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© 2022 – Editora MultiAtual

www.editoramultiatual.com.br
editoramultiatual@gmail.com

Organizadores
Marcus Matraca
Fábio Nieto-Lopez

Ilustração, Arte e Capa


Lolla Angelucci

Editor Chefe: Jader Luís da Silveira


Editoração: Resiane Paula da Silveira
Revisão: Respectivos autores dos artigos

Conselho Editorial
Ma. Heloisa Alves Braga, Secretaria de Estado de Educação de Minas Gerais, SEE-MG
Me. Ricardo Ferreira de Sousa, Universidade Federal do Tocantins, UFT
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Monlevade, FUNCEC
Me. Camilla Mariane Menezes Souza, Universidade Federal do Paraná, UFPR
Ma. Jocilene dos Santos Pereira, Universidade Estadual de Santa Cruz, UESC
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Ma. Tatiany Michelle Gonçalves da Silva, Secretaria de Estado do Distrito Federal, SEE-DF
Dra. Haiany Aparecida Ferreira, Universidade Federal de Lavras, UFLA
Me. Arthur Lima de Oliveira, Fundação Centro de Ciências e Educação Superior à Distância
do Estado do RJ, CECIERJ
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Matraca, Marcus Vinicius Campos


M322p Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos /
Marcus Vinicius Campos Matraca; Fábio Nieto-Lopez
(organizadores). Ilustrações de Lolla Angelucci. – Formiga (MG):
Editora MultiAtual, 2022. 197 p.: il.

Formato: PDF
Requisitos de sistema: Adobe Acrobat Reader
Modo de acesso: World Wide Web
Inclui bibliografia
ISBN 978-65-89976-25-7
DOI: 10.5281/zenodo.5877791

1. Palhaçaria. 2. Arte. 3. Ciência. 4. Saúde e Educação. I. Nieto-


Lopez, Fabio. II. Título.
CDD: 700.7
CDU: 7.0

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exclusiva dos seus respectivos autores.
2022

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Acesse a obra originalmente publicada em:


https://www.editoramultiatual.com.br/2022/01/palhacaria.html
Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos

ÍNDICE

Capítulo 1
A SINGULARIDADE DO CORPO NAS ARTES CIRCENSES E TEATRAIS
14
Andreia Aparecida Pantano

Capítulo 2
O PALHAÇO LEVADO A SÉRIO
25
Alberto Magalhães

Capítulo 3
PALHAÇARIA COMO CURA: O DESENVOLVIMENTO DA PERSONALIDADE
DA PALHAÇA ALIÁS E O ENCONTRO COMIGO MESMA 36
Alessandra Simões

Capítulo 4
PALHAÇARIA ATRAVESSADA PELAS MÍDIAS – TEM PALHAÇO(A)
ONLINE! 50
Tiago Marques da Silva

Capítulo 5
DÚVIDAS, ESCORREGÕES E PROPOSTAS DE UMA DUPLA DE NÃO-
MESTRES 60
Fábio Nieto-Lopez; Martin Domecq

Capítulo 6
ACESSE A SUA TECLA S.A.P
72
Marcus Matraca

Capítulo 7
GERAÇÃO DA LEITURA: PALHAÇARIA E LITERATURA EM UM
EXPERIMENTALISMO BRABO PARA CRIANÇAS E IDOSOS EM SÃO
89
GONÇALO-RJ
Leo Salo; Karen Guimarães Cardoso; Melissa Coelho Ferreira

Capítulo 8
DOTORA CLÔ - UM RELATO DE EXPERIÊNCIA DE PALHAÇARIA E ENSINO
DE SAÚDE 101
Maíra G Baczinski; Tania C Araujo-Jorge

Capítulo 9
A PRÁTICA DA ARTE PALHAÇARIA POR PESSOAS COM AFASIA EM
CONTEXTO PRESENCIAL E REMOTO: RELATO DE EXPERIÊNCIA DO
PROJETO PALHAFASIA 117
Elisabeth Araujo de Abreu; Gabriela Maria Lima Santos; Mauren Cereser;
Mayara Batista Pereira; Magda Aline Bauer; Lenisa Brandão

5
Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos

Capítulo 10
PROTOCOLO DE BIOSSEGURANÇA PARA PALHAÇOS DE HOSPITAL:
PROMOVENDO ATIVIDADES LÚDICAS COM RESPONSABILIDADE
136
Maria Rosa da Silva; Geórgia Maria Ricardo Félix dos Santos; Maria Cristina da
Costa Marques; Susana Caires

Capítulo 11
DE DOTÔ, PALHAÇO E LOUCO TODO MUNDO TEM UM POUCO: A PRÁTICA
DA SAÚDE E O TERRITÓRIO DO BRINCAR
153
Rebeca Torquato de Almeida; Silvana Solange Rossi; Marcus Matraca; Marcio
Luiz Braga Corrêa de Mello

Capítulo 12
PALHAÇARIA E O CUIDADO DE SI
174
Fábio Nieto-Lopez; Karen Kessy; Naiommi Schinke Campos

Sobre os Autores
189
Os Organizadores
196

6
Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos

Prefácio

Pensando a vida como um encanto que acontece nas frestas, nos desvios, nos
mistérios, esse prefácio é um ato de reconhecimento da experiência admirável produzida
pela confluência das potências de Marcus Matraca e Fábio Nieto-Lopez. Afinal, sou porque
somos. Então cromosSomos.

Lançar o olhar do palhaço para além da arte, pensar o ofício como um ato de vida,
é como um triplo salto mortal. Encarrar o risco da travessia na corda bamba, é permitir-
se o encantamento do desconhecido existente na sabedoria dos cruzos. Pôr-se em diálogo
com a ciência, a saúde e a educação é mover-se dentro dos mistérios dos universos, é ir
além dos conceitos limitantes, que um dia classificaram essas áreas como matérias
diferentes, separadas, e até antagônicas.

Porém, as palhaças e palhaços, em elipses, são capazes de tecerem elaborações,


fabulações e mandingas criadoras de um software cuja tecnologia humana processa tudo
isso e algo mais. Essa intersubjetivação permite que se potencialize os corpos pelo
exercício do encontro, do reconhecimento, das relações humanas e pelo ato generoso de
afetar e afetar-se com/por outras existencialidades.

Vejo o encontro artista-educador-cientista-filósofo como operador de uma


tecnomagia, com a expertise de acolher generosamente as diferenças e processá-las numa
poética da relação, numa epistemologia encantada e altamente sofisticada. Como diz o
poeta: é preciso transver o mundo.

“A expressão reta não sonha.


Não use o traço acostumado.
A força de um artista vem das suas derrotas.
Só a alma atormentada pode trazer para a voz um formato de pássaro.
Arte não tem pensa:
O olho vê, a lembrança revê, e a imaginação transvê.
É preciso transver o mundo.”

Manuel de Barros

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Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos

Obrigado por existirem Marcus Matraca e Fábio Nieto-Lopez. Desfrutem!

João Carlos Artigos


Palhaço Hacker e Exú Laboral
Rede Muda Outras Economias

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Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos

Que comece o picadeiro!

“A saúde está baseada na felicidade – a felicidade de abraçar, fazer


palhaçadas e achar alegria na família, satisfação no trabalho e êxtase na
natureza”
Patch Adams

Ao rufar das palavras do mestre palhaço Patch Adams, apresentamos o dossiê


temático Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos, repleto de
experiências artísticas, metodológicas, relatos de vivências e pesquisas referentes ao uso
da arte da palhaçaria nos campos da ciência, arte, educação e saúde. Alice Viveiro de
Castro, em seu livro Elogio da Bobagem (2005), nos aponta que o palhaço não é um
personagem exclusivo do circo, mas foi no picadeiro que atingiu sua plenitude, assumindo
seu papel como protagonista nos diversos locais que atua. Assim, pensar essa arte como
linguagem e potência de transformação social, numa perspectiva interdisciplinar de
saberes, em territórios para além do circo, nos possibilitou consolidar esta diversidade de
documentos repletos de boniteza, experiências humanas e comprometimento com o
ofício em sua pluralidade de manifestações.

Construir coletivamente o livro nos possibilitou laços agregadores como a


participação da talentosa ilustradora Lolla Angelucci1, que nos agraciou com todas as
ilustrações que compõe cada capítulo e por meio dos seus traços mágicos conseguiu
promover o encontro do Dr. Palhaço Matraca com o Palhaço Ex-Fiapo que se materializa
na capa. Lolla Angelucci encontrou inspiração nos registros fotográficos de Ananda Luz2
durante a palhaceata de 2013 no município do Rio de Janeiro.

Houve o encontro generoso com o Palhaço Hacker e Exu Laboral, que fora do livro
também pode ser encontrado como Seu Flôr; algumas das diversas manifestações
artísticas, tanto nos picadeiros quanto nas encruzilhadas, de João Artigos3 que nos
presentou com as palavras que abrem essa gira. As parcerias entre o Laboratório Atelier

1 Instagram: https://www.instagram.com/sereiascarecas/?hl=pt-br ou
https://www.instagram.com/coisasdalolla/?hl=pt-br
2Instagram: https://www.instagram.com/luzananda/?hl=pt-br
3 @joaoartigos (instagran) e @joaocarlosartigos (facebook)

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Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos

de Educação Popular em Saúde (LAEPS/UFRB) e Instituto de Humanidade Ciências e Arte


(IHAC/CJA/UFSB) foi concretizada e representada pelos organizadores deste dossiê.

Em meio à pandemia surge o livro de muitos encontros, no qual o palhaço é o


protagonista; um anti-herói sobrevivente às catástrofes naturais, pandemias, guerras e
desafetos, mas que continua resiliente em seu propósito de viver, visto a brevidade do
existir. Nessa sinergia, os textos que compõem o livro se cruzam em um tema comum com
diversas histórias, afetos, relatos e pesquisas que envolve o Ser Palhaço.

No primeiro capítulo, encontramos Andreia Aparecida Pantano nos apresentando


sua pesquisa sobre A singularidade do corpo nas artes circenses e teatrais, que
investiga a forma como os palhaços e atores teatrais exploram o corpo no momento da
encenação de sua personagem, além de discutir sobre a improvisação nos espaços do
picadeiro e no teatro. Em seu texto evidencia o quanto a exposição do corpo, ora grotesco,
ora sublime, desafiou o moralismo presente na sociedade burguesa entre os atores
circenses do século XVIII.

Em Ninguém leva a sério o palhaço, Alberto Magalhães relata sua trajetória de


quarenta anos como Palhaço Bobinaldo. Em uma escrita de si, Alberto Magalhães
apresenta a força do seu palhaço que para existir passeia pelos erros e acertos, pelo
ridículo e o não ser levado à sério, mas que constrói com leveza o quão é sério o riso que
se constrói no improviso, mas com muitas pesquisas e estudos.

O capítulo três, Palhaçaria como cura: o desenvolvimento da personalidade


da palhaça Aliás e o encontro comigo mesma é apresentado pela professora,
pesquisadora e palhaça Alessandra Simões. Trata-se de um relato de experiência
relacionado aos trabalhos de pesquisa e extensão da autora sobre a arte da palhaçaria
junto à Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB), no qual fez uma sistematização
metodológica da construção da clown mulher e sua aplicabilidade em contextos estéticos,
subjetivos e de cunho social. A autoetnografia convida para refletir semanticamente os
entendimentos da autora a respeito de sua própria relação com a palhaçaria,
requalificando a relação entre palhaça e pesquisadora de forma a ressaltar importância
da interação e da experiência pessoal como forma de construção de conhecimento.

No quatro capítulo, Palhaçaria atravessada pelas mídias – tem palhaço(a)


online!, o ator, produtor, compositor e palhaço Tiago Marques da Silva expõe questões

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Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos

sobre o palhaço e o picadero virtual. O estudo explanado trata do atravessamento das mídias
em nossas vidas cotidianamente e o reflexo na prática artística do palhaço, partindo do histórico
da arte de agenciar as tecnologias contemporâneas em seus fazeres como meio de atualizar as
tradições e seguir potente em sua comunicação direta com o público.

O quinto capítulo, Dúvidas, escorregões e propostas de uma dupla de não-


mestres, Fábio Nieto-Lopez e Martin Domecq refletem o processo em que enfrentaram o
desafio de conduzir um processo de iniciação ao universo da palhaçaria. Ao analisar este
percurso, consideram que o processo formativo torna-se potente e vivo quando, ao
assumirem o papel de professores, não se ancoram em privilégios hierárquicos nem
esquecem de sua própria condição de palhaços. Ao invés de recorrerem simplesmente à
tradição e ao status de mestre, enfrentam com sinceridade a situação de vulnerabilidade,
improviso, revisões, desvios e criação em que se encontram.

O capítulo seis, Acesse a sua tecla S.A.P, escrito por Marcus Matraca, é dedicado a
apresentar a metodologia da oficina de iniciação e sensibilização à palhaçaria. O texto
evidencia cada etapa da oficina e como os jogos e as vivências utilizados convergem para
a construção da figura do palhaço. Ao detalhar cada etapa, o autor mostra a
intencionalidade das suas ações que têm o objetivo de proporcionar aos participantes
uma nova abordagem de mundo, construindo caminhos e alternativas de possibilidades
de transformações sociais e humanas.

Em Geração da leitura: palhaçaria e literatura em um experimentalismo


brabo para crianças e idosos em São Gonçalo-RJ, Leo Salo, Karen Guimarães Cardoso
e Melissa Coelho Ferreira apresentam o relato de experiência das ações de seus palhaços
no projeto Geração de Leitura, realizado pelo Coletivo Experimentalismo Brabo no abrigo
para idosos Cristo Redentor. O projeto tem como objetivo estimular o intercâmbio
cultural entre idosos, visitantes e funcionários do abrigo ao realizarem atividades
artísticas e culturais que dialogavam sobre a memória e história pessoal dos idosos
abrigados.

No oitavo capítulo, Maíra G Baczinski e Tania Cremonine de Araujo-Jorge, Dotora


Clô: um relato de experiência de palhaçaria e ensino de saúde, temos a oportunidade
de ler um relato de experiência que acompanha a trajetória da Dotora Clô por um evento
de educação à saúde. Ela, passeando aleatoriamente pelos espaços, espalhando panfletos,

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Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos

se viu inesperadamente com microfone em mãos diante uma plateia que esperava uma
fala sobre saúde do homem. A experiência trouxe a oportunidade para as autoras
refletirem acerca de diversos temas de interesse tanto da palhaçaria quanto da educação
popular em saúde.

O projeto de extensão Prática da arte clownesca por pessoas com afasia em


contexto presencial e remoto: relato de experiência do projeto Palhafasia, compõe
o nono capítulo escrito por Elisabeth Araujo de Abreu, Gabriela Maria Lima Santos,
Mauren Cereser, Mayara Batista Pereira, Magda Aline Bauer e Lenisa Brandão. O coletivo
apresenta como a expressão artística da palhaçaria tem potencial para reduzir os
impactos psicossociais da afasia, pois enfatiza a comunicação não verbal e promove uma
mudança de perspectiva sobre a forma de encarar a diversidade comunicativa de
populações que apresentam alterações linguísticas decorrentes de distúrbio neurológico
adquirido.

O capítulo intitulado Protocolo de biossegurança para palhaços de hospital:


promovendo atividades lúdicas, escrito por Maria Rosa da Silva, Geórgia Maria Ricardo
Félix dos Santos, Maria Cristina da Costa Marques e Susana Caires propõe um protocolo
de biossegurança para realização das atividades presenciais dos palhaços de hospital com
a finalidade de evitar a contaminação cruzada, de prevenir a transmissão de
microrganismos e de orientar sobre a importância dos cuidados sanitárias.

A oficina “De dotô, palhaço e louco todo mundo tem um pouco” é o tema do capítulo
seguinte, escrito por Rebeca Torquato de Almeida, Silvana Solange Rossi, Marcus Matraca
e Marcio Luiz Braga Corrêa de Mello. Intitulado De dotô, palhaço e louco todo mundo
tem um pouco: a prática da saúde e o território do brincar, relata a construção da
oficina que teve como objetivo fortalecer os trabalhadores da saúde e o SUS. Construída a
partir dos princípios da Palhaçaria, do Psicodrama, da Política Nacional de Humanização
(PNH) e da Política Nacional de Educação Popular em Saúde (PNEPS-SUS), a oficina
apresenta o arquétipo do palhaço na sensibilização dos trabalhadores da saúde.

No décimo segundo capítulo, Palhaçaria e o Cuidado de Si, Fábio Nieto-Lopez,


Karen Kessy e Naiommi Schinke Campos realizam uma revisão de duas pesquisas cujas
propostas eram investigar a pertinência de relacionar a prática da palhaçaria com o
conceito de cuidado de si, estudado por Michel Foucault. A partir de estudos de casos

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Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos

múltiplos de inspiração etnográfica, conduzidos entre universitários, os autores


vivenciam, observam, entrevistam e refletem acerca das transformações vividas pelos
participantes das oficinas e de repercussões sentidas para além dos limites do curso de
iniciação ao palhaço.

Respeitável público, bom espetáculo para todes!

Marcus Matraca e Fábio Nieto-Lopez

Dr. Palhaço Matraca e Palhaço Ex-Fiapo

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Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos

Capítulo 1
A SINGULARIDADE DO CORPO NAS
ARTES CIRCENSES E TEATRAIS

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Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos

A SINGULARIDADE DO CORPO NAS ARTES CIRCENSES E TEATRAIS1

Andreia Aparecida Pantano

“A vida se revela no seu processo ambivalente, interiormente contraditório. Não há nada


perfeito nem completo, é a quintessência da incompletude. Essa é precisamente a concepção
grotesca do corpo”. (Mikhail Bakhtin).

INTRODUÇÃO

No circo ou no teatro não tradicional o ato de improvisar é algo corrente, porém é


nas encenações do palhaço que a improvisação se torna um fenômeno mais comum e -
talvez até possamos dizer – natural, uma vez que esta arte propicia a participação do
público. No entanto, não é somente a plateia ruidosa o único motivo que leva esses atores
a improvisarem, mas também a sua própria experiência cênica em se adaptar às novas
circunstâncias.

Ao improvisar em cena o palhaço recorre à sua imaginação, ao seu corpo e a


criatividade para provocar o riso em seu público. No entanto, em vários momentos o
improviso pode quebrar o ritmo da apresentação, e, ao mesmo tempo poderá também
possibilitar ao ator reconstruir sua personagem. Assim, é por meio do corpo grotesco que
o palhaço se faz no picadeiro despertando diversas emoções.

Para esta análise, selecionamos Mikhail Bakhtin (2010), A cultura popular na


Idade Média e no renascimento: o contexto de François Rabelais, Jean-Jacques Roubine
(1987), autor de A Arte secreta do ator e Sandra Chacra (1991), Natureza e sentido da
improvisação. Esses pesquisadores são fundamentais para refletirmos sobre o corpo em
cena.

1 Uma primeira versão foi publicada na dissertação: A personagem palhaço: a construção do sujeito.
(Marília), 2001.

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Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos

CORPO GROTESCO EM CENA

Mikhail Bakhtin, em seu livro, A cultura popular na Idade Média e no


Renascimento: o contexto de François Rabelais (2010) ao conceituar grotesco, esclarece.

Em fins do século XV escavações feitas em Roma nos subterrâneos das


Termas de Tito trazem à luz um tipo de pintura ornamental até então
desconhecida. Foi chamada de grottesca, derivado do substantivo italiano
grotta (gruta). Um pouco mais tarde, decorações semelhantes foram
descobertas em outros lugares da Itália. Quais são as características desse
motivo ornamental? Essa descoberta surpreendeu os contemporâneos
pelo jogo insólito, fantástico e livre das formas vegetais, animais e
humanas que se confundiam e transformavam entre si. Não se
distinguiam as fronteiras claras e inertes que dividem esses “reinos
naturais” no quadro habitual do mundo: no grotesco, essas fronteiras são
audaciosamente superadas. (BAKHTIN, 2010, p.28).

A partir dessa contextualização realizada por Mikhail Bakhtin sobre a origem do


grotesco como “jogo insólito, fantástico e livre de formas”, é possível pensarmos sobre a
exploração do corpo em cena pelos atores circenses uma vez que as situações, e o corpo
disforme serão explorados para suscitar o riso, e, consequentemente para improvisar.

No circo-teatro, a personagem palhaço expõe de forma lúdica e grotesca toda a


miséria humana, neste sentido, o palhaço utiliza-se do corpo para provocar o riso e
satirizar as próprias emoções. Por outro lado, temos o corpo sublime dos artistas
circenses, tais como: acrobatas, equilibristas que desafiam os próprios limites.

No teatro, assim como nas artes circenses, o corpo é fundamental, pois o “corpo
fala”, é o corpo nas palavras de Jean-Jacques Roubine (1987, p.44), o “mediador da
presença”, isto é, antes de qualquer encenação, a forma como o corpo do ator apresenta-
se, denota sua particularidade, assim como a palavra, o corpo também fala. Deste modo,
na composição da personagem seja palhaço, ator dramático ou um acrobata, a base da
encenação é o corpo, pois é este que irá sustentar a personagem.

Onde o corpo se tornou inteiramente objeto, coisa bela, ele possibilita


imaginar uma nova felicidade. Na subordinação extrema à reificação, o
homem triunfa sobre a reificação. A qualidade artística do corpo belo,
ainda hoje presente unicamente no circo, nos cabarés e em shows, essa
leveza e frivolidade lúdicas, anuncia a alegria da libertação do ideal que o
homem pode atingir quando a humanidade, convertida verdadeiramente
em sujeito, dominar a matéria. (MARCUSE, 1997, p.115).

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Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos

A linguagem adotada pelo circo para exprimir-se tem um caráter inovador, se


comparada às demais manifestações artísticas. Um exemplo disto é justamente o palhaço
com o seu estilo irreverente, isto é, com brincadeiras jocosas e explorando ao máximo as
possibilidades do seu corpo.

[...] há na base da grande maioria dos gestos e truques tradicionais, uma


representação mais ou menos nítida dos três atos essenciais da vida do
corpo grotesco: o ato carnal, a agonia – expiação (na sua expressão
grotesca e cômica: língua esticada, olhos absurdamente exorbitados,
asfixia, estertores, etc.) e o parto. Muitas vezes, aliás, esses três atos
transformam-se um no outro, fundem-se na medida em que seus
sintomas e manifestações aparentes são idênticos (esforços, tensão, olhos
exorbitados, suor, sobressaltos dos membros, etc.). Trata-se de uma
representação cômica original da morte – ressurreição, apresentada pelo
próprio corpo, que cai sem cessar no túmulo para elevar-se acima do nível
da terra, move-se sem parar de baixo para cima (número habitual do
palhaço que finge de morto para ressuscitar de maneira imprevista).
(BAKHTIN, 2010, p. 310).

Desta forma, como relata Mikhail Bakhtin, é pela via do corpo grotesco do palhaço
que alguns atos humanos são retratados em cena, ou seja, é através do corpo que são
materializadas nossas emoções e atitudes, isto é, todo o ridículo da condição humana é
explorado ao máximo para despertar o riso.

Para Roubine (1987), no teatro o corpo é fundamental, ter consciência de quanto


é necessário conhecer seus limites e superá-los faz parte de todo o processo criativo da
personagem/ator, porém não basta conhecer a si mesmo, é necessário também estar
atento a todos os elementos que fazem parte da representação, como: luz, cenografia, e
posição dos atores.

No palco de Avignon ou na imensa cena do Chaillot, o ator do TNP, sob a


direção de Vilar, aprenderam que não era suficiente se deslocar em cena
conforme as exigências de seus papéis: era preciso, além disso, que seus
corpos soubessem enfrentar um espaço que os esmagava. Por outro lado,
o corpo é o lugar de um conjunto de resistências físicas que seu
inconsciente pode por às exigências da exibição teatral. (ROUBINE, 1987,
p. 43).

Assim, além de todo um trabalho de percepção sobre o corpo, cabe ao ator transpor
as próprias barreiras que o inconsciente impõe sobre si mesmo, a fim de superar seus
limites e resistências.

É o corpo do ator que dará à personagem determinada característica, ou nas

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Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos

palavras de Roubine, presença (grifo nosso). O corpo é o responsável por trazer em cena
a personagem, isto é, antes da possível interpretação do ator, o público consegue
visualizar a pintura da personagem, e perceber assim sua singularidade. Tal percepção a
respeito da presença do corpo do ator, e de quanto este tem voz antes mesmo que a
encenação possa ocorrer é predominante entre comediantes.

Se atualmente tanto nas artes circenses como no teatro o corpo é fundamental para
a interpretação do ator, pois este expressa certa individualidade e, por conseguinte, revela
toda teatralidade, a história demonstra que este teve seus momentos de censura.

[...] em 1558, Sixto-Quinto proíbe os commediantes dell’arte de incluírem


mulheres nos seus elencos. Em 1557, o Parlamento de Paris acusa as
atrizes de se vestirem e se despirem em cena [...] (ROUBINE, 1987, p. 46).

Tal proibição consistia em inibir o próprio poder do corpo, poder este de sedução.
Porém, como salienta Roubine somente a partir de 1965 na França, o corpo será
devidamente revelado, o que irá causar repulsa entre os moralistas. Será exaltado neste
momento por Jerzy Grotowski, como descreve Roubine a busca por uma encenação não
mais calcada em artifícios capazes de mascarar o corpo, pois se torna fundamental o
despojamento, uma vez que o ator deverá estar só diante do público. Em outras palavras,
a proximidade entre ator e público torna-se uma prática essencial neste teatro, pois aqui
o corpo a corpo é o que deveria mover a cena.

Desta forma, seja na arte do acrobata ou no corpo grotesco do palhaço essa nudez,
isto é, essa presença do corpo torna-se evidente e recupera um instrumento primordial
no teatro como no circo, o poder do corpo que durante algum tempo foi recriminado pela
sociedade.

Ao exibir o corpo, o circo rompeu com os valores burgueses que privilegiavam o


espírito. A beleza dos corpos é exposta nos espetáculos circenses como uma forma de
sedução e de brincadeira. Não estamos falando apenas dos corpos dos ginastas e
acrobatas: o próprio corpo do palhaço, pela via do grotesco, expressa o lúdico. Mostrar o
corpo, torná-lo evidente foi algo totalmente inovador no século XVIII, pois até então, a
burguesia predominante com seu habitual moralismo condenava tal prática.

O espetáculo de circo não se dirige ao intelectualismo do espírito. Ele tem


o corpo como a base primordial da cena, quer seja sob os moldes do

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Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos

sublime corpo acrobático quer seja o grotesco do palhaço. A graça e o riso,


no picadeiro, se efetivam predominante, por meio do jogo corporal
improvisado. (BOLOGNESI, 2003, p. 155).

Os palhaços utilizam-se do corpo para tornar risível a cena, exploram todos os


limites e as suas potencialidades. O circo apresenta uma estética corporal que possibilita
aos seus artistas um amplo conhecimento de seu potencial artístico.

Enquanto, o corpo do palhaço expõe o grotesco, o ridículo, o miserável, (no caso do


Augusto2) e até mesmo disforme, o acrobata por sua vez demonstra um corpo sublime,
um corpo que é capaz de ultrapassar os limites humanos. No entanto, nesta arte
(acrobacia) tudo deve ser treinado e preciso bem diferente do palhaço, o qual cabe o
improviso.

Os espetáculos de circo, assim como o teatro, são formas de arte que têm um
caráter libertador e renovador: utilizam-se do corpo do ator para readaptá-lo, tirando-o,
assim, da vida cotidiana e do mecanicismo da vida moderna. Por determinado tempo o
ator é livre, isto é, mostra o seu ser quando está representando 3.

E é este ser, este mostrar-se que o ator deve buscar, seja um ator dramático ou
cômico, um olhar sobre o corpo e a tomada de consciência de quanto este em cena diz a
respeito de sua personagem foi o caminho para a realização da interpretação.

O circo apresenta uma estética corporal que possibilita aos seus artistas um amplo
conhecimento de seu potencial artístico.

Antes mesmo que qualquer trabalho interpretativo comece o corpo, tanto


em cena como na tela, é o mediador de uma ‘presença’. Um personagem
entra em cena. Conforme o ‘corpo’ de que é dotado, antes mesmo de ter
aberto a boca, este personagem tem ou não tem ‘presença’. No primeiro
caso, sua corpulência, a maneira de jogar sua barriga para a frente ou
enterrar a cabeça entre os ombros me ‘falam’ tanto quanto o seu discurso;
no segundo, eu o percebo como uma silhueta chapada e neutra. Os atores

2 “O termo augusto tem sua raiz na língua alemã e foi utilizado pela primeira vez em 1869, em Berlim,
quando Tom Belling, um cavaleiro, teve uma apresentação desastrosa no picadeiro. O público, então, gritou:
‘Augusto! Augusto!’ August, em dialeto berlinense, designava as pessoas que se encontravam em situação
ridícula, ou ainda aquelas que se faziam ridículas”. (BOLOGNESI,2003, p.73).
3 "A indústria cultural conserva o vestígio de algo melhor nos traços que aproximam do circo, na habilidade

obstinada e insensata dos cavaleiros, acrobatas e palhaços, na 'defesa e justificação da arte corporal em face
da arte espiritual'. Mas os últimos refúgios da arte circense que perdeu a alma, mas que representa o
humano contra o mecanicismo social, são inexoravelmente descobertos por uma razão planejadora, que
obriga todas as coisas a provarem sua significação e eficácia. Ela faz com que o sem-sentido na base da
escala desapareça tão rapidamente quanto, no topo, o sentido das obras de arte" (HORKHEIMER; ADORNO,
1969, p. 134).

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Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos

cômicos, particularmente, têm uma consciência aguda desta necessidade


de ser antes de tudo um corpo singular. (ROUBINE, 1987, p 44).

Roubine enfatiza o quanto os atores cômicos percebem a necessidade de marcar


sua singularidade, isto é, apontar em seu corpo sua marca, sua particularidade.

Sabemos que a arte circense possui um vínculo com o passado, no entanto, isto não
exclui o seu caráter revolucionário4. O palhaço com seus trejeitos, com sua expressão
corporal consegue ridicularizar a todos, ninguém escapa ao olhar atento desta
personagem. Todos são de certa forma satirizados.

A IMPROVISAÇÃO NO CIRCO E NO TEATRO

Embora inúmeros estudos tenham tratado da improvisação no teatro não se tem


definido o que realmente seja o ato de improvisar5 No teatro, o processo de criação e
interpretação dos atores, de uma certa forma, trabalha com elementos e informações
dados anteriormente, uma vez que sua personagem participa do texto dramatúrgico,
construído por outro. Mas, mesmo assim, isto não exclui o ato de criação e às vezes de
improvisação do intérprete, na medida em que este partirá de si mesmo para construir e
viver a personagem em cena.

A dualidade sujeita (ator) e personagem possibilita ao ator uma recriação do papel

4 Ao caracterizar o circo como revolucionário estou considerando a forma como este desmistificou o corpo
humano, colocando-o em evidência. Ver AUGUET, R. Histoire et légende du cirque. Paris: Flammarion,
1974.
5 Em seu livro Natureza e sentido da improvisação, Sandra Chacra define o que é improvisação: “A ideia

corrente que geralmente se faz a respeito da improvisação é de algo informal, espontâneo, imprevisto, sem
preparo prévio, inventado de repente, arranjado às pressas, súbito, desorganizado, aleatório, enfim, trata-
se de um produto inspirado na própria ocasião e feito sem preparo e sem remate. Em oposição, tem-se a
ideia do "ser em forma” como algo preparado, organizado, elaborado, deliberado, portanto um produto
pleno, formalizado e arrematado. No primeiro caso, costuma-se inserir a improvisação teatral e, no segundo,
o teatro como obra de arte. Poder-se-ia pensar que a partir destes conceitos, ainda que genéricos,
improvisação e teatro sejam duas coisas diferentes e opostas. Mas esta seria uma maneira um tanto
simplista de ver o problema, o que conduziria a restringir o conceito de teatro e estreitar o de improvisação.
Ambos fazem parte de uma mesma realidade, são dois aspectos de uma mesma matéria: aquilo que é quando
é com plenitude ou em perfeição e aquilo que é quando é ruína ou está incompleto. A distância entre estes
dois pólos, o improvisado e o formal, é que determina as diferenças entre si, através de graus, onde a
manifestação teatral torna-se mais ou menos formalizada ou mais ou menos improvisada." (CHACRA, 1991,
p.11-12).

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Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos

que lhe foi dado, sendo possível então construir sua personagem com uma certa liberdade
criativa.

Por ser uma arte cujo poder estético transita no espaço e o tempo, marcando sua
singularidade através de sua linguagem adversa diante das outras formas de arte (como
a literatura, por exemplo, que desperta mais a imaginação e a capacidade criadora do
leitor), o teatro (assim como o circo), por sua vez, a cada encenação passa por uma
metamorfose, revelando que o que se está representando jamais será encenado do mesmo
jeito, por outro. Isto é, cada encenação é um momento único, tanto para o ator como para
o público.

Os palhaços estão acostumados com o inesperado, pois a qualquer momento algo


inusitado pode acontecer, como por exemplo, um acessório da cena que é esquecido, ou
até mesmo a perda da voz ao entrar no picadeiro. Nesses momentos o que conta e salva é
a versatilidade do ator, pois é necessário improvisar no aqui e agora para segurar o
público e tirar o melhor proveito desta situação que é o riso. Por ter uma linguagem única
e própria, cabe ao palhaço utilizar a improvisação inúmeras vezes.

O palhaço Leonid G. Engibarov em sua entrevista à revista Correio da Unesco,


descreveu uma cena em que teve que improvisar para ganhar mais tempo em cena.

Certo dia, quando representava um dos múltiplos intermédios previstos


no programa, o diretor me soprou ao ouvido: “Ganhe tempo”. Significava
que havia um problema nos bastidores e era preciso entreter o público.
Não tinha a mínima disposição nem minha bengala nem meu chapéu, que
seriam tão úteis neste caso. Mas notei que o contrarregra havia colocado
um microfone sobre um banquinho, destinado ao número seguinte. Ao
me aproximar do microfone não tinha ideia de que faria. Mas, no
momento em que o peguei, logo tive uma ideia e me pus a discursar com
paixão sem dizer uma palavra sequer. De repente percebi que o
microfone não estava funcionando. Bati, soprei. E, enquanto isso,
angustiado, eu me perguntava: ‘E depois? E depois’? ‘Ande sobre o fio’ me
soprou uma súbita inspiração. Lembrando-me do truque dos ilusionistas
para desviar a atenção do público por um movimento falso, levantei o
microfone como que para aproximá-lo da luz, levando os expectadores a
olharem para cima enquanto manipulava discretamente o fio. Daí por
diante a cena se desenvolveu por si mesma. Com grande surpresa,
descobri a causa do defeito. Retirei o pé e bati de novo no microfone que
voltou a funcionar. Adotei uma postura de orador e então o medo me
tomou. Abri a boca mas não saía nada, nem uma palavra. Assustado, olhei
para o diretor que me fez um gesto para me animar [...] (ENGIBAROV,
1988, p.18).

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Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos

Neste depoimento nota-se o quanto a experiência e imaginação permitiram ao


palhaço improvisar com os objetos que encontrou em cena, e assim, criar situações
instantaneamente levado pelo acaso.

Uma das características do espetáculo circense é o acaso. Ele pode ocorrer a


qualquer momento nas cenas, uma vez que os artistas circenses procuram criar a partir
dele. Nem sempre há ensaios (estamos nos referindo aqui às entradas representadas
pelos palhaços). Portanto, o acaso se faz presente. Sendo assim, é necessário improvisar,
usar a imaginação para não perder a bolinha.6

Por ser despojada, na arte do palhaço o espaço para a improvisação é bem maior
que o teatro. A criação da personagem palhaço é concebida pelo próprio ator. Assim
sendo, a liberdade de criar em cena e o descompromisso em seguir um texto fechado
acaba dando margem maior para o improviso. Entretanto, mesmo que o teatro tenha um
texto definido com as devidas falas, gestos e ações de suas personagens, isto não é tão
categórico que não possibilite o improviso7. O ator é livre para criar e melhor conduzir
sua personagem, ao contrário do teatro tradicional.

No palco ou no picadeiro, o que era improviso passa a compor a totalidade da obra,


no caso a interpretação cênica, pois o que surgiu do acaso passa a ter proporções maiores
dentro do espetáculo, uma vez que o ator em instantes tem que redirecionar sua
interpretação e até mesmo construir sua personagem. Neste sentido, quando o improviso
acontece é um instante em que a personagem por determinados segundos sai de cena e
cabe ao ator trazê-la de volta, e assim, a arte acontece.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Podemos considerar que a improvisação é um fenômeno característico na arte do


palhaço, e o corpo grotesco é a via para que esta se materialize e proporcione a alegria
para o público circense.

Ao discutirmos a singularidade dos corpos grotesco e sublime, e a improvisação

6Expressão utilizada pelos palhaços para designar a concentração necessária à interpretação.


7Vale ressaltar que existem companhias teatrais que exploram o fenômeno da improvisação, como o teatro
de rua e o riquíssimo trabalho elaborado por Augusto Boal.

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Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos

entre os palhaços e atores teatrais, procuramos destacar especialmente, que na arte do


palhaço, este irá explorar o gestual e toda a linguagem corporal grotesca e disforme. O
cair, o levantar, a comicidade, a loucura, frequentemente será explorado pelos palhaços a
fim de extrapolar os seus limites.

Neste sentido, o corpo seja dos palhaços ou do ator irá expressar a versatilidade
capaz de se metamorfosear em vários personagens e criar diversas situações em que este
irá atuar.

A improvisação, este fenômeno presente entre os palhaços e os atores surge como


uma forma de criar e segurar o público. No entanto, é entre os palhaços que está é mais
constante, e, em muitos momentos acaba sendo a deixa para tornar a cena risível.

O circo vem a ser o mundo das possibilidades. Um mundo que aproxima o real e o
irreal, e neste universo há uma liberdade para criação artística, para o grotesco e para que
o improviso se manifeste. Ao contrário do teatro, em que o texto é fundamental, no circo
essa preocupação não existe, uma vez que os atores circenses só recorrem a este quando
é necessário ensaiar.

Esse universo circense, recheado de saltos acrobáticos, corpos que se encontram


em permanente movimento, tem um caráter grotesco, entregue à deformidade e a
comicidade.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AUGUET, R. Histoire et légende du cirque. Paris: Flammarion, 1974.


BAKHTIN, M. A cultura popular na idade média e no renascimento: o contexto de
François Rabelais. São Paulo: Hucitec, 2010.
BOLOGNESI, M. Palhaços. São Paulo: Editora da UNESP, 2003.
CHACRA, S. Natureza e sentido da improvisação teatral. São Paulo: Perspectiva, 1991.
ENGUIBAROV, L. Auto-retrato de um palhaço. Correio da UNESCO, Rio de Janeiro, v. 16,
1988.
HORKEIMER, M., ADORNO, T. Dialética do Esclarecimento: fragmentos filosóficos. Rio
de Janeiro: Zahar, 1986.
MARCUSE, H. Sobre o caráter afirmativo da cultura. In: Cultura e sociedade Rio de
Janeiro. Paz e Terra, p.89-134, 1997.
PANTANO, A.A. A personagem palhaço: a construção do sujeito. 2001. Dissertação

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Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos

(Mestrado em Filosofia) Faculdade de Filosofia e Ciências da Universidade Estadual


Paulista, Marília, 2001.
ROUBINE, J.J. A arte do ator. Tradução: Yan Michalski; Rosyane Trotta. Rio de Janeiro:
Zahar, 1987.

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Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos

Capítulo 2
O PALHAÇO LEVADO A SÉRIO

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Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos

O PALHAÇO LEVADO A SÉRIO

Alberto Magalhães

PAPO DE PALHAÇO

Quando o Palhaço Matraca fez o convite para escrever um texto sobre a atuação do
palhaço na sociedade, de cara achei que não tinha as credenciais para tal, já que não sou
um cientista social. Mas, revendo as minhas histórias no exercício do ofício, fui me dando
conta da importância do meu trabalho além de um mero provocador de risos.

Espero que tenha conseguido assim contribuir com o livro. Para mim, relembrar, deixar
registrado e compartilhar histórias que já faziam parte do meu subconsciente já valeu a
pena, por si só. Matraca, muito obrigado por me incluir nesse importante trabalho.

O PALHAÇO LEVADO A SÉRIO

Ninguém leva a sério o palhaço. Sua força talvez venha daí. Por não ser levado a
sério pode falar o que quiser, agir de maneira pouco convencional explorando improvisos
que lhe convierem, sem compromisso com o acerto.

Sou formado na primeira turma da Escola Nacional de Circo e em história. Como


professor de história dei aula durante um ano após me formar em licenciatura. Hoje digo
que longe das salas de aula me tornei um razoável contador de “Histórias da Carochinha”.

A seguir conto alguns casos que exemplificam a potência social da atuação do


palhaço, por mim vivenciados durante os quarenta anos de Bobinaldo até aqui.

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Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos

Imagem 01: Eugênio Sávio

NO PÉ DO MORRO

Anos oitenta. Rio de Janeiro, Zona Sul, Botafogo. Devia ser quase três da manhã.
Estava no ponto da praça em frente ao morro Dona Marta há mais de quarenta minutos
esperando o ônibus. O clima estava meio estranho. Pouca gente na rua. Os passantes na
sua maioria eram bêbados e drogados descendo da boca, além de patrulhinhas que
escolhiam a dedo alguns a serem revistados.

Ao mesmo tempo em que avisto finalmente o meu ônibus ao longe, um grupo de


adolescentes mal-encarados, no estilo trombadinhas, se aproxima. O ônibus chega e corro
para entrar, mas sou cercado pelos meninos um pouco mais jovens do que eu. Pensei no
que tinha de dinheiro e no relógio que havia colocado no bolso já prevendo algum possível
assalto na madrugada. Um dos garotos, o mais forte deles, se coloca na frente da porta
impedindo-me o acesso ao coletivo. Sinto a ponta de uma faca. Tô ferrado, pensei. “Aí,
Perdeu, Playboy”, foi o que ouvi do mais parrudo. “Passa tudo o que tem”. Estava com o
equivalente a uns 20 reais de hoje que entreguei imediatamente. Sinto uma maior pressão
da ponta da faca. “Qual é, irmão? Num tem mais nada não? Se tiver e encontrarmos te
furamos todinho... Tá achando que somos otários? Tira o tênis”. Entrego pra eles o meu

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Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos

Adidas praticamente novo ao mesmo tempo que cai uma nota de 50 no chão que estava
no fundo do sapato. A pressão da ponta da faca aumenta mais ainda quase ao ponto de
perfurar a barriga. “Tem certeza que não tem mais nada não?”

Suando frio, meto a mão no bolso e pego o relógio que havia comprado há duas semanas
para marcar o tempo das provas do primeiro período da faculdade. “Num falei que tinha?
Pode meter a faca, Douglas...” Fecho os olhos em desespero com as mãos pedindo pelo
amor de Deus.

“Não, galera, soltem o garotão, ele é gente boa”. Todos olham para o líder da gang
que vem chegando. A pressão da faca desaparece. Abro os olhos e vejo um moleque grande
com cara de chefe que abre um sorrisão. “Aí, você não se apresentou no mês passado lá na
Funabem de Quintino. Não era aquele palhaço?” Fiz que sim ainda sem entender muito
bem aonde ele queria chegar. “Pô, iradão, eu tava lá! Fugi semana passada. Era tu que
jogava aquelas bolas pro alto, né? Muito maneiro? Como é que tu faz, hein?”

Peguei três pedras no chão da praça e comecei a fazer malabarismo com elas.
Formou-se uma roda à minha volta com os garotos olhando compenetrados.

Ficaram comigo até chegar o próximo ônibus já perto das quatro da manhã. Sentei
no banco ainda sem entender muito bem o que havia acontecido. Um misto de várias
sensações. Mas tinha uma certeza, fui salvo por ter dado amor com arte àqueles garotos.

Imagem 02: Beto Campos

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Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos

REFLEXÃO PALHACESCA

Não sei exatamente como Bobinaldo surgiu, mas certamente teve influência do
meu avô que me levava desde criança aos circos mambembes que aportavam em
Vassouras, cidade histórica do Vale do Paraíba no interior do Estado do Rio de Janeiro.

Adorava quando os palhaços entravam em cena com seus instrumentos ou


tentando fazer algum número de mágica e dava tudo errado. Aquele errado para mim era
o certo. Quanto mais natural a falha, maior era o efeito sobre a plateia, mais ela se
contagiava, a gargalhada saía solta. Um extravasar que unia toda a plateia. Abolia as
diferenças. Todo mundo se identificava de alguma forma com aquelas bobeiras. Acredito
que seja o resultado de nos vermos espelhados nas falhas do palhaço. Em nos permitirmos
ser diferentes sem nos importarmos com pré-julgamentos.

Imagem 03: Ju Vaz

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Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos

PALHAÇOS NO BAR

Nas primeiras experiências como palhaço, Bobinaldo se juntou ao Dudu, Bibó,


Beijoca e ao mestre Xuxu. Os cinco se encontravam na casa Pascoal Carlos Magno, Teatro
Duse, em Santa Teresa, para realizar laboratórios de palhaçaria propostos por Xuxu.

Um dia, depois dos exercícios palhacescos, ainda caracterizados, fomos tomar um


chope no Bar Amarelinho na Cinelândia. Saímos do ensaio, descemos as ladeiras de Santa
Teresa, atravessamos a Glória e chegamos ao Centro. Era uma quarta-feira por volta das
21h. Ano de 1984, se não me engano. Nada mais inusitado que cinco palhaços passeando
e conversando pelas ruas do Centro naquela época. Vínhamos interagindo com os
passantes no caminho e alguns moradores de rua se puseram a nos acompanhar.

Quando chegamos ao Amarelinho não fomos muito bem recebidos. O que aqueles
palhaços seguidos por um bando de maltrapilhos queriam ali no bar? O garçon Almir só
nos atendeu depois de muita conversa e tratou de arrumar uma mesa de canto o mais
distante possível do contato com os outros clientes.

Pedimos alguns chopes e o papo aprofundou. Beijoca contava as suas amarguras


por conta de uma palhaça que havia despedaçado o seu coração. O sofrimento dele parecia
imenso. Seus óculos-chorão esguichavam água a grande distância molhando o pessoal que
se aglomerava à nossa volta. Bibó consolava Beijoca enquanto Dudu explanava seu novo
projeto de avião feito com sucatas. Bobinaldo ouvia o plano do Dudu e ia se imaginando
dando a volta ao mundo a bordo do avião. Atravessar oceanos e continentes, sobrevoar o
Monte Everest, pousar de paraquedas no seu pico e de lá realizar um salto de mais de 8
mil metros de altitude até uma tina d’água de 2 metros de profundidade. E Xuxu falava
com muita eloquência sobre alguma coisa extremamente importante a que não
poderíamos deixar de prestar atenção. Ao final pedia um copo de água e dizia que ia
transformar a água em leite em pó. Representava o caminho da água pela boca, esôfago,
estômago e quando chegava no intestino começava a ter uma crise de tremiliques. O corpo
passava por espasmos e emendava a soltar puns de talco que esfumaçavam o ambiente.

Aos poucos fomos vendo os novos clientes chegarem e escolherem mesas próximas
da gente. Os moradores de rua que estavam à nossa volta pareciam haver deixado de
incomodar. Sem combinarmos nada com o Almir, passamos a ir todas as últimas quartas-
feiras do mês ao Amarelinho. Chope mensal dos palhaços no Amarelinho. Quando

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Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos

chegávamos, mesmo se o Bar estivesse cheio, a nossa mesa estava ali, reservada. Uma
quarta-feira não pudemos ir, na quarta do outro mês Almir veio nos cobrar. Poxa. Vocês
não vieram mês passado. Não façam mais isso não. Quando não puderem vir avisem, senão
o povo todo fica aí esperando...

Imagem 04: Rogerio Maia

BOBINALDINHO E TERESA

Bobinaldo tinha um boneco marionete palhaço roqueiro que o representava. Era o


grande trunfo de suas apresentações. Quando chegava o momento de seu número o
sucesso era certo. Costumava levar em seus shows uma bonita mala amarela com bolinhas
vermelhas. Fazia um grande suspense sobre o que poderia estar dentro dela. A plateia ia
ficando curiosa, ansiosa por saber qual seria a surpresa. Quando finalmente saía
Bobinaldinho com a sua guitarra da mala, um suspiro geral era ouvido e sentido.
“Óóóóóóóóó.....”, “que fofo”, “lindinho”, “Igualzinho ao Bobinaldo”, “deixa eu tocar nele?” O
encanto era geral. Aquele boneco palhaço tinha uma força especial.

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Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos

Imagem 05: Rogério Maia

Em uma turnê de Bobinaldo, junto com o palhaço Mostarda, por diversos


manicômios do Rio de Janeiro, o carisma do Bobinaldinho se confirmou. A comunicação
entre os palhaços e os pacientes fluía muito bem. E quando surgia Bobinaldinho a relação
melhorava ainda mais. As visitas se davam em duas etapas. Uma com os dois passeando
pelas diversas alas do manicômio em relações individuais e na segunda parte era
realizada uma apresentação para aqueles que quisessem estar presentes em um palco
improvisado. Normalmente a grande maioria se interessava e os shows e a visita levavam
paz de espírito àqueles ambientes pesados.

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Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos

Porém, em uma visita ao Centro Psiquiátrico Juliano Moreira, havia uma senhora
chamada Teresa que reclamava de tudo. Os enfermeiros comentavam: “Ih, essa daí é ruim
de dar um sorriso”. Desde que chegamos parecia querer atrapalhar as nossas
intervenções. Sempre se punha à nossa frente quando estávamos a interagir com alguém.

Não achava a menor graça nas palhaçadas de Bobinaldo e Mostarda, enquanto os


demais estavam totalmente absortos pelo contato com os artistas. Era um meio de chamar
atenção. Talvez fosse uma carência. O objetivo da visita para os palhaços passou a ser
tentar conquistá-la. Bobinaldo sabia do poder cativante de Bobinaldinho, mas estava
preocupado, será que na hora em que saísse da mala Teresa se renderia aos seus
encantos?

Fomos chamando pelas alas os internos para se dirigirem ao auditório onde


aconteceria a apresentação. Bobinaldo com o trombone e Mostarda na percussão
montaram um bloco do sujo entregando chocalhos, apitos, e tambores para aqueles que
quisessem acompanhar. O cortejo cresceu e movimentou o centro como um todo,
misturando enfermeiros, o pessoal da cozinha, os pacientes e os palhaços. Era clara a
alegria de todos esquecendo as diferenças do dia a dia. Não se diferenciava mais o louco
de quem se diz são. Se alguém visse a cena de fora dificilmente conseguiria dizer se havia
algum biruta ali, afinal “é louco quem me diz que não é feliz”.

Imagem 06: Beto Campos

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Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos

Mas, alto lá! Teresa continuava a atormentar. Na frente do Bloco ia fazendo caretas,
dando língua, dançando de maneira debochada e segurando uma vassoura com um pano
de chão na ponta, sem se dar conta, fazia um misto de abre-alas, porta bandeiras e rainha
da bateria rabugenta.

Ocupamos o anfiteatro em grande estilo com o palco já preparado para o início da


apresentação que na realidade já havia começado. A equipe do Hospital e pacientes se
sentaram na plateia. Bobinaldo e Mostarda se colocaram de costas no fundo do palco. E
Teresa? Teresa parou no meio do palco e fez uma cara de quem comeu e não gostou. Meio
a contra à vontade sentou-se no chão, bem no meio, em frente à primeira fila de cadeiras.

A apresentação corria dentro do esperado. A plateia estava na mão, todas as


bobagens eram seguidas de gostosas gargalhadas. Só Teresa se mostrava insatisfeita.
Quanto mais o povo se divertia, mais Teresa resmungava. E Bobinaldo continuava na
expectativa, pois em breve seria revelado Bobinaldinho! Qual seria a reação de Teresa?

Tudo pronto. A mala Vermelha de bolinhas amarelas estava no centro do palco.


Grande suspense sobre o que havia ali dentro. Mostarda anunciava: É chegado o grande
momento do espetáculo! Hora de descobrirmos o que há dentro da mala do Bobinaldo!
Ouçam o rufar dos tambores. Vamos bater os pés no chão! O que será que tem aí dentro?
Um elefante? Um helicóptero? Um bolo enorme de chocolate! Hum, essa me deu até água
na boca!!! Vamos logo com isso Bobinaldo! Abra a Mala! Em coro todos gritavam: “Abre,
abre, abre”! Teresa estava quieta, com o olhar compenetrado.

A mala foi sendo aberta aos poucos e Bobinaldo içou Bobinaldinho. “Com vocês,
Bobinaldinho!” Em um puxão só o boneco marionete era revelado. Um suspiro só. Óóóóó....
Que lindinho! Coisa mais fofa! Um mini palhacinho! Uma salva de palmas se formou e
Teresa era quem batia as mãos com mais força de forma debochada querendo atrapalhar.
As palmas foram cessando. Teresa, com a cara amarrada, foi até o lado de Bobinaldinho
manipulado por Bobinado, olhou pra ele, encarou a plateia, botou a língua pra fora e
exclamou: “Ai que bobeira, mas que coisa ridícula!”. Silêncio Total. Pausa dramática.
Teresa mandou mais uma careta e repetiu alto e em bom tom: “Ai que bobeira, mas que
coisa ridícula!” O público não se aguentou e a gargalhada foi estrondosa. Mostarda e
Bobinaldo acompanharam a plateia e rolaram de rir. Teresa, percebendo que todos riam
dela, mandou mais uma vez: “Ai que bobeira, mas que coisa ridícula!” A reação foi maior

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Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos

ainda e contagiou Teresa. Começou a ter uma crise incontrolável de riso. Era a primeira
vez que os enfermeiros viam Teresa dar uma gargalhada. “Ai que Bobeira, mas que coisa
ridícula” virou o bordão da apresentação até o final. A dupla de palhaços se despediu do
Centro. E adivinhem quem levou a mala amarela de bolinhas vermelha até a porta do
Centro Psiquiátrico Juliano Moreira? Exato, acertaram. Teresa, aquela emburrada do
início da visita se despediu de Mostarda e Bobinaldo com um sorrisão e lágrimas nos
olhos. Deve ter pensado: “Ai que bobeira, mas que coisa ridícula!

Imagem 07: Ju Vaz

O palhaço se vai, mas da memória não sai...

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Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos

Capítulo 3
PALHAÇARIA COMO CURA: O
DESENVOLVIMENTO DA
PERSONALIDADE DA PALHAÇA ALIÁS E
O ENCONTRO COMIGO MESMA

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Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos

PALHAÇARIA COMO CURA: O DESENVOLVIMENTO DA PERSONALIDADE


DA PALHAÇA ALIÁS E O ENCONTRO COMIGO MESMA

Alessandra Simões

Precisamos sempre lembrar que esquecemos. Este aparente paradoxo passou a ser
lema em minha vida desde que vi a frase “Lembrei que esqueci” em uma obra da artista
Amelia Toledo, por quem tenho enorme admiração. A peça “Poço da memória – dedicado
ao meu pai” (1973) é um cilindro de fibra de vidro que nos convida a observar seu interior
revestido de aço inox polido (portanto, bem brilhante), que contém outro cilindro menor
em acrílico transparente onde está escrita a citação em vermelho. Percorrer as exposições
de Amelia significa realizar verdadeiras derivas espirituais entre instalações artísticas
compostas por quartzos gigantes, projeções que representam o céu, longos tecidos
esvoaçantes, em um mergulho sinestésico que nos faz recordar que sempre esquecemos.

É a partir desta metáfora em relação à obra visual de Amelia Toledo que este relato
de experiência se desenrola para tratar do processo de criação da palhaça Aliás,
considerando-se a clown enquanto imagem arquetípica e potencializadora de
transformação pessoal (Volpato, 2017), aos moldes da psicologia analítica e balizada por
autores da área cênica. A clown, segundo Volpato (p.77, 2017), “[...] torna-se um território
de livre expressão que auxilia a auto aceitação e oferece oportunidade de expressão de
qualidades e talentos encobertos por negações ou medo de exposição, tendo como
consequência a potencialização da espontaneidade, alegria e presença.” Portanto, a partir
de questões pontuais de minhas subjetividades, apresento breve corpo teórico-
metodológico ao qual são adicionados ainda conceitos da área cênica, confluindo para um
pensamento sobre a estética relacionada a questões de gênero, entre elas, a autonomia e
a auto-afirmação da mulher. Tento, sobretudo, esclarecer algumas subjetividades a partir

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Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos

de meu próprio processo de cura física e emocional, e do trabalho de pesquisa e extensão


em palhaçaria junto à Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB).

Como mostra a obra de Amelia Toledo, me esqueci de muitas coisas ao longo dos
meus quase cinquenta anos de vida e, entre todas, a mais recorrente era o esquecer de
mim mesma, um esquecer quase inominável, diferente do esquecer de si nas tradições zen
como chave do insight perene. Estou falando de um exercício de si sobre si mesma, por
meio do qual se procura elaborar, se transformar e atingir um certo modo de ser, como
nos alerta Foucault (2004). Para fazer este exercício é preciso primeiramente nos
lembrarmos que esquecemos. Acho que era isso que Amélia pretendia fazer com seu poço
da memória: ativar em cada fruidor (a) a memória de si. Aprendi, então, que mais
importante do que não esquecer (porque esquecemos sempre mesmo, este é um fato) é
lembrar que esquecemos. E é aí que entra minha relação com a palhaçaria.

Reencontrei-me com minha clown, a palhaça Aliás, no início de 2018, quando me


mudei para Ilhéus, na Bahia. Digo “reencontrar” porque em muitos momentos da vida tive
relações com a palhaçaria em diversos âmbitos: animação de festas, apresentações
circenses, teatro de rua, mímica. Mas acabei seguindo carreira nas artes visuais (como
artista, professora e crítica) me distanciando durante muitos anos das artes cênicas. A
volta para a palhaçaria se deu no momento certo (não é assim que muitos dizem? O
palhaço está sempre a nossa espreita), pois eu estava em processo de cura de uma doença
renal bastante grave que me levou a tomar corticoide em doses pesadíssimas durante
quase cinco meses, tempo em que fiz uma profunda revisão de minha vida, destas em que
você põe tudo na panela para ver se o caldo firma ou entorna de vez. Para minha felicidade,
o caldo firmou e o encontro com a Aliás teve grande parcela no sucesso de minha nova
fase de vida.

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Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos

A palhaça Aliás, em exercícios faciais. Fonte: autora. 2018

Como é de praxe na palhaçaria, passei por rituais de iniciação, ou melhor,


“reiniciação”. Considerei como minha mestra mentora (mentoria é uma palavra da moda
né?) a palhaça Madame Chumaço, a multiartista Driely Alves (de Campo Grande – MS e
residente em Ilhéus), com quem fiz a primeira oficina debutante no meu retorno à
palhaçaria, e que se tornou uma grande amiga. Na mesma época, ganhei de presente um
nariz lindo e profissional do meu amigo e então colega de trabalho, o pesquisador, artista
e docente Marcus Matraca, o Doutor Palhaço Matraca. Considero este um dos fatos mais
importantes nesta “reiniciação”, pois um presente afetivo e encantado neste momento tão
precioso me levou à certeza de que a palhaçaria para mim era um caso de amor. E como
as coisas acontecem magicamente na palhaçaria, não é mesmo? Alguns meses depois, após
uma obsessiva mentalização para realizar o sonho de ter uma mala de couro
originalmente antiga, eis que ganho uma de meu querido cunhado, Celso Monari,
proprietário do Sebo Uraricoera, em Araraquara (SP), loja que acolhe preciosidades como
livros e malas antigas.

Para além do misterioso “ataque autoimune” que meu corpo havia sofrido (eu tive
um acometimento dos rins de origem primária e concomitantemente minha tireoide havia
pirado), eu já tinha a certeza de que aquilo se tratava de uma prova espiritual (além, claro

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de uma radical intolerância a glúten diagnosticada pela nutricionista e menosprezada


pelos nefrologistas). A leitura do livro A Cura, de Bert Hellinger, psicoterapeuta inventor
da técnica da Constelação Familiar, foi fundamental para eu entender que aquele período
da minha vida teria que ser destinado à revisão de décadas de desencontro comigo mesma
e de traumas de vida e morte (o nascimento de minhas filhas trigêmeas e o falecimento
de minha mãe), que naquele ano da doença completavam uma década (minhas filhas
nasceram uma semana depois da partida de minha mãe). A leitura de Hellinger (2001) foi
uma “leitura-ritual” durante uma noite inteira sozinha no apartamento de minha
terapeuta em São Paulo, quando intercalei choros, rezas e incensos, até cair em sono
profundo. Ao acordar, eu tive a nítida sensação de que era outra pessoa, tão leve que não
me reconhecia mais como a “Alessandra cara de susto”, que foi como eu havia sido
definida pela acupunturista que me acolheu com agulhadas milagrosas em paralelo à
alopatia.

E foi assim que a palhaça Aliás me capturou em seus braços: uma Alessandra
quinze quilos mais magra, mas com muito mais energia e a certeza de que só ficaria em
um ambiente onde houvesse amor. E na palhaçaria encontrei este ambiente moldado por
mulheres que pareciam, em sua maioria, buscar a mesma coisa. Em várias oficinas,
aprendemos muito com Driely que, além de compartilhar os segredos fascinantes da
palhaçaria, temperava-os com doses sobre a relação da palhaça com o feminino e sua
experiência como mulher negra na palhaçaria. Logo após as primeiras oficinas de Driely
foi criado o grupo As Madallenas, do qual participei durante certo tempo. E também o trio
As Forasteiras (pois é assim que são chamadas as pessoas que não são nascidas em Ilhéus,
porém que vivem na cidade), que reunia Aliás, Madame Chumaço e Maga (a multiartista
paulistana Mariaji Gandhi Salvador, que também reside em Ilhéus), pois havia entre nós
três uma química especial. Fizemos várias apresentações e derivas pela cidade. Um
período bastante produtivo até a chegada da pandemia. Aliás, a palhaça Aliás está
descansando durante a pandemia; fez algumas poucas aparições na internet, porém
também faz parte do meu processo como artista, professora e pesquisadora se dividir
entre inúmeras frentes, como a produção de obras visuais, dedicação às aulas (na
Universidade Federal do Sul da Bahia – UFSB), e à pesquisa cujo tema mais predominante
atualmente tem sido o decolonialismo nas visualidades.

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O grupo As Madallenas durante deriva na cidade de Ilhéus.


Fonte: As Madallenas. 2019.

O fato é que este momento de ascensão de cura, o encontro com minha clown foi
muito sagaz. Registrei o trabalho da palhaçaria na área de extensão na UFSB, e atrelei a
ele uma profunda pesquisa sobre a construção da personalidade da Aliás. O projeto,
intitulado “Colombinas em combate: espaços poético-pedagógicos da palhaçaria
feminina”, teve como objetivo inicial traçar, ao longo da história milenar da figura do
clown, as razões pelas quais a palhaçaria foi liderada majoritariamente por artistas
homens, e como na atualidade é possível constatar um crescimento expressivo de
mulheres clownescas. O projeto levanta questionamentos como: É possível existir uma
clown de perfil feminino? Quais seriam as características dessa personagem? Quais as
contribuições que a palhaçaria feminina apresenta hoje para o estado atual do teatro
brasileiro e mundial? Como criar uma clown na qual revelam-se as especificidades do
gênero feminino? Estas indagações estão na base deste projeto de pesquisa e extensão,
que tem entre seus objetivos investigar as origens históricas e os desdobramentos
contemporâneos da presença da mulher na palhaçaria, consolidando assim o
delineamento conceitual da clown mulher. Estes estudos serviram de base para o
fortalecimento da construção poética da personagem Aliás. A partir das pesquisas

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teóricas e de seu entrelaçamento com a atuação prática (solo ou em grupo), a proposta é


sistematizar uma metodologia de processo de criação e de multiplicação pedagógica da
clown mulher, cujo resultado pode ser visto em diversas atividades, como apresentações
cênicas e oficina dirigida à comunidade discente da UFSB.

Assim, a Aliás virou uma palhaça meio escatológica: sua maquiagem é toda
borrada, o cabelo parece labaredas enlouquecidas (ganhei a preciosa peruca de Chumaço)
e sua roupa é toda amassada. Ela também é meio mal-humorada e bastante erudita,
modéstia a parte. Acho que ela encarna uma parte sombria de minha personalidade e que
eu tinha certa resistência em trazer à luz: meu espanto diante da estupidez humana.
Reconhecer esta minha acidez diante da vida tem sido importante para abarcar o seu
revés: minha perene admiração pelo milagre da beleza, da arte, da solidariedade e da
natureza. Tudo isso costurado pela abordagem do ridículo que existe em “todes” nós.

O jogo entre estas duas esferas - meu ser ácido e meu ser amoroso - parece ter sido
o caminho encontrado em minha busca pela personalidade da Aliás e a reafirmação da
frase da artista Amelia: Lembrei que esqueci. Afinal, precisamos ser flexíveis no jogo da
vida, como fala Bergson (1983, p. 14), ao dizer que a vida e a sociedade exigem de cada
um de nós certa atenção constantemente desperta, “[...] que vislumbre os contornos da
situação presente, e também certa elasticidade de corpo e de espírito, que permitam
adaptar-nos a ela. Tensão e elasticidade, eis as duas forças reciprocamente
complementares que a vida põe em jogo”. Acho que tem sido esta a minha noção de cura
e de saúde expressas na Aliás: abarcar os polos, relacioná-los, bifurcá-los e reaninhá-los
(este verbo não existe, então com toda licença poética) para o encontro de si. Estar entre
mulheres, por exemplo, foi de um efeito balsâmico avassalador. Tudo depende desta
flexibilidade apontada por Bergson (1983). Precisamos dançar conforme a música. É
interessante que minha postura mais crítica aflorou até mesmo na relação do feminino
com a palhaçaria, e me irritei em certos momentos com palhaças “bonitinhas”, com
maquiagens “gracinhas”. É por isso que a Aliás é tão troncha. Para além das convenções
(a própria palhaçaria feminina, por exemplo), a Aliás prefere o absurdo. Interessante que
sempre amei Samuel Beckett. Inclusive, atualmente, tenho publicado em um jornal local,
Portal Ilhéus, tirinhas com dois personagens inspirados em Vladimir e Estragon, da peça
“Esperando Godot”: Didi e Gogó, os últimos palitos da caixinha de fósforos.

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Entretanto, a palhaça Aliás começou a se observar mais cuidadosamente para


tentar entender se, por trás de sua face crítica, poderia haver soberba. E, quanto a isso, ela
realmente ainda precisa muito desenvolver mais paciência e cuidado em relação às outras
pessoas. Uma das leituras que mais me marcou neste período foi o trabalho de mestrado
de Renata Domingos Volpato, intitulado O clown como imagem arquetípica e processo
de transformação de si, no qual ela sistematiza seu método para fazer do trabalho do
clown o caminho da autodescoberta por meio de recursos que proporcionem às pessoas
ultrapassarem os próprios limites psicoemocionais e de expressão, isto é, buscar o poder
transformador do clown para artistas e não artistas. Em seu trabalho, Volpato (2017) diz
que seu elo esquecido era a conexão com a criança que um dia ela foi e que habitava seu
interior, mas que estava esquecida depois de muito tempo encarando o teatro com
demasiada seriedade. Renata lembrou que esqueceu.

Uma das minhas batalhas na construção da Aliás (lembrando aqui que a construção
é permanente, existe um “devir-Aliás”) foi a recursa deste seu lado mal-humorado. Eu não
queria ser a palhaça Branca em contraposição à Augusta. Porém, no decorrer dos meus
estudos percebi que esta convenção também não deveria ser uma norma e que os estudos
e práticas do clown contemporâneo traziam outras inúmeras sutilezas. Como descreve
Reis (2013, p. 368): “[...] bufão, grotesco, bobo da corte, augusto, excêntrico, fool,
merryman, tony e jogral. E por que não aumentar a confusão com Mateus, Bastião,
Catirinas, e o Preto Velho dos reisados [...]” (o autor ainda acrescenta os Hotxuás, da
tradição indígena). Assim, também tenho aceitado a impermanência da Aliás em sua
construção perene. A necessidade de autorreflexão é necessária, porém não pode se
tornar também uma obsessão, um freio na criatividade do exercício cotidiano cênico do
explorar o ridículo de si em suas variantes cênicas. Como diz Colavitto: “[...] o clown se
constrói na relação” (2016, p. 22).

Acredito que esta relação é dialógica em todos os âmbitos: seja com o (a) mestre
(a), com o público, com os objetos de cena, com os (as) outros (as) clowns, com a
ancestralidade clownesca, consigo mesmo (a). A interação constante, autêntica e
consistente se constrói no dia a dia do fazer artístico. Me deparei com erros e exageros
por parte da Aliás e a partir da reflexão sobre estes “desvios” é que vou acertando as
contas com ela e comigo mesma. Por exemplo: em diversos momentos dentro do grupo
As Madallenas me percebi de certa forma bastante intrometida em relação às minhas

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colegas. Acho que minha idade mais avançada e experiência prévia na palhaçaria e nas
artes cênicas me faziam ver algumas brechas para interferências audazes, em relação,
principalmente à interação entre as clowns e o improviso durante as cenas. Entretanto,
muitas vezes, eu sentia que elas não respondiam às minhas provocações e isto me
frustrava e a elas também. Em uma conversa sincera achamos melhor que eu deveria me
afastar do grupo, pois de qualquer forma meu interesse estava se voltando mais para a
dramaticidade do clown do que para a veia circense com que elas vinham trabalhando.
Então, Aliás se tornou uma convidada das Madallenas. Neste período, também fiz uma
interessante oficina com o ator italiano Stefano Bottai, no Circo da Lua, em Serra Grande
(BA), na qual foi possível explorar as várias facetas cênicas do clown, isto é, entender a
“nobre arte da estupidez” a partir da expressão teatral. Esta experiência confirmou meu
interesse por me aproximar mais das técnicas cênicas do clown mudo do que do palhaço
ao estilo circense (lembrando também que os dois podem ser fundidos, de qualquer
forma).

O episódio do afastamento das Madallenas, de certa maneira, mexeu bastante


comigo, pois pude perceber questões de ordem pessoal refletidas em minha palhaça.
Entre elas, esta “solitude” que tenho desenvolvido ao longo da vida em relação a muitos
fazeres e que está enraizada em algo bastante profundo de minha relação pessoal e
familiar com a vida. Venho de uma família pequena e dispersa, e isto tem sido uma marca
perene em minha trilha existencial (não foi à toa que deus me enviou trigêmeas para
constituir meu novo núcleo familiar com bastante gente). Acho que possivelmente a
construção da Aliás possa se encaminhar para algo relativo ao estilo do palhaço russo
Slava Polunin, especialmente neste quesito da solidão de um bufão meio melancólico, ou
da clown Aga-Boom, com sua simpática comicidade escrachada (estes dias andei
pensando que ela se parece muito com minha cachorra, a Róli, muito alegre, amorosa e
estabanada). Gosto da mudez, do absurdo, do que comove pela simplicidade e pelo
mistério. Gosto também do erro, bem aos moldes como a autora Ana Elvira Wuo aponta
em Slava, onde há erro codificado e calculado: “Por isso, o público parece evitar o clown
que busca o acerto; desinteressa-se, pois sua leitura é a de que ele erra” (2019, p. 35). Mas,
enfim, acho que este descolamento das Madallenas e a junção mais próxima com a
Chumaço foram fatos que revelaram a medida correta de minha busca. Pois Chumaço é
uma palhaça experiente que me sinaliza que estou caminhando para um lugar que faz

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sentido. Tanto que formamos o grupo chamado Forasteiras (somos todas de fora de
Ilhéus) e nos unimos no sentido de uma investigação cênica mais profunda sobre a arte
do clown. Os encontros das Forasteiras eram momentos sagrados para mim, tanto no
tocante à pesquisa como para o fortalecimento de nossa visão feminina de mundo, algo
mesmo terapêutico (estamos planejando voltar a fazer nossos encontros em breve).

Palhaça Aliás realizando o número “A Cantora de Fado”.


Centro Cultural Matamba Tombenci Neto, Ilhéus. Fonte: As Madallenas, 2019

As Forasteiras: da esq. à dir., Madame Chumaço, Aliás e Maga.


Fonte: @drielydesnuda. 2020

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Estas experiências mais atuais me fizeram resgatar outros momentos de minha


aproximação com a arte clownesca, principalmente, no período em que eu morava em São
Paulo. Fiz algumas oficinas livres, entre elas, com Paoli-Quito, no estúdio Nova Dança, que
me levaram a pesquisar sobre as relações entre a organização corporal e a composição do
clown em jogos lúdicos e dinâmicos. Acho que uma grande escola também foi assistir aos
espetáculos. Lembro bastante das apresentações da série Midnight Clown. Uma delas
especialmente: quando a atriz Bete Dorgam, que fazia uma crítica clownesca, recomendou
tratamento psiquiátrico ao cineasta Cacá Diegues, que havia feito um esquete em que
elogiava com bastante afinco seu próprio pênis. A figura da crítica encarnada por Bete
Dorgam já me tocava neste viés em que acabei me vinculando: um clown crítico, ácido, que
consegue enxergar os defeitos alheios e se sente de certa forma acima de tudo e de todos
(o que aliás, me leva novamente às sombras permanentes que avançam sobre meu ego,
rsrsrsrs).

O interessante é que, atualmente, os melhores momentos da Aliás são a partir do


empenho psicológico que busco realizar comigo mesma (e dá-lhe terapia, também!). A
palhaça Aliás me permite brincar com este lado sombrio, a crítica mandona, e me faz
afrouxar o próprio egoísmo e a necessidade de controle para enxergá-los à distância.
Quando isto acontece há momentos realmente mágicos entre a Aliás, sua comicidade e a
plateia. É o que Colavitto (2016, p. 33) chama de “A compreensão do estado clown como
algo que gera ‘poesia’”. Lembro-me muito bem dos momentos em que isto ocorreu nos
espetáculos com as Madallenas. Em um deles, a Aliás estava “de fora” da apresentação; ela
representava uma palhaça que não pertencia ao grupo, tinha chegado de Paris (ops,
Pariscidinha do Norte) e que estava por ali procurando emprego. Ela se resignou a ficar
sentada com a plateia (com quem se divertiu muito fazendo pequenas interferências e
diálogos durante a apresentação) à espera de uma oportunidade, que foi lhe foi dada
“infortunadamente” como contrarregra e assistente de faxina. Era também uma forma de
preparação da plateia para um “final retumbante”, o número permanente que lhe foi
“dado de presente” por Chumaço: “A mulher que vira peixe”. Este estar de fora do grupo
me permitiu trabalhar principalmente com o improviso e a relação com a plateia, para
mim o supra suma do palhaçaria, quando temos que realmente nos encontrar com o
estado espiritual de estar totalmente presente no momento.

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A Palhaça Aliás durante o número “A mulher que vira peixe”, 2019,


Tenda Teatro Popular de Ilhéus. Fonte: As Madallenas

Afinal, como afirma Colavitto (2016, p. 34): “[...] o clown não é um personagem ou
uma linguagem teatral, e sim um estado de ser.”. Isto é, nós não representamos um
palhaço, nós somos o palhaço, a palhaça: este ser “[...] encharcado de um desejo poético
de alcançar algo muito sensível e humano [...]” (COLAVITTO, 2016, p. 34) é algo que nos
aproxima da infância. Acima de tudo, pensar sobre a Aliás, trabalhar com a Aliás, sempre
me levou à certeza de que arte é cura. Porque a cura física perpassa a cura de nosso ser
espiritual. Trabalhei (e ainda trabalho) em muitos locais em que há uma relação bastante
doentia entre as pessoas. Isto é bastante comum, especialmente, no ambiente da
universidade pública, onde deveríamos estar permanentemente unidos pelo bem comum,
porém é onde ocorrem as maiores disputas por espaços, ideologias, egos inflados, guerras
sem fim que expressam a mesquinhez humana em seu lado mais tosco. Me sinto uma
observadora em perplexidade constante em relação a isto. Mas tenho aprendido a me
afastar e até mesmo a rir destas situações. Quando elas me ferem e me deixam triste, tento
apelar para a escuta de mim mesma, pois sei que o outro, que está enredado em seu
próprio ego, não tem condições de me escutar e de me entender (afinal, não escolhi ser
psicanalista e sim palhaça). E, aliás (Aliás?), me valho deste próprio material humano que
me cerca para a construção da Aliás, uma palhaça meio intelectual e ao mesmo tempo
escrachada. “A ‘outra lógica de mim’ ri de mim por meio do outro”, como define Wuo
(2019, p. 33). E, assim, rimos eu e público da ridicularidade da vida, de nossos atos falhos,
de nossas vãs filosofias.

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Sobretudo, estar em contato com a Aliás tem me ajudado no método da distância


como condição imprescindível para a escuta do outro e de mim mesma (DUNKER;
THEBAS, 2021). Como afirmam os autores: “Palhaços e psicanalistas concordam que a
arte da escuta do outro começa pela possibilidade de escutar a si mesmo” (DUNKER;
THEBAS, 2021, p. 25). Eles explicam que “alguém de fora” (o nosso próprio eu
distanciado) pode nos oferecer um retrato mais parcimonioso e claro do que aquela
situação vivenciada por quem está dentro dela. Afinal: “Somos frequentemente sufocados
pelo excesso de interioridade, em uma mesma rede de problemas, de pessoas, de olhares
que são repetidos em forma circular e pouco transformativa.” (DUNKER; THEBAS, 2021,
p. 33). Esta capacidade de olhar de fora, mesmo estando dentro, nos torna diplomatas de
nós mesmos, um solucionador dos problemas que afetam nossa saúde física e mental. E o
melhor: uma solução não racionalizada, uma solução pela via poética (mas vejam bem,
fazer terapia também é uma delícia).

Acho tudo isto válido para todas as outras artes que pratico, pois acredito na visão
junguiana de que a prática artística é fundamental para minha estruturação psíquica.
Quando nos encontramos com nosso ser profundo, relaxamos, podemos nos perder de
nós mesmas para ir ao encontro do outro. São estes paradoxos que compõem a
complexidade do processo de criação artística. A partir destas operações, a arte da
palhaçaria, e todas as outras artes, nos fazem sentir-nos mais vivas. Estamos presentes e
protegidas por este amparo primordial e espiritual que é a dimensão do ser artístico. Isto
é cura, saúde e viver com intensidade, espontaneidade e sentido. A clown que existe em
mim abre um portal permanente para a relação criativa e significativa com a vida. É claro
que muitas vezes perdemos esta linha. Mas ela estará sempre lá para ser resgatada e nos
guiar pelos labirintos existenciais, comprovando que a presença cênica é a presença na
vida. Desbloquear constantemente esta presença se tornou uma missão para mim no
constante resgatar da lembrança do esquecimento. À medida em que exercito isto com
mais frequência, seja no fazer artístico ou por meio de sua reflexão (como neste texto), me
torno mais forte e viva. Rememoro e pratico a espontaneidade perdida de minha primeira
infância, traumatizada pelos dualismos e egoísmos sociais. Acolho meus erros e defeitos
e transformo-os em riso. Me aceito e me autorrealizo.

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REFERÊNCIAS

BERGSON, Henri. O Riso. Rio de Janeiro: Zahar, 1984.COLAVITTO, Marcelo. Meu Clown:
uma pedagogia para a arte da palhaçaria. Curitiba: CRV, 2016.

COSTA, Marcus de Lontra (org.). Amelia Toledo - Lembrei que esqueci. Centro Cultural
Banco do Brasil, São Paulo, 2018.

DUNKER, Christian; THEBAS, Cláudio. O palhaço e o psicanalista – Como escutar os


outros pode transformar vidas. São Paulo: Planeta do Brasil, 2021.

FOUCAULT, Michel. "A ética do cuidado de si como prática da liberdade". In: Ditos &
Escritos V - Ética, Sexualidade, Política. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004.

HELLINGER, Bert. A Cura. Belo Horizonte: Atman, 2001.

REIS, Demian Moreira. Caçadores de risos: o maravilhoso mundo da palhaçaria.


Salvador: Edufba, 2013.

VOLPATO, Renata Domingos. O clown como imagem arquetípica e processo de


transformação de si. 2017. 190 f. Dissertação (Mestrado) - Curso de Programa de Pós-
Graduação em Artes da Cena, Instituto de Artes, Universidade Estadual de Campinas,
Campinas, 2017. Disponível em:
http://repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/330648/1/Volpato_RenataDomingo
s_M.pd. Acesso em: 29 jul. 2021.

WUO, Ana Elvira. Aprendiz de Clown: Abordagem Processológica Para Iniciação à


Comicidade. Jundiaí: Paco, 2019.

SITES
https://slavasnowshow.com
http://www.agaboom.com/
https://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa108965/cristiane-paoli-quito

INSTAGRAM
@palhaca_alias
@drielydesnuda
@asmadallenas

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Capítulo 4
PALHAÇARIA ATRAVESSADA PELAS
MÍDIAS – TEM PALHAÇO(A) ONLINE!

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PALHAÇARIA ATRAVESSADA PELAS MÍDIAS –


TEM PALHAÇO(A) ONLINE!

Tiago Marques da Silva

INTRODUÇÃO

Um palhaço maltrapilho sob uma lona desbotada em uma cidade muito pequena1.
Ao dizer “olha o pé na cara!” e fazer um chute no ar, obviamente desengonçado e sem
distância suficiente para acertar o golpe, o palhaço fazia o pequeno circo explodir em riso
e a plateia saía dali repetindoo bordão - “Olha o pé na cara!”. Um dos repetidores era eu,
ainda criança e segurando na mão do pai. Uma das poucas e melhores lembranças da
infância. O riso gerado pela palhaçaria transformou- se em amor platônico e hoje
profissão.

Em meados de 2003, o amor platônico teve encontro carnal nas primeiras oficinas
de palhaçaria e de lá pra cá cresceu em tamanho e dedicação, me levando a realizar
espetáculos e até mesmo um Trabalho de Conclusão de Curso na graduação em Artes
Cênicas sobre palhaçaria. Anos se passaram e aqui estou debruçado sobre a
PALHAÇARIA, atuando, mas também, atento às mudanças à nossa volta e porque não
àquelas que nos atravessam?

Em uma época não tão distante, falava-se em mídias dentro das artes da cena ou
na arte do palhaço e logo num primeiro momento podia se pensar em projeção
audiovisual. Este recurso, com avanço tecnológico dos equipamentos, segue em uso e
sendo redescoberto como ferramenta de jogo e até cenografia e muitas vezes
ultrapassando as funções “convencionais” e ganhando protagonismo em alguns
espetáculos, shows e eventos de games.

Hoje ao ouvir a palavra “mídias”, nossa mente, tal qual a página do Google,
completa com a palavra “sociais”. O tempo presente se caracteriza também pela
comunicação virtual e rede social. Antes, para um comércio, uma boa localização ditava

1 A cidade mencionada é Bady Bassitt, cidade localizada no norte do estado de São Paulo

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o sucesso. Hoje seu êxito está muito mais atrelado ao perfil que possui nas mídias sociais
de fácil acesso, por exemplo, o instagram. No campo das artes e mais precisamente da
palhaçaria, a pandemia trouxe a necessidade de encontrar outros meios de comunicação
e contato com público, já que o presencial ficou paralisado (pois antes temos que
preservar a saúde da humanidade). Sendo assim, 2020 foi ano de incontáveis cenas
gravadas, espetáculos virtuais, web – sarais, lives artísticas, bem como inúmeros debates,
aulas, seminários também sobre técnicas e bastidores. O compartilhamento dos
conhecimentos, pesquisas e produções artísticas foi disponibilizado rapidamente.
Podemos escutar as vozes, que até então nos pareciam distantes, pois a internet e a
necessidade de dividir e estar juntes, fez com que pudéssemos circular por muitos lugares
e países, em encontro com nossas referências, angústias e de certo modo,foi suprindo a
falta de diálogos e a necessidade de trocas, mesmo que virtuais. Na maior parte desses
eventos resilientes, as forças motrizes foram a tentativa de melhorar o clima emocional
da população, dar vazão à criação e seguir praticando o oficio, além da necessidade
financeira, é claro. A palhaçaria está online.

Mas palhaçaria online é palhaçaria? A necessidade de venda e promoção traz,


muitas vezes, a necessidade de categorizar. Muitos são os que, inflexíveis ao híbrido, a
multipluralidade e ao atravessamento das mídias, negam a existência de palhaçaria não
presencial, já que é uma arte sempre definida como arte do encontro. O palhaço e a
palhaça são jogadores por natureza, dinâmicose atentos ao menor estímulo possível e às
mais variadas novidades (ou tecnologias) que podem ser incorporadas ao seu trabalho.

Esse texto pretende abordar algumas das novas relações e novas maneiras de se
relacionar, que acompanham a evolução ‘necessária’ e tecnológica do nosso tempo.
Somos todos, artistas ou não, hardwares desse tempo presente e a cada dia o software se
atualiza e se faz urgente dialogar com opresente como meio de atualizar a tradição.

TEM PALHAÇO(A) ONLINE!

Os palhaços são encontrados em muitas culturas, dos egípcios aos índios, dos
chineses aos indianos, dos gregos aos latinos, com características diferentes, mas ainda
assim, palhaços. Emdiferentes culturas primitivas encontram-se mascarados que faziam

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danças toscas e davam gritos. Todos com mesmo objetivo: provocar o riso.

“O palhaço é o sacerdote da besteira” (CASTRO, 2005, p 12) (e agora aprendemos


que sacerdotisa também) e, desta forma, pode-se afirmar que o palhaço (a) nos coloca
diante de suas falhas (seus ridículos) e fraquezas. Por meio desta exposição, rimos de nós
mesmos, seres humanos.“A principal função do riso é nos recolocar diante da nossa mais
pura essência: somos animais. Nem deuses nem semideuses, meras bestas tontas que
comem, bebem, amam e lutam desesperadamentepara sobreviver. A consciência disso é
que nos faz únicos, humanos”. (CASTRO, 2005, p 15).

O palhaço (a) foi em cada época e em cada cultura chamado de um nome, seja
clown, bobo, Joey, menestrel, truão, excêntrico, jogral e outros, mesmo que os palhaços
ou clowns, assim como os bufões, os cômicos Dell’Arte e até os bobos da Idade Média
tenham uma mesma essência,“que é a de expor a estupidez humana” (BURNIER, 2001, p
206). O palhaço pode ser onírico, poético, mas provocador, subversivo, entre muitas
outras coisas, mas em essência podemos descrever sua atuação/situação como “um ser
vulnerável em sua humanidade, diante de outro ser que observa, e pode provocar o riso
nas suas mais sutis gradações” (PUCCETTI, 2009, p 119).

A palhaçaria é a arte do encontro, presencial! Entretanto, antes do cenário


pandêmico (de 2020e 2021) já era notável um outro movimento: Artistas, duos e grupos
criando perfis em rede social, não perfil pessoal (comum até então), mas artísticos,
exemplo: Artistas que exercem a palhaçaria sob um determinado nome/figura criando
rede social para essa figura (integro a “estatística” com [m]eu palhaço Ritalino). Muitos
desses perfis cômicos prolongam o relacionamento com público jácativado no âmbito
presencial. A relação palhaço(a) x público é dilatada e segue viva além de um espetáculo,
com pequenas doses virtuais. Sobre o termo palhaçaria, Demian Reis nos diz o seguinte:

Se o sufixo “ria” tem relação com lugar, atelier e oficina – como a


alfaiataria do alfaiate, a peixaria do vendedor de peixe e a padaria do
padeiro - , então por que não palhaço e palhaçaria? O lugar onde
consumimos o produto palhaçaria é o corpo do palhaço, ele carrega e
vende a sua palhaçaria para ondevai, seja nas ruas, nos circos, teatros ou
hospitais. (2013, p 22).

Há quem diga que a arte da palhaçaria não acontece via streaming, se é gravado e
exibidopor uma tela pode até ser outra arte, mas não palhaçaria, pois para muitos ela se

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Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos

dá apenas no presencial. Mas o momento pandêmico trouxe a web quase que como única
opção de exercício do ofício. A pandemia não é a única responsável por tal movimento,
ela apenas acelerou a percepção sobre ele.

O atravessamento das mídias em nossas vidas já está completamente


“naturalizado” e ordinário. “O cotidiano é influenciado pelo mundo audiovisual, na qual
as tecnologias agem diretamente no fazer e representar” (ROSA; SILVA; PALHARES,
2005, p. 04). Hoje a maneira como nos relacionamos em muitas situações tem um
intermediário virtual, de check-in em estabelecimentos comercias a aplicativos de
compra de comida ou até de mediação de relacionamentos carnais efêmeros, como o
Tinder.

A crescente criação de situações e ambientes altamente informatizados


está gerando tamanha quantidade de atividades eletrônicas em todas as
esferas da vida humana, cujo conjunto pode ser classificado como uma
nova dimensão da nossa sociedade contemporânea (ROSA; SILVA;
PALHARES, 2005, p. 04).

As artes da cena, sem abrir mão de suas tradições e séculos de saberes, têm,
essencialmente, a comunicação como eixo. Se não comunica com o ser humano, não
acontece. Talvez seja até um pilar ético: é sempre necessário dialogar com o tempo
presente e seus acontecimentos. Influência em mão dupla. A arte é influenciada pelo
agora e a arte influencia e questiona o que estamos vivendo. Não apenas “debate” o que
acontece, mas incorpora esse“acontecimento” em suas manifestações e representações.
Ainda que o texto seja antigo e que o ofício seja um senhor em idade, o fazer tem de ser
sempre atual! E, se vivemos em uma sociedade cada vez mais “virtualizada” é um
movimento natural percebermos nossa arte também atravessada pelos meios digitais.

Teófanes Silveira1, o famoso palhaço Biribinha, em oficina ministrada em


Florianópolis (2015) contou sobre a época que a televisão despontava no país e as
pessoas acompanhavam as telenovelas. Muitos diziam que a TV “mataria” o circo.
Silveira nos disse que o circo de sua famíliacomprou uma grande televisão e colocou no
centro do picadeiro, assim as pessoas assistiam a novela e a seguir o show circense
acontecia. A arte tem de dialogar com o tempo presente, atual, recontar histórias do seu

1Teófanes Silveira dá vida ao palhaço Biribinha. O artista nasceu em 1958 e atua como palhaço desde 1965
quando tinha apenas 7 anos de idade. Sua família está na 5ª geração circense.

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Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos

passado, questionar os caminhos que nos levarão ao futuro mas suas ferramentas, tal
qual de um celular, se atualizam. “O palhaço se formou sob o imperativo da necessidade,
tanto da diversificação do espetáculo quanto da sobrevivência pessoal do artista diante
da impossibilidadefísica provocada pela idade ou por um acidente” (BOLOGNESI, p. 70,
2003), e por que não da impossibilidade imposta por uma pandemia?

Não pretendo defender a extinção do presencial, eu o amo e vivo dele, mas para
nossa tãoviva (re)construção é importante estudar esses movimentos e entender que
degrau estamos subindoe também como as “virtualidades” podem ser complementares
ao oficio em sua essência.

A palhaçaria a tempos vem se valendo de registro audiovisual como ferramenta


comercial. O contratante, muitas vezes, necessita conhecer o espetáculo para contratá-
lo, assim o vídeo em plataforma virtual facilita a transação. Antes da pandemia, a plateia
vinha atuando também na “captação audiovisual”, gravando e fotografando o
espetáculo, não para sua memória ou melhor aproveitamento, mas para existir em
sentido coletivo em rede social. Muitas vezes o post acontece durante o espetáculo.
Estamos em um momento de dinamismo quase surreal em nossas vidas, assistimos
televisão e “mexemos” no celular ao mesmo tempo, comemos nos atualizando de
notícias e frivolidades. Nem sempre lemos a matéria completa, não vemos vídeos
inteiros. As “rolagens infinitas” dos aplicativos metaforam a vida atual com inúmeras
ofertas a nossa atenção que se multifacetam em diversas atividades ao mesmo tempo.
Dessa maneira, é importante investigar como nossa atuação é influenciada.

A pandemia de certa forma igualou em fazer artístico profissionais de diferentes


tempos de experiência e os trouxe para a web em nível similar de conhecimentos sob o
viés ferramentas comunicacionais. Muitos profissionais das artes da cena e agora da
“cena na web” começaram investigações sobre como manter frescor em seus trabalhos
nesse ambiente virtual e como ter interação mesmo com intermédio destes dispositivos;
estes por sua vez também são investigados na pesquisa artística, esmiuçados a fundo
nessa procura.

A história mostra que [...] as descobertas e inventos são acumulados e


servem de background para outros inventos. E como decorrência, a vida
vem se transformando, com uma série de tecnologias que amplificam
nossos sentidos enossa capacidade de processar informações. E, a mente
humana, uma vez que teve suas dimensões ampliadas, não volta mais a

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Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos

seu tamanho original. (DOMINGUES, p. 15, 2003)

No processo de “virtualização” de nosso trabalho, seja ele como extensão de


performancee relacionamento com/para o público, seja ele como atividade principal de
apresentação e retorno financeiro (principalmente no período de pandemia) é possível
notar que muitos procedimentos se mantiveram mas tantos outros sofreram mudanças,
das sutis às grandes.

Foto do “O AstroLábia”, web – espetáculo realizado em casa e transmitido


Via internet. Foto Lafaiete do Vale, 2020.

À época universitária tentava encontrar definições acerca da palhaçaria que a


diferenciasse do teatro e a cada máxima dita, minha orientadora me perguntava “e o
teatro, não?”. Eu dizia “o jogo do palhaço é vivo!” e ela prontamente “o teatro não?”. “Mas
o palhaço faz acreditar que aquilo está acontecendo no momento presente” e ela
retrucava sabiamente “o teatro não?”. Ingenuidade deixada para trás, hoje me deparo
com questão semelhante ao tentar indicar diferençasde atuação presencial e virtual.
Quando penso que pelo dinamismo da audiência meu vídeo ou espetáculo virtual tem
de cativar desde os primeiros segundos e eu mesmo, fazendo as vezes de minha amiga
provocadora, completo "o presencial também!”. Uma diferença é que no virtual o
público pode “ir embora” (abandonar a apresentação) com mais facilidade, no
presencial em um edificio teatral não é tão comum isso acontecer (na rua é!). Dessa
forma a busca pela excelência e atenção plena do espectador se dá nas duas esferas. Que

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Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos

procedimentos, então, podemos realmente investigar?

Na atuação do palhaço(a), o jogo e até a atuação tem uma pequena margem a


ajustes do momento. O tom da apresentação pode ser ajustado diante do público. A
sinalização que o artista encontra na hora diante da plateia pode alterar o sentido e a
inclinação dramatúrgica daquela apresentação. O palhaço(a) pode alterar sua maneira
de atuar pela percepção que tem da plateia. Como fazer isto pela internet?

A atuação do palhaço também se caracteriza pelo jogo, seja com as pessoas, com
objetos,com o próprio lugar. Na internet há um primeiro item a se relacionar e jogar: a
câmera!

É filmado e não é cinema, é ao vivo e não é live. É pela web e é palhaço?

Se o mundo digital é lugar para a palhaçaria (tanto como para outras artes da cena)
muitaspessoas terão opiniões distintas e em nome da arte presencial dirão não. Mas
vivemos no tempo doagora em que as certezas dizem mais respeito ao passado e não
sabemos como os avanços tecnológicos influenciarão ainda mais a maneira do homo
sapiens sapiens se relacionar. Cabe a nósinvestigar e fazer parte da história enquanto ela
se faz. O certo é que no campo tecnológico dificilmente andaremos para trás. Então
maquiagem e nariz vermelho a postos, wi-fi ligado, tem palhaço online!

Ensaio fotográfico para marketing do espetáculo “O AstroLábia”. Um guru que atende por vídeo
chamada. Foto de Lafaiete do Vale. 2020.

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Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Também com o vislumbre de fim da pandemia é admissivel pensar em uma


possivel herança cultural desse momento. As marcas do periodo que a vida foi ameaçada
e perdemos amigos e parentes estarão em todos nós. Mas no viés artistico podemos
projetar desdobramentos do que a pandemia no propiciou. Nos vimos obrigados a
pesquisar o audiovisual, logo, imagina-se que no periodo pós pandemia os vídeos de
divulgação, teasers e criação de conteúdo online terão mais esmero que no periodo
anterior, mesmo não sendo o seu campo de atuação principal. Os artistas e grupos terão
entendimento mais claro de que existir em meio digital será preciso. Também será
possível imaginar que haverão reminiscencias desse ritmo de atuação para internet,
podendo ser refletido em alteração de tempo/velocidade das cenas presenciais, bem
como na busca por cativar desde os primeiros segundos, com receio de perder audiencia.

Passei anos nos palcos pedindo a plateia que desligasse o celular, que não o
usasse, que nos concentrassemos no agora! Nosso entendimento era de que a tecnologia
presentificada no telefone móvel distanciava nossa relação presencial. Mas agora as
pessoas sempre tem seus aparelhos celulares a mão, e não é figura de linguagem, as
pessoas conversam com outras pessoas com seus telefones empunhados e alternando o
foco. A mesma tecnologia, que nos “salvou” na pandemia, distancia-nos no presencial?

Do telefone ao rádio, do cinema ao vídeo, da holografia à computação, da


internet à realidade virtual, dos aparelhos móveis aos games, são todos
dispositivos técnologicos que os artistas sabem transmutar e transfigurar
para o usufruto e regeneração da sensibilidade perceptiva e do
pensamento sensível do ser humano, com o fim ultimo de humanizar os
sentidos humanos, torna-los sobejamente humanos. (SANTAELLA, p 63,
2012)

Penso que uma mudança de discurso em cena possa acontecer na retomada do


espetáculo presencial, não seguirei solicitando aos espectadores que guardem seus
aparelhos celulares no bolso, se isso acontecer será demasiado feliz. Passei a pandemia
pedindo que ligassem seus aparelhos para se comunicar comigo. Cabe a mim, artista,
palhaço, encontrar maneiras de trazer o espectador, mesmo de celular na mão, para
dentro do espetáculo e quiça encontrar função para este celular que não seja desligado,
no bolso. Pode ser que seja antes do inicio ou após o término do espetáculo, pode ser
que seja durante! Se o espectador traz consigo o telefone, podemos ousar pensar que

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Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos

atividade este aparelho pode realizar conosco, neste encontro humano e artistico multi-
meios. A afirmação de Lucia Santaella anterior a pandemia, lida hoje, pode fazer parecer
que a questão do atravessamento das mídias já está encerrada e bem resolvida. Creio
que não. Independente desta resolução Santaella nos dá a diretriz precisa do foco,
utilizar a tecnologia para nosso encontro ser cada vez mais humano, em todas as suas
acepções.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BOLOGNESI, Mário Fernando. Palhaços. São Paulo: Editora UNESP, 2003.


BURNIER, Luís Otávio. A arte de ator: da técnica à representação. Campinas, SP:
EditoraUnicamp, 2001.
CASTRO, Alice Viveiros de. O elogio da bobagem – palhaços no Brasil e no Mundo. Rio
de Janeiro: Editora Família Bastos, 2005.
DOMINGUES, Diana. A humanização das tecnologias pela arte. In: DOMINGUES,
Diana (Org). A arte no século XXI: a humanização das tecnologias. São Paulo: Unesp,
2003.
PUCCETTI, Ricardo. No caminho do palhaço. Revista do LUME. nº 7, p 121-126, 2009.
REIS, Demian Moreira. Caçadores de risos: o maravilhoso mundo da palhaçaria.
Editora EDUFBA, Salvador – BA, 2013.
ROSA, R; PALHARES, M.M.; SILVA, Rachel Inês. As novas tecnologias: Influências no
cotidiano. Artigo apresentado na III Mostra de produção cientifica da UNIPAC, Uberaba
– MG, 2005.

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Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos

Capítulo 5
DÚVIDAS, ESCORREGÕES E PROPOSTAS
DE UMA DUPLA DE NÃO-MESTRES

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Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos

DÚVIDAS, ESCORREGÕES E PROPOSTAS


DE UMA DUPLA DE NÃO-MESTRES

Fábio Nieto-Lopez
Martin Domecq

Como nasce um paspalho, uma paspalha, uma palhaça, um palhaço, um portador


de nariz vermelho? Como se dá este curioso processo no qual uma pessoa do cotidiano,
do conhecido mundo ordinário, transcende ao extraordinário?

Seria um processo do campo das instruções, técnicas e verificação de


aprendizagens ou algo da dimensão da iniciação, com seus rituais, mistérios,
comunidades, hierarquias? Quem sabe, ainda, não seria um plano na fronteira com
aspectos terapêuticos, espirituais, de renascimento e ruptura?

De maneira muito nebulosa e emaranhada questões semelhantes a essas nos


tomavam quando fomos confrontados com o desafio de conduzir um processo de iniciação
ao universo da palhaçaria. Distantes a mais de década de nossas, cada um a seu modo,
formações de palhaço, encontrávamos esta angustiante liberdade de pensar e repensar o
que compõe este misterioso caminho, do qual havíamos encontrado poucas pistas além
de nossas próprias experiências como palhaços e, especialmente, como professores.

Este texto é um esforço de retomar parte desta história reflexiva e prática que
gestou mais do que um curso iniciático à palhaçaria, permitiu pressentir uma exigência
ética de, pelo menos, procurar soluções, sabidamente provisórias, para um tema tão
deslumbrante, extraordinário e imprevisível. Assim, a oportunidade deste curso, e dos
que vieram a seguir, nos confrontou com a urgência de nos questionar princípios
artísticos e, especialmente, didático-pedagógicos, éticos e políticos. Estes
questionamentos, vivenciados de maneira sincera e pungente, desassossegam não apenas
as bases do encontro pedagógico em si mesmas, mas todo um conjunto de práticas como
humanos em relação, sejam quais forem nossas funções: educadores, estudantes,
cidadãos, pais, filhos.

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Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos

O conjunto de eventos que confrontamos na experiência formativa do palhaço não


nos deixou sossego para realizar uma replicação do que havíamos vivido. Em parte pela
distância dos anos, de tudo o que realizamos e pensamos neste período nas artes e na
educação, e em grande parte pela força e complexidade que fomos surpreendidos neste
processo, desde as dúvidas iniciais e no planejamento das oficinas, mas especialmente na
condução e testemunho do que encontramos na sala de práticas. Passado um tempo
considerável após esta experiência, propomos aqui um retorno reflexivo que nos permita
elucidar as entrelinhas destas perguntas que naquela época foram apenas conversadas ou
ruminadas em silêncio.

PROFESSOR OU MESTRE?

Inesperadamente nos vimos diante do desafio de oferecer um curso de iniciação


ao palhaço. Embora já tivéssemos acumulado experiência em oficinas e laboratórios de
teatro, esta seria a primeira vez que enfrentávamos essa função na construção do
palhaço. Surgiram, então, questionamentos de quais seriam as especificidades deste
percurso em comparação aos demais, o que nos levou, também, a pensar nas
intersecções com outras práticas criativas e artísticas, como a própria iniciação ao
percurso de atriz ou ator.

Contudo, nossa experiência pessoal sabia que, na condição de formadores de


palhaço, seríamos confrontados com a exigência de mudança de função, de aprendiz
assumir-se mestre. Isto gerava um incômodo: não traz a palavra “mestre” uma conotação
de hierarquia ou de unidirecionalidade dos processos de criação e ensino-
aprendizagem? Não nos afastava dela algo genuíno e precioso que queríamos preservar,
algo da ordem a experimentação entre pares, do risco compartilhado, de um processo de
aprendizagem que é sempre multidirecional? Por outro lado, como fugir desse lugar
quando ele é projetado pelo outro como parte dos alicerces que ele constrói para avançar
com maior confiança em seus processos de auto-aprendizagem?

De nossa parte, como professores, também havia outro desafio. Como vocês
sabem, não é fácil a um discípulo autorizar-se a ser mestre. O psicólogo argentino Pichon-
Rivière analisa como processos de mudança mobilizam intensamente nossas ansiedades

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Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos

e medos primordiais, por mais que algumas transições sejam vistas como positivas e
desejadas. A mudança de papel mobiliza medos fundamentais de perder o que já possui
e de não dar conta do que irá encontrar do outro lado deste caminho.

Foi durante esse processo que tivemos a oportunidade de acompanhar, enquanto


observadores, um processo de iniciação ao palhaço que um antigo mestre oferecia,
aquele que havia, há mais de dez anos atrás, batizado um de nós como palhaço. Essa
oportunidade parecia nos salvar da árdua tarefa de encontrar materiais que apresentem
e discutam o processo formativo do palhaço. Nossa impressão era de estar entrando em
outra tradição de ensino que, embora bastante próxima ao teatro, se diferenciava deste
por um certo aspecto misterioso e iniciático.

A experiência de assistir essa oficina foi complexa, uma difícil síntese de


reconhecimento de minhas bases técnicas do palhaço, aliado a diversos estranhamentos.
Estranhei alguns aspectos relativos a estrutura de uma oficina cujo objetivo era de, em
pouco tempo, conduzir os participantes em um mergulho nesta experiência. Foi para
mim desconcertante o longo tempo em que os participantes perambulavam pela sala, já
de nariz vermelho, sem qualquer propósito, procurando encontrar um modo de ser
palhaço por eles mesmos. As balizas do que os professores consideravam ser ou não
pertinentes ao comportamento do palhaço ocorriam em exposições faladas, em curtos
exemplos, ao invés de uma condução que privilegiasse vivências e descobertas. Contudo,
o que mais cismei e me inquietou por bastante tempo, foram as características da relação
entre professor-aluno, não somente presente naquele dia, mas cujos traços eu
reconhecia em diversos outros momentos vividos em minha trajetória.

O complexo percurso do ensino do palhaço nos mostrou, repetidamente, que


aquela experiência guardava diversas possibilidades de aprofundamento, discussão e
leitura. A relação entre estudante e seu mestre, estrutura-se em uma dinâmica desigual
de poder. Como nos fala Colavitto (2015), o mestre é aquele que pode
conceder/reconhecer ou não a passagem do aspirante ao círculo dos palhaços,
reconhecido como detentor de seu próprio nariz vermelho, e de um nome, após ser
devidamente batizado. Nesta dinâmica, a palavra do mestre tem poder de lei na relação
com o aspirante a paspalho. Para o autor, as estratégias pedagógicas, ancoradas nesta
relação hierárquica entre mestre e estudante, visa o desenvolvimento de

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Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos

espontaneidade, identidade pessoal, sensibilização do olhar, capacidade de improviso e


de mergulho no momento presente.

Embora tais objetivos sejam desejáveis para a condução dos trabalhos, nosso
estranhamento se localizava justamente na relação de poder marcada pela
desproporcionalidade, no qual o mestre encarna a lei, a regra, o conhecimento, o poder,
e seu discípulo a mais absoluta humilhação e subserviência. É exatamente essa a
estrutura da relação dos dois palhaços típicos, o Augusto e o Branco.

O palhaço “Branco”, como nos explica Bolognese (2003), possivelmente tem esse
nome em decorrência de seu rosto “enfarinhado” que caracterizava sua maquiagem,
herdeira da máscara branca e plácida de Pierrô, com elementos da máscara pontiaguda
e avermelhada de Arlequim, da comédia dell’arte. É um personagem que carrega consigo
a tradição aristocrática, a fineza dos gestos da assim chamada “boa educação”, a
elegância nos trajes, que tem entre suas inspirações o Mestre de Pista, de indumentária
militar, que participava das entradas circenses, encarregado de trazer a lucidez à cena
dos palhaços, e se tornou uma espécie de soberano dos clowns.

O palhaço “Augusto”, ao contrário, veste-se com roupas que, visivelmente, não


foram feitas para ele. É desajeitado, rude, indelicado e tem no nariz vermelho sua
principal marca. Ainda segundo Bolognese, o Augusto afirma-se no final do século XIX
como estilização da miséria, da marginalidade em meio a um ambiente social que
prometia o progresso, mas oferecia superpopulação, fome, guerras e desemprego. O
Augusto, assim, com sua inaptidão em acompanhar as coisas mais simples é a
representação do fracasso, da ineficácia, e um contexto voltado para a racionalidade,
precisão e eficiência.

Esta dupla clássica entre Augusto e Branco, portanto, coloca em composição um


jogo de forças entre ordem, lei, austeridade e precisão, de um lado e, do outro,
marginalidade, desistência, indolência, fracasso. Facilmente, também, conseguimos
pensá-los em termos de funções sociais estereotipadas, entre aquele que pode e deve
mandar e aquele que possui o dever de obedecer sem questionar.

Em um curso de palhaço, isso se traduz de diversos modos, que começa na


nomenclatura utilizada para designar o professor: o mestre. Isso, assim como as demais
derivações desta relação assimétrica, reforçava nosso estranhamento, motivando-nos a

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Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos

construir um processo formativo que tivesse como sustentação outra tradição de ensino,
dessa vez inspirada nas propostas de Paulo Freire.

A proposta pedagógica de Freire se estabelece como uma ética inseparável da


prática educativa, que exige exercício de atenção constante quanto às relações
estabelecidas com os estudantes, porque é através da relação entre professor e
estudante, das características de sua “presença no mundo, com o mundo e com os
outros.”. Na proposta freireana, portanto, é fundamental a compreensão de que nosso
exercício enquanto professores não está em transferir conhecimentos ou, em nosso caso,
de ensinar o que é ser palhaço, mas em criar possibilidades para a sua criação. Para que
isso ocorra, é necessário que o estudante assuma seu lugar de sujeito da produção do
saber.

Além disso, a proposta de Freire é reconhecer nosso inacabamento no mundo, de


seres históricos, e, assim sendo, não há espaço para mestres do conhecimento,
autoritários, detentores do conhecimento bancário que deve ser transferido.

Desses princípios depreendemos que o saber não é da esfera religiosa, onde é


preciso ter fé e obediência ao conjunto de regras, mas, antes, pertence à esfera da arte,
onde a construção só é possível na reinvenção, no gosto pela rebeldia, pelo sentimento
de aventura, de risco, de emancipação, como Freire propôs.

Para o nosso dilema, abandonar a tradição nos trazia ainda mais insegurança para
enfrentar a novidade que se apresentava, mas nos possibilitava encarnar os princípios
freireanos de inacabamento e do professor em processo de recriação, assim como da
própria estética do palhaço, que em diversas momentos são coincidentes, como o
acolhimento do emergente, a abertura para a leitura atenta e desconcertante do mundo,
a construção do processo junto ao estudante e na situação, a aceitação das condições
propostas como possibilidade para reinvenções de novos mundos, através da forte
presença da imaginação, da criatividade, da alegria, e da ousadia de desejar ser mais.

Em outro sentido, procurando entender esta tradição, podemos dizer que a


autoridade do mestre se contrapõe aos mandatos e mandamentos da sociedade, o
sentido de sua autoridade é provocar uma ruptura na fidelidade, nas ideias e no respeito
que assujeitam o aspirante à palhaço à uma ordem estabelecida. Trata-se de uma
autoridade que se contrapõe a um poder que é estruturante da sociedade: aquele poder

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Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos

que estabelece o correto, o bom, o valioso, o ruim, o descartável, o desprezível. Colocar


de cabeça para baixo um poder tão forte exigiria toda a artilharia do contrapoder do
mestre: o mestre joga pesado porque o sistema joga mais pesado ainda. Essa autoridade
do mestre seria um mal necessário para atingir a libertação do coração anarquista do
palhaço, capaz de rir livremente de qualquer autoridade. No entanto, nosso desafio era
trilhar outro caminho, um caminho no qual os meios e o fim tivessem os mesmos
princípios práticos e refletissem uma consistência ética e estética. A oficina em si mesma
devia ser uma experiência de partilha das decisões, de práticas horizontais, de rebelião,
de criatividade.

Ao partirmos da compreensão do palhaço como um dispositivo para intensificar


a criatividade, a autodescoberta, a invenção de si, e a potencialização das diversas
possibilidades de leitura do mundo, nossa reinvenção impôs trabalho conjunto e
constante em todas as etapas do trabalho, especialmente nos momentos de
planejamento e avaliação dos resultados, assim como atenção crítica e questionadora
sobre os caminhos escolhidos, tendo muito claramente para nós e para as turmas, de que
tratava-se apenas de uma das muitas possibilidades de criação de palhaços.

Diante de tantas incertezas de como estruturar uma oficina de iniciação ao mundo


do palhaço este ponto, contudo, aparecia nítido e nos agarramos a ele durante todo o
período de planejamento, execução e avaliação: não há um modelo a seguir ou um dom
a reconhecer. Assim, cada oficina, composta por um certo número de encontros, trata-se
de um processo que acolhe o percurso de criação de diversos palhaços e, mais
importante, palhaços diversos. Ensinar o risco e a vulnerabilidade como condição do
palhaço impõe aos professores também abraçarem o risco e a vulnerabilidade de sua
condição.

Com isso, nos parece estranho falar em nome de um palhaço, como geralmente
encontramos na literatura. Textos muito bem intencionados em defender ou revelar a
potência deste dispositivo no mundo, falam de ‘o palhaço’, e partem para uma
generalização perigosa e estranha à sua condição de imprevisibilidade, ruptura e criação.

Em sala também desencorajamos todo comentário que apontasse habilidades ou


dificuldades pessoais dos/as participantes. A ênfase estava colocada nos frutos de um
processo de aprendizagem compartilhado no qual cada um/a podia avançar sem

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Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos

julgamentos dos/as outros/as ou autocobranças que tolhessem a experimentação alegre


das próprias potencialidades. Avaliávamos conjuntamente alguns momentos, algumas
cenas, mas o foco não estava nas pessoas, mas sim na identificação do que havia
funcionado ou não funcionado na comunicação, se alguns aspectos técnicos haviam
aparecido ou não, o quê e como a cena havia comunicado para quem assistiu. Ao invés
de dizer “Fulana realmente é incrível e já é uma grande palhaça”, algo que, desde o
princípio, recomendamos evitar, utilizamos algo como “nesta cena vimos como o
comentário silencioso com a plateia funcionou muito bem”.

Uma das participantes da oficina nos relatou seu processo desta forma: “Me senti
livre, com certeza foi o que mais gostei. Consegui me ‘desprender’ do meu mundinho e
dar liberdade à palhaça que mora dentro de mim.”. Ficamos muito satisfeitos com o
retorno dos participantes que apontavam para a liberdade da criação, compreendendo
que não havia nenhuma expectativa a ser alcançada, senão o próprio prazer de participar
deste processo de descoberta.

CUIDADOS COM A PLATEIA

A plateia é parte fundamental das artes cênicas e a ela também aparece desde os
primeiros momentos de uma oficina, seja de teatro ou de palhaço. Desde o momento que
nos sentamos em roda e começamos a nos apresentar há o componente da apresentação
e da plateia. Nenhum mal há nisso, mas observamos ao longo das oficinas que estabelecer
diferentes grupos, sendo que um assiste e outro apresenta, não trouxe resultados muito
interessantes para uma oficina de iniciação, experimentação de si mesmo e criação de
seu palhaço. Assim como nos relata Viola Spolin, rapidamente se estabelece uma
dinâmica de aprovação/desaprovação, mais próximo de uma experiência exibicionista
do que de jogo, diversão e criação, que estávamos buscando.

Para potencializar ao máximo o envolvimento dos participantes, remanejamos a


organização de muitas das propostas que fizemos. Quase sempre realizamos atividades
simultâneas dos exercícios, seja de forma individual ou em pequenos grupos. A ideia era
não dividir o espaço num único palco e numa única plateia com o intuito de gerar um
fazer coletivo e individual que se multiplicasse em diversos pequenos núcleos de

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Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos

participantes e espectadores. Isto evitava a construção implícita de “modelos para


todos”, limitava as situações de exposição que às vezes são constragedoras para os/as
iniciantes e habilitava uma aprendizagem entre pares em fluxo por conta da rotatividade
dos grupos.

Nessa efervescência de acontecimentos simultâneos o professor não consegue


dominar o turbilhão de ações, experimentos, tentativas. Sua presença se desconfigura e
ele se desloca, atua como um participante a mais, que provoca, escuta, brinca junto,
orienta, registra mentalmente o que posteriormente poderá ser comentado ou elaborado
dialogicamente numa aprendizagem coletiva. Simultaneidade, descentralização das
ações e aprendizagem entre pares são características que descrevem bem muitas das
estratégias que empregamos. Sua finalidade foi descrita por uma das participantes: “O
que mais gostei foi da não existência de margens definidoras de padrões de palhaços.
Isso para quem inicia torna a experiência desafiadora e, uma constante autodescoberta
que faz nascer um palhaço em nós.”.

Outra regra que seguimos parece ter ajudado bastante para construir o ambiente
de confiança, de parceria e de experimentação que foi vivenciado na oficina. A regra era
bem simples: gerar um espaço livre de registros imagéticos e de julgamentos de valor.
Durante a oficina não filmamos, nem tiramos fotos. Nas rodas de conversa também
insistimos bastante na ideia de que aquilo que acontecia dentro da oficina era de cada
participante, era algo privado que não devia ser publicizado pelos/as outros/as fora dos
muros da oficina. Evitávamos as palmas e toda forma de julgamento de valor que pudesse
instalar na oficina a ideia de espetáculo ou de competição.

Acreditamos que isto habilitou um espaço de maior segurança e valorização do


momento presente e da atenção. O que passava na oficina é da ordem do acontecimento,
ocorre num aqui e agora fugidio que não pode ser “empacotado” num vídeo ou numa foto
para ser consumido a posteriori. Os únicos testemunhos da oficina são os/as
participantes e suas consciências são o registro daquilo que vale a pena recordar. Quando
perguntamos em um questionário anônimo como os/as participantes descreveriam seu
percurso na oficina, notamos que esse ambiente de cuidado no qual a avaliação passa
pela própria percepção do processo no espelho da experiência promoveu um
fortalecimento da autoconfiança: “Cheguei tímida, sem graça de desenvolver as

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Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos

atividades, nem tampouco entendia algumas dinâmicas. Hoje me sinto mais segura,
consigo me soltar e aprender que o que antes parecia meras brincadeiras, são técnicas
que possibilitam as ações do palhaço.”.

O NOME DO PALHAÇO É DO PALHAÇO

Dentro da tradição de formação de palhaços pela qual passamos, a escolha do


nome do palhaço é outro ponto intocado. Há um exercício comumente chamado de
“Picadeiro”, em que cada estudante, absolutamente em silêncio e sem poder falar ou
protestar, ouve de seus colegas e do mestre diversas possibilidades de nomes,
geralmente assentados nas características físicas do participante. Foi um momento
particularmente cruel na minha trajetória o sentimento de extrema exposição e
ridicularização. Depois disso, o mestre escolhe o nome do estudante e, no momento do
“batismo”, o nome escolhido é revelado. Percebam que não há qualquer participação do
sujeito na invenção do próprio nome de palhaço. Se assim ocorreu quando da escolha de
nosso nome social, o mesmo também ocorre na tradição do palhaço.

Esse tema do nome apareceu ao longo do curso, nos momentos de diálogo com os
participantes, que sempre ocorriam ao final de cada dia. A inquietação apareceu e foi
colocada pelos próprios participantes, e a nós professores coube refletir junto com eles
a pertinência de inventar outras modalidades, procurando compreender quais eram as
peculiaridades das demandas apresentadas, que não eram uníssonas, mas heterogêneas.
Uma das participantes protestou com uma frase mais ou menos assim quando descobriu
que na nossa tradição o nome era escolhido pelo mestre: “isto é muito injusto, se já
nascemos com um nome que escolheram para nós, sem nossa participação, como palhaço
temos o direito de escolher.”

Não havíamos pensado nisso e não tínhamos ideia de como encontrar uma
alternativa. Incentivamos que cada um procurasse elementos para compor o próprio
nome, assim como as características estéticas dos palhaços, especialmente com relação
ao figurino, à maquiagem, e adereços. Para o evento do batizado, oferecemos um varal
com diversos nomes e, para cada um, duas propostas diferentes em papeis
dependurados, mas também disponibilizamos papeis em branco, com canetas para

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Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos

escrever outros nomes. Algumas palhaços/palhaços foram pensando em seus nomes ao


longo do curso, outros aproveitaram as sugestões do varal.

Em outros cursos de formação que se seguiram, incluímos a participação do grupo


neste processo, sugerindo nomes aos colegas. Pudemos observar que este recurso
potencializou a descoberta de características que, em muitos casos, o próprio
participante não sabia que comunicava aos colegas. Nas dinâmicas, contudo, procuramos
tornar este processo de escuta dinâmico, processual e mais confortável. A/O participante
passa por esta experiência e avalia o que mais a/o tocou.

O batizado respeita a escolha de cada um porque a/o palhaça/o não pertence ao


professor. Mudanças de nome, características e de identidade visual ocorrerão com ou
sem uma permissão. De modo contrário, o palhaço pode estar condenado à repetição e,
portanto, à sua morte como sujeito criativo e potente.

Talvez se ancorar na figura de mestre que paira acima dos demais, que precisa ser
ouvido e respeitado, possa tornar tentador querer controlar a criação do nome,
provavelmente a principal construção identitária de um palhaço, mas um professor
precisa ter a consciência de que está apenas acompanhando uma experiência criativa, e
aproveitar o privilégio de criar as melhores condições para que as potências ganhem
expressão.

Na oficina que realizei com o grupo Guilda Cacilda este processo me incluiu por
decisão dos participantes. Provavelmente consideraram injusto que todos tivessem que
passar por esta experiência e eu, não. Aí, então, meu palhaço que chamava-se Esfiapo
devido minha extrema magreza na época da minha formação de palhaço, passou a se
chamar Ex-fiapo, aquele que um dia já foi muito magro. Além de um exercício complexo
de construção de palhaço e de exercício de empatia, este pequeno ritual marcou, para
mim, uma relação mais próxima e horizontal com o grupo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Para finalizar, compreendemos que foi a leitura das condições propostas, e a


aceitação do jogo, os elementos centrais que conduziram nossa experiência. Para a
construção do palhaço, são diversos os exercícios direcionados a esses elementos, de

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Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos

atenção aos detalhes despercebidos, às soluções de improvisação a partir dos elementos


presentes. Descobrimos, ao longo do percurso, que deveríamos praticar os mesmos
princípios. São elementos da estética e da ética do palhaço, e que exigem atenção
constante. Não há descanso para esses aspectos, não há zona de conforto, roteiros régios
nem soluções de sucesso, porque o emergente costuma surpreender e desbaratar nossas
antecipações.

São diversas as possibilidades de discussão da estética do palhaço como ética da


existência, tanto para estudantes quanto para os educadores, e aqui apenas esboçamos
alguns dos elementos mais vivos em nossa recente experiência. Além da alegria, da
criatividade infantil, da fantasia, da abertura à sinceridade, da imersão profunda no
instante presente, do rompimento com o estabelecido, da possibilidade de constante
invenção de possibilidades e releituras do óbvio, o ensino do palhaço nos desafia a
abandonar certezas e a nos colocarmos na corda bamba a cada novo encontro.

Quando esquecemos desta dimensão, caímos. E, ao cair, aceitar e aproveitar o


fracasso, como bom palhaço.

REFERÊNCIAS

BOLOGNESE, Mário Fernando. Palhaços. São Paulo: Unesp, 2003.


COLAVITTO, Marcelo Adriano. O clown e a criança: poéticas de resistência.124 f.
Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade Estadual de Maringá. Orientadora:
Profª Drª Verônica Regina Müller. Maringá, 2015.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. São
Paulo: Paz e Terra, 2007.
SPOLIN, Viola. A Improvisação para o Teatro. Tradução Ingrid Dormien Koudela e
Eduardo José de Almeida Amos. – São Paulo: Perspectiva, 2015.

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Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos

Capítulo 6
ACESSE A SUA TECLA S.A.P

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Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos

ACESSE A SUA TECLA S.A.P

Marcus Matraca

Um rito acontece quando, não bastando as palavras para dizer a beleza, elas
se transformam em gestos. O rito é um poema transformado em festa!
(Rubem Alves)

Eu sou Cientista Social, Educador Popular, Ciclista, Saxofonista, Professor


Universitário, Pesquisador e, principalmente, Palhaço. Minha formação, que se denuncia
nestas primeiras linhas, consolidou-se em uma consciência interdisciplinar enquanto
princípio no que concerne a articulação de diferentes áreas do conhecimento (ANDRADE,
2019).

Na construção dessa trajetória, no ano de 2000, ingressei no mestrado acadêmico


em Saúde Coletiva vinculado ao departamento de medicina preventiva do Centro de
Ciências Médicas da Universidade de Campinas (Unicamp), ano em que o projeto
Universidade Solidária do Governo Federal abria suas inscrições para uma experiência
científica e artística no interior do Brasil, em especial no município de Jatobá no estado de
Pernambuco. Durante o processo seletivo o perfil da ação se mostrou diferenciado, pois
as habilidades extracurriculares que dialogassem com o artístico-científico eram um
diferencial para compor a equipe coordenada pelo prof. Dr. Celso Costa Lopes, também
conhecido como Palhaço Juvenar. O seu Palhaço não falava e, nos momentos mais
inusitados, repentinamente, surgia nas rodas dialógicas e em todo processo
teórico/prático da formação para vivenciar o território das ruas e das praças de Jatobá.
Naquela terra distante e desconhecida, as margens do rio São Francisco, fui tocado pela
arte da palhaçaria, fui afetado pela prática da educação popular materializada no Palhaço
de rua, no diálogo coletivo, nas rodas culturais, no som da viola caipira, na alegria do povo
na rua e no Toré do povo Pankararu1. Com os Panakararus aprendi sobre os seres

1 Os Pankararus residem em dezesseis aldeias entre os municípios de Taracuta, Petrolândia e Jatobá as


margens do Rio São Francisco no Estado de Pernambuco. O povo Pankararu são reconhecidos em todo
território nacional e internacional, principalmente, por suas lutas e conquistas alcançadas; lutas essas

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Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos

encantados que a partir do ensinamento do Pajé da aldeia seu Manezinho: “Estar vivo é
estar encantado”, saberes compartilhados por esta ancestral nação indígena.

Paulo Freire (2019) fala sobre a boniteza que os aprendizados geram no ser
humano, fomentando, assim, processos de encantamentos. Neste espírito me iniciei como
pesquisador sobre o tema da palhaçaria construindo percepções do quanto, tornar-se
Palhaço, é uma tarefa que exige do neófito desapego para compreender sua complexidade,
diversidade e singularidade. Esse percurso ocorreu paralelamente ao mestrado que
traçou outro caminho de pesquisa, abrindo assim duas frentes de investigação,
demandando um tempo maior no amadurecimento como Palhaço e pesquisador.

No ano de 2001, estava em trânsito na cidade de Capivari, no interior de São Paulo,


e, via antena parabólica, tive a oportunidade e a benção de assistir, no canal TVE (atual TV
Brasil), a segunda edição do Encontro Internacional de Palhaços Anjos do Picadeiro.
Naquele momento mágico meus olhos estavam hipnotizados com o espetáculo do
ancestral Espaguete, Palhaço do italiano Nani Calombaioni, com a brasilidade do Teatro
de Anônimo, com a acidez do espanhol Tortell Poltrona, com a delicadeza do
estadunidense Moshe Cohen, com o domínio da rua do argentino Chaco Vachi e com a
técnica do grupo brasileiro Lume; dentre outros que mudaram meu olhar sobre a
palhaçaria. Trupes de adultos brincantes que faziam de seus números uma crítica à
hipocrisia humana, o que fomentou ainda mais meu desejo de me tornar Palhaço.

Poucos meses após a conclusão do mestrado recebi um convite para trabalhar na


Fundação Oswaldo Cruz e vi, nessa oportunidade, a possibilidade de pesquisar
academicamente e artisticamente o Palhaço. Cheguei na cidade maravilhosa do Rio de
Janeiro na semana do carnaval de 2003 com meu foco no nariz vermelho, momento que
tive minha primeira iniciação com a vivência da oficina A Nobre Arte do Palhaço
conduzida por Missie, uma das expressões teatrais do Marcio Libar - coordenador do
projeto Mundo ao Contrário. Na semana seguinte me sentia fazendo parte do universo dos
Palhaços e mesmo tendo muito a aprender a identificação se fortaleceu.

travadas desde nossos velhos e velhas que já se foram; mas, que deixaram seus nomes como grandes
exemplos para nós como João Binga, Quitéria Binga, Miguel Binga, Manezinho, Antônio Moreno, Luís
Caboco, hoje Seres Encantados (SILVA et al, 2021).

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Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos

Assim, segui meu instinto e fui para rua. Vesti uma roupa do meu cotidiano, fiz uma
maquiagem, coloquei o meu nariz vermelho e sai para todos os tipos de encontros que os
ambientes me ofereceram. Desse modo nasci como Palhaço que, posteriormente, foi
batizado de Matraca pelo músico-compositor Batone. Nome que adoto também para
minhas assinaturas científicas e artísticas e, nas apresentações artística, uso o nome Dr.
Palhaço Matraca para brincar com minha trajetória e com a dureza dos territórios que
ocupo.

Imagem 01 - Primeira versão do Dr. Palhaço Matraca


Foto: Eduardo Reginato

Tenho que ressaltar que cursar Ciências Sociais me possibilitou exercitar o olhar
da paisagem social, ensinamento compartilhado pelo professor e sociólogo da
Universidade do Estado de São Paulo (Unesp – Marilia) Dr. Sebastião Jorge Chammé
(2000) que relatava com minucias e percepções sensoriais algumas observações das
paisagens sociais que suas aventuras sociológicas propiciaram vivenciar. Com mais esse
aprendizado pude dialogar com métodos que consolidaram a rua como território do meu
campo e, posteriormente, o foco para população em situação de rua e profissionais do

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Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos

sexo nasce na dialética do olhar do Palhaço e do coração do cientista; uma fusão que
podemos denominar CiênciArte2.

Em 2005, já como Palhaço-etnógrafo ingresso no programa de Pós-Graduação em


Ensino em Biociências e Saúde, na área de concentração em ensino não-formal da linha
de pesquisa em ciência e arte no Instituto Oswaldo Cruz (IOC), com o projeto de
doutoramento Alegria para Saúde: A arte da palhaçaria como proposta de tecnologia
social para SUS. Todo o trabalho de campo foi realizado pelo Dr. Palhaço Matraca seguindo
as orientações expostas no Argonautas do Pacífico Ocidental que propõe um novo
método para o trabalho de campo, no qual o investigador participa diretamente do
cotidiano observado e busca compreender suas relações sociais e simbólicas
(MALINOWSKI,1976). Esta fase, geralmente, é realizada na solitude e no método, n a
exaustão e no êxtase do investigador, como sugere Da Matta (1978) no espírito do
Antrophologycal Blues.

O pianista de jazz e sociólogo Harold Becker, aponta que:

Regras sociais definem situações e tipos de comportamento a elas


apropriadas, especificando algumas ações como “certas” e proibindo
outras como “erradas”. Quando a regra é imposta, a pessoa que
presumivelmente a infringiu pode ser vista de acordo com as regras
estipuladas pelo grupo. Essa pessoa é encarada como um outsider.
(BECKER, p. 15, 2008)

O outsider é aquele que desvia das regras e valores impostos por uma
determinada estrutura social, sua ação é vista como uma distorção da normalidade
sistêmica, um desvio, uma ação patológica, uma infração, como a presença de
moradores em situação de rua, profissionais do sexo e Palhaços no cenário cultural
imposto. Essa estrutura já era prenunciada por Émile Durkheim (1973), como sendo
um grande organismo social, com dois estados principais: o normal e o patológico. O
normal é aquele fato que não fere os valores e regras de um determinado grupo e o
patológico é quando se está fora da regra social e da moral vigente. Entretanto, quando
alguma anomalia também denominada como outsider coloca em risco suas regras
estamos diante de um acontecimento de caráter mórbido, uma doença social que

2 CienciArte é um campo em construção, não formatado e que foge ao aspecto rígido e disciplinar. Os
conhecimentos produzidos nos campos da ciência e da arte são inter e/ou transdisciplinares por natureza
(Araújo-Jorge, 2018).

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Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos

precisa ser harmonizada. Inúmeros outsiders não se adaptam, seres humanos que
estão fora de padrões simbólicos e midiáticos, como canta o compositor Nando Reis
(2007) “Será que eu falei o que ninguém ouvia? Será que eu escutei o que ninguém dizia?
Eu não vou me adaptar, me adaptar, não vou me adaptar! Me adaptar!”.

Assim nasce a oficina Saúde, Alegria e Palhaçaria (S.A.P), fruto de toda essa
sensibilização e da não adaptação às várias imposições simbólicas. Ao acessarmos a
oficina S.A.P adentramos em um ambiente de ludicidade, brincadeiras, risos, afetos e
todas as possibilidades que um bom encontro recheado pela diversidade das nossas
diferenças possa nos proporcionar. Dessa forma, temos como grande atração o Palhaço
com seu nariz vermelho, a menor máscara do mundo, um anti-herói, o outsider que
expõe nossos erros e defeitos, ridicularizando-os a ponto de não levarmos tudo tão a
sério, visto a brevidade da vida (CAMPOS, 2009). A primeira versão da oficina foi
realizada em 2004 no II Simpósio de Ciência, Arte e Cidadania com o nome Saúde e
Alegria, a partir de 2006 adotei o nome Saúde, Alegria e Palhaçaria. Nestes dezoito anos
de existência do S. A. P, foram realizadas cerca de cento e vinte oficinas, estimando
mais mil participantes de ambientes, públicos e territórios diversificados.

Cabe destacar a experiência gerada pelos encontros da S.A.P. com a Estratégia


Saúde da Família para População em Situação de Rua, tendo uma afinidade
metodológica com a Educação Popular em Saúde e a singularidade do território de
atuação. Essa parceria ocorreu entre 2010 e 2011, mediada pela Coordenação da
Saúde da Família e pelo Núcleo de Cultura, Ciência e Saúde, ambas da Secretária
Municipal de Saúde e Defesa Civil do Rio de Janeiro e pelo Instituto Oswaldo Cruz (IOC)
e teve como proposta a participação da oficina S.A.P no processo de formação da
primeira equipe direcionada para a população em situação de rua do município;
expandindo a atuação do Palhaço no campo da saúde e transcendendo o espectro do
Palhaço hospitalar para a ocupação do Palhaço de rua como promotor de saúde e
alegria na atenção básica do Sistema Único de Saúde (MATRACA et al, 2014).

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Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos

Imagem 02 – Erick Piunti

A partir dessa discussão, o objetivo deste texto é relatar o processo de vivência da


oficina S.A.P, não como um modelo a ser seguido, mas como uma inspiração criativa que
possa gerar novas vivências afetivas pela linguagem da Arte do Palhaço. Irei apresentar a
última versão da oficina de sensibilização promovida entre os anos de 2015 a 2019 na
Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB), no qual, coordenava o projeto de pesquisa
e extensão Saúde, Alegria e Palhaçaria. Durante a realização do projeto na UFSB
participaram, majoritariamente, estudantes do Bacharelado Interdisciplinar em Saúde
(BIS) e do Bacharelado e Licenciatura Interdisciplinar em Artes (LIA - BIA).

Imagem 03 – Natan Forquet

É importante ressalta que a oficina se constituí de muitas mãos, vozes e gestos que
se materializam nos jogos e nas brincadeiras realizados durante a S.A.P e são inspirados
na brincadeira de rua e nos jogos teatrais que existem desde a minha infância. Tenho que
evidenciar que as ações realizadas no território dos projetos e pesquisas realizada na

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Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos

S.A.P transitam na metodologia da educação popular, o que influência diretamente na


compilação da oficina e na percepção das minúcias do cotidiano. Com isso, espero que esta
vivência compartilhada possa somar na construção de novas experiências que promovam
encontros e alegrias.

A OFICINA S.A.P

A construção e maturação da oficina S.A.P se concretiza a partir do olhar da


formação acadêmica do estudante de graduação e pós-graduação da área da saúde, sendo
que seu aprendizado deve ser promovido como forma de assegurar seus laços afetivos.
Faz-se necessário implementar modificações nos cursos da área da saúde, para que o
sentido humanístico não fique apenas na teoria, mas se incorpore na prática deste futuro
profissional de saúde. Em Fogo no mato: a ciência encantada das macumbas, escrito por
Luiz Simas e Luiz Rufino apontam:

É importante que problematizemos a educação reconhecendo os


equívocos praticados, para então buscarmos uma saída original e
incômoda. Estamos convencidos que nos, educadores, temos uma tarefa
urgente: precisamos nos deseducar do cânone limitador para que
tenhamos condições de ampliar os horizontes do mundo, nossos e das
nossas alunas e alunos. Educação dever gerar gente feliz, escrevendo,
batendo tambor, dando pirueta, imitando bicho, fazendo ciência,
gingando com gana para viver. (SIMAS e RUFINO, 2018, p. 19).

Inspirado nessa proposta educacional, este relato busca apresentar o significado


da oficina S.A.P e sua importância no processo de formação acadêmica dos futuros
profissionais de saúde. Esta inquietação se constitui em diversos pontos do planeta,
incluindo o Brasil com os grupos de pesquisa como o Laboratório Atelier de Educação
Popular em Saúde (LAEPS) atualmente na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia
(UFRB), Enfermaria do Riso da Universidade do Rio de Janeiro (UniRio), LUME da
Universidade de Campinas (Unicamp), dentre outros coletivos que pesquisam a
linguagem do Palhaço e sua aplicabilidade nos processo de formação dos cursos de
graduação, com a finalidade de estimular o desenvolvimento de afetividades para a
formação deste profissional.

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Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos

O objetivo da oficina S.A.P é sensibilizar quem participa por meio de exercícios e


brincadeiras, como uma nova possibilidade de relação com seu meio. Jogos e vivências
que convergem com a figura do Palhaço como uma nova abordagem de mundo,
construindo caminhos e alternativas de possibilidades de transformações sociais e
humanas. Como o campo da saúde é muito mais amplo do que o da doença, propomos o
diálogo como ferramenta de interação e geração de intersubjetividades, entendendo que
promover saúde e alegria fortalece o exercício da afetividade e encontros.

Identificamos a Dialogia do Riso como grande articulador de encontros que:

No trânsito entre prática e teoria, nasce a Dialogia do Riso, um conceito


baseado na educação popular em saúde, na gestão participativa, e rodas
dialógicas, tendo como premissa a formação de vínculos e a promoção da
alegria, ao invés das restrições e obrigações. A Dialogia do Riso se propõe
a fortalecer o exercício da cidadania, compartilhando conhecimento,
brincando e promovendo saúde e alegria (MATRACA et al, 2011, p. 4127).

Baseada na arte da Palhaçaria e direcionada para a Educação Popular em saúde, a


S.A.P é uma oficina de sensibilização que promove olhares e possibilidades de mutação
da paisagem social, tendo como referência a Generosidade Humana, o Diálogo, o Riso,
o Palhaço e a Alegria; compondo o que foi denominado como os cinco pilares da oficina
que convidam e convocam o participante para romper com a rigidez. Essa ruptura
ocorre, a partir dos pilares da oficina, por intermédio de brincadeiras e jogos inerentes
a este ser da comédia, expandido sua mudança e sua relação com seu meio no objetivo
de promover alegrias e novos olhares sobre o existir humano.

A S.A.P tem como pilares: a GENEROSIDADE HUMANA, virtude em que o ser


humano acrescenta algo ao próximo e não se limitando a bens materiais. Os generosos são
tanto as pessoas que se sentem bem em dividir um tesouro com mais pessoas porque isso
lhes fará bem, como as que dividirão um tempo agradável para outros sem a necessidade
de receber algo em troca; o DIÁLOGO, fala entre duas ou mais pessoas na busca do
entendimento de alguma ideia através da comunicação, objetivando a solução de
problemas e sua harmonia; o RIS, fenômeno universal que desperta interesse por ser
transversal e dialógico. Transversal por ser condicionado a aspectos culturais e dialógico
por que ao trilharmos os sentidos do humor, nos deparamos com a comédia e o escárnio
que existe por traz de cada risada, um código de comunicação inerente à natureza
humana; o PALHAÇO, com a menor máscara do mundo o nariz vermelho, é um agente

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Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos

secreto social pronto para uma revolução. Na poesia este anti-herói, tem seu “porte
atlético invisível, num topete conversível, ele prepara o sermão, pra tratar do mundo cão,
colocando a vida em perigo, por amor a profissão” (BATONE, 2007); e a ALEGRIA que não
é aquela forjada e sintética ou envolvida por vícios e paixões que iludem o ser humano no
consumo e na solidão. Mas a alegria que pode advir dos bons encontros, situações
inesperadas, súbitas e desconhecidas, gerando surpresas, admiração e encantamento.

Os jogos e brincadeiras na S.A.P agrega como forma de exercícios coletivos e


podem ser propostas para integração e expansão do indivíduo e do grupo num âmbito
sociocultural, valorizando os conceitos de referência da oficina. Segundo Libar (2008), o
palhaço é o idiota e é feliz nesse mundo justamente por ser o idiota, por não fazer parte
do mundo dos que se arrogam a ser mais inteligentes e espertos que os outros. Ser idiota
não significa ser alheio ao contexto social que está inserido, ainda porque, o Palhaço em
sua bobice constrói críticas e reflexões, fazendo leituras de mundo (FREIRE, 2009). Todo
o processo é bastante divertido e em certa medida difícil, pois o primeiro contato com
nossas fragilidades e fraquezas é de fato doloroso, até que você as aceite, pois como diz o
velho ditado popular “ri melhor quem ri de si”. Com o nariz de Palhaço nos defrontamos
com nossos ridículos diários e quando rimos do Palhaço não é chacota ou deboche, nesse
caso, o riso, é a aceitação pública.

METODOLOGIA DA OFICINA S.A.P

Para realização da oficina S.A.P alguns recursos são necessários, como uma sala
ampla3 para acolher o mínimo de oito e o máximo de vinte e dois participantes. A sala
deve estar vazia tendo uma mesa e seis cadeiras, das quais quatro serão usadas nos jogos
e duas utilizadas como apoio pelo condutor e o auxiliar da vivência. É importante que haja
uma pessoa para auxiliar a oficina e que, de alguma forma, já tenha sido iniciada na
palhaçaria. Também utilizaremos uma corda para sustentar a, essencial, cortina vermelha

3Para realização da oficina o ideal é uma sala que comporte 35 estudantes e com medidas aproximadas de 35m x 50m;
padrões fornecidos pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) do Ministérios da Educação. Fonte:
http://www.fnde.gov.br/index.php/component/k2/item/525-projetos-arquitet%C3%B4nicos-para-
constru%C3%A7%C3%A3o

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Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos

que será utilizada no momento do picadeiro, além de um tapete, preferencialmente,


redondo para demarcar este território.

A música conduz várias etapas da oficina, por isso utilizo uma caixa de som com
uma playlist elaborada para as etapas que a oficina pede durante as cinco horas de
experiência. Solicito que os participantes sejam pontuais, pois não é permitido que
adentrem quando iniciamos a vivência. Para as pessoas que participarão da oficina é
solicitado o uso de roupas leves para brincar e uma canga, toalha ou tecido para deitar no
momento do relaxamento. Esta é a estrutura que desenvolvi para a realização da S.A.P,
mas cada mediador deve adaptá-la da forma que fique mais confortável possível durante
a condução da oficina.

A oficina inicia com o Acolhimento dos Participantes que é fundamental e pode


ser traduzido com abraços, sorrisos e palavras de boas vindas. O acolhimento é o abre-
alas para a oficina com todos os participantes em círculo para o momento da
Apresentação. Para conduzir o tempo de apresentação faço o uso de uma caixa de fósforo
e o tempo da chama de cada palito é o tempo da apresentação de cada participante. Depois
vem A Caminhada, para a condução dessa etapa coloco uma seleção de música
instrumental, pois a música com letra pode tirar a atenção durante a atividade proposta,
e peço para todos caminharem pelo espaço. É essencial que sempre ocupem os espaços
vazios, para essa percepção, de tempo em tempo, solicito que parem de caminhar e
observem o espaço da sala para a ocupação total e percepção dos espaços que ainda não
foram apropriados pelo coletivo. Durante essa atividade dou comandos para caminharem
sozinhos, em duplas, trios e/ou quartetos, sempre observando os espaços da sala e seus
companheiros. Para finalizar esta etapa coloco a canção Aquele Abraço, do músico-
compositor e ex-Ministro da Cultura Gilberto Gil, e dou o comando para que os
participantes abracem a primeira pessoa que encontrarem pela frente toda vez que
ouvirem o trecho da música que fala: “aquele abraço”.

Em seguida, realizamos a Brincadeira da Desconstrução: são colocados vários


utensílios no centro da roda e, em duplas, os participantes irão pegar um objeto qualquer
e desconstruir, como feito por René Magritte4 em sua obra Ceci n’est pas une pipe, obra

4 A Traição das Imagens (La Trahison des Images) é uma série de pinturas produzidas por René
Magritte entre os anos de 1928 e 1929. A mais famosa delas é a Ceci n’est pas une Pipe (Isto não é um
Cachimbo), que surpreendentemente causou muita polêmica desde então, principalmente em razão de seu

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Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos

que desafia o apreciador ao apresentar a figura de um cachimbo com os dizeres de que


não é um cachimbo. Durante o jogo, um simples par de sapatos pode ser qualquer coisa
que a imaginação dos participantes permitirem, exceto ser um par de sapatos. O ideal é
brincar com analogias fazendo uso do humor e é essencial a interação do condutor da
oficina para dar ritmo ao jogo. Depois que todas as pessoas apresentarem seus objetos
desconstruídos é proposta a brincadeira Cadeiras dos Sentimentos realizado em dupla.

Nessa etapa da oficina, são disponibilizadas quatro cadeiras, cada uma


representando um sentimento: tristeza, medo, alegria e desprendimento; que são
colocadas na frente do picadeiro e cada participante escolhe uma cadeira para sentar.
Após, a dupla é convidada a escolher um ditado popular de seu repertório cultural que os
acompanharão durante todo o exercício. Caso ninguém da dupla conheça um ditado
popular o condutor pode sugerir um que ainda não foi utilizado, mas é importante não
repetir os ditos populares. Em seguida os participantes iniciam a brincadeira Cadeira dos
Sentimentos interpretando o ditado popular a partir do sentimento que representa a
cadeira que sentou. O condutor deverá dar um sinal após cada interpretação para a troca
de cadeira de forma que a dupla passe por todos os sentimentos, no meu caso bato palmas
para indicar a troca. Por exemplo, tem um participante na cadeira do medo e outro na
cadeira da alegria, no brincar terão que falar o dito “não adianta chorar sobre o leite
derramado” com o sentimento que cada cadeira solicita. Nessa brincadeira teremos uma
infinidade de ditos populares que transforma o jogo em um diálogo muito divertido,
exercitando o livre interpretar e a sensibilização para interação entre os participantes que
a ação propõe, mesmo que as palavras se limitem a uma frase pronta há um jogo corporal
e de expressão para explorar.

Seguindo o roteiro da oficina, chegamos no momento de transição para o grande


espetáculo: a vivência do picadeiro, mas antes ocorre o esquenta com o Exercício Berro-
Gol, nessa ação todos participantes sentam em frente ao picadeiro e, um a um, vão para
traz da cortina vermelha e saem gritando a palavra gol, o que entra no picadeiro ao sair
outra pessoa para dar dinâmica a ação. Nesse momento, além de se familiarizar com o
picadeiro o participante tem a possibilidade de extravasar e se expressar para a próxima

aparente nonsense: vê-se um cachimbo e afirma-se que não se trata de tal. Pertence ao surrealismo, sento
Magritte um dos principais representantes desse movimento. Disponível em:
https://arteeartistas.com.br/a-traicao-das-imagens-de-rene-magritte/

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Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos

etapa. Logo após todas as pessoas passarem pela experiência de catarse, que é o primeiro
pisar no picadeiro com o Exercício Berro-Gol, o condutor orienta para que todos peguem
seus tecidos, canga, toalha e deitem para a Relaxaria, momento de relaxamento que dura
em média quinze minutos. Essa atividade é conduzida por uma música relaxante ou de
meditação ao fundo e com foco na respiração, sendo sugerido exercícios para respirar e
sentir o corpo. Concomitantemente, o auxiliar coloca em uma das mãos dos participantes
– que estão em estado de relaxamento - o nariz vermelho para ser usado no momento do
picadeiro. Tempo que o condutor tem de trazer o seu Palhaço para a cena; eu, nesse
momento, coloco minha indumentária e me torno o Dr. Palhaço Matraca, o mestre de
cerimônias que vai conduzir as vivências do picadeiro com todos participantes.

Imagem 04 – Ananda Luz

Para dar sequência a oficina e construir uma transição entre as atividades


Relaxaria e a Bem-Vindes ao Picadeiro pego meu saxofone e executo um tema para o
despertar, geralmente toco Smiles para rememorar o grande mestre Charles Chaplin,
porém não é a única música que toco neste momento. Caso o condutor não souber tocar
um instrumento musical, cabe uma seleção de músicas que, além de Smile, pode conter,
por exemplo, o gênero musical Choro que se encaixa com maestria em várias etapas da
oficina. Quando todos estiverem despertos me apresento e peço para colocarem o nariz e
se olharem com este código de equidade no jogo, é comum que os sorrisos transbordem
entre eles ao reconhecer seus colegas de nariz vermelho. A mesma alegria emerge ao se
darem conta que os colegas os percebem com a menor mascará do mundo, um exercício
do olhar para e si e para o outro e se reconhecerem nos narizes, um ato dialógico entre a

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Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos

coletividade e subjetividade. Depois desse e-terno momento, peço para retirarem os


narizes para iniciarmos o picadeiro, o primeiro participante é escolhido pelo Palhaço
mestre de cerimônia do picadeiro e posteriormente a pessoa que se apresentar passa pela
experiência de escolher quem vai ser o próximo à demostrar suas habilidades no
picadeiro.

A cortina vermelha e o picadeiro estão postos para o maior espetáculo da terra,


que receberão os inéditos artistas do universo que são todos participantes que passaram
e passarão pela oficina S.A.P. Quando o participante é escolhido oriento que coloque o
nariz vermelho e vá para atrás das cortinas, ao rufar dos tambores e ao soar dos pratos
ele pode passar pelas cortinas vermelhas e pisar no picadeiro, este é um momento
encantado. É, também, o instante que o condutor, agora mestre de cerimônia, irá interagir
com os participantes da oficina. Eu sempre pergunto: Qual a vossa graça? Assim que a
reposta chega pergunto: O que veio fazer aqui? Sempre recebo uma diversidade de
respostas como dançar, cantar, dar cambalhota e nada, que é aquele que diz não ter nada
para apresentar, mas que faz render boas gargalhadas entre os participantes, que no
momento estão de espectadores. Nesse momento a interação ocorre e é imprevisível o
que irá acontecer, mas cabe ao condutor ter sensibilidade para lidar com o tempo de
forma que não interrompa uma expressão criativa e/ou estenda uma cena que não tem
mais o que desenvolver. Algumas vezes, quando recebo como resposta “não tenho nada
para apresentar” questiono “que número é esse?”, diálogo que rende muitas risadas, tanto
de quem assisti quanto de quem está apresentando que tenta explicar que não sabe fazer
nada; nesse momento a cena se desenrola com muito humor, pois no picadeiro tudo pode
ser alguma coisa interessante, ainda porque a percepção do nariz do Palhaço não é a
mesma das nossas.

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Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos

Imagem 05 – Ananda Luz

Depois do último picadeiro o Dr. Palhaço Matraca se despede dos participantes


com muito afeto e entra para detrás das cortinas do picadeiro. Ao retornar sem o nariz
vermelho, sento-me no círculo com todos, para realizarmos a avalição da vivência, visto
que a oficina está em permanente construção e a opinião de quem está em locus sempre
vem para melhorar a qualidade da experiência vivenciada.

A S.A.P. é uma oficina de sensibilização que promove novos olhares e


alternativas de transformação do ambiente ao seu redor, redirecionando o estigma da
figura do Palhaço como personagem circense e adaptando ao ser humano que se
manifesta na rede relacional do nosso cotidiano. Assim, o participante vivencia a
transgressão por meio de jogos e brincadeiras deste ser da comicidade, ampliando sua
circulação e sua conexão com sua potência criadora, tendo como objetivo promover
bons encontros, saúde e alegria.

PARA NÃO FINALIZAR

Nestes quase vinte anos realizei inúmeras oficinas, em sua maioria com estudantes
de graduação e pós-graduação, que possibilitou compreender o significado desta vivência
para os futuros profissionais de saúde que tiveram a oportunidade de participar de
projetos direcionado à arte da palhaçaria no campo da saúde. Diante dos vários caminhos
que esta arte oferece no campo optamos pela palhaçaria de rua embebida na Educação
Popular que desdobra na Atenção Básica em Saúde, via Unidades Básicas de Saúde. O
Palhaço se torna um Agente Cultural de Saúde, o brincante que chega na rua sem o
estereótipo do jaleco branco e se entrega na Dialogia do Riso com as habitantes do
território em ação. Esta estratégia educacional se mostrou e(a)fetiva no desenvolvimento
e aprimoramento de habilidades sócio emocionais com estudantes do ensino superior na
área da saúde. Além disso, a experiência no projeto S.A.P contribuiu para o alívio do
estresse durante o período acadêmico, possibilitando aos estudantes ampliar suas
perspectivas futuras, vislumbrando uma nova forma de atuação na prática em saúde.

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Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos

Como relatei anteriormente, não foi meu objetivo criar uma cartilha, mas sim
dividir essa experiência com todas as pessoas, para que possam usar e ressignificar os
exercícios à vontade. O objetivo é compartilhar o método que venho desenvolvendo,
porque acredito que nesse momento tão obscuro se faz necessário exercitar o SONHAR -
verbo transitivo direto, indireto e intransitivo - que pode se transformar em flores,
odores, amores, horrores, alegrias, risos e políticas pública. Ainda porque, sabemos que,
uma política pública requer mais que uma decisão política, necessita do envolvimento de
todos nessa diversidade de ações estrategicamente selecionadas para implementar as
decisões tomadas coletivamente. O SONHAR, aqui manifesto, é aquele que torna
praticável que os problemas de saúde sejam possíveis de serem prevenidos (prevenção)
e a qualidade de vida possa ser alcançada por qualquer pessoa (promoção); recheada de
CiênciArte e Educação Popular em Saúde com mais Alegria, Saúde, Prosperidade e de
forma equânime para o Sistema Único de Saúde (SUS); em todo território pindorâmico
dessa nossa amada terra chamada, hoje, de Brasil.

Desejo, no compartilhar desse relato, a todes leitores bons SONHOS e que o sonhar
se transforme em ações e criações, gerando bons encontros com mais alegria e esperança
cotidiária. A força da palhaçaria esta dentro de você, quando precisar ou não, ACESSE A
SUA TECLA S.A.P.

Dr. Palhaço Matraca

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Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos

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Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos

Capítulo 7
GERAÇÃO DA LEITURA: PALHAÇARIA E
LITERATURA EM UM EXPERIMENTALISMO
BRABO PARA CRIANÇAS E IDOSOS EM
SÃO GONÇALO-RJ

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Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos

GERAÇÃO DA LEITURA: PALHAÇARIA E LITERATURA EM UM


EXPERIMENTALISMO BRABO PARA CRIANÇAS E IDOSOS EM SÃO
GONÇALO-RJ

Leo Salo
Karen Guimarães Cardoso
Melissa Coelho Ferreira

INTRODUÇÃO - EXPERIMENTALISMO BRABO

Criado no Complexo de Favelas de Manguinhos, Zona Norte do Rio de Janeiro, o


Experimentalismo Brabo é um coletivo de provocação artística que promove
intervenções sobre afeto, cultura da paz e solidariedade em territórios de exclusão. O
presente relato discute atividades realizadas no âmbito do Projeto Geração da Leitura,
que teve como base principal de suas ações o Abrigo do Cristo Redentor de São Gonçalo
(ACR-SG), uma instituição de longa permanência para idosos (ILPI). A ação contou com o
apoio da Secretaria de Cultura do Estado do Rio de Janeiro, por meio do Edital Pontos de
Leitura.

O Coletivo Experimentalismo Brabo entende que discutir afeto, solidariedade,


cultura da paz e outros temas, como transformação pessoal e social em locais
vulnerabilizados torna-se cada vez mais complicado, devido às sempre presentes
violações de direitos fundamentais. Seja no espaço de favela, onde surge o coletivo, ou
numa instituição asilar, como no presente texto, falar sobre cidadãos que vivem à
margem, aliando a discussão anterior numa perspectiva de valorização da cultura,
memória e história de vida desses sujeitos acaba se tornando um ato subversivo,
mediante o reconhecimento de suas respectivas invisibilidades. No Ebrabo, trabalhamos,
portanto, em uma perspectiva de amplificação da voz de sujeitos historicamente
esquecidos em suas trajetórias e seus territórios.

O coletivo é EXPERIMENTALISMO porque as principais intervenções artísticas de


um determinado projeto somente são planejadas após um reconhecimento do território,

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Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos

bem como de seus atores e suas relações/leituras de mundo. Experimentar com o outro
é respeitar contextos. É aceitar que conceitos antes fechados precisam se alargar,
contemplar novas significações para continuarem vivos, pulsantes e atuantes.

O TERRITÓRIO: ACR-SG

A região do Centro de São Gonçalo é dotada de um conjunto de equipamentos


culturais, com diferentes focos de atuação, como uma unidade do Serviço Social do
Comércio (SESC) e o Clube Mauá, além de bares, restaurantes e um shopping center. A
região possui ainda escolas públicas e particulares, além de outras instituições de longa
permanência para idosos (ILPI´s). O Abrigo do Cristo Redentor, em especial (local onde
foram realizadas as atividades aqui descritas), possuía na época aproximadamente 200
moradores em média, sendo majoritariamente ocupado por idosos com baixas condições
financeiras.

A instituição mantém em sua programação diária, um horário para visitação


externa, que compreende um intervalo de 3 horas, iniciando às 14h e findando às 17h.
Assim como em outras ILPI´s, boa parte dos idosos não recebe a visita regular de parentes
ou amigos e acabam contando unicamente com a visitação voluntária de grupos
provenientes principalmente de igrejas da região. O Abrigo, entretanto, promove
atividades festivas para os idosos, com a presença de convidados externos e também
realiza festividades destinadas ao público externo, como forma de arrecadar doações para
o funcionamento da instituição.

Ao lado do Abrigo, funciona ainda, uma igreja católica, que comumente realiza
casamentos e festividades no espaço externo às moradias dos idosos. O Abrigo do Cristo
Redentor de São Gonçalo é uma associação civil sem fins lucrativos fundada por Raphael
Levy Miranda em 1939 e tem como objetivo prestar assistência a pessoas idosas carentes,
ofertando moradia, refeições diárias, assistência à saúde, atendimento médico,
fisioterapia, psicologia, assistência social, terapia ocupacional, nutricionista, enfermeiros,
auxiliares de enfermagem e cuidadores (ABRIGO DO CRISTO REDENTOR, 2017)

Este é, portanto, o território de ação do Projeto Geração da Leitura. Seguindo as


reflexões de Saquet (2011) e de Souza (2012), entendemos este território como um

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Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos

produto social, formado a partir de relações ou interações entre os indivíduos que lá


moram, trabalham ou simplesmente visitam. Levamos em conta os aspectos sociais e
econômicos e as relações de poder existentes. Estes aspectos representam a
territorialidade ou as territorialidades do abrigo.

GERAÇÃO DA LEITURA

O Projeto Geração da Leitura teve como objetivo estimular o intercâmbio cultural


entre idosos, visitantes e funcionários do Abrigo do Cristo Redentor, realizando
atividades artísticas e culturais, que dialogavam sobre a memória e a história pessoal da
vida dos idosos abrigados. Nestas ações, o Experimentalismo Brabo reconhece que a
imagem dos idosos não deve ser apenas marcada pelas questões sociais que os levaram à
situação de abrigado. Para além de uma discussão sobre doenças crônicas, situação
econômica precária ou abandono, por exemplo, descortina-se o desafio de reconhecer o
idoso como um ser único e expressivo, dotado de uma história de vida que quando
contada, pode ajudar a compor no próprio abrigo um repositório cultural vivo, porém
desperdiçado, caso a riqueza imaterial da sua memória caia no esquecimento.

As ações específicas do Projeto Geração da Leitura foram realizadas entre o mês


de março de 2014 e o mês de julho de 2015, com o apoio da Secretaria de Estado de
Cultura do Rio de Janeiro, por meio de um aporte financeiro destinado aos projetos
culturais selecionados no Edital de Apoio a Pontos de Leitura do Estado do Rio de Janeiro
- Chamada Pública nº 03/2013. Contou-se, portanto, com o aval e o apoio do órgão para a
realização das atividades, que nos moldes da metodologia e da filosofia do Ebrabo, se
configuraram também como um estímulo para a leitura. Boa parte do apoio financeiro do
projeto foi utilizada na compra de um acervo literário que serviu de base para as
atividades e foi doado ao abrigo, como legado do projeto.

A equipe fixa de atuação contou com os seguintes artistas participantes:

Palhaços: Da Lapa, Lelê Vitta, Primeira Dama e Tiuí.

Contadoras de histórias: Melissa Coelho, Cristina Pizzotti e Camila Lima.

Músicos: Igor Santos e Leo Gonzaga.

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Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos

METODOLOGIA

A metodologia de trabalho do Ebrabo pressupõe três etapas: escuta, intervenção


e expressão. No âmbito do Projeto Geração da Leitura, o primeiro passo (escuta) se deu
por meio de atividade que denominamos passeios brabos no abrigo.

Durante o intervalo de quatro meses, a equipe de palhaçaria visitou


quinzenalmente o abrigo, percorrendo todos os espaços da instituição. A equipe era
constituída por duas duplas: Primeira Dama e Lelê Vitta; Da Lapa e Tiuí. No passeio, os
palhaços interagiam com idosos, funcionários e visitantes da casa. A intenção foi mapear
e registrar histórias de vida, memórias e elementos culturais capazes de orientar
temáticas centrais e periféricas para a realização de atividades artísticas envolvendo os
músicos e contadores de história do projeto, bem como para orientar a compra do acervo
literário, que pudesse dar suporte para as referidas atividades e permanecer como
patrimônio do asilo.

Com esta proposta de escuta, a equipe de palhaçaria registrou as visitas por meio
de relatórios, discutindo histórias e situações relacionadas aos idosos, que poderiam
posteriormente ser levadas aos demais artistas do projeto para a seleção conjunta dos
livros que seriam comprados, bem como para o desenho de cortejos, rodas de leitura e
demais atividades que pudessem despertar o interesse dos idosos no abrigo.

No quinto mês, a discussão com toda a equipe do projeto norteou a compra do


acervo literário. Os relatórios das visitas da equipe de palhaçaria serviram como base
para essa discussão, que culminou ainda no desenho das intervenções artísticas
posteriormente realizadas, as quais denominamos cortejos brabos. Música, brincação,
contação de histórias, pequenas rodas de leitura e poesia, palhaçaria… Muitas foram as
linguagens artísticas presentes nos cortejos, representando o segundo passo do Projeto
Geração da Leitura, a etapa de intervenção. Durante a realização do cortejo, a equipe de
palhaçaria, os músicos e as contadoras de histórias percorriam todos os espaços do
abrigo, tal e qual o passeio brabo.

No planejamento do cortejo, o papel das contadoras de histórias consistia em


pensar a relação entre a literatura e as histórias de vida resgatadas pela equipe de
palhaços, para assim pensarem em atividades lúdicas com idosos, funcionários e
visitantes do ACR, culminando em atividades específicas com alguns itens do acervo. A

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Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos

palhaçaria seguiria com a escuta e com o desenvolvimento de gags e pequenas esquetes,


baseadas no que fora e continuaria a ser aprendido durante as visitas. Reconhecendo a
música como elemento cultural, que pode retratar ou dialogar com a memória e
identidade dos idosos, os músicos ajudaram a pensar e executaram um repertório
específico de canções, como repertório-base. A atividade durava aproximadamente 3
horas e cabe registrar que os músicos estavam sempre abertos à eventuais pedidos de
canções e a equipe de palhaçaria seguia pronta para jogar tanto com eles, quanto com as
contadoras de histórias.

Em um terceiro momento, foram desenhadas atividades artísticas e culturais que


permitiram dar voz ao próprio idoso sobre sua cultura, memória e história de vida. Para
essas atividades de expressão destinamos o nome de “encontro brabo de gerações”.
Seguindo os objetivos de atuação do Ebrabo enquanto coletivo e de acordo com as
prerrogativas do edital que permitiu a realização deste projeto, visitamos escolas da
região de São Gonçalo, levando atividades de contação de histórias utilizando o acervo
Geração da Leitura que dialogavam com a história de vida de um determinado idoso do
abrigo, que era chamado a participar da atividade numa perspectiva de convidado, de
atração cultural. Esta terceira etapa, descortinou-se como um diálogo inter-geracional,
com o protagonismo do idoso, não na perspectiva de uma prática assistencialista, mas sim
na avidez pelo reconhecimento do Abrigo do Cristo Redentor como um importante
repositório cultural vivo.

DISCUSSÃO

O Experimentalismo Brabo entende que as temáticas cultura da paz, afeto e


solidariedade carregam por si só um conjunto de elementos que configuram um
posicionamento político dentro do território. Chamamos a atenção para a mobilização dos
afetos, a escuta das memórias e uma discussão sobre sensos contrassensos de
pertencimento ao território. Entendemos tolerância, empatia e solidariedade como
caminhos para o enfrentamento dos desafios impostos aos moradores, trabalhadores e
mesmo transeuntes de qualquer território de exclusão.

Conforme anteriormente mencionado, o primeiro passo metodológico dos

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Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos

projetos do Ebrabo (escuta) é fundamental para que se possa desenhar um diagnóstico


de demandas e possibilidades de atuação dentro de um determinado território. Após a
etapa de escuta, são desenhadas intervenções artísticas que dialoguem com as
possibilidades locais, numa perspectiva de se trabalhar direta ou indiretamente estes
temas, falando sobre cultura da paz, afeto e solidariedade naquele determinado contexto.
Por fim, a terceira e última etapa é criar canais para que as pessoas do território (no caso,
os moradores do abrigo) possam expressar suas vivências e histórias de vida.
Reconhecemos o idoso como um ser único e expressivo, dotado de experiência de vida e
bagagem cultural, muitas vezes pouco reconhecidas.

Três dos quatro palhaços do grupo (Da Lapa, Lelê Vitta e Primeira Dama) já haviam
atuado no ACR-SG, em outros projetos de intervenção desenvolvidos por outros grupos
culturais. Essa experiência anterior facilitou bastante a execução do Projeto Geração da
Leitura, pois já havia um conhecimento prévio do território e de suas dinâmicas. Não
houve, portanto, nenhuma necessidade especial em relação à adaptação ao trabalho no
abrigo. Os demais integrantes, entretanto, realizaram visitas de reconhecimento ao local,
antes de iniciarem suas atividades.

Coube ao grupo de palhaços o papel de estruturar e executar a primeira etapa do


projeto, a escuta. Esta, delimitou a compra do acervo literário, bem como as temáticas
desenvolvidas nos cortejos e demais atividades da segunda e terceira etapas
metodológicas. Apostamos na perspectiva de Rosner (2009), onde fazer rir não é a
principal função do palhaço que atua com o idoso. A autora cunha, inclusive, o termo
“gericlown”, aqui traduzido como geripalhaço. Destaca-se assim, um tipo específico de
palhaçaria que propomos no Abrigo do Cristo Redentor. No âmbito das ações do Projeto
Geração da Leitura e na discussão apresentada por Rosner, a escuta é a principal função
do geripalhaço.

Nesta perspectiva, a linguagem, as conversas e intervenções palhaçais nos


passeios brabos promoveram um tipo de interação que mesmo subvertendo a ordem
estabelecida no abrigo, possibilitaram escutar as histórias e suavizar as dores ouvidas,
tendo o cuidado de não menosprezá-las. As atividades duravam aproximadamente 3
horas.

Para nós, um passeio brabo é um exercício menos de observação e mais

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Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos

de interação com o território. No caso, o abrigo. Essa interação tem um


princípio simples mas infelizmente bem raro: a escuta. Trocar com as
pessoas não é se apresentar a elas, “olá, somos os fulanos e estamos
conhecendo os moradores e trabalhadores (favela) ou os internos,
funcionários e visitantes daqui (asilo) e…” Não! A coisa toda é saber fazer
perguntas, se interessar de fato pelo que as pessoas têm a falar – e até ao
que as pessoas têm a “calar”. Saber ouvir. Saber aprender com os ouvidos
atentos é o modo de encontrar a brabeza da vida coletiva. Por brabeza
tratamos da aguda e profunda maneira de ser das pessoas. Um passeio
Brabo experimenta dessa água que é gente. (EUGENIO, Felipe et. al [s.d])

No Brasil, é culturalmente normal a produção de narrativas de fracasso


direcionadas ao morador de uma ILPI. Ao estigma, ressoam solidão, abandono e morte.
Tudo isso permeia o discurso da maioria dos idosos, embora possamos afirmar que são
temas que permeiam a própria condição humana, mas que ficam ainda mais evidentes
neste tipo de território. Uma vez colocada em evidência a vulnerabilidade do ser humano,
é preciso afeto e empatia para ser espelho, sem embarcar junto num processo crônico de
sofrimento.

O geripalhaço precisa estar aberto para extrair do idoso sua criança interior, que
ainda pode ser forte e rica em suas vivências. Com alguns será mais fácil trocar alegrias.
Outros, entretanto, necessitam colocar para fora suas tristezas, e encontrar ouvidos que
se interessem por sua dor, não julgando ou duvidando de suas palavras. Porque, na
verdade, não importa nem um pouco para o geripalhaço se o que dizem são alucinações,
memórias confusas ou parciais, ou mesmo se são invenções conscientes usadas com o
propósito de chamar a atenção. Tudo o que vem deles deve ser jogo para o palhaço,
material de trabalho, compartilhamento, e criação.

A palhaçaria aqui voltada para a terceira idade é feita logicamente por um artista
que antes de ser “geri” é “palhaço”. É um ser, que nos tempos atuais ganhou não apenas
corpo e roupagem, mas sobretudo uma linguagem própria em termos de visão de mundo
a partir do circo moderno. Ao longo dos anos esta linguagem ou estética é notadamente
construída a partir do perfil individual de cada artista, que procura exacerbar e evidenciar
algumas características pessoais próprias (PANTANO, 2007).

O exagero acaba compondo um conjunto de gestos e comportamentos únicos de


cada palhaço, representando a singularidade de um ser exposto ao ridículo, ao exagero e
disposto a trabalhar a partir da aceitação para posterior subversão do que se apresenta.

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Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos

O palhaço é uma criação pessoal, única e intransferível (CASTRO, 2005). É a exacerbação


de si mesmo, a exposição exagerada de vivências e/ou características individuais
direcionadas para a construção de um arquétipo marginal, desajustado e bobo.
Representa, portanto, a humanidade em sua plenitude. Por ser único, sincero e
verdadeiro, o geripalhaço se torna espelho da condição humana do idoso e deve portanto
jogar com isso.

Atenta a isso e descobrindo na prática suas implicações, a equipe de palhaçaria


interagia com os idosos, utilizando suas ferramentas, números e tudo o que “carregava
em suas malas”. As interações revelavam nos relatórios as dificuldades e acertos em
termos de linguagem e os temas que poderiam ser abordados, formas e assuntos que
gerariam maior interesse e participação. Daí saem, por exemplo, indícios que Câmara
Cascudo (2004) pode ser importante dada à sua reunião de contos tradicionais, o que se
confirmaria mais à frente quando as contadoras de histórias reconheceram na época do
Natal, a oportunidade da leitura de contos com temática religiosa.

A escuta qualificada dos palhaços foi, portanto, elencando temas e delimitando o


acervo que alimentaria as demais atividades. Durante o jogo surgiam histórias de todo o
tipo. Lembranças e curiosidade sobre o trabalho, profissões e mesmo curiosidades
regionais, fomentaram a necessidade de livros sobre o tema, e posteriormente buscamos,
por exemplo, Medeiros, Fernandes e Mafra (2008). Viagens e mudanças também eram
comumente lembrados, o que gerou a indicação de falar sobre aventuras como a de Simbá,
o marujo (Barbieri, 2012). Assim foi com outras temáticas muito lembradas em cada visita
como cantigas e brincadeiras populares, saudade do Nordeste (muitos idosos nasceram
nesta região do país), narrativas indígenas, dentre outros.

Durante esta descoberta, a Primeira Dama identificou já no passeio brabo, a


possibilidade da utilização do livro Fonchito e a Lua (Vargas Llosa, 2003) para as visitas
no abrigo. A obra já fazia parte do repertório da palhaça, que, portanto, já dominava sua
história. Enquanto a Primeira Dama lia de maneira elegante, sua parceira, a palhaça Lelê
Vitta fazia um contraponto, se atrapalhando na interpretação dos acontecimentos da
trama. Durante a leitura, a dupla dava abertura para que os idosos fizessem comentários
enquanto riam e se divertiam com o jeito “atrapalhado” de narração da história. No livro,
o garoto Fonchito é apaixonado por Nereida, a menina mais bonita de sua escola. A trama

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Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos

permitia tanto os comentários com conselhos ao Fonchito, quanto sobre lembranças


pessoais de paixões do passado e do presente. Com isso, foi possível também ter uma
sondagem do interesse dos idosos para as atividades de contação de histórias que seriam
desenvolvidas mais à frente.

RESULTADOS

Para fins de cumprimento das exigências do Edital de Apoio a Pontos de Leitura


do Estado do Rio de Janeiro - Chamada Pública nº 03/2013, considera-se como resultado
final do projeto:

● Realização de doze atividades culturais voltadas para idosos, funcionários


e visitantes do Abrigo do Cristo Redentor de São Gonçalo.

● Realização de oito atividades culturais voltadas para o público externo.

● Aquisição de 204 itens bibliográficos.

As atividades culturais correspondem à segunda etapa da metodologia Ebrabo, a


de intervenção, os passeios brabos. As atividades externas consideram os encontros
brabos de gerações, realizados em escolas da região - atividades da terceira etapa
metodológica, a de expressão.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Entendemos que devido à sua estética de entrega e sinceridade, o palhaço e a


palhaça representam a melhor escolha para a atuação do Experimentalismo Brabo na
perspectiva metodológica desenhada, onde a escuta possui um papel tão importante.
Trabalhamos majoritariamente em territórios de exclusão e a figura marginal do palhaço,
representa para nós a subversão de buscarmos um real contato com um público que
muitas vezes é carente de políticas públicas sociais e culturais.

Muito embora não tenha sido o foco do presente trabalho, é oportuno pontuar, que
discussões sobre palhaçaria e terceira idade frequentemente levam em conta os
benefícios para a saúde do idoso oriundo desta interação, como os trabalhos de Prerost

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Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos

(1993), Richman (1995) e Ruch e Müller (2009).

Embora, os palhaços tenham sido responsáveis pela aquisição do acervo e pela


delimitação dos temas trabalhados ao longo do restante das atividades, as contadoras de
histórias também utilizaram parte de seu repertório individual, bem como trouxeram
sugestões de temas e livros para serem incorporados ao projeto. Todo contador de
histórias possui um acervo próprio, e naturalmente acaba sendo importante considerar
as histórias com as quais este possui maior familiaridade. Dois exemplos deste tipo de
contribuição que foram bastante utilizados nos cortejos foram os trabalhos de Fox (2013)
e Hochman (2013).

Outro ponto importante a ser mencionado corresponde às despedidas. Os idosos


de maneira muito comovente se apegam àquele momento de atenção, de carinho e de
cuidado. Sabemos que todos eles têm muito mais a dizer do que permite nosso tempo
contado de visitas. E sabemos que não estaríamos lá sempre. Eles também sabem. O
grande desafio foi aproveitar ao máximo aquele tempo, permitindo que fossemos
efetivamente uma companhia agradável e amiga. Uma companhia que valorizasse a
maturidade e a experiência de vida daquelas pessoas, respeitando diferentes inteligências
e formas de funcionamento. Muitas vezes bastou um abraço, um sorriso, um toque para
que fizéssemos tudo o que poderíamos fazer naquele momento como artistas e como
humanos.

Durante todas as etapas do projeto (março de 2014 a agosto de 2015) contamos


integralmente com o apoio da direção e dos funcionários do Abrigo do Cristo Redentor de
São Gonçalo. Agradecemos, portanto, o apoio e confiança desta casa.

REFERÊNCIAS

ABRIGO DO CRISTO REDENTOR. Quem somos. c2017. Disponível em:


<https://www.abrigodocristoredentor.com.br/associe-se>. Acesso em 15 maio 2020.
AMADO, Janaína; FIGUEIREDO, Luiz Carlos. Medo e vitória nos mares. São Paulo: Atual,
1999.
BARBIERI, Stela. Simbá o marujo. São Paulo: Cosac Naify, 2012.
BRENMAN, ILAN. As narrativas preferidas de um contador de histórias. São Paulo:
DCL Difusão Cultural do Livro, 2007.

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Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos

CAMPOS, Ana Raquel. Brinquedos populares. [Folheto de cordel]. Recife: Folheteria


Campos de Versos, S.d. 8.p
CASCUDO, Câmara. Contos tradicionais do Brasil. São Paulo: Global, 2004.
CASTRO, Alice Viveiros de. O elogio da bobagem: palhaços no Brasil e no mundo. Rio de
Janeiro: Editora Família Bastos, 2005.
EUGÊNIO, Felipe et. al. Metodologia. Experimentalismo Brabo. Disponível em:
<https://ebrabo.wordpress.com/metodologia/>. Acesso em 15 maio 2020.
FOX, Mem. Guilherme Araújo Fernandes. São Paulo: Brinque-Book, 2013.
HOCHMAN, Claudio. Saudade: um conto em sete dias. São Paulo: Companhia das
Letrinhas, 2013.
MEDEIROS, Humberto; FERNANDES, Hélio de Almeida; MAFRA, Patrícia
Henriques.Trabalhadores: as profissões do Brasil. Rio de Janeiro: Bom Texto, 2008.
MOREIRA, Fabiano. Contar histórias: a arte de brincar com as palavras. Petrópolis:
Vozes, 2012.
OLIVEIRA, Nelson de. O mistério da terrível caixa. São Paulo: Beca, 2003.
PANTANO, Andreia Aparecida. A personagem palhaço. São Paulo: Editora Unesp, 2007.
PREROST, Frank J. A strategy to enhance humor production among elderly persons:
assisting in the management of stress. Activities, Adaptation & Aging, New York, v. 17,
n. 4, p. 17-24, 1993.
RICHMAN, Joseph. The Lifesaving function of humor with the depressed and suicidal
elderly. The Gerontologist, Oxford, v. 35, n. 2, p. 271-275, 1995.
RUCH, W.; MÜLLER, L. Wenn Heiterkeit Therapie wird. Geriatrie, Zurich, n. 3, p. 22-24,
2009.
SALDANHA, Paula. As amazônias. Rio de Janeiro: Ediouro, 1996.
SAQUET, M. A. Estudos territoriais: os conceitos de território e territorialidade
como orientações para a pesquisa científica. In: FRAGA, N. C. (org.). Território e
fronteiras: (re)arranjos e perspectivas. Florianópolis: Insular, 2011. p. 33-50.
SOUZA, M. J. L. (1995). O território: sobre espaço e poder, autonomia e
desenvolvimento. In: CASTRO, I. E. et al. (org.). Geografia: conceitos e temas. Rio
de Janeiro: Bertrand Brasil, 2012. p. 77-116.
VARGAS LLOSA, Mario. Fonchito e a lua. Rio de janeiro: Objetiva, 2011.

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Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos

Capítulo 8
DOTORA CLÔ - UM RELATO DE
EXPERIÊNCIA DE PALHAÇARIA E ENSINO
DE SAÚDE

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Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos

DOTORA CLÔ –
UM RELATO DE EXPERIÊNCIA DE PALHAÇARIA E ENSINO DE SAÚDE

Maíra G Baczinski
Tania C Araujo-Jorge

INTRODUÇÃO

Acostumada a performar pela rua, não me restringi a um espaço físico delimitado


pela tenda ou pela companhia de companheiros da mesma instituição. Logo, comecei a
circular pelo evento, pelas passagens entre as tendas, mexendo com as pessoas, criando
poses, intervenções, buscando situações controversas. Estacionei ao lado de uma mesa
que dispunha de camisinhas, lubrificantes, e comecei a brincar com quem estava ao redor.
Os organizadores da tenda me convidaram para entrar, e em seguida colocaram um
microfone em minha mão. Por trás do jaleco branco e do cabelo arrepiado, dúvidas
começaram a me instigar: devo reforçar os aspectos didáticos ou os aspectos cômicos?
Devo tentar seduzir, aproximar essa plateia ou simplesmente assustar? Se tornar palhaça
e professora era uma inversão em minha estrutura pessoal – como palhaça, eu não deveria
ter comprometimento com acertos, com informações corretas, com poses ou
confiabilidade; como professora, esta é a base de todo o trabalho. E além das dúvidas, eu
não tinha preparado nada, foi tudo no improviso. Afinal, pode uma palhaça ensinar
práticas de saúde? Que desafios e possibilidades se desdobram de uma proposta de
palhaçaria e ensino de saúde? O presente trabalho traz o relato de experiência em um
evento de promoção da saúde, onde, travestida de palhaça, tive a oportunidade de
protagonizar palestras informativas sobre a saúde do homem.

FORMAÇÃO

Como formação, sou primeiramente cientista, mais especificamente professora de


ciências, já que sou licenciada (e não bacharel) em ciências biológicas. Segundamente, no

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Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos

entanto, sou arte-cientista, pois busquei aprofundar pesquisas e atividades relacionadas


a artes cênicas com alunos e projetos diversos de ensino de ciências e educação ambiental,
e por essa ousadia terminei por buscar formação também em artes cênicas, sendo assim
bacharel em artes cênicas. Trabalhei predominantemente como atriz, e,
complementarmente como palhaça em trabalhos cênicos ou performativos que
investigassem e desenvolvessem a linguagem cômica, e a figura do clown. Iniciei minha
jornada na palhaçaria a partir de oficinas, jogos, e experimentos cênicos que mesclassem
a comicidade e a pesquisa da própria palhaça, até desenvolver minha própria figura
palhacesca, Dotora Clô, uma espécie de “alter-ego bufônico” que evidencia aspectos
rígidos (e científicos!) que constitui minha percepção pessoal.

A composição de uma palhaça passa por um mergulho interno, por uma busca de
elementos genuínos, que nos remeta à criança interna; à criança que um dia fomos; ou
mesmo a características, tendências pessoais, aspectos da personalidade e da percepção
de mundo que nos torna únicos. Para a autora Lili Castro, “o palhaço é uma manifestação
performática, destinada a gerar o riso que esteve presente em diferentes épocas e
civilizações, da qual cada atuante se apropria de forma única e individual. (...) Uma
multiplicidade aberta, híbrida e migrante”. (Castro, 2019, p.25).

Desta maneira, não há uma formação única em palhaçaria, e nem uma atuação
única. Desde o trabalho em picadeiros de circo, até o trabalho em teatro, passando por
performances de rua, e os tipos mais antigos como palhaçaria ancestral, bobo da corte,
bufão, há uma multiplicidade de artistas, que desenvolvem o trabalho palhacesco. Na
contemporaneidade, esses artistas estão saindo do centro de cenas e de shows, para
ocupar espaços na rua, e áreas não relacionadas às artes cênicas, como os palhaços sem
fronteiras, que fazem performances em áreas de risco social, projetos sociais, e a
palhaçaria em hospitais.

Em minha trajetória pessoal, vivenciei diversos processos, com palhaços e grupos


renomados como Teatro do Sopro, Ésio Magalhães, Anjos do Picadeiro, Ricardo Puccetti,
Karla Conká entre outros. Através dessas experiências tive a oportunidade de
compreender algumas distinções de jogo e composição, desde referências clássicas de
números ou parcerias de branco e augusto, passando por brincadeiras infantis e jogos
teatrais, até desconstruir certas “regras” na palhaçaria contemporânea. Em parceria com

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Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos

Daniel Cintra, meu parceiro de grupo e de jogo palhacesco, desenvolvemos performances


e brincadeiras pelas ruas do Rio de Janeiro, no desejo de experimentar e aprofundar a
pesquisa de nossos palhaços, ao longo de vários anos. Saíamos em dupla, criando
pequenas intervenções na rua, cada qual levando elementos que tivesse interesse de
desenvolver, e, no improviso, ou na performance, descobríamos como aquilo funcionava
e como nos relacionamos como dupla. Dessas performances, em geral, minha figura se
colocava muito esperta, enquanto meu parceiro se revelava bastante ingênuo, o que a
princípio nos colocava em uma divisão de augusto e branca. Mantive essa percepção de
minha figura até mergulhar um pouco mais na palhaçaria feminina, e compreender que
poderia fugir a tais definições clássicas para potencializar uma criação despreocupada
com tais categorias e referencias, centralizando assim mais conexão com meus
sentimentos verdadeiros, minhas lógicas pessoais, e estados no presente.

Segundo Féral (2015), as performances têm lugar em espaços como museus ou ar


livre, raramente em teatros ou casas de shows. A obra performativa consiste no
engajamento do artista, colocando em cena o desgaste que caracteriza as ações, trazendo
uma ideia que valoriza a ação em si, mais do que seu valor de representação, no sentido
mimético do termo. O artista, seu corpo, seu jogo, são colocados acima de tudo, evocando
uma vivacidade, uma colocação em risco ou um gosto pelo risco. A obra performativa
“amplifica o aspecto lúdico dos eventos, bem como o aspecto lúdico daqueles que dela
participam” (Féral, 2015, p.14). Estes aspectos estão muito presentes nos artistas
contemporâneos, e especialmente nas experimentações artísticas oferecidas através de
cursos, oficinas e vivências que desenvolvem exercícios e atividades como saídas na rua,
apresentações livres em praças, e se intercruzam com a própria formação de artistas de
circo e de teatro, um tipo de experimentação que vivenciei em minha formação e
experiência como artista. Segundo Viveiros de Castro (2005), são comuns na formação, as
“saídas de palhaço”, quando um palhaço sai às ruas em busca de contato com os
transeuntes, passageiros de transporte ou pessoas em uma praça. Este é um trabalho
centrado no improviso, na relação com plateia e que tem o corpo como elemento central
da proposta artística. Traços estes que são marcantes na palhaçaria contemporânea, que
compreende o palhaço como um performer, uma vez que cada palhaço é único e ligado a
identidade de seu criador, levando à cena motivações e anseios pessoais (Castro, 2019).

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Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos

A presença das mulheres na palhaçaria se tornou um marco na mudança de


perspectiva dramatúrgica, na construção de “gags” originais, centradas na lógica e na
sensibilidade feminina. Segundo Borges e Cordeiro (2017), até a década de 90, a presença
de mulheres no universo da palhaçaria era rara e restrita a números e intervenções que
reforçavam traços estereotipados como a beleza física, a graça e a leveza, o que trazia um
papel secundário para mulheres, ou a construção travestida, onde mulheres que
desejassem se tornar cômicas, se vestissem de homem ou agissem como homens. A partir
do movimento feminista, na década de 60, a mulher passou a protagonizar movimentos
que impulsionaram mudanças estruturais em seu papel social, possibilitando aspirar e
ocupar espaços até então reservados para homens. Na palhaçaria, destaca-se o
pioneirismo no trabalho da suíça Gardi Hutter na Europa, e das Maria da Graça no Brasil
(Borges e Cordeiro, 2017).

Segundo as autoras, o foco na identidade feminina, seus conflitos, suas tendências, seus
elementos, questionam as estruturas cômicas clássicas, e contribuem para a elaboração
de uma nova dramaturgia, com o desenvolvimento de “gags”, cenas e textos originais, que
abordam dimensões profissionais, pessoais, afetivas, e estruturantes e centradas na
mulher.

O protagonismo das mulheres nas cenas e improvisos permite uma variedade de


elementos cênicos e estéticos. Por exemplo, algumas palhaças não têm um visual único,
apresentando-se com diversos figurinos, e diferentes tipos de penteado e maquiagem. Em
entrevista, a Castro (2019), Karla Conká, integrante e fundadora das Maria da Graça
discorre sobre essa diferença das mulheres no universo da palhaçaria:

Karla não se identifica com a tradicional polarização circense entre


palhaços brancos e augustos e, embora tenha alguns traços de
personalidade bem definidos e exerça alguma autoridade sobre as outras
ela não gosta de ser enquadrada em algum molde ou classificação pré-
existente. Em entrevista ela nos lembra que uma augusta de TPM se
transforma em branca em segundos e acrescenta:
Acho que é uma coisa muito patriarcal, a coisa do augusto e do branco. É
uma dramaturgia vertical: ou é branco ou é augusto? Eu sou classificada
como uma branca, mas eu não me classifico nada, porque gosto de ter esse
lugar de estar desbravando de mudar, de poder ser qualquer coisa. Que
eu acho que é um lugar muito feminino, pois a gente tem outra maneira
de ver a vida. Nós somos circulares. A gente tem útero, expande, tem filho,
e depois volta pro lugar. Não podemos ser classificadas de forma vertical,
para cima e para baixo, porque a gente não é isso. (CASTRO, 2019, p.234).

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Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos

A partir de contato com essas pesquisadoras da palhaçaria feminina, passei a


reformular minha proposta, abrindo mão de referências arbitrárias como a cor da
maquiagem, a composição de palhaço branco, para aprofundar questões mais pessoais,
que tivessem marcos na minha personalidade, e relevância em meu contexto pessoal.

Assim, a Dotora Clô é uma figura que mexe com a sisudez, a lógica e a crítica
pessoal. Mostra-se com frequência como dona da razão, ou com ar de superioridade, e
exausta pela ignorância e pela distância do que sabem os outros, principalmente por não
conseguir desenvolver na prática toda a “sabedoria” que domina. Uma relação bastante
conflituosa entre conhecimento e vivência, e de um lugar muito específico, que é ser
mulher, e as percepções e condições que isso acarreta no cotidiano e na relação com os
outros. Aproxima-se mais de elementos que emergem de contrastes grotescos e
subversivos com que se coloca e aponta as desigualdades sociais, do que como uma
palhaçaria sutil, criando situações e jogos as vezes constrangedores.

Minha performance em palhaçaria sempre foi uma investigação artística e pessoal,


descomprometida de acordos ou metas profissionais, ou educacionais. Apesar de ser
professora da educação básica, até então, ainda não tinha vivenciado a oportunidade de
performar uma aula, buscando oferecer informações para uma plateia sobre um assunto
científico e específico. Esta vivência ocorreu na Semana Estadual da Saúde.

O EVENTO

O evento da Semana Estadual da Saúde do Rio de Janeiro em 2019, realizado entre


25 e 28 de novembro de 2019 foi um evento público, sediado na Cinelândia, que era
composto por diversas instituições e ofertava serviços, palestras, exposições para a
população do Rio de Janeiro gratuitamente. O vagão do qual eu fazia parte, reunia diversos
alunos e pesquisadores do instituto, levando os mais diversos trabalhos de divulgação,
ensino e pesquisa em cienciarte; desde teatro de fantoches, passando por oficinas, até
atividades educativas com coleções zoológicas, modelos científicos, painéis entre outros.
Havia desenho, pintura, música, artes plásticas, e atividades direcionadas ao ensino de
saúde e de ciências. Propus uma pequena performance, e fui, junto com outros colegas da

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Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos

instituição, compor o vagão de Cienciarte Cidadania do LITEB. Ali, tive a oportunidade de


levar minha palhaça para brincar com os participantes do evento, e transitava entre
diferentes espaços e instituições presentes nesta feira da saúde, com muitas tendas,
atrações e serviços oferecidos à população.

Como artista performativa, logo não me contive em permanecer no mesmo espaço


físico, que também necessitava da entrada de participantes para que realizassem outras
atividades; passei a ficar na porta, e a circular pelo corredor que conectava as diferentes
tendas do evento, criando jogos, brincadeiras, não apenas com os transeuntes, mas
também com os integrantes de cada espaço, participando das oficinas, cortando cabelo,
me submetendo a exames, e o que mais havia disponível para a população. Assim, Dra Clô
acreditava ser a “garota propaganda” do evento, com cabelo cortado pelo serviço do
L´Oreal Institute, testada pela barraca do exército, distribuía panfletos, e o que mais
acreditasse que serviria ao evento, do meu ponto de vista palhacesco.

Ao lado do espaço ocupado pelos meus parceiros da Fiocruz, tinha uma tenda de
Saúde do Homem, oferecendo gratuitamente exame de próstata; na entrada uma mesa
plástica apoiava modelos de pênis e do sistema reprodutor feminino; camisinhas e
panfletos sobre Infecções Sexualmente Transmissíveis (ISTs) estavam disponíveis para
quem quisesse pegar.

Figura 1 - banca expositiva da saúde do homem: camisinhas lubrificantes e o sistema reprodutor feminino
em acrílico (acervo pessoal)

Logicamente, camisinhas, lubrificantes, prótese peniana, panfletos, doenças


transmissíveis são objetos de fetiche, tabu e de muitas piadas ou brincadeiras jocosas, de
duplo sentido, prato feito para a comicidade. Sem pensar muito, peguei o pênis de

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Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos

borracha e comecei a simular com ele gestos, atitudes e comportamentos e nada


sutilmente a fazer movimentos e brincadeiras com ele (esbarrar “sem querer” ou de
propósito; apontar para cima ou para baixo; sacudir, alisar, colocar na orelha, falar
simulando um microfone, entre outras diversas outras possibilidades); isto atraia alguns
curiosos que se colocavam ao meu lado para brincar ou para pegar mesmo os objetos
disponíveis. Alguns de forma acanhada, olhavam, mas não tocavam – a estes eu distribuía
camisinhas e os autorizava pegar, colocava em seu bolso, ou dizia por favor, pegue, use,
mas uma em cada vez). Outros, rindo e fazendo jogos de duplo sentido, autorizavam
brincadeiras mais ousadas, o que fez com que eu propusesse ações mais inusitadas.
Alguns dos organizadores desta tenda gostaram da minha intervenção, pois estava
trazendo pessoas para buscar atendimento, e me convidaram: por que você não vem aqui
dentro falar para todo mundo?

Palhaça, como se sabe, deve estar aberta ao improviso e ao convite, e assim, fui,
ingenuamente, entrando esbarrando e acenando para todos, sem graça, mas também sem
grandes pretensões, criando brincadeiras com quem estava sentado aguardando
atendimento. No entanto minha situação se complicou quando me ofereceram um
microfone.

RESULTADOS

Lá estava eu, vestida de Dotora Clô, jaleco branco, cabelos para cima; com uma
prótese peniana em uma mão e um microfone na outra, no centro de uma tenda de saúde
do homem, cujo público-alvo são homens com mais de 60 anos, que aguardavam
agendamento ou atendimento gratuito para exame da próstata. Sem preparo, sem pensar
no que seria feito ou dito, sem menor planejamento ou estrutura, iniciei com total
confiança que uma bufona tem a dar uma bronca nos homens sentados na tenda, e falar,
do que me lembrava, sobre sexualidade, prevenção de doenças, uso de camisinha, e ainda,
internamente observando e investigando, em falas ou ações, onde encontrava o riso da
plateia.

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Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos

Figura 2: palestra improvisada (acervo pessoal)

Entre brincadeiras e zoações, como simular sexo oral no microfone e cantar no


pênis, comecei a falar tudo que uma bufona feminista diria se tivesse a oportunidade de
se deparar com uma plateia de homens de mais de sessenta anos. Aconselhei-os a lavar os
pintos pois é muito desagradável se deparar com pintos sujos; a aparar os pentelhos, pois
é horrível a sensação de pentelhos enroscados no dente; e a dedicarem-se ao sexo oral
feminino, pois só é possível receber depois de dar. E assim, instintivamente fui dando voz
a tudo que me lembrava de ruim e de importante que eu considerava falar sobre sexo,
relação amorosa, troca, afeto, e fantasias sexuais, em tom professoral, e avaliativo, para
homens mais velhos do que eu, de classes populares. Ouvi poucos risos, muitos olhares
desviando, evitando contato visual; alguns ficavam sem jeito, outros contidos. E, aos
poucos, também, algumas gargalhadas isoladas ininterruptas, e risinhos sem graça, de
quem se identifica com certas práticas que estavam ali sendo debochadas.

Pensei, pronto, essa foi a pior performance da minha vida, pode encerrar sua
carreira de palhaça, que de graça não tem nada, afinal, o que tinha que se meter a falar
sem preparo sobre um assunto tão delicado como esse. Mas qual não foi a minha surpresa

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Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos

ao encerrar minha participação, o organizador me agradeceu imensamente, muito


afetuoso e muito empolgado, perguntando se eu estaria todos os dias, se eu poderia voltar
no dia seguinte, e em quais turnos eu poderia estar. Expliquei minha condição de mulher,
que minha participação era no horário da manhã, pois a tarde precisava buscar minha
filha na creche. E ficou combinado, de que, todos os dias, no pico da manhã, por volta de
11-12h, quando tivesse bastante pessoas, que eu voltasse e falasse novamente tudo de
novo.

Obviamente não era preparado o discurso; eu falava o que me lembrava do dia


anterior, e o que mais eu acreditasse que poderia ter sentido naquele contexto, com
abertura para o que acontecesse no presente. Passei a fazer a demonstração de colocar e
tirar a camisinha na prótese; lembrei de alguns pontos altos como a questão da higiene
íntima; e sempre que possível aproveitava para evidenciar as injustiças, as desigualdades
ou tocar em temas como consentimento, assédio, gravidez, entre outros.

À medida em que fui refazendo a “palestra-performance”, fui investigando efeitos


cômicos; desde simular a confusão do microfone, a fala sobre os pentelhos, etc, criando
uma sequência de temas e ações; um dos dias errei a maneira de vestir a camisinha na
prótese, que ficou com bolha de ar na ponta – este se tornou um ponto alto da
performance, que surgiu espontaneamente e tentei retomar nas outras vezes, pois o erro,
na palhaçaria, se torna acerto, e tinha uma relevância didática, de não mostrar o óbvio,
mas de corrigir e comparar com a maneira correta.

Também passei a experimentar uma escuta mais atenta sobre em quais trechos das
diversas falas e ações que eu propunha, havia mais riso. Uma mulher, que acompanhava
seu parceiro, ria compulsivamente, lacrimejando, e acenava com a cabeça, concordando e
aprovando tudo que eu falava, cutucando o companheiro, e falando alto tá vendo? tá
vendo? (Para mim: “fala mais, mas fala mesmo”); As moças que faziam o atendimento,
coletando dados e organizando a fila, riam sem parar, e por vezes interrompiam o
atendimento para beber água ou se controlar. Nitidamente minha comicidade se dirigia a
elas, e buscava como escada elementos da masculinidade tóxica.

Assim, percebi que a inserção da palhaçaria feminina num contexto específico de


ensino de saúde, direcionada a homens, autorizava abordar diversos tabus através do
olhar feminino – sobre assédio, traição, higiene íntima, prazer feminino e masculino,

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Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos

deslocando a abordagem tradicional a partir da centralidade dos sintomas e prevenção


das doenças, para falar do relacionamento sexual em si, sob a perspectiva da mulher.

Figura 3 - prótese peniana (acervo pessoal)

Em um determinado momento fiz um protesto: “Produção, quero protestar que


tem o modelo masculino, mas não tem o feminino” – rapidamente se mobilizaram e me
trouxeram um modelo feminino duro, transparente, de acrílico, sem cor, que em nada
lembrava a anatomia feminina. O pênis masculino era bastante similar ao verdadeiro, em
tamanho, textura, cor, formato. O sistema feminino era representado abstraído de sua
correspondência concreta exterior, pois não retrata a parte externa com a mesma
semelhança, enfocando mais os órgãos internos (útero, tubas e ovários) em uma redoma
transparente, cuja abertura sequer passava um dedo. Seriamente reclamei, dizendo que
esse era o motivo de ninguém ali saber como é a caverna do prazer. Risos geral. Invoquei
a imaginação e a memória dos presentes para falar do órgão feminino. Os organizadores
prometeram corrigir a falha e buscar uma prótese feminina mais verossimilhante, e no
dia seguinte me revelaram: buscaram inclusive em sites desses objetos didáticos, não
encontramos nada.

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Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos

Mesmo já sem microfone, e sem tantas gestualidades afetadas, alguns participantes


me chamavam no canto para tirar dúvidas sobre sexualidade, higiene, ISTs. Alguns
revelavam que frequentavam casas de prostituição, perguntavam se haveria alguma
maneira de saber se a pessoa com que se relacionasse tinha IST; me perguntavam como
animar a patroa (esposa), e se eu poderia mostrar novamente como colocar a camisinha.
Eu não tinha preparado ou estudado nenhum daqueles assuntos, mas por instinto de
professora, dava as informações científicas que me lembrava; e junto da informação
correta, também dava a bronca ou uma zoada, dizendo que ia contar pra esposa; ou que
ele deveria perguntar pra esposa dele como ela gostaria.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Por que o nariz vermelho “facilita” a abordagem de temas, termos e linguagens


tabu? Como é mais fácil falar palavras chulas com o nariz do que sem, e abordar situações
tão comuns e ainda tão limitadas em nossa prática cotidiana?

Na última apresentação, notei que as mulheres atendentes e acompanhantes


estavam rindo desenfreadamente. Passei a refletir se minha performance estava
direcionada ao riso delas, e o quanto isto contribuía, no sentido de criar espaço de
representatividade, incluindo um aspecto importante e ausente das intrincadas relações
sociais, que é a fala ou a percepção e sexualidade da mulher, ou se isso afastava e
constrangia os homens que eram público-alvo do espaço e do atendimento.

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Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos

Figura 4: aula de yoga, outra atividade proposta pelo evento (acervo pessoal)

Segundo Viveiros de Castro (2005) “o palhaço é o sacerdote da besteira, das


inutilidades, da bobeira... Tudo que não tem importância lhe interessa” (Viveiros de
Castro, 2005, p.12). Nessa intervenção, não houve o comprometimento com a
partiturização das ações ou do riso, mas sim a busca de um espaço de escracho, ridículo e
deboche explícito. Diferente da palhaçaria de hospital, a performance com Dotora Clô não
é sutil ou delicada, se aproximando mais de uma bufona, no sentido mais duro e honesto
das ações e das críticas que traz nas situações e relações. Não havia naquela performance
a busca em agradar esse público – por muitas vezes ridicularizado ou constrangido por
falas e atitudes que tinham como foco evidenciar a toxicidade do masculino e os erros
comuns nas práticas amorosas e abordagens. Refletindo sobre isso, ponderei diversas
vezes se estava contribuindo para ajudar/aproximar ou para afastar os homens do
tratamento e da educação em saúde.

O ensino de saúde a partir de termos técnicos ou científicos costumam ser


inóspitos ou muito distantes das práticas cotidianas e populares. Com isto, uma figura
feminina de autoridade médica, dependendo do jeito, da linguagem, da maneira como
conduz o atendimento nem sempre terá abertura para colocar o paciente à vontade para
expor suas dúvidas ou suas vivências intimas; ao passo que uma figura enlouquecida, que

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Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos

sequer é uma “pessoa de verdade”, mas quase uma entidade, falando termos chulos, sem
delicadezas ou sutilezas ou compromisso com termos técnicos ou status social cria alguma
empatia, de abrir um espaço de comunicação e honestidade. Vários homens buscavam no
canto informações sobre doenças, como identificá-las em si próprios e nas parceiras, da
mesma maneira que pediam para entender melhor sobre como usar o preservativo ou
como agradar o sexo feminino. Apesar de não apresentar uma personalidade dócil nem
buscar agradar, a figura excêntrica e marcada pelo gênero feminino, desloca também essa
expectativa de que se espere uma “palhacinha boazinha”, trazendo à tona as diversas
relações que se constroem sobre a própria palhaçaria, e, neste contexto, sobre sexualidade
e suas marcas de gênero, tais como a tendência de abordagens de ensino deste campo,
revelando algumas situações normalizadas, como ausência do modelo feminino
verossimilhante, não apenas no evento, mas na busca em sites e empresas que oferecem
esses itens para abordagens educativas, o que estabelece um papel socio político
importante. Além de claramente atender uma necessidade dos organizadores, em abordar
assuntos íntimos de uma maneira mais aproximada do público, ou de chamar atenção
para várias nuances que constantemente ficam fora dos panfletos, manuais e abordagens
de ensino de saúde, embora se constituam como pautas dos movimentos feministas, glbt,
e outros movimentos sociais.

Como professora, sempre percebi certos limites em esclarecer dúvidas e temas,


que transpassam a intimidade e o constrangimento. E como paciente, em consultas
médicas, também noto muito enfaticamente esses contornos. Comecei a imaginar
desdobramentos possíveis desta experiência, onde poderia simular um atendimento
médico, e fazer o paciente optar por uma relação teatral: onde eu ou ele mesmo estivesse
com maquiagem ou sem; com peruca ou cabelo preso, se gostaria de um saco de pão para
colocar na cabeça. Imaginei se esses recursos poderiam ampliar a conexão e criar um
espaço de abertura, a despeito do constrangimento que é abordar temas tão delicados e
íntimos, não apenas para o público, mas igualmente para a educadora.

Também imaginei que pesquisar um pouco sobre as doenças, especialmente os


sintomas, poderia ter sido bom para esclarecer a dúvida dos que me procuravam e eu não
sabia afirmar com segurança. Organizar a palestra, partiturizar os temas, ações e
possibilidades de intervenção seriam úteis para dilatar e aproveitar ainda mais a

114
Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos

pontualidade da performance, expandindo a presença e os elementos que compõem a


sexualidade e o gênero.

Não é possível afirmar se os homens gostaram, uma vez que nenhuma estratégia
metodológica fora elaborada para investigar isso, embora os organizadores tenham
afirmado que sim. Ao encerrar esta vivência, estabeleci contato com a instituição
organizadora no desejo de criar atividades ou parcerias que possibilitassem outros
encontros como este, o que revelou interesse, escassez e inovação na construção de uma
abordagem de palhaçaria para ensino de saúde. Mas a pandemia do coronavírus encerrou
as atividades presenciais, e com isso ficou difícil retomar qualquer atividade nesse
sentido.

AGRADECIMENTOS

Agradeço o convite dos organizadores da exposição Expresso Saúde e da Semana Estadual


da Saúde e ao público que se dispôs a interagir com a Dra. Clô naqueles dias. Agradeço
também a revisão feita por Tania Araujo-Jorge.

REFERENCIAS

BORGES, Ana Cristina Valente e CORDEIRO, Karla Abranches (2017) Palhaçaria Feminina:
trajetória de investigação e construção dramatúrgica de espetáculos dirigidos por Karla
Conká. Seminário Internacional Fazendo Gênero (Anais eletrônicos). Florianópolis.
CASTRO, Lili (2019) Palhaços: multiplicidade, performance e hibridismo. Rio de Janeiro:
Mórula.
FÉRAL, Josette (2015) Além dos limites: teoria e prática do teatro. São Paulo,
Perspectiva.
FREIRE, P. (2005) Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro, Paz e terra.
MATRACA, M. V. C., WIMMER, G. e ARAUJO-JORGE, T. C. Dialogia do riso: um novo
conceito que introduz alegria para a promoção da saúde apoiando-se no diálogo, no riso,
na alegria e na arte da palhaçaria. Revista Ciência Saúde Coletiva 16 (10) out 2011.
MARANDINO, M, SILVEIRA, R. V.M., CHELINI, M. J., FERNANDES, A. B., RACHID, V.,
MARTINS, L. C., LOURENÇO, M. F., FERNANDES, J. A., FLORENTINO, H. A. (2003) A
educação não formal e a divulgação científica: o que pensa quem faz? Bauru, SP:
ENPEC/ABRAPEC

115
Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos

REIS, Demian Moreira (2013) Caçadores de risos: o maravilhoso mundo da palhaçaria.


Salvador, Edufba.
ROOT-BERNSTEIN, R. Et Al. (2011) ArtScience: integrative collaboration to create a
sustainable future. In: Leonardo, 44 (3).
SOARES, Ana Lucia Martins (Ana ACHCAR) (2007) Palhaço de hospital: proposta
metodológica de formação. Centro de Letras e artes, UNIRIO (tese de doutoramento)
VIVEIROS DE CASTRO, Alice. (2005) O elogio da bobagem – palhaços do Brasil e do
mundo. Rio de Janeiro: editora Família Bastos.

116
Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos

Capítulo 9
A PRÁTICA DA ARTE PALHAÇARIA POR
PESSOAS COM AFASIA EM CONTEXTO
PRESENCIAL E REMOTO: RELATO DE
EXPERIÊNCIA DO PROJETO PALHAFASIA

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Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos

A PRÁTICA DA ARTE PALHAÇARIA POR PESSOAS COM AFASIA EM


CONTEXTO PRESENCIAL E REMOTO: RELATO DE EXPERIÊNCIA DO
PROJETO PALHAFASIA

Elisabeth Araujo de Abreu


Gabriela Maria Lima Santos
Mauren Cereser
Mayara Batista Pereira
Magda Aline Bauer
Lenisa Brandão

INTRODUÇÃO

A afasia é uma condição que decorre de dano cerebral em áreas relacionadas à


linguagem, resultando principalmente em alterações nas habilidades linguísticas. De
acordo com os processos de linguagem afetados, as pessoas com afasia podem apresentar
em maior ou menor grau diferentes características discursivas, como a presença de
disfluências na fala, anomias (dificuldade para recuperar palavras) e parafasias
(substituições de palavras). Entretanto, a afasia não destrói a capacidade discursiva, já
que é possível lançar mão de diferentes estratégias comunicativas não verbais
coexistentes ou compensatórias em relação à fala e à escrita, como os gestos, o olhar e a
postura corporal. Processos linguísticos preservados permitem ainda os reparos e as
reformulações orais na conversação, bem como estratégias de checagem da intenção
comunicativa, paráfrases e explicações. A conversação da pessoa com afasia é uma
construção interdependente que envolve auxílios orais e gestuais do interlocutor
(MORATO,2016).

A afasia acomete, em sua maioria, pessoas com 60 anos ou mais, sendo que a causa
mais frequente da afasia é o acidente vascular cerebral (AVC). O tratamento do AVC agudo
no Brasil tem tido importantes avanços, de modo que o número de sobreviventes tem
aumentado, aumentando, assim, o número de pessoas que vivem com afasia.

118
Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos

Na área da saúde, até poucas décadas atrás, o modelo biomédico predominou na


formação dos profissionais que trabalham junto a essa população, focando quase que
exclusivamente na recuperação de habilidades linguísticas deficitárias, concebendo a
recuperação dessas habilidades como condição primária para a reinserção do indivíduo
na sociedade.

O modelo social da deficiência faz um contraponto ao enfoque biomédico a partir


das concepções de inclusão social e acessibilidade, lançando um olhar crítico para as
falhas da sociedade em reconhecer a diversidade humana. As reflexões do movimento
feminista também contribuem para promover transformações na área da saúde, pautando
a aceitação das vulnerabilidades e a importância do cuidado. A partir dessas reflexões,
reconhece-se a interdependência entre as pessoas, em contraposição à sobrevalorização
da independência (DINIZ; BARBOSA; SANTOS, 2010).

Dessa forma, as concepções dos profissionais da área da saúde a respeito de sua


atuação junto a pessoas com afasia vêm passando por mudanças paradigmáticas
importantes nas últimas décadas. Considerando as diferentes respostas à reabilitação da
linguagem e a cronicidade das alterações linguísticas observadas em muitas pessoas que
vivem com afasia, questiona-se o enfoque fonoaudiológico exclusivo na recuperação das
habilidades linguísticas (KAGAN, 2008).

No lugar de um enfoque que visa unicamente ao alcance de padrões considerados


como “normais”, a funcionalidade da comunicação e a qualidade de vida passam a ser
centrais. Dessa forma, o foco terapêutico não está mais concentrado unicamente na
mudança do indivíduo que vive com afasia. As pessoas que vivem com afasia
frequentemente necessitam de acompanhamento a longo prazo visando favorecer a sua
inclusão social. Portanto, a atuação junto a essa população deve impactar a comunidade,
abarcando seus parceiros comunicativos e educando a sociedade para promover a
valorização da diversidade comunicativa. Nesse sentido, a noção de multimodalidade da
comunicação vem ganhando cada vez mais espaço nos meios terapêuticos. Ademais, o
combate ao estigma social enfrentado pelas pessoas com diversidade cognitiva e
comunicativa tem despontado com uma força cada vez maior a partir de campanhas de
conscientização sobre a afasia.

Considerando a vulnerabilidade dessa população exposta à frustração durante


situações comunicativas não inclusivas e ao isolamento social, atualmente o cuidado com

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Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos

a saúde mental das pessoas que vivem com afasia vem ganhando mais espaço. A literatura
científica vem pautando de forma crescente a importância de considerar as evidências de
redução da qualidade de vida de pessoas com afasia. No Brasil, sobreviventes de AVC (a
principal causa da afasia) apresentam incidências altas de depressão. Os achados
demonstram que a participação em grupos sociais modera os efeitos da depressão e da
deficiência na qualidade de vida dos sobreviventes de AVC. Além disso, atividades
artísticas mostram-se eficazes na promoção da saúde mental dessa população.

A Pandemia de Coronavírus 2019 (COVID-19) trouxe mudanças drásticas no


cotidiano, impactando a prestação de serviços de saúde. Teleatendimentos em
Fonoaudiologia indicam potencial para oferecer qualidade equivalente a atendimentos
presenciais no contexto da pandemia. No entanto, permanecem questões acerca de sua
viabilidade, visto que existem dificuldades de acesso e adaptação às tecnologias. Como
humanizar o meio virtual? Como promover de fato o prazer e a inclusão em interações
virtuais com pessoas que vivem com afasia?

Nesse cenário crítico, essa população é alvo de preocupação, tendo em vista o


aumento significativo do isolamento social e as comorbidades de risco para a COVID-19.
Um dos maiores desafios enfrentados por essa população é a falta de acesso à tecnologia
e de habilidades digitais que permitam a continuidade de apoio de forma remota por
equipes que promovem práticas com potencial para beneficiar a qualidade de vida dessa
população.

O presente trabalho visa apresentar um relato sobre a ação de extensão


Palhafasia, descrevendo brevemente a experiência do projeto antes da pandemia e
relatando seu desenvolvimento durante os seis primeiros meses da pandemia de Covid-
19 no Brasil. Trata-se de um relato de experiência, com descrição qualitativa sobre os
diferentes contextos de atuação presencial e virtual. São relatados os impactos na
formação de estudantes de graduação em Fonoaudiologia envolvidas no projeto, bem
como as observações delas sobre a participação de pessoas com afasia nos contextos
presencial e remoto.

PALHAÇARIA COMO FORMA EXPRESSÃO DE PESSOAS COM AFASIA

No contexto brasileiro, as Artes Cênicas têm tido presença significativa com


propostas que apresentam efeitos terapêuticos para pessoas com afasia. Na prática

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Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos

teatral, os grupos não se identificam como “pacientes” em tratamento. Entendem que a


expressão do diferente é concebida como singular e autêntica. A prática do teatro se dá
em ambientes culturais, e a proposta de atuação interdisciplinar com artistas e
profissionais da saúde não é clínica, mas comunitária. Os indivíduos são convidados a se
expressarem de forma ativa com o corpo todo no contexto grupal.

A arte da palhaçaria, embora tenha fortes origens circenses, fundamenta-se em


grande parte nas pesquisas do campo teatral, sendo que os termos palhaço e clown são
aqui considerados sinônimos, embora existam diversos enfoques e múltiplas escolas
(SACCHET, 2009). No contexto das Artes Cênicas brasileiras, a palhaçaria encontrou
terreno fértil de pesquisa com forte influência de concepções europeias, com foco maior
na lógica do palhaço do que na performance de gags ou números com enredo. Também há
alguma influência da perspectiva dos povos indígenas, que apresentam “palhaços xamãs”
ou sagrados. Sob perspectivas diversas e não excludentes, o palhaço é um ser que entra
em contato com sua própria vulnerabilidade, que denuncia a opressão sofrida por todo
indivíduo excluído por ser diferente e que tem um papel relevante na promoção de
transformações sociais. Dessa forma, o palhaço encontra liberdade de convenções sociais
e comunicativas que frequentemente criam estigma (PUCCETTI, 2012).

Um aspecto central na prática da palhaçaria é a expressão criativa, o que, no


contexto de pessoas que vivem com afasia, tem um potencial transformador ao questionar
perspectivas centradas exclusivamente no reparo de habilidades. O palhaço não busca
consertar-se, ao contrário, o palhaço ganha o amor e a compreensão da plateia justamente
por expor sem vergonha seus fracassos e suas vulnerabilidades. Essa abordagem promove
espontaneidade e espaço para o desenvolvimento de diferentes estratégias comunicativas
de ênfase funcional. Incorpora e incentiva a comunicação por meio de expressões faciais,
corporais e gestuais. As atividades desenvolvem um olhar humorístico sobre dificuldades
e soluções criativas, valorizando diferenças e expressões autênticas, o que tem potencial
para promover o bem-estar. O fato de as atividades serem em contexto de grupo permite
a criação de um ambiente de comunicação singular: as regras e convenções de
comunicação mudam e dão lugar a um contexto horizontal, seguro e aberto à diversidade
comunicativa (GORDON; SHENAR; PENDZIK, 2018).

Compartilhar emoções e expor falhas é desejável na palhaçaria (WEITZ, 2012). O


modo sensível em que o encontro com a vulnerabilidade se dá na palhaçaria já vem sendo

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Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos

abordado em práticas de palhaçaria que promovem a interação com pessoas que vivem
com demência (HENDRIKS, 2012).

A possibilidade que o palhaço tem de expor e lidar com fracassos tem potencial
para mudar o que é visto como "eficaz" ou “bem-sucedido”. O palhaço que toca a plateia é
aquele que expõe seus "fracassos" e desafia o medo do ridículo. Nesse sentido, pode-se
esperar uma mudança sobre as concepções de sucesso na percepção dos indivíduos que
praticam palhaçaria e dos espectadores participantes. A palhaçaria implica brincadeira,
que está associada a emoções positivas e bem-estar. Os adultos geralmente são privados
do lúdico e da diversão, e a arte clownesca pode atender à necessidade humana de brincar
(DUARTE; ROCHA; BRANDAO, 2020).

A prática da palhaçaria inclui brincadeiras que frequentemente incorporam outras


modalidades artísticas, como música, dança e contação de histórias, sem, no entanto,
perderem o eixo central de humor, espontaneidade, exposição do "fracasso" como algo
inerente do ser humano, possibilitando a libertação de convenções aprisionadoras sobre
o que seria “certo” ou “errado”. Essa riqueza de formas de expressão permite uma gama
ampla de atividades e de experiências. Além disso, a performance de palhaços em espaços
teatrais por pessoas com afasia pode ser uma forma potente de combater o estigma. A
palhaça ou o palhaço se rebela celebrando seus erros e fracassos diante da plateia. Esse
encontro de risos e olhares cúmplices com a plateia pode ser um forte catalisador de
empatia e de entendimento profundo, que transcende palavras.

PROJETO PALHAFASIA

O Palhafasia é um projeto de extensão voltado para pessoas com afasia e que coloca
alunos de graduação em Fonoaudiologia, Psicologia, Dança e Artes Cênicas em contato
com uma prática humanizadora de promoção à saúde. Os encontros do grupo fomentam
a prática ativa da palhaçaria pelos participantes a partir de jogos e improvisações que
envolvem corpo, voz, gestos e face. Com isso, cada membro do grupo de palhaçaria é
estimulado a descobrir seu próprio palhaço e a trabalhar aspectos como empatia,
iniciativa, humor, atenção compartilhada e reciprocidade. Sobre o acolhimento e a
sensação de pertencimento no grupo, uma participante com afasia relata:

[...] acordei de um jeito totalmente diferente, uma tal de afasia, e agora


fazer o quê? As pessoas lá fora davam risada e diziam pra mim “fala

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Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos

direito, você fala errado”, e agora? E nesse “agora” acabei descobrindo um


grupo maravilhoso, grupo de afasia, os palhaços afasia [...] aos
pouquinhos eu fui criando força eu fui crescendo. Foi libertador saber que
o que eu tenho várias pessoas também tiveram.

Os encontros do Palhafasia são estruturados de modo a fazer uma transição


gradual para o papel de palhaço. Há um importante foco em acolher os participantes e
construir um contexto seguro no qual eles se sintam à vontade e apoiados, criando uma
atmosfera de paridade e reciprocidade. Isso tem papel fundamental na ressignificação de
erros de expressão linguística e dificuldades comunicativas, reduzindo o medo e a
insegurança que possam inicialmente existir.

O ambiente para as práticas de jogo envolve objetos e figurinos, bem como uso de
música. Esses aspectos, combinados com o foco em relações horizontais, zelam pelo
cuidado e pela segurança afetiva de todos os participantes.

As atividades demandam criatividade, mas se estruturam de modo similar de


semana a semana, o que garante uma progressão previsível e acessível. A estrutura das
sessões tende a permanecer a mesma, contendo: 1) jogos divertidos de aquecimento; 2)
dramatização de atividades engraçadas; 3) Transição para o estado de palhaço, feita
através de mudança de figurino, com chapéu e nariz, e inclusão de música; 4) Atividades
de improvisação com ênfase na espontaneidade, trabalhadas com base em cenários
guiados e instruções simples. Os facilitadores fornecem instruções de acordo com as
iniciativas e demandas de cada participante. No contexto presencial, as atividades muitas
vezes envolvem a prática em diferentes espaços culturais, sempre em contexto de
expressão criativa. Como exemplo, a aluna voluntária conta um pouco mais sobre essas
atividades:

Desenvolvemos diversas atividades, tais como leitura em voz alta de


trechos de livros abertos ao acaso, co-criando uma história absurda na
biblioteca da Casa de Cultura Mario Quintana; apresentamos um show de
dublagem com muita música e dança na discoteca da casa. Já tivemos
tantas atividades divertidas, emocionantes, sérias através da arte clown
que me fizeram entender melhor as diversas formas de comunicação e
expressão.

As atividades de improvisação se assemelham às práticas de palhaçaria descritas


por autores que trabalham com grupos específicos visando efeitos terapêuticos da prática
ativa da palhaçaria pelo grupo ao invés da visita de palhaços a grupos (GORDON; SHENAR;

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Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos

PENDZIK, 2018). Evoluem do estágio de estar sozinho em cena e entrar em contato visual
com o grupo, que faz as vezes de público espectador nas sessões. A seguir, o compartilhar
atenção em relação a um objeto, progredindo para a interação com um parceiro de cena.
Essas interações em parceria envolvem atividades que fazem uso do grammelot, que é
uma técnica teatral que tem sua origem na Commedia Dell’Arte e que utiliza o recurso de
linguagem através dos gestos, ritmos e sonoridades, podendo ser visto como um jogo
onomatopeico de palavras. Também são exploradas práticas de improvisação guiadas que
revelam a expressão espontânea e ridícula de facetas dos palhaços Augustos e Brancos,
tipos de caráter que podem se alternar em um mesmo palhaço ou que podem predominar
na maneira de agir de diferentes palhaços. O palhaço Augusto é conhecido por ser
ingênuo, bobo, desajeitado e humilde. O palhaço Branco é conhecido pelo seu caráter
intelectual, dominador e elegante, e em geral representa o tolo que acha que sabe o que
está fazendo. Essas facetas não devem ser entendidas de forma superficial, como
definidoras dos palhaços, que ora sentem-se mais de uma forma do que de outra,
desenvolvendo flexibilidade para alternar papéis em favor do melhor jogo entre duplas
ou mesmo na interação com objetos (GOMES, 2012).

Finalmente, as sessões terminam com um círculo no qual os participantes são


incentivados a compartilhar sentimentos e pensamentos relacionados às experiências.
Todas as atividades são permeadas pela presença da música e de um ambiente que zela
pela segurança afetiva e o cuidado.

O Palhafasia já apresentou mostras e ensaios abertos diversas vezes no Teatro de


Arena, em Porto Alegre. A repercussão dessas apresentações é ampla, envolvendo
demonstrações de empoderamento com apresentações que revelaram momentos de
improvisação surpreendentes e emoção relatada por familiares dos participantes após as
mostras. Sobre sua participação no Palhafasia e em apresentações no teatro, um dos
participantes diz:

Quando eu trabalhava ... tudo que eu fazia tinha que ser certinho. Tudo
tinha que ser feito a tempo ... Eu não podia simplesmente não ficar brabo
quando as coisas davam errado. Então eu tive um ... AVC. Isso me fez
começar a fazer outras coisas. Comecei a fazer fono. Eu fui para ... (faz um
gesto de dança e canta ao mesmo tempo)... fui ser palhaço. Foi quando
comecei a brincar com todo mundo. Aí tudo virou uma coisa boa na minha
vida. Fica cada vez melhor. Meu nome de palhaço é Nene. Hoje Nene é o
que eu tenho e agora serei Nene. Ele é um cara brincalhão. Ele tem
problemas de fala e brinca. Ele sabe que ficar com raiva não ajuda em

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Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos

nada. A vida é assim. Quando ele se apresenta no teatro… ahhh é tão bom
(risos)… É uma coisa muito louca (sorriso).

Cada vez mais vemos estudos sendo realizados que abordam o efeito da
participação ativa de performances teatrais na vida de pessoas com distúrbios
neurológicos. A literatura demonstra que há fortes indícios de que as experiências de
performance teatral de pessoas que vivem com afasia (COTE, 2011) e demência
(STEVENS, 2012) são marcadas pela presença do humor e produzem benefícios para a
autoestima e expressividade não verbal. A prática da palhaçaria por pessoas com afasia
mostra-se como potente (DUARTE, ROCHA & BRANDÃO, 2020) e embora a maior parte
das publicações internacionais relatem os efeitos de visitas de palhaços a populações
hospitalizadas ou institucionalizadas, alguns estudos brasileiros ligados à palhaçaria já
relatam a prática ativa dessa arte por pessoas com deficiência intelectual (CZÉKUS, 2012;
GÓMEZ, 2017). Essas pesquisas marcam o estabelecimento de diálogos mais inclusivos
entre os territórios da arte e da terapia. Tratam do tema da vulnerabilidade e do
autoconhecimento a partir do processo de despertar do próprio palhaço, reconhecendo
os efeitos dessa arte sobre a saúde. Os próprios pesquisadores do campo das Artes Cênicas
têm constatado que mesmo sem buscarem finalidades estritamente terapêuticas, os
efeitos terapêuticos da prática da palhaçaria estão presentes (GÓMEZ, 2017).
Gradualmente, os efeitos terapêuticos da prática da palhaçaria vêm sendo reconhecidos à
medida que surgem publicações sobre os benefícios de desenvolver abordagens ativas
com determinadas populações (GORDON, SHENAR, PENDZIK, 2018).

Desde o início do projeto, embora o grupo pudesse se apresentar anualmente no


Teatro de Arena, por questões de disponibilidade, a prática regular do Palhafasia ocorria
no Centro Interdisciplinar de Pesquisa e Atenção à Saúde (CIPAS) – um órgão auxiliar do
Instituto de Psicologia da UFRGS. Em 2019, as atividades do grupo deixaram de ser nesse
espaço clínico da universidade para passar a ocorrer em um espaço cultural de Porto
Alegre: a Casa de Cultura Mario Quintana. Sobre esse espaço, uma aluna voluntária
comenta como foi a transição para esse local:

Antes nossos encontros eram sempre nas instalações da UFRGS, mas


precisávamos sair do ambiente clínico e expandir nossos horizontes. Foi
então que a professora conseguiu um espaço na Casa de Cultura Mario
Quintana: nada melhor do que praticar arte, criatividade e palhaçaria em
uma casa de cultura.

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Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos

Essa inclusão de fato em um ambiente cultural onde circulam muitas pessoas da


comunidade e artistas constitui uma perspectiva concreta da tão almejada inclusão social.
Há evidências de que pessoas com afasia aspiram por essa participação social, desejam
ressignificar suas experiências, fazer amigos e reconstruir seu senso de identidade e
imagem social.

INCLUSÃO DIGITAL

A prática de palhaçaria no contexto virtual enfrenta alguns desafios. A primeira


barreira foi a falta de aparelhos de comunicação compatíveis com as plataformas
utilizadas. Os modelos mais antigos de celular, por exemplo, não conseguem armazenar
aplicativos como Zoom e Whatsapp. Ademais, muitas vezes, a falta de um serviço de
Internet ou um sinal fraco também pode ser impeditivo.

Alguns participantes do grupo, de fato, não tinham acesso a essas tecnologias,


nesse período inicial, foi necessário estabelecer outras formas de contato remoto com
esses participantes. Em casos de ausência de serviço de Internet, realizaram-se
telefonemas, bem como contato com familiares para viabilizar eventuais participações
com o uso de outros aparelhos de celular ou de roteamento de Internet. Entretanto, os
participantes que tinham acesso à Internet foram desenvolvendo habilidades digitais e
utilizando esses meios de comunicação de forma surpreendente.

Acerca da inclusão digital, uma aluna relata:

Um dos participantes comentou que sentia que o grupo estava ficando


cada vez melhor no que tange ao uso de tecnologias. E essa é mesmo a
sensação. No início, as dificuldades com a nova tecnologia tomavam
muito tempo do encontro. No entanto, à medida que as semanas foram
passando, os participantes foram se empoderando e ganhando mais
autonomia. A ajuda dos familiares sem dúvida foi essencial nesse sentido.
Com essa questão tecnológica mais dominada, estamos podendo
desbravar brincadeiras e dinâmicas novas, e nós, voluntárias, estamos
podendo aos poucos nos descobrir numa posição mais ativa de liderança
nas atividades e nas propostas semanais.

A literatura recente já demonstra que as pessoas que vivem com afasia anseiam
por inclusão digital e que, apesar dos desafios na aprendizagem do uso tecnológico,
sentem-se motivadas a aprender quando recebem suporte e quando as interações virtuais
são significativas (HOPPER, 2021).

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Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos

O desenvolvimento de autonomia e o empoderamento na interação virtual são


pontos a serem destacados. Alguns participantes referiram a empolgação de estarem
aprendendo algo novo. Eles também relataram esperar pelos encontros e sentirem-se
atendidos em suas necessidades e abertos às brincadeiras. A cada semana, a persistência
em obter adesão de familiares para auxiliar no acesso à tecnologia resultou no retorno de
mais integrantes do Palhafasia. Em seis meses de pandemia, metade (7) dos participantes
do Parafasia já conseguiam estar presentes semanalmente no Zoom. Nesse período, esses
participantes já relatavam esperar ansiosamente pelos encontros e para participar das
brincadeiras, tanto individuais como em grupo. Relatos de percepção de uma mudança no
estado de ânimo do início e ao final do encontro começaram a ser frequentemente
expressos abertamente pelos participantes. Dessa forma, observou-se que os
participantes se sentiam atendidos em suas necessidades.

A PRÁTICA GRUPAL DA PALHAÇARIA NO CONTEXTO VIRTUAL

A equipe do Projeto Palhafasia tomou a decisão de continuar as atividades


remotamente em meados de março de 2020, logo após a UFRGS anunciar medidas de
isolamento físico. Com a suspensão de atividades de estágio do curso de Fonoaudiologia,
foi feito convite à equipe de estagiários para que aqueles que tivessem condições
atuassem remotamente de forma voluntária no contexto de extensão. Com a equipe de
voluntários formada, deu-se início a discussões remotas a fim de decidir sobre possíveis
atividades e contato com os participantes do grupo. Nessa época, a equipe teve de
aprender a lidar com as incertezas e preocupações agudas daquele período.

Considerando o momento crítico, foi decidido que as primeiras ações deveriam


concentrar-se nas medidas de conscientização e prevenção da COVID-19 e apoio
emocional relacionado à extrema ansiedade. A primeira ação nesse sentido foi a criação
de um grupo no Whatsapp com os membros da equipe e todos os integrantes que tinham
acesso ao aplicativo.

Através desse grupo, foi possível compartilhar vídeos confeccionados


especialmente pelas alunas voluntárias, atentando-se para a acessibilidade dos vídeos. A
confecção dos vídeos buscou, além da sensibilização para o momento vivenciado, uma
identificação e contato mais próximo. Um desdobramento interessante dessa ação foi a

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Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos

criação de um movimento recíproco: alguns participantes também gravaram seus


próprios vídeos informativos e compartilharam no grupo.

O grupo de Whatsapp, no entanto, não acomodava todas as demandas: ainda havia


queixas de percepção de piora na comunicação devido ao isolamento, bem como de
solidão. Decidiu-se, portanto, realizar telefonemas breves ou chamadas de vídeo
individuais semanalmente. A equipe se dividiu, e as chamadas de Whatsapp se
estruturaram em chamadas individuais com duração de 30 a 45 minutos, uma vez por
semana.

Nesse momento, essa conversa visava oferecer escuta acerca das dificuldades
enfrentadas no contexto de pandemia, contemplando também discussões sobre temas de
interesse e trocas sobre memórias e experiências de vida. Uma atividade realizada nesses
encontros foi a caixa de memórias: os participantes colocavam, semanalmente, um objeto,
foto ou música que remetesse a memórias marcantes em uma caixa, conversando a cada
semana sobre uma memória diferente. Isso proporcionou um diálogo permeado por
sentimentos de alegria e nostalgia, assim como um momento para maior conexão entre a
equipe e os participantes.

À medida que essa interação individualizada se consolidou, ficou claro que havia,
ainda, uma demanda por outro contexto: o de grupo. Para isso, a equipe optou por
introduzir o uso da plataforma Zoom, com o objetivo de, semanalmente, oferecer um
momento com todos os participantes e com a equipe, voltado para a retomada virtual das
atividades do Palhafasia.

O grupo enfrentou barreiras de acessibilidade, sendo necessário um processo


focado na inclusão digital por meio da ajuda de familiares e amigos, bem como de vídeos
tutoriais confeccionados pela equipe. Enquanto buscávamos financiamento para oferecer
acesso à tecnologia para os participantes que não dispunham de celulares e acesso à
Internet, demos início às reuniões com aqueles participantes do Palhafasia que já
dispunham e retornamos semanalmente pela plataforma Zoom.

A estrutura da sessão em grupo na plataforma Zoom foi dividida em dois


momentos, cada um com cerca de meia hora. No primeiro momento, uma rodada de
conversa, em que todos contavam sobre a semana e sobre temáticas que necessitavam
compartilhar. O segundo momento com atividades lúdicas e dinâmicas. Realizaram-se
dinâmicas de jogos, brincadeiras, atividades envolvendo música e expressão corporal,

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Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos

contação de histórias e poesia. As sessões não demandaram o uso do nariz de clown.


Frequentemente resgataram o contexto de apresentação cênica para o grupo espectador,
por exemplo, com duplas de palestrante de grammelot e tradutor, ou dupla de corpo-voz,
em que um participante interpreta o corpo e o outro tem sua câmera desativada e emite
sua voz.

Os alunos de graduação planejavam atividades para propor a cada semana,


mantendo o princípio de incentivar a improvisação e a possibilidade de que os
participantes tomassem a frente na proposição de atividades favoritas, bem como de
tópicos de conversa. As instruções e apoios para a realização das atividades priorizaram
a criação de um ambiente seguro e livre de frustrações.

A presença da música nos encontros virtuais de grupo se destacou como um


processo facilitador importante, tanto através de músicas compartilhadas ou colocadas
no microfone de alguém da equipe, como da participação de voluntários com
instrumentos musicais. Em algumas chamadas, utilizou-se figurino improvisado; e a
possibilidade de ver e escutar os participantes em suas casas, combinada com a
proximidade e carinho mútuo existentes no grupo, fomentam um ambiente acolhedor nos
encontros virtuais.

IMPACTOS NA FORMAÇÃO

No que se refere ao impacto na formação, as alunas extensionistas destacaram pelo


menos três pontos relevantes para sua formação. O depoimento de uma aluna ilustra o
primeiro:

Primeiro, eu acho que tem um fator bem interessante de poder trabalhar


com grupo, isso faz com que a gente desenvolva uma certa autonomia
para conduzir dinâmicas e ler um pouco como as pessoas estão se
sentindo, como está sendo a interação. É bem legal pensar essa parte de
comunicação, que é tão importante na Fonoaudiologia, numa perspectiva
de grupo.

Portanto, o primeiro aspecto relevante é o desenvolvimento de competências e


habilidades para o trabalho em grupo. Fazer parte do Palhafasia implica no pertencimento
a um grupo, tanto com os demais colegas extensionistas como com os participantes. No
depoimento, também vale destacar a habilidade de “autonomia para conduzir dinâmicas”,
relacionada a tomar a frente e disponibilizar-se a organizar atividades, conduzir

129
Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos

dinâmicas, dividir tarefas e compartilhar experiências. A mesma voluntária ressalta o


segundo aspecto:

É interessante que a gente trabalha com uma ideia de comunicação que é


mais ampla, que transcende a ideia só de linguagem, tem questão com
gestos, também tem questão com arte. É bem legal para quebrar com
ideias um pouco rígidas sobre comunicação.

Esse segundo aspecto se refere à modificação da ideia de comunicação: não


apenas palavras comunicam. Olhares, gestos e expressões artísticas são igualmente
importantes.

Por fim, outra voluntária traz seu depoimento, apresentando um terceiro aspecto
que o grupo de alunas ressalta:

O impacto do Palhafasia na minha formação: contribui muito em questões


como a comunicação, comunicação alternativa, expressão corporal, arte,
criatividade, enfim, em tantas outras questões que a gente vai
encontrando na vida profissional e acadêmica. Mas, mais do que isso,
impacta em mim como ser humano. Com certeza, depois de participar do
Palhafasia, eu desenvolvi muito mais empatia, compreensão do estado
emocional de cada um dos membros do grupo, a gente vai conhecendo as
famílias, integrando as famílias junto ao tratamento, junto ao grupo,
formando uma rede de apoio com os familiares. E que, nesse período de
isolamento social, cada vez mais é importante esse contato, mesmo que
seja através da tela do computador ou do telefone.

Desse modo, o terceiro impacto na formação levantado pelas alunas relaciona-se


à humanização no trabalho e ao desenvolvimento da empatia. Nesse mesmo sentido, uma
voluntária acrescenta:

Para mim, a experiência é um pouco diferente. Eles não me conheciam, a


gente teve apenas um encontro presencial [...]. Aceitei fazer parte desse
grupo voluntariamente porque como ser humano eu queria fazer minha
parte em meio à pandemia. E na verdade tem mais me ajudado do que
outra coisa... Só que eu estava com medo de não se identificarem comigo,
porque só me viram uma vez, alguns nem me viram. E descobri que é
possível criar vínculos à distância também. Então, com certeza, o maior
impacto na minha formação é como ser humano. É eu não enxergar eles
como “pacientes com problemas fonoaudiológicos”, enxergar eles como
seres humanos, que têm outras urgências, ainda mais na pandemia. E
tudo bem a gente priorizar outras coisas, pensar no bem-estar global.

Assim, duas voluntárias mencionam esse impacto quanto à humanização como


um dos maiores benefícios para a formação. Também cabe destacar o fato de que é

130
Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos

possível criar vínculos à distância, essencial no árduo e prolongado isolamento social.


Ainda a respeito, a primeira voluntária acrescenta sobre os contatos semanais:

É bem nítido para mim que esse momento que temos toda semana com
alguns participantes é algo que os impacta positivamente. Não é apenas
uma chance de conversar, o que é importante pensando em habilidades
comunicativas; é também um momento de apoio. Aos poucos, vamos
formando uma relação de escuta e proximidade, dando vazão a demandas
que não conseguem ser acolhidas num encontro com o grupo todo. Com
essa atenção mais focada, podemos conversar sobre histórias de vida,
assuntos de interesse, e acompanhar alegrias e dificuldades vivenciadas
durante a pandemia.

Em suma, os três aspectos mencionados foram: desenvolvimento de habilidades e


competências para trabalhar em grupo, ampliação da ideia de comunicação na atuação
junto à população com afasia e desenvolvimento da empatia no contato com os
participantes. Um desdobramento significativo em termos de formação, ademais, foi a
articulação que se estabeleceu com o grupo Terapeutas da Alegria, do Núcleo de
Humanização, Arte e Saúde (NUHAS) da Universidade Federal de Santa Catarina.
Iniciaram-se encontros tanto de discussão de temáticas relevantes, como humanização
em saúde, como também articulação com extensionistas desse projeto nos encontros de
palhaçaria. Por se tratar de um grupo com alunos de outras áreas, a troca mostrou-se rica
no sentido de viabilizar uma vivência prática de interdisciplinaridade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente trabalho relatou as experiências e percepções de alunas de


Fonoaudiologia participantes do projeto de extensão Palhafasia incluindo suas atividades
no contexto da pandemia. As observações das alunas demonstraram que a prática
terapêutica centrada nos princípios da palhaçaria foi percebida positivamente pelos
participantes. As alunas relataram que a participação no grupo teve impactos importantes
em sua formação, possibilitando uma perspectiva humanizadora e empática, a construção
de um senso de grupo e a ampliação de sua concepção sobre comunicação na interação
com pessoas que vivem com afasia. No contato com os participantes, as alunas apontaram,
ainda, dados preliminares que apontam para a viabilidade e aceitabilidade da prática da
palhaçaria no contexto remoto, com impactos no bem-estar. Esses dados preliminares
concordam com recentes relatos de experiências de palhaçaria em grupos que usam

131
Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos

meios virtuais como a plataforma Zoom. A prática remota da palhaçoterapia já


despontava na literatura como uma opção viável para atender à distância crianças
hospitalizadas (ARMFIELD et al., 2011).

Desde o surgimento da pandemia de Covid-19, observa-se um aumento dessa


prática. Para não deixar de oferecer seu trabalho, palhaços e profissionais de saúde que
praticavam a palhaçaria presencialmente junto a grupos que visam aos efeitos
terapêuticos dessa prática já vêm reinventando e adaptando seus jogos de forma bem-
sucedida, considerada reconfortante e vital nesses tempos da pandemia (VILARINHO,
2021; DABBY, 2021).

Entidades internacionais que promovem a prática terapêutica da palhaçaria têm


manifestado a importância de que essa prática de promoção à saúde mental possa
alcançar as pessoas nesse período de crise. Certamente, a prática terapêutica da
palhaçaria tem muito a oferecer para reduzir a solidão, lidar com a dor e modificar o
estado de ânimo da população, em especial daqueles que estão mais vulneráveis e
isolados (DE FAVERI; ROESSLER, 2021).

É essencial ressaltar que a transição para um modelo remoto voltado para a


população de baixa renda envolve dificuldades de acessibilidade a aparelhos de
telecomunicação e à Internet, bem como a dedicação de uma equipe para promover a
aprendizagem do uso da tecnologia. Apesar dos avanços que o presente projeto obteve
com questões de inclusão digital, com ação conjunta com amigos e familiares, foi
necessária uma força tarefa da equipe do projeto (por meio de um financiamento
internacional) para ultrapassar as barreiras financeiras que impediam a inclusão digital
dos participantes. Portanto, são necessárias mudanças em políticas públicas para que a
participação de pessoas em situação de vulnerabilidade social e econômica esteja
assegurada em situações em que não é possível oferecer práticas terapêuticas presenciais.
Trata-se de uma questão de equidade, tendo em vista as disparidades no acesso. Para o
Palhafasia foi possível realizar essa transformação importante para a comunidade com a
qual atua graças ao apoio de uma organização internacional e de um esforço cooperativo
com colaboradores de diferentes áreas. O projeto Brincar de Viver foi criado e nasceu da
vontade de ampliar as parcerias do Palhafasia e juntar forças das áreas da Fonoaudiologia,
Dança, Psicologia e Artes Cênicas na luta pela equidade e pela promoção da saúde mental
por meio da arte, incluindo a palhaçaria. No enfrentamento das disparidades sociais,

132
Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos

concorremos a editais de financiamento internacional e fomos contemplados pelo


Solidarity Grant do Atlantic Institute. Dessa forma, conseguimos dar acesso às tecnologias
de telecomunicação a todos os participantes do Palhafasia e atingir mais idosos, incluindo
pessoas com demência.

Dadas as disparidades sociais que a nossa população enfrenta, as iniciativas


brasileiras de promoção da saúde devem abordar a iniquidade e preparar os futuros
profissionais de saúde para esforços de colaboração que busquem empoderar a
participação social de pessoas vulneráveis. No mundo todo, a prática da arte tem se
mostrado crucial nessa luta e certamente a prática remota da palhaçaria tem uma
contribuição importante e singular nesse sentido.

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135
Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos

Capítulo 10
PROTOCOLO DE BIOSSEGURANÇA PARA
PALHAÇOS DE HOSPITAL: PROMOVENDO
ATIVIDADES LÚDICAS COM
RESPONSABILIDADE

136
Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos

PROTOCOLO DE BIOSSEGURANÇA PARA PALHAÇOS DE HOSPITAL:


PROMOVENDO ATIVIDADES LÚDICAS COM RESPONSABILIDADE

Maria Rosa da Silva


Geórgia Maria Ricardo Félix dos Santos
Maria Cristina da Costa Marques
Susana Caires

INTRODUÇÃO

A figura cômica do palhaço esteve presente em diversos tempos, lugares e culturas


ao redor do mundo, exercendo o riso e aliviando as tensões dos participantes por meio de
suas trapalhadas, suas roupas coloridas, sua ingenuidade e astúcia. Entretanto, além de
circos, teatros, animações de feiras, portas de lojas, o palhaço tem estado cada vez mais
presente nas instituições de saúde (ESPINOSA; GUTIÉRREZ, 2010). Ao se inserir no
ambiente hospitalar, o palhaço se apresenta como um médico, inspirado em Michael
Christensen, fundador do Big Apple Circus de Nova Iorque (SATO, 2016; MELO; SILVA,
2019).

O arquétipo do palhaço tem a função de questionaDOR, no cenário hospitalar ele


propõe um dialogo do poder da ciência com o senso comum. Ampliando a visão da
assistência ao questionar a postura de maior autoridade hospitalar, a figura do médico, os
grupos a nível nacional e internacional denominam seus integrantes como “palhaço
doutor” ou “doutor palhaço”. Porque a figura do médico impera a “ordem” e
confiabilidade. Este profissional dita as regras e normas do hospital, daí a interação e o
jogo de um “doutor palhaço” com o paciente, abordando a DOR com leveza e humor.

Desse modo, ao vestir o jaleco e usar o nariz vermelho, os médicos doutores


especialistas em besteirologia têm o poder de ressignificar e transformar o ambiente frio,
complexo e impessoal das enfermarias hospitalares. O palhaço de hospital possui além da
improvisação outras habilidades artísticas e de comunicação, como: interpretação,
contação de histórias, ludicidade musical, dança, gestos, olhares, sorrisos, brinquedos,
jogos e técnicas sempre mediadas por experiências sensoriais e afetivas de acordo com as

137
Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos

necessidades apresentadas pelos pacientes ou sugeridas pelos profissionais e


acompanhantes (SÁNCHEZ et al., 2009; SILVA; SAMPAIO; SANTOS, 2019).

Suas visitas beneficiam os enfermos, os acompanhantes, os familiares e os


profissionais de saúde (MARTINS et al., 2016), pois transmitem amor, cuidado e
confiança, promovem o bem-estar, a alegria, a tranquilidade, reduzem o estresse, a
ansiedade e despertam a imaginação e a criatividade (BERTINI et al., 2011; FORD et al,
2013). A abordagem lúdica do palhaço é capaz de aliviar a dor e o sofrimento, por meio
do acolhimento, da escuta, da empatia e de atividades interativas que permitem vivenciar
experiências singulares não oportunizadas no tratamento hospitalar (MUSSA; MALERBI,
2012; CAVALCANTE et al., 2016).

Durante o desempenho de suas atividades, nos ambientes de saúde, os palhaços de


hospital estão expostos a riscos biológicos, podendo contaminar pacientes,
acompanhantes e profissionais de saúde. Desse modo, considerando a expressiva
quantidade de grupos de palhaços voluntários, remunerados ou não, que necessitam de
uma metodologia e de um conhecimento sobre a atuação no cenário hospitalar, se faz
necessário a discussão sobre biossegurança.

Frente à necessidade desse conhecimento, é sugerida a adesão a um protocolo que


possa contemplar o trabalho do palhaço de hospital, de modo a democratizar o
conhecimento das normas e rotinas de segurança hospitalar, principalmente em grupos
que não dispõem de profissional de saúde na equipe para fornecer orientações.

O objetivo deste artigo é discutir e reforçar a relevância da biossegurança nas


atividades presenciais dos palhaços de hospital, a fim de evitar e reduzir a transmissão de
microrganismos através das orientações sanitárias, garantindo desta forma a preservação
da saúde e a segurança de todos os envolvidos.

MÉTODOS

Assim como, os profissionais de saúde, os palhaços de hospital atuam em contato


diretamente com os pacientes, sendo expostos a riscos biológicos ao realizarem as visitas
leito a leito. Embora não seja realizado um procedimento invasivo pelos mesmos, mas há
proximidade no diálogo, aperto de mão, contatos com livros, instrumentos musicais,
materiais utilizados nos jogos e brincadeiras.

138
Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos

Tendo em vista atuação dos palhaços foi elaborado um protocolo com base nas
recomendações publicadas pelos órgãos nacionais e internacionais competentes:
Ministério da Saúde (MS) (BRASIL, 2006, 2013, 2020a, 2020b, 2020c, 2020d) e do
Trabalho (BRASIL, 2005), Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) (BRASIL,
2009, 2013), Organização Mundial da Saúde (OMS) (2005), Center for Disease Control and
Prevention (CDC) (CDC, 2007; BOYCE; PITTET, 2002), Organização Pan-Americana de
Saúde (OPAS) (2020), Conselho Federal de Enfermagem (COFEN) (2020a, 2020b) e
Conselho Federal de Farmácia (CFF). (CFF, 2020; SORRISO DE PLANTÃO, 2020). Além
disso, foram agregadas informações sobre as práticas de biossegurança utilizadas pelo
Projeto de Extensão Universitária Sorriso de Plantão (KRATZEL et al., 2020), para ampliar
e adaptar as normas sanitárias e demais riscos existentes no cenário hospitalar frente as
atividades presenciais dos palhaços.

Os resultados foram divididos com base em eixos temáticos: imunização,


higienização das mãos, ventilação, distanciamento físico, número de palhaços nas
atividades, itens pessoais dos palhaços, higiene e apresentação pessoal (cabelos e unhas),
higienização dos brinquedos, equipamentos de proteção individual e vestimentas,
monitoramento da saúde dos palhaços e redução do risco de contágio e capacitação.

Para estruturação desses eixos temáticos foram listadas as situações de risco


relacionadas as atividades de rotina desenvolvidas pelos palhaços de hospital, bem como
as principais orientações para sua prevenção e controle.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

IMUNIZAÇÃO

Os palhaços devem ter cartão de imunização atualizado contra Hepatite B, Dt (Difteria e


Tétano), Tríplice Viral (Sarampo, Caxumba e Rubéola), Varicela (aos integrantes que não
tiveram catapora), Influenza (dose anualmente) e Sars-CoV-2. Outros imunobiológicos
podem ser acrescentados dependendo do risco institucional ou sempre que houver
indicação e liberação de novas vacinas pelo Ministério da Saúde. Recomenda-se a consulta
ao calendário vacinal adulto preconizado pela Sociedade Brasileira de Imunização (SBIm)
(MELO; SILVA, 2019). É recomendado tomar a vacina porque é a melhor maneira de se

139
Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos

proteger de uma variedade de doenças graves e de suas complicações, que podem até
levar à morte.

HIGIENIZAÇÃO DAS MÃOS:

A higienização das mãos é uma importante medida para prevenir a transmissão de


patógenos, conduta bem reforçada como o Sars-CoV-2 na sociedade e nos serviços de
saúde (OPAS, 2020; KRATZEL et al., 2020; PAULA, 2020). As mãos devem ser higienizadas
frequentemente com água e sabonete líquido após tocar em superfícies potencialmente
contaminadas; após tossir ou espirrar; antes e após o contato com o paciente; antes e após
as mudanças de leito e enfermarias e sempre que houver necessidade, conforme a técnica
adequada e o tempo preconizado pela ANVISA (40 a 60 segundos) (BRASIL, 2009).

O álcool em gel a 70% pode ser utilizado quando as mãos não estiverem
visivelmente sujas. Para isso utilizar os dispensadores deste produto instalados na
Instituição de Saúde (BRASIL, 2009). Também é recomendado que cada palhaço leve
consigo uma embalagem individual de álcool em gel no bolso do seu jaleco, faz parte do
seu instrumento de trabalho.

Antes de iniciar qualquer uma dessas técnicas, é necessário retirar joias (anéis,
pulseiras, relógio), pois sob tais objetos podem acumular microrganismos. (BOYCE;
PITTET, 2002; BRASIL, 2009).

VENTILAÇÃO

As portas e janelas devem ser mantidas, sempre que possível, abertas para a
ventilação do ambiente (BRASIL, 2020c). Em caso de presença de ar-condicionado, seguir
as recomendações de uso da instituição de saúde. Ventiladores devem ser evitados, uma
vez que podem aumentar a transmissão do vírus em ambientes fechados (WHO, 2020).

DISTANCIAMENTO FÍSICO

As atividades que precisarem de uma maior proximidade entre pacientes e


palhaços devem ser minimizadas ou adiadas. Manter uma distância mínima segura de 1,0
metro entre profissionais, colaboradores, pacientes e acompanhantes, em todos os
ambientes hospitalares. Assim como é recomendado não tocar na face, olhos, nariz ou

140
Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos

boca. Não sentar no leito do paciente ou no chão. Não cumprimentar as pessoas com
apertos de mãos, abraços ou beijos (BRASIL, 2020c).

Entende-se que é muito difícil porque o palhaço estabelece uma relação afetiva,
estes momentos constroem vínculos e são muito convenientes para extravasar os
sentimentos reprimidos. Espera-se que no período pós-pandemia as atividades de rotina
possam ser continuadas oportunizando esses momentos de contato, como aperto de mão
e abraço, mas sempre respeitando as normas de biossegurança hospitalar.

Ademais, recomenda-se que antes de entrar em contato com o paciente é


importante conversar com o responsável pelo setor, a fim de adquirir conhecimento sobre
as patologias e restrições dos enfermos, para não ultrapassar os limites durante a
interação e o jogo. Os espaços devem ser ocupados de modo a atender o maior número de
pacientes, mas sempre respeitando as precauções de contato e respiratória (MELO;
SILVA, 2019).

NÚMERO DE PALHAÇOS NAS ATIVIDADES:

Todas as equipes de palhaços de hospital devem ser organizadas para realizar as


atividades de forma escalonada e reduzida em datas e horários pré-estabelecidos
pactuados com hospital, mantendo o distanciamento físico e evitando aglomeração
(BRASIL, 2020c). O rodízio da equipe permite a continuidade do trabalho de modo que
todos possam ter a oportunidade de vivenciar e desenvolver suas atividades lúdicas.

Mas percebe que é necessário manter um número reduzido de pessoas circulando


neste cenário porque quanto maior o número de integrantes no mesmo quarto de
hospital, maior o risco de contaminação por patógenos. Este tópico é aplicado aos grupos
com grande quantidade de integrantes, aos projetos que atuam em dupla única no
hospital, estes permanecem suas atividades como de costume.

ITENS PESSOAIS DOS PALHAÇOS

Sugere-se a adesão à campanha “Adorno Zero”, em que não é recomendado a


utilização de anéis, alianças, brincos, colares, broches, correntes, relógios, pulseiras,
piercings, crachás pendurados com cordão (BRASIL, 2005; COFEN, 2020a). Também não
é indicado o compartilhamento de objetos como copos, garrafas, canetas e celulares.

141
Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos

Diante de piercing é recomendado após retirada colocar um curativo no local,


porque esse orifício exposto se torna uma porta de entrada para microrganismos e
infecção. A presença de qualquer escoriação ou machucado no corpo deve ser protegido
também com curativo. Os adereços de Broches e lápis de cabelo não pode ser utilizado
por ser perfuro cortante e pontiagudo, na precaução de acidentes.

Para identificação dos grupos é sugerido nome de palhaço na frente (bolso), a


logomarca do projeto na parte posterior do jaleco (Costas). Deste modo, haverá uma
identificação do grupo de trabalho e também da individualidade do nome de palhaço,
além de atender as normas de biossegurança evita ser confundido com outros grupos que
possam visitar o mesmo espaço. A confecção do crachá é importante para apresentar na
portaria do hospital, mas só poderá ser utilizado dentro do hospital seguindo as normas
do mesmo.

Diante da pandemia, alguns Centro de Controle de Infecção Hospitalar (CCIH) não


têm recomendado a maquiagem, assim como o nariz de palhaço porque a manipulação
desses adereços é considerada um adorno, intensificado como meio de cultura no cenário
hospital. Mas isso não deve ser motivo de impedimento do trabalho, como já fora
mencionado a postura do palhaço faz a diferença e pode ser identificada pelo paciente. O
importante é manter o trabalho se adaptando às normas preconizadas, é um momento
atípico de reinvenção. É sugerido utilizar a máscara cirúrgica e um adesivo aderido na
máscara que simula um nariz vermelho, após atividade descartar máscara com adesivo,
outra alternativa é utilizar o face shield, conforme figura 2.

Destaca-se que é essencial que cada palhaço tenha seus próprios produtos, como
pincéis, pancake, blush, batom, rímel entre outros e o seu uso ser estritamente individual.
Além disso, a maquiagem deve ser mínima para ressaltar os traços característicos do
“palhaço” como ser humano, recomenda-se cores primárias como vermelha, branco e
preto. Demais cores podem remeter a hematomas e causar rejeição e/ou medo do palhaço
(MELO; SILVA, 2019).

HIGIENE E APRESENTAÇÃO PESSOAL (CABELOS E UNHAS)

As unhas devem ser mantidas curtas e sem esmaltes, para garantir a adequada
higienização das mãos (BRASIL, 2009; COFEN, 2020a; WHO, 2020). Os cabelos devem
estar limpos, penteados e presos, podendo ser adotados: rabos de cavalo, faixas,

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Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos

tiaras, tranças, grampos ou coques. Os homens devem realizar a tricotomia facial, pois a
presença da barba pode comprometer a adesão da máscara (COFEN, 2020b).

HIGIENIZAÇÃO DOS BRINQUEDOS

Higienizar, com álcool líquido a 70% e papel toalha, os brinquedos após o uso por
cada paciente, bem como outros instrumentais utilizados nas atividades. Todos esses
itens devem ser organizados para o próximo plantão, armazenados em caixas de plástico/
armários devidamente identificados. Os produtos das brinquedotecas são de
responsabilidade do hospital, já os privativos dos palhaços, os mesmos higienizam. Em
relação aos livros utilizados na contação de histórias, estes devem ser encapados com
papel contact transparente e após a realização das atividades devem ser higienizados com
álcool 70% (MELO; SILVA, 2019).

Diante do risco de infecções por via respiratória, mais intensificado no momento


atual, vale ressaltar a importância da não utilização de ursos de pelúcia e demais
brinquedos feitos com costura, devido a presença de ácaros e acúmulo de sujidades, o que
dificulta a higienização. É preciso também uma maior atenção na oferta dos brinquedos
adequados à faixa etária, bem como evitar os minimalistas pelos riscos de engasgo e
broncoaspiração pela introdução das peças por via oral, nasal ou auditiva.

Sugere-se preconizar a higienização contínua e na maioria dos casos, por não


dispor de um local específico para este ato, não utilizar tais instrumentos de trabalho. O
uso de tais recursos não é indicado pelo risco de infecção cruzada. Ademais, orienta-se
não utilizar bolas de assoprar ou bexiga, pelo risco de asfixia e edema de glote aos
pacientes que apresentam alergia ao látex. Como também o uso das bolinhas de sabão,
que não devem ser compartilhadas por palhaços e crianças. Orienta-se doar de forma
individualizada pelo risco de contaminação com as gotículas de saliva ao soprar as
bolinhas.

EQUIPAMENTOS DE PROTEÇÃO INDIVIDUAL E VESTIMENTAS

Para a manutenção da saúde dos palhaços, pacientes, acompanhantes e


profissionais é necessário o uso das precauções (padrão, de contato, para aerossóis ou
para gotículas) adequadas aos riscos presentes no setor onde será realizada a atividade,

143
Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos

para a prevenção e controle de transmissão (MELO; SILVA, 2019; BRASIL, 2020a). É


sugerido que os palhaços de hospital utilizem:

a. Calçado fechado (BRASIL, 2005), confortável, que proteja os dedos, o dorso do pé e o


calcanhar. Podem ser pintados, mas de fácil higienização. Não é permitido o uso de
chinelos, sandálias no modelo “Havaiana”, pantufas ou qualquer outro calçado aberto ou
com salto.

b. Calça até o tornozelo e que não apresente furos ou rasgos, havendo este tipo de
vestimenta é orientado uso de meia calça longa ou forro na roupa (Figura 1).

Figura 1 – Fotografia de palhaços de hospital utilizando meias coloridas.

c. Jaleco, de manga longa, cobrindo os braços e o tronco, deve ser usado fechado porque
representa uma dupla proteção para paciente e o palhaço. É estimulado o uso na cor
branca, preconizado no cenário hospitalar, porque visualiza com facilidade a sujidade.
Sugere-se que tenha o logotipo do projeto para identificação do grupo e o nome do
palhaço geralmente no bolso. O corpo do jaleco pode ser pintado ou customizado de modo
que possa ser lavado. Uma outra sugestão é o uso de enfeites com velcro que podem ser
aderidos e depois retirados para higienização separadamente. Por proteger o palhaço e o
paciente, deve ser utilizado apenas no hospital, não é recomendado o uso em outros
cenários. A restrição de adereços nos bolsos e na confecção do jaleco é devido ao risco de
infecção cruzada, pois são materiais vindos de fora do hospital que podem transportar
fungos, bactérias, ácaros e vírus. Desse modo, estes podem ser contaminados e disseminar
nas residências dos palhaços. É importante ressaltar que o jaleco deve ser guardado e

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Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos

transportado em saco limpo que pode ser confeccionado de TNT ou outro tipo de tecido,
desde que não aja contato com objetos pessoais.

d. Gorro. Deve cobrir totalmente o cabelo e as orelhas (COFEN, 2020b). Não é sugerido o
uso de perucas, é um adorno que acumula sujidade, se for utilizado que seja higienizado
após cada plantão.

e. Máscara cirúrgica. Diante da pandemia é obrigatório o uso de máscaras durante todo o


tempo de permanência na Instituição de Saúde. A máscara deve cobrir adequadamente a
boca, o nariz e o queixo, devendo ser ajustada para minimizar os espaços existentes entre
a face do indivíduo e a máscara. Devem ser substituídas em um período máximo de 4
horas ou antes quando estiverem úmidas, sujas ou danificadas. Por isso, é importante ter
uma máscara reserva (BARBOSA; GRAZIANO, 2006; BRASIL, 2020a; CFF, 2020). Sugere-
se a utilização de um adesivo no formato circular, representando o nariz vermelho sobre
a máscara. As máscaras cirúrgicas são descartáveis, portanto, não as reutilizar ou realizar
a limpeza da máscara cirúrgica com nenhum tipo de produto, pois quando úmidas,
perdem a sua capacidade de filtração. Quando em uso, não tocar na parte frontal da
máscara. Para retirá-las utilizar os elásticos e higienizar as mãos antes e depois (BRASIL,
2020a). O descarte se realizado na instituição de saúde, deve ser realizado em lixeiras com
saco de lixo branco (lixo infectante/ biológico). No domicílio, colocar a máscara em dois
sacos de lixo comum e descartar de preferência no lixo do banheiro, que não é reciclável
(CRFMG, 2020).

f. Máscara N95 ou PFF2 (peça semifacial filtrante). Utilizá-las em caso de patologias


transmitidas por aerossóis: tuberculose, varicela, sarampo, herpes zoster, síndrome
respiratória aguda grave. A duração e o armazenamento deste EPI devem seguir as
recomendações do fabricante/ instituição e nunca deve ser compartilhada com outras
pessoas (BRASIL, 2006, 2020c).

g. Luvas de procedimento não estéreis. As luvas devem ser removidas, utilizando a técnica
correta e descartadas como resíduo infectante. Não tocar de forma desnecessária
superfícies e materiais (Exemplo: celulares, maçanetas, canetas, portas) quando estiver
com luvas. O uso das luvas não substitui a higienização das mãos (COFEN, 2020b).

h. Protetor facial (face shields). Como forma de adaptação e interação lúdica, o Laboratório
de Experimentos em Designer (LED) da Universidade Federal de Alagoas (UFAL)
desenvolveu um adereço, denominado “Feliz Shield”, que é fixado a face shield com fita

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Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos

dupla face. São diversos modelos que simulam a aparência de personagens de desenhos
animados. Eles podem ser impressos em folhas A4, recortados e revestidos com papel
adesivo transparente, assim podem ser higienizados com álcool 70%. Pode ser utilizado
pelos palhaços e também por profissionais de saúde, no período da pandemia COVID- 19
deve ser acompanhado pela máscara cirúrgica (Figura 2).

Figura 2 – Fotografia demonstrando a utilização do “Feliz Shield” por profissionais de saúde.

i. Avental de TNT, é uma opção descartável que pode ser utilizada por cima da roupa e
jaleco do palhaço. Em uma experiência do Projeto Sorriso de Plantão no período da
Pandemia do novo coronavírus, modelos foram confeccionados com estampas coloridas
e/ou personagens infantis como forma de interação com as crianças e caracterização dos
palhaços diferenciando-os dos profissionais de saúde (Figura 3).

Figura 3 – Fotografia demonstrando os palhaços de hospital utilizando os aventais em TNT com estampas
coloridas.

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Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos

As recomendações também se estendem aos óculos de grau, uma vez que as


doenças podem ser transmitidas pelos olhos, portanto é fundamental manter as lentes
higienizadas. Ressalta-se ainda que, a troca de roupas deve ser realizada em locais
apropriados, destinados para este fim e que os palhaços não devem deixar o hospital com
os equipamentos de proteção individual e as vestimentas utilizadas em suas atividades
(BRASIL, 2005). Seguir a ordem preconizada para a colocação e retirada dos EPIs (COFEN,
2020b).

MONITORAMENTO DA SAÚDE DOS PALHAÇOS E REDUÇÃO DO RISCO DE CONTÁGIO

Os palhaços que tiverem contato com pessoas suspeitas e/ou diagnosticadas com
doenças infecto contagiosas ou apresentarem qualquer sinal ou sintoma como: dor de
garganta, febre, tosse, dificuldade para respirar, diarreia, cefaleia, cansaço ou fadiga,
perda do olfato e do paladar, não deverão comparecer as atividades, devendo manter o
isolamento domiciliar e procurar assistência médica. Este procedimento evita a
transmissão do vírus para os pacientes, acompanhantes, visitantes e profissionais da
instituição (BRASIL, 2020a, 2020d).

CAPACITAÇÃO

As capacitações devem ocorrer sempre para atualização do conhecimento


científico, bem como a identificação de novos riscos biológicos aos quais o palhaço poderá
estar exposto no cenário hospitalar, uma vez que novos patógenos são descobertos e estão
sendo divulgadas periodicamente. O treinamento quanto às normas de biossegurança é
ofertado após seleção da equipe, junto a temáticas de: Apresentação dos objetivos e
normas do projeto, Formação do Clown, Contação de histórias, Ludoterapia Musical,
Brincadeiras de acordo com a faixa etária, Tanatologia, Direito a Saúde e uso de imagem.
Há demanda continuada e permanente de formação após este primeiro momento, através
de reuniões mensais com grupo geral e coordenação do projeto (MELO; SILVA, 2019).

CONCLUSÃO

O palhaço subverte o local e a lógica do contexto, mas não as regras. Há uma


interação pela sua irreverência que promove um novo olhar e consegue ser identificado

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Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos

entre os demais profissionais pelas suas condutas. Perante a doença vislumbra


perspectivas positivas pela sua potência de conexão com o outro. Para o desenvolvimento
das atividades lúdicas é primordial manter a segurança de todos os envolvidos seguindo
os protocolos nacionais e internacionais.

É importante salientar que, este material é um protocolo orientativo, desse modo


de acordo com as diferentes vivências caberá ao grupo de palhaços e/ou a própria
instituição hospitalar a adoção ou complementação de outras estratégias de prevenção e
controle de infecção. O cenário hospitalar, exige a adoção de medidas, de procedimentos
e de reorganização de unidades e serviços, bem como a participação e o esforço de
profissionais, pacientes, visitantes, acompanhantes e gestores.

O não cumprimento das normas de biossegurança pelo palhaço traz prejuízos


individuais e coletivos, compromete principalmente outros trabalhos semelhantes que
atuam de forma segura. Pode ocasionar enfraquecimento da figura do palhaço como
recurso terapêutico complementar ao tratamento convencional. É imprescindível o
exercício da atividade com ética, moral e comprometimento, no sentido somatório ao
trabalho inter e transdisciplinar dos profissionais de saúde.

O cenário hospitalar é complexo em sua estrutura e organização para atendimento


do paciente em momento de fragilidade, exige muita atenção e cuidado em saúde. Diante
do que foi exposto, é fundamental reforçar que esse tipo de trabalho, por mais interativo,
engraçado e colorido que seja não é brincadeira. Deve ser executado com ponderação e
respeito as normas e rotinas, porque ser palhaço é um constante exercício de
sensibilidade, consciência, compromisso e seriedade.

AGRADECIMENTOS

Bolsa de Financiamento a Pesquisa da Coordenação de Aperfeiçoamento de


Pessoal de Nível Superior (CAPES).

CONTRIBUIÇÃO DE CADA AUTOR

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Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos

Os autores M.R.S., G.M.R.F.S, M.C.C.M e S.C. participaram da concepção,


planejamento e redação do manuscrito. Todos os autores aprovaram a versão final
encaminhada.

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Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos

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152
Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos

Capítulo 11
DE DOTÔ, PALHAÇO E LOUCO TODO
MUNDO TEM UM POUCO:
A PRÁTICA DA SAÚDE E O TERRITÓRIO
DO BRINCAR

153
Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos

DE DOTÔ, PALHAÇO E LOUCO TODO MUNDO TEM UM POUCO:


A PRÁTICA DA SAÚDE E O TERRITÓRIO DO BRINCAR

Rebeca Torquato de Almeida


Silvana Solange Rossi
Marcus Matraca
Marcio Luiz Braga Corrêa de Mello

PARA COMEÇAR A PROSA

Esse capítulo se trata de uma síntese do Projeto Técnico Científico Aplicado


apresentado em setembro de 2020 para a conclusão do Curso de Especialização em Saúde
Coletiva pela Escola de Governo Fiocruz Brasília. Esse trabalho teve por objetivo principal
de explorar as possíveis contribuições do campo artístico da Palhaçaria para o
aperfeiçoamento do papel social de trabalhador da saúde.

Como Palhaça, aprendi o valor e a beleza da exposição e da inteireza do ser, não só


no espaço artístico, mas na vida como um todo, inclusive nos espaços de estudo e
formação. Tendo isso em mente, adotei a auto narrativa como forma de escrita desse
texto, partindo de uma compreensão de ciência ancorada no paradigma da complexidade
em que, na produção de conhecimento, o objeto de pesquisa e o sujeito estão mesclados.

Peço licença para começar a prosa a partir da minha caminhada uma vez que é de
lá que nascem as inquietações que mobilizam essa escrita. Durante quase toda a
graduação de psicologia nenhuma abordagem tinha feito muito sentido, tudo me parecia
muito sério, meu jeito meio dado a brincadeira me dava sempre a sensação de
inadequação. Até que no último semestre me deparei com o Psicodrama e foi amor à
primeira vista. O Psicodrama é o encontro da arte do teatro com o espaço de cuidado
subjetivo, a espontaneidade e a criatividade são afirmadas como parâmetros de saúde.
Segui com meus estudos na Associação Brasiliense de Psicodrama de Brasília até que um
dia uma colega de turma me arrastou para uma Oficina de Palhaçaria, onde tive a vida
virada de cabeça para baixo, ou para cima a depender do referencial.

154
Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos

Entrar em contato com essa linguagem foi uma grata surpresa da vida. Como quem
tropeça no meio do caminho e por um acaso avista outro, me vi encantada por essa outra
estrada, irremediavelmente apaixonada por essa linguagem que me dava tanta liberdade
para ser eu mesma. Mergulhei de cabeça. Fiz outras oficinas. Passei a ir semanalmente ao
hospital de Palhaça. Assisti inúmeros espetáculos ao vivo e gravados. Me arrisquei a
montar um número. Viajei com o carro cheio de palhaças e palhaços, acredite, é uma
aventura. Partilhei refeições, observei, conversei, dancei, ri, admirei e amei palhaços e
palhaças.

Figura 1- 6º Festival de circo de Taquaruçu. Fonte: Acervo pessoal.

Sinto que fui seguindo duas estradas paralelamente: a de Psicóloga e a de Palhaça.


É impressionante como elas se retroalimentaram: o olhar e a escuta atenta da clínica
foram essenciais para a prática da Palhaçaria no hospital que requer uma enorme
delicadeza e sensibilidade em perceber o outro: fazer uma leitura adequada de cada
criança e de que brincadeiras cabem dentro daquele contexto.

A leveza e o olhar da Palhaça foram me moldando enquanto profissional, me


permitindo encontrar espaços de existência mais autênticos e espontâneos, para além de
uma conserva cultural daquilo que se espera de uma psicóloga e de uma profissional de
saúde. O Psicodrama enquanto uma teoria que valoriza a espontaneidade e a criatividade
também foi essencial para essa construção profissional. O riso, que fazia tanta parte do
meu cotidiano, passou a integrar a clínica de uma forma muito natural. Até o momento,
parece ser uma “boa mistura”, é o que dizem meus pacientes.

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Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos

Trago nesse texto uma tentativa de aproximação entre esses universos que me
transpassaram, de psicóloga, de mulher palhaça, de sanitarista e de psicodramatista. As
trilhas de caminho que segui na vida me permitem transitar no universo artístico da
Palhaçaria, mas também no universo da Saúde. Sendo assim, convido você leitor que já
transita no universo da Saúde a caminhar comigo nesse universo encantador do Palhaço
e da Palhaça.

E O PALHAÇO O QUE É?

Quero seguir essa trilha com uma música popular da Carroça de Mamulengo
“Canções de Palhaço”, esperando que ela comece a tocar na sua cabeça assim como toca
na minha.

Tombei, tombei, tornei tomba


"A brincadeira já vai começar"
O raio, o Sol suspende a Lua
"Olha o palhaço no meio da rua"
(...)
Hoje teve espetáculo?
"Teve, sim senhor!"
Hoje teve marmelada?
"Teve, sim senhor!"
Hoje teve farofada?
"Teve, sim senhor!"
E o palhaço o que é?
"É ladrão de mulher!"

É bem provável que você já tenha ido ao circo quando criança e ainda se lembre
daquela experiência do cheiro da pipoca, da lona colorida e abafada e da arquibancada em
tábua de madeira. O mestre de pista anuncia cada número com o maior entusiasmo, dando
ênfase na habilidade do circense que entrará em cena como algo que nunca foi visto antes.
Debaixo daquela lona colorida acontecem coisas de fato incríveis: pessoas voam,
acontecem mágicas, malabarismos e equilibrismos. Admiramos, torcemos, ficamos tensos
e aplaudimos efusivamente quando o circense triunfa com a sua peripécia. Porém
tamanha destreza causa algum distanciamento, o espectador comum consegue admirar,
mas não se identificar. Aquele conjunto de habilidades está muito longe do seu cotidiano
e da sua capacidade corporal.

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Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos

Em meio a todas essas figuras quase super-humanas, surge o palhaço. Diante dos
corpos que voam e pousam com esplendor e elegância, o palhaço é a figura que tropeça e
cai, que fracassa. O público rompe em risadas, é um alívio ver uma figura em que é possível
se identificar, que faz coisas que eu e você sabemos fazer, como tropeçar e cair por
exemplo. Apesar do tropeço ser algo comum em nossas vidas, jamais, em hipótese alguma
estamos autorizados a admitir que tropeçamos, portanto ver o palhaço tropeçar é uma
forma de se identificar, porém se livrando de um peso “Que bom que é ele e não sou eu.”

Dentro do circo moderno europeu do século XVIII o palhaço surge com essa função
de parodiar as grandes habilidades trazendo a comicidade para aquele contexto, sendo
seu assunto principal o próprio circo. Essa característica metalinguística ainda que não
exclusivamente, se mantém até hoje. Nesse contexto histórico, duas figuras clownescas
distintas e complementares se firmaram: o Branco e o Augusto. Nessa dupla um
representa a ordem e é responsável por ditar as normas, e o outro, uma figura marginal
que não se encaixa no progresso, com seu desajuste subverte as ordens às vezes sem nem
perceber. Essas máscaras cômicas fizeram uma clara representação das questões sociais
europeias advindas da revolução industrial como a miséria e a gritante desigualdade
social, carregando consigo a função de denúncia social e de identificação com as classes
populares através do riso (BOLOGNESI, 2003). Esse modelo de comicidade tem forte
influência até os dias de hoje, muito provavelmente por ainda representar as estruturas
sociais de dominação, opressão e desigualdade sociais que continuam se repetindo no
tempo presente e apresentar caminhos de subversão e de sobrevivência.

Alice Viveiros de Castro (2005) em seu livro “O elogio à bobagem” traz uma
narrativa do palhaço para além da figura do circo, mas a de um arquétipo que esteve
presente na história muito antes da criação do circo moderno no século XVIII. Um exemplo
clássico são os bobos da corte que ocupavam lugar especial dentro das cortes, tinham por
função o entretenimento, mas também tinham a liberdade de falar o que todos queriam
falar, mas não podiam. Segundo Burnier (2009) “não eram atores que desempenhavam
seu papel no palco; ao contrário, continuavam sendo bufões e bobos em todas as
circunstâncias da vida. Encarnavam uma forma especial de vida, simultaneamente real e
irreal, fronteiriça entre a arte e a vida”.

Essa forma de vida também foi encontrada nos povos originários que já
aguardavam consigo a sabedoria da importância do riso e da brincadeira. No Brasil, o

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Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos

povo indígena Krahô vive ao norte do Tocantins, e é conhecido por ser um povo que ri
muito. O Hotxuá, é um palhaço sagrado, e é profundamente respeitado pela sua
comunidade. Ele vive no meio da aldeia levando o riso e a brincadeira para o cotidiano,
usando a força do humor e do riso para fortalecer a autoestima do povoado, garantindo a
sua cultura milenar e afastando o espírito de depressão da tribo. Independente da forma,
das roupas, da tipicidade física, todas essas figuras carregam consigo a mesma função de
questionamento da ordem e de fazer rir.

Sua função social é fazer rir e dar prazer. Ele não descobre as leis que
regem o universo, mas nos faz viver com mais felicidade. E esta é sua
incomparável função na sociedade. Enquanto milhões se dedicam às
nobres tarefas de matar, se apossar de territórios vizinhos e acumular
riquezas, o palhaço empenha-se em provocar o riso de seus semelhantes.
Ele não se dedica às grandes questões do espírito nem às “altas
prosopopeias” filosóficas; gasta seu tempo e o nosso com.... bobagens. O
palhaço é o sacerdote da besteira, das inutilidades, da bobeira... Tudo o
que não tem importância lhe interessa. (CASTRO, 2005)

Figura 2 – Palhaço Trevolino no Hospital Materno Infantil de Brasília (HMIB)


Fonte: Acervo pessoal.

O RISO

Que função social é essa? Fazer rir? Quando olhamos para profissionais de saúde
conseguimos pensar claramente na sua nobre função de curar, recuperar, prevenir e
promover saúde, e rapidamente isso é associado a um valor social. É claro que curar quem
está doente é valoroso, mas e fazer rir? Qual a função disso?

O riso em si é algo curioso. Do que exatamente rimos? Bergson afirma que “não
existe cômico fora do que é propriamente humano” (BERGSON, 1993). Só é possível rir de

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Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos

uma paisagem, de um objeto ou de um animal se nos remetem a algo humano. Um


espanador não carrega em si comicidade, porém se pregarmos olhinhos de plástico nele
já é possível imaginar algo engraçado. Rimos porque nos identificamos.

Além de fisiologicamente o riso ser prazeroso e benéfico, ele sempre nos lembra
da nossa humanidade, como se nos trouxesse de volta ao corpo. “No riso e no choro, o
controle habitual do homem sobre os usos do seu corpo é perdido. Ele ‘cai’ no riso ou no
choro” (BERGER, 2017). Essa espécie de colapso que sofremos nos desloca da nossa
racionalidade nos fazendo experimentar algo visceral e arcaico, nos conectamos com
nossa essência humana.

“A principal função do riso é nos recolocar diante da nossa mais pura


essência: somos animais. Nem deuses nem semideuses, meras bestas
tontas que comem, bebem, amam e lutam desesperadamente para
sobreviver. A consciência disso é que nos faz únicos, humanos”. (CASTRO,
2005).

O riso é capaz de derrubar barreiras sociais mesmo que por um breve momento.
Imagine uma plateia que tenha ricos e pobres. É possível que a princípio existam olhares
de estranhamento entre as pessoas, porém quando a risada se instala todos são
relembrados da sua humanidade e nesse momento as camadas construídas socialmente
perdem o sentido. A pessoa ao lado se torna cúmplice de um processo de identificação de
algo que as duas já vivenciaram, independente de qual classe social pertençam.

Uma pesquisa feita pelo Dr. Palhaço Matraca sobre a sua intervenção artística com
população em situação de rua, com o objetivo de investigar o potencial dialógico da arte
da Palhaçaria e do riso para a promoção da saúde, afirma:

“Em nossa publicação sobre essas experiências relatamos que o riso é


libertador, subverte e burla a ordem das coisas, para que o espectador
adorne-se com a arte de rir da sua própria condição, transmutando assim
sua realidade” (MATRACA, 2011).

Essa afirmação sobre a potência transformadora do riso encontra ressonância na


definição da atriz e palhaça Carla Koncá sobre a função do palhaço e da palhaça:

Quando você ri de uma palhaça ou de um palhaço, você está se aceitando


como você é, o riso é um espelhamento. E é essa a nossa função social.
Você se coloca em jogo, o seu ridículo, a sua dor, para outra pessoa se
identificar, e quando ela ri acontece uma cura. (BORGES; CORDEIRO,
2017)

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Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos

Gosto de pensar que os ditados populares carregam consigo uma sabedoria de


vida. Sempre ouvi que “rir é o melhor remédio”, o que me faz pensar que intuitivamente
todos nós sabemos que o riso carrega um potencial de cura, mesmo sem saber direito o
como e o porquê.

O bom humor e a capacidade do riso estão associados à inteligência, à


criatividade e a uma maior produtividade. O riso é libertador. O bem-
humorado é muito mais livre, porque, como tem um repertório aberto,
está sempre encontrando saídas para as pressões do cotidiano. [...] No
final das contas, uma coisa é certa: rir promove saúde (MATRACA, 2011).

Apesar de saber disso, por algum motivo compreendemos que a saúde é assunto
sério demais para que o caiba o riso. Talvez exista uma confusão entre seriedade e sisudez,
porque afinal de contas, o riso é coisa séria.

A SAÚDE

Quando pensamos sobre o objeto saúde é inevitável trazer para a discussão a


dimensão da doença, que ao longo da história vem sendo tratada pela medicina e as
chamadas ciências da saúde como o objeto central da clínica (Buss, 2009). Essa
centralidade na doença e no corpo biológico é o que chamamos de modelo biomédico de
saúde que vem sendo fortemente questionado e contestado dento do campo saúde por se
mostrar insuficiente para dar conta da complexidade da vida e dos processos de saúde-
doença-cuidado.

Ao circunscrever saúde à ausência de doença, concebida a partir da


normalidade de parâmetros quantitativos, desconsidera-se uma
dimensão mais ampla que é a de saúde como potência para lidar com a
existência (Czeresnia et al 2013).

Apesar desse modelo biomédico ser constantemente contestado, essas marcas


ainda são encontradas nos espaços de formação e na prática da saúde. Uma ampliação
desse conceito é o deslocamento do foco da doença para o foco da saúde e uma
compreensão biopsicossocial do sujeito que adoece, sendo os fatores psicológicos e
sociais tão importantes quanto a biologia do corpo físico, numa visão integral de ser
humano. A ampliação da concepção de sujeito e do conceito de saúde começa a abrir

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Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos

espaço legítimo e transdisciplinar na saúde para as diversas facetas das vivências


humanas, como o riso por exemplo.

Uma ampliação do conceito de saúde também foi emplacada pelo campo da Saúde
Coletiva que surge como uma área de conhecimento que pretende compreender a saúde
e a doença como um processo que se relaciona com a estrutura da sociedade, o homem
como ser social e histórico, assumindo os determinantes sociais e o exercício das ações de
saúde como uma prática social. (PAIM, 1982). Sendo assim, a saúde passa a ser
compreendida como um campo complexo e outras disciplinas ganham espaço nessa
construção de saberes e práticas da saúde. Apesar de não ser usual, compreendo que a
arte e, mais especificamente a arte da Palhaçaria, também tem muito a contribuir para
esse campo por lidar de forma muito profunda com o humano, sendo um potencial de
promoção de saúde.

Desenho esquemático dos determinantes sociais: modelo de Dahlgren e Whitehead.

Fonte: BUSS E PELLEGRINI FILHO, 2007.

A Educação Popular em Saúde corrobora essa concepção valorizando o saber


popular e o aproximando do campo da Saúde. Enquanto política pública, a Política
Nacional de Educação Popular em Saúde (PNEPS-SUS) foi instituída com o intuito de
contribuir para que os princípios do SUS da universalidade, equidade, integralidade e
participação social ganhem sentido na vida cotidiana de milhões de brasileiros e
brasileiras (BRASIL, 2007) e reafirma os fazeres artísticos enquanto possibilidades de
promoção de saúde a partir de uma perspectiva de produção de sentidos e sentimentos

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Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos

“A Educação Popular em Saúde referencia a arte como processo no qual


as pessoas, grupos e classes populares expressam e simbolizam sua
representação, recriação e reelaboração da realidade, inserindo-as em
uma prática social libertadora, cujas expressões não se separam da vida
cotidiana. Portanto, considera que trabalhar com a arte é a possibilidade
de se vivenciar o fazer, onde o processo criativo que se instaura agrega
outras dimensões, que não só a racional, trazendo também a estética
popular capaz de produzir sentidos e sentimentos” (BRASIL,2012).

A Educação Popular traz para campo saúde aspectos da vivência humana que
escapam da compreensão racional e que são também constitutivos e determinantes da
saúde da população. A arte é capaz de alcançar esses sentidos e ser uma possibilidade de
reelaboração da realidade, sendo uma importante ferramenta na produção de saúde.

A MENOR MÁSCARA DO MUNDO

Faço agora um convite a você leitor para fazer uma incursão para trás do nariz
vermelho, para compreender algumas estruturas e princípios que dão sustentação ao uso
dessa máscara e que podem contribuir com reflexão do papel social de trabalhador da
saúde. Seria impossível esgotar esse assunto porque, por incrível que pareça, atrás do
nariz vermelho tem um mundo de complexidades. Faço aqui um recorte dos princípios
que me foram úteis na vida e no exercício da minha profissão. É uma síntese das minhas
experiências em oficinas, leituras e prática como Palhaça no ambiente hospitalar e da
minha compreensão de como esses saberes podem ser úteis para nós profissionais da
saúde.

Figura 3 – Palhaça Dikeka e Palhaça Kuia no Hospital Materno Infantil de Brasília (HMIB)
Fonte: Acervo pessoal.

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Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos

O FRACASSO

“Se você não pode ter sucesso todas as vezes, prepara-


se para falhar magnificamente” (Avner Eisenberg)

Se só me fosse permitido falar de apenas um princípio, escolheria esse sem sombra


de dúvida. Como já foi dito anteriormente, o palhaço é uma figura que erra e permite que
o outro veja o erro e ria junto com ele, se permitindo, assim, ao ridículo. Vivemos no
mundo que nos exige sucesso, seja lá o que signifique isso. Se erramos, automaticamente
tentamos consertar ou esconder para que ninguém veja nossa falha. Se alguma parte do
nosso corpo não está de acordo com o ideal, tentamos modificar ou atenuar essas marcas.
Miramos no sucesso e na perfeição, esquecendo que a imperfeição e a falha são inerentes
ao ser humano. Como diria minha antiga terapeuta “Não é se você vai falhar, é quando”.

O medo do erro e do insucesso é capaz do nos fazer deixar de fruir a vida. Deixamos
de dançar por não “saber dançar direito”, deixamos de ir ao clube por não estar com o
corpo perfeito, fechamos o coração para o amor por erros na última relação, a lista é
interminável e cada pessoa vai ter a sua. A experiência clínica tem me mostrado de forma
muito concreta que esse medo de errar e de fracassar em vários momentos está
intimamente ligado a um medo profundo de não ser aceito e de não ser amado. Essa
afirmação daria uma prosa para um trabalho inteiro, mas deixemos para um outro
momento. Contrariando essa lógica, o palhaço é a figura do fracasso e quanto mais ele é
honesto no seu erro, mais o público se empatiza e ama aquela figura.

Simpatia é quando a plateia olha e diz ―Oh, eu sei, eu entendo como essa
sensação é. E a empatia é a reação mais forte. É quando nós sentimos o
que a pessoa sente. E isso acessa as conexões dos neurônios do nosso
cérebro, provocando uma sensação de bem-estar. (Avner Eisenberg)

Aprender a Palhaçar significa aprender a lidar com a dimensão do fracasso da


vivência humana. Pode parecer estranho, mas aprender a fracassar em paz é talvez uma
das coisas mais libertadoras da vida. Para ilustrar esse conceito trago aqui uma cena não
tão cotidiana da vida.

Imagine uma reunião de equipe, João se levanta de forma meio desastrada e acaba
catando cavaco e caindo no chão, mas sem se machucar. É uma cena absolutamente
inusitada para o cotidiano, todos sentem vontade de rir, porém existe um micro segundo
absolutamente tenso de espera pela reação do colega que caiu. Se João ficar muito sem

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Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos

graça e fechar o semblante, é como se ele não estivesse permitindo as risadas, todos vão
segurar o riso e o clima vai escalonar em vergonha e tensão. Na cabeça de João
provavelmente pairaram vários pensamentos como “nossa, que vergonha, eu caí na frente
dos meus colegas”; “o que será que eles vão pensar de mim?”; “eu sou muito desastrado
mesmo”.

Porém, se pairassem outros pensamentos provavelmente o desfecho seria


diferente. Imagine que João tivesse pensado algo do tipo “Poxa, que meleca heim! Mas está
tudo bem. Faz parte”. E tivesse olhado para os colegas como que compartilhando esse
pensamento e dando uma pequena risada de si mesmo, muito provavelmente os colegas
iriam se dobrar de rir junto com ele. É uma questão de disponibilidade interna para o erro,
para rir de si mesmo e para permitir que o outro ria junto contigo. É também uma
permissão para ver potência no erro. Veja: o segundo desfecho da história de João trouxe
um momento leve de conexão com os colegas, criação de uma memória positiva e um
sentimento de empatia.

Essa sabedoria de aceitar o fracasso é essencial para ser Palhaço ou Palhaça, mas
também é uma sabedoria que pode ser uma benção na vida de qualquer pessoa. É o que
me motiva a escrever todo esse trabalho, contribuir para que a vida fique mais leve. Ter
aprendido a lidar de forma mais acolhedora com meus erros foi a melhor aquisição da
vida com toda certeza, melhor que açaí em dias quentes. Aceitar a condição humana do
erro traz benefícios pessoais e relacionais, é muito mais fácil se imaginar conversando
com uma pessoa comum do que com um super-herói, imagem facilmente associada aos
profissionais de saúde. Schneider e Silva no Caderno de Humanização, levantam questões
que representam alguns elementos coletivos desse papel social de trabalhador da saúde.

O profissional de saúde acaba sendo um cuidador sob constante pressão,


pois seu objeto de trabalho são pessoas atingidas em sua integridade
física, psíquica e social, alguém que expressa sofrimento e mobiliza
sentimentos no profissional que o cuida, o que exige destes resultados
muitas vezes superiores à possibilidade humana de alcançá-los. O
trabalhador da saúde encontra-se constantemente envolvido na
onipotência de cuidar do outro e julga-se sabedor de diferentes técnicas
e teorias de como cuidar, no papel de que tudo pode e tudo provém.
(BRASIL,2010, p. 188).

A pressão para que esse trabalhador da saúde se aproxime da imagem do super-


herói é constante, porém penso ser importante na construção desse papel se aproximar
de uma figura da mitologia grega conhecida como Quíron, o curador ferido, ele era

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Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos

reconhecido por sua inteligência e sua habilidade com a medicina e foi ferido
acidentalmente por uma flecha envenenada lançada por Hércules. Devido à sua
imortalidade, não faleceu, passando a conviver de forma crônica com esse ferimento, e a
partir da sua dor pessoal ele pode compreender empaticamente a dimensão do
sofrimento daqueles que curava. Essa figura da mitologia grega lança luz sobre a
construção do papel de profissional de saúde, para cuidar com empatia é necessário
acessar as próprias dores, reconhecer a condição humana e não super-humana. Aceitar
essa condição facilita a formação de vínculos e o estabelecimento de diálogo que “implica
escuta interessada, humildade para aprender, amorosidade para o encontro, esperança
na mudança de si, do outro e da realidade” (BRASIL, 2012).

O diálogo e o estabelecimento de vínculo entre o trabalhador da saúde e o usuário


são matéria prima para o cuidado. Sem isso, corremos o risco de cair em relações
autoritárias e prescritivas que desconsideram os saberes e afetos dos sujeitos envolvidos:
o trabalhador e o usuário. Entrar em contato com essa sabedoria do palhaço pode
contribuir para a Humanização na Saúde por abrir espaços de reflexão crítica sobre o
desempenho do papel de trabalhador da saúde no sentido de sensibilizar sua própria
humanidade e consequentemente facilitar a percepção da humanidade do outro.
Compreendo que essa abertura possibilita verdadeiros Encontros, que na perspectiva do
Psicodrama é essencial para a os processos de cura individuais e sociais.

“Encontro de dois.
Olho no olho.
Cara a cara.
E quando estiveres perto
eu arrancarei
os seus olhos
e os colocarei no lugar dos meus.
E tu arrancará
os meus olhos
e os colocará no lugar dos teus.
Então eu te olharei com teus olhos
e tu me olharás com os meus”.
JACOB LEVY MORENO (1993)

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Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos

Figura 4 – Palhaça Dikeka na VI Mostra de Diversidade e Cultura Popular do Paranoá.


Fonte: Acervo pessoal.

LUPA NAS EMOÇÕES

A máscara do clown, o nariz, é a menor máscara do


mundo, a que menos esconde e mais revela (BURNIER,
2009, p.218).

Somos desde crianças ensinados a esconder as emoções, respiramos fundo e às


vezes reagimos de forma dissonante daquilo que estamos sentindo, nos desconectando
do nosso universo afetivo. Por vários motivos: regras sociais, necessidade de aceitação,
medo de rejeição, etc. O fato é que o primeiro impulso das emoções é sempre barrado pela
racionalidade e precisa responder a uma série de perguntas para ser liberado. O
treinamento da Palhaçaria vai no sentido oposto, é um treino de ampliar a escuta interna
e diminuir as barreiras para dar vazão a esses primeiros impulsos.

O Palhaço e a Palhaça são seres ingênuos e espontâneos: não tem essa capacidade
de esconderem seus reais sentimentos, eles reagem de forma muito honesta e por vezes
exagerada a tudo o que sentem. Se baterem a cara na parede, vão expressar sua dor com
seu corpo inteiro; se estiverem irritados com seu parceiro(a), rapidamente a discussão
pode virar uma luta de boxe; se sentirem atraídos por alguém que passou pelo corredor,
é possível que eles suspirem de amor e vão atrás da pessoa. O nariz vermelho revela o ser
humano que tem emoções, sentimentos dilatados e que reage a eles por meio do seu
corpo, isso é o que chamamos dar corpo a essas emoções. O clown coloca uma lupa nessas
emoções, por intermédio do seu corpo. (WUO 1999 p.21)

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Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos

Para viver em sociedade, precisamos aprender a fazer manejos das nossas


emoções, o problema é que perdemos a mão nessa dosagem. Trancafiamos mais do que
damos vazão ao que sentimos. Nesse processo vamos nos desconectando do nosso mundo
interno, às vezes nos tornando incapazes de perceber o que estamos sentindo, porém, sem
conseguir impedir que esses sentimentos afetem diretamente nas nossas ações. A Política
Nacional de Humanização ao falar sobre a Clínica Ampliada, aponta para a importância do
vínculo e dos afetos transferidos entre trabalhadores da saúde e usuários. Destaca a
importância de que o trabalhador esteja atento aos fluxos internos de sentimentos e
pensamentos a fim de se compreender melhor e assim compreender melhor o usuário,
podendo oferecer uma ajuda mais efetiva (BRASIL, 2004)

A Política Nacional de Educação Popular em Saúde ao falar sobre o princípio da


amorosidade também destaca a importância da incorporação das trocas emocionais e da
sensibilidade nas relações de cuidado. “Amorosidade é, portanto, uma dimensão
importante na superação de práticas desumanizantes e na criação de novos sentidos e
novas motivações para o trabalho em saúde” (BRASIL, 2012). Entrar em contato com essa
lógica de hiper expressão dos sentimentos pode contribuir para melhorar a capacidade
de escuta interna do trabalhador de saúde e com isso a melhora na qualidade dos vínculos
estabelecidos com os usuários do SUS.

A PRESENÇA, A ESCUTA E O JOGO

O Palhaço funciona na lógica do aqui e agora. Precisa estar absolutamente


presente, não pode se dar ao luxo de engatar em uma série de atividades e estar
desconectado delas. Precisa estar sempre com a escuta atenta por estar “constantemente
se relacionando com algo (um objeto, o espaço etc.) ou com alguém (seu parceiro, o
público)” (Burnier 2009 p.219). É como um diálogo: só é possível se houver escuta, senão
se torna um monólogo.

A escuta tem algumas dimensões, uma delas é a interna, se relaciona com o que foi
dito anteriormente sobre as emoções, é uma atenção direcionada para os acontecimentos
afetivos internos, para os impulsos e para a intuição. Uma outra dimensão é a Escuta
voltada para o outro. Na prática da Palhaçaria hospitalar, a Escuta entre a dupla de
palhaços se faz absolutamente necessária. Quanto mais tempo de atuação a dupla tem,

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Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos

mais a sintonia tende a aumentar e a Escuta vai ficando cada vez mais natural, refinada e
fluida.

Outro ponto importante dentro dessa escuta é estar sempre no “sim”, é a resposta
básica para tudo. Se meu parceiro propõe um jogo, eu não posso ignorar a proposta dele
e propor outra coisa, preciso primeiro aceitar para depois fazer uma contraproposta.
Trago um exemplo que vivenciei para clarear essa ideia. Estava em uma visita com meu
parceiro e ele começou a fazer um zunido com a boca imitando uma mosca e falou “Dikeka,
você está ouvindo isso?”. Nesse momento ele está me chamando para um jogo com uma
mosca imaginária, não faço ideia de onde ele quer chegar com isso, provável que ele
também não. Embarquei na onda dele, disse sim, comecei a procurar com ele de onde
vinha o barulho. “Aqui Trevo, olha o tamanho dessa mosca!”. Ele pega um mata-moscas
que estava carregando e começamos a caça a mosca. Depois de pousar em vários lugares
e voar quando estávamos prestes a acertá-la, ela pousa na cabeça da criança, nos
preparamos para bater na cabeça da criança com o mata mosca, enquanto isso, ela já
estava se dobrando de rir, então pronto! Missão cumprida!

O treino de embarcar na proposta do outro é conhecido no universo da muito útil


para a criação de cenas cômicas, mas também pode ser útil como uma ferramenta para
lidar com a equipe de trabalho. Dizer não para a proposta de um colega é jogar um balde
de água fria com gelo em uma faísca de criatividade. É claro que, às vezes, a faísca pode
não ter a melhor aparência possível, mas é uma potência de criação, pode vir a ser algo
interessante. Quanto mais acolhedor um ambiente é com as ideias, mais os indivíduos se
sentem seguros para desenvolver todo o seu potencial criativo e espontâneo. Essa lógica
de funcionamento entre a dupla de palhaços pode ser muito útil para a qualificação da
escuta e do estabelecimento de vínculo entre os trabalhadores da saúde, criando relações
de trabalho mais saudáveis e amorosas bem como ampliando a capacidade de produção
compartilhada de saúde em se tratando de equipes multiprofissionais.

Além dessa Escuta direcionada à parceria de trabalho, existe também uma Escuta
direcionada ao público. O artista de rua Chacovatti em seu livro Manual e Guia do Palhaço
de Rua descreve a apresentação de um palhaço da seguinte forma:

Fazer uma apresentação de palhaço é como jogar xadrez.


Todos nós sabemos como se joga. Joga-se com e contra o público: move
você, move o público; conforme move o público, move você. Por isso, com
o mesmo material, nunca sairão duas apresentações iguais.

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Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos

(CHACOVATTI, 2016)

Diferentemente de um espetáculo teatral em que a interferência da plateia, via de


regra, não afeta os atores, o palhaço se relaciona diretamente com público, seja ele de 200
pessoas ou de uma pessoa. Dentro do nosso universo usamos muito a palavra jogo para
descrever a nossa ação. Temos algum script, mas nunca totalmente fechado, o outro é
levado em conta na construção da apresentação que, no final das contas, se trata de uma
interação.

Paulo Freire (1982), explanou sobre os princípios que considerava fundamentais


aos Educadores Populares, entre eles está o saber ouvir. Ele parte de uma simples
constatação que não estamos sós no mundo, estamos com outros seres, sendo necessária
a capacidade de escutar.

A primeira implicação profunda e rigorosa que surge quando eu encaro


que não estou só, é exatamente o direito e o dever que eu tenho de
respeitar em ti o direito de você também ‘dizer a sua palavra’. Isso
significa dizer, então, que eu preciso, também, saber ouvir
(BRASIL,2007).

A produção de saúde passa necessariamente por processos de educação e sempre


existe o risco de repetir padrões prescritivos autoritários, mesmo que com as melhores
das intenções. Sustentar a Educação Popular enquanto proposta metodológica na
produção de saúde passa por uma disponibilidade interna de escuta do outro, sendo a
lógica de funcionamento do palhaço muito útil para sustentar o olhar de autonomia e de
coprodução de saúde com usuário.

Um outro elemento fundamental para que ocorra a escuta é o estado de presença.


Os acontecimentos do tempo presente também são elementos essenciais para a
apresentação de um palhaço, um avião que passa não é um atrapalho, é material de
trabalho, é incorporado na cena. Isso só é possível se o ator estiver em um bom estado de
presença para conseguir perceber, sentir e incorporar todos esses estímulos. Todo
treinamento de palhaço envolve algum ritual de ampliação desse estado de presença, de
sensibilização do corpo e da mente no aqui e agora.

É comum nos vermos desconectados do momento presente, ansiosos com o futuro


ou pensativos com o passado. Moreno (1974) defende que a única forma de existência do
passado e do futuro é no aqui (este lugar) e no agora (este momento), sendo o “aqui-

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Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos

agora” o lugar possível para a expressão da espontaneidade e criatividade. Entrar em


contato com o mundo da Palhaçaria é também se conectar com seu corpo e com o “aqui-
agora”, podendo ser desafiador para nós que vivemos imersos em uma cultura que nos
pede pressa, nos impedindo de viver o tempo presente com calma.

PARA FINALIZAR A PROSA

O contato com a arte da Palhaçaria foi profundamente transformador, todos os


princípios que descrevi reverberam dentro de mim e até hoje trazem luz para os desafios
do cotidiano. O desejo de costurar vivências e saberes dos caminhos trilhados até o
momento vem de uma vontade genuína de compartilhar essa sabedoria que tem me sido
tão útil. O exercício de sintetizar e de costurar foi desafiador por se tratar de vivências
subjetivas que por vezes escapam das palavras.

Tradicionalmente a aproximação entre a Palhaçaria e a Saúde se deu pela atuação


de palhaços dentro de hospitais, essa prática tem se mostrado ao longo do tempo como
uma potente ferramenta de promoção e de recuperação da saúde com o público assistido,
além de trazer mais leveza ao ambiente hospitalar (CAPATAN et al, 2019). Porém os
hospitais representam uma parcela muito pequena dentro das várias possibilidades de
atuação na Saúde. Nosso Sistema Único de Saúde teve suas bases de construção na saúde
coletiva, que preza pela concepção da promoção da saúde na sua forma mais ampliada,
retirando o foco da doença para o processo de saúde-doença-cuidado a partir de um olhar
integral do ser humano, considerando seus aspectos biológicos, psicológicos e sociais.
Sendo assim promover saúde é um caminho de infinitas possibilidades sendo a lógica
biomédica e hospitalocêntrica insuficiente diante da complexidade da vida.

Ao considerar a complexidade da saúde faz-se necessário a abertura para a


intersetorialidade com outros campos, dentre deles a arte. Penso que a arte da Palhaçaria
ainda tem muito a contribuir com o campo da Saúde para além das intervenções
hospitalares. Nesse trabalho os princípios da Palhaçaria apresentados se mostram como
potenciais dispositivos de aprimoramento da prática dos trabalhadores da saúde no
caminho de uma produção de saúde humanizada, amorosa e democrática podendo vir a
ser incorporados nos processos formativos e de educação continuada.

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Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos

A curiosidade e o desejo de continuar essa costura me levou a entrar no mestrado


em 2021 no Programa de Ensino em Biociências em Saúde (PGEBS) no Instituto Oswaldo
Cruz (IOC) na linha de pesquisa de Ciência e Arte. Uma grata surpresa dessa estrada tem
sido fazer parte do Núcleo de Estudos de Arte Cultura e Saúde (NEACS) onde tenho
encontrado pessoas que estão em buscas muito parecidas, sendo assim tem sido possível
partilhar inquietações, dúvidas, certezas e incertezas. Ainda não sei aonde esse caminho
vai me levar, mas a caminhada em si e os parceiros que tenho encontrado nela já tem sido
muito gratificante.

Figura 5 – Palhaça Kuia e palhaça Dikeka em apresentação na casa Ipê.


Fonte: Acervo pessoal.

REFERÊNCIAS

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de Avner , The Eccentric. Dissertação (Mestrado em Artes Cênicas). Programa de Pós-
Graduação em Artes Cênicas, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. 2011.

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Petrópolis: Editora Vozes Limitada, 2017.

BERGSON, Henri. O riso: ensaio sobre o significado do cômico. 2.ed. Lisboa:


Guimarães Editora, 1993.

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BORGES, Ana; Cordeiro, Karla . Palhaçaria feminina : trajetória de investigação e


construção dramatúrgica de espetáculos dirigidos por karla concá . Seminário
Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017.

171
Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos

BRASIL (2004). Ministério da Saúde. Secretaria-Executiva. Núcleo Técnico da Política


Nacional de Humanização. HumanizaSUS: a clínica ampliada.

BRASIL (2007) Ministério da Saúde. Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa.


Departamento de Apoio à Gestão Participativa. Caderno de educação popular em
saúde.

BRASIL (2007) Ministério da Saúde. Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa.


Departamento de Apoio à Gestão Participativa. Caderno de educação popular em
saúde.

BRASIL (2010). Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Caderno Humaniza


SUS – Volume 1 – Formação e Intervenção.

BRASIL (2012). Ministério Da Saúde. Comitê Nacional De Educação Popular Em Saúde –


CNEPS. Política Nacional de Educação Popular em Saúde.

BURNIER, Luís Otávio. A arte de Ator: da técnica à representação. 2.ed. Campinas:


Editora da Unicamp, 2009. (pp. 205- 220)

BUSS, Paulo Marchiori, and Alberto Pellegrini Filho. A saúde e seus determinantes
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CZERESNIA, Dina; DE FREITAS, Carlos Machado. Promoção da saúde: conceitos,
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Editora Família Bastos, 2005.

CATAPAN, Soraia de Camargo; OLIVEIRA, Walter Ferreira de; ROTTA, Tatiana Marcela.
Palhaçoterapia em ambiente hospitalar: uma revisão de literatura. Ciência & Saúde
Coletiva, v. 24, p. 3417-3429, 2019.
CHACOVACHI. Manual e guia do palhaço de rua. 2a ed. La Plata: Contramar, 2016.
CZERESNIA, Dina; DE SEIXAS MACIEL, Elvira Maria Godinho; OVIEDO, Rafael Antonio
Malagón. Os sentidos da saúde e da doença. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2013.

MATRACA, Marcus Vinicius Campos; WIMMER, Gert; ARAÚJO-JORGE, Tania Cremonini


de. Dialogia do riso: um novo conceito que introduz alegria para a promoção da
saúde apoiando-se no diálogo, no riso, na alegria e na arte da palhaçaria. Ciência &
Saúde Coletiva, v. 16, p. 4127-4138, 2011.

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MORENO, Jacob Levy. Psicodrama. São Paulo: Editora Cultrix, 1993.

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aberto a novos paradigmas? Revista de saúde pública, São Paulo. v.32, n.4, p. 299-316,
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Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos

WUO, Ana Elvira. O Clown visitador no tratamento de crianças hospitalizadas. 1999.


Dissertação (Mestrado na área de estudos do lazer) – Faculdade de Educação Física,
Universidade Estadual de Campinas, Campinas – SP.

173
Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos

Capítulo 12
PALHAÇARIA E O CUIDADO DE SI

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Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos

PALHAÇARIA E O CUIDADO DE SI

Fábio Nieto-Lopez
Karen Kessy
Naiommi Schinke Campos

Mesmo diante das enormes incertezas e inseguranças pessoais, minhas


companhias constantes, eu estava conduzindo uma iniciação à palhaçaria que nunca havia
sido experimentada antes, uma reinvenção. Recorria às habilidades que havia
conquistado em oficinas de teatro que conduzi desde cedo e às experiências formativas e
profissionais que tive como palhaço. Apesar da parceria fundamental do meu amigo
Martin Domecq como condutor desta iniciativa arrojada e reflexiva, ainda me sentia, aliás
ainda me sinto, mal preparado para conduzir o desafio.

Ocorreu, então, algo que ainda me surpreende e que não consigo descrever de uma
maneira precisa. Estava tomado pela ansiedade de iniciar mais um dia de oficina, com
exercícios já escolhidos, trilha sonora pronta para acompanhar diferentes momentos, sala
limpa, pessoas chegando. Neste momento, uma das estudantes que chega vem até a mim,
me olha e me abraça. Pega nas minhas mãos e me agradece pelo o que eu estava
proporcionando em sua vida, em sua relação consiga mesma, em mudanças que estavam
acontecendo nas outras relações de sua vida. Por quê? Como assim? O que eu fiz? Foram
as perguntas que ocorriam e tentava traduzir por um olhar reticente de quem quer ouvir
mais, mas ali, naquele momento, era isso. Era tudo isso.

Em acordo com o Martin, entregamos a eles um questionário anônimo, no último


dia das oficinas e as respostas nos deram mais indícios de que algo potente e belo estava
sendo construído, de que as ondas de uma formação de palhaço repercutiam para muito
além daquela sala de ensaio, parecendo chegar em diversas dimensões da vida. Afinal,
pensava, não há um botão “liga e desliga” para você delimitar até onde uma mudança pode
chegar.

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Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos

Certa vez, há muitos anos, eu estava nos corredores das Obras Sociais Irmã Dulce
interagindo com as pessoas depois de ter trabalhado uma manhã inteira de palhaço. No
canto, próximo ao restaurante, um maqueiro olhava para mim e ria muito. Depois de um
tempo assim ele acena para que eu vá até perto dele e me pergunta: você acha que ainda
está vestido de palhaço, né? Eu quase levei um choque. Era exatamente isto o que estava
acontecendo, eu ainda estava embalado pela força, dinâmica, vivacidade, agilidade
daquela manhã. Apesar de tomar o cuidado de demarcar a ação do palhaço com o uso do
nariz vermelho, de vigiar intrusões de comportamentos e lógicas cotidianas na minha
prática, fui confrontado de que esta experiência não se extinguia ao retirar o nariz e
finalizar meu expediente. Algo ficava.

Se há algo que fica e extravasa, transborda, invade as relações, coloca-se no olhar,


acompanha gestos, interfere nos julgamentos, desvela arbitrariedades da normalidade,
então será que podemos entender que o processo de entrada e prática da palhaçaria
poderia ser considerado como um cuidado de si, conforme os contornos apresentados
pelo filósofo Michel Foucault, em sua obra Hermenêutica do Sujeito? Esta foi a pergunta
principal que guiou uma linha de pesquisa que tomou o conceito de cuidado de si em suas
possibilidades de leitura, a partir de observação e entrevista com participantes de oficinas
que ofereci em ambiente universitário. Foram dois estudos simultâneos, tornados
possíveis devido políticas de iniciação à pesquisa e de permanência dos estudantes na
vida universitária, e foram conduzidos com muito empenho e competência pelas autoras
deste artigo: Naiommi Schinke Campos e Karen Kessy.

Naiommi Schinke Campos conduziu um estudo de caso com inspiração etnográfica,


no qual esteve como participante do componente curricular que ministrei, denominado
Introdução à Palhaçaria, com duração de doze encontros, aberto aos estudantes das
graduações interdisciplinares da Universidade Federal do Sul da Bahia. Em paralelo ao
período de estudo da obra Hermenêutica do Sujeito, que realizamos em conjunto com
Karen Kessy, Naiommi enfrentou o desafio de criar sua palhaça tomando notas sobre o
processo pessoal e coletivo: construção da turma, desenvolvimentos dos palhaços de seus
colegas, movimentos e transformações ocorridas. Ao final do curso realizou um grupo
focal com quatro estudantes, seus colegas participantes da oficina.

No estudo de Karen Kessy, optamos por investigar, a partir de um estudo de casos


múltiplos, duas participantes que já haviam finalizado curso de palhaçaria por períodos

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Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos

que variaram entre um e três anos, com o intuito de observar se encontrávamos


informações diferentes, de algum modo complementares ou contrastantes, quanto
àquelas construídas com um grupo que encontrava-se em experiência formativa. A
participante do curso mais antigo, de 2016, passou por um período formativo de sete
encontros, enquanto que a participante do curso mais recente, em 2019, frequentou uma
iniciação mais curta, de cinco encontros.

Karen, por sua vez, já havia iniciado sua própria formação de palhaça. Em comum
entre os dois estudos, além da perspectiva teórica e do conceito de cuidado de si que
investigavam, ambos observavam participantes que realizaram suas experiências
formativas comigo. Se por um lado este fato nos oferecia facilidade de acesso e contato,
também nos impunha, com a mesma vivacidade, limitações importantes nos estudos.

As atividades realizadas durante as oficinas exploraram técnicas de palhaço, entre


elas: improviso, aceitação das condições propostas, uso da máscara neutra, uso do nariz
de palhaço, comunicação e interação com a plateia, improviso com situações cotidianas,
construção de cenas, contracena, comunicação corporal e não verbal, disponibilidade ao
inesperado, presença cênica, confiança, lógica de palhaço, empatia com os outros
participantes através da interação de todo o grupo. Parte significativa das atividades
foram realizadas em grupos, simultaneamente, sem a separação entre palco e plateia, com
o intuito de incentivar que os integrantes desenvolvessem habilidades com o mínimo de
intervenção de julgamentos internos, e da necessidade de agradar os demais participantes
ou o professor.

Esta forma de abordagem em um ambiente universitário também permitiu a


integração de pessoas que não se conheciam ou não tinham proximidade, possibilitando
o contato com novas pessoas e, assim, aproximando e estreitando laços. Foi repetido
desde os primeiros momentos das diferentes oficinas que não há um padrão ou modelo
de palhaço a seguir ou se espelhar, e que cada um ali iria construir seu próprio palhaço,
evitando ao máximo qualquer comentário que qualificasse uma pessoa ou uma atuação.
Os comentários voltavam-se para aspectos técnicos em treinamento.

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Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos

FORMAÇÃO DE PALHAÇO NÃO É TERAPIA

Bem, antes de olhar com mais atenção para o conceito de cuidado de si, estudado
por Foucault, precisamos demarcar diferenças e afastar algumas dúvidas logo no
princípio para evitar equívocos importantes.

Como estamos tratando de um termo com estreitas relações com a saúde,


geralmente ocorre o questionamento ou, antes, a confusão entre os limites entre um
processo terapêutico e a formação em palhaçaria. Desta forma é fundamental delimitar,
primeiramente, os contornos gerais do processo terapêutico: um tratamento contínuo,
conduzido por profissional graduado, com foco de suas ações e abordagens voltados para
um processo clínico de tratamento. Este profissional, devidamente formado por
instituições regulamentas de ensino superior, ou conselhos de classe (como sociedades
psicanalíticas, terapias de grupo, etc.) que, por sua vez, estabelecem seus próprias códigos
de ética e conduta. No Brasil, um psicólogo, por exemplo, mesmo depois de formado, só
pode exercer a profissão se estiver devidamente registrado no Conselho Regional de
Psicologia e seguir os preceitos da profissão.

O termo terapia, porém, aparece na Hermenêutica do Sujeito, de Foucault,


mostrando o uso de therapeúein entre os gregos antigos para designar, entre diversos
outros usos, cuidados médicos com a alma, em um preceito epicurista de que todos os
homens (sic) devem ocupar-se com sua própria alma, dia e noite, durante toda sua vida.
Apesar de que os usos cotidianos dos termos “terapia” e “terapêutico” continuam abertos
e amplos, causando confusões em seu emprego, o mesmo não pode acontecer entre a
natureza das práticas. Aquele que conduz um processo de iniciação à palhaçaria não faz
terapia, não realiza um processo de análise (termo escolhido por Freud), não é terapeuta,
não é psicólogo (mesmo que o seja, não exerce esse papel naquele momento), não está
submetido à supervisão de seus casos, não possui compromisso com um conselho ou
instituto que contribua para um acompanhamento clínico e responsável de seus clientes.

Dito isto, podemos compreender que o processo da prática do palhaço possa gerar
efeitos terapêuticos em um sentido bastante amplo, nos mesmos moldes que entendemos
a saúde, não mais como ausência de doença, mas potência de ação criativa em diversos
aspectos da vida. Autores como Pichon-Rivière e Jacob Moreno, por exemplo, desde
meados do século XX já apoiaram suas abordagens de saúde na capacidade humana de

178
Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos

criar e de ser espontâneo, ao invés de recorrer a antigos padrões de conduta (Pichon-


Rivière) ou conserva cultural (Moreno).

CUIDADO DE SI

Em Hermenêutica do Sujeito, Foucault demonstra como o cuidado de si (epimélea


heautoû) possui uma longa história milenar nas práticas da subjetividade, com registros
nos tempos pré-filosóficos, antes mesmo das arguições de Sócrates, seu principal
representante, e transcorreu enquanto prática de uma coletividade, primeiramente na
aristocracia grega, mas que se propagou para outras culturas, grupos sociais e praticantes,
podendo ser considerado um “fenômeno cultural de conjunto”. Para o autor, pelo menos
entre os séculos V a.C. até o século V d.C. ocorre uma longa evolução destas práticas, que
tiveram lugar desde os gregos antigos até o ascetismo cristão.

O termo cuidado de si concentra todo uma tecnologia de si mesmo, diferentes


tradições e conjuntos de práticas, rituais, voltadas para a transformação do sujeito, de sua
alma, operando um processo que o tornará qualificado a acessar a verdade, apto a
governar a si mesmo e aos interesses das cidades e dos demais, um preço pago pelo sujeito
para poder “dizer o verdadeiro” sobre si mesmo. É um preceito comum, uma regra geral
que provoca o sujeito a tirar o foco, mesmo que momentaneamente, de outros objetivos
proveitosos e interessados, como fortuna, carreira, honra, status, para voltar suas
atenções a práticas do cuidado de si.

Por se tratar de um conceito amplo e complexo, concentramos nossas pesquisas


em suas características gerais, três princípios centrais, já apontadas por Foucault, que
sustentam as diversas práticas. A nossa categorização respeita todos os pontos
apresentados pelo autor, mas estão organizados de outra maneira, evitando
sombreamentos e repetições, comuns na linguagem oral de onde é transcrita as aulas para
o livro.

1. Prática. Em primeiro lugar é uma prática, uma atitude (consigo, com os outros, com o
mundo), uma ação. Dentre as diversas técnicas e práticas tradicionais há diversos
exemplos ao longo da história: meditação, jejum, retiros, exercícios, memorização do
passado, exame da consciência, ritos de purificação, concentração da alma, práticas de
resistência e provação (dor, dificuldades, tentações), preparação para o sonho, escutar

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Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos

música, respirar perfumes, exame da consciência, isolamento em si mesmo, imobilidade


do corpo e do pensamento, silêncio, etc. Ainda sobre este ponto, e por oposição, o cuidado
de si não é um ato mágico, um milagre que acontece e muda definitivamente um aspecto
ou todo um conjunto de dimensões de um sujeito. A prática é condição para se obter seus
efeitos.

2. Conversão do Olhar. O foco das práticas do cuidado de si é o próprio sujeito da ação.


Uma vez que geralmente estamos interessados no que se passa fora (carreira, dinheiro,
pendências, etc.), estas práticas implicam uma conversão do olhar do exterior para si
mesmo. É uma prática que está associada tanto ao exercício quanto à meditação, é manter
a atenção ao que se passa consigo, ao que se faz, ao que se pensa, ao que se passa no
pensamento.

3. Transformação. Como resultado deste processo ocorre uma transformação de si


mesmo, somos transformados, transfigurados, purificados, qualificados, modificados pela
prática. Ao final, estamos qualificados para acessar e sermos transformados pela verdade.
A verdade não é dada a todos que a postulam, mas àqueles que são transformados pelas
práticas.

Outros pontos importantes envolvidos neste processo de transformação, que é a


prática de si, são algumas características que a acompanham, mas serão observadas em
conjunto porque entendemos que compõe o princípio da transformação: DESPERTAR. O
início das práticas muitas vezes é relatado por um despertar, o primeiro despertar que
retira o sujeito de um longo sono, como se os olhos tivessem sido abertos pela primeira
vez, e então uma nova luz, ou consciência, passa a integrar o olhar; AGUILHÃO. Aguilhão
é uma ponta muito afiada, um ferrão, ou pode ser tomado figurativamente como uma
inquietude. É como se o ferrão de um inseto estivesse cravado na carne do sujeito da
prática, que o impulsiona para frente, mas o atormenta na mesma medida. Esta
característica aponta para o fato de que o processo de transformação de si é árduo,
doloroso, inquietante; MESTRE. Há um mestre para guiar o processo de transformação, e
Sócrates é seu principal representante. É aquele já iniciado no caminho e que incita o
sujeito em sua busca, indica exercícios, aponta equívocos, provoca trepidações nas
resistências e seguranças que se tinha. Antes de conversar com Sócrates, Alcibíades estava
certo de que encontrava-se pronto para a vida política, mas em pouco tempo de conversa
desmoronam suas certezas e descobre que mal sabe como cuidar de si mesmo. O mestre

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Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos

cuida do cuidado que temos conosco mesmo; GRUPO. É comum um grupo de pessoas
reunindo-se, associando-se para a prática do cuidado de si, geralmente em torno de um
mestre, um lugar que se elege ir, que se vai sem obrigação, mas pela vontade de
transformar-se a partir da prática.

TRANSFORMAÇÕES DE SI

Dentre as categorias aqui propostas, o ponto mais acentuado na conversa com os


participantes da pesquisa foi o da transformação que a prática promove e, mesmo que
com perguntas ainda muito introdutórias, trouxeram relatos potentes. Todos os
entrevistados falaram sobre mudanças que perceberam em si mesmos e em seu cotidiano,
reforçando nossa percepção inicial de que os efeitos da oficina transbordam para outros
aspectos da vida.

Uma das participantes relata que havia tido a experiência de, quando criança, ter
subido no palco de um circo, mas que acabou se assustando muito com o palhaço e pulou
para a plateia de uma altura muito alta. Por este acontecimento ela diz que foi
severamente repreendida por seu pai, desenvolvendo o que chamou de trauma de palhaço
e de circo. Com a experiência da oficina ela diz ter conseguido superar esta questão.

Outros aspectos bastante lembrados quanto às mudanças é o enfrentamento de


estados de grande timidez e dificuldades de comunicação, que com algumas técnicas
aprendidas durante a oficina, passaram a viver de outra maneira e recorrer a novo
repertório de comunicação.

Eu faço acompanhamento de saúde em Salvador e uma profissional que


me atendeu falou isso, porque eu estava lá falando sobre o que estava
acontecendo, falando, falando, falando e ela perguntou porque que eu
estava assim, com mais desenvoltura em relação à consulta do mês
passado e aí eu percebi... [...] eu considero que eu aceito a proposta
quando ela está acontecendo ali, se é pra comprar, se é pra fazer tal
coisa, é pra falar tal momento assim, eu falo coisas que no meu dia a dia
eu não falaria em certo grupo, aí eu acho que se fosse definir com uma
coisa era desenvoltura de situações, falas.

Uma participante que já havia tido experiência de palhaço, mas que, curiosamente,
nunca havia realizado oficinas ou um processo formativo antes, mostra em sua fala como

181
Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos

seu processo de transformação esteve diretamente relacionado com a conquista de si


mesma, de seus desejos e de sua presença no mundo:

Eu acho que, essa questão do julgamento, que eu parei de pensar muito


nisso, no julgamento das pessoas e dei mais voz ao que eu queria fazer
e o que eu estava sentindo para expressar isso, por exemplo, eu me
acho criativa e tinha vezes que eu prendia isso porque eu ficava com
medo do que as pessoas iriam... da forma como as pessoas iriam julgar, aí
eu não estou pensando, depois desse componente, eu achei que isso
mudou bastante.

Outra participante faz uma relação bastante direta entre as oficinas e seu estado
de saúde e diz que “a palhaçaria tem influenciado muito na minha saúde mental”, mas com
bastante compreensão de que não tratava-se de uma resolução, de uma cura, ou mesmo
de um tratamento psicológico. Ela se diz com transtorno de pânico e depressão e, por
conta disso, tem muito medo de ser julgada pelas pessoas ou passar por uma situação
diferente, constrangedora. Devido a isso, evita ao máximo ambientes nos quais estas
situações possam vir a acontecer.

Quando você tem depressão, você se julga o tempo inteiro, você não
dorme se julgando, você não dorme pensando nas atitudes que você
tomou durante seu dia, o que que as pessoas estão pensando de você,
porque que você fez aquilo e, já na aula de palhaçaria, não que eu não faça
esse julgamento, mas o impacto é bem menor. Durante a aula eu não me
faço esse julgamento, eu consegui através das instruções não fazer
esse julgamento.

Muito interessante que esta participante relaciona diretamente as instruções do


ambiente de oficina com os resultados que ela conseguiu alcançar com a prática. Embora
em um período de apenas doze encontros, os efeitos já foram percebidos por ela e seus
colegas, que falaram sobre este tema de uma maneira bastante entusiasmada. Na
continuidade desta sua reflexão ela ainda comenta outras transformações que tem
passado, associando com as técnicas aprendidas: “quando você passa por qualquer
situação que você se lembra de uma técnica que você aprendeu e você vai lá e coloca ela
em prática e isso vai tornando o seu dia menos estressante. ”

Um participante relatou assim seu processo de transformação:

Sim, eu comecei a superar muito mais a questão da timidez e também


aprendi a lidar com as próprias falhas. Por exemplo, nas apresentações
[em outros componentes curriculares da universidade], eu fico bastante
ansioso, nervoso, mas se a gente começa a se observar e ver que

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Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos

aquelas próprias falhas podem ser algo que contribuem para uma melhor
apresentação por exemplo, você consegue driblar esse nervosismo e
desinibir mais, então eu acho que tem contribuído justamente nessa
questão de você não levar tudo pelo lado ruim da coisa. Se acontecer algo
de ruim, como eu falei, uma falha, não só na questão de apresentação por
exemplo, você consegue fazer daquilo algo cômico, por exemplo, e não
precisa ser algo cômico também, porque na palhaçaria eu acredito que
não seja apenas o riso, você vai ter a expressão de vários sentimentos
também, que vai ser algo que vai envolver a sua expressão corporal, Então
a gente aprende também a questão da expressão corporal e isso, acho que
tem me ajudado bastante também, na questão da ansiedade, onde você
observa seu próprio corpo e vê como ele está presente no espaço,
acho que tem disso também na palhaçaria.

Como o participante demonstra, os aspectos que foram separados anteriormente


apenas na tentativa de categorizar os princípios gerais do cuidado de si, aparecem em
relação mútua. Aqui, por exemplo, a conversão do olhar a si mesmo é justamente o
mecanismo que opera a transformação, um princípio aprendido na oficina de palhaços
que o estudante utiliza em outros espaços. Nas oficinas de palhaçaria houve um processo
de transformação pessoal que começou e terminou em si mesmo, na observação de seu
corpo no espaço, de suas emoções presentes, de seu ato no mundo.

Outra palhaça entrevistada, que realizou a oficina há mais tempo, retoma esse
processo de despertar, de conquista de si mesma: “Eu percebi que lá eu podia ser eu assim,
e fazer todas as loucuras que eu pensava, mas que [...] em outros lugares eu não poderia
fazer, mas lá me proporcionou isso, a ser eu mesmo assim.”

Além disso, como nos lembra Foucault, o cuidado de si, mergulha na relação
consigo mesmo, mas possui efeitos nas relações com os outros e com o mundo. Outra
palhaça que havia finalizado sua oficina de curta duração, relata este aspecto:

Fiz o curso de palhaçaria e o curso me ajudou nisso, me ajudou a


percepção, perceber o que está à minha volta, você acaba tendo um
olhar mais apurado das coisas, o que é engraçado, mas não só engraçado,
tem algo que para todos pode ser nada, mas para quem tem um olhar mais
apurado pode ser alguma coisa.

Quanto à conquista de si mesma, uma outra fala potente de reconhecimento,


conquista, empoderamento e aceitação:

[...] seu palhaço não é seu personagem, seu palhaço é você, então se você
tá ali e você é mal humorado, você vai ser um palhaço mal humorado, você
vai ser um palhaço estressado, um palhaço birrento, você vai ser um
palhaço chato, ninguém vai te suportar, mas você vai ser você mesmo e

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Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos

eu acho que isso tanto me ajudou a me conhecer como me ajudou a me


aceitar como eu mesma, de que eu não preciso de um personagem, de que
se as pessoas me aceitarem, elas me aceitaram, se elas não me aceitarem,
elas não me aceitaram, se elas rirem durante uma cena de palhaçaria que
eu esteja participando, elas riram, se elas não riem não vai caber a mim
me julgar de acordo com o julgamento das outras pessoas, então eu acho
que a palhaçaria tanto me ajudou a ser eu mesma, como me ajudou
a me aceitar, nesse sentido.

A conversão do olhar do participante inicia quando volta seu interesse para si


mesmo. É uma forma de atenção, uma maneira particular de percepção, que, depois deste
movimento de observação de si, permite a retomada de sua atenção ao exterior, mas agora
sem se desconectar de si mesmo. Foucault aponta que na origem do termo cuidado de si,
epiméleia heautoû, há um parentesco com o termo meléte, que possui, ao mesmo tempo,
tanto um significado de exercício como de meditação.

A relação com o mestre também surgiu nas falas, parecendo ter dado um suporte
de confiança para o processo que realizaram:

A oficina todos dias tinham exercícios, a cada exercício a gente ganha uma
confiança… e, aprendemos a aceitar os desafios. Não existe o fato de “ah
não sei fazer, ou não vou fazer”, é só fazer e pronto. Hoje se o professor
falar para eu rolar no chão, faria sem medo.

Além disso, estão implícitas outros aspectos relacionados ao processo de cuidado


de si que pudemos observar no processo de observação e vivência nas oficinas. O processo
ritualístico, por exemplo, teve lugar no batismo do palhaço, que ocorreu horas depois das
falas dos participantes do grupo focal, quando receberam seus cartões de identificação de
palhaço, com os nomes escolhidos e, simbolicamente, entraram para o mundo da
palhaçaria. Dentre os entrevistados, uma única palhaça havia passado por esta
experiência. Concomitante a isto, e também presente nas falas, está a participação de um
grupo, lembrado como um coletivo que fez com que se sentissem acolhidos e à vontade, e
tornou-se suporte para seu processo.

Outra coisa é o grupo, a questão do grupo porque eu vi que a depressão


ela envolve sentimento de desamor, desamparo e desvalor e nas aulas de
palhaçaria, com algumas exceções, as relações elas mudam, é diferente,
você se sente acolhida, você sente que está todo mundo ali junto com
você, todo mundo no mesmo processo e você acha um amparo, e a
questão do desvalor também, porque, eu identifico depois de muito
tempo, que eu sou boa em alguma coisa [...] as pessoas me deram esse
feedback sabe? As pessoas dizendo: ah, você é boa nisso, Então essas três
questões que pra mim pesam muito vida acadêmica, dentro da

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Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos

universidade, para mim a questão do desamor, desamparo e do desvalor


pesam de uma forma que em nenhum outro lugar eu tenho esse
sentimento , em casa eu não tenho esse sentimento. Então eu consegui
enxergar que esses três pontos eles são muito presentes na minha vida
dentro da faculdade e não na aula de palhaçaria.

Embora não diretamente relacionado ao tema deste trabalho, a fala da participante


demonstra, no que foi corroborada pelos colegas durante o grupo focal, a importância de
abrir espaços criativos e acolhedores na vida universitária, com repercussões diretas na
qualidade das relações e na promoção de saúde.

O aspecto da prática, fundamental ao conceito de si, já apareceu aqui nas falas


apresentadas, como no exemplo deste participante: “A oficina todos dias tinham
exercícios, a cada exercício a gente ganha uma confiança…”. Ainda sobre isso, as
entrevistas demonstraram que os participantes estavam muito conscientes desta
dimensão da prática.

Lambreta: Eu acho que foi uma evolução, uma construção, não


evolução, é como uma palavra que eu usei na pergunta passada mas é
muito aplicada nessa pergunta é ressignificação [...] acho que tem um
caminho muito longo ainda pela frente, tem algumas coisas que eu
gostaria de ter aprendido e ainda não conseguir fazer do jeito que eu
espero que seja para mim, não que eu esteja cobrando que o palhaço tem
que ter determinada técnica ou faça de um jeito, mas que eu gostaria de
ter isso, umas técnicas mais… E uma comunicação mais limpa, mais clara,
também.

Margarida: Eu achei isso também, que eu ainda vou evoluir mais se


continuar com esse componente, né? Se o professor ofertar mais, um
desenvolvimento à palhaçaria, uma palhaçaria dois, sei lá.

Sobre este aspecto houve para nossa equipe uma importante descoberta ao
perceber que a participante que realizou sua formação há mais tempo e que, desde então,
não realizou outras oficinas depois disso, sente que os efeitos da prática precisam ser
reforçados.

Através da oficina, além de me permitir conhecer novas pessoas, também


me conheci mais, vi que não precisava ter medo de mostrar quem eu era,
não precisava ter medo dos julgamentos e isso me ajudou a vencer a
timidez. Ainda sou tímida e como já faz uns anos que participei da oficina,
com o passar do tempo percebi que teria que voltar às práticas dessas
atividades para que a timidez fosse mínima, ou mesmo incluir pequenos
desafios de improviso que me tirem da zona de conforto e do medo de ser
julgada. Para que haja mudança, precisaria realizar a prática
constantemente até que ela se tornasse uma habilidade e característica.

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Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos

Inicialmente, ao ouvir este relato, Karen se sentiu um pouco frustrada porque não
percebeu a mesma empolgação que vivenciou em seu próprio processo formativo, ou
então na comparação com as respostas daqueles que estavam participando das oficinas.
Contudo, compreendemos que a percepção de que os efeitos de uma prática perdem
bastante de sua potência se não é mais praticada, trouxe maior riqueza e fidedignidade à
proposta.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao cabo deste processo aprendemos muito e fomos amadurecendo nossos


caminhos metodológicos, nossa compreensão sobre o conceito de cuidado de si na obra
de Michel Foucault, refinando nossas percepções acerca da entrada no mundo da
palhaçaria e, especialmente, tomando atenção sobre as limitações de nossos estudos.

Ao observar turmas diferentes, com variedade no período em que os participantes


realizaram suas oficinas, desde a observação concomitante ao andamento do processo até
três anos após a conclusão da experiência, conseguimos observar algumas variações
interessantes que trouxeram riqueza aos achados. Contudo, é fundamental lembrar que
os participantes da pesquisa passaram pela experiência com o mesmo professor. Apesar
das variações metodológicas que ocorreram ao longo dos anos, os princípios e a condução
foram semelhantes. Desta forma, é inviável apresentar qualquer generalização sobre as
formações em palhaço e o conceito de cuidado de si.

Ao invés disso, podemos falar sobre os casos estudados, e mostrar que temos
indícios suficientes para pensar na pertinência da relação proposta. Observamos, assim,
a necessidade de novos estudos para esta linha de pensamento investigar diferentes
metodologias de iniciação e prática do palhaço. Com avanços neste caminho talvez
possamos esboçar quais práticas e abordagens metodológicas trariam condições mais
propícias para o cuidado de si.

Outra limitação do estudo é que os casos foram exclusivamente de universitários


de uma mesma cidade. Merecem ser investigados outros contextos, dos mais diversos,
para a construção de um conhecimento mais preciso.

O aspecto de menor adesão ao conceito de cuidado de si, nos casos observados, foi
o Aguilhão. Não identificamos de maneira evidente este aspecto nas falas ou nas

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Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos

observações na sala de práticas. Como já passamos por este caminho, sabemos que as
dificuldades apareceram e seria leviano pensar que não existem simplesmente porque
não foram relatados. Consideramos que este aspecto do conceito merecia ser melhor
investigado em nossas pesquisas e naquelas que virão.

Considerando todas essas limitações, podemos dizer que encontramos fortes


indícios de que todos os princípios do cuidado de si apareceram nos casos estudados:
prática, conversão do olhar, transformação. Os processos que acompanhamos, tanto das
pesquisadoras, através de observação, registro e reflexão com inspiração etnográfica,
quanto dos participantes da pesquisa, podem ser classificados como um caminho de
cuidado de si.

Em outras palavras, podemos dizer que o processo de iniciação à palhaçaria é um


caminho de transformação do sujeito da prática, que para se ter acesso ao seu próprio
palhaço precisará atravessar um percurso de conversão do olhar para si mesmo,
observando suas próprias emoções, seu corpo, sua presença no mundo, sua comunicação
com as pessoas, especialmente a não verbal. Estas reverberações da prática, mesmo em
cursos com curta duração, ultrapassaram os limites da oficina, impactando a vida das
pessoas em seus cotidianos.

Os participantes relataram melhoras na habilidade em lidar com o julgamento das


pessoas, seus próprios julgamentos, capacidade de manejar situações imprevistas de
maneira menos estressante, percepção mais sensível da comunicação não verbal sua e das
pessoas com quem se relaciona, comunicação verbal mais precisa e efetiva, novas
oportunidades de ressignificar situações difíceis da infância, melhora em quadros clínicos,
sentimento de acolhimento e aceitação no grupo de práticas de palhaço, capacidade para
lidar com suas próprias falhas de modo mais leve mesmo estando em público, acréscimo
de percepção de si mesmo, melhor desenvoltura na fala e em atitudes corporais, maior
aceitação de si mesmo.

Ao analisar os resultados de participantes durante o processo e comparar com


quem já realizou este caminho há alguns anos, nos mostrou mais vivamente o aspecto da
prática deste conceito. Para termos acesso aos benefícios da prática, precisamos colocá-
la em ação, é fundamental a atitude, a ação, um dos princípios básicos aqui apontados.
Com esta percepção desmistificamos também um pouco uma visão romantizada, de que a
prática da palhaçaria possui efeitos definitivos na vida de seu praticante.

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Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos

Compreender que a palhaçaria não é um ato mágico, segundo nossa compreensão,


reforça nossa hipótese que trata-se de um exercício de cuidado de si e que, como tal,
requer conversão do olhar, prática, transformação. O exemplo oposto seria de alguém que,
sem qualquer processo formativo, simplesmente coloca um nariz vermelho no rosto.

Nossos estudos nos mostraram com maior vivacidade que a condição de palhaço
não está em qualquer truque, gague ou elemento visual, mesmo que o próprio nariz
vermelho. Para ganhar o direito de acesso à verdade do palhaço é fundamental a
transformação do postulante através de um processo em que se tome como ponto
fundamental, se aceite como seu próprio caminho, dedique-se a si mesmo, observe-se
amorosamente, reconheça seu corpo, suas emoções, sua história, sem julgamentos
aprendidos antes deste processo. Mergulhe em si mesmo, se reconquiste para poder
voltar-se novamente e ganhar o mundo com luz nova, sua luz própria.

Ser palhaço é estar em processo.

REFERÊNCIAS

BOUMARD, Patrick. O lugar da etnografia nas epistemologias construtivistas.


Revista de Psicologia Social e Institucional – PSI – volume 1 nº 2 – novembro
1999. Disponível em <http:www.uel.br/ccb/psicologia/revista/textov1n22.htm>.
Acesso em: 20 out. 2010.
COULON, Alain. Etnometodologia. Petrópolis: Vozes, 1995.
FOUCAULT, Michel. A Hermenêutica do Sujeito: curso dado no Collège de France
(1981-1982). Trad. Márcio Alves da Fonseca, Salma annus Muchail. 3ª ed. – São Paulo:
WMF Martins Fontes, 2010.
PICHON-RIVIÈRE, Enrique. Teoria do Vínculo. Trad. Eliane Toscano
Zamikhouwsky. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
______. O Processo Grupal. Trad. Marco Aurélio Fernandes Velloso e Maria Stela
Gonçalves; São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009.
Moreno, Levy Jacob. Psicodrama. Trad. Álvaro Cabral. São Paulo: Cultrix, 1998.
YIN, Robert K. Estudo de Caso: planejamento e métodos. Trad. Daniel Grassi. 3ª Ed. –
Porto Alegre: Bookman, 2005.

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SOBRE OS AUTORES

Alberto Magalhães
É Historiador formado pela Puc-RJ e pela Escola Nacional de Circo. É um dos fundadores
da Companhia de Teatro e Circo Intrépida Trupe e diretor dos Irmãos Brothers. É
acordeonista da Orquestra Sanfônica do Rio de janeiro e trombonista da fanfarra Os
Sideriais. Autor do Livro Três Marujos Perdidos no Mar editado Pela Rocco. Autor e
diretor da Minissérie Bambolina e Bobinaldo. Há quarenta anos representa o palhaço
Bobinaldo.

Alessandra Simões
Docente, pesquisadora e artista. Habita e ama a cidade de Ilhéus, Bahia. Professora
Adjunta e Coordenadora de Extensão na Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB).
Investiga o "decolonialismo" e suas relações com as questões de raça, gênero, etnia, classe
e geopolítica nas artes visuais, com ênfase em estudos de linguagens contemporâneas.
Leciona no Curso Licenciatura Interdisciplinar em Artes e suas Tecnologias (UFSB) e no
Programa de Pós-Graduação em Ensino e Relações Étnico-Raciais (PPGER-UFSB).
Vivencia a palhaça Aliás e é mãe das trigêmeas Luísa, Carolina e Isabela.

Andreia Aparecida Pantano


Professora de Filosofia da Educação Básica. Mestre em Filosofia pela Unesp-Marília e
Doutoranda do Programa em Letras da FCL/Unesp-Assis.

Elisabeth Araujo de Abreu


Licenciada em Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.
Atualmente graduanda em Fonoaudiologia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Possui experiência na interface entre linguagem e cognição.

Fábio Nieto-Lopez
Professor Adjunto da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB), está interessado em
atuar, pesquisar e dialogar em áreas interdisciplinares, assim como nas grandes áreas de
Artes, Saúde e Humanidades. Doutor e Mestre em Psicologia pela Universidade Federal da
Bahia (UFBA), Diretor de Teatro formado pela mesma instituição. Integrante dos Grupos

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de Pesquisa Humano, Desumano, Pós-Humano: desdobramentos da invenção do comum


nas sociedades, na saúde e nas artes; e Estudos sobre a Universidade. Atuou como
professor de Psicologia na Faculdade São Bento da Bahia, na Escola Bahiana de Medicina,
e no Instituto de Humanidades Artes e Ciências Professor Milton Santos (IHAC) da UFBA.
Como psicólogo, trabalhou na cidade de Madre de Deus, Bahia, e, como palhaço, nas Obras
Sociais Irmã Dulce com a equipe dos Terapeutas do Riso.

Gabriela Maria Lima Santos


Graduanda em Licenciatura em Dança pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul,
bolsista-extensionista do projeto Brincar de Viver. Certificada em Artes Cênicas pela
Universidade da Califórnia em Los Angeles e atualmente professora de dança em curso
livre.

Geórgia Maria Ricardo Félix dos Santos


Enfermeira, Doutora; Docente do Curso de Enfermagem da Universidade Estadual de
Ciências da Saúde de Alagoas (UNCISAL). E-mail: georgia.felix@uncisal.edu.br

Karen Guimarães Cardoso


Graduada em Biblioteconomia. Mestre em Ciência da Informação. Integrante do Coletivo
Experimentalismo Brabo, onde atua com palhaçaria, memória e contação de histórias.

Karen Kessy
Acadêmica do curso de Medicina da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) campus
Paulo Freire. Atualmente atuo como Membro do Núcleo de Estudo e Pesquisa em Saúde
(NEPS) da UFSB e como Presidente do Centro Acadêmico de Medicina da UFSB. Atuou
como Voluntária no Projeto de Pesquisa Monitora COVID. Participou como vivente do
Projeto de Extensão "Semana de Vivência Interdisciplinar no SUS" (SEVI-SUS) da UFSB
(2016). Participou como voluntária no Projeto de Pesquisa "Avaliação da Efetividade,
Impacto Econômico e Abrangência do Programa Aqui tem Farmácia Popular" da
Universidade Federal da Bahia (UFBA) financiado pelo Ministério da Saúde (2017-2018).
Participou como bolsista no grupo de Humanização em Saúde do Programa de Educação
para o Trabalho em Saúde (PET-Saúde/GraduaSUS) no município de Itabuna/BA (2017-
2018) e do Projeto de Pesquisa "Riso e Saúde: O riso nos cuidados e os cuidados no riso"

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financiado pelo Programa de Iniciação à Pesquisa, Criação e Inovação (PIPCI) da UFSB


(2018-2019). Possui interesse nas áreas de: Saúde Pública, Gestão em Saúde, Sistemas de
Informação em Saúde, Clínica Médica, Gastroenterologia clínica e cirúrgica e Cirurgia
Geral.

Lenisa Brandão
Fonoaudióloga, Doutora em Psicologia, Professora Associada do Departamento de Saúde
e Comunicação Humana, Instituto de Psicologia, Universidade Federal do Rio Grande do
Sul. Atua com populações que apresentam diversidade neurológica, comunicativa e
cognitiva. Investiga os processos e os efeitos da prática da palhaçaria junto a essas
populações, em especial com idosos que vivem com afasia.

Leo Salo
Graduado em Biblioteconomia. Mestre em Ciências (Informação e Comunicação em
Saúde). Coordenador do Coletivo Experimentalismo Brabo, onde atua com poesia,
palhaçaria e fotografia. Criador da Oficina Apalavrada.

Magda Aline Bauer


Fonoaudiologia preceptora da UFRGS, formação em Fonoaudiologia, Especialista em
Fonoaudiologia e Fonoaudiologia Hospitalar, Mestre em Distúrbios da Comunicação
Humana e Doutora em Gerontologia Biomédica.

Maíra G Baczinski
É licenciada em Ciências Biológicas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e
bacharel em Artes Cênicas pela Escola Técnica Estadual de Teatro Martins Penna
(ETETMP) e pela Casa de Artes de Laranjeiras (CAL). Possui especialização em
Conscientização dos Movimentos e Jogos Corporais na Metodologia Angel Vianna, pela
Faculdade Angel Vianna (FAV RJ). Mestre em Ensino de Ciências e Saúde pelo NUTES da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). É integrante fundadora do grupo Grutta
Teatro. Doutoranda filiada ao programa Ensino de Biociências e Saúde no Instituto
Oswaldo Cruz, da Fiocruz sob orientação da professora doutora Tania Cremonini Araujo
Jorge, bolsista financiada pela CAPES no período entre 2019 e 2022. Profissionalmente
integra o grupo de teatro GRUTTA TEATRO, e na rede básica de ensino em Maricá-RJ.

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Marcio Luiz Braga Corrêa de Mello


Pesquisador do Laboratório de Inovações em Terapias, Ensino e Bioprodutos (LITEB).
Doutor em Ciências pela FIOCRUZ (ENSP). Professor do PGEBS (IOC/FIOCRUZ).

Marcus Vinicius Campos Matraca


Docente da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (CCS/UFRB); Cientista Social
(Unesp/Marília); Mestre em Saúde Coletiva (Unicamp); Doutor em Ensino de Ciências
(IOC/FIOCRUZ); Coordenador do Laboratório, Atelier de Educação Popular em Saúde
(LAEPS); matraca@ufrb.edu.br e coretosonoro@gmail.com

Maria Cristina da Costa Marques


Enfermeira, Doutora; Docente da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São
Paulo (USP). E-mail: mcmarques@usp.br

Maria Rosa da Silva


Enfermeira, Doutoranda da Faculdade Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP);
Docente do Curso de Enfermagem da Universidade Estadual de Ciências da Saúde de
Alagoas (UNCISAL) e coordenadora do Projeto de Extensão Sorriso de Plantão. E-mail:
maria.silva@uncisal.edu.br

Martin Domecq
Doutor em Artes Cênicas - PPGAC-UFBA, Professor adjunto UFSB, desenvolve uma
investigação sobre teatro e meio ambiente. Sua tese se titula: "Para um teatro de
interzonas: explorando relações entre artes cênicas e meio ambiente". Graduado em
Filosofia pela Universidade de Buenos Aires, com especialização em fenomenologia.
Pesquisa sobre Paul Ricoeur. Formação em teatro e experiência como encenador e
professor em diversas universidades da Argentina (UNLa, UMSA, UNSA). Trabalhou em
projetos de promoção da leitura e escrita criativa para o Ministério de Educação de
Argentina e para o Ministério de Educação da Cidade de Buenos Aires entre 2002 e 2011.
Autor do livro "Pensar-escribir-pensar: apuntes para facilitar la escritura académica"
(Buenos Aires: Lugar editorial, 2014). No seu doutorado foi orientando da professora
Denise Maria Barreto Coutinho. Coordena o projeto de pesquisa "Filo & Arte" na UFSB.

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Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos

Mauren Cereser
Mestre em Estudos da Linguagem e Bacharel em Letras pela Universidade Federal do Rio
Grande do Sul (UFRGS). Atualmente graduanda em Fonoaudiologia.

Mayara Batista Pereira


Graduanda em Fonoaudiologia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

Melissa Coelho Ferreira


Técnica de Enfermagem. Contadora de Histórias, atriz e bonequeira. Integrante do Grupo
Vento Sutil. Possui experiência de atuação em projetos de arte e educação.

Naiommi Schinke Campos


Universitária da área de Fisioterapia e Terapia Ocupacional na Universidade Salvador
(UNIFACS). Interessada em estudar e pesquisar na grande área da saúde.

Rebeca Torquato de Almeida


Mestranda do Programa de Ensino em Biociências e Saúde do Instituto Oswaldo Cruz
(PGEBS/IOC/FIOCRUZ), sanitarista pela Escola de Governo Fiocruz Brasília (EGFV),
Psicodramatista pela Associação Brasiliense de Psicodrama (ABP-DF), Psicóloga pela
Universidade de Brasília (UNB). psirebecatorquato@gmail.com

Silvana Solange Rossi


VPEIC Fiocruz – Psicóloga, Mestre em Saúde Coletiva pelo Instituto de Ensino e Pesquisa
do Hospital Sírio Libanês/SP, Consultora em Saúde, Equipe da Coordenação adjunta de
Residências em Saúde/ Vice-Presidência de Educação, Comunicação e Informação da
FIOCRUZ. dudassr@gmail.com

Susana Caires
Psicóloga, Doutora; Docente da Universidade do Minho/Portugal. E-mail:
s.caires@sapo.pt

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Tania C Araujo-Jorge
Tania Cremonini de Araújo-Jorge é formada em Medicina pela UFRJ (1980 ) e
Pesquisadora Titular em Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz desde 1983. Concluiu
Mestrado e Doutorado em Ciências (Biofísica) pela UFRJ e fez Pós-doutorado em 1989-90
na Bélgica (ULB) e na França (Inserm). Atua nas áreas de inovações em doenças
negligenciadas, farmacologia aplicada e ensino de ciências, com foco em criatividade e no
conceito interdisciplinar de CienciArte. Atualmente é diretora do centenário Instituto
Oswaldo Cruz (2021-2025), reflexo do sucesso anterior nas gestões de 2005 a 2013
(eleita e reeleita, primeira mulher em 105 anos), com diversas iniciativas inovadoras em
gestão participativa. Foi coordenadora da Área de Pós-Graduação em Ensino na CAPES e
membro do seu Conselho Técnico Científico do Ensino Superior (2013-2018). Na Fiocruz
é líder do Laboratório de Inovações em Terapias, Ensino e Bioprodutos do IOC e coordena
o Programa de Pós-Graduação em Ensino em Biociências e Saúde, mestrado e doutorado,
nota 6. Orienta também na PG em Biologia Celular e Molecular, nota 7. Entre artigos em
periódicos especializados e capítulos de livros acumula mais de duas centenas de
publicações. Organizou livros e diversos cursos, oficinas e programas de ensino. Possui
produtos tecnológicos registrados para proteção de direitos autorais, processos e técnicas
sistematizadas. Ministra desde 2000 a disciplina "Ciência e Arte" no IOC, além de outras
em suas demais áreas de competência. Atua como consultora e parecerista da OMS/TDR,
do Ministério da Saúde/Decit, de agências estrangeiras, do CNPq, da CAPES e de
Fundações de Apoio a Pesquisa em diversos estados brasileiros. É membro do corpo
editorial e pareceristas de periódicos científicos no Brasil e no exterior. Sua produção
revela forte rede de cooperação. Formou dezenas de mestres e doutores, além de jovens
em iniciação científica e tecnológica. Recebeu homenagens e prêmios, com destaque para
o prêmio Baldacci 2012 de pesquisa em doença de Chagas. Atua no desenvolvimento de
materiais educativos e de tecnologias sociais articulando ciência, arte, saúde e alegria.

Tiago Marques da Silva


Natural de São Paulo e criado no interior do estado, Tiago Marques é formado em Artes
Cênicas pela Universidade Estadual de Londrina e mestrando em Artes da Cena pela
Universidade Estadual de Campinas. Em 2013 estreou seu primeiro espetáculo solo, “O
MELHOR SHOW DO MUNDO... na minha opinião”, que em 2018 o levou a disputar o

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Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos

Prêmio Gralha Azul de melhor ator do Paraná. Em 2016, com direção de Ricardo Puccetti
estreou seu segundo solo, “In Concertina”, que no ano seguinte lhe proporcinou uma turnê
europeia passando por 4 países. Em 2019 o ator completou 10 anos atuando como
Palhaço Ritalino em Londrina/ Paraná. No último ano, devido a pandemia, Marques
produziu inúmeros vídeos para web do Palhaço Ritalino. Neste mesmo momento criou
seu terceiro espetáculo solo, ""O Astrolábia"" com direção de Adriane Gomes, on-line e ao
vivo por meio das plataformas Sympla e Zoom."

Lolla Angelucci
Ilustradora
Lolla Angelucci é ilustradora, advogada, modelo vivo, mobilizadora de voluntários,
contadora de causos, mediadora de leitura, cenógrafa de carnaval, aderecista e todas as
profissões que a vida escolher. Formada em Direito pela Universidade Mackenzie e
cursando "O livro para infância: processos de criação, circulação e mediação
contemporâneos" na Casa Tombada, desenha desde sempre.

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Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos

Marcus Matraca

Filho da Dona Haide e pai da Tarsila; Eu sou Marcus Vinicius Campos, também conhecido
como Marcus Matraca, nome que adotei desde 2005 para assinar minhas produções
científicas e artísticas. Sou Bacharel em Ciências Sociais (UNESP), Mestre em Saúde
Coletiva (UNICAMP), Doutor em Ensino de Ciências (EBS/IOC), Pós Doutor em Ensino de
Ciências (EBS/IOC), Educador Popular, Músico, Ciclista e Palhaço. Sou docente no Centro
de Ciências da Saúde (CCS) da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB),
atualmente coordeno o Laboratório Ateliê de Educação Popular em Saúde (LAEPS) e
colaboro com o Laboratório de Inovações em Terapias, Ensino e Bioprodutos
(LITEB/IOC). matraca@ufrb.edu.br e coretosonoro@gmail.com

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Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos

Fábio Nieto-Lopez

Nascido em Campo Grande, MS, passei minha adolescência em Araraquara. Mudei-me


para Assis para cursar Psicologia na Unesp, e para Salvador fazer a graduação na UFBA
em Artes Cênicas - Direção Teatral. Em Salvador, fiz minha formação como palhaço e
trabalhei com os Terapeutas do Riso por alguns anos. Voltei para a Psicologia para fazer
o mestrado e o doutorado, também na UFBA. Atualmente trabalho em Itabuna, interior da
Bahia, na Universidade Federal do Sul da Bahia, UFSB, onde tenho me dedicado
especialmente aos estudos e práticas da cena, palhaçaria e teatro.

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Palhaçaria: Arte, Ciência, Saúde e Educação para novos Afetos

Este dossiê temático visa divulgar experiências artísticas,


metodológicas, relatos e pesquisas referentes ao uso da Arte da
Palhaçaria nos campos da ciência, arte, educação e saúde. Pensar
esta arte como linguagem e potência de transformação social,
numa perspectiva transdisciplinar dos saberes, nos possibilita
ampliar a compreensão da figura do palhaço para além do
picadeiro e dos estereótipos totalizantes. Nesta perspectiva,
nosso objetivo é traçar uma cartografia palhacesca a partir da
variedade de práticas e pesquisas que já acontecem em diversos
campos, destacando as desconcertantes criações desta figura na
trama social, apontando para uma convivência social mais em
contato com os afetos, o jogo, a ludicidade. Sejam todos, todas e
todes muito bem-vindos ao nosso picadeiro literário.

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