sobre 14.663 es-
sua ampla área de distribui- pécies de vertebrados, de acordo com
ção, que inclui quase toda a Europa e a o trabalho, realizado por um grupo in-
Ásia, ela se alimenta de 552 espécies de ternacional de pesquisadores do qual
vertebrados – em especial, pequenos participou o biólogo brasileiro Mauro
mamíferos e aves. Seu cardápio é mais Galetti, da Universidade Estadual Pau-
variado que o de outros 18 grandes caça- lista (Unesp), campus de Rio Claro. A
dores analisados em um estudo publica- variedade de presas do Homo sapiens
do em junho na revista Communications corresponde a quase um terço das 46.755
Biology. A diversidade de presas desse espécies de vertebrados catalogadas e
corujão, porém, fica ainda muito distante avaliadas pela União Internacional pa-

O GRANDE daquela capturada pelo maior predador


da atualidade, o Homo sapiens. No mes-
ra a Conservação da Natureza (UICN)
– no mundo, são conhecidas cerca de

PRE
1

DA
DOR Barco de pesca
descarrega no
mercado de peixe de
Onahama, no Japão
80 mil espécies de vertebrados, o grupo
de animais que inclui os mamíferos, os
répteis, os anfíbios, os peixes e as aves.
“Esse trabalho é um alerta sobre o nosso
papel de enorme predador no planeta”,
afirma Galetti. “Várias das espécies que
exploramos estão entrando em extinção.”
Para ter uma ideia desse poder pre-
datório, os pesquisadores compararam 2 3

a diversidade de presas afetadas pelo Bolsa de pele e papagaio-cinzento criado como animal de estimação
ser humano por meio da caça, da pesca
ou da captura para criação em cativeiro Muitas dessas espécies não são criadas Um estudo conduzido por pesquisa-
ou venda com a consumida pelos gran- em cativeiro e vêm diretamente da na- dores do Instituto de Ciência Weizmann,
des carnívoros na área em que vivem. O tureza”, conta Galetti. em Israel, e publicado no início deste ano
Homo sapiens interfere na vida de 3.202 O estudo identificou também varia- na revista PNAS dá uma dimensão dessa
espécies de vertebrados nos mesmos am- ções no número de espécies exploradas e mudança na distribuição de biomassa no
bientes da África em que os leões caçam na diversidade de uso segundo a localiza- planeta. Somada, a massa de todos os ma-
40 delas. Ou de 2.707 naqueles em que ção geográfica. Nas regiões equatoriais, míferos terrestres totaliza 1,08 bilhão de
as onças-pintadas consomem 9. Nos ma- onde a biodiversidade é maior, como o toneladas. Desse valor, no entanto, apenas
res, a atividade pesqueira humana atinge Sudeste Asiático, mais espécies são ca- 5,6% (60 milhões de toneladas) corres-
10.423 espécies, número 113 vezes maior çadas ou pescadas do que em outras par- pondem à massa de animais silvestres
do que as que servem de alimento para tes do mundo. Os níveis de exploração (terrestres e aquáticos). Por volta de 58%
o tubarão-branco. André Pinassi Antu- foram desproporcionalmente mais altos (630 milhões) são animais domesticados
nes, ecólogo do Instituto Nacional de nas bacias oceânicas da Índia e do norte ou mantidos em cativeiro, como o gado
Pesquisas da Amazônia (Inpa) que não da África e da Eurásia do que no ocea- bovino, e 36% (390 milhões) equivalem
participou dessa pesquisa, avalia com no Austral, no leste e sul da América do à massa total de seres humanos.
cautela as comparações do estudo, que, Norte e nas Américas do Sul e Central. Estudos sobre o uso que o ser humano
apesar das limitações, ajuda a vislum- De acordo com os resultados, enquanto faz das diferentes espécies, segundo os
brar o impacto que o ser humano pode a predação é voltada para a alimentação pesquisadores, são importantes para a
causar na natureza. “Metanálises que nos países asiáticos, o tráfico de animais elaboração de políticas públicas que vi-
usam informações de grandes bancos de é o principal motivo de exploração nos sem à conservação e ao manejo sustentá-
dados refletem mais o conhecimento da países amazônicos. “Tradicionalmen- vel da fauna silvestre. Na avaliação deles,
ciência sobre os ecossistemas do que a te, as pessoas pensam que é a caça ou a olhar para a maneira como os povos origi-
realidade”, afirma Antunes. “Só para dar pesca que prejudicam as espécies. Mas, nários lidaram ao longo de milênios com
FOTOS 1 SOICHIRO KORIYAMA / BLOOMBERG VIA GETTY IMAGES  2 METROPOLITAN MUSEUM OF ART  3 JULIE R. / WIKIMEDIA COMMONS

um exemplo, a onça-pintada caça muito quando vão a uma loja e compram um algumas espécies de animais pode ajudar
mais espécies do que as nove citadas no peixinho para colocar no aquário, tam- a estabelecer formas de exploração não
trabalho”, explica o pesquisador do Inpa. bém podem, sem saber, estar contribuin- nocivas. “Temos que reduzir o consumo
Assim como os outros grandes preda- do para o declínio de espécies silvestres”, de carne bovina, aprender a manejar os
dores, o ser humano caça ou pesca prin- alerta o ecólogo Adriano Chiarello, da animais silvestres de forma sustentável e
cipalmente para se alimentar. Das 14.663 Universidade de São Paulo, campus de repopular as ‘florestas vazias’, senão va-
espécies de vertebrados explorados pelo Ribeirão Preto, que não participou do mos acabar causando uma extinção em

D
Homo sapiens, 55% (8.037) viram comida. estudo da Communications Biology. massa”, afirma Galetti.
Das espécies de peixes marinhos analisa- Um exemplo bem-sucedido de explora-
das no estudo, 72% são alimento huma- e acordo com o trabalho, o ção sustentável é o do pirarucu (Arapaima
no; das espécies de animais terrestres, uso humano coloca sob risco gigas), o maior peixe de escamas de água
39%. Esse, no entanto, não é o único uso. de extinção 5.775 espécies doce. Há menos de uma década, ele estava
Uma fração importante dos vertebrados de vertebrados, o equiva- na lista de espécies ameaçadas de extin-
é explorada para a produção de roupas, lente a 39% das 14.663 es- ção. Unindo o conhecimento científico
medicamentos ou alimentos para outros pécies predadas pelo Homo com o das comunidades tradicionais, os
animais, além da criação como animal sapiens. “Várias delas desa- pesquisadores, em parceria com órgãos
de estimação, entre outras finalidades. parecem por causa do tráfi- governamentais e os moradores da região,
Segundo os autores do estudo, em geral, co, principalmente as aves conseguiram recuperar a população do
os peixes e os mamíferos são utilizados canoras”, diz Galetti. “O ser humano está pirarucu em algumas áreas da Amazônia.
principalmente como alimento, enquan- causando uma defaunação global e subs- “Mostrou-se que é possível fazer o manejo
to as aves, os répteis e os anfíbios são, em tituindo a biomassa de animais silvestres sustentável da espécie e gerar renda para
sua maioria, destinados ao mercado de pela de animais domésticos, usados para as comunidades locais”, afirma Galetti. n
animais de estimação. “É cada vez mais a alimentação ou a criação como pet. Isso
comum as pessoas adquirirem pets exóti- tem consequências enormes para o fun- Os artigos científicos consultados para esta reportagem
cos, como lêmures, iguanas, cobras e aves. cionamento dos ecossistemas.” estão listados na versão on-line.

PESQUISA FAPESP 331 | 53


GEOLOGIA

A LONGA HISTÓRIA
DO VELHO CHICO FOTO  CARLA SIQUEIRA / GETTY IMAGES
Em 90 mil anos, rio São Francisco perdeu curvas,
alinhou-se e aprofundou-se, sob forte impacto
da erosão e das barragens

Carlos Fioravanti

O
rio São Francisco já foi bastante ainda não conseguimos saber”, diz a pesquisadora,
sinuoso, além de mais extenso e desde maio de 2022 na Universidade Federal de
superficial, em nada parecido com Mato Grosso do Sul (UFMS) em Campo Grande.
os cânions de Xingó, formados há Ao descrever as unidades geomorfológicas do rio
centenas de milhões de anos, na em um artigo de janeiro de 2022 na Revista Bra-
divisa entre os estados de Sergipe sileira de Geomorfologia, os geólogos Landerlei
e Alagoas, onde suas águas correm Santos, da Unesp, e Edgardo Latrubesse, da Uni-
hoje entre paredões rochosos com versidade Federal de Goiás (UFG), já haviam ob-
até 50 metros (m) de altura. servado que alguns trechos de planície poderiam
Nos últimos 90 mil anos, em resposta às varia- ter se formado no final do período Pleistoceno,
ções no regime de chuvas e da cobertura vegetal entre 10 mil e 82 mil anos atrás.
em suas margens, mudou bastante a forma do Durante seu doutorado na Unesp de Rio Cla-
também chamado Velho Chico. O rio corta 521 ro, sob orientação do geólogo Mario Assine e do
municípios e tem 2.863 quilômetros (km) de ex- geógrafo da Unifesp Fabiano Pupim, Mescolotti
tensão desde sua nascente, na serra da Canastra, examinou sedimentos coletados de 51 pontos das
em Minas Gerais. margens do rio na Bahia e das dunas, no municí-
Quando a chuva era abundante, como entre 90 pio de Xique-Xique, na Bahia (ver quadro). Ela
mil e 66 mil anos atrás, o rio transportava grandes estudou também fotos aéreas e imagens de saté-
quantidades de sedimentos e escavava o terreno. lites, que exibem o leito antigo do rio – em forma
Se a quantidade de sedimentos aumentava muito, de pequenas ferraduras, abandonado à medida
o rio depositava areias em seu leito e margens, que as águas encontraram caminhos mais fáceis
adquirindo uma forma entrelaçada, com múlti- por onde correr – e ajudaram a reconstituir os
plos canais atuando ao mesmo tempo. Já com terraços (antigas várzeas), que se estendiam além
menos sedimento e chuvas moderadas, formava das antigas margens dos rios.
curvas amplas e sinuosas, chamadas de mean- “Apesar de ser um rio que representa o Nor-
dros, como entre 66 mil e 39 mil anos e entre 19 deste, a vazão do São Francisco parece ser con-
mil e 9 mil anos. Rios meandrantes são comuns trolada pelo sistema de monções da América do
em ambientes tropicais e subtropicais, como o Sul [caracterizado por chuvas intensas no verão e
Purus e Juruá, na Amazônia, os mais sinuosos escassas no inverno], que leva a umidade da Ama-
do mundo, e o Mississipi, nos Estados Unidos. zônia para o Sudeste do Brasil”, comenta Pupim.
O trajeto atual, a cerca de 20 m abaixo da posi- Diferentemente de outros grandes rios, abasteci-
ção antiga, tomou forma por volta de 5 mil anos, dos por afluentes ao longo de todo o curso, o São
de acordo com as análises de sedimentos feitas Francisco recebe a maior parte da água em seu
por pesquisadores das universidades de São Paulo trecho inicial, por meio de afluentes como o rio
(USP), Estadual Paulista (Unesp) e das federais de das Velhas, o maior deles, o Paracatu e o Urucuia.
São Paulo (Unifesp) e de Alagoas (Ufal). “Como já acontecia há milhares de anos, cerca de
Cânions em Canindé A geóloga Patrícia Mescolotti ressalta que a dois terços das águas do rio continuam vindo da
do São Francisco, idade de 90 mil anos é o limite do método usado região das nascentes, em Minas Gerais.” Até o mu-
Sergipe, uma das faces para verificar quando a luz solar incidiu pela úl- nicípio de Januária, em Minas, a menos de mil km
do rio abastecido
principalmente
tima vez sobre os cristais de quartzo na areia das da nascente, o rio já tem quase 70% de seu volume,
pelas águas das serras margens antes de serem cobertas por sedimentos como indicado em um artigo publicado em abril
de Minas Gerais mais recentes. “O rio deve ser mais antigo, mas de 2021 na revista Quaternary Science Reviews.

PESQUISA FAPESP 331 | 55


Em paralelo, o geólogo da USP Cristiano Mazur
COMO UM RIO FAZ SEU PRÓPRIO CAMINHO Chiessi, com sua equipe, examinou o comporta-
mento da bacia hidrográfica do São Francisco por
O São Franscisco escavou rochas, depositou meio da proporção de duas formas distintas de
sedimentos, alinhou-se e aprofundou-se ao longo hidrogênio e carbono em restos de árvores e de
de sua história geológica gramíneas acumulados em sedimentos marinhos

FOTOS 1 WALTER ANTONIO DO LIVRAMENTO / WIKIMEDIA COMMONS  2 PATRICIA COLOMBO MESCOLOTTI INFOGRÁFICO  ALEXANDRE AFFONSO / REVISTA PESQUISA FAPESP
coletados em 2016 a 1.897 m de profundidade a
menos de 1 km da foz, na divisa de Alagoas e Ser-
gipe. As conclusões foram similares às do grupo
1 de Pupim: “As chuvas na bacia de drenagem do rio
São Francisco, principalmente na cabeceira e no
Antes de 90 mil anos atrás
médio curso, provêm majoritariamente da Ama-
Sob chuva abundante,
zônia”, comenta Chiessi. “Não notamos mudanças
o rio transportava muito
marcantes de longo prazo na fonte de umidade.”
sedimento (cascalho)
A distribuição das formas de hidrogênio e car-
e formava canais entrelaçados
bono indicou os momentos de chuvas mais in-
tensas e mais escassas na bacia do São Francisco.
“Quando a estação seca era mais curta, as árvores
ocupavam mais espaço no Cerrado do trecho ini-
cial da bacia do rio. Em épocas de estação seca
2 longa, inversamente, predominavam as gramí-
De 66 mil a 39 mil anos atrás neas”, diz a geóloga da USP Jaqueline Quirino
Com chuvas moderadas Ferreira, principal autora de um artigo publi-
e menos sedimento superficial, cado em março de 2022 na Quaternary Science
o rio ganhou muitas curvas Reviews, detalhando os resultados.
e transportou areias e argilas Uma peculiaridade do Velho Chico é atravessar
três ambientes naturais – Mata Atlântica, Cerrado
e Caatinga. “É uma exceção, porque rios extensos
com uma trajetória aproximada norte-sul ou sul-
-norte geralmente atravessam mais de um tipo de
ambiente natural, como o Paraná, que corta a Mata
3 Atlântica e sul do Brasil e a Argentina”, comenta o
De 18 mil a 9 mil anos atrás geólogo José Cândido Stevaux, atualmente na Uni-
Após estreitar-se e aprofundar-se, versidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS)
o rio era sinuoso, transportava em Três Lagoas, que colaborou com Mescolotti.
e depositava sedimentos O São Francisco tem um dos maiores lagos ar-
finos e areia tificiais do mundo, a represa de Sobradinho, com
4.214 km2, que sustenta a usina do mesmo nome,
1

4
Desde 5 mil anos atrás
O rio se alarga e assume seu
formato atual, menos sinuoso,
e volta a depositar areias
e cascalho

Várzea atual

Várzea jovem
Lagos
Várzea antiga
Dunas
Terraço baixo
Canais e meandros
abandonados Terraço alto

FONTE  MESCOLOTTI, P. C. ET AL. QUATERNARY SCIENCE REVIEWS. 2021


fundidade do rio diminuiu em resposta ao aumento
de vazão causado pela usina hidrelétrica de Xingó,
na divisa de Alagoas e Sergipe, concluída em 1994.
“Antes havia uma capa de sedimentos no fundo do
rio, que fazia ajustes na profundidade de acordo
com o aumento da vazão”, diz ele. Com a repre-
sa, a capa foi removida, as rochas do leito ficaram
expostas e o rio pôde fazer apenas ajustes laterais,
aumentando a largura.
Agora cortadas Já na região entre Propriá, em Sergipe, e Porto
por rios, as dunas
Real do Colégio, em Alagoas, o rio avançou cer-
de Xique-Xique
já formaram ca de 250 m sobre a margem, de 1969 a 2022. “É
uma área única uma taxa de erosão altíssima, cerca de 5 m por
ano”, explica. Segundo ele, a erosão não é contí-
2
nua, mas episódica: “Uma única cheia pode levar

E
embora toneladas de sedimentos”.
DUNAS EM MOVIMENTO
m Propriá, a vazão do rio se manteve,
Com base nas análises de grãos de areia coletadas a até 2 metros de mas aumentou a largura, que passou
profundidade, as dunas de Xique-Xique, na Bahia, que hoje ocupam uma de 600 m para 720 m de largura após
área de 8 mil km2, começaram a se formar em épocas de clima seco, a entrada em operação de Xingó, a
com as areias do São Francisco a pelo menos 150 mil anos atrás, como 150 km de distância do município,
detalhado em um artigo publicado em janeiro na revista Geomorphology. em 1994. Em Carinhanha, sudoeste
“Em diversos trechos as dunas já foram mais extensas e formavam da Bahia, foi a profundidade do rio
uma área única, hoje cortada pelos rios que deságuam no São Francisco”, que passou de 2 m para 3 m após a
diz Patricia Mescolotti, da UFMS. De cada lado vivem espécies distintas construção da barragem de Três
de répteis e mamíferos, que se diferenciaram a partir de uma espécie única. Marias, a 700 km ao sul, também concluída em
As dunas, de até 30 m de altura, movem-se em resposta não apenas 1994. “Os valores encontrados são semelhantes
à areia do rio, que as alimenta, mas também à remoção de vegetação aos de outros sistemas fluviais tropicais, como o
às margens dos rios e à intensidade das secas, argumentaram Santos Tocantins-Araguaia e o Paraná”, observou.
e Latrubesse em um artigo de novembro de 2021 na Geomorphology. Eles Em Piaçabuçu, município alagoano a 10 km da
observaram que as dunas migravam em média 15 metros por ano (m/a) foz, uma proporção incomum de adolescentes e
de 2002 a 2000 e 9,4 m/a de 2000 a 2019. adultos teve hipertensão, cuja causa foi elucida-
Há cerca de 15 anos, a areia das dunas de Geleia cobriu as estradas da em 2017: durante a seca, o mar invadia o leito
e as casas do povoado de Icatu, no município de Barra, na Bahia, forçando do rio e as pessoas consumiam água salobra, sem
seus habitantes a se mudarem para as dunas já assentadas. tratamento. “O mar avança mais facilmente sobre
a foz porque, depois da construção das barragens,
a vazão do rio é controlada pela demanda de ge-
ração de eletricidade”, diz Panta.
no norte da Bahia. Essa e as outras quatro grandes Batizado com seu atual nome em 1501 pelo na-
hidrelétricas (Três Marias, Luís Gonzaga, Xingó vegador italiano Américo Vespúcio (1454-1512) e
e Paulo Afonso) alteram a largura, profundidade, ainda hoje palco de espetáculos como a procissão
velocidade e vazão do rio, e consequentemente a com barcos no início de janeiro em Penedo, Ala-
vida dos moradores das cidades próximas. goas, o São Francisco continua a se transformar em
“Os efeitos das barragens são mais nítidos per- razão das forças tanto humanas quanto naturais.
to da foz e especialmente em três municípios Um dos grandes projetos em andamento é a trans-
de Alagoas – Piranhas, Pão de Açúcar e Traipu posição de suas águas, iniciada em 2007 e inau-
– e um de Sergipe, Propriá”, observa o geógrafo gurada parcialmente em 2022, com a construção
Genisson Panta, doutorando na Universidade de 700 km de canais de concreto para abastecer
Federal de Pernambuco (UFPE) e professor do plantações e moradores do interior do Nordeste.
ensino médio em uma escola pública estadual de “Para dar certo, é preciso planejar direito o
Maceió. Motivado por Stevaux, que conheceu em quanto de água tirar e como distribuir, talvez
um congresso em Fortaleza, no Ceará, ele estu- não tirando em algumas épocas do ano para não
da essas mudanças desde 2019 e as apresentou prejudicar o rio”, comenta Stevaux. “No mundo,
Em Piranhas, Alagoas, em um artigo publicado em janeiro na Journal há centenas de rios com transposição. As barra-
o rio ficou menos of South American Earth Sciences. gens causam efeitos muito piores.”n
profundo em resposta
ao aumento de vazão
Com base em pesquisas de campo e análise de
causado pela usina dados de estações hidrométricas, que medem a Os artigos científicos consultados para esta reportagem estão listados
de Xingó vazão do rio, ele concluiu que em Piranhas a pro- na versão on-line.

PESQUISA FAPESP 331 | 57


ASTROFÍSICA

ESPIRAL
OU
ELÍPTICA?
Inteligência artificial
ajuda a classificar mais de
160 mil galáxias visíveis
Galáxia Antena, no céu do hemisfério Sul
de formato
difícil de classificar Marcos Pivetta

58 | SETEMBRO DE 2023
U
ma equipe internacional – belas estruturas informalmente deno-
liderada por astrofísicos minadas braços.
do Centro Brasileiro de Desprovidas de grandes quantidades
Pesquisas Físicas (CBPF) de gás, as galáxias elípticas normalmen-
classificou o formato de cer- te não formam estrelas novas e se carac-
ca de 164 mil galáxias visí- terizam por exibir uma estrutura mais
veis no céu do hemisfério simples e monótona. Apresentam uma
Sul com o emprego de dois forma redonda ou ovalada e são forma-
algoritmos de inteligência das majoritariamente por estrelas velhas.
artificial desenvolvidos no país. O pri- “As elípticas estão geralmente na região
meiro analisou as imagens e identificou central dos aglomerados de galáxias, en-
objetos que poderiam comprometer a quanto as espirais ficam mais em sua pe-
categorização das galáxias de acordo riferia”, comenta Bom.
com seus contornos, como a presença
de um corpo extremamente luminoso DO MANUAL AO AUTOMÁTICO Exemplos das duas
no campo de visão. Atribuiu ainda a ca- Há poucas décadas, os astrofísicos fa- principais classes
de galáxias, a
da imagem qual era sua probabilidade ziam a classificação de galáxias e de ou- espiral NGC 2525
de ser útil para determinar a forma de tros objetos de forma manual. Olhavam (acima) e a elíptica
uma galáxia. O segundo algoritmo fez uma a uma as imagens à sua disposição Messier 59
a classificação em si desses enormes e chegavam a um veredito. Com a enor-
agrupamentos de bilhões de estrelas a me quantidade de registros de corpos
partir da distribuição e concentração celestes obtidos por diferentes mapea-
dos menores pontos luminosos (pixels) mentos do céu visível, esse processo ar-
que compõem as imagens. Foram usados tesanal foi substituído, ao menos como
no estudo registros das galáxias obtidos primeira abordagem, por classificações
pelo telescópio robótico brasileiro T80S, automatizadas.
em funcionamento no Chile desde 2016. Os avanços na informática e mais re-
Cerca de 98% das galáxias foram clas- centemente nas áreas de inteligência
sificadas em duas grandes classes: 69% artificial e de aprendizado de máquina
como espirais e 29% como elípticas. Os permitem, agora, processar e analisar
outros 2% foram compostos de galáxias milhões de imagens de forma muito rá-
cuja categoria não foi possível determi- pida. “Com os algoritmos, o tempo de tintas dos corpos celestes observados.
nar por diferentes motivos: apresenta- classificação de uma galáxia é de milé- “A maioria dos levantamentos conta com
vam formato irregular, exibiam estrutu- simos de segundo”, diz a astrofísica ita- imagens de quatro a seis bandas dos ob-
ras híbridas que as situavam como per- liana Arianna Cortesi, do Observatório jetos mapeados”, comenta a astrofísica
tencentes às duas grandes categorias ou do Valongo da Universidade Federal do Claudia Mendes de Oliveira, do Institu-
não se encaixavam em nenhuma classi- Rio de Janeiro (OV-UFRJ), outra autora to de Astronomia, Geofísica e Ciências
ficação conhecida. Os resultados foram do estudo. “Dois parâmetros são muito Atmosféricas da Universidade de São
apresentados em um estudo aceito para a importantes para que isso seja possível: Paulo (IAG-USP), idealizadora do T80S
publicação no periódico científico Mon- a resolução e a profundeza das imagens.” e coordenadora do S-Plus. “Nossas ima-
thly Notices of the Royal Astronomical Em outras palavras, o código do algorit- gens contêm muita informação e a inte-
Society. “Nossos testes de validação in- mo só consegue “enxergar” os braços e ligência artificial é uma ferramenta im-
dicam que o grau de acerto com nosso outras estruturas das galáxias porque portante para nos auxiliar nas análises.”
FOTOS 1 ESA / HUBBLE & NASA  2 ESA / HUBBLE & NASA  3 ESA / HUBBLE & NASA, P. COTE

método que usa técnicas da inteligência trabalha com registros de boa qualidade Até agora, o levantamento do S-Plus
artificial para classificar galáxias é de desses objetos celestes. catalogou e divulgou imagens de 21 mi-
98,5%”, comenta o astrofísico Clécio O telescópio T80S trabalha majorita- lhões de objetos celestes. Cerca de 200
Roque de Bom, do CBPF. O pesquisa- riamente para o levantamento Southern pesquisadores, dos quais 60% brasileiros,
dor criou os dois algoritmos usados no Photometric Local Universe Survey (S- participam do projeto. O T80S foi cons-
trabalho e é o autor principal do artigo. -Plus). A iniciativa tem como objetivo truído e opera com financiamento majo-
A configuração de uma galáxia con- mapear metade do céu do hemisfério Sul, ritário da FAPESP. O Conselho Nacional
tém pistas sobre sua história e seu pro- inclusive algumas regiões fora do cam- de Desenvolvimento Científico e Tecno-
cesso de formação. As mais comuns são po de visão de outros levantamentos. O lógico (CNPq), a Financiadora de Estudos
as do tipo espiral, como a Via Láctea. T80S tem um espelho de apenas 80 cen- e Projetos (Finep) e a Fundação de Am-
Sua parte central, denominada bojo, tímetros, mas uma câmera com campo paro à Pesquisa do Estado do Rio de Ja-
abriga uma concentração de estrelas, de visão muito amplo, ideal para varrer neiro (Faperj) também contribuíram para
geralmente mais velhas. Do bojo pro- vastas áreas do céu em pouco tempo. a entrada em operação do telescópio. n
jetam-se fileiras de estrelas novas, fo- Outra particularidade do telescó-
mentadas pela presença de gás frio, que pio é contar com um filtro que produz O projeto e o artigo científico consultados para esta
traçam no espaço linhas curvas abertas imagens em 12 bandas fotométricas dis- reportagem estão listados na versão on-line.

PESQUISA FAPESP 331 | 59


COMPUTAÇÃO

PARA FILTRAR AS FACES DA IA


Brasil, Canadá e países da Europa elaboram
legislação para reduzir os riscos de mau uso de
programas e aplicativos dessa área

Sarah Schmidt

N
os últimos meses, representantes do cativos dos bancos. “As pessoas alegam que não
governo dos 27 países da União Euro- assinaram nenhum documento e não sabiam que
peia, do Canadá e do Brasil trabalha- estavam contratando o serviço”, relata a pesquisa-
ram intensamente para elaborar dire- dora. Os dados integram o Observatório Brasileiro
trizes para o uso seguro de programas de Inteligência Artificial, portal desenvolvido com
e aplicativos que utilizam inteligência o Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto
artificial (IA). O Parlamento europeu BR (NIC.Br), que deve ser lançado ainda neste ano.
aprovou em junho a versão final de O TJ-SP geralmente dá ganho de causa para
um projeto de lei, o AI Act. Caso seja os bancos por considerar que a biometria facial
aprovado pelos países-membros, talvez ainda é uma forma segura de substituir a assinatura do
neste ano, pode se tornar a primeira legislação cliente. Godoy discorda: “É uma tecnologia ainda
sobre IA do mundo. No Brasil, ao menos quatro com alto índice de erro”. Para ela, outro problema
projetos de lei (PL) que procuram criar regras é que pouco se sabe sobre como esses sistemas
sobre o desenvolvimento, a implementação e o operam. “Não há clareza sobre qual empresa é
uso de sistemas de IA tramitam no Congresso contratada para prestar esse serviço, como ele foi
Nacional e devem ser discutidos ainda em 2023. desenvolvido, quais critérios adotam para atestar
A tarefa de estabelecer regras para controlar o se é aquela pessoa ou não. Sem essas informações,
uso dos programas desse tipo é complexa. A IA é difícil para o cidadão contestar os bancos.”
incorporou-se à ciência, ao sistema financeiro, O grupo de Godoy também examinou sistemas
à segurança, à saúde, à educação, à propaganda de reconhecimento facial usados para identificar
e ao entretenimento, na maioria das vezes sem fraudes em descontos para estudante ou idosos
que o usuário perceba. A regulamentação deveria no transporte público de 30 cidades brasileiras
estabelecer um equilíbrio entre reduzir os riscos com mais de 1 milhão de habitantes. Na maioria
de mau uso, evitar a discriminação de grupos mi- delas (60%), o nível de transparência foi consi-
noritários da população e garantir privacidade derado muito baixo, já que os municípios não ex-
e transparência aos usuários. Deveria também punham como eram feitos a coleta e o tratamento
preservar o espaço da inovação, de acordo com das informações sobre os usuários de ônibus e
os especialistas entrevistados para esta reporta- trens nem quais parâmetros são usados para de-
gem. Também não é possível prever todos os ris- tectar fraudes. Os resultados foram publicados
cos que os usos dessas tecnologias podem trazer. em novembro de 2022 nos anais da 11ª Brazilian
“Permanecer no território da incerteza de re- Conference on Intelligent Systems, realizada em
gulamentação pode ser prejudicial para os ci- Campinas, interior paulista.
dadãos”, afirma a advogada Cristina Godoy, da Godoy defende mais transparência nos pro-
Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da Uni- gramas de IA. Mas, para ela, não basta informar
versidade de São Paulo (FDRP-USP). Ela é autora se os aplicativos estão usando as ferramentas:
de um artigo publicado em outubro de 2022 na é preciso também explicitar como funcionam,
Revista USP sobre os desafios da regulação da como processam as informações e como tomam
IA no país. No final de setembro, ela deve apre- decisões. Essas informações ajudariam a evitar a
sentar em um congresso em Belo Horizonte os discriminação contra grupos vulneráveis.
IMAGEM  ALEXANDRE AFFONSO  VIA MIDJOURNEY

resultados iniciais de uma pesquisa sobre o uso Um exemplo: pesquisadores da Universidade


de reconhecimento facial, um tipo de IA, para a Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) anali-
concessão de empréstimos bancários. saram dados da Rede Observatório da Segurança,
No estudo, realizado no âmbito do Centro de que monitorara dados de segurança pública em
Inteligência Artificial (C4AI) da USP, apoiado por oito estados. Eles verificaram que 90% das 151
Imagem gerada pelo IBM e FAPESP, 90% dos autores de 2,3 mil pro- pessoas detidas no país em 2019 com base em
programa de IA
Midjourney para
cessos do Tribunal de Justiça do Estado de São câmeras de reconhecimento facial eram negras,
retratar o conceito de Paulo (TJ-SP) não reconhecem os empréstimos como detalhado em um estudo publicado em ju-
reconhecimento facial aprovados por meio da biometria facial nos apli- lho de 2020 na revista Novos Olhares.

PESQUISA FAPESP 331 | 61


“Ao serem treinados com bases de dados do “Não é possível conceber uma proposta de re-
passado e do presente, os programas de inte- gulação que seja uma bala de prata, igualando
ligência artificial podem muitas vezes repro- a governança para todos os setores”, observa o
duzir ou ampliar padrões de discriminação”, advogado. Segundo Bioni, a solução é criar uma
avalia o advogado Bruno Ricardo Bioni, diretor regulamentação que classifique os sistemas de
da Associação Data Privacy Brasil de Pesquisa IA de acordo com níveis de risco, a abordagem
e membro do Conselho Nacional de Proteção adotada na legislação europeia, sobre a qual a

O
de Dados Pessoais e da Privacidade, órgão con- proposta 2338/23 se estruturou.
sultivo da Autoridade Nacional de Proteção de
Dados (ANPD). AI Act da União Europeia propõe que
Bioni integrou a comissão de especialistas em os sistemas de IA sejam transparentes,
direito digital e civil convocada pelo Senado Fe- rastreáveis, seguros, não discrimina-
deral em março de 2022 para analisar os proje- tórios e respeitem a privacidade dos
tos sobre regulamentação de IA. Um deles, o PL cidadãos, embora as formas de atingir
21/20, foi bastante criticado por ser muito gené- esses objetivos ainda não estejam cla-
rico. Após nove meses de seminários e audiên- ras. Os programas também precisarão
cias públicas, a equipe de juristas apresentou um ser supervisionados por especialistas
relatório de 900 páginas com conceitos e suges- humanos, para evitar que decisões im-
tões de princípios a serem seguidos. Cerca de 20 portantes sejam tomadas inteiramente por uma
páginas serviram de base para outra proposta de máquina. As aplicações serão classificadas de acordo
PL, o 2338/23, apresentado em maio pelo sena- com quatro categorias de risco: inaceitável e, por-
dor Rodrigo Pacheco (PSD-MG), presidente do tanto, sujeitas à proibição; alto; limitado, passíveis
Senado. Em julho, o senador Jorge Kajuru (PSB- de regras mais brandas; e mínimo, sem obrigações
-GO) solicitou ao Senado que os projetos de lei legais adicionais além da legislação existente (ver
similares, como o 5691/19, o 21/20 e o 2338/23, infográfico). Os programas para os carros autôno-
tramitem juntos. “Agora, espera-se que neste se- mos, por exemplo, estão na categoria de alto risco.
gundo semestre o Parlamento possa avaliar esses As aplicações de risco inaceitável incluem os
projetos em conjunto, usando o 2338/23 como programas de IA que classificam as pessoas com ba-
base, para aprovar uma regulamentação para o se em comportamentos ou policiamento preditivo
país”, comenta Bioni. para prever delitos. É o caso de algoritmos como o

OS NÍVEIS DE RISCO DA IA NA EUROPA E NO BRASIL


COMUNIDADE EUROPEIA EXEMPLOS BRASIL EXEMPLOS
Artificial Intelligence Act (IA Act) Projeto de Lei nº 2338/2023

Algoritmos que façam


pontuação social ou
classifiquem os cidadãos com Programas de classificação
INACEITÁVEL PROIBIDOS social ou capazes de
base em comportamento ou
(PROIBIDO) policiamento preditivo manipular o comportamento
de populações
vulneráveis

Sistemas de gestão de
RISCO ELEVADO infraestrutura (transportes,
ALTO RISCO Programas de classificação
educação) e de controle
Serão avaliados antes e Devem ser avaliados automática de estudantes,
de fronteiras ou
depois da comercialização e monitorados antes candidatos a emprego,
assistência jurídica
e durante seu uso pedidos de crédito ou
benefícios da previdência
social, diagnósticos
médicos, risco de crimes e
RISCO LIMITADO Programas que comportamento criminal,
Devem cumprir medidas produzem deepfake e veículos autônomos
mínimas de transparência e chatbots

RISCO MÍNIMO
Sem obrigações legais
adicionais além da
legislação existente
FONTES  PARLAMENTO EUROPEU E PL 2330/2023, AGÊNCIA SENADO
risco, que deve ser avaliado e monitorado antes
AS PROPOSTAS EM ANÁLISE NO PAÍS e durante seu uso. No primeiro se enquadram os
algoritmos que exploram vulnerabilidades sociais
O projeto de regulamentação não menciona as IA generativas de uso ou promovem a classificação de pessoas por parte
geral, já que o trabalho dos juristas foi feito antes da liberação do ChatGPT, do Poder Público para acesso a bens e serviços
nem as usadas para criar deepfakes. Por isso, é provável que ainda passe públicos como benefícios sociais, entre outros. As
por alterações em sua tramitação. aplicações de alto risco são softwares que podem
As aplicações que geram conteúdos sintéticos hiper-realistas, como as tomar decisões em áreas como educação, filtrando
deepfakes de vídeo ou de áudio, são uma preocupação crescente devido o acesso às instituições de ensino, trabalho, clas-
à capacidade de gerar desinformação com conteúdos falsos, com potencial sificando candidatos a vagas de emprego, saúde,
para prejudicar os processos democráticos nas eleições. realizando diagnósticos médicos, e previdência,
Um comercial recente de uma fabricante de veículos incluiu uma imagem concedendo benefícios de seguridade social, entre
gerada por deepfake da cantora Elis Regina, morta em 1982, cantando com outros. Para evitar que o sistema de classificação
a filha Maria Rita. Em julho, o Conselho Nacional de Autorregulamentação fique engessado e possa acompanhar um ambiente
Publicitária (Conar) abriu um processo para investigar o direito de uso de tecnológico dinâmico, uma futura autoridade fis-
imagem de Elis. A polêmica se estendeu ao Congresso Nacional: ao menos calizadora, prevista no projeto, poderá reavaliar
dois projetos de lei (3592/23, no Senado, e o 3614/23, na Câmara dos o risco de determinada aplicação.
Deputados) propõem diretrizes para o uso de imagens e áudios de pessoas “O PL n° 2338/23 é o mais completo, versando
que já morreram por meio de sistemas de IA. sobre a categorização dos riscos, e observou as
O advogado Antonio Carlos Morato, da Faculdade de Direito da USP, tendências legislativas a respeito do tema, em es-
que pesquisa direito autoral e inteligência artificial, não vê a necessidade pecial as da União Europeia, e, quanto aos níveis
de leis específicas para esse tipo de uso: “Sem dúvida, é possível evitar que de risco, constitui um detalhamento oportuno”,
utilizações não autorizadas ocorram com o que já temos na Constituição avalia o advogado Antonio Carlos Morato, da
Federal, Código Civil e Lei de Direitos Autorais. O Projeto de Lei n° 3614/23, Faculdade de Direito da USP.
por exemplo, pretende apenas detalhar o que já existe no texto atual do “A proposta europeia com níveis de impacto di-
Código Civil”. ferenciados é um modelo interessante para servir
Para ele, a autorização dos filhos para o comercial da cantora foi válida, de base para a discussão regulatória no país, mas é
uma vez que os direitos da personalidade (que incluem a imagem e a voz) preciso ponderar que a realidade daqueles países
já são protegidos pela Constituição Federal e pelo Código Civil, existindo é muito diferente da nossa”, observa o cientista
a possibilidade de sua defesa por parentes até o quarto grau após a morte. da computação Virgílio Almeida, da Universidade
Federal de Minas Gerais (UFMG) e coordenador
do Centro de Inovação em Inteligência Artificial
para a Saúde (CIIA- Saúde), um dos Centros de
Pesquisa em Engenharia (CPE) financiados pela
chamado Compas (sigla de Perfis de Gerenciamen- FAPESP. “Aqui temos grandes desigualdades so-
to de Infratores Correcionais para Sanções Alter- ciais e é preciso pensar em políticas públicas que
nativas), usado nos Estados Unidos para prever a avaliem e incentivem tecnologias automatizadas
chance de acusados voltarem a cometer crimes. que não substituam trabalhadores menos qualifi-

E
Esses programas têm um viés preconceituoso ao cados, mas que promovam seu aprimoramento.”
indicar mais pessoas negras do que brancas como
suspeitas de crimes. Sua transparência é baixa, m um artigo publicado em fevereiro na
já que o aplicativo é fornecido por uma empresa revista científica IEEE Internet Com-
privada e seu código não é aberto. puting, ele, com os coautores, propõe
As chamadas IAs generativas, que aprendem a um modelo de governança, que chama
produzir textos novos a partir da análise de pa- de corregulação. O governo estabele-
drões usados pelas pessoas para conectar palavras, ceria diretrizes e políticas públicas,
ganharam uma seção nova na proposta, após a cabendo às empresas criar e seguir
INFOGRÁFICO  ALEXANDRE AFFONSO / REVISTA PESQUISA FAPESP

repercussão do ChatGPT, lançado em novembro seu próprios mecanismos internos de


de 2022. Elas deverão adotar medidas de transpa- governança. “As tecnologias de inteli-
rência, deixando claro que seu conteúdo foi gera- gência artificial mudam muito rapidamente e é
do por um sistema computacional inteligente, e difícil dar conta de todas essas transformações
serem programadas para evitar a criação de con- com apenas uma lei”, pondera.
teúdo ilegal nocivo, como fornecer a receita para Fabio Gagliardi Cozman, coordenador do Cen-
fabricar uma bomba. Os de risco limitado, como tro de Inteligência Artificial da USP, alerta para
os que criam imagens e conteúdos sintéticos, tam- o risco de as regras a serem criadas inibirem o
bém precisam adotar requisitos de transparência. empreendedorismo: “Uma regulamentação mui-
No Brasil, a proposta 2338/23 segue uma lógica to restritiva poderia impedir o desenvolvimento
parecida, com dois níveis de grau de risco: o ex- local da inovação e, no fim, as tecnologias teriam
cessivo, cujas aplicações serão proibidas; e de alto de ser importadas”, observa. 

PESQUISA FAPESP 331 | 63


Também preocupado com o impacto da re- projeto de lei prevê a constituição de uma au-
gulamentação sobre a indústria nacional, o toridade regulatória que, a princípio, deveria
cientista político Fernando Filgueiras, da Uni- dar conta de todas as áreas em que a IA possa
versidade Federal de Goiás (UFG), defende: “A ser aplicada. Ela deverá ser indicada pelo Poder
legislação deveria estar associada a mecanis- Executivo. Especialistas ouvidos para esta re-
mos de incentivo à pesquisa e à indústria”. Pa- portagem veem uma movimentação da ANPD,
ra Filgueiras, sem investimentos na pesquisa que recentemente se tornou uma autarquia, para
e indústria nacional, grandes corporações in- absorver essa função.
ternacionais podem estar mais estruturadas  Godoy considera esse caminho arriscado. A
para lidar com as possíveis sanções, enquan- permeabilidade das aplicações de IA, que estão
to as pequenas e médias empresas nacionais, em setores distintos da economia, tornaria a tarefa
com menos recursos, podem ficar para trás.  complicada se ela se concentrasse em apenas um
A “Estratégia brasileira de inteligência artifi- órgão. “É difícil que ela reúna todas as expertises

E
cial”, que trata de questões éticas para o governo necessárias, passando da saúde à educação”, diz.
avançar na área, publicada em agosto de 2021
pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Ino- specialista nos impactos éticos e so-
vação (MCTI), poderia, a seu ver, ser um docu- ciais da IA, Dora Kaufman, da Pon-
mento complementar às regras a serem criadas. tifícia Universidade Católica de São
Mas, como ele observou em fevereiro de 2023 Paulo (PUC-SP), observa que a cons-
na revista Discover Artificial Intelligence, o do- tituição de uma agência nacional de
cumento do governo é genérico e não deixa cla- regulamentação talvez seja inviável
ro como irá se movimentar nessa área e como e sugere que agências setoriais pode-
pretende apoiar as pesquisas em universidades riam assumir essa missão – o Banco
e empresas. Procurado, o MCTI não respondeu Central (Bacen) poderia cuidar do se-
aos pedidos de esclarecimentos solicitados por tor bancário e a Agência Nacional de Vigilância
Pesquisa FAPESP. Sanitária (Anvisa) da saúde.
Cristina Godoy, da USP de Ribeirão Preto, ob- “Nos Estados Unidos não existe nem parece
serva que a proposta da União Europeia prevê iminente uma regulamentação federal”, ela co-
uma avaliação do impacto da IA em pequenas e menta. “A autoridade e a responsabilidade pela
médias empresas, caso as medidas regulatórias regulamentação e governança de IA são distri-
fossem aprovadas, algo que não consta no docu- buídas entre as agências federais.” Os dois docu-
mento brasileiro. “Conhecendo essa realidade, mentos que regem essa área – o “Blueprint for an
os governos podem calcular o quanto precisam AI bill of rights”, da Casa Branca, e “NIST risk
investir para apoiar a inovação”, afirma. management framework”, do Instituto Nacional
O AI Act prevê os chamados sandbox ou am- de Padrões e Tecnologia – são de orientação vo-
bientes de teste de regulamentação, nos quais luntária, sem força de lei.
startups poderiam pôr à prova suas criações O cientista da computação André Carlos Ponce
sem sofrer sanções ou multas. No Brasil, o PL n° de Leon Carvalho, do Instituto de Ciências Ma-
2338/23, do Senado, prevê ambientes regulatórios temáticas e de Computação (ICMC) da USP, em
experimentais similares, igualmente fiscalizados São Carlos, levanta outra dúvida: “Será que uma
por autoridade competente a ser definida. “Esses regulação nacional dará conta do problema ou
espaços dificilmente funcionarão de modo satis- os países precisarão de acordos internacionais,
fatório sem uma visão estratégica do orçamento como foi feito com a energia nuclear?”.
e das áreas prioritárias a serem apoiadas”, alerta. Os especialistas alertam que qualquer regula-
Segundo ela, uma previsão de investimento em mentação precisará de um tempo de maturação
quais áreas de IA são mais relevantes pode tornar para que os parlamentares conheçam melhor o
esse processo mais eficiente para as empresas assunto e outros setores da sociedade passem a
se organizarem para participar da captação de participar dos debates. “A regulamentação pre-
recursos e, consequentemente, testarem depois matura pode restringir a inovação e não proteger
seus produtos nesses ambientes sandbox. Ela a sociedade”, ressalta Kaufman. “O processo é
apontou essa lacuna da estra- tão importante quanto o resultado final.” Como
tégia nacional em seu artigo exemplos a serem lembrados, ela cita o Marco
da Revista USP. Civil da Internet, aprovado em abril de 2014 após
Outro desafio da regula- discussões abertas que começaram em 2009, e o
mentação será a fiscalização processo europeu de regulamentação da IA, cuja
das instituições públicas e consulta pública começou em abril de 2021. n
privadas. Os europeus devem
criar um órgão específico com Os projetos e os artigos científicos consultados para esta reportagem
essa finalidade. No Brasil, o estão listados na versão on-line.

64 | SETEMBRO DE 2023
BIOTECNOLOGIA

1
Cães braquicéfalos, como
buldogues, shih-tzus, lhasa
e pugs, são os mais propensos
a ter lesões nos olhos

PARA RESTITUIR
FOTOS 1 CHRISTIAN MONTES / PEXELS  2 RICARDO PÉREZ SARAVIA / PEXELS  3  ALEXAS-FOTOS / PEXELS  4  STESHKA WILLEMS / PEXELS

A VISÃO
4

U
ma nova técnica cirúrgica que utiliza um biote-
cido originado da pele de tilápia-do-nilo (Oreo-

DOS CÃES
chromis nicoticus) tem ajudado a restabelecer a
visão de cães portadores de úlceras ou lesões gra-
ves de córnea, inclusive perfurações. A novidade
é uma membrana rica em colágeno, substância
eficiente em processos de reparação celular, feita a partir da
Biocurativo originado da pele de tilápia pele dessa espécie de água doce comum no Brasil. Elaborado
por pesquisadores do Núcleo de Produção e Desenvolvimento
ajuda na recuperação de animais de Medicamentos da Faculdade de Medicina da Universidade
Federal do Ceará (NPDM-UFC), o enxerto é usado como
que sofreram lesões graves de córnea curativo no pós-cirúrgico, induzindo a regeneração – ou ree-
pitelização – da córnea e acelerando a cicatrização.
Yuri Vasconcelos “Nos últimos quatro anos, já recuperamos a saúde ocular
de mais de 400 cães com o uso dessa nova técnica cirúrgica”,
afirma a veterinária Mirza Melo, que lidera o estudo. “A mem-
brana, tecnicamente uma matriz dérmica acelular, funciona
como um arcabouço [scaffold], protegendo a córnea e estimu-
lando a produção celular nas áreas afetadas. Ela vai liberando
colágeno e depois é absorvida pelo organismo.” Segundo Melo,
cães braquicéfalos, como buldogues, pugs, lhasa e shih-tzus,
que têm o focinho curto e os olhos maiores e mais expostos,
são os mais propensos a sofrer lesões de córnea.

PESQUISA FAPESP 331 | 65


Para a produção do biotecido, explica a pes- científica Brazilian Journal of Animal and Envi-
quisadora, a pele do peixe passa por um longo ronmental Research, em 2022. “O relato suge-
processo em laboratório para remoção das es- re que a cicatrização promovida pelo enxerto
camas e de todas as células, de forma que reste da matriz de pele de tilápia em córneas de cães
apenas o colágeno. “Já há no mercado membra- mostrou-se vantajosa, obtendo maior transpa-
nas biológicas feitas de material bovino ou suíno, rência, ausência de melanose [mancha], baixa
mas são importadas. A vantagem da nossa é que vascularização e boa lubrificação”, anotaram os
deriva de um refugo da indústria pesqueira e de autores do artigo. O resultado desse primeiro
um peixe largamente cultivado na região, o que caso foi apresentado no Congresso Brasileiro
permitirá fabricar membranas de baixo custo.” de Oftalmologia Veterinária no final de 2021 e
O emprego da matriz dérmica da pele de tilápia recebeu o prêmio de melhor trabalho do evento.

A
em cirurgias oftalmológicas foi tema do mestra-
do de Melo no Programa de Pós-graduação em investigação de Melo, que é pro-
Medicina Translacional, realizado sob orienta- fessora da Universidade Estadual
ção do médico Manoel Odorico de Moraes Filho, do Ceará (Uece) e está cursando
coordenador do NPDM. No estudo com 60 cães doutorado na UFC, insere-se em
com lesões de córnea, ela comparou o uso da um estudo mais amplo com foco
matriz, de uma membrana comercial derivada da no uso medicinal da pele de tilá-
mucosa do intestino de suínos e de um enxerto pia. Iniciada em 2014 no Ceará, essa pesquisa
conjuntival do próprio indivíduo. “Nossa matriz é liderada pelo cirurgião plástico Edmar Ma-
dérmica mostrou-se superior, proporcionando ciel, do NPDM-UFC e do Instituto de Apoio ao
menor tempo de cicatrização e de alta do animal”, Queimado (IAQ), de Fortaleza. A pele do peixe
diz Melo. As etapas experimentais da pesquisa liofilizada, ou seja, desidratada, esterilizada, ir-
foram realizadas no Centro de Olhos Veterinário, radiada com raios gama e embalada a vácuo, já
clínica particular de atendimento oftalmológico se mostrou eficaz como curativo biológico no
Matriz dérmica coordenada pela pesquisadora. tratamento de queimados, na reconstrução do
acelular em primeiro
plano (tira branca)
A descrição do primeiro animal operado com canal vaginal de pacientes submetidas à cirurgia
e a pele da tilápia a nova técnica, uma cadela da raça shih-tzu com de redesignação sexual e na reparação de dedos
ao fundo uma perfuração no olho, foi publicada na revista de crianças portadoras de uma condição rara, a
síndrome de Apert, que causa má-formação das
mãos (ver Pesquisa FAPESP no 280).
“Começamos a desenvolver a matriz dérmica
acelular da pele de tilápia em 2018. Desde então,
uma série de ensaios laboratoriais foram reali-
zados para sua caracterização e produção”, ex-
plica Maciel. Ele informa que o uso do biotecido
vem sendo pesquisado em mais de uma dezena
de especialidades médicas, entre elas urologia,
cardiologia, cirurgia geral e neurologia. “Além
do estudo de Melo na oftalmologia veterinária,
uma das investigações mais avançadas do grupo
é em cirurgias de crânio [ver boxe na página 75].”
As análises químicas, biológicas e morfológicas
da matriz dérmica foram coordenadas pelo bio-
químico Carlos Roberto Koscky Paier, professor
de farmacologia da UFC, e pelo biólogo Felipe
Augusto Rocha Rodrigues, do Instituto Fede-
ral de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará
(IFCE). Os dois são os responsáveis pela área de
pesquisa de novos produtos da pele de tilápia.
“O desenvolvimento da matriz dérmica foi se-
melhante ao do curativo biológico feito com a pele
liofilizada. Tivemos que padronizar um método
químico, bioquímico e enzimático para retirar o
conteúdo celular do tecido da pele causando o
FOTO  CHICO GADELHA

mínimo de dano à matriz extracelular, rica em co-


lágeno”, explica Paier. “Para isso, testamos vários
métodos de descelularização com diferentes so-
luções, basicamente detergentes biocompatíveis.”

66 | SETEMBRO DE 2023
Em cirurgias no crânio
Matriz dérmica também é testada na recomposição da membrana que reveste o cérebro

Outra vertente da pesquisa com o pesquisador operou 36 animais, divididos De acordo com o pesquisador, a matriz
a matriz dérmica acelular da pele de tilápia em três grupos. No primeiro, ele usou uma dérmica da pele de tilápia tem características
é sua utilização em cirurgias cranianas, membrana de referência, considerada muito parecidas com a dura-máter em
decorrentes de acidentes ou doenças, padrão ouro, já comercializada no Brasil e no termos de espessura e flexibilidade. “O que
na recomposição da membrana de mundo e aprovada pela Agência Nacional de os primeiros resultados mostraram é que ela
dura-máter, a mais externa das três Vigilância Sanitária (Anvisa), pela Food and não provoca um processo inflamatório.
meninges que revestem o cérebro, e do Drug Administration (FDA), a agência que É bastante maleável e funciona como uma
sistema nervoso central. Esse estudo regula medicamentos e alimentos nos barreira mecânica muito eficiente, até mais
é conduzido pelo grupo do neurocirurgião Estados Unidos, e pela União Europeia. que a membrana de referência”, relata Becco. 
Rodrigo Becco, doutorando em medicina No segundo, foi usada a matriz rica em “Nosso próximo passo é obter autorização
translacional pela UFC. colágeno da pele de tilápia, e no terceiro do Comitê de Ética da faculdade para
“Sintetizamos as membranas e depois grupo os animais passaram apenas por uma fazermos ensaios em humanos e verificar
dos testes in vitro selecionamos algumas craniectomia, que é a remoção de uma parte se os bons resultados observados em
para os ensaios com animais”, informa do osso da calota craniana, sem que fosse animais se repetem”, finaliza.
Becco. Nos testes que conduziu com ratos, colocada uma membrana no local. Jayne Oliveira

O passo seguinte foi a realização de análises sadores cearenses a aprimorar a matriz visando
histológicas da membrana, empregando técnicas sua aplicação em humanos. “Em 2021, fomos
de microscopia óptica, para verificar sua morfo- convidados pelos organizadores do Congresso
logia. Com apoio da microscopia de fluorescên- Cearense de Oftalmologia e apresentamos nos-
cia, conseguiram estimar o número de células sa membrana”, diz Melo. A expectativa dos pes-
retiradas. “Também extraímos o DNA da pele in quisadores é de iniciar em breve estudos com a
natura e da matriz acelular, depois do processo matriz em voluntários.
de remoção de células, para quantificar o DNA Para o médico-veterinário Flávio Vieira Mei-
remanescente. Houve uma redução de mais de relles, professor da Faculdade de Zootecnia e
90%, o que foi considerado satisfatório.” Engenharia de Alimentos da Universidade de

A
São Paulo (FZEA-USP), que não participou da
equipe fez testes tensiométri- pesquisa da UFC, o uso de uma matriz dérmica
cos comparando a resistência da acelular rica em proteínas de colágeno é uma
matriz dérmica e a pele do peixe. estratégia interessante em tratamentos veteri-
Esses ensaios mostraram uma pe- nários por favorecer a migração de células em
quena redução na resistência à áreas lesionadas.
tração da membrana de coláge- “O emprego da membrana extraída da pele
no, mas nada que comprometesse seu uso como de tilápia mantém o ambiente protegido, mais
matriz proteica biocompatível. Também foram umidificado, estimulando a regeneração. O re-
feitos estudos de citotoxicidade. Como o mate- sultado é que o tecido tratado, como a córnea de
rial provém de um animal de vida livre, exposto animais, começa a se remodelar”, diz Meirelles.
à contaminação por diversos microrganismos, “A investigação envolvendo a pele de tilápia é
ele passa, ainda antes da descelularização, por importante, mas há outros grupos de pesquisa
um processo de descontaminação química que no estado de São Paulo e no país que trabalham
pode deixar resíduos tóxicos nas proteínas da com diferentes tecidos descelularizados, como
matriz extracelular. membranas amnióticas, derivadas da placenta,
“Tivemos que desenvolver um processo de de- em tratamentos veterinários. Há também o uso
sintoxicação a nível histológico. Ensaios de citoto- de membranas de origem animal em válvulas car-
xicidade por contato indireto com o biomaterial díacas, já bastante consolidado e com aplicação
comprovaram que foi efetivo”, conta o bioquímico em seres humanos.” n
da UFC, que fez doutorado com foco na análise de
um grupo de proteínas cardíacas no Centro Nacio-
nal de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM), Artigo científico
em Campinas, com apoio da FAPESP. MELO, M. S. et al. Enxerto de pele de tilápia (Oreochromis niloticus)
em reparo de úlcera em córnea de cão: Relato de caso. Brazilian
Os bons resultados obtidos até então com o Journal of Animal and Environmental Research. v. 5, n. 1, p. 367-75.
uso do biocurativo em cães levaram os pesqui- jan./mar. 2022

PESQUISA FAPESP 331 | 67


NOVOS MATERIAIS

ROUPAS
ELETRÔNICAS
FOTO  LÉO RAMOS CHAVES / REVISTA PESQUISA FAPESP 

Pesquisadores desenvolvem botas, luvas e tecidos


especiais que geram calor, podem recarregar o celular
e até se transformam em tela sensível ao toque

Sarah Schmidt

S
entado diante de uma bancada do Outro exemplo vem do Centro de Componentes
laboratório, o engenheiro têxtil An- Semicondutores e Nanotecnologias da Universi-
dré Correa Marcilio junta as pontas dade Estadual de Campinas (CCSNano-Unicamp):
de dois fios de algodão em uma pe- uma película flexível de nanografite combinado
quena lâmpada, que imediatamente com silicone com propriedades condutoras, usada
acende. O segredo está nas partículas na palmilha de uma bota, com a qual se pretende
de carbono e prata condutoras de aquecer os pés de quem trabalha sob temperatu-
eletricidade impregnadas nos fios. ras baixas, como em frigoríficos. A inovação está
Diretor da AG Têxtil, fabricante de em fase de licenciamento para uma empresa, que
tecidos especiais de Americana, interior paulis- pretende fabricá-la em escala comercial.
ta, Marcilio conta que planeja utilizar os fios de O físico Stanislav Moshkalev, coordenador
algodão condutores de energia para fazer uma al- da pesquisa, planeja usar apenas componentes
mofada capaz de funcionar como controle remoto. nacionais, para reduzir o custo em relação a si-
Ela terá botões bordados sensíveis ao toque que milares importados. Mesmo sobrepostas, as pe-
permitirão, por exemplo, comandar uma smart TV. lículas podem ser dobradas sem se rasgar, com
Os fios especiais enrolados em um novelo são propriedades condutoras próximas às do grafe-
parte de um campo da engenharia têxtil chamado no, um material mais caro, como detalhado em
de eletrônica vestível. O objetivo da empresa é um artigo publicado em abril de 2023 na revista
desenvolver e produzir tecidos ou películas flexí- científica Frontiers in Nanotechnology.
veis capazes de conduzir eletricidade, da mesma Na palmilha, a película está coberta, de um
forma que os fios convencionais de cobre. Esses lado, com espuma sintética, e, de outro, com
materiais, inofensivos a quem os usa, já começam um material conhecido como tecido não tecido
a ser utilizados em roupas, calçados e acessórios, (TNT), composto por fibras e polímeros. Um fio
Produzidos pela que ganham novas funções. Levi’s e Google, por de cobre conduz a eletricidade das pilhas recar-
AG Têxtil, fios de exemplo, criaram uma jaqueta capaz de controlar regáveis, instaladas em um bolso externo no cano
algodão embebidos o celular por meio de um dispositivo com uma da bota, à película. Ela é capaz de permanecer
em partículas de
carbono e prata
antena Bluetooth e uma bateria, colocados no aquecida a uma temperatura de cerca de 30 graus
acendem uma punho removível. Lançada em 2019, a jaqueta Celsius por até sete horas. Não há risco de cho-
pequena lâmpada não é mais vendida no site da loja. ques porque a tensão não passa dos 12 volts (V).
A AG Têxtil fabrica uma bolsa de praia com Uma das dificuldades da inovação foi ligar a
uma bateria e uma antena Bluetooth, que pode pilha à película. “O silicone não segura a solda
se conectar ao celular e reproduzir música em entre conectores da película e dos fios de cobre
um alto-falante embutido na bolsa. Em um futu- por muito tempo. Tentamos colar e costurar, mas
ro um pouco mais distante, devem surgir tecidos a ligação se perdia”, explica a química Silvia Nista,
capazes de produzir e armazenar eletricidade que integra o grupo da Unicamp. A solução que
para carregar um smartphone ou sensores que os pesquisadores encontraram foi desenvolver
medem batimentos cardíacos e pressão arterial. uma nova forma de soldar, ainda sigilosa, para

PESQUISA FAPESP 331 | 69


a qual se solicitou o registro de uma patente. “A Desde 2019, Oliveira e sua equipe desenvolvem
película com esse novo tipo de solda poderia ser protótipos de componentes feitos com tecidos
usada para gerar calor em luvas e capacetes de e películas que captam a energia mecânica, co-
motociclistas ou mesmo em tratamentos tera- mo a gerada pelo movimento do corpo. São os
pêuticos”, comenta Moshkalev. chamados nanogeradores triboelétricos, tam-
Os fios condutores de eletricidade da AG Têxtil bém conhecidos pela sigla Teng (triboelectric
foram desenvolvidos em parceria com o Centro nanogenerators).
de Tecnologia da Informação Renato Archer Esses dispositivos transformam a energia ele-
(CTI), em Campinas, interior paulista, com apoio trostática (gerada por cargas elétricas estáticas e
do programa Pesquisa Inovativa em Pequenas armazenada na superfície de objetos ou do corpo)
Empresas (Pipe) da FAPESP. Marcilio conta em corrente elétrica, por meio do atrito gerado
que tentou comercializá-los, mas só apareceram pelo contato constante entre duas superfícies.
interessados em produtos prontos. “Uma em- Geralmente uma das superfícies é um políme-
presa queria centenas de bolsas com logos que ro e a outra algum material capaz de realizar a
acendiam; outra, assentos de carros que pudes- troca de cargas entre elas (uma fica positiva e a
sem ser regulados por meio de botões bordados outra negativa). Os primeiros protótipos foram
sensíveis ao toque; e uma terceira queria roupas criados por pesquisadores chineses em 2012.
de cama com sensores que monitorassem o sono O grupo da Univasf desenvolveu uma película

N
das pessoas”, ele relata. triboelétrica flexível feita de PVA, um polímero
sintético, com a fibroína, uma proteína extraída
ão havia, porém, como atender a esses da seda. Em um experimento, a película foi pres-
pedidos. “O gargalo está no escalona- sionada, com movimentos repetidos para gerar
mento da produção para atender ao energia elétrica, contra um filme transparente de
volume dessas demandas”, observa silicone – um diferencial, já que geralmente esses
a química Renata Nome, responsável dispositivos têm uma segunda camada de metal.
pelo desenvolvimento dos fios. Após “Chegamos a um material com quase 70%
pesquisa de mercado que fez parte de transparência, alta condutividade e tensão
de um curso de empreendedorismo gerada de até 172 V. Com a eletricidade forne-
promovido pela FAPESP, ela e Mar- cida, é possível acender até 56 lâmpadas LED
cilio preferiram produzir bolsas e almofadas que e alimentar pequenos dispositivos eletrônicos”,
pudessem abrigar esses componentes. conta Oliveira, que detalhou esses resultados
Na Universidade Federal do Vale do São Fran- em um artigo publicado em janeiro de 2023 no
cisco (Univasf ), campus de Juazeiro, na Bahia, periódico científico Nano Energy. Segundo ele,
o engenheiro eletrônico Helinando Pequeno de no futuro, as principais aplicações de nanoge-
Protótipo da
Unicamp: bota com
Oliveira procura justamente criar tecidos e pelí- radores desse tipo seriam em calçados, já que
palmilha capaz de culas que possam gerar sua própria energia, sem uma caminhada produz o movimento contínuo
produzir calor a necessidade de pilhas e baterias. necessário para gerar energia suficiente para
carregar um celular.
1
Além de gerar energia, é preciso armazená-
-la. Com esse propósito, Oliveira criou linhas
de algodão condutoras e quimicamente modi-
ficadas para servir como eletrodos e funcionar
como supercapacitores – dispositivos capazes
de estocar energia. Nesse caso, gerada pelo mo-
vimento do corpo.
Os fios de algodão se tornaram capazes de
produzir e armazenar energia após receberem
uma camada dupla de nanotubos de carbono e
grafeno, coberta por um polímero plástico. Con-
forme descrito em um artigo publicado em abril
de 2018 na revista ACS Applied Materials & In-
terfaces, dois fios, um com carga positiva e outro
negativa, separados por uma cola de hidrogel,
são costurados a uma luva, que também aquece
e tem propriedades antibacterianas.
“O polímero que reveste os fios armazena a
energia para uma descarga com duração entre
dois e seis minutos”, diz ele. Seu plano é criar
dispositivos que sejam capazes de manter a carga

70 | SETEMBRO DE 2023
Bolsa de praia da
AG Têxtil também
com bateria e antena
Bluetooth, que pode
se conectar ao celular
e reproduzir música

2 3

armazenada por mais tempo. À medida que avan- corpo por meio do suor e outros fluidos.” Há 20
çar, essa técnica poderá ir além da indumentária. anos, seu grupo explorou formas de agregar novas
“Poderia integrar marca-passos, alimentados pela funções aos tecidos ao desenvolver um protótipo
movimentação do próprio corpo, dispensando a com nanopartículas de prata com propriedades
troca de bateria”, vislumbra Oliveira. bactericidas e outro antiodor.
Com o tempo, as roupas ou a própria pele po- Os outros campos com potencial de aplica-
dem também se tornar um cabide de dispositivos ção, descritos nesta reportagem, são dispositi-
que acompanham a saúde. No Instituto de Físi- vos eletrônicos atrelados a vestimentas, sapatos
ca de São Carlos da Universidade de São Paulo e acessórios que permitem gerar e armazenar
Jaqueta da Levi’s com (IFSC-USP), o físico Osvaldo Oliveira Júnior eletricidade por meio de roupas, e outros vestí-
bolso para celular, fez um biossensor que analisa o teor de ureia veis capazes de regular a temperatura do corpo
controlado por sinais
do corpo por meio do suor, importante pa- em ambientes muito frios ou muito quentes, de
enviados por um
dispositivo removível ra acompanhar o funcionamento dos rins, preferência sem pilhas e baterias.
colocado no punho como detalhado em um artigo publicado em No final de junho, a Nike anunciou uma ja-

E
(acima) março na revista Biosensors and Bioelectronics. queta esportiva com um sistema de ventilação
que se adapta automaticamente ao corpo do
m formato de adesivo, o biossensor usuário. Segundo o site da empresa, a peça tem
é feito de uma camada de PVA com pequenas aberturas sensíveis à umidade que se
eletrodos de carbono flexíveis. Ele abrem quando o suor se acumula na pele, para
combina um sensor de ureia e outro melhorar o fluxo de ar. Quando o corpo esfria
FOTOS 1 LÉO RAMOS CHAVES / REVISTA PESQUISA FAPESP  2 JACQUARD GOOGLE 3 AG TÊXTIL 

de pH (potencial hidrogeniônico, e o suor seca, as aberturas se fecham. Esse mo-


que mede a acidez ou a basicidade de vimento decorre de um filme, costurado nessas
substâncias), que permitem a análise aberturas, que reage à umidade, contraindo ou
da ureia por meio da acidez detectada expandindo de maneira autônoma ao entrar
no suor. “Como há uma variação dos em contato com o suor. O objetivo é ajudar cor-
níveis de acidez de uma pessoa para outra, o redores e atletas a lidarem com um problema
segundo sensor corrige as oscilações e fornece recorrente: regular a temperatura do corpo en-
dados mais precisos para um computador, que quanto praticam esporte. n
ainda precisa ser conectado ao adesivo por meio
de fios”, explica Oliveira Júnior. Uma próxima
etapa seria fazer com que esse biossensor con- Projeto
seguisse enviar os dados sem precisar de cabos. Filamentos eletricamente condutores incorporando nanomateriais e
As pesquisas internacionais, segundo o pesqui- aplicações em eletrônica têxtil (no 19/10547-3); Modalidade Pesquisa
sador do IFSC-USP, indicam que há três grandes Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe); Pesquisadora responsável
Renata Cristiano Nome (AG Têxtil); Investimento R$ 519.136,38.
áreas para os dispositivos vestíveis se desen-
volverem. “Uma delas é a saúde, com sensores Os artigos científicos consultados para esta reportagem estão listados
capazes de monitorar diversas propriedades do na versão on-line.

PESQUISA FAPESP 331 | 71


DEMOGRAFIA

IDENTIDADES
MAPEADAS
Recenseador na Terra
Indígena Yanomami:
dados sobre fecundidade
e mortalidade permitirão
identificar se indígenas
vivem processo de
recuperação populacional
Censo de 2022 faz levantamento inédito de
populações quilombolas e comunidades indígenas
fora de áreas demarcadas

Christina Queiroz

N
o anúncio dos resultados do Censo Segundo o antropólogo João Paulo Lima Barre-
Demográfico de 2022, que vêm to, da Universidade Federal do Amazonas (Ufam),
ocorrendo à medida que os da- atualmente não são apenas lideranças que lutam
dos são tabulados, a contagem de pelos direitos dos povos indígenas. As novas ge-
uma parcela da população histo- rações também estão envolvidas, algo que ele
ricamente menos favorecida tem considera surpreendente. “Vivemos um momento
atraído a atenção dos especialistas. “Até meados do de virada de autoestima e de retomada do senti-
século XX, a extinção dos povos indígenas era tida mento de pertencimento de ser indígena. É uma
como certa no Brasil, mas vivemos o movimento guinada ontológica e de tomada de consciência. O
contrário: um processo de renascimento”, afirma o aumento da população indígena tende a se acen-
historiador Edson Kayapó, do Instituto Federal da tuar nos próximos anos por causa da ampliação
Bahia (IFBA) e pertencente ao povo Kayapó, sobre da autoidentificação”, projeta o pesquisador, que
as informações divulgadas pelo Instituto Brasileiro é conhecido entre seu povo, os Ye’pamahsã, como
de Geografia e Estatística (IBGE) em agosto. Mu- João Paulo Tukano.
danças metodológicas e apoio tecnológico adotados A principal mudança metodológica que im-
no processo de coleta de dados, bem como o au- pactou na contagem da população indígena en-
mento de pessoas que se autodeclararam indíge- volveu a pergunta “Você se considera indígena?”.
nas, fizeram com que os residentes no país que se Em 2010, ela só era feita para pessoas que viviam
identificam com alguma etnia fosse 88,82% mais em terras delimitadas pela Fundação Nacional
alto no ano passado, em comparação com o Censo dos Povos Indígenas (Funai). Por esse motivo,
de 2010. Ao todo, eram 1.693.535 pessoas indígenas o levantamento daquele ano pode ter deixado
vivendo no país em 2022, o que representava 0,83% de fora indígenas residentes em cidades ou em
da população nacional. Em 2010 o número foi de regiões não demarcadas. No ano passado, por
896.917, ou 0,43% do total de residentes. meio de parcerias com organizações e lideranças,
Para Kayapó, a ampliação evidencia que, mes- além da coleta de imagens de satélite em tempo
mo diante de dificuldades relacionadas com a real, o IBGE realizou um mapeamento prévio de
demarcação de territórios e a oferta de educação áreas onde poderia existir ocupação indígena fora
indígena diferenciada em comunidades, esses po- de territórios delimitados. E aplicou a pergunta
vos têm conseguido fortalecer tradições, línguas “Você se considera indígena?” para residentes
e cosmologias. Na perspectiva do historiador, a desses locais.
valorização de identidades indígenas ganhou Em relação aos avanços metodológicos, o an-
força entre as décadas de 1970 e 1980 – a pro- tropólogo Leandro Mahalem de Lima recorda
mulgação da Constituição Federal de 1988 foi um que no Recenseamento Geral de 1872, o primeiro
marco desse processo. Entre outras medidas, a realizado no Brasil, somente descendentes de in-
Constituição estabeleceu que os indígenas têm dígenas foram contabilizados e, mesmo assim, na
direito de posse sobre terras tradicionalmente categoria caboclos. “Isso deixou no vácuo uma po-
FOTO  GUILHERME GNIPPER / FUNAI

ocupadas. “O avanço na conquista de direitos pulação existente em amplas áreas geográficas”,


motivou o fortalecimento de identidades nas úl- diz o pesquisador associado ao Centro de Estudos
timas décadas”, analisa o historiador. “Hoje, no Ameríndios da Universidade de São Paulo (USP).
Brasil, as pessoas se sentem mais encorajadas a “No caso, a classificação de raça ou cor preta foi
afirmar que pertencem a determinado povo ou utilizada para nomear pessoas africanas, negras
etnia, mesmo vivendo fora de terras indígenas.” e crioulas. A denominação crioula caracterizava

PESQUISA FAPESP 331 | 73


1

lacional e criadas políticas públicas específicas


para diferentes povos. “O total saltou de 550 mil
indígenas, ou 0,31% da população norte-america-
na em 1960, para 9,6 milhões, que correspondiam
a 2,92% dos habitantes em 2020.”
Para além do fortalecimento de identidades
indígenas e mudanças metodológicas, o aumen-
to populacional também pode estar relacionado
Censo de 2022 negros nascidos no Brasil e a parda se referia ao com uma dinâmica de recuperação demográfica
na Terra Yanomami: cruzamento da raça africana com outras raças. Já entre pessoas indígenas. Durante evento de di-
se deslocaram a pé
e se reuniram com
a designação cabocla deveria ser compreendida vulgação à imprensa realizado em 3 de agosto,
comunidades para como raça indígena ou, ainda, como a mistura a antropóloga Marta de Oliveira Antunes, do
garantir o engajamento entre brancos e indígenas e era associada a uma IBGE, afirmou que, para conhecer o papel do
de populações posição de inferioridade no sistema de classes”, componente demográfico nesse crescimento,
indígenas
prossegue o antropólogo. será preciso analisar dados sobre fecundidade e
O levantamento seguinte, de 1890, o primeiro mortalidade, além de elaborar pirâmides etárias.
do período republicano, registrou aumento da Essas informações serão divulgadas pelo instituto
população cabocla, contabilizando cerca de 1,3 nos próximos meses. No entanto, apesar de ainda
milhão de pessoas, ou 9,04% da população bra- não ser possível estimar o papel do componente
sileira. Em 1900, 1920 e 1970 a pergunta “cor ou demográfico na expansão da população indígena
raça” não foi aplicada. Já em 1940, 1950, 1960 em geral, o Censo identificou uma ampliação no
e 1980, a categoria caboclo foi incorporada ao número de pessoas vivendo em terras indígenas
grupo de pardos, “diluindo especificidades do em todas as regiões do país.
universo genérico da mestiçagem”. No Censo de Antunes explicou que em 2010 o país contava
1960 foi incluída a categoria “indígena residente com 505 terras indígenas. Em 2022 esse núme-
em reservas”, que contabilizou 10 mil pessoas, ro subiu para 573. Por causa de mudanças em
ou 0,01% da população total, com muitas áreas processos de regularização, quatro delas foram
deixadas de fora da contagem. Somente em 1991 suprimidas e 72 inseridas na base da Funai. “Isso
o Censo incluiu a categoria indígena na pergunta significa que há 501 terras indígenas que podem
sobre cor ou raça. “Foi um marco na trajetória ser comparadas entre os censos de 2010 e 2022”,
das estatísticas oficiais”, destaca o antropólogo. esclareceu a antropóloga. Ao longo desse perío-
Mahalem de Lima comenta, ainda, que os Esta- do, a população indígena residente no universo
dos Unidos também registraram aumento em sua dessas 501 terras subiu de 511,6 mil para 593,5 mil
população indígena a partir de 1960, quando foi pessoas, um aumento de 16,01%. “Esses dados po-
incluída a autoidentificação na contagem popu- dem ser evidências de que a população indígena

74 | SETEMBRO DE 2023
está em processo de recuperação populacional”,
estima o antropólogo Artur Nobre Mendes, servi- O BRASIL INDÍGENA 0,83%
dor da Funai há quatro décadas. Em 2022, a Terra
Yanomami, nos estados do Amazonas e Roraima, Em 1991, o Censo incorporou a categoria
registrou o maior número de indígenas (27,1 mil), indígena na classificação de cor ou raça
seguida pela Raposa Serra do Sol (RR), com 26,1 entre os habitantes do Brasil
mil, e a Évare I (AM), com 20,1 mil.
Ainda segundo o levantamento, os três municí-
pios com a maior quantidade de pessoas indígenas 0,43% 0,43%
também estavam no Amazonas: Manaus (71,7 mil), Percentual da
população total
São Gabriel da Cachoeira (48,3 mil) e Tabatinga
(34,5 mil). Já as cidades com as maiores propor-
ções de população indígena eram Uiramutã (RR), 0,20%
onde 96,60% dos 13,2 mil habitantes pertenciam
a alguma etnia, Santa Isabel do Rio Negro (AM),
com 96,17%, e São Gabriel da Cachoeira (AM),
com 93,17%. Para Mendes, o Censo de 2022 traz
impactos imediatos para formuladores de po- 1991 2000 2010 2022
líticas públicas, especialmente em relação aos População
294.131 734.127 817.963 1.693.535
indígenas que moram em áreas urbanas. “His- indígena
toricamente, as políticas indigenistas do Brasil População
146.917.459 169.590.693 190.755.799 203.062.512
se voltaram para pessoas vivendo em terras indí- total

genas”, conta o antropólogo da Funai. “Agora, os FONTES  CENSO DEMOGRÁFICO / IBGE / LEANDRO MAHALEM DE LIMA

dados do Censo mostram a urgência de se criar,


também, ações para aquelas que residem em ou- to, dentro ou fora de terras indígenas reconhe-

S
tras áreas, para além das demarcadas.” cidas pela Funai, os recenseadores conversavam
com lideranças para explicar o funcionamento
egundo Mendes, uma das surpresas do questionário. Muitas delas, antes de autori-
do Censo foi o aumento populacio- zar a entrada do IBGE, pediam para conversar
nal registrado na Bahia, que se tor- com a própria comunidade. “O respeito a esses
nou o segundo estado com maior processos e os diálogos com populações locais
quantidade de indígenas, totalizan- foram fundamentais para que o Censo pudesse
do 229,1 mil pessoas e ficando atrás chegar a todas as localidades indígenas do país”,
apenas do Amazonas (490,9 mil). Mato Grosso do afirmou. Uma das evidências da eficácia da nova
FOTOS  1 A 3 GUILHERME GNIPPER / FUNAI  4 APIB COMUNICAÇÃO  INFOGRÁFICO  ALEXANDRE AFFONSO / REVISTA PESQUISA FAPESP

Sul (116,4 mil), Pernambuco (106,6 mil) e Roraima metodologia e do engajamento de populações
(97,3 mil) vêm em seguida. Por outro lado, Sergipe indígenas com o processo de coleta de dados,
(4,7 mil), Distrito Federal (5,8 mil) e Piauí (7,2 mil) segundo a antropóloga, é a taxa de não resposta
eram os estados com menor número de indíge- do questionário registrada: apenas 1,7%. A média
Mulheres indígenas
nas em 2022. Dados do levantamento mostram nacional foi de 4,23%. reivindicam direitos
que 44,48% da população indígena do país vivia Por fim, Mendes, da Funai, considera que os em manifestação em
na região Norte em 2022, totalizando 753,3 mil dados mais importantes, a serem divulgados nos Brasília, em 2019
pessoas, enquanto 31,22% estavam no Nordeste, 4
o que corresponde a 528,8 mil indivíduos. Foi
constatado, ainda, que 867,9 mil indígenas viviam
na Amazônia Legal – que abrange nove estados –
no ano passado, o que representa 51,25% do total.
Isso significa que metade da população indígena
brasileira reside fora dessa região.
“Nas comunidades indígenas, cada recensea-
dor contou com o apoio de pelo menos uma pes-
soa indígena para realizar a coleta de dados. Em
alguns casos, essa equipe somava cinco pessoas,
incluindo profissionais do IBGE, guias, tradutores
e lideranças”, contou Antunes, do IBGE, duran-
te evento em agosto. Segundo ela, para chegar a
todas as localidades, foi preciso fazer travessias
em barcos, aviões e helicópteros, além de traje-
tos a pé em meio à mata fechada. A antropóloga
explica que, antes de entrar em cada agrupamen-

PESQUISA FAPESP 331 | 75


Recenseadora em
quilombo localizado
em Paraty,
no Rio de Janeiro

próximos meses, envolvem a quantidade de povos dades e a educação quilombola colaboram com
e línguas faladas por faixa etária. “Uma grande o fortalecimento de identidades. Esse é um dos
concentração de falantes de determinada língua fatores que podem ter impactado a contagem
entre pessoas mais idosas pode ser um sinal de populacional e deve ser mais bem investigado”,
que ela está em processo de desaparecimento”, propõe o antropólogo.
afirma. Segundo o antropólogo, essas informa- De acordo com Arruti, fenômeno similar ao
ções poderão subsidiar a formulação de políticas de Bonito pode ter acontecido em Campinas em
públicas para garantir a preservação de idiomas relação à população indígena. Em 2010, os indí-

E
e povos ameaçados. genas vivendo na cidade totalizavam cerca de
mil pessoas e, em 2022, passaram a ser 1,5 mil,
m seu primeiro mapeamento da segundo o IBGE. “A atuação da Unicamp pode
população quilombola residente no estar relacionada com esse avanço. A adoção do
Brasil, o IBGE identificou 1.327.802 sistema de cotas étnico-raciais para ingresso na
pessoas que se autodeclararam graduação em 2017 e o vestibular indígena, criado
quilombolas, ou 0,65% do total de em 2019, parecem ter favorecido a chegada de in-
moradores do país. Quilombolas dígenas e suas famílias à cidade”, sugere. Em 2017,
são povos que vivem em regiões remanescentes os indígenas matriculados na Unicamp somavam
de quilombos, comunidades que, no passado, 66 pessoas, entre graduandos e pós-graduandos.
resistiram ao regime escravocrata. De acordo Em 2022, esse número subiu para 387.
com o Censo, o Nordeste concentra a maior parte Ainda em relação aos quilombolas, na Amazô-
da população quilombola, com 68,19% do total, nia Legal, o Censo identificou 426,4 mil pessoas,
ou 905,4 mil pessoas, seguido pelo Sudeste, que o que representa 1,6% da população da região e
registra 182,3 mil habitantes, e o Norte, com 166 quase um terço (32,1%) dos quilombolas viven-
mil pessoas. Essas duas últimas regiões congre- do em território nacional. O Censo também ma-
gam 26,24% da população quilombola brasileira. peou a existência de 494 territórios quilombolas
Os estados da Bahia (29,90%) e do Maranhão oficialmente delimitados, onde viviam 203,5 mil
(20,26%) reúnem a maior quantidade de pes- pessoas, das quais 82,56% eram quilombolas. O
soas quilombolas residentes no país. “No caso do levantamento do IBGE constatou, ainda, que so-
Censo quilombola, tudo é novidade. Estamos no mente 12,60% da população quilombola do Brasil
momento de criar familiaridade com os dados”, morava em territórios oficialmente reconheci-
diz o antropólogo José Maurício Paiva Andion dos em 2022. “Esse dado chama a atenção para a
Arruti, da Universidade Estadual de Campinas necessidade de demarcar e titular os territórios
(Unicamp). Arruti defende que municípios com quilombolas, além de sugerir a existência de um
mais da metade da população quilombola me- fenômeno no qual as pessoas deixam as comunida-
recem análises aprofundadas. Esse é o caso, por des e vão às cidades em razão da falta de políticas
exemplo, da cidade de Bonito, na Bahia, onde a públicas voltadas para a garantia da permanên-
Unicamp desenvolve projeto de extensão para cia nos territórios”, finaliza a pedagoga Shirley
FOTO  ACERVO IBGE

oferecer formação em educação quilombola em Pimentel de Souza, quilombola da comunidade


parceria com a Universidade Federal do Recôn- Pedra Negra da Extrema, na Bahia, e doutoranda
cavo da Bahia (UFRB). “A presença de universi- em antropologia social na Unicamp. n

76 | SETEMBRO DE 2023
ARQUIVOLOGIA
IMAGEM  ARQUIVO ALZIRA VARGAS DO AMARAL PEIXOTO, FGV CPDOC, AVAP GV ACGV 1973.07.14

EM CONSTANTE
TRANSFORMAÇÃO
Criado para receber arquivo de Getúlio Vargas, Carta enviada por Alzira
Vargas do Amaral Peixoto
CPDOC completa 50 anos em a Luís Simões Lopes,
então presidente da
tempos de digitalização e diversidade Fundação Getulio Vargas,
em que oferece o acervo
do pai, Getúlio Vargas,
Diego Viana à instituição

PESQUISA FAPESP 331 | 77


A
té 1973, a única maneira de ter o CPDOC. A sessão foi requerida pela deputada
acesso aos documentos de Getúlio Luiza Erundina (PSOL-SP), ex-prefeita de São
Vargas (1882-1954) para pesquisas Paulo (1989-1992) e ministra da Administração
acadêmicas era consultá-los na Federal (1993-1994). No requerimento, Erun-
casa de sua filha, Alzira Vargas do dina escreveu que a instituição, sediada no Rio
Amaral Peixoto (1914-1992). Na- de Janeiro, “se consolidou como paradigma de
quele ano, em carta ao engenhei- integração entre documentação e pesquisa, di-
ro-agrônomo Luís Simões Lopes vulgação de conhecimento, ensino, conservação
(1903-1994), então presidente da documental e preservação do patrimônio histó-
Fundação Getulio Vargas (FGV), Alzira ofereceu rico brasileiro”.
o acervo à instituição, acrescentando, “à guisa O caso da própria Erundina é um exemplo de
de sugestão”, que existiam “esparsos em todo o como funciona o centro. Além de ter concedido
país ou guardados em arcas familiares centenas dois depoimentos, em 2001 e 2010, para o PHO, a
de papéis importantes para a reconstituição parlamentar doou seu acervo pessoal ao CPDOC
histórica de um período altamente valioso na em 2019, que foi digitalizado e disponibilizado
vida de nosso Brasil, rico em acontecimentos e on-line em maio passado. Sua documentação,
repleto de vultos eminentes”. composta de 14.225 páginas, 342 vídeos e 789

FOTOS 1 ARQUIVO ALZIRA VARGAS DO AMARAL PEIXOTO, FGV CPDOC, AVAP FOTO 074_05  2 ARQUIVO ALMERINDA FARIAS GAMA, FGV CPDOC, AFG FOTO 004_1  3  ARQUIVO LUIZA ERUNDINA, FGV CPDOC, LES FOTO 0035_4
A doação deu origem ao Centro de Pesquisa fotografias, também ilustra de duas maneiras as
e Documentação de História Contemporânea transformações pelas quais as instituições arqui-
do Brasil (FGV CPDOC), fundado pela neta do vísticas atravessam o momento.
líder político, a socióloga Celina Vargas do Ama- Uma delas é técnica. Quando os documentos
ral Peixoto. Aos 50 anos, o CPDOC é conhecido de Erundina chegaram ao CPDOC, em meio aos
sobretudo por resguardar a memória da política papéis, fitas e fotos havia um elemento ainda
brasileira desde 1930, por meio de três inicia- pouco frequente no dia a dia dos profissionais
tivas principais: o Programa de Arquivos Pes- da instituição: um HD externo, contendo arqui-
soais (PAP), como o de Vargas e outros até então vos de texto, imagem, vídeo e áudio. O conteúdo
“guardados em arcas familiares”; o Programa desse dispositivo, cujo propósito é justamente
de História Oral (PHO), iniciado em 1975 e ba- armazenar informações, impõe alguns desafios
seado em entrevistas; e o Dicionário histórico- para quem vai catalogá-lo, como explica a soció-
-biográfico brasileiro, cuja primeira edição foi loga Carolina Gonçalves Alves, coordenadora de
publicada em 1984. A partir de 2003, o CPDOC documentação do CPDOC.
passou a agregar também o ensino, com cursos “Sempre digitalizamos os documentos, mas os
de graduação e pós-graduação e a criação da que já chegam nesse formato trazem novas per-
Alzira Vargas na Itália, Escola de Ciências Sociais da FGV. guntas. Entre elas, como organizar e preservar um
em abril de 1937, tendo
ao fundo o retrato
Em 21 de junho, quatro dias antes do cinquen- grande volume de documentos digitais? Como li-
do pai, na época tenário da instituição, uma sessão solene na Câ- dar com formatos que podem ser descontinuados?
presidente do Brasil mara dos Deputados, em Brasília, homenageou A chegada dos documentos digitais traz novos
1
desafios para a gestão, conservação e acesso aos
arquivos”, diz Alves. Segundo a socióloga, entre
os problemas estão a multiplicidade de formatos
e a resolução das imagens. “As fotografias físicas
são sempre escaneadas em formatos-padrão de
preservação e acesso. Mas, quando a foto é digi-
tal, às vezes a resolução é baixa e não pode ser
alterada. É importante que o pesquisador esteja
ciente disso.”
De acordo com o antropólogo e historiador
Celso Castro, atual diretor do CPDOC, a grande
transformação tecnológica dos últimos 20 anos,
com a crescente digitalização documental e a dis-
seminação da internet e do registro audiovisual,
impactou a forma como a produção de acervos e o
trabalho de pesquisa sobre eles é realizada. Além
dos desafios técnicos, Castro menciona também
uma mudança de procedimento introduzida pela
pandemia: “Ela pôs em primeiro plano a possibi-
lidade de realizar entrevistas de maneira remota”.
Antes, as entrevistas eram sempre presenciais,
com raras exceções.

78 | SETEMBRO DE 2023
2
A segunda maneira pela qual o acervo de Erun-
dina sinaliza esse período de mudança no CPDOC
é a integração dos documentos de uma liderança
política feminina. A medida reflete o esforço por
maior diversidade no rol da instituição. Em 2015,
seus pesquisadores constataram que, do conjun-
to de cerca de 230 arquivos pessoais, com mais
de 2 milhões de documentos, apenas 11 eram de
mulheres. Desde então, o acervo se enriqueceu
apenas com arquivos de mulheres: hoje, são 20,
de um total de 239, relata Alves. “Os arquivos de
mulheres eram muito poucos no total do acervo.
É claro que isso pode ser explicado em razão de
a elite política brasileira ter sido formada majo-
ritariamente por homens, mas passamos a bus-
car de forma ativa mais arquivos de mulheres”,
observa Castro. 3

Uma consequência dessa procura foi a mu-


dança realizada naquele mesmo ano na política
de arquivos do CPDOC, documento de duas pá-
ginas que define o perfil da instituição e orienta
a captação de novos arquivos. Onde se lia que o
acervo é constituído “por arquivos pessoais de
homens com destacada atuação na vida pública
brasileira contemporânea”, passou a constar que
são de “homens e mulheres”. Além de Erundina,
também estão no catálogo, entre outros, os acer-
vos de duas participantes da Assembleia Nacional
Constituinte de 1933: a advogada e sindicalista
Almerinda Farias Gama (1899-1999), que atuou
ali como delegada classista, e a médica Carlota
Pereira de Queirós (1892-1982), primeira deputa-
da federal do Brasil. Gama é a única mulher negra

O
com arquivo pessoal no CPDOC, assinala Alves.
uso de metadados e indicadores, que permitem No alto, a advogada
utra iniciativa foi a criação da Rede identificar o que se encontra em cada documen- e sindicalista Almerinda
Farias Gama durante
de Arquivos de Mulheres (RAM), no to e orientam o trabalho de pesquisadores. No eleição de representantes
ano passado, em parceria com o Ins- entanto, as palavras-chave utilizadas ao longo classistas para a
tituto de Estudos Brasileiros da Uni- das décadas para facilitar a busca nos textos e Assembleia Nacional
versidade de São Paulo (IEB-USP). imagens refletem o cenário em que o arquivo se Constituinte de 1933.
Gama é a única mulher
Segundo Alves, a ideia nasceu em um formou. Por isso, a prevalência de arquivos de negra com arquivo pessoal
seminário virtual realizado em 2020, homens não é a única marca patriarcal nos acer- no CPDOC
durante a pandemia, em que pes- vos: até mesmo as legendas de fotografias podem
quisadoras do IEB-USP relataram esconder a presença de grupos como mulheres, A deputada federal
preocupações semelhantes com a invisibilidade pessoas negras e indígenas. Luiza Erundina com
o educador Paulo Freire.
feminina em seus acervos. “No mapeamento que No caso do CPDOC, Alves observa que pala- Fotografia (s/d) integra
fizemos nas duas instituições naquele ano, encon- vras-chave como “feminismo” ou “direitos das o acervo pessoal
tramos apenas 37 arquivos ao todo”, recorda a mulheres” não existiam e foram acrescentadas a doado pela parlamentar
socióloga, uma das coordenadoras da RAM. “Com partir do trabalho de digitalização de arquivos de ao CPDOC em 2019

a rede, pretendemos mobilizar outras instituições mulheres, alguns deles guardados na instituição
a se indagarem sobre essa representatividade.” desde os anos 1970. “Hoje, vivemos um momento
Hoje o grupo inclui ainda o Arquivo Nacional e em que a sociedade civil e os pesquisadores estão
o Instituto Moreira Salles. fazendo novas perguntas para os arquivos. E es-
Nos arquivos, em geral, o desafio tecnológico sas perguntas têm nos mobilizado a trabalhar as
e a ampliação dos esforços para incluir mulheres presenças que não víamos. É todo um mundo que
e outros grupos pouco ouvidos vêm convergindo se abre e leva as instituições arquivísticas a olhar
nos últimos anos. Isso provoca transformações até seus acervos de outro modo”, afirma a socióloga.
mesmo na documentação já armazenada há mais Transformações semelhantes, mas não idên-
tempo. Um elemento central da catalogação é o ticas, afetam uma outra vertente do trabalho do

PESQUISA FAPESP 331 | 79


CPDOC: o PHO, criado por iniciativa da soció- tos para difusão mais ampla. “A integração com
loga Aspásia Camargo dois anos após a chegada o núcleo de documentários levou a uma série de
do arquivo de Vargas. A instituição foi pioneira pequenas mudanças em nossa dinâmica”, conta
no Brasil em história oral, cujo surgimento, na Fonseca. “Podemos, por exemplo, usar mais de
década de 1940, é atribuído ao historiador e jor- uma câmera, o que não é comum na história oral.
nalista norte-americano Allan Nevins (1890-1971), Além disso, fizemos mudanças no estúdio para
que se aproveitou da disseminação de gravado- deixá-lo mais interessante do ponto de vista es-
res portáteis. tético. E evitamos sons e comentários durante a
“Naquela época, a história oral era um méto- fala dos entrevistados.”
do ainda pouco conhecido e valorizado no país”, Entre os produtos audiovisuais recentes do
declara Castro. “O CPDOC foi pioneiro tanto na CPDOC está Magia e poder: Fronteiras entre o
produção de entrevistas, que geram documentos sagrado e o profano (2019), dirigido por Gyovan-
que são arquivados e depois tornados públicos, na Alves e Lucas Pipolos. O filme se baseia no
quanto na discussão metodológica”, afirma. Em arquivo da antropóloga carioca Yvonne Maggie,
julho deste ano, a instituição sediou o 22o Con- professora da Universidade Federal do Rio de
gresso da Associação Internacional de História Janeiro (UFRJ), doado ao CPDOC. Nas décadas
Oral, do qual foi uma das criadoras. O centro tam- de 1970 e 1980, Maggie fez trabalhos de campo
bém publicou em 1990 o Manual de história oral em terreiros de umbanda e candomblé no Brasil
(cuja primeira edição se chamava História oral: A (ver Pesquisa FAPESP nº 295).
experiência do CPDOC), da historiadora Verena Tanto nos acervos pessoais quanto na história
Alberti. Neste ano, lançou o volume História oral oral, nas últimas décadas o CPDOC ampliou seu
e audiovisual: Experiências do CPDOC, editado escopo, mas manteve a diretriz de se dedicar à
por Castro, pela historiadora Vivian Fonseca e história política e social do Brasil republicano. O

A
pela comunicadora Thais Blank. ponto de partida, contudo, não é a Proclamação da
República, em 1889, mas os eventos que, a partir
s primeiras entrevistas de história de 1922, culminaram na revolução de 1930. A pri-
oral antecedem a criação do progra- meira leva de acervos a chegar ao centro, além da
ma. Em 1974, a própria filha de Var- coleção pertencente a Vargas, continha os papéis
gas, Alzira, que exerceu influência de seu ministro da Justiça, da Fazenda e das Re-
política sobre o pai, conversou com lações Exteriores Oswaldo Aranha (1894-1960) e
os pesquisadores. No mesmo ano, foi de seu ministro da Educação Gustavo Capanema
a vez do ex-presidente da República (1900-1985). Segundo o relato de Celina Vargas
Juscelino Kubistchek (1902-1976). ao PHO, a intenção foi criar uma instituição para Trecho do documentário
Hoje, o programa abriga mais de abrigar “um arquivo não de Getúlio Vargas, mas Magia e poder: Fronteiras
2.500 entrevistas e 8 mil horas de gravações, a do tempo de Getúlio Vargas”. Mais tarde, esse entre o sagrado e o profano
(2019), produzido pelo
maior parte transcrita. A partir de 2006, as en- arquivo inaugural seria também o primeiro do CPDOC a partir de arquivo
trevistas passaram a ser feitas também em vídeo, CPDOC a ser digitalizado em 2000. Já a funda- da antropóloga carioca
quando autorizado pelo entrevistado. O Núcleo ção do PHO se pautou no projeto inaugural da Yvonne Maggie
de Audiovisual e Documentário
1
(NAD), criado nesse mesmo ano,
compartilha a equipe, o espaço
e os equipamentos com o PHO.
“Quando passamos a filmar as
entrevistas, renovamos nossa
reflexão sobre história oral e
audiovisual”, diz Castro.
Segundo a historiadora Vi-
vian Fonseca, coordenadora do
PHO, a gravação em vídeo ainda
não é plenamente aceita entre
adeptos da história oral. Pes-
quisadores contrários à imagem
em movimento consideram que
os entrevistados não se sentem
tão à vontade perante a câmera
quanto com um gravador. Por
outro lado, as gravações em ví-
deo favorecem a produção de
documentários e outros produ-

80 | SETEMBRO DE 2023
Em sentido horário,
alguns dos pesquisadores
entrevistados pelo projeto
“Memória das ciências
sociais no Brasil”:
Alba Zaluar, Gabriel Cohn,
Fernando Limongi
e Alzira Alves de Abreu

instituição, “Trajetória e desempenho das elites consultado por pesquisadores, jornalistas e fi-
políticas brasileiras de 1930 até os dias de hoje”. guras políticas de todo o Brasil.
Atualmente, os arquivos e entrevistas estão Em 2007 o CPDOC passou a realizar entrevis-
ligados a projetos de temas variados, como fu- tas com cientistas sociais. A iniciativa deu pros-
tebol, a partir da pesquisa do sociólogo Bernar- seguimento a um dos primeiros grandes projetos
do Buarque de Hollanda (ver Pesquisa FAPESP de história oral realizados pelo centro, de 1977 a
nº 322); megaeventos esportivos, patrimônio e 1979, em parceria com a Financiadora de Estudos
política urbana, assuntos investigados por Fon- e Projetos (Finep): o mapeamento da produção
seca; e diplomacia, graças a estudos realizados em ciências naturais no Brasil. Coordenada pelo
por pesquisadores de relações internacionais, sociólogo Simon Schwartzman, então professor
FOTOS 1 REPRODUÇÃO, NÚCLEO DE AUDIOVISUAL E DOCUMENTÁRIO, FGV CPDOC  2 REPRODUÇÃO, PROGRAMA DE HISTÓRIA ORAL, FGV CPDOC

como Matias Spektor. A chegada do acervo do da Escola Brasileira de Administração Pública e


antropólogo Roberto Da Matta, em 2022, inspirou de Empresas (Ebape), da própria FGV, a proposta
uma parceria com lideranças do povo indígena original gerou 69 entrevistas, que foram incor-
Apinajé, para identificar etnias e indivíduos nas poradas ao acervo da instituição.
fotografias. Após a conclusão das pesquisas, en- Schwartzman relata que não tinha prática em
trevistas e demais documentos são incorporados história oral quando se dedicou ao trabalho. “Nas

D
ao acervo do CPDOC. entrevistas, os roteiros eram bem abertos. Per-
guntávamos sobre a carreira da pessoa, como se
essa forma, pesquisa e documentação interessou pela ciência. O foco estava nas insti-
se alimentam mutuamente, confor- tuições científicas”, lembra. E completa: “O ma-
me consta no nome da instituição. terial é muito rico. Algumas entrevistas duravam
Um dos resultados mais conhecidos muitas horas e, nas transcrições, podem chegar a
da prática é o Dicionário histórico- 200 páginas”. O projeto resultou na publicação
-biográfico brasileiro, projeto inicia- do livro Um espaço para a ciência: A formação
do pelos historiadores Israel Beloch da comunidade científica no Brasil (Companhia
e Alzira Alves de Abreu (1936-2023) Editora Nacional/Finep, 1979), de Schwartzman.
em 1974. A primeira edição, que saiu No momento, o sociólogo participa da propos-
10 anos mais tarde, tinha quatro volumes e 4.493 ta de criação de um projeto de pesquisa no qual
verbetes. A segunda versão, de 2001, trouxe pretende voltar ao tema. “Quero fazer uma ro-
6.620 verbetes distribuídos em cinco volumes, dada de entrevistas com a nova geração de líde-
além de uma versão em CD-ROM. Finalizada res e compará-las com os relatos da geração dos
em 2010, a terceira edição está disponível on- anos 1970, que colhi para o CPDOC”, finaliza. n
-line gratuitamente. Dos 7.553 verbetes, 6.584
são biográficos e 969 temáticos, ou seja, relati-
vos a instituições, eventos e conceitos políticos. Livro
Para Castro, o dicionário é “o produto de maior CASTRO, C. et al. História oral e audiovisual: Experiências do CPDOC.
impacto público na história do CPDOC”, sendo Rio de Janeiro: FGV, 2023.

PESQUISA FAPESP 331 | 81


LITERATURA

O PRÍNCIPE
ESFARRAPADO
Nova edição dos diários e pesquisas
revigoram figura do escritor Lúcio Cardoso

Francesca Angiolillo

“M
eu movimento de luta, aquilo Pesquisador independente, Ribeiro vem se
que busco destruir e incendiar dedicando ao longo das quatro últimas décadas
pela visão de uma paisagem à obra de Cardoso. Ele já havia feito uma primei-
apocalíptica e sem remissão é ra tentativa de cumprir os desígnios do escritor
Minas Gerais. Meu inimigo é quanto aos diários, em 2012. Naquela ocasião,
Minas Gerais. O punhal que le- porém, admite que “ficaram algumas falhas”.
vanto, com a aprovação ou não Ele aponta, por exemplo, problemas no índice
de quem quer que seja, é contra remissivo, nas notas e algumas lacunas decor-
Minas Gerais.” Era 25 de novem- rentes da dificuldade de localizar certos textos
bro de 1960 quando, nas páginas do Jornal do jornalísticos. Para estar pronta para o centená-
Brasil, o escritor Lúcio Cardoso (1912-1968) vo- rio de nascimento do autor, a publicação enco-
ciferava contra seu estado natal, em depoimento mendada pela editora Civilização Brasileira “foi
concedido ao jornalista e crítico literário Fausto feita muito às pressas”, diz. O que não impediu
Cunha a respeito do Diário I (Editora Elos), que que fosse um sucesso, esgotando-se a primeira
acabava de lançar. edição em quatro dias.
Àquela altura, Cardoso era já o autor de Crôni- Composto de dois volumes, Todos os diários
ca da casa assassinada (Livraria José Olympio engloba não apenas o “Diário I”, que o escritor
Editora, 1959), romance que atraiu grande aten- publicou em vida, e o “Diário II” – ambos reuni-
ção da crítica na época do lançamento. A história dos em Diário completo, lançado postumamente
narra a derrocada da tradicional família Mene- em 1970, pela editora José Olympio. A organiza-
ses em Vila Velha, localidade inventada da Zona ção de Ribeiro inclui também escritos pessoais
da Mata mineira. Possivelmente motivado pelo anteriores. Batizados na compilação de “Diário
sucesso do livro no meio literário, Cardoso ani- 0”, esses registros de 1942 a 1947 mostram um
mou-se em fazer algo que havia muito sonhava: Cardoso leitor de Dostoiévski (1821-1881) e da
reuniu os escritos íntimos datados de 1949 a 1951 Bíblia, da qual analisa e comenta trechos. Inte-
em Diário I, anunciando que consistiam apenas gram ainda a obra os textos de “Diário não ínti-
no primeiro volume de uma série de cinco. O mo”, coluna que manteve no jornal A Noite de
projeto, entretanto, nunca foi concluído. Car- 30 de agosto de 1956 a 14 de fevereiro de 1957.
FOTO  AUTOR NÃO IDENTIFICADO / ARQUIVO OTTO LARA RESENDE / ACERVO INSTITUTO MOREIRA SALLES

doso teve um acidente vascular cerebral (AVC), As lacunas que Ribeiro lamentou deixar em 2012
em 7 de dezembro de 1962, que paralisou seu dizem respeito a essa seção. Naquela ocasião, o
lado direito e atingiu gravemente sua fala. De- pesquisador teve acesso a uma coleção comple-
pois disso, desenvolveu uma carreira de pintor, ta da coluna logo após o livro ter sido finalizado.
usando a mão esquerda; a escrita se limitou a Por fim, a coletânea abarca textos dispersos, que
esboços e fragmentos. haviam sido publicados em outros periódicos.
Agora, contudo, chega às livrarias a versão Mais do que uma versão ampliada, os dois vo-
mais próxima do que ele imaginou. Com ares de lumes buscam corrigir uma sucessão de erros e
edição definitiva desde o título, Todos os diários imprecisões que nublaram por décadas os estu-
(Companhia das Letras) reúne a maior parte da dos cardosianos. Cássia dos Santos, docente da
prosa de não ficção do escritor. A organização Faculdade de Letras da Pontifícia Universidade
é de Ésio Macedo Ribeiro, que desenvolveu na Católica de Campinas (PUC-Campinas), foi quem
Universidade de São Paulo (USP) pesquisas de levantou o alerta. Na pesquisa de mestrado, rea-
mestrado e doutorado sobre a poesia do escritor. lizada na Universidade Estadual de Campinas
A dissertação (2001) foi um dos primeiros estudos (Unicamp), ela se debruçou sobre a recepção
Ao lado, o escritor acadêmicos a tratar dos versos do autor mineiro. crítica de romances e novelas do escritor mi-
mineiro Lúcio Cardoso Em 2006, o trabalho saiu em livro, em coedição neiro anteriores a Crônica da casa assassinada:
na década de 1940,
no Rio de Janeiro,
da Edusp e da Nankin Editorial. Nesse mesmo de Maleita (Schmidt Editor, 1934), seu livro de
cidade em que viveu ano, Ribeiro defendeu sua tese, publicada em estreia, a O enfeitiçado (Livraria José Olympio
por 45 anos 2011 pela Edusp, com o título Poesia completa. Editora, 1954). A dissertação foi defendida em

PESQUISA FAPESP 331 | 83


1997 e publicada com o título Polêmica e con- seria, “aparentemente, a primeira reunião dos
trovérsia em Lúcio Cardoso (Mercado de Letras, fragmentos que iriam dar origem ao texto do Diá-

N
Capas dos livros 2001), com apoio da FAPESP. rio completo”, escreve a pesquisadora no artigo.
O desconhecido (1940) A confusão prejudicou o entendimento de as-
e O enfeitiçado (1954), de
Cardoso, que também
aquele momento, Santos já se dedica- pectos importantes do processo de composição da
dirigiu o filme A mulher de va ao doutorado, concluído em 2005, obra do escritor, na avaliação de Santos. Por causa
longe (1949), com a atriz na Unicamp – no ano passado a tese do vaivém de datas, até seu cotejo depreendia-se
Maria Fernanda no elenco transformou-se no livro Um punhal que Cardoso havia alternado a escrita da novela
1 contra Minas (Mercado de Letras). O viajante, que ficou incompleta, com a de Crônica
Para essa pesquisa, que teve bolsa da casa assassinada. Além da miscelânea temporal
da FAPESP, visitou a Fundação Casa que estabelece, o datiloscrito que originou o Diá-
de Rui Barbosa (FCRB), depositária rio completo é coalhado de anotações e rasuras
do arquivo pessoal do escritor. Lá, variadas. Entre as mudanças introduzidas nesse
encontrou uma pasta com recortes de jornal. documento, está a omissão de nomes, como o de
Um desses era a entrevista concedida a Fausto Graciliano Ramos (1865-1953), a quem Cardoso
Cunha, porém sem a data. Ela recorreu então aos faz “duras críticas”, conta Ribeiro. De acordo com
microfilmes da coleção de periódicos da Biblio- as pesquisas realizadas por ele para a edição atual
teca Nacional, também no Rio, e descobriu que a dos diários, essas interferências teriam sido feitas
entrevista era de novembro de 1960. Portanto, o pela escritora Maria Helena Cardoso (1903-1977),
Diário I não havia sido publicado em 1961, como possivelmente preocupada em não ferir suscetibi-
2 todos pensavam até então. lidades com notas pouco lisonjeiras redigidas pelo
Esse foi o primeiro erro que Santos achou na irmão. Em relação ao autor de Memórias do cárcere,
edição do Diário completo feita pela José Olympio. livro que o exasperou, Lúcio Cardoso anotou em
A pesquisadora percebeu que, pelo fato de ter se 7 de junho de 1958: “A modéstia do autor é falsa e
baseado nessa versão, havia sido vítima de outras o que ele viu e aprendeu durante o período de sua
falhas presentes na obra que comprometeram os prisão, restrito e superficial”.
resultados de sua pesquisa de mestrado. Isso por- Nos diários sobressai a personalidade contradi-
que, mais que “completo”, aquele diário lançado tória do escritor. Conservador em política, Cardoso
em 1970 era, em alguns aspectos, ficcional. Santos era liberal nos costumes. Homossexual, vivia um
contou essa história em um artigo publicado na embate com sua fé católica. Embora tenha aban-
Revista do Centro de Estudos Portugueses da Uni- donado a Igreja, não podia deixar de crer em Deus,
versidade Federal de Minas Gerais (UFMG), em como atesta em vários momentos nos relatos pes-
2008. No texto, escrutina a edição lançada pela soais. “O grande drama existencial de Lúcio resi-
3
José Olympio, que abran- de no choque entre a sexualidade e o universo de
gia os períodos de 1949 a formação católica de Curvelo, cidade onde nasceu
1951, correspondendo à no interior de Minas, que o persegue até o final da
edição feita por Cardoso, vida, inclusive e principalmente nos diários”, diz
e também de 1952 a 1962. Leandro Garcia Rodrigues, professor de teoria da
A lista das improprieda- literatura e literatura comparada da UFMG.
des descritas no artigo de Organizador de Lúcio Cardoso, 50 anos depois
2008 é longa. A pesquisa- (Relicário, 2020), resultado de colóquio realizado
dora mostra, por exemplo, em 2018, na UFMG, Rodrigues trata em um dos
que todas as anotações de artigos da compilação da breve e pouco conhecida
1952 a 1955 tiveram suas troca de missivas entre Cardoso e Mário de Andra-
datas alteradas no livro de (1893-1945). A relação com o intelectual pau-
publicado pela José Olym- lista é objeto de um segundo texto de Rodrigues,
pio, bem como algumas presente na coletânea. Em “Mário de Andrade
dos anos de 1956 a 1958 e leitor de Lúcio Cardoso”, ele traz as anotações do
de 1960. Além disso, ano- crítico sobre as oito obras do escritor mineiro que
tações que já haviam esta- reunia em sua biblioteca. É o caso de O desconhe-
do na edição feita em vi- cido (Livraria José Olympio Editora, 1940), livro
da por Cardoso ressurgem “cheio de lugares comuns”, na opinião de Andrade.
em anos posteriores. Erros A respeito de “Rosa vermelha”, de Poesias, lançado
que Santos encontrou em em 1941, pela mesma editora, registrou: “Um dos
um datiloscrito de 145 pá- mais perfeitos e belos poemas brasileiros”. Em
ginas guardado na FCRB conjunto, os dois trabalhos ajudam a iluminar a
estão refletidos na edição recepção dos escritos de Cardoso pelo modernista.
feita em 1970 pela José Em tese de doutorado defendida em 2022, na
Olympio. Esse conjunto Escola de Comunicações e Artes da USP, a editora

84 | SETEMBRO DE 2023
Cena de Porto das caixas
(1962) e cartaz de A casa
assassinada (1971), filmes
dirigidos por Paulo Cezar
Saraceni a partir de
histórias de Cardoso

Lívia Azevedo Lima analisa os longas-metragens


que o diretor de cinema Paulo Cezar Saraceni
(1932-2012) fez a partir de três histórias de Car-
doso: Porto das caixas (1962), com argumento
do escritor mineiro, A casa assassinada (1971) e
FOTOS  1 E 2 REPRODUÇÃO  3 RUY SANTOS / ACERVO DA CINEMATECA BRASILEIRA 4 ACERVO DA CINEMATECA BRASILEIRA  CARTAZ FERDY CARNEIRO / ACERVO DA CINEMATECA BRASILEIRA

O viajante (1998), a partir do romance homôni-


mo inacabado e póstumo, publicado em 1973.
“Infelizmente, a parceria iniciada em Porto das
5
caixas foi interrompida pelo derrame de Lúcio,
mas isso não impediu que Saraceni continuasse bem como sua poesia, pouco difundida, merece-

A
os projetos”, diz Lima. riam ser tema de novos estudos acadêmicos, na
opinião de Ribeiro. Até hoje, diz, grande parte
lém disso, a pesquisadora trata das das pesquisas gira em torno de Crônica da casa
incursões cinematográficas do es- assassinada. Para Lima, o romance continuará
critor, como cronista de cinema, a ser manancial de novos estudos, sobretudo a
roteirista e cineasta. Em 1949, partir de questões de gênero e sexualidade. “O
ele filmou A mulher de longe. Por personagem Timóteo, por exemplo, ao mesmo
muito tempo esse filme inacaba- tempo compartilha de valores conservadores
do foi considerado desaparecido, da oligarquia rural à qual pertence e se veste
até o cineasta Luiz Carlos Lacer- com as roupas e joias de sua falecida mãe”, cita
da, filho do produtor de Cardoso, a pesquisadora.
João Tinoco de Freitas (1908-1999), localizar O escritor não anteviu o sucesso duradouro do
um copião na Cinemateca Brasileira. Em 2012, romance, que foi lançado em países como França,
realizou um documentário homônimo so- Estados Unidos e Holanda. Uma anotação de 1959
bre o projeto. A interrupção das filmagens de em seu diário mostra que ele se via assaltado por
A mulher de longe se deveu à falta de orçamento “uma grande melancolia”. Estava convencido de
e de experiência, além do temperamento impa- que, como outros, o romance tombaria “no silên-
ciente, como Cardoso justificaria nos diários: “O cio e no desinteresse”. O silêncio não se abateria
cinema é, de todas as artes, a mais trabalhosa. sobre sua obra, mas sobre ele. O escritor caiu
[...] Um filme é um mundo que se recria [...]. Ao doente menos de dois meses após a última nota
contrário do romance, não são leis e códigos de seu diário, em 17 de outubro de 1962, quando
de ordem subjetiva [...] e sim imperativos da registrou: “Quero amar, viajar, esquecer – quero
ordem imediata, princípios de uma realidade terrivelmente a vida, porque não creio que exista
tangível, objetiva, agressiva como uma rocha nada de mais belo e nem de mais terrível do que
cheia de arestas”. a vida. E aqui estou: tudo o que amo não me ouve
Cardoso também foi dramaturgo e diretor mais, e eu passo com a minha lenda, forte sem o
teatral. Dentre outras peças, escreveu O filho ser, príncipe, mas esfarrapado”. n
pródigo (1943) para o Teatro Experimental do
Negro (TEN), de Abdias do Nascimento (1914- Os projetos, o artigo científico e o dossiê consultados para esta re-
2011). Essas experiências de cinema e de teatro, portagem estão listados na versão on-line.

PESQUISA FAPESP 331 | 85


OBITUÁRIO

INTELECTUAL
PÚBLICO
José Murilo de Carvalho
renovou o estudo da formação
das elites e da cidadania no país

Diego Viana

S
e tivesse bons conhecimentos Esses textos tratam da formação do
de matemática aos 18 anos, Brasil como nação, a partir das decisões
O historiador
José Murilo de Carvalho te- tomadas pelas elites do país. Ambos são e cientista político
ria estudado para ser econo- considerados marcos da historiografia interpretou o Brasil
mista. Porém, com sua forma- do Império por serem os primeiros a por meio de obra
ção clássica no Seminário Seráfico Santo usar dados e documentos para mostrar abrangente

Antônio, em Santos Dumont (MG), não como se constituiu o Estado brasileiro


conseguia resolver equações e, por isso, e como se consolidaram as elites impe-
matriculou-se no curso de sociologia e riais. Carvalho interpretou a formação
política da Universidade Federal de Mi- da burocracia do período, a continuidade panhia das Letras, 1987). Ainda com esse
nas Gerais (UFMG). Esse acaso escolar com o sistema português e a manutenção tema, Carvalho lançou A formação das
determinou os rumos da carreira de um da unidade territorial do país. “Ele mos- almas: O imaginário da República no Bra-
dos principais historiadores brasileiros. trou que a elite imperial não era mera sil (Companhia das Letras, 1990), sobre
Nascido em Piedade do Rio Grande representante dos proprietários rurais a implantação do regime republicano.
(MG), em 8 de setembro de 1939, Carvalho e que o Estado não era apenas o execu- Nos últimos 20 anos, no contexto do
morreu aos 83 anos, no dia 13 de agosto. tor dos interesses dessa classe”, explica CEO, Carvalho dedicou-se a um projeto
Estava internado no Hospital Samaritano, a historiadora Gladys Sabina Ribeiro, da sobre a circulação de panfletos no perío-
no Rio de Janeiro, devido a uma pneumo- Universidade Federal Fluminense (UFF). do da Independência, em parceria com
nia e à Covid-19, que atingiram os pulmões Ribeiro, Bastos e Carvalho estiveram Bastos e o historiador Marcelo Basille,
já fragilizados, como informa a historia- entre os criadores, em 2003, do Centro da Universidade Federal Rural do Rio de
dora Lúcia Maria Bastos Pereira das Ne- de Estudos do Oitocentos (CEO-UFF). Janeiro (UFRRJ). Segundo Bastos, esse
ves, da Universidade do Estado do Rio Desde o início, o objetivo da iniciativa projeto, condensado nos livros Às armas,
de Janeiro (Uerj), sua amiga há 25 anos. foi aglutinar pesquisadores do século cidadãos (Companhia das Letras, 2012) e
Formado como cientista político em XIX de diversas instituições por meio Guerra literária: Panfletos da Independên-
1965, Carvalho enveredou por temas his- de reuniões periódicas e um banco de cia (Editora UFMG, 2014, com quatro vo-
tóricos a partir de seu mestrado (1969) e dados com trabalhos de seus associados. lumes), também teve o propósito de trazer
doutorado (1975), realizados na Univer- Após o exame das elites imperiais, Car- à luz a atuação daqueles que não detinham
sidade Stanford, nos Estados Unidos. Sua valho se voltou para o estudo daqueles poder naquele momento decisivo.
tese foi publicada em dois livros: A cons- que estavam excluídos do processo de- Em 2001, foi a vez de publicar Cida-
trução da ordem: A elite política imperial cisório, conforme o título de um de seus dania no Brasil: O longo caminho (Civi-
(Campus/UnB, 1980) e Teatro de sombras: principais livros: Os bestializados. O Rio lização Brasileira). “José Murilo foi um
A política imperial (Vértice/Iuperj, 1988). de Janeiro e a República que não foi (Com- dos autores que mais escreveram e re-

86 | SETEMBRO DE 2023
oficialato”, diz. Para Castro, ao colocar
em evidência “aspectos organizacionais
da instituição militar”, Carvalho conse-
guiu explicar em parte o comportamen-
to político dos militares. “Essa era sua
preocupação central”, completa.
Como professor e pesquisador, passou
por instituições como UFMG e Universi-
dade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ),
onde se tornou emérito em 2011. Foi pro-
fessor e pesquisador visitante nas uni-
versidades de Oxford, Londres (ambas
no Reino Unido), Leiden (Países Baixos),
Stanford, Instituto de Estudos Avança-
dos de Princeton, Califórnia Irvine, No-
tre Dame (todas nos Estados Unidos),
Escola de Altos Estudos em Ciências
Sociais (França) e Fundação Ortega y
Gasset (Espanha). Em 2003 tornou-se
membro da Academia Brasileira de Ciên-
cias (ABC) e, no ano seguinte, da Acade-
mia Brasileira de Letras (ABL). Em 2015
recebeu o título de doutor honoris causa
da Universidade de Coimbra (Portugal).
Desde a década de 1980, Carvalho co-
laborava regularmente com a imprensa
com artigos e entrevistas. “Ele achava que
fletiram sobre a cidadania no país”, diz (Zahar) reeditou os artigos “As Forças o intelectual tinha que ter uma posição
Ribeiro. Por um lado, ele buscou mostrar Armadas na Primeira República: O po- em relação aos problemas da sociedade. E
que a cidadania foi construída “de cima der desestabilizador” (1977) e “Forças deveria expressá-la como pessoa pública”,
para baixo”, com grande peso do Esta- Armadas e política, 1930-45” (1982), comenta Bastos. Na opinião de Castro, a
do, e chegou inclusive a cunhar o termo além de outros escritos. Em 2019, mo- abrangência de sua obra e de suas inter-
“estadania”. Ao mesmo tempo, observou tivado pela chegada à Presidência do venções públicas fez de Carvalho um dos
que, desde o século XIX, os protestos da ex-capitão do Exército Jair Bolsona- últimos grandes intérpretes do Brasil.
população revelavam a emergência de ro, o historiador redigiu um capítulo Para a historiadora da Uerj, a função
uma “cidadania em negativo”, em que “a suplementar para a obra, republicada de intelectual público estava alinhada
criação da cidadania de cima para baixo pela editora Todavia. à maneira como Carvalho concebia a

D
enfrentava a resistência daqueles que pesquisa. “Ele vinha de uma escola que
entendiam a ação do Estado como in- e acordo com o antropólogo e tinha preocupação com o tempo presen-
terferência no seu cotidiano e nas suas historiador Celso Castro, do te”, afirma Bastos. “Durante a ditadura,
FOTO  LÉO RAMOS CHAVES / REVISTA PESQUISA FAPESP

tradições”, prossegue Ribeiro. A obra do Centro de Pesquisa e Docu- estudou as elites e os militares. Depois,
historiador indica que esses movimen- mentação da Fundação Ge- com a redemocratização, dedicou-se à
tos não eram uma recusa à cidadania por tulio Vargas (FGV CPDOC), cidadania. Com a volta dos militares à
parte desses indivíduos e podiam conter os artigos são fruto de uma pesquisa em- política, atualizou a obra sobre eles. Sua
uma luta política. pírica original, aliada a uma profunda obra percorre toda a história do Brasil,
Ao longo da trajetória de Carvalho, reflexão teórica. “Ele conseguiu mostrar, exceto o período colonial. José Murilo
um tema permaneceu em segundo pla- por exemplo, que o tenentismo dos anos trouxe reflexões importantes a respeito
no, vindo à tona como livro em 2005: a 1920 estava relacionado a um problema do Império e da República, que são fun-
atuação política dos militares. O volu- de ascensão na carreira, já que os tenen- damentais para entender a sociedade
me Forças Armadas e política no Brasil tes compunham uma parcela enorme do brasileira”, conclui. n

PESQUISA FAPESP 331 | 87


OBITUÁRIO

UM
GESTOR
DE
PESQUISA
O engenheiro-agrônomo
Joaquim José de
Camargo Engler foi diretor
da Esalq e da FAPESP

A
os sábados pela manhã, Joa- cadeira de economia rural e já partiu “O professor Engler dizia que a Esalq
quim José de Camargo En- para o doutorado em economia aplica- não podia ter apenas o dinheiro dispo-
gler repetia o mesmo ges- da, obtendo o título em 1968 na própria nível da universidade, mas deveria pro-
to cotidiano de segunda a Esalq”, conta Evaristo Marzabal Neves, curar obtê-lo também de outras fontes
sexta-feira, adquirido havia professor aposentado e ex-diretor da para não ficar limitada a um orçamento
décadas, e gastava algum tempo lendo o instituição. No mesmo ano, foi como bol- que muitas vezes era insuficiente”, re-
Diário Oficial do Estado. “Sabe por quê? sista da FAPESP para a Universidade lata Ricardo Ferraz de Oliveira, coor-
As piores coisas, as mais controversas, Estadual de Ohio, nos Estados Unidos, denador do Laboratório de Estudos de
são publicadas no sábado quando nin- na qual fez o mestrado (1970) e um novo Plantas sob Estresse (Lepse-Esalq). “Ele
guém presta atenção ao Diário Oficial. doutorado (1971) na mesma área. e meu pai, Antonio Sanchez de Oliveira
É uma estratégia muito antiga do go- De volta a Piracicaba em 1972 como [1931-2008], docente do Departamento
verno”, dizia o engenheiro-agrônomo, docente, colaborou como assessor técni- de Engenharia Rural, formaram por vá-
diretor administrativo da FAPESP de co no Ministério da Educação e iniciou rios anos uma boa dupla para trabalhar
1993 a 2017. O hábito foi criado na longa o trabalho como professor visitante para pela infraestrutura do campus.” Ricardo
carreira de gestor público, que incluiu a a área de teoria econômica no Centro de lembra que foi Engler quem instituiu o
direção da Escola Superior de Agricultu- Estudos de Economia Agrária do Institu- campus Luiz de Queiroz durante seu pe-
ra Luiz de Queiroz da Universidade de to Gulbenkian de Ciência, em Portugal, ríodo como diretor da Esalq entre 1983 e
São Paulo (Esalq-USP) e a participação até 1976. Nesse mesmo ano, foi um dos 1986, já como professor titular, e tornou-
em cargos administrativos nas diversas idealizadores e instituidores da Funda- -se seu primeiro prefeito.
instâncias da USP. Engler morreu em ção de Estudos Agrários Luiz de Quei- Ricardo e Neves reconhecem a vo-
23 de julho, aos 81 anos, em São Paulo. roz (Fealq). O organismo foi criado para cação de gestor público de Engler, mas
Natural de Campinas, Engler formou- captar recursos nacionais e internacio- ressaltam seu empenho na formação
-se em 1964 na Esalq, localizada em Pi- nais de modo a apoiar e administrar as de jovens. “Ele incentivava a carreira
racicaba (SP). “Naquela época ainda ha- atividades de pesquisa e a formação de acadêmica, procurava interessar alu-
via cadeiras com a chefia de professores recursos humanos com mais agilidade nos a se dedicar à pesquisa e era muito
catedráticos. Ele frequentou a chamada e flexibilidade. bom na garimpagem de bolsas e recur-

88 | SETEMBRO DE 2023
com atenção no interesse público e na
capacidade de relacionar-se harmoni-
Engler em 2004:
vocação para
camente com os colegas de trabalho”,
a administração diz o atual diretor administrativo, Fer-
pública nando Menezes. “Tê-lo sucedido na
Diretoria Administrativa permite-me
ainda testemunhar a generosidade e a
amizade com que sempre me apoiou e
aconselhou.”
Celso Lafer, presidente do Conselho
Superior da Fundação entre 2007 e 2015,
lembra que Engler tinha grande conhe-
cimento da lógica interna da FAPESP,
uma instituição complexa, e dos recursos
que viabilizam sua ação. “No período em
que presidi a Fundação, quando já tinha
mudado o patamar de receita por força
da Constituição, seus conselhos foram
fundamentais”, afirma. Carlos Américo
Pacheco, diretor-presidente do Conse-
lho Técnico-Administrativo (CTA) da
FAPESP, destaca sua dedicação à Fun-
dação: “Era uma pessoa muito compe-
tente e discreta. Eu, em especial, aprendi
muito com ele”.
Para Carlos Henrique de Brito Cruz,
presidente entre 1996 e 2002 e dire-
tor-científico da Fundação de 2005 a
abril de 2020, Engler teve uma carrei-
ra exemplar de dedicação à pesquisa.
“Prudente, sábio e discreto, sua expe-
riência e conhecimento da história da
Fundação muito auxiliaram a mim e aos
colegas”, relata.
Marco Antonio Zago, atual presiden-
te do Conselho Superior da FAPESP e
reitor da USP entre 2014 e 2017, enfatiza
sua importância para as instituições. “A
figura do professor Engler estará defini-
sos em agências de fomento para indicar tes quando fui reitor da universidade, tivamente ligada às histórias da FAPESP
a quem desejava estudar no exterior”, de 1986 a 1990. Era discreto, eficiente e e da USP. Os ordenamentos administra-
diz Neves. “Coordenou convênios com leal”, contou José Goldemberg à Agência tivo e financeiro das duas instituições
universidades do exterior, como as esta- FAPESP. Goldemberg presidiu o Con- guardarão, por longo tempo, os sinais
duais de Ohio e Michigan, nos Estados selho Superior da FAPESP entre 2015 de sua passagem, marcada pela visão
Unidos, e com a Fundação Ford para e 2018, quando o reencontrou no cargo de que os interesses acadêmicos e de
desenvolvimento de estudos agrícolas, de diretor administrativo da Fundação. pesquisa devem se superpor às rotinas

E
para trazer professores visitantes e en- burocráticas”, afirma.
viar estudantes aos grandes centros de ngler foi coordenador da área Entre os prêmios e distinções que o
outros países.” de Ciências Agrárias da Dire- ex-dirigente recebeu, estão o Interna-
FOTO  EDUARDO CESAR / REVISTA PESQUISA FAPESP

Na segunda metade dos anos 1980 toria Científica da FAPESP a cional Alumni Award (1994), da Uni-
começou a trabalhar na reitoria da USP. partir de 1986 e membro do versidade Estadual de Ohio; a Medalha
Foi assessor técnico de planejamento, Conselho Superior dois anos Fernando Costa (1991), da Associação de
chefe de gabinete do reitor, coordenador depois. Em 1993, assumiu a Diretoria Engenheiros Agrônomos do Estado de
de Administração Geral e, por 31 anos, Administrativa. “Ao longo dos 24 anos São Paulo; a Medalha Paulista de Mérito
presidente da Comissão de Orçamen- em que foi diretor administrativo, pe- Científico e Tecnológico (2001); o Prê-
to e Patrimônio. “Conheci o professor ríodo ainda complementado por mais mio IAC – Personalidade da Pesquisa
Engler há mais de 50 anos, como colega seis anos como assessor da presidência (2014), entre outros.
no Conselho Universitário da USP, um do Conselho Superior, ele marcou a his- Engler deixa a mulher, Cleide, os fi-
de meus colaboradores mais importan- tória da FAPESP com sua integridade, lhos, Cristina e Fábio, e três netos. n

PESQUISA FAPESP 331 | 89


MEMÓRIA

MARCAS E
FOTOS 1 MINISTÉRIO DA PREVIDÊNCIA SOCIAL  2 WIKIMEDIA COMMONS  3 ACERVO MUSEU FERROVIÁRIO REGIONAL DE BAURU
m 1932, um funcionário da Companhia Pau-
lista de Estradas de Ferro chamado Antonio
Vieira decidiu se aposentar e pediu a conta-
gem do seu tempo de serviço. Ele trabalhara

DA
por alguns anos na construção das ferrovias
operadas pela concessionária e depois foi contratado
como feitor, ficando responsável por uma das equipes
de limpeza e manutenção dos trilhos. Ganhava quase

EXCLUSÃO
como os maquinistas que conduziam as locomotivas
e, segundo seus cálculos, havia completado 30 anos
de trabalho para a companhia, tempo suficiente para
poder descansar.
O engenheiro que analisou o caso disse que a Pau-
Rever as origens da agora centenária lista não tinha nada a ver com os anos em que Vieira
trabalhara nas obras, porque ele tinha sido contrata-
Previdência Social no Brasil ajuda do pelos empreiteiros encarregados da construção,
e não diretamente pela empresa que administrava
a entender os dilemas do presente as linhas de trem. Vieira entendia que trabalhara o
Ricardo Balthazar tempo todo para a Paulista, ainda que não tivesse
vínculo formal com ela. Não adiantou. “A Compa-
nhia não pode contar para esse feitor o tempo que ele
trabalhou por conta daqueles empreiteiros”, anotou
o engenheiro na ficha do empregado.

90 | SETEMBRO DE 2023
Encontrada nos antigos arquivos da roviários foram a primeira categoria de
Paulista pela historiadora Ana Lucia trabalhadores a contar com um sistema
Duarte Lanna, da Faculdade de Arqui- de proteção social organizado em mol-
tetura e Urbanismo da Universidade de des modernos, com direitos e obrigações
São Paulo (FAU-USP), a ficha de Antonio bem definidos.
Vieira abre uma fresta no passado e ajuda Cada empresa do setor teve de cons-
a entender o presente. O documento é tituir um fundo exclusivo para garantir
uma amostra das dificuldades enfrenta- o custeio de aposentadorias, pensões e
das pelos trabalhadores nos primórdios auxílios destinados aos empregados e
do sistema previdenciário brasileiro e seus familiares. Cada caixa seria alimen-
ainda se reflete nas barreiras que até hoje tada por contribuições compulsórias dos
impedem muitos de alcançar os benefí- funcionários, equivalentes a 3% dos seus
cios que ele oferece. salários, das empresas, que entravam
A lei que criou as caixas de aposenta- com 1% de suas receitas, e dos usuários
doria e pensões dos ferroviários marca a das ferrovias, que passariam a pagar um
fundação da Previdência Social no Brasil. adicional de 1,5% sobre o valor das tari-
Aprovada pelo Congresso Nacional em fas cobradas pelas ferrovias.
dezembro de 1922, ela foi sancionada pelo Para se aposentar com o benefício in-
presidente Artur Bernardes (1875-­1955) tegral, que podia alcançar 90% dos ven-
em janeiro de 1923, há 100 anos. Militares, cimentos da ativa no caso dos salários
professores e outros servidores públicos mais baixos, os ferroviários precisavam
tinham direito a pensões concedidas pe- completar 30 anos de serviço e 50 anos
lo governo desde o Império, mas os fer- de idade. Quem completasse o tempo
de serviço requerido antes dos 50 anos
podia se aposentar com valor menor,
assim como os mais velhos, com mais
de 60 anos, se tivessem pelo menos 25
Livro de Registro anos de serviço. Os benefícios pagos pe-
de Aposentadorias
com o nome de
las caixas incluíam assistência médica,
Bernardo Gonçalves, indenização por acidentes e pensão por
o primeiro morte para os herdeiros.
trabalhador a se Em um país que tinha abolido a es-
aposentar de
acordo com as
cravidão havia pouco tempo, onde as
regras criadas por relações de trabalho eram precárias e a
Eloy Chaves (à dir.) única proteção oferecida pela legislação
1 2
era o seguro contra acidentes, as caixas
representaram um avanço. Ainda assim,
só atendiam aos ferroviários, e a maioria
dos trabalhadores continuou desampa-
rada como antes. “A dificuldade para in-
corporar grandes parcelas da população
marca o nosso sistema desde o início”,
afirma o economista Andrej Slivnik, que
fez mestrado em história com uma dis-
sertação sobre as origens da Previdência
e agora aprofunda a pesquisa para seu
doutorado, na Universidade Estadual de
Campinas (Unicamp).
A criação das caixas dos ferroviários
foi resultado de um projeto do deputa-
do federal Eloy Chaves (1875-1964), do
Partido Republicano Paulista. As expor-
tações de café eram o principal motor
da economia brasileira, e os fazendeiros
dependiam dos trens para transportar
a mercadoria. As concessionárias das
ferrovias se preocupavam constante-
Funcionários da Companhia Paulista de Estrada de Ferro, na estação de Bauru mente com a agitação sindical entre os
ferroviários, que eram muito bem orga-
3

PESQUISA FAPESP 331 | 91


nizados e paralisaram as linhas de trem O primeiro trabalhador que se apo- zação semelhante ao dos atuais fundos
várias vezes no início do século XX. As sentou de acordo com as novas regras de pensão privados, em que o acúmulo
empresas viam nas caixas de aposenta- chamava-se Bernardo Gonçalves. Che- das contribuições feitas pelos trabalha-
doria um meio de conter a insatisfação fe de uma estação da São Paulo Railway dores ao longo da vida ativa financia a
dos trabalhadores e levaram a ideia ao Company, que construíra a primeira fer- aposentadoria na velhice, mas sempre
deputado em meados de 1921. rovia do estado no século XIX, ele tinha houve dúvidas sobre a solidez financeira
Chaves apontou a paz social como 58 anos e quase 37 anos de serviço quan- das caixas.
seu objetivo principal. “À áspera luta do decidiu pedir aposentadoria. “Sou “O arranjo descentralizado, com ins-
de classes figurada e aconselhada pelos levado a fazer tal pedido ainda no início tituições pequenas pulverizadas e sob
espíritos extremados ou desvairados por da vida da caixa, atendendo ao precário controle das empresas, não era o mais
estranhas e complicadas paixões, eu an- estado da minha saúde”, afirmou em seu adequado em termos de compartilha-
teponho, confiando no seu êxito final, a requerimento, apresentado em junho de mento dos riscos”, afirma o economista
colaboração íntima e pacífica de todos, 1923 e aprovado quase dois meses depois. Luis Eduardo Afonso, da Faculdade de

O
em benefício da pátria comum e dentro Economia, Administração, Contabili-
da ordem”, ele discursou, ao apresen- sistema foi ampliado nos dade e Atuária da USP, que pesquisou o
tar a proposta à Câmara dos Deputados. anos seguintes, com cai- tema para sua tese de doutorado. “Nosso
Os debates sobre o projeto se arrasta- xas de aposentadoria para mercado financeiro era muito incipiente
ram por mais de um ano. A idade mínima portuários, empregados de e não tinha instrumentos que pudessem
exigida para concessão de aposentadoria companhias de navegação e sustentar as caixas no longo prazo.”
integral foi reduzida de 55 para 50 anos outras categorias de trabalhadores bem Em 1945 a grande maioria da popu-
durante a tramitação. A lei autorizava organizados, e a criação do Instituto de lação continuava desprotegida. Segun-
as empresas a pagar temporariamente Previdência dos Funcionários Públicos do o Censo Demográfico de 1940, 83%
benefícios menores do que os previstos da União. Era um sistema de capitali- da força de trabalho era composta por
se os fundos acumulados nas caixas se
revelassem insuficientes para custeá-los. 1

Cada caixa deveria ser administrada por


um conselho presidido por um dirigen-
te da empresa e composto por mais dois
funcionários escolhidos por ela e dois
empregados eleitos pelos ferroviários.
A lei não previa interferência do go-
verno na gestão das caixas, mas isso logo
mudou por causa das situações em que
as empresas pareciam buscar subterfú-
gios para descumpri-la, como no caso do
feitor Antonio Vieira. Três meses depois
da aprovação da lei, Artur Bernardes
criou o Conselho Nacional do Trabalho
e o incumbiu de fiscalizar as caixas dos Registro de
ferroviários. Suas atribuições incluíam a emprego de um
produção de relatórios anuais e a análise funcionário na
Associação dos
de recursos apresentados pelos benefi- Socorros Mutuos
ciários do sistema contra decisões dos Ribeiro de Barros
administradores dos fundos. em 1932

A evolução 1821  Dom João VI 1888  Decreto da 1923  A Lei Eloy Aposentadorias e Pensões
concede aposentadoria a princesa Isabel concede Chaves cria as caixas (IAP), beneficiando
do sistema mestres e professores com direito à aposentadoria a de aposentadorias e categorias de profissionais
30 anos de serviço empregados dos Correios pensões (CAP) no setor específicas, com
Marcos na história ferroviário, depois abrangência nacional
da Previdência 1835  Criação do 1919  Lei aprovada pelo instituídas para outros
Social no Brasil Montepio Geral de Congresso institui seguro setores, como o portuário 1960  Unificação das
Economia dos Servidores obrigatório para acidentes e o marítimo regras das CAP e dos IAP
do Estado, que pagava de trabalho, com e fixação de valores
pensões aos funcionários indenizações pagas pelas 1933  Criação máximos para contribuições
públicos empresas dos Institutos de e benefícios

92 | SETEMBRO DE 2023
empregados domésticos e trabalhadores
rurais, que ainda precisariam esperar
três décadas para ter direito a benefícios
previdenciários.
Os principais institutos eram finan-
ciados por categorias numerosas, como
bancários, comerciários e empregados
da indústria. Seu equilíbrio financeiro
logo se viu ameaçado. O governo dei-
xou de honrar seus compromissos com
o financiamento dos institutos, acumu-
lando dívidas, e as entidades investiram
parte das reservas de seus participantes
em projetos sem retorno garantido, de
hospitais e conjuntos habitacionais à
construção de Brasília.
Carteira de
As despesas dos institutos com bene- trabalho antiga
fícios cresceram aceleradamente, e os e aplicativo
sinais de que suas reservas estavam se do INSS
2 3
esgotando ficaram evidentes nos anos
1960. Segundo cálculos da economista Previdência Social (INPS), substituído motivos para entrar no sistema, porque
Juliana Trece, do Instituto Brasileiro de pelo Instituto Nacional do Seguro Social contam com os benefícios dos progra-
Economia da Fundação Getulio Vargas (INSS) em 1990. mas de assistência social do governo e
(Ibre-FGV), em meados da década as dí- A cobertura do sistema só alcançou a dificilmente conseguiriam ganhar mais
vidas que o Instituto de Aposentadorias maioria da força de trabalho na década se contribuíssem com a Previdência”,
e Pensões dos Industriários (Iapi) tinha de 1970, quando trabalhadores rurais, afirma o estatístico Kaizô Iwakami Bel-
a receber, principalmente do governo, autônomos e empregados domésticos trão, da Escola de Políticas Públicas e
comprometiam 67% dos ativos com que ganharam direito à aposentadoria. Boa Governo da FGV.
FOTOS 1 WIKIMEDIA COMMONS  2 E 3 LÉO RAMOS CHAVES / REVISTA PESQUISA FAPESP

a entidade contava para pagar os benefí- parte da população continua desprote- Com despesas crescentes e contribui-
cios prometidos aos trabalhadores. gida, porém. Trabalhadores sem carteira ções insuficientes, sucessivos governos se

O
assinada, como motoristas de aplicativos viram forçados a promover novas refor-
modelo se tornou insusten- e entregadores de restaurantes, não têm mas para corrigir desequilíbrios – desde a
tável e teve de ser reforma- direito aos benefícios do INSS. Segundo Constituição de 1988, foram sete. O défi-
do outra vez. Em 1960, a Lei a Organização Internacional do Traba- cit do regime geral do INSS foi reduzido,
Orgânica da Previdência lho (OIT), 61% da força de trabalho do mas deve alcançar 2,5% do Produto Inter-
Social instituiu o regime de Brasil tem cobertura previdenciária hoje. no Bruto (PIB) neste ano e a previsão dos
repartição vigente até hoje, em que apo- A média nas Américas é 65%, incluindo economistas é de que voltará a crescer. Os
sentadorias e pensões dos mais velhos os Estados Unidos, e a da Europa é 84%. primeiros dados divulgados pelo Censo
são custeadas por contribuições dos tra- Para trabalhadores sem inserção no de 2022 indicam que o financiamento do
balhadores que estão na ativa. Caixas e mercado formal, que contribuíram pouco sistema tende a ficar mais desafiador. A
institutos do sistema antigo tiveram suas para a Previdência, é tão difícil alcan- população brasileira cresceu menos do
regras uniformizadas, abrindo caminho çar os benefícios que ela oferece quan- que se esperava na última década, um si-
para que fossem extintos e incorporados to no tempo das caixas dos ferroviários. nal de que no futuro haverá menos gente
mais tarde pelo Instituto Nacional de “Pessoas de baixa renda não têm muitos trabalhando para pagar a conta. n

1966  Extinção das 1990 Substituição 1998  Nova emenda ser calculada com base 2019 Emenda
CAP e dos IAP, unificados do INPS pelo constitucional muda numa média das constitucional eleva a
no Instituto Nacional de Instituto Nacional os requerimentos contribuições, não mais idade mínima para
Previdência Social (INPS) do Seguro Social para aposentadoria nos vencimentos do fim aposentadoria de homens
(INSS) no setor público, da carreira e mulheres e inclui o novo
1988  A nova substituindo o tempo de limite entre os requisitos
Constituição reconhece a 1993 Emenda serviço pelo tempo 2015  Elevada de para aposentadoria
Previdência Social como um constitucional institui de contribuição efetiva 70 para 75 anos a dos servidores
dos direitos sociais a contribuição idade de aposentadoria
fundamentais dos previdenciária de 2003  A aposentadoria compulsória de FONTE 
AGÊNCIA SENADO E LIVRO
brasileiros servidores públicos dos servidores passa a funcionários públicos OS 100 ANOS DA PREVIDÊNCIA SOCIAL

PESQUISA FAPESP 331 | 93


ITINERÁRIOS DE PESQUISA

A
IMAGEM
COMO
REFÚGIO
A filósofa e antropóloga
Janaína Damaceno
transita pelo
audiovisual e investiga
arquivos fotográficos
da luta antirracista

S
empre me considerei uma pes­ Tive sorte de estudar em boas escolas blioteca pública e de lá para o cinema.
soa com sorte. A começar pelo públicas, mas, em casa, minha família es­ Eu ficava nesses lugares até fecharem
meu nascimento, quando fui tranhava o fato de eu gostar de estudar as portas.
adotada, ainda bebê, pela dona o tempo todo. Naquele momento, eu já Em 1994, comecei a cursar filosofia
Íris, uma mulher negra, analfabeta. Sua pensava em cursar faculdade, mas minha na Universidade Estadual de Campinas
história é como a da maioria das mulhe­ irmã rasgou a ficha de inscrição do meu (Unicamp). Isso mudou não só o rumo da
res negras de sua época: uma história de primeiro vestibular. Ela não admitia es­ minha vida, mas também o modo como
luta. Ela nasceu em 1919 em uma família se sonho. E dizia: “Quem você acha que minha família começou a entender que
de trabalhadores que saiu da Paraíba é para querer entrar na universidade?”. nosso mundo podia ser maior. Foi incrí­
para Curitiba, no Paraná. Proibida de A pobreza, o sexismo e o racismo fazem vel ter acesso a um ambiente cultural
estudar, foi trocada por um cavalo, o que com que as famílias negras não consigam como aquele. Fiz amizades e um amor
FOTOS 1 ANA CAROLINA FERNANDES  2 ARQUIVO PESSOAL

muitos chamariam de “dote”, mas acho se enxergar em outros lugares. que duram até hoje. Desfrutei de todas
que essa é uma palavra fraca para retra­ Foi quando o cinema surgiu como um as políticas sociais que a universidade
tar o que ocorreu. Revoltada, fugiu do refúgio. Descobri que podia assistir gra­ oferecia: moradia, alimentação, bolsas.
casamento arranjado e se mudou para tuitamente a filmes nos cinemas da Fun­ Não havia ali, naquele momento, cotas
o interior de São Paulo, onde trabalhou dação Cultural de Curitiba e via mostras nem qualquer programa de ação afirma­
como empregada doméstica, diarista, inteiras de cinema japonês, por exem­ tiva para pessoas negras. Essa discussão
governanta. Quando voltou a Curitiba, plo. Ironicamente, foi a pobreza que fez não estava posta e o cenário era outro: es­
levava Silvia, minha irmã mais velha, com que eu tivesse acesso ao melhor da tudei numa universidade extremamente
que foi quem me criou depois de sua cinematografia mundial. Além disso, o branca e elitizada. No curso havia uma
morte, no início dos anos 1980, quando cinema era um lugar onde eu me sentia participação ínfima de estudantes negros
eu tinha apenas 8 anos. segura. Depois das aulas, eu ia para a bi­ e as mulheres eram minoria. As biblio­
grafias se compunham, em sua maioria, dissertação me levou à socióloga e psi­ SAIBA MAIS
por pensadores homens e brancos. canalista Virgínia Leone Bicudo (1910­ Fórum Itinerante
A seguir, abri uma produtora de ci­ ‑2003). Isso mudou a trajetória da minha de Cinema Negro
nema junto com colegas. No início dos vida acadêmica. (Ficine)

V
anos 2000, dirigi com Victor Epifanio
um filme de animação chamado Roteiros irgínia Bicudo foi a primeira
negros. O debate sobre cotas se iniciava. mulher negra formada em so­
Foi quando comecei a dirigir um docu­ ciologia no Brasil. Ninguém lheres foi e é desafiador. Outro desafio
mentário, com Rodrigo Braga, chamado tinha ainda escrito uma tese é atuar numa faculdade periférica, cujo
Elas são pretas, sobre o cotidiano das es­ sobre as contribuições dela para o campo corpo discente é constituído majorita­
tudantes negras na Unicamp. Durante o dos estudos raciais, embora seus traba­ riamente por mulheres negras da classe
processo, minha produtora foi assaltada, lhos sejam fundamentais para entender trabalhadora e pessoas que vivem em
levaram parte do material gravado, nos­ a constituição do racismo no Brasil. Sua comunidades. Costumo dizer que nossa
sas câmeras, computador, tudo. dissertação “Estudo de atitudes raciais faculdade é um aquilombamento.
Como já tinha feito a transcrição do de pretos e mulatos em São Paulo”, de­ No Programa de Pós-graduação em
que havia sido gravado, pensei: “Esse fendida na Escola Livre de Sociologia e Cultura e Territorialidades da Univer­
pode ser meu projeto de mestrado”. O Política (ELSP), em 1945, foi orientada sidade Federal Fluminense (PPCult­
material foi o ponto de partida da minha pelo sociólogo norte-americano Donald -UFF), oriento estudantes de mestrado
dissertação “Elas são pretas: Cotidiano Pierson (1900-1995). Virgínia Bicudo do Grupo de Pesquisas Afrovisualidades:
de estudantes negras na Unicamp”, con­ dialogou com mães de família, intelec­ Estéticas e Políticas da Imagem Negra.
cluída em 2008, na Faculdade de Educa­ tuais, trabalhadores negros e negras, que Participo ainda do Fórum Itinerante
ção daquela universidade. Fui orientada lhe diziam como eram as experiências de Cinema Negro (Ficine), que ajudei
pela antropóloga Neusa Maria Mendes da racialidade no dia a dia. Temas como a criar em 2013 e é hoje um dos princi­
de Gusmão, uma das principais referên­ o da solidão da mulher negra já estavam pais núcleos de discussão sobre o tema
cias sobre estudos de comunidades qui­ presentes. Entender o apagamento de no mundo. Ele me levou, por exemplo,
lombolas no Brasil. Um dos capítulos da seu trabalho nas bibliografias me ajudou ao Journées Cinématographiques de
a compreender o duro processo de afir­ la Femme Africaine de L’image (2014),
mação e sobrevivência de intelectuais em Uagadugu, capital de Burkina Faso,
negros nas universidades brasileiras. evento que envolve exibição de filmes,
Na outra página, Janaína Damaceno
no campus da Uerj, com fotografia
Em 2013, concluí minha tese de dou­ debates e oficinas. Com a pesquisadora
de Breno de Sant’Anna, ao fundo. torado “Os segredos de Virgínia: Estudo e curadora Janaína Oliveira, parceira no
Abaixo, com o fotógrafo Walter Firmo de atitudes raciais em São Paulo (1945­ Ficine, falei sobre o cinema brasileiro em
‑1955)”, em antropologia social na Uni­ uma mesa-redonda e também organizei
versidade de São Paulo (USP), sob orien­ uma exposição com fotos de mulheres
tação do professor Kabengele Munanga. negras que trabalham em nosso audiovi­
No ano seguinte, no pós-doutorado em sual, como atrizes, roteiristas e diretoras.
sociologia na Universidade Federal de Mais tarde, como curadora adjunta,
São Carlos (UFSCar), investiguei arqui­ assinei a exposição No verbo do silêncio,
vos visuais, a fim de entender por que a síntese do grito, do fotógrafo carioca
alguns países, como os Estados Unidos, Walter Firmo, inaugurada em 2022, no
têm um repertório visual muito vasto Instituto Moreira Salles, em São Paulo,
da luta antirracista. Na época, visitei ar­ e que vem circulando por outras cidades
quivos na África do Sul, onde um grande brasileiras. Atualmente, está em car­
número de fotógrafos negros documen­ taz em Belo Horizonte. Trabalhar com
tou o apartheid, como Peter Magubane, curadoria é uma chance para descons­
Bob Gosani, Ernest Cole (1940-1990) e truir o discurso colonizado que temos no
Santu Mofokeng (1956-2020). Eu me campo artístico. Não quero perder essa
perguntava: onde estão essas imagens oportunidade. Recentemente, comecei a
da luta negra no Brasil? me envolver com o resgate do trabalho
Há oito anos me tornei professora efe­ de fotógrafos cuja obra não é conhecida.
tiva da Faculdade de Educação da Bai­ Entre eles está o fotojornalista carioca
xada Fluminense da Universidade do Sebastião Marinho, de 85 anos, um ho­
Estado do Rio de Janeiro (Febf-Uerj), mem negro que cobriu seis Copas do
em Duque de Caxias. Na mesma época Mundo e é autor de uma produção in­
nasceu Omar, meu filho. Ser mãe, profes­ crível. Fico pensando quantos outros
sora e pesquisadora num país em que a nomes ainda estamos por descobrir. n
2 universidade não é pensada para as mu­ DEPOIMENTO CONCEDIDO A SORAIA VILELA

PESQUISA FAPESP 331 | 95


RESENHA

O personalismo negro de Guerreiro Ramos


Márcio Ferreira de Souza

“S
ou negro, identifico como meu o corpo sociologia autóctone descolonizadora, revelando,
em que o meu eu está inserido, atribuo portanto, a atualidade de seus textos.
à sua cor a suscetibilidade de ser valo- A apresentação do livro, assinada pelo organiza-
rizada esteticamente e considero a minha condi- dor, contextualiza ações estigmatizantes de racis-
ção étnica como um dos suportes do meu orgulho mo sofrido por Guerreiro, taxado por seu inimigo
pessoal.” Esta afirmação de Guerreiro Ramos político, Carlos Lacerda (1914-1977), nas páginas
(1915-1982), presente no texto “O problema do da Tribuna da Imprensa do Rio de Janeiro, de “ma-
negro na sociologia brasileira”, original de 1954, landro”, “preto racista”, “cafuzo racista” ou mesmo
é destacada como epígrafe da coletânea Negro em sua ficha no Conselho de Segurança Nacional
sou: A questão étnico-racial e o Brasil: Ensaios, como “mulato metido a sociólogo”. Porém, Guer-
artigos e outros textos (1949-73). A partir de tal reiro é dimensionado como um intelectual reati-
autoidentificação e autoafirmação, ele construiu vo a tais estigmatizações. Ele próprio, a partir do
Negro sou: A questão sua perspectiva sobre a questão étnico-racial em processo de sua militância e do envolvimento no
étnico-racial e o Brasil: contexto nacional, olhando para “o negro desde Teatro Experimental do Negro (TEN), fundado
Ensaios, artigos e
outros textos
dentro”. Essa é a tônica da antologia organizada por Abdias do Nascimento (1914-2011) em 1944,
(1949-73) pelo historiador Muryatan S. Barbosa, autor da engajou-se na luta antirracista, buscando uma re-
Muryatan S. Barbosa tese de doutorado, também publicada em livro, definição do “problema do negro” com base em
(org.) sobre o personalismo negro de Guerreiro Ramos. “uma posição científica de caráter funcional, is-
Zahar
320 páginas
No emaranhado de temas, em fases específi- to é, proporcionadora da autoconsciência ou do
R$ 74,90 cas de sua vida, a preocupação com a questão autodomínio da sociedade brasileira”. Em razão
étnico-racial ocupou parte das abordagens so- disso, concluiu que, “antes de estudar a situação
ciológicas, assaz diversificadas, de Guerreiro. do negro tal como é efetivamente vivida”, importa
Sua trajetória de vida, marcada pela inserção em examinar criticamente a literatura de caráter his-
múltiplos campos de atuação – o jornalismo, a tórico e socioantropológico, então produzida no e
política, o funcionalismo público e a academia –, sobre o Brasil por autores nacionais e estrangeiros
resultou em produções de leituras sociológicas e denunciar sua alienação. Literatura essa que serve
sobre saúde, mortalidade infantil, padrão de vida, como “material ilustrativo do que há de problemá-
desenvolvimento e modernização, sociologia da tico na condição do negro na sociedade brasileira”.
administração e das organizações. Acrescente- Negro sou é um título bem apropriado por di-
-se aí a veia poética do autor, a exemplo do livro mensionar objetivamente o pensamento de Guer-
intitulado O drama de ser dois (1937), no qual se reiro. O marco temporal da publicação dos textos
revela um homem “dilacerado pelas contradições originais, de 1949 a 1973, apesar de uma lacuna
interiores”, conforme o verso de seu poema “O entre 1958 e 1971, indica que a questão racial atra-
canto da alegria triste”. vessou toda a vida desse intelectual, como preo-
Em seu necessário recorte temático, Muryatan cupações teóricas e de militância – embora, assim
Barbosa agregou textos, entre inéditos e outros como Guerreiro, não vejo teoria e militância co-
dispersos em publicações já esgotadas, que se mo apartadas, tendo em vista que todo militante
articulam à luz de uma proposta que encontra é um intelectual, num sentido sartreano do ter-
eco num tipo de produção, hoje mais profícua, mo. O título é, por si, revelador de um modo de
de intelectuais negras e negros que vêm consi- se fazer sociologia em “mangas de camisa”, isto
deravelmente contribuindo com o debate étnico- é, uma “sociologia em ato”, aquela que se propõe
-racial, sob pontos de vista de forte base crítica e interventora na realidade social, como elemento
denunciantes do racismo no país. A propósito, a de transformação nos rumos do país rumo a uma
crítica à colonialidade e à branquitude se cons- modernização inclusiva.
tituiu como marcador presente na sociologia de
Guerreiro Ramos, manifestada em textos que
Márcio Ferreira de Souza é professor do Instituto de Ciências Sociais
dialogaram com a pressuposição de uma “demo- da Universidade Federal de Uberlândia e autor do livro Guerreiro
cracia racial” no Brasil e que propuseram uma Ramos e o desenvolvimento nacional (Fino Traço, 2009).

96 | SETEMBRO DE 2023
FUNDAÇÃO DE AMPARO À PESQUISA DO ESTADO DE SÃO PAULO
COMENTÁRIOS cartas@fapesp.br

PRESIDENTE
Marco Antonio Zago

VICE-PRESIDENTE
Ronaldo Aloise Pilli

CONSELHO SUPERIOR
É preciso propor técnicas de manejo e

SANTIAGO GIMENEZ
Carmino Antonio de Souza, Helena Bonciani Nader, Herman
Jacobus Cornelis Voorwald, Ignácio Maria Poveda Velasco,
Liedi Legi Bariani Bernucci, Mayana Zatz, Mozart Neves Ramos,
controle populacional de forma mais
Pedro Luiz Barreiros Passos, Pedro Wongtschowski, Thelma Krug ética possível.
CONSELHO TÉCNICO-ADMINISTRATIVO
Giulia Simionato
DIRETOR-PRESIDENTE
Carlos Américo Pacheco

DIRETOR CIENTÍFICO
Marcio de Castro
Ferro britânico
DIRETOR ADMINISTRATIVO Esse tipo de pesquisa (“Jamaicanos por
Fernando Menezes de Almeida
trás do ferro britânico”, edição 330)
é extremamente relevante para abando-
narmos a visão eurocêntrica, e mais re-
ISSN 1519-8774 Peixe-leão centemente estadunidense, da inovação.
COMITÊ CIENTÍFICO
Escrevo em nome do Fórum Animal Quantas outras técnicas inovadoras não
Luiz Nunes de Oliveira (Presidente),
Agma Juci Machado Traina, Américo Martins Craveiro, Anamaria
a respeito da reportagem “Peixe-leão, foram desapropriadas para posterior-
Aranha Camargo, Ana Maria Fonseca Almeida, Angela Maria Alonso,
Carlos Américo Pacheco, Claudia Lúcia Mendes de Oliveira, Deisy
predador venenoso e de origem asiá- mente serem atribuídas a outro inventor?
das Graças de Souza, Douglas Eduardo Zampieri, Eduardo de Senzi
Zancul, Euclides de Mesquita Neto, Fabio Kon, Flávio Vieira Meirelles,
tica, invade o litoral brasileiro” (texto Helder Anderson
Francisco Rafael Martins Laurindo, João Luiz Filgueiras de Azevedo,
José Roberto de França Arruda, Lilian Amorim, Lucio Angnes, Luciana completo no site e nota na edição 330).
Harumi Hashiba Maestrelli Horta, Luiz Henrique Lopes dos Santos,
Mariana Cabral de Oliveira, Marco Antonio Zago, Marie-Anne Compreendemos os efeitos negativos Divulgação
Van Sluys, Maria Julia Manso Alves, Marta Teresa da Silva Arretche,
Reinaldo Salomão, Richard Charles Garratt, Roberto Marcondes que uma espécie invasora pode ter pa- Excelente a forma de divulgação de Pes-
Cesar Júnior, Wagner Caradori do Amaral e Walter Collii
ra os locais e ecossistemas em que ela quisa FAPESP no Instagram (@pesqui-
chega. Entretanto, nos chamou a aten- sa_fapesp). É esse o tipo de divulgação
COORDENADOR CIENTÍFICO
Luiz Nunes de Oliveira

DIRETORA DE REDAÇÃO ção o trecho que se refere ao controle científica que atinge melhor o público
Alexandra Ozorio de Almeida

EDITOR-CHEFE
populacional do peixe-leão por meio do que usa redes sociais.
Neldson Marcolin
abate usando a expressão “mate-o sem Tiago Ferreira
EDITORES Fabrício Marques (Política C&T), Carlos Fioravanti,
Marcos Pivetta, Maria Guimarães e Ricardo Zorzetto (Ciência), dó”. Entendemos que isso incentiva um
Ana Paula Orlandi (Humanidades), Yuri Vasconcelos (Tecnologia)
comportamento violento e de profundo Correção
REPÓRTER Christina Queiroz

ARTE Claudia Warrak (Editora),


desrespeito aos animais. Desde a publi- Na reportagem “Quando o mapa é o ter-
Júlia Cherem Rodrigues e Maria Cecilia Felli (Designers),
Alexandre Affonso (Editor de infografia), Felipe Braz (Designer digital),
cação da Declaração de Cambridge sobre ritório”, edição 327, o crédito correto
Amanda Negri (Coordenadora de produção) consciência em animais não humanos, das imagens das páginas 74, 76 e 77 é:
FOTÓGRAFO Léo Ramos Chaves
estudos envolvendo a senciência ani- Acervo sob custódia do Instituto de Es-
BANCO DE IMAGENS Valter Rodrigues
mal discutem evidências sobre como tudos Brasileiros da USP – Coleção de
SITE Yuri Vasconcelos (Coordenador), Jayne Oliveira (Coordenadora
de produção), Kézia Stringhini (Redatora on-line) os peixes sofrem e sentem medo e dor. Artes Visuais do Instituto de Estudos
MÍDIAS DIGITAIS Maria Guimarães (Coordenadora), Renata Oliveira
do Prado (Editora de mídias sociais), Vitória do Couto (Designer digital)
Qualquer que seja a solução para os Brasileiros da USP.
VÍDEOS Christina Queiroz (Coordenadora)
problemas que geramos por introdução
RÁDIO Fabrício Marques (Coordenador) e Sarah Caravieri (Produção) de espécies, não acreditamos que deva Sua opinião é bem-vinda. As mensagens poderão ser
REVISÃO Alexandre Oliveira e Margô Negro envolver mais sofrimento aos animais. resumidas por motivo de espaço e clareza.
REVISÃO TÉCNICA Angela Alonso, Célio Haddad, Claudia Mendes
de Oliveira, Deisy de Souza, Esther Hamburger, Fabio Kon, Francisco
Laurindo, Jean Ometto, José Roberto Arruda, Marta Arretche, Rafael
Oliveira, Reinaldo Salomão e Ricardo Hirata

COLABORADORES Ana Carolina Fernandes, Carla Zimmerman,


ASSINATURAS, RENOVAÇÃO CONTATOS
Diego Viana, Felipe Floresti, Francesca Angiolillo, Giselle Soares,
Laura Segovia Tercic, Letícia Naísa, Márcio Ferreira de Souza,
E MUDANÇA DE ENDEREÇO revistapesquisa.fapesp.br
Mariana Barcoto, Marília Navickaite, Paola Saliby, Ricardo Balthazar,
Envie um e-mail para
Rodrigo Cunha, Sarah Schmidt, Soraia Vilela
redacao@fapesp.br
MARKETING E PUBLICIDADE Paula Iliadis assinaturaspesquisa@fapesp.br
CIRCULAÇÃO Aparecida Fernandes (Coordenadora de Assinaturas)
OPERAÇÕES Andressa Matias
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SECRETÁRIA DA REDAÇÃO Ingrid Teodoro
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PESQUISA FAPESP 331 | 97


FOTOLAB O CONHECIMENTO EM IMAGENS

Sua pesquisa rende fotos bonitas? Mande para imagempesquisa@fapesp.br


Seu trabalho poderá ser publicado na revista.

Jardim subterrâneo
As saúvas são jardineiras. Cortam folhas e flores, que levam para o formigueiro
e ali cultivam o fungo que depois consomem. Para contemplar esse jardim, é
preciso um bom microscópio: neste caso, com acréscimo de corante fluorescente
que dá a cor vermelha. “A ideia era visualizar os fungos crescendo a partir
dos fragmentos das folhas, mas verificamos que a planta produz naturalmente
a mesma fluorescência”, conta a bióloga Mariana Barcoto. O efeito é bonito,
colorindo os anéis característicos das folhas (são os estômatos, por onde elas
respiram) e as hifas dos fungos, que aparecem como fios.

Imagem enviada por Mariana Barcoto, estudante de doutorado no


Laboratório de Ecologia e Sistemática de Fungos (LESF), campus de Rio Claro
da Universidade Estadual Paulista (Unesp)

98 | SETEMBRO DE 2023
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