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PESQUISA FAPESP AGOSTO DE 2020

AGOSTO DE 2020 | ANO 21, N. 294

AS DORES
EMOCIONAIS
NA
PANDEMIA
Mudanças radicais na rotina,
temor de adoecer e crise econômica
provocam sofrimento psicológico
e transtornos mentais

Países aumentam Sítio mexicano Atraso do Cientista da Médicos e poder


Ano 21 n. 294

gastos contra sugere que saneamento no computação mineiro público agiram


a Covid-19, mas povoamento das Brasil prejudica Nivio Ziviani com rapidez
investem de Américas teria a saúde e contraria montou cinco contra a peste
forma desigual começado a racionalidade startups e vendeu bubônica em
em ciência há 30 mil anos econômica uma ao Google Santos em 1899
FOTOLAB O CONHECIMENTO EM IMAGENS

Sua pesquisa rende fotos bonitas? Mande para imagempesquisa@fapesp.br


Seu trabalho poderá ser publicado na revista.
EDGAR KANAYKÕ XAKRIABÁ / CNPQ

Lentes para ver por dentro


Com o nome Iny: o brilho dos espíritos, este registro de ritual
do povo Karajá, de Mato Grosso, foi o primeiro colocado em uma
das categorias do Prêmio de Fotografia Ciência & Arte do Conselho
Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq),
anunciado em julho. Por meio da etnofotografia, o antropólogo
indígena Edgar Kanaykõ Xakriabá estudou o olhar indígena durante
o mestrado. Para ele, a fotografia tem relação com o mundo
humano e espiritual e, de ameaça, tornou-se um instrumento
de luta e resistência para esses povos.

Imagem enviada por Edgar Kanaykõ Xakriabá, mestre em


antropologia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)

PESQUISA FAPESP 294 | 3


AGOSTO 2020

3 FOTOLAB CAPA
6 COMENTÁRIOS 18 Covid-19 muda rotina
7 CARTA DA EDITORA e casos de sofrimento
emocional aumentam
8 BOAS PRÁTICAS
Estudo faz sugestões 24 Triplica frequência
para garantir integridade de depressão entre
de artigos científicos profissionais da saúde
na pandemia
26 Cientistas buscam
11 DADOS desvendar a resposta
Caem dispêndios imunológica ao Sars-CoV-2
empresariais em P&D
1

32 O risco de se infectar
12 NOTAS com o novo coronavírus ENTREVISTA GENÉTICA
16 NOTAS DA PANDEMIA em um avião 48 O cientista da 62 Primeiros ameríndios
computação Nivio Ziviani, teriam olhos castanhos,
34 Países tratam de da UFMG, conta como cabelos pretos e pele morena
forma desigual empreender a partir
investimentos em da universidade PALEONTOLOGIA
pesquisa contra doença 64 Fóssil encontrado
BIBLIOMETRIA em Santa Catarina
38 Compartilhamento 54 Periódicos do Brasil têm é o mais antigo escorpião
de dados cresce evolução positiva em relatório da América do Sul
na pandemia sobre fator de impacto
BIOLOGIA
42 Artistas utilizam ARQUEOLOGIA 66 Nova proposta
figura da peste para 58 Sítio mexicano sugere de classificação de seres
propor reflexões sobre que homem moderno chegou vivos privilegia relações
a condição humana às Américas há 30 mil anos de ancestralidade

294
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Leia no site a edição da revista em português, inglês


e espanhol, além de conteúdo exclusivo

ALGORITMOS ARQUIVOLOGIA VÍDEO YOUTUBE.COM/USER/PESQUISAFAPESP


70 Inteligência artificial 86 Suspenso desde 2019,
é utilizada no diagnóstico comitê brasileiro do
e no tratamento Programa Memória do
dos males cardíacos Mundo mapeia acervos raros

BIOTECNOLOGIA
76 Uso de bactérias 91 RESENHA
FOTOS 1 LÉO RAMOS CHAVES 2 REPRODUÇÃO ILUSTRAÇÃO ALINE VAN LANGENDONCK

para tratar minérios pode Jovita Alves Feitosa:


reduzir risco ambiental Voluntária da pátria,
e custos de operação voluntária da morte,
de José Murilo de Carvalho.
GENÔMICA Por Rodrigo Goyena Soares Como rios e várzeas influenciam
78 Variedades de a formação de espécies na Amazônia?
laranjeiras com gene 92 MEMÓRIA Ao longo dos milênios, cursos
de tangerina se Médicos agiram com rapidez d’água e mudanças na paisagem
mostraram resistentes contra uma epidemia no favorecem a diversificação de plantas
ao amarelinho Brasil no final do século XIX e animais amazônicos
bit.ly/igVOrigensAmazonia
POLÍTICAS PÚBLICAS 96 CARREIRAS
80 Atraso do saneamento Formação em fisioterapia
no Brasil prejudica respiratória amplia
a saúde e vai contra oportunidades de atuação
a racionalidade econômica em ambiente hospitalar

Como prever o espalhamento


de uma doença
Epidemiologista Altay de Souza explica
como são construídos os modelos
que preveem o avanço do coronavírus
bit.ly/igVModelosEpidemiologicos

PESQUISA BRASIL
Série de podcasts destaca os avanços no
conhecimento sobre a Covid-19, os impactos
na população mais vulnerável e as
estratégias para flexibilizar o isolamento
bit.ly/igPodcasts
1. Bica de água no
centro de São Paulo
(POLÍTICAS PÚBLICAS, P. 80)
2. Cena de O sétimo
selo, de Ingmar
Ilustração de capa Bergman (PANDEMIA
ALINE VAN LANGENDONCK COMO ALEGORIA, P. 42)
COMENTÁRIOS cartas@fapesp.br

CONTATOS

revistapesquisa.fapesp.br

redacao@fapesp.br Vacinas Diferenças sociais


PesquisaFapesp Recebi a revista em casa e amei a reporta- A desigualdade social está gritando na re-
gem “À procura de atalhos” (edição 293). Já portagem “As duas epidemias de São Paulo”.
PesquisaFapesp trabalhei com o texto nas aulas remotas de Nygell Silva Alves

pesquisa_fapesp genética molecular.


Cibele Raio
PesquisaFAPESP
Madeira ilegal
pesquisafapesp Muito legal saber disso. Parabéns pelo con- Madeiras de árvores em extinção sendo ex-
teúdo, muito didático e informativo. traídas (“Madeiras em extinção, mas vendi-
cartas@fapesp.br
Fabio Ciconelli das”): se há comércio, há compradores. Todo
R. Joaquim Antunes, 727
10º andar
mercado existe não em função dos governos,
CEP 05415-012 mas de quem compra. Para onde vai toda essa
São Paulo, SP Florestan madeira? Não é para servir de pontalete nas
Florestan Fernandes foi um grande defensor comunidades espalhadas pelo Brasil.
do ensino público, gratuito, laico e universal Mauricio Cestari
(“Um intelectual na periferia”, edição 293).
Alexandre Ganzert
ASSINATURAS, Vídeos
RENOVAÇÃO E Após a aprovação do Fundeb, nada melhor Que vídeo excelente (“Como prever o espa-
MUDANÇA DE ENDEREÇO que homenagear um defensor da educação lhamento de uma doença”). Explicação muito
pública em seu centenário, o sociólogo Flo- didática.
Envie um e-mail para restan Fernandes. Bela reportagem. Gisele Hespanhol Dorigan
assinaturaspesquisa@fapesp.br Roberto Borghi
A FAPESP demonstra ativamente por meio da
revista e dos vídeos feitos por ela o conteúdo
Ricardo Galvão científico produzido no Brasil. Precisamos
PARA ANUNCIAR Um pesquisador que orgulha a todos pela de- levar esse conhecimento longe.
fesa do setor (“Um físico que não se dobra”, Luiz Felipe Souza e Silva
Contate: Paula Iliadis edição 293).
Por e-mail: José Maria Franco Taitson Por que estudar matemática, principalmente
publicidade@fapesp.br funções, na escola? Para conseguir analisar e
entender informações fornecidas (“Modelos
Cinemateca epidemiológicos”).
Como o Brasil gosta de queimar sua história. Camilla Martins
EDIÇÕES ANTERIORES Que Deus proteja a Cinemateca Brasileira
(“Memória audiovisual em risco”). Sua opinião é bem-vinda. As mensagens poderão ser resumidas
Preço atual de capa acrescido Jonhënes Oliveira por motivo de espaço e clareza.
do custo de postagem.
Peça pelo e-mail:
clair@fapesp.br Informações que você lê no site de Pesquisa FAPESP bit.ly/igSPvegetacao
Estado de São Paulo registra aumento de 4,9% na área de vegetação nativa
EDUARDO CESAR

LICENCIAMENTO
DE CONTEÚDO

Adquira os direitos de
reprodução de textos e imagens
de Pesquisa FAPESP.
Por e-mail:
mpiliadis@fapesp.br

Mata Atlântica no
Parque Estadual
Carlos Botelho, no
6 | AGOSTO DE 2020 sudeste paulista
FUNDAÇÃO DE AMPARO À PESQUISA DO ESTADO DE SÃO PAULO
CARTA DA EDITORA
PRESIDENTE
Marco Antonio Zago

VICE-PRESIDENTE
Ronaldo Aloise Pilli

CONSELHO SUPERIOR

Carmino Antonio de Souza, Helena Bonciani Nader, Ignácio


Maria Poveda Velasco, João Fernando Gomes de Oliveira,
Liedi Legi Bariani Bernucci, Mayana Zatz, Mozart Neves
Ramos, Pedro Luiz Barreiros Passos, Pedro Wongtschowski,
Vanderlan da Silva Bolzani

CONSELHO TÉCNICO-ADMINISTRATIVO

DIRETOR-PRESIDENTE
A peste e a dor
Carlos Américo Pacheco

DIRETOR CIENTÍFICO
Luiz Eugênio Mello
Alexandra Ozorio de Almeida | DIRETORA DE REDAÇÃO
DIRETOR ADMINISTRATIVO
Fernando Menezes de Almeida

N
ão é difícil imaginar que uma doenças contagiosas que causam um
ISSN 1519-8774 pandemia causaria um impacto grande número de mortes – é elemento
CONSELHO EDITORIAL significativo na saúde mental da recorrente na história literária e artística
Caio Túlio Costa, Eugênio Bucci, Fernando Reinach, José Eduardo
Krieger, Luiz Davidovich, Marcelo Knobel, Maria Hermínia Tavares população. O medo de contágio e mor- mundial, sendo uma frequente alegoria
te, o impacto imediato da retração eco- sobre a condição humana. Reportagem
de Almeida, Marisa Lajolo, Maurício Tuffani e Mônica Teixeira

COMITÊ CIENTÍFICO
Luiz Henrique Lopes dos Santos (Presidente), nômica, o estresse do confinamento, o à página 42 retoma suas representações
Américo Martins Craveiro, Anamaria Aranha Camargo, Ana Maria
Fonseca Almeida, Carlos Américo Pacheco, Catarina Segreti Porto, acúmulo de tarefas antes compartilha- no imaginário ao longo do tempo, aju-
Claudia Lúcia Mendes de Oliveira, Deisy das Graças de Souza,
Douglas Eduardo Zampieri, Eduardo de Senzi Zancul, Euclides de das e a preocupação com o futuro são dando-nos a lembrar que esta não é a
Mesquita Neto, Fabio Kon, Francisco Rafael Martins Laurindo,
João Luiz Filgueiras de Azevedo, José Roberto de França Arruda, circunstâncias que afetam o cotidiano primeira e provavelmente não será a
José Roberto Postali Parra, Lucio Angnes, Luciana Harumi Hashiba
Maestrelli Horta, Mariana Cabral de Oliveira, Marco Antonio Zago, de milhões de pessoas desde o advento última peste a assolar a Terra, mas que
Marie-Anne Van Sluys, Maria Julia Manso Alves, Marta Teresa da
Silva Arretche, Paula Montero, Richard Charles Garratt, Roberto do novo coronavírus, desencadeando mesmo momentos terríveis podem sus-
Marcondes Cesar Júnior, Rui Monteiro de Barros Maciel, Sérgio
Robles Reis Queiroz, Wagner Caradori do Amaral e Walter Colli episódios de ansiedade, irritabilidade, citar obras de arte que enriquecem a
COORDENADOR CIENTÍFICO
Luiz Henrique Lopes dos Santos
insônia e depressão. humanidade.
DIRETORA DE REDAÇÃO
Esse sofrimento psicológico, que vem Parte da comunidade científica segue
Alexandra Ozorio de Almeida
sendo identificado em inúmeros levan- mobilizada pelo novo coronavírus, mas
EDITOR-CHEFE
Neldson Marcolin
tamentos, não é sinônimo de transtor- muitos pesquisadores continuam com
EDITORES Fabrício Marques (Política C&T), no psiquiátrico – mas, caso persista no estudos sobre as mais diversas áreas,
Glenda Mezarobba (Humanidades), Marcos Pivetta (Ciência),
Carlos Fioravanti e Ricardo Zorzetto (Editores espe­ciais), tempo, com intensidade, pode se confi- dentro das limitações impostas pela
Maria Guimarães (Site), Yuri Vasconcelos (Editor-assistente)
gurar como doença. Seu enfrentamento pandemia. O ritmo de publicação de re-
REPÓRTERES Christina Queiroz, Rodrigo de Oliveira Andrade
efetivo, fundamental para o bem-estar sultados é intenso e inclui proposições
REDATORES Jayne Oliveira (Site) e Renata Oliveira
do Prado (Mídias Sociais) coletivo e a recuperação da crise, não é ambiciosas, como uma nova forma de
ARTE Claudia Warrak (Editora), Maria Cecilia Felli (Designer),
Alexandre Affonso (Editor de infografia), Felipe Braz (Designer digital)
trivial, por ao menos dois fatores. Essa classificação dos seres vivos que aban-
FOTÓGRAFO Léo Ramos Chaves
natureza de sofrimento ainda é objeto dona a taxonomia criada por Lineu no
BANCO DE IMAGENS Valter Rodrigues
de muito preconceito. A recusa em acei- século XVIII e adota um sistema basea-
RÁDIO Sarah Caravieri (Produção do programa Pesquisa Brasil) tar transtornos mentais como doença, do na história evolutiva, privilegiando as
REVISÃO Alexandre Oliveira e Margô Negro muitas vezes pelos próprios pacientes, relações de ancestralidade. Idealizada
COLABORADORES Aline van Langendonck, Edgar Kanaykõ dificulta o seu tratamento. Outro impor- por pesquisadores de instituições norte-
Xakriabá, Eduardo Geraque, Diego Viana, Fernando Carvall,
Frances Jones, Melyna Souza, Renato Pedrosa, Rodrigo Goyena Soares, tante desafio é que a pandemia colocou -americanas, a iniciativa conta com co-
Sandra Jávera, Sarah Schmitd, Sidnei Santos de Oliveira, Suzel Tunes

REVISÃO TÉCNICA Adriana Valio, Célio Haddad, Fábio Kon,


grandes demandas sobre os sistemas na- laboradores do Brasil (página 66).
Francisco Laurindo, Inez Staciarini Batista, Luiz Eduardo Camargo
Aranha, Maria Beatriz Florenzano, Maria Rita Passos Bueno,
cionais de saúde – quando existem – e A análise de material lítico obtido em
Rubens Caram Júnior, Walter Colli torna difícil alocar mais recursos para sítio no México, também com colabo-
É PROIBIDA A REPRODUÇÃO TOTAL OU PARCIAL essa subárea. ração de brasileiros, questiona a tese
DE TEXTOS, FOTOS, ILUSTRAÇÕES E INFOGRÁFICOS
SEM PRÉVIA AUTORIZAÇÃO A reportagem de capa desta edição se dominante na arqueologia norte-ame-
TIRAGEM 28.600 exemplares
IMPRESSÃO Plural Indústria Gráfica
dedica ao impacto da pandemia na saúde ricana de que a ocupação do continente
DISTRIBUIÇÃO DINAP
mental da população (página 18), inclu- teria ocorrido por volta de 13 mil anos
GESTÃO ADMINISTRATIVA FUSP – FUNDAÇÃO DE APOIO À
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
sive um grupo muito vulnerável, o dos atrás. Os novos resultados apontam a
PESQUISA FAPESP Rua Joaquim Antunes, no 727, profissionais da saúde, que diariamente presença humana nas Américas há 33
10o andar, CEP 05415-012, Pinheiros, São Paulo-SP
FAPESP Rua Pio XI, no 1.500, CEP 05468-901, se expõem ao contágio e acompanham mil anos, corroborando outros acha-
o sofrimento dos doentes (página 24). dos – frequentemente ignorados – de
Alto da Lapa, São Paulo-SP

SECRETARIA DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO,


CIÊNCIA, TECNOLOGIA E INOVAÇÃO
Um dos caminhos pelos quais a an- escavações no Chile, no Piauí e em Mato
GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO
gústia e o medo causados por uma pan- Grosso, que identificaram rochas modifi-
demia são elaborados e trabalhados é cadas por mãos humanas há no mínimo
a arte. A peste – nome genérico para 20 mil anos (página 58).

PESQUISA FAPESP 294 | 7


BOAS PRÁTICAS

Integridade U
m estudo publicado por pesquisadores
da Espanha, da Dinamarca e do Canadá
na revista Nature Human Behaviour mos-

em meio trou que as revistas científicas levaram em média


apenas seis dias para avaliar e aceitar para publi-

à emergência
cação artigos sobre a Covid-19 nas 12 primeiras
semanas da pandemia, em um esforço sem prece-
dentes para gerar resultados rápidos capazes de

sanitária atenuar os efeitos da emergência sanitária. Esse


processo, que envolve análise feita pelos editores
e por pesquisadores especializados no tema dos
artigos, demorava em média 100 dias em tempos
Estudo reúne recomendações normais. O grupo debruçou-se sobre o conjun-
para preservar a qualidade to de papers incluído na base de dados Pubmed
entre 30 de janeiro e 23 de abril e contabilizou a
da avaliação de artigos científicos publicação em periódicos de 367 artigos sobre a
na sofreguidão da pandemia doença a cada semana.

8 | AGOSTO DE 2020
Liderado pelo hepatologista Jeffrey Lazarus, eficiência para o treinamento de pareceristas com
do Instituto de Saúde Global da Universidade de pouca experiência, como o COBPeer, que utiliza
Barcelona, o estudo declara preocupação com os os checklists previstos pela iniciativa Consort. “O
prejuízos que essa velocidade pode produzir na desafio de disseminar um grande volume de pes-
credibilidade da ciência, quando artigos com er- quisas no contexto de uma emergência de saúde
ros ou fraudes são inadvertidamente publicados. global deve ser reconhecido como um apelo a
O site Retraction Watch contabiliza 30 estudos um pensamento inovador e à implementação de
sobre a Covid-19 que foram retratados por revis- soluções que garantam a confiança contínua no
tas científicas ou removidos de repositórios de processo de publicação científica”, escreveram
preprints, um número pequeno em um univer- Lazarus e seus colegas. “As lições aprendidas
so de mais de 40 mil trabalhos publicados, mas poderão enriquecer a publicação científica de
com potencial para causar ruídos. Para reduzir maneira mais ampla nos próximos anos.”
riscos e danos, Lazarus e seus colegas propõem

O
um roteiro de recomendações dirigido a pes- grupo também sugere investimentos na
quisadores, editores de revistas e autoridades. curadoria de informações científicas so-
Uma das sugestões é a utilização de checklists que bre a Covid-19 e cita projetos que mere-
permitam aos editores avaliar a robustez da me- ceriam ser incentivados, como bancos de dados
todologia ou da análise estatística das pesquisas que reúnem milhares de artigos relevantes sobre
a fim de verificar se os resultados apresentados o novo coronavírus. Um exemplo é a LitCovid,
fazem sentido ou são compatíveis com a proposta criada pela Biblioteca Nacional de Medicina dos
original do trabalho. Essas listas de controle não Estados Unidos, que reúne mais de 30 mil tra-
são uma novidade, mas os autores veem indícios balhos publicados e permite fazer buscas por
de que elas não estão sendo observadas em toda categoria (estudos de caso, cenários, prevenção
a sua extensão na análise rápida de manuscritos etc.) e por país mencionado em cada manuscrito.
durante a pandemia. Outro é o banco de dados sobre o novo corona-
A iniciativa Strobe (sigla em inglês para For- vírus da Organização Mundial da Saúde (OMS),
talecendo os Relatos de Estudos Observacionais que reúne mais de 40 mil trabalhos. Também
em Epidemiologia) é um exemplo a ser valori- há iniciativas que buscam avaliar e sintetizar o
zado, segundo o grupo de Lazarus. Criada em conhecimento acumulado sobre a doença, como
2009 pela Universidade de Berna, na Suíça, for- a da Biblioteca Cochrane, que criou uma seção
nece uma relação de informações sobre o dese- sobre a Covid-19 com análises e revisões sobre
nho da pesquisa que os responsáveis por estudos artigos publicados, e a da Escola de Saúde Pú-
epidemiológicos precisam apresentar para que blica Bloomberg Johns Hopkins, que reuniu um
os revisores tenham confiança na qualidade dos time de 40 especialistas para fazer uma análise
resultados, tais como os critérios para a seleção aprofundada de estudos com resultados promis-
de participantes, a descrição de métodos estatís- sores ou que estejam recebendo muita atenção
ticos e os esforços empreendidos para prevenir da imprensa e das mídias sociais.
vieses. Outro exemplo é a Consort (sigla para Outras iniciativas estão a caminho. A editora
Padrões Consolidados para a Comunicação de MIT Press anunciou a criação de uma nova revis-
Ensaios), essa talhada para o monitoramento de ta científica, a Rapid Reviews: Covid-19, dedicada
resultados de ensaios clínicos. a produzir resenhas de preprints sobre o novo co-
A Associação Europeia de Editores de Ciência ronavírus, com o objetivo de destacar pesquisas
lançou em abril uma declaração pública sobre de impacto e apontar aquelas que têm erros ou
os cuidados necessários no processo de revisão vieses. Os preprints são trabalhos ainda não sub-
de artigos sobre a pandemia. Entre as sugestões, metidos a revisão por pares, cujos resultados ain-
propõe a incorporação nos papers de uma de- da preliminares são divulgados em repositórios
claração dos autores expondo as limitações de públicos para que sejam analisados e criticados
seus achados – quando se baseiam em modela- por outros especialistas – na pandemia, milhares
gem computacional e não em estudos com seres desses trabalhos sobre o novo coronavírus foram
vivos ou quando são lastreados em um número disponibilizados. “Os preprints são um tremen-
pequeno de pacientes, por exemplo – e também do benefício para a comunicação científica, mas
recomenda que os dados brutos que embasam trazem alguns perigos, como vimos com alguns
os estudos sejam disponibilizados. exemplos baseados em métodos defeituosos”,
A seleção dos pesquisadores incumbidos de afirmou Nick Lindsay, diretor de periódicos da
HUDIEMM / GETTY IMAGES

analisar os artigos é outro ponto vulnerável, de MIT Press, ao site StatNews. A nova revista vai
acordo com o trabalho: é necessário garantir que utilizar um sistema de inteligência artificial de-
os revisores estejam preparados para fazer uma senvolvido no Laboratório Nacional Lawrence
análise rápida e ao mesmo tempo rigorosa. A boa Berkeley para categorizar os preprints por dis-
notícia é que há ferramentas que já demonstraram ciplina e grau de novidade. n Fabrício Marques

PESQUISA FAPESP 294 | 9


Limites para a reciclagem de textos

U
m grupo de pesquisadores de seis de constitui má conduta. Se os trechos
universidades dos Estados Unidos autorreferentes estiverem nas seções
está analisando até que ponto um de um artigo em que se espera origina-
autor pode reutilizar trechos de sua pro- lidade, como discussão, interpretação
dução acadêmica prévia em novos traba- de dados e conclusões, o risco de isso
lhos sem ser acusado de plágio. Não se ser considerado impróprio é grande. O
espera, contudo, que o esforço colabora- que já não acontece quando um autor
tivo produzirá um conjunto de padrões toma emprestado pedaços de trabalhos
a serem seguidos por todo mundo. Uma anteriores para explicar metodologias
das primeiras constatações da iniciativa, ou para descrever conjuntos de dados,
batizada de Projeto de Pesquisa sobre que servem como pano de fundo para
Reciclagem de Textos e financiada pela os achados.
agência National Science Foundation, é Mesmo em casos considerados jus-
que a percepção sobre o que é aceitável tificáveis, 15 dos editores entrevistados
varia entre as disciplinas. “Essa prática exigem que os trechos sejam reescritos
é mais comum do que geralmente se ad- de forma a não ficar idênticos, a fim de
mite, em especial nas ciências médicas evitar acusações de má conduta e pre-
e naturais, em que algumas vezes é até venir processos por violação de direitos
tacitamente esperada”, explicou Cary autorais movidos pelas revistas que pu-
Moskovitz, professor do programa de blicaram os trabalhos anteriores.
escrita científica da Universidade Duke Na avaliação de Moskovitz, reescrever
e coordenador do projeto, em um texto um trecho para dizer exatamente a mes-
em seu perfil no site da universidade. ma coisa não é uma estratégia razoável.
Em um estudo publicado pelo grupo Em um webinar sobre autoplágio de que
na revista Learned Publishing, foram en- participou em junho, ele afirmou que esse
trevistados 21 editores de revistas cientí- tipo de edição, além de desperdiçar tem-
ficas de diversas disciplinas e apenas três po, dificulta a tarefa de compreender o
deles foram categóricos em não tolerar quanto a linha de pesquisa de um autor
nenhum tipo de reaproveitamento de realmente evoluiu ao longo do tempo e o
texto em artigos. Os outros 18 informa- que mudou de um artigo para o seguin-
ram que, a depender do contexto e da te. Segundo ele, em vez de dizer a estu-
quantidade de trechos reutilizados, não dantes e pesquisadores para não reciclar
se incomodam com a prática – desses, textos porque há algo de não confiável e
cinco disseram que algum tipo de reci- enganoso na prática, seria mais adequa-
clagem chega a ser inevitável. do fazê-los refletir sobre o quanto isso
Mas há consenso de que apresen- resulta em prejuízo para a integridade
tar conteúdo reciclado como novida- científica em cada situação específica.

Nomeação cancelada após escândalo

O
Instituto de Medicina Molecu- de um prestigioso centro dedicado a es- erro de minha vida, mas foi algo român-
lar de Veneto, em Pádua, Itália, tudos genéticos sobre câncer da Univer- tico, não sexual”, disse, segundo a revista
cancelou a nomeação do geneti- sidade Harvard, o Beth Israel Deaconess Nature. A pesquisadora assediada, uma
cista Pier Paolo Pandolfi para a posição Medical Center (BIDMC), em Boston, estagiária de pós-doutorado cujo nome
de diretor científico, depois da renún- em dezembro de 2019. Pandolfi deixou foi mantido em sigilo, disse que Pandolfi
cia em massa dos membros do conse- os Estados Unidos após ser acusado de se declarou para ela em 2018 e, a partir
lho consultivo científico da instituição assédio sexual e de alterar imagens em de então, passou a enviar e-mails e a pro-
em protesto contra a escolha. Em maio, 13 artigos científicos. “Deveriam ter in- vocar encontros para reiterar que esta-
Pandolfi foi indicado para o cargo pela vestigado melhor o nome antes da in- va apaixonado. Ela insistiu em manter
fundação que mantém o centro sem que dicação”, disse o bioquímico israelense a relação em nível profissional, em vão.
o conselho consultivo fosse ouvido, como Aaron Ciechanover, ganhador do Nobel “Foi horrível, embaraçoso e eu não con-
ALEXANDRE AFFONSO

determinam os estatutos da entidade. de Química de 2004, um dos integrantes seguia trabalhar”, disse a pesquisadora,
Tão logo foi nomeado, passaram a cir- do conselho que renunciaram. ao denunciar o caso ao centro em abril de
cular relatos na Itália sobre as razões que Pandolfi nega a adulteração de ima- 2019. Na ocasião, ela deixou de trabalhar
levaram Pandolfi a se afastar da direção gens, mas admite o assédio. “Foi o maior diretamente com Pandolfi.

10 | AGOSTO DE 2020
DADOS Dispêndios empresariais em P&D caem
significativamente

Segundo dados da última pesquisa Em 2017, as empresas Para as empresas sediadas O setor de serviços cresceu
de inovação (Pintec/IBGE), de 2017, brasileiras despenderam em São Paulo, o total foi entre 2011 e 2017, tanto para o
os dispêndios empresariais em R$ 32,6 bilhões em P&D, de R$ 14,6 bilhões, ou Brasil (31%) como para São
pesquisa e desenvolvimento (P&D)1 ou 0,50% do PIB nacional. 0,69% do PIB estadual, Paulo (215%). No último caso,
caíram, tanto em termos reais como Esses valores haviam em 2017. Os valores para o setor ampliou a participação
em intensidade (porcentagem do sido de R$ 41,2 bilhões2, 2014 haviam sido de de 11% para 31%, no mesmo
PIB), para o país e para São Paulo, ou 0,58% do PIB, em 2014 R$ 19,9 bilhões2, ou período, nos dispêndios
em relação a 2014 0,87% do PIB estadual empresariais de P&D

2011 2014 2017


Dispêndios em P&D Total P&D P&D Total P&D P&D Total P&D P&D
(R$ milhões de 2017) internos externos internos externos internos externos
Brasil 35.393 29.133 6.260 41.208 30.299 10.909 32.632 25.624 7.008
Indústria3 25.430 22.128 3.302 27.911 22.289 5.622 21.620 17.726 3.893
Eletricidade e gás 2.165 469 1.696 1.082 428 655 812 376 436
Serviços selecionados4 7.797 6.536 1.261 12.215 7.583 4.632 10.200 7.522 2.679
São Paulo 13.054 11.035 2.019 19.897 13.003 6.894 14.599 12.643 1.956
Indústria3 10.794 9.539 1.255 14.093 10.819 3.274 9.833 8.746 1.087
Eletricidade e gás 847 202 644 589 208 381 307 186 122
Serviços selecionados4 1.414 1.294 120 5.216 1.976 3.239 4.459 3.711 748
Dispêndios Total P&D P&D Total P&D P&D Total P&D P&D
P&D/PIB (%) internos externos internos externos internos externos
Brasil 0,55 0,46 0,10 0,58 0,43 0,15 0,50 0,39 0,11
São Paulo 0,62 0,53 0,10 0,87 0,57 0,30 0,69 0,60 0,09
Participação Total P&D P&D Total P&D P&D Total P&D P&D
São Paulo/Brasil (%) internos externos internos externos internos externos
Total 36,9 37,9 32,2 48,3 42,9 63,2 44,7 49,3 27,9
Indústria3 42,4 43,1 38,0 50,5 48,5 58,2 45,5 49,3 27,9
Eletricidade e gás 39,1 43,1 38,0 54,4 48,5 58,2 37,8 49,3 27,9
Serviços selecionados4 18,1 19,8 9,5 42,7 26,1 69,9 43,7 49,3 27,9

VARIAÇÃO DOS DISPÊNDIOS TOTAIS EM P&D


BRASIL SÃO PAULO
Ano
sobre
ano da 269
Pintec
215
Em %
57 52
31 31
16 10 12
n 2014/2011
-8 -9
n 2017/2014 -21 -23 -15 -25
-16
-27 -30 -30
-15
-50 -48
n 2017/2011 -62 -64

Total Indústria Eletr./Gás Serviços Total Indústria Eletr./Gás Serviços

NOTAS (1) AS ATIVIDADES DE P&D SÃO AS QUE ESTÃO RELACIONADAS DIRETAMENTE À INOVAÇÃO TECNOLÓGICA DE PRODUTOS E PROCESSOS. P&D INTERNOS SÃO AQUELES DESENVOLVIDOS PELA EMPRESA, OS EXTERNOS SÃO
OS CONTRATADOS DE OUTRA ORGANIZAÇÃO. OS VALORES LEVANTADOS PELA PINTEC REPRESENTAM UMA PROXY DOS VALORES DE DISPÊNDIOS EM P&D DAS EMPRESAS, POIS NÃO INCLUEM TODAS AS EMPRESAS EXISTENTES NEM
TODOS OS SETORES ECONÔMICOS (2) OS VALORES EM REAIS, INCLUINDO OS DE PIB, FORAM CORRIGIDOS PELO IPCA PARA VALORES DE 2017 (3) INDÚSTRIAS EXTRATIVAS E DE TRANSFORMAÇÃO (4) SERVIÇOS DE TECNOLOGIA,
TELECOMUNICAÇÕES, ARQUITETURA E ENGENHARIA, TRATAMENTO DE DADOS E REDES E OUTROS SELECIONADOS

FONTES PESQUISA DE INOVAÇÃO TECNOLÓGICA/IBGE, SISTEMA DE CONTAS NACIONAIS/IBGE (PIB BRASIL), IPCA/IBGE E FUNDAÇÃO SEADE (PIB DE SÃO PAULO E EXTRAÇÃO ESPECIAL DAS PINTEC 2011/2014 PARA SÃO PAULO).
PREPARADO PELA COORDENAÇÃO DE INDICADORES DE CT&I DE SÃO PAULO/DC E GERÊNCIA DE ESTUDOS E INDICADORES/DCTA, FAPESP. METODOLOGIA: PARA OS DADOS DOS DISPÊNDIOS DAS EMPRESAS DAS INDÚSTRIAS
EXTRATIVA/DE TRANSFORMAÇÃO PARA SÃO PAULO E BRASIL E PARA OS SETORES DO BRASIL, DADOS COLETADOS DIRETAMENTE DA PINTEC. PARA O SETOR DE SERVIÇOS EM 2011 E 2014 PARA SÃO PAULO, DADOS DA PINTEC EM
EXTRAÇÃO ESPECIAL PARA FUNDAÇÃO SEADE. PARA OS DADOS DOS SETORES DE ELETRICIDADE E GÁS DE 2011, 2014 E 2017, E PARA O SETOR DE SERVIÇOS DE 2017, PROJEÇÃO BASEADA NA PARTICIPAÇÃO DE SÃO PAULO NOS
DISPÊNDIOS DAS EMPRESAS EXTRATIVAS E DE TRANSFORMAÇÃO

PESQUISA FAPESP 294 | 11


NOTAS

As primeiras viagens pelo Pacífico Arquipélago das


ilhas Marquesas,
no Pacífico Sul, local
Os primeiros ocupantes da Polinésia, no centro-sul do Pacífico, tiveram contato com povos nativos
de contato entre
das Américas há pouco mais de 800 anos, cerca de cinco séculos antes da chegada de navegadores ancestrais de
europeus às ilhas da região. A conclusão resulta de um estudo que comparou as características polinésios e nativos
genéticas de 807 indivíduos de 17 ilhas da Polinésia com as de 15 etnias nativas americanas das Américas

habitantes da costa do Pacífico. Coordenado pelo geneticista Andrés Moreno-Estrada, do


Laboratório Nacional de Genômica para a Biodiversidade, no México, o trabalho identificou uma
pequena quantidade de material genético nativo americano no DNA de habitantes das ilhas
Marquesas, Palliser, Mangareva e Rapa Nui (Ilha de Páscoa). As sequências genéticas oriundas das
Américas que os polinésios guardam eram pequenas e quase idênticas, semelhantes às do povo
Zenu, do norte da Colômbia (Nature, 8 de julho). À revista Science, Moreno-Estrada afirmou que
elas indicam que teria havido um único contato dos primeiros polinésios com os nativos americanos
por volta do ano 1150, quando essa região do Pacífico começou a ser povoada. Não se sabe se
os ancestrais dos atuais polinésios, já na chegada, encontraram um grupo estabelecido de
indivíduos vindos das Américas ou se teriam navegado até a costa da América do Sul e depois
retornado. Segundo o estudo atual, o contato teria ocorrido nas ilhas Marquesas, e não em Rapa
Nui, mais próxima das Américas, como se pensava antes.

12 | AGOSTO DE 2020
2
PARAGUAI
Curitiba
PR

SC Imagem de
Florianópolis
709 satélite registra
ARGENTINA km
raio que caiu em
31 de outubro
RS Porto Alegre
de 2018 sobre
0 250 500
o Rio Grande do
Sul e se estendeu
URUGUAI km
por 709 km

Megaflashes sul-americanos
O raio mais extenso já registrado percorreu 709 quilômetros (km) na França, com de 7,74 segundos. Os novos megaflashes, nome
em uma linha horizontal cortando o Sul do Brasil em 31 de outubro dado pela OMM aos grandes raios, foram observados por
de 2018, informou em junho a Organização Meteorológica Mundial pesquisadores brasileiros do Sistema de Observação e Previsão de
(OMM). O recorde anterior, de 321 km, havia sido detectado em Tempo Severo (SOS-Chuva) e do Projeto Relâmpago, que estuda
junho de 2007 em Oklahoma, nos Estados Unidos. A OMM também a influência do fenômeno sobre a química e a física da atmosfera,
estipulou que o raio com duração mais longa, com 16,73 segundos, ambos apoiados pela FAPESP. O Brasil é recordista em incidências
ocorreu em 4 de março de 2019 na Argentina. Até então a descarga de raios. De acordo com o Grupo de Eletricidade Atmosférica
elétrica atmosférica mais demorada havia sido registrada em do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Elat-Inpe), 78 milhões
30 de agosto de 2012, na região de Provence-Alpes-Côte d’Azur, de raios caem todos os anos no país.

Anfíbios que Chuva de rochas na


inoculam veneno Terra e na Lua
FOTOS 1 SYBIL SASSOON / ROBERT HARDING PREMIUM /AFP 2 WMO 3 MAILHO-FONTANA, P. L. ET AL. ISCIENCE. JUL.2020 4 NASA MAPA ALEXANDRE AFFONSO

3 Há cerca de 800 milhões de anos, fragmentos de um grande


asteroide teriam colidido com a Terra e a Lua. A chuva de
meteoroides pode ter despejado de 40 a 50 trilhões de toneladas
de rochas ricas em carbono na superfície do planeta e de seu
satélite natural. Essa é a hipótese de pesquisadores da Universidade
de Osaka, no Japão, proposta a partir da análise de imagens da
superfície da Lua obtidas pela sonda espacial Kaguya (Nature
Imagem de Communications, 21 de julho). A pesquisa identificou oito crateras
microscopia grandes, com mais de 20 quilômetros de diâmetro, provavelmente
mostra glândulas
geradas pela chuva de meteoroides. Já na superfície terrestre,
produtoras de
toxinas e dentes a erosão e outras atividades geológicas devem ter apagado qualquer
da cobra-cega vestígio de crateras formadas durante o evento. Se realmente
ocorreram, os impactos da chuva podem ter influenciado a evolução
As cecílias ou cobras-cegas são animais peçonhentos, capazes da Terra no início do chamado período Criogeniano, marcado
de injetar veneno em suas presas, descobriram pesquisadores pelas eras glaciais mais intensas da história do planeta.
do Instituto Butantan. Com o corpo alongado como o de cobras
e serpentes, que são répteis, as cobras-cegas são os primeiros 4

anfíbios nos quais se encontraram glândulas de veneno na base


dos dentes (iScience, 24 de julho). Outros anfíbios, como sapos,
rãs e salamandras, têm na pele glândulas produtoras de toxinas.
Elas, no entanto, servem para a defesa passiva, permitindo
que se livrem de predadores que tentam abocanhá-los.
O biólogo Pedro Luiz Mailho-Fontana, que faz estágio de
pós-doutorado no Butantan, identificou as glândulas de peçonha
das cobras-cegas ao estudar a espécie Siphonops annulatus,
comum na América do Sul. “Estávamos analisando as glândulas
de muco que o animal tem na pele da cabeça, para abrir
caminho debaixo da terra, quando nos deparamos com essas
estruturas”, disse o biólogo à Agência FAPESP. As glândulas de
peçonha das cobras-cegas se desenvolvem a partir do mesmo
tecido que gera os dentes, como ocorre nas serpentes.

PESQUISA FAPESP 294 | 13


Rumo a Marte
Os Emirados Árabes Unidos lançaram em 19 de julho, de um centro
espacial no Japão, sua primeira sonda espacial interplanetária: a Al-Amal,
ou Esperança, destinada a estudar a atmosfera marciana e monitorar
as mudanças climáticas do Planeta Vermelho. A sonda foi construída em
colaboração com pesquisadores das universidades da Califórnia, do
Colorado e do Arizona, nos Estados Unidos, e enviada ao espaço a bordo
de um foguete da empresa japonesa Mitsubishi. Formado pela unificação
de sete principados há quase 50 anos, os Emirados Árabes Unidos
entraram na corrida espacial há pouco, já lançaram três satélites na órbita
da Terra e enviaram um astronauta à Estação Espacial Internacional. Em
23 de julho, a China lançou, de uma base própria e em um foguete chinês,
a missão Tianwen-1. Composta de um orbitador, um módulo de pouso e um
jipe robótico, será a primeira missão chinesa a tentar pousar em Marte.

Chumbo no ar de Paris
Uma tonelada de chumbo, metal tóxico ao sistema
nervoso, pode ter sido depositada sobre uma área com
1 quilômetro de raio ao redor da catedral Notre-Dame, em
Paris, no incêndio de abril de 2019. A estimativa feita por
pesquisadores da Universidade Columbia, Estados Unidos,
Sensores de nanocelulose sugere que, durante o incêndio, a vizinhança da catedral
foi exposta a um nível de chumbo seis vezes maior que
Sensores eletroquímicos aplicados sobre a pele para monitorar as o estimado inicialmente pela Agência Regional de Saúde
condições de saúde ou o desempenho físico podem ser produzidos com de Paris (Geohealth, 9 de julho). O fogo destruiu o telhado
nanocelulose microbiana, um polímero natural usado em curativos, em e o pináculo da construção medieval, contendo 460
substituição aos impressos em plásticos, comuns no mercado (Talanta, toneladas de chumbo, e vaporizou parte do metal tóxico,
19 de maio). A possibilidade foi demonstrada em um projeto realizado por que foi carregado pelo vento. Análises recentes indicaram
pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP) em São Carlos em que uma faixa de solo à noroeste da Notre-Dame, a
parceria com equipes de outras instituições. Segundo Osvaldo Novais de direção tomada pela pluma de fumaça, está contaminada
Oliveira, da USP, coordenador do projeto, os sensores de nanocelulose com 430 miligramas (mg) de chumbo por quilograma
têm vantagens em relação aos de plástico: não são tóxicos nem irritam de solo, 130 mg acima do limite permitido pela legislação
a pele. Também são semipermeáveis, o que permite detectar substâncias francesa. Segundo os pesquisadores, o impacto dessa
no suor. “Já demonstramos que podem detectar metais pesados, hormônios contaminação na saúde dos parisienses é inferior ao da
e ácido úrico. Modificados, conseguem identificar glicose”, afirma. fumaça da gasolina com chumbo, banida no ano 2000.

O dinossauro virou lagarto?


Em março, paleontólogos anunciaram uma descoberta fantástica. A equipe da pesquisadora
Jingmai O’Connor, do Instituto de Paleontologia e Paleoantropologia de Vertebrados de Beijing,
na China, apresentou em um artigo na Nature o que seria a menor espécie de dinossauro já
identificada: Oculudentavis khaungraae, descrita a partir de um crânio aprisionado em uma peça
3 de âmbar de 99 milhões de anos encontrada em Mianmar, no Sudeste Asiático. Depois da
publicação, também noticiada por Pesquisa FAPESP, outras equipes questionaram a classificação,
dizendo que o fóssil tinha características de lagartos. Agora, em 22 de julho, o grupo de O’Connor
retratou o artigo. Um novo fóssil, ainda não descrito, levantou dúvida sobre a classificação inicial
Âmbar de 99 milhões
de anos com o crânio de de O. khaungraae. “Estávamos errados”, disse O’Connor à Nature. Ela sustenta, porém, que o
O. khaungraae exemplar não pode ser reclassificado até que os dados do novo fóssil sejam publicados.

14 | AGOSTO DE 2020
Ação prolongada Resgate do acervo
contra o HIV de museu da UFMG
Pesquisadores da farmacêutica A agilidade da Comissão de Gestão de
norte-americana Gilead Sciences Preservação de Acervos da Universidade Federal
publicaram o resultado de ensaios de Minas Gerais (UFMG) está sendo fundamental
clínicos de um novo antirretroviral para o resgate do acervo da reserva técnica 1
com ação duradoura contra o HIV 4 do Museu de História Natural e Jardim Botânico
(Nature, 1º de julho). A molécula Ilustração mostra destruição de capsídeo (MHNJB), atingido por um incêndio em 16
GS-6207 (lenacapavir) inibe a (púrpura) do vírus de junho. As cinco salas afetadas pelo fogo
FOTOS 1 ROBSON ROSA DA SILVA / IFSC / USP 2 WIKIMEDIA COMMONS 3 LIDA XING 4 RANDOM 42 5 ANGELO DEVAL / ALAMY / FOTOARENA

montagem e o desmonte do capsídeo, guardavam coleções de arte popular,


a estrutura que envolve o RNA viral. de lenacapavir. Ao site de notícias Stat, arqueologia, paleontologia, etnografia, botânica
Um teste com 40 pessoas saudáveis o virologista Sumit Chanda, do Instituto e zoologia. No dia seguinte ao incêndio, após
que receberam uma dose por injeção de Pesquisa Médica Sanford Burnham a Polícia Federal realizar o escaneamento em
subcutânea indicou que o composto Prebys, nos Estados Unidos, que 3D (ver Pesquisa FAPESP no 293) da estrutura
é seguro, bem tolerado e permanece não participou do estudo, disse queimada e coletar amostras para análise,
ativo no corpo por mais de seis meses. temer o surgimento de resistência ao um grupo emergencial formado por profissionais
Outro ensaio, com 32 pacientes HIV medicamento. Segundo a Gilead, de museologia, arqueologia e conservação
positivos, mostrou redução na carga o lenacapavir deverá ser usado em passou a retirar o acervo do local e a registrar,
viral nove dias depois de uma dose combinação com outros antirretrovirais. acondicionar e reorganizar o material.

Corte de madeira em alta na Europa


O crescimento da atividade madeireira na União Europeia para atender principalmente os setores de produção de
(UE) pode impedir que a região atinja a meta de papel e energia renovável. Suécia e Finlândia contribuíram
neutralizar suas emissões de carbono até 2050. Guido com mais da metade dessa elevação. Apesar do aumento
Ceccherini e colegas do Centro de Pesquisa Conjunta da na extração de madeira, a cobertura florestal total da UE
Comissão Europeia, em Ispra, na Itália, analisaram os não diminuiu. O reflorestamento manteve estável em
dados de imagens de satélite obtidas entre 2004 e 2018 38% a área ocupada pelas matas. As florestas europeias
de florestas europeias (Nature, 1º de julho). Entre 2004 absorvem cerca de 10% dos gases de efeito estufa Floresta no
e 2015, a atividade anual de corte de madeira se manteve emitidos pelos países da UE para a atmosfera. Mesmo com Algarve, Portugal:
estável na maioria dos 26 países da UE. Entre 2016 o replantio, o aumento no corte de árvores pode reduzir derrubada de
árvores para
e 2018, porém, a área de floresta cortada e a perda de a capacidade de a floresta funcionar como sorvedouro
a extração de
biomassa aumentaram 49% e 69%, respectivamente, desses gases. É que a vegetação jovem desempenha madeira aumenta
em comparação com o período entre 2011 e 2015, essa função com menos eficiência do que a madura. na Europa
5

PESQUISA FAPESP 294 | 15


NOTAS DA PANDEMIA
1 2

Coronavac,
formulação candidata
a vacina produzida
pela chinesa Sinovac

Um potencial
reservatório de vírus
O tecido adiposo talvez funcione como um
reservatório do novo coronavírus, sugere
estudo conduzido por pesquisadores da
Universidade Estadual de Campinas
Avançam os testes de vacinas (Unicamp). O vírus é capaz de invadir as
células de gordura (adipócitos) humanas
Desenvolvida por pesquisadores da Universidade de Oxford, no Reino Unido, em parceria e permanecer em seu interior. Em laboratório,
com a farmacêutica britânica AstraZeneca, uma das principais formulações candidata o Sars-CoV-2 infectou adipócitos tão bem
a vacina contra a Covid-19 apresentou bons resultados na primeira fase de testes clínicos. quanto as células epiteliais do intestino ou
Mostrou-se capaz de ativar e manter por 56 dias a produção de anticorpos e células dos pulmões. A infecção foi ainda maior
de defesa no organismo de 1.077 voluntários com idade entre 18 e 55 anos (Lancet, quando os adipócitos (imagem) passavam
20 de julho). Ainda não se sabe qual seria o nível de anticorpos necessário para garantir por um processo artificial de envelhecimento.
proteção efetiva contra o novo coronavírus nem se a formulação induz imunização Os dados são preliminares. Se confirmados,
duradoura. A expectativa é que essas questões sejam esclarecidas com os testes clínicos podem ajudar a explicar por que obesos
de fase 2 e 3, a serem realizados em vários países, entre eles o Brasil. Também em julho, no e idosos correm mais risco de ter a forma
dia 20, chegaram ao país as doses da CoronaVac, candidata a vacina contra o Sars-CoV-2 grave da infecção. “Temos células adiposas
concebida pela farmacêutica chinesa Sinovac. O Instituto Butantan, em São Paulo, em todo o corpo e os obesos as têm em
já iniciou os testes clínicos, para avaliar a eficácia e a segurança da formulação. Essa fase quantidade e tamanho maiores”, disse
deve durar três meses e envolver 9 mil voluntários de São Paulo, Rio Grande do Sul, o biomédico Marcelo Mori, coordenador da
Minas Gerais, Paraná e Distrito Federal. Em julho a Agência Nacional de Vigilância Sanitária pesquisa, à Agência FAPESP. “Precisamos
(Anvisa) autorizou os testes, no Brasil, de duas variantes de outra candidata a vacina, confirmar se, após a replicação, o vírus sai do
desenvolvida pelos laboratórios Pfizer, dos Estados Unidos, e BioNtech, da Alemanha. adipócito viável para infectar outras células.”

Pelos ares da Escócia 3

Nos próximos meses a empresa Skyports deve começar a usar drones para
transportar suprimentos médicos, testes de diagnósticos e amostras de
exames entre hospitais na costa oeste da Escócia. O projeto foi selecionado
pela agência espacial do Reino Unido e pela Agência Espacial Europeia (ESA)
para oferecer suporte ao Serviço Nacional de Saúde (NHS), o sistema público
de saúde britânico, no combate à pandemia do novo coronavírus naquela
região. A expectativa é que os veículos aéreos não tripulados, que voarão
recebendo orientação por satélite e pela rede de telefonia 4G, reduzam em
muito o tempo de deslocamento desses materiais. O acesso por carro ou
barco a certas áreas da costa oeste da Escócia pode levar até 48 horas.
Um drone pode fazer o trajeto em 30 minutos. Em maio, a Skyports realizou
com sucesso o transporte experimental de carga médica entre dois hospitais.

16 | AGOSTO DE 2020
Sirius produz nova imagem
de proteína do Sars-CoV-2
O Sirius, a nova fonte de luz síncrotron brasileira,
permitiu produzir uma imagem tridimensional detalhada
da proteína 3CL, essencial para a replicação do novo
coronavírus no interior das células. A imagem da proteína
em formato de um coração foi reconstruída em computador
depois de a posição dos átomos que a compõem ter sido
determinada por uma técnica chamada difração de raios X.
Os experimentos para identificar a posição dos átomos na 4

proteína foram feitos na Manacá, a primeira estação de


pesquisa do Sirius a entrar em funcionamento. “A estrutura
da 3CL já era conhecida por trabalhos realizados em outros
FOTOS 1 INSTITUTO BUTANTAN 2 ANDRÉA ROCHA E DANILO FERRUCCI / INFABIC / UNICAMP 3 SKYPORTS 4 SIRIUS / CNPEM 5 ZHAW SCHOOL OF ENGINEERING

locais do mundo, o que nos permite avaliar a qualidade dos


resultados obtidos no Sirius”, disse ao UOL o físico Antonio
José Roque da Silva, diretor-geral do Centro Nacional de
Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM), que abriga
Imagem da
o Sirius. A 3CL é um alvo potencial de compostos candidatos
estrutura
a combater o vírus. Em julho, o CNPEM passou a receber tridimensional da
propostas de usar o Sirius para estudar o Sars-CoV-2. proteína 3CL

Mapa do tráfego aéreo comercial;


cada ponto amarelo representa um avião

Piora na A redução de voos comerciais provocada pela


pandemia do novo coronavírus levou a um efeito
foi uma piora na precisão dos dados. O pesquisador
Ying Chen, da Universidade de Lancaster, no

previsão inusitado: diminuiu a precisão da previsão do tempo


em certas regiões do planeta. Durante o voo
Reino Unido, comparou a acurácia das previsões
meteorológicas feitas de março a maio deste ano
do tempo entre diferentes localidades, os aviões registram com as do mesmo período de três anos anteriores
informações sobre os ventos, a temperatura, e constatou uma queda na precisão dos dados sobre
a pressão e a umidade relativa do ar. Os dados temperatura, umidade relativa, pressão atmosférica
fornecidos por milhares de voos diários ajudam e velocidade dos ventos (Geophysical Research Letters,
a alimentar os modelos de previsão meteorológica. 15 de julho). A piora foi maior tanto nas regiões
A pandemia, porém, deixou boa parte da frota aérea com intenso tráfego aéreo (Estados Unidos, sudeste
no chão, causando uma redução de 50% a 75% nas da China e Austrália) quanto nas mais remotas
observações feitas por aeronaves. A consequência (Groenlândia, Antártida e deserto do Saara).

PESQUISA FAPESP 294 | 17


CAPA

TEMPOS
DE
INCERTEZA

18 | AGOSTO DE 2020
Mudanças na rotina ocasionadas pela Covid-19 podem aumentar
casos de sofrimento emocional e transtornos mentais Ricardo Zorzetto

A
s transformações no modo de viver e Organização das Nações Unidas (ONU) publicou
morrer impostas pelo novo coronaví- um relatório chamando a atenção de governos do
rus podem começar em breve a cobrar mundo todo para que adotem medidas para redu-
um preço alto sobre a saúde mental zir o possível impacto da pandemia de Covid-19
das pessoas – se já não o estão fazen- sobre a saúde psíquica da população. “A saúde
do. Segundo a Organização Mundial mental e o bem-estar de sociedades inteiras foram
da Saúde (OMS), de quando surgiu na severamente afetados por essa crise e são uma
China, em dezembro de 2019, a 27 de prioridade que deve ser tratada com urgência”,
julho deste ano, o vírus já infectou mais de 16 mi- informa o documento. “É provável que haja um
lhões de indivíduos, matou 646 mil e continua se aumento duradouro no número e na gravidade
espalhando. Na tentativa de frear a disseminação dos problemas de saúde mental.”
do Sars-CoV-2, causador da Covid-19, governos e A OMS considera a saúde mental uma área ne-
autoridades de saúde de diversas nações aplica- gligenciada, que recebe dos países, em média, 2%
ram regras que alteraram a forma como as pessoas do orçamento destinado à saúde, embora as doen-
vivem e se relacionam umas com as outras. ças neurológicas e psiquiátricas afetem quase 1
De uma hora para outra, comércio, indústria, es- bilhão de pessoas – segundo a Organização para
colas e centros de lazer e atividade física fecharam a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico
e a mobilidade das pessoas ficou restrita. Quem (OCDE), os transtornos mentais geram custos
pôde e dispôs dos recursos necessários isolou- diretos e indiretos de US$ 2,5 trilhões (4% do
-se em casa, adotou o trabalho remoto e passou PIB mundial). “Se não agirmos, haverá um gran-
a ajudar os filhos com as aulas virtuais. Homens de percentual de pessoas seriamente afetadas,
e mulheres começaram a usar máscara em locais o que terá um impacto sobre a economia desses
públicos e o contato físico foi desestimulado – de- países”, afirmou a psicóloga Dévora Kestel, dire-
sapareceu o beijo no rosto e até o aperto de mão. tora do Departamento de Saúde Mental e Abuso
Os que precisam ir às ruas convivem com receio de Substâncias da OMS, à tevê alemã Deutsche
de contrair o vírus e quem se infecta experimenta, Welle no dia seguinte ao lançamento do relatório.
além de sintomas físicos, o medo de desenvolver Alguns especialistas sugeriram que os problemas
a forma grave da doença e precisar de internação. de saúde mental podem, eles próprios, transforma-
Nos hospitais, os pacientes perdem o contato di- rem-se em uma nova pandemia. Por ora, no entan-
reto com a família – em certos casos, conseguem to, não é possível saber a dimensão que o problema
contato remoto – durante um tratamento prolon- pode assumir. “Não houve tempo suficiente para
gado no qual só interagem com a equipe de saúde. coletar dados que permitiriam responder ade-
Os médicos e a equipe de enfermagem, por sua quadamente a essa questão”, afirmou a psiquiatra
vez, vivem rotinas exaustivas e angustiantes diante norte-americana Carol S. North, especialista em
do elevado número de mortes e do risco de se traumas e desastres do Centro Médico Sudoeste
infectar e levar o vírus para casa (ver reportagem da Universidade do Texas, por e-mail a Pesquisa
na página 24). O caminho dos que morrem ficou FAPESP. Para North, as pesquisas feitas em pan-
mais solitário, e quem perde alguém para a Co- demias anteriores, como a da Síndrome Respira-
vid-19 tem de lidar com a despedida incompleta. tória Aguda Grave (Sars), em 2003, são limitadas.
Apesar da capacidade humana de se adaptar “Precisamos esperar que bons dados mostrem co-
ALINE VAN LANGENDONCK

a transformações, as mudanças e o surgimento mo a Covid-19 está afetando as pessoas”, propõe.


de tantas adversidades em pouco tempo podem Apesar do pouco tempo desde o começo da pan-
gerar uma sobrecarga de estresse que já preocu- demia, estudos iniciais sugerem que as mudanças
pa as autoridades internacionais de saúde e os na rotina e o temor de contrair a infecção e adoecer
profissionais de saúde mental. Em 13 de maio, a começam a elevar o número de casos de sofrimen-

PESQUISA FAPESP 294 | 19


to psicológico – e possivelmente de problemas a pandemia. Quase um em cada quatro estudan-
psiquiátricos – em alguns países. Realizados por tes relatou sinais compatíveis com o diagnóstico
meio da internet, esses levantamentos consistem de depressão e um em cada cinco de ansiedade,
na aplicação de questionários a um número mo- proporção ao menos 30% superior à observada
desto de participantes. Seus resultados, longe de em estudos anteriores com crianças asiáticas de
definitivos, possibilitam ter uma ideia do que pode idade semelhante, segundo artigo publicado em
vir pela frente. Informações mais precisas só de- abril na revista Jama Pediatrics. Os sintomas de
vem ser conhecidas em meses ou anos, quando os depressão foram mais intensos nas crianças de
pesquisadores tiverem melhores condições e mais Wuhan do que nas que viviam em uma cidade pró-
tempo para aprofundar os estudos sobre esse tema. xima, Huangshi, que permaneceu menos tempo

N
em quarentena. “Os achados sugerem que, assim
a China, pesquisadores da Universidade como experiências traumáticas, doenças infec-
Normal do Noroeste enviaram, por meio ciosas graves podem influenciar a saúde mental
de um aplicativo de troca de mensagens, de crianças”, escreveram os autores do trabalho,
perguntas que permitem identificar sinais coordenado pela pesquisadora Ranran Song, da
de depressão, ansiedade, consumo exces- Universidade Huazhong de Ciência e Tecnologia.
sivo de álcool e bem-estar psicológico para Não há motivo para suspeitar de que a situação
1.074 pessoas com idade entre 14 e 68 anos. Quase inicial registrada na China seja muito diversa da
dois terços eram moradores da província de Hubei, enfrentada pelo Ocidente. Aqui, a doença se dis-
onde se localiza a cidade de Wuhan, berço da atual semina de modo acelerado há meses, mas são es-
pandemia. Segundo os resultados, publicados em cassos os dados sobre seu efeito na saúde mental
abril no Asian Journal of Psychiatry, a proporção das pessoas. Em um levantamento com 1.143 pais
de indivíduos com sinais de depressão grave era de crianças e adolescentes espanhóis e italianos
duas vezes mais alta em Hubei (11,4%) do que nas conduzido pela psicóloga Mireia Orgilés, da Uni-
demais províncias chinesas (5,3%) que haviam sido versidade Miguel Hernández, na Espanha, 86%
menos afetadas pelo novo coronavírus e serviram dos genitores relataram que seus filhos apresen-
de parâmetro de comparação. Algo semelhante foi taram mudanças emocionais e de comportamen-
observado com o consumo abusivo e a dependên- to durante a quarentena. Segundo artigo deposi-
cia de álcool, respectivamente, de 11% e 6,8% em tado em abril no repositório PsyArXiv, 77% das
Hubei e de 1,9% e 1% no resto da China. crianças e adolescentes tiveram dificuldade de
Ainda em abril, um grupo da Universidade de concentração, 52% se tornaram entediadas, 39%
Sichuan, também na China, reportou na revista mais irritadas e inquietas.
Medical Science – Monitor os achados de outro le- No Brasil, o psiquiatra Guilherme Polanczyk e
vantamento virtual. Nele, 1.593 adultos de Hubei e sua equipe no Departamento de Psiquiatria da Fa-
de quatro províncias vizinhas foram entrevistados culdade de Medicina da Universidade de São Paulo
em fevereiro, no auge do surto, semanas após a (FM-USP) iniciaram em junho o monitoramento,
adoção de medidas mais restritivas de isolamento. também por meio da aplicação de questionários
A proporção de pessoas com sinais que caracteri- on-line, de crianças e adolescentes com idade entre
zam ansiedade e depressão foi, respectivamente, 5 e 17 anos de todo o país. Os pesquisadores pla-
de 13% e 22% entre aquelas que enfrentaram a qua- nejam avaliar alterações na rotina, no comporta-
rentena, índices duas vezes maiores do que os ob- mento e nas emoções ao longo de um ano. Dados
servados entre os indivíduos que puderam circular preliminares, obtidos a partir da análise de 4.504
e levar uma vida mais pró- respostas, indicam que a garotada tem passado
xima à normal (7% e 12%). muito tempo navegando na internet (metade usa
O bem-estar emocional eletrônicos por mais de oito horas por dia, descon-
de crianças e adolescen- tando as aulas), dormindo menos e mais sedentária
tes também parece ter sido (43% não faziam atividade física havia duas sema-
abalado de modo impor- nas). Também sugerem que 13% dos participantes
tante pelo medo do con- apresentavam algum nível de ansiedade e 16% de
tágio e pelo isolamento depressão que mereceria a avaliação de um espe-
social. Com autorização cialista. “É uma proporção muito elevada, maior
dos pais, 1.784 crianças ainda nos filhos de pais estressados e com menor
de duas escolas primárias nível socioeconômico”, afirma Polanczyk.
responderam a perguntas Os números nesses levantamentos impressio-
que avaliavam sinais de nam, mas devem ser vistos com cautela. Apesar
depressão e ansiedade, dos cuidados tomados pelos pesquisadores, in-
além do nível de preocu- quéritos feitos via internet nem sempre atingem
pação com o contágio e do amostra representativa de uma população. Por
otimismo mantido durante exemplo, é maior a probabilidade de que pessoas

20 | AGOSTO DE 2020
mais ricas, com maior escolaridade e melhor aces- menos tempo (dura dias) e raramente necessita de
so à rede respondam à pesquisa do que as que se tratamento com medicação, embora seja de duas
encontram no outro extremo socioeconômico. a três vezes mais frequente na população do que
Também é esperado que um número maior de os transtornos psiquiátricos.
indivíduos com algum grau de sofrimento psí- Outra razão para analisar com prudência os
quico dedique algum tempo para responder às números é que boa parte das pessoas, mesmo as
questões do que aqueles que se sentem saudáveis. expostas a eventos traumáticos, não desenvolve

A
transtornos psiquiátricos. Estudando os desastres,
lém dessas limitações, há uma diferença Carol North constatou que menos da metade das
importante entre sofrimento psicológico e pessoas que passaram diretamente por traumas
transtorno psiquiátrico, que nem sempre intensos apresentou um problema psiquiátrico.
é apreendida nesses levantamentos. Am- “Essa proporção é muito menor na população ge-
bos os problemas consistem em sentimen- ral”, afirma a psiquiatra. “As pessoas são resilien-
tos e emoções que podem ou não surgir tes.” Ela, no entanto, suspeita que grande parte
em resposta a mudanças no ambiente e causam dos indivíduos, incluindo os não expostos, possa
desconforto emocional, afetando a capacidade de apresentar algum grau de sofrimento psíquico em
executar as atividades cotidianas. “O que distingue consequência do medo associado à infecção, ao
um do outro é a intensidade”, explica o psicólogo isolamento social e às perdas econômicas.
Christian Kristensen, da Pontifícia Universida- “O surgimento dos transtornos mentais depende
de Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS). “A da vulnerabilidade biológica do indivíduo e dos
partir de certo grau de sofrimento ou prejuízo no fatores ambientais. Diante de um fator ambiental
funcionamento e de sua duração, o problema se com a magnitude dessa pandemia, até as pessoas
torna patológico e pode ser considerado transtorno menos vulneráveis podem desenvolver algum pro-
ALINE VAN LANGENDONCK

psiquiátrico”, conta o pesquisador, integrante de blema”, explica o psiquiatra Luis Rohde, da Uni-
um grupo da PUC-RS que realiza outro inqué- versidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
rito on-line para avaliar como a pandemia está “Para a maior parte das outras pessoas, esse deve
afetando a saúde mental dos brasileiros. Além de ser um período de estresse e ansiedade, mas tran-
menos intenso, o sofrimento psicológico persiste sitório”, pondera Polanczyk, da USP.

PESQUISA FAPESP 294 | 21


Além do possível aumento em casos de ansie- mental não recebem tratamento medicamentoso
dade e de depressão, espera-se alguma elevação que poderia controlar o problema.
nos de transtorno de estresse pós-traumático, que Para Polanczyk, a pandemia deve alargar as de-
consiste na rememoração de eventos altamente sigualdades sociais também no que diz respeito ao
estressantes em que há ameaça à vida, e de luto acesso aos serviços de saúde mental. “Os mais atin-
prolongado, no qual passa a existir a dificuldade gidos provavelmente serão as crianças e os adultos
de superar a perda de quem partiu. “A pandemia mais pobres, cujo problema nem chega a ser detec-
já provocou um processo de luto coletivo na popu- tado em levantamentos on-line”, diz. “Em nosso
lação pela perda da vida normal e deve agravar o estudo, observamos que o número de crianças e
luto vivido por familiares e amigos de quem mor- adultos com sintomas clínicos é de duas a três ve-
re por causa da Covid”, propõe a psicóloga Maria zes maior entre os de nível socioeconômico mais
Júlia Kovács, do Instituto de Psicologia da USP. baixo do que entre os mais ricos. Para melhorar a

M
situação deles, será necessária a atuação do Estado.”
esmo que modesto, um aumento nos casos Enquanto não se enxerga o fim da pandemia,
de transtorno psiquiátrico deve sobrecar- psiquiatras e psicólogos fazem algumas recomen-
regar um sistema de saúde despreparado dações para amenizar o sofrimento psíquico: man-
para lidar com o problema. “O sistema ter uma rotina parecida com a de antes, dormindo e
de saúde brasileiro foi organizado para acordando no mesmo horário; fazer exercício físi-
atender casos graves, como esquizofrenia co; não aumentar o consumo de bebidas alcoólicas;
e transtorno bipolar”, lembra o psiquiatra Jair Mari, tentar desenvolver hobbies e realizar atividades de
da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). lazer; e não ficar ligado o tempo todo no noticiário.
“Pessoas com depressão, ansiedade, síndrome do “São dicas gerais e sem contraindicação”, diz
pânico ou problema de adição a drogas vivem no o psiquiatra André Brunoni, da FM-USP. Usando
limbo.” Estudos coordenados por Mari já indica- ferramentas on-line, atualmente ele avalia os efei-
ram que o Brasil tem proporcionalmente poucos tos da pandemia em uma amostra de 4 mil pessoas
psiquiatras (3,2 para cada 100 mil habitantes; nos que participam do Estudo Longitudinal de Saúde
países ricos essa proporção é 20 vezes maior) e que do Adulto (Elsa-Brasil), que acompanha há anos a
85% das pessoas com um diagnóstico de transtorno saúde de 15 mil funcionários públicos brasileiros.

22 | AGOSTO DE 2020
PESQUISA NA QUARENTENA

“OPORTUNIDADE
PARA
REPENSARMOS
O MODO
COMO VIVEMOS”

A crise mudou a visão do trabalho


intelectual em casa. Havia
computadores, mas não ambiente físico
nem preparo para esse tipo de atividade.
As outras pessoas interrompiam
a toda hora, achavam que você estava
“Esperamos identificar fatores que aumentem o vagabundeando e não trabalhando.
risco de desenvolver transtornos mentais”, explica. Não é o meu caso. Trabalho em casa
Os participantes da pesquisa que apresenta- desde o doutorado, na Alemanha, na
rem alto nível de estresse serão encaminhados década de 1980. Na universidade [Federal
para participar de uma das duas estratégias de do Pará], montei minha sala, mas a todo
atendimento a distância para ajudar a lidar com momento tinha de parar para dar atenção
problemas como estresse, insônia e pensamen- aos alunos ou aos colegas. Seis meses
tos negativos: a teleterapia em grupo, em que um depois, voltei a trabalhar em casa.
psicólogo acompanha de seis a oito pessoas du- Estou com uma carga de trabalho
rante cinco sessões, ou a psicoeducação, em que extremamente estimulante. Em novembro
o participante recebe textos e vídeos ensinando de 2019 saíram os dados totais do
técnicas para lidar com os sintomas. “Se a psicoe- Censo Agropecuário 2017, fundamentais
ducação atingir níveis de eficácia semelhantes aos para minhas análises sobre a dinâmica
do teleatendimento, ela poderá ajudar a aumentar regional na Amazônia. Já mandei um
a capacidade de atender as pessoas”, diz Brunoni. artigo para uma revista, outro foi aprovado
Para o restante da população, a equipe da psi- [para publicação] e estou terminando
quiatria da USP lançou em junho um aplicativo de um terceiro.
celular – o COMVC, disponível para os sistemas Os dados e análises a partir do Censo
Android e iOS – que usa questionários aprovados estão sendo úteis nos relatórios do
por entidades psiquiátricas para monitorar sin- SPA [Science Panel for the Amazon, da
tomas de ansiedade, depressão, insônia e esgota- Organização das Nações Unidas],
mento (burnout). Quem apresenta nível moderado para o qual fui convidado em março.
recebe a indicação de vídeos que orientam como As reuniões são virtuais e têm funcionado
lidar com o problema. Para os casos graves, a fer- bem. Estamos preparando um relatório que
ramenta apresenta uma lista de instituições que deve ser o estado da arte do conhecimento
oferecem atendimento psicológico de emergência sobre a Amazônia, para fortalecermos
gratuito ou de baixo custo. “Há muitos apps de o diálogo mundial sobre essa região.
saúde mental, mas é difícil encontrar informa- Estou usando quase todo meu tempo
ções e tratamento de qualidade”, diz o psicólogo nas análises do Censo e do SPA, somando
Daniel Fatori, que coordenou o desenvolvimen- o trabalho com outros professores na
to do COMVC e faz estágio de pós-doutorado na manutenção do nosso grupo de pesquisa,
ILUSTRAÇÕES ALINE VAN LANGENDONCK E FERNANDO CARVALL

instituição. “Esperamos que o aplicativo ajude a o GP-DadesaNaea [Grupo de Pesquisa


resolver casos leves ou moderados.” n Dinâmica Agrária e Desenvolvimento
Sustentável na Amazônia do Núcleo
de Altos Estudos Amazônicos da UFPA].
Projetos Mesmo sem aulas, queremos manter
1. Impacto na saúde mental da pandemia do novo coronavírus (Co- os alunos mobilizados.
vid-19) nos participantes do estudo longitudinal de saúde do adulto
(Elsa-Brasil) do estado de São Paulo (nº 20/05441-9); Modalidade
Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisadora responsável Isabela Judith FRANCISCO DE ASSIS COSTA é professor e pes-
Martins Benseñor (USP); Investimento R$ 131.191,76. quisador da Universidade Federal do Pará (UFPA),
2. Intervenções na primeira infância e trajetórias de desenvolvimento em Belém, e membro do Science Panel for the Ama-
cognitivo, social e emocional (nº 16/22455-8); Modalidade Projeto zon, da Sustainable Development Network (SDSN),
Temático; Pesquisador responsável Guilherme Vanoni Polanczyk ligado à ONU.
(USP); Investimento R$ 2.509.395,96. DEPOIMENTO CONCEDIDO A CARLOS FIORAVANTI

PESQUISA FAPESP 294 | 23


EQUIPES DA
gere a psiquiatra Ana Bresser Tokeshi, preceptora
da residência em psiquiatria no Centro de Aten-
ção Integrada à Saúde Mental (Caism) da Uni-
versidade Federal de São Paulo (Unifesp). Ela e
Amanda Steil, médica residente em medicina de

SAÚDE
emergência do Hospital São Paulo (HSP), ligado à
Unifesp, coordenaram uma pesquisa on-line com
médicos residentes de todo o país. O estudo reuniu
3.067 respostas, o equivalente a 8% dos médicos

SOB ESTRESSE
em formação no Brasil. As análises preliminares
indicaram uma taxa de depressão de 67% e de
ansiedade de 52% durante a pandemia, acima
dos 20% e 40%, respectivamente, registrados em
levantamentos anteriores no Brasil. “Quanto me-

EMOCIONAL
nor o respaldo dos supervisores, maior o risco de
ansiedade e depressão”, concluiu Tokeshi.
Em maio, o único serviço nacional voltado a pro-
fissionais da saúde com dúvidas sobre a Covid-19,
o 0800-644-6543, do MS, incorporou o TelePsi-
Triplica o nível de depressão Covid-19, um serviço de atendimento psicológico
e psiquiátrico coordenado pelo Hospital de Clíni-
entre profissionais que atendem cas de Porto Alegre. Depois de uma triagem, quem
apresentar sintomas leves de ansiedade, depressão
pacientes com Covid-19 ou irritabilidade recebe uma avaliação por e-mail e
segue para uma conversa com um psicólogo. Quem
Carlos Fioravanti tiver sintomas mais pronunciados é conduzido pa-

P
ra quatro consultas de uma hora de psicoterapia
or estarem em contato com pessoas on-line. Os serviços psicológicos adotam uma de
com Covid-19, médicos, enfermeiros, três abordagens distintas, a cognitiva-comporta-
motoristas de ambulância e agentes co- mental, a interpessoal e a telepsicoeducação, para
munitários da saúde estão sob intenso ajudar a solucionar os problemas. “As estratégias
estresse emocional, expresso em insô- devem funcionar, mas queremos avaliar cientifi-
nia, ansiedade, depressão, irritabilidade camente qual a mais eficaz para essas situações”,
e medo de se infectar ou de transmitir o comenta o psiquiatra e coordenador do programa
novo coronavírus a seus familiares. As Giovanni Salum, da Universidade Federal do Rio
equipes de especialistas em saúde mental de várias Grande do Sul (UFRGS).
universidades que observaram essas alterações Das 300 pessoas atendidas até meados de ju-
também criaram ações para amenizar esses efeitos lho, 30 estavam em situação mais grave. Dessas, os
da pandemia. Até o final de julho, de acordo com o psiquiatras identificaram três com ideias suicidas
Conselho Federal de Enfermagem e o Ministério que foram encaminhadas para os serviços de saúde
da Saúde, cerca de 310 enfermeiros e 113 médicos das cidades onde moravam para ser atendidas com
haviam morrido por causa da Covid-19 no Brasil. urgência. A equipe de 34 pessoas do TelePsiCo-
“Os supervisores de equipes e os colegas devem vid-19 está preparada para atender pelo menos 10
estar atentos para identificar os sinais de que os mil funcionários do SUS – dos 3,5 milhões, cerca
colegas estão perto da exaustão emocional”, su- de 1 milhão trabalha diretamente com a Covid-19.

24 | NONONOONONO DE 2020
“A maior parte dos profissionais da saúde não emocional”, diz. Quando lhe parece necessário,
procura ajuda espontaneamente, principalmente ela recomenda a psicoterapia.
os médicos”, reconhece o psiquiatra Eurípedes “Um mês depois do início da pandemia, co-
Constantino Miguel, da Universidade de São Paulo mecei a atender residentes que estavam com Co-
(USP). Miguel coordena o COMVC-19, programa vid-19 e falavam sobre a angústia da morte e de não
de atendimento psicológico e psiquiátrico voltado ter contato com os familiares”, relata a psicóloga
aos cerca de 20 mil funcionários do Hospital das Daniela Betinassi Parro-Pires, coordenadora do
Clínicas da Faculdade de Medicina da USP. Até o Núcleo de Assistência e Pesquisa em Residência
dia 5 de julho, 345 pessoas, após a triagem inicial, (Napreme) da Unifesp.
foram encaminhadas para sessões de psicoterapia. Em maio, o psiquiatra Marcelo Feijó de Mello,
Desse total, 142 relataram se sentir “nervosa, an- com sua equipe, enviou e-mails e espalhou car-
siosa ou muito tensa” e 98 “não ser capaz de im- tazes motivando as equipes do HSP a procurar
pedir ou controlar as preocupações”, de acordo os serviços on-line de atendimento psicológico
com o questionário de avaliação inicial; 108 eram e psiquiátrico do programa que ele coordena no
enfermeiros e técnicos, 82 do setor administrativo, Caism da Unifesp. Até meados de julho, chegaram
76 médicos e 79 de outras categorias. Apresentado 96 pedidos de ajuda. “A maioria dos casos era de
em junho na revista médica Clinics, o programa estresse agudo, ansiedade e insônia, que melhoram
oferece vídeos sobre teoria e metodologia para bem com três sessões de atendimento, mas todos
profissionais da área da saúde mental e motivacio- estavam com medo de ver pessoas morrendo sem
nais para os que atendem pessoas com Covid-19. poder fazer muita coisa”, comenta.
Na Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto A pandemia agravou o desgaste físico, emocio-
da USP, as psicólogas Flavia de Lima Osório e So- nal e profissional de auxiliares e técnicos de en-
nia Regina Loureiro coordenaram uma pesquisa fermagem e enfermeiros. Maria do Perpétuo Nó-
on-line de alcance que reuniu mil respostas até brega, da Escola de Enfermagem da USP, chegou
o início de julho. Mais da metade (56%) dos par- a essa conclusão em julho, ao terminar a análise
ticipantes relatou sentir que as pessoas em geral das respostas de 719 profissionais dessa área que
evitavam contato com eles por causa do trabalho participaram de uma pesquisa nacional on-line.
com pessoas com Covid-19 e 16% pensavam com Entre eles, 78,6% não haviam recebido suporte
regularidade em pedir demissão do emprego. psicológico da instituição em que trabalhavam,
74,9% recebiam de 1 a 3 salários mínimos, 70,9%
AMEDRONTADOS E DESTEMIDOS conheciam alguém com Covid-19 e 29,6% tinham
“Vejo todo mundo estressado, correndo o dia in- algum familiar ou amigo que morreu por causa
teiro, para salvar a vida dos pacientes”, observa a dessa doença. Entre os que responderam ao ques-
psiquiatra Vanessa de Albuquerque Cítero, coor- tionário, 38,2% relataram sintomas de depressão,
denadora do serviço de saúde mental do HSP. Com 32,2% de ansiedade e 7,7% de pânico; depois do
sua equipe, ela intensificou a atenção às equipes início da pandemia, 7,8% começaram tratamento
médicas das UTIs e ambulatórios com pessoas psicológico e 5,4% psiquiátrico. Os profissionais
com Covid-19. Cítero concluiu que a depressão e o dessa área que adoeciam por causa da Covid-19
medo, principalmente entre os médicos residentes, expressavam culpa por não estar ajudando os cole-
podem se expressar por meio do pessimismo ou, gas que permaneciam trabalhando nos hospitais. n
ALINE VAN LANGENDONCK

inversamente, pela displicência com as medidas


de segurança contra o vírus, como se quisessem
Artigo científico
se infectar logo para se livrar da angústia persis-
FUKUTI, P. et al. How institutions can protect the mental health and
tente. “São formas de defesa emocional exacer- psychosocial well-being of their healthcare workers in the current
bada para não entrar ou sair logo do sofrimento Covid-19 pandemic. Clinics. v. 75, e1963. 3 jun. 2020.

PESQUISA FAPESP 2XX | 25


O QUEBRA-CABEÇA DA IMUNIDADE

Questões cruciais sobre


a resposta do sistema
imunológico contra
o novo coronavírus
permanecem em aberto
Frances Jones

26 | AGOSTO DE 2020
O
ito meses depois de o vírus Sars-CoV-2, uma cicatriz imunológica, um sinal dizendo que
causador da Covid-19, ter sido identifi- um vírus passou por ali”, explica o médico imu-
cado pela primeira vez em humanos na nologista Jorge Kalil, professor de Imunologia
cidade de Wuhan, na China, pesquisa- Clínica e Alergia da Faculdade de Medicina da
dores e médicos ainda tentam montar Universidade de São Paulo (FM-USP) e diretor
o grande quebra-cabeça que indique do Laboratório de Imunologia do Instituto do
como o sistema imunológico responde Coração (InCor).
ao patógeno. Saber exatamente como Um estudo chinês publicado em 18 de junho na
as pessoas infectadas combatem e eliminam o revista Nature Medicine, no entanto, observou que
vírus e por quanto tempo ficam protegidas de 37 pessoas que comprovadamente haviam sido
uma possível reinfecção é importante para o de- infectadas com o Sars-CoV-2, mas permaneceram
senvolvimento de vacinas, medicamentos e até assintomáticas, apresentaram níveis menores no
para as políticas públicas que determinam a ne- sangue de IgG e de anticorpos neutralizantes (que
cessidade de medidas de distanciamento social, impedem o vírus de entrar nas células) do que
quarentenas e lockdowns. as que tiveram sintomas moderados, apesar de
Aos poucos, as numerosas pesquisas relacio- ficarem por mais tempo com níveis detectáveis
nadas à Covid-19 têm fornecido peças ao jogo. O de vírus que os sintomáticos. Além disso, dois ou
quadro, porém, segue incompleto. Até agora não três meses depois da infecção aguda, os níveis
há nenhum caso comprovado, que não suscite desses anticorpos caíram a um patamar que, em
nenhuma dúvida, de reinfecção – sinal para os 40% dos casos de assintomáticos, se tornaram
cientistas de que alguma proteção há para aqueles não detectáveis. No caso dos pesquisados com
que já se infectaram. O grau dessa imunidade e a sintomas, 12,9% ficaram soronegativos.
sua duração permanecem incógnitas. O resultado da pesquisa chinesa levantou dú-
A missão de completar o quebra-cabeça fica vidas se pessoas com a forma leve da Covid-19
mais difícil dada a novidade representada pelo estariam então mais suscetíveis a uma reinfec-
vírus e a complexidade do sistema imunológico ção. Ainda não é possível esclarecer essa questão,
humano – ora comparado a uma orquestra com dizem os especialistas. Uma possibilidade é a
diversos componentes, ora ao Exército com di- de que os testes não tenham conseguido detec-
ferentes subdivisões e batalhões, ora a uma má- tar uma quantidade menor de anticorpos e eles,
quina com muitas engrenagens. O batalhão mais apesar da pouca quantidade, seriam eficientes
popular dessa força de defesa é formado pelos o bastante para combater o vírus. De qualquer
anticorpos, entre eles as conhecidas imunoglobu- forma, segundo os autores do artigo, da Universi-
linas G (IgG) e M (IgM), identificados nos testes dade Médica de Chongquing, os resultados con-
rápidos aplicados em farmácias e laboratórios tribuem para expor os riscos de usar passaportes
(ver box na página 29). Anticorpos são proteínas de imunidade à Covid-19, como alguns governos
dissolvidas no plasma sanguíneo e produzidos por cogitaram adotar, conferindo vantagens de mo-
linfócitos B. A defesa por anticorpos é chamada bilidade a pessoas que já tivessem se recuperado
Imagem de microscopia pelos médicos de imunidade humoral. da infecção pelo vírus.
eletrônica colorizada Pesquisas e inquéritos epidemiológicos em “Associar a presença de anticorpos, do tipo
mostra uma célula geral procuram por essas classes de anticorpos IgG, a um passaporte de imunidade é uma ques-
humana fortemente
afetada por partículas
para verificar qual a porcentagem de determina- tão que já caiu por terra”, considera a infectolo-
virais do Sars-CoV-2 do grupo populacional que já teve contato com o gista Nancy Bellei, da Universidade Federal de
NIAID

(em amarelo) vírus. “Costumamos dizer que a IgG é quase como São Paulo (Unifesp). “Observamos que muitos

PESQUISA FAPESP 294 | 27


pacientes que contraíram a doença depois de do, certo grau de pro-
algum tempo não têm mais IgG que reconheça teção. Quanto à dura-
os antígenos virais.” Para ela, que desenvolve ção dessa imunidade,
pesquisas na área de vírus respiratórios há dé- só o tempo irá dizer”,
cadas, o resultado desse estudo na China não é destaca o infectologis-
exatamente uma surpresa, assim como outros que ta Reinaldo Salomão,
apontam na mesma direção, como um divulgado da Escola Paulista de
em meados de julho por pesquisadores do King’s Medicina da Unifesp,
College de Londres, na Inglaterra. pesquisador respon-
“Os vírus respiratórios classicamente não de- sável por um estudo
terminam uma imunidade permanente e as pes- apoiado pela FAPESP
soas infectadas por eles não costumam manter os que vai investigar as
níveis de imunoglobulina positivos estáveis como respostas inflamató-
logo após a infecção”, declara a pesquisadora. “A rias e imunológicas de
despeito de ser novo para a população humana e pacientes com Covid-19
de apresentar características de patogenicidade grave e moderada.
em outros tecidos além dos respiratórios, o Sars- Salomão ressalta
-CoV-2 não deixa de se comportar e de ser clas- que um possível moti-
sificado como um vírus respiratório”, ressalta. vo para a não detecção
Mas níveis baixos ou mesmo ausência de IgG de IgG nos testes soro-
no plasma sanguíneo das pessoas já infectadas, lógicos de indivíduos
mesmo que assintomáticas, indicariam que essas que se infectaram, tal
pessoas não têm nenhuma imunidade ao novo qual demonstrado nas
coronavírus? Muito provavelmente a resposta pesquisas realizadas
a essa pergunta é não, dizem infectologistas e até então, esteja rela-
imunologistas. Dois artigos recentes, publicados cionado aos próprios
nos repositórios de preprints medRxiv e bioRxiv, testes, que podem não
apontam que parte dos indivíduos pode desen- ser tão sensíveis e específicos para o Sars-CoV-2. Cientistas de
volver uma forte resposta celular de linfócitos “Isso aconteceu também com o HIV. Agora es- Bio-Manguinhos,
do Rio de Janeiro,
T específicos ao Sars-CoV-2 mesmo sendo so- tamos na quarta geração de testes para essa en- trabalham no
ronegativa. Linfócitos são um tipo de célula de fermidade e eles melhoraram muito.” desenvolvimento
defesa do organismo. Por outro lado, especialistas salientam que de vacina contra

O
mesmo um teste positivo para IgG não significa o novo coronavírus

primeiro artigo, de autoria de cientistas da necessariamente que o indivíduo esteja prote-


Universidade de Estrasburgo, na França, gido contra o vírus, uma vez que o exame não
refere-se aos casos de sete famílias que deixa claro se foram produzidos ou não anticor-
tinham ao menos um de seus integrantes pos neutralizantes, capazes de evitar que o novo
se recuperando da forma moderada da coronavírus entre na célula humana. A presença
Covid-19. Seis de um total de oito parentes no sangue de IgG, destacam especialistas, não es-
que depois desenvolveram sintomas da doença tá necessariamente relacionada à existência de
apresentaram respostas de células T, mas não anticorpos neutralizantes.
anticorpos contra o novo coronavírus. O primeiro estudo a mostrar a possibilidade de
O segundo estudo, de pesquisadores do Insti- uma resposta celular humana vigorosa contra o
tuto Karolinska, na Suécia, investigou a resposta novo coronavírus, de acordo com o imunologis-
de células T de memória em diferentes grupos de ta Edecio Cunha-Neto, do InCor e FM-USP, foi
pessoas: doadores de sangue saudáveis, que doa- publicado em maio na revista Cell por cientistas
ram antes da pandemia ou durante; parentes que do Instituto de Imunologia de La Jolla, em San
dividiam a casa com indivíduos convalescentes e Diego, Califórnia, nos Estados Unidos.
expostos à doença durante a fase dos sintomas; Além de observar uma forte resposta celular
e pessoas que estavam em fase de recuperação a proteínas que simulavam o Sars-CoV-2 em um
da doença, que haviam tido sintomas leves/ne- grupo de 20 adultos que se recuperaram da Co-
nhum sintoma ou a forma grave da Covid-19. Os vid-19, eles também viram que havia uma reação
cientistas também observaram uma resposta ce- positiva de 40% das amostras de sangue retira-
lular dos linfócitos T muito robusta mesmo sem das em 2019, antes da disseminação da Covid-19,
a presença de anticorpos. usadas no estudo como controle. Ou seja, havia
LÉO RAMOS CHAVES

“Os resultados desses estudos somados à ine- uma resposta imune celular a peptídeos – frag-
xistência de casos de reinfecção até agora nos mento de proteínas – que se assemelhavam aos
dão certa tranquilidade de que é muito provável peptídeos do novo coronavírus no sangue de pes-
que tenhamos, ao menos durante algum perío- soas que nunca haviam tido contato com o vírus.

28 | AGOSTO DE 2020
“A única forma de explicar isso é que essas rápida. Por outro lado, destacam os pesquisado-
células T de memória nesses indivíduos apare- res, pode ser um fator de confusão especialmen-
ceram depois de um contato com um patógeno te para os ensaios de fase 1 no desenvolvimento
muito parecido”, diz Cunha-Neto. “Esse pató- de vacinas. Isso porque os testes dessa fase são
geno existe: é o coronavírus endêmico ou sazo- feitos com grupos menores de pessoas e o fato
nal, o que causa resfriado leve.” De acordo com de os indivíduos terem ou não células com me-
o pesquisador, cerca de 50% da sequência das mória decorrentes do contato com coronavírus
proteínas dos coronavírus endêmicos é idêntica endêmicos poderia levar a diferentes conclusões.

P
ao Sars-CoV-2. “O trabalho da Universidade de
Estrasburgo já havia observado uma reativida- ara tentar evitar a resposta cruzada e veri-
de intensa e frequente a coronavírus endêmicos ficar se há mesmo uma imunidade celular
em todos os parentes que contraíram a Covid-19 específica e eficaz ao novo coronavírus,
e em 80% das pessoas saudáveis testadas”, diz Cunha-Neto e seu grupo de pesquisa pre-
Cunha-Neto. param um experimento no qual vão sele-
Em comentário publicado na Nature Reviews cionar os peptídeos usados para verificar
Immunology em 7 de julho, os cientistas Alessan- a resposta celular, separando as partes que são
dro Sette e Shane Crotty, coautores do artigo da exclusivas ao Sars-CoV-2 dos trechos idênticos
Cell, sustentam que mais de 90% da população aos dos outros coronavírus. “Só assim podere-
humana é soropositiva para ao menos três dos mos dizer se há mesmo pacientes com Covid-19
quatro tipos de coronavírus endêmicos que cir- soronegativos e com resposta celular específica
culam pelo mundo. E que a resposta cruzada de ao Sars-CoV-2 e qual sua proporção”, diz o pes-
células T de memória seria capaz de interferir quisador. Se comprovado, isso pode indicar que
em resultados de vacinação, podendo levar, por avaliações de infectados/imunes somente usando
exemplo, a uma resposta imune melhor ou mais testes de anticorpos subestimam o número real de

BATALHÃO ORQUESTRADO
Entenda como o organismo reage quando é atacado por um patógeno desconhecido

A primeira resposta do sistema imunológico patógeno, enquanto os anticorpos pesquisadores da Universidade Yale, nos
contra a infecção pelo Sars-CoV-2, assim neutralizantes impedem a entrada do vírus Estados Unidos, descrevem os resultados
como por novos vírus e bactérias, vem nas células saudáveis. “Na maior parte dos de um estudo longitudinal nos quais
da chamada imunidade inata, que é mais casos, antes de ter um anticorpo específico acompanharam ao longo do tempo 103
genérica e nasce com todo ser humano. para o vírus, tem-se uma célula T específica”, pacientes positivos para a Covid-19,
“Se alguém tem uma resposta inata muito explica o pesquisador do InCor. Às vezes, comparando com 108 indivíduos para
forte e elimina o vírus, ela nem vai ter sinal de o vírus é eliminado antes de qualquer controle, negativos para a doença, observando
que se infectou”, diz o imunologista Edecio produção de anticorpos, que levam cerca a resposta imunológica ao vírus e a trajetória
Cunha-Neto, do Instituto do Coração (InCor). de 7 a 14 dias para aparecer. clínica de cada um.
Quando a imunidade inata não aniquila Os anticorpos do tipo imunoglobulina As duas principais conclusões foram a de
em poucos dias o patógeno, o organismo ativa M (IgM) são produzidos na fase aguda da que um quadro clínico mais grave está
a chamada imunidade adaptativa, que é mais infecção e os do tipo imunoglobulina G (IgG) associado não só à carga viral mais intensa e
específica e varia conforme as experiências do aparecem depois, quando em tese a pessoa prolongada, mas a uma disfunção da resposta
indivíduo com microrganismos patogênicos, já estaria protegida – para cada patógeno imune, que em um primeiro momento é mais
gerando uma memória imune. A imunidade diferente que ataca o organismo são lenta para controlar o Sars-CoV-2 e depois
adaptativa envolve tanto anticorpos, produzidos anticorpos (IgG, IgM etc.) acaba ativando uma resposta inflamatória
produzidos pelas células ou linfócitos B – específicos para aquele invasor. Existem, exagerada; e que há marcadores imunológicos
a chamada imunidade humoral –, quanto os ainda, três outras classes de imunoglobulina: presentes no sangue já na fase inicial da
linfócitos T, a imunidade celular. As primeiras IgA, IgE e IgD (ver infográfico na página 30). doença capazes de predizer a trajetória clínica.
a serem ativadas quando a inata não resolve Dependendo do tipo de vírus, os níveis “Isso poderá auxiliar no direcionamento
a questão são as células T CD4+. “Quando de IgG permanecem detectáveis por meses do tratamento e de intervenções clínicas”,
isso ocorre, elas agem diretamente sobre o ou anos. Mas, aparentemente, não é isso o diz a imunologista brasileira Carolina Lucas,
patógeno, ativam células T CD8+ citotóxicas que vem ocorrendo no caso do Sars-CoV-2 – primeira autora do artigo, que atualmente
ou ativam os linfócitos B”, diz Cunha-Neto. algumas pesquisas apontaram que eles faz pós-doutorado em Yale. “Esse estudo
Os linfócitos T CD8+ citotóxicos ativados podem desaparecer em duas ou três semanas. mostra que é importante não só focalizar
pelas células T CD4+ tornam-se capazes Em artigo ainda não revisto pelos pares no controle do vírus, mas também no controle
de destruir as células já infectadas pelo publicado em junho na plataforma medRxiv, da resposta inflamatória excessiva.”

PESQUISA FAPESP 294 | 29


O SISTEMA IMUNOLÓGICO 1. SISTEMA INATO
E O VÍRUS Mais genérica, a primeira resposta
imunológica contra a infecção pelo
Saiba como nosso organismo se Sars-CoV-2 é dada por esse sistema,
protege contra o novo coronavírus que já nasce com os seres humanos.
É formado por barreiras celulares,
químicas, físicas e biológicas
2. SISTEMA ADAPTATIVO
É mais específico e varia segundo as experiências de cada pessoa
com microrganismos patogênicos. Pode gerar memória imunológica,
conferindo proteção a reinfecções. Divide-se em dois tipos

IMUNIDADE HUMORAL
1. É a resposta dos anticorpos, 2. Inicialmente, as células B 3. Após o processo de maturação, 4. Os anticorpos que se
ou imunoglobulinas (Ig). Há produzem IgM. Após os linfócitos B produzem anticorpos ligam a regiões do vírus que
CINCO TIPOS, cuja produção é diferenciação, são geradas as que se ligam diretamente ao vírus não interferem na invasão
mediada pelas chamadas outras classes de e impedem a sua entrada nas células. celular são chamados de
células ou linfócitos B imunoglobulina, cada uma com São os anticorpos neutralizantes, não neutralizantes
diferentes características em sua maioria IgG ou IgA, mas que
também podem ser da classe IgM
Linfócitos B

IgM IgG

Sars-Cov-2 Célula humana

IgM IgG IgA IgE IgD


Primeira a ser produzida, Principal imunoglobulina Encontrada nas mucosas Envolvida em Localizada em geral na
é encontrada no soro da imunidade adquirida, do trato respiratório, processos alérgicos superfície das células B,
e costuma desaparecer é a que tem maior gastrointestinal e urogenital, e parasitários pode estimular a alta
após a fase aguda concentração no bem como na saliva, nas produção de anticorpos
da infecção sangue. Mais efetiva do lágrimas e no leite, previne ao reconhecer um
que a IgM contra o vírus a entrada de patógenos antígeno

Os linfócitos T CD4+, chamados


IMUNIDADE CELULAR de auxiliadores, desempenham
Linfócitos T Célula-alvo
um papel importante na defesa
1. É a resposta imune das células ou 2. Os testes para a detecção imunológica. Eles ajudam na
linfócitos T. Um desses tipos de da presença de células T ativação de linfócitos T citotóxicos,
células, os linfócitos T citotóxicos, específicas são mais difíceis capazes de destruir as células
consegue destruir as células do e caros de ser realizados do infectadas, e de linfócitos B, que
hospedeiro já infectadas pelo vírus que os testes para anticorpos produzem anticorpos

FONTES EDECIO CUNHA-NETO; CAROLINA LUCAS; ARTIGO “SISTEMA IMUNITÁRIO – PARTE II; FUNDAMENTOS DA RESPOSTA IMUNOLÓGICA MEDIADA POR LINFÓCITOS T E B”

30 | AGOSTO DE 2020
infectados com o patóge- PESQUISA NA QUARENTENA
no, sustenta Cunha-Neto.
“Enquanto a produção
de grandes quantidades
de anticorpos ocorre ape- “À NOITE,
nas antes da eliminação ACOMPANHO
do vírus, e depois seus ní- CONFERÊNCIAS
veis se reduzem no sangue MÉDICAS
ou até ficam indetectáveis, SOBRE COVID-19”
as células T de memória
persistem por décadas”,
afirma. Ele explica que pa-
cientes que contraíram a
C omo sou do Conselho Deliberativo
do Hospital das Clínicas [da
Faculdade de Medicina da Universidade
Síndrome Respiratória de São Paulo – HC-FM-USP] e coordeno
Aguda Grave (Sars) qua- a pediatria clínica do ICr [Instituto da
se 20 anos atrás, causada Criança e do Adolescente, uma das unidades
pelo Sars-CoV-1, “primo” do HC], estou em contato direto com as
do Sars-CoV-2, têm pou- equipes médicas, mesmo sem sair de casa.
cos anticorpos, mas quan- A Covid-19 acomete pouco as crianças,
tidades consideráveis de mas já tivemos 53 casos. Quando
linfócitos T de memória encontramos alguma criança ou
ao vírus original, que se adolescente com sintomas de Covid-19,
ativam vigorosamente colocamos em uma ala reservada
após novo contato com o do instituto. Se deu positivo, vai para
Profissional da antígeno. “Imagina-se hoje que a memória e a a enfermaria do HC.
saúde coleta sangue defesa de longo prazo contra o Sars-CoV-2 de- Duas vezes por dia vejo os dados dos
para realização
de teste sorológico
pendam muito dos linfócitos T. Assim, uma va- pacientes que entraram e saíram. Converso
rápido para Covid-19 cina eficaz teria que induzir a produção tanto o tempo todo com os médicos para
de anticorpos neutralizantes, ou não, quanto de discutir os casos mais graves e complexos.
linfócitos T CD4+ e CD8+.” Os pacientes crônicos estão sendo
Também no InCor, Kalil desenvolve pesquisa atendidos por telefone. Quando algum deles
com 220 convalescentes que tiveram a doença e não está bem, pedimos para ir ao instituto
eliminaram o vírus. Ele estuda a resposta de an- para ser mais bem avaliado e fazer exames.
ticorpos e de linfócitos T a fim de definir alvos À noite tenho assistido a lives
específicos para o desenvolvimento de uma vacina [apresentações ao vivo] e conferências
brasileira. “Provavelmente vamos trabalhar em sobre Covid-19 e imunologia clínica.
nosso imunizante com partículas semelhantes ao Hoje [25 de junho], tenho duas, uma do
vírus, chamadas VLP. Estamos estudando para Children’s Hospital of Philadelphia
ver o que poderá induzir uma melhor memória [dos Estados Unidos] e outra de um
imune”, afirma o especialista. “Não queremos usar pesquisador do ICB [Instituto de Ciências
FOTO LÉO RAMOS CHAVES INFOGRÁFICO ALEXANDRE AFFONSO ILUSTRAÇÃO FERNANDO CARVALL

a proteína inteira da espícula viral [as projeções Biomédicas] da USP.


que revestem o patógeno], mas tirar fragmentos Tenho uma dona de casa, Alzenir Reis,
para provocar uma resposta equilibrada de cé- que está comigo há 25 anos e morando
lulas de defesa T e B, produtoras de anticorpos.” aqui nesses tempos. Minha filha Maria Clara
Com sorte e muito trabalho, será uma peça a mais é historiadora e professora da Universidade
para ajudar na montagem do quebra-cabeça da Federal do Sul e Sudeste do Pará, em
imunidade contra o novo coronavírus. n Marabá, mas está aqui desde o começo
de maio. Minha outra filha Anna Dulce
é musicoterapeuta e está na casa dela.
Projetos Ela é voluntária no Instituto Central
1. Estudo de coorte prospectiva para avaliação de aspectos clínicos, do HC e todas as tardes ajuda nas altas
virológicos e de resposta do hospedeiro em pacientes com Covid-19 dos pacientes.
(no 20/05110-2); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador
responsável Reinaldo Salomão (Unifesp); Investimento R$ 143.100,20.
2. INCT 2014: Investigação em imunologia (no 14/50890-5); Moda-
A pediatra MAGDA CARNEIRO-SAMPAIO é pro-
lidade Projeto Temático; Pesquisador responsável Jorge Elias Kalil
fessora do Departamento de Pediatria da Faculdade
Filho (USP); Investimento R$ 3.980.221,36.
de Medicina da Universidade de São Paulo (FM-USP)
e vice-presidente do Conselho Diretor do Instituto
Artigo científico da Criança e do Adolescente (ICr) do Hospital das
LONG, Q. et al. Clinical and immunological assessment of asymptoma- Clínicas da FM-USP.
tic Sars-CoV-2 infections. Nature Medicine. 18 jun. 2020. DEPOIMENTO CONCEDIDO A CARLOS FIORAVANTI

PESQUISA FAPESP 294 | 31


O RISCO
DE VIAJAR
DE AVIÃO
Probabilidade de transmissão
de vírus respiratórios, como
o novo coronavírus, é alta para
quem está próximo de um
passageiro contaminado e baixa
para os demais viajantes

Domingos Zaparolli

O
transporte aéreo de passageiros foi totalmente conhecidos, um estudo feito alto para os passageiros sentados a até 1
duramente afetado pela pandemia em 2018 nos Estados Unidos, antes da metro de um infectado, e é improvável
da Covid-19. A demanda por voos pandemia do novo coronavírus, ajuda para quem está mais distante. Quem está
domésticos no Brasil retraiu 93% a dimensionar as situações durante o à frente, atrás ou ao lado de um passagei-
e os internacionais praticamente voo que geram as maiores probabilida- ro doente é mais suscetível. Movimentos
foram paralisados em abril e maio. des de contaminação por doenças res- de passageiros e tripulantes podem elevar
Apesar de uma ligeira retomada a partir de piratórias transmitidas por gotículas de o risco. Um indivíduo em movimento na
junho, a volta ao patamar anterior ainda saliva, como é o caso da Covid-19. Uma aeronave pode se aproximar de um even-
FOTO LÉO RAMOS CHAVES INFOGRÁFICO ALEXANDRE AFFONSO

não figura no horizonte das companhias. equipe liderada pela bioestatística Vic- tual contaminado. Um passageiro sen-
O necessário distanciamento social ex- ki Stover Hertzberg, da Universidade tado na poltrona do corredor tem mais
plica a mudança de comportamento dos Emory, em Atlanta, e pelo matemático contato com indivíduos em movimento.
passageiros. Viagens de turismo e de negó- Howard Weiss, do Instituto de Tecnolo- Aglomerações de pessoas nos corredores
cios foram canceladas ou adiadas. Por ora, gia da Georgia, acompanhou 1.540 pas- esperando a porta se abrir para o desem-
viaja quem precisa. E viaja preocupado. sageiros e 41 comissários de bordo em barque também são um problema, assim
Aeronaves oferecem transporte em um 10 voos nos Estados Unidos. As viagens, como filas desorganizadas de embarque.
ambiente fechado onde o convívio com com duração entre 3 e 5 horas, foram O virologista Fernando Spilki, presi-
desconhecidos, que podem ou não estar feitas em aviões com um único corredor dente da Sociedade Brasileira de Virolo-
contaminados, é inevitável. separando duas fileiras de três assentos. gia e pesquisador do Laboratório de Mi-
Apesar de os riscos de transmissão A conclusão da pesquisa é que o risco crobiologia Molecular da Universidade
de infecções em aeronaves não serem de transmissão de doença respiratória é Feevale, em Nova Hamburgo (RS), diz

32 | AGOSTO DE 2020
que, no caso de detecção de um passagei- Há uma preocupação especial com o as gotículas que podem carregá-lo são
ro contaminado pelo novo coronavírus, a ar que circula nos aviões. Recentemente, ainda maiores”, compara. O sistema de
zona de risco a ser investigada, segundo a OMS reconheceu que existem evidên- ar também dificulta que as partículas do
a Organização Mundial da Saúde (OMS), cias de que o novo coronavírus pode ser vírus viajem pelo avião, mas não impede
compreende duas poltronas laterais e duas transmitido por meio de aerossóis – gotí- uma contaminação direta. “Um infectado
fileiras para trás ou para a frente. “O avião culas em suspensão no ar produzidas por ao falar, tossir ou espirrar emite gotículas
é um ambiente de risco, e o uso de máscara espirro, tosse ou fala de pessoa infectada. que podem atingir um indivíduo próxi-

A
é imprescindível diante da pandemia de mo antes que as partículas passem pelo
Covid-19, assim como todas as precauções mparo explica que o ar nas ae- filtro de ar”, exemplifica.
de distanciamento social”, pondera Spilki. ronaves comerciais é renovado a A infectologista Tânia Chaves, mem-
Outro problema, alerta o virologista, cada três minutos. Ele é captado bro da Sociedade Brasileira de Infecto-
é a possibilidade de as gotículas impreg- do ambiente externo e mistura- logia e professora da Faculdade de Me-
narem objetos como cintos de seguran- do em uma proporção de 50% dicina da Universidade Federal do Pará
ça, braços de poltronas e maçanetas de com o ar da cabine. Depois flui (UFPA), avalia que as medidas adotadas
portas de banheiro. “Ainda que essa tal- verticalmente. É distribuído a partir do pelas companhias são corretas e devem
vez seja uma forma mais improvável de lado de cima da aeronave e sugado por ser intensificadas. “Seria necessário ga-
contágio, ninguém sabe ainda quanto baixo, reduzindo a possibilidade de cir- rantir o distanciamento social também
tempo o Sars-CoV-2 continua ativo nes- culação horizontalmente entre as fileiras durante os voos”, afirma.
ses objetos”, ressalta. de assentos. O ar captado no assoalho é Fabricantes discutem mudanças no
“Riscos sempre existem. Nosso desafio filtrado por um sistema denominado Hi- layout das aeronaves para adotar pol-
é mitigá-los a um nível aceitável”, opi- gh Efficiency Particulate Air, conhecido tronas individualizadas ou eliminar as
na Ruy Amparo, diretor de Segurança e pela sigla Hepa. “É um sistema moder- do meio nas fileiras para garantir maior
Operações de Voo da Associação Brasi- nizado constantemente. O que equipa distanciamento. Outra medida, segundo
leira das Empresas Aéreas (Abear). As as aeronaves é capaz de filtrar acima de a especialista, é a suspensão da alimen-
companhias aéreas estabeleceram com a 99,7% das partículas transportadas pelo tação em voos domésticos. “A aviação é
Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) ar”, diz Amparo. um meio de transporte coletivo seguro
e a Agência Nacional de Vigilância Sani- O professor de engenharia e ciências em tempos de pandemia, mas protocolos
tária (Anvisa) uma série de procedimen- mecânicas Jurandir Itizo Yanagihara, de segurança com a saúde e a limpeza dos
tos para pautar suas ações em tempos de responsável pelo Centro de Engenharia aviões devem ser reforçados”, avalia. n
pandemia. Entre elas, medidas para ga- de Conforto da Escola Politécnica da Uni-
rantir o distanciamento físico no embar- versidade de São Paulo (Poli-USP), atesta
que e desembarque e a desinfecção das o desempenho dos filtros Hepa, presentes
Artigo científico
aeronaves em cada pouso. Outra norma também em centros cirúrgicos e unida-
HERTZBERG, V. S. et. al. Behaviors, movements, and
é a obrigatoriedade do uso de máscaras des de terapia intensiva hospitalares. “O transmission of droplet-mediated respiratory diseases
para tripulantes e passageiros. Antes dos Hepa é capaz de capturar partículas com during transcontinental airline flights. PNAS. v. 115, n. 14,
voos, os passageiros passam por verifi- 0,01 mícron de diâmetro. O coronavírus p. 3623-37. 3 abr. 2018.

cação de sinais de febre. é maior, tem entre 0,06 e 0,14 mícron, e Leia esta reportagem ampliada na versão on-line.

O PERIGO MORA AO LADO


Estudo feito na Universidade Emory (EUA) revela os lugares mais seguros
para viajar de avião no caso de haver alguém contaminado a bordo

Quem ocupa um assento na janela tem menor probabilidade de entrar em contato com uma pessoa infectada…
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17 18 19 20 21 22 23 24 25 26 27
Chance de ter contato F
com o indivíduo doente E
D
0 10 20 30 40 50 60 70 80 90 100% Pessoa infectada
C
B
Maior probabilidade A
de encontrar o
Comissário de bordo
indivíduo doente

… mas o risco de contagio é maior para quem está sentado a uma fileira do indivíduo contaminado
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17 18 19 20 21 22 23 24 25 26 27
F
Chance de ser infectado E
D

Menor De 5% De 21% De 80%


Pessoa infectada
que 5% a 20% a 79% a 100% C
B
A

Comissário de bordo
FONTE ESTUDO “BEHAVIORS, MOVEMENTS, AND TRANSMISSION OF DROPLET-MEDIATED RESPIRATORY DISEASES DURING TRANSCONTINENTAL AIRLINE FLIGHTS” E NATIONAL GEOGRAPHIC

PESQUISA FAPESP 294 | 33


O
M
uitos países elevaram de
forma expressiva os gastos
públicos para amenizar os
efeitos da pandemia, mas
o reflexo desse esforço no

TAMANHO
financiamento da pesquisa
sobre a Covid-19 foi desi-
gual. Enquanto as nações
mais ricas conseguiram fazer investi-

DA
mentos vultosos em testes de remédios
e vacinas, países em desenvolvimento
aplicaram pouco dinheiro novo na in-
vestigação da doença e, em situações
extremas, alguns até mesmo impuseram

APOSTA
cortes em seus sistemas de ciência, tec-
nologia e inovação para compensar as
perdas da recessão.
A estratégia mais ambiciosa foi adota-
da pelos Estados Unidos. Quatro grandes

NA
pacotes econômicos na casa dos trilhões
de dólares já foram aprovados para mi-
tigar os impactos do novo coronavírus.
Parte desses recursos foi incorporada

CIÊNCIA
5 ib lhões
Países elevam gastos
públicos, mas tratam
de forma desigual
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34 | AGOSTO DE 2020
ao orçamento das principais agências A injeção de recursos também está de todos os órgãos e departamentos fe-
de fomento do país, como a Autoridade permitindo à National Science Founda- derais no orçamento 2020-2021. No mês
Biomédica de Pesquisa e Desenvolvi- tion (NSF), agência de apoio à pesqui- seguinte, o ministro do Ensino Superior,
mento Avançado (Barda), órgão do De- sa básica, acelerar a análise de projetos Ciência e Tecnologia, Blade Nzimande,
partamento de Saúde e Serviços Huma- sobre o novo coronavírus. A instituição anunciou que conseguiu reduzir o corte
nos. A instituição já recebeu uma injeção recebeu até agora US$ 76 milhões para para 8%, o equivalente a uma suspensão
de US$ 6,5 bilhões, montante 10 vezes o Rapid Response Research, mecanismo de gastos de US$ 600 milhões.
maior do que o orçamento de 2019, de usado em situações de emergência para Os maiores cortes, na casa dos US$
US$ 561 milhões. Os Institutos Nacionais subsidiar trabalhos com orçamentos de 5,7 milhões cada um, vão recair sobre a
de Saúde (NIH) receberam até agora até US$ 200 mil. Até mesmo agências Fundação Nacional de Pesquisa (NRF)
quase US$ 3,6 bilhões. Desse total, US$ como a Nasa e a Administração Nacional e o Conselho para Pesquisa Científica e
950 milhões estão sendo destinados ao Oceânica e Atmosférica (Noaa) ganha- Industrial. Já a Agência de Inovação Tec-
desenvolvimento de uma vacina contra ram recursos extras para apoio de ope- nológica deve perder US$ 2,7 milhões, o
a Covid-19 em parceria com a farma- rações na emergência sanitária. Conselho de Pesquisa em Ciências Hu-
cêutica norte-americana Moderna. “O Se as agências norte-americanas tive- manas, US$ 1,9 milhão, e a Agência Espa-
financiamento baseia-se integralmente ram o orçamento reforçado, as da África cial Sul-africana US$ 1 milhão. No caso
INFOGRÁFICO ALEXANDRE AFFONSO

em aumento da dívida pública”, disse a do Sul, país com maior produção científi- da NRF, haverá uma redução de 19% em
Pesquisa FAPESP Matthew Hourihan, ca do continente africano, estão às voltas bolsas e 32% dos recursos no programa
diretor do Programa de Orçamento e Po- com cortes para compensar os efeitos do Centros de Excelência da África do Sul.
lítica em Pesquisa e Desenvolvimento da desaquecimento da economia. O país já O partido de oposição, Aliança Democrá-
Associação Americana para o Avanço da havia entrado em recessão no segundo tica, tenta reverter os cortes no Parla-
Ciência (AAAS). “Isso é dinheiro novo, semestre de 2019. Em junho, foi anun- mento. “Estimamos que 5 mil estudantes
não previsto anteriormente.” ciada uma redução de 20% nas despesas de pós-graduação não serão financiados.

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PESQUISA FAPESP 294 | 35


REFORÇO PARA A CIÊNCIA
Valores alocados pelos Estados Unidos em suas principais
agências de fomento à pesquisa em resposta à Covid-19
Em milhões de US$

7.500

7.000
6.500

6.000

5.000

4.000 3.587

3.000

2.000

1.000
415
100 2 3 60 66 20 76

Autoridade Centro de Agência de Departamento Agência de Serviço Nasa Institutos Instituto Administração Fundação
Biomédica de Controle de Defesa de Energia Proteção Florestal Nacionais de Nacional de Nacional Nacional da
Pesquisa e Doenças da Saúde (DOE) Ambiental P&D Saúde (NIH) Padrões e Oceânica e Ciência (NSF)
Desenv. (CDC) (EPA) Tecnologia Atmosférica
Avançado (Nist) (Noaa)
(Barda)
FONTE AAAS

São carreiras que deixarão de existir”, de habitantes, por exemplo, teve cresci- anual da Fundação manteve-se acima da
disse a deputada Belinda Bozzoli, em mento econômico no primeiro trimestre, casa do bilhão de reais na década passa-
uma reunião no dia 15 de julho. graças ao desempenho de empresas de da – em 2018, alcançou R$ 1,22 bilhão.

A
internet e de equipamentos médicos. A A regularidade também se estende às
contração econômica e as difi- pesquisa aplicada contra o novo corona- três universidades estaduais paulistas,
culdades para ampliar o endi- vírus conta com patrocínio privado na que gozam de autonomia administrati-
vidamento público levaram vá- China. O desenvolvimento da vacina Co- va e financeira e recebem 9,57% da ar-
rios governos a reformular seus ronaVac, realizado pela empresa Sinovac recadação do Imposto sobre Circulação
orçamentos. No caso da China, Biotech, foi viabilizado por dois fundos, de Mercadorias e Serviços (ICMS) para
o movimento foi calibrado de o Advantech Capital e Vivo Capital, que financiar suas atividades. O sistema ro-
forma a não comprometer o esforço em investiram US$ 7,5 milhões cada um na busto garante não só a estabilidade da
inovação, apontado como crucial para a Sinovac. A vacina está sendo testada no pesquisa como também respostas rápidas
retomada do crescimento. Primeiro país Brasil em parceria com o Instituto Bu- para situações extremas, como o enfren-
a sofrer com a Covid-19, a China viu seu tantan, em São Paulo. O corte federal in- tamento da atual pandemia.
Produto Interno Bruto (PIB) cair 6,8% no terrompe uma trajetória ascendente que Essa continuidade não é comum na
primeiro trimestre deste ano. Em maio, durava três décadas. No ano passado, a América Latina. A pandemia se disse-
o Ministério das Finanças anunciou um China aplicou 2,17 trilhões de yuans em minou em um momento em que a maio-
corte de 9,1% nos gastos federais em P&D, três vezes mais do que em 2010. ria dos países da região, atingidos pela
ciência e tecnologia em 2020. Segundo A regularidade dos investimentos é crise econômica mundial, apresenta-
orçamento corrigido, as despesas federais um fator-chave para manter a vitalidade va um patamar baixo de investimento
nessa rubrica serão de 320 bilhões de dos sistemas de pesquisa. A comunida- em pesquisa em comparação com anos
yuans, o equivalente a US$ 45 bilhões. de científica do estado de São Paulo se anteriores. Em um seminário realizado
O governo central estabeleceu, contu- beneficia de estabilidade de financia- pela internet em maio, Alicia Bárcena,
do, que os investimentos globais em pes- mento graças a um dispositivo na cons- secretária-executiva da Comissão Eco-
quisa e desenvolvimento (P&D) em 2020 tituição estadual de 1989 que determina nômica para a América Latina e Caribe
serão 3% superiores aos do ano passado um repasse à FAPESP de 1% da receita (Cepal), chamou a atenção para a fragi-
e os responsáveis pelo aumento serão as estadual de impostos para aplicar em lidade do financiamento à ciência na re-
províncias. Nem todas elas foram afeta- desenvolvimento científico e tecnoló- gião. O gasto médio em P&D é de 0,7% do
das negativamente pela pandemia. Zhe- gico. Mesmo com crises econômicas e PIB regional, um patamar que, segundo
jiang, província costeira de 57 milhões oscilações da arrecadação, o desembolso ela, exige um gerenciamento estratégico

36 | AGOSTO DE 2020
em meio à crise sanitária. “O desafio é € 13,5 bilhões inferior ao que estava sen- Serviço Nacional de Saúde, para a rea-
aproximar mais a ciência, a tecnologia e do discutido há dois meses. “Esses cortes lização de testes de diagnóstico. “O go-
a inovação dos setores produtivos”, disse são uma grande decepção e uma quebra verno caminhava para reduzir seu déficit
Bárcena, referindo-se à necessidade de de confiança, dada a retórica dos polí- público, mas o movimento foi compro-
fabricar suprimentos médicos, equipa- ticos europeus sobre a importância da metido com a ampliação dos gastos na
mentos de proteção à saúde e ventilado- ciência”, disse à revista Science o jurista crise”, destaca a economista Fernanda
res pulmonares. belga Kurt Deketelaere, secretário-geral de Negri, coordenadora do Centro de
No Brasil, o Ministério da Ciência, da Liga das Universidades Europeias de Pesquisa em Ciência, Tecnologia e So-
Tecnologia e Inovação (MCTI) teve em Pesquisa. Apenas € 5 bilhões do fundo ciedade do Ipea. “A pandemia do novo
2020 o menor orçamento em mais de de recuperação – 0,66% do total – irão coronavirus é a maior emergência glo-
uma década – excluindo salários e despe- para projetos científicos. Descontada es- bal em saúde pública de uma geração e
sas obrigatórias, sobraram R$ 3,7 bilhões sa suplementação, o Horizonte Europa o Reino Unido está comprometido em
para investimentos, valor 30% menor terá o mesmo tamanho de seu anteces- colocar sua ciência de ponta e suas só-
que o de 2019. Em maio, duas medidas sor, o Horizonte 2020, que vigorou de lidas redes de parceria internacional a
provisórias que destinavam recursos 2014 até este ano. serviço do combate dos impactos diretos

O
para o enfrentamento da Covid-19 des- e indiretos dessa pandemia”, disse Cindy
bloquearam R$ 326 milhões do Fundo Horizonte Europa responde Parker, diretora regional para Ciência e
Nacional de Desenvolvimento Científi- apenas por uma parte do que os Inovação na América Latina da Embai-
co e Tecnológico (FNDCT). De acordo países do bloco investirão em ci- xada do Reino Unido no Brasil.
com o Instituto de Pesquisa Econômica ência para enfrentar a pandemia. Na Rússia, o Kremlin conseguiu alocar
Aplicada (Ipea), cerca de R$ 70 milhões A Alemanha, por exemplo, apro- mais recursos para o sistema de ciência,
desse montante foram gastos até agora. vou um orçamento suplementar tecnologia e educação superior do país
O México vive situação semelhante. Em de € 122,5 bilhões para ações de governo durante a pandemia, apesar de os gastos
2019, o orçamento do Conselho Nacional no combate à Covid-19. Desse montante, em P&D do país estarem estacionados
de Ciência e Tecnologia (Conacyt), ór- 0,13%, ou € 160 milhões, será investido em um patamar de 1% do PIB há duas
gão que mantém 27 centros de pesquisa no Ministério de Educação e Pesquisa, décadas. As universidades foram as prin-
e financia bolsas e projetos, foi reduzido dos quais € 145 milhões irão para inova- cipais beneficiadas. Serão destinados
em 9% ante o ano anterior. Em 2020, ção em saúde. Desde 2017, o país é um até o final do ano 35 bilhões de rublos,
houve uma recuperação de 3,4% no or- dos financiadores da Coalizão Interna- o equivalente a US$ 470 milhões, para
çamento do Conacyt. Entre os aportes cional para Inovações em Preparação ajudar as instituições de ensino superior
anunciados recentemente pelo governo, para Epidemias (Cepi). Em resposta à a lidar com a crise econômica causada
US$ 1,17 milhão será aplicado no desen- pandemia, houve um aporte adicional pela Covid-19. Trinta mil vagas passarão
volvimento e em testes de uma vacina. Já de € 140 milhões. A CureVac, empresa a ser custeadas pelo Estado. “Já cogitá-
a Argentina incorporou a seu orçamento de biotecnologia alemã, está envolvida vamos ampliar essas vagas, mas o pla-
55 bilhões de pesos, o equivalente a US$ em um dos projetos de vacina desenvol- no era começar só em 2021”, afirmou o
760 milhões, para enfrentar o novo coro- vidos pela coalizão. A suplementação presidente Vladimir Putin, segundo a
navírus. Cerca de US$ 5 milhões foram de recursos também permitiu dar um agência University World News.
destinados a uma chamada de projetos alívio para pesquisadores que tiveram O governo russo também destinou 1,5
de pesquisa relacionados à doença. Em seu trabalho comprometido por medidas bilhão de rublos, o equivalente a US$ 20
2018, a Argentina investiu 0,6% de seu de isolamento social. A Sociedade Alemã milhões, para reforçar o orçamento do
PIB em P&D (ante 0,4% do México e de Amparo à Pesquisa (DFG), principal Serviço Federal de Proteção dos Direitos
1,3% do Brasil). agência de fomento à ciência básica, des- do Consumidor e Bem-Estar Humano,
Em um momento de recessão brutal, tinou € 175 milhões para a retomada de agência que assumiu a linha de frente
em que o desemprego e os gastos com projetos interrompidos. no combate à Covid-19. Mas a instân-
saúde se intensificam, as demandas por Desgarrado do bloco, o Reino Unido cia mais associada ao financiamento de
mais recursos para a pesquisa contra a também se destacou na destinação de ações contra a doença é o Fundo de In-
Covid-19 podem ser questionadas até recursos. Desde o início da pandemia, a vestimento Direto da Rússia (RDIF), fun-
mesmo em nações desenvolvidas. No Agência de Pesquisa e Inovação do Reino do soberano que aplica recursos públicos
final de julho, os líderes dos 27 países- Unido (Ukri) alocou US$ 260 milhões em empresas e gerencia atualmente US$
-membros da União Europeia aprovaram em projetos de pesquisa e inovação para 10 bilhões. Ele financiou empresas en-
o orçamento do bloco para os próximos combater os efeitos da Covid-19. Isso in- carregadas de realizar testes de medica-
sete anos, que prevê investimentos de clui financiamento para ajudar pequenas mentos e o desenvolvimento de uma va-
€ 1,8 trilhão, divididos em € 1,07 trilhão e médias empresas tecnológicas afetadas cina no Instituto Gamaleya, de Moscou.
de gastos regulares e € 750 bilhões de pela crise. Uma das primeiras medidas Também fez uma parceria com o grupo
um fundo de recuperação da economia anunciadas pelo premiê Boris Johnson R-Pharma para construir uma planta na
pós-pandemia. Do total do orçamento, foi a suplementação orçamentária de cidade de Yaroslavl em que serão produ-
€ 81 bilhões comporão o Horizonte Eu- US$ 38,3 milhões ao Instituto Nacional zidos remédios e a vacina do Instituto
ropa, principal programa de pesquisa de Pesquisa em Saúde, para estudos so- Gamaleya, caso demonstre eficácia. O
e inovação do bloco. Esse montante é bre a Covid-19, e de US$ 12,8 milhões ao investimento será de US$ 54 milhões. n

PESQUISA FAPESP 294 | 37


Compartilhamento
de dados de pesquisa
cresce na pandemia
e os benefícios
da estratégia podem

REPARTIR  ajudar a consolidá-la

Rodrigo de Oliveira Andrade

A
crise do novo coronavírus delas é a Nextstrain, banco de análises
está mudando o modo como de sequências genéticas do Sars-CoV-2
os pesquisadores se comu- criado por pesquisadores da Universida-
nicam e trabalham em con- de da Basileia, na Suíça, e do Centro de
junto, dando mais velocidade Pesquisas do Câncer Fred Hutchinson,
e transparência à dinâmica em Seattle, nos Estados Unidos. Por meio
de produção e disseminação dele, é possível mapear padrões de dis-
do conhecimento. Em meio persão do vírus analisando informações
à urgência para desenvolver vacinas e sobre mutações em seu material genético
medicamentos, muitos cientistas estão vindas de múltiplas fontes. “Os pesquisa-
compartilhando de forma instantânea dores podem compartilhar dados dessas
seus dados de pesquisa, aquela massa análises, compará-los e identificar como
de informações primárias que serve de e em quais regiões do mundo o novo co-
base para as conclusões de seus estudos. ronavírus está sofrendo mutações”, ex-
Esse comportamento se enquadra em plicou Trevor Bedford, um dos criado-
uma mobilização envolvendo governos, res da plataforma. O projeto já revelou
empresas, organizações internacionais, conexões entre linhagens registradas na
agências de financiamento e comunida- Austrália com casos de Covid-19 no Irã,
de científica, que, para enfrentar a pan- além de um paciente em Taiwan infec-
demia, passaram a promover práticas tado com uma variedade oriunda dos
alinhadas à ciência aberta, conceito que Países Baixos. Também verificou que
envolve o acesso livre à informação e a a linhagem do Sars-CoV-2 que se espa-
construção colaborativa do conhecimen- lhou na Itália é a mesma que chegou na
to. Em maio, por exemplo, a Organização América Latina e na África, enquanto a
para a Cooperação e Desenvolvimento Ásia já recebeu de volta variedades que
Econômico (OCDE) reforçou em um havia exportado para a Europa.
comunicado a relevância dessa estratégia A plataforma, na avaliação de Bedford,
no combate à Covid-19: “Em emergências poderia ter sido útil em epidemias co-
globais como a pandemia do novo coro- mo a da febre zika, entre abril de 2015 e
navírus, a implementação de políticas novembro de 2016. “A área mais afetada
de ciência aberta remove obstáculos ao foi a do Nordeste do Brasil. Caso tivésse-
fluxo de dados e ideias de pesquisa, ace- mos uma ferramenta capaz de mapear em
lerando o ritmo de desenvolvimento do tempo real como e em que velocidade o
conhecimento para combater a doença”. vírus zika se espalhava pelo mundo, talvez
Diversas iniciativas emergiram para pudéssemos antecipar que aquela região
promover a troca de informações cien- seria a mais vulnerável. Isso daria a chan-
tíficas sobre o novo coronavírus. Uma ce de limitar a propagação da doença.”

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E MULTIPLICAR CONHECIMENTO
A urgência por dados sobre o novo cerca de 180 mil indivíduos submetidos
coronavírus levou a Comissão Europeia a testes para diagnóstico da Covid-19 – e PLATAFORMA COVID-19
a lançar em abril, em colaboração com que apresentaram resultados positivos
outros parceiros, a Covid-19 Data Por- ou negativos –, além de 6.500 desfechos
DATA SHARING/BR REÚNE
tal. A plataforma permite que pesqui- de casos – como recuperação ou óbito – e DADOS LABORATORIAIS
sadores compartilhem, acessem e ana- quase 5 milhões de resultados de exames
lisem diferentes tipos de dados sobre clínicos e laboratoriais. “A expectativa é
E DEMOGRÁFICOS
o novo coronavírus, como proteínas e que essas informações sejam usadas no DE QUASE 180 MIL PESSOAS
genes específicos do agente patológi- aprimoramento do diagnóstico, em estu-
co. Tais informações estão ajudando no dos sobre fatores relacionados à evolução
desenvolvimento de sistemas de inteli- da doença no Brasil e em investigações
gência artificial capazes de identificar sobre candidatos a medicamentos e vaci-
as principais áreas de concentração dos nas”, disse o neurocientista Luiz Eugênio
estudos sobre a Covid-19 no mundo, de Mello, diretor científico da FAPESP, no
modo a apontar sobreposições de es- lançamento da iniciativa.
forços e abordagens promissoras que O novo repositório utiliza uma estru-
merecem ser exploradas. O portal tam- tura computacional criada pela Superin-
bém reúne informações hospedadas em tendência de Tecnologia da Informação
outros repositórios da região, como a da USP, usada desde dezembro de 2019
britânica Elixir, que congrega resultados para conectar os repositórios de dados
de pesquisa na área de ciências da vida, de pesquisas de diferentes instituições
mas que, recentemente, criou uma seção paulistas (ver Pesquisa FAPESP nº 287).
exclusiva para o Sars-CoV-2, incluindo “O fato de já termos essa estrutura pron-
informações sobre genes específicos do ta nos ajudou a acelerar a implementação
vírus, linhagens celulares mais adequa- da plataforma para a Covid-19”, desta-
das para o estudo dos seus mecanismos cou o físico Sylvio Canuto, pró-reitor de
de ação e proteínas que interagem com Pesquisa da USP.
o patógeno. O estímulo ao compartilhamento de
Esse esforço de compartilhamento dados é antigo e tem várias motivações.
também reverbera no Brasil. Um exem- Uma delas é a preocupação com a re-
ILUSTRAÇÃO ALEXANDRE AFFONSO

plo é a plataforma Covid-19 Data Sha- produtibilidade de pesquisas e a impor-


ring/BR, lançada em junho. Fruto de tância de disponibilizar as informações
uma articulação da FAPESP envolvendo primárias coletadas para que outros
a Universidade de São Paulo (USP), o cientistas consigam verificar a precisão
Grupo Fleury e os hospitais Albert Eins- e a relevância de resultados divulgados.
tein e Sírio-Libanês, o repositório reúne Com a pandemia, isso ganhou um signifi-
dados laboratoriais e demográficos de cado mais urgente. “O compartilhamento

PESQUISA FAPESP 294 | 39


pode otimizar os esforços de pesquisa e Programa de Computação Científica da
NEXTSTRAIN OFERECE catalisar novas colaborações, aceleran- Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). “Já
do o ritmo de descobertas”, explica a agora, o fluxo de informações sobre a
ACESSO A 1.787 ANÁLISES engenheira eletricista Claudia Bauzer Covid-19, poucos dias após a coleta de
GENÔMICAS DE Medeiros, do Instituto de Computação amostras dos primeiros indivíduos in-
da Universidade Estadual de Campinas fectados, permitiu o sequenciamento
VARIEDADES DO SARS-COV-2 (Unicamp) e membro da coordenação completo do genoma do Sars-CoV-2 em
EM CIRCULAÇÃO dos programas eScience e Data Scien- apenas um mês.”
ce da FAPESP. “Também permite que Apesar dos avanços durante a pande-
NA AMÉRICA DO SUL os pesquisadores desenvolvam estudos mia, alguns obstáculos permanecem. A
combinando dados de origens diversas.” consolidação de um ambiente propício
Medeiros é conselheira da Research para o fluxo de informações pressupõe
MAIS DE 2.800 ENSAIOS Data Alliance, organização criada em não apenas a disposição dos pesquisado-
2013 para disseminar o compartilhamen- res de dividir seus dados, mas também
CLÍNICOS DE TRATAMENTO to de dados científicos e criar infraes- o comprometimento dos governos em
PARA A COVID-19 truturas que viabilizem essa tarefa. Em coletar e oferecer informações de for-
março, ela e outros 136 membros afilia- ma transparente. Desde abril, a Open
ESTÃO DISPONÍVEIS dos uniram esforços na elaboração de Knowledge Brasil, organização que pro-
NA COCHRANE COVID-19 recomendações para acelerar a pesquisa move a transparência de informações
sobre a Covid-19 (ver box). públicas, avalia a disponibilidade e a
STUDY REGISTER “A pandemia pôs em evidência a rele- qualidade de dados epidemiológicos e
vância de promover um intercâmbio de de infraestrutura de saúde relacionados
resultados científicos de forma rápida e à Covid-19 fornecidos pelos governos fe-
aberta”, disse a Pesquisa FAPESP o bio- deral, estaduais e municipais. O chamado
químico britânico Richard Sever, um dos Índice da Transparência da Covid-19 nos
fundadores do bioRxiv, repositório de estados e na União é atualizado a cada
preprints que reúne artigos de ciências 15 dias e leva em conta três aspectos de
biológicas. “Essa prática tem contribuí- avaliação das informações divulgadas:
do para o avanço do conhecimento sobre conteúdo, formato e granularidade, is-
o vírus.” A comparação com situações to é, o grau de detalhamento dos dados
do passado ajuda a mostrar a importân- divulgados. “Verificamos que apenas
cia do esforço atual. “O sequenciamen- cinco estados divulgam bases de dados
to completo do genoma do Sars-CoV-1, detalhadas, incluindo notificações de
que causou um surto na Ásia entre 2002 casos suspeitos, por exemplo”, escla-
e 2003, levou praticamente cinco meses rece Fernanda Campagnucci, diretora-
para ser concluído”, diz o engenheiro -executiva da Open Knowledge Brasil.
elétrico Daniel Villela, pesquisador do “Por parte do governo federal, há falta

UM GUIA PARA
O COMPARTILHAMENTO DE DADOS
A Research Data Alliance (RDA) divulgou países, entre eles Claudia Bauzer Medeiros, e instituições científicas do mundo
em fins de junho um documento com diretrizes do Instituto de Computação da Unicamp. trabalhem juntos para desenvolver
detalhadas para estimular “Em meados de março, a pedido da políticas e promover investimentos para
o compartilhamento e a reutilização de dados Comissão Europeia, a RDA convocou otimizar o fluxo de dados entre entidades
no contexto da pandemia e em situações de seus mais de 10 mil afiliados para elaborar locais e internacionais. “O documento
emergência futuras. Elas abordam o uso orientações que pudessem auxiliar as várias chama a atenção para a necessidade de
de resultados de estudos clínicos, estratégias de compartilhamento”, conta os dados, softwares, modelos
epidemiológicos, sociológicos e ômicos – Medeiros. Desses, 130 engajaram-se no compartilhados sejam encontráveis,
isto é, pesquisas nas áreas de genômica, projeto, dividindo-se em grupos de redação. acessíveis, interoperáveis e reutilizáveis”,
transcriptômica, proteômica e metabolômica– “Reuníamo-nos de duas a três vezes por explica Medeiros. “Isso exige dos
e o desenvolvimento de estratégias semana, via internet, para discutir e redigir pesquisadores um plano de gestão bem
que favoreçam a troca dessas informações. de forma colaborativa o documento final.” detalhado, com informações sobre como
O relatório é fruto de trabalho colaborativo O relatório propõe que governos, os dados foram gerados e como podem
envolvendo pesquisadores de diversos agência de fomento à pesquisa ser reutilizados.”

40 | AGOSTO DE 2020
PESQUISA NA QUARENTENA

“TRABALHO
MAIS HORAS,
MAS NÃO
ESTOU MAIS
EFICIENTE”

U ma coisa boa nesta quarentena foi


estar mais próximo dos meus filhos.
Agora vejo o quanto estava distante deles.
Algumas pessoas dizem que estão mais
eficientes. Eu trabalho mais horas, mas
não acho que esteja mais eficiente. Participo
de muitos comitês, subcomitês, webinars
por plataformas virtuais. Funciona muito
bem, qualquer um pode fazer perguntas
a qualquer hora pelo bate-papo.
Pela universidade estou finalizando
artigos, orientando alunos e escrevendo
de articulação na divulgação de informa- partilhamento de dados. “No entanto”, projetos. Não podemos ainda voltar
ções detalhadas sobre a pandemia. Elas diz Curty, “também é preciso investir em ao laboratório. É muita responsabilidade
são essenciais para estimar a dinâmica parâmetros de avaliação desses planos e autorizar a volta dos estudantes.
de propagação do vírus.” em sistemas que verifiquem se de fato os Queremos usar grafeno para fazer
Apesar dos esforços globais, muitos dados foram compartilhados e avaliem a um sensor para diagnóstico utilizando o
pesquisadores ainda resistem em incor- qualidade desse material”. Uma preocu- conhecimento que temos na área de fotônica
porar a prática colaborativa em sua roti- pação é garantir que essas informações com materiais bidimensionais. A Covid-19 vai
na de trabalho. Alguns têm preocupação venham acompanhadas dos chamados longe e podem vir outros vírus. Quanto mais
quanto ao uso incorreto das informações metadados, que oferecem uma descrição maneiras de diagnosticar que sejam rápidas,
originais. Também há os que evitam for- detalhada dos dados gerados em deter- eficientes e de preferência baratas, melhor.
necer seus dados porque querem explo- minado estudo, especificando como fo- Quase todos os potenciais clientes
rá-los em novos estudos ou temem não ram produzidos, quem os gerou, quando, da minha empresa, a DreamTech, pararam
receber os créditos pela cessão. Daí a onde e como podem ser reutilizados, de de trabalhar durante a pandemia. Mas temos
preocupação de que o compartilhamento modo a possibilitar sua devida interpre- projetos com duas empresas na área de
arrefeça após a pandemia. tação e ampliar o potencial de reúso em tintas. Em grafeno e tecnologia de materiais,

D
novas pesquisas. a solução nunca está pronta, ela tem que
esde outubro de 2017, a FAPESP, Na avaliação de Claudia Bauzer Me- ser desenhada sob medida.
a exemplo de instituições de fi- deiros, para que a cultura do comparti- Também sou cantor lírico, tinha ensaios
nanciamento da Austrália, dos lhamento se fortaleça após a pandemia todas as quintas-feiras com o pianista
Estados Unidos e da Europa, exi- é preciso avançar na implementação de Ricardo Ballestero – professor da
ge que as solicitações de finan- mecanismos de recompensa para quem Universidade de São Paulo –, criando uma
ciamento de projetos venham adota essa prática. Uma das estratégias teoria de como atualizar a linguagem
acompanhadas de um plano de gestão seria a criação de indicadores de cita- dos concertos. Como ser clássico, erudito,
de dados, desde a coleta até onde eles ção das informações partilhadas. “Da e que alguém com 17 ou 25 anos possa
serão disponibilizados. “A estratégia de mesma forma, é importante que essas curtir de forma moderna? Mas o projeto
compartilhamento de dados será pro- métricas sejam levadas em considera- foi interrompido pela quarentena.
gressivamente um item cada vez mais ção pelos sistemas de avaliação, de mo- Tem um problema tecnológico que
importante na análise dos projetos sub- do a reconhecer e valorizar o esforço é o atraso, o delay. Se uma rede de
metidos à FAPESP”, afirma Luiz Eugênio dos pesquisadores que fornecem seus transmissão em alta definição permitisse
Mello, o diretor científico da Fundação. dados.” O ambiente com acesso livre à que ele fosse constante, eu conseguiria
Para a cientista de dados brasileira informação e construção colaborativa
ILUSTRAÇÃO FERNANDO CARVALL

fazer um concerto com outra pessoa.


Renata Curty, que atua na gestão e cura- do conhecimento também depende de É um desafio tecnológico e científico.
doria de dados de pesquisa na Univer- financiamento sistemático. “Entre 20%
sidade da Califórnia em Santa Bárbara, e 30% das iniciativas envolvendo o com- THOROH DE SOUZA é pesquisador do Centro de
nos Estados Unidos, as agências de fo- partilhamento de dados primários são Pesquisas Avançadas em Grafeno (MackGraphe),
Nanomateriais e Nanotecnologias da Universidade
mento podem ajudar a moldar novos descontinuadas após dois ou três anos Presbiteriana Mackenzie e cantor lírico.
comportamentos em relação ao com- por falta de recursos”, destaca. n DEPOIMENTO CONCEDIDO A MARIA GUIMARÃES

PESQUISA FAPESP 294 | 41


Regina Silveira,
Amphibia, 2013.
Imagem digital, vinil
adesivo e ralo metálico.
Dimensões variáveis.
Galeria Bolsa de Arte,
Porto Alegre

42 | AGOSTO DE 2020
PANDEMIA
COMO
ALEGORIA
Escritores e artistas utilizam
a figura da peste para
elaborar acontecimentos
trágicos e propor reflexões
sobre a condição humana

Christina Queiroz

P
or volta do ano 427 a.C., o dramaturgo grego Sófocles costuma ser retratada como alegoria para abordar questões
(496-406 a.C.) escreveu Édipo rei, uma peça sobre políticas e sociais. Decameron, escrita pelo italiano Giovan-
o governante de uma cidade assolada pela peste, ni Boccaccio (1313-1375) entre 1348 e 1353, reúne relatos de
tragédia resultante da maldição dos deuses. Milê- 10 pessoas que fogem de Florença para se proteger da peste
nios mais tarde, ao refletir sobre o medo da morte, negra. “A obra trata de inúmeras questões, incluindo o ero-
o escritor turco Orhan Pamuk, ganhador do Nobel tismo e a sexualidade das mulheres. Enquanto grande parte
de Literatura de 2006, prepara um romance que da sociedade morria, a elite teve condições de se isolar para
se desenvolve em 1901, durante um surto de peste não contrair a doença. No momento atual, parece evidente
bubônica na Ásia. Da Grécia Antiga ao período contemporâ- o quanto a questão da desigualdade social se faz presente na
neo, passando pela Idade Média e o pós-guerra, escritores e narrativa”, observa.
artistas têm utilizado o repertório da peste para refletir sobre No Brasil, a pandemia da Covid-19 evidenciou, para his-
a condição humana, criticar os detentores do poder político toriadores da arte, a inexistência de um campo dedicado a
e a realidade social. No Brasil, instigados pela pandemia do investigar a influência da peste no imaginário artístico. “Até
novo coronavírus, pesquisadores se mobilizam para discu- hoje, a peste tem sido tratada do ponto de vista da iconografia,
tir a influência de eventos como esse na produção cultural. por meio de análises de episódios ou obras pontuais. Nunca
Em distintas instituições do país, cursos, aulas públicas e foi uma questão central para curadores e pesquisadores da
seminários integram a programação acadêmica do segundo história da arte. A realidade trazida pela pandemia começa a
semestre letivo. mudar esse cenário. Estamos nos mobilizando para criar pro-
Definida de forma ampla como doença contagiosa ou epi- jetos que permitam investigar o assunto de forma sistemática”,
demia que causa um grande número de mortes, a peste é conta Ana Gonçalves Magalhães, diretora do Museu de Arte
elemento recorrente na história literária e representa papel Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC-USP).
central na mencionada obra de Sófocles. “Édipo rei mostra a A instituição prepara uma retrospectiva com obras da ar-
figura da peste como o principal sintoma de que há um desar- tista Regina Silveira, professora aposentada do Departamento
ranjo naquela sociedade”, analisa Francine Fernandes Weiss de Artes Plásticas da Escola de Comunicações e Artes (DAP-
Ricieri, da Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas -ECA) da USP. A exposição será inaugurada após a abertura
EDUARDO VERDERAME

da Universidade Federal de São Paulo (EFLCH-Unifesp). do MAC ao público, em data a ser definida. Em sua trajetória,
De acordo com Ricieri, historiadora da literatura que há Silveira tem proposto reflexões sobre um futuro catastrófico.
mais de 20 anos pesquisa as relações entre Brasil, Portugal e “Desde as pegadas de animais selvagens que planejei em
França em poetas oitocentistas, no universo literário a peste 1996 como intervenção direta no hall de entrada do Museu

PESQUISA FAPESP 294 | 43


de Arte Contemporânea de San Diego, nos Estados Unidos, Berbara avalia que a falta de atenção ao papel fundamental
minha imaginação foi tomada por essas narrativas que su- desempenhado pelas epidemias nas artes está possivelmente
geriam invasões, súbitas e fantasmagóricas, de arquiteturas relacionada ao fato de que, ao longo do século XX, pesquisa-
diversas”, explica a artista. Segundo ela, essa mesma matriz dores da história da arte e da cultura buscaram construir um
de invasões incontroláveis também está na origem de muitas nicho próprio de investigação, que operasse com autonomia
obras da série Irruption, que mostram acúmulos de pegadas em relação a aspectos econômicos ou sociais. “Essa busca por
humanas em situações inusitadas. “Já as imagens dos insetos independência de outros campos do conhecimento acabou
daninhos gigantes, com as quais ocupei um grande pavilhão por fazer com que passássemos por cima de alguns aspec-
de vidro no Centro Cultural Banco do Brasil [CCBB] em Bra- tos que merecem mais atenção, caso das epidemias”, afirma.

E
sília, em 2007, eram uma alegoria perversa e deslumbrante
de nossa elite política. Denominada Mundus admirabilis, a stima-se que a peste negra foi responsável por um
obra deu início a outras que mais diretamente dialogaram terço das mortes da população mundial entre 1346 e
com pragas históricas e bíblicas, buscando suas versões na 1353, trazendo consequências ao imaginário artístico.
contemporaneidade, como a violência, a corrupção e a de- “Como reflexo da doença, que era interpretada como
terioração do cotidiano.” castigo divino, a pintura de devoção a santos, especial-
Com percepção parecida à da curadora do MAC-USP, Ma- mente àqueles considerados protetores contra a peste,
ria Berbara, do Departamento de Teoria e História da Arte se intensificou”, afirma Tamara Quírico, do Departamento de
da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), cons- Teoria e História da Arte da Uerj e que há mais de 20 anos
tata que a temática não está entre os principais objetos de estuda a arte medieval cristã entre os séculos XIII e XIV e a
reflexão no campo da história da arte e da cultura. Com pes- iconografia relacionada com o juízo final. Pesquisadora da
quisas desenvolvidas desde os anos 2000 sobre os intercâm- estética do macabro há mais de uma década, a historiadora
bios artísticos e culturais que ocorreram entre a Europa e o Juliana Schmitt explica que na Europa medieval cristã pre-
continente americano nos séculos XVI e XVII, nos últimos valecia a ideia de que a morte era a transição para uma vida
meses Berbara começou a questionar as narrativas adotadas espiritual plena. Os ritos fúnebres buscavam assegurar uma
sobre o processo de colonização do continente americano. passagem organizada para esse outro plano, além de evitar
O uso da pólvora, por exemplo, sempre foi apontado como mostrar o processo de decomposição do corpo. “A chegada da
um dos aspectos centrais para explicar a rapidez com que peste negra rompeu com essa concepção. A doença deixava
os colonizadores se instalaram no continente. “O demolidor marcas no corpo, as pessoas morriam de repente, algumas
impacto demográfico das epidemias entre as populações na- em locais públicos. Os corpos podiam ficar dias se decom-
tivas era visto como uma teoria secundária para esclarecer pondo na rua e os rituais funerários deixaram de ser feitos”,
esse processo. A situação atual recorda que, na realidade, conta. “A ideia apaziguadora da morte na concepção cristã foi
ele deve ser visto como prioritário”, observa a historiadora. substituída pela ideia de morte caótica causada pela peste”,
1

O holandês Pieter
Bruegel criou
o Triunfo da morte,
em 1562, evocando
o cenário de
pragas, epidemias
e conflitos que
atingiam a Europa

44 | AGOSTO DE 2020
2
Ilustração do italiano The mal'aria, pintura
Angelo Agostini do francês Ernest
da febre amarela Hébert feita entre
ceifando vidas, 1848 e 1849, integra
no Carnaval de 1876 acervo do Musée
d'Orsay, em Paris

conta a historiadora, que acaba de concluir pesquisa de pós- ras de Hans Holbein (1497-1543) e pelos versos dos poetas
-doutorado na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). românticos, que tinham apreço pela estética da cultura me-
Conforme Schmitt, as imagens cotidianas relacionadas ao dieval. “No final do século XVIII, os românticos resgataram
surto da doença passaram a ser reapresentadas na iconogra- os temas medievais para fazer oposição ao ideal neoclássico
FOTOS 1 E 3 WIKIMEDIA COMMONS 2 ANGELO AGOSTINI: O CARNAVAL DE 1876. REVISTA ILLUSTRADA, N. 10, MAR. 1876 / REPRODUÇÃO

fia e na literatura, nos anos seguintes, potencializando o que vigente em décadas precedentes e que valorizava a busca pela
hoje se conhece como estética macabra. “O que caracteriza beleza e harmonia na arte e na poesia”, observa a historiadora.
as obras macabras é a ênfase dada aos processos de decom- Anos mais tarde, o poeta francês Charles Baudelaire (1821-
posição do corpo”, esclarece a historiadora, ao explicar que 1867) também mobilizou esse imaginário, tendo publicado,
essa estética já existia antes, mas foi impulsionada pela peste inclusive, um poema com o título “Dança macabra”, em As
negra. Assim, afrescos em cemitérios e igrejas, iluminuras flores do mal, de 1857. Ao contar a história de um cavaleiro
em manuscritos e poemas passaram a versar, por exemplo, que volta para casa depois de 10 anos lutando nas cruzadas
sobre vermes que passeiam pelos corpos e cadáveres em de- e encontra sua vila afetada pela peste negra, em 1959, o fil-
composição que abandonam suas covas para se encontrar me O sétimo selo, do diretor sueco Ingmar Bergman (1918-
com os vivos. 2007), mostra a imagem da morte levando o protagonista e
No contexto desse imaginário, conta Quírico, o tema da seus amigos – que, enfileirados, remetem à iconografia das
dança macabra começou a se sobressair, sobretudo em afres- danças macabras.
cos e iluminuras que foram preservados até os dias atuais. Mesmo antes da atual pandemia, o tema da peste manteve-
Nessas imagens, cadáveres ou caveiras dançam com os vi- -se no imaginário de escritores contemporâneos. Ao abordar
vos, carregando objetos relacionados à morte, como foices e seu processo de criação de um livro sobre a temática, em ar-
tampas de caixão, além de instrumentos musicais, compondo tigo de opinião publicado no The New York Times em abril,
um ambiente que é também festivo. Ao analisar o significado Orhan Pamuk discorre sobre diferentes autores que publica-
desses trabalhos para a população da Idade Média, Schmitt ram obras a respeito. O descaso do poder público, os esforços
afirma que eles representavam a ideia de que a morte é uni- para esconder o real tamanho do problema, a disseminação
versal, atinge a todos independentemente da classe social e de notícias falsas e a ideia da praga como algo trazido por
pode chegar de surpresa. “As danças macabras podem ser algum forasteiro são elementos comuns em muitos desses
consideradas uma tentativa de reelaborar, por meio da arte, trabalhos. Pamuk enfatiza que alguns escritores, como o
o caos que se instalou na sociedade daquele tempo”, afirma. britânico Daniel Defoe (1660-1731) e o franco-argelino Al-
Schmitt lembra ainda que no decorrer da história a dança bert Camus (1913-1960), foram além de questões políticas e
macabra ganhou diversas releituras, passando pelas gravu- sociais, utilizando a figura de pragas para tratar de questões

PESQUISA FAPESP 294 | 45


1 2

Oratorio dei disciplini, Autorretrato do Na página ao lado,


na cidade de Clusone, norueguês Edvard cena do filme O sétimo
na Itália. Feito por Munch após contrair selo, do sueco Ingmar
Giacomo Borlone de o vírus da gripe Bergman, que é uma
Burchis no século XV, espanhola, em 1919 releitura da iconografia
é um dos primeiros macabra que
trabalhos sobre dança ganhou impulso na
da morte Idade Média

intrínsecas à condição humana, como o medo e o pavor cau- estrangeiro (1942) faz parte dessa seara, narrando a história
sado pela proximidade da morte e a sensação de estranheza de um homem em Argel que, dias depois de enterrar a mãe,
gerada pelo advento de novas doenças. Publicado em 1722, acaba por assassinar um jovem árabe. Já o segundo ciclo, no
Um diário do ano da peste, de Defoe, relata o cotidiano de qual A peste está incorporada, é marcado pela ideia da re-
Londres durante a “grande praga”, que devastou a cidade volta coletiva como resposta positiva ao sentimento sobre

FOTOS 1 WIKIMEDIA COMMONS 2 NASJONALMUSEET / LATHION, JACQUES 3 REPRODUÇÃO ILUSTRAÇÃO FERNANDO CARVALL
entre 1665 e 1666. o absurdo explorado no primeiro ciclo. “Trata-se da busca
Para Daniel Bonomo, da Faculdade de Letras da Universi- por uma reação ética de nossa angústia diante do destino trá-
dade Federal de Minas Gerais (UFMG), tanto em Um diário gico humano”, diz Araújo, tradutor dos primeiros cadernos
do ano da peste quanto em Robinson Crusoé (1719), Defoe ex- de Camus no Brasil. Segundo ele, o terceiro ciclo, que não
plora os efeitos de situações de confinamento. “O narrador foi concluído em decorrência da morte precoce do escritor,
descreve as medidas severas adotadas em Londres na ocasião. abordaria o tema do amor.
Casas que abrigavam doentes eram trancadas por fora e iden- Claudia Consuelo Amigo Pino, professora de língua e litera-
tificadas com uma cruz vermelha, com vigias que zelavam tura francesa no Departamento de Letras Modernas (DLM) da
todo o tempo para que ninguém entrasse ou saísse”, comenta FFLCH-USP, observa que a ocupação nazista na França inau-
Bonomo, um dos participantes de curso on-line que discute gurou um intenso sistema de vigilância, gerando desconfiança
a questão das epidemias no imaginário literário. O ciclo de e dando vazão a preconceitos de toda ordem. “No começo, as
palestras na UFMG teve início em julho e se estenderá até o pessoas pensaram que seria uma situação temporária e a falta
final do segundo semestre de 2020. de consciência sobre a gravidade do problema fez com que ele
Outro livro célebre sobre o tema é A peste, de Camus. Publi- se tornasse ainda maior, o que também acontece no caso de
cada em 1947, a obra retrata uma epidemia na cidade argelina uma epidemia como a que vivemos hoje”, comenta. “No livro,
de Oran e seus efeitos sobre a população local. Pesquisadores Camus alerta que catástrofes, como epidemias ou guerras, só
do trabalho de Camus observam que a peste foi lida na época podem ser enfrentadas mediante conscientização precoce e
como alegoria da ocupação de Paris pela Alemanha nazista trabalho coletivo.” Pino, que em 2013 promoveu um curso de
durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Raphael Luiz extensão para analisar a trajetória de Camus, no marco dos
de Araújo, que em 2017 defendeu doutorado na Faculdade 100 anos do seu nascimento, é uma das organizadoras do ci-
de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP clo de aulas públicas sobre epidemias a ser desenvolvido na
sobre o escritor, conta que a produção de Camus pode ser FFLCH-USP, a partir de setembro.
dividida em três ciclos, sendo que o primeiro envolve obras Ainda sobre Camus, o filósofo Leandson Vasconcelos
que abordam situações absurdas da existência humana. O Sampaio lembra que na obra de 1947 a peste pode ser com-

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preendida “como símbolo de nossa fragilidade”. Aliás, é PESQUISA NA QUARENTENA
em torno da ideia da morte que giram muitas das obras de
Camus, incluindo O estrangeiro, O homem revoltado (1951)
e O mito de Sísifo (1941). “Para o escritor, a consciência da
“ME PREOCUPO
finitude humana evidencia o primeiro contato das pessoas COM OS PALIKUR
com o absurdo. No livro de Camus, a peste é um símbolo DA MESMA
para que o leitor reflita sobre a ética e a necessidade de FORMA QUE ME
engajamento das pessoas diante de catástrofes coletivas. PREOCUPO COM
Com isso, ao abordar a morte, o autor escreve em favor da MINHA FAMÍLIA”
vida”, analisa Sampaio.

A
destruição da espécie humana é tema frequente em
trabalhos ficcionais que abordam situações apoca-
E ntre nós, ocorre uma separação
marcada entre o trabalho e a vida
pessoal. Com a pandemia, passamos a viver
lípticas, em que as epidemias acabam por assumir um momento no qual essas duas dimensões
funções simbólicas, entre elas o desejo de recons- estão misturadas. Temos a falsa sensação
truir a sociedade do zero. Com projeto de pesquisa de que estamos trabalhando menos,
estruturado desde 2018 envolvendo ficção científica mas isso tem a ver com uma valorização
e produções culturais sobre mortos-vivos, ou zumbis, Valéria excessiva das tarefas intelectuais. É como
Sabrina Pereira, da Faculdade de Letras da UFMG, relaciona se o trabalho físico não fosse considerado
diferentes obras em que essa vontade se faz evidente. Em exatamente trabalho. Precisamos
Zone one (2011), por exemplo, o escritor norte-americano Col- reelaborar muitas atitudes na nossa vida,
son Whitehead descreve um país pós-apocalíptico, onde os uma delas é essa ideia que temos do
Projeto
sobreviventes se unem para combater zumbis que passaram a trabalho. No plano profissional, a pandemia
Os rastros de Nêmesis:
dominar as cidades. “Entre essas pessoas, está o protagonista, O último ensaio de Albert
me agarrou pelo pé. Tinha conseguido um
um negro que começa a se questionar se quando a situação Camus (nº 14/15584-0); afastamento da Unicamp para realizar
voltar ao normal a sociedade seguirá sendo marcada pelas Modalidade Bolsas no país – um estágio de pesquisa na Universidade de
Doutorado;
desigualdades sociais e pelo racismo”, conta Pereira. “Muitas Pesquisadora responsável
Berkeley, na Califórnia. Desenvolveria mais
obras sobre zumbis funcionam como uma sátira da ideia de Claudia Consuelo Amigo um aspecto das minhas pesquisas feitas
‘novo normal’ que se desenvolve após situações apocalíp- Pino (USP); Investimento entre os Palikur, povo que vive na região
R$ 171.509,63.
ticas, mostrando tentativas desesperadas da sociedade de da fronteira entre o Brasil e a Guiana
voltar ao seu modelo tradicional”, explica. André Cabral de Artigo científico Francesa, no extremo norte do Amapá. Iria
Almeida Cardoso, do Departamento de Letras Estrangeiras BONOMO, D. R. Experi- investigar a intervenção da fronteira na vida
mentum in insula: Robinson
Modernas da Universidade Federal Fluminense (UFF) e que Crusoé nas origens do
dessa população a partir de um paralelo
desde 2016 desenvolve projeto de pesquisa sobre distopias aborrecimento. Literatura com os povos indígenas que estão na
e narrativas apocalípticas e pós-apocalípticas contemporâ- e Sociedade. v. 22, n. 24. fronteira entre o México e os Estados
p. 117-31. 2017.
neas, observa que, de alguma forma, essas narrativas sobre Unidos. De março para cá, as formas de
distopias acabaram por antecipar o momento de crise atual. Livro lidar com a quarentena foram variando.
“Hoje, ao sermos confrontados por um cenário que até então SCHMITT, J. O imaginário No começo, tentei realizar parte da
era apenas ficcional, esses trabalhos nos ajudam a lidar com macabro na Idade pesquisa que faria em Berkeley aqui. Mas
Média – Romantismo.
o sentimento de perplexidade e estranhamento que advém São Paulo: Alameda não é a mesma coisa. Além de não estar no
da situação”, finaliza. n Editorial, 2017. ambiente com os recursos necessários para
a pesquisa, o mundo estava desabando e eu

3
não pude prosseguir como se nada estivesse
acontecendo. Perdi familiares para a Covid
e me agoniava com os números crescentes
de mortes entre os indígenas. Me preocupo
com os Palikur da mesma forma que me
preocupo com minha família, porque eles
são parte da minha família. Por outro lado,
me mantive na Comissão de Graduação
do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas
[IFCH] da Unicamp tentando colaborar
no debate sobre as melhores formas
de prosseguir com as atividades letivas,
no primeiro semestre.

ARTIONKA CAPIBERIBE é professora do Departa-


mento de Antropologia da Universidade Estadual de
Campinas (Unicamp).
DEPOIMENTO CONCEDIDO A CHRISTINA QUEIROZ

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ENTREVISTA Nivio Ziviani

O criador de
startups
Com forte espírito empreendedor,
cientista mineiro montou várias empresas
bem-sucedidas; uma delas foi comprada
pelo Google

Yuri Vasconcelos | RETRATO Léo Ramos Chaves

P
restes a completar 74 anos, o engenheiro mecânico e IDADE 73 anos
cientista da computação Nivio Ziviani, professor emé-
ESPECIALIDADE
rito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG),
Algoritmos, recuperação
ainda guarda na forma de falar a vitalidade dos anos
de informação e
da juventude. Um dos pioneiros do ensino de graduação em
inteligência artificial
computação no país, ele conseguiu uma façanha obtida por
poucos acadêmicos de sua geração: não apenas formou pro- INSTITUIÇÃO
fissionais e gerou conhecimento, como conseguiu transpô-los Universidade Federal de
para fora dos muros da academia. Minas Gerais (UFMG)
Contaminado pelo “vírus do empreendedorismo” – como
FORMAÇÃO
ele mesmo define –, desde que cursou o doutorado na Univer-
Graduado em
sidade de Waterloo, no Canadá, nos anos 1980, Ziviani criou
engenharia mecânica
cinco startups ao longo da carreira. Os negócios, bem-sucedidos,
pela UFMG (1971),
chamaram a atenção do mercado e uma das empresas, a Akwan
mestrado em informática
Information Technologies, foi comprada pelo Google em 2005,
pela Pontifícia
dando origem ao centro de pesquisa e desenvolvimento da mul-
Universidade Católica
tinacional na América Latina, com sede em Belo Horizonte.
do Rio de Janeiro (1976)
“Desde então, o Google já pôs centenas de milhões de reais
e doutorado em ciência
no país. Isso aconteceu por causa de algo que conseguimos
da computação pela
fazer: mobilizar conhecimento na academia, gerar tecnologia,
Universidade de Waterloo,
transferir para a sociedade, empreender e criar emprego nobre”,
no Canadá (1982)
conta. “A universidade brasileira deve ser um polo gerador de
riqueza, por meio de negócios inovadores.” PRODUÇÃO
Ziviani recebeu a equipe de Pesquisa FAPESP para uma 44 artigos em revistas
conversa antes da eclosão da pandemia do novo coronavírus. científicas, 14 livros
Nos meses seguintes, a entrevista foi complementada por con- (8 em coautoria),
tatos telefônicos e trocas de mensagem. Confira a seguir os 121 trabalhos publicados
principais trechos. em anais de congressos

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PESQUISA FAPESP 294 | 49
O senhor viveu um episódio dramático so na UFMG por dois anos. Uma curio-
na infância. Como isso o marcou? sidade é que, como era uma graduação
Quando criança, tive poliomielite. Foi bem diferente, poderia haver resistência
algo com grande impacto na minha vida. da Pró-reitoria de Graduação. O MEC
Precisei fazer várias cirurgias, a mais pe- Parte do [Ministério da Educação] achou melhor
sada em 1960, aos 14 anos. Foi uma ope- colocar o dinheiro diretamente nas mãos
ração para corrigir um encurtamento de
tendão, em que os médicos cortaram os
dinheiro que dos coordenadores, o que me levava a
interagir com o reitor.
ossos do meu pé. Fiquei 90 dias no gesso.
Isso me marcou muito e provavelmente
Victor Ribeiro e Como vê os cursos de ciência da com-
determinou um pouco como prosseguir putação no Brasil hoje?
na vida. Por causa dessa limitação, não eu ganhamos Caminharam muito bem. O país se desta-
era competitivo em esporte coletivo. Mas ca na América Latina e tem ensino e pes-
sempre gostei de bicicleta. Aos 16 anos, com a venda quisa sólidos em termos globais. Nossa
coloquei um motor nela. Gostava de má- pós-graduação é competitiva, formamos
quinas e mecanismos. Tanto que depois
fui fazer engenharia mecânica.
de nossa gente competente, mas, infelizmente, há
uma sangria de cérebros. Os melhores

Mesmo com essa formação, o senhor primeira startup profissionais, muitas vezes formados
com dinheiro público, acabam indo pa-
atuou a vida inteira como cientista da ra o exterior. Entre as inúmeras pessoas
computação. Como foi essa mudança? doamos para que contribuíram para a qualidade da
Sempre gostei de automobilismo, inclu- ciência da computação brasileira, res-
sive o de competição – e veio daí meu in-
teresse pela engenharia mecânica. Quan-
a UFMG salto o pernambucano Carlos José Pe-
reira de Lucena, professor da PUC-Rio,
do era estudante de graduação, chefiei a que considero pai da computação no
equipe de kart do piloto Toninho [Antô- país. Ele criou o primeiro mestrado no
nio Lúcio] da Matta, campeão brasileiro Brasil e teve um papel decisivo na Ca-
em 1966. Mas no segundo ano da facul- pes [Coordenação de Aperfeiçoamento
dade, a Escola de Engenharia da UFMG de Pessoal de Nível Superior]. Também
comprou um computador, um IBM 1130, influenciou minha ida para o Canadá,
um dos primeiros do país. Rapidamente onde fiz doutorado, na Universidade de
comecei a trabalhar como programador. estruturar cursos de graduação interme- Waterloo, a universidade canadense que
A partir daí, passei a interagir com a co- diária, de tecnólogos, em cinco institui- mais gera startups. O smartphone Black-
munidade de cientistas da computação. ções: UFMG, PUC-Rio [Pontifícia Uni- Berry nasceu lá.
versidade Católica do Rio de Janeiro],
Como era trabalhar com computação federais do Rio Grande do Sul [UFRGS] e Quando fez seu doutorado?
numa época em que quase não havia da Paraíba [UFPB], campus de Campina Defendi em 1982. Quando voltei, o pro-
esses equipamentos no país? Grande, e Centro Paula Souza, em São fessor Lucena, então coordenador da
Havia poucas centenas. Eram máquinas Paulo. Em março daquele ano, fui con- área de ciência da computação na Capes,
grandes, que ocupavam a sala toda, e seu vidado a trabalhar em tempo integral e me convidou para participar dos comitês
poder computacional era muito menor com dedicação exclusiva para ajudar a de avaliação da pós-graduação. Em 1984,
do que o dos smartphones de hoje. Era implantar o curso na UFMG. Foi uma retornei para um pós-doutorado de três
difícil programar. Completei o curso experiência incrível. meses em Waterloo. Enquanto estava lá,
de engenharia mecânica em 1971, mas fui escolhido sucessor do Lucena. Fiquei
sempre trabalhando com programação. Por quê? dois mandatos à frente da área.
No ano seguinte, um amigo, Ivan Mou- Começamos tudo do zero. Decidimos
ra Campos, professor do Departamento como seria o currículo e tivemos que Quais são suas áreas de interesse na
de Matemática da UFMG, me convidou contratar professores. Era um curso dife- computação?
para iniciar um curso de programação rente, com dois anos de duração, intensi- Primeiro dediquei-me a algoritmos e à
de computadores. Foi assim que virei vo e com períodos trimestrais – naquela recuperação de informação [ramo da
professor em tempo parcial. época, os cursos universitários eram to- ciência da computação que lida com o
dos semestrais. O mesmo currículo foi armazenamento de documentos e a recu-
Naquela ocasião já pensava em seguir implementado nas cinco escolas. peração de dados associados a eles], mas
carreira acadêmica? depois derivei para inteligência artificial
Não, não tinha a menor ideia. Depois Foi assim que se tornou um dos pionei- [IA]. Para entender essa guinada, preciso
de formado, junto com as aulas de meio ros na implantação da graduação em falar sobre as principais revoluções in-
período na UFMG, atuei como progra- computação no país? dustriais que ocorreram no passado. A
mador no antigo Banco Nacional. Em Sim. O primeiro vestibular aconteceu no primeira, ainda no século XIX, se deu
1973, o governo lançou um projeto para meio de 1973. Fui o coordenador do cur- com a criação da máquina a vapor, e a

50 | AGOSTO DE 2020
mos uma família de metabuscadores: o
ARQUIVO PESSOAL

BookMiner, para livros, o CDMiner, para


CDs, o SoftMiner, para softwares, entre
outros. Hoje, a indústria de metabusca é
fortíssima. AirBnb, Trivago, MaxMilhas
são exemplos de metabusca. Criamos
nosso mecanismo numa época em que
ninguém sabia como fazer.

Como esse mecanismo se tornou sua


primeira startup?
Tudo começou no Latin. A família Miner
de Agentes para a Web foi um sucesso
e, em pouco tempo, a rede do departa-
mento não dava mais conta. O número de
usuários usando o mecanismo dobrava a
cada 30 dias. Como não dava mais para
manter o sistema nos servidores da uni-
Ziviani (à dir.) reúne-se na UFMG com os criadores do Google, Sergey Brin e Larry Page (os dois à esq.) versidade, negociamos com o UOL, que
passou a hospedar a família Miner. Na
segunda, no início do século passado, de algoritmos. Nós nos encontramos e virada de 1998, ganhamos o iBest [prin-
com a invenção do motor a combustão ele sugeriu que criássemos uma empresa cipal premiação da internet brasileira],
interna e a eletricidade. São tecnologias especializada em algoritmos para buscas como site mais popular e mais tecnológi-
de propósito geral, porque permeiam a em texto, a base dos mecanismos de bus- co. Até ali, a Miner era bancada por mim
vida de todos. A inteligência artificial é a ca. Isso ficou na minha cabeça. Dez anos e pelo Victor. Ele decidiu largar o em-
tecnologia de propósito geral do momen- depois, quando lecionava na UFMG, um prego para se dedicar ao negócio, o que
to – e ela deverá ter o mesmo impacto dos alunos, Victor Ribeiro, desenvolveu é um pré-requisito para o empreendedor
que o motor a combustão e a eletricidade um software, um robozinho que passea- ter sucesso. Eu continuei na UFMG. No
tiveram na história da humanidade. Há, va pela internet e coletava páginas dos início de 1999, abri a Folha de S.Paulo e,
ainda, uma terceira revolução industrial, servidores web de interesse. para minha surpresa, o título da coluna
ocorrida nos anos 1990 com a criação do economista Luis Nassif era “A família
da web por Tim Berners-Lee. Ela nada Era um mecanismo de busca? Miner”. Ele tecia mil elogios ao nosso
mais é do que repositórios de textos. Ao Não, simplesmente um software, um ro- buscador, “uma tecnologia de ponta que
disponibilizar conteúdos e conectar as bô, que tinha essa competência. Criar um nasceu na universidade”. Liguei na hora
pessoas, a web fez com que surgissem mecanismo de busca naquela época era para dois colegas, o Ivan Moura Campos
mecanismos de busca para recuperar as difícil. Ninguém sabia como fazer. De- e o Guilherme Emrick, investidor e cria-
informações depositadas nela. Desde os pois que terminou a disciplina, o Victor dor da Biobrás, fabricante de insulina,
anos 1980 trabalhava com processamen- veio trabalhar comigo no Laboratório e os convenci a investir no negócio. Foi
to de linguagem natural – meu interesse para Tratamento da Informação [Latin], assim que nasceu a Miner.
por essa área começou no doutorado. que eu havia criado nos anos 1980. Um
dia, ele viu um colega fazendo buscas Quanto eles investiram?
Nas décadas de 1990 e 2000 surgiram na internet em livrarias virtuais. Ele en- O valor não foi público, mas foi uma
vários mecanismos de busca. trava em cada uma delas e usava o soft- quantia relativamente pequena. Acon-
Sim. Um dos ícones é o do Google. Foi ware da livraria para tentar encontrar teceu que o UOL ficou muito interessa-
criado em 1998 na Universidade Stanford um livro. O Victor pensou: “Por que eu do na Miner e acabou adquirindo-a, em
[EUA]. Meu orientador, Gaston Gonnet, não uso o meu robô para fazer buscas junho de 1999. Não posso revelar o valor.
desenvolveu em 1993 um dos primeiros em todas as livrarias virtuais ao mesmo O Victor trabalhou muito tempo como
mecanismos de busca da web, que deu tempo, apresentando um resultado úni- diretor de Tecnologia da Informação do
origem a uma das maiores empresas de co ao usuário?”. UOL. Esse foi um dos primeiros cases
TI [Tecnologia da Informação] do Cana- de sucesso de uma startup nascida na
dá, a Open Text Corporation. No total, Ou seja, ele imaginou criar um meca- universidade.
ele criou umas 10 startups. Waterloo é nismo de busca focado em livrarias.
o principal celeiro dessas empresas do Sim, para achar qualquer livro em livra- É verdade que parte do dinheiro re-
Canadá. Ao estudar lá, o vírus do em- rias do Brasil e do exterior. Isso é o que cebido da venda da Miner foi doada
preendedorismo entrou em mim. se chama metabusca: usar mecanismos à UFMG?
de terceiros para coletar páginas dos Sim. Quando criamos o mecanismo de
Voltando ao Brasil, já estava infectado... servidores de cada negócio, fazer a fu- busca no Latin, tentei fazer com que ele
De certa forma, sim. Em 1985, Gaston são dos resultados e apresentá-los ao pertencesse à universidade. Mas havia
veio ao Brasil dar um curso sobre projeto internauta. Esse foi o estopim para criar- muita burocracia, era algo difícil de ser

PESQUISA FAPESP 294 | 51


efetivado. Victor e eu combinamos que Que mecanismo foi esse? os mesmos que anos antes investiram na
se desse certo faríamos uma doação para Criamos uma Akwan S.A. [Sociedade Miner. A Akwan tinha outros dois só-
a UFMG. Por isso, doamos R$ 100 mil – Anônima] e doamos 5% das ações para cios, Marcus Regueira, também da FIR
na época, cerca de US$ 90 mil. a fundação ligada à UFMG, a Fundep. Capital, e Alberto Henrique Laender,
Com isso, eu falava que a universidade professor da UFMG.
O que foi feito com esse dinheiro? era sócia do negócio, o que era uma frase
Sugerimos que fosse dividido em partes: incorreta juridicamente. Naquela época, Como foi o encontro deles com o execu-
uma para modernização do Latin, outra a gente ia para as principais conferên- tivo do Google?
para a criação da biblioteca de pós-gra- cias mundiais, assim como o pessoal do Aconteceu em um hotel no centro de
duação do ICEx [Instituto de Ciências Google. Nesses fóruns, falávamos da ex- Belo Horizonte. Estávamos morrendo
Exatas] e uma terceira para criar uma periência da Akwan. Foi assim que en- de medo de levá-lo à Akwan, porque não
bolsa perene de iniciação científica em tramos no radar da empresa. O Google queríamos que nossos engenheiros o
computação. Esse dinheiro foi alocado tinha acabado de fazer sua IPO [Oferta reconhecessem. Mas ele queria de todo
em uma aplicação financeira pela Fun- Pública de Ações, ocorrida em 2004] e modo ir até a empresa, e o pessoal en-
dep [Fundação de Desenvolvimento da queria se estabelecer na América Latina. rolando. Em certo momento, ele falou:
Pesquisa, da UFMG] e os juros destina- No fim daquele ano, recebemos a visita “Espera aí que eu vou entrar em contato
ram-se à bolsa Miner Latin. do vice-presidente de Engenharia do com Mountain View [cidade onde fica a
Google, Wayne Rosing. sede do Google, na Califórnia]”. Pediu
Logo em seguida à venda da Miner, o para baixar um Non-disclosure Agree-
senhor criou outra startup que acabaria Ele veio aqui em Belo Horizonte? ment [NDA], documento padrão para
sendo comprada pelo Google. Como foi? Sim. Como eu estava na Europa, quem o abrir qualquer negociação, e o assinou.
Em setembro de 1999, eu e o professor recebeu foram o Berthier, diretor-execu- Em seguida, meus sócios o trouxeram
Berthier Ribeiro-Neto, aqui da UFMG, tivo da startup, e os sócios-fundadores para a empresa. A fim de não vazar a
nos encontramos em um evento na Uni- Guilherme Emrich, na época um dos informação de que o Google estava in-
versidade de Berkeley, na Califórnia. Lá donos da consultoria de investimentos teressado na Akwan, dissemos aos pes-
combinamos criar um mecanismo de FIR Capital, e o professor Ivan Campos, quisadores que era uma pessoa qualquer
busca geral, diferente de metabusca. que ia visitar a sede. Só que um dos nos-
Dois meses depois, lançamos a máqui- sos engenheiros tinha participado pou-
na de busca Todobr. Criamos a Akwan cos meses antes da International World
Information Technologies para ser a Wide Web Conference, em Nova York, e
provedora do Todobr e tínhamos como o reconheceu: “Esse cara é do Google”.
clientes grandes grupos, como a Ode- Na hora ocorreu o que não queríamos:
brecht, a Editora Abril e os portais iG a informação vazou.
e UOL. A ferramenta se expandiu para
outros países, como Chile e Espanha. Por que era importante manter o sigilo?
A negociação ainda estava começando.
Qual era o modelo de negócio da Akwan? Havia muitos acertos a serem feitos.
Ao contrário do Google, que era uma Quando o Wayne viu o que era a Ak-
empresa de mídia, a Akwan era uma wan, o que nós fazíamos e a qualidade
provedora de tecnologia. A ferramenta
Todobr obteve grande sucesso. A Ak- A Akwan tinha dos nossos softwares, ele não acredi-
tou. Sob NDA, travamos uma negociação
wan tinha uma área muito forte de P&D que durou mais de seis meses – a venda
[pesquisa e desenvolvimento] e oferecia P&D fortes e concretizou-se em 19 de julho de 2005.
tecnologia de ponta. Isso só foi possível Berthier e Regueira, os negociadores do
porque estávamos atrelados a um grupo
de pesquisa de excelência, como o que
tecnologia nosso lado, foram várias vezes à Cali-
fórnia e se reuniram com o Larry Page,
há até hoje no Departamento de Ciência
da Computação da UFMG. de ponta um dos criadores do Google, que lidava
diretamente com o acordo.

A Akwan, portanto, foi uma spin-off porque estava Seis meses não foi muito tempo?
da UFMG? A negociação durou tanto porque havia
Ela nasceu na sala onde hoje funciona atrelada a muitos detalhes envolvidos. A contrata-
o Laboratório de Inteligência Artificial. ção dos engenheiros era um deles. Como
Mas rapidamente a tiramos de dentro do
campus para um prédio perto da UFMG.
um grupo de o custo de contratação é alto demais no
Brasil, decidimos trabalhar na Akwan
A relação com a universidade continuou
estreita. Com a obstinação de sempre excelência com cooperativas de trabalhadores. Is-
so era comum na época, mas envolvia
fazer tudo corretamente, criei um me- risco trabalhista. O Google queria com-
canismo jurídico peculiar. da universidade prar 100% do negócio, inclusive os 5%

52 | AGOSTO DE 2020
da Fundep. Eles exigiram um documento mercado era limitado. Decidimos fechar
do Conselho Curador da fundação e da as portas e abrir outra empresa.
Promotoria Estadual de Fundações ates-
tando a legalidade da venda de um bem Qual?
da fundação, sem necessidade de dizer Desde 2011, Ela se chamava Neemu e era especializa-
para quem e nem por quanto. da em sistemas de busca para comércio

Qual foi o valor da venda?


a UFMG tem eletrônico. Éramos eu, Edileno, outro
professor da Ufam chamado Altigran
Não posso dizer. Mas foi dinheiro gran-
de. O contrato tinha 10 páginas dizendo
uma peça Soares da Silva e quatro alunos deles
de Manaus. Forte em recuperação da
que ninguém podia revelar o valor. Foi a informação, a Neemu provia tecnologia
primeira empresa comprada pelo Google jurídica que de busca para gigantes do e-commerce,
fora dos Estados Unidos. como Americanas e Shoptime. Em 2014,
facilita 30% do e-commerce brasileiro usava
A Akwan acabou virando o centro de tecnologia da Neemu. No ano seguinte,
P&D do Google no país?
Não apenas do Brasil, mas da América
transferir a Linx, uma das maiores empresas espe-
cializadas em tecnologia para o varejo,
Latina. Ele foi montado em Belo Hori-
zonte, com os engenheiros da Akwan, e tecnologia da decidiu entrar no comércio eletrônico
e fez uma oferta pela Neemu. Oficiali-
depois abriram um escritório comercial zamos a venda, por R$ 55 milhões, em
em São Paulo. O Google já pôs centenas instituição setembro de 2015. Em março do ano se-
de milhões de reais no país. Isso aconte- guinte criamos a Kunumi.
ceu por causa de algo simples, mas que
nem sempre as pessoas percebem a im-
para startups O que exatamente ela faz?
portância, que é mobilizar conhecimento Ela é dedicada à solução de problemas
na academia, gerar tecnologia, transferir complexos por meio da inteligência ar-
para a sociedade, empreender e criar tificial. Nos últimos quatro anos, temos
emprego nobre. A universidade brasilei- aplicado recursos de IA para ajudar em-
ra pode e deve ser um polo gerador de presas na predição de demanda e oferta,
riqueza, por meio de empreendimentos identificação de anomalias, análise de
inovadores. A produção científica brasi- carteiras de produtos de crédito e outros.
leira saltou de 0,8%, do volume global, dá por meio do usufruto sobre 5% das Temos grandes clientes como o Itaú, a
em 1996, para 2,6%, em 2018. Mas isso ações ordinárias nominativas da empre- petroquímica Braskem, a Coca-Cola, a
não gera PIB [Produto Interno Bruto] sa. A UFMG tem os mesmos direitos de Porto Seguro e a rede de farmácias Raia
na proporção que deveria. qualquer acionista, mas não o voto. Com Drogasil. A Kunumi também faz P&D
isso, corta-se o cordão umbilical. Com o com potencial de impacto na sociedade.
Ou seja, a universidade brasileira gera tipo de ação que a universidade tem, se Recentemente fizemos pesquisas que
conhecimento, mas não riqueza? o empreendimento gerar passivo ou der podem ajudar médicos e formulado-
Não como deveria. A universidade pú- errado, a ação vira pó, sem consequência res de políticas públicas a lidar melhor
blica brasileira tem a obrigação moral para a universidade. com a Covid-19. Esse trabalho gerou
de mobilizar o conhecimento para gerar um artigo, em coautoria com o colega
riqueza por meio de empreendimentos Depois da venda da Akwan, o senhor Adriano Veloso, publicado no repositório
inovadores, retornando à sociedade o voltou a empreender... medRxiv em junho.
dinheiro que ela pôs para a formação de Sim, montei quatro anos depois outra
recursos humanos de qualidade. Além startup com um ex-aluno de doutorado, Como é sua rotina hoje na empresa e
de gerar bons profissionais, ela tem que Edileno Silva de Moura, hoje profes- na academia?
produzir riqueza, como ocorre em países sor da Ufam [Universidade Federal do Além de me dedicar à Kunumi, sou pro-
desenvolvidos. Amazonas]. Ele foi o criador do miolo fessor emérito da UFMG. Oriento alunos
de busca do Todobr e trabalhou como e participo de programas de núcleos de
E por que isso não ocorre aqui? engenheiro de software na Akwan. A excelência. No ano passado, fui convida-
A resposta é complexa. Existem vários Zunnit – esse era o nome da startup – era do para integrar o Conselho de Adminis-
entraves legais. Tudo que fiz até o sur- focada em sistema de recomendação, tração da Petrobras. Foi uma surpresa. O
gimento da Akwan foi na base da co- uma subárea da recuperação de infor- presidente Roberto Castello Branco que-
ragem. Os dirigentes da UFMG deram mação. Significa basicamente você re- ria um acadêmico com perfil empreende-
grande apoio. Desde 2011 a universida- comendar para o usuário notícias e in- dor e com conhecimento em inteligência
de tem uma peça jurídica que facilita a formações relacionadas aos interesses artificial. Uma das minhas missões como
transferência de tecnologia do conhe- dele. Mas a Zunnit não deu os resultados conselheiro é ajudar a companhia em
cimento gerado na universidade para que esperávamos, pois na época, 2009, seu processo de transformação digital.
startups. A remuneração da UFMG se com a indústria de jornais em queda, seu Aceitei o desafio com prazer. n

PESQUISA FAPESP 294 | 53


BIBLIOMETRIA

ALCANCE
AMPLIFICADO
Relatório que calcula o fator de impacto
de periódicos científicos evidencia
evolução positiva de revistas do Brasil

Fabrício Marques

JOURNAL OF MATERIALS
RESEARCH AND TECHNOLOGY
ÁREA
METALURGIA,
CIÊNCIA DOS MATERIAIS PERSPECTIVES IN ECOLOGY
AND CONSERVATION
FATOR DE IMPACTO
2017 3,398 ÁREA
2018 3,327 CONSERVAÇÃO DA BIODIVERSIDADE
2019 5,289 FATOR DE IMPACTO
2017 2,766
2018 2,565
2019 3,563
O
Journal Citation Re- ma da editora Elsevier. O problema foi para a plataforma da Elsevier e o patro-
ports (JCR), relatório resolvido quando a Elsevier incorporou cínio da fundação é fundamental para
da empresa Clariva- a revista ao cardápio de títulos de sua custear as despesas e permitir que os au-
te que avalia anual- propriedade, deixando de cobrar pelo tores dos artigos selecionados publiquem
mente o impacto de serviço de publicação. “Com isso, nós, em acesso aberto sem pagar por isso. “Se
milhares de revistas os editores, que trabalhávamos de mo- passarmos a cobrar, tememos afastar au-
científicas do mundo, mostra em sua do voluntário, passamos até a receber tores jovens. Se abrirmos mão do acesso
edição mais recente uma evolução po- um pequeno salário no ano passado.” aberto, podemos perder visibilidade”,
sitiva no desempenho dos periódicos Meyers não esperava tamanho au- diz o editor-chefe Jean Paul Metzger,
do Brasil, apesar de dificuldades de fi- mento no impacto porque o número de ecólogo do Instituto de Biociências da
nanciamento que muitos vêm enfren- artigos publicados cresceu. “A revista Universidade de São Paulo (USP). Ele
tando. Entre cerca de 130 títulos do é de acesso aberto e os autores pagam atribui o aumento do número de fator de
país avaliados, nove tiveram fator de uma taxa para publicar os manuscritos impacto a estratégias adotadas há quatro
impacto (FI) superior a 2. Isso significa selecionados. A editora tem interesse anos, quando a publicação diversificou o
que em 2019 os artigos publicados por em publicar mais artigos e ampliamos a corpo de editores e agilizou a avaliação
eles no biênio anterior foram citados quantidade deles no ano passado. Achei de manuscritos. Alguns artigos que rece-
em periódicos mais do que duas vezes, que o impacto poderia ser diluído”, afir- beram muitas citações estão vinculados
em média. O número de citações é um ma Meyers. A maior parte dos papers à discussão de políticas públicas, como
indicador consagrado para mensurar a vem de países como China, Índia e Irã. o código florestal brasileiro, ou a temas

O
repercussão de um trabalho científico. Meyers vem apostando em artigos sobre de repercussão, como o rompimento da
A performance de 2019 repete a do ano temas emergentes. “Estamos privile- Barragem do Fundão, em Mariana (MG).
anterior e é superior à de 2015, quan- giando assuntos como materiais nano- As revistas editadas por Meyers e
do só três títulos do Brasil superaram cristalinos, soldagem especial e ligas de Metzger são as únicas brasileiras que
a barreira das duas citações por artigo. alta entropia.” pertencem ao extrato mais influente
O principal destaque foi o Journal of A Perspectives in Ecology and Conser- de publicações do Journal Citation Re-
Materials Research and Technology, li- vation também comemora a elevação de ports, o chamado primeiro quartil, que
gado à Associação Brasileira de Meta- seu fator de impacto: de 2,565 em 2018 reúne os 25% de títulos com maior fator
lurgia, Materiais e Mineração, cujo fa- para 3,563 no ano passado. Igualmente, de impacto em suas áreas. O contingen-
tor de impacto subiu de 3,327 em 2018 enfrenta desafios para se financiar. Vin- te é pequeno quando comparado ao de
para 5,289 em 2019, desempenho iné- culado à Associação Brasileira de Ciên- outros países. Os Estados Unidos, com
dito. Segundo o editor-chefe da revis- cia Ecológica e Conservação (Abeco), o mais de 4 mil títulos no JCR, têm cer-
ta, o brasileiro Marc Meyers, professor periódico da área de biodiversidade vai ca de mil entre os de melhor desempe-
da Universidade da Califórnia em San perder a partir de 2021 o patrocínio que nho. “Temos pelo menos uma dezena de
Diego, o aumento ocorreu a despeito da recebe de uma fundação desde seu lan- publicações em condições de alcançar
perda recente do patrocínio de uma mi- çamento, quando se chamava Natureza esse pelotão de elite em algumas áreas
neradora, que pagava o uso da platafor- e Conservação. Há seis anos, ela migrou e deveríamos investir no crescimen-

BRAZILIAN JOURNAL BRAZILIAN JOURNAL


OF MEDICAL AND BIOLOGICAL OF PHYSICAL THERAPY
RESEARCH
ÁREA
ÁREA ORTOPEDIA E REABILITAÇÃO
BIOLOGIA, MEDICINA
FATOR DE IMPACTO
EXPERIMENTAL
DIABETOLOGY & METABOLIC 2017 1,699
SYNDROME FATOR DE IMPACTO 2018 1,879
2017 1,492 2019 2,100
ÁREA 2018 1,850
ENDOCRINOLOGIA E METABOLISMO 2019 2,023
FATOR DE IMPACTO
2017 2,413
2018 2,361
2019 2,709

PESQUISA FAPESP 294 | 55


to da visibilidade delas para ampliar o a metade do corpo editorial é composta Periódicos do Brasil que integram a
impacto da pesquisa feita e comunicada por pesquisadores de instituições de coleção SciELO passaram por um pro-
no Brasil. A maioria tem contribuições fora do país e a divulgação dos artigos cesso de qualificação nos últimos 15
decisivas para o avanço da pesquisa do vem sendo reforçada nas mídias sociais. anos: boa parte deles começou a publi-
Brasil em contextos altamente compe- Segundo ela, a descrição de novas espé- car artigos apenas em inglês, atraindo
titivos e sem condições que favoreçam cies é frequente, mas esse tipo de achado mais autores do exterior, e a adotar es-
o aumento rápido do fator de impacto”, rende poucas citações. Para ampliar o tratégias de divulgação de sua produ-
afirma Abel Packer, coordenador da bi- interesse, a revista passou a incluir o ção. “Os periódicos que se saíram me-
blioteca SciELO Brasil, iniciativa criada status de conservação de espécies des- lhor são aqueles cujos editores tomaram
pela FAPESP em 1997 que hoje reúne cobertas, alertando se estão em risco de medidas concretas de governança no
quase 300 revistas de acesso aberto. En- extinção. “Isso atrai o interesse de pes- sentido de aumentar a visibilidade in-
tre aquelas com desempenho consolida- quisadores do campo da conservação.” ternacional mantendo o foco no desen-
do, destacam-se Scientia Agrícola, das Pavanelli atribui o crescimento do volvimento da pesquisa do Brasil e pu-
ciências agrárias, e Memórias do Insti- fator de impacto a um processo cumu- blicação em acesso aberto”, diz Packer.
tuto Oswaldo Cruz, da área de medicina lativo de conquista de prestígio. “Te- Um exemplo é uma revista da área de
tropical e parasitologia humana, ambas nho críticas ao uso do fator de impacto, engenharia de alimentos, a Food Science
da coleção SciELO. mas o fato é que ele é um parâmetro de and Technology, que internacionalizou

A
avaliação nos nossos programas de pós- seu corpo editorial e ampliou o rigor na
zoologia é outra área -graduação. E, quando o impacto de uma seleção de artigos. “Nossa taxa de rejei-
profícua em revistas revista aumenta, ela chama a atenção e ção cresceu – hoje supera os 60% dos
do Brasil. Dos 168 atrai mais trabalhos de qualidade”, ex- artigos recebidos – e colocamos pesqui-
periódicos dessa área plica. Para Packer, da SciELO, “a capaci- sadores de várias partes do mundo no
catalogados no mundo dade nacional de fazer boa pesquisa se nosso corpo editorial, além de adicionar
pelo JCR, oito são do traduz também na capacidade de fazer editores associados. Agora colhemos
país e três estão próximos de alcançar periódicos de alto impacto” e um entra- os frutos”, diz o editor-chefe Adriano
o primeiro quartil. Um dos destaques é ve para o desempenho dos periódicos Cruz, professor do Instituto Federal de
a Neotropical Ichthyology, dedicada ao do país é a política de avaliação da pós- Educação, Ciência e Tecnologia do Rio
estudo de peixes das Américas do Sul -graduação do Brasil, que recompensa de Janeiro. O fator de impacto subiu de
e Central. Publicada em acesso aberto melhor pesquisadores que conseguem 1,084 em 2017 para 1,443 em 2019.
desde 2003 pela Sociedade Brasileira publicar em títulos de alto impacto do Um exemplo de renovação é o Bra-
de Ictiologia, alcançou um fator de im- exterior. “Isso faz com que as boas pu- zilian Journal of Medical and Biological
pacto de 1,741 neste ano, recorde em blicações de qualidade do Brasil tenham Research, que obteve em 2019 um fator
sua trajetória. Segundo a editora-chefe dificuldade de atrair os melhores artigos de impacto de 2,023, o mais elevado em
Carla Pavanelli, bióloga da Universidade dos nossos pesquisadores. Muitas vezes seus 40 anos de trajetória. Editado pe-
Estadual de Maringá, a publicação tem essa barreira é superada com artigos de la Associação Brasileira de Divulgação
buscado ampliar sua visibilidade. Quase qualidade do exterior”, explica. Científica, federação de sociedades cien-

JOURNAL OF THE BRAZILIAN NEOTROPICAL ICHTHYOLOGY


SOCIETY OF MECHANICAL
ÁREA
SCIENCES AND ENGINEERING
ZOOLOGIA
ÁREA
FATOR DE IMPACTO
ENGENHARIA MECÂNICA
2017 1,216
FATOR DE IMPACTO 2018 1,543
2017 1,627 2019 1,741
2018 1,743
2019 1,755

56 | AGOSTO DE 2020
tíficas de várias áreas do conhecimento, Entre os periódicos do Brasil que am- o acesso não só aos acadêmicos e pes-
o periódico vem ampliando seus tópi- pliaram seu desempenho, há exemplos quisadores, mas também aos fisiotera-
cos de interesse. “A revista conseguiu que adotaram um modelo de publica- peutas da área clínica”, afirma.
manter o tônus nas áreas em que tem ção híbrido, com acesso restrito a as- Esse caminho também foi trilhado
tradição, como farmacologia e fisiolo- sinantes por tempo a ser determinado pelo Journal of the Brazilian Society of
gia, e começou a trazer trabalhos sobre pela editora, a menos que os autores Mechanical Sciences and Engineering,
câncer, epidemiologia e biologia mole- paguem uma taxa para disponibilizar cujo fator de impacto subiu de 1,627 em
cular, e alguns em biologia”, diz o he- seus papers de forma aberta na internet. 2017 para 1,755 em 2019. O desempe-
matologista Eduardo Magalhães Rego, O Brazilian Journal of Physical Therapy nho começou a crescer com sua trans-
editor-chefe e professor da Faculdade ampliou seu fator de impacto de 1,226 ferência para uma editora comercial, a
de Medicina da USP. “A estratégia não em 2016, quando funcionava em aces- Springer, há oito anos. “Passamos a re-
foi criada para aumentar a pontuação, so aberto, para 1,699 no ano seguin- ceber um volume maior de artigos”, diz
mas para publicar trabalhos relevantes te, quando adotou o modelo híbrido e o editor-chefe Marcelo Areias Trindade,
e tornar a revista mais atraente.” passou a ser editado pela Elsevier. No da Escola de Engenharia de São Carlos

H
JCR de 2019, o índice alcançou 2,100. A da USP. Segundo ele, 5% das submissões
á uma singularidade em melhora é atribuída a estratégias ado- em 2019 vieram do sistema Transfer-
sua trajetória: com seu tadas ainda nos tempos em que per- Desk, da Springer, que envia manus-
espectro variado de as- tencia à coleção SciELO. Em 2016, ele critos rejeitados por estarem fora do
suntos e fator de impac- deixou de ser bilíngue para publicar escopo de uma publicação para outros
to em alta, ela foi des- apenas em inglês. Mais recentemente, títulos da editora em que se encaixem
coberta por autores da ganhou quatro editores-chefes; um de- melhor. “Isso aumenta a visibilidade
China, que em número cada vez maior les é o canadense Guy Simoneau, que porque mais autores passam a consi-
submetem seus manuscritos a ponto editou o prestigioso Journal of Ortho- derar a revista como opção”, explica.
de se tornarem maioria entre os papers paedic & Sports Physical Therapy, atual- Segundo ele, a decisão de adotar o mo-
aceitos. “Há um fator importante que é mente com fator de impacto 3,839. De delo híbrido foi estratégica. A Associa-
a experiência que os autores chineses acordo com a editora-chefe Paula Re- ção Brasileira de Engenharia e Ciên-
tiveram conosco. Eles têm segurança de zende Camargo, do Departamento de cias Mecânicas ressentia-se do custo
que receberão uma revisão adequada”, Fisioterapia da Universidade Federal de editar o periódico e de seu impacto
diz Rego, que implementou mudanças de São Carlos, o modelo híbrido não limitado. “Com a mudança, os dois pro-
no passado recente para tornar mais atrapalhou a visibilidade da revista. blemas foram equacionados.” Embora
rápido o processo de avaliação e a res- “As universidades têm assinaturas dos 80% dos artigos venham do exterior,
posta a autores que submetem trabalhos. periódicos por meio do Science Direct. Trindade preocupa-se com a quantida-
Segundo o editor, a quantidade de tra- Além disso, o embargo de um ano im- de restrita de manuscritos dos grandes
balhos competitivos vindos da China posto pela Elsevier aos artigos recém- centros produtores de conhecimento.
impressiona. “É um retrato de como a -publicados vem sendo na prática de “Queremos mais artigos da Europa e
ciência vem evoluindo naquele país.” poucas semanas. Isso também facilita dos Estados Unidos”, diz. n

SCIENTIA AGRICOLA
ÁREA
AGRICULTURA
FATOR DE IMPACTO
2017 1,383
2018 1,434
2019 1,625

FOOD SCIENCE
AND TECHNOLOGY
ÁREA
CIÊNCIA DOS ALIMENTOS
FATOR DE IMPACTO
2017 1,084
2018 1,223
2019 1,443

PESQUISA FAPESP 294 | 57


ARQUEOLOGIA

HÁ 30
1

MIL ANOS
NAS Coleta de sedimentos
no interior da

AMÉRICAS
caverna Chiquihuite,
no México, e um dos
1.900 artefatos de
pedra que teriam sido
trabalhados por mãos
humanas (ao lado)

58 | AGOSTO DE 2020
Caverna mexicana sugere presença mais antiga
do homem no continente e reforça importância de
evidências fornecidas por sítios brasileiros

Marcos Pivetta

T
rabalhos recentes colocaram o Mé- francês Denis Vialou, e de colaboradores, fez es-
xico no centro do debate sobre a cavações no abrigo Santa Elina, distante cerca de
chegada do homem moderno às 80 quilômetros a noroeste de Cuiabá.
Américas, com repercussões que Um dos estudos publicados na Nature apre-
podem ser benéficas para aumen- senta mais de 1.900 artefatos de pedra (pontas,
tar a visibilidade e o prestígio in- lâminas e lascas), aparentemente trabalhados por
ternacional de sítios arqueológicos brasileiros, mãos humanas, encontrados em um sítio arqueo-
como os do Piauí e de Mato Grosso. Segundo dois lógico situado a 2.700 metros acima do nível do
artigos publicados no final de julho na revista mar no estado mexicano de Zacatecas, a caver-
científica Nature, um deles com participação na Chiquihuite. Segundo os autores do artigo, as
de pesquisadores da Universidade de São Paulo peças (e, de forma menos eloquente, vestígios de
(USP), artefatos de pedra encontrados na caverna plantas, animais e fogueiras) indicam que o lugar
Chiquihuite, no centro-norte do México, indicam teria sido ocupado de forma intermitente entre
que o Homo sapiens estava ali por volta de 33 30 mil e 13 mil anos atrás. “A caverna deve ter
mil anos atrás, ainda antes do início do Último sido usada como um abrigo de inverno ou verão
Máximo Glacial (UMG). Esse período, entre 26,5 por diferentes populações, não como moradia
mil e 19 mil anos atrás, representa o intervalo fixa”, diz, em entrevista a Pesquisa FAPESP, o
de tempo, durante a mais recente glaciação, em arqueólogo Ciprian Ardelean, da Universidade
que as geleiras atingiram sua maior extensão no Autônoma de Zacatecas e da Universidade de
globo terrestre. Os estudos sugerem que a ocu- Exeter, no Reino Unido, principal autor do artigo.
pação do continente por grupos humanos pode “Ali dentro a temperatura é constante, por vol-
ter mais do que o dobro do tempo sustentado ta de 12 graus Celsius [ºC], independentemente
pelas teorias tradicionais. das condições externas.” Não foram localizadas
Embora cada vez mais questionada ao longo ossadas nem DNA hu-
das últimas décadas, a tese historicamente domi- mano em Chiquihuite.
nante na arqueologia norte-americana defende Escavada pela pri-
que a primeira cultura estabelecida no continen- meira vez em 2012 e
te teria sido a de Clóvis, preservada em sítios de mais recentemente
cerca de 13 mil anos, ricos em pontas de lança entre 2016 e 2017, a
bifaciais, situados no estado norte-americano caverna forneceu in-
do Novo México. Antes dos achados recentes dícios de que grupos
no México, o sítio de Monte Verde, no Chile, já humanos teriam ha-
sinalizava uma presença humana no continente bitado a região mon-
acima de 18 mil anos, e os da serra da Capiva- tanhosa antes, durante
FOTOS 1 DEVLIN A. GANDY 2 CIPRIAN ARDELEAN

ra, no Piauí, e de Santa Elina, em Mato Grosso, e depois do UMG. De


apresentavam indústria lítica, rochas modifica- difícil acesso, o local
das por mãos do Homo sapiens, datadas em, no é hoje dominado por
mínimo, 20 mil anos (ver Pesquisa FAPESP nº narcotraficantes. Ar-
264). “Esses trabalhos no México devem cor- delean e seus colegas
roborar a compreensão dos sítios brasileiros da reconhecem que a pre-
mesma época”, diz a arqueóloga brasileira Águeda sença de nativos das
Vialou, do Museu Nacional de História Natural Américas na caverna
da França, que, ao lado do marido, o arqueólogo não teria sido frequen-
2

PESQUISA FAPESP 294 | 59


te antes do UMG (eles encontraram poucos ar- uma cronologia aproximada para a ocupação de
tefatos de pedra que teriam idade superior a diferentes partes da região e também sinaliza que
26,5 mil anos), mas dizem que as evidências de havia grupos humanos antes, durante e depois do
uma ocupação muito antiga são consistentes. UMG, ou seja, há pelo menos 30 mil anos.

M
Foram feitas 49 datações de sedimentos, ossos
de animais e carvões de fogueiras achados no as apenas depois de uma for-
interior do abrigo. te mudança climática a pre-
A arqueóloga britânica Jennifer Watling, pes- sença humana teria ganhado
quisadora responsável por projeto no programa mais corpo. A América do
Jovem Pesquisador da FAPESP no Museu de Ar- Norte teria sido povoada por
queologia e Etnologia (MAE) da USP, é um dos completo somente cerca de 15
28 coautores do estudo, ao lado do paleoecólogo mil anos atrás, quando as temperaturas subiram
Paulo Eduardo de Oliveira, do Laboratório de no fim da Idade do Gelo. “Três grandes tradições
Micropaleontologia do Instituto de Geociências de artefatos de pedra se expandiram de forma
(IGc) da USP, e da palinóloga Vanda Brito de Me- quase sincronizada nessa época, a cultura Clóvis,
deiros, cujo doutorado foi orientado por Oliveira. a da Beríngia e a Ocidental, na costa oeste”, ex-
O trio de pesquisadores da instituição paulista plica para esta reportagem a arqueóloga chilena
fez a reconstituição das plantas que deveriam Lorena Becerra-Valdivia, da Universidade de
existir ou foram levadas para dentro da caverna Nova Gales do Sul, da Austrália, e da Universidade
a partir de vestígios de pólen e de fitólitos, es- de Oxford, no Reino Unido, principal autora do
truturas microscópicas compostas de dióxido de estudo. Os artefatos de pedra achados na caverna
silício, que se preservam como testemunhos de mexicana, no entanto, não parecem ter relação
espécies vegetais do passado. Além de fitólitos com nenhuma dessas três culturas líticas. Antes
mais escurecidos do que o normal (uma pista de da descoberta na caverna Chiquihuite, apenas um
que o abrigo pode ter sido palco de fogueiras), a sítio da América do Norte, as cavernas Bluefish,
caverna apresentava resíduos de palmeiras. Es- no Canadá, tinha evidências, bastante contro-
sa planta é considerada muito útil para os seres versas, de ocupação humana por volta de 24 mil
humanos e dificilmente teria chegado ao abrigo anos: milhares de ossos quebrados de animais e
por meios naturais. “Hoje há pouquíssimas pal- algumas peças do que seria uma indústria lítica.
meiras naquela região. Podemos supor que, em De acordo com Becerra-Valdivia, a expansão
uma época mais fria, o hábitat delas era ainda do povoamento na América do Norte por volta
mais longe”, comenta Watling. de 15 mil anos atrás pode ter contribuído para
Os autores do estudo no México evitam espe- o desaparecimento de espécies da megafauna,
cular sobre quem seriam os povos que passavam como mamutes e alguns tipos de camelos e de
temporadas na caverna, de onde vieram e para cavalos, embora não possa ser descartada a in-
onde foram. O segundo estudo publicado na Na- fluência das mudanças climáticas. “Nosso traba-
ture fornece algumas hipóteses para essa questão. lho sugere que as dispersões iniciais de grupos
Nesse trabalho, foi feita uma análise estatística a humanos no continente ocorreram entre 57 mil e
partir de datações obtidas em 42 sítios arqueoló- 29 mil anos atrás, quando a Beríngia estava com-
gicos da América do Norte (inclusive da caverna pleta ou parcialmente debaixo d’água”, explica a
em Zacatecas) e da antiga Beríngia, região que arqueóloga. Se a hipótese estiver correta, ganha
ligava a Sibéria, na Rússia, ao Alasca, nos Estados ainda mais relevância a teoria alternativa de que
Unidos (hoje mais ou menos equivalente ao es- as primeiras levas de Homo sapiens teriam en-
treito de Bering). O conjunto de sítios forneceu trado na América do Norte pela via costeira do

Pontas de lança
produzidas pela
chamada cultura Clóvis,
que ocupou por volta
de 13 mil anos atrás
a região do atual
estado norte-americano
do Novo México
1

60 | AGOSTO DE 2020
Pintura rupestre na serra da
Capivara, no Piauí, e indústria lítica
encontrada no sítio de Santa Elina,
em Mato Grosso: duas regiões
do país com sinais de ocupação
humana há mais de 20 mil anos

2 4

Pacífico, descendo o continente pelo litoral. Não centro de Mato Grosso [o abrigo de pedras Santa
é uma ideia fácil de ser comprovada, visto que Elina], apesar de habilmente escavados e anali-
a linha do mar subiu e os sítios arqueológicos sados, são usualmente questionados ou simples-
dessa rota litorânea estariam submersos pelas mente ignorados pela maioria dos arqueólogos
águas dos oceanos. como velhos demais para serem reais”, escreve

S
Ruth Gruhn, professora emérita do Departamen-
ítios que não apresentam esqueletos to de Antropologia da Universidade de Alberta,
de Homo sapiens bem preservados, no Canadá, em artigo de comentário também
que possam ser datados de forma publicado em julho na Nature. “Os achados na
direta, quase sempre são alvo de caverna Chiquihuite trarão novas considerações
polêmicas. Essa situação é quase a sobre esse tema.”
regra quanto mais se recua no tem- O arqueólogo Eduardo Góes Neves, do MAE-
po. Nesses casos, os pesquisadores recorrem a -USP, que não participou dos estudos publicados
datações indiretas da presença humana. Em geral, na Nature, destaca que as evidências provenientes
montam uma cronologia de ocupação a partir da caverna mexicana, assim como as produzidas
da idade das camadas geológicas em que foram no Piauí, em Mato Grosso e em outros lugares,
achados objetos que teriam sido modificados jogam luz sobre outro problema relativo ao pro-
pelas mãos do homem, como peças de pedra e cesso de povoamento das Américas. “Os estudos
ossos de animais, ou datam vestígios orgânicos de genética indicam cronologias mais recentes
da ocupação, como fogueiras de origem antrópica para a entrada do homem nas Américas, no má-
FOTOS 1 BILL WHITTAKER / WIKIMEDIA COMMONS 2, 3 E 4 LÉO RAMOS CHAVES

ou dejetos e resíduos típicos produzidos no dia a ximo por volta de 18 mil anos atrás”, comenta
dia. Rica em pinturas rupestres, a região da serra Góes Neves, especialista em arqueologia ama-
da Capivara no Piauí, por exemplo, até apresenta zônica. Em sua visão, esse descompasso entre o
esqueletos humanos, mas o mais velho, apelida- que a arqueologia indica e a biologia molecular
do de Zuzu, não passa de 10 mil anos, enquanto sinaliza poderia ser explicado de duas maneiras.
a indústria lítica apontaria para uma presença “Ou as técnicas moleculares ainda precisam ser
humana bem mais antiga. refinadas ou as populações antigas não deixaram
A exemplo dos brasileiros, alguns pesquisa- um registro genético visível nas populações con-
dores do exterior também reconhecem que o temporâneas”, diz o arqueólogo. n
interesse por sítios da América do Sul pode ser
renovado, sobretudo entre estudiosos radicados
acima da linha do Equador, após as evidências Artigos científicos
produzidas pela caverna em Zacatecas. “Seis sí- ARDELEAN, C. F. et al. Evidence of human occupation in Mexico around
the Last Glacial Maximum. Nature. 22 jul. 2020.
tios arqueológicos brasileiros datados com mais BECERRA-VALDIVIA, L. e HIGHAM, T. The timing and effect of the
de 20 mil anos, cinco no estado do Piauí e um no earliest human arrivals in North America. Nature. 22 jul. 2020.

PESQUISA FAPESP 294 | 61


GENÉTICA

COMO
NOSSOS
FILHOS
Primeiros povos nativos das Américas
teriam traços físicos similares aos
das populações indígenas atuais – olhos
castanhos, cabelos pretos e pele morena
Frances Jones Análises genéticas
sugerem que aparência
dos indígenas não mudou
significativamente
nos últimos 11 mil anos

62 | AGOSTO DE 2020
A
cor dos olhos, cabelos e Paulo (FFCLRP-USP) e coordenador do da população contemporânea do leste
pele dos primeiros habi- estudo. “Muitos genes atuam para de- asiático”, afirma a bióloga.
tantes das Américas, que terminar o nível de melanina em cada A análise do DNA dos sete nativos
aqui chegaram milhares indivíduo.” Melanina é o termo genéri- ancestrais sugere, no entanto, que não
de anos antes do desem- co usado para designar um conjunto de haveria diferenças significativas entre a
barque de Cristóvão Colombo, no final pigmentos naturais que dão a tonalidade aparência dos primeiros habitantes das
do século XV, provavelmente seguia o desses traços físicos. No estudo, foram Américas e a dos indígenas de hoje. “Co-
padrão observado nas populações indí- analisados 61 marcadores genéticos em mo a reconstituição do rosto de Luzia foi
genas contemporâneas do continente. A cada um dos genomas analisados. “Não feita de argila, que é escura, muita gente
conclusão é de um estudo coordenado tivemos indivíduos que fugiram do espe- pensa que ela era negra. A pele indígena
por pesquisadores brasileiros, cujos re- rado. Constatamos apenas que indígenas é mais escura, quando comparada com
sultados foram divulgados em um artigo ancestrais apresentavam características a dos europeus, mas não é negra, como
científico em junho na revista Forensic um pouco mais homogêneas do que os nosso trabalho indica”, comenta Hüne-
Science International: Genetics. A maioria atuais”, diz Mendes Junior. meier. Os resultados de trabalhos que
dos membros desses povos nativos das Uma das finalidades do estudo, realiza- tentam inferir traços físicos a partir de
Américas teria olhos castanhos, cabelos do no Laboratório de Pesquisas Forenses análises de DNA ancestral são sempre
pretos e pele morena, de acordo com o e Genômicas da USP em Ribeirão Preto, alvo de polêmicas. Segundo um estudo
trabalho, que analisou material genéti- foi testar ferramentas de predição de fe- feito em 2012, do qual a pesquisadora
co de sete indivíduos que viveram entre nótipos da população atual para uso na da USP é um dos coautores, a maioria
11 mil e pouco mais de 500 anos atrás. resolução de crimes. Outra motivação foi dos neandertais – hominídeo extinto há
A investigação usou oito ferramentas a busca por mais elementos para funda- cerca de 30 mil anos – teria olhos casta-
da genética forense para predizer as ca- mentar a reconstrução da história dos nhos, e não azuis, como supõe boa parte
racterísticas físicas visíveis (fenótipos) primeiros povos que habitaram as Amé- dos estudiosos dessa espécie.
associadas à pigmentação dos nativos ricas. “Queríamos ver se havia diferenças Para a geneticista Maria Cátira Bor-
americanos ancestrais e comparou os na pigmentação da amostra de indivíduos tolini, da Universidade Federal do Rio
resultados com a população atual de in- que compuseram a chamada primeira on- Grande do Sul (UFRGS), que não partici-
dígenas do continente. Os dois principais da migratória para o continente, há mais pou do estudo da USP, os autores fizeram
métodos empregados foram HlrisPlex- de 13 mil anos, e dos nativos americanos um trabalho muito interessante na me-
-S e Snipper, que apresentam índices de atuais, cujos ancestrais diretos estão aqui dida em que compararam os resultados
acerto entre 70% e 90% quando utiliza- há pelo menos 6 mil anos”, afirma a bió- de mais de um modelo de predição de
REPRODUÇÃO DA TELA TOCAIA (2014), DE CARMÉZIA EMILIANO. ÓLEO SOBRE TELA, 80 × 80 CM, ACERVO AUGUSTO LUITGARDS

dos para determinar a cor da pele, do ca- loga Tábita Hünemeier, do Instituto de fenótipos entre populações ancestrais e
belo e dos olhos em populações atuais de Biociências (IB) da USP, coautora do es- atuais de indígenas das Américas. “Isso
origem europeia. No estudo, foram anali- tudo. “Concluímos que não houve grande é de uma importância muito grande pa-
sados inicialmente dados de 27 indígenas variação nesse quesito.” ra a genética forense, que busca ferra-

H
contemporâneos e de 20 da época pré- mentas confiáveis de uso mais universal
-colonial. O genoma desses indivíduos á variações conhecidas nas nessa área”, diz Bortolini. Desenvolvidos
foi sequenciado e tornado de domínio medidas craniofaciais entre por pesquisadores europeus, os modelos
público por outros projetos científicos. os grupos que vieram na su- HlrisPlex-S e Snipper apresentaram, en-
Do grupo dos indígenas ancestrais, no posta primeira grande onda tre as populações contemporâneas, certa
entanto, apenas sete forneceram infor- e os que entraram mais tarde dificuldade em classificar fenótipos con-
mações genéticas com qualidade sufi- no continente. Segundo alguns autores, a siderados intermediários, como olhos
ciente para embasar a predição de fenó- leva inicial teria dado origem, entre ou- verdes ou cor de mel ou tonalidades de
tipos: as amostras de sítios arqueológicos tros, aos indivíduos cujos vestígios fo- pele entre a branca e a negra. n
da Groenlândia, estado norte-americano ram encontrados em Lagoa Santa e aos
de Nevada (três indivíduos), Argentina, integrantes da chamada cultura Clóvis,
Chile e da região mineira de Lagoa Santa associada a um conjunto de sítios arqueo- Projeto
(uma ossada de 10 mil anos). lógicos localizados no Novo México, Es- Sequenciamento de nova geração das regiões regula-
tórias e exônicas de 10 genes envolvidos na biossín-
“A cor da pele, olhos e cabelo não é de- tados Unidos. “Todos esses indivíduos, tese de melanina em amostra da população brasileira
corrente da ação de um único gene. Essa incluindo o povo de Luzia [crânio de 11 (nº 13/15447-0); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular;
é uma característica complexa”, explica mil anos achado em Lagoa Santa], teriam Pesquisador responsável Celso Teixeira Mendes Junior
(USP); Investimento R$ 338.531,88.
o biólogo Celso Teixeira Mendes Junior, características físicas que não se parecem
Artigo científico
do Departamento de Química da Facul- muito com os indígenas atuais. Eles não
CARRATO, T. M. T. et al. Insights on hair, skin and eye
dade de Filosofia, Ciências e Letras de teriam, por exemplo, os olhos puxados color of ancient and contemporary Native Americans.
Ribeirão Preto da Universidade de São e outros traços que se assemelham aos Forensic Science International: Genetics. 11 jun. 2020.

PESQUISA FAPESP 294 | 63


PALEONTOLOGIA

O MAIS
D
urante uma viagem para
coleta de amostras pelo
interior de Santa Catarina

ANTIGO
em 2005, a paleontóloga
Frésia Ricardi Branco pa-
rou o carro na beira de um trecho da

ESCORPIÃO estrada BR 280 nos arredores de Ca-


noinhas, perto da divisa com o Paraná,
para procurar uma espécie extinta de

DA AMÉRICA conífera, semelhante a um pinheiro, co-


mumente encontrada na região, Krau-

DO SUL
selcladus canoinhensis. Especialista em
plantas fósseis, a professora do Instituto
de Geociências da Universidade Estadual
de Campinas (IG-Unicamp) tinha sido
Fóssil de artrópode de 260 milhões instruída por um colega a vasculhar os
afloramentos próximos ao acostamento
de anos foi encontrado em da rodovia onde haveria fartos vestígios
das antigas coníferas. A parada se justi-
afloramento de beira de estrada ficava porque dois alunos de mestrado
no interior de Santa Catarina sob sua orientação, que estavam no veí-
culo com Branco e mais um pesquisador,
Eduardo Geraque iriam estudar o antigo pinheiro. “Logo

Fóssil da nova
espécie, Suraju itayma,
que media apenas
4 centímetros
de comprimento
descobrimos os fósseis e coletamos tudo seu par de pedipalpos, apêndices articu-
que coube no já lotado automóvel”, lem- lados que saem da boca e são usados para
bra a paleobotânica. aprisionar animais de maior porte, fosse
De volta à Unicamp, uma semana de- bastante grande para aniquilar sozinho
pois, ao olhar as amostras recolhidas na seus oponentes. Provavelmente, nunca se
viagem, um dos alunos se surpreendeu saberá ao certo, visto que os pedipalpos
ao notar que, além de vestígios da co- não foram preservados no fóssil coletado
nífera de Canoinhas, havia um registro em Santa Catarina. Reconstituição artística do escorpião
fóssil de um diminuto escorpião, cuja Traços da anatomia indicam que a no-
parte inferior do corpo havia sido pre- va espécie tinha hábitos terrestres. Ela
servada em uma rocha. No entanto, a im- apresenta estruturas denominadas estig- de anos e foi descoberta na África do Sul
pressão achatada do artrópode ficaria 10 mas respiratórios, buracos por onde o ar em 2013. Esse escorpião é considerado o
anos na coleção do IG sem ser estudada. entra, uma adaptação à vida fora do meio mais antigo animal terrestre a ter vivido
Em 2015, o biólogo e paleoartista Ariel líquido similar à dos escorpiões atuais. no supercontinente austral Gondwana.

N
Milani Martine começou a trabalhar, A adaptação do grupo ao ambiente ter-
orientado por Branco, com a amostra de restre é alvo de discussões científicas. aquela época, todos os
escorpião durante seu doutorado sobre Alguns estudos defendem a tese de que blocos de terra firme esta-
descrições e reconstruções de aracní- os escorpiões surgiram nos oceanos e, vam unidos em um único
deos fósseis do Brasil. Agora, cinco anos em seguida, migraram para a terra fir- supercontinente, Pangea.
mais tarde, Martine foi o principal autor me. Outros propõem que se originaram Sua metade norte é deno-
de um artigo científico publicado em em ambientes de água doce. “Todos os minada Laurásia e tinha um clima seco.
abril no Journal of South American Earth artrópodes tinham muitas característi- Mais úmida, a porção sul, Gondwana,
Sciences com a descrição do exemplar, cas para se dar bem no meio terrestre, reunia a América do Sul, a África, a
cujo comprimento total não passava de como esse novo fóssil demonstra”, ex- Oceania e a Antártida, entre outras por-
4 centímetros. Trata-se de uma nova es- plica Branco. “Eles não precisavam co- ções menores de terra. “A maioria das
pécie de escorpião, batizada de Suraju mer nem beber água a todo momento espécies fósseis de escorpiões foi des-
itayma, que viveu entre 270 milhões e e apresentavam um exoesqueleto que coberta em terras do hemisfério Norte,
260 milhões de anos atrás, perto do final preservava a umidade e os protegia do que formavam a Laurásia”, afirma o
da era geológica denominada Paleozoi- sol. Toda a estrutura de deslocamento paleontólogo Rob Gess, da Universi-
co. “É o mais antigo fóssil de escorpião era ainda preparada para subir ou descer dade de Witwatersrand, em Johanes-
encontrado na América do Sul”, afirma rochas, ou seja, viver em um ambiente burgo, na África do Sul, que descreveu
Martine, hoje professor na Universidade nem um pouco estável, diferentemente G. emzantsiensis. Segundo o pesquisa-
Estadual do Norte do Paraná (Uenp), que do meio aquático.” Em terra, também dor, descobertas como a feita no Brasil
também fez o desenho com a reconsti- não lhes faltava alimento. Comiam pe- podem indicar que estágios importan-
tuição artística do artrópode. quenos artrópodes. tes da evolução dos escorpiões tam-
Suraju era como os índios Tupi chama- Vestígios paleontológicos de escor- bém ocorreram no Gondwana. “É par-
vam os escorpiões. O termo itá remete a piões, grupo que deve ter surgido há ticularmente interessante que essa nova
pedra e yma a algo do passado remoto. cerca de 430 milhões de anos no hemis- espécie tenha muitas semelhanças com
Então o nome científico da nova espécie fério Norte, são raros em todo o mundo. seus contemporâneos da Laurásia. Isso
significaria escorpião da rocha antiga. No Brasil, além de S. itayma, há rastros nos leva a pensar que novas linhagens
Uma de suas características mais inte- deixados por esses artrópodes em rochas do grupo podem ter migrado a partir do
ressantes é a presença de um aguilhão, do final do Cretáceo na bacia de Bauru, Gondwana”, afirma Gess. n
estrutura usada para inocular veneno, no Sudeste, e duas espécies extintas, do
extremamente pequeno, de 0,2 milíme- mesmo período geológico, foram achadas
tro. “Entre todas as espécies de escor- na bacia do Araripe, no Nordeste. A idade
piões, incluindo as vivas, essa é a que desses registros anteriores oscila entre Projeto
FOTO E ILUSTRAÇÃO ARIEL MILANI MARTINE

tem o ferrão mais reduzido”, comenta 130 milhões e 100 milhões de anos, bem Estudos de acumulações modernas e fósseis de bioclastos
em ambientes continentais e costeiros (nº 16/20927-0);
Martine. O tamanho quase imperceptível mais novos do que o escorpião de Canoi- Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisadora
da estrutura pode ser um indicativo do nhas. A espécie fóssil de Santa Catarina responsável Frésia Ricardi Branco (Unicamp); Investi-
comportamento do animal, segundo os é a segunda do Paleozoico (entre 541 mi- mento R$ 86.846,00.

pesquisadores. Talvez o escorpião não lhões e 245 milhões de anos atrás) en-
Artigo científico
tivesse necessidade de inocular veneno contrada no hemisfério Sul. A primeira,
MARTINE, A. M. et al. Suraju itayma: The first paleozoic
em suas presas, que seriam ainda muito denominada Gondwanascorpio emzant- fossil scorpion in South America. Journal of South Ame-
menores do que ele. Outra hipótese é que siensis, viveu há cerca de 360 milhões rican Earth Sciences. 10 abr. 2020.

PESQUISA FAPESP 294 | 65


BIOLOGIA

UMA
DOSE DE
DARWIN
NA
TAXONOMIA
Nova forma de classificar
os seres vivos privilegia a história
evolutiva e abandona as divisões
da classificação de Lineu

Marcos Pivetta
1

66 | AGOSTO DE 2020
D
ois livros lançados em junho sis- nas de colaboradores do Phylonyms, figuram três
tematizam uma proposta alterna- pesquisadores de instituições brasileiras como
tiva de classificar os seres vivos a autores principais da definição de certos grupos
partir de sua história evolutiva, de organismo. O paleontólogo Max Langer, da
de suas relações de ascendência Universidade de São Paulo (USP), campus de Ri-
e descendência, independente- beirão Preto, coordenou a elaboração do texto so-
mente de suas características anatômicas e sem o bre dinossauros e também assina aqueles sobre os
emprego das tradicionais categorias taxonômicas clados Saurischia e Sauropodomorpha. Em dupla
hierárquicas, como domínios, reinos, filos, classes, com Richard Olmstead, da Universidade de Wa-
ordens, famílias e gêneros. Essas divisões derivam shington, a botânica Lúcia Lohmann, também da
das ideias apresentadas em meados do século USP, produziu o verbete sobre as Bignoniaceae,
XVIII em sucessivas edições da célebre obra grupo de plantas que inclui árvores, arbustos e lia-
Systema Naturae, do naturalista sueco Carl von nas. O zoólogo Martin Lindsey Christoffersen, da
Linné, mais conhecido como Lineu. Os defensores Universidade Federal da Paraíba (UFPB), redigiu,
do PhyloCode, nome formal da iniciativa recém- sozinho, a definição de dois clados de crustáceos
-proposta, consideram as categorias de matriz decápodes, Polycarpidea e Prochelata.
lineana, ainda hoje um dos pilares da taxonomia, Parte dos pesquisadores de algumas áreas, como
como abstrações descoladas da realidade biológica a paleontologia de vertebrados e a botânica, adota
que não fazem mais sentido diante do avanço da há muito tempo o PhyloCode em seus trabalhos
filogenia. Também criticam as dificuldades de in- científicos. Mas a proposta não é reconhecida
corporar a descoberta de novas espécies e revisões pelos códigos internacionais de nomenclatura
de suas relações de parentesco em um sistema e ainda está longe de ser um consenso no meio
baseado em divisões taxonômicas estanques. acadêmico. Nesse novo sistema de classificação,
“A contribuição de Lineu para a biologia foi re- existem apenas duas categorias, as espécies e os
volucionária e notavelmente duradoura, mas ela clados. Os formuladores do PhyloCode chegaram
era pré-evolucionista e antecede em um século a a pensar em alterar a forma de dar nome às es-
publicação de A origem das espécies, de Charles pécies, mas desistiram da ideia. “Isso iria causar
Darwin”, diz, em entrevista por e-mail, a Pesquisa muitos problemas”, reconhece de Queiroz. Desde
FAPESP o biólogo norte-americano Philip Can- a edição de Systema Naturae, de 1758, as espécies
FOTOS 1 H. RAAB / WIKIMEDIA COMMONS 2 PSLAWINSKI / WIKIMEDIA COMMONS

tino, da Universidade de Ohio, um dos idealiza- passaram a ser batizadas de acordo com os pre-
dores do PhyloCode, ao lado do colega Kevin de ceitos da chamada nomenclatura binomial. Cada
Queiroz, do Museu Nacional de História Natural, forma única de vida é designada por dois termos,
de Washington, Estados Unidos. A dupla assina o geralmente de origem latina (ou grega), escritos
livro International Code of Phylogenetic Nomen- em itálico. O primeiro, de caráter menos particular,
clature (PhyloCode), que contém as normas e di- define o gênero e sua primeira letra é grafada em
retrizes fundamentais da proposta. “Apesar de a maiúsculo. O segundo, que pode ser derivado de
aceitação quase universal da premissa de que a uma característica marcante do ser em questão,
classificação deveria se basear em relações filoge- de sua distribuição geográfica ou simplesmen-
néticas, os biólogos continuam a nomear clados te uma referência (em forma de homenagem) a
Fóssil do gênero [grupos de organismos que descendem de um an- uma pessoa, determina a espécie em si. Ele é to-
Archaeopteryx cestral comum] usando um sistema pré-evolutivo.” do escrito em caracteres minúsculos. Seguindo
e beija-flor: estudos
filogenéticos indicam
A teoria da evolução de Darwin propôs a ideia, hoje essa norma, Lineu batizou a espécie do homem
que as aves descendem amplamente aceita, de que as espécies contempo- moderno de Homo sapiens. Em latim, homo quer
dos dinossauros râneas descendem de formas de vida do passado. dizer ser humano e sapiens, sábio ou inteligente.
O volume Phylonyms: O conceito de clado, pilar do PhyloCode, está
A companion to the Phy- associado à ideia evolutiva de que as formas de
loCode, organizado por vida descendem de seus antecessores, dos quais
de Queiroz, Cantino e herdam certas características. A metáfora comu-
o paleontólogo norte- mente usada é a da árvore da vida. Na base de seu
-americano Jacques tronco, figura o aparecimento da vida na Terra,
Gauthier, da Univer- por volta de 4 bilhões de anos atrás, de uma hi-
sidade Yale, inclui as potética população de microrganismos da qual,
definições, nos moldes em última instância, todos os seres, atuais e do
do PhyloCode, de cerca passado, derivam. Com o passar do tempo, a ár-
de 300 linhagens de se- vore da vida gera galhos, que se subdividem em
res vivos, os chamados outros ramos e assim por diante. A partir de um
clados, desde micror- certo momento, alguns desses nós se desenvolvem
ganismos até plantas e em paralelo, de forma independente. Outros per-
animais. Entre as cente- manecem conectados. Outros ainda são mesmo
2

PESQUISA FAPESP 294 | 67


cortados (quando uma espécie se extingue). De em rankings. “O sistema lineano incorpora uma Microrganismos, como
raiz grega, o vocábulo clado significa ramo. Na visão de mundo estática e tipológica”, explica essas amebas com carapaça
do grupo Arcellinida,
biologia, em termos evolutivos, um clado (também Christoffersen. “É baseado em essências [carac- podem ser seres difíceis
denominado grupo monofilético) é formado pelo terísticas marcantes] para definir táxons [grupo de se classificar
conjunto de todos os organismos que descendem de organismos ou de populações que formariam sem dados genéticos
de um determinado ancestral comum. uma unidade] e material-tipo para caracterizar

C
essas essências. Com a teoria da evolução, é ine-
omplicado? Exemplos ajudam a en- vitável que essa visão seja substituída por uma
tender o conceito. Na classificação de transformação do mundo.” Material-tipo é o
tradicional, os primatas formam espécime usado como referência para designar
uma ordem, nível taxonômico que uma espécie de organismo.
pode englobar inúmeras subdivi- A filogenia como base para classificar as espé-
sões, como subordem, superfamí- cies pode levar a conclusões que, para os leigos,
lia, família, subfamília, tribo, gênero e espécie. soam estranhas, embora hoje amplamente aceitas.
Dessa ordem, fazem parte, grosso modo, lêmures, O caso das aves é talvez o mais emblemático. Há
lórises, társios, macacos e o homem moderno. No praticamente consenso hoje entre os especialistas
PhyloCode, os primatas formam um clado, assim de que esse grupo de animais é o único a abrigar
definido: o mais recente ancestral comum das descendentes vivos dos dinossauros, considera-
espécies Lemur catta (Lêmure-de-cauda-anela- dos extintos há 65 milhões de anos. A descober-
da), Loris tardigradus (lóris-delgado-vermelho), ta de fósseis de dinossauros de meio metro de
Tarsius tarsier (társio) e Homo sapiens (homem comprimento com penas e asas que viveram há
moderno) e todos os seus descendentes. Na práti- pelos menos 150 milhões de anos, como os famo-
ca, as formas de vida que pertencem à ordem dos sos exemplares do gênero Archaeopteryx, embasa
primatas, no contexto da taxonomia tradicional, essa conclusão. Esses antepassados das aves mo-
e ao clado dos primatas, sob a ótica do PhyloCo- dernas são classificados como membros do grupo
de, são essencialmente as mesmas. Isso ocorre dos terópodes, composto geralmente de carnívo-
porque o clado dos primatas foi definido a partir ros bípedes. Os terópodes formam uma das três
das relações de ancestralidade de representantes linhagens constituintes dos dinossauros, ao lado
dos quatro principais grupos tradicionalmente dos sauropodomorfos (herbívoros, geralmente
abrigados na ordem dos primatas (um lêmure, quadrúpedes, de grande porte e pescoço alonga-
um lóris, um társio e o homem moderno). do) e dos ornitísquios (exemplares com chifres,
Mas é diferente o raciocínio que governa a cons- armaduras ou bicos semelhantes aos dos patos).
tituição de clados no PhyloCode e das várias ca- Não por acaso a definição do clado Dinosauria,
tegorias taxonômicas nas classificações baseadas os dinossauros, no PhyloCode é dada a partir da

PHYLOCODE

FOTOS 1 E 3 NONONONONO 2 NONONONNO 4 NONONONONO ILUSTRAÇÃO NONOONO


n Agrupa os organismos em EXEMPLO: Homo sapiens dentro O livro Phylonyms define
função de sua filogenia. A história do CLADO dos primatas esse clado como o grupo de
organismos que descendem
evolutiva determina a que clado(s),
Clado dos primatas do mais recente ancestral
a que ramos da árvore da vida, comum de quatro espécies:
as espécies pertencem Homo sapiens (homem
Mais recente ancestral moderno), Lemur catta
n Um clado é o conjunto de comum das quatro espécies
(lêmure-de-cauda-anelada),
organismos ou de espécies que Loris tardigradus
descendem de seu mais recente (lóris-delgado-vermelho)
e Tarsius tarsier (társio).
ancestral comum
Nesse caso, o homem moderno
n Não há categorias hierárquicas, Homo Lemur Loris Tarsius não só pertence ao clado
sapiens catta tardigradus tarsier dos primatas como faz parte
como reino, ordem, família e gênero da própria definição desse
grupo de organismos
n Existem as espécies e os clados

n Uma filogenia é composta de


clados mais inclusivos que
englobam clados menos abrangentes

68 | AGOSTO DE 2020
relação de parentesco de conhecidos representan- de um conjunto de dados genéticos e de fósseis,
tes dessas três linhagens: o ornitísquio Iguanodon e não tanto pela sua morfologia”, comenta Lahr.
bernissartensis, o terópode Megalosaurus buck- “Mas certas áreas bem estabelecidas dentro da
landii e o saurópode Cetiosaurus oxoniensis. Se- zoologia e da botânica devem resistir a adotar
gundo o novo sistema de classificação, devem ser a abordagem cladística.” No início de 2019, o
considerados dinossauros todos os descendentes pesquisador publicou um artigo científico na
do último ancestral comum dessas três espécies. revista Current Biology em que reconstituiu a
“Não estamos preocupados em encontrar traços história evolutiva de um grupo de amebas com
anatômicos que sejam exclusivos ou definidores carapaça, as Arcellinida, surgidas há cerca de
do que era um dinossauro”, explica Langer, autor 750 milhões de anos. Com o emprego de algo-
do verbete no Phylonyms sobre esses animais do ritmos matemáticos e análises do DNA de ame-
passado. “O que importa é verificar se a história bas desse grupo presentes hoje na natureza, ele
evolutiva de um fóssil o coloca dentro ou fora do montou uma filogenia para esse clado, usando
clado.” Atualmente, essa tarefa é feita com o au- tanto noções do PhyloCode como da taxonomia
xílio de programas de computador que cruzam mais tradicional.
centenas de informações referentes aos caracte- Hoje, não existe uma norma unificada, que
res anatômicos (como o fato de ter ou não penas, seja empregada em todos os ramos da biologia,
ser bípede ou quadrúpede) e ao material genético para nomear e estabelecer as categorias taxo-
(se houver) das espécies analisadas e fornecem nômicas. Há um código para as plantas, algas e
prováveis árvores evolutivas, nas quais uma es- fungos; outro para os animais; um terceiro para
pécie ou conjunto de espécies pode ou não ser as bactérias e arqueias, e um quarto para os ví-
incluída dentro de um clado. rus. Cada código determina quantos níveis taxo-

A
nômicos podem ser usados para classificar seus
FOTOS DANIEL LAHR INFOGRÁFICO ALEXANDRE AFFONSO

pesar de não considerar o Phylo- grupos de organismos. O botânico prevê, por


Code como a solução de todos exemplo, 24 categorias, de reino à subforma. O
os problemas da taxonomia, o viral permite 15 níveis. “Precisamos abandonar
microbiólogo evolutivo Daniel esse paroquialismo de cada área adotar um có-
Lahr, do Instituto de Biociên- digo e caminhar para um sistema único”, propõe
cias (IB) da USP, avalia que es- o pesquisador do IB. Não é possível prever se o
se tipo de classificação pode ser útil para pesqui- PhyloCode vai se disseminar em toda a biologia
sadores voltados para o estudo de certos grupos ou vai permanecer como uma abordagem restri-
de organismos. “Para o momento, é a melhor ta a certos nichos de pesquisadores. Apesar das
abordagem que temos, sobretudo para quem limitações, a taxonomia baseada em Lineu ainda
trabalha com espécies que são definidas a partir é útil e amplamente utilizada. n Marcos Pivetta

Ordem dos
primatas
TAXONOMIA TRADICIONAL,
DERIVADA DOS TRABALHOS
DE LINEU
EXEMPLO: Homo sapiens dentro
da ORDEM dos primatas Homo Lemur Loris Tarsius
n Organiza os seres vivos a partir sapiens catta tardigradus tarsier
Essa ordem agrega mamíferos
de suas características naturais,
placentários de hábitos terrestres,
comumente sua morfologia originalmente adaptados à vida
(aparência externa) em florestas

n Adota um sistema hierárquico de


Os primatas têm
categorias taxonômicas, como
cérebros grandes
domínio, reino, filo, classe, ordem, em relação ao
família, gênero, espécie, entre outras tamanho corporal
Polegar oponível
n Os quatro grandes códigos (que pode se opor aos
internacionais que classificam Órbitas na frente demais dedos da mão)
do crânio
diferentes formas de vida – das plantas,
algas e fungos; dos animais; das
Presença de unhas
bactérias e arqueias; e dos vírus – em vez de garras
baseiam-se em sistemas hierárquicos

PESQUISA FAPESP 294 | 69


ALGORITMOS

INTELIGÊNCIA
ARTIFICIAL
A FAVOR
DO CORAÇÃO

70 | AGOSTO DE 2020
Novos recursos computacionais podem
proporcionar rapidez e eficácia no diagnóstico
e tratamento de doenças cardíacas

Suzel Tunes

E
m maio deste ano, a empresa californiana O ano de 2020 já havia começado com um novo
VitalConnect recebeu autorização emer- marco nessa trajetória de evolução. Em feverei-
gencial da agência norte-americana re- ro, a Caption Health, também do Vale do Silício,
gulatória de alimentos e medicamentos, obteve a primeira autorização da FDA para um
a FDA, para usar seu biossensor Vital- exame de imagem guiado por IA. O sistema de-
Patch no monitoramento de problemas cardíacos nominado Caption AI permite que profissionais
causados pela Covid-19 ou por drogas empregadas da saúde, mesmo aqueles sem experiência em
no seu tratamento. O dispositivo vestível (weara- cardiologia, sejam capazes de fazer ecocardio-
ble), com a aparência de um curativo colado no gramas. O software ajuda o usuário a capturar
peito, é capaz de monitorar a distância 22 diferen- imagens com qualidade diagnóstica.
tes tipos de arritmias, além de outros parâmetros Ferramentas de inteligência artificial, entre
físicos do paciente, como frequência cardíaca e elas mineração de dados (data mining) e apren-
respiratória, temperatura e postura corporal. dizado de máquina (machine learning), também
A possibilidade de monitoramento e avalia- oferecem ajuda para a própria análise da imagem
ção médica a distância é importante diante das ecocardiográfica. A Ultromics, uma spin-off da
exigências de distanciamento social e da lotação Universidade de Oxford, no Reino Unido, já for-
de hospitais em tempos de pandemia. Essa ne- nece o sistema EchoGo para o Serviço Nacional
cessidade acentuou uma tendência verificada de Saúde (NHS), o sistema de saúde pública do
nos últimos anos. É cada vez maior o número país. No final de 2019, obteve autorização da FDA
de empresas, estrangeiras e do Brasil, e grupos para ingressar no mercado norte-americano. Se-
Sistema EchoGo: de pesquisa acadêmica que fazem estudos e lan- gundo a empresa, o EchoGo consegue identificar
criado pela startup çam dispositivos com recursos de inteligência anormalidades no exame e dar um retorno ao
britânica Ultromics, artificial (IA) para o campo da cardiologia. Um profissional em questão de minutos. O software
auxilia os médicos
na análise de imagem
indicador desse movimento é a multiplicação de foi desenvolvido a partir da análise de 120 mil
ULTROMICS

de exames de artigos científicos sobre o tema na última década imagens ecocardiográficas de exames conduzi-
ecocardiograma (ver infográfico na página 73). dos pela Universidade de Oxford. As imagens do

PESQUISA FAPESP 294 | 71


infarto agudo, o dano do miocárdio [músculo car-
díaco] faz com que o ventrículo mude de forma.
É o que chamamos de remodelação ventricular”,
diz. As mudanças de forma dão pistas do diag-
nóstico. Assim, por exemplo, quando o coração
O sistema computacional perde o seu formato característico, que lembra
vagamente um cone, e ganha esfericidade, há
é um apoio diagnóstico indícios de miocardiopatia dilatada.
Analisar o formato do ventrículo esquerdo é o
ao médico. Não veio que faz a ressonância magnética. O exame resul-
substituí-lo, destaca ta em múltiplos cortes bidimensionais somados,
como se fossem uma pilha de moedas. “Cerca de
a cientista da computação 200 a 300 imagens são necessárias para fazer a
análise do ventrículo esquerdo e o médico tem
Fátima Nunes, da USP que olhar uma por uma”, destaca Nunes. “Além
do tempo despendido, a análise de tantas imagens
pode levar à fadiga do especialista e aumentar o
risco de erro médico.”
Já existem ferramentas computacionais para a
análise bidimensional do ventrículo esquerdo. A
proposta de Ribeiro inova ao oferecer um recurso
3D ao exame. “Montamos um objeto tridimen-
ecocardiograma são enviadas automaticamente sional. Em vez de analisar imagem por imagem,
para o sistema baseado em nuvem e, após a aná- é possível olhar o ventrículo como um todo e
lise, o relatório é encaminhado ao médico. calcular métricas para diagnóstico. Pode-se, por
“O sistema computacional tem sido propos- exemplo, estimar o tamanho real do coração e
to como apoio diagnóstico ao médico, não para o volume de sangue que ele está bombeando, o
substituí-lo”, ressalta a cientista da computação que não seria possível fazer com o exame tradi-
Fátima Nunes, da Escola de Artes, Ciências e Hu- cional em 2D”, explica. O cardiologista Rochitte
manidades da Universidade de São Paulo (EACH- destaca que “existem iniciativas paralelas, mas a
-USP). Ela é orientadora de um projeto na área de abordagem dessa pesquisa é única, já que o mo-
processamento de imagens apoiado pela FAPESP delo tridimensional proposto é inédito”. Já há
e conduzido pelo mestrando Matheus Alberto de um protótipo quase pronto da ferramenta, que
Oliveira Ribeiro. O trabalho tem colaboração do deverá ser disponibilizado para o InCor.

A
cardiologista Carlos Rochitte, do Instituto do Co-
ração (InCor) da Faculdade de Medicina da USP maioria das iniciativas de IA vol-
(FM-USP) e coordenador do Serviço de Resso- tadas à cardiologia no país está no
nância Magnética e Tomografia Cardiovascular âmbito acadêmico, mas já há pro-
do Hospital do Coração (HCor), de São Paulo. dutos comerciais. O Grupo Fleury
No contexto do aprendizado de máquina, Ro- recorre à inteligência artificial para
chitte é o especialista que fornece as imagens de fazer o diagnóstico de doenças cardiovasculares
ressonância magnética que ensinam o sistema a com foco em duas áreas: a detecção de hemor-
reconhecer padrões e, assim, diagnosticar anor- ragia intracraniana, fruto de acidente vascular,
malidades. O cardiologista explica que o ventrí- e a embolia pulmonar, doença em que uma ou
culo esquerdo é a câmara mais forte do coração, mais artérias pulmonares são bloqueadas por
sua principal força motriz. “Quando ocorre um um coágulo sanguíneo.

O biossensor vestível
VitalPatch faz
o monitoramento de
problemas cardíacos
causados pela Covid-19
Produção científica em alta
Cresce o número de artigos acadêmicos obtidos no portal PubMed a partir
de pesquisa com os termos artificial intelligence ou machine learning e cardiology

209

119
111*

65

37
17
1 1 1 2 2 6 7

2001 2005 2008 2009 2010 2013 2014 2015 2016 2017 2018 2019 2020

*ATÉ 08/06/2020 FONTES PUBMED, MOTOR DE BUSCA À BASE DE DADOS MEDLINE DE CITAÇÕES E RESUMOS DE REVISTAS CIENTÍFICAS DA ÁREA BIOMÉDICA DE MAIS DE 80 PAÍSES

Em 2019, o estudo de detecção de hemorragia Hoje, o prontuário eletrônico tem o registro


intracraniana foi premiado em congresso da So- de cerca de 1,3 milhão de pacientes. Mais de 30
ciedade Radiológica Norte-americana (RSNA), hospitais de São Paulo compartilham do sistema,
o maior evento mundial na área de radiologia o que permite o acesso de pesquisadores a 10
e diagnóstico por imagem. E já está integrada milhões de registros – todos de forma anônima,
à rotina da instituição uma ferramenta para a para que possam ser utilizados em pesquisa. Para
detecção de embolia pulmonar, informa o radio- Krieger, trata-se de um tesouro: “Por meio des-
logista Gustavo Meirelles, gestor de Radiologia, ses sistemas de informação foi possível avançar
Estratégia e Inovação no Grupo Fleury. para as ferramentas de inteligência artificial que
O equipamento foi desenvolvido com a star- desenvolvemos hoje”.

O
tup israelense Aidoc e, de acordo com Meirelles,
permite acelerar o resultado do diagnóstico de InCor é sede do Instituto Nacio-
3 horas para cerca de 20 minutos. “No primeiro nal de Ciência e Tecnologia em
caso que tivemos, o exame ficou pronto antes que Medicina Assistida por Compu-
a paciente saísse do hospital. Pudemos iniciar o tação Científica (INCT-Macc),
tratamento na hora”, comemora o médico. “A iniciativa criada em 2008 com o
realização de diagnósticos precoces resulta em propósito de consolidar o desenvolvimento de
melhor evolução do paciente, com redução no tecnologias e formar recursos humanos, finan-
tempo de internação e no índice de mortalida- ciada pela FAPESP e pelo Conselho Nacional
de.” Meirelles acentua que o desenvolvimento de Desenvolvimento Científico e Tecnológico
dessas novas ferramentas computacionais só se (CNPq). Articulam-se por meio do instituto 31
concretizou porque há uma base de dados sólida, laboratórios em 11 estados brasileiros e outros 17
suficiente para treinar a máquina de forma eficaz. com sede no exterior, distribuídos em sete países.
Para o fisiologista José Eduardo Krieger, diretor No InCor, desenvolvem-se hoje quatro gran-
do Laboratório de Genética e Cardiologia Mole- des áreas de estudo: processamentos de ima-
cular do InCor e professor do Departamento de gens, sinais e linguagem e a integração de dados
FOTO VITALCONNECT INFOGRÁFICO ALEXANDRE AFFONSO

Cardiopneumologia da FM-USP, é no volume e na no campo das chamadas ciências ômicas (co-


qualidade dos dados que está a base de qualquer mo genômica, proteômica, metabolômica etc.).
avanço no campo da IA. Os estudos no InCor ti- “Essas áreas envolvem também parcerias com
veram início justamente na área de big data, por multinacionais de tecnologia, como Canon e Fox-
meio do serviço de informática da instituição. “O conn”, conta Krieger. Foxconn é uma fabricante
InCor é paperless [dispensa o uso de papel, é todo de computadores e smartphones que tem entre
digital] há mais de 10 anos”, conta Krieger. “O siste- seus clientes Apple e Microsoft.
ma de prontuário eletrônico foi criado pela equipe As pesquisas mais avançadas são as de pro-
do engenheiro Marco Antonio Gutierrez, diretor cessamento de imagens, obtidas de exames de
de Bioinformática do InCor, por meio de diversos tomografia e ressonância, e de sinais eletrocar-
projetos, alguns com apoio da FAPESP”, lembra. diográficos. Na análise do eletrocardiograma, em

PESQUISA FAPESP 294 | 73


especial, há uma conquista significativa: a pos-
sibilidade de utilizar algoritmos de IA para dar
o diagnóstico com base no simples traçado do
eletro. “O eletro é um exame barato e muito uti-
lizado, mas a interpretação pode ser mais difícil
do que aparenta”, pondera Krieger. “A ferramenta Projeto da Unicamp
permite que o médico tire uma foto da imagem
do exame e envie para que o sistema avalie a dis- no campo da medicina
tância e independe do equipamento utilizado.”
preditiva pode gerar

O
desafio dessa nova vertente de economia de R$ 50 milhões
pesquisa, segundo Krieger, é o
desenvolvimento de algoritmos por ano para o Sistema
de predição de risco que levem
em conta características particu- Único de Saúde (SUS)
lares dos indivíduos. “Procuramos integrar da-
dos de toda a vida clínica do paciente, incluindo
marcadores genéticos”, relata o pesquisador, que
orienta estudos de fenotipagem e genotipagem
de doenças cardiovasculares na pós-graduação
em cardiologia na USP.
Algumas iniciativas já avançam nesse cam-
po. Nos Estados Unidos, cientistas da Google É a mesma tecnologia que está sendo utiliza-
Research, da startup Verily Life Sciences e da da pela equipe do Projeto Code (Clinical Out-
Universidade Stanford criaram um método para comes in Digital Electrocardiology), formado
prever risco cardiovascular a partir de exames de por pesquisadores do Centro de Telessaúde do
retina. Eles treinaram um sistema de aprendiza- Hospital das Clínicas da Universidade Federal de
do de máquina com imagens de fundo de olho de Minas Gerais (HC-UFMG). Com financiamento
284 mil pacientes dos bancos de dados UK Bio- da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de
bank, do Reino Unido, e EyePACS, dos Estados Minas Gerais (Fapemig) e colaboração das uni-
Unidos. A partir delas, o sistema aprendeu a dis- versidades de Glasgow, na Escócia, e Uppsala,
tinguir olhos saudáveis daqueles com alterações na Suécia, o grupo desenvolveu um projeto de
nos vasos sanguíneos visíveis no fundo do olho, leitura automatizada do eletrocardiograma para
indício de problema cardiovascular. o diagnóstico de doenças cardíacas.
O objetivo do grupo era determinar se sinais O projeto envolve médicos, engenheiros e cien-
de risco cardiovascular poderiam ser obtidos de tistas da computação. “O grande pulo do gato é
forma rápida, barata e não invasiva, em ambiente montar uma equipe realmente multidisciplinar”,
ambulatorial. O resultado superou as expectati- diz o cardiologista Antonio Luiz Pinho Ribeiro,
vas: a partir da comparação das imagens, o algo- líder do grupo e coordenador do Centro de Te-
ritmo também foi capaz de definir, com pouca lessaúde e da Rede de Teleassistência de Minas
margem de erro, a idade, o gênero, a dosagem Gerais, formada pela parceria de sete universi-
de hemoglobina glicada – um marcador de dia- dades públicas do estado. O resultado do estu-
betes – e o índice de massa corporal do paciente, do, feito a partir do cruzamento de 2,4 milhões
bem como se ele era ou não fumante. “Mostramos de eletrocardiogramas digitais coletados entre
que o deep learning [aprendizado profundo] pode 2010 e 2017 com o Sistema de Informações de
extrair novos conhecimentos das imagens da re- Mortalidade, foi publicado em abril na revista
tina”, destacaram os autores do estudo. “Nesses Nature Communications. A análise possibilitou
exames, previmos fatores de risco cardiovascular o reconhecimento de padrões e a identificação
que antes não se pensavam estar presentes nem de seis diferentes tipos de alterações eletrocar-
se eram quantificáveis.” diográficas com precisão igual ou superior aos
A técnica de aprendizado profundo é a mais realizados por médicos residentes e estudantes.
recente geração do aprendizado de máquina. Outra vertente do projeto Code dá um passo
Trata-se de um método computacional baseado além. “Usamos rede neural para prever a idade
numa rede neural artificial de várias camadas – do paciente tomando por base apenas o traça-
por isso, é chamado de profundo. Nessa aborda- do do eletrocardiograma. Essa idade eletrocar-
gem, em vez de ser programado manualmente diográfica pode vir a ser um marcador de saúde
para uma tarefa específica, o computador usa cardiovascular”, explica o engenheiro Antônio
algoritmos genéricos para identificar padrões Horta Ribeiro, que faz parte da equipe. Os pri-
de imagens, textos ou sinais. meiros resultados indicam que quando o algo-

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IMAGEM ORIGINAL IDADE GÊNERO Método criado por
cientistas norte-americanos
diferencia olhos saudáveis
daqueles com alterações
nos vasos sanguíneos do
fundo do olho, um indício
de problema cardiovascular.
A ferramenta também
prediz, com baixa margem
de erro, a idade, o gênero,
a dosagem de hemoglobina
Real: 57,6 anos Real: feminino
glicada (um marcador de
Previsão: 59,1 anos Previsão: feminino
diabetes), o índice de massa
FUMANTE HBA1C* IMC** corporal do paciente
e se ele é ou não fumante

Real: não fumante Real: não diabético Real: 26,3 kg/m2


*HEMOGLOBINA GLICADA;
Previsão: não fumante Previsão: 6,7% Previsão: 24,1 kg/m2 **ÍNDICE DE MASSA CORPORAL

ritmo prevê uma idade maior do que a cronoló- se relacionam com características individuais.
gica há maior risco de mortalidade em todas as Ter dois fatores de risco não significa ter duas
faixas etárias. vezes mais risco. Não é simples assim”, explica.
Para o especialista em IA, os resultados que Segundo o cardiologista, as primeiras mode-
vêm das pesquisas com redes neurais podem tra- lagens matemáticas para trabalhar com as dife-
zer para a medicina novas perspectivas diagnós- rentes variáveis surgiram nos anos 1970, mas até
ticas. A máquina, antes treinada para reconhecer hoje os resultados não são muito eficazes. A inteli-
padrões, agora já é capaz de identificar anomalias gência artificial, segundo ele, veio mudar esse ce-
que passam despercebidas ao ser humano. “Ele nário. Em sua pesquisa, algoritmos conseguiram
pode criar correlações que ainda não foram fei- prever 92% dos eventos clínicos que um paciente
tas pela medicina”, diz Ribeiro. O desafio é ten- pode vir a ter no intervalo de um ano. De posse
tar descobrir os caminhos que as redes neurais desses dados, explica Sposito, é possível acom-
fizeram para chegar a essas correlações. panhar de perto os pacientes mais vulneráveis,

É
o que poderá resultar em prevenção de mortes
também no campo da medicina predi- e evitar novas cirurgias, hospitalizações e trata-
tiva que se insere projeto da Univer- mentos dispendiosos. “São ganhos importantes
PREDICTION OF CARDIOVASCULAR RISK FACTORS FROM RETINAL FUNDUS PHOTOGRAPHS VIA DEEP LEARNING

sidade Estadual de Campinas (Uni- proporcionados pelos avanços das pesquisas em


camp), que pode reverter em econo- inteligência artificial aplicada aos cuidados com
mia de R$ 50 milhões por ano para o o coração”, sustenta o especialista. n
Sistema Único de Saúde (SUS). Conduzido pelo
Laboratório Aterolab da Faculdade de Ciências
Médicas (FCM), o projeto visa identificar os pa- Projetos
cientes de doenças coronarianas crônicas com 1. Segmentação automática do ventrículo esquerdo em exames de
maior risco de sofrerem eventos clínicos adver- ressonância magnética cardíaca (no 19/22116-7); Modalidade Bolsa
de Mestrado; Pesquisadora responsável Fátima de Lourdes dos Santos
sos no intervalo de um ano. A pesquisa, orientada Nunes Marques (USP); Bolsista: Matheus Alberto de Oliveira Ribeiro;
pelo cardiologista Andrei Sposito, coordenador Investimento R$ 39.863,34.
do Aterolab, foi premiada pela Sociedade Brasi- 2. INCT 2014: Em Medicina Assistida por Computação Científica
(INCT-Macc) (no 14/50889-7); Modalidade Projeto Temático; Pes-
leira de Cardiologia e pelo Congresso Europeu quisador responsável José Eduardo Krieger (USP); Investimento
de Inovação. R$ 3.204.512,68.
“No primeiro ano após um infarto, um a cada 3. Centro de Inteligência Artificial (no 19/07665-4); Modalidade
Centros de Pesquisa em Engenharia; Pesquisador responsável Fabio
cinco pacientes pode sofrer novo infarto ou, mes- Gagliardi Cozman (IBM); Investimento R$ 4.134.883,90.
mo, morte súbita. Muitas tentativas já foram feitas
para identificar quem é esse paciente que corre Artigos científicos
mais risco”, diz o cardiologista. Sposito destaca RIBEIRO, H. A. et. al. Automatic diagnosis of the 12-lead ECG using a
que fatores de risco cardiovasculares já são co- deep neural network. Nature Communications. 9 abr. 2020.
POPLIN, R. et. al. Prediction of cardiovascular risk factors from retinal
nhecidos há muitos anos, mas eles não trabalham fundus photographs via deep learning. Nature Communications.
de forma aritmética. “Há ações sinérgicas, que 19 fev. 2018.

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BIOTECNOLOGIA Mina Zé do Vermelho,
em Mato Grosso

MINERAÇÃO BIOTECH 1

A
Uso de bactérias para mina de ouro Zé do Verme- lismo produz ácido sulfúrico. As impure-
lho, em Paranaíta, em Mato zas são separadas e dissolvidas na solu-
tratar minérios em Grosso, programa instalar até ção corrosiva”, explica Rafael Vicente de
abril de 2021 um sistema de Pádua Ferreira, cofundador da Itatijuca
jazida de ouro em Mato bio-oxidação, que usa microrganismos Biotech. A startup, residente na Incuba-
Grosso pode reduzir no processo de tratamento do material dora de Empresas de Base Tecnológica
extraído da jazida. O investimento nos do Instituto de Pesquisas Energéticas e
risco ambiental e custos reatores com capacidade de processar 60 Nucleares (Ipen) e da Universidade de
toneladas de material mineral por dia é São Paulo (USP), gerida pelo Centro de
de operação estimado em R$ 3 milhões. “O biotrata- Inovação, Empreendedorismo e Tecnolo-
mento permitirá economia de insumos gia (Cietec), é responsável pelo sistema,
Domingos Zaparolli químicos e resultará em mitigação do desenvolvido com tecnologia nacional.
risco ambiental”, prevê André Vienna, “A Tório será a primeira mineradora
gestor da Tório Mineração, a contro- a adotar um sistema de biotratamento
ladora da unidade. A mina produz 120 feito no país”, salienta a química Deni-
quilos (kg) de ouro por ano e tem re- se Bevilaqua, coordenadora do grupo
serva medida em cerca de 8,2 toneladas de pesquisa Bioprocessos Aplicados à
(290 mil onças). Mineração e ao Meio Ambiente do Ins-
A separação do ouro do material mi- tituto de Química da Universidade Esta-
neral extraído de uma jazida é feita por dual Paulista (IQ-Unesp), em Araraquara
peneiramento e moagem, com uso de (SP). Segundo ela, embora os processos
centrífugas ou mesas vibratórias. Mui- de biotratamento sejam consolidados na
tas vezes, porém, o ouro está envolto por mineração mundial, é preciso estabelecer
FOTOS 1 TÓRIO MINERAÇÃO 2-4 LÉO RAMOS CHAVES

enxofre, sulfetos e outras impurezas. É uma rota biotecnológica específica para


o chamado ouro refratário. A extração cada corpo mineral. Outro desafio é es-
então exige um processo de lixiviação, colher a cepa de microrganismos. “Cada
isto é, a dissolução das impurezas em operação exige o estabelecimento de um
solução química. processo biotecnológico próprio”, frisa.
A bio-oxidação é realizada com a in- Após o biotratamento, diz Vienna, a li-
corporação de uma etapa prévia à lixi- xiviação demanda menor quantidade de
viação. “Bactérias dispostas em reatores, material químico. Testes em escala-piloto
grandes tanques de aço, alimentam-se do realizados pela Itatijuca indicam um po-
enxofre contido no minério. Seu metabo- tencial de redução em 70% no emprego

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de ácido e cianeto e uma diminuição de Mineração. A operação de extração de
50% no tempo de lixiviação. O custo total ouro ocorreu em Santa Bárbara (MG),
da lixiviação deverá ser reduzido em 35%. com tecnologia fornecida por sua con-
A menor utilização de produtos quími- troladora, a anglo-australiana BHP Bil-
cos no processo e a eliminação do enxo- liton. A mineradora, no entanto, fechou
fre consumido das bactérias resultam em as portas, interrompendo o projeto.
redução de rejeitos. “O risco ambiental A experiência da Tório, segundo Bevi-
da lixiviação é mais fácil de ser controla- laqua, pode representar o despertar da
do”, explica Ferreira. “Quando sistemas mineração brasileira para a bio-hidrome-
como esse são instalados antes do início talurgia. “A mineração é uma atividade
da atividade mineral, o licenciamento tradicionalista. Ninguém quer ser o pri-
ambiental, em tese, corre mais rápido.” meiro a incorporar uma inovação, mas,
Outra vantagem do pré-tratamento com quando alguém adota e é bem-sucedido,
a bio-oxidação é um melhor aproveita- todos querem fazer igual”, observa.
mento do minério. “Em testes em es-

O
cala-piloto, triplicamos a eficiência na engenheiro de minas bra-
recuperação do ouro refratário”, afirma. sileiro Carlos Hoffmann
A bio-hidrometalurgia, o conjunto de Sampaio, professor do De-
técnicas que usa rotas com microrganis- partamento de Engenharia
Para entender mos para retirar impurezas que envol- Mineral e Industrial da Universidade
vem minérios, surgiu nos anos 1960. Sua Politécnica da Catalunha (Espanha),
BIO-HIDROMETALURGIA aplicação ocorreu pela primeira vez em explica que a maior dificuldade da bio-
Método conhecido desde os uma mina de ouro na África do Sul, em -hidrometalurgia é a baixa velocidade
anos 1960 que emprega rotas 1986. Hoje o biotratamento é usual na que as bactérias agem. “Por isso, costu-
com microrganismos para extração de cobre, ouro, ferro, urânio e ma ser usada para minas pequenas.” Ele
retirar impurezas de metais outros metais em diversos países. diz que o uso do método tem potencial
(ouro, cobre, urânio etc.) A pesquisa brasileira esteve entre as de expansão expressivo, principalmente
pioneiras. Equipe coordenada pelo biólo- na mineração de minérios valorizados,
BIO-OXIDAÇÃO go Oswaldo Garcia Júnior implementou como o ouro.
Também chamada de nos anos 1980 uma planta-piloto inédi- Numa jazida hipotética, exemplifica
biolixiviação, usa ta no mundo para o biotratamento de Sampaio, em cada mil quilos de minério
microrganismos que se urânio, criada para a estatal Empresas se extrai por volta de 5 gramas de ouro
alimentam do enxofre Nucleares Brasileiras (Nuclebrás). O pro- liberado, não coberto por sulfetos, que
presente no minério cesso foi bem-sucedido, mas acabou de- podem ser obtidos apenas com a lixivia-
sativado quando a empresa foi extinta em ção tradicional, com cianeto. No mesmo
LIXIVIAÇÃO 1989. Em 1986, Garcia criou um núcleo material, há também outros 15 gramas
Dissolução das impurezas de bio-hidrometalurgia no IQ-Unesp, de ouro refratário, aquele recoberto por
encontradas em minérios com onde se formou Maurício César Palmieri, sulfetos. Nesse caso, utilizar o biotrata-
uso de solução aquosa com cofundador da Itatijuca. mento antes da lixiviação com ciane-
cianeto ou ácido sulfúrico Além de iniciativas experimentais, to resulta em um total de 20 gramas de
como a implementada pela companhia ouro para cada mil quilos de minérios.
OURO REFRATÁRIO Vale no biotratamento de cobre na Mina “Trata-se de um ganho que não se pode
Porção do metal envolto por do Sossego, no Pará (ver Pesquisa FA- desprezar”, afirma o especialista. n
enxofre, sulfetos e outras PESP nº 200), a única aplicação em es-
impurezas, como pirita, ferro, cala industrial de bio-hidrometalurgia
cobre e cobalto no Brasil foi realizada pela São Bento Leia esta reportagem ampliada na versão on-line.

Três momentos do biotratamento: o reator contendo as bactérias, o material mineral após a biolixiviação e a barra de ouro obtida ao fim do processo

2 3 4

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GENÔMICA

LARANJEIRAS
IMUNES
Desenvolvimento
no Centro de
Citricultura passa
por laboratório, estufa
e teste em campo

L
Variedades desenvolvidas aranjas doces das variedades A clorose variegada dos citros é trans-
Pineapple e Hamlin receberam mitida às laranjeiras pela picada de ci-
no Instituto Agronômico um gene de tangerina e se mos- garrinhas, insetos que medem pouco
traram resistentes à clorose va- mais de um centímetro. Uma vez dentro
de Campinas, com riegada dos citros (CVC), tam- da laranjeira, a Xylella começa a se mul-
acréscimo de gene de bém conhecida como a praga do ama- tiplicar ao ponto de obstruir os vasos que
relinho. O trabalho foi conduzido por transportam água e nutrientes da raiz pa-
tangerina, mostraram-se pesquisadores do Centro de Citricultura ra a copa das plantas, deixando os frutos
Sylvio Moreira, do Instituto Agronômi- pequenos e duros e, por isso, impróprios
resistentes à clorose co de Campinas (IAC), em Cordeiró- para o consumo e a comercialização. A
polis, interior paulista. Para chegar ao praga já foi o maior problema dos ci-
variegada dos citros resultado, eles infectaram plantas de tricultores paulistas – em 2009, atingia
tangerina, naturalmente resistentes à 42% das plantações de laranja de São
Sarah Schmidt doença, com a bactéria Xylella fastidio- Paulo e na região do Triângulo Mineiro
sa, causadora da CVC, e conseguiram e no sudoeste do estado. Atualmente,
identificar um gene com potencial de esse número caiu para 1,04%, de acordo
conferir essa resistência. com o levantamento de 2020 do Fundo
Batizado de RAP2.2, o gene já era de Defesa da Citricultura (Fundecitrus),
conhecido da comunidade acadêmica divulgado em 24 de julho. O controle é
por estar presente em outras espécies feito com técnicas de manejo, como uso
vegetais. No entanto, a descoberta de de inseticidas e plantio de mudas em
seu papel em defender plantas de citros ambiente protegido.
frente à Xylella é inédita, “assim como O gene de tangerina pode dar às la-
a inserção do gene de tangerina em la- ranjeiras condições de se defenderem
ranja doce com o objetivo de combater melhor da doença. “Esse gene se liga ao
a praga”, ressalta a bióloga Alessandra DNA da planta e ativa outros genes, en-
Alves de Souza, líder do estudo e pes- volvidos na fortificação da parede celular
quisadora do IAC, instituição que com- vegetal. Com isso, a bactéria não conse-
pletou 133 anos em junho. Os caminhos gue se mover tão bem e fica aprisionada”,
LÉO RAMOS CHAVES

percorridos na pesquisa foram publica- explica Souza. “A planta, então, percebe


dos nas revistas Phytopathology e Mo- o patógeno e ativa seu mecanismo de re-
lecular Plant-Microbe Interactions, em sistência, conseguindo matá-lo ou redu-
2019 e 2020, respectivamente. zir de forma significativa os danos cau-

78 | AGOSTO DE 2020
sados por ele.” Como as laranjas doces Califórnia, nos Estados Unidos, onde o desistir de picar a planta”, conta Souza.
são a principal cultura do agronegócio biotecnologista Willian Pereira passou “Estamos estudando essa possibilidade.”
de cítricos, a nova planta tem potencial um ano por meio do programa Ciência O Centro de Citricultura Sylvio Mo-
para ser mais competitiva. “Elas poderão sem Fronteiras, enquanto cursava o dou- reira tem tradição na busca por novas
produzir mais e ter um manejo mais sus- torado em genética e biologia molecular, maneiras de combater as pragas em ci-
tentável e econômico”, observa a bióloga. da Universidade Estadual de Campinas tros. Em 2017, Souza e colegas desen-
O cruzamento entre tangerina e la- (Unicamp), sob orientação de Souza. volveram outra variedade de laranjeira
ranja doce já ocorre de forma natural Entre agosto de 2015 e julho de 2016, transgênica resistente à CVC. Na oca-
no ambiente e, por isso, o procedimento ele aprofundou a pesquisa em Arabidop- sião, foi introduzido no genoma da plan-
adotado não é classificado como trans- sis nos laboratórios do Departamento ta um gene da própria bactéria: o rpfF,
genia e sim como cisgenia, quando são de Ciências das Plantas da universidade responsável pela produção de uma pro-
transferidos apenas genes de espécies norte-americana. Por lá, analisou a fun- teína homônima que reduz a movimen-
compatíveis do ponto de vista reprodu- ção da proteína RAP2.2 da planta mode- tação de Xylella. Em 2020, as plantas
tivo. Isso garante um desenvolvimento lo para compará-la com a de tangerina. completam dois anos em fase de campo
mais rápido e seguro por evitar etapas em Ao perceber a semelhança entre elas, e, até o momento, mostraram-se resis-
que poderiam ocorrer incompatibilidade. avaliou a reação de ambas à infecção tentes ao patógeno e com bom desen-
Atualmente, as plantas de laranja do- por Xylella. “Os resultados mostraram volvimento em campo. O genoma da
ce com gene de tangerina estão sendo que as proteínas são ortólogas, ou seja, Xyllela foi o primeiro de um organismo
preparadas para entrarem na fase de desempenham a mesma função nos dois causador de doenças em plantas a ser se-
ensaio em campo no próprio Centro de tipos de planta. Percebemos também quenciado no mundo e o feito, parte do
Citricultura, após mostrarem um bom que a infecção em Arabidopsis é similar Programa Genoma FAPESP, foi capa da
resultado nas estufas. Como se trata de àquela que ocorre nas laranjas doces, revista Nature em 13 de julho de 2000,
uma planta geneticamente modifica- porque a bactéria coloniza os mesmos com participação de Souza.
da, para que a nova fase em campo seja vasos e também gera sintomas”, conta Outro destaque do Centro de Citri-
iniciada é preciso obter autorização da Pereira. A pesquisa ainda mostrou, de cultura é um produto desenvolvido nos
Comissão Técnica Nacional de Biossegu- forma inédita, que Arabidopsis pode ser laboratórios do centro, cujo princípio
rança (CTNBio). “Estamos com a docu- usada como planta modelo para futuras ativo é uma molécula antioxidante cha-
mentação em andamento e a expectativa pesquisas com outros genes de citros pa- mada N-acetilcisteína (NAC), destinado
é que a liberação ocorra até o final do ra uma variedade de aplicações. ao controle do CVC, do cancro cítrico e
ano”, prevê Souza. Essa fase deve durar “A possibilidade de existir uma plan- do HLB. O NAC é comercializado desde
cinco anos e, depois disso, se os testes ta resistente permitiria um uso menor 2019 pela startup CiaCamp – da Ciên-
apresentarem resultados satisfatórios, de inseticidas no controle das cigarri- cia ao Campo. Para Souza, as tecnolo-
as novas plantas poderão ser liberadas nhas que são os vetores da CVC”, avalia gias desenvolvidas são complementares.
para os citricultores. o engenheiro agrônomo Antonio Juliano “Nunca teremos um gene ou um produto

A
Ayres, gerente-geral do Fundecitrus. Ele que resolva todo o problema. Trabalha-
pós identificarem na tan- ressalta, porém, que “é necessário aguar- mos para termos alternativas. Daqui a
gerina uma série de genes dar os resultados em campo para confir- uns anos, o patógeno consegue quebrar
associados aos mecanis- mar a efetividade desses resultados pre- a resistência. Por isso, precisamos de
mos que poderiam confe- liminares obtidos em casa de vegetação”. diferentes abordagens, olhando para o
rir resistência à CVC, os De fato, as demais etapas da pesquisa futuro”, conclui. n
pesquisadores os implantaram em uma sugerem que o gene RAP2.2 tanto pode
“planta cobaia”, a Arabidopsis thaliana, ser usado em outras espécies afetadas
muito utilizada em estudos de biologia pela Xylella, como oliveiras e videiras,
Projetos
molecular. “Nesta etapa, ganhamos vá- quanto tem potencial para o combate a
1. INCT 2014: De genômica comparativa e funcional
rios anos em pesquisa, já que a transfe- outras pragas de citros, como o greening. e melhoramento assistido de citros (nº 14/50880-0);
rência e o estudo de todos os genes em Também chamado de HLB, o patógeno Modalidade Projeto Temático; Convênio CNPq-INCTs;
laranjas é um processo caro e demo- é hoje o maior desafio da citricultura Pesquisador responsável Marcos Antonio Machado (IAC);
Investimento R$ 3.138.880,49.
rado”, explica Souza, “principalmente mundial e atinge 20,87% das plantações 2. Interação Xylella fastidiosa-inseto vetor-planta hospe-
porque a planta leva uns três anos para de laranja em São Paulo e Minas Gerais, deira e abordagens para o controle da clorose variegada
se desenvolver e tem um longo período de acordo com os dados deste ano do dos citros e cancro cítrico (nº 13/10957-0); Modalidade
Projeto Temático; Pesquisadora responsável Alessandra
juvenil de difícil manipulação genéti- Fundecitrus. Alves de Souza (IAC); Investimento R$ 2.504.726,74.
ca”. Com o teste na planta modelo, esse Como a Xylella, o HLB é transmitido
período caiu para cerca de oito meses. pela picada de um inseto, o psilídeo Dia- Artigos científicos
Após a experiência em Arabidopsis, foi phorina citri, e a bactéria Candidatus li- PEREIRA, W. E. L. et al. Citrus reticulata CrRAP2.2 trans-
possível eleger o gene mais promissor, beribacter também coloniza os vasos das criptional factor shares similar functions to the Arabidop-
sis homolog and increases resistance to Xylella fastidiosa.
o RAP2.2, e transferi-lo para as plantas plantas. “O gene de tangerina pode forta- Molecular Plant-Microbe Interactions. v. 33, n. 3, p. 519-
de laranja doce. lecer as paredes desses vasos e ajudar a 27. 23 jan. 2020.
Parte do estudo foi desenvolvida no planta a eliminar a bactéria. Ainda, com Os demais projetos e artigos mencionados estão listados
campus de Davis da Universidade da os vasos mais resistentes, o inseto pode na versão on-line.

PESQUISA FAPESP 294 | 79


POLÍTICAS PÚBLICAS

ABRINDO
TORNEIRAS

80 | AGOSTO DE 2020
Pesquisas indicam que atraso do
saneamento no Brasil prejudica a saúde
e vai contra a racionalidade econômica

Diego Viana

A
pandemia evidenciou as falhas do sanea- indiretos; e c) a geração de 42 mil novos empregos
mento básico brasileiro: para poder ficar diretos e indiretos em toda a cadeia produtiva”.
em casa na quarentena e lavar sempre as Por isso, complementa o economista Marco An-
mãos, é preciso ter acesso à água encana- tonio Rocha, do Núcleo de Economia Industrial
da, o que nem sempre é o caso em um país e da Tecnologia (Neit) do IE-Unicamp, “seria boa
onde muitos ainda dependem de carros- política econômica aumentar o investimento pú-
-pipa e convivem com esgoto a céu aberto. Embora blico no setor, principalmente lembrando que o
85,5% da população receba água encanada, a coleta investimento em saneamento básico tem uma forte
de esgoto só chega a 53% – e, do que é coletado, indução de emprego e renda e gera a redução de
apenas 46% é tratado. Quase 40% dos municípios outros gastos públicos, como em saúde”.
brasileiros não contam com nenhuma coleta de es- No entanto, o saneamento é um dos serviços
goto, segundo a Pesquisa Nacional de Saneamento públicos que menos avançaram no Brasil, se com-
Básico (PNSB), do Instituto Brasileiro de Geografia parado a educação, saúde e telecomunicações. O
e Estatística (IBGE), publicada em julho. Plansab prevê a universalização dos serviços de
Em junho, o Senado Federal aprovou mudanças água e esgoto até 2033, o que exigiria passar a
profundas no marco legal do saneamento básico, investir acima de R$ 25 bilhões por ano, na esti-
que data de 2007 (Lei nº 11.445). Baseada em duas mativa do governo. Entre 1998 e 2018, a alocação
medidas provisórias de 2018, que caducaram sem de recursos ao setor passou de R$ 5 bilhões, em
virar legislação, a agora Lei nº 14.026 se apoia em média, antes de 2007, para R$ 13 bilhões por ano,
análises econômicas que procuram explicar o fra- mas a disseminação da rede segue lenta. Um mo-
casso das sucessivas tentativas de universalizar tivo é a pouca efetividade do gasto, explica Julia-
o saneamento no Brasil, como previsto no Plano na Smiderle, pesquisadora do FGV Ceri. “Muitas
Nacional de Saneamento Básico (Plansab), docu- obras feitas no âmbito do PAC [Programa de Ace-
mento de 2013 que orienta a política pública no leração do Crescimento] não foram concluídas
setor e foi atualizado em 2019. Possíveis causas em tempo hábil. Além disso, as perdas de água
para o fracasso aparecem em diagnósticos co- ainda são altas, acima de 35%, o que sugere falta
mo o de pesquisadores do Centro de Estudos em de incentivo à eficiência”, afirma.
Regulação e Infraestrutura da Fundação Getulio A reforma que alterou o marco legal do sanea-
Vargas (FGV Ceri). No artigo “The governance mento tem entre seus propósitos a atração de
of water and wastewater privisions in Brazil: Are investimentos privados ao setor. Hoje, 7% da po-
there clear goals?”, eles apontam para a falta de pulação vive em áreas sob concessão da iniciativa
metas claras, a insegurança jurídica e a ausência privada. As companhias estatais de saneamento
de capacidade administrativa dos municípios. básico (Cesb), responsáveis pela maior parte dos
A ineficiência do sistema confronta a racionali- serviços de saneamento no país, foram criadas no
dade econômica. Cálculos realizados em 2013 pelo âmbito da primeira legislação nacional do setor, o
economista Célio Hiratuka, do Instituto de Econo- Plano Nacional de Saneamento (Planasa), de 1971.
mia da Universidade Estadual de Campinas (IE- Uma das maneiras pelas quais a nova legislação
-Unicamp), indicam que um investimento de R$ 1 pretende ampliar a participação privada é abolindo
bilhão em saneamento produz “a) um aumento de os chamados “contratos de programa”, pelos quais
R$ 1,7 bilhão no valor da produção da economia; os municípios delegavam, sem necessidade de lici-
LÉO RAMOS CHAVES

b) uma expansão de R$ 245 milhões da massa sa- tação, a uma dessas companhias estaduais a execu-
larial, de R$ 355 milhões do excedente operacional ção do serviço. Pela nova lei, a licitação será obriga-
bruto e de R$ 139 milhões em impostos diretos e tória e as estatais terão de competir com empresas

PESQUISA FAPESP 294 | 81


privadas. “O grande problema está nas metas. Mui- a população está recebendo a água e se o esgoto
tos desses contratos eram antigos e tinham obje- está sendo tratado”, resume.
tivos mal definidos”, diz Smiderle. Segundo ela, O economista Paulo Furquim de Azevedo, do
os contratos de concessão devem ser Smart, sigla Instituto de Ensino e Pesquisa (Insper), em São
para metas específicas, mensuráveis, atingíveis, Paulo, compara a atuação de provedores privados
realistas e com prazo definido. Um ponto central e públicos a partir dos diferentes incentivos que
da legislação recém-aprovada é a obrigação de que movem cada um: para os primeiros, o lucro; para
os contratos passem a estabelecer objetivos claros, os segundos, vitórias eleitorais, já que estão em
que estejam de acordo com o Plansab. maior ou menor grau sob controle de prefeitos e
Outro problema eram as limitações de municí- governadores. Azevedo estima que a atração de
pios pequenos, sem corpo técnico nem recursos investidores privados terá maior impacto sobre o
para fiscalizar e regular a atuação das concessio- esgoto do que sobre a água. “É notório o viés que
nárias. Smiderle estima que um possível motivo os operadores públicos têm pelo abastecimento
para a pouca presença do capital privado no se- de água, em detrimento dos investimentos em
tor é a dificuldade que cidades menores têm pa- esgotamento sanitário. Isso possivelmente ocor-
ra licitar. Para diminuir esse processo, a nova lei re porque o benefício eleitoral associado à água é
torna mais fácil criar consórcios pelos quais os maior do que o do esgoto”, observa.
municípios licitem juntos, dividindo os custos e A operação privada do saneamento implica difi-
aumentando o interesse da empresa na área con- culdades operacionais, porque só pode funcionar
cedida. A lei também prevê a criação do Comitê se houver legislação, fiscalização e planejamen-
Interministerial de Saneamento Básico (Cisb), to cuidadosos. Ao contrário de bens de consumo
que terá a função de articular os investimentos como eletrodomésticos, vestuário ou alimentos,
no país. Uma das mudanças é o aumento das res- não é simples garantir a concorrência. É fácil es-
ponsabilidades da Agência Nacional de Águas colher, em uma loja, entre geladeiras de várias

LÉO RAMOS CHAVES


(ANA), que passa a se chamar Agência Nacional marcas. Mas a água não pode chegar por canos de
de Águas e Saneamento Básico. diferentes operadoras. A concorrência acontece
As maiores críticas à atuação do capital priva- na licitação. O município publica o edital para
do partem do princípio de que é inconveniente escolher a empresa que vai fornecer o serviço
tratar água e esgoto como mercadorias, porque
pode levar a aumentos de tarifas, exclusão de po-
pulações pobres e intensificação da desigualdade.
Rocha explica que a função da empresa pública
deve ser entendida em um escopo mais amplo do
que o fornecimento do serviço. “As estatais têm
uma função de política pública que, por definição,
não pode ser mercantilizada”, observa, citando
o remanejamento de recursos e a possibilidade
de recorrer a subsídios. Hoje, alguns estados vi-
vem uma situação híbrida, já que suas empresas
estaduais operam segundo regras de governança
corporativa, chegando a ser listadas na bolsa de
valores. É o caso de São Paulo (Sabesp), Minas
Gerais (Copasa) e Paraná (Sanepar).
Segundo o economista Carlos Saiani, do Insti-
tuto de Economia e Relações Internacionais da
Universidade Federal de Uberlândia (Ieri-UFU),
o aumento das tarifas tende a acontecer, mas o
motivo é que “parte dos provedores públicos
cobra tarifas inadequadas, ou nem as cobram”.
Para Saiani, com a definição das metas de in-
vestimento e subsídios onde eles forem neces-
sários, “as desigualdades de acesso tenderiam a
cair, dado que são grandes na provisão pública,
o que as críticas costumam ignorar”. Para Smi-
derle, o problema não está em considerar o sa-
neamento e o esgoto como mercadorias ou não,
mas em proporcionar um quadro legal em que
o serviço seja, de fato, oferecido. “O importante
não é se a empresa é estatal ou privada, mas se

82 | AGOSTO DE 2020
por um período determinado. Nesse momento, com que tarifa de prestação de serviço? Há de se
são definidos os requisitos a cumprir. Quando levar em consideração a lucratividade a ser garan-
a empresa vencedora começa a operar, a função tida para que o setor de saneamento seja atrativo,
do governo passa a ser a de regular e fiscalizar. alcançando esse patamar de investimentos durante
Mas como garantir que o contrato será bem-feito a próxima década”, afirma Rocha. No cenário in-
e cumprido? Como tornar o negócio da água e do ternacional, a dificuldade aparece no expressivo
esgoto rentável, mantendo as tarifas em níveis que número de privatizações que foram revertidas.
a população consiga pagar, ainda mais no caso de Segundo o estudo Reclaiming public services, da
um país vasto e desigual como o Brasil? O que fa- consultoria holandesa Transnational Institute,
zer em situações de crise, como uma pandemia ou 267 cidades reassumiram os serviços de água e
estiagem prolongada, para evitar danos à popula- esgoto ao redor do mundo entre 2000 e 2016. O
ção, sem tornar inviável o negócio da prestadora? trabalho Remunicipalização dos serviços de sanea-

P
mento básico, publicado em 2018 pela consultoria
ara todos os setores de bens públicos, da GO Associados, do economista Gesner Oliveira, da
eletricidade ao transporte, questões como Escola de Administração de Empresas (Eaesp) da
essas mantêm economistas, juristas e ou- FGV e ex-presidente da Sabesp, observou diversos
tros pesquisadores ocupados há décadas, casos de reestatização, concluindo que há dife-
tentando desenhar arranjos institucionais rentes causas para o retorno ao provedor estatal.
que sejam ao mesmo tempo eficientes e Entre elas estão tarifas altas demais para o público
justos. “Por exemplo, quando dizemos que a tarifa ou baixas demais para as empresas, contratos com
é mais alta onde o fornecedor é uma empresa pri- informações insuficientes e regulação ineficiente.
vada, temos que lembrar que nem sempre todos Mas também há casos em que simplesmente o con-
os custos estão embutidos no preço do provedor trato chegou ao fim e as cidades, titulares do servi-
estatal”, alerta Smiderle. Por outro lado, para evitar ço, consideraram estar em condições de provê-lo.
que a água seja cara demais para a população, a O caso brasileiro é diferente porque o poder pú-
lei brasileira contém o princípio de “modicidade blico está sem condições de fazer investimentos
tarifária”, que impede aumentos abusivos. por conta própria “ou mesmo com financiamentos,
Também estão previstas tarifas sociais e a pos- já que recursos também estão sendo reduzidos
sibilidade de subsídios nas áreas mais pobres. A com a crise”, observa Saiani. Por isso, estima o
supervisão da ANA, a atuação do Comitê Intermi- economista, “a opção pela concessão resultará
nisterial e a unificação das metas visam garantir que necessariamente em mais investimentos”. Ele ar-
os contratos firmados daqui por diante terão um gumenta que esse aumento de investimento terá
padrão aceitável nas ambições de universalização e impacto direto sobre indicadores importantes,
na política tarifária. Segundo a análise do FGV Ceri, como os de saúde, com a condição de que os con-
no entanto, a unificação das metas é pouco factível, tratos de concessão e o regulador tenham “espe-
pois “pode afetar a atratividade de investidores e/ cial atenção a parâmetros de qualidade, dado que
ou a modicidade tarifária em certas áreas, em es- o provedor privado, para reduzir custo e aumentar
pecial aquelas com baixa capacidade de pagamen- retorno, pode reduzir a qualidade ou não investir
Esgoto a céu aberto to e alta necessidade de investimentos”. A análise nela”, afirma. Azevedo argumenta, também, que
em São Paulo: quase aponta, também, o risco de atrair investidores que, a introdução do setor privado poderá ter impacto
40% dos municípios incapazes de cumprir a meta, buscarão renegociar
brasileiros não contam
com nenhuma coleta,
os contratos em termos menos rigorosos.
segundo a PNSB “Será que o setor privado terá condições de alo-
do IBGE car R$ 700 bilhões em 13 anos? Se conseguir, será

PESQUISA FAPESP 294 | 83


positivo sobre a desigualdade. Em pesquisa re- “Olhando o caso do saneamento, vemos a de-
cente, ainda não publicada, o economista chega sigualdade do Brasil como um todo”, resume o
a um resultado em que a concessão privada “está pesquisador. Em estudo realizado em 2019 para
associada a um acréscimo de 6,1 pontos percen- a Organização Pan-americana de Saúde (Opas),
tuais no acesso ao esgotamento sanitário, o que Heller, que é relator especial da Organização das
representa um aumento de 26%”, sobretudo nos Nações Unidas (ONU) para o direito humano à
municípios em condições mais desfavoráveis. água e ao saneamento básico, explorou as diferen-
A dificuldade brasileira em garantir o direito tes dimensões da desigualdade, comparando lares
ao saneamento também agrava a desigualdade em estados ricos, de famílias brancas e urbanas,
característica do país, aponta Leo Heller, pes- com lares em estados pobres, de famílias negras e
quisador da Fundação Instituto Oswaldo Cruz rurais. O acesso ao esgoto tratado, nas primeiras,
(Fiocruz) e professor da Universidade Federal é de 92%; nas segundas, de 16% – uma diferença
de Minas Gerais (UFMG). Essa desigualdade tem de 76 pontos percentuais. “Por que a desigualda-
múltiplas dimensões. Ela é regional: enquanto 91% de tão marcante? Ela resulta de políticas públicas
da população do Sudeste recebe água encanada, historicamente implementadas, orientadas pela
no Norte são apenas 57%; é social: em todas as viabilidade econômica”, explica. No estudo, Hel-
regiões do país, periferias e favelas sofrem com ler assinala que a lógica da viabilidade econômica
esgoto a céu aberto; é territorial: o saneamento orientou até mesmo o planejamento na década de
rural é precário, com apenas 11% da população 1970, quando as companhias estatais foram criadas.
atendida pela rede de água e 0,8% do esgoto co- O resultado foi uma expansão desigual do acesso a
letado; e é de gênero, porque as mulheres ainda água e esgoto, em que regiões já mais ricas foram
são responsáveis pela maior parte das tarefas que favorecidas. Para o pesquisador, as alterações na
exigem contato com a água, aponta o relatório lei de saneamento reforçam essa abordagem. Ele
Mulheres e saneamento, do Instituto Trata Brasil. observa também que os consórcios municipais,

LÉO RAMOS CHAVES


“Está claro que as pessoas que mais sofrem com embora sejam boa ideia, até o momento não con-
a falta d’água são as mais vulneráveis, tanto aquelas seguiram resultados satisfatórios no Brasil.
que vivem em assentamentos precários, em situa- Diferentes dimensões da política pública con-
ção de rua, quanto quem não tem caixa-d’água e vergem no saneamento. Essa convergência trans-
fica à mercê de um abastecimento intermitente”,
afirma Vanessa Empinotti, professora da Universi-
dade Federal do ABC (UFABC). Em março, quando
começou o isolamento social no Brasil, lideranças
de várias partes do país apresentaram listas de
reivindicações ao poder público para ajudar peri-
ferias e favelas a atravessar a quarentena. Em res-
posta, diversos estados adotaram medidas como a
suspensão dos cortes de fornecimento durante a
pandemia, segundo o estudo “A Covid-19, a falta de
água nas favelas e o direito à moradia no Brasil”, do
Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).

ARQUIVO NACIONAL

84 | AGOSTO DE 2020
parece na ampla definição nacional do conceito, responsável por pensar sistemas de água e esgoto
tanto na lei de 2007 quanto em sua atualização. a partir da saúde pública, relata a cientista social
Envolve oferta de água potável, coleta de esgotos, Cristina de Campos, da Universidade São Judas
limpeza urbana, manejo dos resíduos sólidos e Tadeu, de São Paulo. Os planos operavam em dois
drenagem de águas pluviais. “É uma denomina- eixos: de um lado, os médicos sanitaristas; de ou-
ção especificamente brasileira, que faz sentido, tro, os engenheiros. “Esses profissionais atuavam
mas não é usada em outros países”, aponta Heller. em campos bem amplos: do controle de água e
“O que essas dimensões têm em comum é serem esgoto nas cidades ao mapeamento de doenças
intervenções sobre o ambiente físico, visando pelo território do estado”, resume Campos.
promover a saúde”, completa. Em seguida, a perspectiva se inverteu. “O cam-

C
po das engenharias capturou o tema da gestão hí-
onsiderando o volume da água retirada drica como sendo exclusivo de sua competência.
dos mananciais, a quantidade de esgoto Esse campo não se abriu ao diálogo com outros,
produzida diariamente e a necessidade como a ecologia, senão por meio de pressões dos
de construir represas e tubulações, o sa- novos movimentos sociais”, observa a economista
neamento está diretamente vinculado ao Norma Valencio, vice-coordenadora do Núcleo de
meio ambiente. O abastecimento de água Estudos e Pesquisas Sociais em Desastres da Uni-
tem relação direta com o manejo de recursos hí- versidade Federal de São Carlos (Neped-UFSCar).
dricos e o recolhimento de águas pluviais é um Esse foi o período das grandes represas e estações
elemento que vincula o saneamento ao urbanismo. de tratamento, que buscavam maneiras de abas-
Essa conjunção de dimensões faz do saneamen- tecer as metrópoles em crescimento acelerado.
to “o maior avanço de saúde pública no último A situação começou a mudar novamente nas últi-
século”, conforme a expressão de livro editado mas décadas, com o fortalecimento de pesquisas in-
pelos pesquisadores Rita de Cássia Franco Rêgo terdisciplinares que aprofundam o vínculo entre as
e Maurício Lima Barreto (ambos da Universida- diferentes dimensões do saneamento. As circuns-
de Federal da Bahia) e Cristina Larrea-Killinger tâncias históricas também foram determinantes,
(Universidade de Barcelona). já que um dos efeitos esperados do aquecimento
Embora pareça evidente, o vínculo entre sa- do planeta é o aumento de episódios de estresse
Água encanada: neamento e saúde pública já foi mais estreito: no hídrico, o que faz da crise ambiental o principal
enquanto 91% começo do século XX, o médico higienista Geral- pano de fundo para a legislação de saneamento.
da população do
Sudeste tem acesso
do Horácio de Paula Souza, que fez doutorado na A crise climática é presença constante nas pági-
em casa, no Norte Universidade Johns Hopkins, nos Estados Unidos, nas do Plansab, que promove a articulação com o
são apenas 57% trabalhava no Instituto de Higiene em São Paulo, Plano Nacional de Adaptação à Mudança do Clima
(PNA). No próprio Plansab, são listados como pa-
radigmas do saneamento no século XXI “a susten-
tabilidade, a gestão integrada das águas urbanas, o
saneamento ecológico, a reciclagem e o combate às
mudanças climáticas globais”. Uma de suas metas
é “reduzir significativamente” até 2030 o número
de mortes em catástrofes ligadas ao clima.
Com efeito, inundações e deslizamentos de ter-
ra deverão ser mais frequentes e, ao mesmo tem-
po, secas e estiagens vão se tornar mais comuns,
criando desafios novos para a gestão da água e do
esgoto. A Organização Mundial da Saúde (OMS)
estima que, em cinco anos, metade da população
mundial viverá em áreas sob intenso estresse hí-
drico. Nesse cenário, a exigência sobre os prove-
dores do saneamento, privados ou públicos, já se
revela mais intensa. “A dinâmica, tanto das rela-
ções socioambientais quanto das sociopolíticas,
aponta para a ampliação e o cruzamento de crises
que eram consideradas distintas”, alerta Valencio.
“Estamos vivenciando um desastre de múltiplas
escalas. Receio que a crise hídrica tenda a piorar
esse cenário.” n

Os artigos científicos e livros consultados para esta reportagem estão


listados na versão on-line

PESQUISA FAPESP 294 | 85


ARQUIVOLOGIA

PARA
EVITAR
O
ESQUECIMENTO
Participantes do
III Congresso Nacional
Feminista com
o presidente Getúlio
Vargas, em 1936.
Imagem integra
acervo sobre o legado
de Bertha Lutz

86 | AGOSTO DE 2020
Suspenso desde 2019, comitê brasileiro do
Programa Memória do Mundo mapeia
acervos raros e identifica coleções perdidas

Christina Queiroz

H
á dois anos, quando um incêndio consumiu responsáveis pelos itens ou coleções já chance-
boa parte do acervo do Museu Nacional, ladas pelo programa da Unesco.
no Rio de Janeiro, o Fundo Bertha Lutz, As candidaturas para o registro nacional po-
composto por arquivos pessoais e pesqui- diam ser apresentadas por instituições públicas
sas científicas desenvolvidas pela bióloga, (municipais, estaduais ou federais) e privadas,
deputada e feminista brasileira foi de- além de organizações internacionais. Com 18 in-
vastado. O fundo integrava parte de uma coleção tegrantes, entre representantes de organizações
sobre Lutz (1894-1976), que estava sendo mapeada de guarda de acervo e profissionais com experiên-
para submissão ao Comitê Nacional do Brasil do cia direta de trabalho no campo, que são eleitos
Programa Memória do Mundo da Organização por seus pares a cada dois anos, o comitê estava
das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e vinculado ao Ministério da Cultura. Em 2019, no
a Cultura (Unesco). Perplexos diante da tragédia, entanto, a pasta tornou-se uma secretaria ligada
integrantes do comitê, instituído para reconhe- ao Ministério do Turismo, mas a sede do comitê
cer documentos como patrimônio da humanida- permaneceu no Arquivo Nacional, instituição
de, decidiram nomear a coleção na categoria de gerida pelo Ministério da Justiça.
“acervo perdido”, que tem como objetivo evitar Em iniciativa que mobilizou, durante anos,
o esquecimento de documentações raras que, a instituições brasileiras e italianas, o processo de
exemplo do que ocorreu com esse fundo, foram reconhecimento do acervo do compositor Carlos
destruídas por catástrofes ou acidentes. Além Gomes (1836-1896) resultou na localização de
dessa iniciativa, nos seus 16 anos de existência o uma partitura incompleta na Biblioteca Nacional.
comitê reconheceu outras 110 candidaturas com Considerada perdida pela instituição desde o final
perfis variados, mapeou e reencontrou documen- do século XIX, a parte faltante foi localizada em
tos extraviados. A nominação é um instrumento 2012 no Museu Histórico, entre papéis do espólio
do comitê para reconhecer e registrar documentos do imperador dom Pedro II, para quem Gomes
como patrimônios da humanidade. Desde então, tinha doado uma parte da composição musical.
novas perspectivas de pesquisa em diferentes Anos antes, em 2004, o comitê aprovou o regis-
campos do saber têm sido abertas. tro nacional de documentos relativos à atuação da
“A nominação como ‘acervo perdido’ permite polícia política carioca e fluminense armazenados
chamar a atenção aos danos irreversíveis causa- no Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro
dos por esse tipo de acontecimento à memória (Aperj). O historiador Paulo Knauss, da Univer-
histórica nacional e da humanidade”, conta Íris sidade Federal Fluminense (UFF) e ex-diretor
Kantor, do Departamento de História da Uni- do Aperj, recorda que na ocasião se constatou a
versidade de São Paulo (USP) e integrante do amplitude dos arquivos de polícias políticas exis-
comitê. Apesar da importância do programa, tentes no país, envolvendo a atuação de distintos
suas atividades foram suspensas em 2019, como aparatos de repressão ativos no Brasil entre 1905
resultado do Decreto nº 9.759, que extinguiu ou e 1983. O conjunto brasileiro representa um dos
ARQUIVO NACIONAL

estabeleceu novas regras para colegiados da ad- maiores acervos do mundo sobre a repressão po-
ministração pública federal. No momento de sua lítica. “A partir de então, houve uma mobilização
interrupção, o comitê planejava reforçar ações de para identificar e mapear o circuito geral de arqui-
difusão e educação patrimonial nas organizações vos de polícia política no Brasil”, conta Knauss.

PESQUISA FAPESP 294 | 87


Ao organizar sua coleção para a candidatura no loga Maria Elizabeth Brêa Monteiro, do Arquivo
Programa Memória do Mundo Brasil, o Arquivo Nacional e integrante do comitê. Como exemplo,
Público do Estado do Rio de Janeiro descobriu ela menciona os Registros Iconográficos da Revol-
que guardava conjuntos documentais de outros ta da Armada (1893-1894), candidatura proposta
estados do país, como Alagoas, Paraíba, Bahia e pelo Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro,
Rio Grande do Sul. “No Rio de Janeiro, funcionava Instituto Moreira Salles (IMS) e Museu Histórico
a sede do que corresponderia à função da atual Nacional. “A coleção abarca imagens produzidas
Polícia Federal, que recebia e arquivava corres- por fotógrafos como Marc Ferrez [1843-1923] e
pondência e documentos da polícia política de Juan Gutierrez [1859-1897] e abre campos de aná-
todo território nacional”, informa o pesquisador. lise para reflexões sobre as forças políticas em
De acordo com Knauss, a constatação da existên- disputa naquele momento da história”, explica.
cia de um amplo conjunto arquivístico com essa Jussara Derenji, professora aposentada da Fa-
natureza ganhou repercussão a partir dos traba- culdade de Arquitetura e Urbanismo da Universi-
lhos do Comitê Memória do Mundo. “Esse acervo dade Federal do Pará (FAU-UFPA) e atual diretora
oferece informações sobre questões envolvendo do Museu da UFPA, conta que o Comitê Memória
democracia, direitos humanos, cidadania e lega- do Mundo surgiu em 1992, na tentativa de reduzir
lidade. Por intermédio dele, muitas pesquisas se os impactos de catástrofes, incluindo guerras,
tornaram possíveis. Abriu-se um horizonte que conflitos religiosos e desastres naturais, sobre
era muito restrito ao Rio de Janeiro e São Paulo, o patrimônio documental. Sediado em Paris, na
detentores de acervos maiores e mais conhecidos. França, hoje conta com representações em cerca
Além disso, iniciou-se um debate sobre o acesso de 70 países. “O programa garante a preservação
à informação e a regulamentação de dados pes- de documentos históricos para viabilizar novas
soais, discussões que ajudaram a embasar a for- leituras no futuro”, observa. Nesse sentido, ela
mulação da Lei de Acesso à Informação”, explica lembra que há 20 anos disquetes eram conside-
Knauss, referindo-se à Lei nº 12.527, sancionada rados o meio mais adequado para armazenar ar- Documentação
em novembro de 2011. quivos, mas hoje praticamente não existem com- que inclui a
“Os últimos anos foram marcados por um es- putadores capazes de realizar a leitura dos dados correspondência original
forço em ampliar o reconhecimento como patri- que eles contêm. “Os meios de armazenamento da administração do
Pará com a Corte:
mônio de distintos elementos além do documento se tornam obsoletos com rapidez. Para garantir a carta de 1789 informa
textual, incluindo fotografias, imagens em movi- sobrevivência de um documento, é fundamental sobre o carregamento
mento e registros sonoros”, informa a antropó- preservar o objeto original”, enfatiza. de produtos naturais

1 2

Manuscrito
de 1866 da ópera
Il guarany, de Carlos
Gomes, registrado
no programa em 2017
como parte dos
acervos de instituições
brasileiras e italianas

88 | AGOSTO DE 2020
3

E
m 2018 foram reconhecidas 10 coleções, pelo governo português para colaborar com os Imagem da Revolta da
entre elas os acervos de diferentes institui- trabalhos de demarcação dos limites entre Por- Armada mostra ruínas
na Ilha de Villegagnon,
ções envolvendo o legado de Bertha Lutz, tugal e Espanha, na região sul-americana dos no Rio de Janeiro
uma das fundadoras da Federação Brasilei- rios da Prata e Paraguai. A candidatura incluiu
ra pelo Progresso Feminino. Lutz também um mapa-mural avulso intitulado Tabula nova,
atuou como pesquisadora no Museu Na- atque accurata America Australis, em latim, com
cional, em uma época em que as mulheres pouco desenhos das paisagens, fauna e flora locais, que
participavam do campo científico. “A candidatura são aquareladas e ilustram o itinerário da expe-
proposta pelo Arquivo Histórico do Itamaraty, dição de demarcação. “São registros da topogra-
Arquivo Nacional, Centro de Documentação e fia, hidrografia e toponímia que também trazem
Informação da Câmara dos Deputados e o Cen- dados para o estudo da etnobotânica, ciência que
tro de Memória da Universidade Estadual de estuda as relações entre o meio ambiente, as plan-
Campinas [Unicamp] permitiu mapear objetos tas e as populações indígenas”, destaca Kantor.
dispersos e armazenados por distintas organiza- Para a pesquisadora, a possibilidade de identi-
ções, o que deve incentivar o desenvolvimento de ficar e reunir elementos dispersos como parte de
estudos sobre a trajetória dessa pioneira”, analisa um conjunto documental único representa uma
Kantor, da USP. “A expectativa é que a inclusão das principais contribuições do comitê. “Um dos
dos documentos que pertenciam ao Museu Na- critérios de avaliação das candidaturas envolve
FOTOS 1 E 2 ARQUIVO NACIONAL 3 FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL

cional, desaparecidos no incêndio, gere, no longo a necessidade de contemplar séries completas


prazo, reflexões sobre os impactos dessa perda de determinado tipo de documentação. Os itens
nos estudos sobre a bióloga”, comenta Kantor. devem constituir um conjunto coeso, ainda que
A historiadora contribuiu com o desenvolvi- limitado cronologicamente. Em muitos casos,
mento da candidatura do atlas e da carta-mu- esses conjuntos documentais encontram-se dis-
ral Mappa geographicum quo flumen Argentum, persos, acondicionados em diferentes fundos,
Paranà et Paraguay exactissime nunc primum des- sem uma descrição e tratamento arquivístico ade-
cribuntur..., chancelados em 2012 pelo programa quado”, detalha. Ela considera que, ao estimular
da Unesco. Pertencente à Fundação Biblioteca essa integração, o programa Memória do Mun-
Nacional, o Mappa foi elaborado em 1758 por Mi- do induz à identificação e descrição técnica dos
guel Antônio Ciera, engenheiro militar natural de conjuntos documentais, facilitando o acesso dos
Pádua, na Itália, morto em 1782. Após o Tratado pesquisadores e historiadores à documentação e
de Madri, assinado em 1750, ele foi contratado promovendo uma cultura favorável à preservação

PESQUISA FAPESP 294 | 89


Juscelino Kubitschek
discursando em
1º de maio de 1959,
em Brasília: foto integra
registros do DIP,
cuja documentação
foi reconhecida pelo
comitê em 2010

do patrimônio documental. Também balizam as nização de festas religiosas e as estratégias de


decisões do comitê critérios sobre a autenticidade auxílio para escravos e negros libertos, como a
das coleções apresentadas, o fato de serem únicas captação de recursos para a compra da liberda-
ou insubstituíveis, a sua raridade e as eventuais de ou a inserção em atividade que possibilitasse
ameaças à sua preservação. Cada proponente seu sustento, permitem ampliar o escopo de es-
precisa apresentar um plano de gestão para o tudos sobre o protagonismo negro no processo
acervo que deseja ver reconhecido e garantir de emancipação.

A
que ele estará organizado e acessível ao públi-
co. “Ao serem reconhecidos, os acervos ganham o fomentar a colaboração entre institui-
capital simbólico e visibilidade, que facilitam o ções públicas e privadas, avalia Knauss,
acesso das instituições proponentes a linhas de as atividades do comitê também têm
financiamento para sua preservação e difusão”, contribuído para a promoção de po-
destaca o historiador Hilário Figueiredo Pereira líticas de preservação do patrimônio
Filho, do Instituto do Patrimônio Histórico e Ar- documental do Brasil. “Ao reconhecer
tístico Nacional (Iphan), que em 2018 defendeu coleções com múltiplos perfis, o programa fun-
tese na Universidade Federal do Estado do Rio ciona como espaço de diálogo e colaboração entre
de Janeiro (Unirio) sobre o programa. os universos dos arquivos, das bibliotecas e dos
Ainda em relação às últimas nomeações, De- museus. Além disso, pelas candidaturas que re-
renji destaca o manuscrito “Relíquia da Irman- cebe, permite traçar um panorama da situação
dade Devoção de Nossa Senhora da Solidade dos dos acervos históricos do país”, considera. Até a
Desvalidos – Actas 1832-1847”, que pertence à paralisação de suas atividades, o comitê recebia
Sociedade Protectora dos Desvalidos, localizada a cada ano, em média, 25 candidaturas – hoje,
em Salvador, na Bahia. “Fundada em 1832, a so- não se sabe quando será possível reativá-lo. Por
ciedade atuou como a primeira associação civil fim, Kantor, da USP, recorda que uma parte sig-
negra do país. Foi criada para ajudar escravos nificativa das coleções documentais e bibliográ-
no processo de busca por liberdade”, explica a ficas brasileiras ainda não está catalogada e que a
arquiteta da UFPA, atual presidente do comitê continuidade do programa representa um passo
ARQUIVO NACIONAL

e cuja eleição, em 2018, integrou esforço do pro- fundamental para a construção de uma cultura
grama em diversificar sua área de atuação para de guarda, preservação, descrição e acesso pú-
além do Sudeste do país. Ela analisa que as atas, blico gratuito aos patrimônios documentais e
que englobam assuntos administrativos, a orga- bibliográficos do país. n

90 | AGOSTO DE 2020
RESENHA

Uma voluntária da pátria


Rodrigo Goyena Soares

P
oucos meses antes de completarem-se 150 patriarcal, a quase heroína poderia no máximo,
anos do término da Guerra da Tríplice conforme o despacho do Exército, servir aos ho-
Aliança contra o Paraguai (1864-1870), José mens nos campos de batalha. Como enfermeira,
Murilo de Carvalho trouxe a lume uma face me- no melhor dos casos.
nos conhecida do conflito: o lugar das mulheres. Jovita negou a oferta por considerá-la aquém
A publicação faz parte de iniciativa promissora de suas possibilidades. Retornou a Teresina, on-
da Chão Editora de dar voz aos documentos por de redescobriu a rejeição do pai e do tio. Restou-
seleção e recorte de um mediador-pesquisador -lhe procurar amparo no anonimato. Usando os
que recompõe o momento histórico. O resultado, recursos daqueles que pouco antes haviam sido
na obra de Carvalho, é a reconstituição da polis- mecenas, Jovita voltou ao Rio em março de 1866.
semia que caracterizou Jovita Alves Feitosa, uma Agora pelo silêncio das fontes primárias, a aura
cearense parda e pobre nascida em 1848, migra- misteriosa da cearense pareceu reabilitar-se. Os
Jovita Alves Feitosa: da para o Piauí e ainda cedo órfã, que se alistou jornais noticiaram seu regresso à Corte, mas com
Voluntária da pátria, no Exército com 17 anos, em 1865, e se suicidou partida de Montevidéu. Presumiu-se que se aproxi-
voluntária da morte
José Murilo de Carvalho
pouco depois, em 1867. mara do teatro de operações para entreter-se com
Chão Editora O esboço biográfico de Jovita é narrado com um amante piauiense. Se não isso, fora encontrar
152 páginas larga ênfase no período em que transitou pelos o irmão, que combatia o Paraguai. Naquela altura
R$ 44,00​ quartéis. É o que autorizam as poucas fontes so- o recrutamento tornou-se cada vez mais forçado,
bre a personagem. Mediando ofícios, poemas, incidindo nas camadas populares, das quais ela e
retratos, interrogatórios e atestados, Carvalho seus próximos inegavelmente faziam parte.
descortina uma sertaneja que, indignada com as A Jovita da capital tornou-se outra, cedeu lugar
crueldades cometidas pelos paraguaios contra a “uma elegante do mundo equívoco”. Transfor-
brasileiras em Mato Grosso, cortou os cabelos, mou-se, por profecia ou condição de classe, na-
escondeu os peitos em trajes masculinos e se apre- quilo que os céticos, antes, quiseram dela. Amar-
sentou à caserna em Teresina. De lá, após a inclu- gurada e diante de amantes que a buscavam pela
são no 2º Corpo de Voluntários, Jovita cruzou as mística de voluntária, lamentava não ter disposto
principais capitais nordestinas e alcançou o Rio de educação para fugir do abismo no qual se en-
de Janeiro, para tornar-se um mito em 37 dias. contrava. Teve um fim triste. Apaixonou-se pelo
Os mais entusiasmados chamaram-na de Joana engenheiro galês William Noot, que deixou sem
d’Arc brasileira e organizaram saraus e celebra- muitos remorsos uma nota em inglês quando vol-
ções teatrais em consideração à jovem cearense. tou à Europa. A voluntária da morte tirou a própria
Os mais céticos não vislumbraram senão opor- vida. “Só dela e de Deus”, disse em nota de despe-
tunidade. Movida pelo emprego, pelo pão e pela dida, “eram conhecidas” as razões de seu suicídio.
terra que o governo havia prometido, em janeiro Distinguindo fato e mito, Carvalho cumpre im-
de 1865, a todos os que se alistassem, Jovita, na portante papel ao reabilitar, por meio de esboço
voz dos conservadores, emergia como presa fá- biográfico, o lugar do gênero na história militar.
cil para a propaganda militar. Buscaram sufocar A guerra contra o Paraguai não foi exceção numa
o mito em constituição, e Jovita foi classificada época em que as mulheres tiveram função expres-
como prostituta. siva nos conflitos armados. Ratifica-o a Guerra
Não menos mítica, porque não se realizou, foi da Crimeia (1853-1856) e a Guerra de Secessão
sua incorporação às frentes de combate. A princi- (1861-1865), que, com a guerra no Prata, foram
pal expectativa dos 37 dias de glória foi frustrada guerras totais. Mobilizaram populações inteiras
numa canetada do ministro da Guerra, que recu- e recursos orçamentários somente recuperados
sou seu embarque. A partir daqui, desfazendo a depois de anos ou décadas.
ficção em benefício da história, Carvalho revela a
materialidade social que, por trás da euforia dos
Rodrigo Goyena Soares é historiador e autor de Conde d’Eu: Diário do
primeiros meses de combate, permeou a rápida comandante em chefe das tropas brasileiras em operação na República
posteridade de Jovita. Mulher numa sociedade do Paraguai (Paz & Terra, 2017)

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MEMÓRIA

GUERRA C
entenas de ratos mortos se
amontoavam nos armazéns, nos
becos e nos telhados das casas
da cidade de Santos, litoral paulista,
em outubro de 1899. Era o sinal

À
inconfundível da chegada da temida
peste bubônica, também conhecida
como peste negra, que havia sido a
causa da morte de cerca de 50 milhões

PESTE
de pessoas na Europa no século XIV
e de mais de 12 milhões na Índia
e na China no século XIX. Santos
era o porto exportador de café,
a principal riqueza paulista da época,
e o segundo maior do país, após o do
Médicos agiram com rapidez Rio de Janeiro, então a capital federal.
A despeito das resistências, médicos
contra uma epidemia no Brasil experientes agiram com rapidez para
identificar e combater a peste sob a
no final do século XIX liderança dos paulistas Emílio Ribas
(1862-1925), em São Paulo, e Oswaldo
Carlos Fioravanti Cruz (1872-1917), no Rio de Janeiro.
“Os dois tinham grande poder de
intervenção, por acumularem capital
científico e político”, diz a médica e
historiadora das doenças Dilene
Raimundo do Nascimento, da
Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) do
Rio de Janeiro. “Logo depois de
identificarem a doença, eles já

92 | AGOSTO DE 2020
Porto de Santos, que o médico francês Paul-Louis prevalecer, “cabendo ao governo não
cerca de 1880, Simond (1858-1947) descobriu que interferir nem criar prejuízos nas
uma das portas de
entrada da bactéria
a bactéria chegava às pessoas por relações comerciais”. Os protestos,
Yersinia pestis meio da picada de pulgas (Xenopsylla porém, não tiveram efeito prático.
cheopis) infectadas ao se alimentarem No mês seguinte chegaram notícias
do sangue de ratos. Hoje se sabe que da peste no Paraguai.
o micróbio se instala e se multiplica Como diretor do Serviço Sanitário
nos gânglios linfáticos, que incham, de São Paulo, Emílio Ribas, ao concluir
formando os chamados bubões, e às que o porto de Santos poderia ser
vezes se rompem. Essa doença causa uma das entradas da peste, tomou
febre alta, dores, vômitos, tosse com medidas preventivas; de 1896 a 1898
sangue e convulsões. ele tinha coordenado a demolição
Em agosto de 1899, após as notícias de cortiços e a limpeza de casas, ruas
sobre a peste na cidade do Porto, e terrenos baldios para eliminar os
em Portugal, o governo brasileiro focos de Aedes aegypti, o transmissor
determinou que todos os navios vindos da febre amarela, outro problema de
de Portugal e da Espanha deveriam se saúde pública.
submeter a uma quarentena de 20 dias O primeiro médico que Ribas enviou
antes de atracar. Em cartas publicadas para o litoral, em 9 de outubro, foi o
no Jornal do Commercio, o diretor mineiro Vital Brazil Mineiro da
de Higiene e Assistência Pública do Campanha (1865-1950). Ele levou um
Estado do Rio de Janeiro, o médico microscópio, meios de cultivo de
fluminense Jorge Alberto Leite Pinto bactérias, tubos e instrumentos para
(1865-1934), contestou as medidas. autopsia, montou um laboratório
Seu argumento era de que a peste, em um dos quartos do Hospital de
em vista do que já se sabia sobre ela, Isolamento e se pôs a estudar ratos
poderia ser facilmente tratável. Em um vivos coletados em lugares onde havia
1
artigo de novembro de 2013 na revista outros já mortos.
História, Ciências, Saúde – Manguinhos, Logo depois de chegar a Santos,
isolaram os pacientes”, acrescenta a Nascimento e o historiador da ciência outro médico da equipe, o carioca
historiadora Olga Alves, pesquisadora Matheus Silva, então ligado à Fiocruz, Guilherme Álvaro da Silva (1869-1930),
do Centro de Memória do Instituto observaram que o médico alegava soube de um doente que havia morrido
Butantan. que a quarentena, ao impedir o dias antes na Santa Casa da cidade
A peste chegou primeiro ao desembarque dos navios estrangeiros, com uma infecção severa e inchaço
Paraguai, em setembro de 1899. poderia causar prejuízos econômicos dos gânglios da virilha direita. Silva
Alertado pelas notícias que vinham do e elevar o preço dos produtos concluiu que o homem havia morrido
país vizinho, o governo brasileiro importados. De acordo com os dois de peste – e não de febre amarela,
tratou de importar o soro antipestoso pesquisadores, para Pinto os como se diagnosticou inicialmente –,
FOTOS 1 MARC FERREZ / ACERVO INSTITUTO MOREIRA SALLES 2 INSTITUTO PASTEUR E ANTOINE DANCHIN / CDC

do Instituto Pasteur de Paris e, interesses do comércio deveriam ao encontrar ratos mortos perto da
a seguir, combateu os ratos,
2
transmissores da doença, que
chegavam com os navios e se Alexandre Yersin em
espalhavam pelas cidades portuárias. frente à cabana
em Hong Kong onde
O conhecimento sobre a doença isolou a bactéria
foi essencial para planejar as ações da peste, em 1894
que a detivessem. Em 1894, dois
bacteriologistas, o suíço Alexandre
Yersin (1863-1943), em Hong Kong,
e o japonês Kitasato Shibasaburo
(1853-1931), no Japão, identificaram a
bactéria causadora da doença, que
ganhou o nome de Yersinia pestis. Em
1895, de volta ao Instituto Pasteur de
Paris, Yersin se aliou ao biólogo Léon
Charles Albert Calmette (1863-1933)
e ao médico Émile Roux (1853-1933)
para desenvolver um soro contra a
peste, testado em seres humanos
três anos depois. Foi também em 1898

PESQUISA FAPESP 294 | 93


Vista do prédio central
do Instituto Soroterápico
Butantan, criado por
Vital Brazil

1 2

casa onde morava. Em seu livro de A convite dos vereadores de Santos, Até o final de dezembro de 1899,
1919, A campanha sanitária de Santos – que procuravam uma opinião 35 pessoas com peste foram tratadas
Suas causas e seus efeitos, Silva contrária, no dia 22 de outubro chegou no Hospital de Isolamento, das quais
relatou que “os ratos eram então Oswaldo Cruz, que havia passado três 15 morreram, um resultado bem abaixo
abundantíssimos em Santos, vendo-se anos no Instituto Pasteur de Paris. das taxas históricas da letalidade da
durante a noite verdadeiros bandos”. Cinco dias depois, em um telegrama peste, que matava quase todos em
Outro médico do Serviço Sanitário, ao governo federal, ele informou que quem se abrigava. Mesmo assim,
o também carioca Adolfo Lutz havia isolado “a mesma forma os comerciantes de Santos ainda
(1855-1940), chegou no dia 14 de bacteriana que do homem” nos contestavam os médicos. Em busca de
outubro, quando começaram animais doentes e nos mortos, outras opiniões, Lutz mandou amostras
a aparecer os casos suspeitos, os fechando o diagnóstico, de acordo com de material dos gânglios dos doentes
doentes – e as mortes. Em um relatório os pressupostos estabelecidos pelo para especialistas de Paris, Londres e
publicado inicialmente na Revista químico Louis Pasteur (1822-1895). Hamburgo; todos atestaram a peste.
Médica de São Paulo em fevereiro de “Os critérios clínico, epidemiológico A cidade de São Paulo registrou
1899, Vital Brazil descreve a evolução e bacteriológico permitem afirmar o primeiro caso de peste no início de
da doença, os experimentos em categoricamente ser a peste bubônica novembro daquele ano, motivando
animais e o comportamento da a moléstia reinante”, ele concluiu. a procura e o isolamento de pessoas
bactéria: “O cocco-bacillo parece não “Aquele foi um momento importante, infectadas pelas equipes de saúde
gozar de mobilidade. Agglutina-se sob de consolidação da bacteriologia e o combate aos ratos, com várias
a influencia de serum antipestoso”, e da pesquisa científica”, observa estratégias: limpeza de esgotos,
anotou. Os exames e as autópsias, Nascimento. armazéns e casas pelos funcionários
acompanhadas pessoalmente por do Serviço Sanitário, distribuição de

C
Ribas, que também foi para lá, ruz também teve de cuidar de folheto intitulado Peste, matança
confirmaram que a peste bubônica Vital Brazil, que adoeceu com a dos ratos, com versões em português,
havia chegado. Quatro dias depois peste e se recuperou com soro italiano, alemão, inglês e francês, e uma
saiu o comunicado oficial e começou antipestoso importado. “Não campanha para a própria população
a caça aos ratos em casas, cocheiras compreendemos ainda hoje porque caçar ratos, que o governo comprava.
e armazéns do porto. não fomos vitimados pela doença, O Desinfectório Central, órgão do
Os moradores de Santos que na véspera havia prostrado o Serviço Sanitário, comprou dos
protestaram, diante da perspectiva dr. Vital Brazil, no Isolamento, onde moradores e incinerou cerca de 14 mil
de prejuízos decorrentes do provável trabalhava”, anotou Silva em seu livro ratos apenas em novembro de 1899.
fechamento do porto. Requisitado, de 1919, ao relatar uma visita a uma Houve, porém, algumas distorções.
o cirurgião fluminense Eduardo casa onde quatro pessoas haviam “Muitas pessoas, nos meses seguintes,
Chapot-Prévost, professor da morrido de peste. Ele e sua equipe passaram a caçar roedores, fazendo
Faculdade de Medicina do Rio de encontraram “mais de 40 ratões disso um meio de sobrevivência”,
Janeiro, foi a Santos, examinou os mortos espalhados pelo solo, comenta a arquivista Maria Talib
pacientes e confirmou a conclusão da muitos já em decomposição” no Assad, do Museu de Saúde Pública
equipe de médicos instalada na cidade. armazém da casa e foram picados por Emílio Ribas, instalado no prédio
Mas não foi o bastante para acalmar pulgas que infectavam os roedores, onde funcionava esse órgão
os santistas. embora não tenham adoecido. do Serviço Sanitário no começo

94 | AGOSTO DE 2020
4

Construção do Castelo de
Manguinhos, obra de Oswaldo
Cruz (acima, em uma caricatura
publicada em Paris em 1911 na
revista Chanteclair)

do século XX. O efeito indesejado um dos principais centros nacionais pessoas com feições de boi, já que era
levou à suspensão da medida. de produção de vacinas. Mesmo assim, feita com material colhido de vacas
“Durante o surto em Santos, cerca de 300 pessoas morreram por doentes, ou transmitir sífilis, como
FOTOS 1 ACERVO INSTITUTO BUTANTAN / CENTRO DE MEMÓRIA 2 RODOLPHO FISHER / ACERVO INSTITUTO BUTANTAN / CENTRO DE MEMÓRIA

Emílio Ribas começou a pensar na causa da peste em 1900 na capital descrito pelo historiador carioca Sidney
continuidade da peste e na necessidade federal; o total de mortos foi 199 em Chalhoub, da Universidade Harvard,
de produzir o soro antipestoso no 1901, 215 em 1902, 360 em 1903 e Estados Unidos, no livro Cidade febril
Brasil, do qual só se podia importar em 274 em 1904. (Companhia das Letras, 2017).
quantidades pequenas, por causa da A companha contra a peste bubônica

E
grande procura por outros países”, m 1903, o presidente Francisco seguiu quase sem contestação, porque
comenta Alves. As negociações com de Paula Rodrigues Alves a população já sabia que a doença era
3 ACERVO CASA DE OSWALDO CRUZ 4 DON BOUQUET / ACADEMIA NACIONAL DE MEDICINA DA FRANÇA

o governo paulista levaram à criação (1848-1919), interessado em transmitida por pulgas e ratos. Já havia
do Instituto Soroterápico do Estado de modernizar a cidade do Rio, colocou vacinação e o combate aos ratos foi
São Paulo, renomeado em 1918 para Cruz à frente da Diretoria Geral de intenso. A DGSP também aderiu à
Instituto Soroterápico do Butantan e Saúde Pública (DGSP). “Oswaldo Cruz compra de ratos trazidos pelos
novamente em 1925, quando ganhou a recebeu carta branca para acabar com moradores. “Apesar das distorções,
atual designação de Instituto Butantan. as três principais doenças epidêmicas foi uma prática sanitária eficiente”,
Dirigido por Vital Brazil, produziu da época, varíola, peste bubônica e diz Nascimento.
soro antipestoso e depois se febre amarela”, comenta Nascimento. Atualmente tratada com antibióticos,
especializou em soros contra picadas “A vacinação e a eliminação dos focos que reduz o risco de morte a 10%, a
de cobras, comuns no interior paulista, de ratos e de mosquitos interessavam peste ainda causa cerca de 650 casos
e em vacinas. a Rodrigues Alves, que planejava uma e 120 mortes por ano no mundo,
Vinda provavelmente de Santos, reforma urbana para transformar o principalmente na África, e é vista
a peste emergiu na cidade do Rio Rio em uma cidade linda como Paris. como um perigo potencial em regiões
em janeiro de 1900 e seguiu para Os interesses políticos e sanitários de condições sanitárias precárias.
São Luís, no Maranhão, e Recife, em convergiram.” No Brasil, o último caso registrado foi
Pernambuco. Por sua vez, Oswaldo A população se revoltou outra vez, em 2005. Os Estados Unidos relataram
Cruz aproveitou a oportunidade para naquela ocasião, contra a vacinação 11 casos em 2015, com três mortes.
criar o Instituto de Manguinhos, obrigatória no combate à varíola. Os Em 2020, a peste bubônica reemergiu
hoje Fiocruz, também para produzir protestos expressavam também o medo na Mongólia, com 15 pessoas infectadas
soro contra a peste, que se tornou de que a vacina pudesse deixar as e uma morte. n

PESQUISA FAPESP 294 | 95


CARREIRAS

Trabalho de fôlego
Formação em fisioterapia respiratória estende-se além da graduação
e amplia oportunidades de atuação em ambiente hospitalar

C
om a missão de tratar e prevenir disciplinas relacionadas às funções durante pelo menos 18 horas por dia,
complicações de doenças e disfunções do pulmão, bem como de acordo com resolução publicada
relacionadas ao sistema o tratamento de sequelas provocadas pela Agência Nacional de Vigilância
respiratório, fisioterapeutas têm se por doenças respiratórias e prevenção Sanitária (Anvisa) em conjunto
revelado profissionais imprescindíveis, de complicações futuras. A fisioterapia com o Ministério da Saúde. Projeto
sobretudo no ambiente hospitalar, respiratória constitui cadeira de lei que tramita atualmente no
desde que começaram a ser registrados obrigatória. Os profissionais podem Congresso Nacional pretende ampliar
os primeiros casos de Covid-19. O fato complementar seus estudos nesse para tempo integral a permanência
de o novo coronavírus muitas vezes campo com cursos de capacitação, do fisioterapeuta.
causar danos graves aos pulmões especialização e residência Baseada em formação superior
evidenciou também a necessidade de multiprofissional na área da saúde. de caráter generalista, voltada
formação específica nessa área que, Assim como na formação em para a atuação em áreas como
no Brasil, conta com aproximadamente medicina, a residência neurofuncional, oncológica
3 mil profissionais, incluindo multiprofissional caracteriza-se e traumato­‑ortopédica, a fisioterapia
as especialidades respiratória, pelo treinamento em serviço, com envolve o estudo, a prevenção
cardiovascular e de terapia intensiva. tempo médio de dois a três anos, e o tratamento de distúrbios que podem
“Mesmo sendo um número razoável sob orientação de profissionais acometer os distintos órgãos do corpo
em condições normais, houve falta de experientes em atividades práticas humano por razões genéticas, traumas
fisioterapeutas respiratórios durante e teóricas. “Além dessas possibilidades, ou doenças adquiridas. A especialidade
a pandemia, o que comprova a é importante que o profissional em torno do sistema respiratório
necessidade de que novos profissionais entenda que a formação deve ser surgiu na década de 1970 nos Estados
sejam formados todos os anos”, continuada, ou seja, sempre haverá Unidos, quando, em ambiente
explica Elineth da Conceição Braga necessidade de atualização para hospitalar, profissionais dedicados
Valente, fisioterapeuta e integrante acompanhar as evoluções do setor”, à recuperação da função motora dos
do Conselho Federal de Fisioterapia pondera Valente. No Brasil, desde 2010 pacientes perceberam que os exercícios
e Terapia Ocupacional (Coffito). é obrigatória a presença de pelo menos melhoravam também suas funções
A formação na área, informa ela,tem um fisioterapeuta para cada 10 leitos respiratórias. No Brasil, ganhou
início durante a graduação, com de Unidade de Terapia Intensiva (UTI) força a partir da década de 1980.

96 | AGOSTO DE 2020
“Os fisioterapeutas passaram, então, além de enfermaria e programa áreas de fisioterapia de pacientes
a executar exercícios de atuação direta de atendimento domiciliar. Dentre hospitalizados e exercícios
nos pulmões, principalmente em as disciplinas estão fisiologia respiratórios.
casos de doenças obstrutivas como e fisiopatologia pulmonar, radiologia, Como complemento às técnicas
bronquite e enfisema”, conta Valente. equipamentos fisioterapêuticos específicas para tratar problemas
Entre os procedimentos mais comuns hospitalares e domiciliares, crônicos, a fisioterapia respiratória
estão exercícios respiratórios, tosse fisioterapia no pós-operatório e também faz uso de aparelhos para
assistida e drenagem postural, que ventilação mecânica invasiva. “Como condicionamento físico, como esteiras
auxiliam a liberação de secreção dos a UTI reúne pacientes em estado e bicicletas ergométricas, e outros
pulmões a partir de posições específicas. crítico, que necessitam de cuidados equipamentos mais simples, como
criteriosos, é importante que halteres e faixas elásticas. “Além dos
ATENDIMENTO HOSPITALAR o fisioterapeuta vivencie experiências pacientes recém-saídos da UTI, que
Desde 2002 o Hospital Universitário sobre manuseio de equipamentos precisam retomar a atividade física
da Universidade de São Paulo e acompanhamento de pessoas para reforçar a musculatura do corpo
(HU-USP) mantém um curso de que recuperaram a capacidade e recuperar a capacidade respiratória,
especialização em fisioterapia de respirar”, avalia Soriano. o uso desses equipamentos é
respiratória realizado em parceria Profissionais também podem optar importante no tratamento de doenças
com o Departamento de Fisioterapia, pelas especializações em terapia crônicas como enfisema pulmonar,
Fonoaudiologia e Terapia Ocupacional intensiva, que, além de disciplinas asma e câncer”, completa Lunardi.
da Faculdade de Medicina da USP sobre o trato respiratório, incluem Estudos realizados no campo
(FM-USP). Com carga de 1.440 horas, temas de fisioterapia neurológica da fisioterapia respiratória, como
equivalente a um ano de formação, e cardiovascular. o conduzido por Clarice Tanaka, Bruna
o curso pode ser realizado por Dentre as atribuições do profissional Rotta e equipe, têm demonstrado que
alunos do último ano da graduação de fisioterapia respiratória está a atuação desse profissional em tempo
em fisioterapia e por fisioterapeutas a utilização de aparelhos complexos, integral nas UTIs pode reduzir em
já formados. como os ventiladores mecânicos até 40% a permanência hospitalar,
“O programa amplia as utilizados em pacientes sedados, além de diminuir consideravelmente
oportunidades para quem quer atuar em processo conhecido como os custos e as intercorrências que
na área hospitalar, campo que tem intubação orotraqueal. “Nesse caso, podem resultar do período acamado.
atraído muitos profissionais nos o fisioterapeuta divide com o médico “A fraqueza muscular extrema é um
últimos anos”, explica Francisco a responsabilidade pelo paciente”, dos efeitos da internação nas UTIs
Garcia Soriano, vice-coordenador do observa Adriana Claudia Lunardi, que pode comprometer a capacidade
curso. Correspondente a uma professora do programa de funcional e a respiração espontânea
pós-graduação lato sensu, a formação Pós-graduação da Universidade do paciente”, afirma Pedro Dal Lago,
é composta por aulas teóricas e Cidade de São Paulo (Unicid) do Departamento de Fisioterapia da
práticas, incluindo estágio em UTI e supervisora de estágio no Universidade Federal de Ciências
de adultos, pediátrica e neonatal, curso de fisioterapia da USP nas da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA).
Durante o processo de retirada gradual
do ventilador mecânico – denominado
desmame –, o fisioterapeuta precisa
Áreas de atuação avaliar a musculatura respiratória
do paciente e elaborar um programa
PEDIÁTRICA de exercícios específicos para
Cuidados de doenças comuns em crianças, recuperação da capacidade de respirar.
como pneumonia e bronquiolite Além da maior demanda decorrente
da fase de pandemia, a procura
AMBULATORIAL por fisioterapeutas respiratórios
Tratamento e alívio de doenças crônicas, tende a crescer com o aumento da
como asma e enfisema pulmonar expectativa de vida dos brasileiros
e as complicações decorrentes da
HOSPITALAR poluição dos grandes centros urbanos.
Praticada em leitos das enfermarias, “Com o envelhecimento da população,
emergência e de UTIs como forma de também são mais frequentes
ILUSTRAÇÕES SANDRA JÁVERA

prevenir o aparecimento de doenças as doenças que acometem os sistemas


respiratórias e melhorar a função pulmonar cardiovascular e respiratório, sendo
a fisioterapia respiratória um
DOMICILIAR importante recurso para a melhora da
Recuperação pós-internação e tratamento qualidade de vida das pessoas”, finaliza
de distúrbios respiratórios Dal Lago. n Sidnei Santos de Oliveira

PESQUISA FAPESP 294 | 97


Norberto Peporine Lopes
é o primeiro brasileiro a ganhar
o Prêmio Jeremy Knowles

da Universidade de Cambridge,
Inglaterra, ficou um ano se
aperfeiçoando na técnica de
espectrometria de massas em produtos
naturais, mais especificamente no
campo de química em fase gasosa.
Utilizada para definir a massa de
uma substância química, a técnica
criada em 1897 pelo físico inglês Joseph
John Thomson (1856-1940) permite,
entre outras aplicações, identificar os
componentes de determinada estrutura
química e analisar misturas complexas.
“Durante a análise com um
espectrômetro, é como se essa
estrutura fosse dividida em várias
peças, como as de um quebra-cabeça.
PERFIL São essas peças que usamos para
montar uma proposta estrutural e
A química do meio ambiente descrever a substância”, explica.
Foi utilizando a técnica que
Pesquisador paulista vence prêmio internacional por estudos em 2013 Lopes descobriu, em projeto
sobre interações ecológicas desenvolvido em parceria com a
Faculdade de Medicina de Ribeirão
Preto (FMRP-USP), uma substância
Com uma carreira voltada à pesquisa (FCFRP-USP). A entrega do prêmio tóxica da carambola, que pode levar à
da química de produtos naturais, está prevista para o início de 2021. morte pessoas com problemas renais.
Norberto Peporine Lopes ficou A paixão pela química vem desde a “Foram cerca de 10 anos de pesquisa
surpreso ao receber, em junho, a infância, quando Lopes acompanhava até descobrirmos esse aminoácido
notícia de que é o vencedor deste ano expedições de coleta que seu pai presente na fruta, que normalmente é
do Prêmio Jeremy Knowles, e um tio, ambos pesquisadores da eliminado pelo organismo, mas que
concedido pela Royal Society of fitoquímica, área voltada ao estudo pode trazer graves complicações a
Chemistry (RSC). A organização, que de substâncias químicas produzidas pessoas com problemas nos rins,
tem sede em Londres, na Inglaterra, por vegetais, realizavam em áreas causando soluços constantes, confusão
apoia o desenvolvimento das ciências de Cerrado e campos rupestres nos mental e convulsões ao chegar ao
químicas em âmbito mundial e estados de Minas Gerais e São Paulo. sistema nervoso”, explica.
reconhece anualmente cientistas que Após cursar a graduação em farmácia Lopes também integra a equipe de
se destacam em estudos na área. industrial na FCFRP-USP, concluída pesquisadores da USP que anunciou,
“A indicação foi realizada por dois em 1989 com estágio na Universidade em maio deste ano, a descoberta
cientistas ingleses. Só descobri que de Tübingen, Alemanha, Lopes de que o fumarato de tenofovir,
estava concorrendo quando recebi desenvolveu seu mestrado pesquisando princípio ativo do medicamento
um e-mail da instituição informando reguladores de crescimento em antiviral tenofovir, produzido
que fui contemplado”, comemora. plântulas in vitro. no Brasil, é capaz de inibir in vitro a
Primeiro brasileiro a ganhar a Foi durante o doutorado, no Instituto replicação do vírus Sars-CoV-2,
honraria, o pesquisador paulista é de Química da USP (IQ-USP), que causador da Covid-19. As conclusões
coordenador do Núcleo de Pesquisa o pesquisador passou a se interessar foram divulgadas em artigo no Journal
em Produtos Naturais e Sintéticos e mais pela ecologia química. “Nesse of the Brazilian Chemical Society,
da Central de Espectrometria de período, fiz várias expedições para publicado pela Sociedade Brasileira
Massas de Micromoléculas Orgânicas estudar a atividade biológica de plantas de Química (SBQ). “O próximo passo
ARQUIVO PESSOAL

da Faculdade de Ciências da floresta amazônica, inclusive suas será fazer o protocolo clínico em
Farmacêuticas de Ribeirão Preto, aplicações por populações indígenas”, humanos de modo a testar sua
da Universidade de São Paulo conta. No Departamento de Química eficácia”, conclui. n S. S. O.

98 | AGOSTO DE 2020
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