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ENTRE CURVAS E SINUOSIDADES: ‘A FABRICAGAO DO FEMININO NO CORPO DAS TRAVESTIS © homem existe em Fungo do seu corpo (Le Breton, 1996). As trax vestis, quando decidem se transforma, fisicae socialmente, so, com certeza, um exemplo dessa assertiva. E no corpo que elas localizam os principais simbolos do masculino e do feminino; ¢ investem conhe- Lime, timpo e dinheiro para que possum ostencar, sentir € exibit tum corpo diferente, um novo corpo. Mas como pensam e concebem esse novo corpo? Com que formas, com quais contornos, que textu- Este capitulo descreve os diferentes recursos que as travestis em- pregam para transformar seus corpos de forma a se construit cons- tituindo uma imagem ¢ uma identidade ‘femininas’. Para inicias, julgo importante situar as principais elaboragées tedricas acerca do corpo na antropologia, esclarecendo alguns conceitos ¢ interpreta- ges pertinentes a essa drea de estudos. Longe de querer oferecer uma tevisio te6rico-conceitual do corpo, esta segio procuraré ape- stay ressaltar alguuts poses forves do debate atual sobre o corpo no campo ancropolégico. ‘© CORPO: DE MAUSS AOS ANOS 90 H& muito que o compo tem sido objeto de atencao e investigagio da antropologia, A primeira vista, o corpo pode parecer desprovido das a) dimens6es simblicas culturais que a antropologia se dedica a com- preender. No entanto, desde Marcel Mauss (1974), que foi um dos primeiros estudiosos a resaltae o papel da cultura na conformasio do corpo, a antropologia tem trazido 3 cona essa questio, com o franco ebjetivo de validar 0 corpo enquanto objeto de estudo, desvinculan- doa das determinagbes fisico-biolégicas emprestadas pela medicina fe ciéncias correlatas, quase sempre soberanas no que diz respeito As cexplicagbes acerca desse objet. Mauss procurou explicitar que as préticas ¢ usos do corpo sfo diferentes segundo 0 meio cultural, antecipando, de certa forma, aquilo que se revelaria como uma das principais preocupagbes da Escola Culturalista Americana, como mostram os trabalhos de Ruth Benedict ¢ de Margaret Mead, por exemplo (Lévi-Strauss, 1974: 2), Desde entio, 0 corpo tem merecido atengfo dos antzo- ppélogos no que tange aos mais diversos aspectos, da sua apresenta- ‘10 ao seu funcionamento. Ademais, & no corpo que podemos lo- Calizar 03 acontecimentos eociais mais elementares, cama a nasci- mento, a eproduiglo € a morte, 05 quals, sabemos, estio pautados em significados culeurais (Augé, 1986). ‘Além de sugerir um proficuo campo de investigagio, 0 corpo vem se tomnando objero de interesse te6rico na antropologia. A partir das andlises que tém o corpo como objeto, passaram a ser desenvolvides conceitos € nogées, de forma a oferecer uma com- preensio avangada do fendmeno, Desenvolveu-se também uma drea espectfica destinada is preocupagées com o corpo, conbecida como antropologia do corpo ¢ da satide ou antropologia médica, para a qual os antropélogos brasileiros, em que pesem as diferentes {in)definigoes epistemoldgicas, in Lonstibuido de forma sistemé tica e original. ‘Na atwalidade, um dos principais impasses nas andlises desse fe- némeno encontra-se na polaridade estabclecida entre compo € ‘alma/mente, que caracteriza nossa tradigo cartesiana. A crenga na “Fic eta ines ude epson campo da apo do coro eda be ose sr econdat era Dua Le ngs) (898 Aes & Rabel og) (1998) Ares 6 Bain os) (1990s La org) (998) ene oes, independéncia da mente nos far ver no corpo apenas um suporte inerte para os feitos pessoais culturais, os verdadeiros sentidos re- sidindo nos niveis racional e mental. Nesse quadro, que atualmer te parece superado na antropologia, pelo menos no Ambito conce ‘wal, a mente/alma ocuparia um lugar mais préximo da cultura, porque inventiva, criativa, artificial, em contraposiga0 20 compos identificado com as qualidades naturais e imutaveis da biologia. Mauss faz essa disting&o, ao analisar a temética, em artigos sepa- rados: “As técnicas corporais” (Mauss, 1974a) e "A nogio de pes- soa, a nogio do eu” (Mauss, 1974b), ambos jé clissicos na literatu- ra antropoldgica, Desde entGo, muitos autores tém produzido ‘obras ¢ conceitos que se propoem a superar 2 dicotomia ¢ a de- ‘monstrar a artfiialidade dessa cisio, cocrente apenas com os valo- res da cultura ocidental moderna. ‘Alguns conccitos que procuram superar essa divisio podem ser encontrados, por exemplo, na obra de Pierre Bourdieu © de Tho- ‘mas Crordas. Bourdien (1994, 1995, 1980), em sia tenria da pr tica, afirma que 0 corpo € o espago onde esti a cultura, onde se si- ‘tuam os principais esquemas de percepsio e apreciagio do mundo, formados a partir das estrururas fundamentais de cada geupo, como as oposigSes entre alto/baixo, masculino/feminino, fortelfia- co ere. A cultura é incorporada por meio de um mecanismo bésico que ele denomina habitus. Assim, o habitus € a propria naturaliza- fo da culturs, porque € 0 operador légico que promove a ligagio entee um nivel propriamente simbélico (cultural) e 0 espago cor- poral (natural). Assim, segundo Bourdieu, nao haveria um estrato puramente biolégico do corpo, governado por leis naturais, como guctem as cigncias médicas ¢ bioldgicas, © corpo, mesmo no sc nivel mais “natural”, € um produto social, porque esta (de que hi tum nfvel puramente natural) é a nossa representagao sobre le. © corpo € formado, para Bourdieu, segundo alguns esquemas ‘cognitivos de oposigdes bdsicas que produzem sentidos para préti- «as, crencas, atitudes ¢ relagées. Assim, as experiéncias priticas do ‘corpo estariam informadas e formadas pelos esquemas de percep- fo e apreciagio que sustentam as estruturas fundamentais do uni- verso social de cada grupo. As representagGes, para Bourdieu, s40 incorporadas, estio presentes no corpo como um todo, porque a cultura estd incorporada, e nao é vivida como uma determinagio dde uma estrutura superior ¢ externa ou como um esquema simbdli- co depositado sobre o corpo. Essas formulagées pretendem superar aquelas interpretagées que localizavam a cultura em um nivel “mental” ou mesmo “racional”, no estilo postivista durkheimiano também maussiano, “Thomas Csordas (1988, 1994), a partir do conceito de habitus de Bourdieu e dos desenvolvimentos da tcoria da percepcio de Merleau-Ponty, pretende emprestar ao corpo uma qualidade maior: para ele o corpo nao € apenas um tema de estudo da antropologia, mas, antes, um paradigma, um método para a disciplina; 0 corpo é “a base existencial da cultura” (1988: 5). Csordas desenvolve 0 conceito de embodiment para dar significado a essa participasao do corpo na producéo dos sentidos ¢ simbolos atribuidos as mais va- tiadas praticas sociais. Para este autor, o corpo nao é uim suporte de significados, mas um elemento produtor e 0 cenétio primeiro des- ses significados. E no corpo e por meio dele, segundo a teoria do embodiment, que os sentidos atribuidos 20 masculino ¢ ao femini- no pelas travestis, por exemplo, se concretizam. ‘Numa diregio semelhante, Scheper-Hughes 8 Lock (1987) apre- sentam o conesito de mind! body, que pretende superar as divisses tradicionais entre corpo e mente, uma vez que as autoras acreditam que as concepgdes sobre o corpo sio fundamentais para os pressupos- tos epistemoldgicos que orientam os desenvolvimentos tesricos na antropologia. Assim, 0 compo deve ser concebido para além das tradi- cionais divisées entre fisco/menta, espirito/matéria,racionaliracio- nal. Para superar essas oposig6estipicas da cultura ocidental moder- hha, apresentam 0 corpo como tum artefato produzido simultaneamen- te pela cultura e pela natureza, concomitantemente fisicoe simbilico, ttipartido entre um nivel individual (0 corpo individual), um nivel social (0 corpo social) ¢ um nivel politico (o corpo politico). ‘Nao cabe alongar a apresentagio das miniicias tedricas contidas cem cada formulagio, mas ressaltar a importancia que essas nogles e assumem neste trabalho. Os dados © as informagées sobre as modi- ficagées ¢ intervensées corporas levadas a cabo pelas travestis aqui descritas foram recolhidos e observados pelo prisma da nfio-separa- fo dos niveis fisico e simbélico. As travestis, ao investic tempo, di- nnheiro © emogio nos processos de alteragio corporal, nfo estio concebende 0 corpo como um mero suporte de significados. O corpo das travests é, sobrerudo, uma linguagem; & no corpo e por meio dele que os significados do feminino e do masculino se con- cretizam € conferem & pessoa suas qualidades sociais. Eno corpo que as travestis se produzem enquanto sujcitos |AS TRANSFORMAGOES NO E DO CORPO: TORNAR-SE UMA TRAVESTI [Nas préximas segées deste capitulo apresento uma descrigio dos prin- cipais processos eriados ¢ experimentados pelas travestis para levar a cabo 0 projeto de ser feminina, As alterag6es corporais so muita e vivenciadas de diferentes formas, Ainda assim, creio ser possivel apre- senté-Las em uma seqiéncia, que me pareceu. a mais comum, que vai do extemno para o interno, do temporério para o permanente. Isto, entretanto, nfo quer dizer que todas as travestis que contribuiram para a pesquise enham vivenciado seus processos de transformacio nessa ordem ou dessa forma. Trata-se de um recurso narrative, que julgo 0 mais apropriado para que os leitores tenham a real dimensio da importincia dessas modificagSes na vida das travesti [AS MAS € um cARKO AAs mios'e a cabeca so as primeiras partes do corpo 2 serem “fei- tas", talvez por ser um processo mats fécil, menos invasivo se com- parado ao uso de horménios e as aplicagées de silicone, que adiante sero descritos, Nas mios inicia-se um trabalho intenso com as, tunhas. O esmalte colorido ainda & um produto fortemente associa- do as “mulheres” em nossa sociedade. As unhas comegam a ser cui- ddadas com muito esmero e esmalte As travestis normalmente pre- ferem as unhas compridas e pontiagudas.' A maioria usa freqiente- sea sa mente esmaltes coloridos; algumas utiizam apenas um brilho leve (que pode ser usado de dia e 4 noite). Os tons mais utilizados pelas travests sio as muitas nuancas de vermelho, que sio quase impera- tivas, e também as cores da moda, ditadas pelo mercado, As unhas postigas (fabricadas em porcelana) também so conhecidas entre as travestis, embora parecam set mais utiizadas por aquelas que Re nacionais efou intemnacionais em boates e ambientes de freqiigncia hhomossexual) ou em situagées festivas, para as quais a produgio & meticulosamente planejada* Da mesma forma, toda a maquiagem para o rosto — boca, po- rmulos, pélpebras, olhos ¢ toda a tex — comega a ser utilizada pela (ainda) bichinba ow bicha-boy, que aos poucos vai ganhando inti- midade € conhecimento de todo o processo de transformagio. Poderfamos talvez identifcar uma “fase de transigfo” entre o meni- no € a travesti, quando ele vai experimentando pequenas aleeragBes no corpo, normalmence modificagdes facilmente reversiveis, mas {que setven para wine identificagao com os atributos do feminino, ‘Ao se referir a esse perfodo, as eravestis se utilizam da categoria bi- chacboy, ‘A maquiagem tem um papel importanefssimo: além de ser uma prética historicamente associada a0 feminino em nossa sociedade' e contribuir para ressaltar ou oculear determinados tragos do rosto, cumpre a fungio essencial de ocultar os pélos da barba. Aprendi {sto logo que conheci as primeiras travests. Lembro-me de Claudi- tha contando sobre o dia em que nio teve tempo de se barbear ¢ precisou procurar um advogado: "Batei dois quilos de concreto na ‘cara ¢ fui falar com 0 advogado!” ‘Assim, camadas de base e pé compacto sao aplicadas sobre a face, com o objetivo de formar uma pele de ple, uma pele com * © fo dew nb sexo “sala acomalmene és come in cd no mon de ues pst ae que podem rar ci * Sobre wasn das ona ese apa sey "Sau Rocp oe avi a prot ‘ago, conn 9 pe I a6 "O Users Genera a Pring Sabie ar aac eae feminine oan rr Sa An (999, aparéncia lisa ¢ macia, que disfarce a linha de expresso, como so denominados pelas travestis os teagos do rosto que perfilam o nara ‘A base e 0 pé compacto constituem importantes inscrumentos na construgio corporal das tavestis, Elas usam esses produtos diaria- riente, em quase todas a situagbes publica, especialmente quando saem para o trabalho na prosticuiglo. E a parte do processo de ma- ‘quiagein uy capriclada meticulosamente exccutada, incessante- mente retocada, principalmente durante a noite, £ a garantia de ‘que a pele adquira uma aparéncia macia e suave, 0 que, no entender das travesti, so tragos importantes na fabricagao do “feminino”. Outros produtos, como o blush (normalmente em tons verme- Ihos ¢ vivos, usado para ressaltar a vivacidade dos pémulos), tam bém sio usados, embora mais raramente, em geral em ocasides fes- tivas ou em maquiagem para “shows”. Observa-se, contudo, que 0 Blush estécaindo em desuso, tornando-se obsoleto uma vex que se. objetivo jd no € mais importante na légica de diferenciagao dos agéneros, © bawwut € uormalucite uit dos primeivos produtos de ma- quiagem experimentados na tajetoria do processo de transformagio do género pelas travests. aplicado com o intuito de fazer a boca, isto & imprimir um formato mais redondo ou mais alongado, Por ‘veres, exe efeito também é alcangado com o ausilio dos lépis para boca, que colabora na definigso dos contornos dos labios, amplian- do-o ou diminuindo-o, Nao hi travesti que nao utilize bacom. E 0 item bésico da maquiagem e, normalmente, 0 tltimo a ser aplicado, isto <, somente ¢ utiliado quando os outros produtos que com- ‘pSem a maquiagem jd foram devidamente empregados. Hi travestis que utilizam somente o batom na sua produgio, ¢ néo hi bolsa de rravesti que nu leve ens seu intevior pelo minus un exemplar desse produto, A boca vermelha 6 considerada pelas travestis uma insignia por exceléneia do “feminino”, especialmente porque & formada como se comportasse em si uma sensualidade/sexualidade instigan- te, na opiniio delas quase irresistivel para os desejos dos homens. ‘Cosméticos para os olhos e pilpebras, como o rimel, o delinea- dor, a sombra e o lépis ou kajal também sfo amplamence emprega — aaa dos. Normalmente os olhos si0 “desenhados” com o auxilio desses produto, de forma a tornar 0 olhar mais linguido, mais insinuante (ao que me parece, normalmente associado a formas alongadas do ‘lho, com tragos bem marcados). Os olhos das travestis nao slo ca- ractetizados somente por produtos cosméticos, mas hé um investi- mento em transformar @ expressio do olhar, tornando-0 menos ob- jetvo, mats confaso e perdido, mais delicado, quase inocente e in- defeso, Segundo as ravestis, esas carateristicas podem ser adquiti ddas até mesmo quimicamente, como me disse Gabrielle: "..) até a exprestto do olhar de quem toma horménio ¢ diferense, € mais femini- nna", Outros recursos para realgar os olhos também podem ser acio- nnados, especialmente os cflios postigos e as lentes de contato colori- das, Estas dltimas gozam de grande status entre as “bichas", sendo amplamente empregedas, especialmente as azuis verdes. E certo que a produgéo da apresentagéo do rosto é, de todo 0 processo de “montagem”, a parte que leva mais tempo, sendo reali- zada com atengio redobrada. A maquiagem, com todos os produ- tos, macetes téenicas, é um fator importantissimo no processo de construsio da corporalidade e do género travesti, Por outro lado, constitui também, levando-se em conta a situagio econdmica da iaioria das travestis, um dispéndio mensal significativo, Todos os ‘exes elas priorizam a compra de algum novo produc para a ma- {quiagem, especialmente batom e base, que sio indispenséveis Ptios €crseros| Para as travestis, as caracteristicas corporais séo fundamentals no cesquema de diferenciacio dos géneros, Elas consideram os pelos, ¢ ‘especificamente a barba, como um dos signos que mais fortemente representam o masculino. Os pélos, portanto, so considerados um obstéculo constante na fabricagiofconstrugio do corpo travesti. AS ‘ravests latam cotidianamente contra a proliferasio dos pélos no cor- po, especialmente os da barba — pois 0 rosto, sendo a apresentacao da pessoa, é a parte do corpo que, segundo o ponto de vista nativo, deve dar a ver 0 maior niimero possivel de atributos femininos, As- ‘oon rar\o convo xoctusaoxs RAVES sim, vitias téenicas sfo desenvolvidas ¢ acionadas para diminuir 0 ciclo natural de produgéo de pélos pelo organismo e eliming-los sem que 0 processo prejudique ou produza efeitos indeseveis na texcura da pele, que precisa ser macia¢ lisa. A pina é um instrumento bisico de qualquer travesti e € muito dificil encontrar uma que nfo carregue esse instrumento na bol. Bla pode deseimpeuliar duas funiyGes importantes: acabar com a batba e modelar a sobrancelha. A barba é arrancada fio a fio com 0 auxflio desse instrumento (¢ as vezes sem 0 uso de expelho),’ num. trabalho minucioso paciente. As veres, gastam-se horas em fun- ‘0 do ehuche — forma como as travestis denominam a barba, tal- ver pelo aspecto espinhento do legume, a0 qual um tosto barbudo se assemelha, que precisa ser diariamente “dizimado”, Nao ha hora certa para dizimé-lo: o exterm{nio da barba € feito diariamente, nos momentos vagos do dia, realizado quase como um passatempo, uma atividade para preencher as hores. Das entrevistas que realize ‘quatro foram acompanhadas de tratos na barba com a pinga.* ‘Algumas travests, entretanto, nao tém tanta paciéncia ¢ utlli- zam aparelhos de barbear comuns, ainda que 0 resultado nio seja muito satisfatério: a pele fica Aspera e perdem-se pontos na cons- trugio de uma ‘pele de pésego”, inclusive porque o pélo, segundo clas, tende a nascer cada ver "mais forte”. Essa técnica exige 0 acompanhamento de uma maquiagem “de reboco”,’ para que as ‘marcas dos fios na pele sejam eficientemente disfargadas a cits adquira uma aparéncia suave delicada. ‘Outra técnica amplamente empregada € a depilagfo dos pélos fa- ciais com cera: aplica-se uma eamada de cera depilatéria quente ou fra (a quente é mais freqientemente utilzada) sobre a dreaa ser depilada e, ‘com um movimento rpido, puxa-se a placa de cera, arancando os pe los, Muitaseravesisreclamam da dor dessa operagio, que, no entanto, produz como recompensa resultados mais efcazes que # lamina. Segun- do as travests, a cera diminui a quantidade de fios que scem no rosto * Tamltn Tapes (1995) ober aio da pinga sem ous de expel * Ed ia (198337) ambn gia ei oe Ns eos > Exec itso in de mish inberaae, ¢ faz com que os pélos nasgam cada ver mais finos, facilicando a climi- ago com a pinga ¢ aparecendo menos. A depilacio com cera ¢ feta também em outras éreas do corpo, como axils, virilha, pernas e peito Esse procedimento € realizado em instiutos e centros de beleza’ ou em ‘asa, normalmente com o auxilio de uma amiga, pois requer prética © habilidade para aleangar cers éreas do corpo. As travestis reclamam ‘muito da dor provocada pela cera especialmente quando os pélos da virilhae da tegiao anal io puxados. A ida fregiiente a saldes de depilagZo € um recurso bastante uti- lizado para flcar lisa. Em Porto Alegre, encontram-se alguns salbes e centros de beleea que tém ampla clientela entre as travestis. Mi tas vezes esses saldcs tém travestis entte seus profisionais, As trae ir servigos que sejam executados ou adminis- trados por outras travesti, ou por outras “mmonai",’ com a esperan- 5a de serem bem recebidas ¢ nZo serem discriminadas, além de considerarem que estas sio, via de regra, melhores profissionais, A eletrlise (éenica que fez uso de um aparelho que elimina a per ete ete eae ete eee atica) nao & um recurso acionado freqitentemente. Embora quase todas as travestis conhegam © método, poucas se submetem a ele. ‘As duas informantes que investiram nessa técnica o haviam feito na Itilia, onde, segundo elas, o tratamenco é mais eficiente e de maior qualidade, além de mais barato ¢ mais comumente empregado nos tratamentos estéticos pela populagéo em geral. O tratamento com cletrlise necessita de muitas sessbes, que, dependendo da regio a ser depilada, podem durar vitios meses. Além do alto custo, a cle- ttélise nfo goza de muito crédito, porque as travesis aereditam que somente bons profissionais podem realizar essa técnica, sob pena de seqiielas permanentes na textura da pele do rosto." Também acredi vestis preferem utile * Ska (95536) mgm erp pclae de ela pce 20 Ri de ti, Poo Alge vt ler cet de epigofeghntr pl tear enn serge lion en se pu Amt iam te wo, tots pc fesse ut tt Hao Si cae: "Ober om mor rome de eeu con dp poi, um sata lids, poten tla qos oma peo 9 as gm, Lice me cans ‘Supe: os de cledie mal. Sh 993: 97 tam que a eletrdlise nfo é um tratamenco definitivo, pois, ainda ‘que os fios sejam eliminados pela raiz/bulbo, novas formagdes bro- tam no rosto, 0 que exige uma atencio constante ¢ renovada dia- rlamente para que nfo aparegam. Ainda assim ouvi algumas vezes, incluidos nos planos de viagens pata a Itéia, relatos sobre 0 sonho de retirada definitiva dos pélos da barba. Como me disse Paola: “eu quero ar e desacuendar todo ese chuchu.” “Com elesrlise?” per- \gunte, "Nao sei o que ela fazer gue voltam sem barba, mas en vow (fazer 0 mesmo.” ‘Travestis que tomam horm6nios, em geral, tm poucos pélos no corpo ¢, por isto, resolvem nao se depilar ou simplesmente desco- lorir os pélos, fazendo com que fiquem menos salientes e mais dis- crevos. A dgua oxigenada e os produtos descolorantes também so freqlentemente empregados por muias travestis para disfargar os pélos do ancebrago e de outras partes do corpo. ‘As cravestis conhecem minuciosamente as opgées tecnolégicas pra dar cabo dos pélos. Estio a par das novas téenicas que surgem @ cada dia, como as que utilizam 0 raio laser ou mesmo produtos qui- -micos (alguma marca de horménio que tem ago mais eficaz sobre a producéo de pélos no corpo, por exemple) para eliminar totalmente ‘ou promover novas conformagSes dos fos (deixando-os mais finos ou diminuindo sua produgéo). Trés informances haviam comegado re- ‘entemente a utilizar um produto chamado AnciWell, anunciado na tclevisto e cometciaiaado por um servigo de venda por telefone. Esse produto é um liquido indicado para ser utilizado apés as depilagdes, provocando a queda dos pélos que resistiram ao tratamento. © An- ‘iWell é aplicado diretamence sobre a barbs, para faé-la cair ¢ dest- parecer. Segundo declaragées, esse produto é altamente eficiente por- que produzido especificamente para ess objetivo. ‘Na luta contra os pélos, elas contam com a ago dos horménios femininos: depois de dois meses de tratamento hormonal, jd se pode observar uma diminuigSo na quantidade e na espessura dos fios. Os pélos do térax e das pernas nascem em menor quantidade, ea barba fica mais rala fina: “Toes agui, a gente few s com wma ‘penuger”, dsse-me Sandra durante uma depilagao em cas. = © préximo passo consiste em fizer a sobrancelha isto &, com 0 uso da pinga, modelar 0 supercitio de maneira que fique mais fino «curvo, dando ao olho uma forma alongada, Algumas travestis op- tam pela maquiagem definitiva, que consiste em eliminar pos com- pleto os pélos da sobrancelha e, a seguir, fazer uma espécie de taruagem na drea representando uma nova formacio do supercil soualiente bem fiwy © eutvu, Ease uacanene € realizado por pro- fissionais especializados em centros de estética. E comum também 2 retirada total dos pélos das sobrancelhas com a pinga, seguida pela maquiagem da érea, com um lipis ou outro produto seme- thante, para desenhar uma nova sobrancetha, Esta, em geral, tem formas curvas e alongadas e espessura decrescente, ou seja, € mais grossa no centro ¢ afina em ditegio aos cantos, Assim como 0 bax tom, a modelagem das sobrancelhas é um dos primeitos actificios acionados pelas travestis na sua construgio. Desde muito jovens, elas aprendem a modelar os superctios. Os cabclos também devem ser longos ¢ bem cuidados, sempre ‘com coutes femininys. Pousas Uaveotis usant peruca. A peruca — aque & chamada de picumd — é valorizada para a produsio de um visual diferente, mas, quando utilizada como recurso de alonga- mento do cabelo (0 que denota que quem a use tem cabelos cur- tos), pode ser motivo de ridicularizagio para a travesti, pois a equi- para a uma bicha-boy” © uso de tinturas e produtos (des)colorantes nos cabelos € fre~ aliente entre as informantes. Elas se mantém atualizadas sobre os inimeros produtos e téenicas que existem para esse fim ¢ conhe- ccem deralhes infimos sobre as vantagens desvantagens de cada ‘um, pregos e macetes da aplicacao, Todos os produtos existentes no mercado si0 utilizados ou testados, dos mais modernas e com re- Fernanda Aagper (am rv) dao: “aa eb un punino ao do ee “Maa ali nebo mo ge ue pecan fee onde: se pets sem bunds ew peruca” Abuquegor& Jann 9956. eae mb gu "mcr "pen uma sou ravers qu tm pra, pou as Om sa eto ‘aleve ur er que ia peers "pao a edo de asp Tags prea conve da corpora nes cursos tecnolégicos avangados aos mais simples e ttadicionais, como o Hené Maru, um produto cremoso usado para alisar cabe- Jos crespos, em getal por pestoas negras. Os cabelos podem variar nna cof, na textura, no volume e na forma, Mas tém que ser com- pridos, o que algumas travestis conseguem “botando”, lieralmen- te, um cabelo. Compram mechas longulssimas c aplicam sobre o seu proprio cabelo por meio de técnicas especificas de entrelaca~ mento — o interlace — feitas em sal6es de cabelereiro. Assim con- seguem adquiti cabelos compridos de um dia para 0 outro. ‘Observei também (esporadicamente) o emprego de apliques ou franjas posticas, para ressaltar determinada caractertstica de alguma personagem. Mas as longas madeixas sempre sio exibidas com ‘muico orgulho ¢, ademais, fazem parte de um jogo de cena muito ccomum entre a “monas’ virar para o lado, jogando, antes do cor- ‘po, todo o cabelo, como 2 mostrar uma certa displicéncia (quase sarcéstica) ou uma descompromissada superioridade sobre todos. ‘A.questto DA voz ‘A vor 6 ourra caracterlatca que acusa a condigao biolégica da travest. [Em muitas situagbes é a vor que “denuncia” a travesti, prejudicando determinada performance. Algumas “monas” acreditam que o horm®- rio tem agdo sobre as cordas vocas, afinando a vor. Mas todas relax tam a vor grossa 20 acordar — 0 que, ademais, ¢ sempre motivo de boas gargalhadas, Heli Silva demonstrou como a vor € 0 sinete dessa condicao biol6gica (Silva, 1993: 16). A transformasio da fala é feta forgando-se diariamente a voz, de forma que as palayras e os fonemas sejam pronunciados num tom mais agudo, normalmente em falseee. Com 0 habito, a nova conformagio da vor acaba se impondo, ¢ as travests uilizam esse tom agudo no cotidiano. Sandra (que trabalha como telefonista) din, brincando comigo, que “(..) pela manha engulo uma disia de ‘gaiinkos", referindo-se 20 tom arrastado € manhoso emprestado & ‘vor, complementando a construsio do ferinino, Maacas coRPoRAIS Muitas “mona” t8m marcas de violéncia ¢ mesmo de auromutlagao no corpo. Isto é mais comum entre as travestis com mais idade, que viveram “outras épocas". Parece-me que jé fazem parte do folclore as histérias de eavestis que andavam com laminas sob a lingua para se defendes, ainda que a violencia seja uma constante na vida dessas pessoas — 0 que, de resto, deve produzir vérias marcas (nfo apenas fisicas, mas também psiquicas e sociais) Entre as informantes, algumas tém os bragos marcados com fi- leitas de cicatrizes, orelhas rasgadas ou cicatrizes no rosto. Cleudete ime conta que em outras épocas (hi 15, 20 anos) era comum a po- licia recolher as bichas que estavam se prostituindo ¢ levé-las para 0 Presidio Central, Isto era muito temido, porque, além de serem hhumilhadas, eram estupradas e violentadas por boa parte dos en- carcerados ¢ dos carcereitos. Para evitar essa tragédia, quando a po- licia as apanhava, elas se cortavam nos bragos, 0 que fazia com que, cen yer de seteat encaminhadas para 0 presidio, fossem levada: pata um hospital, afim de serem socorrdas ‘As cicattizes no rosto, em geral adquiridas em brigas com outras travestis, com clientes ou em outras situagdes, podem significar um pesado fardo, porque esse tipo de mutilagao destréi o rosto, que é a propria apresentagio da travesti. Além disso, cicatrizes no rosto po- dem enquadrar 0 caréter da pessoa numa categoria negativa.!” As travestis que as possuem sio vistas como “perigosas” porque "..) sido aguelas que se misturam com os marginais’, segundo Barbara. A acusagio de cortada pode soar pesada em uma discussio, porque se refere explicitamente a um corte no rosto, o que denotaria certas ‘caracterlstcas marais da travesti [As ptiticas de automutilagéo, normalmente realizadas no mo- ‘mento da prisio, também eram acionadas pelas travestis quando jé estavam presas, como recurso para serem removidas do presidio para um hospital (um ambiente considerado mais “receptivo” do ‘Quem meloy dic inBtc de a orponis sabe deat scl Gofinan, nna. que o presidio, onde eram submetidas a constante pressio ¢ violé cia por parte dos companheiros de cela ou galeria e pelos carcere 103) ou mesmo para serem libertadas, devido ao receio por parte do delegado ou do policial responstvel pela operacio de assumir tes ponsabilidades maiores As ciesttives por anromutilagio entre as travestis que se prosti- tuem foram um dos primeiros aspectos que chamaram a atengio dos antropélogos no Brasil. Mort &¢ Assungao (1987) documentaram essa pritica entre as travestis da Bahia — e, por meio de fontes documen- tais, resaltaram a pertinéncia dessa pritica para todo o Brasil —, en fatizando seu cardter de estratégia defensiva em situagbes de desigual- dade, em que a travesti estd prestes a sofrer violencia maior do que ‘aquela resultante da automutilagi. Indicam que as ciatrzes resul- tantes das automutilagSes podem ser clasifcadas no rol da eatuagem ou de marcas corpora culturalmente provocadas. Denizart (1998:64) observou essa pritica entre as travesti cario- cas, apresentando depoimentos exemplares acerca do valor simbéli- co associado a tais eventos. Kulick (1998a: 8, 33, 217-8), em sua pesquisa em Salvador, também referenciou as priticas de auto- ‘utilagio como uma estratégia de defesa € negociagao em situagBes de risco para as travesti. Essas préticas jé haviam sido indicadas, para o mesmo contexto, por Neuza de Oliveira (1994: 74, 148), ‘Atualmente, entrecanto, essas atitudes parecem cada vez mais raras, estando presentes mais nas perspectivas do senso comum so- bre as travestis do que em suas proprias logicas e préticas culturais (© que se nota, com freqilencia cada vex maior, € 0 grande nimero de travestis que possuem tatuagens no corpo. Embora essa pritica seja comum entre 2 juventude em geral¢ venha perdendo, nos ilti- ‘mos tempos, seu cariter de marginalidade, chamouriie a atengio 0 fato de que entre as minhas informantes raras so as que nunca se submeteram a uma sessio de tatuagem. Algumas travestis exibem vias, de diferentes tamanhos, formas, cores e motivos. Poderiamos, ousadamente, sugerir uma correspondéncia (ainda que frdgil) encre as cicatrizes de violéncia e auromutilagéo, ostenta- das orgulhosamente pelas travestis nas décadas de 70 ¢ 80, com a proliferasio das taruagens entre as travestis nos nossos dias. Ainda que o assunto merecesse um estudo mais decalhado e espectico, é signifcativo que entre as poucas travestisinformantes que trazem marcas de automutilagio pelo corpo (em geral nos bragos) nenhu- ma tenha 0 corpo tatuado, enquanto que as travestis mais jovens, que se ratuam em massa, nfo tém e nfo querem ter marcas de cica- ttizes de agées violentas, especialmente aquelas reauleantes de auto- mutilagio. ‘A tatuagem tem um valor simbélico alto no mercado dos bens sexuais, pois esté investida de um poder de sedugi0 no-ordinirio, algo de outra ordem, “diferente”. E uma marea explicitamente “sexy” ou sedutora, inclusive porque algumas estio desenhadas em lugares sugestivos do corpo, ordinariamente investidos de grande valor sexual. As tatuagens so, como todas as marcas e cicarizes corporais provocadas, um artficio da escritura da meméria de um ‘grupo social no préprio corpo dos sujeitos que o compdem. (Qutras marcas ou sinais corporais provocados também so co- runs entre as travestis, As unateas deixedas pelas uplivayoes Ue sili cone liquido ¢ aquelas provocadas pelas cirurgias de implance de préteses de silicone sio sempre exibidas com uma certa dose de or- gulho c respeito, porque atestam os miltiplos esforcos e investidas realizados para construit-se, corporal e socialmente, enquanto tra- vesti. Esses sinais podem indicar que a experiéncia é a forma de co- nnhecimento mais valorizada nesse grupo. Todas essas intervengbes demonstram a énfase, tio presente en tte o grupo das travestis, na nogio de que o corpo precisa ser posto a prova, desafiado, reconstruido, ressignificado. O corpo como ins- trumento superficie especificos da meméria do grupo ja foi ex: plorady por Clastres (1990) em sua pesquisa entre os gualaqui do Chaco paraguaio. Para esse autor, o corpo € um meio de saber so- cial, ¢€ por meio dele e nele que a pedagogia da iniciagio tem lu gar. A marca proclama com seguranga 0 seu pertencimento 20 grupo” (1990: 128), diz Clastres, porque o corpo individual € 0 onto de encontro da cultura do grupo. Entre as travestis, é no corpo que se constroem as dindmicas e caraceristieas cultursis do ‘grupo. As regras c 0s sinais de pertencimento sio marcados no cor- ppo de forma a nio deixar a pessoa marcada nem seu grupo social cesquecer do seu lugar no conjunto social.” Sararos €nOUPAS ‘Quando 6 fla em travesti, a primeira imagem que surge na mente & de um homem vestindo roupas de mulher. E essa ¢ realmente wma ddas primeira atitudes das travestis na construsio do feminine. Mui- ‘as monas me contaram que, na infincia, se vestiam com as roupas ‘da mie ou da irma mais velha. Também me contaram que, quando ainda nio haviam iniciado a modelagem do corpo, era 4 vestimenta ‘que corparificava qualidades femininas. “Eu me vestia completamente indefinida, era uma coisa que ninguém sabia 0 gue ent, contou-me Jilia a respeito de si mesma aos quinze anos, antes de fazer uso de horménios. ‘A vestimenta constitui uma eficiente forma de comunicacto, Determinada combinagao de pesas, com costes, tecidos o cores ns- pecificos, transinite simbolos que informam aspectos essenciais da- quela pessoa e situacio, como 0 sexo, o género, a posicio social, a classe, a idade, 0 tipo de evento em questo etc. As roupas consti- ‘em, portanto, uma linguagem. EE com isto em mente que as travestis se montam. © ato de ves- tir-se com roupas de mulher € comumente designado nesse univer- 0 pelo termo émico monsagio ov montagem. A montagem & um processo de manipulagio © construcéo de uma apresentagio que seja suficientemente convincente, sob o ponto de vista das traves- tis, de sua qualidade feminina, Consiste num importante processo su wuunuiuydo da travesti, por ser ama das primeieas estratégios acionadas para dar visibilidade ao desejo de transformagio © tam- bbém porque constitui um ritual dirio, no qual se gastam horas de- cidindo e provando 0 modelo da noite. 1 squab cia por Dee rim (1995) prt emma utc ne omen ropes pope Toe Aap © guarda-roupa de uma travesti esté composto por, no minimo, trés classes de vestimencas, a saber: roupas de by, roupas de bata. tha c roupas de festa As primeiras s4o normalmente pegas de corte amplo e cores neutras que sio usadas em diferentes situagbes em ue 0 corpo travesti precisa ser “disfargado". Durante o dia, quan do estio em casa, ou precisam sair até a vizinhanga ou mesmo ir a0 centro da cidade para trtar de assuntos cotidianos, este serd vi. sual adotado pelas travesti. ‘A montagem para trabalho na prostituisdo ¢ outra: & noite, as travestis trabalham vestidas de diferentes modos e combinagées, sempre procurando ressaltar as formas curvas do corpo ¢ insinuar genitaisFemininos. A combinagio mais comum 0 uso de mini sain blusa decotada c, necessariamente, sapatos com saltos altos. ‘como calgas fusb, vestidas curtos e decotados, triquinis (uma pe Iisa ene made bigunk que fe muito sunt ents we Gis), meias de ndilon ou roupas com lycra No inverno, as noites so muito frias,e ito cria um problems Para o desempenho na rua, & espera dos clientes: como exibir as formas do corpo? Normalmente, inclusive nas noites de inverno, as tavestis nio trabalham com muita roupa, Permanecem com os scios, as pernas ou 05 quadris expostos nas avenidas, mesmo com insisténcia do vento e do ftio. Algumas usam longes casacos de pele (natural e sintética), e, medida que os carts desflamn 4 sua frente, abrem o casaco ¢ exibem a fina lingerie que vestem pot bai- As roupas intimas sfo um aspecto importantissimo na vida de uma raves Na prosttuigéo, elas usam sempre clcinkasfemininas mindisculas, que deixam as nddegas & mostra sutiis bandeia fon ‘mesa-taca, que t8m uma armagio de metal para apoio do seo, conferindo uma forma mais empinada ao busto. As cores das rou, as fntimas também sio sempre associadas com a sedusio: notmal- mente 0 vermelho, 0 branco ¢ o preto. A roupa fatima é usada de modo a ser exbids, ou sob a saia (normalmente muito pequens), Tigeiramente levantada de um dos lados, ou sob a blusa transparen. te; hi casos de travestis que se prostcuer vestindo apenas calcnha (© uso cotidiano de caleinhas femininas ¢ obrigatério por qual- quer uma que se empenhe no processo de transformagio do geae- to. E concebido como um sinal dizcrtico na construgdo de uma pritica feminina, Como eantraponto disso, temos a frase "Vai ves Fir uma cuert, patil” que wa raro é owvida nas quedras de prost tuigio, exclamada por algum transeunte ou mesmo por uma tra- ves com rloio a oura em siagies de desavens. Prases como sta constituem ofensas morais gravssimas, pois atestam ou de- nunciam o que seria um desempenho de género nao satisatéro, (Os vestidos de festa ou de desile podem ser instrumentos de sta- cursos de beleza para us. Com certa regularidade, promovem-se con: travestis, e 08 vestidos usados para esas ocasies so pecas muito va- lorizadas ¢ ostentadas com orgulho. As pesas preferidas para esses eventos sfo vestidas longos, em tecidos finos caros, como seda, paecé, lamé, cetim, e normalmente confeccionados sob encomenda por alguna enseureira, que pode st inclusive uma travesti, O vest- do ou 0 sraje constitu um dos quesitos avaliados pelos jurados nes- ses certames pode ser decisivo para o vtulo, o que também explica ‘© esmero dedicado a essa pega. Virias das minhas informantes jé casio vestidos participaram desses concursos e produziram para a ticamente ornados e decorados com toda sorte de acessbtios. (Os vestidos tém que ser compridos, até os pés, com decores avantajados © uma quantidade de detalhes, como caudas, borda- dos, drapeados, migangas, lantejoulas,lagos etc. No se economi- 2am ness dealhes vets, usta pops de mess am confecgio de uma tniea peca, que provavelmente sé serd sada toma ver, jf que repetie ropa em desfile é um fato altamente des- prestigiado pelastravestis. Nos termos de Goffman (1993), consti- tuiria um falso desempenho. ‘As cores ptediletas para tas situagdes sio as neutras ou discre- tas, como 0 preto, 0 aaul-escuro ¢ 0 salmo, mas podem-se ver também pecas em vermelho-carmim, amarelo¢ fitesia. No entanto, ‘© mais importante #0 os detalhes, os bordados, os drapeados, as a) rendas ¢ 6 desenho, que transformam o vestido em uma pega espe- cial, nics, que rele 0 préprio “erela” da travesti que o veste (Os casacos de pele situam-se na mesma classe das roupas de fe ‘a, Normalmence chamados simplesmente de pel, esses casacos si0 itens muito valorizados pelas monas, pois, além de serem carssi- mos, denotando que a travesti que o possui tem poder, pelo menos ccanimica, sia consideradns muita chiques. Coma me disse ise te: “Co.) &56 um vestidinbo pretoe aquela pele ¢ tu fica chiquérrina. A pele i fe toda & montager.” (s vestidos de festa ou de desfile, bem como as pels, podem ser cxibidos perante as outrastravestis como um instrumento de pres(- gio, como um sinal diferenciador que confere & dona mais respeito & poder no universo travesti. Possuir uma colegio de peler ou vestidos finos estédiretamente relacionado com a situagio econdmica daquela pessoa e, portanto, com o poder que desfruta nesse universo. Por isso, cessas pegas funcionam também como moeilas de toct: nfo raro, 0s vestidos de desfile ou 0s casicos de pele servem como mercadoria no pequenn mercado informal que existe entre a8 mona ‘Além das peles, outros acessbrios — bijurerias, apliques, lentes de contato coloridas, j6ia, dculos, bolsas, perfumes, lingeries so itens muito desejados pelas travesti. Elas conhecem bem as ferentes marcas ¢ 08 modelos mais atusis e valorizados no mercado. Algumas travestis esmeramse em comprar as marcas mais caras (normalmente vistas como as de maior qualidade), chegando a ad- 4 Fregiientemente, muitos dessesitens fazem parte do sistema de trocas: funciona entre as biehas um pequeno e esporidico comércio fem que acess6rios ¢ roupas sf0 trocados, comprados e vendidos, passando por virias donas. Desperrou-me curiosidade a insisréncia ‘com que algumas travestis barganhavam pegas ou itens de outa Acredito que a estratégia de comprar/trocarlvender éacionada peas travesti, em geral, devido a difculdade encontrada para comprar pecas de vestuério no comércio normal. Os tamanhos poco apro- priados, a nfo-accitagéo para credidvios, a discriminagéo enfrentada fem qualquer situagio piblica s6o fatores que impulsionam esse co- rmércio informal. Atualmente, € mais ficil encontrar comerciantes cspecializados em produsir e vender roupas para ttavests. Essas roupas siofabricadas em pequenas confecgbes cascitas e depois ven- didas pelos préprios producores nos locas de prostcuigéo dusante a noite. Em vitias ocasies, colaborei com alguma travesti na decisso da cor de um triquini ou de uma blusinha na quadra de prosticui- io. O comércio ¢ 0 mercado de toca sio mostras da inventivida- de e criatividade das travesis em criar novas priticas sociais com 0 objetivo de contornar os constrangimentos a que esto sueias Entre os itens mais presentes nos circulos de escambo e comércio estZo 0s calgados. Os sapatos sfo um produto valorizadissimo pelas rmonas, que normalmente andam de salto alto. Como a maior parte vive da prosticuigio ¢ fica andando durante ses a dez horas por noi- te em calgadas e suas eshuracadas,o salto acaba estragando, Iso ¢ resolvido sevestindo-o com bala de revélver ou fuzil usadas, a firm de protegé-lo. Os salositalianas — sapatos com saltos aleissimos (normalmente entre 18 e 20 cm) e muito finos, produzidos em me- tal super-resinente — sio produto de luxo, ¢ quem 0s fem no os dispensa facilmente, (Os models de sipato com saltos altos so normalmente produ- dos para pés pequenos, © que néo €0 caso das cravestis. Enconttat sapatos bonites e que caibam nos pés € outra dficuldade cotidianay dat 0 sucesso desses produros no mercado informal da noite. Quan- do produzidos sob medida, o que acontece com freqiéncis,sapatos de salto alto custam muito caro, normalmente o dobro do preso praticado em qualquer loja do comércio local. Em Porto Alegre, hd ‘um sapateiro recomendado pelas informantes. E 0 sapateiro que as atende sem discriminagio, a nfo ser aquela presente no prego dos cealeados. que castam mais caro do que 0s vendidos no comézco lo- ‘eal, Seja qual for 0 modelo de ealgado utilizado,o salto alto é outro signo por exceléncia da dimensio feminina Mas, para uma boa monzagem, nfo basta usar tal vestido ou tal sapato: 0 importante é ter estile, Néo se pode combinar, como me disse Lisete: “um westide de matha branco com uma bota preva e wma bolsa marrom. Que palhagada: ea tava ridieula!” (comentando s0- bbre a roupa de ourra travesti). As travestis que incorrem nesses er 108 de estilo sio muiras vezesidentificadas como caricataspelas oW- tras personagens do universo srans, em referéncia & imagem burles- ‘2 apresentada pelos cradicionais “blocos de sujos” do carnaval bra- sileico. Denota, ademais, que tal pessoa nfo tem familiaridade com ‘0s padrées do gosto presentes nesse contexto social, nem tampouco uma configuracio de género formada ou “verlsdeirs!. Traa-se, na ‘opinigo das informantes, de um “homem disfarcado de mulher” © esl, para as travesti, éuma personagem que vai sendo constru- daa cada esforgo implementado no proceso de ransformacio do gé nero, As tavestis precisam aprender toda uma série de investimento, que vio além do guarda-roupa, O esl vai eambém conformar os ges. tos, a impostagdo da vor, a forma do eabelo, a maquiagem, o balango no andar e até mesmo a propria maneira como a bicha vai se rlacionar com as outrastravestis © com a sociedade. E preciso que ess personae gem apresente coerénci entre 0 vest, o geticlar,o fala, 0 pensat 0 andar etc. Enfim, o estilo € quase uma personaldade, é um conjunto de preferéncias e manciras que. a principin, éa estampa daquela peecon, E ‘© modo como ela quer ser representada (ou representa?) para os outros ators sociais com quem convive e para roa a sociedade, Nio € i toa que as cravestisrém tamanha dedicagio & questio das roupas e da sua apresentagio nos diferentes espagos socials em {que cizculam. As vestimentas so um efciente meio de comunieca- fo, vestindo também a pessoa de diferentes aributos sociais. Le ‘0i-Gousham (sd: 162) sublinkow a importincia do vestuirio e do adorno como formas eficientes de comunicagio ¢ de reconheci- ‘mento social. E por meio das roupas e dos acessétios que se pode identificar 0 sexo, a idade, a posigSo social de uma pessoa. Estes S40, de fato, simholos importances da cultura de um geupo, ama vex que servem para localizar e diferencias, no universo amplo da cidade, as pessoas que dele fazem parte. Poderiamos também afe- ‘mar que as toupas dizem muito a respeita da posigio social, uma vex que © gosto, que define os formatos, as cores, os adornos, 6 ‘marca fundamental na diferenciacio das classes (Bourdieu, 1983). No processo de transformagio do género vivenciado pelas travestis, Took Femso como Lo Ge DAS TRRESS as vestimentas ¢ os adornos sio pegas importantes, pois tém a fun- ‘gio de comunicar 20 grupo e As pessoas em geral caracteristicas ¢ acributos da pessoa que os porta. ‘Carsuias oe weezs (0US0 0 HORMONE A FABNICAGAO 00 FEMINNO DAS TRAVESTS © corpo roligo representa as formas femininas, As formas e linhas quadradas,retas e angulosas do corpo de homem precisam ser mode Jdas para adquirr uma aparéncia edonda e rolig. & aqui que entra 10 uso dos “qulmicos” (Lopes, 1995: 229), 0s dois produtos wsilizados para models 0 corpo: 0 horménio eo silicone. ‘As travestis,em geral desde a puberdade, passam a produaig, a par- tir de um corpo com aparato genital masculino, um novo corpo com apresentagio feminina, ou, como me disse Mércia, comentando sobre as formas do corpo de sua companheira Gabrielle, um corpo de traves- 1. E quase como um segundo nascimento, conforme a metéfora em- regula pur Silva ¢ Florentino (1996), um segundo naseimenta com tun novo corpo, com im corpo feminino, que tem, por sua ver, quae lidades eaributos diferentes do corpo da mulher. ‘As travests fizem uso de uma sétie de técnicas, produtos ¢ in- vestimentos para a produgio desse corpo e da condigSo ferinina, Embora seja possivel estabelecer e visualizar regularidades nesse processo de transformacio, cada travesti o vivencia de wma forma singular, com tempos “fases”espectfices. Uma das primeiras resolugées importantes na vida de uma tra- vestié iniciar 0 so de horménios. Se até entTo as interferéncias com 0 objetivo de construcio do feminino sobte o corpo se redu- lam a eventusis moncagens ou poyuenos deralhes, como um brilbo nas unhas ou uma modelagem nas sobrancelhas, com o tratamento hormonal as mudangas corporais se mostram mais vistveis e mais definitivas: os seios se desenvolvem, a silhueta se atredonda, 08 pe- los do corpo e da barba diminuem em quantidade e amanho. Sub- rmetet-se a tratamento hormonal parece identficar-se com a prd= ptia decisio de incorporar a identidade travesti Modo de usar e peiologit — Os horménios femininos sio normal- ‘mente o primeito (¢ para algumas o nico) produto a ser acionado para esse objetivo. Boa parce as travetis inicia a ingestio ou apli- casio de pesadas doses de medicamentos contendo progesterom & cestrogénio na adolescéncia, em geral por volta dos 14 ou 15 anos Essas substincias comesam a agir sobre 0 organismo, desenvol. vendo os seios, aredondando os quadris © 0: membros inferioree supetiores, afinando a cintura (e a voz, segundo algumas*) e dim rnuindo a produgio de pélos, especialmente os da barba, do peito ¢ das peenas. Os medicamentos para tratamentos hormonais (normalmente indicados como mérodos contraceprivos ou para reposigio hormo- nal na menopausa feminina) séo utilizados pelas travestis brasilel- 1a8 hf aproximadamence trinta anos. Cleusa, 50 anos, me conta que jé tomava horménios no inicio dos anos 70 e conseguia alterar as formas ¢ desenbos de seu corpo. Arualmente existe no mercado uma infinidade de marcas de medicamentos & base de horménios, comercilizados na forms de comprimidos, ampolas injetives e, mais recentemente, de placas auesivas que, aplicadas nas costa, fazer com que 0 horménio sea. absorvido lentamente pela pele.” As travesti utlizam praticamente todos os medicamentos a base de horménios e conhecem bem os ‘nomes comerciais, os pregos ¢ os principais efeitos que eles produ- em em seus corpos. Normalmente, porém, adotam um tratamen. to baseado em apenas dois medicamentos, que sio aplicados de Forma alternada © sratamento pode seguir diferentes prescigdes, depende dos conselhos que as tavestis recebem de amigas mais expetientes ¢ da observagdo dos efeitos, desejados e indesejados, no corpo — ¢ na ‘Pessoa, como veremos adiante. Assim, algumas travesti consomem dduas doses do medicamento A para uma do medicamento B; ou- foe infrmyes e um miico, hat tm ao bi sons conn * Somer uate de rnd ve ease, ma sno Bain Bs ‘geo rte el wok reo como Eo sho oases 2 By outras to- tras tomam uma semana a pflula A e na seguin mam ambas todos os dias ec. Nio ha uma prescrislo padrio para o uso desses medicamentes, ‘Uma recomendagio comum enere as travestis indica o consumo de dois a és comprimidos por dia ou a aplicagao de duas injesbes por semana, para quem esté comesando e quer desenvolver suas een eee utengéo. Mas uma parte das travestis duplica ou mesmo triplica as doses com a esperanga de que as mudangas se Fagam notar mais ve~ lormente. Algumas, quando iniciam a ingestio, chegam a tomar uuma injeso ou uma caixa de comprimidos por dia, com 0 objetivo de que 0 corpo se transforme rapidamente. Algumas travestis aconselham seguir 0 tratamento em jejum, tanto para as cpsulas quanto para os injetaveis, pois acreditam que assim, sem a interferéncia de outras substincias, 0 horménio atue ‘com mais eficiéncia na tarefa modificadora. Algumas adotam a pré- tica de alternar a ingestio de hormBnios por txés meses com um periodo de abrtingncia de um més, pars decemaro corpo, antes de voltar ao tratamenco, Boa parte das informantes pratica essas interrupeées no trata- mento porque cré que 0 uso de horménios pode vieiar. Mas 0 - ‘iar nfo & percebido de uma forma negativa; é, a0 contrério, enca- rado como algo positivo, uma vex que se trata de uma mancira de acestar aqueles atributos femininos que estio sendo construidos e aficmados, Assia, as eravestisafiemam estar viciadas no uso de hor- rménios com um certo orgulho. As interrapgbes no tratamento so cencaradas como uma maneira de compensar os efeitos colaterais dos medicamentos. Esses efeitos, por sua vez, também testemu- nnham a fabricagio do feminina nas eavests, uma vex que se manic festam por meio de comportamentos e priticas identifcados nesse grupo com valores do feminino, ese de sivas ialstrek grates fog © erie dle outra pessoa, que pode ser uma travesti ou mesmo a enfermeira da farmécia. Gabriele e Silvana me confidenciaram que feeqiien- tam semanalmente a mesma farmdcia, onde adquirem e aplicam aa suas doses de horménios, Poucas vezes obtive relatos de auto-api- casio de injesdes de hotménios. Esses horménios so normalmen- te injetados nas nddegas e as vezes no braso, Aquelas que tém sil cone no corpo devem rer cuidados redabrados para o uso de hor- iménios injetéveis, pois nfo se pode colocar a agulha na regio sili- conizada, sob pena de arunar a forma conseulda ou roves tuma infecgio. O peito nao € aconselhével. por er wma zegiso com ‘muitas veias, portanto com maiores riscos de complicaca0. Diana foi a Ginica informante que relacou injetar o medieamento direta- mente no peito, porque acredita que assim o seio se desenvolve mais répido e com mais vigor. aise horménios também pode se evelar uma aventura uitas travestis relataram que, quando menores de idade, nega. tunthes odicvo de adgutr hoxmenios, © motivo da rept pode ser discriminagio ou mal-atendimento por parte dos funcio- nidrios de Farmécias, Clarissa me contou que compra seus medica. ‘mentos sempre na mesma farmécia, indicada por uma amiga tra- vestin porque ali sente-se & vontade e hem acendida, Margarete, ‘uma das informances, goza de uma situagio especial: procurou um servigo piblico de saide ¢ solicitow & médica que a atendeu — 'uma antiga conbecida sua — a indicagio do melhor horménio a ser usado, Além do conselho técnico especializado, também garan- tiu que a médica comprovasse que ela softe de uma disfngdo sexual (Cermo émico), garantindo assim o fornecimento mensal do medi- camento pelo servigo piblico de saiide. Ela toma Andiocus, am ddos mais caros dentre os medicamentos & base de hormBnios exis- tentes no mercado, Indicagées — Os principais eins dos horménioe no orgenismo, se- undo as travestis,sio as modificagées das formas corporais, como 0 desenvolvimento dos seios, arredondamento ¢ suzvizacao dos joelhos, ppernas, quadril e bragos;redistribuigdo uniforme da gordura por todo o corpo; diminuigio da produ de pos pelo compo: os pélos do peito © ddos membros fcam com a textura mais fina e crescem em quantidades infiniamente menores, chegando mesmo a sumir em algumas pesoas, 1WonFerAocomro Eo into OAS ATS ‘como nos casos de Silvana e Sandra, que ndo ém mais pélos no peto Os pélos da barba sio mais resistentes ¢, ainda que sua producto ¢ textura diminuam, requerem cuidados especias* As travestis relatama também uma diminuigio no tamanho do pénis e dos testculos(algu- mas afirmam que estes diminem tanto que néo podem sequer serem pereebidos pelo tito), bem como a producio de esperma, que se rorna mais aguado", menos consatente em menor quantidade. ‘Além dos efeitos fsiolégicos, as informantes acreditam que os hhormdnios também exercem influéncia nos modos de sr, de andar, de falar, de pensar, de sentit. © horménio € concebido como o vel- culo do feminino, como se 0 medicamento suprisse 0 corpo de algo que the estavafaltando, como se estvesse corrigindo “um erro dda natureza Gabrielle airma Ex acho que o horménio na vida de wma travesti éa feminildade tds, tudo of ligado an borminio. Inclusive, em amigas minhas aque, quando wdo & farmécia comprar horminios elas cosumam Colocar assim, d: ‘eu vow comprar belezd: porque 0 borménio & realmente a beleza na vide de uma travesti. Fle ajuda na ple, que fica mais aca (.), inibin o rescimento de pelos, desonoloes a ‘lindula mamdria,entendew,arredondow formas, até a expresifo do olbar de quem tonou bormtnio & diferente (.). A gente fea ‘mai feminiva pra fala, pa sentar, tudo iso & efit do ormbnio no teu organism, Para que o tratamento com horménios tenha efeitos ideas, isto 6 pata que seja instaurada essa condicio feminina de Forma plena, aconselha-se &s travestisiniid-lo na época da puberdade, Acredita- se que assim 08 efeitos sejam praticaniente ineversivcs, pois o corpo que comega a receber dases macicas de horm@nios femininos ainda é um corpo indefinido, corpo de menino que nfo adquiriu os contomos duros e angulosos do corpo de homem. E como se "Se of elas espacio como chchn (a barb), ve eso acon Us ¢ Cable ainda ‘Berd 199, Lops (195) Sie 1993, aa ae tatamento barrasse a agéo dos horménios masculines produ- 4idos pelo organismo, Segundo Sandra: &, é bom comezar a tomar cedo porgue datos hormbniosfeam nai fortes no tew corpo e ambi porque & mai fel para el sorque tudo € ainda lsinbo asi, nd tem barb (..) Ponte 6 ‘corpo ndo tem ainda muita testoserona. Ecomo ation (.) ele anula alguns fives da tetesrerona A representagdo da agf0 dos horménios no organismo varia ‘muito entre as travestis, Algumas apresentam justificaivas com force apropriagdo das explicagdes e do discurso médicos, Gabrielle, Por exemplo, me contou numa entrevista que fez um exame de contagem hormonal para medir as quantidades de horménios fe, tmininos ¢ masculinos presentes no seu corpo e poder, a partic de aconselhamento médico — que, bem entendido, nfo ¢ definitive Para o tratamento hormonal —, otimizar as quantidades e os ef tos dos horménios femininos no seu orginismo, Outras dizem nag saber exatamente 0 “caminho” que 0 hormAnia percoree no crgar nismo, mas afirmam saber que ele “entra” no sangue ¢ entse tones conta de todo corpo. £ corrente a ideia de que ees medicare ‘0s instauram uma nova condigfo no corpo: a condigao de travest, Contr-indizagbes — Além dos efeitos fscos © comporamentas jf citados, as uavestis observam que o tratamenco hormonal trar uma sctic de conseqiléncias, que, ainda que pereebidas como indesejadas, ontribuem ¢atestam a construgso dessa condiggo feminina Os principais efeitos colaterais dos matamentos hormonais relarados elas informants parecem ser: inchago das pemas e pés (especial, Iente no verio): wrengio de égua pelo organismo; diminutao do apatite sexual e da possblidae de eregfo: aumento do apts pro. ensio a varies; preguigasapatas pouca disposgfo fica, Os hoemnd. nos também fazem com que as pessoas fiquem, segundo as travis, Inais iriadasatacedas,enjoadas,além de afinar o sangue, ‘A imposibilidade de eregio resulta num problema prético, uma Yet que, na prostituigéo, o pénis é parte do instrumento de taba. tho das travestis elas necessitam das eregGes para satisfazer os clientes © ganhar dinhciro. A objetividade dessa situagio faz com que muitas eravestis dosem o consumo de horménios de forma a regular esse efeito colateral, para ndo prejudicer suas performances no trabalho, Outras abandonam o tratamento hotmonal para ga- rantir mais possibilidades de trabalho no concorrido mercado da Pata regular os efeitos colaterais, algumas travests adotam um fratamento & base de vitamina E, Outras, embora também relatem efeitos indesejados, ndo fizem nada para combaté-los, E ha ainda ‘aquelis que, com o intuico de melhorar sua disposicto flsica,to- ‘mam antibiéticos regularmente. Afinaro sangue parece indicar um processo de deblicagio geral do organismo, um enfraquecimento do sistema de defesa que colo- 4 4 pessoa numa situago mais vulnerivel ao aparecimento de do- engas. O sangue é neste caso representado como um elemento de forss {fisica © moral) do corpo, 0 que cotrobora as observasses ‘pontadas por Duarte (1986) para as classes populares. Esse supos- to enfraquecimento tambéin é combatide pelas travests com a sestd0 regular de antibisticos,sobretudo o Benzetacil,” do qual al- ‘gumas dizem tomar uma dose a cada més. O nervosismo e a irritagio néo tém a mesma conotacéo atribul- da a0 sangue, que parece pertencer a um nivel mais fsico, Esses efeitos sio relacionados a uma disposigio para alteragées morais, ou seja: afetam a pessoa para além do seu organismo, perturbando suas relag6es. Creio que essa disposigéo sens/vel pode ser um sinal diacritico na construgio do feminino nas travestis. Conforme jd sublinhado por Duarte (1986), a irvitagien & uma caracterfetica asi= buida 2o feminino (a mulher teria uma qualidade mais nervose), em oposigio & forga, atribuida ao masculino (em oposigio & sensi bilidade). Em seu estudo sobre a concepgio dos nervos nas classes populares, Duarte aponta um esquema da construcio diferencial dos géneros. Pera 0 autor, a mulher e o homem sio caracteizados, [ee] por uma série de aspectos em oposigéo, numa relagdo complemen- tar € hierérquica, Assim, enquanto que & mulher se associam cle- rmentos de fraqueta, inteioridade e moralidade, relacionam-se a0 hhomem a exterioridade, o fisico © a forge. Uma caracteristica da mulher seria entio a propensio, socialmente legitimada, a ficar ‘ttacada ou irvitade, enquanto que 2 perda do controle consciente xno homem seria rara (Duarte, 1986: 180-1), O relato de Gabrielle citado acima ¢ esclarecedor sobre a nogio da ago dos horménios, que confeririam caracteristicas que vio além do fisico e das formas, conseruindo uma “mulher” (fisica e moral) (© traramento hormonal parece set 0 veiculo que integra e exttio- tna dimen fies e moral no univer da waves B com de que se adquitem novas caractertsticas nas formas do corpo, bem como novas partiulatidades de ondem moral — que dizem respeito 40 comportamento feminino na sociedade. A transformagao do géne- t0 conse s atm apart do ings nea rede de cone ‘mentos, exigindo uma intensa socializagio das novatas para que, len- tamente, com 0s efits dos hormenios,sura um “nd” feminine ‘Neste sentido, podertamos pensar nos horménios como os elementos ue estabelecem a mediagio entre 0 fisico e 0 moral, na medida em que agem sabre o corpo (percebido como uma realdade fisico-mora) € produzem efeitos tanto de ordem fsica quanto moral © horménio goza de um status prvilegiado: seu consumo pate- «ce sero elemento simbélico que determina o ingresso nessa identi- dade social em fabricasto, nessa molduca social possvel. As traves- fis somente reconhecem outras travesis nas pessoas que fazem ont Fizeram uso dessas substdncias. Tanto Helio Silva (1993:133) quan- to Suzana Lopes (1995:229) observaram também este fato: & tr esti quem (no mfnimo) toma horménios. © harménio (e conse qlentemente scus efeitos no corpo e nas relagbes) parece ser um instrumento riual de passagem, porque & junto com os seios e as foxmas aredondadas do novo corpo que a ave nace pass 6 mundo, que esse processo de transformagio se instaurae se eviden ‘eon re: cot tocbnno oxs AV BELEZA PLASTICA:O SLICONE EA CONSTRUCAO 00 CORPO FEMININO DAS TRAVEST © silicone € outro produ utilizado na construgio da travesti. O sili- cone & um caminho imperativo, pois nio tem volts: uma vez aplicado, sua rtirada é praticamente impossivel" O silicone é mais comumente tusado por quem jé rem uma histéria de uso de horménios e quer aprimorar as formas. A decisio de aplicar silicone parece ser muito bem pensada c refltida. Hi travestis que optam pela aplicages a sim que iniciam suas tansformagoes corporais;outras, como algumas informantes,airmam que "jamais fariam uso dese produo, ‘Aplica-seo silicone em praticamente todas as partes do corpo: pernas, oelhos, coxas, quadris, nédegas, seios, face, boca, testa etc © prodico é muito valorizado porque tem efeito imediato,jé que os resultados sio vsiveis logo ao final da operacio. Como me disse Silvana, "O silicone te dé formas que 0 horminio nao dé. E.usual- rente aplicado de forma caseira, normalmente por uma travesti sais velha (ouvi relatos de um médico em Sao Paulo que também faria esse servigo) com um nome muito famoso na praga, que é chamada de bombadeira — porque bombar €v avo de injetr silico nie. A bombadeina atesta seu nome pelos corpos que desfilam na quadra e que foram por cla construidos.” Por isso, normalmente sio pessoas muito respeitadas no universo travesti iim Porto Alegre hi omente ua Bombadria que mora na cia de, Hé outas pessoas que jé fizeram servigas esporiicos de aplicagio de silicone, mas que nao foram adiante com esses atividades porque as tentativas foram frustradas,resultando em servigos de péssima qua lidade, segundo a opiniso geral das minhas informantes. A bombadei- 1a que mora na cidade & bastante respeitada, ¢ seu servigo de bomba- Se U9 oberon uma te gue econo aloe do i, “oan er “home: ‘Une daha frat peede lone engin a de Ser ans me mon, on non ined ln ale 0 pole ps dled «aed cgi (urs infra, qu df on 8 iapeteeaorass ins dea nc die Sane que caithon ds lo prs ore cbs ans agen eine terug ples emul, * Viena Fred Alagus A prin "Ne ccd ge ‘ifs Sn sbi expat bu de are Compe omar, dn, edo oa lone Aboquge nel 1985.80 a) $40 é sempre muito elogiado e admirado pelas ravestis. Goza de boa fama, especialmente nas operagSes de modelagem de quads ¢seios, tna far aplicagdes em todas as partes do corpo, As declarasles ¢des- crigdes sobte os novos contomos que ela propicia com as aplicagies ‘io sempre enaltecedores de su talento para o servgo, reforgado pelo histdrico de trabalho como auxiliar de enfermagem. Quarenta e oito informanres desta pesquisa jd utilizaram seus servigos para moldar novas formas em diferentes partes do corpo, algumas inclusive duran- te 0 periodo da pesquisa de campo. Além dessa bombadeira, hi uma travesti que faz esses servigos € visita regularmente Porto Alegre para realizar aplicagbes e modela- gens. Ela vem de outra capital brasileira, onde vive, ¢ tem por aqui grande clientela. £ famosa no cixcuito das travests de Porto Alegre pela qualidade das novas formas que cria, especialmente nos novos tagos do rosto, alcangados com aplicagées nos ldbios, nos pbmu- los, na regido dos olhos, no queixo e na testa, Algumas informantes preferem fazer as aplicagBes em outros lo- ‘ais do pas, sendo que as melhores hombadriras, famosas # reco- shecidas em todo o Brasil, estariam no Rio de Janeiro e em Si0 Paulo, As vezes, hd discuss6es empolgadas sobre a qualidade dos servigos das dombadeiras,e algumas travestis séo fis, recorrendo Sempre & mesma para fazer as aplicagese retoquer que desejam. Eu procurei acompanhar informantes nas sessbes de aplicagio de silicone, No entanto, a desconfianga por parte dels no permi- tia minha presenga nessas ocasides. A desconfianca talvez tenha sido gerada pelo faro de que, pela Lei, as injegdes de silicone po- dem ser concebidas como crime de mutilagio. Acredito que 2 mi- tha presenca neste circuito sempre esteve identifcada com o mun- do oficial Fmbora eu ado tenha tide a oportunidede de observar nenhuma sessio de aplicacio (a nfo ser num documentério sensa- cionalista, daqueles que sfo veiculados de madrugada por algumas ‘missoras de TV), ouvi virios relatos e demonstragbes desse pro- e350 e, por isto, sinto-me autorizado a desctevé-o, Os produtos e as priticas empregados nfo rem qualquer contro- le téenico ou sanitétio, E muito dificil adquiti o silicone liquido, pois nem todos podem compri-lo € nfo esté disponivel no comér- cio. Normalmente, & a bombadeira que tem contatos com algum fornecedor desse produto. Ninguém, no entanto, sabe precisamen- te quem é 0 misterioso fornecedor.* Ouvi virios relatos de tavestis que tém no corpo silicone produzido para uso industrial, ¢ nao ci ‘irgico, o que pode provocer problemas de satide, Duas de minhas informantes t8m a corp madeladn com dxjal, rm expécie de Ales ‘mineral produzido para uso mecinico, utilizado nos anos 80." Na realidade, a produsio e a comercializagio de silicone para uso cirirgico, usualmente produzido na forma de préteses — isto 6 pequenas bolsas que contém em seu interior o gel que, uma ver aplicado, produz novas formas —, sio estritamente controladas ¢ Yigiadas pelos organismos estatais compecentes. Os easos de rejei- ‘fo registrados nesse tipo de tratamento nio sio raros, mesmo en~ tre as travestis. Duas informantes da pesquisa que recorreram a esse recurso para modelar os seios tiveram historicos de rejeicio, que thes causou muita preocupacio e danos sade. Uma delas chegou 4 necesstae de intsmasSo hospitalar para eatar wma infec- Gio decorrente da rejeigio da protese. Quando acontece a rejeigio do novo érgio, a retirada € a solusio indicada e adotada pelos mé- dicos ( silicone que serd aplicado deve ser esterilizado pela bombadei- 1a, que o deixa repousar por trés dias no congeladot. Algumas agu- Ihas ¢ seringas utilizadas so fabricadas para uso veterinério: tm Iaior capacidade e as agulhas G0 mais grossas, ‘As seses podem levar virias horas e requerem muita pacigncia € coragem, porque tudo ¢ feito sem anestesia (esta € vista como uma ps (1995: 29) ankle cee ce so tm wine ds inbmnrs se one, all (039475 reat qua ens Suda ace gen vend ine gl 0 zene wept cnc a tes de Pro Ale serra eh i ne etn ‘Aarons psi oc dares Faminds Abaguu conte em eee ee eer ‘Sc or mse que morn ne Prana gue 4 py ss oe amie Dunas bade o compo de ei mc Sra como Reta Ch, Tas ip ses aguas el 1995150) amen) prétca perigosa, que deve ser realizada somente por médicos). Diana ‘me contou que levou duzentas agulhadas para injear meio ltco de si- licone em cada quadrl a aplicagio durou quase seis horas. Normal- mente, a bonibadeins traga uma linha sobre a regiéo do corpo a set ‘modelada e entéo coloce um nimero X de seringas sobre aquela li- sha. Uma vez instaladas as seringas, ela somente desenrosca a agulha, ‘enche novamente 0 émbolo com silicone, adapta-o 3 agulha e segue injetando o produto. A bombadena vai aplicando 0 silicone pouco a ppouco e modelando a forma desejada, &s vers com o ausilio de wo2- thas quentes, que colaboram na massagem que espalha 0 éleo pela re- gio do corpo, produzindo entio a curva tio sonhada, Quando per guntadas pela travesti mais jovens sobre a dor que sentiram quando se submeterain 3 aplicagio do silicone, as travestis ja bomebadas not- ‘malmenterelativizam a dor, que afirmam ser a dor de beleza ou 0 pre- {0 que é preciso pagar para ser bonita e desejada pelos homens. A dor nfo costuma ser empecilho para a relizaga desse desejo, emboraseja uslizada por algumasinformantes como argumento para explicar por ue jamais reorteriam a este mein de transioemagio Depois de feito o servigo, a bombadeira recomenda tomar um ‘medicamento antibitico (Benzetacile Decadron foram os mais ci- tados) ¢ fcar em repouso na cama por uma semana, para o silicone se firmar no corpo. Nada de salto alo, de esforso fsico ou perma- nnecer em pé. Se essa orientagbes nao forem seguidas, hd o risco de 6 silicone caminhar, produzindo cospos deformados. Normalmen- fe, nesse tempo de repouso (que algumas travestis seguem somente durante dois ou tés dias) as ravests vestem uma mein Kendall, tuma meia-calga indicada para tratamento de varizes, que compri- me a pema, Ao produzir pressio sobre a perna, esa meia imped wo. Além do silicone liquido, as ravests recorrem também 0 uso de préteses de silicone, utilizadas somente para a modelagem dos seios. Algumas travesis, depois de um tempo, sofrem rejeico 20 implante, o que no cntanto nio lhes desestimul. As proteses e a ci- Furgia custam muito caro, e em Porto Alegre todas recomendam o ‘mesmo meédico para essa intervengio" — talver porque seja 0 Gni- qualquer deslocamento ou deformasio do silicone reveun-apli co que as aceite como clientes. Os riscos de aplicasio do silicone liquido no peito séo maiores, conforme me explicou Julia: lém de set uma regio com muitas veias — o que dificulta o trabalho da bombadeira —, 0 silicone aplicado nessa regiéo pode caminbar para © pulmo, o que significa morte. As que jé fizeram 0s seios com si- licone liquido me contaram que depois da aplicagio é preciso usar tam suit muito firme e com um pedago de madeira entre os scios, para evitar a formagio do peito de pomba (Kulick, 1998a: 71) ou ddo peito de sapo (quando 0 silicone se une, formando um sinico seio no meio do peito),além de aplicar roalhas quentes varias vezes 420 dia para que os scios tomem uma forma naturalmente arredon- dada, sem que fiquem marcados. Durante 0 periodo de repouso, as travesti nfo podem dormir deicadas, sob pena de os novos seios f- cearem deformados. ‘As travetis que tém silicone no corpo precisam tomar uma série de euidados extras no dia-a-dia. Atos cotidianos podem se transfor- mar em complicagies para a sade: ficar muito tempo sentada em cadcira dum provoce don, dormir regularmente em colchéo duro {do tipo ortopédico) & desaconselhdvel, porque pode alterar as for- mas originais seringadas pela bombadeira (Lopes, 1995). Gindstica € exerefcios corporais, ainda que sejam descjados ¢ considerados importantes para manter a forma, sio descartados, pois podem provocar 0 deslocamento do silicone pelo corpo ou mesmo des- consteir alguma silhueta, Qualquer batida mais forte pode alterar a forma que o silicone produziu Deformidades provocadas por silicone que caminhow ou que indo fez casa no conpo nto sto histbrias raras. Vétias travestis que tém seu corpo transformado ha varios anos relatam casos em que 0 silicone se movimentou pelo corpo ou, 0 que € mais grave, et Yue * O pam dae cari lain empe €prenutin com mui rap pa ees Al de cl fon oni heen i ck urn at ‘te ou eg mado mi por copa Ene, dent pn soe prs ar © corp, Gabe «Dara me rar ste, utd colo pan no, cle een po ‘enon senios draenei at gue Poe eg a que een (ide Dueminclate ue é ncaho otros ania dost "bombs qr memo cg ‘ont ap ce em psn nls a le [Sas ee © produto “apodreceu” no corpo, resutando em feridas infecciosa, pelas quais o silicone vai endo purgado, Os corpos moldados com silicone so muito admirados por to- das as travestis. # um desejo de grande parte delas ostentar formas curvas © perfis suaves. A expressio toda feita, muito comum entre 4s informantes e que ndo por acaso intitula este Livro, é um clogio de alto grau, pois designa uma travesti que se moldou com uma bombadeira competente, porque o resultado final ficou muito bom, Seu anténimo seria toda plastifiada, indicando aplicages mal fei- fs ou que resultaram numa forma exagerada ou que compromete a harmonia do corpo, Ademais, a quantidade de silicone que cada tuma rem no coepo ¢ assunco central da conversa entee travestis. Hd algumas que afirmam ter quinze litros de silicone liquido espalha- do em diferentes partes do corpo, e muitas jd decidiram a quanti dade necesséria para que seu corpo adquira as tio sonhadas curvas. Tada feza, mais do que um elogio, & também uma forma de de- signar as pessoas que se esforgaram nos caminhos da transformagio «no pouparam esforcos para tanta, Além dos aplicaghes de silico- ne, pressupde alguma eirurgia pléstica para remodelagem do nariz, da testa ou de outra parte do corpo, bem como o uso continuada de horménios © outros recursos de aprimoramento dos tragos femi- ninos. Toda feita & a expresséo que designa o resultado eficicnte de todo 0 processo de transformagio e fabricagi0 do corpo, e portan~ to do género, entre as travesti. O silicone ¢ um produto que detém um valor simbélico alto centre as travestis. As opines e os jutzos sobre o uso desse produto 1ndo sio homogéneos, existindo mesmo controvérsas sobre as apli- cases. Pode-se observar uma distinggo acerca de sua valorizagio centre as travertis mais jovens ¢ aguelas que vivenciarain as primei ras aplicagies de silicone, quando tudo ainda era muito experi- mental. As primeiras sio as principais clientes das bombadeiras, ea injeglo esta mais presente nos seus projeros. Jé as “antigas” valoti- zam mais 0 uso de horménios, crticam, por vezes, 0 “exagero” das quantidades de silicone no corpo das outras ¢ ressaltam o perigo de tals préticas, normalmente relatando algum caso de adoecimento cou complicagio em Fangio de aplicagses mal relizadas ou de pro- dlutos sem qualidade. Assim, nao hé consenso acerca dos métodos de emprego do silicone e muico menos das quantidades a serem epregidas. Hi, no entanto, consenso quanto a sero silicone um instrumento especial de construgio do ferainino no corpo travesti AMUGICR DS CRURGIS PLASTICAS (Os outros recursos acionados para fabricar novas formas no corpo so as cirurgias plisticascorrerivase a cirurgia de mudanca de sexo. A correséo predileta empreendida pela travestis € 0 perfil do nara Fa zero nariz é um sonho de bos parte de minhas informantes. Durante 4 pesquisa, Silvana visitou o cirurgifo plistco citado para dar um ‘novo desenho ao seu nariz, que agora apresenta uma forma mais fina c arrebitada, Muitasinformantes jd recorreram a ese recurso, € oUtraS planejam fuz-lo Pode-serecorrer ao cirurgido também para com mentar © bio o modifiear a forma dos olhos parecem mais possibilidades citadas do que realidades fetivas. Em algumas entrevistas, as travesti declareram a vontade de submerer- se a essas corregses, Essas cirurgias nao slo, no entanto, priticas corriqueiras, pois envolvem altos custos financeiros, com os quais @ maior parte das travests ndo tem como atcat. Dat que a alternativa, mais répida e barata, do silicone liquido seja.a mais disseminada, ‘J. ciruegia de mudanca de sexo parece ser vislumbrada somen- te como possibilidade distance. Conheci apenas uma eperadd: Ana, ‘que mora em Parise estavavisitando as amigas ea familia em Porto Alegre. Essa cirurgia é uma deciséo radical pois significa entre ou- das: a maior tras coisas abdicar do orgasmo. As opinics sfo divi parte diz. nfo ter esse desejo, mas hd as que dizem que no hesita- riam em seguir adiante com 0 projeto da operagéo de mudanga de sexo, Esse tipo de cirurgia pode ser realizado no Brasil desde 1997, ainda que somente para fins de pesquisa e experiéncia. Desde que a resolugio do Conselho Federal de Medicina autorizou essa inter- vvengio (anteriormente, 0s médicos que a realizassem poderiam ser jos criminosos perante a Lei, pois seriam identificados 1¢ de mutilaggo), muitas travests parecem ter mudado de opinido, Algumas, que declaravam desejar se submeter & cirurgia as- sim que fosse possivel, agora negam essa possibilidade ou se dest em, bascadas sobretuclo em argumentos contririos a0 processo ne~ cessirio para a realizagio da cirurgia (que envolve, entre outta eta- pas, acompanhamento para diagnéstico peicolégico por um perfodo rminimo de dois anos). Outras, que anres nem sonhavam passat por esse procedimento, parecem mais abertas & possbilidade. Hélio Silva observa no Rio de Janeiro uma dindmica parecida: a decisio de fazer « cirurgia Funcionaria como algo mais a atescar 0 feminino que vive naquele corpo, um recurso a mais para afiemae seu género, como maneita de expressar uma identidade integra, ‘mas, se realmente houvesse possibilidade efetiva de realizé-la, a ci- rurgia nao seria levada a cabo (Silva, 1996: 63). AcuENARA Neca Uma ourra téenica desenvolvida pelas travesti finalza a aparéncia do corpo: acvendar a neca, que designa a arte de esconder o pénis sob a roupa, para que a regio pubiana fique com a aparéncia seme- hance & do genital da mulher. Normalmente forca-se o pénis para tis, ocultando-o por entre as pernas, com 0 auxilio de uma calei- nha justa. E realmente impressionante como essa técnica € desen- volvida: € surpreendente como Joana, por exemplo, veste uma tanga minima sem que esta denuncie 0 érgio masculino. As travestis que se prostituem executam essa operagio cotidianamente e dizem ter se acostumado com o pénis na nova posicio. Ainda que nfo vivam ae vinte e quatro horas do dia com a neca acuendada, eaber executat «ssa operagio é de fundamental importincia. Hi situagdes, como ir A praia, em que é preciso vestirroupas de banho, ou outras, quan do a roupa precisa set muito justa, nas quais é essencial esconder 0 :membro ¢ evidenciar uma genitéliafeminina. Hi, por outro lado, tama feminilizasio do membro, que jé no parece ser o mesmo de ‘um homem (Silva, 1996: 63) VIVENDO NO FEMININO: [AS DINAMICAS E DOMINIOS DO GENERO ENTRE AS TRAVESTIS [As cravestis buscam, em todo sea processo de transformagio, aquilo {que elas chamam de femiaino. Um feminino que Ihes € bem peculiar «que estéotientado por valores e praticas os mais diversas, expeial- mente no que diz respeto 20 corpo e seus usos — sendo as pritias « preferéncias sexuais os principais pontos levados em conta, Neste capfeulo procurarei descrever alguns “dominios do género” na vida travesti, Esses “domfnios” devem ser entendidos como partes de tum todo muito maior, dificil de see descrito somente com palavras. Apresentarei entio algumas experiéncias ¢ representagdes que dizem. respeito diretamente Aquilo que as travestis consideram masculino € feminino, bem como aos possveis trinsitos e fronteiras entre esses dominios. Isto nio significa, no entanto, que estjam retratados aqui todos os contextos, sgnificados e prétias cultura das travestis relax cionados com aquilo que n6s, antropOlogos, chamamos de gener ‘Tratase, antes, de algumas pists e pontos de vista sobre a construsao do género entre as travestis Com o abjetivo de compreender melhor os processos de trans- formagio do género vivenciados pelas travesti, julgo importante iniciar apresentando algumas das principais formulagées das inves-

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