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ABRIL DE 2023 | ANO 24, N. 326

CORPOS
PLURAIS
Maior participação de
pessoas com deficiência
em sistemas de educação
e saúde desafia
capacidade inclusiva
de instituições

Dias com chuvas Chip de DNA Pesquisadores A trajetória do Pacientes Aos 50 anos,
extremas em sintético indígenas bioquímico Jorge colaboram com Embrapa procura
São Paulo e em poderá ser discutem a saúde Guimarães, da médicos em equilíbrio entre
outras capitais alternativa para a partir das infância na lavoura estudos clínicos produtividade
aumentam desde armazenar perspectivas de ao comando da e na busca por e preservação
a década de 1990 dados digitais cada etnia Capes e Embrapii tratamentos ambiental
ACOMPANHE
PESQUISADORES CHEGAM PELA PRIMEIRA VEZ À SERRA DO IMERI

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sempre às segundas-feiras.
Todos legendados em português
e alguns em inglês MULHERES ENFRENTAM DESIGUALDADE NO MEIO MUSICAL

PELA PRIMEIRA VEZ, FUSÃO NUCLEAR GERA


MAIS ENERGIA DO QUE CONSOME

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326

5 CARTA DA EDITORA ENTREVISTA BOAS PRÁTICAS CLIMA


6 NOTAS 24 A trajetória de Jorge 40 Trabalho identifica 50 Chuvas intensas,
Guimarães, da infância indícios de três formas com potencial de gerar
CAPA na lavoura ao comando da de plágio em textos desastres, são cada vez
12 Avanço nas matrículas Capes e da Embrapii gerados pelo ChatGPT mais frequentes em partes
indica maior inclusão do país
de pessoas com deficiência; COLABORAÇÕES DADOS
práticas pedagógicas 30 Pacientes contribuem 43 Tendências POLÍTICAS PÚBLICAS
precisam ser aprimoradas com cientistas em recentes na formação em 54 Agravamento da
estudos clínicos e na busca engenharia crise climática demanda
18 Política de educação por tratamentos ações que considerem
especial colabora para AGROPECUÁRIA eventos extremos
reduzir atraso escolar, mas CIENTOMETRIA 44 Aos 50 anos,
pode fomentar segregação 35 Análise de mais de Embrapa tenta equilibrar FÍSICA
PREFEITURA DE SÃO SEBASTIÃO

do ensino 30 mil artigos mostra produtivismo e 58 Método determina


a evolução da pesquisa preservação ambiental se um par de fótons está
20 Inovação tecnológica sobre gênero no país emaranhado apenas com
amplia autonomia a detecção de um deles
ao proporcionar mais
habilidades funcionais

ABRIL 2023 ›››

Costa Sul, em São Sebastião:


com chuvas mais
frequentes, aumenta o risco
de desastres ambientais
(CLIMA, P. 50)
SAÚDE 84 ITINERÁRIOS
60 Pessoas LGBT+ Michael França amplifica
tendem a realizar menos as discussões sociais
exames preventivos e raciais por meio do
do que indivíduos cisgênero debate público
heterossexuais
86 MEMÓRIA
ONCOLOGIA O físico Jean Meyer
62 Vacina terapêutica mostrou que as energias
testada em roedores alternativas poderiam
eliminou tumores causados ser um motor do
pelo vírus HPV desenvolvimento
CAPA, P. 12
GENÉTICA 90 OBITUÁRIOS
64 Alteração no DNA de Heloísa Bellotto
povos originários da (1935-2023)
Amazônia pode conferir Erney Plessmann
proteção contra Chagas de Camargo
(1935-2023) WWW.REVISTAPESQUISA.FAPESP.BR
CIÊNCIA DA COMPUTAÇÃO Gerhard Malnic
66 Avança a elaboração de (1933-2023)
chips de DNA sintético para
armazenar dados digitais 96 RESENHA VÍDEO PODCAST
A impressão nas missões Pela primeira vez, Orçamento,
MOBILIDADE jesuíticas do Paraguai – fusão nuclear gera imunizantes, tarrafa
71 Obstáculos travam Século XVIII, mais energia do que As perspectivas para
a expansão do de Fernanda Verissimo. consome ampliar o financiamento
carro elétrico no Brasil Por Marina Massimi O físico Gustavo Canal, à ciência, os testes com
da USP, conta como vacinas que buscam
ADMINISTRAÇÃO 97 COMENTÁRIOS pesquisadores fizeram eliminar tumores e as
76 As análises sobre 98 FOTOLAB o experimento usando interações produtivas entre
a sensação de ameaça a mesma reação que pescadores e golfinhos
percebida por faz as estrelas brilharem
empreendedoras

ANTROPOLOGIA
80 Pesquisadores indígenas VÍDEO
discutem os cuidados Mulheres enfrentam Este conteúdo está
com o corpo a partir do desigualdade disponível no site
entendimento de cada etnia no meio musical www.revistapesquisa.fapesp.br,
Projeto mapeia os desafios que contém, além de
enfrentados por musicistas
FÁBIO PASSOS

edições anteriores, versões


Capa  em sua trajetória perante em inglês e espanhol
Fábio Passos a desigualdade de gênero e conteúdo exclusivo
CARTA DA EDITORA

Interação e inclusão
Alexandra Ozorio de Almeida | DIRETORA DE REDAÇÃO

Q
uem já entrou na sala de mamografia para o direito dos povos indígenas a um atendimento
uma análise de rotina pode ter pensado de saúde que respeite suas especificidades cul-
que uma mulher nunca teria inventado turais e modos de vida. Outra reportagem desse
aquele exame. (De fato, foi o médico uruguaio universo temático mostra que pessoas LGBT+
Raul Leborgne – 1907-1986 – que constatou, nos tendem a realizar menos exames preventivos que
anos 1950, que a compressão da mama gerava indivíduos cisgênero heterossexuais (página 60).
imagem diagnóstica melhor.) Esse procedimento A inclusão é o objeto da reportagem de capa.
salva vidas, mas não poderia haver técnicas menos O Brasil soma mais de 17 milhões de pessoas com
agressivas? A participação ativa de mulheres, as algum tipo de deficiência, segundo dados recentes
principais usuárias, contribuiria para que aspec- do IBGE, e apresenta progresso em indicadores
tos como o desconforto fossem considerados no como o número de matriculados no ensino básico
desenvolvimento de substitutos. e superior. Mas o caminho é longo para diminuir
A interação entre pesquisadores da saúde e a diferença entre pessoas com e sem deficiência
pacientes já ocorre, por exemplo, em ensaios no acesso à educação e ao mercado de trabalho,
clínicos, mas é bastante restrita. Vem ganhando assim como na renda decorrente de suas ativi-
espaço uma prática chamada de medicina cidadã, dades profissionais (página 12).
que promove colaborações mais abertas e inclu- Nos últimos anos, a legislação brasileira sobre
sivas, reconhecendo o paciente como detentor o tema foi ampliada e atualizada, amparada pela
de conhecimento sobre a sua própria condição. Convenção sobre os Direitos das Pessoas com De-
Reportagem à página 30 mostra que há espaço ficiência da ONU, de 2006. O aumento da presença
para maior envolvimento desse público, inte- dessa parcela da população nas universidades tem
grando comitês de ética, participando da regu- permitido avanços no conhecimento científico,
lamentação de ensaios clínicos, determinando com a abertura de frentes de pesquisa, e propor-
o grau de risco aceitável para testes com novas cionado melhorias institucionais. Inovações em
drogas, entre outras possibilidades. Não é sempre equipamentos e serviços para esse público são
viável nem é um caminho fácil. Reunir pessoas tema de reportagem complementar (página 20).
com diferentes perspectivas e experiências é um Esta edição marca uma efeméride importante,
desafio colaborativo, mas que pode resultar em os 50 anos da Embrapa. As pesquisas produzidas
pesquisas inovadoras. na instituição, presente em todas as unidades da
A proposta da medicina cidadã – relacionada federação, são em grande parte responsáveis pe-
à ciência cidadã, tema da edição 323 – também la diversidade agrícola brasileira e pela posição
tem pontos de convergência com a investigação do Brasil como exportador de alimentos. Mas os
e a incorporação, pela sociedade não indígena, tempos atuais, em um cenário preocupante de
de conhecimentos dos povos originários sobre mudanças climáticas e de novas exigências dos
doenças (página 80). Pontes entre os diferentes mercados consumidores, pedem maior enfoque
saberes permitem ampliar o olhar sobre o adoe- em agricultura sustentável, tema ao qual a insti-
cimento e contribuem para que se possa cumprir tuição vem dedicando mais esforços (página 44).

PESQUISA FAPESP 326 | 5


NOTAS

Observar e, depois,
se aproximar
Após uma convivência de 10 mil anos, os cães
domésticos aprenderam a interpretar emoções
dos seres humanos, mesmo dos que não lhes são
familiares, e, com base nelas, reagem de um modo
ou outro. Em um experimento realizado por Natalia
Albuquerque e Briseida Resende no Instituto de
Psicologia da Universidade de São Paulo, 68 fêmeas e
46 machos adultos de várias raças, cada um por vez,
observaram e depois interagiram com duas pessoas
desconhecidas: duas atrizes, sempre com a mesma
roupa, sem maquiagem ou tatuagens visíveis. Em
silêncio, uma delas, chamada de doador, sempre em
estado emocional neutro, entregava discos pretos
(objetos neutros) à outra, o receptor, que reagia de
modo positivo (feliz), negativo (com irritação) ou
neutro. Depois das três repetições, na segunda fase
da experiência, cada atriz segurava uma vasilha
com isca de carne nas mãos ou deixava as vasilhas
sobre uma mesa. Os cães podiam então interagir
com as atrizes para tentar conseguir as iscas. Nas
condições positivas, os cães escolheram mais
o receptor (feliz; 68%) que o doador (neutro; 32%);
nas condições negativas, o doador (neutro; 95%)
mais que o receptor (irritado; 5%). Para as
pesquisadoras, o experimento sugere que os cães
escolhem com quem interagir a partir de informações
que capturam das posturas corporais e das faces das
pessoas. “Essa capacidade permite que os cães se
ajustem ao mundo humano”, comenta Albuquerque
(Animal Cognition, agosto de 2021; Evolutionary
Human Sciences, janeiro de 2023).

Os cães escolhem
com quem interagir a
partir de informações
sobre posturas
corporais e faces
das pessoas

6 | ABRIL DE 2023
2 3 4

O clima, motor de diversificação


Um debate antigo entre os estudiosos da evolução trata lagos, o regime de chuvas é o maior responsável pela As muitas formas
do papel da distância geográfica e do clima, respectiva- diversificação de espécies. No Brasil, os dados indicam das mimosas (da
esquerda para a direita):
mente, para impulsionar a diversificação de espécies. uma diferenciação expressiva entre as espécies de Mi-
Abarema cochliacarpos,
Uma análise de quase mil genes em 420 espécies da li- mosoidae no Cerrado, na Caatinga, no Pampa, na Ama- nativa do Brasil;
nhagem das Mimosoidae, uma subdivisão da família das zônia e na Mata Atlântica. “As linhagens se diversificaram Xylia xylocarpa, do
leguminosas, acaba de virar os holofotes da discussão em cada ambiente, de acordo com regimes de precipita- Sudeste Asiático; e
FOTOS 1 GK HART / VIKKI HART / GETTY IMAGES  2 ALEX POPPOVIC / FLICKR  3 VINAYARAJ / WIKIMEDIA COMMONS  4 MATTWADE / WIKIMEDIA COMMONS  5 CHINA NEWS SERVIVE / WIKIMEDIA COMMONS

Calliandra emarginata,
para as chuvas. Essas plantas podem ser encontradas ção”, explica o botânico João Iganci, da Universidade
dos Estados Unidos
nos cinco continentes, em ambientes tão distintos quan- Federal de Pelotas. Segundo ele, o padrão de diversifica-
to desertos e florestas pluviais. Quando se leva em conta ção de espécies é semelhante nos outros continentes.
os trópicos do mundo inteiro, a distância geográfica é a Iganci ressalta que esse é o primeiro estudo abrangente
maior responsável por isolar espécies, que acabam di- em escala global, possível graças a um grupo internacio-
vergindo. Mas o padrão fica diferente quando se examina nal que trabalha em conjunto há mais de 10 anos, com
cada continente. Em quatro deles, com exceção da Ásia, participação de universidades e centros de pesquisa bra-
onde o clima é mais uniforme e existem muitos arquipé- sileiros (Science Advances, 17 de fevereiro).

Riscos da edição Sonda chinesa examina solo de Marte


genética para bebês O Mars Rover Penetrating Radar (RoPeR), radar de penetração do solo da Tianwen-1,
primeira missão marciana da China, mostrou que o solo de Marte é bastante hetero-
Na última década, a técnica de edição gêneo e geologicamente complexo, com estruturas que se assemelham a paredes de
de genes conhecida como Crispr-Cas9 crateras, moldadas pelo clima e pela erosão eólica. Diferentemente, dados comparáveis
despontou como promissora não só para do lado oculto da Lua são bastante uniformes, mesmo que as duas superfícies tenham
tratar doenças de origem genética, mas sido formadas em épocas geológicas próximas. Lançada em 23 de julho de 2020, a
também para gerar bebês sem essas sonda Tianwen-1 foi capturada pela atmosfera de Marte em 10 de fevereiro de 2021
anomalias. Esse segundo objetivo ainda não após uma jornada de 202 dias e 475 milhões de quilômetros. O RoPeR é um dos ins-
está à vista, concluíram os participantes trumentos científicos do rover (veículo controlado remotamente) Zhurong, que pou-
de uma conferência sobre edição genômica saram na região conhecida como Utopia Planitia em 15 de maio de 2021, com o pro-
realizada em março, em Londres, no Reino pósito de examinar os efeitos do vulcanismo, do gelo e do vento, a partir dos quais se
Unido. Os organizadores afirmaram que poderá conhecer melhor a evolução do ambiente do planeta (Geology, 9 de fevereiro).
os experimentos de edição hereditária
5
em embriões não se mostraram seguros.
Depoimentos durante o encontro deixaram O rover Zhurong
claro que o corte das duas fitas de DNA com a sonda
Tianwen-1, na
para a substituição de trechos ainda tem
primeira missão
efeitos incontroláveis e é desejável fazer marciana chinesa
mais estudos em laboratório com edição
de células reprodutivas para um melhor
entendimento do desenvolvimento
embrionário. Já a edição genética em células
adultas foi reconhecida como um avanço
importante para tratamento de doenças como
a anemia falciforme (Nature, 10 de março).

PESQUISA FAPESP 326 | 7


O cérebro das
moscas-das-frutas
Depois de um ano e meio capturando
imagens do cérebro de uma única
larva de mosca-das-frutas (Drosophila
melanogaster) com um microscópio
eletrônico, pesquisadores das
universidades de Cambridge, no Reino
Unido, e Johns Hopkins, nos Estados
Unidos, identificaram 3.016 neurônios
e 548 mil sinapses. É o primeiro mapa
completo do cérebro de um inseto.
Até agora haviam sido mapeadas
1
estruturas mais simples, como a
Mortes durante a gravidez ou no parto do verme Caenorhabditis elegans,
com centenas de neurônios. O diagrama
No Brasil, de 2000 a 2020, a taxa de mortalidade materna aumentou de Mulheres de conexões mostrou que o cérebro
68 para 72 a cada 100 mil nascidos vivos. O número de nascidos vivos di- esperam para ser da drosófila tem várias camadas,
examinadas na
minuiu de 3,489 milhões para 2,787 milhões nessas duas décadas. Por com caminhos de diferentes
maternidade de
causa de falta de acompanhamento médico, as mortes maternas aumen- um hospital no comprimentos, às vezes com atalhos.
taram ou estagnaram em quase todas as regiões do mundo: em média, uma centro da Libéria Os autores desse trabalho reconhecem
mulher morre durante a gravidez ou no parto a cada 2 minutos, de acordo que a tecnologia atual ainda não é
com o relatório da Organização Mundial da Saúde (OMS) "Tendências na avançada o suficiente para mapear
mortalidade materna", divulgado em fevereiro. “As novas estatísticas reve- as conexões cerebrais de animais mais
laram a necessidade urgente de garantir que todas as mulheres e meninas complexos, como grandes mamíferos
tenham acesso a serviços de saúde críticos antes, durante e após o parto, (Science, Nature News e Universidade
e possam exercer plenamente seus direitos reprodutivos”, disse Tedros de Cambridge, 10 de março).
Ghebreyesus, diretor-geral da OMS, ao apresentar o documento. Aproxi- 3
madamente um terço das mulheres não faz nem quatro dos oito exames
pré-natais recomendados ou recebe cuidados pós-natais essenciais, en-
quanto cerca de 270 milhões não têm acesso a métodos modernos de pla-
nejamento familiar. Em 2020, cerca de 70% de todas as mortes maternas
ocorreram na África subsaariana, em razão de sangramento grave, pressão
alta, infecções relacionadas à gravidez, complicações de aborto inseguro e
doenças como HIV/Aids ou malária, que podem ser agravadas pela gravi-
Uma drosófila
dez. No Chade, a taxa média de mortalidade é de 1.063 mulheres para ca- alimentando-se
da 100 mil nascidos vivos. Na Alemanha, de 5 para cada 100 mil. de uma banana

Sensor detecta fungicida


Testado sobre a superfície de maçãs e repolhos, um sensor eletro-
químico de papel kraft ligado a um dispositivo eletrônico detecta em
minutos o fungicida carbendazim, de uso proibido, e informa o resul-
tado por um aplicativo do celular. Desenvolvido nos institutos de
Física e de Química de São Carlos da Universidade de São Paulo (IFSC
e IQSC da USP), o dispositivo é semelhante a um medidor de glicose
usado por diabéticos. Consiste em um substrato de papel com três
eletrodos de carbono mergulhado em uma solução ácida. “Ao entrar
em contato com uma amostra contaminada com carbendazim, o
sensor induz uma reação de oxidação eletroquímica que permite a
detecção do fungicida”, comentou à Agência FAPESP José Luiz Bott
Dispositivo de papel kraft
ligado a eletrodos assemelha-se Neto, do IFSC, um dos autores do trabalho. Segundo ele, o sensor
a um medidor de glicose apresentou resultados similares aos dispositivos convencionais, fei-
tos de plástico ou cerâmica (Food Chemistry, 1° de junho, 2022).

8 | ABRIL DE 2023
Reator no Japão
testa combustível
alternativo
FOTOS 1 ZOOM DOSSO / AFP VIA GETTY IMAGES  2 JOSÉ LUIZ BOTT NETO / IFSC-USP  3 SANJAY ACHARYA / WIKIMEDIA COMMONS  4 LEO RAMOS CHAVES / REVISTA PESQUISA FAPESP  5 NIFS

Uma equipe do Instituto Nacional de


Ciência da Fusão (Nifs) do Japão, usando
um reator de fusão convencional
chamado Large Helical Device (LHD),
verificou a viabilidade de reações com um
combustível de baixo custo e abundante,
o hidrogênio-boro (p-B11), que não
produz partículas prejudiciais ao
ambiente. Ainda que o experimento
tenha sido feito em pequena escala e
em temperaturas ainda mais altas do que
o combustível de fusão padrão, o
experimento representa a prova de
conceito de uma proposta da TAE
Technologies, startup fundada em 1998
na Califórnia, nos Estados Unidos,
com o propósito de desenvolver métodos
comerciais, economicamente viáveis e
seguros de fusão nuclear para geração
Tomar sol,
de eletricidade. O hidrogênio e o boro
essencial para
podem ser extraídos da água do mar e, a saúde dos ossos
no caso do boro, também da superfície da e dos músculos
Terra. Não são tóxicos nem radioativos e
4
os produtos da reação – as partículas alfa,
formadas por um núcleo do átomo de Altas taxas de insuficiência
hélio – são igualmente inofensivas.
A maioria das pesquisas em fusão tem de vitamina D
sido feitas com uma mistura de dois
isótopos de hidrogênio, deutério e trítio, Mesmo que algumas pessoas tomem sol com assiduidade,
porque requer uma temperatura a concentração de vitamina D no sangue pode estar abai-
muito mais baixa do que a com p-B11 xo dos níveis recomendados. Taxas abaixo de 20 nanogra-
(Nature Communications, 21 de fevereiro; O LHD, usado para mas por mililitro (ng/mL) caracterizam deficiência e abai-
Science, 28 de fevereiro). avaliar novas xo de 30 ng/mL insuficiência desse hormônio. Sintetizado
formas de produção
pelo organismo principalmente a partir da exposição ao
de energia por
fusão nuclear sol, a vitamina D é essencial para crescimento, imunidade,
músculos, coração e sistema nervoso central. De dezembro
de 2020 a março de 2021, um grupo da Universidade Fe-
deral do Paraná coletou amostras de sangue de 1.004 mo-
radores das cidades de Salvador, São Paulo e Curitiba, que
não tomaram suplementos de vitamina D no mês anterior.
Do total de participantes, 15% apresentaram deficiência
(variando de 12% em Salvador a 20% em São Paulo) e 50%
insuficiência (47% em Salvador e 52% em São Paulo) des-
sa vitamina, mesmo no verão. Em outro estudo, pesquisa-
dores das universidades federais do Espírito Santo e do
Amazonas avaliaram a variação dos níveis de vitamina D
ao longo do ano em 559 crianças e adolescentes (6 a 18
anos) de Serra, no Espírito Santo, de julho de 2018 a de-
zembro de 2020. A metade (53,3%) dos participantes tinha
deficiência ou insuficiência de vitamina D (Journal of the
Endocrinology Society, 17 de novembro; Revista Paulista de
5 Pediatria, 3 de março).

PESQUISA FAPESP 326 | 9


Antártida perde gelo
Ainda que possa variar ao longo dos anos, a área de gelo
marinho ao redor da Antártida nunca esteve tão pequena,
desde o início dos registros em 1979. Em 13 de fevereiro de
2023, a extensão do gelo caiu para 1,91 milhão de quilômetros
quadrados (km2). Foi um novo recorde de baixa, ainda menor
que 1,92 milhão de km2 registrado em 25 de fevereiro de
2022, e o segundo ano em que a extensão da Antártida caiu
para menos de 2 milhões de km2. A queda pode ser ainda
maior, já que o verão austral ainda não terminou. De acordo
com uma equipe da Universidade do Colorado em Boulder,
nos Estados Unidos, as condições climáticas levaram ar
quente para a península Antártica e reduziram a extensão do
gelo nos mares que a cercam. Para especialistas, as alterações
nos padrões climáticos e as perdas da superfície de gelo
indicam sinais observáveis das mudanças climáticas. Em
entrevista ao jornal britânico The Guardian, Karsten Gohl, do
Instituto Alfred Wegener, da Alemanha, que visitou a região
pela primeira vez em 1994, comentou: “A plataforma
continental, uma área do tamanho da Alemanha, está agora
completamente livre de gelo. É preocupante ver a rapidez com
que essa mudança ocorreu” (Arctic Sea Ice News & Analysis, 1

14 de fevereiro; The Guardian, 15 de fevereiro). As linhas em laranja no mapa delimitam as áreas de gelo perdido até 2023

Startups quânticas
avançam na Europa
Logo atrás dos Estados Unidos e da China,
a Europa tem pelo menos 147 startups
trabalhando com tecnologias quânticas, de
acordo com um levantamento da Dealroom,
empresa sediada em Amsterdã, na
Holanda. O Reino Unido reúne 39 delas,
Alemanha 18 e França e Holanda 15. Das 147
Estudantes mapeadas, 60 se dedicam especificamente
da comunidade
ao desenvolvimento de computadores
ashaninka
de Pamaquiari, quânticos. Essas máquinas usam bits
no Peru quânticos muito mais rápidos​que os
bits binários (0 ou 1) dos computadores
Mesmo povo, origens diferentes clássicos para codificar informações.
Desse modo, podem funcionar muito mais
Os Ashaninka, povos indígenas da Amazônia peruana e brasileira, formam pelo menos rapidamente. Algumas vão bem. Em janeiro,
dois grupos genéticos distintos, moldados pela interação com outras populações dos uma startup francesa chamada Pasqal
Andes e da costa do Pacífico. Uma inesperada diversidade genética resultou da análise arrecadou € 100 milhões (R$ 500 milhões)
do genoma de 51 indivíduos Ashaninka não aparentados da Amazônia peruana feita para trabalhar em sua tecnologia de
por geneticistas, arqueólogos, linguistas e antropólogos da Itália, Irlanda, Peru, Argen- processamento quântico. O investimento
tina, Estados Unidos, Estônia, Alemanha, Suíça, Áustria e Brasil. Em escala continental, de empresas de capital de risco nessa área
os ancestrais Ashaninka provavelmente remontam a uma migração sul-norte de indí- mais que dobrou, de US$ 105 milhões
genas que se mudaram para a floresta amazônica a partir de uma área do sudeste, com (R$ 550 milhões) em 2021 para US$ 257
contribuições genéticas de indivíduos instalados no Cone Sul. As análises também re- milhões (R$ 1,3 bilhão) em 2022. Em
velaram conexões entre os ancestrais dos atuais Ashaninka e grupos que se mudaram fevereiro, a Alemanha anunciou um fundo
para o Caribe. O contato com os europeus, no século XVII, causou uma grande redução de € 1 bilhão (R$ 5 bilhões) para empresas
populacional, principalmente por causa de doenças contra as quais os indígenas não inovadoras, incluindo as desse campo
tinham imunidade (Current Biology, 16 de março). (Sifted Newsletter, 22 de fevereiro).

10 | ABRIL DE 2023
Tinta de bactérias para obras de arte
Pesquisadores da Escola Politécnica Federal de Lausanne (EPFL), na Suíça, Resistente e
anunciaram um método para imprimir em 3D com uma tinta que contém bactérias leve, composto
mineralizado
produtoras de carbonato de cálcio. Resistente e leve, o composto mineralizado
auxilia na
impresso em 3D pode ser injetado diretamente em um molde ou em uma restauração
rachadura de uma estátua. As bactérias Sporosarcina pasteurii, quando expostas artística
a uma solução com ureia, desencadeiam um processo de mineralização que
produz carbonato de cálcio (CaCO3). A tinta produzida desse modo, chamada
de BactoInk, mineraliza em alguns dias, sem encolher após a secagem, como
acontece com outros materiais usados em restauração de obras de arte. O
composto final não contém bactérias vivas, pois é submerso em etanol no final do
processo de mineralização. O fato de as propriedades mecânicas do biocompósito
imitarem as dos ossos podem torná-lo interessante para futuras aplicações
biomédicas (MaterialsToday, 18 de fevereiro; EPFL News, 23 de fevereiro).
3

4
FOTOS 1 NATIONAL SNOW AND ICE DATA CENTER  2 GLOBAL HUMANITARIA / FLICKR  3 EPFL  4 ONDERWIJSGEK / WIKIMEDIA COMMONS

Abelhas
polinizadoras
levam o pólen das
flores masculinas,
mais externas,
para as femininas,
mais internas

O relógio Em 2016, pesquisadores da Universidade da Cali- tro do disco e as mais maduras nas bordas. Come-
fórnia em Davis, nos Estados Unidos, mostraram çando da borda em direção ao centro, em um dia
que regula que o relógio biológico do girassol o fazia acom- a flor abre a parte masculina e expõe o pólen; no
panhar o sol, do leste ao oeste, enquanto está dia seguinte, abre o estigma, a estrutura feminina,
as flores crescendo. Já adulta, a planta se volta apenas pa- que recebe o pólen. As abelhas polinizadoras que

do girassol ra o leste, porque as flores, ao receberem a primei-


ra luz da manhã, esquentam e atraem mais insetos
pousam nas pétalas ao redor do disco, ao cami-
nharem em direção ao centro, levam o pólen de
polinizadores. Agora, uma equipe da Davis e da uma flor para o estigma de outra, assegurando a
Universidade de Pretoria, na África do Sul, verificou formação da semente. Nos animais, também re-
que o relógio circadiano controla o amadurecimen- gulados por mecanismos celulares e bioquímicos,
to das centenas de minúsculas flores que formam os ritmos circadianos definem os horários de sono
círculos concêntricos no disco – ou cabeça – do e fome (Science, 5 de agosto de 2016; eLife, 13 de
girassol adulto. As flores mais jovens estão no cen- janeiro; newsletter da NSF, 6 de fevereiro de 2023).

PESQUISA FAPESP 326 | 11


CAPA

O DIREITO
À DIVERGÊNCIA
Avanço nas matrículas de pessoas
com deficiência aponta para
maior inclusão, mas políticas
institucionais e práticas pedagógicas
precisam ser aprimoradas
Christina Queiroz  |  ILUSTRAÇÕES  Fabio Passos

D
ivulgados em 2022, os últimos
dados do Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE)
mostram que pessoas com de-
ficiência somavam 17,2 milhões
em 2019, ou 8,4% da população do
país. Marcadas por disparidades
de escolarização, elas enfrentam
mais dificuldades para acessar o
mercado de trabalho e dispõem de
renda mais baixa, se comparadas
com pessoas sem deficiência (ver
gráfico na página 15). Recentemente, no entanto,
a situação começou a mudar, especialmente em
relação ao acesso à educação básica e superior.
A mudança é reflexo da aprovação, em 2006, da
Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Defi-
ciência da Organização das Nações Unidas (ONU)
e da entrada em vigor, em 2015, da Lei Brasileira
de Inclusão (LBI). Além de estimular a abertura
de novas frentes de pesquisa, esse movimento tem
trazido desafios para instituições de ensino, que
precisam repensar suas políticas e práticas peda-
gógicas, elaborando estratégias de acessibilidade
adequadas aos diferentes tipos de deficiência.
Na educação superior, estudantes com defi-
ciência foram os últimos contemplados por uma
lei de cotas. A reserva de vagas para alunos com
esse perfil em instituições federais se tornou obri-
gatória com a Lei nº 13.409, seis anos depois de
promulgada a Lei nº 12.711, que a partir de 2012
estabeleceu reserva de vagas para estudantes au-
todeclarados pretos, pardos e indígenas prove-
nientes de escolas públicas (ver Pesquisa FAPESP
nº 308). As cotas para jovens com deficiência têm
viabilizado a expansão de sua presença no ensino
superior federal. A quantidade de alunos com al-
gum tipo de deficiência saltou de 31,2 mil, em 2014,

PESQUISA FAPESP 326 | 13


para 55,8 mil, em 2018, um crescimento de 78,8 dade – que pleiteava uma vaga de cotas em uma
pontos percentuais, conforme o último levanta- instituição mineira de ensino superior. A comis-
mento da Associação Nacional dos Dirigentes das são de avaliação considerou que sua neurodiver-
Instituições Federais de Ensino Superior (Andi- gência era mínima e, por isso, ela não enfrentava
fes), publicado em 2019. Em valores absolutos, o barreiras que a colocassem em patamar de de-
número de estudantes cegos, por exemplo, mais sigualdade com a ampla concorrência, de forma
que triplicou: eram 177 em 2014 e, em 2018, pas- que a vaga foi concedida a outro candidato, com

D
saram a ser 616. impedimentos mais complexos. “Uma pessoa
sem um dedo da mão pode sofrer preconceito,
e acordo com a LBI e a Conven- mas as barreiras para se integrar à sociedade são
ção da ONU, que foi incorporada maiores para quem tem lesão medular”, compara,
à legislação brasileira por meio defendendo que a regulamentação da LBI é as-
de duas emendas constitucio- sunto de interesse de toda a sociedade brasileira.
nais, pessoas com deficiência
“são aquelas que têm impedi- AVANÇO DA CIÊNCIA BALIZA LEGISLAÇÃO
mentos de longo prazo de natu- A conceituação da deficiência é um campo em
reza física, mental, intelectual ou disputa até os dias de hoje. Até meados do século
sensorial, os quais, em interação XVIII, predominavam concepções pré-científicas,
com diversas barreiras, podem com um olhar majoritariamente supersticioso
obstruir sua participação plena e ou de caridade, envolvendo culpa ou castigo di-
efetiva na sociedade em igualda- vino. No século XIX, a ciência médica passou a
des de condições com as demais pessoas”. O juris- compreendê-la como patologia. “A ciência via
ta Emerson Damasceno, presidente da comissão a deficiência como um impedimento corporal,
de autismo da Ordem dos Advogados do Brasil físico e social, situando-a no sujeito e fazendo
(OAB), explica que, no país, as duas normativas com que políticas públicas focassem na busca
são as principais fontes de diretrizes para o aten- pela reabilitação”, explica a psicóloga Marivete
dimento de pessoas com deficiência em sistemas Gesser, coordenadora do Núcleo de Estudos da
de saúde e educação. Além delas, o Estado bra- Deficiência da UFSC. A partir da década de 1960,
sileiro conta com legislação específica para cada com os aportes das ciências humanas e sociais,
deficiência, caso da Lei nº 14.127, que desde 2021 emergiu outro modelo, que compreende que o
trata dos direitos de pessoas com visão monocular.
“Nossa legislação tem um viés moderno e in-
clusivo. Hoje, o grande desafio é conseguir efeti-
var esses direitos”, detalha o jurista. Segundo ele,
alguns artigos da LBI aguardam regulamentação,
o que tem dificultado sua aplicação. Caso do arti-
go 2°, que prevê a possibilidade de pessoas com
deficiência serem avaliadas conforme o chamado
modelo biopsicossocial. “Esse modelo considera
impedimentos em funções e estruturas do cor-
po, além de fatores socioambientais, pessoais e
restrições na capacidade de participar da socie-
dade, para definir se uma pessoa tem deficiência
e medir seu grau de comprometimento”, explica
Damasceno. De acordo com ele, a regulamentação
desse artigo da LBI é fundamental, entre outros
motivos, para orientar instituições em tópicos
como o de reconhecimento de servidores com
deficiência, reserva de vagas em concursos pú-
blicos e de cotas no ensino superior. “O modelo
biopsicossocial considera o laudo médico e tam-
bém avalia o quanto a deficiência compromete a
participação da pessoa na sociedade”, esclarece
o jurista, que se tornou pessoa com deficiência
física em 2014, depois de ser atropelado. Como
exemplo, o jurista cita o caso de uma aluna neu-
rodivergente – termo que se refere a quem tem
um desenvolvimento ou funcionamento neuro-
lógico diferente do padrão esperado pela socie-

14 | ABRIL DE 2023
PANORAMA DA DESIGUALDADE
Pessoas com deficiência enfrentam barreiras para acessar educação e mercado de trabalho

EDUCAÇÃO FORÇA DE TRABALHO RENDA


Parcela da população sem instrução Pessoas com 14 anos ou mais; Receita média mensal recebida
ou com ensino fundamental incompleto ocupadas ou à procura de uma vaga por pessoas com e sem deficiência

80 80 3,0
67,6% 66,3% R$ 2,6 mil
60 60
2,0
R$ 1,6 mil
40 30,9% 40
28,3%
1,0
20 20

0 0 0
População População População População População População
com deficiência sem deficiência com deficiência sem deficiência com deficiência sem deficiência

FONTE  PESQUISA NACIONAL DE SAÚDE / IBGE / 2019

principal problema enfrentado pelas pessoas impede a consideração de que é possível andar
com deficiência são as barreiras impostas pela sem ter pernas, ouvir com os olhos, enxergar com
sociedade. “Essa vertente propiciou um salto à os ouvidos e pensar com cada centímetro de pe-
produção científica, ao tirar a deficiência de um le”, escreve a antropóloga. O termo capacitismo
enfoque individual e patológico e posicioná-la foi cunhado entre os anos 1960 e 1970 e se dis-
como algo que seria neutro, caso as barreiras seminou no Brasil a partir de 2011, por meio do

E
sociais fossem suprimidas”, descreve Gesser. trabalho de pesquisadores como Mello.
Em artigo publicado em 2022, a antropóloga
Anahí Guedes de Mello, também da UFSC, de- m investigação fundamentada
talha que, na década de 1990, a crítica feminista nos estudos feministas sobre de-
e teorias de estudos do cuidado ajudaram a am- ficiência, a partir dessas novas
pliar o alcance do modelo social da deficiência, vertentes de reflexão, a psicóloga
o que, mais tarde, permitiu consolidar o modelo Karla Garcia Luiz pesquisa, em
biopsicossocial. Influenciado pelas demandas de seu doutorado na UFSC, a vida
movimentos de pessoas com deficiência, esse mo- de mulheres com dependência
delo surgiu como uma proposta da Organização de alta complexidade. “Analiso a
Mundial da Saúde (OMS) e foi incorporado pela experiência dessas mulheres por
LBI em 2015. Uma das referências nesse debate meio do conceito de dependência
é a filósofa Eva Feder Kittay, da Universidade complexa, que inclui cuidados fi-
Stony Brook, em Nova York, nos Estados Unidos, siológicos, mas também outros,
que desenvolve trabalhos pioneiros para discutir que permitem o acesso à cultura, ao trabalho e
questões de cuidado e deficiência, especialmen- à educação. O conceito de alta complexidade é
te cognitiva, no âmbito da filosofia. Kittay é mãe ligado a um sentido mais amplo de manutenção
de uma mulher com deficiência cognitiva. Diag- da vida”, detalha Luiz, que nasceu com artrogri-
nosticada com surdez na infância, Mello analisa, pose congênita múltipla e sofre com contraturas
em seu texto, que a avaliação biopsicossocial da articulares. Mãe de uma bebê de 1 ano, um dos
deficiência constitui um avanço por contemplar pontos da investigação científica da psicóloga en-
INFOGRÁFICO  RODRIGO CUNHA / REVISTA PESQUISA FAPESP

a interação entre a biologia e o contexto social e volve a forma como as mulheres com deficiência
entre fatores individuais e ambientais. Confor- experimentam a sexualidade e acessam direitos
me a pesquisadora, os estudos culturais e, em reprodutivos. “Ancorados na sociologia do tra-
especial, os estudos queer, abriram caminho para balho, há muitos estudos sobre os cuidadores de
uma nova linha de reflexão, conhecida como teo- pessoas com deficiência, mas poucos sobre as
ria crip, traduzida para o português como teoria pessoas que, como eu, são cuidadas. Nossa vida
aleijada. “A teoria aleijada questiona os processos é uma eterna negociação com nossos cuidadores
de naturalização do corpo ‘capacitado’ e oferece e familiares. Com a tese, procuro mostrar essas
um modelo cultural da deficiência, rejeitando a perspectivas invisibilizadas”, conta Luiz.
ideia de que não ter uma deficiência seja um es- Pesquisador do movimento social da deficiên-
tado natural de todo ser humano. O capacitismo cia no Brasil, o enfermeiro Raul de Paiva Santos

PESQUISA FAPESP 326 | 15


trabalha com uma área nova, envolvendo o fe- Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep), mos-
nômeno de pessoas com deficiência que vira- tram que 6,7 mil professores do ensino básico,
ram influenciadores e ativistas em redes sociais, ou 0,30% do total, e 1,6 mil do ensino superior,
especialmente durante a pandemia. Santos tor- ou 0,43% do total, tinham algum tipo de deficiên-
nou-se pessoa com deficiência física na infân- cia, naquele ano. Ainda que tímida, essa presença
cia, passando anos em tratamento pelo Sistema tem desafiado instituições de ensino e pesquisa

P
Único de Saúde (SUS). Aluno da graduação na a criar políticas de acessibilidade e acolhimento.
Universidade do Vale do Sapucaí entre 2009 e
2012, ele recorda que a instituição não tinha polí- rofessora do Instituto Federal de
ticas afirmativas, naquela época. “A universidade Educação, Ciência e Tecnologia
questionava se eu seria capaz de fazer os estágios Baiano (IF Baiano) desde 2017, a
e me formar. Também dizia que eu não deveria zootecnista Aline de Assis Lago
cuidar, mas, sim, ser cuidado”, relembra. Depois desenvolvia pesquisa sobre me-
de formado, ele percebeu que nunca tinha visto lhoramento genético na criação
um profissional como ele, que utiliza muletas, de coelhos no campus de Santa
trabalhando na enfermagem. “Nessa época, co- Inês, cidade no interior da Bahia.
mecei a enfrentar barreiras que, anos mais tarde, Por conta de imunidade baixa,
pesquisadoras da área de humanidades no Brasil depressão e ansiedade, frequen-
denominaram capacitismo”, relembra. “Quando, temente precisava se afastar do
em 2019, ingressei no doutorado na USP, a única trabalho. Quando a pandemia de
preocupação da universidade era garantir minha Covid-19 atingiu o Brasil, em março de 2020, as
acessibilidade física ao campus. Eu tinha o tele- atividades presenciais foram suspensas e Lago
fone de um segurança que me levava e buscava passou a trabalhar remotamente. Para surpresa do
dos lugares”, recorda. “Por outro lado, conheci psiquiatra com quem se tratava, ao se manter longe
referenciais teóricos da antropologia e passei a de interações, seu estado geral de saúde melhorou,
assumir minha identidade com orgulho. As lei- na contramão do que era observado em outros
turas na universidade ampliaram meus horizon- pacientes. “Meu psiquiatra se deu conta de que eu
tes”, afirma o enfermeiro. devia ter alguma neurodivergência, que não tinha
O aumento da presença de pessoas com defi- sido detectada até então”, conta. Depois de alguns
ciência na academia tem permitido avanços no meses de investigações, ela foi diagnosticada como
conhecimento científico e propiciado mudanças autista, com Transtorno do Déficit de Atenção com
institucionais. Dados da Coordenação de Aperfei- Hiperatividade (TDAH) e altas habilidades, o que a
çoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) levou a solicitar o reconhecimento como servidora
indicam que matrículas de estudantes com defi- com deficiência. Mas o instituto não dispunha de
ciência em programas de mestrado e doutorado normas que possibilitassem a efetivação de seu
stricto sensu passaram de 998, em 2017 – primeiro pedido e o consequente acesso a direitos como
ano em que foram coletadas informações sobre redução da carga horária sem prejuízo salarial e
elas na pós-graduação –, para 2,8 mil, em 2021 (ver transferência para o campus de Salvador, para a
gráfico abaixo). Em relação a postos de docência, realização de tratamento médico.
o Censo Escolar e o Censo da Educação Superior, “Meu processo de autorreconhecimento como
de 2018, elaborados pelo Instituto Nacional de autista caminhou lado a lado com os esforços

EVOLUÇÃO DAS MATRÍCULAS


Estudantes com deficiência matriculados em cursos de pós-graduação stricto sensu

3,0 2,8 mil


2,5 mil
2,5
2,1 mil
2,0
1,6 mil
1,5
998
1,0

0,5

0
2017 2018 2019 2020 2021

FONTE CAPES

16 | ABRIL DE 2023
como proceder”, recorda Lago, que hoje traba-
lha na Pró-reitoria de Pesquisa e é assistente da
Coordenação Geral na Pós-graduação.
Os casos de Lago e de Alessandra Souza Silva,
professora de atendimento educacional especiali-
zado no mesmo instituto e também diagnosticada
tardiamente com transtorno do espectro autista,
mobilizaram o IF Baiano a criar uma comissão
de neurodiversidade e inclusão, que hoje tem o
papel de identificar falhas e lacunas em suas po-
líticas institucionais, propondo soluções. “Esta-
mos tendo um alcance que não imaginávamos”,
diz Lago, ao recordar que sua primeira palestra
sobre o assunto, organizada em 2021 pelo Comitê
Nacional de Saúde e Qualidade de Vida dos Ins-
titutos Federais, teve cerca de 500 participantes.
“Em instituições acadêmicas, as barreiras ad-
ministrativas são as mais difíceis de transpor”,
avalia o médico Sandro Luiz de Andrade Matas,
criador do Núcleo de Acessibilidade e Inclusão
da Universidade Federal de São Paulo (NAI-Uni-
fesp) em 2006. Ele conta que até aquele ano a
instituição não tinha políticas de inclusão e aces-
sibilidade. O primeiro passo foi estabelecer um
grupo multidisciplinar para elaborar um projeto
de adaptação arquitetônica. “Desde 1978, quando
ingressei na graduação da Unifesp, enfrentava
barreiras físicas e dificuldades para me deslocar”,
comenta o médico. Na infância ele teve paralisia
e, em consequência de suas sequelas, precisa do
auxílio de bengala ou muletas para se locomo-
ver. “Hoje a Unifesp tem elevadores, rampas e
piso tátil para deficientes visuais. As dificuldades
agora estão na elaboração de conteúdos progra-
máticos e envolvem aulas acessíveis a estudantes
com distintas deficiências”, diz. Como exemplo,
cita a ocasião em que a universidade precisava
de um professor de Libras para uma classe da
graduação com um aluno com deficiência au-
ditiva, mas, conforme seu regimento, só pode-
ria contratar docentes com doutorado. “Há sete
anos não contávamos com professores de Libras
para pressionar a instituição a modificar suas com doutorado no Brasil. Foi necessário alterar
políticas voltadas a alunos e servidores com de- o estatuto para poder contornar o empecilho”,
ficiência”, conta Lago. De acordo com ela, foram recorda, ao mencionar que, atualmente, a ins-
os estudantes que, em um primeiro momento, a tituição conta com sete docentes de Libras. Na
acolheram. “Quando souberam do meu diagnós- avaliação de Matas, a situação tende a melhorar
tico, muitos se identificaram comigo e pediram nos próximos anos porque a universidade apro-
INFOGRÁFICO  RODRIGO CUNHA / REVISTA PESQUISA FAPESP

ajuda”, conta a zootecnista. Depois das primeiras vou uma resolução que amplia o acolhimento de
tentativas negadas, em 2022 o instituto adaptou estudantes e docentes com distintas deficiências,
suas políticas e reconheceu Lago como pessoa por meio de investimentos em tecnologia assisti-
com deficiência, autorizando sua transferência va, formação e acessibilidade pedagógica, comu-
para o campus da capital baiana. Lá, ela tem o nicação e mobilização, serviços e infraestrutura.
apoio de psicólogo, psiquiatra, neurologista e Ainda este ano deve entrar em vigor um sistema
fisioterapeuta, que tem lhe permitido “conhe- de cotas para docentes com deficiência, aprovado
cer seu próprio funcionamento”. “Fui a primei- na instituição em 2022. n
ra autista com diagnóstico tardio no IF Baiano
a solicitar reconhecimento como servidora com Os projetos e os artigos científicos consultados para esta reportagem
deficiência. Naquele momento, ninguém sabia estão listados na versão on-line.

PESQUISA FAPESP 326 | 17


Política de educação especial
colabora para reduzir atraso
escolar de pessoas com
deficiência, mas pode fomentar
segregação do ensino

N
os níveis infantil, funda-
mental e médio, as matrí-
culas da educação especial
avançaram em classes co-
muns, conforme o Censo
Escolar de 2022, divulga-
do pelo Instituto Nacional
de Estudos e Pesquisas
Educacionais (Inep) no
começo deste ano. Entre
2021 e 2022, na educação
infantil foram 67,9 mil ma-
trículas a mais. No ensino fundamental e
médio foram 74,2 mil e 30,2 mil, respec-
tivamente (ver gráfico na página 19). No
entanto, mesmo com o crescimento de ma-
trículas em turmas regulares, o processo de
inclusão pedagógica constitui uma barreira
à formação de alunos com deficiência.
A Política Nacional de Educação Espe-
cial na Perspectiva Inclusiva foi adotada
em 2008 para garantir o acesso de estu-
dantes com deficiência, transtornos glo-
bais do desenvolvimento, altas habilidades
e superdotação em escolas regulares. No
mesmo ano, por meio do Decreto nº 6.571,
foi estabelecido o atendimento educacio-
nal especializado para dar suporte a esses
alunos e facilitar o acesso ao conteúdo. A
economista Maria Micheliana da Costa
Silva, da Universidade Federal de Viço-

BARREIRAS
sa (UFV), detectou, em estudo realizado
em parceria com outros pesquisadores da
instituição, que essa política permite re-
duzir a defasagem idade-série de alunos
com deficiência, com impactos mais sig-

À INCLUSÃO
nificativos entre estudantes com surdez.
Nesse grupo, a defasagem escolar pode ser
reduzida em cerca de dois anos, segundo
a economista. Investigando dados de cen-
sos escolares entre 2009 e 2016, o estudo
comparou a situação de grupos de alunos
com 13 tipos de deficiência, e contempla-
dos por ações do programa, com a de alu-
nos com as mesmas deficiências, mas que
não eram atendidos pelo programa. “Os
dados da curva histórica indicam que o
MATRÍCULAS DA EDUCAÇÃO ESPECIAL
Salas de aula regulares registraram aumento no número de estudantes com deficiência

EDUCAÇÃO INFANTIL ENSINO FUNDAMENTAL ENSINO MÉDIO


914,5 mil
900 900 840,2 mil 900

800 800 800

700 700 700

600 600 600

500 500 500

400 400 400

300 300 300

172,8 mil 203,1 mil


200 174,7 mil 200 200
106,8 mil
100 100 100

0 0 0

2021 2022 2021 2022 2021 2022


FONTE  CENSO ESCOLAR 2022 / INSTITUTO RODRIGO MENDES

programa colabora para que alunos com Pesquisadora do Centro Mackenzie de comendações para fortalecer a inclusão
cegueira, baixa visão, deficiência física e Pesquisa sobre Infância e Adolescên- de pessoas com deficiência no SUS. Por
múltipla, autismo, superdotação, entre cia e do Programa de Pós-graduação em meio de revisão da literatura sobre bar-
outros, façam um melhor acompanha- Distúrbios do Desenvolvimento da Uni- reiras e facilitadores do acesso, entrevis-
mento das atividades das classes regula- versidade Presbiteriana Mackenzie, a tas com 31 profissionais e 50 pessoas com
res”, sustenta a economista. psicóloga Cristiane Silvestre de Paula distintos tipos de deficiência em Santos
Por outro lado, em projeto financia- foi uma das coordenadoras do estudo, e São Paulo, ela identificou que a falta
do pela FAPESP e concluído em 2019, concluído em 2020, que envolveu a Re- de comunicação é um dos grandes obs-
a psicóloga Enicéia Gonçalves Mendes, de Latino-americana pelo Autismo. No táculos à inclusão. Brito refere-se à co-
da Universidade Federal de São Carlos levantamento, constatou-se que 37% das municação precária ou inexistente entre
(UFSCar), avaliou políticas de inclusão 3 mil famílias não recebiam nenhum tipo usuários e prestadores de serviço, entre
na rede de um município paulista. Foram de auxílio-saúde ou educação. “O princi- esses e os gestores dos serviços de saúde
aplicados questionários em 61 docentes, pal objetivo das pesquisas desenvolvidas e entre os diferentes níveis de atenção à
sete gestores escolares, 65 estudantes da pela rede, criada em 2015 por pesquisa- saúde (primária, secundária e terciária).
educação especial e 67 familiares. A pes- dores e clínicos de seis países da região, “Essa falha impede o acesso a serviços e
quisa identificou que o atendimento edu- é levantar subsídios para formulação de pode prejudicar a autonomia da pessoa
cacional especializado, ou seja, as aulas políticas públicas, explica Silvestre de com deficiência”, comenta a médica, que
oferecidas a alunos com deficiência em sa- Paula, que também atua no Centro Es- trabalha no Serviço de Reabilitação do
las apartadas do restante da turma, separa pecializado em Transtorno do Espectro Hospital Sírio-Libanês e no Instituto do
os processos pedagógicos de estudantes Autista (TEA), do Departamento de Psi- Câncer do Estado de São Paulo.
com e sem deficiência, tornando-os de- quiatria da Universidade Federal de São As universidades brasileiras, observa
siguais. A pesquisa detectou que metade Paulo (Unifesp). Segundo ela, atualmente Silvestre de Paula, têm gerado um volume
dos estudantes da educação especial não no Brasil o acolhimento de crianças com expressivo de dados sobre deficiências,
recebia atendimento educacional especia- síndrome de Down é mais eficaz em sis- como ferramentas de diagnóstico e inter-
lizado e muitos participavam da ativida- temas de saúde e educação, se compara- venção que podem colaborar com sua in-
de em instituições fora da escola. Cerca do com crianças autistas. “Nesse caso, a clusão em sistemas de saúde e educação.
de 20% dos estudantes com deficiência atuação dos pais fez a diferença. Há cer- “Mas, esses dados não chegam a formula-
INFOGRÁFICO  RODRIGO CUNHA / REVISTA PESQUISA FAPESP

precisam de atendimento especializado. ca de três décadas eles foram pioneiros dores de políticas públicas de forma que
“Os demais conseguiriam aprender da em organizar movimentos de inclusão possam ser aplicados em grande escala na
mesma forma que os outros, em salas de em escolas”, diz, explicando que, no país, prática cotidiana. Redes de saúde, mesmo
aula regulares, desde que a qualidade do o movimento de famílias autistas se for- quando adotam determinados protocolos
ensino melhore, evitando a necessidade taleceu nos últimos 15 anos. de atendimento, enfrentam dificuldades
de remediação”, observa. A médica Christina May Moran de Bri- para capacitar profissionais e expandi-
A inclusão escolar foi o maior proble- to, do Hospital das Clínicas da Facul- -los para todas as unidades”, finaliza a
ma identificado em mapeamento realiza- dade de Medicina da Universidade de pesquisadora. n Christina Queiroz
do entre 2019 e 2020 com 3 mil famílias São Paulo (FM-USP), coordenou projeto,
latino-americanas, mil delas brasileiras, finalizado em 2021 com financiamento Os projetos e os artigos científicos consultados para esta
de autistas com idade entre 3 e 18 anos. da FAPESP, com o objetivo de gerar re- reportagem estão listados na versão on-line.

PESQUISA FAPESP 326 | 19


INOVAÇÃO
AMPLIA
AUTONOMIA
Mundo vive boom de patentes
de equipamentos e serviços
concebidos para proporcionar
habilidades funcionais
Cicloergômetro

para pessoas com deficiência robótico para


fisioterapia de
pessoas com
Domingos Zaparolli lesão medular

O
s últimos anos foram mar- Em 2021, a maioria dessas novas tec- cária”, diz a médica fisiatra Linamara
cados por forte avanço nologias estava em fase de desenvolvi- Rizzo Battistella, diretora do Imrea (ver
no desenvolvimento de mento, enquanto apenas 18% eram co- Pesquisa FAPESP nº 304).
tecnologias assistivas, os mercializadas. Para a OMPI, esse é um “O país precisa de uma política na-
equipamentos e serviços indicativo de que os próximos anos serão cional de acesso a tecnologias assisti-
planejados para propor- marcados por um boom de lançamentos vas. Isso significa a aquisição de equi-
cionar habilidades fun- de produtos e serviços assistivos robó- pamentos atualizados e na quantidade
cionais às pessoas com ticos e digitais. O relatório demonstra adequada, bem como uma estratégia
deficiência. De acordo que China, Estados Unidos, Alemanha, de democratização do acesso”, afirma
com a Organização Mun- Japão e Coreia do Sul são as cinco prin- a pesquisadora. “A tecnologia é funda-
dial da Propriedade Inte- cipais origens das inovações nessa área. mental para proporcionar a inclusão
lectual (OMPI), mais de O Brasil é pouco representativo na pro- de pessoas com deficiência na socieda-
130 mil patentes foram solicitadas entre dução mundial, com uma participação de, nos sistemas de ensino e saúde e no
1998 e 2020 relacionadas a inovações de apenas 0,21% das exportações globais. mercado de trabalho.”
capazes de minorar problemas enfren- Os benefícios desse avanço tecnológi- Para Battistella, o Brasil conta com
tados por indivíduos com dificuldade de co, contudo, não são acessíveis a toda a centros de inovação capacitados a desen-
mobilidade ou com restrições de visão, comunidade de pessoas com deficiência. volver tecnologia de ponta, mas muitos
audição e coordenação motora. O dado Segundo a Organização Mundial da Saú- produtos não encontram respaldo na ad-
integra o relatório “Tendências tecnológi- de (OMS) e o Fundo das Nações Unidas ministração pública e no setor produtivo.
cas 2021: Tecnologia assistiva”, elaborado para a Infância (Unicef ), mais de 2,5 bi- Exemplo dessa situação, diz a médica,
pela OMPI, agência ligada à Organização lhões de indivíduos no planeta precisam são os modelos robóticos de exoesque-
das Nações Unidas (ONU). de um ou mais produtos assistivos para letos que complementam o caminhar
O principal foco inovativo recai sobre as minorar deficiências físicas ou superar de pessoas com paraplegia criados pe-
chamadas tecnologias assistivas emergen- limitações físicas e motoras impostas pe- la Escola de Engenharia de São Carlos
tes, que envolvem robôs, inteligência arti- la idade. Desse total, mais de 1 bilhão não da Universidade de São Paulo (EESC-
ficial, sensores e outros recursos digitais, têm acesso a esses recursos, principal- -USP), pelas universidades federais do
como as ferramentas de acessibilidade em mente em países de baixa e média renda. Rio Grande do Norte (UFRN) e do Espí-
sistemas operacionais e os aplicativos de Em São Paulo, apenas 28% dos indiví- rito Santo (Ufes) e pela Universidade de
computadores e smartphones que dispo- duos com deficiência dispõem de equi- Brasília (UnB) (ver Pesquisa FAPESP nº
LÉO RAMOS CHAVES / REVISTA PESQUISA FAPESP

nibilizam teclados em braile, digitação por pamentos assistivos adequados às suas 301). “São equipamentos altamente qua-
voz e rastreadores oculares que permitem necessidades. A constatação é de uma lificados, mas não estão disponíveis co-
controlar o computador com os olhos. pesquisa do Instituto de Medicina Física mercialmente. Com isso, não sobra outra
Desde 2013, o registro de tecnologias e Reabilitação (Imrea) do Hospital das opção aos usuários senão adquirir mo-
assistivas emergentes cresce a um ritmo Clínicas (HC) da Faculdade de Medicina delos importados”, pondera Batistella.
de 17% ao ano, uma expansão três vezes da Universidade de São Paulo (FM-USP). A seguir, apresentamos inovações bra-
maior do que a verificada entre as inova- “Não temos dados de todo o país, mas a sileiras lançadas recentemente ou em fa-
ções convencionais, como aprimoramentos experiência demonstra que a realidade se avançada de desenvolvimento, agrupa-
em cadeiras de rodas e aparelhos auditivos. nos demais estados é ainda mais pre- das por áreas de interesse dos usuários.

PESQUISA FAPESP 326 | 21


Mouse de cabeça
sem fio Colibri:
para pessoas com
limitações nos
membros superiores

ACESSIBILIDADE DIGITAL
O uso de computadores e smartphones
é um problema para quem sofre de li-
mitações motoras severas nos membros
superiores (braço e mão). No Brasil, cal-
cula-se que o problema aflija mais de 2
milhões de indivíduos. No final de 2021,
a startup mineira Tix lançou o Colibri,

FOTOS 1 TIX TECNOLOGIA ASSISTIVA / DIVULGAÇÃO  2 LÉO RAMOS CHAVES / REVISTA PESQUISA FAPESP  3 HANDTALK 4 CESAR / DIVULGAÇÃO 5 GUIADERODAS / STUDIO STIEBLER & BUCCIARELLI PHOTOGRAPHY
o primeiro mouse de cabeça brasileiro
sem fio. Um dispositivo acoplado aos
1
óculos do usuário ou a uma armação
de óculos sem lente acompanha o mo- dor da Tix. O Colibri soma quase 400 representando mais de uma letra, que
vimento de cabeça e o click é realizado usuários, entre assinantes do serviço, permite pessoas com dificuldade moto-
com uma piscadela de olho ou uma pau- que pagam R$ 120 por mês, e indivíduos ra escrever qualquer palavra de acordo
sa na movimentação. Para evitar clicks que compraram o dispositivo por cerca com uma sequência de toques.
indesejados, o tempo da piscada de olho de R$ 3 mil. Outra inovação é o aplicativo Expres-
ou a pausa na movimentação da cabeça é A empresa desenvolveu também o sia, voltado para a comunicação de pes-
preestabelecido caso a caso. “O usuário Telepatix, um aplicativo para computa- soas com dificuldades de fala ou o en-
não precisa se adaptar a uma condição dores e smartphones que disponibiliza sino de indivíduos com dificuldades de
predefinida; é o produto que se adapta um teclado movimentado pelo piscar aprendizagem, como em alguns casos de
ao usuário”, explica o engenheiro ele- de olhos, e o Tix, um teclado sensível autismo. O programa disponibiliza fotos
tricista Adriano Rabelo Assis, funda- ao toque de apenas 11 teclas, cada uma e imagens para a construção de frases.

Almofada projetada
para evitar úlceras
de pressão em
usuários de ALMOFADA INTELIGENTE
cadeiras de rodas Uma almofada dotada de sensores para por exemplo, que um paraplégico ou seu
cobrir o assento de cadeiras de rodas é cuidador saiba imediatamente que está
a inovação em fase final de desenvolvi- na hora de trocar a fralda descartável.
mento no Imrea, da Faculdade de Me- O Imrea também desenvolve um ci-
dicina da USP. Os sensores programa- cloergômetro robótico, que auxilia a fi-
dos com inteligência artificial (IA) vão sioterapia de pessoas com lesão medular.
regular a pressão de ar de almofadas de Por meio de estimulação elétrica, o apa-
forma a permitir que o fluxo sanguíneo relho reproduz artificialmente os movi-
não seja interrompido, mesmo após ho- mentos dos membros inferiores necessá-
ras de uso da cadeira de rodas, e assim rios para pedalar e, assim, movimenta os
evitar o surgimento de úlceras de pres- músculos, reduzindo a perda de massa
são e escaras. muscular. É uma inovação incremental,
“Uma vítima de lesão da medula não pois já existem aparelhos com esse perfil
possui a sensibilidade necessária para disponíveis. O cicloergômetro robótico
sentir e relatar o incômodo”, diz Battis- do Imrea proporciona o monitoramen-
tella, diretora do Imrea. Outra funciona- to remoto com sensores para batimento
lidade da almofada é emitir um alerta so- cardíaco, oxigenação sanguínea, pressão
2 bre a presença de umidade, permitindo, arterial e temperatura.
Com ajuda de
TRADUTORES PARA SURDOS um avatar, aplicativo
traduz textos e
De acordo com a OMS, mais de 80% das áudios em português
pessoas surdas têm dificuldade de com- para Libras
preender bem a língua de seus países,
mesmo quando apresentada de forma
escrita. No Brasil, os surdos são alfa-
betizados com a Língua Brasileira de
Sinais (Libras), que, por sua vez, não é
conhecida pela maioria da população.
A startup alagoana Hand Talk criou em
3
2012 um aplicativo para smartphone
que traduz textos e áudios em por- em 2023 para a tradução de sites corpo-
tuguês para Libras, com o auxílio de rativos. A startup trabalha, ainda, em no-
dois avatares, os personagens Hugo e va tecnologia com base em inteligência
Maya, que fazem os sinais da língua. A artificial com o objetivo de reconhecer
ONU premiou a iniciativa como Me- sinais e traduzir Libras para português. Protótipo de
lhor Aplicativo Social do Mundo em O uso de IA para uma tradução bi- robô para aplicação
2013. Já foram realizados 6 milhões de direcional, português-Libras e Libras- de batom em
downloads do aplicativo, sem custos -português, é o foco de um projeto do pessoas com
deficiência visual
para os usuários. pernambucano Centro de Estudos e Sis-
Em 2014 a Hand Talk lançou o Plugin, temas Avançados de Recife (Cesar) com
ferramenta que traduz textos da internet a fabricante chinesa de computadores
para Libras, também com o auxílio dos Lenovo. Outra iniciativa da parceria é
avatares. A inovação já foi implementa- a criação do primeiro dicionário digital
da em sites de mais de mil empresas — o Libras-Libras. “Os dicionários atuais são
valor da cobrança é definido caso a caso. voltados para surdos que sabem portu-
De acordo com Ronaldo Tenório, sócio- guês. Queremos oferecer um dicioná-
-fundador da Hand Talk, o aplicativo rio em que o tópico de pesquisa e a ex-
para smartphone está disponível para plicação do significado daquele tópico
tradução do inglês para a Língua Ame- estejam em Libras”, descreve William
ricana de Sinais (ASL) e uma versão do de Neves Gallo, designer de interação
Plugin será lançada nos Estados Unidos do Cesar.
4

GUIA PARA CADEIRANTES ROBÔ QUE APLICA BATOM


Uma fonte de frustração para quem prévias sobre a acessibilidade a locais O Cesar, de Pernambuco, criou com o
depende de cadeiras de rodas para se públicos e privados. grupo Boticário o batom inteligente, um
locomover é chegar a um restaurante, A ideia de Bruno Mahfuz, cadeirante robô dotado de visão computacional e
uma exposição de arte, uma reunião há 21 anos, foi eleita em 2017 a melhor inteligência artificial para aplicar o cos-
de trabalho ou uma repartição pública iniciativa digital para a inclusão pelo mético nos lábios sem borrar. A ideia é
e descobrir que não há acesso dispo- World Summit Award (WSA) da ONU. beneficiar pessoas com deficiência vi-
nível no local ou um banheiro capaz Colaborativo, o aplicativo fornece gratui- sual ou restrições motoras. Acionado
de recebê-lo. O aplicativo Guiadero- tamente informações sobre acessibilidade por voz ou um botão, o dispositivo, em
das, iniciativa apoiada pela FAPESP, em mais de 3 mil cidades em quase todos fase de protótipo, faz uma foto do rosto
foi pensado para oferecer informações os países do mundo. Os próprios usuá- da pessoa, delimita os lábios e aciona um
rios ou simpatizantes do site são orien- braço robótico para realizar a aplicação.
tados sobre os critérios que devem ser “Ele já funciona com sucesso em ma-
analisados e a avaliação não dura nem nequins, mas a aplicação em humanos é
Guiaderodas: um minuto. A plataforma disponibiliza mais complexa. Precisamos fazer aper-
dados sobre
acessibilidade
informações em português, espanhol e feiçoamentos”, reconhece Izabela Ca-
em mais de inglês e conta com uma aba de notícias, valcanti, gerente de Produto e Inovação
3 mil cidades com dicas de acessibilidade. do Cesar. Uma das tarefas é ampliar a
“Estamos desenvolvendo uma ferra- base de dados da IA para reconhecer
menta de inteligência artificial que vai todos os tipos de cor de pele e eventuais
permitir cruzar dados disponibilizados cicatrizes na boca. n
pelos usuários com informações em nuvem
sobre os locais e, assim, aperfeiçoar nossa Os projetos consultados para esta reportagem estão
5 prestação de serviços”, antecipa Mahfuz. listados na versão on-line.

PESQUISA FAPESP 326 | 23


24 | ABRIL DE 2023
ENTREVISTA Jorge Almeida Guimarães

DA LAVOURA
À QUÍMICA
DE PROTEÍNAS
A inesperada trajetória do filho de camponeses que
foi à escola só depois dos 10 anos e se tornou
pesquisador e presidente da Capes e da Embrapii

Fabrício Marques  |  RETRATO  Léo Ramos Chaves

N
IDADE 84 anos o currículo do bioquímico Jorge Almeida Guimarães, de 84 anos,
transparece um pesquisador de perfil irrequieto. Em um país
ESPECIALIDADE
em que a mobilidade acadêmica é baixa, foi professor de cinco
Biologia molecular
diferentes universidades federais – a Rural do Rio de Janeiro
INSTITUIÇÃO (UFRRJ), a de São Paulo (Unifesp), a Fluminense (UFF), a do
Universidade Federal Rio de Janeiro (UFRJ) e a do Rio Grande do Sul (UFRGS) –, com passagens
do Rio Grande do Sul ainda pela Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto (Famerp) e pe-
la Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Por três décadas, atuou
FORMAÇÃO
também como gestor em agências como o Conselho Nacional de Desenvolvi-
Graduação em
mento Científico e Tecnológico (CNPq), a Coordenação de Aperfeiçoamento
medicina veterinária
de Pessoal de Nível Superior (Capes) e a Empresa Brasileira de Pesquisa e
na UFRRJ, doutorado
Inovação Industrial (Embrapii).
em biologia molecular
Além de incomum, a trajetória de Guimarães é totalmente inesperada. Um
na Escola Paulista
dos nove filhos de um casal de camponeses de Campos de Goitacazes, no
de Medicina (Unifesp)
norte do Rio de Janeiro, ele só frequentou a escola depois dos 10 anos. Apro-
PRODUÇÃO veitou uma oportunidade – a disputa por uma vaga em uma escola técnica
197 artigos científicos, agrícola próxima ao assentamento em que vivia – e transformou-a em porta
1 livro, 28 capítulos de entrada para uma carreira na área de bioquímica, com destaque para a
de livro química de proteínas.
Em setembro, ele deixou a presidência da Embrapii após sete anos no
comando da agência. Pouco antes incumbiu um time de pesquisadores de
produzir um livro, Ciência para prosperidade sustentável e socialmente justa
(Embrapii, 2022), que enumera desafios do país no campo da ciência, tec-
nologia e inovação. Aposentado na UFRGS desde 2008, seguiu orientando
alunos em programas de pós-graduação da instituição e do Hospital de Clíni-
cas de Porto Alegre. Na entrevista a seguir, Guimarães revisita sua trajetória.

PESQUISA FAPESP 326 | 25


Como um filho de camponeses entrou Era a Escola Agrotécnica Ildefonso Si- único lugar em que ele dava aula, em
para a carreira acadêmica em uma épo- mões Lopes, a qual tinha uma competição tempo parcial, era na Rural, na veteri-
ca em que pouca gente fazia esse cami- enorme. Funcionava em modelo de esco- nária. A bioquímica era um caminho pa-
nho no Brasil? la militar, e com todo o amparo: comida, recido com a química. Fiz o vestibular
Não havia muita expectativa para uma roupa, calçado, dormitório, disciplina, para veterinária, que, além das provas
pessoa como eu. Meu pai nunca foi à esco- esporte, trabalho rural. Eu competi, pas- escritas, incluiu exame oral com qua-
la. Aprendeu a ler e escrever com a minha sei e fiz os quatro anos do antigo ginasial tro catedráticos na banca. Ele estava lá
mãe, que só fez o curso primário. Tínha- em regime de internato. Logo em seguida e me perguntou: “Por que você vai fazer
mos uma vida de roça. Minha mãe teve abriu o nível técnico, equivalente ao an- veterinária?”. Respondi: “Porque quero
nove filhos e só eu e uma irmã dez anos tigo curso científico. Fiz então sete anos trabalhar com o senhor”. Passei e, quan-
mais nova tivemos formação superior. Mi- como estudante full time. A matéria que do terminou o primeiro semestre, ele
nha mãe teve tuberculose depois que eu mais me interessava era química. abriu uma oportunidade para todos os
nasci. A penicilina tinha acabado de ser estudantes, nas férias. “Só que tem que
lançada e meu pai gastou toda a reserva- Por que escolheu a veterinária? ir trabalhar lá em Manguinhos, no meu
zinha de dinheiro – que não era muita – Na então Universidade Rural do Brasil, laboratório”. Íamos eu e um colega. No
para salvá-la. Só que ele ficou quebrado. hoje UFRRJ, tinha só dois cursos su- segundo semestre me tornei monitor.
Tinha um armazém e uma propriedade periores: agronomia e veterinária. Para
pequena e teve que se desfazer. Dois dos fazer química, eu teria que sair da Ru- E seu primeiro contato com a prática
meus irmãos mais velhos tinham ido para ral e minha família não tinha como me científica, como foi?
o Rio de Janeiro e convenceram meus pais manter. Foi aí que eu descobri um pro- Defronte à área da Universidade Rural
a segui-los. Meu pai arrumou emprego fessor de bioquímica do curso de vete- tinha o que na época se chamava Insti-
na prefeitura, mas não se adaptava. Nes- rinária: Fernando Braga Ubatuba. Foi tuto de Pesquisa Agropecuária do Mi-
se período, no final da Segunda Guerra o meu mentor científico. Muitos anos nistério da Agricultura, hoje Embrapa.
Mundial, ele soube que o Getúlio Vargas mais tarde, levei-o para trabalhar em Dois veterinários alemães trabalhavam
tinha feito um grande projeto de reforma meu laboratório quando eu era profes- ali com plantas tóxicas e deficiências
agrária na região de Itaguaí, entre o anti- sor na UFRJ. Ficou comigo até falecer. minerais em animais. Eles convenciam o
go Distrito Federal e o estado do Rio, para fazendeiro a sacrificar o animal doente e
assentar famílias de imigrantes japoneses Como chegou até ele? obter um pedaço do fígado para analisar
e dar de presente para ex-pracinhas que O Ubatuba era médico e bioquímico de se havia deficiência mineral, mas, para
voltaram da Segunda Guerra. Meu pai foi primeira linha, formador de recursos a análise, mandavam o material para a
lá e convenceu um ex-pracinha a ser meei- humanos. Também era pesquisador no Alemanha. Pediram ajuda ao Ubatuba,
ro da propriedade dele. Foi assim que a Instituto Manguinhos, hoje Fiocruz. O que disse: “O Jorge vai fazer isso, vou
gente começou: meu pai, minha mãe e eu treiná-lo”. Passei três anos trabalhando
para plantar, cultivar e colher a lavoura. com o tema das deficiências de microe-
Só que não tinha escola perto. Depois de lementos minerais em bovinos e ovinos.
um ou dois anos, houve uma ampliação No final do curso, em 1963, fui fazer es-
do loteamento e meu pai ganhou um sítio. pecialização em fisiologia de microrga-
Já tinha 10 anos quando ele decidiu que nismos, no então Instituto de Bioquími-
eu devia ir para a escola. ca, dirigido pelo professor Metry Bacila

Não era ainda alfabetizado? De vez em [1922-2012] na Universidade do Paraná


[atual UFPR]. Voltei para a Rural em 30
Meu pai me ensinou o essencial em ma- de março de 1964. E dia 1º de abril es-
temática: peso das coisas, tamanho, vo- quando, o nosso tourou a ditadura.
lume. Mas não em letramento. A escola
mais próxima era a “Ponte dos Jesuítas”
e ficava em Santa Cruz, do lado do Distri-
riacho enchia De que forma isso o afetou?
Eu tinha sido presidente do diretório
to Federal – nós estávamos no estado do
Rio. Tinha um rio que separava uma re-
e derrubava acadêmico e o Ubatuba era considera-
do um esquerdista. Tinha um quartel ali
gião da outra. De vez em quando, o nosso perto e os soldados chegavam ao refei-
riacho, chamado rio São Francisco, enchia a ponte precária. tório da universidade, subiam na mesa
e derrubava a ponte precária. Para eu ir à e liam o nome dos estudantes e outras
escola, tinha que atravessar o rio a nado. Para eu ir pessoas que deviam ir presos, o meu en-
Fiz ali todo o curso primário. Eu era um tre eles. Mas não me achavam, porque eu
excelente aluno de matemática. No lotea-
mento, tinha agrônomos do Ministério da
à escola, tinha tinha mudado para o lado do campus do
Ministério da Agricultura. Acabei dan-
Agricultura e um deles contou ao meu pai
que o governo estava abrindo uma univer- que atravessar do uma sorte tremenda, o que possibi-
litou me afastar do ambiente da Rural.
sidade rural perto dali que tinha uma es- Encontrei um ex-professor de química
cola técnica e ele devia me mandar para lá. o rio a nado da Escola Agrotécnica que me ofereceu

26 | ABRIL DE 2023
Queria falar sobre a sua contribuição
científica. O senhor trabalhava com
química de proteínas. O que fez exata-
mente no doutorado?
Na Paulista de Medicina, comecei a tra-
balhar com proteínas, com enzimolo-
gia de peptídeos biologicamente ativos,
envolvidos em processos fisiológicos.
A contribuição maior que eu fiz nessa
área foi a própria tese de doutorado, que
tratou de uma enzima, a aminopeptida-
se cinino-conversora do soro humano.
Tinha muito a ver com a descoberta da
bradicinina, anti-hipertensivo presente
no veneno da jararaca, feita pelo Maurí-
cio Rocha e Silva [1910-1983]. A sequência
de nove aminoácidos da bradicinina está
no meio de uma molécula maior que se
chama cininogênio, uma proteína do nos-
Guimarães (à dir.), so organismo. Esse é o sistema chamado
nos tempos calicreína-cininas, que se contrapõe a
de estudante da
veterinária no
uma outra cascata de processos bioquí-
campus da UFRRJ micos que faz a constrição de vasos e gera
o aumento da pressão arterial, o siste-
emprego em uma multinacional onde ele 1969. No dia 1o de abril de 1970, Ubatuba ma renina-angiotensina, já conhecido
trabalhava, em Resende. Era a Lederle, foi cassado com outros nove pesquisa- bem antes. O sistema renina-angioten-
divisão da Cyanamid Química do Bra- dores da Fiocruz, um episódio conheci- sina tem uma etapa de conversão de um
sil. Fiquei na indústria um bom tempo. do como o Massacre de Manguinhos. O peptídeo maior em um peptídeo menor,
Estava noivo e ganhava bem, mas tinha grupo que a gente tinha criado na Rural que é o biologicamente ativo. Então, nós
mesmo interesse pela vida acadêmica. debandou. Quando deu seis meses que eu pensamos: “Bom, deve ter algo parecido
Fiquei até as coisas amenizarem na Ru- estava na Paulista, o Leal Prado e a Eline também no sistema das cininas”. Des-
ral. Abriram um concurso para auxiliar Prado decidiram que eu devia passar di- cobrimos que o que as enzimas fazem
de ensino. Passei e retomei o trabalho reto para o doutorado, o que era raro na é liberar um peptídeo maior, chamado
com o Ubatuba e com os pesquisadores época. As coisas se complicaram porque lisil-bradicinina, que tem 10 aminoáci-
alemães. Em 1968, o Ubatuba foi preso. a Rural, quando terminou o meu período dos em vez de nove. E há um peptídeo
Ele vinha dar aula de bioquímica escol- de dois anos para o mestrado, exigiu que um pouco maior, que se chama metionil-
tado por soldados, uma coisa terrível. No eu voltasse. Aí foi um transtorno. -lisil-bradicinina, com 11 aminoácidos. Eu
final de 1968, me disse: “Vamos ter que estudei a enzima que faz a conversão das
ir embora daqui, mas antes você precisa Como conciliou? cininas maiores em bradicinina.
fazer pós-graduação”. Ele e seus colegas O diretor da EPM tentou minha trans-
da Fiocruz resolveram que eu tinha de ferência, mas a Rural negou. Consegui Seu pós-doutorado nos Institutos Na-
mudar para a área de proteínas e preci- um arranjo com o diretor do Instituto de cionais de Saúde, os NIH, nos Estados
sava ir para a recém-criada Faculdade Química da Rural. Por conta da reforma Unidos, também abordou esse tema?
de Medicina de Ribeirão Preto da USP universitária, a Rural já tinha cursos de O Leal Prado e a Eline tinham voltado
trabalhar com o qualificado professor outras carreiras, inclusive química. Ele dos Estados Unidos no começo de 1972
José Moura Gonçalves [1914-1996]. propôs que eu desse aula de bioquímica e arranjaram para eu fazer o pós-doc nos
na sexta e no sábado na Rural e, no resto NIH, na cidade de Bethesda. Comecei a
Seguiu a orientação? da semana, tocasse o doutorado em São trabalhar com fenômenos ligados à coa-
Não, porque ela mudou. O Moura Gonçal- Paulo. Aí abriram um concurso na Escola gulação sanguínea. Pude aprofundar o
ves que ia me receber se tornou diretor Paulista e eu fui aprovado como profes- estudo sobre o precursor das cininas, o
da Faculdade de Medicina e o Ubatuba sor assistente de bioquímica. A vaga era cininogênio, com o grupo do National
disse: “Ele não vai ter tempo de te orien- de tempo parcial. Eu tinha família e o Heart, Lung and Blood Institute [NH-
tar”. Então, fui fazer a pós-graduação na salário parcial de 20 horas não era sufi- BI], trabalhando com o pesquisador Jack
Escola Paulista de Medicina [EPM], com ciente. Colegas da Paulista e da bioquí- Pierce. Uma descoberta importante que
o casal José Leal Prado [1918-1987] e Eli- mica da USP convenceram a FAPESP a fizemos foi que pessoas com deficiência
ne Prado [1921-2007], que me receberam me dar uma bolsa de complementação de um tipo de cininogênio podiam ter
ARQUIVO PESSOAL

de braços abertos para fazer o mestrado. salarial. Assim, fui bolsista da FAPESP, defeitos na coagulação sanguínea. Esse
Eu quebrava um pouco a endogenia en- de maio até dezembro de 1972, quando trabalho, de 1975, é um dos que têm o
tão predominante. Fui no finalzinho de defendi o doutorado na EPM. maior número de citações.

PESQUISA FAPESP 326 | 27


Além da Federal Rural e da Escola Pau- Ubatuba treinando os estudantes desde o no Departamento de Bioquímica Médi-
lista de Medicina, hoje Unifesp, o senhor início da formação científica, e eu sempre ca [DBM] na UFRJ”. Pedi demissão da
foi professor da Federal Fluminense, da achei estimulante esse tipo de desafio. UFF, reassumi o cargo na Paulista e de lá
Federal do Rio de Janeiro até se fixar na me transferi para a UFRJ. Logo que saiu
do Rio Grande do Sul. Essa mobilidade Da Escola Paulista o senhor se tornou a transferência formal, o Leopoldo disse:
é incomum entre pesquisadores aqui no professor titular da UFF, mas ficou mui- “Você vai ser chefe do departamento no
Brasil. A que atribui isso? to pouco tempo lá. Por quê? meu lugar”. Assumi e tive que pôr para
Trabalhei em outras instituições também. Parte do nosso grupo da Rural foi para a fora um bando de gente que não fazia
Um diretor da Escola Paulista tinha um UFF. Eu tinha me separado do primeiro pesquisa, não se afinava com o ensino
irmão que era diretor da Faculdade de casamento, queria sair do ambiente da moderno da disciplina e atrapalhava o
Medicina de São José do Rio Preto. Ele Escola Paulista e fiz o concurso na UFF. plano de construir um forte departamen-
reclamava da dificuldade de ter profes- Contra a vontade do Leal e da Eline Pra- to de bioquímica. Chefiei o departamento
sores de bioquímica. O Leal Prado e o di- do. No dia 2 de janeiro de 1980 assumi o de 1982 a 1985. Ganhei muitos inimigos,
retor da EPM na época decidiram que eu cargo de professor titular de bioquímica mas também muito reconhecimento pela
e um outro colega da bioquímica, o Cláu- na UFF. Foi um período horroroso, difícil. defesa da ciência e dos princípios supe-
dio Sampaio, devíamos ajudar a Famerp. O Departamento de Ciências Fisiológicas riores da universidade. Depois aceitei di-
Passamos a ir lá para dar aula. Também tinha 70 docentes e a grande maioria ti- rigir o Instituto de Ciências Biomédicas
passei pela Unicamp. O professor José nha vários empregos e não se dedicava à [ICB], no período de 1986 a 1990.
Francisco Lara, da bioquímica da USP, foi ciência. Nosso pequeno grupo conseguiu
convidado pelo Zeferino Vaz [1908-1981], desenvolver uma forte atividade de en- Nos anos 1990, o senhor se tornou dire-
então reitor da Unicamp, para montar o sino e pesquisa na disciplina de bioquí- tor científico do CNPq. Como foi parar
que seria o primeiro centro de biotec- mica. Por conta disso, em maio de 1980 em Brasília?
nologia da América Latina. O Lara le- um pequeno grupo de cinco docentes- Em 1990, o governo Collor escolheu o José
vantou recursos substanciais e convidou -pesquisadores foi para o congresso da Goldemberg para assumir a então Secre-
alguns pesquisadores. Éramos uns oito. Sociedade Brasileira de Bioquímica e taria de Ciência e Tecnologia, que ante-
O Zeferino acabou saindo da reitoria e Biologia Molecular (SBBq) em Caxam- cedeu o hoje equivalente ministério. Ele
a primeira coisa que o novo reitor Plínio bu e lá eu fui eleito o futuro presidente foi à UFRJ e disse que gostaria de alguém
de Moraes fez foi acabar com o projeto. da SBBq para o período 1981-1983. Era dali na equipe do CNPq. Assumi a diretoria
Sempre me perguntam por que mudei um prestígio enorme. Mas, quando vol- do CNPq, primeiro na área de programas,
tanto de universidade. De brincadeira, tamos para Niterói, fomos punidos por depois na científica. Foi um desafio enor-
costumo responder: por dois motivos. O falta de ponto por um chefe que tinha me. O Collor não deixava ter dinheiro no
primeiro é, quando descobrem os meus cinco empregos diferentes. Foi um ano CNPq, mas consegui criar alguns bons pro-
defeitos, sinto que é hora de ir embora. e meio de pancadaria. Quando estava pa- jetos, como o projeto integrado, o plano de
O segundo, quando alguém acha que eu ra terminar meu período de licença na apoio às engenharias e o Pibic, o Programa
posso ser candidato a reitor, aí eu vou EPM, pensei em voltar para São Paulo. O Institucional de Bolsas de Iniciação Cien-
embora mesmo. Brincadeiras à parte, Leopoldo de Meis [1938-2014], amigo e tífica. Já existia uma iniciativa preliminar
ao mudar, você começa do zero, um en- meu vice-presidente na SBBq, me falou: no CNPq, com pouquíssimas bolsas dispo-
sinamento que aprendi com o professor “Vem trabalhar no nosso novo grupo aqui nibilizadas. O Pibic instituído tinha como
plano chegar em 30 mil alunos bolsistas,
com bolsas concedidas na forma de quotas
em função do número de vagas oferecidas
pelos cursos de mestrado. O objetivo era
permitir que a universidade ou instituição
fizesse a seleção dos bolsistas e passasse
a contar com um modelo capaz de turbi-
nar a formação de cientistas no Brasil. Na
primeira rodada do Pibic em 1991 foram
concedidas 11 mil bolsas.

O senhor foi um dos mais longevos pre-


sidentes da Capes, ficou 11 anos e 3 me-
ses, entre 2004 e 2015. O que considera
mais relevante nesse período?
Foram muitas iniciativas e programas
Em 1995, como implementados. Pode-se incluir aí a ex-
pesquisador traordinária expansão do Portal de Perió-
ARQUIVO PESSOAL

visitante da
dicos, a incorporação da Educação Básica
Universidade
do Arizona, nos e a Universidade Aberta, a reformulação
Estados Unidos estrutural passando de três para sete di-

28 | ABRIL DE 2023
retorias, entre elas a de Cooperação In- de excelência próprios. Tem muita coisa
ternacional, a expansão dos mestrados que ela prefere fazer com a Embrapii a
profissionais. Criei na Capes o equiva- sobrecarregar os seus PhD com proble-
lente ao Pibic para a área de formação de
professor: o Pibid – Programa Institucio-
Sempre me mas que as unidades Embrapii podem
resolver. É um ganha-ganha tremendo.
nal de Bolsas de Iniciação à Docência. O
Pibid chegou em pouco tempo a 100 mil perguntam por Em 1997, o senhor se fixou na Universi-
bolsistas. Quando assumi, em fevereiro de dade Federal do Rio Grande do Sul, onde
2004, percebi a necessidade de retomar o que mudei tanto se aposentou em 2008. O que tem feito?
Plano Nacional de Pós-graduação [PNPG]. Chegamos aqui em Porto Alegre eu e mi-
Os três planos que haviam sido feitos des-
de os anos 1970 foram muito importan-
de universidade. nha esposa Celia – ela veio por concurso
para o Departamento de Biofísica e eu
tes. Nomeei uma comissão presidida pelo
professor Cesar Sá Barreto, ex-reitor da Você começa por transferência da UFRJ para o Centro
de Biotecnologia da UFRGS. Eu tinha o
UFMG, e fizemos o PNPG 2005-2010. No background na área de venenos e encon-
começo de 2010, montei nova comissão do zero e eu trei aqui um assunto interessantíssimo:
tendo o professor Sá Barreto à frente. Es- uma lagarta, Lonomia obliqua, conhecida
se plano cobriu o período de 2011 a 2020.
Quando assumi, confirmei minha convic-
sempre achei como lagarta de fogo, que se desenvolve
nas matas e pode causar hemorragia fa-
ção de que era preciso dar mais autonomia
para os cursos, principalmente para os de estimulante esse tal. Por conta do desmatamento, passou
a proliferar no Rio Grande do Sul e em
maior peso e experiência, que têm notas Santa Catarina em plantações de frutas de
6 e 7. Criamos o Proex [Programa de Ex- tipo de desafio clima temperado, como pêssego, ameixa,
celência Acadêmica], por meio do qual os maçã. Esse assunto atraiu vários estudan-
recursos são repassados ao coordenador tes de graduação e pós-graduação. Um
do Programa de Pós-graduação [PPG] e a dos trabalhos foi com uma estudante, a
coordenação é quem cuida da política do Ana Beatriz Gorini da Veiga, que agora
programa. Se cair o conceito, sai fora do é professora na Universidade Federal
programa. Com apoio dos ministros Tar- de Ciências da Saúde de Porto Alegre
so Genro, Fernando Haddad e Henrique (UFCSPA). Esse trabalho desvendou o
Paim conseguimos elevar o orçamento da segredo dessas espículas. Um tecido su-
Capes de R$ 500 milhões em 2004 para ve isso, porque o governo entra com uma bepitelial, uma espécie de glândula, ali-
R$ 7, 1 bilhões em 2015, quando saí. parte do investimento, a “cenoura” do menta as espículas e a pessoa que traba-
incentivo. A Embrapii põe um terço dos lha na colheita de frutas, por exemplo,
Seu trabalho mais recente foi no coman- recursos em cada projeto. As unidades de ao encostar-se nelas se autoinjeta sem
do da Embrapii, que criou uma forma pesquisa da Embrapii, que funcionam em perceber. Mais recentemente temos nos
diferente de fomentar inovação em em- universidades e instituições de pesquisa, dedicado a temas como o vírus zika e o
presas. Que impacto o trabalho teve? computam, na média, 17% – não em di- da Covid-19 e feito várias contribuições.
A Embrapii tem uma concepção dife- nheiro, mas em equipamentos, máquinas,
renciada por ser uma organização social pessoal e na infraestrutura já existente. Por exemplo...
e, portanto, uma instituição privada, li- Somando, isso dá 50%. A empresa põe os Com o zika vírus, publicamos um tra-
vre de entraves que afetam o funciona- outros 50%, sabendo que os grupos são balho que considero da maior impor-
mento das agências de fomento. Ela não altamente qualificados, rigorosamen- tância, que permitiu perceber que as
vai salvar sozinha a indústria brasileira, te selecionados e credenciados. A ges- mulheres que se infectaram, mesmo
mas tem obtido resultados que consi- tão não tem burocracia, não tem regras tendo se recuperado da doença, quan-
dero extraordinários. O modelo dela é o de uso de dinheiro público. O papel da do engravidam ficam mais expostas ao
da tríplice hélice, que é a ação conjunta Embrapii poderá ser muito melhor se quadro grave de pré-eclâmpsia. Tenho
de empresas, governo e universidades/ o governo perceber sua importância, o feito também muita coisa de cientome-
instituições de ciência e tecnologia em que não ocorreu no período recente por tria, como um trabalho publicado recen-
inovação. Aqui no Brasil, nós criamos culpa de um governo que desqualificou a temente na revista Scientometrics, que
o CNPq, a Capes, o BNDES, a Finep, a educação e a ciência. A previsão era ter trata das dificuldades dos países que
FAPESP, antes dos anos 1970, e ninguém três vezes mais dinheiro. Ainda assim, fazem pouca cooperação internacional
ficou encarregado de cultivar a interação operou muito bem e demonstrou que o ou, contrariamente, que vivem exclusi-
universidade-empresa. Para o BNDES e modelo está certo. E deve ser mantido. vamente desse tipo de cooperação. Eles
a Finep, isso seria uma obrigação. Mas Foram mais de 2 mil projetos contratados não atentam para o fato de que um país
optaram por emprestar dinheiro às em- por 1,4 mil empresas. No setor mineral, não se desenvolve se não fizer o mínimo
presas. Empresa não pega dinheiro em- a ArcelorMittal, a Vale, a CBMN, todas de ciência e formação própria de seus
prestado para fazer inovação, que é uma têm mais de 10 projetos cada uma. A Em- recursos humanos. Essas atividades têm
atividade de risco. A tríplice hélice resol- braer tem 18, mesmo com quatro centros me distraído bastante. n

PESQUISA FAPESP 326 | 29


COLABORAÇÕES
MAIS DIÁLOGO
NA PESQUISA MÉDICA
Iniciativas promovem maior envolvimento de pacientes
em estudos clínicos e na busca por tratamentos

Rodrigo de Oliveira Andrade  |  ILUSTRAÇÕES  Jônatas Moreira

A
participação de pessoas com que o sangue seja bombeado adequadamente
doenças graves ou sem trata- pelo coração.
mento específico em pesquisas O estudo investiga as necessidades e expe-
na área médica se restringiu riências de pessoas com a doença atendidas em
por muito tempo à presen- unidades básicas de saúde do bairro do Butantã,
ça em ensaios clínicos ou ao em São Paulo, de modo a refinar seu diagnós-
fornecimento de amostras de tico e tratamento, por meio de adaptação de
material biológico, como san- métodos conhecidos ou novos. “Promovemos
gue e tecidos, para análise. Isso encontros com os pacientes para discutir per-
tem mudado nos últimos anos. guntas de pesquisa a partir de suas experiências
Muitas iniciativas no mundo e estratégias para detecção dos sintomas da fi-
estão tentando promover co- brilação atrial e redução do risco de coágulos e
laborações mais abertas e inclusivas, nas quais acidentes vasculares”, conta Bensenor. “Muitos
os pacientes são reconhecidos como profundos ressaltaram a importância de ensinar a popula-
conhecedores de suas próprias condições e tra- ção a reconhecer a doença pelo monitoramen-
balham com médicos e pesquisadores na busca to do pulso e que as equipes de saúde fizessem
por terapias eficazes. o mesmo para que o problema seja detectado
“Os pacientes também possuem conhecimen- precocemente.”
tos válidos, adquiridos a partir de suas experiên- O esforço tem relação com um modelo conhe-
cias pessoais com a doença, o que lhes permite cido como ciência cidadã, que procura envolver
identificar perguntas a serem feitas e questões indivíduos sem experiência científica na pro-
a serem investigadas e ajudar a projetar solu- dução de conhecimento (ver Pesquisa FAPESP
ções eficazes para seus problemas de saúde”, nº 323). No caso específico da pesquisa médica,
destaca a epidemiologista Isabela Bensenor, da ele é resultado de um longo amadurecimento.
Faculdade de Medicina da Universidade de São Um marco remonta à década de 1980, quando
Paulo (FM-USP), que coordena uma pesquisa em indivíduos com HIV/Aids nos Estados Unidos
colaboração com pessoas com fibrilação atrial, se engajaram em pesquisas sobre a própria en-
um tipo de arritmia em que as fibras cardíacas fermidade, até mesmo experimentando por sua
se contraem de forma desordenada, impedindo conta e risco drogas ainda não aprovadas. Como

PESQUISA FAPESP 326 | 31


a doença na época se disseminava sem controle no controle da dor. Os
e evoluía rapidamente para a morte, as vítimas autores do estudo re-
assumiram um protagonismo na busca por algum fizeram o documento,
tipo de tratamento e exigiram que a urgência de
suas demandas fosse incorporada às estratégias
apresentando um his-
tórico mais equilibrado, COLABORAÇÕES ENTRE
e à agenda formuladas pelos pesquisadores.
Anos antes, ativistas com outros tipos de pro-
descrevendo os prós e
contras do tratamento
PACIENTES E MÉDICOS
blemas de saúde já reivindicavam o direito de com opioides a longo PODEM INSPIRAR
participar da regulamentação de ensaios clíni- prazo e possíveis al-
cos e de determinar o grau de risco que estavam ternativas ao seu uso. NOVAS ABORDAGENS
dispostos a correr ao participar de testes com
drogas experimentais. Isso fez com que passas-
O interesse de insti-
tuições por esse modelo OU MESMO MELHORAR
sem a integrar comitês de ética em pesquisa de
hospitais e universidades, e comitês consultivos
de colaboração se ba-
seia no entendimento
A QUALIDADE DOS
governamentais, auxiliando na tomada de deci- de que as pessoas en- ESTUDOS, DIZ BENSENOR,
são sobre a incorporação de medicamentos, equi- fermas, sobretudo com
pamentos e protocolos nos sistemas de saúde. doenças congênitas ou DA FM-USP
Universidades e agências de fomento têm es- crônicas, podem com-
timulado uma participação mais efetiva de por- preender a realidade
tadores de doenças em estudos clínicos, caso do de suas condições tan-
Centro de Pesquisa Clínica e Translacional da to ou mais do que mé-
Universidade Harvard, nos Estados Unidos, que dicos e pesquisadores, e essa experiência pode
tem um programa de apoio com treinamentos, ajudar a gerar resultados mais rápidos e eficazes.
linhas de financiamento para projetos colabo- “Tais colaborações também podem inspirar no-
rativos e assessoria de especialistas que ajudam vas abordagens ou mesmo melhorar a qualidade
a aproximar cientistas de grupos de pacientes. dos estudos, permitindo que os cientistas apri-
Em 2019, o Instituto Nacional para Pesquisa em morem seus protocolos e identifiquem questões
Saúde (NIHR), do Reino Unido, lançou serviço e problemas a serem resolvidos antes do início
semelhante para empresas farmacêuticas, de das pesquisas”, diz a fisioterapeuta Egmar Lon-
biotecnologia e tecnologia médica. Por sua vez, go, do Departamento de Fisioterapia da Univer-
o Cambridge Patient Led Research Hub, criado sidade Federal da Paraíba (UFPB), que trabalha
em 2015, trabalha para aproximar cientistas e com pesquisadores da Universidade de Utrecht,

O
vítimas de doenças raras. nos Países Baixos, na criação de ferramentas que
estimulem e viabilizem parcerias entre pacien-
envolvimento na produção de tes e cientistas.
conhecimento clínico pode ir Já há casos de estudos que tiveram como pon-
além da pesquisa em si. Há al- to de partida investigações feitas pelos próprios
gum tempo periódicos como a pacientes e depois foram incorporadas por pes-
The BMJ convidam pacientes, quisadores. Em 2002, nos Estados Unidos, um
seus familiares e cuidadores movimento liderado por pacientes chamado
para participar da análise de Clusterbusters usou a internet para recrutar indi-
papers sobre os problemas de víduos que sofrem de cefaleia em salvas, doença
saúde que enfrentam, de mo- neurológica rara e grave sobre a qual havia pouca
do a complementar o escrutí- pesquisa, caracterizada por crises extenuantes
nio feito por especialistas (ver de dores em um lado da cabeça, acompanhadas
Pesquisa FAPESP nº 270). Em de olhos vermelhos, inchados e lacrimejantes.
2016, o Patient-Centered Outcomes Research A ideia era que eles participassem de autoex-
Institute, organização pública norte-americana perimentos e desenvolvessem protocolos para o
que financia estudos voltados às necessidades uso da psilocibina, princípio ativo de cogumelos
dos pacientes, lançou iniciativa semelhante, alucinógenos, como forma de tratamento.
buscando envolvê-los na análise dos relatórios As atividades do grupo atraíram a atenção da
finais de estudos que apoia – até agora, pelo neurologista Emmanuelle Schindler, da Univer-
menos 175 portadores de enfermidades contri- sidade Yale, que passou a colaborar com o movi-
buíram com a avaliação de mais de 280 relatórios mento em um protocolo de tratamento baseado
de pesquisa. Ao comentar um relatório sobre em pequenas doses da psilocibina – atualmente
prescrição de opioides para o tratamento da em testes clínicos. O esforço também abriu ca-
dor, um deles destacou que ele não mencionava minho para que, em 2019, a FDA, organismo que
terapias alternativas que poderiam substituir controla medicamentos e alimentos nos Estados
o uso da substância, em vez de apenas auxiliar Unidos, aprovasse o uso do anticorpo monoclonal

32 | ABRIL DE 2023
Emgality na prevenção de crises desencadeadas efeitos deletérios do vírus no organismo humano
pela doença. A farmacêutica Eli Lilly projetara poderiam ser maiores e mais duradouros do que
o fármaco originalmente para o tratamento de se pensava.” A iniciativa deu origem ao Patient-
enxaquecas, mas propôs uma dose mais alta pa- -Led Research Collaborative.
ra dores causadas pela cefaleia em salvas após A primeira pesquisa do grupo envolveu 3.700
entrevistar membros do Clusterbusters, alguns indivíduos de 56 países e identificou sintomas
dos quais participaram de seu ensaio clínico. inicialmente negligenciados pela comunida-
Outro exemplo recente se deu na pandemia. de médica, mas que hoje são reconhecidos co-
Em 13 de abril de 2020, a jornalista Fiona Lo- mo característicos da síndrome pós-Covid-19, a
wenstein publicou um artigo no jornal The New chamada Covid longa. “O relatório, publicado
York Times relatando sua experiência pessoal na forma de artigo em julho de 2021, foi um dos
com sintomas prolongados da Covid-19. O texto primeiros a tratar desse assunto, em uma época
atraiu milhares de pessoas para o grupo de apoio em que havia pouca discussão sobre essa con-
que ela havia criado no programa de mensagens dição”, diz Soares. “Várias pessoas encontraram
instantâneas Slack para orientar pacientes com o validação ao ver sua experiência refletida em um
mesmo problema, entre elas a brasileira Letícia estudo com outros pacientes.” Algumas usaram
Soares, que à época fazia estágio de pós-douto- o artigo para mostrar aos médicos que seus sin-
rado sobre malária aviária na Universidade de tomas eram frequentes. Desde então, a iniciativa

S
Western, no Canadá. já publicou diversos outros artigos científicos em
revistas especializadas e conseguiu quase US$ 5
oares tivera Covid-19 havia milhões em financiamento para novos projetos,
pouco tempo. Não chegou a ser todos desenhados de acordo com as prioridades
internada, mas ficou bastante de seus membros.
debilitada, sofrendo de fadiga A iniciativa se transformou em uma rede glo-
e dores musculares e nas arti- bal, na qual cientistas e pacientes com síndrome
culações. Passada a fase aguda pós-Covid-19 podem se conectar para fazer no-
da doença, essas manifestações vos estudos. Um deles, realizado no Brasil por
persistiram e outras novas sur- cientistas da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz),
giram, como perda de memória no Rio de Janeiro, da Escola de Saúde Pública da
e problemas de concentração. Universidade Harvard, nos Estados Unidos, e da
“Percebemos no nosso grupo de Escola de Economia e Ciência Política de Lon-
apoio que muitas outras pessoas dres (LSE), no Reino Unido, busca compreender
que haviam superado a fase aguda continuavam experiências e necessidades de saúde de pessoas
com os sintomas ou desenvolviam outros novos com Covid longa. “As que integram nossa equipe
que perduravam”, ela conta. “Alguns pacien- estão envolvidas desde o início do projeto, con-
tes do grupo criado por Lowenstein decidiram tribuindo para a definição de seus objetivos e
registrar esses casos, pois estava claro que os protocolos de coleta de dados”, disse a Pesquisa

PESQUISA FAPESP 326 | 33


FAPESP Emma-Louise Aveling, pesquisadora de doenças raras e neurológicas a terem acesso ao
Harvard, uma das coordenadoras da pesquisa. óleo de cannabis.
Casos como esses indicam que comunidades A Apepi atende hoje mais de 5 mil pessoas. Ela
de pacientes estruturadas em torno de dados financia estudos e colabora com pesquisadores
obtidos a partir de autoexperimentações ou de de mais de 10 instituições, entre elas a Fiocruz, o
sua experiência com a doença podem resultar Instituto de Pesquisa do Jardim Botânico do Rio
em pesquisas inovadoras. Em 2011, um estudo de Janeiro e a Universidade Estadual de Cam-
observacional iniciado por pessoas com esclerose pinas (Unicamp), em São Paulo, em trabalhos
lateral amiotrófica que usavam o PatientsLike- relacionados ao uso medicinal da cannabis. “Um
Me, plataforma em que os usuários comparti- dos que fizemos com a Unicamp indicou que os
lham dados sobre suas enfermidades, sintomas canabinoides podem ser eficazes no tratamento
e possíveis estratégias de tratamentos, ajudou a de doenças neurológicas. Outros apresentaram
refutar um trabalho de 2008 que afirmava que bons resultados envolvendo o uso de canabinoi-
o carbonato de lítio poderia retardar a progres- des contra náuseas causadas pela quimiotera-
são da doença. pia, fibromialgia e distúrbios do sono, além de
O avanço dessa categoria de pesquisa, porém, aumentar o apetite e diminuir a perda de peso
esbarra em alguns limites éticos. Muitos críticos em pacientes com HIV”, destaca o farmacêutico
argumentam que ela não segue o padrão mais João Gabriel da Silva, responsável pela área de
rigoroso de investigação clínica, destinado a pesquisa da Apepi.
garantir a segurança dos voluntários e a reduzir Apesar dos benefícios, esse modelo de cola-
interferências nos resultados: os ensaios clínicos boração enfrenta algumas dificuldades para se
duplo-cego, randomizados e controlados com consolidar. Nem sempre é fácil e viável incluir
placebo. Como consequência, além de não prover os pacientes nas pesquisas, sobretudo porque al-
evidências científicas robustas, poderia expor os guns temas exigem conhecimento e treinamento

M
participantes a riscos inesperados. específicos. “Muitos simplesmente não querem
participar”, comenta Egmar Longo, da UFPB.
uitas vezes são os familiares Ao mesmo tempo, a participação de pacien-
dos pacientes que mergu- tes em estudos clínicos enfrenta resistência de
lham na literatura cientí- parte da comunidade médica e acadêmica. O
fica e adquirem uma com- argumento é o de que eles não possuem forma-
preensão mais avançada ção científica ou treinamento em pesquisa para
da doença. Um dos casos empreender estudos complexos. Um dos fatores
mais conhecidos no Brasil que comprometem a utilidade dos comentários
é o da advogada Margarete de pacientes que avaliam o conteúdo de papers,
Santos de Brito e de seu por exemplo, é a qualidade da própria revisão.
marido, o designer Marcos Poucos voluntários são capazes de entender e
Lins Langenbach. Ainda comentar aspectos científicos e técnicos de ma-
pequena, a filha do casal, nuscritos ou propostas de pesquisa. Para Ave-
Sofia, foi diagnosticada com síndrome de Rett, ling, da Universidade Harvard, tais objeções
doença neurológica rara que causa convulsões refletem questões mais profundas, “associadas
frequentes. Em 2013, após várias tentativas a um ceticismo sobre o valor da experiência dos
frustradas de tratamento e cirurgias, o casal pacientes".
descobriu um caso nos Estados Unidos de uma Mas ela reconhece que a dinâmica pode não
criança com a mesma doença que se tratava com ser fácil. “Reunir pessoas com diferentes expe-
extrato de cannabis. riências, perspectivas, formas de pensar e prio-
Decidiram tentar a mesma terapia e impor- ridades em determinados contextos de pesquisa
taram o produto, ilegalmente. Deu certo. A fre- pode criar desafios colaborativos”, alerta. “No
quência das convulsões de Sofia diminuiu 60%. entanto”, completa, “a ideia não é substituir o
A família informou o neurologista que acompa- conhecimento médico ou científico, mas criar
nhava a garota sobre o novo recurso e ele também uma cultura de colaboração que também aceite
constatou a melhora de sua qualidade de vida, visões e observações de pacientes e seus fami-
além de não identificar efeitos colaterais. Mar- liares”. Para que isso funcione, segundo Aveling,
garete e Marcos passaram a cultivar a planta em é preciso que médicos e cientistas estejam aber-
casa e aprenderam a extrair o óleo de cannabis tos ao diálogo e dispostos a compartilhar infor-
por conta própria. Articularam-se com outras fa- mações e renegociar a distribuição de poder na
mílias para tentar conseguir o produto de forma tomada de decisão nas pesquisas. n
lícita. O esforço deu origem à organização Apoio
à Pesquisa e Pacientes de Cannabis Medicinal Os artigos científicos consultados para esta reportagem estão listados
(Apepi), que ajuda pacientes brasileiros com na versão on-line.

34 | ABRIL DE 2023
CIENTOMETRIA

GÊNERO
EM NÚMEROS
Análise de mais de 30 mil artigos
sobre mulheres e gênero
publicados ao longo de seis décadas
evidencia a evolução desse
campo do conhecimento no Brasil

Fabrício Marques 
ILUSTRAÇÃO  Suzana Lefèvre

U
m artigo publicado em novem-
bro na revista científica Scien-
tometrics trouxe dados inéditos
sobre a evolução de um campo
de pesquisa interdisciplinar que
tem produção crescente no Bra-
sil: os estudos sobre a condição
feminina e as desigualdades de
gênero. O paper, fruto do douto-
rado da bibliotecária Natascha
Hoppen e também assinado por
sua orientadora, Samile Vanz,
do Departamento de Ciências da Informação
da Universidade Federal do Rio Grande do Sul
(UFRGS), analisou 31.609 artigos de autores bra-
sileiros publicados entre 1959 e 2019, coletados
da literatura acadêmica a partir de um conjunto
de palavras-chave frequentes nesses trabalhos.

PESQUISA FAPESP 326 | 35


O resultado revela uma trajetória vigorosa. Se Hoppen, referindo-se a recursos oferecidos, por
nas décadas de 1960 e 1970 o número de papers exemplo, pela Fundação Ford para pesquisas sobre

A
publicados sobre mulheres e gênero não passava de saúde reprodutiva e gênero.
uma dezena por ano, em 2018 atingiu um total de
3.864 artigos. A análise permitiu observar que tais ebulição de novos temas é perce-
estudos ganharam fôlego inicialmente nas ciências bida nos periódicos dedicados a
da saúde, mas, no início da década de 1990, torna- estudos de gênero. “Temos rece-
ram-se alvo de interesse das ciências humanas e bido artigos de autores vincula-
sociais e alcançaram um caráter multidisciplinar dos a disciplinas que raramente
com o surgimento de dois periódicos acadêmicos, apareciam, como economia e
a Revista Estudos Feministas, vinculada ao Insti- direito, e de áreas novas, como
tuto de Estudos de Gênero da Universidade Fede- design e computação”, afirma
ral de Santa Catarina (UFSC), e os Cadernos Pagu, a historiadora Cristina Wolff,
periódico ligado ao Núcleo de Estudos de Gênero docente da UFSC e editora da
da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Revista Estudos Feministas. “Há
As instituições brasileiras com performance assuntos que sempre estiveram
mais expressiva, de acordo com o levantamento, na agenda dos pesquisadores, como a violência
são a Universidade de São Paulo (USP), a UFSC, contra a mulher, a história do movimento feminista
a UFRGS, a Unicamp e a Federal de Minas Gerais ou as relações de gênero na literatura e no cinema”,
(UFMG). No setor privado, o destaque é a Ponti- afirma. Outros temas já foram mais populares, como
fícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul a desigualdade no mercado de trabalho. “Eles vêm
(PUC-RS). Fora do ensino superior, a Fundação Os- sendo substituídos por investigações sobre o papel
waldo Cruz (Fiocruz) se distingue em quantidade de homens e mulheres na chamada economia do
de artigos. Embora bastante disseminada pelo país, cuidado”, diz, a propósito da ampliação da demanda
essa produção tem lacunas no território nacional: na sociedade por cuidadores em decorrência do
não se registrou nenhuma contribuição de auto- aumento da longevidade da população – e o ônus
res dos estados do Amapá, Rondônia e Roraima. que recai sobre as mulheres nesse contexto.
São Paulo é a unidade da federação com produção Nos trabalhos sobre sexualidade, ela aponta a
mais antiga e consistente, e a que mais colabora emergência de estudos lésbicos. “Também vêm
com outros estados. O Rio Grande do Sul aparece surgindo pesquisas sobre pessoas trans, mas ain-
na segunda posição no ranking dos estados mais da são poucos os trabalhos sobre a não binaridade,
prolíficos – e é o que exibiu maior crescimento na que, acredito, devem crescer nos próximos anos.”
década passada. A questão do acesso ao aborto é um tema recor-
No cômputo geral, as ciências humanas e as rente, o que seria um reflexo da dificuldade de o
ciências da saúde dividem a liderança no volume debate sobre o assunto evoluir na sociedade bra-
de papers identificado no estudo, respectivamente sileira. “Se em países como a Argentina a geração
com 43,97% e 43,44% do total. Mas há trabalhos do conhecimento conseguiu ajudar a orientar as
até mesmo em áreas como as engenharias (0,1% do políticas públicas, com a recente descriminaliza-

INFOGRÁFICO  ALEXANDRE AFFONSO / REVISTA PESQUISA FAPESP


total), ciências agrárias (0,09%) e ciências exatas ção do aborto, no Brasil ergueu-se um muro que
e da Terra (0,05%). O surgimento no país desse bloqueia a discussão e tem impacto também na
campo multidisciplinar esteve atrelado à emergên- produção acadêmica.”
cia, nas décadas de 1960 e 1970, dos movimentos Dagmar Estermann Meyer, professora aposen-
de direitos civis que combatem as desigualdades tada da Faculdade de Educação da UFRGS e uma
de gênero. Apesar de sua origem no feminismo das fundadoras do Grupo de Estudos de Educação
acadêmico, a área se desdobrou em uma multipli- e Relações de Gênero da instituição, afirma que al-
cidade de temas, do direito ao aborto à violência guns temas demandaram mudanças de enfoque e
contra a mulher, das desigualdades no mercado deslocamentos na área. “Felizmente, os índices de
de trabalho a estudos sobre sexualidade, da ama- escolaridade de mulheres, por exemplo, se modi-
mentação à psicologia familiar. “Muitos desses ficaram para melhor nesse período. As mulheres,
assuntos foram trazidos para a academia pelos genericamente falando, avançaram bastante em
movimentos feministas. Mas uma das alavancas
para o crescimento do campo de conhecimento foi
o financiamento obtido na década de 1990, que se
destinava a temas específicos”, explica Natascha

1 1 3 12 34
1990
1959 1961 1971 1980
termos de escolaridade e já são maioria em várias
áreas de atuação. Mas é importante lembrar que
3.800
2017
para alguns grupos os processos de escolarização
ainda são bastante problemáticos, como é o caso
das juventudes negras e periféricas e de pessoas
trans e travestis”, observa.
Hoppen reconhece que seu estudo tem uma li-
mitação importante. Ocorre que parte significativa 3.684
da produção nas ciências humanas não é difun- 2018
dida em artigos científicos, mas, sim, em livros,
capítulos de livros, teses e dissertações – que não
foram captadas no estudo. “Não encontrei, por
exemplo, importantes trabalhos de Lelia Gonza-
lez [1935-1994]. Depois verifiquei que ela publicou
principalmente em livros e em revistas que infe-
lizmente não migraram para o formato digital de
forma que pudessem ser captadas na pesquisa”, 2.851
diz, referindo-se à antropóloga e pesquisadora da 2015

PUC-RJ que foi pioneira em estudos de desigual-


dade de gênero ligada à raça – ela era filha de um
ferroviário negro e de uma empregada doméstica
indígena. Um dos artigos de Gonzalez, “Por um
feminismo afrolatinoamericano”, foi publicado
originalmente na revista ISIS Internacional, em
outubro de 1988, que está indisponível em formato
digital – só é possível ter acesso a ele porque foi
transformado em capítulo de livro.
“Da mesma forma, outras feministas históricas
no campo estão pouco visíveis nesse estudo. Isso
porque nas primeiras duas décadas que o estudo
abrange, a produção estava mais concentrada em
livros e era pouco expressiva em periódicos. Os
tempos acadêmicos eram outros e a métrica que
hoje avalia a produtividade científica mudou muito
nesse período”, comenta Dagmar Meyer. Apesar
desse problema, ela destaca a amplitude do pa-
norama traçado por Hoppen. “Não conheço outro
1.094
2010
trabalho no campo da bibliometria ou mesmo um
artigo de revisão que abrangesse um período tão
extenso ou tenha se debruçado sobre estudos de
gênero em todas as grandes áreas do conhecimen-
to”, diz Meyer, que foi uma das examinadoras da
banca de doutorado de Hoppen, em 2021.
O trabalho rastreou a produção científica por
meio de uma ferramenta que não está mais dis-
ponível. Trata-se do banco de dados 1Findr, de- A EVOLUÇÃO DOS
635 ESTUDOS DE GÊNERO
2005
Quantidade de artigos
de autores brasileiros
sobre mulheres e gênero
243 publicados por ano
2000

PESQUISA FAPESP 326 | 37


senvolvido para indexar artigos de revistas revi-
AS UNIVERSIDADES MAIS PRODUTIVAS sadas por pares de todos os países e idiomas, que
foi adquirido pela editora Elsevier em 2020 e não
As 10 instituições que mais publicaram estudos de está mais acessível para o público. “Essa platafor-
gênero – por número de artigos (1959-2019) ma recuperava publicações de múltiplas fontes,
como a biblioteca SciELO e diretórios de revistas
USP
3.713
de acesso aberto do mundo todo, e foi fundamen-
tal para rastrear a produção brasileira publicada
UFSC
no passado e escrita em português, que não está
1.824
presente na maioria das bases internacionais”,
UFRGS explica Hoppen. A pesquisadora disponibilizou
1.805
os dados brutos de sua pesquisa em acesso aber-
Unicamp to para quem se interessar em estudar a produção
1.691 brasileira sobre gênero. “Infelizmente, não há co-
UFMG mo atualizá-los. Seria muito interessante compa-
1.488 rar os dados coletados com os relativos a estudos
UFRJ de gênero nos últimos quatro anos e ver de que
1.446 forma as pesquisadoras se mobilizaram durante
Uerj o último governo, que tinha uma agenda hostil a
1.276 esse campo do conhecimento”, diz.
Unesp
É possível que artigos muito antigos não tenham
1.181 sido captados pela ferramenta. Os dois primeiros
trabalhos associados a estudos de gênero só pude-
UFBA
1.015
ram ser rastreados porque suas versões impressas
foram digitalizadas em formato OCR, que permi-
UnB te fazer buscas em seu conteúdo na web. São um
1.014
paper do psicanalista Darcy de Mendonça Uchoa
FONTE  RETRATOS DA PESQUISA BRASILEIRA EM ESTUDOS
DE GÊNERO / NATASCHA HOPPEN (2021)
(1907-2003), da Escola Paulista de Medicina, pu-
blicado em 1959 na Revista de Neuro-Psiquiatria,
que foi recuperado por ter a palavra “homossexual”
no resumo, e um artigo de 1961 do antropólogo e
professor da USP Ruy Coelho (1920-1990), que
OS PRINCIPAIS PERIÓDICOS continha a expressão “estudos de gênero” entre
as palavras-chave. “Podem existir outras publi-
As 10 revistas que mais publicaram estudos de cações impressas além dessas, mas que não são
gênero – por número de artigos (1959-2019) visíveis pelos instrumentos de busca existentes
Revista Estudos Feministas (UFSC) hoje”, explica Hoppen.
1.246 Os trabalhos de Uchoa e Coelho são exemplos
Cadernos Pagu (Unicamp) desgarrados do que se tornaria esse campo dos
899 estudos no Brasil. O primeiro utiliza o concei-
Cadernos de Saúde Pública (Fiocruz) to de gênero ligado à identidade sexual para dar
490 uma conotação patológica ao que considera um
“comportamento desviante”. “Essa abordagem
Revista de Enfermagem (UFPE)
409
hoje é considerada totalmente ultrapassada”, diz
a pesquisadora. Já o segundo artigo é um estudo
Rev. Bras. de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasco)
antropológico, em que o gênero é usado para di-
393
ferenciar comportamentos sociais de dois xamãs,
Em Tese (UFMG) sem se aprofundar no tema.
362
A despeito dessas publicações pioneiras, o marco
Ciência & Saúde Coletiva (Abrasco) inaugural da produção científica é a tese de livre-
305 -docência da socióloga marxista Heleieth Safiotti
Revista de Saúde Pública (USP) (1934-2010), defendida em 1967 na Faculdade de
304 Filosofia, Ciências e Letras de Araraquara, hoje
Rev. Bras. de Enfermagem (ABEn) pertencente à Universidade Estadual Paulista
267 (Unesp). Intitulada “A mulher na sociedade de
Gênero (UFF) classe: mito e realidade”, foi orientada pelo soció-
243 logo Florestan Fernandes (1920-1995). A obra foi
FONTE  RETRATOS DA PESQUISA BRASILEIRA EM ESTUDOS
publicada em livro em 1976 e aparece nas referên-
DE GÊNERO / NATASCHA HOPPEN (2021) cias bibliográficas de uma grande quantidade de

38 | ABRIL DE 2023
artigos coletados. Safiotti, militante feminista, teve 43,97% 43,44%
uma contribuição marcante em temas como violên- Ciências Ciências
cia de gênero e mulheres no mercado de trabalho. humanas da saúde
O artigo da Scientometrics fez outros achados
curiosos. Um deles foi a baixa disposição das pes-
quisadoras de estudos de gênero de participarem
de colaborações. Um terço das publicações na dé-
cada de 2010 tinha um único autor, reproduzindo OS CAMPOS
o padrão de algumas disciplinas das ciências hu-
manas. A formação de parcerias é marcada pela
DO CONHECIMENTO
As áreas a que
proximidade geográfica. Dos artigos dos anos 2010, 6,01%

N
pertencem os artigos
77% são de coautores de uma mesma instituição. Ciências sociais
sobre estudos de aplicadas
gênero (1959-2019)
a lista dos autores mais prolíficos
3,23%
– aqueles que publicaram mais de
Linguística,
20 artigos sobre tópicos ligados a
letras e artes
desigualdades de gênero e saúde
da mulher –, os cinco primeiros 2,98%
nomes são de... homens. O cam- 0,09% 0,12% Multidisciplinar
peão é o psicólogo Cesar Augusto Ciências agrárias Ciências
Piccinini, pesquisador da UFRGS 0,05% biológicas
com 108 trabalhos em temas como Ciências exatas 0,10%
psicologia infantil e parental. Os e da Terra Engenharias
dois seguintes vêm da Faculdade
de Ciências Médicas da Unicamp:
os obstetras José Guilherme Cecatti (97 artigos)
e Aníbal Faúndes (74), ambos especialistas em
saúde reprodutiva, com pesquisas sobre gravidez, dos genuínos de gênero. “É comum ver trabalhos
mortalidade materna e aborto. Depois aparecem o sobre amamentação feitos por pesquisadores do
epidemiologista Cesar Victora (69 artigos), da Uni- sexo masculino não situarem os desafios impostos
versidade Federal de Pelotas, estudioso da nutrição à vida pessoal e profissional das mães, que consti-
infantil e da amamentação, e o obstetra Marcelo tuem uma preocupação fundamental de estudos
Zugaib, da USP (56), com trabalhos sobre gravidez feministas”, diz a pesquisadora.
e saúde materna. A primeira mulher desponta na Esse tipo de divergência não é incomum nas pes-
sexta posição: é a geógrafa Joseli Maria Silva, da quisas de gênero. “Eles são marcados por uma es-
Universidade Estadual de Ponta Grossa, autora treita e necessária articulação entre produção do
de estudos decoloniais sobre gênero, seguida pe- conhecimento e ativismo e se situam em um campo
la médica Lilia Schraiber, da USP, com produção de disputas. No início dos anos 2000, por exemplo,
sobre violência contra a mulher, respectivamente se discutiu bastante se estudos sobre masculinidades
com 55 e 54 artigos. “Uma grande marca do sexis- deveriam ser considerados parte do escopo temáti-
mo na ciência é que a saúde da mulher virou um co do campo. Por outro lado, a meu ver, a produção
campo de estudos considerados científicos quando de autoras pesquisadoras negras, e sobretudo trans,
passou a ser pesquisado por homens. A cultura e a continua, ainda hoje, a estar sub-representada na
sabedoria femininas sobre sua própria saúde eram área. Por isso, e como o guarda-chuva temático é
desconsideradas”, afirma Hoppen. Segundo ela, as amplo, sempre pode e deve ser contestado, alargado
desigualdades de gênero ficam evidentes na ciento- e atualizado”, afirma Dagmar Meyer.
metria, campo que analisa aspectos quantitativos da Outra dificuldade está atrelada ao caráter inter-
INFOGRÁFICOS  ALEXANDRE AFFONSO / REVISTA PESQUISA FAPESP

ciência. “Na maior parte das áreas do conhecimento, disciplinar do campo. “Embora a diversidade ajude
os homens conseguem publicar mais do que as mu- a fortalecer a área, os pesquisadores pertencem a
lheres e parecem encontrar mais facilidades para disciplinas tradicionais e são avaliados segundo as
disseminar seus resultados de pesquisa e fazer mais métricas dessas disciplinas, o que não os favorece”,
colaborações. Isso também aparece nesse ranking diz Cristina Wolff, que é vinculada ao Departa-
dos pesquisadores que mais publicaram – o que mento de História da UFSC e atua no Instituto de
corrobora com a necessidade de ações afirmativas Estudos de Gênero da instituição. “Nossos cursos
para as mulheres nas ciências”, afirma. de pós-graduação são requisitados por estudantes
O trabalho não se debruçou sobre o conteúdo de diversas áreas, mas precisamos sempre brigar
dos artigos, mas apenas sobre palavras-chave. É para manter o nosso espaço. Quando uma de nós
possível que uma verificação mais aprofundada se aposenta, não há garantia de que o substituto
não caracterizasse alguns dos artigos como estu- vá se dedicar a pesquisas de gênero”, afirma. n

PESQUISA FAPESP 326 | 39


BOAS PRÁTICAS

Imagem produzida
pelo software de
inteligência artificial
DALL-E com
o comando “plágio
escondido, estilo
cinema mudo”

O plágio encoberto P
esquisadores da Universidade do Estado da
Pensilvânia (Penn State), nos Estados Unidos,
investigaram até que ponto modelos de lingua-

em textos gem natural como o ChatGPT, que usam inteligência


artificial para formular uma prosa realista e articula-

do ChatGPT
da em resposta a perguntas de usuários, conseguem
gerar conteúdo que não se caracterize como plágio.
Isso porque esses sistemas processam, memorizam
Estudos mostram como modelos e reproduzem informações preexistentes, baseadas
de linguagem natural podem ser fonte em gigantescos volumes de dados disponíveis na in-
ternet, tais como livros, artigos científicos, páginas
de má conduta acadêmica e indicam da Wikipédia e notícias.
formas de prevenir o problema O grupo analisou 210 mil textos gerados pelo pro-
IMAGEM DALL-E

grama GPT-2, da startup OpenAI, criadora do Chat-


GPT, em busca de indícios de três diferentes tipos de
plágio: a transcrição literal, obtida copiando e colando

40 | ABRIL DE 2023
trechos; a paráfrase, que troca palavras por sinônimos gência artificial. A própria OpenAI desenvolveu um
a fim de obter resultados ligeiramente diferentes; e programa capaz de apontar textos feitos por robôs,
o uso de uma ideia elaborada por outra pessoa sem (disponível em openai-openai-detector.hf.space/).
mencionar sua autoria, mesmo que formulada de Há outros do gênero na internet, como o Writer AI
maneira diferente. Content Detector (writer.com/ai-content-detector/)
A conclusão do estudo foi de que todos os três tipos e o Content at Scale (contentatscale.ai/ai-content-
de plágio estão presentes. E, quanto maior é o conjunto -detector/). Como os sistemas de linguagem natural
de parâmetros usados para treinar os modelos, mais estão em desenvolvimento, também será necessário
frequentemente a má conduta foi registrada. A análise atualizar continuamente a tecnologia para rastrear
utilizou dois tipos de modelos – os pré-treinados, ba- sua produção.
seados em um amplo espectro de dados, e os de ajuste Uma equipe da Escola de Engenharias e Ciências
fino, aprimorados pela equipe da Penn State a fim de Aplicadas da mesma Penn State mostrou que é possível
refinar o treinamento em um conjunto menor de do- treinar as pessoas para identificar esses textos, sem
cumentos científicos e jurídicos, artigos acadêmicos precisar depender exclusivamente de programas de-
relacionados à Covid-19 e solicitações de patentes. A tectores. Apresentado em fevereiro em um congresso
escolha desse tipo de conteúdo não foi ocasional – da Associação para o Avanço da Inteligência Artificial
nesses textos, a prática de plágio é considerada muito (AAAI) realizado em Washington, Estados Unidos, o
problemática e não costuma ser tolerada. estudo liderado pelo cientista da computação Chris
No material gerado pelos pré-treinados, a ocor- Callison-Burch mostrou que essas ferramentas já são
rência mais prevalente foi de transcrições literais, muito eficientes em produzir prosa fluente e seguir
enquanto nos de ajuste fino eram mais comuns pará- as regras gramaticais. “Mas eles cometem tipos dis-
frases e apropriação de ideias sem referência à fonte. tintos de erros que podemos aprender a identificar”,
“Constatamos que o plágio aparece com diferentes disse ao blog Penn Engineering Today o cientista da
sabores”, disse um dos autores do trabalho, Dongwon computação Liam Dugan, aluno de doutorado da Penn
Lee, cientista da computação da Faculdade de Tecno- State e um dos autores do artigo.
logia e Ciências da Informação da Penn State, de acor- O experimento utilizou um jogo disponível na in-
do com o serviço de notícias Eurekalert. Os achados ternet, chamado Real or Fake Text (Texto Real ou Fal-
serão divulgados com mais detalhes na Web Science so). O grupo apresentou aos participantes do estudo,
Conference, um evento da Association for Computing todos eles alunos de graduação ou pós-graduação de
Machinery (ACM) que acontece entre 30 de abril e um curso de inteligência artificial da Penn State, sen-
4 de maio na cidade de Austin, nos Estados Unidos. tenças cujo início foi escrito por seres humanos, mas
que, a partir de certo ponto, reproduziam respostas

O
ChatGPT é um entre vários sistemas basea- formuladas por modelos de linguagem. Os textos se-
dos em inteligência artificial e ganhou grande lecionados provinham de notícias publicadas na im-
notoriedade porque foi disponibilizado para prensa, discursos presidenciais, histórias de ficção e
uso público. Desde novembro, já foi testado por mais receitas culinárias. Os jogadores eram convidados a
de 100 milhões de pessoas e impressionou por sua apontar em que momento começava o trecho escrito
capacidade de gerar textos coerentes que mimetizam por inteligência artificial e explicar por que apostavam
a escrita dos seres humanos (ver Pesquisa FAPESP naquela localização. Quando acertavam, eles recebiam
n° 325). Uma das polêmicas que levantou envolveu pontos. As principais razões destacadas eram o sur-
justamente a originalidade de suas respostas e o re- gimento de conteúdo irrelevante, de erros lógicos, de
ceio de que se transforme em uma fonte de má con- sentenças contraditórias, de frases muito genéricas e
duta acadêmica. de problemas com a gramática. Foi mais fácil acertar
“As pessoas perseguem grandes modelos de lin- nas receitas culinárias do que nas outras narrativas.
guagem porque, quanto maior um modelo fica, mais A pontuação dos participantes foi significativa-
suas habilidades aumentam”, disse o autor principal mente maior do que se as respostas fossem feitas ao
do trabalho, Jooyoung Lee, estudante de doutorado acaso, mostrando que os textos gerados por robôs
na Faculdade de Ciências e Tecnologia da Informação são detectáveis. Embora as habilidades dos jogadores
da Penn State. Ferramentas de escrita de inteligência variassem bastante, o desempenho deles melhorava
artificial conseguem criar respostas únicas e indivi- com o uso do jogo – em um sinal de aprendizado.
dualizadas a perguntas apresentadas por usuários, “Cinco anos atrás, os modelos não conseguiam se
mesmo extraindo as informações de um banco de da- concentrar no assunto ou produzir uma frase fluen-
dos. Essa habilidade, contudo, não livra a ferramenta te”, afirmou Dugan. “Agora, eles raramente come-
de ser uma fonte de plágio, mesmo em formatos mais tem erros gramaticais. Nosso estudo identifica tipos
difíceis de detectar. “Ensinamos os modelos a imitar de erros cometidos por chatbots, mas é importan-
a escrita humana, mas não os ensinamos a não pla- te ter em mente que eles continuarão a evoluir. As
giar”, afirmou Lee. pessoas deverão seguir treinando para reconhecer
Várias ferramentas estão sendo desenvolvidas pa- a diferença e trabalhar com o software de detecção
ra detectar conteúdo gerado por softwares de inteli- como um complemento.” n Fabrício Marques

PESQUISA FAPESP 326 | 41


Como prevenir disputas pela autoria de artigos científicos

O
cardiologista Mike Lauer, vice- pela concepção do trabalho, a produção nir e negociar com antecedência as regras
-diretor da principal agência de dos dados e a elaboração do texto, mas sobre assuntos relacionados à autoria. “Os
fomento à pesquisa biomédica as demais posições da lista frequente- comitês também podem abordar questões
dos Estados Unidos – os Institutos Na- mente provocam competições e busca que surgem quando as circunstâncias de
cionais de Saúde (NIH) –, divulgou no de reconhecimento. Também ocorre de um projeto em andamento mudam. Por
site da instituição um roteiro de reco- pesquisadores que figuram como auto- exemplo, quando um dos membros do
mendações para prevenir um tipo de res pedirem para remover seus nomes projeto desiste de participar”, afirma. Ou-
conflito muito frequente em laborató- após a publicação do paper, mesmo tendo tra sugestão é colocar no papel quais são
rios e universidades: as disputas sobre participado ativamente do estudo. Isso as políticas e procedimentos para definir
a definição dos nomes dos autores de acontece por não concordarem com as quem serão os autores. “Essas políticas
um artigo científico. Essas desavenças conclusões ou não terem sido consul- podem ser revisadas ao longo do tempo, à
envolvem diferentes problemas. É mui- tados sobre seu conteúdo. “Às vezes, as medida que o pessoal e as circunstâncias
to comum, observou Lauer, que jovens discordâncias não podem ser evitadas”, mudem”, afirmou. Uma terceira frente
pesquisadores se queixem de ter sido escreveu o vice-diretor. “Elas devem ser é garantir que todos os pesquisadores
preteridos da lista de assinaturas por tratadas de forma cuidadosa e apropria- envolvidos confirmem estar de acordo
considerarem que sua contribuição foi da. Quando não o são, podem levar a sé- com o que está sendo publicado – e com
importante e mereceria ser destacada – rias consequências para as pessoas e para a lista dos autores. “Um manuscrito só
ou reclamem da inclusão de pessoas que as pesquisas envolvidas.” deve ser submetido se todos concorda-
colaboraram pouco. Entre as recomendações, Lauer propõe rem. As instituições podem estabelecer
A ordem das assinaturas é outro fo- que todo laboratório, departamento ou políticas e procedimentos para garantir
co de insatisfação. O primeiro nome e grupo de pesquisa tenha seu próprio co- que todos os pesquisadores entendam e
o último, em geral, são os responsáveis mitê de publicação, encarregado de defi- cumpram esse requisito.”

Revista nega pedido de retratação e diz que


artigo de ecóloga é válido

A
revista científica Proceedings of the Royal Society B: Biological Scien-
ces anunciou que não irá retratar um artigo publicado em 2016 sobre
o comportamento de peixes-palhaço (anemonefish), apesar de uma
investigação independente feita pela Universidade de Delaware (UD) ter apon-
tado discrepâncias em dados do trabalho e indícios de que eles foram fabrica-
dos – e sugerido que fosse invalidado. Em uma nota editorial, os responsáveis
pelo periódico informaram terem feito sua própria investigação sobre o caso
e não encontraram comprovação de fraude. Isso porque a discrepância dos
dados havia sido objeto de uma correção apresentada pelos autores em 2022.
O artigo é um dos 22 trabalhos problemáticos que envolvem estudos da
ecóloga marinha Danielle Dixson, da UD, alguns dos quais não puderam ser
reproduzidos em novos experimentos feitos por um grupo internacional de
pesquisadores. Em agosto passado, um paper do grupo da ecóloga foi retrata-
do pela revista Science (ver Pesquisa FAPESP nº 319). Foi uma resposta à in-
vestigação independente da universidade, para a qual Dixson não teve tempo
suficiente para realizar os experimentos descritos no artigo e o arquivo com
dados brutos do estudo continha duplicações inexplicáveis.
No paper da Proceedings B, as suspeitas eram parecidas. O trabalho sustenta
que os peixes-palhaço são capazes de perceber se recifes de corais estão bran-
queados ou saudáveis, com base em experimentos nos quais os animais são
colocados em um aparelho chamado canal de escolha que os força a decidir
em que direção nadar. Ela informou que os dados foram coletados em 13 dias,
ILUSTRAÇÃO RODRIGO CUNHA

mas precisaria de 22 para concluir a tarefa. A correção que Dixson submeteu


à revista tornou a informação plausível: ela informou ter usado duas calhas
simultaneamente, dobrando sua capacidade de observação. “Alguns proble-
mas com os dados são provavelmente o resultado de erros ou má curadoria
de dados, e sua correção não mudaria as conclusões”, informaram os editores.

42 | ABRIL DE 2023
DADOS Tendências recentes na formação
em engenharia

INGRESSOS, MATRÍCULAS E CONCLUSÕES: APÓS CRESCIMENTO, NÚMEROS DIMINUEM


Em 2014, ingressaram nos cursos de engenharia1 do país 378 mil Nas instituições privadas3, a queda foi arrefecida pelo maior ingresso
novos estudantes, o maior valor anual já registrado. Nos anos em cursos a distância. Nelas, a participação da modalidade Educação
subsequentes, esse número recuou continuamente, até chegar a Distância (EaD) aumentou continuamente e atingiu seu máximo em
ao nível de 250 mil ingressos em 2019, que se mantém até agora 2021, quando 108 mil dos 249 mil ingressantes (44%) optaram
por essa modalidade

A queda entre 2014 e 2019 se deu integralmente no setor As matrículas seguem o mesmo padrão, com alguma defasagem, pois
privado (passou de 305 mil para 173 mil ingressos). No setor agregam vários anos de ingressantes. A migração para EaD no setor
público2 ocorreu pequeno aumento (de 73 mil para 76 mil) privado também é evidente: as matrículas em programas presenciais
diminuíram de 724 mil para 317 mil (-56%), entre 2015 e 2021,
enquanto em EaD se elevaram de 25 mil para 146 mil

Engenharias: ingressos (milhares) Engenharias: matrículas (milhares) Engenharias: conclusões (milhares)

Privada EaD Privada presencial Pública EaD Pública presencial

Total 378
1.031 1.030 129 127
13 349 1.013 970
328 959 25 32 39 2,4 3,3 118
21 16 53 114
302 7,7 310 887 5,7
293 834 1,2 105
6,4 280 69 811 100
27 11 787 7,7
30 721 104 0,9
231 39 249 251 249 9
608 724 702 146 81
4,9 292 45 661 593 0,8 92 91
74 6 673
254 108 501 67 82 84
231 252 211 569 60 0,2
70
181 401 317 71
149 480 54 0,1
168 128 394 45 56
101 10 19 13 16 16 43
73 0,5 1,0 38
19 0,4 0,3 34 0,0 0,2
0,3 0,4 9,2 0,8 5,3 2,6 0,4 27 0,0 0,0 0,2 0,2
0,1 0,1 0,0 0,4 0,0
0,2 0,0 0,0 0,0
304 303 290 307 0,0
74 71 73 75 70 270 282 295 302 28 32
35 33
28 28
58 64 68 73 73 66 208 231 254 18 21 22 24 25

2011 2012 2013 2014 2015 2016 2017 2018 2019 2020 2021 2011 2012 2013 2014 2015 2016 2017 2018 2019 2020 2021 2011 2012 2013 2014 2015 2016 2017 2018 2019 2020 2021

A trajetória das conclusões apresenta uma defasagem esperada de cinco/seis anos sobre os ingressos, como se observa nos gráficos. Em 2021, houve
105 mil concluintes, 18% abaixo do máximo de 129 mil, registrado em 2018. Essa retração foi semelhante nos segmentos público e privado (-20% e -18%,
respectivamente), no mesmo período

EVASÃO: 39% DOS ESTUDANTES CONCLUEM O CURSO


Uma estimativa do índice de conclusão é a razão entre o Uma primeira aproximação dos impactos da pandemia nesses índices
número de conclusões de um certo ano e o número de ingressos pode ser obtida ao se considerarem as conclusões em 2020-2021 e os
seis anos antes4. Seu complementar corresponde ao índice ingressos em 2015-2016: nesse corte, os índices de evasão se elevariam
de evasão em relação ao anterior: 66% para o total, 62% para o setor público
e 67% para o setor privado
Relacionando os números acumulados de ingressos, entre 2010
e 2014 (1,42 milhão), com o de conclusões, entre 2015 e 20194 Ainda é cedo para avaliar os efeitos de médio prazo da pandemia
(552 mil), obtém-se um índice de conclusão de 39%, ou evasão sobre esses números e os índices de conclusão e evasão do sistema
estimada de 61% dos ingressantes no período

Separando os setores público e privado, os respectivos índices


de evasão seriam de 52% e 64%, no mesmo período

NOTAS  (1) FORAM CONSIDERADOS TODOS OS CURSOS CLASSIFICADOS COMO DE ENGENHARIA PLENA, QUE INCLUEM OS DAS ÁREAS DE ENGENHARIA, PRODUÇÃO E CONSTRUÇÃO, DE COMPUTAÇÃO E AFINS E DE AGRICULTURA
E AFINS. (2) INCLUEM INSTITUIÇÕES FEDERAIS, ESTADUAIS E MUNICIPAIS. (3) INCLUEM INSTITUIÇÕES PRIVADAS COM OU SEM FINS LUCRATIVOS. (4) A DEFASAGEM ENTRE INGRESSOS NO ANO N E CONCLUSÕES NO ANO N+5
INDICARIAM QUE O INGRESSANTE NO ANO N TERIA SE FORMADO, EM MÉDIA, AO LONGO DO SEXTO ANO APÓS O INGRESSO.
FONTE  MICRODADOS ATUALIZADOS – CURSOS, CENSO DA EDUCAÇÃO SUPERIOR, BAIXADOS EM JANEIRO/2023
ELABORAÇÃO  FAPESP, DPCTA/GERÊNCIA DE ESTUDOS E INDICADORES

PESQUISA FAPESP 326 | 43


AGROPECUÁRIA

SEMENTES DA
MODERNIDADE
Ao completar 50 anos, Embrapa
procura conciliar diferentes paradigmas
de produção no campo, que valorizam
a preservação ambiental
Carlos Fioravanti

FOTOS  1, 3 E 5 EMBRAPA  2 E 6 LÉO RAMOS CHAVES / REVISTA PESQUISA FAPESP 

2
4 SERGIO DUTTI / REVISTA PESQUISA FAPESP

1 3 4
A
engenheira-agrônoma Tatiana de do comitê gestor do portfólio de Sistemas de
Sá, da Embrapa Amazônia Orien- produção de base ecológica.
tal, em Belém, encara quase todo A agricultura ambientalmente amigável pro-
mês uma viagem de quatro ho- posta pela agroecologia segue princípios bastante
ras, geralmente de ônibus ou de diferentes do modelo que tem norteado a Embra-
lotação, para trabalhar com agri- pa e outras instituições de pesquisa agropecuária
cultores de Santa Luzia do Pará, do Brasil. Trata-se do paradigma produtivista,
a leste do estado. Em conjunto, fundamentado na mecanização, no uso intensivo
selecionam as melhores formas de fertilizantes e agrotóxicos, em cultivos exten-
5 de cultivo e de aproveitamento de sivos e em grandes propriedades, que ampliou a
três raízes – araruta, cará-roxo e branco – e de produção agropecuária nacional.
três frutas – banana, tucumã e pupunha –, com “A soja, que não passava do Paraná, hoje chega
o propósito de eliminar um problema antigo: as na Amazônia Legal. Os espumantes brasileiros ga-
perdas de raízes e frutas por causa da dificuldade nham prêmios internacionais. A maçã só vinha da
de venda e armazenamento. Argentina, porque não havia variedades nacionais.
Os agricultores da região de Santa Luzia tam- Passamos de importadores para exportadores de
bém foram à unidade da Embrapa de Belém e alimentos e hoje o Brasil é o terceiro maior ex-
conversaram com a equipe do Laboratório de portador mundial de alimentos”, observa o físico
Agroindústria sobre formas de preparar farinhas, Silvio Crestana, ex-diretor e pesquisador da Em-
massas, pães e biscoitos com as raízes e frutas que brapa Instrumentação, uma das cinco unidades
plantavam. “As técnicas de cultivo e uso da araru- do estado de São Paulo apoiadas pela FAPESP
ta estavam sendo esquecidas por causa da hege- por meio de 927 projetos de pesquisa e bolsas,
monia do trigo, o principal inimigo da soberania com dispêndio de R$ 97,9 milhões desde 1991.
alimentar da Amazônia”, comenta Sá, contratada Para Crestana, que presidiu a Embrapa de 2005
em 1972 pelo Instituto de Pesquisas e Experimen- a 2009, as conquistas não deveriam ofuscar o
tação Agropecuárias do Norte (Ipean), depois in- futuro: “Temos agora de pensar nos impactos
corporado pela Embrapa, a Empresa Brasileira de sociais e ambientais da agropecuária, porque o
Pesquisa Agropecuária. “Os moradores da região mundo e a maioria dos produtores e consumi-
de Santa Luzia se mostraram interessados em dores querem assim. É fundamental refundar a
6 plantar raízes nativas, que estavam se perdendo.” Embrapa, para que possa responder à altura aos
O reconhecimento do saber local e a produ- novos desafios”.
Diversidade agrícola: ção organizada em associações e sindicatos de A agrônoma Irene Cardoso, da Universidade
(acima) tomate em pequenos produtores são preceitos da agroeco- Federal de Viçosa (UFV), em Minas Gerais, res-
estufa na região
serrana do Rio de
logia, abordagem que preconiza a diversificação salta: “As instituições de pesquisa agropecuária,
Janeiro e criação de agrícola e a preservação dos recursos naturais. não só a Embrapa, precisam dar mais atenção a
boi em floresta em Valorizado em resposta a pressões internacionais outras formas de agricultura, como a familiar e
São Carlos, SP; sobre o país e os produtores rurais, cada vez mais a tradicional, sem adubos químicos e sem agro-
(ao lado, da esquerda
para a direita) cultivo
cobrados para que evitem os danos ambientais tóxicos”. Ex-presidente da Associação Brasilei-
de maçãs Gala em causados pela prática da monocultura e do uso ra de Agroecologia (Aba), ela acrescenta que o
Bento Gonçalves, RS; intensivo de agrotóxicos, esse enfoque avança gra- agronegócio, ao qual a história da Embrapa está
abelha com chip de dativamente na Embrapa, instituição em operação bastante ligada, “não é ambientalmente susten-
rastreamento em
Belém, PA; araruta
há exatos 50 anos, completados em 26 de abril. tável, pois causa uma redução da biodiversidade
cultivada na região “A agricultura orgânica, uma das áreas da e uma intensa emissão de gases de efeito estufa
de Santa Luzia do agroecologia, era vista como uma utopia há 30 com o desmatamento e as queimadas”. Sá refor-
Pará, PA; Vanilla anos, mas hoje é reconhecida mundialmente e ça: “A Embrapa não pode ser homogênea, porque
pompona, espécie
nativa de baunilha,
ensinada em cursos universitários”, relata o en- seu público não é”.
em Brasília, DF genheiro-agrônomo Jose Antonio Azevedo Es- O atual presidente da empresa, o agrônomo
pindola, pesquisador da Embrapa Agrobiologia, Celso Moretti, no cargo desde 2019, afirmou a
em Seropédica, no Rio de Janeiro, e presidente Pesquisa FAPESP que a maior instituição de pes-

PESQUISA FAPESP 326 | 45


quisa agropecuária do país já é eclética. “Nossas Mas serão esses sinais efetivos de renovação?
pesquisas são desenvolvidas para atender a todos “As trajetórias tecnológicas do paradigma tradi-
os agricultores, de qualquer perfil, sem distinção, cional, que chamo de mecânico-químico, estão
com foco no aumento da produtividade, na agre- reagindo aos problemas da crise ecológica por
gação de valor ao produto e na sustentabilidade”, meio de uma saída por dentro do paradigma:
diz. “Temos pesquisas tanto para a melhoria dos procura-se um ‘esverdeamento’ das trajetórias,
produtos voltados para a exportação, as commo- com soluções biológicas que, em geral, estão a
dities, quanto para o consumo interno, em que serviço da mecânica e da química”, interpre-
se insere a maioria dos pequenos agricultores e ta o economista Francisco de Assis Costa, da

A
a agricultura orgânica e agroecológica.” Universidade Federal do Pará (ver Pesquisa
FAPESP no 277). Cantarella observa: “A agricul-
Embrapa, segundo Moretti, tem tura ecológica continuará crescendo, mas haverá
um problema de ordem prática, de conviver com alguma versão da ‘mecânico-
a falta de renovação dos funcio- -química’, por causa da pressão pela produção
nários que saíram ou se aposen- de alimentos e matérias-primas abundantes e
taram recentemente: “Nossos a baixo custo”.
últimos pesquisadores foram con- A desproporção entre as equipes alocadas aos
tratados em 2014, por meio de um dois enfoque de pesquisa e produção agropecuá-
concurso de 2010”. O agrônomo ria é outro desafio. “Na Embrapa”, diz Espindo-
Heitor Cantarella, diretor do Ins- la, “a porcentagem de pesquisadores envolvidos
tituto Agronômico de Campinas na geração de soluções tecnológicas adaptadas
(IAC), tem queixa semelhante. “Para renovar as para a agricultura convencional ainda é muito
linhas de pesquisa e planejar a agricultura dos maior que a dos dedicados à agroecologia e pro-
próximos 20 anos precisamos rejuvenescer o dução orgânica, mas estamos avançando”. Para
quadro de pesquisadores. Nos últimos 15 anos, Moretti, o número de pesquisadores não é um
perdemos 40% dos funcionários, que não foram bom indicador da relevância de uma área: “Com
repostos porque não há concursos”, diz. foco e capacidade de trabalho, é possível fazer
Cantarella reconhece a pressão social por for- as entregas necessárias para atender as dife-
mas de produção de alimentos com menor im- rentes demandas”. Após um trabalho intensivo
pacto ambiental e menor emissão de gases de em grãos, como soja, milho e algodão, a maioria
efeito estufa. Ele argumenta que as pesquisas dos pesquisadores se dedica a outros cultivos,
mais recentes, ainda que sob o enfoque tradicio- também com viés produtivista.
nal, buscam a redução do uso de agrotóxicos, por Segundo o presidente da Embrapa, as equipes
exemplo, ao selecionar variedades de plantas na- dedicadas às cadeias produtivas de cenoura e
turalmente mais resistentes a pragas e doenças e tomate, ainda que pequenas, chegaram a resul-
promover a chamada intensificação agrícola, com tados importantes. Em 2020, a instituição lan-
a produção de mais alimentos na mesma área. çou uma cultivar (variedade) de cenoura para

ORÇAMENTO OSCILANTE
Os últimos cinco anos reverteram a tendência de alta iniciada duas décadas atrás

FOTO  EMBRAPA   INFOGRÁFICOS  ALEXANDRE AFFONSO / REVISTA PESQUISA FAPESP


(valores em R$ bilhões, corrigidos pelo IPCA)

R$ 6 bilhões

4,96
R$ 5 bilhões 4,76 4,61
4,15 4,15
R$ 4 bilhões 3,64

R$ 3 bilhões
2,50

R$ 2 bilhões

R$ 1 bilhão

0
2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016 2017 2018 2019 2020 2021 2022 2023 FONTE EMBRAPA

46 | ABRIL DE 2023
Sorgo produzido
em sistema de
integração
lavoura-pecuária-
-floresta no Cerrado
do Maranhão

produção orgânica, recomendada para plantio Como pesquisador da Embrapa Agricultura Di-
na entressafra das cultivares convencionais. Já gital, em Campinas, Bolfe, com colegas de outras
o Tomatec, lançado em 2005, é um sistema de instituições, desenvolveu métodos para mapear
cultivo com irrigação por gotejamento e manejo com precisão os limites, a diversificação, a ex-
integrado de pragas. pansão, a retração ou a conversão de diferentes
O engenheiro florestal Édson Luis Bolfe, ex- cultivos agrícolas por meio de uma combinação
-coordenador do Agropensa, grupo de apoio à for- de imagens de satélites. Testado em municípios
mulação de estratégias de pesquisa da Embrapa de Goiás, Bahia, Maranhão, Mato Grosso, Mato
e de instituições parceiras, observa o gradativo Grosso do Sul e São Paulo, a nova abordagem
aprimoramento dos sistemas de produção agro- mapeia a vegetação nativa e diferencia plantios
pecuária: “Do mesmo modo que o plantio direto como os de soja, milho, algodão e cana-de-açúcar,
era uma novidade na década de 1970, os sistemas como detalhado em artigos publicados em 2022

A
de integração lavoura, pecuária e floresta vão nas revistas Remote Sensing e neste ano na Land.
evoluir e se consolidar nos próximos anos com
maior produção de alimentos e menor pressão tualmente com 2.201 pesquisa-
sobre os recursos naturais”. dores (eram 2.437 em 2013) e um
orçamento de R$ 3,6 bilhões para
este ano (em valores atualizados,
eram R$ 2,5 bilhões em 2003), a
INOVAÇÃO EM CAMPO Embrapa é uma participante re-
lativamente jovem do grupo das
A partir de 2018, a contagem inclui apenas mais antigas instituições nacionais
as tecnologias prontas para o mercado de pesquisa agropecuária: o IAC
foi criado em 1887 em Campinas;
1.101 a Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz
Total dos últimos 10 anos (Esalq) iniciou suas atividades em 1901 e depois
foi incorporada à Universidade de São Paulo
187
178 (USP); a Escola Agrícola de Lavras, em Minas
155 Gerais, começou em 1908; e a Escola Superior
138 137 de Agricultura e Veterinária de Viçosa, depois
integrada à UFV, é de 1920. Mas nenhuma outra
é tão ramificada – são sete unidades centrais,
74 localizadas no Distrito Federal, e 43 espalhadas
66 66
58 por todos os estados da federação.
42
“A Embrapa é uma das grandes obras do go-
verno militar, com uma forte influência dos Es-
tados Unidos”, sustenta o historiador Jefferson
2013 2014 2015 2016 2017 2018 2019 2020 2021 2022 FONTE EMBRAPA Sanches, professor do ensino básico e curso pré-

PESQUISA FAPESP 326 | 47


PLANTAÇÕES COM LIMITES PRECISOS
Método de análise de imagens de satélite facilita o mapeamento de áreas rurais

Imagens do Landsat e
mapas do MapBiomas
e do Departamento
Nacional de Infraestrutura
de Transportes (DNIT)
indicam a distribuição
de vegetação nativa,
cultivos agrícolas e
pecuária em Sorriso, MT

n Rodovias
n  Áreas urbanas
n  Corpos hídricos
n  Vegetação nativa
n Algodão
n Feijão
n Milho
n  Outros cultivos de sequeiro
n  Pastagens cultivadas
n Cana-de-açúcar
n  Cultivos agrícolas irrigados

-vestibular na rede pública e privada de Vinhedo anos. Uma das prioridades iniciais foi a imple-
e de Jundiaí, no interior paulista. Segundo ele, mentação da agropecuária na região central do
para o governo militar, o modelo de produção Brasil, coberta pelo Cerrado. Segundo Sanches,
baseado na monocultura, grandes propriedades o desenvolvimento de novas técnicas reforçou
e empréstimos bancários com juros abaixo da in- com conhecimento científico a ocupação lide-
flação era uma forma de ocupar o Centro-Oeste rada por experientes agricultores gaúchos e ca-

FOTOS 1 LÉO RAMOS CHAVES / REVISTA PESQUISA FAPESP  2 EMBRAPA  MAPA EMBRAPA 


e de enfraquecer a ideia de que a concentração tarinenses que compravam terras a preço baixo.
agrária era um obstáculo para o desenvolvimento Tornaram-se comuns a correção da acidez do

E
econômico e de adiar a reforma agrária. solo com calcário, o plantio direto sobre o so-
lo (sem revolvê-lo, para evitar a perda de nu-
m um artigo de novembro de 2022 trientes) e a utilização de bactérias fixadoras
na Revista de História, ele descreve de nitrogênio. Sanches indica o ponto inicial
como a Embrapa se formou a par- das pesquisas que ampliaram a produção agrí-
tir da articulação entre o governo cola dessa região: a tese de doutorado do sérvio
brasileiro e fundações filantrópicas Nikolai Pulchritudoff, apresentada em 1971 na
norte-americanas, entre elas a Roc- Universidade da Califórnia em Davis, Estados
kefeller e a Ford, que se voltavam Unidos, descrevendo as carências de minerais no
para o aumento da produção de Cerrado e as formas como poderiam ser sanadas.
alimentos depois de contribuírem Sanches define a criação da Embrapa como um
com financiamento de pesquisas sinal do que chama de modernização da perma-
sobre problemas globais de saúde. Segundo ele, nência, expressão apoiada no conceito de mo-
a criação da Embrapa se inspirou em experiên- dernização conservadora, criado pelo sociólogo
cias anteriores, apoiadas por instituições norte- 1
-americanas, de ampliação da produção de arroz
nas Filipinas, de trigo no México e de batata no
Peru. Desse modo, a Revolução Verde, uma es-
tratégia de aumento da produtividade no campo
iniciada nos Estados Unidos na década de 1960,
tornava-se global, incentivando o consumo de
sementes, fertilizantes e equipamentos produ-
zidos por empresas norte-americanas.
A Embrapa assumiu as funções do Depar-
tamento de Pesquisa Agropecuária do Mapa,
com a missão de centralizar as investigações
científicas e coordenar as empresas estaduais,
muitas delas desativadas ao longo dos últimos

48 | ABRIL DE 2023
ESTÍMULO A TECNOLOGIAS DIGITAIS NO CAMPO
Projeto promove o uso de aplicativos entre pequenos
e médios produtores rurais

A FAPESP deve anunciar publicamente este Américo Pacheco, diretor-presidente do


mês o projeto multidisciplinar de pesquisa Conselho Técnico-Administrativo da FAPESP.
e inovação chamado Centro de Ciência para “Esse projeto deve ter um impacto grande
o Desenvolvimento em Agricultura Digital na melhoria da renda no campo.”
(CCD/AR)/SemeAR, sediado na Embrapa Serão acompanhadas cinco áreas-piloto
Agricultura Digital, em Campinas. Seu no estado de São Paulo, uma em Minas
propósito será ampliar o uso de tecnologias Gerais e uma em cada uma das outras Sistema de
monitoramento
digitais e a conectividade por meio da quatro regiões do país (Norte, Nordeste,
climático da Embrapa 2
internet entre pequenos e médios Centro-Oeste e Sul). O trabalho já começou Agricultura Digital,
produtores rurais do país. em duas, em interação com a associação de Campinas
“Projetos complexos como o SemeAR de produtores, prefeituras e empresas.
frequentemente requerem ajustes nos A primeira é Caconde, município paulista
modelos de financiamento”, afirmou Luiz de quase 20 mil moradores e polo produtor produtores rurais. Um levantamento de 2021
Eugênio Mello, diretor científico da FAPESP. de café, a leste do estado; a outra é São do Ministério da Agricultura e da Esalq/USP
“Nesse caso, solicitamos que o projeto Miguel Arcanjo, ao sul, com cerca de 33 mil indicou que somente 23% da área rural do
contemplasse algo semelhante a um habitantes, grande fornecedor de hortifrútis. país tem acesso à internet. “Todas as cadeias
PMO (project management officer) e “A tecnologia digital já está na mente de produtivas demandam ferramentas de
dedicamos vários meses ao planejamento muitos produtores”, observa Silvia Massruhá, tecnologia digital”, diz ela. O projeto conta com
e à estruturação do projeto de maneira a coordenadora do CCD-AR/ SemeAR. Segundo a participação de cerca de 40 pesquisadores,
aumentar sua chance de sucesso”, explicou. ela, os pesquisadores vão procurar empresas incluindo outras unidades da Embrapa,
“Uma das metas é colocar os produtores ou desenvolver aplicativos para resolver o centro de inovação CPQD, o IAC, o Instituto
rurais em contato direto com o mercado, as demandas dos agricultores e ampliar de Economia Agrícola, o Instituto Nacional de
sem intermediários”, comenta Carlos a conectividade dos pequenos e médios Telecomunicações, a Esalq e a UFV.

norte-americano Barrington Moore Jr. (1913- Em 1996, a Embrapa lançou o suíno light, com
2005). “Foi uma reorganização da produção agrí- menos gordura, já na terceira geração; levou a
cola sem alterar a base fundiária, valendo-se de uva e outras frutas para crescer às margens do
uma narrativa fundamentada em ciência e tecno- rio São Francisco; participou do desenvolvimen-
logia, segundo a qual a modernização seria o ca- to de boa parte das 140 cultivares de café, em
minho único e naturalmente benéfico”, comenta. conjunto com outras instituições de pesquisa,
No livro A modernização dolorosa (Zahar, 1982), e criou métodos de cultivo em meio à floresta,
o agrônomo José Graziano da Silva acentua que em Rondônia. O portfólio do site institucional da
esse processo ampliou a concentração e as dis- empresa compreende 1.106 produtos ou tecnolo-
paridades de renda, o êxodo rural e a exploração gias, incluindo a produção de carne com baixos

O
da força de trabalho no campo. níveis de emissão de dióxido de carbono e meta-
no, gases responsáveis pelo aquecimento global.
Cerrado tornou-se um dos prin- Em 50 anos, a Embrapa desenvolveu 72 cul-
cipais celeiros agrícolas do país, tivares de laranja, 53 de pêssego, 44 de videira,
atualmente responsável por 86% 24 de cupuaçu, 22 de banana e de maracujá e 10
da produção de algodão, 50% de de abacaxi e melão – incluindo outras frutas, são
soja, 43% de feijão e 34% de carne. 419. Uma das mais recentes, anunciada em outu-
A agropecuária se fortaleceu, mas, bro, é uma variedade de um fruto típico do Cer-
como resultado ruim da aplica- rado, o pequi, sem os inconvenientes espinhos.
ção do paradigma produtivista, Base de pesquisas futuras, seus bancos genéti-
avalia-se que 45% da área antes cos reúnem cerca de 300 mil amostras de 1.096
coberta por vegetação nativa tenha espécies de cereais, frutas, raízes, palmeiras e
Mudas de sido ocupada pela agropecuária, com perdas da outras, além de 115 mil de sêmen de animais e
cana-de-açúcar biodiversidade e, ainda, o risco de secarem os 70 mil microrganismos. n
geneticamente
modificadas com
rios que nascem no Centro-Oeste e correm para
tolerância a outras regiões do país (ver entrevista com Mer- O dossiê de Pesquisa FAPESP sobre a Embrapa, os projetos e os artigos
herbicida cedes Bustamante em Pesquisa FAPESP no 324). consultados para esta reportagem estão listados na versão on-line.

PESQUISA FAPESP 326 | 49


CLIMA

PERIGO NO CÉU
E NA TERRA
Chuvas extremas com potencial de gerar
grandes desastres, como os do litoral norte paulista,
são cada vez mais frequentes em partes do país

Marcos Pivetta

D
ados históricos e projeções futuras O comportamento da pluviosidade no Brasil
indicam que chuvas extremas, ao longo das últimas seis décadas retrata essa
como as que assolaram o litoral realidade cheia de nuances. Dados históricos
norte de São Paulo durante o compilados pelo Instituto Nacional de Meteo-
Carnaval deste ano e provocaram rologia (Inmet) indicam que o valor médio da
65 mortes, não são um fenôme- chuva anual acumulada nas áreas situadas abaixo
no passageiro ou localizado. São uma variável da metade sul dos estados de São Paulo e Mato
do novo clima em movimento do século XXI, Grosso do Sul aumentou nos últimos 30 anos
embalado pelo aquecimento global, que fez a entre 50 e 250 milímetros (mm). Nessa parte
temperatura média do planeta aumentar quase do território nacional foi registrada redução de
1,2 grau Celsius (ºC) desde os anos 1850. Mas pluviosidade apenas em uma pontinha do oeste
o risco de desastres associados a tempestades do Rio Grande do Sul, perto da fronteira com o
não é o mesmo para todos ou em toda parte do Uruguai e a Argentina. Também houve aumen-
país. Ele é maior nas áreas em que se concentra to na média do total anual de chuva acumulada
a maior parcela da população, como nas grandes no Espírito Santo, sul de Minas Gerais, sudoeste
cidades do vasto litoral nacional e nas regiões de Mato Grosso e alguns pontos da Amazônia,
Sudeste e Sul, e entre as pessoas mais pobres que sobretudo em sua porção ocidental. Em todo o
moram em lugares mais expostos a inundações Nordeste, no centro do Brasil e na parte oriental
e deslizamentos de terra. da Amazônia, houve diminuição no valor da plu-
É um cenário complexo, em consonância com viosidade média anual acumulada (ver mapa na
as informações e previsões de uma vasta literatura página 53). Esses valores saltam à vista quando se
científica sobre o tema, resumida nos relatórios compara a média das chuvas anuais registradas
do Painel Intergovernamental sobre Mudanças entre 1991 e 2020 com o período anterior de 30
Climáticas (IPCC), inclusive no último deles, anos, entre 1961 e 1990.
lançado em 20 de março deste ano. À medida Desde 1935, a Organização Meteorológica
que a temperatura média global for aumentando Mundial (OMM) preconiza a adoção das cha-
durante este século, o IPCC projeta elevações na madas normais climatológicas como valores de
quantidade total de chuvas em grandes parcelas referência para um determinado parâmetro do
do território brasileiro, como nas regiões Sudeste clima, como a quantidade mensal ou anual de
e Sul, e diminuição no Centro-Oeste, em grande chuvas ou os valores das temperaturas médias,
parte do Nordeste e no leste da Amazônia. mínimas ou máximas em uma região. A partir da
Às vezes, uma mesma localidade pode ser alvo, sucessão de valores registrados em períodos de
em diferentes meses de um mesmo ano ou em 30 anos, calcula-se a normal climatológica de um
anos distintos, tanto de chuvas extremas como parâmetro para uma localidade. A fórmula tem
de secas severas. “A maioria dos desastres no como objetivo chegar a um valor que sirva de
Brasil é do tipo hidrológico e geológico e está base, como ponto de comparação, para saber se
CHRISTOPHE SIMON / AFP VIA GETTY IMAGES

ligada ao excesso ou falta de chuvas”, comenta o clima atual está mudando em um certo local ou
o climatologista José Marengo, especialista em tem se comportado da forma esperada, ou seja,
Grandes cidades mudanças e riscos climáticos do Centro Nacional dentro dos valores da última normal.
litorâneas, como de Monitoramento e Alertas de Desastres Natu- Um aumento de 50 ou 100 mm no total de chu-
o Rio de Janeiro, estão rais (Cemaden). “São deslocamentos de terra ou va acumulada em uma cidade como São Paulo,
nas áreas com
tendência a ser
enxurradas, ou grandes secas em períodos de onde chove em média, segundo as normais cli-
alvo de mais chuvas estiagem prolongada que aumentam o risco de matológicas, cerca de 1.600 mm por ano, pode
extremas incêndios e de escassez hídrica.” não parecer muito. Mas é preciso colocar esse

PESQUISA FAPESP 326 | 51


dado em perspectiva. Um mm de chuva registra- cio ainda mais preocupante.
do equivale a 1 litro de água sobre uma área de 1 Ocorreu uma pequena redu-
metro quadrado. Portanto, um aumento de 50 mm ção no número de dias com
na pluviosidade média anual significa que caíram chuvas superiores a 50 mm, Na década passada,
50 litros de água a mais do que o esperado sobre mas um aumento expressivo
uma superfície equivalente a um quadrado com na quantidade de episódios em sete dias
1 metro de lado. É preciso ainda levar em conta de pluviosidade concentrada
de que forma uma elevação (ou diminuição) de dos outros dois níveis. Com-
choveu mais de
chuvas se distribui ao longo do tempo. Em alguns parando os resultados da dé- 100 mm na capital
lugares, a precipitação anual acumulada pode cada passada com a anterior
diminuir, mas aumentarem as chuvas extremas. (2001 a 2010), houve uma re- paulista, segundo
“Um episódio de chuva concentrada de 50 mm dução discreta na incidência
pode gerar mais problemas e preocupações do de dias com chuva acima de dados do Inmet
que cinco chuvas de 10 mm distribuídas em dias 50 mm (de 53 para 47), mas
diferentes”, comenta a meteorologista Danielle um aumento significativo de

N
Barros Ferreira, do Inmet. dias com chuva acima de 80
mm (de 9 para 16 ocorrên-
o ano passado, o Inmet divulgou cias) e 100 mm (de 2 para 7).
um levantamento que mostra um “Na capital paulista, as chuvas volumosas tendem
aumento na ocorrência de dias a ficar mais frequentes”, comenta Ferreira. Um
de chuva forte e concentrada padrão similar de intensificação dos dias de chuva
em três capitais brasileiras ana- extrema também foi observado em duas capitais
lisadas. Desde os anos 1990, a situadas em pontos opostos do país, Belém, no
cidade de São Paulo, a mais populosa do país, é Pará, e Porto Alegre, no Rio Grande do Sul.
um caso ilustrativo dessa tendência. A partir de A intensidade das chuvas torrenciais no litoral
dados coletados sempre em uma mesma estação norte paulista em fevereiro passado parece ser
meteorológica da capital paulista, localizada no um ponto fora da curva mesmo quando se leva
Mirante de Santana, na zona norte da metrópole, em conta o cenário atual de incertezas e extremos
uma equipe do Inmet contou o número de dias climáticos. Na virada de 18 para 19 de fevereiro,
com precipitação elevada, com grande potencial várias cidades da região receberam em menos de
de gerar problemas e eventualmente mortes. 24 horas níveis de chuva sem precedentes ou que,
Foram contabilizados dias com chuva extrema segundo as normais climatológicas, só deveriam
de três níveis: acima de 50, 80 e 100 mm. ocorrer uma vez a cada 100 anos. Os dois casos
Na década de 1960, houve 40 dias com pluvio- mais eloquentes se deram nos municípios vizi-
sidade extrema, 37 acima de 50 mm e três com nhos de Bertioga e São Sebastião, onde a precipi-
chuva superior a 80 mm. Mas nenhuma ocor- tação em 24 horas foi equivalente, de acordo com
rência de chuva diária ultrapassou os 100 mm. A a média histórica, ao que deveria chover ao longo
partir dos anos 1990, sempre foram registrados dos meses de janeiro e fevereiro. Em Bertioga,
ao menos 60 dias com chuvas extremas a cada caíram 683 mm de chuva, a maior pluviosidade
década. Entre 2011 e 2020, apareceu um indí- registrada no país em um intervalo de tempo

Alagamento no
centro da cidade
de São Paulo

52 | ABRIL DE 2023
tão curto. Em São Sebastião, choveu um pouco
menos, 627 mm, segundo dados do Cemaden. A dança da chuva
Apesar de ter causado grandes estragos mate-
riais e ter desabrigado cerca de 2 mil moradores Quanto aumentou (em azul) ou diminuiu (em amarelo e laranja)
locais em vários pontos do litoral norte, 64 das a pluviosidade anual acumulada durante o período de 1991 a 2020
65 mortes verificadas na região ocorreram em em relação à média dos 30 anos anteriores
São Sebastião. Nesse município, mais pessoas se
encontravam em áreas de risco, sujeitas aos efei-
tos de deslizamentos de terra provocados pelas
águas que desceram as encostas da serra do Mar.
Em Bertioga, houve muitas áreas alagadas, mas a
ocupação humana, marcada pela presença de con-
domínios de médio e alto padrão, está mais longe
das escarpas montanhosas e não houve óbitos.
“Foi uma situação assustadora”, relembra o me-
teorologista Pedro Leite da Silva Dias, do Instituto
de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas
da Universidade de São Paulo (IAG-USP). “Até
perdermos a eletricidade e o acesso à internet por
volta de 1 hora da manhã do dia 19, acompanhei
a formação e a disseminação da chuva no site do 800
Precipitação acumulada (mm) - Anual

centro europeu de meteorologia [ECMWF] e pelos 600


dados do Cemaden.” Ao lado da mulher Maria As- 400
sunção Faus da Silva Dias, também meteorologista 250
e hoje professora aposentada do IAG-USP, Dias 100
estava hospedado na casa de amigos em uma praia
50
de São Sebastião afetada pelas chuvas e pelo des-

S
-50
lizamento de terra, mas onde não houve mortes.
-100

imultaneamente à chegada de -250

uma intensa frente fria da região -400

Sul, a formação de um pequeno -600


ciclone na costa do litoral, entre -800 FONTE INMET

a cidade paulista de Ubatuba e a


fluminense Paraty, elevou de ma-
neira substancial a intensidade das chuvas entre quadro, os ventos de superfície sopraram em uma
FOTO  GUSTAVO BASSO / NURPHOTO VIA GETTY IMAGES  INFOGRÁFICO  ALEXANDRE AFFONSO / REVISTA PESQUISA FAPESP

18 e 19 de fevereiro. Esse ciclone, pequeno, mas direção que interagiu com o relevo da serra do
desastroso, relata Dias, apareceu claramente nas Mar. Isso intensificou o chamado efeito orográ-
imagens do radar do Cemaden e de satélites dos fico e retroalimentou a formação de chuvas por
Estados Unidos. horas. “Não posso afirmar, com certeza absoluta,
Chuvas intensas são frequentes e esperadas na que uma chuva dessa magnitude é decorrente do
região de São Sebastião no verão, estação com o aquecimento global, mas ela é compatível com
maior índice de pluviosidade em boa parte do esse cenário”, pondera Dias.
país. No entanto, os especialistas apontam que No caso do litoral norte paulista, as particulari-
houve uma sincronia perfeita, e perversa, que le- dades do município de São Sebastião potencializa-
vou ao aprisionamento – ancoramento, no jargão ram o quadro climático que resultou na tragédia.
da área – de nuvens carregadas de água sobre um Lá, boa parte da população pobre está estabele-
trecho do litoral norte por um período de muitas cida em áreas de risco, perto ou nas encostas da
horas. “Parte dessa chuva poderia ter caído sobre serra, há grande desigualdade social e escassez de
o mar ou se deslocado para outros pontos, mas planos de ação para mitigar os efeitos de chuvas
uma série de fatores conhecidos atuou para que extremas. “Fiz um ranking dos municípios pau-
ela tenha ficado parada ali por muito tempo”, diz listas mais vulneráveis a desastres relacionados a
o pesquisador Pedro Camarinha, especialista em deslizamentos de terra na minha tese de douto-
mudanças climáticas e desastres, que trabalha na rado, que defendi em 2016 no Inpe [Instituto Na-
sala de situação do Cemaden. cional de Pesquisas Espaciais]”, diz Camarinha.
Outra parcela da umidade direcionada para o “Levando em conta múltiplos fatores climáticos
litoral norte veio da maior evaporação de água e não climáticos, São Sebastião foi classificado
no oceano Atlântico, que estava ao menos 1 ºC como o município em situação mais crítica tanto
mais quente do que o normal. Para completar o no tempo presente como nas próximas décadas.” n

PESQUISA FAPESP 326 | 53


Deslizamento de terra
POLÍTICAS PÚBLICAS
na Barra do Sahy,
depois de temporal
que atingiu o litoral
norte de São Paulo no
final de fevereiro

DESASTRES
DO FUTURO
1

Para além de séries históricas, agravamento


da crise climática demanda ações que considerem
cenário de eventos extremos
Christina Queiroz
E
m 1993, o número de desas- nicípios que mais tendem a crescer são lizaram com mais força no cotidiano
tres geológicos, hidrológi- os de médio porte de países em desen- das cidades, os debates internacionais
cos, meteorológicos, clima- volvimento, caso do Brasil. “A mudan- passaram a buscar estratégias para re-
tológicos e geofísicos re- ça climática seguirá causando impactos duzir perdas e danos associados à crise
gistrados no estado de São no ambiente e traz um cenário futuro de do clima”, detalha.
Paulo foi de 297, saltando eventos cada vez mais extremos. É preciso No estado paulista, o marco inicial das
para 2,8 mil, em 2020. A quantidade de enxergar o momento atual como oportu- políticas para gestão de riscos e desas-
municípios afetados por eventos desse nidade e repensar o desenvolvimento de tres foi um plano preventivo elaborado
tipo também aumentou, de 25 registros ambientes urbanos”, sustenta Carvalho. pela Defesa Civil em 1989, para contro-
em 1993 para 283, em 2020, conforme Apesar de poucas ações terem saído lar deslizamentos na serra do Mar em
dados da Secretaria de Meio Ambiente, do papel, o Brasil conta com instrumen- Santos, Cubatão, Guarujá e São Vicente.
Infraestrutura e Logística do Estado de tos para apoiar gestores estaduais e mu- Em 2009, a Lei nº 13.798 instituiu a Polí-
São Paulo (Semil). Instrumento essen- nicipais na criação de estratégias. Um tica Estadual de Mudanças Climáticas.
cial para combater os efeitos cada vez deles é o Plano Nacional de Adaptação Em 2022, o estado aprovou e publicou
mais intensos da crise climática, segun- (PNA), instituído em 2016 com a propos- o Plano de ação climática 2050, que con-
do a organização Governos Locais pela ta de reduzir a vulnerabilidade nacio- tou com contribuições de pesquisadores
Sustentabilidade (Iclei), menos de 50 nal à mudança do clima. O documento associados ao programa Biota Síntese,
cidades brasileiras têm planos de adap- nacional oferece orientação a governos financiado pela FAPESP e que também
tação – documento que reúne estratégias para realizar a gestão de risco em 11 se- envolve integrantes do governo estadual.
governamentais para enfrentar mudan- tores diferentes, entre eles agricultura, “Propusemos estratégias para promo-
ças dessa natureza. Além disso, em São zonas costeiras, biodiversidade. “Porém ver a restauração ecológica no estado
Paulo, os planos diretores dos municípios o PNA não tem força de lei. Com isso, em áreas urbanas e nas chamadas áreas
são elaborados levando em consideração o desenvolvimento de ações fica a cri- periurbanas”, diz a pesquisadora.
apenas as séries históricas, sem incluir tério de estados e municípios”, explica De acordo com Di Giulio, essas zonas
as projeções de mudanças intensas nas o engenheiro civil Ivan Carlos Maglio, periurbanas, que respondem por 3% da
características de eventos climáticos do Instituto de Estudos Avançados da área total do estado, são muito vulne-
previstas para os próximos anos. Universidade de São Paulo (IEA-USP). ráveis a impactos climáticos devido ao
O conceito de desastre abarca a ocor- Ele informa que as primeiras iniciati- desmatamento, à pressão imobiliária e
rência de eventos adversos, naturais ou vas brasileiras para combater os efeitos às ocupações irregulares. “Ao mesmo
provocados pelo homem sobre um ecos- da crise climática envolveram ações de tempo, elas apresentam grande potencial
sistema, custando vidas e causando da- controle das emissões de gases de efeito para prestar serviços ecossistêmicos”,
nos materiais e ambientais, assim como estufa, tendência que mudou, sobretudo, afirma. Serviços ecossistêmicos são be-
prejuízos econômicos e sociais. No es- a partir de 2015, quando estudos cien- nefícios que o ser humano pode obter
tado de São Paulo, o registro de mortes tíficos evidenciaram a necessidade da da natureza a partir do funcionamento
associadas a desastres começou a ser adoção de medidas de adaptação a esses de ecossistemas.
medido em 1991, ano em que não hou- efeitos. Um marco dessa mudança foi a De acordo com o geólogo Claudio José
ve óbitos, segundo dados oficiais do go- Conferência das Nações Unidas sobre Ferreira, da Semil, atualmente, cerca de
verno. Em 2020, foram registradas 52 Mudanças Climáticas (COP) realizada 100 municípios fizeram o mapeamento
mortes e 2009 e 2011 são os anos com naquele ano, segundo Gabriela Mar- de riscos em seus territórios e todo o es-
a maior quantidade de vítimas fatais, ques Di Giulio, docente da Faculdade tado tem pelo menos uma avaliação re-
segundo a Semil. Já o total de afetados de Saúde Pública da USP. “A partir do gional. “O desafio, agora, é incorporar as
FOTOS 1 TUANE FERNANDES / BLOOMBERG VIA GETTY IMAGES  2 PREFEITURA DE SÃO SEBASTIÃO

por essas ocorrências – pessoas feridas, momento em que os efeitos se materia- projeções climáticas nesses mapeamen-
desalojadas ou desaparecidas – chegou 2
a 6,5 mil em 2020 (ver gráfico na página
56). Por sua vez, levantamento do Cen-
tro Nacional de Monitoramento e Aler-
tas de Desastres Naturais (Cemaden)
indica que 2,2 mil cidades brasileiras,
com 70% da população concentrada, são
vulneráveis a desastres climáticos rela-
cionados a chuvas extremas. Ubatuba e
São Sebastião, no litoral de São Paulo,
fazem parte dessa lista.
Ao considerar que, até 2050, 68%
da população mundial viverá em cida-
des, conforme projeção do relatório de Vítimas em São
Sebastião próximas
2002 da Organização das Nações Unidas a casas afetadas
(ONU), a engenheira química Jussara de por enchentes e
Lima Carvalho, da Semil, afirma que mu- deslizamentos de terra

PESQUISA FAPESP 326 | 55


tos. Estamos apoiando algumas cidades Carvalho. Oito das cidades participan- das climatológicas até 2020, o que não
na elaboração de planos de adaptação tes e a Região Metropolitana da Baixada é suficiente para lidar com os eventos
com esse novo enfoque”, informa. Santista finalizaram o desenvolvimento extremos previstos em projeções”, alerta.
Como parte das iniciativas, em 2020 de planos de adaptação incorporando Ao destacar a urgência do investimento

P
foi criado o programa Municípios Pau- essas diretrizes. em políticas públicas que considerem
listas Resilientes, que, em 2022, ofere- cenários futuros, o geólogo diz que, na
ceu treinamentos para a criação de pla- or outro lado, Ferreira men- década de 1990, os desastres ambien-
nos de adaptação a 12 cidades, entre elas ciona os planos diretores tais afetavam principalmente a região
Americana, Embu das Artes e Ubatuba. instituídos pela Consti- da serra do Mar. Nos últimos dois anos
“Um dos pontos centrais dessas oficinas tuição Federal de 1988 e seus efeitos foram sentidos em mais de
foi evidenciar a importância de os ges- regulamentados pela Lei 500 cidades em todo o estado, que pas-
tores incorporarem, em suas políticas n° 10.257, de 2001. De saram a enfrentar erosão, inundação,
públicas, cenários futuros às mudan- acordo com ele, hoje, diversos municí- deslizamento e alagamento.
ças climáticas, que incluem o aumento pios incluem a gestão de riscos em seus Maglio, da USP, afirma que São Sebas-
da temperatura da Terra e a maior in- planos diretores, como é o caso de Mogi tião não conta com um plano de adapta-
cidência de chuvas até 2050. As séries Mirim, que acaba de reformular o seu. ção, mas seu novo plano diretor, apro-
históricas não são mais suficientes para “No entanto, as cidades têm incorporado vado em 2021, prevê a transformação
o desenho de ações efetivas”, ressalta a análise de risco considerando medi- de 101 núcleos de ocupação irregular

Crise climática atinge as cidades


Municípios do estado de São Paulo com desastres geológicos, hidrológicos,
meteorológicos, climatológicos e geofísicos

NÚMERO DE CIDADES AFETADAS

350

304
300 284 283
257 255
250
214
200 195 189
181 178
167 165
150
154 154 152
119 123 120
100
80 77
64 59 59 62
50 39 34
25 25
0
1993 1995 1997 1999 2001 2003 2005 2007 2009 2011 2013 2015 2017 2019 2020

FONTE  SECRETARIA DE MEIO AMBIENTE, INFRAESTRUTURA E LOGÍSTICA DO ESTADO DE SÃO PAULO (SEMIL)

As vítimas da crise climática


Desaparecidos, feridos, desabrigados, desalojados e mortos em desastres

Mortes Total de afetados


216
100 mil
200

160 80 mil
82.361 64.329
123 127
120 60 mil
102 100
84
80 40 mil
43.483
52
40
19.020 20 mil
24.133 12.923
14 5.669 6.511
0 0
1991 1993 1995 1997 1999 2001 2003 2005 2007 2009 2011 2013 2015 2017 2019 2020

FONTE  SECRETARIA DE MEIO AMBIENTE, INFRAESTRUTURA E LOGÍSTICA DO ESTADO DE SÃO PAULO (SEMIL)

56 | ABRIL DE 2023
em Zonas Especiais de Interesse Social
(Zeis). O engenheiro, que atuou como
consultor na elaboração do documen-
to, explica que o plano diretor utilizou
dados de 2017 para aferir riscos geotéc-
nicos, prevendo que as Zeis, com uma
população de cerca de 25 mil pessoas,
devem ser palco de ações emergenciais
para evitar a ocorrência de desastres. “O
documento não foi desenvolvido consi-
derando prognósticos. As vulnerabili-
dades dessas áreas a escorregamentos
e inundações são mais intensas quando
analisamos cenários futuros”, alerta, ci-
Vendedor de bananas em rua
tando os planos de adaptação de Santos, inundada depois de fortes
Recife, Rio de Janeiro, São Paulo e Sal- chuvas registradas em 2022 na
vador como exemplares no sentido de cidade de Sylhet, em Bangladesh
incorporar projeções.

LIÇÕES DE BANGLADESH em mesquitas, pelo rádio, televisão e por dessa ordem lida com eles: as defesas
Apesar de reconhecer que o atraso em mensagens de texto e que conta com uma civis brasileiras. Desde que foi criado,
agendas de adaptação é comum em ci- rede de voluntários, que faz a comunica- na década de 1990, o sistema de defesas
dades de todo o mundo, o economista ção de casa em casa. Além disso, as dis- civis do país delega postos de comando
e sociólogo Pedro Roberto Jacobi, da cussões sobre riscos climáticos estão nos a policiais, bombeiros ou agentes da re-
USP, avalia que falta no Brasil a disse- currículos escolares. Apesar dos avanços, serva das Forças Armadas. “As relações
minação de uma cultura de prevenção. Torres enfatiza que o país segue enfren- hierárquicas de mando e obediência, que
“Municípios brasileiros em regiões de tando dificuldades para recompor sua balizam o universo militar, tensionam o

V
vulnerabilidade deveriam investir, por infraestrutura depois de tempestades. repertório cultural local bem como os
exemplo, em sistemas de alerta, como modos de sociabilidade de comunidades
forma de se antecipar à ocorrência de oltada à análise dos efei- atendidas”, diz. Ao investigar a situação
eventos extremos”, defende Jacobi, tam- tos de longo prazo de de abrigos na região serrana do Rio de
bém presidente do Iclei para a América acontecimentos funes- Janeiro depois dos temporais de 2011,
do Sul. Tomando como referência outras tos, assim como seus im- que deixaram mais de 900 pessoas mor-
cidades do Sul Global que lidam com pactos na configuração tas, o sociólogo Victor Marchezini, do
efeitos da crise climática, Jacobi men- social de territórios, a Cemaden, observou como o toque de
ciona o caso de Bangladesh, cujas tem- sociologia do desastre é um campo de recolher e a presença de policiais ar-
pestades periodicamente “fazem metade estudos que se configurou na década de mados geraram insegurança entre os
do país desaparecer embaixo das águas”. 1970 em países da Europa e nos Estados desabrigados, especialmente entre as
FOTO  MAMUN HOSSAIN / AFP VIA GETTY IMAGES  INFOGRÁFICOS  RODRIGO CUNHA / REVISTA PESQUISA FAPESP

Nesse sentido, o sociólogo Pedro Hen- Unidos, ganhando espaço no Brasil a par- mulheres, que tinham medo de sofrer
rique Campello Torres, que desenvolve tir dos anos 1990. Uma das precursoras, a assédio sexual. Marchezini coordenou
pesquisa de pós-doutorado no IEA-USP, economista Norma Valencio, da Univer- pesquisa sobre defesas civis em 1.993
com financiamento da FAPESP, explica sidade Federal de São Carlos (UFSCar), municípios brasileiros, identificando
que a passagem de ciclones e tempesta- destaca que os aportes dessa vertente de a precariedade de recursos financei-
des pelo país, localizado no sul da Ásia, análise são essenciais no contexto atual ros e humanos que caracteriza essas
costumava causar um elevado número de de agravamento da crise climática. “Nos instituições (ver “As causas pouco lem-
óbitos, como no caso do ciclone Bhola, últimos 15 anos, as políticas públicas de bradas das inundações”, disponível no
que, em 1970, resultou em mais de 300 gestão de desastres se pautaram no co- site da revista). “Nesse estudo, consta-
mil mortes. Desde então, a nação tem in- nhecimento produzido por campos como tamos que menos de 10% das defesas
vestido em ações de prevenção e redução o da geologia, geografia física, meteo- civis contavam com núcleos comunitá-
de riscos e desastres e a quantidade de rologia e climatologia, que não colocam rios e que 80% de seus agentes eram do
mortes foi reduzida 100 vezes. em primeiro plano o entendimento, num sexo masculino”, informa o sociólogo.
Nos últimos dois anos, cerca de 7% do largo espectro temporal, da estrutura e Marchezini sustenta que a proximidade
orçamento de Bangladesh foi destinado dinâmica social das localidades suscetí- com comunidades é fundamental para
para combater os efeitos das mudanças veis a riscos ou afetadas”, avalia. a interpretação de dados meteorológi-
climáticas. O país dispõe hoje de 14 mil Segundo Valencio, a sociologia do de- cos, que precisam ser contextualizados
abrigos, que permitem alojar emergen- sastre também tem se dedicado a anali- conforme diferentes realidades. n
cialmente cerca de 2,4 milhões de pes- sar a influência que a racionalidade mi-
soas, 50 estações meteorológicas e um litar exerce sobre a forma como a prin- Os projetos e os artigos científicos consultados para esta
sistema de alertas que dissemina avisos cipal instituição envolvida em eventos reportagem estão listados na versão on-line.

PESQUISA FAPESP 326 | 57


FÍSICA

QUANDO
UM
SÃO DOIS
Para confirmar que um par de
partículas de luz está conectado
por uma ligação quântica
denominada emaranhamento,
basta medir uma delas

Representação
do fenômeno de
interferência causado
pela superposição
de duas ondas de luz

58 | ABRIL DE 2023
Á
rea contraintuitiva e desafiadora da do pela fonte um ou dois, comporta-se como se tivesse
lógica que rege as interações no mundo nascido de ambos os cristais. O fóton alfa proveniente
macroscópico da física clássica, a me- da segunda fonte tem propriedades quânticas idênti-
cânica quântica descreve o comporta- cas e se propaga pelo mesmo trajeto percorrido pelo
mento da matéria e da luz na escala do alfa emitido pelo primeiro cristal. A situação do fóton
átomo e das partículas subatômicas. beta é ligeiramente diferente. Dependendo de onde
Uma de suas propriedades mais estranhas e, ao mesmo foi gerado, se na primeira ou na segunda fonte, cada
tempo, definidoras é o emaranhamento quântico. Nesse partícula beta, a despeito de sua enorme similaridade,
estado, duas (ou mais) partículas se comportam como percorre um caminho de propagação distinto. Esses
se fossem uma entidade única, entrelaçada, ainda que dois trajetos díspares podem ser combinados com um
estejam separadas por qualquer distância. O resultado aparato óptico e, assim, gerar um padrão característi-
de medições feitas em uma partícula está correlacio- co de ondas que pode ser observado em um detector.
nado com o valor obtido para a outra. Esse padrão é o registro da chamada interferência
Um artigo publicado no início de março na revista quântica e, no experimento, decorre da combinação
científica Physical Review Letters indica que é pos- dos possíveis caminhos que podem ser percorridos
sível determinar se um sistema composto por duas pelos fótons beta se gerados na primeira ou na segunda
partículas de luz (fótons) está emaranhado, mesmo fonte. Ele serve para confirmar se há emaranhamento
quando se realiza medições em apenas uma dessas no sistema e qual é o grau dessa correlação, se forte,
partículas. No trabalho, são apresentados um método média ou fraca. A resposta é obtida sem nenhum fóton
experimental e os conceitos teóricos que permitem alfa ter sido detectado. “Usar o padrão de interferên-
realizar esse tipo de aferição. cia quântica para verificar se há emaranhamento no
O estudo foi coordenado pelo austríaco Anton Zeilin- sistema é uma sacada genial”, diz o físico Marcelo
ger, da Universidade de Viena, um dos três ganhadores Martinelli, da Universidade de São Paulo (USP), que
do Prêmio Nobel de Física de 2002 por suas pesquisas não tem participação no estudo.
na área de emaranhamento quântico. A física Gabrie- A abordagem só é possível devido à natureza dual da
la Barreto Lemos, da Universidade Federal do Rio de luz, que é, ao mesmo tempo, uma partícula e uma onda.
Janeiro (UFRJ), que fez um estágio de pós-doutorado No experimento de Lemos e Zeilinger, a combinação de
no grupo de Zeilinger na década passada, é a primeira dois caminhos possíveis para o fóton beta resulta em um
autora do estudo. “Nosso método é útil para ser usado novo padrão de onda. De acordo com as propriedades
em situações em que, por algum motivo, não há um da onda original do fóton beta, essa interação, ou inter-
detector disponível ou eficiente para medir o estado ferência para usar o jargão dos físicos, pode produzir
de uma das partículas emaranhadas”, comenta Lemos. uma onda final maior, amplificada, ou menor, reduzida
O entrelaçamento é um fenômeno tão espetacular ou até mesmo inexistente. Esse fenômeno quântico é
quanto frágil. A conexão misteriosa que mantém duas similar às oscilações criadas por pedras atiradas contra
partículas, como fótons ou elétrons, correlacionadas po- a superfície de um lago, que, ao interagir, podem am-
de se desfazer devido a interações com as mais diversas plificar ou cancelar as ondas iniciais.
variáveis do ambiente, como flutuações de temperatu- “Nesse novo trabalho, usamos uma abordagem si-
ra, ações de outras partículas ou perturbações mecâni- milar à que empregamos em um estudo de 2014 que
cas. Por isso, é importante ter certeza se há realmente gerou a imagem de um objeto sem usar as partículas
emaranhamento em sistemas criados pelo homem no de luz que tinham entrado em contato com ele”, conta
mundo real, fora das condições idealizadas pela teo- Lemos. No estudo de nove anos atrás, também feito
ria. “Os resultados desse novo estudo podem ser úteis, com a equipe de Zeilinger e publicado na revista Na-
por exemplo, para o desenvolvimento de protocolos de ture, os físicos criaram um par de fótons emaranha-
certificação de sistemas de criptografia quântica”, diz o dos, um com comprimento de onda infravermelho e
físico Roberto Serra, da Universidade Federal do ABC outro correspondente à cor vermelha (ver Pesquisa
(UFABC), que não participou do estudo. FAPESP nº 224). Apenas os fótons infravermelhos
O primeiro passo do trabalho experimental condu- interagiram com a silhueta recortada de um gato em
zido pelo físico austríaco e pela brasileira consiste no um pedaço de cartolina. No entanto, foram os fótons
uso de duas fontes idênticas, compostas de um laser e de cor vermelha que foram detectados e produziram
de um cristal, para produzir fótons. Cada fonte gera, a imagem do felino. Por estarem entrelaçados, os fó-
em momentos distintos, um par de fótons, alfa e beta, tons infravermelhos, que nunca foram detectados,
que exibe uma propriedade fundamental da mecânica “transmitiram” as informações sobre a imagem para
quântica conhecida como superposição de estados. seus irmãos de cor vermelha. n Marcos Pivetta
Ou seja, cada partícula se encontra, a um só tempo,
PETROVICH9 / GETTY IMAGES

em dois estados diferentes até que seja realizada uma


medição nela. Quando isso é feito, a partícula assume Artigos científicos
um dos estados possíveis. LEMOS, G. B. et al. One-photon measurement of two-photon entanglement.
Physical Review Letters. v. 130, n. 9. 3 mar. 2023.
No experimento, essa superposição significa que cada LEMOS, G. B. et al. Quantum imaging with undetected photons. Nature.
par de fótons, independentemente de ter sido produzi- v. 512, n. 7515. 28 ago. 2014.

PESQUISA FAPESP 326 | 59


SAÚDE

ACESSO
DESIGUAL
Pessoas LGBT+ tendem
a realizar menos exames
preventivos do que indivíduos
cisgênero heterossexuais

Giselle Soares  |  ILUSTRAÇÃO  Efe Godoy


U
m estudo publicado em janeiro de cardiovasculares, como tabagismo, obesidade e
2023 na revista científica Clinics consumo de álcool, e não têm acesso a cuidados
aponta que pessoas LGBT+ tendem na área da saúde mental”, comenta Rufino.
a realizar menos exames preventivos Ainda em relação à abordagem profissional pa-
do que indivíduos cisgênero heteros- ra pessoas LGBT+, o psicólogo Breno de Oliveira
sexuais. O trabalho analisou dados Ferreira, da Universidade Federal do Amazonas
fornecidos por 6.693 brasileiros com (Ufam), cita diversos obstáculos no acesso e na
50 anos ou mais de todas as macror- assistência ofertada pelos serviços de saúde. Ele
regiões do país, dos quais 1.332 eram coordenou uma pesquisa qualitativa que registrou
LGBT+. As pessoas responderam a um questio- o relato oral de 32 profissionais que atuam em
nário confidencial on-line entre agosto de 2019 Unidades Básicas de Saúde (UBS) de Teresina,
e janeiro de 2020. Pouco mais de dois terços dos no Piauí. De acordo com Ferreira, que publicou
participantes eram mulheres. Enquanto 74% das o estudo em 2021 na revista Interface – Comuni-
mulheres heterossexuais que participaram da cação, Saúde, Educação, os profissionais da saúde
pesquisa relataram ter realizado pelo menos uma demonstraram despreparo para lidar com especi-
mamografia na vida, apenas 40% das lésbicas e ficidades da população LGBT+, apesar de alguns
bissexuais disseram ter feito o exame. A propor- terem longa experiência.
ção de mulheres LGBT+ que se submeteram a “Alguns profissionais baixavam a cabeça, muda-
exames preventivos contra o câncer de colo do vam de assunto ou fingiam que não tinham ouvido
útero, como o Papanicolau, também foi menor do quando um paciente falava de práticas sexuais não
que entre o público não LGBT+, respectivamente normativas. Outros nem anotavam esse tema no
de 39% e 75%. Essa mesma tendência se verificou prontuário”, afirma o psicólogo. “Essas questões,
na realização de exames para detectar o câncer que são tão importantes, acabam sendo negligen-
colorretal: 50% dos participantes LGBT+ e 57% ciadas e o atendimento não é humanizado.”
dos respondentes não pertencentes a esse grupo Com o objetivo de garantir maior equidade no
tinham passado por esse rastreio. Sistema Único de Saúde (SUS), o Ministério da
Para o geriatra Milton Crenitte, coordenador Saúde instituiu, em dezembro de 2011, a Política
do Ambulatório de Sexualidade da Pessoa Ido- Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays,
sa do Hospital das Clínicas da Universidade de Bissexuais, Travestis e Transexuais. Crenitte,
São Paulo (USP), os profissionais dos serviços porém, argumenta que, passados quase 12 anos,
de saúde desconhecem as particularidades da ainda existem muitas dificuldades de implemen-
saúde da população LGBT+. “A população idosa tação dessa iniciativa em vários níveis. Uma das
demanda mais cuidados na área da saúde, como poucas instituições dedicadas à atenção de idosos
exames preventivos. Mas muitas pessoas LGBT+ LGBT+ no país é a organização não governamen-
evitam procurar os serviços de saúde, seja por- tal EternamenteSOU, fundada em 2017, em São
que tiveram alguma experiência prévia negativa Paulo, que oferta serviços e projetos voltados ao
ou por terem medo de discriminação”, explica o atendimento psicossocial desse público.
médico, principal autor do estudo. De acordo com dados da Pesquisa do Orgulho,
Um trabalho publicado em 2018 na revista divulgada em 2022 pelo Instituto Datafolha em
Epidemiologia e Serviços de Saúde aponta que parceria com a empresa Havaianas e a organi-
mulheres que fazem sexo com mulheres eram zação não governamental All Out, mais de 15,5
menos propensas a realizar consulta anual com milhões de pessoas no Brasil pertencem à comu-
um ginecologista. Por meio de um questionário nidade LGBT+, equivalente a 9,3% da população
on-line, 582 mulheres com esse perfil participa- com mais de 16 anos. Desse contingente, 12% têm
ram do estudo, coordenado pela ginecologista 60 anos ou mais. Apesar das conquistas obtidas
Andréa Cronemberger Rufino, da Universidade nos últimos anos, esse grupo tende a sofrer um
Estadual do Piauí (Uespi). Segundo Rufino, as preconceito duplo no atendimento à saúde, em
participantes da pesquisa que se consultavam razão da idade e da sexualidade. n
periodicamente com um médico recebiam me-
nos orientações sobre infecções sexualmente
transmissíveis desses profissionais da saúde do Artigos científicos
que seria o recomendado. CRENITTE, M. R. F. et al. Transforming the invisible into the visible:
A ginecologista destaca que, ao não procurarem Disparities in the access to health in LGBT+ older people. Clinics. v.
os serviços de saúde, as mulheres LGBT+ perdem 78. jan. 2023.
FERREIRA, B. O e BONAN, C. Vários tons de “não”: Relatos de profis-
uma janela de oportunidade para o diagnóstico sionais da Atenção Básica na assistência de lésbicas, gays, bissexuais,
de várias doenças evitáveis, como câncer de colo travestis e transexuais (LGBTT). Interface — Comunicação, Saúde,
do útero, endométrio, de mama e ovários. “Além Educação. n. 25. 2021.
RUFINO, A. C. et al. Práticas sexuais e cuidados em saúde de mulheres
disso, elas deixam de controlar fatores de risco que fazem sexo com mulheres: 2013-2014. Epidemiologia e Serviços
importantes para o aparecimento de doenças de Saúde. v. 27, n. 4. nov. 2018.

PESQUISA FAPESP 326 | 61


ONCOLOGIA

CONTRA
O CÂNCER
CAUSADO
PELO HPV
Candidata a vacina eliminou
tumores de camundongos
e manteve os animais livres
da doença
Ricardo Zorzetto

U
ma vacina que, em vez de las já doentes, e não de evitar a infecção nitrogenadas adenina (A), citosina (C),
impedir a infecção por ví- pelo HPV, como as vacinas preventivas guanina (G) e uracila (U) – e incapaz
rus, seja capaz de tratar disponíveis hoje em vários países. de se multiplicar espontaneamente no
certas formas de câncer Nos experimentos com camundongos, interior das células. Chamada de RNA
provocadas por eles pode a nova candidata a vacina terapêutica, não modificado e não replicante, essa
estar a caminho. Um estu- com uma única dose, livrou os animais versão da molécula costuma causar uma
do publicado em março na revista Scien- de tumores localizados em diferentes inflamação mais intensa, desejável para
ce Translational Medicine apresenta regiões do corpo e até em estágios avan- combater células tumorais, mas poten-
resultados animadores dos testes em çados de desenvolvimento. Os resultados cialmente fatal se for excessiva, porque
animais de um candidato a imunizante são animadores, mas ainda deve levar atinge também o restante do organismo.
para combater tumores causados pela algum tempo até que a formulação se A segunda versão do candidato a imuni-
infecção crônica por HPV, o vírus do torne disponível para uso em humanos. zante empregou uma molécula de RNA
papiloma humano, transmitido por Durante o doutorado orientado pelo modificado e não replicante, a mesma
contato sexual e responsável por formas microbiologista Luís Carlos de Souza estratégia adotada em algumas vacinas
de câncer muito comuns, como o de colo Ferreira, da USP, a bioctecnóloga Jamile contra a Covid-19. Nela, a uracila é subs-
do útero. Ramos da Silva realizou um estágio de tituída por uma molécula sintética, o que
Elaborada em uma parceria entre pes- pesquisa no grupo liderado pelo bioquí- ajuda a reduzir a inflamação. A terceira
quisadores da Universidade de São Paulo mico húngaro Norbert Pardi, na Pensil- formulação era à base de RNA contendo
(USP) e da Universidade da Pensilvânia, vânia, e participou do desenvolvimento um trecho especial que o torna autor-
nos Estados Unidos, a potencial vacina usa de três formulações que usam a molécu- replicante, capaz de produzir cópias de
a mesma tecnologia à base de RNA men- la de mRNA para ensinar o sistema de si próprio no interior das células. Esse
sageiro (mRNA) empregada pela Pfizer/ defesa a reconhecer e atacar as células mecanismo permite aumentar a síntese
BioNTech na produção do imunizante infectadas pelo HPV. de proteínas que ativam as células de
contra a Covid-19 e integra a categoria dos Uma das formulações aplicada aos defesa contra o tumor usando concen-
chamados imunizantes terapêuticos. Eles roedores usava a molécula de RNA co- trações mais baixas do material genético.
são produzidos com o objetivo de estimu- mo é naturalmente encontrada nos seres Em todas as formulações, a molécula
lar o sistema de defesa a eliminar as célu- vivos – formada por sequência das bases de RNA continha a receita para a fabri-

62 | ABRIL DE 2023
Células do colo do útero
sadias (azuis) e com
alterações desencadeadas
pela infecção por HPV (rosa)

cação de duas proteínas: a E7 do HPV, tendo o HPV e as destroem causando em doses muito baixas, se mostraram
que permanece exposta na superfície perfurações em sua membrana. incomparavelmente melhores”, afir-
das células tumorais infectadas pelo ví- Em um teste que simula a recidiva da ma Ferreira.
rus; e a glicoproteína D, que compõe a doença, algo frequente em muitas for- Apesar dos resultados animadores,
camada externa do vírus do herpes. “A mas de câncer, Ramos da Silva voltou a ainda deve levar anos até que uma vaci-
primeira sinaliza para o sistema de de- implantar células tumorais nos roedores na terapêutica esteja disponível para a
fesa as células a serem destruídas, en- 90 dias após a dose do imunizante. Nova- população. Antes disso, são necessários
quanto a segunda intensifica a resposta mente, as formulações baseadas em RNA mais experimentos com animais para
imunológica”, explica Ferreira, um dos modificado e RNA autorreplicante tam- avaliar a eficácia e a segurança das for-
coordenadores da pesquisa. bém evitaram que os animais adoecessem, mulações e conseguir produzi-las se-
Protegidas por uma camada de lipídios, enquanto a imunização com a molécula guindo as boas práticas de fabricação,
que impedem a destruição antes da entra- de RNA não modificado e não replicante exigidas pelas agências sanitárias.
da nas células, as moléculas de RNA con- protegeu apenas metade deles. Já quando O esforço se justifica. “Alcançar uma
tendo as informações das duas proteínas os tumores foram implantados em regiões vacina terapêutica eficaz contra os tumo-
foram testadas em quatro dosagens – cada distintas do corpo, na vagina ou na língua, res provocados pelo HPV será revolucio-
uma delas administrada em uma única simulando onde ocorrem alguns cânceres nário para o tratamento de cânceres nos
aplicação intramuscular – contra tumo- causados por HPV, a formulação de RNA órgãos genitais, em especial o de colo de
res de diferentes tamanhos e localização. não modificado e a de RNA autorreplican- útero em estágio avançado, que evoluiu
Em um dos experimentos realizados te se saíram melhor e levaram à regressão pouco nos últimos 20 anos”, afirma o
no Laboratório de Desenvolvimento de em 100% dos casos. Os dados estão no oncologista Glauco Baiocchi, diretor do
Vacinas do Instituto de Biociências da artigo da Science Translational Medici- Departamento de Ginecologia Oncoló-
USP, Ramos da Silva implantou células ne e foram apresentados por Ramos da gica do A.C.Camargo Cancer Center, em
tumorais sob a pele de camundongos e os Silva em 2 de março no encontro anual São Paulo. Associado em mais de 95% dos
separou em três grupos: um recebeu uma da Associação Norte-americana para o casos à infecção por HPV, esse tipo de
injeção da formulação contendo RNA Avanço da Ciência (AAAS), realizado na tumor costuma ser combatido por meio
não modificado e não replicante, outro cidade de Washington. de cirurgia e radioterapia.

M
a de RNA modificado não replicante e As duas vacinas hoje disponíveis – a
um terceiro a de RNA autorreplicante. esmo contra a doença Gardasil, produzida pela empresa far-
As três versões evitaram o desen- em estágio avançado, macêutica Merck, e a Cervarix, da Gla-
volvimento do câncer, mas as duas úl- os candidatos a imuni- xoSmithKline – são eficientes, mas agem
timas foram mais eficientes. Todos os zante à base de RNA se de forma profilática. Elas estimulam a
animais tratados com o imunizante à saíram bem com ape- produção de anticorpos que aderem ao
base de RNA modificado ou de RNA au- nas uma aplicação. Per- vírus e evitam que penetrem nas células,
torreplicante ficaram totalmente livres mitiram que 60% dos animais se livras- prevenindo, assim, o desenvolvimento de
do tumor e assim permaneceram pelos sem completamente do câncer – e assim cânceres genitais (colo do útero, vagina,
70 dias em que foram acompanhados permanecessem por um longo período. pênis e ânus) ou de cabeça e pescoço (bo-
(um camundongo vive cerca de mil dias). Todas as formulações à base de RNA ca e garganta). “Esses imunizantes pre-
Entre os que receberam o RNA não mo- geraram resultados muito superiores aos vinem quase 100% desses tumores, mas
dificado, a taxa de sobrevivência foi de obtidos com outras duas tecnologias de apenas para quem nunca teve contato
ED UTHMAN / WIKIMEDIA COMMONS

80%. No grupo de controle, que recebeu vacina avaliadas nos experimentos: uma com o HPV”, conta Baiocchi. Por essa
um composto inócuo (placebo), todos em que se usava uma molécula de DNA razão, eles têm de ser administrados em
desenvolveram câncer e tiveram de ser contendo a receita da E7 e da glicopro- crianças e adolescentes, antes do início
sacrificados em um mês. Análises mos- teína D, e outra em que uma molécula da vida sexual. n
traram que essas formulações à base de híbrida purificada das duas proteínas
RNA ativam os linfócitos T do tipo CD8, era inoculada diretamente nos animais. Os projetos e os artigos científicos consultados para esta
que identificam as células tumorais con- “As formulações à base de RNA, mesmo reportagem estão listados na versão on-line.

PESQUISA FAPESP 326 | 63


GENÉTICA

DEFESA NATURAL
CONTRA CHAGAS
Alteração genética capaz de proteger
Células cardíacas
pessoas da doença se espalhou (vermelhas) com o gene
PPP3CA menos expresso
há cerca de 7,5 mil anos entre povos são infectadas por menos
protozoários Trypanosoma
nativos da Amazônia cruzi (pontos verdes)

Ricardo Zorzetto
1

A
maioria dos indivíduos Ara- compreendida por completo: o fato de ta Science Advances, sugerem ainda que
ra, Gavião, Karitiana, Suruí a doença de Chagas, que afeta 6 milhões essa mutação teria se tornado comum
e de outras oito etnias da de pessoas na América Latina, um terço entre os grupos originários da Amazô-
Amazônia trazem em seus delas no Brasil, ser menos comum entre nia há cerca de 7,5 mil anos, quase três
corpos uma característica os habitantes da Amazônia. milênios depois de os primeiros seres
genética particular que A equipe da geneticista Tábita Hü- humanos chegarem à região.
aparentemente os prote- nemeier, da Universidade de São Pau- “Como a floresta é um ambiente hostil,
ge da doença de Chagas. lo (USP), identificou a alta ocorrência com elevada concentração de patógenos,
Ao menos oito em cada 10 dessa variante – uma alteração pontual decidimos procurar no genoma dos po-
pessoas dessas populações são portado- na vizinhança do gene PPP3CA, que o vos originários da Amazônia sinais de
ras de uma sutil alteração no genoma que tornaria menos expresso – nos povos da que seus antepassados distantes pudes-
tem o potencial de reduzir a capacidade Amazônia ao analisar cerca de 600 mil sem ter passado por algum tipo de pres-
de o protozoário Trypanosoma cruzi – o trechos do genoma de 118 indivíduos de são evolutiva para se adaptar à região”,
parasita unicelular causador da enfermi- 17 etnias nativas do Brasil e comparar conta Hünemeier. “Esperávamos encon-
dade – invadir as células do organismo e com o material genético de populações trar com frequência mais elevada genes
provocar a doença. Encontrada em uma originárias da América do Norte, Ásia, ou alterações genéticas que oferecessem
proporção bem menor dos habitantes Europa e África. Ela é encontrada em ao proteção contra vírus ou bactérias, mas
de outras regiões do mundo, essa va- menos 80% das pessoas que integram as não contra protozoários.”
riante, como chamam os biólogos, teria etnias nativas do Brasil, mas em apenas Analisando o material genético das di-
contribuído para a adaptação humana 10% dos europeus e em 25% dos asiáti- ferentes etnias brasileiras, a bióloga Kelly
ao ambiente inóspito da maior floresta cos. Na África, onde são comuns outras Nunes verificou que a mutação próxima
tropical contínua do planeta. Sua pre- enfermidades causadas por protozoá- ao PPP3CA apresentava sinais de ter so-
sença há milhares de anos nessas popu- rios, como a malária e a doença do sono, frido seleção natural e ter se tornado cada
lações também oferece uma explicação a frequência é de 59%. Os resultados do vez mais comum entre os habitantes da
adicional para uma questão ainda não trabalho, publicado em março na revis- região por favorecer a sobrevivência na-

64 | ABRIL DE 2023
quele ambiente. O mais importante des- cardíacas humanas (cardiomiócitos) e as amazônicas e confirmar se ele afeta a
ses sinais é o fato de, nas diferentes etnias cultivou com exemplares do parasita. As atividade do gene e a capacidade de in-
originárias da Amazônia, ela estar sempre células com menor quantidade da pro- fecção do parasita”, afirma Pereira.
acompanhada de um mesmo conjunto de teína apresentaram uma redução de 25% “A ideia é interessante, mas a evidên-
genes – na linguagem dos geneticistas ela no número de protozoários, em compara- cia de que essa variação gênica esteja
e os genes vizinhos formam um haplóti- ção com os cardiomiócitos com os níveis associada a uma infectividade menor
po. “Caso esse haplótipo não tivesse pas- normais. Embora os testes não tenham ainda é preliminar. Seria interessante
sado por seleção, seria esperado que os sido feitos com a variante comum nos in- comparar a capacidade de infecção dos
genes que o integram variassem de forma dígenas da Amazônia, os pesquisadores parasitas em células de indivíduos com e
aleatória de uma população para outra”, imaginam que o observado simule o que sem a alteração. Além disso, existem vá-
explica Nunes, que faz pós-doutorado no ocorre com aqueles indivíduos. rias linhagens do protozoário e espécies
laboratório de Hünemeier. de barbeiro e nem todas se comportam
FOTOS 1 GABRIELA VENTURINI / UNIVERSIDADE HARVARD  2 CHRISTOPHE SIMON / GETTY IMAGES

Trypanosoma cruzi é transmitido pelas INFLUÊNCIA NA FASE AGUDA da mesma maneira nos diferentes am-
fezes de insetos conhecidos como bar- “Esse experimento ajudou a validar a bientes”, ressalta o parasitologista Sergio
beiros. O protozoário penetra na pele hipótese de que esse gene desempenhe Schenkman, da Universidade Federal
quando a pessoa se coça, invade as cé- um papel na fase aguda da doença”, ex- de São Paulo (Unifesp), especialista em
lulas adjacentes e, por meio do sangue, plica Pereira, que também é pesquisador Trypanosoma cruzi.
espalha-se pelo corpo. No interior das do Instituto do Coração (InCor) da USP. “Esse estudo é relevante por mostrar
células, ele se multiplica rapidamente e, Essa fase ocorre nas primeiras semanas uma interação antiga entre o parasita e o
em dias, gera uma quantidade tão gran- após a infecção e costuma ser confun- hospedeiro humano em uma região que
de de cópias que as faz explodir e liberar dida com uma gripe. Quando a pessoa é muitos consideravam livre de Chagas,
mais protozoários no organismo. tratada nessa etapa inicial, o parasita é mas que é rica em insetos vetores e em
No laboratório do cardiologista brasi- eliminado na maior parte das vezes. Em animais silvestres que funcionam como
leiro Alexandre Pereira, na Universida- parte dos casos, porém, o protozoário se reservatório do protozoário”, conta a
de Harvard, Estados Unidos, a bióloga torna quiescente e pode ser reativado bióloga Alena Mayo Iñiguez, do Labo-
Gabriela Venturini realizou um experi- se a imunidade diminui. Ao longo de ratório de Parasitologia Integrativa e Pa-
mento para ajudar a desvendar a função décadas, a forma crônica da infecção leoparasitologia da Fundação Oswaldo
do PPP3CA na doença de Chagas. Ela pode lesar órgãos como o coração. “A Cruz (Fiocruz), no Rio de Janeiro. “O
conseguiu reduzir a quantidade da pro- intenção é repetir os experimentos com sinal genético encontrado pelo grupo
teína codificada por esse gene em células o haplótipo encontrado nas populações da USP é coerente com nossos achados,
que indicaram a infecção por Trypaso-
2 noma cruzi muito antes de o inseto que
transmite o parasita ter se adaptado a
viver em moradias humanas”, conta a
Mulher da etnia Gavião, pesquisadora, coautora de um estudo
um dos povos nativos da que identificou a infecção pelo causador
Amazônia portadores de
variante gênica que
da doença de Chagas em restos humanos
pode reduzir a infecção com pelo menos 4.500 anos de idade,
encontrados em Minas Gerais.
Apesar de os resultados sugerirem
uma explicação plausível para o fato de
hoje haver menos Chagas na Amazônia
do que em outras regiões do país, os au-
tores do estudo sabem que a variante ge-
nética não esclarece tudo. “As áreas em
que a doença é endêmica em geral estão
na interface entre o ambiente urbani-
zado e o não urbanizado e isso é menos
comum na Amazônia”, lembra Pereira.
Existem ainda outras diferenças. Embo-
ra o parasita exista lá e muitos animais
sirvam de reservatório, as variedades
de insetos transmissores são diferentes.
“Não se conhece muito bem como ocor-
re a transmissão na região amazônica”,
afirma Schenkman. n

Os projetos e o artigos científicos consultados para esta


reportagem estão listados na versão on-line.

PESQUISA FAPESP 326 | 65


CIÊNCIA DA COMPUTAÇÃO

UM DATA
CENTER
NA PALMA
DA MÃO

Módulo com componentes


da reação de síntese de
DNA em laboratório do IPT,
em São Paulo

66 | ABRIL DE 2023
Armazenamento de dados digitais em DNA sintético
poderá miniaturizar mídias e garantir a integridade das
informações por muito mais tempo

Domingos Zaparolli

A
explosão de dados gerados no mun- (IPT) de São Paulo. Verona lidera um projeto de
do, por diferentes equipamentos e pesquisa na área no Brasil.
nos mais diferentes contextos, tem Além da densidade, o armazenamento em DNA
levado cientistas a pesquisar o uso reúne outros atributos importantes. “É um siste-
de versões sintéticas do DNA pa- ma ambientalmente sustentável”, destaca o enge-
ra guardar informações digitais. O nheiro eletricista paulista Luis Ceze, professor da
DNA, ou ácido desoxirribonucleico, Escola Paul G. Allen de Ciência da Computação
é o sistema de armazenamento de e Engenharia da Universidade de Washington,
dados da maioria dos seres vivos. É nos Estados Unidos. Os data centers são inten-
uma molécula presente em todas as células e que sivos em consumo de energia para a manutenção
carrega as informações genéticas de um organismo. dos equipamentos e climatização adequada das
Graças ao estudo de materiais genéticos como o salas onde são mantidos os arquivos em discos
DNA preservado na natureza, temos acesso às in- rígidos (HD) e as fitas magnéticas. O DNA, no
formações biológicas dos neandertais, hominídeos entanto, pode ser mantido em temperatura am-
extintos há mais de 30 mil anos, e de mamutes, que biente. Além disso, as mídias magnéticas atuais
viveram mais de 1 milhão de anos atrás. são produzidas com insumos provenientes de
O potencial dos benefícios dessa nova tecnolo- mineração de terras-raras e derivados de pe-
gia é significativo. Segundo a DNA Data Storage tróleo e demandam substituição periódica, em
Alliance, associação que reúne empresas globais no máximo 30 anos. Os pesquisadores estimam
de tecnologia com o objetivo de impulsionar o que os dados digitais arquivados em DNA serão
ecossistema de pesquisa e inovação da técnica, legíveis por milhares de anos.
a capacidade de armazenamento de dados em A evolução dos processos de arquivamento de
DNA é 115 mil vezes superior à das mídias mag- dados digitais é necessária diante da gigantesca
néticas empregadas atualmente nos centros de quantidade de informações digitalizadas geradas
processamento de dados, os chamados data cen- com a expansão do uso da tecnologia da informa-
ters. No mesmo espaço físico de um cartucho de ção (TI), ou seja, o uso de computadores e smart-
fita magnética LTO-9, capaz de armazenar 18 te- phones para criar, processar e trocar todo tipo de
rabytes (TB), ou seja, 18 trilhões de bytes, é pos- dado. Segundo relatório da consultoria norte-ame-
sível guardar em DNA cerca de 2 milhões de TB.
“O data center do Facebook no Oregon, nos
FOTOS  LÉO RAMOS CHAVES / REVISTA PESQUISA FAPESP

Estados Unidos, ocupa uma área estimada de


dezenas de milhares de metros quadrados [m²],
o equivalente a um grande shopping center, para
armazenar uma quantidade de dados da ordem
de 1 milhão de TB. O mesmo conteúdo poderia Protótipo de
ser armazenado em apenas 5 gramas de DNA, em microchips
um dispositivo que cabe na palma de uma mão”, sintetizadores de
moléculas de DNA
compara o engenheiro eletricista Bruno Marina-
desenvolvido
ro Verona, gerente do Laboratório de Microma- pelo consórcio
nufatura do Instituto de Pesquisas Tecnológicas IPT-Lenovo

PESQUISA FAPESP 326 | 67


ricana IDC, em 2010 foram gerados no mundo 3 mantida para demandas diversas, como segurança
zettabytes (3 seguido por 21 zeros) de dados novos pública e manutenção automotiva.
e backups, as chamadas cópias de segurança. Em Hoje esses dados são arquivados utilizando
2020, esse total saltou para 64 zettabytes (ZB) e a arquiteturas remotas de armazenamento basea-

C
projeção é alcançar 180 ZB em dois anos. das em nuvem. “Os data centers consomem cerca
de 1% da energia elétrica produzida no mundo.
omo registra a DNA Data Storage A indústria de TI prevê que o consumo passará
Alliance, esse é apenas o começo do para 30% da energia global em poucos anos”,
que vem sendo chamado de era da alerta Hildebrando Lima, diretor de Pesquisa e
informação, na qual a inteligência ar- Desenvolvimento da Lenovo no Brasil. “É preciso
tificial e a internet das coisas estarão criar uma alternativa que reduza esse impacto, e
cada vez mais presentes em todas as a técnica de armazenamento em DNA é a aposta
atividades do dia a dia das pessoas, mais promissora.”
da saúde à educação, do comércio à Cientistas envolvidos no desenvolvimento da
condução de um veículo ou à opera- metodologia de armazenamento em DNA reco-
ção de uma fábrica. De acordo com a associação, nhecem que a solução vai demorar para estar
apenas um carro autônomo gera 15 TB de dados disponível ao público. As projeções apontam
brutos por período de oito horas. Nem todos esses para a próxima década. Ainda há incertezas em
dados são arquivados, mas parcela significativa é relação aos processos que serão utilizados. “O

AS SEIS ETAPAS DO PROCESSO


Bits são convertidos em bases nitrogenadas, que são sintetizadas, armazenadas
e depois sequenciadas para leitura das informações

1110010000011011 1110010000011011
1 CODIFICAÇÃO 101100011100100 101100011100100 6 DECODIFICAÇÃO
O conceito básico de codificação 000110111011000 000110111011000 A decodificação é o processo
(conversão de bits em bases) 1110010000011011 1110010000011011 de transformação de bases em
para armazenamento de dados de 101100011100100 Arquivos digitais 101100011100100 bits. Envolve o mapeamento
DNA é a transformação dos 1 e 0 Códigos binários
das bases em uma sequência
dos dados digitais originais em de DNA e a conversão delas
sequências de bases (ACGT) que de volta aos dados digitais
compreendem as moléculas de DNA
GCTAATCGCGATGC
TAATCGCGATGCTA Bases nitrogenadas:

2 SÍNTESE ATCGCGATGCTAAT
adenina, citosina,
guanina e tanina 5 SEQUENCIAMENTO
Aqui ocorre a fabricação (ou escrita) CGCGATGCTAATCG GCTAATCGCGATGC O sequenciamento (ou leitura)
do DNA. Com base em uma série CGATGCTAATCGCG TAATCGCGATGCTA é o processo de determinação
de etapas químicas, as moléculas de ATCGCGATGCTAAT da identidade e da ordem
DNA, tal qual determinada pela das bases (ACGT) em um
DNA sintético
CGCGATGCTAATCG
etapa de codificação, são montadas segmento de DNA. Vários
CGATGCTAATCGCG
de várias maneiras que efetuam a métodos de sequenciamento
conversão bits to base estão em uso hoje

3
Chip de DNA
ARMAZENAMENTO
FÍSICO DO DNA 4 RECUPERAÇÃO
Após a síntese, o DNA é DE BIBLIOTECAS
encapsulado para preservação a Uma vez que os dados sejam
longo prazo e depositado em uma requisitados pelo usuário, o
biblioteca onde conjuntos (ou pools) DNA codificado e previamente
de DNA são armazenados. Existem armazenado é recuperado
várias estratégias disponíveis de sua biblioteca e preparado
para o encapsulamento de DNA para sequenciamento

Biblioteca de DNA FONTE  DNA DATA STORAGE ALLIANCE

68 | ABRIL DE 2023
de interesse. Um dos designs possíveis é que ele
contenha microcavidades, de alguns nanômetros
de profundidade, em que as moléculas de DNA
seriam sintetizadas. A primeira etapa da fabri-
cação do arquivo é nomeada pelos cientistas de
bits to base. Consiste em converter por meio de
programas computacionais os bits – o sistema bi-
nário 1 e 0 usado na computação para representar
caracteres, números e imagens – nas quatro bases
nitrogenadas que compõem a molécula de DNA:
adenina (A), timina (T), citosina (C) e guanina
(G) (ver Pesquisa FAPESP no 235). Na molécula,
as bases nitrogenadas têm a função de formar
os dois filamentos em espiral, conhecidos como
dupla hélice, que constituem o DNA.
Para exemplificar: os bits 00 podem ser co-
dificados como base A; os bits 01 como base T;
os bits 10 como C; e os bits 11 como G. Quando
se quer acessar os dados e ler os arquivos, é só
fazer a decodificação, ou seja, converter a base
nitrogenada em bits. No jargão do setor, fazer
Preparo de reagentes que podemos afirmar é que o armazenamento de o base to bits. As informações armazenadas em
para injeção em dados digitais em DNA é viável”, afirma a enge- DNA poderão ser acessadas via internet ou lo-
equipamento de
síntese de DNA no
nheira eletricista brasileira Karin Strauss, geren- calmente. A conversão de bases para bits é feita
Laboratório de te sênior de pesquisa da Microsoft Research, em por um processo computadorizado e rápido, em-
Micromanufatura do IPT Redmond, nos Estados Unidos. “Já produzimos bora ainda mais lento do que o tempo de leitura
em laboratório e, ao que tudo indica, parece ser de arquivos magnéticos tradicionais.
possível realizar o processo em escala comercial O principal desafio a ser solucionado pelos
de forma econômica, mas ainda temos muito o pesquisadores é melhorar os métodos de síntese
que avançar para chegar a esse objetivo.” Uma química empregados para escrever os códigos em
das fundadoras da DNA Data Storage Alliance, bases nitrogenadas e construir simultaneamente

E
a Microsoft Research é o laboratório de pesquisa as moléculas sintéticas de DNA.
da multinacional de TI.
A produção de DNA sintético e o armazena- xistem dois processos estabelecidos
mento de dados nele já são realizados pela indús- pela bioengenharia. O mais antigo é
tria de biotecnologia para uso na área da saúde, a síntese química de fosforamidita,
mas a escala produtiva é baixa e a velocidade criada nos anos 1980 pelo bioquími-
FOTO  LÉO RAMOS CHAVES / REVISTA PESQUISA FAPESP  INFOGRÁFICO  RODRIGO CUNHA / REVISTA PESQUISA FAPESP

do processo é lenta diante das necessidades da co norte-americano Marvin H. Caru-


indústria de TI. “Hoje é possível escrever deze- thers. É o processo predominante para
nas de megabytes [MB] por segundo em um HD aplicações em atividades biomédicas.
magnético convencional. Para guardar um úni- O outro caminho possível é a síntese
co MB em DNA levamos um dia de trabalho”, enzimática, que vem sendo aperfeiçoa-
compara Verona, do IPT. “Todas as pesquisas da por vários grupos de pesquisa nos últimos 15
têm o mesmo objetivo: estabelecer as melhores anos, mas ainda não chegou ao estágio comercial.
técnicas de armazenamento de dados em DNA A síntese enzimática utiliza moléculas orgâ-
e aprimorá-las”, complementa Ceze, da Univer- nicas proteicas que trabalham como catalisa-
sidade de Washington. doras das reações químicas, ou seja, aceleram a
O processo para armazenar dados em DNA não velocidade dos processos. Uma vantagem des-
envolve manipulação genética ou de células de se processo é o uso de reagentes aquosos, não
organismos vivos. O DNA é fabricado por meio tóxicos. Dessa forma, gera menor impacto am-
de síntese química e cada molécula é construída biental quando comparada com a síntese por
na medida exata em que os arquivos de dados fosforamidita, que utiliza reagentes fósseis. Para
são gerados. Isso significa que para guardar um Ceze, a síntese enzimática, tecnologia ainda no
1 TB de informações será preciso sintetizar um nascedouro, tem maior potencial de evolução e
conjunto de moléculas com essa capacidade de deverá prevalecer.
armazenamento (ver infográfico ao lado). A Microsoft pesquisa tecnologias de armaze-
Esses novos dispositivos serão constituídos de namento em DNA desde 2015 em parceria com
estruturas capazes de sintetizar e sequenciar as o Laboratório de Sistemas de Informação Mo-
fitas de DNA, que contêm as informações digitais lecular da Universidade de Washington. Entre

PESQUISA FAPESP 326 | 69


os vários estudos conjuntos que geraram artigos Lenovo no desenvolvimento de tecnologias de
científicos, Strauss destaca dois. Em 2019, um armazenamento em DNA.
paper publicado na Nature Scientific Reports De acordo com Lima, da Lenovo, a parceria
indicou a viabilidade de automação da síntese produziu quatro depósitos de patentes inter-
química, eliminando o trabalhoso processo de nacionais, sendo uma resultante do trabalho da
pipetagem (a transferência de líquidos) manual equipe de codificação e decodificação dos dados,
de DNA, como é realizado ainda hoje. “A auto- duas em sintetização química e uma em sinteti-
mação irá gerar escala e reduzir os custos do zação enzimática. “Temos outras seis pesquisas
processo de armazenamento em DNA”, projeta no forno e em breve chegarão ao estágio de pe-

E
a pesquisadora. dido de patente”, revela o executivo.
Verona pondera que a tecnologia de arquiva-
m 2021, outro artigo conjunto das duas mento de dados em DNA deverá ter um avanço
instituições publicado na Science Ad- gradual e, em um primeiro momento, não deverá
vances apresentou um sistema de gra- estar disponível em computadores e smartphones.
vação de DNA em nanoescala que usa Inicialmente, as soluções serão direcionadas ao
um método de controle do ambiente chamado armazenamento frio, composto de da-
molecular capaz de permitir a geração dos que os usuários não acionam rotineiramente
ao mesmo tempo (em paralelo) de um em seu dia a dia — uma espécie de arquivo morto
grande número de sequências de DNA digital —, como históricos de todos os tipos, álbuns
exclusivas. “O resultado apresentado de fotos e vídeos. Nos data centers atuais, esses
nesse trabalho foi a miniaturização da unidade de arquivos são armazenados em fitas magnéticas.
escrita de uma sequência e do processo químico Os dados acessados frequentemente, os quen-
que a controla, de forma que caibam mais dessas tes, hoje são arquivados em HD. “Ainda não há
unidades no mesmo chip”, destaca Strauss. As uma projeção confiável de quando o arquivamen-
fitas hoje não superam 300 bases nitrogenadas, to em DNA será capaz de se apresentar como al-
o que representa registrar menos de 30 bytes (o ternativa ao armazenamento de dados quentes”,
conjunto de oito bits) por sequência. diz Verona. Para Ceze, vários sistemas de arma-
No Brasil, o único grupo de pesquisa que in- zenamento de dados deverão conviver simul-
tegra a DNA Data Storage Alliance resulta de taneamente no futuro, possibilitando o melhor
uma parceria entre o IPT e a fabricante chine- aproveitamento de suas respectivas caracterís-
sa de dispositivos eletrônicos Lenovo. Batizado ticas para cada finalidade. n
de Prometheus, o projeto teve início em 2021 e
é coordenado por Verona. Fazem parte da equi-
pe multidisciplinar 40 pesquisadores, sendo 13 Artigos científicos
mestres e 21 doutores entre biólogos, engenhei- TAKAHASHI, C. N. et al. Demonstration of end-to-end automation of
DNA data storage. Nature Scientific Reports. 21 mar. 2019.
ros da computação, moleculares, químicos e de NGUYEN, B. H. et al. Scaling DNA data storage with nanoscale elec-
materiais. O IPT é o único parceiro global da trode wells. Science Advances. 24 nov. 2021.

MEG ROUSSOS / BLOOMBERG VIA GETTY IMAGES

Data center do
Facebook em Prineville,
no Oregon,
Estados Unidos

70 | ABRIL DE 2023
MOBILIDADE

Vaga e estação de
recarga para carro
elétrico em shopping
da capital paulista

CARRO ELÉTRICO
E
nquanto parte do mundo acelera em
direção à tecnologia do carro elétrico,
o Brasil integra o grupo de países que
vê um crescimento apenas modesto

EM BAIXA
na adoção dos automóveis movidos
a eletricidade. É verdade que nunca
se vendeu tanto esse tipo de veículo
no país. O ano passado terminou com

VELOCIDADE
49.245 emplacamentos, um recorde.
Mas eles representam uma parcela pequena ante
os quase 2 milhões de carros vendidos em terri-
tório brasileiro. A sua participação no mercado
LÉO RAMOS CHAVES / REVISTA PESQUISA FAPESP

subiu de 1,8% em 2021 para 2,5% em 2022 e agora


Ausência de política federal há uma frota circulante de 126.504 unidades,
segundo a Associação Brasileira do Veículo Elé-
específica para a eletrificação trico (ABVE). Entre esses, os 100% elétricos – os
chamados elétricos puros ou a bateria (VEB) –
de veículos leves limita ganharam espaço e registraram um aumento de
o crescimento do setor no país quase 200% no número de emplacamentos em
2022, com 8.458 novas unidades, na comparação
Frances Jones com 2021. O crescimento é expressivo, mas está

PESQUISA FAPESP 326 | 71


“Temos, sim, muito o que celebrar, pelo fato de
o mercado ter crescido. Mas, quando olhamos os
veículos 100% elétricos, aqueles que dependem
exclusivamente de recarga externa, ainda esta-
mos num nível muito baixo em relação ao res-
tante do mundo”, observa Adalberto Maluf, que
deixou no fim de março a presidência da ABVE
para assumir o cargo de secretário nacional de
Meio Ambiente Urbano e Qualidade Ambiental
do Ministério do Meio Ambiente.
No Brasil, segundo o especialista, os elétricos
puros representaram apenas 0,4% das vendas
totais de veículos leves no mercado doméstico
em 2022, enquanto Alemanha e China registra-
ram 20% e França e Reino Unido 18%. “Estamos
nos afastando um pouco em relação aos grandes

N
mercados mundiais”, diz Maluf.

o território brasileiro, os mais vendi-


dos são os veículos elétricos híbridos
(VEH), equipados com um motor
a combustão interna e um ou mais
motores elétricos. Esses carros são
abastecidos em postos de combus-
tíveis, não havendo a necessidade
de recarregar a bateria em um ele-
troposto. Nesse caso, as baterias são
alimentadas pelo motor a combustão ou pela
energia das frenagens, em geral desperdiçadas
nos carros convencionais. Em 2022, os VEH flex
tinham uma participação de 48% do mercado
brasileiro de elétricos.
Especialistas preocupam-se com o desem-
penho tímido da venda de elétricos no país e
veem certa inércia do mercado nacional diante
da transição tecnológica que ocorre no mun-
do mais industrializado. Em artigo publicado
na Revista Brasileira de Inovação, o sociólogo
Congestionamento longe do ritmo de países como China, Alemanha, Rodrigo Foresta Wolffenbüttel, integrante do
em São Paulo: Noruega e Estados Unidos. Grupo de Estudos da Inovação do Programa de

FOTO  EDUARDO ANIZELLI / FOLHAPRESS  INFOGRÁFICO  RODRIGO CUNHA / REVISTA PESQUISA FAPESP


a transição para a
mobilidade elétrica
Segundo o relatório “Global Electric Vehicle Pós-graduação em Sociologia da Universidade
não resolve Outlook 2022”, publicação anual da Agência In- Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), aponta
esse problema ternacional de Energia (AIE) que apresenta a si- para a inexistência de uma política robusta que
tuação da mobilidade elétrica no globo, a venda apoie a tecnologia do motor elétrico, assim como
mundial de veículos elétricos mais do que do- uma infraestrutura de recarga com eletropostos.
brou entre 2020 e 2021, alcançando 6,6 milhões Ele também percebe certa ambiguidade das
de unidades. Metade dos negócios ocorreu na montadoras estabelecidas no país, que nem sem-
China, onde 3,3 milhões de automóveis foram co- pre se mostram interessadas em fazer a transição
mercializados, mais que os 3 milhões de veículos rápida para a eletrificação dos automóveis. “Elas
elétricos vendidos no mundo inteiro em 2020. estão em uma posição ambígua porque, ao mes-
No país asiático, os elétricos representaram mo tempo que as sedes em outros países fazem
16% das vendas internas em 2021. Houve au- a transição para a eletrificação, aqui, no contexto
mentos expressivos também na Europa, onde latino-americano, não veem um esforço político
conquistaram 17% do mercado. A dianteira no que favoreça a mudança, pois não têm tantos in-
continente é da Noruega e da Islândia, onde esses centivos para isso”, afirma Wolffenbüttel.
veículos representaram, respectivamente, 86% Tanto Maluf quanto a pesquisadora Flávia Con-
e 72% dos emplacamentos no ano. Os Estados soni, do Programa de Pós-graduação em Política
Unidos seguem bem atrás da China e dos líderes Científica e Tecnológica do Instituto de Geociên-
europeus, com 4,5% das vendas. cias da Universidade Estadual de Campinas (IG-

72 | ABRIL DE 2023
-Unicamp), afirmam que recentemente o Brasil
esteve perto de ter uma política específica para A ASCENSÃO DA MOBILIDADE ELÉTRICA
os elétricos, mas de última hora não foi aprovada.
“Em 2018, ainda no governo Temer, participei das Frota e vendas anuais aceleraram no mundo
discussões sobre a nova política para o setor, no na última década
âmbito do programa Rota 2030, que substituiu o
Inovar-Auto, e liderei um trabalho para desenhar Em milhões

um plano nacional de mobilidade elétrica para o Frota global Vendas anuais


Brasil”, conta Consoni. 20

Naquela época, diz a especialista, apenas Chile e


Costa Rica tinham um plano como esse na América 16,5

Latina. “Com os diversos atores do setor e com o 15


MDIC [Ministério da Indústria, Comércio Exterior
e Serviços], que ainda existia na época, elaboramos
um programa para o país. Trabalhamos entre o
Natal e o Ano-novo, pois ia mudar o governo e o 10

Bolsonaro assumiria a Presidência. Mas o MDIC


6,6
decidiu, por algum motivo não revelado, não lançar 5,1
o plano”, recorda-se a pesquisadora. 5

Consoni, que também coordena o Laboratório 2,1


de Estudos do Veículo Elétrico (Leve), da Uni- 0,3
1,2

camp, e integra o Centro Paulista de Estudos de 0


0,12 0,55

Transição Energética, apoiado pela FAPESP, res- 2012 2015 2018 2021
salta que hoje outros países da região, como Co-
lômbia, Panamá e Equador, têm planos com dire-
Modelos movidos a
cionamentos claros rumo à eletrificação veicular.
eletricidade representaram
“Além disso, tanto a Argentina como o México,
9% do total de veículos
que possuem, como o Brasil, uma indústria auto-
comercializados
motiva mais forte, já deram passos significativos
em 2021
nessa questão e estão em vias de lançar um pro-
grama relativo à eletrificação. No Brasil, ainda
não sabemos como vai ficar.”
Entre as decisões a serem tomadas, o país pre-
cisa escolher se fará a descarbonização do setor
de transporte por meio de eletrificação completa, BRASIL EMPLACOU QUASE 50 MIL CARROS ELÉTRICOS
optando por veículos puramente elétricos, como NO ANO PASSADO
a grande maioria dos países que estão adotando 49.245
essa tecnologia, ou se decidirá pela eletrificação
50 mil

parcial, via hibridização, com ou sem conexão 40 mil

A
com a rede elétrica. 34.990

30 mil
eletrificação completa, de acordo
com os autores do 2º Anuário bra- 20 mil

sileiro da mobilidade elétrica, publi-


cado pela Plataforma Nacional de 10 mil

Mobilidade Elétrica, implica uma 117 846


3.970

transformação total na cadeia de 0


2012 2015 2018 2021 2022
negócios que extrapolaria o setor
automotivo. Exigiria, por exemplo,
investimentos para a fabricação de CHINA RESPONDEU POR METADE DAS VENDAS EM 2021
baterias, exploração de recursos minerais e requa- Participação no total
lificação de profissionais e imporia uma ameaça à de veículos vendidos

indústria tradicional. Já a mudança parcial, pela


1º China 3,3 milhões 16%
hibridização, aproveitaria a estrutura de produção
e de negócios atual. Esse modelo ganha força com 2º Europa 2,3 milhões 17%

a experiência do país em biocombustíveis, em 3º Estados Unidos 630 mil 4,1%


especial o etanol, aponta a publicação.
Brasil 34,9 mil 1,8%
A inércia em se posicionar sobre a rota de eletri-
ficação traz mais consequências negativas do que FONTES  GLOBAL ELECTRIC VEHICLE OUTLOOK 2013, 2016, 2019 E 2022, ABVE, RENAVAM, ANFAVEA E ABEIFA

PESQUISA FAPESP 326 | 73


qualquer escolha, alertam os especialistas. Entre No que diz respeito ao desenvolvimento da
as possíveis implicações está a perda de mercados tecnologia e de produção de baterias, a China
de exportação de veículos elétricos, uma vez que ocupa a liderança mundial. Os Estados Unidos,
boa parte dos países avança para zerar ou baixar principalmente no atual governo de Joe Biden,
consideravelmente as emissões de gases de efeito têm feito grandes investimentos para recuperar
estufa (GEE) no setor de transportes. terreno. “Há toda uma infraestrutura que foi se
Maluf diz que o Brasil já vem perdendo seus desenvolvendo em outros países. O Brasil só ago-
mercados de exportação de veículos na América ra parece que está começando a acordar”, afirma
Latina. “Há pelo menos cinco anos mais de um a química Maria de Fátima Rosolem, do centro
terço dos ônibus vendidos no mundo é elétrico. de inovação CPQD, em Campinas, que pesquisa
O Brasil já foi o maior fabricante de ônibus e hoje baterias avançadas para veículos elétricos e sis-
está na terceira ou na quarta posição. Em 2022 temas de armazenamento de energia estacioná-
perdemos todas as licitações da América Latina ria. “Toda tecnologia emergente tem de ter um
porque poucas montadoras brasileiras produzem programa de estímulo, um governo apostando
ônibus elétricos”, afirma. “Nos preocupa ficar tão nela. A China tinha esse gap lá atrás, incentivou
desconectados das grandes transformações do a montagem de fábricas e investiu em pesquisas.

P
resto do mundo.” Hoje domina a área” (ver box ao lado).
Segundo Rosolem, as pesquisas nas novas gera-
ara Consoni, da Unicamp, o grande ções de baterias buscam avanços em quatro pontos:
gargalo tecnológico da eletrificação em maior autonomia e vida útil, redução de custo e se-
todo o mundo gira em torno da bateria. gurança. “A questão das recargas vem se resolven-
“Ela ainda tem um custo muito alto e do. Atualmente é possível recarregar uma bateria
há problemas ligados à mineração que em 30, 15 ou até 10 minutos.” Uma das frentes de
precisam ser mais bem trabalhados”, pesquisa busca desenvolver baterias com um ele-
afirma. Um componente-chave desses trólito sólido, em vez de líquido, como ocorre hoje,
dispositivos é o lítio, também chamado oferecendo maior segurança a esse tipo de dispo-
de ouro branco. Como todo proces- sitivo. Também estão avançados os estudos e as
so de mineração, o do lítio também pode causar aplicações relativos ao segundo uso (second life) dos
impactos ambientais e sociais. Chile, Argentina e dispositivos. As baterias, esgotadas as possibilidades
Bolívia estão entre os maiores produtores mundiais de utilização nos veículos, podem ser reformadas
e já enfrentaram conflitos relacionados à escassez para armazenamento de energia e utilizadas, por
de água, contaminação do solo e disputa entre exemplo, em conjunto com sistemas para geração
povos originários e empresas privadas. O preço do distribuída de energia solar, aponta a química.
metal no começo de 2023 era oito vezes o de 2021, Em São Paulo, grupos de pesquisa investigam,
de acordo com o jornal Financial Times. Apesar de com financiamento da FAPESP, novas arquitetu-
ele compor apenas uma pequena parte da bateria ras e materiais para aumentar o desempenho, a
(cerca de 4%), é essencial para o seu funciona- capacidade de armazenamento e a estabilidade
mento. Sem ele, as reações químicas não ocorrem das baterias de lítio. Uma dessas iniciativas é de- A recarga das
baterias é uma
como deveriam. A vantagem é que as baterias de senvolvida em parceria entre a Universidade de das preocupações
lítio conseguem armazenar uma grande quantidade São Paulo (USP) e a Universidad de Antioquia, na dos motoristas,
de energia, em um volume relativamente pequeno. Colômbia. Outros projetos, também apoiados pela aponta pesquisa

74 | ABRIL DE 2023
DIANTEIRA CHINESA
Por volta do ano 2000, o país asiático investiu na eletrificação e hoje lidera o setor;
Europa e Estados Unidos seguem atrás com desafios

A China ocupa clara posição de liderança no elegeram a eletrificação como um dos focos que a eletrificação pode trazer entre os
desenvolvimento tecnológico, na produção prioritários dos seus planos quinquenais.” mais ricos e os de menor renda, que moram
e no consumo de carros 100% elétricos. Estados Unidos e Europa também em áreas rurais ou em bairros sem fácil
O investimento em pesquisa nesse setor centraram forças para superar obstáculos e acesso à recarga. Pesquisadores da
no país não é de hoje. “Há muitos anos fortalecer a eletrificação veicular. Além dos Universidade de Michigan, nos Estados
orientei um mestrado sobre a indústria desafios relacionados Unidos, publicaram em janeiro estudo que
automobilística chinesa e víamos o esforço à tecnologia, principalmente no que se aponta que, para a população mais pobre,
do país em ser referência na tecnologia do refere às células que compõem as baterias, a recarga do veículo elétrico representaria
motor a combustão interna, que já era mais esses países têm de lidar com uma matriz um gasto anual expressivo.
do que dominada pelas empresas europeias, energética, baseada em combustíveis fósseis, “Os padrões iniciais de adoção do veículo
japonesas e norte-americanas”, recorda-se ainda não tão limpa quanto a do Brasil, elétrico alinham-se com as tendências típicas
Flávia Consoni, do Programa de Pós-graduação onde predomina a geração hidrelétrica, da maior parte das novas tecnologias e,
em Política Científica e Tecnológica do para abastecer os carros elétricos e com a embora ela tenda a se tornar mais equitativa
Instituto de Geociências da Universidade necessidade de instalação de uma rede ao longo do tempo, são necessárias
Estadual de Campinas (IG-Unicamp). “Antes abrangente de recarga em grandes territórios. intervenções políticas para aumentar a
ainda dos anos 2000, eles deram uma Outras dificuldades não tão óbvias acessibilidade do veículo elétrico para
guinada e partiram para a eletrificação. também começam a ser apontadas famílias vulneráveis e excluídas”, ressaltam
Depois, investiram com muito mais força e pelos especialistas, como a desigualdade os autores no artigo.

Fundação, estudam rotas e tecnologias alternativas para a aquisição. “Existia certo temor dos entrevis-
para a reciclagem desse tipo de bateria. É o caso de tados a respeito dos eletropostos e de como seria
um estudo focado na recuperação de matérias-primas feito o carregamento da bateria. Preocupava, so-
críticas de baterias usando tecnologias ambiental- bretudo, a questão da autonomia”, ressalta Silva.

E
mente sustentáveis. Especialistas concordam que, em um país com
dimensões continentais como o Brasil, o avanço
nquanto o governo brasileiro não de- da mobilidade elétrica depende da existência de
fine um rumo para a eletrificação vei- uma rede ampla e pulverizada de eletropostos que
cular no país, a população parece ver garantam o abastecimento dos veículos.
com bons olhos os elétricos, de acordo Em estudo publicado em 2022 realizado por
com pesquisas. Em artigo publicado na Rodrigo Wolffenbüttel para um livro do Centro
revista Transportation Research Part A, Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap)
pesquisadores da Universidade Estadual sobre os desafios para a mobilidade urbana no
Paulista (Unesp) em Bauru, da Universi- século XXI, proprietários de veículos elétricos
dade Federal de São Carlos (UFSCar) em ressaltaram que, apesar dos ganhos ambientais,
Sorocaba e da USP em Ribeirão Preto divulgaram a transição dos motores a combustão interna dos
resultados de um levantamento realizado em 2019 automóveis para os elétricos não vai solucionar
sobre a intenção de uso de carros elétricos no Brasil: um problema crucial dos grandes centros urba-
89,1% disseram que comprariam um veículo do tipo nos, os engarrafamentos.
movido a bateria. “Grande parte dos entrevistados percebe essa
No entanto, boa parte dos 488 respondentes afirma- limitação. Essa ainda é uma aposta em uma res-
ram estar dispostos a pagar no máximo entre R$ 30 posta individual para um problema coletivo”, diz
LÉO RAMOS CHAVES / REVISTA PESQUISA FAPESP

mil e R$ 70 mil, bem abaixo do preço de um veículo o sociólogo. “No fundo, a eletrificação de automó-
vendido no país à época. “Em 2019 o modelo mais veis não responde aos problemas de mobilidade
barato custava mais de R$ 100 mil. Nota-se que as urbana. Ela reduz as emissões locais de gases de
pessoas não tinham muita noção de quanto custaria efeito estufa, mas em termos de deslocamento, vo-
um carro elétrico”, comenta um dos autores do ar- cê fica preso dentro de um carro elétrico do mes-
tigo, Hermes Moretti Ribeiro da Silva, professor do mo modo que fica em um veículo a combustão.” n
curso de engenharia de produção da Unesp.
O preço e a questão do recarregamento da bateria Os projetos e os artigos científicos consultados para esta reportagem
aparecem no levantamento como pontos de restrição estão listados na versão on-line.

PESQUISA FAPESP 326 | 75


ADMINISTRAÇÃO

OS
NEGÓCIOS
E SEUS
PERIGOS
Estudos examinam sensações
de ameaça percebidas por
mulheres empreendedoras

Diego Viana  |  ILUSTRAÇÕES  Janaína Vieira


A
Copa do Mundo de 2014 e só em 2020, 103. Na avaliação de um dos au-
foi encarada como opor- tores, o economista Xingqun Lv, da Universida-
tunidade única por em- de Heilongjiang, em Harbin, China, o aumento
preendedores de todo o reflete a constatação de que empreendedores
Brasil interessados em de sucesso frequentemente atribuem seus re-
vender seus produtos nos sultados positivos ao envolvimento emocional
estádios do torneio. Para com o negócio.
a psicóloga Vânia Maria Embora seja um movimento crescente, não se
Jorge Nassif, do Núcleo de Estudos em Gestão pode dizer que a emoção no empreendedorismo
do Esporte e Empreendedorismo da Universi- seja um tema consolidado, segundo o adminis-
dade Nove de Julho (Uninove), em São Paulo, a trador Tales Andreassi, vice-diretor da Escola
oportunidade foi de outra ordem: investigar as de Administração de Empresas da Fundação
motivações e os projetos desses donos de peque- Getulio Vargas de São Paulo (Eaesp-FGV). “Du-
nos negócios durante o principal campeonato rante muito tempo, os estudos de empreendedo-
do calendário futebolístico. rismo deixaram de lado essa questão para focar
Nas 24 entrevistas com os comerciantes, se- na técnica: planos de negócios, planejamento,
lecionadas após indicação de professores de relações de causa e efeito. Mais recentemente,
universidades locais e publicadas no e-book percebeu-se que outros aspectos também devem
Negócios empreendedores: Ameaças e su­perações ser levados em conta, e daí entra a questão do
no entorno das arenas esportivas (Pixel, 2016), afeto e emoção”, explica.
uma resposta recorrente chamou a atenção de Nassif distinguiu quatro classes de ameaça en-
Nassif e seus colaboradores. “Todos, sem exce- frentadas pelas empreendedoras. A mais geral,
ção, manifestavam uma sensação pronunciada que afeta também os homens, é a das “ameaças
de estarem sob ameaça”, relembra. O que mais do negócio”. Essas se dividem em “risco Brasil”,
temiam era perder seus negócios, por inúmeros “ameaças do setor” e “ameaças de gestão” e nelas
motivos: desde as condições macroeconômicas entram problemas que vão desde mudanças de
do país até uma catástrofe natural. Um dos en- legislação, crises financeiras e variações cambiais
trevistados relatou a perda da concessão de um até a relação com a burocracia e a informalidade,
espaço público por causa de corrupção. passando pelo acesso ao financiamento, dificul-
“Saltou aos olhos o caráter afetivo-emotivo dades com recursos humanos e inadimplência.
das preocupações”, conta Nassif. A pesquisado- As classes de ameaças ligadas ao gênero são as do
ra percebeu que, entre as mulheres, não apenas patriarcado (assédio, machismo, preconceito), as
a sensação de ameaça era mais aguda, como afetivas (insegurança em relação à competência,
também havia perigos especificamente ligados ambientes sociais hostis) e o conflito de papéis,
ao gênero. Nassif passou a desenvolver uma ti- que inclui questões sobre matrimônio (filhos,
pologia das ameaças, com foco nas mulheres, maridos) e a sobrecarga de trabalho (a dupla
buscando entender como as empreendedoras jornada de quem cuida da casa e do negócio,
sentem que seu negócio está sob risco e quais preconceito ligado à idade).
comportamentos elas desenvolvem para supe- Uma vez estabelecida a tipologia, a tarefa pas-
rar as ameaças. sou a ser criar uma escala para quantificá-la,
O diferencial do conceito de ameaça, destaca relata Nassif. Com ajuda da Rede de Mulheres
a professora da Uninove, em relação a noções Empreendedoras e da Rede Mulheres do Brasil,
próximas, como “desafios”, “barreiras” ou “obs- um questionário foi enviado a 1.200 empreende-
táculos”, é enfatizar aspectos afetivos do em- doras de todo o país. As mulheres foram convida-
preendedorismo, para além da racionalidade. das a avaliar o preconceito que sofrem, a relação
“Afetividade e cognição são indissociáveis. Não com a família, o ambiente de negócios e as con-
consigo sentir sem pensar nem pensar sem sen- dições de trabalho. Uma seleção dos relatos foi
tir. Mas pesquisas científicas dedicam pouco es- publicada no e-book Mulheres transformadoras:
paço às questões emocionais, que também pouco Empreendedoras e seus negócios (ECO, 2018). “As
são levadas em conta pelas empresas”, observa. respostas diferem muito entre regiões. O que as
Na literatura internacional, o tema das emo- mulheres contam em São Paulo não é o mesmo
ções ganhou tração na última década, segundo que no Sul ou no Centro-Oeste, por exemplo.
o estudo “Emotion in the area of entrepreneur- Mas uma resposta unânime diz respeito ao pa-
ship: An analysis of research hotspots”, publi- triarcado: todas passam por situações de assé-
cado na revista Frontiers in Psychology. Entre dio”, diz Nassif.
1995 e 2010 foram identificados 2,27 artigos Embora hoje tantas mulheres inaugurem no-
por ano tratando de emoções no empreende- vos negócios quanto homens, segundo o estudo
dorismo. O número saltou para 14,7 entre 2011 Empreendedorismo feminino no Brasil em 2022,
e 2016. Em 2017 e 2018, foram 44; em 2019, 66; do Sebrae, elas ainda são minoria: 10.344.858 de

PESQUISA FAPESP 326 | 77


mulheres, para 19.690.601 de homens. Os rendi- muito atrasados nesse campo. As políticas para
mentos médios também apresentam grande de- empreendedoras são ínfimas”, lamenta.
sigualdade: em setembro do ano passado, eram A pesquisadora estudou a maneira como as
R$ 2.737 para homens e R$ 2.360 para mulheres. empreendedoras respondem às ameaças, de-
Explicar a discrepância é uma das tarefas dos nominando as respostas de “comportamentos
estudos de empreendedorismo feminino, campo de superação”. As entrevistadas manifestaram
de pesquisa em expansão no Brasil. Em 2016, a repetidamente a preocupação em aprender a rea-
pesquisadora Jane Mendes Ferreira, do Setor gir a situações de pressão, a procura por saídas
de Ciências Sociais Aplicadas da Universidade dialogadas para os conflitos, além da busca de
Federal do Paraná (UFPR), fez um levantamento apoio em redes de contato. Nassif encontrou uma
das publicações acadêmicas no país dedicadas correspondência entre os tipos de ameaça e os
ao tema entre 2000 e 2015 e encontrou 56 arti- comportamentos de superação. Um exemplo é
gos de natureza diversa. Os autores observaram o recurso ao apoio de parentes e amigos do sexo
uma tendência de expansão das publicações: masculino, quando é necessária a interlocução

F
entre 2000 e 2005 foram 9 artigos (16,1% do to- com homens, sejam fornecedores, clientes ou
tal), mas entre 2011 e 2015 saíram 31, ou 55,3%. financiadores. “Ao vender um produto, elas cha-
mam o irmão ou o marido para acompanhá-las
erreira defende que uma atuali- nas negociações. A simples presença do homem
zação do estudo mostraria que muda a atitude do interlocutor. A empreendedo-
a expansão continua a se acele- ra também se sente fortalecida em um ambiente
rar. “Embora ainda não seja um hostil. Muitas se referem ao ‘vigor’ dos homens,
grupo grande de pesquisadores, o que levou minha equipe a falar em termos da
há cada vez mais interesse pelo ‘rede de vigor masculino’”, observa.
estudo do empreendedorismo O ângulo afetivo no empreendedorismo é um
feminino. Os congressos sempre campo de pesquisa com muitos caminhos ainda
têm sessões dedicadas ao tema e artigos são cons- por explorar. “O empreendedor faz escolhas o
tantemente publicados”, afirma Ferreira. “Esse tempo todo, porque o mundo dos negócios é
grupo trabalha para fomentar e melhorar o em- feito de decisões. Mas a tomada de decisão não
preendedorismo feminino, inclusive em parceria é uma atitude plenamente racional, como gos-
com instituições públicas e privadas”, completa. tamos de pensar. Está profundamente ligada à
Nessas duas décadas, os estudos documenta- memória e às emoções: nossas memórias mais
ram as barreiras enfrentadas pelas empreende- vivas são marcadas pelas emoções”, diz Fer-
doras. Na literatura, elas se dividem em três cate- reira. Segundo a pesquisadora, perder a capa-
gorias: individuais (ligadas a temas psicológicos cidade de se emocionar é perder a capacidade
e familiares), organizacionais (o funcionamento de decidir. “Se uma pessoa sofre uma lesão na
do negócio) e ambientais (legislação, regulamen- região do cérebro responsável pelas emoções,
tação). No plano individual, pode elaborar uma lista com as vantagens e
a necessidade de conciliar a desvantagens de qualquer escolha, e mesmo
vida familiar com a profissio- assim se mantém indecisa. Estudar as emoções
nal, por exemplo, aparece de é imprescindível para compreender as decisões
maneira mais aguda entre as de negócios.”
Explicar a mulheres do que entre os ho- Andreassi acrescenta que ainda são poucos
mens. Quando abordados pela os cursos de empreendedorismo que exploram
discrepância de perspectiva afetivo-emotiva, as questões emocionais, mas o tema aparece na
esses problemas são apresen- teoria do effectuation, desenvolvida por Saras
renda entre homens tados como ameaças. Mesmo Sarasvathy, da Universidade da Virgínia, nos
e mulheres é algumas ameaças universais Estados Unidos. “Ela preconiza que, ao iniciar
têm carga maior sobre as mu- um negócio em áreas desconhecidas, não basta
uma das tarefas lheres, pontua Nassif. É o caso fazer planos e previsões. Mais importante é se
do acesso ao financiamento: conectar com pessoas e conseguir parceiros para
dos estudos de as entrevistadas se queixam a empreitada, estando sempre aberto para explo-
de que o mero fato de serem rar as contingências que irão afetar o negócio.
empreendedorismo mulheres reduz a probabilida- Nesse contexto, a carga afetiva se sobressai em
feminino de de receberem a aprovação relação à técnica racional”, observa. 
de um crédito bancário. Nassif Ferreira estuda o aspecto afetivo-emotivo da
acrescenta que a barreira po- atuação das empreendedoras brasileiras pelo
deria ser contornada por meio prisma da subjetividade, ou seja, a maneira co-
de políticas públicas voltadas mo elas se enxergam e pensam sobre sua ativi-
para as mulheres. “Estamos dade empresarial, a partir da teoria da subjeti-

78 | ABRIL DE 2023
vidade do psicólogo cubano Fernando González nos abusos”, diz Ferreira. “A violência física é
Rey (1949-2019). Seu projeto atual investiga o só parte da violência doméstica. Essas mulhe-
potencial do empreendedorismo feminino na res sofrem uma agressão psicológica que afeta
superação da violência doméstica, em parce- quem elas pensam que são, o que acham que
ria com Victor Rodrigo Amaral, mestrando na podem fazer. Assim se constitui a subjetividade
pós-graduação em Gestão de Organizações, Li- delas. Esse medo e essa certeza as impedem de
derança e Decisão e capitão da Polícia Militar se libertarem.”
paranaense. O projeto consiste em montar um Além de fonte de renda, a expectativa com a
programa de educação a distância que permita criação do programa de educação a distância é

A
às vítimas abrir um negócio e, com isso, superar a que a abertura do negócio próprio transforme a
insegurança causada pelo dia a dia de agressões. visão das mulheres agredidas sobre si próprias.
“A subjetividade humana tem grande plastici-
ideia nasceu do espanto dade. É possível romper o ciclo da humilhação
do estudante ao consta- e fazer com que elas se vejam como pessoas ca-
tar que 7,5% de todas as pazes, entendendo que podem se sustentar com
chamadas recebidas pelo o próprio trabalho”, diz a professora da UFPR.
telefone de emergência A finalidade prática também é um compo-
da corporação diziam nente da tipologia das ameaças, segundo Nas-
respeito à agressão de sif. “Nosso propósito é levar a metodologia,
mulheres por seus ma- com a escala de ameaças, aos programas de
ridos, índice quase três vezes superior à média formação de empreendedores. Embora a es-
brasileira, de acordo com o Fórum Brasileiro cala tenha foco nas mulheres, desenvolvemos
de Segurança Pública (FBSP). Amaral observou uma versão que capta as ameaças vivenciadas
que, em 2020, na Região Metropolitana de Curi- por homens”, diz. Em paralelo, a tipologia e a
tiba e no litoral do Paraná, as 18.630 chamadas quantificação das ameaças também têm como
(9,1%) colocam a violência doméstica como objetivo influenciar políticas públicas focadas
segunda maior ocorrência, atrás da perturbação no feminino, que a pesquisadora considera in-
do sossego. “Só 19% desses chamados se encer- suficientes. “Se temos um Ministério das Mu-
raram como ocorrências de violência doméstica. lheres, é imprescindível que existam políticas
Depois que a polícia chega ao local, a situação para fomentar o empreendedorismo delas”,
é enquadrada em outra natureza, ou então o argumenta Nassif. n
delito não é constatado”, informa Amaral.
“Quando perguntadas por que não abando-
nam os cônjuges, as vítimas respondem que Projeto
não poderiam se sustentar sozinhas. Pergunta- A influência das ameaças de gênero e do comportamento de supe-
das por que não trabalham por conta própria, ração na satisfação do trabalho e na família de empreendedoras (no
19/10009-1); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisa-
manifestam a convicção de que não são capa- dora responsável Vânia Maria Jorge Nassif (Uninove); Investimento
zes. Por trás dessa resposta, não está a falta de R$ 67.823,34.
qualificação especificamente, mas a perda de Os artigos científicos e os livros consultados para esta reportagem
confiança na própria capacidade, que se origina estão listados na versão on-line.

PESQUISA FAPESP 326 | 79


ANTROPOLOGIA

UM OLHAR
INDÍGENA
SOBRE
A SAÚDE
Pesquisadores de diversas etnias
discutem os cuidados com o corpo a partir
das perspectivas de cada povo

Ana Paula Orlandi

E
m 2009, a menina Luciane, sobrinha do an-
tropólogo João Paulo Lima Barreto, da etnia
Tukano, foi picada por uma cobra venenosa
na comunidade onde vive, no interior do Ama-
zonas. A princípio, a dor e o inchaço no pé da
criança, então com 12 anos, foram controlados
por meio de práticas medicinais indígenas,
como o uso de plantas. Por sugestão do agente
indígena da saúde local, ela foi levada para um posto de saúde
em Pari-Cachoeira, no município de São Gabriel da Cachoeira,
para continuar o tratamento. “Lá, ela foi atendida por uma en-
fermeira que estava no período menstrual, como minha família
soube posteriormente, ao indagar a equipe médica. Em nossa
cultura, uma pessoa que sofreu picada de cobra venenosa não
pode ter contato algum com mulheres menstruadas”, recorda
Barreto. “Isso fez piorar o quadro de saúde de Luciane.”
A menina foi transferida para um hospital em Manaus, onde
a equipe médica sugeriu a amputação de seu pé esquerdo. A
família se posicionou contra. “Meu pai e dois tios garantiram
que não era necessária a amputação. Bastava fazer o tratamen-
JAIDER ESBELL, O PAJÉ CURANDO COM TABACO, 2020 © GALERIA JAIDER ESBELL DE ARTE INDÍGENA CONTEMPORÂNEA

to com práticas indígenas aliadas à medicina alopática. Mas


nossa proposta foi rejeitada pelos médicos daquele hospital”,
conta Barreto. Com apoio do Ministério Público Federal, a
menina foi levada para outra unidade de saúde e passou a
ser atendida por uma equipe médica que aceitou trabalhar
em conjunto com os especialistas indígenas. “O tratamento
deu certo. Hoje Luciane está bem, embora tenha ficado com
leves sequelas, como a diminuição dos movimentos do pé”,
relata o pesquisador.
O episódio inspirou Barreto a investigar o tema em seu dou-
torado na área de antropologia que resultou na tese “Kumuã
na kahtiroti-ukuse: Uma ‘teoria’ sobre o corpo e o conheci-
mento prático dos especialistas indígenas do alto rio Negro”,
defendida em 2021, na Universidade Federal do Amazonas
(Ufam). No estudo, Barreto postula a revisão de conceitos
usualmente adotados nos campos da saúde coletiva e da an-
tropologia. Além disso, propõe o uso de categorias e termos
em língua indígena. No ano passado, o trabalho foi escolhido
como a melhor tese de arqueologia e antropologia pela Coor-
denação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
(Capes) e tornou-se livro, lançado pelo Instituto Internacio-
nal de Educação do Brasil (IEB).

PESQUISA FAPESP 326 | 81


Um dos termos costumeiramente usados de e dele, e não foi submetida a nenhuma instância
modo genérico é “pajé”, segundo o antropólogo. formal do programa ou da universidade, que,
“O pajé costuma ser imaginado como um velhinho “lamentavelmente, como em outras, não admi-
que tem poder de transitar entre o universo dos te lugar a esses sujeitos e seus saberes em suas
deuses ou dos mortos, que conversa com os ani- estruturas institucionais acadêmicas”.
mais, plantas ou minerais para adquirir poderes Outro conceito abordado por Barreto no tra-
sobrenaturais. É um imaginário muito exotizante balho é bahsese – “um recurso terapêutico e de
que a mídia, os livros didáticos e a própria ciência comunicação com os waimahsã. Segundo nossa
difundem na sociedade não indígena”, escreveu, cosmologia, na origem do mundo um grupo de
em artigo de 2017. De acordo com Barreto, a pa- waimahsã foi escolhido para se transformar em
lavra, mesmo que em língua tupi-guarani, não humano, enquanto os demais, preteridos, pas-
consegue traduzir a diversidade de funções dos saram a habitar a água, a terra e o ar. Até hoje
especialistas indígenas da saúde. “No caso tuka- costumam se vingar por terem sido excluídos e
no, eles são três: yai, kumu e baya”, diz a Pesquisa trazem doenças aos humanos”, conta Barreto, que
FAPESP. “Todos dividem a mesma base de for- é também um dos fundadores do Centro de Me-
mação, mas cada um tem sua especialidade de dicina Indígena Bahserikowi, em Manaus, onde
cura. Em linhas gerais, yai é o responsável pelos realizou a pesquisa etnográfica. “No meu entender,
diagnósticos, enquanto o kumu realiza os trata- a palavra ‘benzimento’, com seu viés cristão, não
mentos. O baya, além de mestre de festas e danças, dá conta de expressar o sentido epistemológico
é também kumu.” Além disso, segundo Barreto, do termo como é compreendido pelos Tukano.”
é preciso decolonizar a tradução do termo pelo Barreto utiliza o termo “medicina indígena” no
viés da religião. “Categorias ou conceitos como lugar de expressões como “saberes ancestrais” e
sagrado, fé, espíritos, rezador, benzedor, bem e mal “conhecimento tradicional”. “Esses rótulos pre-
são importados de um modelo teológico cristão e cisam ser questionados, porque passam a ideia de
colonizador. As práticas de cuidado com a saúde que os indígenas têm uma forma de conhecimen-
e cura dos povos indígenas não estão no campo da to menos legítima, inferior, por não ser científica.

O
religião, da teologia. Os kumuã, plural de kumu, O trabalho de João Paulo mostra que são outras
portanto, não são religiosos.” formas de conhecimento e devem ser respeitadas
como tal”, observa o antropólogo João Pacheco de
pai do pesquisador, Ovídio Oliveira, professor da Ufam e do Museu Nacional
Lemos Barreto, e dois de da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
seus tios paternos, Manoel A médica sanitarista Sofia Mendonça concorda.
Lima e Durvalino Moura “É possível falar, sim, em medicinas indígenas e
Fernandes, são kumuã e no plural, pois se constituem como sistemas so-
coorientaram a tese com o fisticados com práticas de prevenção e de cura
antropólogo Gilton Men- que variam muito entre as etnias. A terminolo-
des dos Santos, da Ufam. gia também costuma mudar e a palavra ‘pajé’,
“Os kumuã são reconhecidos detentores de co- por exemplo, pode fazer sentido e ser utilizada
nhecimentos indígenas no alto rio Negro. Barreto, por alguns grupos indígenas, como aqueles do
Fernandes e Lima foram imprescindíveis para a Xingu”, diz Mendonça, coordenadora do Pro-
pesquisa de João Paulo, para suas inquietações, jeto Xingu, programa de extensão universitária
descobertas e formulações”, explica o orientador. da Escola Paulista de Medicina da Universidade
Segundo Santos, a inclusão deles como coorienta- Federal de São Paulo (Unifesp). “Porém, indepen-
dores foi exclusivamente decisão do doutorando dentemente de rótulos, o importante é valorizar
esse conhecimento, que pode, inclusive, ampliar
nosso olhar sobre o processo de adoecimento.”
“Não é possível dizer que a biomedicina é me-
lhor do que a medicina indígena e vice-versa, por-
que ambas têm limitações. O ideal é que sejam
Pesquisadores indígenas têm feitas de forma integrada”, acrescenta o oftalmo-
logista Rubens Belfort Junior, professor titular da
grande dificuldade para Unifesp. Ele lembra que essa concepção norteou
a criação do Projeto Xingu, em 1965, idealizado
publicar trabalhos e participar por Roberto Geraldo Baruzzi (1929-2016), da
de eventos de saúde coletiva, mesma universidade, e pelo sertanista Orlando
Villas-Boas (1914-2002), então diretor do Parque
diz Machado Indígena do Xingu, localizado no Centro-Oeste
brasileiro. “Assim, o médico que pratica a medi-
cina ocidental e o especialista em medicina in-
dígena aprendem um com o outro”, diz Belfort consideradas viáveis e eficientes no tratamento
Junior, que ingressou no Projeto Xingu nos anos das doenças. Mas tal descrédito sempre esteve
1970 e desde a década de 1980 realiza projetos de no âmbito da retórica, pois na prática eram ob-

A
saúde ocular na região Norte do país, que con- servadores e experimentadores das práticas de
templam indígenas e outras populações locais. curas socialmente reconhecidas, principalmente
no que diz respeito ao uso das ervas.”
discussão não é nova. De A publicação é fruto de parceria entre a Es-
acordo com Oliveira, o cola Nacional de Saúde Pública da Fundação
antropólogo, médico e ra- Oswaldo Cruz (ENSP-Fiocruz) e um grupo de
dialista Edgard Roquette- pesquisadores indígenas de diversas regiões do
-Pinto (1884-1954) escre- país. “Apesar de ter crescido o número de estu-
veu em “O exercício da me- dantes indígenas no ensino superior brasileiro a
dicina entre os indígenas partir do início do século XXI, esses pesquisado-
da América”, título de seu res ainda têm grande dificuldade para publicar
trabalho de conclusão de curso em 1906 na então seus trabalhos e participar de eventos no âmbito
Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro (hoje da saúde coletiva”, constata o sociólogo Felipe
unidade da UFRJ), que as sociedades indígenas Rangel de Souza Machado, investigador da es-
produziam conhecimento sobre doenças e esse cola e um dos organizadores da iniciativa. “Além
conhecimento deveria ser objeto de investigação do preconceito, alguns deles enfrentam questões
e de incorporação à sociedade não indígena. “Ele decorrentes do fato de ter a língua portuguesa
registra, inclusive, que existiam técnicas para lidar como segundo idioma e a falta de referenciais
com doenças psicológicas, isso em um momento bibliográficos indígenas.”
em que a psicanálise fazia seus primeiros voos O corpo editorial da publicação é composto por
no mundo”, conta Oliveira, um dos pioneiros em pesquisadores indígenas, a exemplo do próprio
estudos pós-coloniais no Brasil. Barreto. Além disso, todos os 21 artigos têm como
“Infelizmente há ainda grande resistência por primeiro autor pesquisadores de etnias espalha-
parte dos profissionais da saúde em incorporar das pelo Brasil. “Há discussões sobre educação e
esses conhecimentos indígenas tanto na prática território, por exemplo, já que a saúde é um con-
quanto na academia”, afirma o médico Douglas ceito muito amplo dentro da perspectiva indígena.
Rodrigues, coordenador do Ambulatório do Ín- Trata-se de uma medicina em que o bem-estar
dio, vinculado à Unifesp. “É difícil, por exemplo, humano está intrinsecamente ligado ao território
quebrar essa visão etnocêntrica que menospreza e ao respeito ao meio ambiente”, relata Machado.
outros conhecimentos, como o indígena. Mas vale “Os povos indígenas estão mobilizados pelo
lembrar que se o médico que pratica a medicina direito a uma saúde que respeite suas especifi-
ocidental cursa, em geral, seis anos de graduação cidades culturais”, constata Almeida, doutora
e quatro de residência, a formação de um pajé do em história das ciências e da saúde pela Fiocruz
alto Xingu pode levar até duas décadas”, informa. e professora da Universidade Estadual de Santa
Segundo Rodrigues, nos últimos 20 anos a discus- Cruz (Uesc), na Bahia. Exemplo disso, segundo a
são sobre o encontro de diferentes tradições mé- estudiosa, é Hitupmâ’ax: Curar, produzido por es-
dicas vem avançando no campo da antropologia tudantes da etnia Maxacali do curso de Formação
por meio de conceitos como “intermedicalidade”, Intercultural de Educadores Indígenas da Uni-
desenvolvido nos anos 1990 pelo antropólogo versidade Federal de Minas Gerais (Fiei-UFMG).
norte-americano Shane Greene. Para Greene, “É um livro escrito para servir de manual aos pro-
essa integração costuma resultar em uma forma fissionais da saúde que são enviados para aquele
de domínio da biomedicina sobre a medicina in- território. Entre outras coisas, os Maxacali de-
dígena. “A biomedicina e outras áreas da saúde nunciam as trocas constantes de equipe médica,
precisam debater mais esse assunto”, observa. o que acaba prejudicando o atendimento”, conta
“Desde os tempos coloniais, as práticas de cura Almeida sobre a publicação lançada em 2008, pe-
não europeias eram atreladas à feitiçaria e à ma- la UFMG e Núcleo Literaterras, da Faculdade de
gia identificadas no dia a dia da população local Letras daquela instituição. “São ideias que trazem
e sobressaiam-se como próprias das culturas uma experiência intercultural extremamente rica
indígenas e africanas”, escreve a historiadora e que deveriam se tornar leitura obrigatória em
Diádiney Helena de Almeida, da etnia Pataxó, em cursos de formação de profissionais da saúde de
um dos capítulos da coletânea Vozes indígenas forma geral”, finaliza a historiadora. n
na produção do conhecimento: Para um diálogo
com a saúde coletiva (Hucitec, 2022). “No século
Artigo científico
XIX, os médicos não reconheciam a relevância
BARRETO, J. P. L. Bahserikowi – Centro de Medicina Indígena da
e a existência de sistemas e práticas que, fora Amazônia: Concepções e práticas de saúde indígena. Amazônica –
do âmbito científico da medicina, pudessem ser Revista de Antropologia. v. 9, n. 2, p. 594-612. 2017.

PESQUISA FAPESP 326 | 83


ITINERÁRIOS DE PESQUISA

Não compreendia o sentido de estudar,


queria apenas concluir o ensino básico
para trabalhar. Até que meu irmão mais
velho me incentivou a prestar vestibular
em uma universidade pública. Percebi
que por meio da educação eu poderia
ter alguma mobilidade social. Para isso,
estudava cerca 15 horas por dia. Em 2007,
aos 18 anos, ingressei no curso de eco-
nomia da Unesp [Universidade Estadual
Paulista], campus de Araraquara. Todo
meu esforço foi recompensado ao final
da faculdade, quando recebi o diploma
de mérito como melhor aluno da turma.
Na universidade, meu objetivo era
concluir a graduação para entrar no mer-
cado de trabalho. Nos primeiros anos,
ansiava por um estágio, não vislumbrava
a pesquisa como ocupação profissional.
O SABER No entanto, comecei a participar de um
grupo de estudos voltado para economia
ECONÔMICO industrial, cuja agenda de pesquisa pas-
sou a me interessar. Apoiado por uma

COMO bolsa da FAPESP, fiz minha iniciação


científica nessa área, sob a orientação

VETOR DE de Enéas Gonçalves de Carvalho. A bolsa


não apenas legitimou a pesquisa, como

TRANSFORMAÇÃO também me permitiu sair de uma situa-


ção financeiramente complicada.

SOCIAL Ao término da graduação, em 2010,


queria novas vivências acadêmicas. De-
cidi fazer o mestrado na Universidade de
São Paulo. Fiquei em uma ótima posição
Michael França amplifica as discussões sociais e raciais no exame da Anpec [Associação Nacional
por meio da escrita e do debate público dos Centros de Pós-graduação em Eco-
nomia], o que me habilitou a ingressar
na FEA [Faculdade de Economia, Ad-

M
ministração, Contabilidade e Atuária],
inha carreira acadêmica foi busca de trabalho, com 14 anos. Primeiro sob a orientação de Joe Akira Yoshino
acidental e não se desenvol- se estabeleceu em São Paulo, depois em e com uma bolsa do CNPq [Conselho
veu de forma linear. Essa Minas Gerais. Minha mãe é mineira e, Nacional de Desenvolvimento Cientí-
trajetória não começou co- por muito tempo, foi empregada domés- fico e Tecnológico]. No mestrado e no
migo, mas com as oportunidades que tica. Economicamente minha família era doutorado, por causa da minha situação
meus pais tiveram – afinal, há evidên- considerada de baixa renda. Em relação à financeira, precisei morar na favela São
cias científicas que apontam para uma formação, frequentei uma escola pública Remo, ao lado da Cidade Universitária,
transmissão intergeracional do status na periferia de Uberaba, em Minas. Lá, no bairro do Butantã.
socioeconômico, que pode ampliar ou não havia perspectiva de futuro para A pós-graduação foi uma época de
limitar as possibilidades de escolhas. os alunos, majoritariamente, oriundos descobertas. Experimentei diversas
Nesse sentido, meu percurso se inicia das comunidades mais pobres da região. áreas do conhecimento econômico, não
antes de mim. Meu pai é um retirante Nesse contexto, estudantes e professores tinha clareza de qual seria o meu cam-
nordestino que chegou ao Sudeste, em estavam em total desamparo. po de atuação. No projeto de mestrado,

84 | ABRIL DE 2023
Michael França:
rotina na sala de
aula, dentro e fora
do Brasil

de de fazer algumas interlocuções entre


distintas áreas e de dialogar com pes-
soas de diferentes classes sociais. Estou
atento à visão de mundo de quem vive
na periferia, bem como à de uma pessoa
rica. Esse ganho aparece não apenas nas
pesquisas que desenvolvo, mas nas mi-
concentrei-me em economia financeira. Encontrei meu lugar como pesquisador nhas intervenções no debate público,
Imediatamente percebi que foi um equí- e adquiri uma autocompreensão da mi- o que me dá ainda mais confiança para
voco. Não conseguia me identificar com nha própria trajetória. A tese representa continuar. Aliás, devo isso ao minicurso
o assunto e, não raramente, com certos um divisor de águas na minha carreira. de escrita do Insper, quando descobri
aspectos da visão de mundo daquela co- Iniciei o doutorado, em 2016, na área que sabia e podia escrever.
munidade de pesquisadores. Tive algu- de economia social, sob a orientação de Apesar do esforço contínuo de escre-
mas ofertas de emprego nesse período, Eduardo Amaral Haddad. Com apoio da ver em uma linguagem acessível como
inclusive com excelentes salários, mas FAPESP, pude realizar uma temporada colunista de um grande jornal, tenho
recusei pela falta de afinidade. de pesquisa na Universidade Columbia, consciência de que, como homem negro,
Embora tivesse boas notas e resulta- em Nova York, nos Estados Unidos, sob o viés racial e social do país limita alcan-
dos, concluir um mestrado focado em a supervisão de Rodrigo Reis Soares. Na çar determinados públicos. A despeito
estimar o prêmio de risco do Brasil foi tese, explorei a relação das taxas de fe- do custo acadêmico de gastar tempo
exaustivo. Em 2015 cheguei a represen- cundidade com o desenvolvimento so- em outras atividades além da pesqui-
tar a USP em uma competição mundial cioeconômico do Brasil. Além de realizar sa, insisto. Compreendo que o conhe-
de econometria em Amsterdã, na Holan- estimativas de distribuição de renda, cimento técnico-científico é uma força
da. Nossa equipe não foi classificada para manejei dados de diferentes naturezas, de transformação social. Cabe, então,
a final, mas ficamos entre as poucas que como climáticos e midiáticos. fazê-lo chegar a várias camadas e gru-

E
conseguiram completar o case. pos sociais do país.
Cogitei não dar continuidade à carrei- m 2020, comecei um pós-dou­ Tenho uma rotina bastante diversifica-
ra acadêmica. Estava desmotivado com torado no Insper sob a super- da. Minhas atividades se dividem entre
a pesquisa em finanças. A realidade co- visão de Sérgio Pinheiro Firpo, os projetos de pesquisa, a coordenação
meçou a mudar depois que soube que que veio a se tornar um amigo. do Núcleo, a coluna na Folha de S.Paulo
o professor Naércio Menezes Filho, da A pesquisa investigava se estava haven- e, nesse momento, a temporada como
FEA-USP, procurava alguém para uma do discriminação racial nos hospitais. pesquisador visitante na Universidade
vaga de assistente de pesquisa no Insper, O estudo verificou, nos momentos de Stanford, nos Estados Unidos. Em razão
instituição em que ele também é docente. maior crise hospitalar da Covid-19, que dos meus textos e das minhas partici-
Fui aprovado na seleção e tive a oportuni- havia menor acesso de pacientes autode- pações em eventos, tenho sido bastante
dade de colaborar com uma pesquisa que clarados pretos às UTIs. Esse trabalho demandado a intervir no debate público
procurava testar a existência de um efeito, repercutiu bastante. Mais tarde, contri- e a oferecer contribuições, sobretudo
ainda não explorado, do programa Bolsa buí com outros projetos da pauta racial, em pautas referentes às desigualdades
Família, do governo federal. O objetivo era como a criação de algoritmo de investi- sociais e às políticas públicas. No futuro,
verificar se a maior inclusão de estudan- mento de equidade racial e o desenvol- não descarto participar da política ins-
tes pobres nas escolas públicas repercutiu vimento do Índice Folha de Equilíbrio titucional, como técnico ou candidato a
em uma migração dos melhores alunos Racial, por solicitação do jornal Folha de um cargo eleitoral. A propósito, já tive
para escolas particulares. Pela primeira S.Paulo. O tema racial ainda é pouco ex- ótimos convites. Por ora, recusei todos. n
vez na economia tive contato com a temá- plorado na economia, por isso, em 2020, DEPOIMENTO CONCEDIDO A ALINE NOVAIS DE ALMEIDA
tica social. Os números no computador criamos o Núcleo de Estudos Raciais do
não eram mais apenas ativos financeiros, Insper, hoje sob minha coordenação.
mas, sim, pessoas. Isso fez toda diferen- Atualmente somos 14 pesquisadores.
SAIBA MAIS
FOTOS  ARQUIVO PESSOAL

ça. Encontrei o sopro que precisava para Se esse percurso acadêmico não me
persistir na vida acadêmica. tornou, em um primeiro momento, um Página do Núcleo
de Estudos Raciais
No doutorado, também na USP, ao me especialista, possibilitou-me ter uma do Insper
debruçar sobre economia social, fiz uma percepção mais ampla da economia. Aos
dupla descoberta: intelectual e pessoal. 34 anos, constato que adquiri a capacida-

PESQUISA FAPESP 326 | 85


MEMÓRIA

O FÍSICO
QUE
1

O
homem teve três primei-
ros nomes diferentes,

CONSTRUÍA
duas nacionalidades e
nenhum diploma de
físico. Mesmo sem um

PONTES
papel que lhe conferisse
formalmente graduação e pós-graduação,
João Alberto Meyer (1925-2010), mais
conhecido como Jean Meyer, foi um
físico que atuou em algumas das mais
Jean Meyer mostrou que a ciência de prestigiadas instituições de pesquisa do
mundo. Contribuiu com o desenvolvi-
energias alternativas poderia ser um motor mento experimental da física de par-
tículas na Europa, principalmente na
do desenvolvimento brasileiro Organização Europeia para a Pesquisa
Danilo Albergaria Nuclear (Cern), em Genebra, na Suíça,
e liderou um projeto pioneiro de estu-
do sobre fontes de energias alternativas
na Universidade Estadual de Campinas
(Unicamp) na década de 1970. Para quem
o conheceu, Meyer foi um construtor de
pontes científicas e humanas, capaz de
aglutinar estudantes e liderar projetos
interdisciplinares como poucos.

86 | ABRIL DE 2023
Meyer aos 40 anos,
quando vivia na França;
abaixo, câmara de bolhas
construída no Centro de
Pesquisas Nucleares
de Saclay em uso
no Cern nos anos 1960

João Alberto nasceu Hans Albert, na Na São Paulo do início dos anos 1940, com uma bolsa de pesquisa. Passou um
então cidade-estado de Danzig (atual a física moderna era debatida por pro- ano na Escola Politécnica de Paris, onde
Gdansk, na Polônia), de uma família ju- fessores e estudantes num clima de se familiarizou com um dos principais
dia em boa situação econômica. Em 1935, efervescência intelectual, que incluía temas daquele momento, as câmaras de
deixando parte do patrimônio para trás, noites de seminários sobre mecânica bolhas, um aparato fundamental para se
os Meyer fugiram da crescente persegui- quântica e relatividade geral, na casa do observar, na época, as propriedades dos
ção antissemita para a França. Em um dos físico pernambucano Mário Schenberg fragmentos resultantes de colisões entre
mais tradicionais liceus de Paris, Hans (1914-1990) (ver Pesquisa FAPESP no partículas subatômicas. De volta à USP
tornou-se Jean. “É o nome pelo qual até 307). Schenberg organizava os seminá- nos anos 1950, ele viu-se na inusitada
hoje a família e muitos amigos usam para rios e debatia os tópicos mais recentes situação de ser ao mesmo tempo assis-
se referir a ele”, esclarece o físico Bruno da física moderna, mas também havia tente e aluno – a falta do diploma tam-
Meyer, consultor na área de energia na conversas sobre filosofia e artes com bém foi um pretexto para lhe pagarem
França e um de seus quatro filhos. escritores, pintores e filósofos. “Eram um salário que considerou muito baixo.
Diante da iminente invasão alemã à poucos alunos para muitos professo- Em 1956, foi pesquisar na Universidade
França, em 1940, os Meyer fugiram no- res”, nas palavras de Meyer. Foi nesses de Pádua, na Itália. A remuneração mo-
vamente, primeiro para Madri e depois seminários que Meyer descobriu a física desta foi compensada com a chance de
para São Paulo. Com a família sob estres- de partículas, à qual dedicaria a maior construir a primeira câmara de bolhas
se financeiro, o garoto Jean teve de tra- parte da carreira. da Europa, inventada nos Estados Uni-
balhar, mesmo demonstrando excelente No início dos anos 1950, já naturali- dos anos antes.
desempenho na escola e tendo comple- zado brasileiro e tornado oficialmente
tado o equivalente ao ensino médio no João Alberto, Meyer ocupou o posto de NA FRANÇA E NA SUÍÇA
Liceu Pasteur de São Paulo aos 16 anos. assistente de pesquisa em física na USP. O sucesso da experiência em Pádua ren-
Como operário da empresa química Recém-casado com a professora e crí- deu-lhe um convite do Centro de Pesqui-
Orquima, ele fez um pouco de tudo, in- tica literária brasileira Marlyse Meyer sas Nucleares de Saclay, na França, para
cluindo limpar banheiros, conta seu fi- (1924-2010), em 1952 voltou à França montar um grupo de estudos e desenvol-
lho. Acabou conhecendo o diretor cientí-
fico da empresa, Pawel Krumholz (1909- 2
-1973), um químico polonês naturalizado
brasileiro que o promoveu a técnico de
laboratório. A admiração por Krumholz
motivou Meyer a fazer uma faculdade.
Em meados dos anos 1940, ele procurou
o curso de química da Universidade de
São Paulo (USP), mas na época não se
aceitavam diplomas de colégios france-
ses para ingresso no ensino superior. Foi
encaminhado para uma conversa com
o físico ítalo-ucraniano Gleb Wataghin
(1899-1986) na nascente Faculdade de
Filosofia, Ciências e Letras da USP, em
1934. Impressionado com as habilida-
des práticas de Meyer no manuseio de
FOTOS 1 ACERVO PESSOAL BRUNO MEYER  2 CERN

equipamentos do laboratório, Wataghin


se convenceu de que o jovem devia se
tornar físico e prometeu dar um jeito
na questão do diploma. “Ele nunca deu,
mas o ponto fundamental é que entrei na
física por esse artifício”, contou Meyer
em 1977 em entrevista ao projeto His-
tória da Ciência no Brasil, da Fundação
Getulio Vargas do Rio de Janeiro.

PESQUISA FAPESP 326 | 87


hipotético esgotamento de combustí-
veis fósseis, que não repercutiu. Até que,
com o preço do petróleo na estratosfe-
ra, os operadores da política científica
brasileira perceberam a necessidade de
desenvolver alternativas energéticas.
A Financiadora de Estudos e Projetos
(Finep) trouxe Meyer oito vezes de de-
zembro de 1973 a janeiro de 1975 para
organizar seminários sobre o tema e, em
Na Unicamp, em 1975: 1975, garantiu-lhe todo o financiamento
Meyer (em pé), idealizador necessário para um ambicioso projeto de
do Laboratório de energias alternativas, com a condição de
Hidrogênio, ladeado
por César Lattes e Carola
que ele próprio o liderasse.
Dobrigkeit, ambos Animado com a perspectiva de con-
do Instituto de Física tribuir com pesquisas aplicadas ao de-
1
senvolvimento do Brasil, Meyer trocou
vimento de câmaras de bolhas. “A repu- para pouca gente. “É claro que é funda- o Cern pela Unicamp, onde formou uma
tação científica dele, da qual se orgulhava mental saber como é feita a matéria”, ele equipe que projetou usos de energia so-
discretamente, veio principalmente por diria na mesma entrevista de 1977, “mas lar no beneficiamento de produção agrí-
sua contribuição no desenvolvimento e não interessava à coletividade”. Seu de- cola e desenvolvimento de automóveis
uso científico desses instrumentos”, afir- sejo era também contribuir de alguma movidos a hidrogênio. “Conseguimos
ma o físico Marcus Zwanziger, professor forma para melhorar a vida das pessoas mostrar que o processo de secagem de
aposentado da Unicamp. Os experimen- e, principalmente, dos brasileiros. grãos e de cacau poderia ser feito com
tos e o desenvolvimento de aparato ex- Nesse longo período na Europa, com energia solar por uma fração do preço de
perimental foram suas maiores vocações. frequência Meyer e a esposa pensaram consumo de petróleo. Também mostra-
“Ele era um físico de inclinação muito em voltar ao Brasil com os filhos, o que mos que era possível fazer um utilitário
mais experimental do que teórica”, diz só aconteceu em meados dos anos 1970. híbrido, movido a hidrogênio e diesel”,
o físico Cylon Gonçalves da Silva, pro- No final de 1973, ocorreu a Guerra do conta Zwanziger, um dos colaborado-
fessor emérito da Unicamp. Yom Kippur, conflito envolvendo Israel res mais próximos de Meyer no projeto.

E
Meyer passou 13 anos em Saclay tra- contra Egito e Síria, e, com ela, o choque
balhando com as câmaras de bolhas até do petróleo. Meyer já vinha alertando ra um projeto genuinamen-
receber uma proposta para fazer parte do autoridades e cientistas brasileiros sobre te interdisciplinar. “No am-
time de físicos do Cern, em 1969. O em- a necessidade de um país como o Brasil, biente acadêmico elástico e
prego na Suíça era permanente e o salário ainda com uma exploração incipiente de plástico da Unicamp, Jean
excelente. Ficou no centro como pesqui- petróleo, desenvolver fontes alternati- conseguiu conectar especia-
sador por seis anos e meio, até começar vas de energia. Ele fez um breve estudo listas de variadas competên-
a pensar que aquilo tudo fazia diferença em 1972 sobre as consequências de um cias que em outras instituições costuma-
vam trabalhar isolados. Éramos físicos,
2
engenheiros mecânicos, elétricos, quími-
cos, de alimentos, todos compartilhando
projetos, tarefas, laboratórios, ideias,
apoio e vida social”, recorda Zwanzi-
ger. Bruno Meyer diz que sempre ficou
espantado com a capacidade de seu pai FOTOS  1, 2 E 3 ACERVO PESSOAL BRUNO MEYER  4 ANTONINHO PERRI / UNICAMP

em aglutinar pessoas em torno de um


projeto e conservar amizades.
Essa capacidade foi um dos ingre-
dientes que levaram o físico ao cargo
de diretor-presidente do Conselho Téc-
nico-Administrativo da FAPESP, que
exerceu entre 1976 e 1980. Por quatro
anos, suas conexões políticas na Finep
garantiram o fluxo de verba necessária
para as pesquisas em energias alternati-
vas. Mas a crise do petróleo amenizou, a
diretoria da Finep mudou, o entusiasmo
do governo brasileiro esfriou e a fonte
O pesquisador (no centro) e o físico Roberto Salmeron (de bigode, à esq.) no Síncrotron, em 1990 de dinheiro secou. Zwanziger conta que

88 | ABRIL DE 2023
a picape a hidrogênio e diesel rodava
pela Unicamp e pelo distrito de Barão
Geraldo, em Campinas, e impressionou
muita gente, mas a visibilidade não foi
suficiente para despertar o interesse das
montadoras de automóveis.
Segundo o pesquisador, não houve
massa crítica empresarial com capaci-
dade de investimento e mobilização da
cadeia produtiva suficiente para ban-
car os processos de secagem de grãos
com energia solar. “Morremos antes de
chegar à praia”, lamenta. “Estávamos
Com Marcus
no caminho certo, mas não no momen- Zwanziger (à dir.)
to certo.” Hoje, por motivos diferentes, em Campinas,
com a crise climática, as pesquisas com em 1995
3
energias renováveis estão a todo vapor
no mundo inteiro, incluindo a renovação dos, alguns de uso civil e militar”, con- muita burocracia”, afirma Silva. Meyer
do interesse pelo hidrogênio veicular. ta Gonçalves da Silva, que coordenou colocou-o em contato com o italiano
a implantação do LNLS, no final dos Carlo Rubbia, prêmio Nobel de Física
APOIO AO LNLS anos 1980. “Era necessária uma licença de 1984 e diretor do Cern na época. O
Desgostoso e separado, Meyer voltou de importação do país fabricante, mas, resultado da reunião foi a abertura de
à França em 1980, onde se casou no- para comprar, era preciso também uma uma conta-equipe no centro de Gene-
vamente e foi pai pela quarta vez. Foi autorização do governo brasileiro. A bra para o projeto do LNLS, por meio
contratado pelo mesmo laboratório da burocracia emperrava os processos e, da qual os brasileiros conseguiram com-
Escola Politécnica de Paris em que tinha quando um se concluía, o outro perdia prar equipamentos eletrônicos funda-
trabalhado quase 30 anos antes. Nunca a validade.” mentais para a construção do laborató-
mais voltou ao Brasil, mas os laços afe- Ainda no começo do processo de im- rio, inaugurado em 1997.
tivos com o país – o mote de muitos de plantação do laboratório, em 1987, Me- Obrigado pela legislação francesa a
seus desenhos e pinturas, outra de suas yer interveio e vislumbrou uma ponte se aposentar em 1990, Meyer continuou
habilidades – ainda o fariam dar uma entre o Cern e o projeto brasileiro. “Jean atuando num programa de acolhimento
última contribuição à ciência brasileira. nos explicou o processo de compra de para estudantes estrangeiros na Escola
Meyer foi peça-chave no projeto do equipamentos do Cern: havia uma conta Normal Superior de Lyon. Construindo
Laboratório Nacional de Luz Síncro- para cada equipe de cada país partici- pontes, como sempre. Ele morreu em
tron (LNLS), em Campinas, destra- pante. Quando os cientistas pediam para 2010 em decorrência de um acidente
vando os processos de importação de comprar alguma coisa, o Cern pagava vascular cerebral, aos 85 anos, depois
equipamentos da Europa. “Precisáva- e debitava o valor da conta-equipe dos de conviver 10 anos com a doença de
mos importar equipamentos sofistica- cientistas que solicitaram o gasto, sem Alzheimer. n
4

Protótipo do primeiro
veículo híbrido
da Unicamp no
Salão do Automóvel
de 1995

PESQUISA FAPESP 326 | 89


OBITUÁRIO

O
FASCÍNIO
DOS
ARQUIVOS
Bellotto durante
seminário, em
novembro de 2007,
com especialistas na
área de arquivística

P
A historiadora ara alguém que trabalha com “Esse foi um desenvolvimento impor-
arquivos no Brasil, é grande a tante para a arquivologia, algo que não
Heloísa Bellotto ajudou probabilidade de ter cruzado foi feito nem na Espanha, país onde ela
os caminhos da historiadora se especializou e é muito avançado nes-
a modernizar a gestão Heloísa Liberalli Bellotto, co- se campo”, comenta Camargo. “Heloísa
documental no Brasil mo aluno, colega ou leitor. Bellotto, que conseguiu inserir no trato com os arqui-
morreu em São Paulo em 1o de março vos o que há de mais importante neles:
Diego Viana aos 88 anos, fundou cursos, lecionou em sua funcionalidade, a relação indissolú-
vários estados do país, além de Portugal vel entre os documentos e as atividades
e Espanha, e é autora de obras de refe- que lhes deram origem.”
rência em arquivologia no Brasil. De acordo com o historiador Thiago
Seu principal legado teórico foi o de- Nicodemo, coordenador do Arquivo Pú-
senvolvimento do processo de iden- blico do Estado de São Paulo, o trabalho
tificação de documentos a partir dos de Bellotto proporcionou uma evolução
conceitos de espécie e tipo, segundo a significativa na gestão documental. “Ela
historiadora Ana Maria Camargo, da Fa- ajudou a pensar que o arquivo não é um
culdade de Filosofia, Letras e Ciências lugar onde se depositam papéis velhos,
Humanas da Universidade de São Paulo mas o cérebro de uma operação que per-
(FFLCH-USP), coautora com Bellotto no mite saber onde as coisas estão, para que
ACERVO FUNDAÇÃO PRES. F. H. CARDOSO

Dicionário de terminologia arquivística não haja perda”, resume.


(Secretaria de Cultura, 1996). A espécie Nascida no Rio de Janeiro em 1935,
designa a estrutura de um documento Heloísa Bellotto se mudou para São Pau-
de acordo com suas funções. Por exem- lo aos 9 anos. Graduada em história pela
plo, contratos e relatórios são espécies. USP, em 1959, e biblioteconomia pela
Os tipos dizem respeito ao uso daquela Escola de Sociologia e Política de São
espécie: contratos de locação ou traba- Paulo, em 1956, a pesquisadora obteve
lho, relatórios de pesquisa ou auditoria. seu doutorado em história também pela
USP, em 1976, com uma tese intitulada versidade de Lisboa, Bellotto também lin relata uma única frustração. “Ela me
“O governo do Morgado de Mateus: Pri- “marcou mais de uma geração de arqui- pediu que tentasse criar um curso de
mórdios da restauração da Capitania de vistas” do outro lado do oceano Atlânti- arquivologia, com a participação aber-
São Paulo (1765-1775)”. Especializou-se co. Em 1989, foi professora no curso de ta aos jovens da periferia. Não consegui
em arquivística na Escuela de Documen- ciências documentais da Faculdade de realizar esse objetivo”, diz.
talistas, em Madri, na Espanha, em 1977. Letras da Universidade de Lisboa. No Suas teorias sobre a tipologia docu-
Também realizou cursos de especiali- período, publicou dois artigos nos Ca- mental e a diplomática (estudo da es-
zação nos Arquivos Nacionais de Paris, dernos de Biblioteconomia, Arquivística trutura formal do documento, da sua
em 1979, e na Administração Nacional e Documentação. “Esses textos desper- natureza jurídica e de seu contexto de
de Arquivos e Documentos dos Estados taram ou acentuaram a necessidade de produção) foram expostas em livros co-
Unidos, em Washington, em 1987. refletir sobre diversas facetas da prática mo Arquivos permanentes: Tratamento
Em 1969, tornou-se pesquisadora do de arquivista e aguçaram a vontade de documental (TA Queiroz, 1991), Diplomá-
Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) atualizar e produzir conhecimento, coin- tica e tipologia documental em arquivos
da USP. A despeito de ter se aposenta- cidindo com uma fase de renovação dos (Briquet de Lemos, 2008) e Arquivo: Es-
do em 1990, continuou orientando tra- arquivos e da formação dos arquivistas tudos e reflexões (UFMG, 2014). Segundo
balhos de pós-graduação pela FFLCH. em Portugal”, afirma a diretora do AHU. Camargo, este último contém a expres-

C
Em 1986, estruturou o curso de especia- são mais completa de seu pensamento
lização em arquivística do IEB, um dos anas, que conheceu Bellot- sobre espécies e tipos. Já o primeiro é
principais centros de formação da área to em 2006, ressalta a aten- amplamente adotado em cursos univer-
em São Paulo. Durante duas décadas, ção que a pesquisadora da sitários e concursos públicos no Brasil.
passaram por esse curso mais de 600 USP devotava aos demais. Entre os projetos que deixa inacaba-
estudantes, de todo o Brasil, da Améri- “Em particular a jovens que, dos, consta o de publicar uma edição
ca Latina e da África. “Bellotto ajudou a do Brasil, integraram o Projeto Resga- comentada dos diários de governo de
profissionalizar a carreira do arquivista. te e que, porventura, se sentiriam me- Luís António de Sousa Botelho Mourão,
Em São Paulo, por muito tempo os ar- nos acompanhados em períodos como o Morgado de Mateus (1722-1798), gover-
quivos foram dependentes do curso do o Natal. A casa em que ficava, no bairro nador colonial da capitania de São Paulo
IEB”, comenta Nicodemo. de Campo de Ourique, em Lisboa, foi no século XVIII, tema de seu doutorado
Bellotto foi fundadora do curso de gra- também, um pouco, a casa deles”, diz. e objeto dos livros Autoridade e conflito
duação em arquivologia da Universidade Bellotto integrou o conselho consulti- no Brasil colonial (Secretaria de Cultura,
de Brasília (UnB), em 1991. Sobre esse vo da Biblioteca Mário de Andrade entre 2007) e Nem o tempo nem a distância:
curso, declarou em entrevista ao site da 2013 e 2016, durante a gestão de Luiz Ar- Correspondência entre o Morgado de Ma-
universidade no ano passado que pôde mando Bagolin, hoje professor do IEB. teus e sua mulher (Aletheia, 2007). “Foi
colocar em prática suas principais ideias “Quando eu disse a ela que precisaria de um tema da vida inteira. Ultimamente
sobre a formação do arquivista: reduziu sua ajuda, já que não tinha experiência ela estava muito dedicada a esse trabalho
a proporção de aulas de história e biblio- em arquivos e bibliotecas, ela pronta- monumental”, relata Camargo. “Agora
teconomia, ampliando o tempo dedicado mente concordou em ajudar, embora planejamos fazer uma edição póstuma,
ao direito e à gestão. Lecionou também tenha comentado que eu não precisaria como homenagem a ela.”
na Universidade Federal do Estado do tanto de ajuda, já que era jovem e des- Heloísa Bellotto foi casada com o
Rio de Janeiro (Unirio), na Universidade temido”, recorda Bagolin. Confrontada também historiador Manoel Lello Bel-
Internacional da Andaluzia, em Huelva, com os problemas práticos da bibliote- lotto, falecido em 2011. Segundo Ca-
Espanha, entre outras escolas. ca, Bellotto respondeu que a principal margo, sua vasta biblioteca pessoal se-
Entre 1998 e 2011, foi consultora do medida a tomar seria insuflar vida no rá doada para o arquivo geral da USP,
projeto Resgate, ambiciosa iniciativa de espaço, “trazer as pessoas e fazê-las se cujo sistema ela ajudou a implementar.
digitalização dos documentos do Conse- sentirem bem”. Sobre o período, Bago- “É uma biblioteca extremamente espe-
lho Ultramarino do império português, cializada, além dos arquivos pessoais e
instituição responsável pela administra- de seus trabalhos por concluir”, resu-
ção das colônias. Hoje, os documentos me Camargo.
estão preservados no Arquivo Histórico Na entrevista à UnB, a historiadora
Ultramarino, em Lisboa. Bellotto coorde- resumiu sua visão sobre a arquivística
nou a recuperação dos papéis relativos à afirmando que o fascínio da profissão
capitania de São Paulo, além de preparar, é “poder organizar a informação con-
tecnicamente, os pesquisadores para o
Bellotto tida nos documentos de modo a torná-
trabalho. A historiadora afirmava que foi estruturou o curso -la acessível aos que precisam dela”. E
possível microfilmar e catalogar cerca lembrava que “ninguém procura um do-
de 300 mil documentos.
de especialização cumento por bel-prazer, mas porque
Segundo a historiadora Ana Canas em arquivística ele lhe é necessário na vida profissional
Delgado Martins, diretora do Arquivo ou particular”. Por isso, “arquivos bem
Histórico Ultramarino (AHU) e pesqui-
do Instituto de organizados são vitais para as pessoas,
sadora do Centro de História da Uni- Estudos Brasileiros para a sociedade, para os países”. n

PESQUISA FAPESP 326 | 91


OBITUÁRIO

CIÊNCIA,
ATIVIDADE
COLETIVA
Parasitologista reconhecido internacionalmente,
Erney Plessmann de Camargo reergueu
instituições científicas e sempre mostrou
preocupação com as questões sociais
Danilo Albergaria

O
parasitologista Erney Pless- dominado pela elite econômica e intelec- na avenida Dr. Arnaldo, em São Paulo,
mann de Camargo pensava tual do estado. Logo, encontrou outros com anuência da direção da faculdade.
o papel do pesquisador pa- estudantes e professores com quem se Denúncias internas orientavam interro-
ra além das contribuições identificou no Departamento de Para- gatórios de seus principais alvos – en-
científicas. Para ele, o cien- sitologia, chefiado por Samuel Pessoa tre eles, os pesquisadores da parasito-
tista tinha uma função social que não po- (1898-1976). Comunista militante, Pessoa logia. Segundo Camargo, a visão social
deria se resumir ao cultivo da própria era catedrático desde 1931. dos membros daquele grupo era a causa
carreira – a ciência deveria ser uma ati- Camargo formou-se em 1959 e foi con- dos problemas. “Mais do que a política,
vidade coletiva e visar o bem de todos. tratado como auxiliar de ensino na FM- foi o envolvimento do departamento no
“Erney não foi só um grande cientista”, -USP em 1961. No ano seguinte, começou combate às endemias brasileiras que lhe
diz a biomédica Helena Nader, da Uni- a pesquisar o crescimento e a diferencia- deu a fama de comunista, uma vez que
versidade Federal de São Paulo (Unifesp), ção celular de Trypanosoma cruzi, causa- o combate a essas endemias envolvia a
atual presidente da Academia Brasileira dor da doença de Chagas. Para entender denúncia da pobreza e das precárias con-
de Ciências. “Ele tinha uma preocupação a bioquímica do protozoário era preciso dições sanitárias da população”, relatou
com a formação de recursos humanos pa- grande quantidade deles, mas os meios à Comissão da Verdade da USP em 2015,
ra a ciência e para que a ciência pudesse de cultivo eram muito ineficientes. “Não no volume sobre a FM.
melhorar as condições de vida das pes- dava para fazer com uma ninharia de T. Logo após o IPM, começaram as de-
soas.” Pesquisador com atuação relevante cruzi”, contou a Pesquisa FAPESP, em missões e Camargo foi um dos atingidos.
no combate à malária e à doença de Cha- 2013 (edição nº 204). Depois de muitas Ainda em 1964, o zoólogo norte-ame-
gas, Camargo morreu aos 87 anos em 3 de combinações diferentes de ingredien- ricano Walter S. Plaut (1923-1990), de
março em São Paulo, em consequência de tes, obteve o meio de cultura ideal. Os passagem pelo Brasil, convidou o pes-
complicações de uma cirurgia na coluna. resultados foram publicados em 1964 quisador para trabalhar na Universidade
Natural de Campinas (SP), quando em um artigo que virou referência e é de Wisconsin em Madison, nos Estados
ingressou na Faculdade de Medicina da citado até hoje. Unidos. Camargo, casado com a profes-
Universidade de São Paulo (FM-USP), No mesmo ano veio o golpe militar sora de literatura inglesa Marisis Aranha
em 1953, Camargo era um jovem de es- e, com ele, a instauração de um inqué- Camargo e com filhos, aceitou. Em 1968,
querda, de origem modesta, em um meio rito policial militar (IPM) na FM-USP, o governo promoveu um programa de

92 | ABRIL DE 2023
O parasitologista dirigiu o Institu-
to Butantan (2002 e 2003) e presidiu o
Conselho Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico, o CNPq (2003
a 2007). “Foi uma das melhores gestões
que o CNPq teve”, avalia Nader. Presi-
dente da FAPESP de 2002 a 2007, Carlos
Vogt elogia a eficiência com que Camargo
promoveu ações entre o CNPq e as agên-
cias de fomento estaduais. Durante sua
gestão, a agência federal estabeleceu e co-
locou as plataformas Lattes e Carlos Cha-
gas on-line, importantes mecanismos de
informação e integração de pesquisado-
res. “Em todas as ações administrativas,
ele sempre se saiu com brilho. Tinha um
senso de responsabilidade e criatividade
institucional muito grande”, completa
Vogt. O parasitologista presidiu, ainda,
a Fundação Zerbini, a Comissão Técnica
Nacional de Biossegurança (CTNBio) e
a Sociedade Brasileira de Protozoologia.
Mesmo nos cargos administrativos,
Camargo nunca perdeu a pesquisa de
vista. Com o parasitologista Luiz Hilde-
brando Pereira da Silva (1928-2014), ele
formou uma destacada parceria no com-
bate à malária na Amazônia, instalando
postos avançados do ICB para pesquisa
e enfrentamento da doença.
“Erney foi um incansável defensor da
ciência, um cientista com visão social, um
O pesquisador em 2013: gestor que buscava inovar. Deixa um le-
múltiplas competências gado na ciência produzida, nos ensina-
mentos e diálogo com seus pares e alunos.
Como aluno da EPM tive a honra de tê-lo
como professor em minha graduação”,
repatriação de cientistas e ele foi convi- na cerimônia de posse de Camargo, em afirma Luiz Eugênio Mello, diretor cientí-
dado a voltar. A opção foi pela FM-USP, 1986. Segundo ele, o acontecimento teve fico da FAPESP. De acordo com Marco An-
campus de Ribeirão Preto, onde defendeu uma profunda dimensão simbólica: “Foi tonio Zago, presidente da Fundação, o pa-
sua tese de doutorado. Pouco tempo de- memorável e emocionante. Ali estava o rasitologista era preocupado com os des-
pois, foi demitido novamente em razão do representante de um departamento ex- tinos da universidade e do país. “Aprendi
recrudescimento da repressão política. cepcional, que havia sido desmontado muito com ele, em especial na transição
Depois de um período editando fascí- pela ditadura, voltando para assumir a entre a sua gestão e a minha como presi-
culos para a Editora Abril e trabalhando cátedra de Samuel Pessoa”. dente do CNPq. Tive a honra de saudá-

C
em um laboratório de análises clínicas, -lo quando recebeu o título de professor
foi contratado em 1970 pela Escola Pau- amargo liderou a reconstru- emérito da USP em 2021”, contou Zago.
lista de Medicina (EPM), atual Unifesp. ção do departamento, realo- Desde 2021, Camargo era diretor-pre-
Ao longo dos 15 anos em que atuou na cado da FM para o Institu- sidente da Fundação Conrado Wessel.
EPM, ajudou a transformar a instituição to de Ciências Biomédicas Vogt, que o sucede, afirma que ele con-
em uma referência na área e a constituir a (ICB), e foi pró-reitor de seguiu recuperar a FCW de uma situação
EDUARDO CESAR / REVISTA PESQUISA FAPESP

pós-graduação do Departamento de Mi- Pesquisa entre 1988 e 1993. “Ele sabia crítica. Belfort, que colaborou na recu-
crobiologia, Imunologia e Parasitologia. estimular os estudantes de graduação e peração da instituição, resume: “Pessoas
O retorno para a USP ocorreu duran- pós-graduação e harmonizar os diferentes como ele deixam sementes. Em todos os
te a redemocratização. Ele voltou, como cientistas nos grupos que organizou”, diz lugares pelos quais passou, gerou gru-
professor titular, ao Departamento de Rubens Belfort Junior, professor do De- pos que seguem os mesmos ideais”. Ca-
Parasitologia com a tarefa de recons- partamento de Oftalmologia da Unifesp. margo deixa a esposa, os filhos Marcelo,
truí-lo. O imunologista Osvaldo Augusto Ele exalta o sucesso de Camargo na Uni- Fernando, Eduardo e Anamaria – todos
Sant’Anna, do Instituto Butantan, esteve fesp, USP e ao liderar outras instituições. cientistas – e 11 netos. n

PESQUISA FAPESP 326 | 93


OBITUÁRIO

PARA
ENTENDER
OS RINS
Um dos mais produtivos e influentes
estudiosos de fisiologia renal,
Gerhard Malnic inspirou gerações
de pesquisadores
Danilo Albergaria

P
arte importante do conheci- “Ao longo de sua carreira, Malnic alemã para vir ao Brasil. Na infância e
mento contido nos atuais ma- conduziu pesquisas que tiveram e têm na adolescência, o jovem Gerhard que-
nuais sobre o mecanismo de até hoje grande influência sobre a com- ria seguir a mesma profissão do pai, que
excreção dos rins está ligada a preensão do funcionamento dos rins e o chegou a montar para o filho um labora-
Gerhard Malnic, um dos mais mecanismo de ação de medicamentos co- tório doméstico, no qual ele começou a
importantes e prolíficos pesquisadores mo os diuréticos”, afirma o nefrologista pegar o gosto pela experimentação que
de fisiologia renal do Brasil. Exímio e Roberto Zatz, professor da Faculdade de marcou sua trajetória profissional.
criativo experimentador, Malnic era pro- Medicina (FM) da USP. Ele explica que, O pai, no entanto, achou que ele faria
fessor do Departamento de Fisiologia e nos anos 1960, Malnic deu contribuições melhor cursando medicina e o conven-
Biofísica do Instituto de Ciências Bio- decisivas para a elucidação de dois pro- ceu disso. Malnic ingressou na FM em
médicas da Universidade de São Paulo cessos fundamentais para a manutenção 1952. No segundo ano de graduação, in-
(USP). O fisiologista morreu em 25 de pelos rins da composição química do teressou-se pela fisiologia e começou a
fevereiro aos 89 anos. Dedicou a vida organismo dos mamíferos: “A regula- trabalhar com pesquisas em laboratório
quase inteiramente à pesquisa, à for- ção da excreção urinária de potássio e a convite do fisiologista Alberto Carvalho
mação de novos cientistas, ao ensino e os mecanismos de excreção urinária de da Silva (1916-2002), que teve intensa
à administração universitária. ácidos”. Chaimovich afirma que se trata participação na FAPESP como membro
A rigor, o pesquisador nunca parou de de um conhecimento importante, pois do Conselho Superior, diretor científico
trabalhar, apesar de compulsoriamente se aplica às drogas que regulam a atua- e diretor-presidente do Conselho Técni-
aposentado aos 70 anos. O bioquímico ção dos rins e permitem compreender a co-Administrativo (CTA). Naturalizou-se
Hernan Chaimovich, professor emérito ação dos hormônios sobre a capacidade brasileiro em 1956. Após se formar, em
do Instituto de Química da USP, sempre fisiológica que os órgãos têm de filtrar 1957, publicou seu primeiro artigo dois
se impressionou com a solidez e a conti- o sangue e manter o equilíbrio de ácido anos depois e concluiu seu doutorado em
nuidade do interesse de Malnic na ciên- base e salino do nosso corpo. 1960. O trabalho foi orientado por Carva-
cia. “Ele começou a publicar artigos em Filho de um casal austríaco, Malnic lho da Silva e dedicado à compreensão do
1959 e continuou publicando até 2022. É nasceu em Milão, em 1933. Seu pai era mecanismo de excreção dos rins, seguin-
toda uma vida dedicada a compreender químico na indústria têxtil italiana e em do a dica do orientador sobre o potencial
os rins. É extraordinário”, diz. 1937 foi contratado por uma empresa de descobertas nessa área.

94 | ABRIL DE 2023
O pesquisador
no laboratório,
em 2000

tidos por doação para poder continuar O bioquímico Walter Colli, professor
as pesquisas e montar um laboratório emérito da USP, conta que participava
na USP. Mesmo com os equipamentos com Malnic de frequentes discussões
certos para realizar micropunções ne- sobre política científica. “Era uma pes-
cessárias às medições detalhadas de po- soa suave, gentil, que nunca elevava a
tássio e sódio nos rins dos ratos era pre- voz”, descreve. “Não era agressivo nem
ciso grande dose de habilidade manual submisso. Era quieto, mas tinha sempre
e paciência. Segundo seus colegas, ele uma palavra de ponderação.” Zatz o viu
as tinha de sobra. Gostava de realizar os como um homem extremamente acessí-
experimentos com seus alunos, e assim vel e afável: “Estava sempre disponível a
o fez até o final de sua carreira. orientar e dirimir dúvidas de seus alunos

A
de graduação e pós-graduação, a quem
paixão pela dimensão empí- respondia de modo sempre atencioso e
rica da ciência só se compa- detalhado”.
rava ao seu amor pela músi- Quando Chaimovich veio do Chile,
ca – chegou a ser violinista onde nasceu, para pesquisar no Brasil
da orquestra amadora da em 1969 e testemunhou prisões arbi-
FM-USP. Óperas de Mozart e Wagner trárias e perseguição a colegas da USP,
costumavam acompanhar os experimen- como Isaias Raw (1927-2022) e Carvalho
tos. “A imagem do Malnic que mais me da Silva, teve vontade de voltar. “Mas
vem à memória é a dele trabalhando com com Malnic eu não me sentia isolado
Em seguida, num congresso em Bue- a mão, no laboratório, enquanto ouvia aqui no Brasil”, diz ele. “Além das con-
nos Aires, Malnic fez contato com uma música erudita num toca-discos meio versas científicas de alto nível, falar com
das autoridades em fisiologia renal antigo”, relata Chaimovich. É uma ima- ele me fazia sentir acolhido emocional-
da época, o norte-americano Robert gem que costumeiramente aparece nos mente. Era uma pessoa de imensa bon-
Franklin Pitts (1908-1977). Pitts o con- relatos de quem o conheceu. dade e desprendimento.”
vidou para ir aos Estados Unidos se jun- Malnic desenvolveu novas técnicas e “Malnic ensinou, inspirou e motivou
tar a dois estudantes seus, coinciden- até construiu novos aparatos de experi- muitos de nós. Foi um exemplo de elegân-
temente austríacos, que pesquisavam mentação, como relatou em 2010, em en- cia e humildade. Um cientista brilhante
técnicas inovadoras de micropunção de trevista a Pesquisa FAPESP. Zatz explica com quem tive a oportunidade de traba-
rins de ratos. Em 1961, Malnic recebeu que essas inovações foram fundamentais lhar e de aprender”, declarou à Agência
uma bolsa da Fundação Rockefeller pa- para a coleta de dados que permitiram Fapesp o neurocientista Luiz Eugênio
ra fazer pós-doutorado na Universidade análises de quantidades muito pequenas Mello, diretor científico da FAPESP.
Tulane, em Nova Orleans, e no labora- de fluido colhido de estruturas renais Bettina Malnic, professora de bioquí-
tório de Pitts na Universidade Cornell, microscópicas. Dessas análises, ainda mica da USP e uma de suas filhas, indica
em Nova York. Com Gerhard Giebisch na década de 1960, resultaram estudos o nível de dedicação do pai à ciência:
(1927-2020), um dos jovens pesquisa- sobre como os rins fazem a excreção de “Para ele, a USP não era apenas o seu
dores austríacos, Malnic aprimorou as ácidos, um dos processos que Zatz cita local de trabalho, mas também a sua ca-
técnicas de micropunção que possibili- como fundamentais e que foram escla- sa”. Ela conta que sua mãe, Margot Petry
taram descobertas sobre como se dá a recidos por Malnic. Malnic (1935-2019), que foi professora de
excreção de potássio nos túbulos renais. O fisiologista também foi relevante língua alemã da USP, fazia graça dizendo
Suas primeiras publicações de gran- no âmbito da administração acadêmica que o marido era, na verdade, “casado”
de impacto ocorreram durante os anos e da política científica. Foi presidente da com a universidade. E diz que os ami-
em que pesquisou nos Estados Unidos. Sociedade Brasileira de Biofísica e da So- gos brincavam que sabiam quando ele
CAROL QUINTANILHA

Em 1964, Malnic voltou ao Brasil com ciedade Brasileira de Fisiologia. Dirigiu estava de férias – a diferença é que ele
uma grande bagagem experimental, em o Instituto de Estudos Avançados (IEA) ia trabalhar de tênis. Além de Bettina,
sentido figurativo e literal: trouxe nas da USP e presidiu a Federação de Socie- Malnic deixa a filha Beatriz, cantora, e
malas vários aparatos laboratoriais ob- dades de Biologia Experimental (FeSBE). três netas. n

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RESENHA

Livros impressos em guarani nas missões jesuíticas


Marina Massimi

A
impressão nas missões jesuíticas do Pa- meio de relatórios e cartas jesuíticas, mas sem
raguai – Século XVIII é uma publicação exemplares sobreviventes. Finaliza o livro a lista
conjunta da Biblioteca Brasiliana Guita das fontes consultadas, manuscritas, impressas,
e José Mindlin e da Editora da Universidade de de obras de referência sobre jesuítas, Guaranis,
São Paulo. A autora, Fernanda Verissimo, possui missões do Paraguai, história da impressão e do
formação interdisciplinar nos campos de história livro, e uma bibliografia geral.
moderna e de bibliografia e estudos textuais. O A importância do trabalho de Verissimo merece
interesse pela história dos livros impressos nas ser destacada sob duas perspectivas. A primeira
missões jesuítico-guaranis levou-a a realizar in- diz respeito à historiografia do livro e da impren-
vestigações na biblioteca John Carter Brown em sa, por abordar uma contribuição original e pou-
Providence, nos Estados Unidos, cujo fruto é a co conhecida surgida na América Meridional no
obra que aqui apresentamos. Nela, Verissimo rea- limiar do século XVIII. A segunda é o mérito de
A impressão nas liza cuidadosa e original análise bibliográfica dos introduzir o leitor brasileiro ao conhecimento de
missões jesuíticas livros impressos em idioma guarani, nas missões um aspecto significativo e inerente a eventos que
do Paraguai –
Século XVIII
dos padres jesuítas nos territórios guaraníticos, foram decisivos para a história latino-americana
Fernanda Verissimo ao longo dos séculos XVII e XVIII, conhecidas e brasileira – as missões jesuíticas nos territórios
Edusp também como “reduções”. guaraníticos, “uma experiência única na história
288 páginas O amplo percurso de reconstrução histórica das missões cristãs”, conforme a autora. Apesar de
R$ 94,00
necessário para contextualizar a existência desses uma extensa quantidade de artigos relatando pes-
documentos é justificado na apresentação: “Me quisas nacionais e internacionais dedicadas a esse
dei conta de que aquilo que considerava apenas tema (quantidade documentada apenas em parte
um ‘detalhe’ só poderia ser entendido se coloca- na bibliografia elaborada por Verissimo), essa am-
do dentro do ambicioso projeto missionário dos pla produção historiográfica ainda pouco espaço
jesuítas e de modo mais amplo, estudado pela encontra na forma de livros destinados ao público.
vasta documentação escrita sobre e pelos ina- O trabalho de Verissimo integra um extenso e
cianos”. A introdução que precede as três par- recente esforço intelectual que empenha investi-
tes do livro ilustra e discute sucintamente esse gadores de vários países latino-americanos e de
campo de estudos. outros hemisférios, como Gian Paolo Romanato,
A primeira parte aborda a função da escrita, Carlos Page, Eduardo Neumann, Arthur Barcelos
das letras e da impressão no âmbito da Compa- e Jaqueline Ahlert.
nhia de Jesus e foi distribuída em três capítulos, Essa recente historiografia na qual o livro de
cada um dedicado à expansão e estratégias de Verissimo se insere aponta para a função estraté-
evangelização na Ásia, na América e na África, gica do processo de acomodação do projeto edu-
ao papel da impressão para os inacianos, à função cativo e evangelizador da Companhia de Jesus
da alfabetização, do conhecimento dos idiomas às culturas e línguas nativas e, ao mesmo tempo,
nativos, da escrita e da impressão na história da ressalta o protagonismo ativo das populações gua-
Companhia de Jesus nas Américas e em parti- ranis que possibilitou sua realização. Tal esforço
cular na província do Paraguai. A segunda parte conjunto deu vida a um fenômeno cultural único
trata, no âmbito da América colonial, do trabalho e inovador no contexto latino-americano. A im-
desenvolvido pelos jesuítas com destaque para os pressão de livros em guarani é um dos frutos mais
primeiros catecismos e gramáticas em guarani e significativos, especialmente se considerarmos
para a história da impressão nas Missões do Pa- que, na Colônia lusitana, a impressão de textos
raguai. A autora demonstra que, na perspectiva era proibida pela Metrópole e a escrita era um
dos inacianos, a impressão se tornara um instru- privilégio restrito à elite dominante.
mento para a formação de um “guarani jesuíta” e
de uma elite letrada. A terceira parte é dedicada
Marina Massimi lidera o grupo de pesquisa “Tempo, memória e
à análise bibliográfica de 10 livros impressos nas pertencimento” no Instituto de Estudos Avançados da Universidade
Missões e às obras impressas conhecidas por de São Paulo (IEA-USP).

96 | ABRIL DE 2023
FUNDAÇÃO DE AMPARO À PESQUISA DO ESTADO DE SÃO PAULO
COMENTÁRIOS cartas@fapesp.br

PRESIDENTE
Marco Antonio Zago

VICE-PRESIDENTE
Ronaldo Aloise Pilli Mulheres no serviço público
CONSELHO SUPERIOR
Sou da educação pública estadual de São
Paulo. Há diretoras, coordenadoras e
Carmino Antonio de Souza, Helena Bonciani Nader, Herman
Jacobus Cornelis Voorwald, Ignácio Maria Poveda Velasco, Liedi
Legi Bariani Bernucci, Mayana Zatz, Mozart Neves Ramos, Pedro
Luiz Barreiros Passos, Pedro Wongtschowski, Thelma Krug diretoras de ensino. Contudo na pasta de
CONSELHO TÉCNICO-ADMINISTRATIVO Educação, os titulares quase sempre são
DIRETOR-PRESIDENTE
Carlos Américo Pacheco
homens. Minha experiência corrobora
DIRETOR CIENTÍFICO o relatório exposto em “Tetos de vidro,
Luiz Eugênio Mello
paredes de cristal” (edição 325).
DIRETOR ADMINISTRATIVO
Fernando Menezes de Almeida Bruno Kestutis

Teatro e música
ISSN 1519-8774 Como artista, pesquisadora e orientadora,
COMITÊ CIENTÍFICO
ensino exatamente isso a alunos (“Arte x
Luiz Nunes de Oliveira (Presidente),
Agma Juci Machado Traina, Américo Martins Craveiro, Anamaria
Escravidão”, edição 325). Bom saber que há
Aranha Camargo, Ana Maria Fonseca Almeida, Angela Maria Alonso,
Carlos Américo Pacheco, Claudia Lúcia Mendes de Oliveira, Deisy
Inteligência artificial mais um livro para poder estudar e indicar.
das Graças de Souza, Douglas Eduardo Zampieri, Eduardo de Senzi
Zancul, Euclides de Mesquita Neto, Fabio Kon, Flávio Vieira Meirelles,
Perguntei ao ChatGPT se ele era mais Juliana Calligaris
Francisco Rafael Martins Laurindo, João Luiz Filgueiras de Azevedo,
José Roberto de França Arruda, Lilian Amorim, Lucio Angnes, Luciana
inteligente do que eu e ele disse que sim
Harumi Hashiba Maestrelli Horta, Luiz Henrique Lopes dos Santos,
Mariana Cabral de Oliveira, Marco Antonio Zago, Marie-Anne Van Sluys,
(“O universo expandido da inteligência Peixes da América Latina
Maria Julia Manso Alves, Marta Teresa da Silva Arretche, Reinaldo
Salomão, Richard Charles Garratt, Roberto Marcondes Cesar Júnior,
artificial”, edição 325). Aí perguntei se Grande diversidade requer mais es-
Wagner Caradori do Amaral e Walter Collii
conhecia as bactérias do gênero Ric- forços de proteção (“Peixe para todo
COORDENADOR CIENTÍFICO
Luiz Nunes de Oliveira kettsia, quantas doenças elas causam e gosto”, edição 325). Infelizmente, tal
DIRETORA DE REDAÇÃO quantas espécies de carrapatos existem. não ocorre. Biopirataria e degradação
Ele simplesmente bugou. ambiental comprovam o descaso. Rio
Alexandra Ozorio de Almeida

EDITOR-CHEFE
Neldson Marcolin Gabriel Gomes Doce, Sobradinho e evasão de espécies
EDITORES Fabrício Marques (Política C&T), Glenda Mezarobba
(Humanidades), Marcos Pivetta (Ciência), Yuri Vasconcelos
são desastres oriundos da desídia de
(Tecnologia), Carlos Fioravanti e Ricardo Zorzetto (Editores especiais) Há cada vez mais necessidade de ensinar nossas instituições.
REPÓRTERES Christina Queiroz e Rodrigo de Oliveira Andrade
aos alunos a importância da pesquisa Fatima Facchinetti
MÍDIAS DIGITAIS Fabrício Marques (Coordenador), Maria
Guimarães (Editora executiva), Renata Oliveira do Prado (Editora
científica. Aderir às inovações tecno-
de mídias sociais), Jayne Oliveira (Analista digital), Kézia Stringhini
(Redatora on-line), Vitória do Couto (Designer digital) e
lógicas requer senso crítico e reflexivo, Correção
Sarah Caravieri (Produtora do programa de rádio Pesquisa Brasil)
precisamos falar disso nas universidades. Na nota “Uma receita para preservar o
ARTE Claudia Warrak (Editora),
Júlia Cherem Rodrigues e Maria Cecilia Felli (Designers), Usar o ChatGPT como uma estratégia de corpo após a morte”, publicada na edição
Alexandre Affonso (Editor de infografia), Felipe Braz (Designer digital),
Amanda Negri (Coordenadora de produção) aprendizagem pode ser uma boa con- 325, onde se lê óleo de castor, o correto
FOTÓGRAFO Léo Ramos Chaves tribuição no processo do aprendiz, mas é óleo de rícino, ou mamona.
BANCO DE IMAGENS Valter Rodrigues plágio é crime e os alunos precisam estar
REVISÃO Alexandre Oliveira e Margô Negro conscientes disso. Sua opinião é bem-vinda. As mensagens poderão ser re-
COLABORADORES Ana Paula Orlandi, Cassiana Montagner,
Danilo Albergaria, Diego Viana, Domingos Zaparolli, Efe Godoy,
Debora Vieira sumidas por motivo de espaço e clareza.
Fábio Passos, Frances Jones, Giselle Soares, Janaína Vieira,
Jônatas Moreira, Marina Massimi, Renato Pedrosa, Rodrigo Cunha,
Sinésio Pires Ferreira, Suzana Lefèvre

REVISÃO TÉCNICA Américo Craveiro, Ana Maria Fonseca


de Almeida, Angela Alonso, Claudia Oliveira, Deisy de Souza,
ASSINATURAS, RENOVAÇÃO CONTATOS
Fábio Kon, Francisco Laurindo, Jean Ometto, José Roberto Arruda,
Lilian Amorim, Marta Arretche, Rafael de Oliveira, Walter Colli
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Intrusos longevos
Ao estudar a poluição urbana em uma mata ciliar na região de Campinas, interior
de São Paulo, o grupo da química Cassiana Montagner encontrou um testemunho
bem visível da permanência do plástico: uma garrafa PET engolfada por
uma árvore. O recipiente estava bem preso pelo tecido vegetal. Deve ter caído
encostado ao pé da planta entre dois e três anos antes, na estimativa da
pesquisadora. Os poluentes que ela estuda costumam ser menores, até quebrados
em pedacinhos microscópicos. A imagem é, para ela, simbólica da longevidade
do plástico e dos potenciais danos que causa ao ambiente.

Imagem enviada por Cassiana Montagner, professora no Instituto de Química


da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)

98 | ABRIL DE 2023
S AV E T H E D AT E

MAY 16th to 17th

Para mais
informações:

SUSTAINABLE ENERGY TRANSITION

Presencial na FAPESP e transmissão pelo canal da Agência FAPESP no


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DE TODO O PAÍS

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