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BR

DEZEMBRO DE 2022 | ANO 23, N. 322

MUSEUS
EM
TRANSFORMAÇÃO
Novas propostas de curadoria
promovem a descoberta de
coleções e a releitura de obras

Inteligência Comportamento Pesquisas de Artigos Testes genéticos


artificial começa de torcedores Maria Cristina cancelados identificam doenças
a ser usada na área e papel social Kupfer trazem continuam raras e ajudam
da saúde, mas impulsionam olhar inovador sendo citados no diagnóstico
desafios precisam estudos sobre para o autismo como se e tratamento
ser superados futebol infantil fossem válidos de câncer
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FAPESP
REPORTAGENS E XCLUSIVAS

V Í D E O S, P O D C A S T S E G A L E R I A S D E I M A G E N S

ATUALIZ AÇÕES FREQUENTES

NAVEGAÇÃO SIMPLES

CO M PAT Í V E L CO M D I S P O S I T I VO S M ÓV E I S

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revistapesquisa.fapesp.br
5 CAPA PRODUÇÃO CIENTÍFICA
LÉO RAMOS CHAVES / REVISTA PESQUISA FAPESP

CARTA DA EDITORA
16 Avanço do 32 Artigos retratados
6 BOAS PRÁTICAS conhecimento científico continuam sendo citados
Razões da menor se reflete nas propostas como se fossem válidos
influência de artigos curatoriais de museus
em física escritos CIENTOMETRIA
por mulheres 18 História: estratégias 36 Papers com pouca
para objetos esquecidos repercussão ganharam
9 DADOS e propostas de outras visibilidade na pandemia
Títulos de doutorado leituras
seguem em número ENTREVISTA
inferior que na 23 Etnografia: novos 38 Pensar nunca fez
pré-pandemia sentidos a partir do diálogo mal à sociedade, diz a física
com povos indígenas Yvonne Mascarenhas
10 NOTAS
ENTREVISTA SAÚDE
26 Maria Cristina 42 Testes genéticos
Kupfer trabalha entre estão mais próximos da
a psicanálise e a educação prática clínica ›››
com crianças autistas

322

Estudos sobre futebol

DEZEMBRO 2022
são multidisciplinares
(ESPORTE, P. 78)
Detalhe do painel WWW.REVISTAPESQUISA.FAPESP.BR
frontal do Patinho Feio
(CIÊNCIA DA
COMPUTAÇÃO, P. 75)

VÍDEO
Panc, biodiversidade para
um prato mais saudável
Plantas Alimentícias
Não Convencionais são
alimentos pouco conhecidos
pela maioria da população

VÍDEO
Estudos acadêmicos
ganham as telas
1 Os desafios de transformar
uma pesquisa científica
ARQUEOLOGIA INDICADORES 88 OBITUÁRIO no documentário + Médicos
48 Neandertais se 66 Métrica avalia Herch Moysés
alimentavam quase empresas inovadoras que Nussenzveig (1933-2022)
exclusivamente de caça geram muitos empregos
90 MEMÓRIA PODCAST
ECOLOGIA TECNOLOGIA Nascido há 200 anos, Desmatamento,
50 Comunicação 70 Inovação frugal busca, Pasteur lançou as bases evolução, memória
sonora teria surgido há com usuários, eficiência da microbiologia Razões da crescente emissão
400 milhões de anos e baixo custo de gases de efeito estufa
94 ITINERÁRIOS na Amazônia, estratégias
AGRICULTURA CIÊNCIA DA COMPUTAÇÃO DE PESQUISA de camuflagem na
52 Crescimento da safra 75 Primeiro computador Pedro Develey usa natureza e a trajetória de
de soja se deve a melhor brasileiro foi criado formação acadêmica em pesquisa que virou
rendimento e maior área na Poli-USP há 50 anos ONG para preservação documentário premiado
de cultivo de aves
ESPORTE
AMBIENTE 78 Futebol deixa de ser 96 RESENHA Este conteúdo está disponível no site
56 Pesquisa mede visto como objeto de estudo Golpe de Estado: www.revistapesquisa.fapesp.br,
pegada de carbono da menor nas ciências humanas História de uma ideia, que contém, além de edições
produção de alimentos de Newton Bignotto. passadas, versões em inglês
LITERATURA Por Tessa Moura Lacerda e espanhol e conteúdo exclusivo
FÍSICA 84 Componente erótico
58 Exótica fase da da obra de Mário de Andrade 97 COMENTÁRIOS
matéria pode ajudar permanece um tabu 98 FOTOLAB
computadores quânticos
FOTOS 1 LÉO RAMOS CHAVES / REVISTA PESQUISA FAPESP 2 STORYBLOCKS

TECNOLOGIA DA
INFORMAÇÃO
60 Inteligência artificial 2

chega a sistemas na
Pesquisa sobre
área médica, mas precisa o programa
superar desafios Mais Médicos virou
documentário
(VÍDEO)

Capa
Claudia Warrak,
com fotos de Léo Ramos Chaves

Quarta capa
Foto Hélio Nobre
CARTA DA EDITORA

Ressignificados e diagnósticos
Alexandra Ozorio de Almeida | DIRETORA DE REDAÇÃO

O
que é um museu? A pergunta não parece Tratamentos terapêuticos, ela defende, podem
excepcionalmente difícil de responder. O ajudar o indivíduo em sua angústia de estar com
dicionário Houaiss, por exemplo, o des- os outros (página 26).
creve como “uma instituição dedicada a buscar, Evoluções importantes na direção de diagnósti-
conservar, estudar e expor objetos de interesse cos mais precisos estão chegando ao atendimento
duradouro ou de valor artístico, histórico etc.”. médico. A significativa queda do custo de sequen-
O Conselho Internacional de Museus, uma ciamento de DNA nas duas últimas décadas per-
associação representativa baseada em Paris, le- mitiu um aumento das informações disponíveis
vou seis anos até chegar a uma nova definição. sobre os genes; as análises desses grandes volu-
O debate sobre a necessidade de renovar o con- mes de dados provenientes dos sequenciadores
ceito supera a ideia tradicional de um lugar de são facilitadas pela evolução das ferramentas de
conservação, exibição e pesquisa de heranças bioinformática. A chamada medicina de precisão
culturais tangíveis e intangíveis da humanidade e está mais próxima, embora ainda longe da maior
acrescenta uma dimensão atualizada de museus parte da população e restrita a algumas doenças
como centros promotores de desenvolvimento raras causadas por defeitos em um só gene, cer-
social, ativamente engajados em questões polí- tos problemas cardíacos e metabólicos, e deter-
ticas e sociais. minados tipos de câncer (página 42).
Impactos da discussão e do novo conceito já A inteligência artificial (IA) está por trás de
são visíveis nas propostas de curadoria de alguns algumas dessas ferramentas de bioinformáti-
museus e exposições. A reportagem de capa desta ca. O princípio é que algoritmos acessem es-
edição apresenta alguns caminhos que vêm sendo sas grandes quantidades de dados, encontrem
trilhados, que podem incluir a participação de di- padrões e sugiram soluções de forma rápida e
ferentes segmentos da sociedade, a redescoberta (espera-se) com alto índice de acerto. Objeto
de objetos nas reservas técnicas e a reapresen- de muitos investimentos, a IA é outra promessa
tação de obras por um prisma crítico, não mais de melhoria na prestação de serviços na área
como retrato fidedigno da realidade. A jornalis- da saúde e começa a ser usada no diagnóstico
ta Christina Queiroz nos conduz pelas questões e na triagem de algumas doenças, no auxílio a
conceituais e por suas aplicações em museus atendimentos clínicos, na vigilância de doenças,
históricos, etnográficos e de arte (página 16). na gestão de sistemas de saúde, entre outras
A ressignificação também marca o trabalho de aplicações (página 60). Ainda bastante restrita,
Maria Cristina Kupfer, dedicado à inclusão de a IA enfrenta desafios significativos: questões
crianças psicóticas e autistas. Com uma trajetó- técnicas, éticas e legais impedem a dissemina-
ria unindo psicologia e educação, ela acrescenta ção de seu uso na área médica.
ao diagnóstico neurológico de transtorno do es- Esta é a última edição do ano e é sempre bem-
pectro autista a dimensão psíquica, enxergando -vinda a oportunidade de agradecer a quem nos
o autismo como um modo de ser. Para Kupfer, lê, escuta nosso programa de rádio e podcast,
como a psique se constrói a partir da relação com vê nossos vídeos, assina nossas newsletters e
o outro, ao apresentarem problemas no desen- nos acompanha nas mídias sociais. A equipe de
volvimento neurológico, essas crianças enfren- Pesquisa FAPESP deseja um ótimo 2023, com
tam dificuldades em construir essas ligações. muita ciência e decisões informadas.

PESQUISA FAPESP 322 | 5


BOAS PRÁTICAS
A charada do D
ois artigos da área de física publicados em
outubro revelaram novas nuanças de um fe-
nômeno conhecido: a baixa repercussão da

desequilíbrio contribuição científica de mulheres quando com-


parada à de homens. Um dos estudos foi divulga-

de gênero
do na revista Nature Physics e aponta fatores que
colaboram para o chamado viés de citação, que é a
tendência de haver na bibliografia de um paper mais

na ciência referências a trabalhos de autores do sexo mascu-


lino do que do feminino. Um grupo liderado pela
física Erin Teich, do Wellesley College, instituição
Estudos ajudam a compreender as razões de ensino superior para mulheres em Massachu-
da menor repercussão de trabalhos em setts, nos Estados Unidos, analisou 1,07 milhão de
documentos publicados entre 1995 e 2020 em 35
física publicados por mulheres e sugerem periódicos da disciplina.
caminhos para reduzir a disparidade A equipe observou que os manuscritos em que ho-
mens ocupavam as duas posições de maior prestígio
na lista de autores – a primeira e a última – tinham,
em média, 4,23% mais chances de serem citados. De
acordo com os resultados, a vantagem dos pesquisa-
dores do sexo masculino é impulsionada por referên-
cias com perfis específicos, oriundas, por exemplo,
de colegas homens e de pesquisadores com pouco
domínio ou familiaridade com o tema do artigo. O as-
sunto abordado também parece ter influência: revistas
sobre temas gerais da física e física de altas energias

6 | DEZEMBRO DE 2022
registraram os maiores desequilíbrios. “Decidir qual nos periódicos que tinham mais artigos assinados
vai ser a citação é uma escolha individual, mas os por mulheres. “Isso levanta a possibilidade de que
efeitos cumulativos dessas escolhas prejudicam des- um aumento do número de autores do sexo femi-
necessariamente um subconjunto de pesquisadores”, nino em uma revista possa levar a uma diminuição
tuitou Dani Bassett, neurocientista da Universidade no desequilíbrio de citações de gênero”, comple-
da Pensilvânia, que também assina o trabalho. menta Bassett, sugerindo que periódicos ampliem
O segundo paper, que saiu no periódico Communica- a publicação de papers assinados por físicas – elas
tions Physics, analisou cerca de 540 mil publicações ao poderiam, por exemplo, produzir mais artigos de
longo de 116 anos em 11 títulos indexados no banco de revisão de literatura feitos sob encomenda.
dados da American Physical Society. De um conjunto

O
de 120.776 autores, 103.013 eram do sexo masculino e s periódicos podem ajudar a reduzir o viés
17.763 do feminino. A análise mostrou que artigos de de citação não apenas atraindo mais tra-
mulheres tendem a ter menos visibilidade e isso gera balhos feitos por mulheres. Editores de
desvantagem para elas em rankings de citação. Entre revistas científicas de disciplinas como sociolo-
os fatores que contribuem para o maior número de gia e ciência política e, mais recentemente, ecolo-
citações masculinas, o mais crucial é a “vantagem do gia e ciência da computação adotam na avaliação
pioneirismo”. Foram comparados pares de artigos com de manuscritos submetidos para publicação uma
conteúdo científico semelhante. O artigo publicado estratégia conhecida como duplo-cego – na qual
primeiro tende a receber mais citações, mas a pro- nem o revisor nem o autor do manuscrito sabe a
pensão é mais significativa quando o artigo pioneiro identidade e o gênero um do outro. Esse esquema
é assinado por um homem e o mais tardio por uma contrasta com o padrão da maioria das áreas do
mulher. Por se assenhorearem de um novo tópico de conhecimento, em que o revisor mantém o ano-
pesquisa rapidamente, os físicos do sexo masculino nimato, mas o nome de quem assina é aberto. Há
têm chance maior de formar redes de colaboração e evidências pontuais de que a estratégia ajudaria
de ganhar reconhecimento. “Ao avaliar pares de ar- a reduzir o viés de gênero. Um estudo publicado
tigos semelhantes, descobrimos que a vantagem do na Trends in Ecology & Evolution escrito em 2008
pioneirismo impulsiona significativamente a dispari- por Amber Budden, da Universidade de Toronto,
dade de citações”, informa o levantamento, liderado mostrou que a adoção do esquema duplo-cego na
por Fariba Karimi, cientista social computacional do revista Behavioural Ecology a partir de 2001 levou
Complexity Science Hub, em Viena, Áustria. a um aumento de 7,9% na proporção de artigos com
Na comunidade de pesquisa em física, a quanti- mulheres como autoras principais. Mas ainda há
dade de homens supera largamente a de mulheres. ceticismo em relação à efetividade desse expedien-
Segundo um estudo divulgado pela editora Elsevier te. De um lado, o efeito alcançado na Behavioural
em 2020, entre os 23.376 autores brasileiros de ar- Ecology não se repetiu em todos os periódicos que
tigos de física e astronomia publicados na base de aplicaram o duplo-cego. De outro, é cada vez maior
dados Scopus de 2014 a 2018, 71% eram do sexo a proporção de artigos que têm versões prelimina-
masculino e 29% do feminino. Nas ciências sociais res divulgadas em repositórios de preprints antes
e da saúde, costuma haver maior equilíbrio, enquan- de serem submetidos para publicação – e, dessa
to em enfermagem e psicologia homens são franca forma, fica fácil descobrir quem é o autor.
minoria. Embora as disciplinas possam ter perfis Há uma série de ferramentas computacionais que
de gênero distintos, o viés de citação desfavorável ajudam a detectar e prevenir o viés de citação. Um
às mulheres parece ser tão disseminado, que não exemplo é o Gender Balance Assessment Tool, cria-
poupa sequer os pesquisadores de elite. Um trabalho do em 2018 pela cientista política Jane Sumner, da
lançado em setembro na revista Proceedings of the Universidade de Minnesota, com o objetivo de ajudar
National Academy of Sciences analisou a produção a equilibrar a bibliografia recomendada de discipli-
dos membros da Academia Nacional de Ciências dos nas de graduação e pós-graduação e as referências
Estados Unidos e observou que os homens tiveram de papers. O recurso, disponível em jlsumner.shin-
em média 14 mil citações a mais ao longo da vida yapps.io/syllabustool/, analisa os nomes de autores
do que as mulheres.
J. A. HAMPTON / TOPICAL PRESS AGENCY / GETTY IMAGES

dos trabalhos selecionados e atribui a cada um deles


Para além da compreensão do fenômeno, pes- a probabilidade de pertencer a uma mulher. A esti-
quisadores também têm avançado na formulação mativa mostra se há disparidade de gênero, permi-
de estratégias para enfrentá-lo. O artigo da Nature tindo calibrar melhor as referências. Existem outros
Physics observa, por exemplo, que a escassez de ci- instrumentos com funcionalidades semelhantes,
tações a mulheres era mais notável em artigos com como a Clean Bib, disponível em github.com/dale-
listas de referência bibliográfica curtas. “Isso suge- jn/cleanBib. O estudo da Nature Physics recomen-
re a possibilidade de que a remoção dos limites de da que a avaliação sobre a bibliografia de um artigo
tamanho nas listas de referência possa ser benéfica produzida por essas ferramentas seja anexada ao
para promover a igualdade de gênero”, afirmou Dani conteúdo do trabalho, na forma de uma Declaração
Bassett. O exagero nas menções a homens era menor de Diversidade de Citações. n Fabrício Marques

PESQUISA FAPESP 322 | 7


Astrônomo que dirigiu observatório europeu
é destituído de universidade por assédio

O
astrônomo Tim de Zeeuw, dire- Em 18 de outubro, a universidade Segundo a advogada, a investigação
tor-geral do Observatório Eu- anunciou o afastamento de um pro- da universidade concluiu que houve as-
ropeu do Sul (ESO) entre 2007 fessor de astronomia, mas não citou o sédio sexual com base em uma corres-
e 2017, foi destituído de suas funções nome alegando restrições impostas pe- pondência por e-mail e em pelo menos
na Universidade de Leiden, nos Países la lei de privacidade dos Países Baixos. uma “abordagem física indesejada”. Mas
Baixos, após uma investigação concluir Isso gerou especulações e levou astrô- negou que seu cliente tivesse um “com-
que ele intimidou subordinados e teve nomos da instituição a anunciarem que portamento sexualmente transgressivo”,
comportamentos “extremamente ina- não eram o alvo da punição. “Se você como foi apontado em reportagens da
ceitáveis” com colegas do sexo feminino. me perguntar se sou eu o professor de- imprensa holandesa. O Instituto Max
De acordo com um comunicado assi- mitido da Universidade de Leiden, não Planck de Física Extraterrestre, em Gar-
nado pela presidente do Conselho Exe- sou eu”, tuitou Christoph Keller, dire- ching, Alemanha, ao qual o astrônomo
cutivo da universidade, Annetje Ottow, a tor de ciências do Observatório Lowell, era afiliado, anunciou que rompeu laços
investigação apurou denúncias de abuso nos Estados Unidos, professor visitante com ele após as conclusões da inves-
de poder, discriminação de gênero e di- de Leiden. tigação da Universidade de Leiden. O
famação e menosprezo de funcionários. No dia 26, depois de ter seu nome ESO, consórcio de 14 países europeus
“Também inclui comportamento inade- mencionado em jornais, Tim de Zeeuw que administra três sítios de observação
quado com elementos de intimidação reconheceu que se tratava dele. Em de- astronômica no Chile, informou que não
sexual: desde comentários até conta- claração à revista Science feita por meio tem mais vínculos com o ex-diretor des-
to físico indesejado”, escreveu Ottow. de sua advogada, Merienke Zwaan, ad- de 2017, mas proibiu seu acesso a insta-
“Tudo isso sob a constante ameaça de mitiu ter sido “desagradável e impacien- lações e reuniões e cancelou a conta de
prejudicar a carreira dos denuncian- te à moda antiga” e disse que “já não se e-mail que ele mantinha por cortesia.
tes.” O astrônomo está proibido de entrar encaixa no espírito atual dos tempos”, Em abril de 2013, Tim de Zeeuw con-
na universidade e de orientar alunos de mas afirmou não concordar com a deci- cedeu uma entrevista ao site de Pesqui-
doutorado, mas irá manter o emprego e o são da universidade. “Nunca foi minha sa FAPESP, a propósito da adesão do
salário, por estar perto da aposentadoria. intenção ferir ou prejudicar as pessoas.” Brasil ao ESO.

Inteligência artificial para verificar citações

P
esquisadores da Universidade de Illinois, nas cidades gêmeas de Urbana e
Champaign, Estados Unidos, receberam uma dotação de US$ 300 mil para
desenvolver ferramentas capazes de avaliar se citações de artigos científicos
são fidedignas. Citações compõem a bibliografia de trabalhos científicos. São men-
ções a estudos já publicados que buscam fornecer contexto e sustentação teórica a
papers originais. “Uma meta-análise recente mostrou que 25,4% dos artigos médicos
continham algum erro em citação”, disse o cientista da computação Halil Kilico-
glu, um dos responsáveis pelo projeto, segundo o site da Universidade de Illinois.
Kilicoglu deu como exemplo uma correspondência de apenas um parágrafo, pu-
blicada no New England Journal of Medicine. “Menções imprecisas a uma carta de
1980 podem ter contribuído para a crise dos opioides”, afirmou. Segundo essa carta,
eram muito raros os casos de dependência química em indivíduos que não tinham
histórico de vício, depois que receberam uma droga narcótica quando estiveram
em hospitais dos Estados Unidos: seriam apenas quatro casos documentados em
um universo de 11,8 mil pacientes. Das 608 citações a essa correspondência, 80%
não mencionaram que os pacientes estavam internados e monitorados, enquan-
to outros distorceram suas conclusões. A alegação de que o vício era improvável
ILUSTRAÇÃO ALEXANDRE AFFONSO

ajudou a dar lastro à prescrição de opioides, analgésicos que viciaram milhões


de norte-americanos e foram responsáveis por 183 mil mortes entre 1999 e 2015.
O grupo de Kilicoglu pretende desenvolver e validar modelos de processamen-
to de linguagem natural e inteligência artificial para auxiliar autores, revisores de
artigos e editores de periódicos a verificar a acurácia e a integridade de citações
em trabalhos da área biomédica.

8 | DEZEMBRO DE 2022
DADOS Títulos de doutorado

No Brasil, foram concedidos 20.671 títulos Esse movimento conjuntural Apesar da queda recente, Assim, a liderança das
de doutorado em 2021, número 3% maior se superpôs a outro, de o número de titulados em 2021 titulações passou das
que o do ano anterior (20.066), mas longo prazo, associado aos é substancialmente superior instituições estaduais (49%
ainda 15% abaixo do registrado em 2019 diferentes ritmos de variação ao verificado em 2000 em 2000) para as federais
(24.422). Ou seja, apesar do pequeno das titulações segundo (+289%) e em 2010 (+83%), (58% em 2021). No mesmo
aumento entre 2020 e 2021, os efeitos categoria administrativa o que também se observa por período, a participação
negativos da pandemia sobre as da instituição e área do categoria administrativa, mas das instituições privadas
titulações de doutorado ainda perduram conhecimento com intensidades diferentes elevou-se de 9% para 14%

Títulos de doutorado concedidos por categoria administrativa

n Estadual n Federal n Privada n Municipal

2.248 5.728 11.896


42% 51% 58%

2000
Total: 5.318
2010
Total: 11.314
2021
Total: 20.671

1.155 2.967
2.694 4.427 5.770
10% 14%
49% 466 39% 28%
9% 4 38
0% 0,2%

Segundo as grandes áreas de No extremo oposto As instituições federais responderam As titulações das
formação da Coordenação de situaram-se as áreas de por mais de 50% dos títulos em instituições estaduais
Aperfeiçoamento de Pessoal linguística, letras e artes todas as grandes áreas, exceto a de são mais bem distribuídas
de Nível Superior (Capes), e, em ordem crescente, ciências sociais aplicadas, em que por todas as áreas,
lideraram as titulações ciências biológicas, exatas é maior a participação das instituições com destaque para
as ciências da saúde, seguidas e da Terra e engenharias, privadas (45%). Essa área inclui as ciências da saúde
por ciências humanas, com a área multidisciplinar os programas de administração, e ciências agrárias
agrárias e sociais aplicadas separando os dois grupos ciências econômicas e direito

Títulos de doutorado concedidos por grande área e categoria administrativa da instituição, 2021

FEDERAL ESTADUAL MUNICIPAL PRIVADA TOTAL


Títulos % total Títulos % total Títulos % total Títulos % total Títulos % total

Todas 11.869 57,5 5.770 27,9 38 0,2 2.967 14,4 20.671 100,0
Ciências da saúde 1.905 51,0 1.336 35,8 8 0,2 488 13,1 3.737 100,0
Ciências humanas 1.921 54,3 865 24,5 0 0,0 749 21,2 3.535 100,0
Ciências agrárias 1.455 61,7 825 35,0 0 0,0 78 3,3 2.358 100,0
Ciências sociais aplicadas 933 48,6 503 26,2 27 1,4 858 44,7 2.321 100,0
Multidisciplinar 1.265 61,2 449 21,7 3 0,1 351 17,0 2.068 100,0
Engenharias 1.264 65,8 471 24,5 0 0,0 185 9,6 1.920 100,0
Ciências exatas e da Terra 1.199 67,7 488 27,6 0 0,0 84 4,7 1.771 100,0
Ciências biológicas 1.123 69,3 455 28,1 0 0,0 43 2,7 1.621 100,0
Linguística, letras e artes 831 62,0 378 28,2 0 0,0 131 9,8 1.340 100,0

FONTES GEOCAPES/CAPES, DADOS EXTRAÍDOS EM 15/10/2022. ELABORAÇÃO DA GERÊNCIA DE ESTUDOS E INDICADORES, DPCTA/FAPESP

PESQUISA FAPESP 322 | 9


NOTAS

Incêndios no Pantanal afetaram onças Focos de incêndio


atingiram 80%
de modo desproporcional da área de
circulação dos
felinos em 2020
Os incêndios que queimaram quase um terço do Pantanal Alan de Barros analisou as consequências de incêndios
em 2020 produziram efeitos drásticos sobre sua biodi- ocorridos entre 2005 e 2020 no Pantanal e constatou
versidade. As onças-pintadas (Panthera onca), o maior que o fogo que se espalhou pelo bioma dois anos atrás foi
felino das Américas, foram afetadas de modo despropor- o que consumiu a maior área ocupada pelas onças (Com-
cional. Os principais focos de incêndio consumiram o cor- munications Biology, 13 de outubro). Além de ferir ou ma-
respondente a 80% da área de vida desses felinos e se tar os felinos, os incêndios, no curto prazo, também cau-
concentraram nas regiões com maior densidade popula- sam fome por eliminar os animais que servem de presa
cional. Resultado: foram atingidos 45% das onças (cerca para as onças e a vegetação em que se abrigam ou caçam.
de 740 animais) no bioma, que abriga a segunda maior Os felinos já sofrem há algum tempo com as mudanças
população do felino no mundo. Sob a orientação do ecó- no regime de chuvas, que os obrigam a se deslocar por
logo Paulo Inácio Prado, da Universidade de São Paulo grandes distâncias. De acordo com os pesquisadores, in-
(USP), e do veterinário Ronaldo Morato, do Instituto Chi- cêndios mais intensos e frequentes podem diminuir a re-
co Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), siliência das populações de onça no bioma.

10 | DEZEMBRO DE 2022
Um pente de 4 mil anos Foguete SLS
decola da
para combater piolhos plataforma de
lançamento
na Flórida em
Uma equipe de arqueólogos israelenses encontrou 16 de novembro
o que pode ser a primeira frase completa escrita em
um alfabeto fonético. Ela foi registrada em um objeto
inusitado: um pente de marfim de origem cananeia,
com quase 4 mil anos de idade. No pequeno pente,
de apenas 4 centímetros (cm) de comprimento por
2,5 cm de altura, estão inscritas 17 letras que, segundo
os pesquisadores, dizem em dialeto cananeu: “Que
este marfim arranque os piolhos da cabeça e da barba”
(Jerusalem Journal of Archaeology, 9 de novembro).
O grupo coordenado pelo arqueólogo Yosef Garfinkel,
da Universidade Hebraica de Jerusalém, encontrou o pente
em escavações feitas em 2016 na cidade de Laquis,
região central de Israel. Uma análise detalhada do
objeto, além de revelar as inscrições, também encontrou
restos de um piolho antigo. Há mais de 3 mil anos, os
cananeus dominavam o leste do Mediterrâneo e viviam
na região onde hoje ficam Israel, Líbano, Jordânia e Síria.
3
Poucos de seus registros escritos chegaram aos dias atuais.

O pente cananeu, encontrado em 2016 O primeiro passo para retornar à Lua


FOTOS 1 PEDRO FERREIRA DO AMARAL / GETTY IMAGES 2 DAFNA GAZIT / AUTORIDADE DE ANTIGUIDADES DE ISRAEL 3 NASA 4 EDUARDO CESAR / REVISTA PESQUISA FAPESP

em escavações na cidade de Laquis

À 1h47 da madrugada de 16 de novembro (3h47, no horário de Brasília), o


foguete Space Launch System (SLS), o mais potente em atividade hoje,
decolou do Centro Espacial Kennedy, na Flórida, Estados Unidos, impulsio-
nando a cápsula Órion para uma viagem ao redor da Lua. Depois de entrar
em órbita terrestre, a nave se desprendeu do lançador e acionou seu pró-
prio motor para entrar na trajetória rumo ao satélite natural da Terra. Em
um voo previsto para durar quase 26 dias, a cápsula deve circundar a Lua
algumas vezes antes de retornar ao planeta e pousar no oceano Pacífico
em 11 de dezembro. Essa viagem da Órion, ainda sem tripulação, é o pri-
meiro passo do programa Artemis, da agência espacial norte-americana
2
(Nasa), que, nos próximos anos, pretende levar seres humanos de volta à
Lua. O último pouso de astronautas por lá ocorreu em dezembro de 1972.

Mais cuidado com escorpiões,


aranhas e peixes-leão
De 2007 a 2019, houve 2,1 milhões de acidentes com animais peçonhentos no Brasil.
Foram, em média, 175 mil casos por ano, ou 480 por dia, de acordo com um levanta-
mento coordenado pelo veterinário Leonardo Kohara Melchior, da Universidade Fe-
deral do Acre (Epidemiologia e Serviços de Saúde, novembro). A maior parte dos aci-
dentes (1,1 milhão) ocorreu com escorpiões, principalmente nas regiões Nordeste e
Sudeste. Em seguida vieram os acidentes causados por serpentes, que somaram 365
mil casos, e por aranhas, o correspondente a 363 mil casos – dois terços ocorridos no
Sul. Nos anos analisados, registrou-se uma tendência de aumento dos acidentes com
animais peçonhentos, com exceção das picadas de serpentes. Em outro trabalho, pes-
quisadores das universidades Estadual Paulista (Unesp) e Federal do Ceará (UFC) re-
lataram o primeiro caso de envenenamento no país provocado por peixe-leão (Pterois
De 2007 a 2019, houve
spp.) em ambiente natural. Originária do Indo-Pacífico, essa espécie vem se espalhan- 1,1 milhão de acidentes com
do pela costa brasileira (Revista da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical, outubro). escorpiões no país

PESQUISA FAPESP 322 | 11


Acesso a manuscritos
do grupo Science
A Associação Americana para o Avanço da Ciência
(AAAS) anunciou em setembro que permitirá o
Representação compartilhamento gratuito de versões quase finais

FOTOS 1 INTERNATIONAL GEMINI OBSERVATORY / NOIRLAB / NSF / AURA / J. DA SILVA / SPACEENGINE / M. ZAMANI 2 CHW 3 ESA 4 LÉO RAMOS CHAVES / REVISTA PESQUISA FAPESP 5 IBM
artística do buraco de manuscritos recém-aceitos para publicação em
negro Gaia BH1
revistas de seu portfólio, entre elas a Science. A
(acima) e sua estrela
companheira medida entra em vigor em 2023 e difere da ado-
1 tada por outros grupos editoriais responsáveis por
periódicos de alto impacto, como Cell e Nature,
Um buraco negro “no quintal” que cobram taxas de processamento de artigos
(APC) dos autores que optam por publicar seus
Buracos negros de massa modesta, algumas dezenas de vezes superior à do Sol, papers em acesso aberto. A decisão da AAAS vem
são comuns. Estima-se haver uns 100 milhões deles apenas na Via Láctea, na esteira de mudanças na política dos Estados
a galáxia que abriga o Sistema Solar. Quase sempre eles estão ativos, tragando a Unidos em relação às pesquisas financiadas com
massa da estrela que os acompanha – nesse processo, eles emitem raios X. recursos públicos. Em agosto, o Escritório de Po-
Usando um telescópio instalado no Havaí, Estados Unidos, um grupo internacional líticas Científicas e Tecnológicas (OSTP) do gover-
liderado pelo astrofísico Kareem El-Badry, do Centro de Astrofísica Harvard e no norte-americano emitiu um memorando que
Smithsonian, identificou o buraco negro de pequeno porte mais próximo à Terra. orienta os departamentos e as agências federais
Apelidado de Gaia BH1, ele tem massa equivalente à de 10 sóis e está a 1.600 anos-luz de ciência e tecnologia do país a atualizarem suas
de distância do planeta, três vezes mais perto do que o antes considerado mais políticas de acesso aberto até dezembro de 2025.
próximo (Monthly Notices of the Royal Astronomical Society, 2 de novembro). No O objetivo é garantir que estudos resultantes de
céu, fica em direção à constelação de Ofiúco. Uma curiosidade: o Gaia BH1 é um projetos desenvolvidos com recursos dos contri-
buraco negro dormente. Ele não está consumindo a estrela que o orbita – portanto, buintes sejam divulgados ao público de forma
não emite raios X – e só foi detectado por alterar a trajetória de sua companheira. gratuita imediatamente após a publicação.

Azerbaijão tentou apagar a cultura armênia


Um relatório divulgado em setembro pelo Observatório do Patrimônio do Cáucaso (Caucasus Heritage Watch,
CHW) identificou uma tentativa consistente de apagamento da cultura armênia no Naquichevão entre 1997 e 2011.
A equipe da CHW, uma iniciativa liderada por arqueólogos das universidades Cornell e Purdue, nos Estados Unidos,
usou imagens aéreas feitas pelo governo norte-americano na Guerra Fria e mapas criados por topógrafos soviéticos
para localizar 127 mosteiros, igrejas e cemitérios armênios no Naquichevão, uma república autônoma do Azerbaijão
criada com a separação dos estados que formavam a União Soviética. Depois, compararam com imagens recentes
para verificar o que havia ocorrido com esses templos e locais de significado histórico, arquitetônico e religioso Imagens de satélite
do local em que
para os armênios. Das 110 construções identificadas, 108 haviam sido completamente destruídas. Segundo
ficava o Novo
os autores, o relatório de 430 páginas indica uma tentativa de apagamento cultural realizada com “precisão Cemitério Armênio
cirúrgica”. Historicamente ocupado por armênios, o Naquichevão faz fronteira com Armênia, Irã e Turquia. no Naquichevão
2

29 de julho de 1973 3 de fevereiro de 2000 7 de setembro de 2021

12 | DEZEMBRO DE 2022
4 Especialista
Fogo consome vegetação em hematologia
oncológica,

em solo gelado da Sibéria Zago já foi


reitor da USP

Dois terços do território da Rússia é coberto por permafrost, camada de solo que
permanece congelada até mesmo no verão do Ártico. Esse tipo de terreno, no
entanto, não elimina o risco de incêndios, um problema bem mais frequente em
florestas tropicais e savanas de regiões com clima mais quente. Com o Ártico
esquentando a uma velocidade quatro vezes maior que a do resto do planeta,
os incêndios na Sibéria atingiram em 2019 e 2020 uma área de 4,7 milhões de
hectares de turfa, a vegetação rasteira do permafrost – o ano de 2020 registrou
o verão mais quente na região em quatro décadas. Usando imagens de satélite,
o grupo liderado pelo especialista em sensoriamento remoto Adrià Descals, do Professor emérito
Conselho Espanhol para Pesquisa Científica (CSIC), concluiu que a área total
queimada naqueles dois anos corresponde a 44% de tudo o que foi afetado pe- da USP em Ribeirão
lo fogo na Sibéria desde 1982 (Science, 3 de novembro). Segundo o grupo, os
incêndios no permafrost siberiano devem crescer de forma exponencial até mea- Em novembro, o médico hematologista
dos do século. As queimadas de 2019 e 2020 na região lançaram 413 milhões Marco Antonio Zago, presidente da FAPESP,
de toneladas de gases de efeito estufa na atmosfera. recebeu o título de professor emérito da
Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP)
3
da Universidade de São Paulo (USP). Com
a concessão da honraria, aprovada pela
congregação da faculdade em 26 de abril, ele
se tornou o 11º docente da unidade a ostentar
o título, outorgado a professores aposentados
que se destacaram por notável contribuição para
o progresso da instituição. Zago formou-se
em medicina na FMRP em 1970 e realizou o
mestrado (1973) e o doutorado (1975) na mesma
instituição. De 2001 a 2015, coordenou o
Centro de Terapia Celular (CTC) de Ribeirão Preto,
um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão
(Cepid) apoiados pela FAPESP. Ele presidiu
o Conselho Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico (CNPq) de 2007 a 2010
e foi pró-reitor de pesquisa (2010-2014) e depois
Imagem de satélite
reitor (2014-2017) da USP. Em 2018, esteve
mostra focos de
incêndio na tundra à frente da Secretaria de Estado da Saúde de
siberiana em 2021 São Paulo. Em outubro daquele ano, assumiu
a presidência da FAPESP.

Um processador quântico de 433 qubits


Durante um encontro anual realizado no início de novembro, a gigante norte-americana
de tecnologia IBM apresentou o Osprey, o processador quântico mais potente criado por
ora. Ele tem 433 qubits, quase 3,4 vezes mais unidades de processamento do que o de-
tentor do recorde anterior: o IBM Eagle, de 127 qubits, lançado em 2021 – e oito vezes
mais que o rival Sycamore, do Google, de 53 qubits. Enquanto a computação clássica
baseia-se no processamento de unidades de informação (bits), que podem assumir ape-
nas um valor (0 ou 1) por vez, na computação quântica, as unidades de informação (qu-
bits) podem ter infinitos valores entre 0 e 1 – inclusive 0 e 1 a um só tempo. Essa carac-
terística permite ao computador quântico realizar determinados cálculos mais rapida-
mente que os supercomputadores clássicos atuais. O plano da empresa é, até 2025,
ultrapassar a marca dos 4 mil qubits, com o processador Kookaburra. Até lá, será preciso
fazer funcionar dois processadores intermediários, mais potentes que o Osprey, e superar
a perda das propriedades quânticas (decoerência) que ocorre quando há muitos qubits. Processador IBM Osprey, de 433 qubits

PESQUISA FAPESP 322 | 13


1
Imagem de página do
Codex climaci rescriptus
mostra o texto em
Cortinas contra
grego apagado, coberto
por outro escrito
chamas e micróbios
em siríaco
Com pesquisadores das universidades de São Pau-
lo (USP), Federal do ABC (UFABC) e Federal de São
Paulo (Unifesp), a empresa BR Goods desenvolveu
um material para a produção de cortinas hospita-
lares capaz de eliminar vírus, bactérias e fungos,
além de retardar a propagação de chamas. “As
O primeiro mapa do céu noturno cortinas que a empresa fabricava já tinham o efei-
to retardante de chama. Nosso desafio foi agregar
Procurado por séculos e já considerado perdido, o catálogo de estrelas do antigo outras funcionalidades”, disse à Agência FAPESP o
astrônomo grego Hiparco (190 a.C.-120 a.C.) foi encontrado, oculto sob textos químico Luciano Avallone, da UFABC, responsável
cristãos, na biblioteca de um mosteiro da Igreja Ortodoxa Grega na península do pelo projeto. As fibras usadas nas cortinas são à
Sinai, no Egito. Nove das 106 folhas de um documento resgatado por historiadores base de polímeros aos quais foram agregados na-
da ciência franceses e britânicos constituem o Codex Climaci Rescriptus, uma nopartículas de prata e óxidos de titânio, magnésio
coleção de textos escritos nos séculos X ou XI. Análises feitas com diferentes tipos e zinco. Apesar da quantidade de elementos, os
de luz indicaram que o material é um palimpsesto, um pergaminho cujo texto pesquisadores conseguiram preservar as proprie-
original foi raspado para que pudesse ser reutilizado (Journal for the History of dades físicas e químicas desejadas. Em geral, quan-
Astronomy, 18 de outubro). Visto como a primeira tentativa conhecida de mapear to maior o número de compostos, menos resistente
todo o céu, o códice indica com precisão o comprimento e a largura em graus o polímero. Os resultados preliminares foram con-
da constelação Coroa Boreal e fornece coordenadas para as estrelas em seus siderados bons. “Agora vamos partir para a segunda
extremos norte, sul, leste e oeste. Hiparco localizou estrelas de todo o céu usando fase da pesquisa, na qual faremos adaptações com
duas coordenadas e modelou os movimentos aparentes do Sol e da Lua. foco no desenvolvimento do produto”, afirmou.

Como os polvos parecem


resolver desentendimentos
Pela primeira vez, pesquisadores flagraram polvos em seu ambiente
natural atirando conchas, algas e lodo uns contra os outros. Peter
Godfrey-Smith, da Universidade de Sydney, Austrália, e colaboradores
dos Estados Unidos e do Canadá instalaram câmeras subaquáticas na
baía de Jervis, na Austrália, para estudar a interação entre polvos da
espécie Octopus tetricus. Ao analisar as mais de 20 horas de filmagem,
os pesquisadores observaram que, em vários momentos, os cefalópo-
des coletavam algas, conchas e lodo com seus tentáculos e os arre-
messavam para longe. Algumas vezes pareciam apenas estar se li-
vrando de detritos ou restos de comida. Em outras situações, aparen-
tavam estar atacando deliberadamente uns aos outros (PLOS ONE, 9
de novembro). Os arremessos em direção a outros polvos eram rela-
tivamente mais intensos e ocorriam quando o corpo do arremessador
2
exibia uma cor uniforme escura ou média. Não raro, os polvos ataca-
Polvo da espécie Octopus tetricus em seu
dos se abaixavam, mas nem sempre escapavam dos objetos, sobre- ambiente natural e representação de como
tudo quando os arremessadores os cobriam com um jato de lodo. eles realizam os arremessos (abaixo)

14 | DEZEMBRO DE 2022
Ponte Golden
Gate, que conecta
a cidade de São
Francisco ao
condado de Marin,
na Califórnia

O celular e a saúde Amostra do arbusto


fumo-bravo (Solanum

das pontes mauritianum) submetida


a tratamento com
radiação
Um novo método de análise de riscos promete adicionar
15 anos à vida útil de pontes recém-construídas, o que
representaria um ganho de 30% em sua durabilidade.
O grupo do engenheiro Thomas Matarazzo, do Instituto 4

de Tecnologia de Massachusetts (MIT), nos Estados


FOTOS 1 MUSEU DA BÍBLIA 2 PETER GODFREY-SMITH / UNIVERSIDADE DE SYDNEY 3 WIKIMEDIA COMMONS

Unidos, em parceria com pesquisadores da Itália, usou


dados do smartphone de passageiros que trafegam so-
bre pontes para estimar a saúde estrutural dessas cons-
4 LENI RIBEIRO LIMA / IPEN ILUSTRAÇÃO GODFREY-SMITH, P. ET AL. PLOS ONE. 9 NOV. 2022

truções. A medição mais importante é feita pelo acele-


rômetro, dispositivo embarcado nos celulares que con- Radiação contra fungos em herbários
segue detectar vibrações. Certas frequências de vibração
provocadas pela passagem de veículos, com o tempo, Já aplicada sobre documentos ou objetos, a descontaminação por radiação
causam desgaste de material e criam rachaduras. A in- ionizante serviu para eliminar fungos e insetos de amostras botânicas, as
formação pode indicar a necessidade de manutenção chamadas exsicatas. Um grupo do Instituto de Pesquisas Ambientais (IPA) e
preventiva, o que aumenta a vida útil da ponte. Mata- do Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (Ipen) submeteu amostras
razzo e seus colaboradores colocaram a técnica à prova prensadas e desidratadas de folhas de plantas das famílias Asteraceae
na ponte Golden Gate, em São Francisco, Estados Unidos. e Solanaceae coletadas em 1946, 1984 e 1986 a um tratamento com
Voluntários realizaram 72 viagens de Uber com o GPS radiação emitida pelo elemento químico cobalto 60. Foram avaliadas três
ligado. Ao todo, 19 modelos de smartphone foram tes- doses absorvidas de radiação (1, 6 e 10 quilogray), as mesmas usadas para
tados. O processo foi repetido em uma ponte de con- a desinfestação e a desinfecção de outros materiais. As análises feitas por
creto na Região Metropolitana de Roma, na Itália (Com- Leni Lima, do IPA, indicaram que não houve alteração significativa nem
munications Engineering, 3 de novembro). A técnica da cor nem de estruturas microscópicas das folhas. A radiação ionizante
mostrou potencial para estender em 15% o tempo de mostrou-se eficiente, mas, por exigir instalações apropriadas e técnicos
serviço de uma ponte de 43 anos e diminuir a demanda especializados, por ora, sua aplicação é de difícil acesso para herbários em
por sensores caros e visitas presenciais de engenheiros. áreas remotas (Radiation Physics and Chemistry, janeiro de 2023).

PESQUISA FAPESP 322 | 15


CAPA

MUSEU
DE GRANDES
NOVIDADES
Avanço do conhecimento científico
impulsiona instituições a repensarem
propostas curatoriais
Christina Queiroz

16 | DEZEMBRO DE 2022
D
ebates que ganharam fôlego nos últimos com a realidade”, explica Knauss, que dirigiu o Museu
20 anos em campos do conhecimen- Histórico Nacional (MHN) entre 2015 e 2020. Nesse
to como história e antropologia têm sentido, ele cita o exemplo do quadro Independência
levado museus brasileiros a oferecer ou morte!, do pintor paraibano Pedro Américo de Fi-
ao público novas formas de pensar, gueiredo e Melo (1843-1905), que foi restaurado e está
organizar e expor seus acervos. Por exposto no Museu Paulista (ver Pesquisa FAPESP nº
meio de propostas de curadoria que 318). “Ao expor obras como essa, é preciso fazer um
engajam a participação de diferen- trabalho curatorial que evidencie que ela não é o pas-
tes segmentos da sociedade, pinturas sado encarnado, mas uma interpretação do passado,
históricas deixaram de ser apresen- instigando os espectadores a refletir por que não há
tadas como reprodução fidedigna da escravizados na cena ou por que todos os persona-
realidade, objetos artísticos têm sido gens estão com trajes tão limpos se estavam no meio
descobertos em reservas técnicas e peças etnográficas de uma viagem dura e cansativa? Com isso, é possível
ganharam camadas inéditas de significado. abandonar uma atitude passiva e dialogar com o que é
Esse processo de transformação, que começou em observado, algo que é trabalhado pelo Museu Paulista”,
circuitos acadêmicos e museológicos, foi impulsionado sustenta o historiador.
por políticas públicas e hoje pode ser visto em salas de Apesar de sua disseminação em anos recentes, as
exposição de grandes instituições, está alinhado com transformações em propostas curatoriais fazem parte de
as discussões promovidas desde 2016 pelo Conselho um longo processo. A museóloga Marília Cury Xavier,
Internacional de Museus (Icom). Ponto culminante do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade
desse movimento é a nova definição de museu aprova- de São Paulo (MAE-USP), localiza na década de 1970 a
da pelo conselho em agosto deste ano, com a incorpo- intensificação da busca de museus pela ampliação de
ração de termos como sustentabilidade, diversidade, seu papel na sociedade. “Novas posturas da pesquisa
comunidade e inclusão. De acordo com o Icom, museus histórica e antropológica passaram a olhar os povos ori-
são instituições que “[…] pesquisam, colecionam, con- ginários não apenas como objetos, mas também como
servam, interpretam e expõem o patrimônio material sujeitos, e alteraram as políticas de gestão e aquisição
e imaterial”, são “acessíveis e inclusivos, fomentam a de acervos”, destaca.
diversidade e a sustentabilidade” e, com a participação Além do papel do conhecimento científico, o museó-
de comunidades, “proporcionam experiências diversas logo Mário de Souza Chagas, da Universidade Federal
para educação, fruição, reflexão e partilha de conheci- do Estado do Rio de Janeiro (Unirio) e diretor do Museu
mento”. A arquiteta Renata Vieira da Motta, presidente da República, afirma que a Política Nacional de Museus
do Icom Brasil, avalia que a nova definição funcionará – Memória e Cidadania, instituída em 2003 com o ob-
como guia para instituições brasileiras revisarem seus jetivo de democratizar as instituições e o acesso a bens
processos e práticas, ao reafirmar a importância do pa- culturais brasileiros, também impactou a formulação de
pel social dessas instituições. “Além disso, a definição propostas curatoriais. “No Museu da República, um dos
deverá funcionar como referência à formulação de reflexos foi a criação da Galeria do Lago, que há cerca de
políticas públicas no campo museológico, contribuin- duas décadas propõe relações com a história do Brasil a
do para a construção de ações e programas”, afirma. partir do trabalho de artistas contemporâneos”, comen-
Na perspectiva do historiador Paulo Knauss, da Uni- ta. A escultura A grande peleja, do artista goiano Paul
versidade Federal Fluminense (UFF) e vice-presidente Setúbal, atualmente exposta na galeria, é um exemplo
do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), desse diálogo. Réplica em bronze do capacete utilizado
do Rio de Janeiro, as novas propostas curatoriais re- pela guarda imperial de honra de dom Pedro I (1798-
presentam um momento de inflexão para grande parte 1834), ao mesmo tempo que exibe a imagem de São Jorge
dos tradicionais museus brasileiros que, segundo ele, lutando contra um dragão, a obra apresenta o capacete
permaneciam ligados a um tipo de curadoria marca- deformado por um golpe de lança. “Setúbal busca na
LÉO RAMOS CHAVES / REVISTA PESQUISA FAPESP

da por características enciclopédicas com ênfase des- história elementos e símbolos que falam de liberdade e
critiva. “No caso de museus de história, isso significa independência quando, 200 anos depois da proclama-
que peças e quadros expostos ganharam estatuto de ção, ainda lutamos para aniquilar dragões que nos per-
verdade e a representação do passado era confundida seguem”, interpreta Isabel Portella, diretora da galeria.

PESQUISA FAPESP 322 | 17


TESOUROS
SAEM DA
RESERVA TÉCNICA
1

Museus de história criam estratégias


para identificar objetos esquecidos
e propor novas leituras da sociedade
D
epois de nove anos fechado para obras de reforma e restau-
ração, o Museu do Ipiranga, espaço expositivo do Museu
FOTOS 1 OSCAR LIBERAL / MUSEU DA REPÚBLICA 2 HÉLIO NOBRE / MUSEU PAULISTA 3 LÉO RAMOS CHAVES / REVISTA PESQUISA FAPESP 4 PAUL SETÚBAL

Paulista da Universidade de São Paulo (MP-USP) na capital


paulista, reabriu suas portas em setembro imbuído dessa
nova proposta, visível por exemplo no diálogo entre pro-
duções monumentais com objetos do cotidiano. Assim, o
visitante pode admirar não só obras do pintor e desenhista
José Ferraz de Almeida 2
Júnior (1850-1899), mas
também objetos da vida
doméstica e do mundo
do trabalho que até re-
centemente permaneceram guardados
na reserva técnica. Quadros icônicos como
Partida da monção foram dispostos com o
mesmo destaque dado a martelos, máqui-
nas de costura, moedores de carne, jarras
de plástico em formato de abacaxi, liqui-
dificadores, brinquedos antigos e bibelôs.
“Elementos da cultura material, como os
objetos da vida cotidiana, são caminhos pa-
ra a compreensão da sociedade”, sustenta
a historiadora Vânia Carneiro de Carvalho,
do MP-USP. Nessa proposta, equipamentos
de cozinha podem ser utilizados para re-
meter à figura da empregada doméstica e
lembrar da posição subordinada da mulher
negra na sociedade. Em uma das salas do 3
MP também é possível observar esculturas de porcelana francesa do século
XVIII dispostas ao lado de bibelôs baratos, tradicionalmente malvistos por
historiadores da arte. “Esses bibelôs, feitos prioritariamente por trabalha-
4
doras mulheres, foram um
fenômeno de moda nas dé-
cadas de 1950 e 1960 e con-
viveram com a expansão
do mobiliário modernista
em residências brasilei-
ras”, conta a historiadora.
No Museu do Ipiranga,
a revisão do perfil das coleções com o objetivo de torná-las socialmente mais
abrangentes começou a ser constituída há cerca de 20 anos. Em 2010 o mu-
seu realizou um investimento de R$ 700 mil para a expansão de seu acervo.
“Para organizar e expor essas novas coleções, montamos um grupo curatorial
integrado por funcionários, pesquisadores de iniciação científica, mestrado
e doutorado, mas também moradores do próprio bairro onde se situa o mu-
seu. Muitos deles têm perfil conservador e não aprovaram a incorporação

1. Escultura de Iemanjá integra mostra que está sendo organizada pelo Museu da República
2. Partida da monção (1897), óleo sobre tela de José Ferraz de Almeida Júnior (1850-1899)
3. Objetos da vida cotidiana expostos no Museu do Ipiranga 4. A grande peleja (2019), de Paul
Setúbal, dialoga com a história do Brasil

PESQUISA FAPESP 322 | 19


de bibelôs e objetos de plástico na exposição”, relata Carvalho. Segundo
ela, mesmo com essa discordância, ao retirar as peças da reserva técnica
e levá-las para salas de exposição, o museu provoca o espectador a apro-
fundar sua compreensão da sociedade.
As reflexões que embasaram o desenvolvimento desse acervo do MP
começaram há cerca de 30 anos, com o trabalho do historiador Ulpiano
Bezerra de Meneses, que dirigiu a instituição entre 1989 e 1994. “Ao criar
frentes de pesquisa voltadas a diferentes grupos sociais, Meneses procurou
romper com a história celebratória que caracterizou a gestão feita pelo
historiador Afonso d’Escragnolle Taunay [1876-1958], entre 1917 e 1946”,
comenta. De acordo com Carvalho, Taunay investiu em propostas curato-
riais que ajudaram a construir a ideia de um Brasil pacificado, orgulhoso
da atuação dos bandeirantes, voltado a apagar ou apaziguar o papel de-
sempenhado por populações como as indígenas ou de escravizados. “Essas
características balizaram as exposições até 1990. Com base nos trabalhos
desenvolvidos desde a gestão de Meneses, reformulamos e ampliamos a
proposta curatorial do museu enquanto ele esteve fechado. Agora esses
resultados podem ser vistos”, afirma a pesquisadora.
Para o historiador Paulo César Garcez Marins, da mesma instituição, as
mudanças permitem que o museu compartilhe com o público a responsabi-
lidade em torno da reflexão histórica, mesmo quando se trata de olhar para
estátuas de bandeirantes, como as de Antônio Raposo Tavares (1598-1659) ou
de Fernão Dias (1608-1681) (ver o vídeo Como o Museu do Ipiranga repensa
os personagens da história). As pinturas e esculturas que decoram o hall,
a escadaria e o salão
nobre do museu são
tombadas e não po-
dem ser retiradas, mas
passaram a ser ques-

FOTOS 1, 2 E 3 LÉO RAMOS CHAVES / REVISTA PESQUISA FAPESP 4 JAIME ACIOLI / MUSEU HISTÓRICO NACIONAL / IBRAM 5 PICTURE ALLIANCE / GETTY IMAGES
tionadas por meio de
textos, recursos mul-
timídia e audiodescri-
1 2
ções. “Por meio de in-
dagações como essas, desafiamos interpretações
históricas correntes sobre o Brasil e fomentamos a
realização de visitas intelectualmente ativas”, diz.
Desafio semelhante enfrentou o historiador
Paulo Knauss, da Universidade Federal Flumi-
nense (UFF), quando, em 2015, assumiu a direção
do Museu Histórico Nacional (MHN). Disposto a
renovar a exposição de itens relacionados à histó-
ria afro-brasileira, Knauss não queria utilizar os
tradicionais objetos que remetessem à submissão
dos escravizados. Decidiu então convidar repre-
sentantes do movimento negro para conhecer a
reserva técnica do museu, organizada por tipo-
logias de materiais e que reunia vestidos, trajes,
adereços, colares, sapatos e cerâmicas. “Ao olhar
para as coleções, um dos participantes descobriu
ali um conjunto de objetos relacionados e usual-
mente presentes em um terreiro de candomblé,
incluindo guias, peças de altar e a indumentária
de uma mãe de santo”, relata Knauss. De acordo

1.Escultura de Fernão Dias (1608-1681), de Luigi Brizzolara


(1868-1937), no Museu do Ipiranga 2. Detalhe da descrição
de trabalho que menciona “desbravamento”, em referência
ao extermínio de povos indígenas 3. A primeira coleção de
retratos de caboclos, indígenas e afro-brasileiros da instituição
foi adquirida em 2010
3

20 | DEZEMBRO DE 2022
com ele, as peças do terreiro estavam bem preservadas, mas o museu carecia
de um especialista capaz de lançar um olhar curatorial sobre elas. “Des-
cobrimos que a coleção tinha sido doada por uma mãe de santo na década
de 1990, sendo uma das poucas coleções desse tipo que não resultaram
de intolerância religiosa envolvendo operações policiais. A descoberta só
foi possível pela interação com os representantes do movimento negro”,
afirma. Restaurado, o acervo está exposto na mostra de longa duração do
MHN. “A curadoria compartilhada permite que o conhecimento propicie
novas interpretações sobre o passado”, analisa o historiador.
Em funcionamento desde 1960 em um palácio construído em 1853, o
Museu da República foi uma das residências mais ricas do império. Com 11
mil objetos museológicos, a instituição gerida pelo governo federal prepara
uma exposição com 519 peças que pertenceram a terreiros de candomblé
e integram uma coleção formada entre 1890 e 1946, a partir de apreensões
policiais. O museólogo Mário de Souza Chagas, da Universidade Federal
do Estado do Rio de Janeiro (Unirio) e diretor da instituição, explica que
a curadoria da mostra está sendo desenvolvida de forma compartilhada
com mães e pais de santo. A ideia é contemplar a visão sagrada que eles têm
dos objetos. “As apreensões policiais responsáveis por formar o acervo têm
a marca do Código Penal da República, que criminalizava religiões afro-
-brasileiras”, conta Chagas. O conjunto ficou 30 anos guardado no Museu
da Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro e parte dele foi pesquisada
pela primeira vez por Yvonne Maggie, antropóloga da Universidade Fe-
deral do Rio de Janeiro (UFRJ) (ver Pesquisa FAPESP nº 295). “Lideran-
ças religiosas fizeram campanhas para retirar as peças do museu policial
e doá-las, em 2020, para o Museu da República, o que foi compreendido
como um gesto de reparação histórica. Em 2023, a coleção será exposta

A
em sua completude pela primeira vez”, relata o museólogo.

inda em relação a práticas inovadoras de curadoria, Knauss,


do MHN, cita uma coleção construída no contexto dos
Jogos Olímpicos no Rio de Janeiro, em 2016. Para além
4
da reunião de peças tradicio-
nais como a tocha olímpica
ou souvenirs, uma equipe de
pesquisadores sob sua lide-
rança tratou de investigar
outras formas de representar
o evento. Foram feitos conta-
tos com moradores da comu-
nidade da Vila Autódromo,
que tinha sido removida durante a construção
do parque olímpico. “A comunidade ficava
às margens do que se tornaria o parque e foi
retirada sem necessidade, uma vez que não
obstruía completamente o empreendimen-
to”, informa. Com o apoio de representantes
da comunidade urbana, os pesquisadores do
museu decidiram construir uma coleção re-
presentativa da história dos Jogos Olímpicos,
mas que dialogasse com as remoções históricas
da cidade que, no MHN, estão representadas
por objetos relacionados à destruição do morro
5

4. Traje religioso utilizado em rituais de candomblé,


localizado no acervo do Museu Histórico a partir de diálogo
com o movimento negro 5. Vila Autódromo, no Rio de
Janeiro, demolida durante os Jogos Olímpicos de 2016, que
está representada na coleção do Museu Histórico por meio
de escombros, como uma janela de alumínio

PESQUISA FAPESP 322 | 21


do Castelo, em 1921 (ver Pesquisa FAPESP nº
266). Assim, o museu concebeu a coleção da Vila
Autódromo, composta por peças que remetem
à remoção dessa comunidade. “Na mostra exi-
bida no museu, colocamos uma pia batismal do
morro do Castelo lado a lado com uma janela
de alumínio removida da Vila Autódromo”, re-
corda. “Decisões como essa explicitam o ato
interpretativo da curadoria, demandando tam-
bém a interpretação do espectador para que a

K
exposição se torne um espaço de debates”, diz.

nauss menciona ainda um


quadro de dom Pedro II (1825-
1891) rasgado por golpes de es-
pada durante a Proclamação da
República, em 1889. “Quando
o MHN fez a restauração da
obra, recuperou a tela, mas
manteve a marca do corte”, diz,
mencionando outro retrato de
dom Pedro II que também foi
atacado no contexto da procla-
mação e hoje integra o acervo
do Museu Mariano Procópio, em Juiz de Fora
(MG). A obra foi inteiramente restaurada e to-
das as marcas foram eliminadas. “Enquanto o
MHN preservou a memória do ato iconoclasta,
a instituição de Minas optou por promover o
esquecimento. São diferentes formas de abordar
e interpretar o passado”, destaca o historiador.
No MHN, curadorias compartilhadas com
intelectuais indígenas, bem como a aquisição de
coleções diretamente de povos originários, são
outras iniciativas recentes, conforme o histo-
1
riador Diogo Guarnieri Tubbs, chefe da divisão
técnica da instituição. De acordo com ele, o museu prepara a inauguração de uma exposição de longa permanência
levando em consideração novas vertentes de curadoria. “Museus são instituições privilegiadas para estabelecer
diálogos entre pesquisas acadêmicas e os anseios de movimentos sociais”, avalia.
Para o antropólogo Luiz Fernando Dias Duarte, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (MN-UFRJ), a busca
por estratégias para ampliar a acessibilidade não apenas física, mas também conceitual, é tendência comum entre
distintas instituições museológicas do país. No caso do MN, que atualmente investe na reconstrução de coleções

FOTOS 1 GOOGLE / MUSEU HISTÓRICO NACIONAL / IBRAM 2 STAN HONDA / GETTY IMAGES
consumidas pelo incêndio de 2018 (ver Pesquisa 2
FAPESP nº 272), o novo projeto conceitual prevê
abordagens transdisciplinares por meio de blocos
temáticos como “A história profunda da América”,
“A diáspora africana”, “Colonização e construção
da nação”, “Culturas urbanas”, “Ambientes do
Brasil”, entre outros, que reunirão tanto peças
relacionadas às ciências naturais quanto à antro-
pologia. “Em Ambientes do Brasil, por exemplo,
vamos apresentar informações integradas sobre
a cultura caiçara e o bioma da Mata Atlântica.” n

1. Rasgado por golpes de espada durante a Proclamação da


República, quadro de dom Pedro II (1825-1891) integra acervo
do Museu Histórico 2. A instalação The dinner party, da norte­
‑americana Judy Chicago, evoca o feminismo. Valendo-se de
objetos como cálices e pratos dispostos em uma mesa de jan-
tar, é uma das referências para o Museu do Ipiranga

22 | DEZEMBRO DE 2022
COLEÇÕES
RESSIGNIFICADAS

I
1

Peças do acervo de museus mpulsionado pelo avanço do conhecimento científico e o diálogo


com movimentos sociais, o começo do século XXI marcou um mo-
etnográficos ganham mento de transformação também na gestão de acervos etnográficos.
novos sentidos a partir do Constituídas no período colonial, muitas vezes com peças saquea-
das ou retiradas sem consentimento, as coleções desses museus
diálogo com povos indígenas passaram a ser compreendidas como patrimônio de todos. Essa
mudança de olhar tem levado instituições a repensar suas formas
de curadoria, identificando novos significados para esses objetos.
Há cerca de três décadas a museóloga Marília Cury Xavier, do
Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo
(MAE-USP), trabalha com acervos etnográficos, mas foi nos úl-
timos anos que ela desenvolveu novas estratégias para organizar
mostras e coleções. “Atualmente, estamos em um momento que não é mais
falar sobre os povos indígenas, mas, sim, falar com eles, de forma que eles
IRENE ALMEIDA / REVISTA PESQUISA FAPESP

próprios façam a curadoria falando por si”, explica.


Xavier Cury não considera que o aspecto colonialista na formação de
coleções do MAE seja motivo para desprezar esses acervos, mas defende a
necessidade de encontrar novas estratégias para trabalhar com o material.
Um exemplo foi o desenvolvimento da exposição Resistência já – Fortale-

1. Peça de arqueologia indígena da reserva técnica do Museu Paraense Emílio Goeldi: instituição
investe em estratégias para ampliar o acesso ao acervo

PESQUISA FAPESP 322 | 23


1

FOTOS 1 ADER GOTARDO / MAE-USP 2 CIETE SILVÉRIO 3 LUISA DÖRR 4 CARLOS STEIN / VIVAFOTO
2

cimento e união de culturas indígenas, inaugu-


rada em 2019 e elaborada em parceria entre o
MAE e grupos Kaingang, Guarani Nhandewa e
Terena, do centro-oeste do estado de São Paulo.
Durante o processo de curadoria, represen-
tantes desses três povos visitaram a reserva técnica do MAE para conhecer peças
coletadas entre o final do século XIX até a primeira metade do XX, e foram os
responsáveis pela seleção dos objetos, vestimentas e fotografias expostos. “No
desenvolvimento do trabalho, uma representante Kaingang, chamada Dirce
Jorge, olhou para uma peça identificada etnograficamente como camisão sem
manga e nos contou que aquela era a roupa usada tradicionalmente pelas par-
teiras de seu povo”, conta Xavier Cury. “Soluções colaborativas e o diálogo com
povos indígenas permitem requalificar e buscar sentidos ampliados, trazendo
vida para as peças e humanizando coleções”, destaca, lembrando que o acervo
arqueológico e etnográfico do MAE, que abarca, além do Brasil, culturas das Amé-
ricas e do Oriente Médio desde antes de 1500, ganhou protagonismo no cenário

U
nacional depois do incêndio do Museu Nacional, em 2018. 3

ma das referências para a transforma-


ção no olhar dirigido à coleção do MAE
foram os movimentos indígenas orga-
nizados no Canadá na década de 1980
pela Assembleia das Primeiras Nações,
que se uniram à Associação Canadense
de Museus para publicar, em 1994, o do-
cumento Turning the page, com orien-
tações práticas sobre como lidar com
coleções indígenas. Outro exemplo é a
Native American Graves Protection and
Repatriation Act (Nagpra), que também
mudou a relação dos museus dos Estados Unidos com
os povos indígenas. “Museus são espaços privilegiados
para levar debates acadêmicos ao público amplo, rom-
pendo com circuitos teóricos”, sustenta a pesquisadora.

1. Roupa usada tradicionalmente por parteiras kaingang compõe acervo


do MAE-USP 2. Pintura de Daiara Tukano, da exposição Nhe’ẽ Porã:
Memória e transformação, do Museu da Língua Portuguesa 3. Estátuas
que sobreviveram ao incêndio no Museu Nacional: instituição reconstrói
coleções por meio de novas abordagens

24 | DEZEMBRO DE 2022
Em busca de melhores estratégias para socializar o acervo, a arqueóloga
e curadora Helena Pinto Lima, do Museu Paraense Emílio Goeldi, conta
que a instituição tem convidado grupos de estudantes, povos indígenas e
artistas locais para trabalhos colaborativos com o acervo, dentro da reserva
técnica, que é visitável. “Por meio dessa prática, nossa reserva técnica se
tornou referência para artistas, com quem temos desenvolvido um trabalho
de produção de réplicas artesanais de peças arqueológicas”, diz. Segundo
ela, as réplicas circulam em grupos de estudos e escolas, disseminando
conhecimento tanto arqueológico quanto sobre o artesanato da região.
Lima considera a interiorização de universidades federais brasileiras a
partir de 2003 o ponto de partida dessa mudança de olhar, na medida em que
permitiu que povos tradicionais passassem a ocupar mais efetivamente os
espaços de produção do conhecimento, o que tem motivado sua transforma-
ção. Conforme ela, o movimento tem influenciado a Sociedade de Arqueo-
logia Brasileira, que, em novembro, realizou encontro com educadores, mu-
seólogos e arqueólogos em Belém, no Pará, para repensar políticas de acervo.
Por meio do diálogo com 50 profissionais indígenas, o Museu da Língua
Portuguesa (MLP), por sua vez, acaba de inaugurar a exposição Nhe’ẽ Porã:
Memória e transformação, sobre a complexidade do nosso idioma e com o
objetivo de oferecer informações sobre 274 línguas indígenas faladas por in-
divíduos pertencentes a 305 etnias do país. “Embora
a maioria dos brasileiros pense viver em um país
monolíngue, somos multilíngues. Antes da chegada
dos portugueses, calcula-se que havia cerca de 5 mi-
lhões de falantes de aproximadamente mil línguas.
Muito se perdeu e, hoje, cerca de 40 idiomas seguem
em iminente perigo de desaparecimento”, detalha
Isa Grinspum Ferraz, curadora especial do MLP.

BUSCA POR DIVERSIDADE


Espaços de arte também repensam estratégias cura-
toriais, como é o caso do Museu de Arte do Rio
Grande do Sul (Margs) que, por meio de um trabalho
de revisão crítica do acervo, formado no decorrer
de sete décadas, identificou que, entre os mais de
mil artistas plásticos com obras em sua coleção,
menos de três dezenas são negros – 134 das mais
de 5,5 mil obras da coleção.
“Acervos legitimam e hierarquizam valores e nar-
rativas vigentes em uma história da arte que vem
sendo revisada criticamente, reexaminando bases
eurocêntricas e colonizantes que assentaram a sua
constituição”, afirma Francisco Dalcol, diretor-cu-
rador da instituição. Como parte desse movimento,
4
nos últimos anos o Margs intensificou a reflexão so-
bre exclusões e silenciamentos. Nesse momento, está adquirindo um conjunto de obras de artistas
negros. “É o início de um movimento. Há muito a ser feito”, avalia Dalcol. Criado em 1954, o Margs
conta com um acervo que é composto por pinturas, esculturas, gravuras, cerâmicas, desenhos, arte
têxtil, fotografias, instalações, arte digital, entre outros. Alguns de seus quadros mais conhecidos são
A dama de branco (1906), do pintor e decorador Arthur Timótheo da Costa (1822-1922), e Almofada
amarela (1923), do pintor Leopoldo Gotuzzo (1887-1983). “O conjunto abrange produções regidas por
modelos acadêmicos europeus, passando por rupturas de manifestações modernistas até chegar à
pluralidade de desdobramentos operados por práticas artísticas contemporâneas”, informa Dalcol. n

4. Litogravura Amordaçada, de Paulo Chimendes, faz parte do acervo do Margs. Museu está ampliando sua coleção de obras
produzidas por artistas negros

O projeto e os artigos científicos consultados para esta reportagem estão listados na versão on-line.

PESQUISA FAPESP 322 | 25


26 | DEZEMBRO DE 2022
ENTREVISTA Maria Cristina Kupfer

DESVENDANDO
A MENTE
INFANTIL
Transitando entre a psicanálise e a educação,
pesquisadora elabora estudos e tratamentos
pioneiros para crianças autistas

Christina Queiroz | RETRATO Léo Ramos Chaves

E
IDADE 71 anos m uma trajetória construída entre o universo da pesquisa aca-
dêmica e atendimentos clínicos, a psicóloga e psicanalista Maria
ESPECIALIDADE
Cristina Machado Kupfer, do Instituto de Psicologia e da Facul-
Psicologia e psicanálise
dade de Educação da Universidade de São Paulo (IP-FE-USP),
INSTITUIÇÃO desenvolveu na década de 1990 o conceito de educação terapêu-
Universidade de tica, que tem propiciado a inclusão de crianças psicóticas e autistas na
São Paulo (USP) sociedade por meio de atendimentos em grupo, conjugados com ativida-
des escolares. Perseguida durante a ditadura militar (1964-1985) por sua
FORMAÇÃO
atuação no movimento estudantil, Kupfer, que foi professora convidada na
Graduação (1974),
Université Paris Nanterre, na França, levou sua preocupação com o social
mestrado (1982)
e o coletivo para o trabalho na psicologia.
e doutorado (1990)
Há pelo menos três décadas, a base de suas pesquisas e atendimentos
em psicologia na USP
clínicos envolve o trabalho em grupo com crianças de distintas faixas etá-
PRODUÇÃO rias e questões psíquicas. Ao enxergar o autismo como um modo de ser,
88 artigos científicos, e não um transtorno, a pesquisadora trata das divergências existentes, no
3 livros, 17 obras Brasil, entre psicanálise e disciplinas como a neurociência e a psiquiatria.
organizadas e 66 Em alguns casos, defende ela, a busca por estratégias que propiciem aos
capítulos de livros. autistas o estabelecimento de laços sociais pode ser mais eficiente do que
Orientou e supervisionou o uso de medicamentos.
mais de 80 projetos Paulistana, mãe de dois filhos e avó de quatro netas, ao coordenar o
de iniciação científica, desenvolvimento de indicadores para padronizar atendimentos psicana-
mestrado, doutorado líticos, Kupfer estabeleceu pontes entre o conhecimento acadêmico e a
e pós-doutorado e fundou formulação de políticas públicas voltadas à saúde mental infantil. Nesta
o Lugar de Vida, referência entrevista, concedida para Pesquisa FAPESP em duas sessões, uma pre-
em atendimentos sencial e outra por videoconferência, ela fala sobre a importância do de-
para crianças autistas senvolvimento de políticas e ações que permitam ampliar a inserção de
e psicóticas crianças com deficiência em escolas regulares.

PESQUISA FAPESP 322 | 27


De onde vem seu interesse por crianças? Quanto tempo ficou presa?
Sou filha de professores ligados à cultura Duas semanas. Meu marido ficou um
francesa. Minha mãe era professora de pouco mais. Os agentes da repressão es-
francês e meu pai pianista e professor tavam interessados em “investigar” as
de história da arte. Eu e duas das mi- Na ditadura, guerrilhas e os movimentos armados.
nhas quatro irmãs estudamos em escola Minha vizinha ficou muito mais tem-
francesa. Isso foi marcante, porque me
trouxe um modo específico de estruturar
fui presa e po e apanhou muito. Quando saiu, foi
direto para o exílio. Nunca mais voltou
o pensamento e a escrita. O fato de ser-
mos cinco mulheres e de termos vivido
torturada. Meu para o Brasil.

em grupo durante a infância também foi Quando a senhora descobriu sua vo-
importante. A infância marca as escolhas pai me mandou cação para a psicanálise e a educação?
e a vida futura. Tive uma formação que Concluí a graduação em psicologia no
privilegia o coletivo, o social, a igualda- uma rosa porque Instituto de Psicologia da USP em 1974.
de. O gosto que tenho por desenvolver Logo em seguida houve um concurso
trabalhos em grupo, na psicanálise, vem
desse legado familiar. Outra experiência
não queria que para professor na área de psicologia es-
colar no IP. Não tinha muita clareza se
marcante foi a convivência, durante a
infância, com um menino autista, filho eu esquecesse gostaria de ser pesquisadora porque ha-
via tido uma experiência negativa com a
de uma amiga de minha mãe. Eu não coordenação de um grupo durante a fa-
entendia o que acontecia com aquele da civilidade culdade. Poderia ter desistido da carrei-
menino, que tinha a mesma idade que ra acadêmica depois de me formar, mas
eu, mas não brincava com a gente. Te-
nho clareza de que foi ele quem desper-
humana nós sabemos que a verdadeira vocação
não é aquela em que necessariamente
tou em mim a curiosidade e, de alguma você se sai melhor, mas aquele terreno
forma, mais tarde influenciou meus in- que apresenta obstáculos, enigmas e
teresses de pesquisa. Há 60 anos, não desafios. Fui aprovada no concurso em
se viam autistas na rua, diferentemente 1975, mas levei anos para me enxergar
dos tempos atuais. Eles costumavam fi- como pesquisadora e ser reconhecida
car dentro de casa. como tal. Quando realizei um seminá-
rio para a Associação Analyse Freu-
A senhora tem filhos? Um dos torturadores que comandavam dienne, de Paris, da qual sou membro,
Sim. Conheci meu marido, o jornalista as sessões era um homem supostamente o diretor disse: “Temos diante de nós
José Paulo Kupfer, em um passeio pelo cristão, porque assim se declarava. Cris- uma verdadeira pesquisadora”. Sempre
rio São Francisco, no Nordeste. Nos ca- tão e torturador, ao mesmo tempo, como quis trabalhar com educação e acabei
samos em 1972, temos dois filhos que nos se isso fosse possível. Quando meus pais indo para a psicologia porque pensa-
deram quatro netas. Em 1973, quando descobriram onde eu estava presa, mi- va que ela me daria mais instrumen-
eu estava no penúltimo ano da gradua- nha mãe enviou coisas que achava im- tos para lidar com crianças. Em 1998
ção no Instituto de Psicologia da USP, portantes, como itens de higiene pessoal fundei, com o psicanalista Leandro de
fomos morar do lado de uma colega de e roupas. Meu pai me mandou uma rosa. Lajonquière, o Laboratório de Estudos
faculdade. Eu não sabia, mas ela estava Ao tomar conhecimento desse fato, esse e Pesquisas Psicanalíticas e Educacio-
sendo procurada por agentes do governo torturador se sentiu profundamente to- nais sobre a Infância [Lepsi], na USP.
militar, por causa de sua participação na cado. Depois disso, durante todo o tempo Desde então, esse campo de estudo não
luta armada. Acabamos presos. em que permaneci presa, ele passou a re- parou de crescer.
citar poemas diariamente para mim. Eu
Vocês tinham alguma militância po- tinha 21 anos e sentia uma raiva imensa A senhora tem trabalhos de referência
lítica? de ter de ouvir o homem que, dias antes, com crianças autistas. Como definir o
Meu marido tinha tido alguma ativida- havia comandado as sessões em que fui autismo?
de política no Rio de Janeiro, mas não torturada com choques elétricos. A en- A Associação Americana de Psiquiatria
na luta armada, e eu frequentava o mo- trada de uma flor naquele cenário de ter- define os autistas como pessoas com pro-
vimento estudantil. Um dia, agentes da ror, perseguições e pessoas morrendo foi blemas de comunicação, inclusão so-
Operação Bandeirantes [Oban] levaram muito marcante. A gente não come nem cial e padrões restritos e repetitivos de
nós três presos. Ficamos encarcerados veste uma rosa, mas meu pai não queria comportamento. O autismo tem origem
durante semanas na sede da Oban, em São que eu esquecesse da civilidade humana. neurológica. Geralmente psiquiatras e
Paulo. Passei por choques e outras coisas. Com esse gesto, ele indicou um caminho neurologistas entendem os autistas de
Mesmo depois de já ter sido submetida para me fortalecer diante do horror que forma determinista. Ou seja, para gran-
ao terror, demorei a ser liberada porque foram os anos da ditadura. Essa história de parte deles, a partir do momento em
achavam que eu poderia avisar outras me marcou muito. Esta é a primeira vez que a criança apresenta esse transtorno
pessoas que estavam sendo procuradas. que falo publicamente sobre isso. em seu neurodesenvolvimento, seu des-

28 | DEZEMBRO DE 2022
tino como autista está selado. Eles en- regularidade, mesmice ou imutabilidade. de pessoas com deficiência. Em 1846,
xergam o autismo como um transtorno, Eles criam um mundo inflexível e tudo foram feitos os primeiros estudos para
uma doença, que deve ser tratada com o que desarranja a ordem os incomoda identificar diferenciações entre as defi-
remédios e reeducação. Os psicanalistas muito. Por isso, sua construção psíqui- ciências. Foi só em 1943, com os estudos
concordam que o autismo é um transtor- ca é fruto da dificuldade de estar com do austríaco Leo Kanner [1894-1981], que
no envolvendo o desenvolvimento neu- os outros no mundo. E, se eu entendo o se começou a falar em autismo. Radica-
rológico. Mas, a partir dessa definição autismo como uma construção psíquica, do nos Estados Unidos, Kanner foi um
médica, acrescentamos uma dimensão não posso chamá-lo de doença. psiquiatra com forte influência psicana-
a mais: a psíquica. Afirmamos que todo lítica e descreveu os primeiros 11 casos
ser humano tem um corpo que se desen- Se não se trata de uma doença, é possí- conhecidos de autismo. O psicanalista
volve e um psiquismo que se constrói vel falar em cura? austríaco Bruno Bettelheim [1904-1990]
nesse corpo. A psicanálise trabalha com a ideia de também fez contribuições nesse sentido
que o autista elabora seu aparelho psí- ao estabelecer conexões entre o autismo
Psiquiatras e neurologistas refutam quico para se defender da grande difi- e as relações familiares. No entanto, Bet-
essa abordagem? culdade que tem de estar com os outros telheim ficou conhecido como aquele
Alguns argumentam que pesquisas re- e busca fazer com que a pessoa crie laços que acusou as mães de serem responsá-
lacionadas à mente não são claras e ofe- sociais sem sofrer. Não se trata de uma veis pelo autismo dos filhos, por causa de
recem poucas evidências que permitam busca pela cura, ou seja, nós não bus- uma interpretação um tanto equivocada
afirmar que construímos um aparelho camos tirar uma criança do autismo. A de suas ideias. Ele disse, no final de sua
mental, ou a mente. A psicanálise se estrutura do autismo vai prosseguir por obra, que é a não reação da criança que
dedica há mais de 100 anos a estudar a toda a vida, mas pode ficar mais leve por leva a mãe, ao final do primeiro ano, a
construção do aparelho psíquico e ten- meio de tratamentos terapêuticos que se distanciar dela.
tamos entender como ele se desenvolve ajudem o indivíduo a melhorar sua de-
em um autista. É um desenvolvimento fesa em relação à angústia de estar com Por que essa atenção sobre as mães?
diferente do modo como estamos acos- os outros. A mãe é responsável pelo estabelecimen-
tumados a ver em pessoas não autis- to das primeiras relações do bebê com o
tas. Os psicanalistas entendem que o Quem foram os pioneiros na pesquisa mundo externo. Um bebê de 6 meses já
autismo é um modo de ser e não uma sobre o autismo? responde aos estímulos de sua mãe, ao
doença. A psicanálise compreende que No século XIX, quando a psiquiatria se sorrir para ela quando a vê, ou rir quando
a construção psíquica é feita a partir da desenvolveu, ainda não se falava em au- faz cócegas em sua barriga. Ou mesmo
relação com o outro, ou seja, ela não é tismo porque as pessoas nessa condição mais tarde, quando a criança está na rua
determinada apenas por aspectos bio- eram colocadas de forma genérica no rol e aponta para um cachorro para mostrá-
lógicos. Isso significa que o autismo não -lo à sua mãe. Chamo essas relações de
advém somente de problemas no de- prazer compartilhado. Para os psicana-
senvolvimento neurológico, mas tam- listas, o prazer compartilhado é a base
bém decorre dos desafios relacionados de toda a construção psíquica. E bebês
à construção psíquica. com risco de evolução de autismo não
reagem a esses estímulos.
Como o aparelho psíquico se desenvolve
em uma pessoa autista?
A psicanálise trabalha com a ideia de Entendemos o Hoje há mais autistas na sociedade ou
o diagnóstico é mais preciso?
que o psiquismo do ser humano se cons- No fim do século XX, a proporção era de
trói por meio da relação com o outro. autismo como um quatro autistas para cada 4 mil pessoas.
E os problemas no desenvolvimento Mas atualmente, nos Estados Unidos,
neurológico em autistas atrapalham a
relação da criança com o outro. Por is-
modo de ser e por exemplo, os Centros de Controle e
Prevenção de Doenças [CDC] estimam
so, essa relação precisa se constituir de
um modo diferente daquele que fun-
não uma doença. que há um autista para cada grupo de
60 pessoas. É uma diferença astronômi-
ciona com outras crianças. Os autistas ca. Sabemos diagnosticar melhor, mas
recebem estímulos sem filtro, não con- Ele tem origem os diagnósticos também cresceram de
seguem se integrar a grupos e têm di- forma desmesurada. Muitos médicos
ficuldades de linguagem. Eles estão no neurológica, mas se apressam em propor o diagnóstico de
mundo, querem estar, mas não podem autismo logo na primeira infância, para
e fogem dele o tempo todo. Com isso,
as trocas são falhas e a criança autista
também decorre que a criança comece a tomar remédios
o mais rápido possível. Na pandemia, por
não consegue entrar em contato ativo
com outras pessoas, não responde nem da construção exemplo, o número de diagnósticos de
autismo aumentou muito, quando na ver-
oferece estímulos aos outros. Sua cons- dade as crianças estavam simplesmente
trução psíquica se baseia na repetição, psíquica mais quietas.

PESQUISA FAPESP 322 | 29


A senhora desenvolveu diferentes estu- ficuldade de estar com os outros e de se estavam construindo sua subjetividade
dos envolvendo psicanálise e educação. relacionar. A ideia é que esse bebê seja na relação com os outros alunos. Nesse
Poderia falar sobre eles? apoiado desde o início para não criar sentido, quanto mais diverso e hetero-
Desde que comecei a lecionar na USP, defesas tão duras. Atendemos crianças gêneo o ambiente, melhor para o au-
queria trazer para o Brasil um modelo de 4 anos que começam a buscar prazer tista porque, ao perceber a diferença
francês de atendimento em grupo, pa- compartilhado, a construir relações que com os outros, ele consegue constituir a
ra crianças psicóticas e autistas, que é são atravessadas pelo prazer. Claro, à consciência sobre si mesmo. Hoje, sabe-
associado à inclusão escolar. Nos anos maneira delas. Também contamos com mos que é muito mais fácil uma criança
1990, o movimento de inclusão escolar o projeto Escolas Protagonistas, que en- aprender com outra do que aprender
estava começando no Brasil. Apoiada volve a participação de 10 escolas par- com um adulto.
nesse modelo francês, criamos em 1992 ticulares e com quem temos um traba-
um grupo de trabalho no IP que ofere- lho conjunto de educação terapêutica. A senhora realizou estudos que permiti-
cia atendimento a crianças de diferentes Com apoio da FAPESP, editamos dois ram ampliar a presença da psicanálise
idades com problemas de aprendizagem, livros sobre práticas inclusivas nessas em políticas públicas voltadas à saúde
autistas e psicóticos. Nosso tratamento instituições. mental. Como isso se deu?
tinha base psicanalítica, mas também Uma dessas pesquisas foi realizada en-
contava com a participação de pedagogos Qual a importância da escola na vida tre 2000 e 2008 e envolveu a criação
e fonoaudiólogos. O objetivo era fazer de uma criança autista? dos Indicadores de Risco para Desen-
com que essas crianças estabelecessem Antes se pensava que as outras crianças volvimento Infantil [Irdi]. Por sugestão
laços com o outro sem as angústias e de- atrapalhavam as autistas, porque tra- do Ministério da Saúde, apresentamos
fesas que costumam ter. O atendimento ziam estímulos com os quais os autis- um projeto, que foi aceito, ao Conselho
era conjugado com a ida à escola, que tas não conseguiam lidar. Aos poucos, Nacional de Desenvolvimento Científi-
também produz efeitos na reestrutura- pesquisas evidenciaram que crianças co e Tecnológico [CNPq] e à FAPESP.
ção psíquica. Chamamos essa proposta autistas estão atentas às outras crian- Estruturamos um grupo de trabalho
de educação terapêutica, noção desen- ças. No início, de maneira oblíqua, mas coordenado por mim que envolveu es-
volvida por mim. sempre interessadas em observar o que pecialistas em 10 capitais. Nos baseamos
as outras fazem. Com essa convivência, em pressupostos teóricos psicanalíticos
Foi esse trabalho que deu origem ao em um segundo momento, os autistas sobre a constituição psíquica de crian-
Lugar de Vida, o espaço que se tornou fazem um movimento de imitar gestos ças com até 36 meses para elaborar 31
uma referência no tratamento e acom- de outros alunos. Percebemos que es- indicadores clínicos aptos à detecção
panhamento escolar de crianças e jo- sa imitação poderia se transformar em de sinais iniciais de problemas psíqui-
vens com diferentes tipos de problemas identificação, que as crianças autistas cos do desenvolvimento infantil, que
psíquicos? podem ser observados nos primeiros 18
Sim. Em 2017, os atendimentos deixaram meses de vida. A ideia do Ministério da
de acontecer na USP e o trabalho passou Saúde era incorporar esses indicadores
a ser desenvolvido no Lugar de Vida, na caderneta de saúde da criança, para
que funciona como uma clínica parti- servirem de apoio a pediatras. Um dos
cular em São Paulo e busca possibilitar indicadores que utilizamos envolve a
a inclusão na vida escolar e cotidiana ideia do prazer compartilhado. Por meio
dessas crianças. Seguimos atendendo a
grupos heterogêneos e nossos profissio- Quanto mais dele, conseguimos identificar se o bebê
está em processo de retraimento rela-
nais estabelecem diálogos com as esco- cional. Alguns indicadores passaram a
las, cuidando para que elas recebam de diverso o compor a caderneta da criança em 2017.
forma adequada pessoas com questões Também com financiamento da FAPESP,
psíquicas, que muitas vezes podem ser
agressivas ou apresentar dificuldades
ambiente, melhor entre 2017 e 2019, elaboramos um outro
instrumento, chamado de Acompanha-
severas de aprendizagem. A escola faz
a educação regular, e no Lugar de Vida para o autista. mento Psicanalítico de Crianças em Es-
colas, Grupos e Instituições [Apegi]. No
fazemos educação terapêutica. A escola Apegi, sistematizamos metodologias de
regular colabora com a construção psí- Ao perceber a diagnóstico e acompanhamentos da psi-
quica em várias dimensões, ajudando canálise com crianças a partir de 4 anos
crianças a organizar sua visão de mundo. diferença com os e propusemos leituras, por intermédio
Por meio desse trabalho conjunto, muitas dos diferentes fenômenos observados
crianças começaram a adquirir conhe-
cimento, se alfabetizaram. No Lugar de
outros, ele constrói pelo psicanalista, do processo de cons-
tituição subjetiva, que é articulado ao
Vida, trabalhamos com linhas de inter-
venção precoce que permitem interferir a consciência desenvolvimento da criança.

no desenvolvimento de bebês autistas a Por que é importante contar com ins-


partir dos 6 meses, fazendo frente à di- sobre si mesmo trumentos como esses?

30 | DEZEMBRO DE 2022
O protocolo Irdi pode ser utilizado por Como estão as políticas públicas de saú-
médicos, psicólogos, fonoaudiólogos e de mental para autistas?
outros profissionais das áreas da saúde No começo do milênio, o Ministério da
e educação para acompanhar o desen- Saúde fez tentativas de construir manuais
volvimento psíquico. No caso do Apegi, A psicanálise apoiados em uma visão psicanalítica e
somente profissionais que conhecem progressista, que pensava no autismo
bem a psicanálise podem utilizá-lo. Pa-
ra ambos, é necessário um treinamento,
brasileira como um modo de ser, mais do que como
uma doença. Entre 2011 e 2016 foi elabo-
disponível em cursos oferecidos por pro-
fissionais credenciados. Infelizmente, o
é hoje rado um outro manual, pautado em uma
visão mais fechada de que o autista preci-
poder público não assumiu ainda treina- sa ser reeducado. Depois disso, o desen-
mentos gratuitos para eles. Essa é uma reconhecida. volvimento de políticas públicas para o
batalha a ser travada. Esses instrumen- autismo foi interrompido, assim como os
tos permitem criar um meio caminho Temos mais investimentos para que escolas regulares
entre a metodologia da psicanálise, que adotassem práticas inclusivas. Em 2020
se baseia em um caso único, depende de
cada psicanalista e de cada paciente, e
psicanalistas chegou a ser decretada a matrícula de
crianças e adolescentes com deficiência
uma metodologia como a da medicina.
na academia em classes e instituições especializadas,
mas tal política acabou sendo considera-
Que avaliação a senhora faz sobre o de- da inconstitucional e foi suspensa pouco
senvolvimento da psicanálise no Brasil, aqui do que tempo depois pelo Supremo Tribunal
desde o seu ingresso na carreira? Federal. Há quatro anos, tínhamos 80%
Circulei muito por universidades france-
sas, por causa de diferentes projetos de
a França das crianças brasileiras com deficiência
matriculadas em escolas regulares. Não
cooperação, especialmente entre 2000 temos dados atuais, mas muito provavel-
e 2015. Sempre observei uma postura mente esse número decaiu. Na pandemia,
até certo ponto colonialista por parte elas foram as primeiras a sair das escolas.
dos franceses. Isso significa que eles,
em alguma medida, se consideravam a Qual o impacto da pandemia de Co-
instituição-mestre da psicanálise. Mas vid-19 na sua vida?
isso mudou e hoje o trabalho dos psica- analisar crianças de 18 meses a 4 anos. Eu nunca deixei de me ocupar com aquilo
nalistas brasileiros é reconhecido, espe- Ainda não temos protocolos estabeleci- em que acredito. A história da prisão só
cialmente por pesquisas desenvolvidas dos para trabalhar com crianças de 18 a reforçou minha preocupação com o cole-
em universidades. No começo da minha 24 meses, então esse é outro campo que tivo, com o social, com o grupo. Na psica-
carreira, também me lembro que se dizia permanece em aberto. nálise, quando a gente faz um apontamen-
que os psicanalistas não sabiam elabo- to à resistência psíquica, a tendência de
rar projetos para buscar financiamento. O que levou a senhora a escrever um quem o recebe é resistir ainda mais. Hoje,
Tinham dificuldade de adequar sua lin- romance sobre o autismo ambientado eu me sinto um pouco longe da luta polí-
guagem à linguagem de pesquisa. Isso no século XIX? tica, então procurei manter essa posição
mudou. Atualmente, vemos psicanalis- Temos grandes dificuldades de estabe- em todas as discussões das quais partici-
tas operando em diferentes vertentes de lecer conversas entre a psicanálise e as po no mundo acadêmico. Minha posição
investigação científica. Inclusive temos correntes das ciências baseadas em evi- dentro da universidade sempre foi com-
hoje mais psicanalistas trabalhando em dências, como a medicina. Também há bativa. Na pandemia, organizei a distri-
universidades do que a França. um movimento de pais que condena e buição de cestas básicas com um grupo
combate a psicanálise. Então eu pensei de 120 pessoas. Fazemos uma média de
Para quais questões suas pesquisas ain- em escrever sobre autismo, mas em uma 500 cestas e distribuímos em 12 pontos
da não encontraram respostas? outra época, distanciando-me das quere- da cidade todos os meses. Isso, para mim,
Estou iniciando estudos sobre a sexuali- las contemporâneas e me apoiando na lin- é um pouco de resistência política. Por-
dade dos Asperger, que são os autistas de guagem do romance. Arthur, personagem que, claro, as pessoas precisam das cestas,
alto rendimento. Para mim, é um grande principal do meu livro, é um autista que mas com essa iniciativa eu também me
enigma como eles conseguem se relacio- começa a escrever. Para criar o persona- sinto fazendo parte da sociedade civil e
nar. Também sigo com trabalhos com os gem, me baseei no modelo dos autistas es- me opondo à política econômica do go-
instrumentos, porque o Apegi é voltado critores. Meu objetivo foi apresentar um verno atual. Temos a esperança de que
para crianças a partir de 4 anos e o Irdi modo de ver o autista para essas famílias o próximo governo cuidará melhor do
para 1,5 ano. Temos uma lacuna no meio. e para pessoas que têm uma visão mais emprego e da fome da nossa população.
Com apoio da FAPESP e coordenação fechada, comportamental e determinista Com isso, queremos utilizar essa mesma
de Rinaldo Voltolini, meu colega na FE, dessa condição. Sempre gostei muito das rede para fazer a distribuição de livros e
estou desenvolvendo uma nova pesqui- línguas portuguesa e francesa, então foi criar pequenas bibliotecas nos lugares
sa sobre instrumentos que possibilitem um exercício prazeroso. em que hoje levamos comida. n

PESQUISA FAPESP 322 | 31


PRODUÇÃO CIENTÍFICA

ARTIGOS
ZUMBIS

32 | DEZEMBRO DE 2022
Papers retratados continuam sendo citados
e especialistas discutem como conter esse problema

Rodrigo de Oliveira Andrade | ILUSTRAÇÃO Rodrigo Cunha

A
inda no início da pandemia, dois sidade Monash, na Austrália, um dos autores do
artigos sobre o novo coronavírus levantamento, publicado em junho como preprint
publicados em respeitadas revistas na plataforma medRxiv. “No entanto, observamos
científicas tiveram amplo impacto que, em muitos casos, eles não os citaram como
e repercussão. O primeiro, divul- uma retratação, mas como evidência de que ‘essa
gado em 1º de maio de 2020 na intervenção em particular é eficaz’ ou ‘não há na-
New England Journal of Medicine, da de errado com essa pesquisa’. Ou seja, citaram
avaliou os efeitos de alguns me- acriticamente papers anulados.”
dicamentos para doenças cardía- Os pesquisadores analisaram casos específicos
cas em pacientes infectados com de artigos retratados sobre a Covid-19, “mas, com
o Sars-CoV-2. O outro, publicado base na minha experiência, é razoável supor que
em 22 de maio na The Lancet, sugeria que a hi- o mesmo aconteça com trabalhos sobre outros
droxicloroquina, além de não ser eficaz contra a assuntos, sobretudo porque parecem ser raros os
Covid-19, aumentava o risco de mortalidade por cientistas que examinam de forma criteriosa os
problemas cardíacos. Os dois estudos foram re- documentos que estão citando em seus manus-
tratados em 5 de junho por suspeita de fraude da critos antes de publicá-los”, disse à The Scientist
empresa que forneceu os dados que embasavam o epidemiologista Gideon Meyerowitz-Katz, da
suas conclusões – e a impossibilidade de assegurar Faculdade de Saúde e Sociedade da Universida-
a veracidade dessas informações tornou inviável de Wollongong, na Austrália, um dos autores do
a comprovação dos resultados (ver Pesquisa FA- levantamento.
PESP nº 293). Isso deveria ter colocado um fim nas O descuido realmente está longe de ser inco-
trajetórias científicas desses papers, mas não foi o mum. Nos últimos anos, vários estudos têm cha-
que aconteceu. Mesmo anulados, eles continuaram mado a atenção para esse fenômeno que afeta a
sendo citados na literatura especializada como se integridade da produção científica. Em um de-
fossem válidos, segundo levantamento feito por les, publicado em fins de 2020, pesquisadores da
pesquisadores da Austrália e Suécia. Universidade de Illinois, nos Estados Unidos, e
Com base em dados da plataforma Retraction de Adelaide, na Austrália, analisaram a trajetória
Watch, que rastreia trabalhos científicos cance- de um artigo do cirurgião Wataru Matsuyama, da
lados por erros ou má conduta, foram analisados Universidade Kagoshima, no Japão. Publicado
212 papers sobre a Covid-19 retratados até janeiro em 2005, apresentava os resultados de um ensaio
de 2022. Um quarto deles apresentava achados clínico que apontou efeitos positivos da gordura
clínicos relevantes para o tratamento de pessoas poli-insaturada ômega-3 em pessoas com doença
acometidas pela doença. Os autores verificaram pulmonar obstrutiva crônica. Uma investigação
que esses estudos haviam recebido 1.036 citações, sobre a produção de Matsuyama levou à retrata-
80% delas feitas após terem sido invalidados. Além ção do trabalho em 2008 por falsificação de da-
disso, 86% não sinalizavam que eles tinham sido dos. Ainda assim, os autores encontraram outros
retratados, difundindo a falsa ideia de que ainda 35 papers com citações diretas a ele entre 2010 e
eram considerados válidos pela comunidade cien- 2019 – nenhum apontava a retratação. Mais re-
tífica. “Em teoria, os cientistas deveriam citar es- centemente, pesquisadores das universidades de
tudos retratados apenas de forma crítica, deixando Graz e Salzburgo, na Áustria, debruçaram-se so-
claro que estão se referindo a dados inválidos e não bre artigos do anestesiologista norte-americano
confiáveis”, destacou o cientista político e social Scott Reuben, ex-professor da Universidade Tufts,
Steve McDonald, pesquisador da Faculdade de em Boston, condenado a seis meses de prisão em
Saúde Pública e Medicina Preventiva da Univer- 2009 por fabricar dados em trabalhos publicados

PESQUISA FAPESP 322 | 33


PARADOXO DA CRÍTICA
Mesmo negativas, citações a papers retratados dão voz a trabalhos que deveriam ser esquecidos

Em 1998, o médico britânico Andrew Wake- delas após sua retratação. Ao analisar os 60 Ainda não há consenso entre os pesquisado-
field publicou um artigo na The Lancet suge- artigos que mencionavam o estudo de Wake- res sobre como lidar com isso. Há quem defen-
rindo que a vacina tríplice viral (MMR) estaria field e receberam mais de 100 citações cada, da que os artigos retratados fossem retirados
associada a casos de autismo em crianças. O ela verificou que a maioria o reconhecia como do ar, pois perderam seu valor científico. Ou-
trabalho foi retratado em 2010 por problemas um artigo invalidado e se referia a ele de modo tros argumentam que eles nem sequer deve-
metodológicos e de má conduta, mas isso não negativo, destacando seus problemas meto- riam ser objeto de novos estudos.
foi suficiente para controlar seus efeitos de- dológicos e impactos nocivos na sociedade. A microbiologista holandesa Elisabeth Bik
letérios. O paper segue sendo referência pa- “Ainda assim”, diz Leta, “eles ajudam a pro- é contrária a essa ideia. “É importante que
ra movimentos antivacina e seus resultados mover Wakefield, permitindo que ele apareça trabalhos retratados possam ser estudados”,
frequentemente são dados como válidos em em revistas de grande circulação”. afirma. A prática é válida, mas como os indi-
redes sociais. Esses resultados expõem um aspecto pa- cadores de produtividade do autor não fazem
Ele também continua sendo discutido pela radoxal da crítica a artigos anulados. Embora distinção entre citações positivas e negativas,
comunidade científica. Um estudo coordenado destaquem que suas conclusões são falhas e a recomendação é que a menção ao artigo re-
pela bióloga Jacqueline Leta, da UFRJ, indica busquem discutir seus efeitos deletérios, es- tratado seja feita em nota de rodapé – foi o que
que o trabalho recebeu 1.577 citações em arti- ses trabalhos dão voz a papers que deveriam Leta fez com o paper de Wakefield, ainda que o
gos indexados na base de dados Scopus, 53% ser esquecidos. nome do médico conste no título do trabalho.

120
Nº de artigos que citam o paper de Wakefield

Retratação
Retratação total
100 parcial*

80

60

40

20

0
1998 2000 2002 2004 2006 2008 2010 2012 2014 2016 2018 2020

Ano de publicação dos artigos que citam o paper de Wakefield


* Em 2004, 10 dos 12 coautores do paper de Wakefield pediram a retratação da interpretação que havia no artigo associando a vacina MMR ao autismo FONTE SCOPUS

nas décadas de 1990 e 2000. Eles escrutinaram as atualizar o status de cada manuscrito, de modo que,
taxas de citação de vários papers de Reuben, re- ao pesquisar um assunto no Google Acadêmico,
tratados ou não. Constataram que seus trabalhos por exemplo, o cientista pode ser redirecionado
foram citados em outros artigos 420 vezes entre para cópias intactas de artigos cancelados. O ideal
2009 e 2019; 360 remetiam aos trabalhos anulados, é que as retratações sempre fossem sinalizadas.
a maioria deles sem fazer nenhuma indicação de “Plataformas como a Research Gate poderiam
que já não eram mais considerados válidos. ser mais ativas nesse sentido”, afirma a micro-
Os casos não param por aí. Muitos papers conti- biologista holandesa Elisabeth Bik, especialista
nuam a exercer influência após serem anulados, e na identificação de indícios de erros e fraudes na
estudiosos de diferentes áreas tentam entender os produção científica.
fatores que contribuem para que eles permaneçam O risco nesses casos é de que os papers anula-
repercutindo na literatura científica. O que parece dos comprometam a validade dos artigos que os
estar claro é que na maioria das vezes os autores tomaram de base, e que estes induzam outros pes-
não percebem que estão usando artigos inválidos quisadores ao erro, poluindo a literatura científica
como referência. Em parte, isso acontece porque com conhecimentos errôneos e falsos que podem
há cópias de papers anulados em múltiplos repo- colocar a vida de pessoas em risco. Para Bik, as
sitórios e nem todos dispõem de mecanismos para editoras deveriam se esforçar mais para comu-

34 | DEZEMBRO DE 2022
tação pode ser sinalizada e como essa informação
ESFORÇO PARA EVITAR será comunicada aos interessados”, informou Sch-

A PROPAGAÇÃO DE neider em entrevista ao portal The Scholarly Kit-


chen. “Se a iniciativa avançar, editores, servidores
PAPERS ANULADOS DEVE de preprints e repositórios de dados terão orien-
tações claras e uniformizadas sobre metadados e
SER COMPARTILHADO padrões de exibição.”
“Isso será muito útil aos editores brasileiros”,
POR TODA A COMUNIDADE comenta Sigmar de Mello Rode, presidente da As-

ACADÊMICA sociação Brasileira dos Editores Científicos (Abec


Brasil). Ele destaca, porém, que “o mecanismo de
controle mais eficiente para evitar a propagação
de artigos retratados ainda é a revisão por pares
rigorosa e ética”.
Para o paleontólogo Alexander Kellner, diretor
nicar correções e retratações, embora reconheça do Museu Nacional da Universidade Federal do
que seria difícil ser 100% eficiente. “É como no Rio de Janeiro (UFRJ) e editor-chefe da Anais da
caso de um fabricante que faz recall de um pro- Academia Brasileira de Ciências, o combate a esse
duto defeituoso”, ela explica. “É quase impossível problema no Brasil passa pela profissionalização
alcançar todos os clientes que o compraram.” Na dos editores científicos. “As revistas brasileiras são
avaliação do jornalista Ivan Oransky, fundador do geridas por pesquisadores que precisam lidar com
Retraction Watch, “o esforço para evitar que papers várias outras demandas na carreira, diferentemente
retratados continuem se infiltrando na literatura das principais publicações dos Estados Unidos e
científica deve ser compartilhado por toda a co- do Reino Unido, que contam com recursos e in-

U
munidade acadêmica”. fraestrutura para desempenhar essa atividade”,
ele diz. “Não dispomos de recursos humanos e
ma das iniciativas nesse sentido é técnicos que nos permitam analisar cada referên-
o projeto Reduzindo a Propagação cia nos manuscritos que nos são submetidos.” Bik
Inadvertida de Ciência Retratada alerta que já existem mecanismos automatizados
(RISRS), lançado em 2020 pela para executar essa tarefa. Softwares de gerencia-
cientista da informação Jodi Sch- mento de referências, como o LibKey, Zotero e
neider, da Faculdade de Ciência da Endnote, são capazes de cruzar o código identifi-
Informação da Universidade de cador dos estudos citados com a lista de mais de
Illinois Urbana-Champaign, nos 36 mil trabalhos retratados do banco de dados do
Estados Unidos. A proposta é reunir Retraction Watch.
cientistas, editores, escritórios de A bióloga Jacqueline Leta, do Instituto de Bio-
integridade em pesquisa, consul- química Médica da UFRJ, especialista em ciento-
tores, entre outros representantes do ecossistema metria, concorda que seria útil adotar ferramentas
acadêmico, para discutir o fenômeno e pensar automatizadas para monitorar artigos inválidos. “A
caminhos para combatê-lo. As discussões pro- maioria das revistas já usa softwares para verificar
movidas até aqui já resultaram em uma série de se há plágio em manuscritos submetidos para pu-
recomendações, como a criação de uma plataforma blicação”, ela diz. “Não seria difícil incluir em sua
a ser usada por todas as editoras para acompanhar rotina editorial a verificação das referências.” Uma
artigos retratados e verificar se eles aparecem nas vez detectada uma retratação, o periódico alertaria
referências de manuscritos recém-aceitos. “Muitas os autores e daria a eles a opção de excluir a citação
já adotaram sistemas que permitem aos leitores ou então indicá-la apenas em uma nota de rodapé, de
checar se a versão do artigo que estão consultando modo a evitar que a menção seja computada pelos
é a mais recente”, destaca Bik. índices de citação – que não fazem distinção entre
Outro desdobramento do RISRS foi a criação, referências positivas e negativas – e que isso gere
em fins de 2021, de um painel de especialistas no distorções em um dos mecanismos quantitativos
âmbito da Organização Nacional de Normas de mais usados para avaliar o desempenho dos pesqui-
Informação dos Estados Unidos (Niso) para ela- sadores, o índice-h (ver Pesquisa FAPESP nº 207).
INFOGRÁFICO ALEXANDRE AFFONSO

borar orientações sobre como as editoras devem Leta aponta ainda outra frente para avançar: “As
comunicar retratações, correções e “expressões notas de retratação não podem ser ambíguas ou eva-
de preocupação”, declarações sinalizando que sivas. Elas precisam se tornar mais transparentes
os resultados de determinado artigo estão sendo e fornecer o máximo possível de detalhes sobre os
reavaliados. “A iniciativa se concentrará no que problemas encontrados no artigo, incluindo quais
acontece quando o estudo é retratado, isto é, quais foram os motivos, quem pediu a retratação e se ela
metadados devem ser atualizados, como a retra- foi um consenso entre os editores”. n

PESQUISA FAPESP 322 | 35


CIENTOMETRIA

BELAS
ADORMECIDAS
Estudos com pouca repercussão publicados no início
dos anos 2000 ganharam visibilidade na pandemia
e ajudaram no combate ao novo coronavírus

U
m fenômeno curioso da pesquisadores da Universidade da Nova documentos contabilizava 3.477 citações,
cientometria, área que Gales do Sul, na Austrália. e a média de cada um deles era de 1.090.
estuda a produção cien- Com base em dados da Web of Scien- Alguns dos artigos que ganharam vi-
tífica com base em indi- ce, eles analisaram as taxas de citação sibilidade a partir de 2020 tratam de as-
cadores, voltou a se ma- de 27.460 artigos publicados no perío- pectos diversos relacionados ao meca-
nifestar durante a pan- do sobre diversas variantes da família nismo de ação do Sars-CoV-1, causador
demia: as “belas adormecidas”, artigos de coronavírus e infecções respiratórias da Síndrome Respiratória Aguda Grave
que passam a receber citações anos ou em geral. Encontraram 15 trabalhos com (Sars), e se mantiveram adormecidos pos-
décadas após terem sido publicados. Mais comportamento característico de papers sivelmente porque o surto dessa doença,
de uma dezena de trabalhos divulgados adormecidos, isto é, que atraíram alguma em 2002, durou pouco tempo. Um deles,
entre 2003 e 2015 – e que, até então, ha- atenção em seus primeiros anos de publi- publicado em 2003 na revista Nature,
viam tido pouca ou nenhuma repercussão cação, mas perderam força com o tempo, investigou como o Sars-CoV-1 utilizava
– “despertou” em meio à crise sanitária, passando despercebidos pela comunidade a enzima conversora de angiotensina 2
ganhando importância no combate ao científica até serem redescobertos ou re- (ACE2) para infectar as células huma-
novo coronavírus. A conclusão consta de visitados. Em 9 de março de 2022, quando nas. Entre 2010 e 2019, esse trabalho re-
um levantamento feito por uma dupla de o levantamento foi concluído, um desses cebeu, em média, 33,6 citações por ano.

36 | DEZEMBRO DE 2022
Em 2020, foram 1.139 referências ao pa- citações também para os trabalhos que O aumento expressivo no número de
per, que hoje acumula pouco mais de 3,5 aparecem em suas referências”, diz Abel citações observado nesses trabalhos in-
mil menções. Os resultados apresentados Packer, coordenador da biblioteca de re- dica que estudos feitos com o objetivo
nesse estudo fizeram com que outros vistas de acesso aberto SciELO Brasil. É de avançar o conhecimento, sem uma
cientistas avaliassem se o mesmo meca- possível que isso tenha acontecido com aplicação imediata ou aparente, podem
nismo era usado pelo Sars-CoV-2, o que as belas adormecidas da Covid-19, segun- vir a desempenhar um papel crítico na
se confirmou. Esse conhecimento per- do análises feitas por pesquisadores da prevenção e na mitigação de novas doen-
mitiu à comunidade acadêmica avançar Universidade de Sfax, na Tunísia, com ças. “A ciência é construída em cima da
no desenvolvimento de estratégias para base nos resultados da dupla australiana. ciência”, destaca Packer. “Sempre que
conter a ação do patógeno. Fenômeno semelhante foi observado um problema novo se apresenta aos
Outros trabalhos investigaram possí- no Brasil, ainda que em menor escala. cientistas, eles se voltam para o que foi
veis formas de tratamento da Sars, caso Um dos artigos que se destacam nesse produzido no passado para orientar suas
de dois artigos. O primeiro, divulgado sentido foi publicado em 2013 na revista próprias investigações, muitas vezes re-
em 2005 no Virology Journal, debruçou- Influenza and Other Respiratory Viru- plicando experimentos anteriores para
-se sobre o potencial do antimalárico ses pelo grupo da infectologista Nancy estabelecer as bases de novas hipóteses.
cloroquina como inibidor da infecção Bellei, do Departamento de Medicina É como uma caixa de ferramentas à qual
causada pelo Sars-CoV-1. O outro, pu- da Universidade Federal de São Paulo se recorre quando precisamos consertar
blicado em 2015 no Journal of Infectious (Unifesp). Ela e a biomédica Tatiane algo.” Para isso, no entanto, é preciso
Diseases, escrutinou a literatura espe- Karen Cabeça, então sua estudante de que exista uma massa de pesquisado-
cializada em busca de evidências sobre doutorado, analisaram as característi- res qualificados capazes de produzir e
a efetividade do plasma convalescente cas clínicas e epidemiológicas de vá- estocar conhecimento.

U
em pessoas acometidas pela enfermidade rias cepas de patógenos da família dos
– as duas estratégias foram amplamente coronavírus em diferentes grupos de m exemplo recente disso
testadas em pacientes com Covid-19, mas pacientes, verificando já naquela época no Brasil foi a Rede de
os resultados não se mostraram efetivos. que eles eram capazes de causar mais do Pesquisa sobre Zika Ví-
Também um artigo de 2003 publicado na que doenças leves do trato respiratório e rus em São Paulo (Rede
The Laryngoscope discutiu como realizar que pessoas com comorbidades tinham Zika), força-tarefa cria-
uma traqueostomia segura em indivíduos mais risco de se infectar e desenvolver da em 2015 para estudar
contaminados pela Sars. Outro, de 2008, quadros graves da doença. O trabalho, fi- tudo o que fosse possível sobre esse pa-
na PLOS ONE avaliou como as máscaras nanciado pela FAPESP, recebeu, em mé- tógeno. “Essa pronta reação foi viável
podiam reduzir a incidência de infecções dia, quatro citações por ano entre 2014 e porque por muitos anos se investiu na
respiratórias na po- 2019. Em 2020, no criação de laboratórios de virologia no
pulação. Segundo a entanto, o número estado de São Paulo e na formação de
Web of Science, es- de menções foi de mão de obra científica qualificada”, co-
se trabalho, que re- 28 e, em 2021, de menta Bellei, que não participou da Re-
cebia menos de 10 É difícil avaliar se 22, segundo levan- de. “Tanto a infraestrutura de pesquisa
citações por ano, tamento feito por criada no passado quanto o financia-
registrou 95 men- um artigo pouco Packer a pedido da mento contínuo a estudos básicos sobre
ções em 2020 e 89 reportagem. patógeno diversos, como o da dengue e
em 2021. citado tem potencial Bellei atribui das febres amarela e chikungunya, nos
Casos de artigos o desempenho permitiu acumular e dispor de infor-
adormecidos não
para ampliar seu do trabalho à sua mações essenciais em um momento de
são necessariamen- impacto proposta abran- emergência associada ao zika”, comenta
te raros na ciência, gente: investigar Packer. “Isso reforça a importância de
embora seja difícil diferentes varian- se investir em conhecimento e capa-
conseguir prever os tes de coronavírus citação de pesquisadores sem preo-
fatores que ajudam e avaliar seus efei- cupação com o resultado imediato.” n
a despertá-los (ver Pesquisa FAPESP nº tos em diversas populações ao longo de Rodrigo de Oliveira Andrade
256). Em geral, os “príncipes” responsá- muitos anos. “Sabíamos que esses vírus
veis por quebrar o encanto e deflagrar eram capazes de saltar de espécies ani-
o interesse da comunidade acadêmica mais para o ser humano e vimos isso Artigos científicos
por esses trabalhos estão associados a acontecer em duas ocasiões, em 2002, TURKI, H. et al. Awakening sleeping beauties during the
novas descobertas científicas. Em alguns com a Sars, e em 2012, com o vírus da Covid-19 pandemic influences the citation impact of their
casos, porém, podem decorrer de outros Síndrome Respiratória do Oriente Mé- references. Scientometrics. v. 127, p. 6047-50. ago. 2022.
ILUSTRAÇÃO ANNA CUNHA

HAGHANI, M. e VARAMINI, P. Temporal evolution, most


eventos, como a eclosão de uma doen- dio, a Mers”, ela destaca. “Os casos de influential studies and sleeping beauties of the coronavirus
ça. “Quando isso acontece, dá-se início Mers ficaram restritos ao Oriente Médio, literature. Scientometrics. v. 126, p. 7005-50. jun. 2021.
a um efeito cascata, no qual os próprios mas estava claro que havia um potencial CABEÇA, T. K. et al. Epidemiological and clinical features
of human coronavirus infections among different subsets
artigos despertados passam a atuar co- de que esses dois patógenos desenca- of patients. Influenza and Other Respiratory Viruses.
mo príncipes, ajudando a catalisar novas deassem um problema maior.” v. 7, n. 6, p. 1040-7. mar. 2013.

PESQUISA FAPESP 322 | 37


ENTREVISTA YVONNE PRIMERANO MASCARENHAS

PENSAR
NUNCA FEZ MAL
A NENHUMA
SOCIEDADE
Aos 91 anos, pesquisadora
fala de sua trajetória acadêmica
e seu trabalho em defesa
da ciência e da educação
Fabrício Marques

E
m um evento que durou três Na homenagem que a senhora recebeu, ficar trabalhando isolada, trancada no seu
horas no auditório do Insti- um dos pontos destacados foi o seu pa- laboratório”. Isso foi feito. Após proferir
tuto de Física de São Carlos pel na consolidação da estrutura cientí- um seminário no Instituto de Química da
da Universidade de São Pau- fica e acadêmica da USP em São Carlos. USP, fiz as primeiras estruturas em cola-
lo (IFSC-USP), mais de 20 Como avalia sua contribuição? boração com Otto Gotlieb [1920-2011] e
cientistas, estudantes e fun- Quando em 1959 comecei a trabalhar nos Ernesto Giesbrecht [1921-1996]. Entre-
cionários revezaram-se no púlpito relem- Estados Unidos no Departamento de Cris- tanto, quando cheguei a São Carlos, não
brando fatos e passagens que destacam a talografia chefiado pelo inglês G. A. Jef- havia computador no campus. O único
importância e a contribuição científica da frey, tive uma oportunidade extraordiná- computador existente na USP ficava na
física Yvonne Primerano Mascarenhas. A ria de atuar em um grupo onde já se fazia Escola Politécnica. Era um IBM 1620 e
homenagem deveria ter acontecido em uso de computador a fim de realizar os eu passei a viajar frequentemente para
2021, quando ela completou 90 anos de longos cálculos necessários para, utilizan- São Paulo para usá-lo por cerca de duas
idade, mas a solenidade acabou adiada por do as intensidades dos feixes difratados, horas. Insisti muito para que alguma das
conta da pandemia e finalmente ocorreu obter a estrutura molecular e cristalina verbas que o nosso Departamento de Físi-
na tarde de 16 de setembro. Em comum, das substâncias em estudo. A Universi- ca da Escola de Engenharia de São Carlos
os depoimentos ressaltaram o papel que dade de Pittsburgh tinha um computa- [Eesc] recebia dos órgãos financiadores
a pesquisadora desempenhou na vida e dor IBM 650 lançado no mercado pela fosse dedicada a comprar um computador.
na carreira de seus colegas e pupilos, na IBM um ano antes. Quando ia voltar para Isso foi feito com recursos do BID [Banco
formação da cristalografia no Brasil e na o Brasil, recebi um conselho de Jeffrey: Interamericano de Desenvolvimento].
consolidação do IFSC-USP, do qual foi “Yvonne, procure entrar em contato com
sua primeira diretora, entre 1994 e 1998, grupos de pesquisa, principalmente em O primeiro computador foi comparti-
logo após o desmembramento do antigo química, porque eles precisam conhecer lhado e ajudou a impulsionar a pesquisa
Instituto de Física e Química de São Car- as estruturas moleculares dos materiais em computação em diferentes grupos da
los da USP, em cujo campus ela trabalha que estudam. E isso vai dar a você a pos- USP em São Carlos. Como isso ocorreu?
desde meados dos anos 1950. Na entrevis- sibilidade de disseminar o uso da crista- O primeiro computador do campus da
ta a seguir, ela fala sobre essa trajetória. lografia por difração de raios X, em vez de USP em São Carlos foi um IBM 1130 que

38 | DEZEMBRO DE 2022
Yvonne
Mascarenhas:
homenageada
por colegas
e pupilos

sucedeu o IBM 1620. Foi criado o Centro dos Unidos. Havia uma diferença brutal A senhora mencionou os contatos com
de Processamento de Dados (CPD), o que entre essa nova metodologia e os métodos pesquisadores da América Latina. Al-
viabilizou uma modernização, tanto nas antigos, que usavam técnica fotográfica guns se radicaram em São Carlos, como
pesquisas como no ensino, de todos os para registrar os dados de difração. Con- o Aldo Craievich e o Eduardo Castellano.
departamentos da Eesc, na época a única vencida da importância desse equipa- Como foi esse trabalho de atrair pesqui-
unidade do campus. A competência no mento, submeti, alguns anos mais tarde, sadores de fora e que papel eles tiveram?
uso de computadores foi se ampliando um projeto à FAPESP, que foi aprovado Em dezembro de 1971, recebi um con-
no corpo docente da escola. Uma gran- e o primeiro difratômetro para difração vite para participar de uma reunião do
de contribuição ao ensino de métodos de raios X chegou ao nosso laboratório grupo ibero-americano de cristalografia,
computacionais veio mais tarde, com o em 1975. Um detalhe importante foi o a se realizar na cidade de Concepción,
professor Odelar Leite Linhares [1924- fato de esse difratômetro ser automati- no Chile. Lá, encontrei vários ibero-a-
2004], que começou a fazer a introdu- zado por um computador digital 1620, mericanos, inclusive Eduardo Ernesto
ção do ensino de computação. Essa área que permitia executar cálculos. Isso foi Castellano e Aldo Craievich. O Aldo tem
se desenvolveu de uma maneira rápida, logo utilizado pelos demais membros de formação em cristalografia, mas em uma
brilhante, no antigo Departamento de nosso departamento. Desde a década de área diferente, espalhamento de raios X
Matemáticas da Eesc, levando inclusive 1970 foi minha preocupação difundir a a baixo ângulo. Achei que seria maravi-
à estruturação do Instituto de Ciências importância dos métodos teóricos moder- lhoso se ele pudesse vir para o Brasil. O
LÉO RAMOS CHAVES / REVISTA PESQUISA FAPESP

Matemática e de Computação (ICMC). nos de determinação de estrutura, inclu- Castellano só veio quando fizemos em
sive para a comunidade latino-americana. São Carlos o curso latino-americano de
E como a informatização foi impor- Organizamos em 1976 um bonito curso métodos diretos em 1976 e a sua moti-
tante para o desenvolvimento da cris- latino-americano sobre determinação vação foi, de fato, a existência do difra-
talografia? de estrutura por métodos diretos, que foi tômetro automático. O Aldo aceitou vir
Em 1968, havia entrado em contato com a um sucesso. Vários pesquisadores da Ar- passar um tempo aqui em São Carlos,
informatização da coleta das medidas ex- gentina, do Uruguai, do Chile, passaram com bolsa do CNPq [Conselho Nacional
perimentais de difração de raios X duran- a conviver conosco a partir de 1976, para de Desenvolvimento Científico e Tecno-
te uma curta visita a Pittsburgh, nos Esta- utilização do difratômetro automático. lógico], e depois foi contratado como do-

PESQUISA FAPESP 322 | 39


cente do instituto, o IFSC. O Castellano ceiros com bons projetos submetidos às tião de Oliveira Rocha [Eesor]. Os alunos
veio com outras pessoas da Argentina e agências financiadoras. Isso foi realizado almoçavam no restaurante universitário
ficou encantado em usar o difratômetro. com muito sucesso, revelado pela con- da USP e voltavam à tarde para ter au-
Também teve uma bolsa do CNPq e um cessão do nível 7 aos nossos programas las suplementares. Fizemos reforço das
ano mais tarde se integrou como docen- de pós-graduação. matérias – física, química, matemática e
te, mas manteve o contato com a sua ins- português – e foi um sucesso. O projeto foi
tituição de origem, Universidade de La Como teve início seu trabalho na área feito primeiro com os alunos da primeira
Plata. Um dos motivos de participar de de educação? série do segundo grau. Esses alunos se-
reuniões científicas internacionais é, a Em 2001, me aposentei compulsoriamente guiram para a segunda série, depois para
meu ver, conhecer gente nova e estabele- e não tinha mais compromisso adminis- a terceira e aí fizeram vestibular. Foram
cer colaboração, mesmo a distância. No trativo nem didático. Resolvi continuar muito bem-sucedidos. Depois resolvi mu-
meu caso, isso deu muito bom resultado na linha de difusão do conhecimento, dar um pouco o enfoque e introduzir uma
com a vinda de pesquisadores de alto agora voltada para a escola pública. Tive metodologia de projetos com uso de Tec-
nível por longos ou curtos períodos e vários projetos apoiados pela FAPESP e nologias de Informação e Comunicação
mesmo radicando-se no Brasil. pelo CNPq. Sempre achei que podia aju- (TDIC) com alunos do ensino fundamen-
dar pessoalmente e procurei escolas com tal II. Essa metodologia deu mais certo
Em 1994, a senhora foi a primeira direto- professores interessados em receber esse com turmas do fundamental do que com
ra do Instituto de Física após a separação apoio. Me senti muito feliz com esse ti- as do ensino médio.
do Instituto de Química. Como foi o seu po de atividade porque a gente trabalha
trabalho? O que foi possível organizar? direto com os alunos e professores da re- Por quê?
Alguns professores pediram para eu me de. Tenho ainda três escolas fazendo os Os alunos do ensino médio estão muito
candidatar e acabei aceitando. Não foi projetos do jeito que nós imaginamos. voltados para o vestibular. A adesão não é
difícil ser diretora. Uma vantagem do ins- No início, achava que podia fazer uma tão grande para fazer projetos multidisci-
tituto é que temos um corpo de funcioná- espécie de complementação da educação plinares, que são longos – um projeto dura
rios muito bons. Entra diretor, sai diretor, para alunos do ensino médio. Tive um um semestre inteiro. Afortunadamente, as
os funcionários-chave para as diferentes projeto muito bem-sucedido, financiado escolas já tinham acesso à computação e
áreas são mantidos. As coisas se desen- pela FAPESP, em que colocamos quase em os alunos conseguiam fazer buscas usan-
volvem de uma maneira orgânica, sem tempo integral os alunos de uma escola do computadores e livros didáticos. Eles
grandes disputas. Quando [em 1971] foi escolhida com apoio da diretora Regional tinham que ler sobre o tema do projeto e
formado o Instituto de Física e Química, de Ensino, a professora Débora Blanco, produzir ao final um trabalho coletivo em
criou-se um espírito de que, naquela fase que é a Escola Estadual Professor Sebas- que se envolviam professores de várias
de nossa instituição, o ensino e a pesquisa disciplinas. A parte de redação e leitura
eram mais importantes do que a adminis- era dirigida pelo professor de português. E
tração, que sempre deveria ser exercida a parte de física, química, matemática por
de forma consensual. Por essa razão nós um professor de física ou de química. Isso
tivemos inicialmente diretorias segui- gerava a produção de uma revistinha que
das com professores da Escola Superior contava tudo o que os alunos tinham feito.
de Agricultura Luiz de Queiroz, da USP,
o Eneas Salati e o Eurípedes Malavolta, O que acontece com esses alunos? Na
que muito nos ajudaram. homenagem que a senhora recebeu, ha-
via uma professora falando de alunos
Como esse espírito em favor do ensino que foram para uma olimpíada na Euro-
e da pesquisa se formou? pa. Quais são os frutos de longo prazo?
O instituto é constituído de grupos de Isso envolveu o nosso primeiro projeto
pesquisa extremamente ativos, muitos Provavelmente com o ensino médio. Os alunos participa-
com interesse em educação e difusão. A ram de um concurso em âmbito nacional
minha participação nessa área é modes- os alunos e internacional denominado Internatio-
ta quando se compara ao que o profes- nal Young Physicist Tournament (IYPT).
sor Vanderlei Bagnato faz por meio do
que gostaram Uma equipe foi formada com alunos da
Grupo de Óptica. O professor Dietrich do projeto terceira série [do ensino médio] da Eesor
Schiel [1940-2012] conseguiu criar o que foi a ganhadora na fase nacional e
CDCC [Centro de Divulgação Cientí- vão guardar eles depois participaram da equipe nacio-
fica e Cultural, da USP], centro de di- nal que foi classificada em primeiro lugar
fusão importantíssimo em São Carlos, a revistinha na competição internacional que ocorreu
muito bem localizado e utilizado. Para em Praga, na República Tcheca. Esses
desenvolver bem a pesquisa sempre foi
e aquilo vai ser alunos conseguiram resultados muito
muito importante atrair bons docentes uma marca na bons nos vestibulares, alguns entraram
e alunos de pós-graduação e pós-dou- em engenharia, outros em matemática,
tores, além de obter os recursos finan- sua vida escolar computação e ciências humanas. A gen-

40 | DEZEMBRO DE 2022
te está trabalhando agora com o ensino fessor de química muito bom, chamado
fundamental. Aí fica mais difícil saber o Albert Ebert, que mostrou para todos
que acontece com cada um deles. O que os nós como funcionava a ciência. Fui fazer
próprios professores manifestam é que os Continuamos química e uma amiga da mesma idade
alunos se envolvem com mais iniciativas, foi fazer física. O nome dela é Anna Ma-
desenvolvem atitudes de protagonismo educando ria Endler. Hoje é professora emérita do
e colaboração na hora de decidir o que CBPF, o Centro Brasileiro de Pesquisas
querem fazer, ficaram mais maduros. É nossas meninas Físicas. Continuamos educando nossas
muito positivo trabalhar com projetos.
Ao final fazemos uma reunião festiva. Es-
como se elas meninas como se elas fossem ser mães
e cuidadoras e com aversão às áreas de
se contato humano é muito importante. fossem ser mães exatas. Isso tem que mudar. A mudança
Cada um leva a sua revistinha para casa. até hoje tem sido lenta, mas com uma de-
Talvez alguns alunos não deem importân- e cuidadoras rivada positiva, o que me dá a esperança
cia, mas provavelmente os que gostaram de que progredirão e que a igualdade de
do projeto vão guardar aquela revistinha e com aversão gênero será alcançada num futuro não
durante um certo tempo e aquilo vai ser
uma marca na sua vida escolar.
às áreas muito distante.

de exatas Recentemente, a senhora fez uma mo-


A senhora ajudou a fortalecer o polo bilização em São Carlos quando houve
de São Carlos do Instituto de Estudos a CPI das universidades na Assembleia
Avançados da USP. Como foi esse Legislativa de São Paulo, que criticava
trabalho? a autonomia das universidades esta-
Mais ou menos na época que me aposen- duais. O que conseguiu fazer?
tei, meu ex-marido, Sérgio Mascarenhas, Procurei um vereador de São Carlos que
que já é falecido, tinha ido passar um ano tem uma atuação muito boa na área de
no Instituto de Estudos Avançados de educação, o professor Azuaite Martins,
Princeton. A USP já tinha o seu Institu- e sugeri: “Por que não movimenta a Câ-
to de Estudos Avançados [IEA]. Quando mara Municipal para ela se manifestar
o Sérgio voltou, achou que seria muito contra essa CPI?”. E ele topou na mesma
interessante criar um polo do IEA em hora. Mas foi uma coisa muito pequena o
São Carlos. Me pediram para colaborar e Como vê a participação feminina na que eu fiz. Naturalmente me senti mui-
falei: “Um dos nossos problemas funda- sua área de pesquisa? to gratificada porque ele fez o que tinha
mentais é a educação em todos os níveis, O número de mulheres é razoável na que fazer e conseguiu que a Câmara Mu-
então gostaria de participar de um grupo minha área em âmbito nacional e também nicipal se manifestasse unanimemente
dedicado à educação básica”. O grupo se internacional, inclusive laureadas com o contra a CPI.
formou no início de 2001 e uma série de Prêmio Nobel. Em uma linha do tempo
atividades foi se desenvolvendo. Quan- sobre a formação de recursos humanos Professora, quais são os seus planos
do o professor Paulo Saldiva foi diretor em cristalografia no Brasil, que construí atualmente? Na homenagem que a se-
do IEA, ele me procurou e disse que ia e em que incluímos apenas cristalógrafos nhora recebeu, o diretor do IFSC disse
criar vários grupos de pesquisa, um de- que tenham orientado pelo menos um que tem planos para a senhora ser uma
les sobre educação. E me perguntou se doutoramento, havia 32 membros mas- espécie de embaixadora do instituto.
eu topava que esse grupo não fosse em culinos para apenas 14 femininos. Ainda tenho alunos de mestrado e dou-
São Carlos. Naturalmente concordei. torado e não deixei a pesquisa. Me asso-
Quando chegou no fim do seu mandato, Como isso evoluiu? Na sua época de ciei muito com um grupo aqui do insti-
o Saldiva, em vista dos bons resultados estudante como era? tuto que tem um projeto sobre políme-
alcançados, fez uma proposta à Funda- A maior parte das mulheres ia para essas ros condutores. Mas estou aposentada.
ção Itaú para apoiar o grupo. Criou-se carreiras tipo pedagogia e licenciatu- O professor Osvaldo de Oliveira, nosso
uma cátedra de educação, liderada por ras. Pejorativamente, dizia-se que eram diretor, falou de uma maneira figurativa.
um ex-reitor da Universidade Federal do cursos “espera marido”. Isso me irri- Estou sempre pronta a defender a ciên-
Sul da Bahia, Naomar de Almeida, que tava, porque se uma mulher vai para a cia e a educação, que me motivaram a
é extremamente dedicado a moderni- universidade, seja a área que for, ela vai vida inteira. Apoiei um candidato a de-
zar a educação. Na área de educação, as aprender e se aperfeiçoar. Quando eu era putado federal e uma candidata a depu-
ideias são muitas. Não sei até que ponto menina, o ensino médio se dividia em tada estadual que defendem a ciência,
há meios para concretizá-las. Mas pen- clássico e científico. Clássico era para mas não se elegeram. Sempre que me
sar nunca faz mal a nenhuma socieda- o pessoal que gostava mais de comuni- pedem, tenho a maior satisfação em dar
de. Quanto mais pessoas pensando ati- cação, letras. Escolhi o clássico, porque apoio. Enquanto você tem alguma luci-
vamente, principalmente se não forem gostava muito de ler. Estudava no Colé- dez, tem a obrigação de pensar e pode
muito conservadoras, tanto melhor, pois gio Mello e Souza, um colégio particular e deve influenciar as pessoas sensíveis
vão trazer ideias novas. do Rio de Janeiro. Tínhamos um pro- aos seus argumentos. n

PESQUISA FAPESP 322 | 41


SAÚDE

A MEDICINA DE PRECISÃO
NO HORIZONTE
Queda no custo de sequenciamento do DNA,
aumento das informações disponíveis sobre os genes
e melhora na capacidade de interpretar os dados
aproximam os testes genéticos da prática clínica
Ricardo Zorzetto

E
m um evento em setembro nos Es- dos médicos de tratar, prevenir e curar doenças.
tados Unidos, uma empresa norte- Hoje é possível realizar em centros especializa-
-americana que domina o mercado dos, inclusive no Brasil, uma diversidade desses
mundial de sequenciadores anunciou testes, que analisam de partes de um gene espe-
uma nova máquina. Em sua versão top, cífico a todo o genoma. Por causa do preço ainda
o equipamento, que deve começar a ser elevado do genoma completo, até R$ 20 mil em
entregue no próximo ano ao custo de laboratórios privados do país, os médicos solici-
quase US$ 1 milhão, promete triplicar tam com mais frequência o sequenciamento do
a capacidade de leitura da molécula de exoma para procurar a causa de doenças com al-
DNA, o material genético das células, que arma- ta probabilidade de terem origem genética. Esse
zena a receita de como são feitos e funcionam os exame, que custa por volta de R$ 5 mil, permite
seres vivos. Se apresentar o desempenho esperado, identificar alterações de múltiplos genes ao anali-
esse sequenciador será capaz de realizar a leitura sar os trechos codificantes de proteínas dos mais
do genoma de 20 mil pessoas por ano, cada um de 20 mil genes humanos, que representam me-
por cerca de US$ 200, segundo reportagem pu- nos de 2% do genoma. No Brasil, os protocolos
blicada no site da revista Wired. É uma redução clínicos e diretrizes terapêuticas do Ministério
de custo espantosa em apenas duas décadas. O da Saúde preveem que ele seja oferecido pelo Sis-
primeiro rascunho do genoma humano, publi- tema Único de Saúde (SUS) para a investigação
cado em 2001, exigiu a cooperação de milhares de deficiência intelectual de natureza indeter-
de pessoas e o uso de centenas de máquinas em minada na infância. Mas isso ainda não ocorre.
diferentes centros. Consumiu anos para definir Até alguns anos atrás a investigação das doen-
Frascos contendo a ordem dos 3 bilhões de pares de bases nitro- ças de origem genética buscava alterações em um
amostras de tumores genadas (as unidades químicas que compõem o gene por vez. Sequenciava-se o gene suspeito de
em preparação para
o sequenciamento
DNA) do genoma – usou o material genético de estar associado a determinado problema e, quando
genético no uns 50 indivíduos para consolidar o equivalente não se encontravam mutações nele, partia-se para
A.C.Camargo ao genoma de uma única pessoa. Segundo uma o seguinte. “Era um processo lento, trabalhoso e
Cancer Center estimativa do Instituto Nacional de Pesquisa do caro”, recorda o médico geneticista Roberto Giu-
Genoma Humano (NHGRI), dos Estados Unidos, gliani, da Universidade Federal do Rio Grande do
que coordenou o esforço, só o sequenciamento Sul (UFRGS). “As tecnologias de sequenciamento
consumiu algo entre US$ 500 milhões e US$ 1 progrediram em escala exponencial a partir do
bilhão – o projeto todo custou US$ 3 bilhões. projeto genoma humano, ampliando a capacidade
O avanço e o barateamento das técnicas de de análise e reduzindo os custos”, afirma o pes-
LÉO RAMOS CHAVES / REVISTA PESQUISA FAPESP

sequenciamento, associados à evolução das fer- quisador, que também lidera o setor de doenças
ramentas de bioinformática, que permitem ana- raras da Dasa Genômica, um dos maiores cen-
lisar grandes volumes de dados e comparar as tros privados de diagnóstico em genética no país.
características genéticas de números elevados de Hoje as análises de um único gene continuam
pessoas, estão aproximando os testes genéticos a ser feitas, mas em situações restritas, quando já
da prática clínica, ainda que de modo mais lento se sabe qual alteração genética procurar. É o ca-
que o estimado pelos mais entusiastas há duas so de algumas doenças raras, enfermidades que,
décadas, quando se imaginou que o sequencia- individualmente, afetam frações muito pequenas
mento do genoma humano aumentaria o poder da população, mas, em conjunto, atingem 6% da

PESQUISA FAPESP 322 | 43


população mundial e uns 13 milhões de brasileiros. A quantidade e o tipo de informação genética
Elas são, na maioria das vezes, causadas por de- que os testes diretos ao consumidor analisam, po-
feitos em um só gene (são doenças monogênicas). rém, não dão diagnóstico nem estimativa precisa
Testes mais abrangentes, que incluem a análise de risco para essas doenças ou prover orientações
de milhares de genes ou de milhões de pontos no específicas sobre como preveni-las. Assim como
genoma (ou até seu sequenciamento completo) as doenças monogênicas, as enfermidades mais
e poderiam ser de interesse de um número bem comuns também têm uma componente genética
maior de pessoas, vêm sendo adotados na inves- relevante. Mas há uma diferença fundamental.
tigação de muitas doenças raras e estão ganhando Nas doenças comuns a componente depende da
espaço no portfólio de laboratórios e empresas interação de centenas ou milhares de genes (são
privados, que nos últimos anos também passaram poligênicas), cada um deles contribuindo muito
a oferecer, por algumas centenas de reais, exames pouco para o efeito final. Por esse motivo, é ne-

A
vendidos diretamente ao consumidor. cessário que ocorram alterações em um grande
número desses genes para a doença se manifes-
pelidados de testes recreativos, es- tar. Encontrar defeito em um ou um punhado
ses exames dispensam a exigência deles não costuma significar nada – o mesmo
de um pedido médico e costumam vale para características complexas, como o de-
comparar trechos do material gené- senvolvimento de força muscular , o acúmulo de
tico do indivíduo com informações gordura corporal ou a estatura –, uma vez que
de bancos de dados internacionais. ainda existe a influência de fatores ambientais.
Alguns, os chamados testes de ances- “Os testes vendidos diretamente ao consumi-
tralidade, permitem, por exemplo, dor usam dados genéticos que permitem mos-
conhecer a provável região geográfica trar curiosidades sobre o indivíduo, como sua
de origem dos antepassados. Outros se propõem ancestralidade, mas não são capazes de fornecer
a identificar, a partir da informação dos genes, a evidências que permitam orientar a conduta mé-
dieta ou o tipo de atividade física mais adequada dica”, afirma a médica geneticista Rayana Maia,
ou ainda a verificar a presença de versões de genes professora da Universidade Federal da Paraíba
que poderiam predispor a uma série de doenças (UFPB) e diretora do Departamento de Ética da
que atingem uma proporção elevada da população, Sociedade Brasileira de Genética Médica e Ge-
como o diabetes tipo 2, os problemas cardiovascu- nômica (SBGM). “Muitas das variantes genéticas
lares ou o câncer. “Esses testes genéticos diretos [versões alteradas dos genes] identificadas nesses
ao consumidor se tornaram o maior produto de testes não estão associadas a risco relevante de
genética para a população geral”, relata o geneti- doença. O resultado pode trazer mais angústia
cista Michel Naslavsky, professor da Universidade do que benefício”, conclui.
de São Paulo (USP) e pesquisador do Instituto Com potencial uso clínico ou apenas recreativo,
Israelita de Ensino e Pesquisa Albert Einstein, que o fato é que os testes genéticos representam um
investiga alterações gênicas de risco para doenças. negócio bilionário, que, segundo algumas análi-

EM RITMO ACELERADO
Identificação de genes causadores de doenças raras avançou
com a evolução das técnicas de sequenciamento

Descoberta de genes associados a doenças raras Descoberta de novas doenças raras


Sequenciamento
de exoma
300
Clonagem posicional
(técnica para identificar a
250 posição de genes no genoma)
Total anual (média móvel)

200 Idade de ouro


da descrição das
150 doenças raras

100

50

0
1900 1920 1940 1960 1980 2000 2017

FONTE BAMSHAD, M. J. ET AL. THE AMERICAN JOURNAL OF HUMAN GENETICS. 2019

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Cancer Center, em São Paulo. “A pessoa pode so-
frer a vida toda com medo de desenvolver uma
doença que pode nunca se manifestar”, explica.
O problema é fazer um teste, mesmo que re-
creativo, a fim de conhecer o próprio perfil ge-
nético e saber se suas células guardam versões
(variantes) de genes que podem estar de alguma
forma associadas a doenças. “Os testes genéticos,
em seus diferentes tipos, são poderosas ferra-
mentas de diagnóstico que, em geral, permitem
encerrar uma longa busca pela origem de uma
doença de causa desconhecida”, conta o endocri-
nologista Alexander Jorge, da USP, especializado
em doenças genéticas. “Realizado sem uma indi-
cação precisa, sem uma pergunta a ser respon-
dida, pode revelar alterações que não têm signi-
ficado clínico e levar a interpretações erradas.”
1
Na espécie humana, o genoma de um indivíduo
Pesquisador insere ses, cresce à taxa de quase 10% ao ano. Em um é 99,9% idêntico ao de outro. Isso significa que,
cartão com material relatório divulgado meses atrás, a empresa norte- em quase sua totalidade, a sequência das quatro
genético em
sequenciador (acima)
-americana Straits Research, que realiza análises bases nitrogenadas – adenina (A), timina (T),
e depois analisa de mercado, estimou que esses testes tenham mo- citosina (C) e guanina (G) – no material genéti-
o resultado (à dir.) vimentado US$ 14,8 bilhões no mundo em 2021, co de duas pessoas, gêmeas idênticas ou nasci-

D
valor que deve chegar a US$ 36 bilhões em 2030. das em regiões opostas do planeta, é a mesma. O
que torna um ser humano diferente do outro é
iante de tanta oferta, surgem as dú- aquele 0,1%, que representa 3 milhões de pares
vidas: quem deve fazer um teste ge- dessas bases. “O número de variações no genoma
nético? Quando? de dois seres humanos saudáveis é grande, mas
A resposta é... depende. Se for pa- pouquíssimas têm uma influência já conhecida
ra conhecer com um pouco mais de sobre a saúde e, muitas vezes, é difícil identificar
detalhe de onde vieram seus ante- qual ou quais delas estão associadas a um pro-
passados, não há problema. Pode- blema”, explica Giugliani, da UFRGS.
-se fazer quando desejar. Mas é bom O progresso das técnicas de sequenciamento
ter em mente que o resultado pode e análise gênica das últimas décadas aumentou
variar de acordo com a empresa que oferece o drasticamente o número de genes e variantes
teste. Os dados genéticos da pessoa são confron- conhecidos que desempenham algum papel em
tados com informações de dezenas de milhares doenças. O avanço mais claro e significativo ocor-
de indivíduos armazenadas no banco de dados reu no campo das monogênicas. Nelas, a alteração
do fornecedor do teste. Em geral, esses bancos de em um único gene tem um impacto devastador,
dados são constituídos por informações de pes- suficiente para prejudicar de modo importante
soas que vivem na Europa e nos Estados Unidos alguma função do organismo. Essas enfermida-
FOTOS LÉO RAMOS CHAVES / REVISTA PESQUISA FAPESP INFOGRÁFICO ALEXANDRE AFFONSO

e têm ascendência majoritariamente caucasiana. des costumam ser graves – algumas fatais, como
“Um teste desses realizado com o material ge- a atrofia muscular espinal – e se manifestar já
nético de um brasileiro, por exemplo, pode não na infância.
identificar a existência de antepassados nativos Em um comentário publicado em 2019 na re-
da América do Sul ou de algumas regiões da Áfri- vista The American Journal of Human Genetics, o
ca”, conta Maia. pediatra Michael Bamshad, da Universidade de
Agora, se o objetivo for descobrir se há risco Washington, nos Estados Unidos, e colaboradores
elevado de desenvolver alguma doença no futu- relataram que a descrição dessas enfermidades
ro ou de transmitir para um filho uma alteração e a identificação dos genes que as causavam só
genética associada a uma enfermidade grave, a avançaram rapidamente a partir de meados dos
resposta muda. “O teste genético para diagnósti- anos 1980, com a evolução das técnicas de se-
co só deve ser realizado com orientação médica quenciamento e o Projeto Genoma Humano (ver
e em uma situação de aconselhamento genético gráfico na página 44). Até então, apenas cerca de
porque, se não houver uma indicação específica, 40 genes haviam sido caracterizados como cau-
o resultado pode trazer mais prejuízo do que be- sadores de algumas delas. Até 21 de novembro,
nefício ao indivíduo”, afirma o médico geneticista haviam sido mapeadas alterações em 4.721 genes
José Cláudio Casali da Rocha, criador e coordena- associadas a 7.286 doenças raras, segundo a base
dor do Centro de Oncogenética do A.C.Camargo Online Mendelian Inheritance in Man (Omim).

PESQUISA FAPESP 322 | 45


Nesses casos, os testes genéticos têm um pa- Nos últimos anos, os on-
pel importante para melhorar a identificação e, cologistas começaram a usar
quando disponível, o tratamento precoce, além diversos tipos de testes para
da prevenção, feita por meio de aconselhamento rastrear no genoma altera- UM DESAFIO É OBTER
genético das famílias que têm a versão alterada do
gene e planejam ter filhos. “Algumas doenças ra-
ções que sabidamente elevam
a probabilidade de câncer e FORMAS DE EXTRAIR DO
ras são muito difíceis de serem reconhecidas com
base apenas no quadro clínico”, afirma Alexander
tentar reduzir o risco de de-
senvolver a doença. Também
PERFIL GENÉTICO
Jorge, da USP. “Nesses casos, o sequenciamento
do exoma encurta o tempo de diagnóstico, reduz
passaram a se valer de infor-
mações genéticas dos tumores
INFORMAÇÕES PARA
ESTIMAR O RISCO

I
custos e permite orientar a família.” para selecionar o medicamen-

dentificar a causa das doenças genéticas


to e a dose mais adequados
para cada indivíduo, ou ainda DE DOENÇAS COMUNS
melhora a qualidade de vida por permitir tratamentos a serem evitados.
ao médico selecionar os remédios mais Consórcios internacionais e
eficientes para atenuar os sintomas e evitar agências reguladoras de me-
os medicamentos que os agravam. Também dicamentos como a FDA, dos
ajuda a preparar pais e cuidadores para a Estados Unidos, já listam mais
evolução da enfermidade. “Ainda não estão de 250 medicamentos (vários de uso oncológico)
disponíveis terapias que permitam alterar rotulados para serem prescritos com base no perfil
os genes e curar essas doenças, mas, em genômico dos pacientes. “Os testes genéticos aju-
muitas delas, é possível tratar os sintomas e ofere- dam a definir quais vias bioquímicas o tumor está
cer uma qualidade de vida melhor para a criança”, usando para crescer e a identificar medicamentos
afirma a geneticista Maria Rita Passos-Bueno, que podem inibir ou bloquear o funcionamento
que, em parceria com a geneticista Mayana Zatz, delas”, conta Casali, do A.C.Camargo.
coordena o Laboratório de Testes Genéticos (Lab- Anos atrás, estudando o perfil genético de 192
TEG) do Centro de Estudos do Genoma Humano brasileiras com um tipo de câncer de mama que
e Células-tronco (CEGH-CEL) da USP. cresce sob a ação do hormônio feminino estrogê-
Uma das áreas que mais vêm se beneficiando nio, Casali e colaboradores constataram que nem
dos testes genéticos é a oncologia. Embora pos- todas respondiam como esperado ao tratamento
sam se manifestar com características diversas com tamoxifeno. Esse composto inibe a produ-
(evolução rápida ou lenta; potencial alto ou quase ção de moléculas às quais o hormônio se liga na
nulo de cura), os diferentes tipos de câncer co- superfície das células tumorais, reduzindo a ação Alguns testes
nhecidos são doenças essencialmente genéticas. do estrogênio. Ele é administrado em uma ver- genéticos perdem
poder de predição
Alterações em um ou mais genes modificam a são inerte, que é ativada no fígado pela enzima em populações
programação das células e as levam a se multipli- CYP2D6. Mulheres com uma alteração nesse gene miscigenadas,
car descontroladamente, danificando os órgãos. produzem uma versão menos funcional da enzima. como a brasileira

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Segundo o trabalho, publicado em 2020 na Clini- pessoas. O escore permitiu quantificar o risco de
cal and Translational Science, essa característica vir a ter obesidade severa – ter IMC superior a
explicou em parte por que nessas pessoas o nível 40 kg/m2; o saudável é entre 18 e 25 kg/m2 – e o
do medicamento ativo no sangue era inferior ao aumento da probabilidade de desenvolver algu-
necessário para evitar o retorno do câncer. mas doenças. Os 10% dos indivíduos com o maior
Em um ensaio clínico de fase 2, a equipe do on- número de variantes de risco eram 25 vezes mais
cologista Fabrice André, do centro especializado propensos a se tornarem superobesos do que os
em câncer Gustave Roussy, em Paris, submeteu 10% com menor número dessas alterações. No
238 mulheres com câncer de mama com metástase primeiro grupo, o risco de ter diabetes, sofrer
a dois tratamentos: 157 receberam medicamentos tromboembolismo e desenvolver hipertensão
específicos para combater os efeitos das altera- foi, respectivamente, 70%, 40% e 35% mais ele-
ções genéticas características de seus tumores vado, segundo os resultados publicados em 2019
e 81 seguiram com a quimioterapia tradicional. na revista Cell.
Depois de quase dois anos de acompanhamento, Apesar de promissores, os escores de risco
o primeiro grupo havia conseguido conter a pro- poligênico ainda estão longe de chegar aos con-
gressão da doença, em média, por nove meses, e o sultórios médicos. Antes, precisam ser validados
segundo por menos de três meses, de acordo com em amostras grandes de populações de diferen-

U
artigo publicado em julho na Nature. tes regiões do planeta. Sabe-se, por exemplo, que
essas ferramentas, criadas com base em dados
m desafio que permanece é obter genéticos de grupos com ascendência majorita-
formas de extrair do perfil genético riamente europeia, perdem poder de predição
informações confiáveis para estimar em populações miscigenadas. Investigando o
o risco de desenvolver doenças co- desempenho de um escore para predizer a altura
muns, que atingem uma fatia impor- das pessoas, uma característica de fácil aferição,
tante da população, como as cardio- a geneticista brasileira Bárbara Bitarello, que faz
vasculares ou o diabetes. Segundo estágio de pós-doutorado na Universidade da
estudos genéticos, na maioria dos Pensilvânia, nos Estados Unidos, constatou que
casos, essas doenças são provocadas o poder de predição da ferramenta diminuía de
por alterações em um número grande de genes. quatro a cinco vezes em grupos com ancestra-
Cada alteração contribui muito pouco para a lidade africana, segundo estudo publicado em
enfermidade – nos casos mais expressivos, uma 2020 na Genes, Genomics, Genetics.
variante pode explicar 0,2% do risco de ter a Nessas situações, a ancestralidade deixa de ser
doença –, mas os efeitos delas se somam. apenas uma curiosidade e passa a ter relevância
Nos últimos anos, começou a ser testada na médica. “Os trabalhos começam a mostrar que,
genética a ideia de se usar uma fórmula matemá- para calcular o risco genético de desenvolver
tica – o escore de risco poligênico – para estimar um problema de saúde, será importante levar
a probabilidade de desenvolver essas doenças. De em conta a ancestralidade”, afirma o geneticista
modo simplificado, esse escore, ou perfil de risco, Eduardo Tarazona Santos, da Universidade Fe-
consiste na soma do efeito de todas as variantes deral de Minas Gerais (UFMG), que investiga a
de risco do indivíduo, levando em consideração ancestralidade dos brasileiros. Ele explica que o
a contribuição de cada uma delas. Segundo um efeito de algumas variantes gênicas pode mudar
artigo de revisão publicado em 2018 na Nature em função de terem sido herdadas de populações
Reviews Genetics pelo químico especialista em africanas, europeias ou ameríndias.
informática e genômica Ali Torkamani, do Ins- Um estudo liderado por Michel Naslavsky e
tituto de Pesquisa Scripps, nos Estados Unidos, Claudia Suemoto, da USP, e publicado em se-
trabalhos recentes começam a demonstrar a uti- tembro na Molecular Psychiatry, do qual parti-
lidade desses escores para identificar grupos de cipou Tarazona, revelou que tanto a versão de
indivíduos mais suscetíveis a desenvolver algumas um gene que aumenta o risco de ter Alzheimer
dessas enfermidades e que poderiam se beneficiar quanto a que protege contra a doença apresen-
de acompanhamento ou intervenções médicas. tam em população de origem africana um efeito
LÉO RAMOS CHAVES / REVISTA PESQUISA FAPESP

No Centro de Medicina Genômica do Hospital atenuado em relação à de origem europeia. “Por


Geral de Massachusetts, nos Estados Unidos, o enquanto, os resultados dos escores de risco po-
grupo do cardiologista e geneticista Sekar Ka- ligênico têm de ser avaliados com cautela. Mais
thiresan desenvolveu anos atrás um escore de de 2 mil escores já foram propostos, mas poucas
risco poligênico para obesidade baseado em in- dezenas foram validados em populações latino-
formações de 2,1 milhões de variantes gênicas -americanas”, afirma Tarazona. n
com influência conhecida sobre o índice de massa
corporal (IMC). A ferramenta foi testada usan- Os projetos e os artigos científicos consultados para esta reportagem
do informações genéticas e de saúde de 300 mil estão listados na versão on-line.

PESQUISA FAPESP 322 | 47


ARQUEOLOGIA Desenho que
representa
pai e filha
neandertais

ALMOÇO
EM
FAMÍLIA

U
Neandertais se ma população de Homo da chamada razão isotópica do elemento
neanderthalensis, os nean- químico zinco para entender a base da
alimentavam quase dertais, que viveu há cer- dieta dos neandertais, espécie aparenta-
ca de 150 mil anos no sítio da do homem moderno (Homo sapiens)
exclusivamente de Cueva de los Moros, em Ga- que habitou partes da Europa e Ásia en-
caça e viviam em basa, na Espanha, parece ter tre 400 mil e 40 mil anos atrás. Esse ín-
tido uma dieta altamente dice é calculado em função da proporção
grupos aparentados carnívora. Um estudo inter- de duas formas distintas (isótopos) de
nacional, com participação zinco presentes em uma amostra.
Guilherme Eler de uma brasileira, analisou amostras de “Encontramos um valor extremamen-
esmalte de um dente de um neandertal te baixo da razão dos isótopos de zinco
encontrado nessa localidade e obteve no dente”, explica a arqueóloga brasi-
evidências de que ele se alimentava leira Jéssica Mendes Cardoso, uma das
quase que exclusivamente da carne de autoras do estudo, que faz doutorado
grandes animais, sem, no entanto, con- conjunto no Museu de Arqueologia e
sumir o sangue e os ossos de suas presas. Etnologia da Universidade de São Paulo
O trabalho foi publicado em outubro na (MAE-USP) e no Géosciences Environ-
revista científica PNAS. nement Toulouse (GET), uma unidade
Pela primeira vez os pesquisadores do Centro Nacional de Pesquisas Cientí-
usaram uma técnica baseada na análise ficas (CNRS), da França. “Quanto menor
esse valor, mais alto o nível da cadeia ali- dieta do indivíduo no momento em que Outro fator-chave para entender o su-
mentar ocupado pelo dono da amostra.” o dente foi formado.” cesso evolutivo de uma espécie envolve
Os resultados posicionam o neandertal Os achados do estudo estão alinhados seu grau de desenvolvimento social, que
no topo da teia alimentar e indicam que com um certo consenso científico que facilita aspectos de sua vida como migra-
ele comia diferentes tipos de animais. começou a ser construído a partir da dé- ção e acesso a novas fontes de alimentos.
O grupo analisou também amostras de cada de 1990. Baseados em vestígios de Apesar de o H. sapiens saltar na frente
outros predadores carnívoros que vi- animais encontrados em sítios arqueoló- nesse quesito, os pesquisadores estão
viam na região, como linces e lobos, e de gicos ou em análises bem-sucedidas com descobrindo agora que os neandertais
herbívoros, como cervos e coelhos. “Foi isótopos de nitrogênio, diferentes estu- também viviam em pequenos grupos
uma grande oportunidade trabalhar na dos concluíram que os neandertais eram aparentados entre si.
península Ibérica, onde, segundo outros grandes caçadores e tinham uma dieta Um artigo publicado em outubro na
métodos de análise, as paleodietas po- extremamente carnívora. De seu cardá- revista científica Nature encontrou, pela

A
diam ser à base de plantas em algumas pio, faziam parte cervos e até mamutes. primeira vez, parentesco genético entre
localidades”, diz a geoquímica francesa vestígios de neandertais. Assinada por
Klervia Jaouen, que liderou o estudo, em lgumas populações de nean- uma equipe do Instituto Max Planck
entrevista a Pesquisa FAPESP. dertais que viviam próximo de Antropologia Evolutiva de Leipzig,
A abordagem mais comum no estu- ao mar Mediterrâneo, po- na Alemanha, a pesquisa descobriu que
do de paleodietas é procurar por traços rém, parecem ter tido um um pai neandertal e sua filha habitaram
de carbono e nitrogênio nas amostras. paladar mais variado do que a área das cavernas de Chagyrskaya e
A razão dos isótopos de nitrogênio em as do norte da Europa. Estu- Okladnikov, nas montanhas de Altai, na
um pedaço de osso, por exemplo, pode dos feitos a partir dos anos Sibéria, há 54 mil anos.
indicar a posição de um indivíduo na 2000 mostraram que, além A região é, de longe, a mais importante
cadeia alimentar. Mas há um problema: de uma quantidade signifi- para a história dos neandertais do ponto
o nitrogênio está presente no coláge- cativa de plantas e cogumelos, elementos de vista genético. “As montanhas de Al-
no de ossos ou na raiz de dentes, mate- como sementes e nozes também podiam tai, no sul da Sibéria, representam a parte
riais que se deterioram com o passar dos aparecer em suas dietas. Um trabalho feito mais oriental do território neandertal”,
anos, principalmente em áreas de clima na costa Ibérica levantou indícios de que explica a Pesquisa FAPESP Stéphane
temperado. Por isso, o método funciona alguns neandertais consumiriam frutos do Peyrégne, um dos pesquisadores que
mais em ambientes frios, como o norte mar, como moluscos e caranguejos. Essa assinam o estudo. “Dois sítios arqueoló-
da Europa ou a Sibéria, onde a ação do maior diversidade de fontes de alimento, gicos da região, as cavernas Denisova e
tempo é mais branda. É praticamente no entanto, não foi corroborada pelo es- Chagyrskaya, renderam várias amostras
impossível que amostras do sul da Eu- tudo com o dente de Cueva de los Moros. de neandertais que foram importantes
ropa com mais de 50 mil anos de idade, Entender a dieta neandertal é uma para reconstruir a história desses homi-
como as do sítio espanhol, mantenham questão importante para a ciência. Há- níneos no Paleolítico Médio [entre 300
esses isótopos preservados. bitos alimentares mais diversificados mil e 30 mil anos atrás].” Tudo porque,
Nesses casos, é mais produtivo traba- podem estar diretamente ligados ao su- apesar da sua idade, os restos mortais
lhar com os isótopos de zinco presentes cesso evolutivo de uma espécie. Uma das dos neandertais apresentam DNA ex-
no esmalte do dente. “O carbono e o ni- principais hipóteses credita, ao menos cepcionalmente bem preservado graças
trogênio dos ossos indicam a dieta con- em parte, o sucesso adaptativo do Homo ao frio siberiano.
sumida nos dez últimos anos”, comenta sapiens à sua menor dependência de car- Foram analisadas no estudo amostras
Cardoso. “Como o esmalte dentário não ne de caça do que os neandertais, com de dentes e fragmentos de ossos de 13
é remodelado ao longo da vida, a análise quem coabitaram e até se reproduziram neandertais diferentes – 7 homens e 6
dos isótopos de zinco reflete qual era a em certas partes da Eurásia. mulheres, entre eles 5 crianças ou ado-
lescentes –, mais do que em qualquer
1 2
outro trabalho. Onze deles viveram na
mesma caverna, Chagyrskaya, na mesma
época. Uma vértebra de um homem adul-
to e o dente de uma adolescente indica-
IMAGEM TOM BJORKLUND FOTOS 1 E 2 LOURDES MONTES

ram que eles eram pai e filha. Além disso,


as amostras sugerem que dois primos do
pai viviam em Chagyrskaya, e que uma
mulher adulta e um menino que viviam
ali também deviam ser parentes. Se to-
dos tivessem o hábito de comer juntos,
é possível que tenham dividido algum
pedaço de carne de mamute. n

Os artigos científicos consultados para esta reportagem


Dente de neandertal encontrado em escavação em Cueva de los Moros, em Gabasa, na Espanha estão listados na versão on-line.

PESQUISA FAPESP 322 | 49


ECOLOGIA

U
m grupo de pesquisadores
obteve evidências de co-
municação acústica em 53
espécies de animais que
eram consideradas silen-

CONVERSA
ciosas até então. Os regis-
tros sonoros abrangem 50
espécies de tartaruga; uma
de cecília, anfíbio popular-

ANTIGA
mente conhecido como cobra-cega; uma
de tuatara, um réptil endêmico da Nova
Zelândia; e uma de peixe pulmonado, a
piramboia, encontrada em rios da Ama-
zônia e Pantanal. Em comum, esses dis-
Comunicação sonora teria surgido tintos animais apresentam duas coanas,
cavidades que ligam as narinas à laringe,
há mais de 400 milhões de anos órgão com função respiratória e onde os
sons são produzidos.
em um ancestral comum Segundo artigo publicado no final de
dos vertebrados terrestres e dos outubro na revista científica Nature Com-
munications, essas novas evidências são
peixes com pulmão um indício de que, nos vertebrados, a tro-
ca de informações por meio da emissão de
Giselle Soares sons pode ter surgido há mais de 407 mi-
1

Macrochelys temminckii,
ou tartaruga aligator,
uma das espécies
de quelônios que
emitem vocalizações
de alta intensidade

50 | DEZEMBRO DE 2022
lhões de anos, durante o Devoniano. Nes- mais estudados. Cada espécie foi regis-
se período geológico, teria vivido o último trada por pelo menos 24 horas, cobrindo
ancestral comum de todos os vertebrados suas atividades diurnas e noturnas. Os
dotados dessas cavidades e de pulmões. sons subaquáticos foram obtidos com o
Os primeiros vertebrados terrestres com OceanBase, um equipamento para mo-
quatro membros (tetrápodes), grupo que nitoramento desenvolvido pelo Labora-
hoje inclui os mamíferos, os répteis, as tório de Acústica e Meio Ambiente da
aves e os anfíbios, originaram-se de pei- Escola Politécnica da Universidade de
xes pulmonados que tinham nadadeiras São Paulo (Poli-USP) em parceria com a
com ossos e viveram provavelmente nessa empresa Bunin Tech. Antes de registrar
época. A piramboia é uma das seis espé- as vocalizações das espécies, o sistema
cies atuais que pertencem a esse grupo foi empregado para captar o som am-
de peixes ancestrais que respiram o ar. biente sem a presença de nenhum ani-
Por essa hipótese, a capacidade de se mal para contabilizar possíveis ruídos

O
comunicar por som teria surgido apenas ou interferências.
uma vez no processo evolutivo, entre os
peixes com pulmões do Devoniano. Em se- biólogo Lucas Forti, da Uni-
guida, os nascentes tetrápodes herdaram versidade Federal Rural do
não só essas estruturas respiratórias de Semi-Árido (Ufersa), que
seus antepassados aquáticos, mas também não participou do estudo,
a faculdade de emitir mensagens por som. comenta que sinais acús-
2
Alguns autores, no entanto, defendem a ticos permitem interações Tuatara (Sphenodon punctatus), réptil nativo da
ideia de que a comunicação acústica sur- sociais fundamentais, como Nova Zelândia de linhagem distinta da dos lagartos,
cuja vocalização foi registrada no estudo atual
giu diversas vezes e de forma indepen- aquelas envolvidas com a
dente nos variados grupos de vertebrados reprodução e a territoriali-
terrestres, em um processo que os biólogos dade. Seu sucesso é determinante para a de produzir som, todas as linhagens de
denominam evolução convergente. sobrevivência dos organismos envolvi- tetrápodes e peixes pulmonados têm
Primeiro autor do trabalho, o biólo- dos. Ele pondera que ainda há uma gran- pulmões como fonte física de seus com-
go brasileiro Gabriel Jorgewich-Cohen de incerteza sobre a origem evolutiva da portamentos de vocalização”, comenta
explica que a comunicação sonora pode comunicação acústica entre vertebrados. o biólogo. “Em nosso artigo, revisamos
ser definida como uma interação acús- “Isso se explica, amplamente, pela falta a análise feita por Chen e Wiens e in-
tica entre pelo menos dois animais me- de evidências comportamentais sobre cluímos as evidências das espécies cujos
diada por sinais e governada por regras. comunicação acústica em certos grupos sons fomos os primeiros a registrar. Ao
“Ruídos produzidos acidentalmente são taxonômicos”, explica Forti. “Ao contrá- fazer isso, vimos que os dados mais com-
considerados como ‘efeitos colaterais’ de rio do que os autores sustentam nesse pletos favorecem nossa hipótese.”
outros comportamentos e não contam novo estudo, as evidências anteriores, De acordo com Forti, o estudo do
como comunicação”, esclarece Jorge- fundamentadas em características filo- colega brasileiro representa uma im-
FOTOS 1 C. DANI & I. JESKE / DE AGOSTINI / ALBUM / FOTOARENA 2 KEVIN SCHAFER / GETTY IMAGES

wich-Cohen, que estuda evolução como genéticas e anatômicas dos tetrápodes, portante contribuição para o avanço do
aluno de doutorado da Universidade de indicavam que esse comportamento ti- conhecimento sobre a origem da comu-
Zurique, na Suíça. “Portanto, não consi- nha surgido de forma independente em nicação por sons entre os vertebrados
deramos como comunicação tosses, ar- diferentes tipos de animais.” Um artigo terrestres. “O trabalho é um grande mo-
rotos e outros sons indesejados que não dos biólogos Zhuo Chen e John J. Wiens, tivador para se explorar mais detalha-
transmitem uma mensagem.” da Universidade do Arizona, nos Estados damente o uso de sinais acústicos por
A equipe constatou que as espécies es- Unidos, publicado em 2020 também na diversos animais que ainda não tiveram
tudadas se comunicam com um repertó- Nature Communications, sugere que a seus repertórios comportamentais estu-
rio variado de sons, que inclui grunhidos, comunicação sonora surgiu múltiplas dados”, comenta o pesquisador da Ufer-
gorjeios, bufos e outros tipos de ruído. vezes, de forma independente, em dife- sa. No momento, Jorgewich-Cohen está
Algumas espécies “falam” várias vezes ao rentes grupos de vertebrados ao longo trabalhando em artigos que descrevem
dia, outras são mais quietas. Os machos dos últimos 200 milhões de anos. em detalhe o repertório acústico de al-
produzem sons para cortejar as fêmeas Todavia, Jorgewich-Cohen destaca gumas espécies e, no futuro próximo,
e defender seu território. que outros trabalhos se alinham com a pretende dedicar-se a estudos de bioa-
As gravações de áudio e de vídeo fo- hipótese de que a comunicação acústica cústica e cognição em répteis. n
ram realizadas em cativeiro, em piscinas tem uma origem evolutiva única e antiga.
plásticas, a fim de garantir que todos os “Apesar de haver uma grande varieda- Os artigos científicos consultados para esta reportagem
sons captados vinham mesmo dos ani- de de mecanismos anatômicos capazes estão listados na versão on-line.

PESQUISA FAPESP 322 | 51


AGRICULTURA

EXPANDIR
SEM DESTRUIR
Aumentar a produtividade da soja na
Amazônia e no Cerrado é essencial para não elevar
o desmatamento e as emissões de CO2

Eduardo Geraque e Marcos Pivetta

A
produção de soja não para de das safras entre 2007 e 2019 foi bastante diferente
crescer no país e hoje se espa- nos quatro biomas.
lha por terras de quatro bio- No Pampa e na Mata Atlântica, onde o grão é
mas: Pampa, Mata Atlântica, plantado há mais de meio século e está mais bem
Cerrado e Amazônia. Na safra adaptado, o crescimento da safra nesse período
2019/2020, a colheita chegou se deveu tanto a ganhos de produtividade signi-
a 125 milhões de toneladas de grãos, pouco mais ficativos como à expansão territorial do cultivo.
do que o dobro de 13 anos antes, de acordo com No Cerrado e na Amazônia, áreas de entrada
dados da Companhia Nacional de Abastecimento mais recente da soja, o aumento da safra decor-
(Conab). Com exceção do clima, que o homem reu muito mais do crescimento da área plantada
não controla, os dois fatores que mais influen- do que da instalação de lavouras mais eficientes
ciam no aumento da produção do cultivo são o (ver gráfico na página 54).
tamanho da área de plantio e o rendimento da Se essa tendência se mantiver nesses dois bio-
colheita. Segundo estudo feito por pesquisadores mas nos próximos 15 anos, mais 5,7 milhões de
de Brasil, Argentina e Estados Unidos, publicado hectares de floresta e de savanas serão converti-
em outubro na revista científica Nature Sustaina- dos em área de soja e 1,955 milhão de toneladas de
bility, o peso desses dois fatores no crescimento dióxido de carbono (CO2) será emitido na atmos-
Colheita de soja fera, de acordo com o estudo. O CO2 é o principal espaço para aumentos de produtividade, segundo
no Rio Grande do Sul, gás de efeito estufa, que aumenta a temperatura os autores do estudo. O rendimento do cultivo está
onde a produtividade
do grão é alta
média do planeta. “A ideia é parar com o cresci- muito próximo ou já atingiu o teto em termos de
mento das áreas de plantio e focar no aumento ganhos de eficiência. Na Amazônia e no Cerrado,
de produtividade, em especial no Cerrado e na essa situação ainda está longe de ocorrer. Os pes-
Amazônia”, comenta o agrônomo Fábio Marin, da quisadores estimam esse teto por meio do plantio
Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz da soja em experimentos distribuídos em diferentes
da Universidade de São Paulo (Esalq-USP), pri- partes do Brasil em que as condições da lavoura são
meiro autor do estudo, que contou, em parte, com consideradas ideais ou muito perto disso.
financiamento da FAPESP. “Nesses biomas, ainda A diferença de produtividade entre uma lavoura
SILVIO AVILA / AFP VIA GETTY IMAGES

há muita margem para melhorar o rendimento do bem cuidada e outra tocada de forma pouco efi-
cultivo sem precisar expandir mais a área de soja.” ciente é enorme. Dados do Comitê Estratégico
Em 2019, a área plantada com soja no país era Soja Brasil, que promove concursos de produti-
de quase 37 milhões de hectares, metade dela no vidade, indicam que os produtores campeões de
Cerrado e 14% na Amazônia. No Pampa e na Mata rendimento atingem a marca de 6 mil quilos do
Atlântica, que respondem, respectivamente, por 10% grão por hectare. A média nacional é praticamente
e 26% da safra brasileira de soja, quase não há mais metade, de 3,3 mil quilos por hectare.

PESQUISA FAPESP 322 | 53


Segundo o agrônomo Rafael Battisti, da Uni- mo argentino Patricio Grassini, da Universidade
versidade Federal de Goiás (UFG), muitos es- de Nebraska-Lincoln, dos Estados Unidos, outro
tudos vêm mostrando que em várias etapas de autor do trabalho na Nature Sustainability.

O
produção existem mecanismos que precisam ser
empregados para que a produtividade aumente. primeiro cenário é o chama-
“A data da semeadura, a escolha do cultivar, a do business as usual. Ou seja,
fertilização, a proteção contra pragas e doen- nada mudaria em relação às
ças, a melhoria do solo, o manejo de água e o uso tendências atuais no que diz
de plantas de cobertura em sistemas de rotação respeito à produtividade mé-
têm sido pontos fundamentais para aumentar dia por hectare e ao ritmo de
a eficiência agrícola”, diz Battisti, que também expansão de áreas usadas para a plantação do
assina o novo artigo. cultivo na Amazônia e no Cerrado. A escolha
No estudo, o grupo de pesquisadores simulou, desse caminho levaria à produção de 212 milhões
com o emprego de modelos matemáticos, três ce- de toneladas de soja em 2035, provenientes de
nários dos possíveis rumos que a produção de soja uma área de cultivo de 59 milhões de hectares.
poderia seguir até 2035. O objetivo era encontrar Seria um sucesso econômico, mas não para o meio
uma situação que permitisse o crescimento do ambiente. A área de soja tomaria o lugar de 5,7
setor, sem, no entanto, provocar mais danos ao milhões de hectares hoje cobertos por florestas e
meio ambiente e aumentar as emissões de gases cerrados e lançaria quase 2 milhões de toneladas
de efeito estufa. “Toda a modelagem está baseada de dióxido de carbono para a atmosfera.
em dados reais de clima, solo e manejo, coletados O segundo cenário prevê um caminho alter-
nas melhores fontes possíveis”, afirma o agrôno- nativo, que assume melhorias na produtividade

Por que a safra de soja aumenta


Proporção do crescimento da produção do grão atribuída à expansão
da área de plantio e a ganhos de produtividade na lavoura

n Expansão da área de plantio n Ganhos de produtividade

Amazônia Cerrado Mata Atlântica Pampa

FONTE MARIN, F. NATURE SUSTAINABILITY. 2022

Mais terras cultivadas, mais grãos colhidos


Evolução da área plantada e do volume da safra de soja

Área plantada (milhões de hectares) Produção (milhões de toneladas)


160
40 36,9
33,9 140
35
124,9
30,2
30 120 114,1
24,2
25 100
86,1
20,7
80
75,3
20
58,4
15 60

10 40

5 20

0 0
2006/07 2010/11 2013/14 2016/17 2019/20 2006/07 2010/11 2013/14 2016/17 2019/20

Ano agrícola Ano agrícola


FONTE CONAB

54 | DEZEMBRO DE 2022
Outra recomendação seria produzir o chamado
milho de segunda safra ou safrinha nas áreas em
que essa prática ainda não é adotada. O milho sa-
frinha é plantado logo em seguida ao término da
colheita de soja e usa a mesma área adubada de
cultivo. É uma forma de estimular a rotação de
culturas e plantar e colher mais grãos com a mes-
ma terra, utilizando o solo para dois cultivos dife-
rentes em épocas distintas do ano. Como terceira
recomendação, os autores do trabalho defendem
a ideia de que é preciso aumentar a produtividade
do setor pecuário e manter mais cabeças de gado
por hectare. “Dessa forma, parte das áreas de pe-
cuária pode ser liberada para a produção da soja
e do milho safrinha”, afirma Grassini.
Ainda que o caminho apresentado pelo estu-
do tenha, de acordo com os pesquisadores, boas
chances de prosperar e ganhar escala, existem
desafios técnicos pela frente. “Uma das questões
é que não há uma regra de práticas de manejo
para ser aplicada a todas as áreas cultiváveis de
uma mesma fazenda. Portanto, o diagnóstico dos
pontos que limitam os ganhos de rendimento e a
definição de estratégias no menor trecho de terra
Lavoura de soja dentro da média histórica do setor, mas expansão possível são o caminho para alcançar o máximo
em Campo Verde, zero, em todo o país, da área agrícola dedicada potencial de produtividade”, explica Battisti. Os
no Mato Grosso
ao grão. Nesse caso, o aumento de produção na pesquisadores salientam que essas medidas não
safra ocorreria apenas até 2029, quando todos os provocam aumento de custos significativos e
biomas alcançariam o teto de produtividade, e a podem ser adotadas por produtores de soja com
colheita anual ficaria estacionada em torno dos fazendas de qualquer tamanho.
140 milhões de toneladas. O terceiro cenário proi- No caso específico da Amazônia, mesmo com
biria a expansão de áreas de soja em lugares não o aumento da produtividade e a interrupção da
desmatados, mas investiria pesado para aumentar destruição ambiental, existe um outro dilema
os ganhos de produtividade por hectare no Cer- que deve ser analisado, afirma o administrador
rado e na Amazônia, onde os níveis de eficiência público brasileiro Salo Coslovsky, professor as-
são baixos quando comparados aos do Pampa e sociado da Universidade de Nova York, espe-
da Mata Atlântica. O rendimento teria de duplicar cialista em desenvolvimento da Amazônia. “A
ou triplicar nesses biomas em que a soja é plan- monocultura em escala industrial deve ser vista
tada há menos tempo. Nesse caso, a produção sob a mesma ótica das hidrelétricas e da mine-
atingiria 162 milhões de toneladas em 2035, mas ração intensiva na Amazônia. Todas elas podem
as emissões de gases de efeito estufa seriam 58% ser atividades economicamente rentáveis e até
menores do que na hipótese business as usual. importantes para os seus respectivos municípios,

O
estados e o país. Mas, de forma geral, elas não
FOTO YASUYOSHI CHIBA / AFP VIA GETTY IMAGES INFOGRÁFICO ALEXANDRE AFFONSO

s números apresentados após geram muitos empregos diretos e têm um alto


a modelagem, segundo os pes- potencial de causar danos sociais e ambientais”,
quisadores, não deixam dúvi- afirma Coslovsky. n
das de que o terceiro cenário
é a solução ideal para um país
que precisa conciliar produção Projetos
de grãos com preservação ambiental – sob pena 1. Atlas de eficiência agrícola do Brasil: Quantificando o potencial de
intensificação sustentável da agropecuária brasileira (nº 17/20925-0);
de o agronegócio nacional não conseguir vender Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador responsável
seus produtos para blocos de países como a União Fábio Marin (USP); Investimento R$ 183.930,04.
Europeia. De acordo com Grassini, o aumento de 2. Brazilian yield-gap atlas: Assessing the potential for sustainable
intensification of Brazilian agriculture (nº 17/50445-0); Modalidade
produtividade da soja no Cerrado e na Amazônia Auxílio à Pesquisa – Regular; Programa Sprint; Convênio Universidade
sem promover desmate de vegetação seria obtido de Nebraska-Lincoln; Pesquisador responsável Fábio Marin (USP);
pela adoção de um conjunto de medidas. Investimento R$ 17.001,16.

A mais evidente seria adotar práticas que ele- Artigo científico


vem o rendimento em si do cultivo, como o plantio MARIN, F. R. et al. Protecting the Amazon forest and reducing global war-
de variedades mais bem adaptadas a cada região. ming via agricultural intensification. Nature Sustainability. 10 out. 2022.

PESQUISA FAPESP 322 | 55


A
AMBIENTE criação de porcos, segui-
da de perto pela pecuá-
ria bovina, é a atividade
destinada à produção de
alimento que mais im-
pacta os recursos natu-
rais no mundo. A seguir, com grandes
pegadas ambientais, aparecem o cultivo
de arroz e o de trigo, duas plantas que
formam a base da dieta em muitos países.
Embora forneça apenas 1,1% da comida
consumida globalmente, a exploração
dos recursos aquáticos, com destaque

A PEGADA
negativo para a pesca do camarão e de
peixes de profundidade, é responsável por
quase 10% dos impactos no meio ambien-
te decorrentes da produção de alimentos.

AMBIENTAL Quase metade da pegada ambiental é


deixada pela atuação de seis países, em
ordem decrescente de importância: Índia,

DOS
China, Estados Unidos, Brasil, Paquistão
e Indonésia. Grosso modo, a população
desse sexteto de nações equivale a 45%
dos 8 bilhões de habitantes do planeta.

ALIMENTOS
Estudo calcula as pressões sobre
Essas conclusões fazem parte de um
estudo publicado em outubro na revis-
ta científica Nature Sustainability, que
analisou dados globais da produção de
alimentos em 2017. Segundo os auto-
res do trabalho, as informações brutas
os recursos naturais decorrentes da usadas para calcular o impacto nos re-
cursos naturais de cada tipo de comida
produção de comida no planeta representam 99% da produção terrestre
e aquática de alimentos reportada naque-
Marcos Pivetta le ano por 172 países. Para cada ponto

Suinocultura produz
mais impacto ambiental
do que a pecuária bovina,
segundo artigo da
Nature Sustainability

56 | DEZEMBRO DE 2022
do globo definido como uma área de 36
quilômetros quadrados (km2) foi calcu-
lado o peso da pressão sobre o ambien-
te. “Muitos estudos apontam a pecuária
bovina como a atividade de produção
de comida que mais pressiona o meio
ambiente. Nosso trabalho também vai
nessa direção”, comenta, em entrevista
a Pesquisa FAPESP, o ecólogo marinho
norte-americano Benjamin Halpern,
da Universidade da Califórnia em San-
ta Bárbara, nos Estados Unidos, autor
principal do artigo. “O nível de impac-
to muito elevado da criação de porcos e
do cultivo de arroz e trigo foi inespera-
do. Mas ele apareceu porque olhamos
o efeito conjunto de múltiplas formas
2
de pressão ambiental decorrentes do Exploração de recursos aquáticos gera 1,1% da comida, mas quase 10% da pegada ambiental global
volume total de alimentos produzidos.”
A maioria dos estudos costuma fo- ção associada ao emprego de nutrientes Globais (PFPMCG), que não participou
car nas emissões de dióxido de carbono dados aos animais. Nos casos do trigo e do estudo. “No Brasil, o uso de irrigação
(CO2), o principal gás de efeito estufa, do arroz, o que faz a diferença é o uso ainda ocorre em uma pequena parte da
ocasionadas pelas atividades agropecuá- intensivo de água e as perturbações na área dedicada à agropecuária. Mas em
rias e pela pesca para calcular a chama- biodiversidade local. algumas regiões há um importante au-

A
da pegada de carbono. Alguns também mento da área irrigada.”
levam em conta a liberação de metano pegada ambiental ge- O agrônomo Carlos Eduardo Pellegrino
(CH4), o segundo composto que mais rada pela produção de Cerri, da Escola Superior de Agricultura
impulsiona o aumento do aquecimen- alimentos de cada país Luiz de Queiroz da Universidade de São
to global. A inclusão desse outro gás é é mais ou menos pro- Paulo (Esalq-USP), ressalta a importância
muito importante na análise do impac- porcional ao tamanho das pesquisas sobre a pegada ambiental
to das emissões de carbono associadas à de sua população em da produção de alimentos. “É uma ques-
pecuária de corte e de leite. Ruminantes, relação à do mundo. No caso de algu- tão muito importante e atual”, diz Cerri.
os bois liberam grandes quantidades de mas nações com grandes rebanhos e pro- Ele, no entanto, defende a ideia de que os
metano em razão da fermentação enté- dução agrícola, como Estados Unidos autores desses trabalhos passem a usar
rica em seu processo digestivo. e Brasil, as pressões sobre os recursos o conceito de balanço do carbono (que
Mas, quando são analisados outros naturais são maiores do que a sua densi- contabiliza tanto as liberações como as
três tipos de impactos ambientais na pro- dade populacional. A situação é inversa absorções de gases de efeito estufa) para
dução de alimentos (uso de água doce, na China e na Índia, os dois países mais calcular a pegada de carbono das culturas
perturbações que reduzem a biodiver- populosos, cada um com 17% dos habi- agrícolas, em vez de apenas levar em conta
sidade de espécies e poluição gerada tantes do globo. A pegada ambiental da as emissões. “Usar o balanço de carbono
por insumos agrícolas), além da tradi- produção de comida em cada uma dessas seria mais correto, visto que uma cultura
cional pegada de carbono, as pressões duas nações asiáticas representa menos bem manejada pode até fixar mais carbo-
decorrentes da suinocultura ultrapas- de 15% do total. no do que emite.”
FOTOS 1 JOERN POLLEX / GETTY IMAGES 2 JOHANNES EISELE / AFP VIA GETTY IMAGES)

sam ligeiramente as da bovinocultura no De acordo com o artigo, as atividades Em um experimento de campo feito
âmbito global, de acordo com o artigo. destinadas a gerar comida para a huma- em três fazendas de soja de Mato Grosso
O rebanho de porcos, da ordem de 800 nidade utilizam metade das áreas habi- do Sul durante a safra 2020/2021, Cerri
milhões de animais, é menor do que o táveis e 70% da água doce do planeta. concluiu que os produtores poderiam
de bois, por volta de 1 bilhão de cabeças. Elas geram entre um quarto e um terço controlar, por meio de práticas corre-
“O peso de cada forma de pressão na pe- dos gases de efeito estufa produzidos tivas e do emprego adequado de fertili-
gada ambiental varia em razão do tipo pelo homem, além de poluir com nu- zantes, até 77% das emissões de carbo-
de alimento obtido e do país em que a trientes as bacias hidrográficas e áreas no decorrentes do cultivo de grãos. Se
produção ocorre”, diz Halpern. costeiras. “Além das emissões de gases isso fosse feito, a sojicultura passaria a
Na pecuária bovina, as emissões de de efeito estufa, a questão do uso da água captar mais carbono, sobretudo no solo,
gases de efeito estufa respondem por na agricultura é um tema muito impor- do que a emitir, segundo o pesquisador
60% da pressão ambiental dessa ativida- tante atualmente”, comenta o agrôno- da Esalq. n
de. Na suinocultura, esse peso é cerca de mo Jean Ometto, do Instituto Nacional
quatro vezes menor. Segundo o estudo, de Pesquisas Espaciais (Inpe), um dos Artigo científico
a maior parte do impacto na natureza coordenadores do Programa FAPESP HALPERN, B. S. et al. The environmental footprint of glo-
da criação de porcos deriva da polui- de Pesquisa sobre Mudanças Climáticas bal food production. Nature Sustainability. 24 out. 2022.

PESQUISA FAPESP 322 | 57


FÍSICA

QUESTÃO
DE ESTADO

Ilustração de como
seria o comportamento
de um material
bidimensional na
fase quântica
de líquido de spin

58 | DEZEMBRO DE 2022
Exótica fase da matéria conhecida como líquido de spin
pode ser útil para desenvolver computadores quânticos

Marcos Pivetta

U
m material magnético bi- O material empregado nas simulações de Majorana, misteriosas partículas su-
dimensional que pode ser foi um óxido de irídio (H3LiIr2O6), que batômicas cuja existência foi proposta
a base de uma nova forma apresenta uma estrutura hexagonal na na teoria, mas nunca comprovada ex-
da computação quântica forma de colmeia similar à do grafeno. perimentalmente.
parece ser mais estável do Em experimentos, esse composto é um O emaranhamento quântico faz com
que aparentava. Mesmo dos que mais forneceram indícios de se que duas ou mais partículas estejam tão
após a introdução de pe- comportar como previsto pelo chama- correlacionadas a ponto de uma deter-
quenas perturbações em um do modelo de Kitaev. Proposto em 2006 minar o que ocorre com a outra, mesmo
modelo teórico que emula pelo físico russo Alexei Kitaev, hoje pro- se separadas por distâncias enormes. Os
seu comportamento, esse composto – fessor do Instituto de Tecnologia da Ca- férmions de Majorana seriam partículas
que, quando super-resfriado, apresenta lifórnia (Caltech), esse conceito prevê quânticas diferentes de todas as conhe-
uma exótica fase ou estado quântico da a existência da fase de líquido de spin cidas. Ao mesmo tempo, atuariam como
matéria denominada líquido de spin – em certos materiais 2D, cristais sólidos partículas e antipartículas de si mesmas.
mantém propriedades que podem ser formados por uma única camada de áto- Uma partícula tem a massa igual à de
essenciais para o funcionamento de um mos, quando resfriados a temperaturas sua respectiva antipartícula, mas car-
computador desse tipo. próximas ao zero absoluto (-273,15 °C). ga elétrica oposta. É o caso, por exem-
Essas conclusões constam de um artigo “O modelo de Kitaev é simples, por isso plo, do elétron (negativo) e do pósitron
de dois físicos brasileiros publicado na trabalhamos com ele”, comenta Andrade. (positivo). “A dualidade dos férmions
revista científica Physical Review Letters Até hoje, ainda não há consenso entre de Majorana pode ser uma propriedade
em julho deste ano. “A teoria não previa os físicos de que algum material possa interessante a ser explorada na compu-
que esse modelo continuasse válido de- realmente apresentar a fase quântica de tação quântica”, explica Pereira.
pois da ocorrência de certas perturbações líquido de spin, ideia proposta há quase Desde os anos 1980, a ideia de cons-
no sistema”, diz o físico Eric Andrade, da 50 anos, embora existam vários candida- truir computadores capazes de usar as
Universidade de São Paulo (USP), princi- tos promissores. Nesse estado, o arranjo estranhas propriedades da mecânica
pal autor do trabalho, também assinado geométrico dos átomos de um material quântica, como superposição de esta-
por Vitor Dantas, ex-aluno de mestrado. faz com que o spin dos elétrons não si- dos e emaranhamento, para alcançar
“Mas vimos que o material pode suportar ga um ordenamento magnético preci- um poder de processamento sem pa-
entre 1% e 2% de vacâncias do elétron so. O spin é uma propriedade quântica ralelo é um objetivo perseguido ainda
em sua estrutura e ainda manter suas intrínseca dos elétrons e de outras par- sem resultados revolucionários. Gran-
propriedades quânticas.” tículas subatômicas que influencia sua des empresas, como Google, Microsoft
As vacâncias são espaços vazios em interação com campos magnéticos. Pode e IBM, já anunciaram diferentes versões
certos pontos de conexão da estrutura apresentar duas configurações, que são de computadores quânticos de uso res-
interna de um material em razão da au- representadas como spin para cima e pa- trito a certas tarefas, quase sempre en-
sência de elétrons. Na prática, os buracos ra baixo. Os spins dos materiais tendem voltos em mistérios e dúvidas.
fazem com que algumas ligações atômi- a se ordenar de forma homogênea: todos As dificuldades derivam de uma li-
cas sejam mais fortes e outras mais fra- apontam para cima ou para baixo, ou mitação aparentemente intrínseca das
cas. Esse tipo de imperfeição, ou desor- alternadamente para cima e para baixo. propostas de construção desse tipo de
dem, para usar o jargão da área, ocorre Na fase de líquido de spin, no entanto, máquina: a falta de estabilidade e ro-
ao acaso em muitos materiais. Se sua in- o momento angular dos elétrons não se bustez dos arranjos quânticos que são
cidência for muito elevada, pode alterar fixa em uma configuração, fica flutuando necessários para seu funcionamento.
as propriedades do composto. entre os diferentes arranjos (daí a ana- Mínimas alterações no ambiente, como
“Na natureza, os átomos de um ma- logia com um líquido). um levíssimo aumento de temperatura
terial podem ocupar posições erradas. O Nesse estado exótico da matéria, algu- ou tênues vibrações mecânicas, provo-
hidrogênio [que faz parte da fórmula do mas propriedades quânticas se intensi- cam erros nesses sistemas. “Compreen-
material estudado] é um átomo muito le- ficariam, um efeito benéfico que talvez der a fase de líquido de spin talvez possa
UNIVERSIDADE DE ARKANSAS

ve e escapa com certa frequência de seu possa ser explorado no desenvolvimento ser útil para desenvolver computadores
lugar esperado”, comenta o físico Rodri- de novas formas de computação. Entre quânticos mais estáveis”, diz Andrade. n
go Pereira, da Universidade Federal do essas propriedades, destacam-se um
Rio Grande do Norte (UFRN), que não forte grau de emaranhamento quântico O projeto e o artigo científico consultados para esta
participou do estudo. e a presença de análogos dos férmions reportagem estão listados na versão on-line.

PESQUISA FAPESP 322 | 59


TECNOLOGIA DA INFORMAÇÃO

SAÚDE
MAIS
INTELIGENTE
Sistemas dotados de inteligência artificial já são usados
na área médica, mas desafios precisam ser superados para
sua incorporação em maior escala no país

Domingos Zaparolli | ILUSTRAÇÃO Alexandre Affonso

T
ão presente em tarefas cotidianas, lembram que os sistemas de IA não estão sendo
como na indicação da melhor rota desenvolvidos para substituir os médicos. “O
de trânsito, na escolha do pacote de propósito é usar a grande capacidade de anali-
viagem mais barato e em serviços de sar informações da IA como aliada do médico
atendimento ao cliente, a inteligência na tomada de decisão”, diz o economista e pro-
artificial (IA) começa a chegar à área fessor de inteligência artificial em saúde Ale-
da saúde. A Organização Mundial da xandre Dias Porto Chiavegatto Filho, diretor do
Saúde (OMS) a classifica como uma Laboratório de Big Data e Análise Preditiva em
grande promessa para melhorar a Saúde (Labdaps), criado em 2017 na Faculdade
prestação de serviços de saúde em todo o mundo. de Saúde Pública da Universidade de São Paulo
Para a organização, ela pode ser utilizada – e em (USP), com apoio da FAPESP.
alguns países ricos já é – para melhorar a velo- O grande investidor em pesquisa em IA na
cidade e a precisão do diagnóstico e da triagem saúde no mundo é a multinacional de tecnologia
de doenças, auxiliar no atendimento clínico e Alphabet, do grupo Google. O Instituto de Tec-
fortalecer a pesquisa em saúde e o desenvolvi- nologia de Massachusetts (MIT) e as universi-
mento de medicamentos. Também pode apoiar dades Stanford e Harvard, nos Estados Unidos,
diversas ações de saúde pública, como vigilância e as de Oxford e Cambridge, no Reino Unido,
de doenças e gestão de sistemas de saúde. também se destacam. No Brasil, USP, Universi-
Inteligência artificial pode ser entendida como dade Estadual de Campinas (Unicamp) e Uni-
a capacidade de dispositivos eletrônicos repro- versidade Federal de Minas Gerais (UFMG)
duzirem a forma humana de perceber situações estão entre as que mais se dedicam a esse cam-
variáveis, fazer escolhas e solucionar problemas. po de pesquisa.
O software é a parte lógica do dispositivo, o “cére- De acordo com o relatório “Artificial intel-
bro”. Ele é composto por diversas sequências de ligence index report 2022”, da Universidade
instruções que orientam seu funcionamento, os Stanford, foram investidos pelo setor privado
algoritmos. Inicialmente, os algoritmos seguiam em todo o mundo US$ 11,3 bilhões em pesquisa e
apenas programações prévias, mas hoje são trei- inovação com IA para medicina e saúde em 2021,
nados para reconhecer padrões sozinhos com base um aumento de 40% em relação ao ano anterior.
nos dados com os quais trabalham. É o chamado Nos últimos cinco anos, os recursos somaram
aprendizado de máquina (ver glossário com ter- US$ 28,9 bilhões, o que posicionou o segmento
mos técnicos na versão on-line da reportagem). como o maior receptor de investimentos priva-
A ideia é que o algoritmo possa acessar e as- dos em IA, superando atividades tradicionais no
similar uma grande quantidade de dados, en- uso de tecnologias da informação, como o setor
contrar padrões e apontar soluções de forma financeiro e o varejo. A visão computacional,
Representação
mais rápida e com um maior índice de acerto segmentando imagens de órgãos, lesões ou tu-
gráfica do do que os humanos. Especialistas destacam que mores, foi uma das aplicações que despertaram
cérebro humano essa área exige profissionais bem preparados e mais interesse na comunidade médica.

PESQUISA FAPESP 322 | 61


tuem desigualdades no acesso à saúde (ver box
na página 65).
Especialistas também ponderam que a IA ain-
da precisa conquistar a confiança da comunidade
A INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL médica para ser vista como uma técnica segura.

AINDA PRECISA “É uma tarefa na qual ainda estamos no início. A


tecnologia de IA ainda vai demorar até ser incor-
CONQUISTAR A CONFIANÇA porada em grande escala na saúde no Brasil e no
mundo”, avalia Chiavegatto. O primeiro desafio
DA COMUNIDADE MÉDICA a ser superado é a qualidade da informação que
alimenta os algoritmos. O sistema de saúde gera
PARA SER VISTA COMO UMA muitos dados, mas pouca informação consolida-

TÉCNICA SEGURA da. “Dados incompletos e inconsistentes geram


algoritmos ruins”, diz o pesquisador.
Uma sugestão equivocada proveniente de um
sistema de IA para uma rota no trânsito ou de um
filme no streaming gera aborrecimento. Na saú-
de, pode induzir o médico a erro e assim colocar
uma vida em risco. Caberá a cada novo sistema
de IA desenvolvido na área médica demonstrar
a consistência de seus algoritmos para gerar a
Um dos desenvolvimentos de IA com maior necessária confiança.
repercussão é o software AlphaFold, criado pela O segundo desafio da ciência de computação
empresa DeepMind, pertencente ao Google. O é demonstrar que a IA é efetiva, ou seja, melho-
programa, eleito pela revista científica Science ra as práticas clínicas. “Ainda não existem de-
como a descoberta do ano de 2021, usa técnicas monstrações científicas de que uma prescrição
de deep learning (aprendizado profundo) em mo- médica receitada com o auxílio de IA, por exem-
delos de ensaios moleculares para resolver o pro- plo, gere um tratamento mais adequado”, afirma
blema chamado de “dobramento de proteínas”. Chiavegatto.
Proteínas consistem em cadeias de aminoácidos Uma das linhas de trabalho do Labdaps é so-
que se dobram espontaneamente e formam es- bre a seleção de dados para o treinamento de
truturas tridimensionais (3D) – sua forma 3D algoritmos. Um estudo recente do laboratório
tem relação direta com a função biológica que concluiu que algoritmos treinados com dados
desempenha. Por esse motivo, entender como se locais possuem desempenho superior aos algo-
formam as estruturas das proteínas pode enca- ritmos que usam uma base ampla de informação
minhar soluções que vão desde o entendimento coletada em populações com perfis genéticos e
da base celular da vida à descoberta de drogas e socioeconômicos diferentes.
cura de doenças. No caso do AlphaFold, os pes- O estudo teve como base o desenvolvimento de
quisadores só precisam informar a sequência de algoritmos com a finalidade de prever a morta-
aminoácidos que define determinada proteína lidade em pacientes vítimas de Covid-19. Foram
e o programa apresentará sua estrutura dobra- coletados dados de 16.236 pessoas de 18 hospi-
da. Mais de meio milhão de pesquisadores já tais de diferentes regiões do Brasil entre março
acessaram o programa para criar soluções que e agosto de 2020. Com a informação em mãos,
vão do enfrentamento à poluição dos plásticos os pesquisadores testaram oito estratégias dife-
ao entendimento sobre o que leva à resistência rentes para o desenvolvimento de modelos pre-
aos antibióticos. ditivos. Os melhores desempenhos foram obtidos
com aqueles que usaram dados locais, enquanto
DESAFIOS PELA FRENTE a adição de dados de pacientes de outras regiões
Apesar dos volumosos investimentos que recebe diminuía a capacidade de previsão.
e dos avanços recentes, desafios técnicos, éticos “Demonstramos que um algoritmo treinado
e legais ainda precisam ser superados para uma em São Paulo pode não ser a melhor solução de
maior disseminação dessas ferramentas. Uma IA a ser aplicada em Belém ou em Salvador”,
das preocupações recai sobre a responsabilida- explica Chiavegatto. Um artigo sobre o estudo
de civil em razão de falhas de diagnóstico que já foi submetido a uma revista científica. “É um
envolvem softwares e algoritmos de IA. Outra tema de interesse global. Muitos algoritmos de-
diz respeito ao uso antiético de informações, senvolvidos em um país terão que ser retreina-
seja pela exposição de dados que violem a pri- dos com técnicas de transfer learning”, prevê o
vacidade dos pacientes ou pelo emprego de al- especialista. Transfer learning – ou transferência
goritmos que reforcem preconceitos e perpe- de aprendizado – é um problema de pesquisa

62 | DEZEMBRO DE 2022
Estrutura tridimensional de proteínas,
feita pelo programa de inteligência
artificial AlphaFold (ao lado). Exame de
eletrocardiograma: análise por IA pode
determinar idade do paciente (abaixo)

2
1 2

em aprendizado de máquina que se concentra O Centro de Telessaúde realiza por volta de 4


em armazenar o conhecimento adquirido ao re- mil eletrocardiogramas (ECG) por dia e os da-
solver um problema e aplicá-lo a um problema dos coletados serviram de base para o desen-

U
diferente, mas relacionado. volvimento de duas pesquisas de IA na área de
doenças cardiovasculares que renderam artigos
ma iniciativa recente para ampliar publicados no periódico científico Nature Com-
os investimentos em IA em saúde munications. No primeiro, publicado em 2020,
no país veio de uma parceria entre a equipe de pesquisa do Telessaúde apresentou
a FAPESP, o Ministério da Ciência, um sistema de diagnóstico automático do ECG
Tecnologia e Inovações (MCTI), o padrão, denominado ECG de 12 derivações, capaz
Ministério das Comunicações e o de reconhecer seis tipos de anormalidades, utili-
Comitê Gestor da Internet no Brasil zando deep learning, o aprendizado de máquina
(CGI.br). Por meio de uma chamada profundo. A sensibilidade do método, ou seja,
pública concluída em 2021, foram a capacidade de apontar corretamente quando
constituídos seis Centros de Pesquisas Aplicadas o paciente está doente, foi de 80%, e a especifi-
(CPA) em inteligência artificial com foco não cidade, isto é, o acerto quando o indivíduo não
apenas no setor da saúde, mas também na agri- apresenta a doença, maior ainda, de 99%.
cultura, na indústria e em cidades inteligentes. O segundo artigo, publicado em 2021, apresen-
Cada centro receberá R$ 1 milhão por ano por tou um estudo que utilizou a IA para criar uma
até 10 anos e um valor idêntico será aportado por medida de saúde cardiovascular, o ECG-idade.
parceiros privados, totalizando até R$ 20 milhões O sistema faz uma análise do ECG e determina
por unidade de pesquisa. a idade provável do indivíduo com base na saú-
FOTOS 1 DEEP MIND / ALPHAFOLD 2 LÉO RAMOS CHAVES / REVISTA PESQUISA FAPESP

Dois dos novos CPA vão atuar especificamen- de de seu coração. Indivíduos com ECG-idade
te com foco na saúde e reúnem pesquisadores superior à sua idade cronológica, em teoria, têm
que já desenvolvem soluções de IA no setor. Em maior risco de mortalidade gerada por proble-
Belo Horizonte (MG), o Centro de Inovação em mas cardiovasculares. “É uma informação que
Inteligência Artificial para a Saúde (Ciia-Saúde), pode ser utilizada na predição e no acompanha-
sediado na UFMG, reúne mais oito instituições mento médico”, conta Ribeiro. “Mas o sistema
e quatro empresas parceiras. Irá atuar em cin- de IA não está pronto para uso comercial, pois
co eixos temáticos: prevenção e qualidade de ainda é preciso validar se a informação de fato
vida; diagnóstico, prognóstico e rastreamento; contribui para a conduta médica e o bem-estar
medicina terapêutica e personalizada; sistemas do paciente.”
de saúde e gestão; e epidemias e desastres. “Va- O outro CPA é o Brazilian Institute of Data
mos fazer a primeira chamada de projetos até Science (Bios). Coordenado pela Unicamp, reúne
o final do ano”, diz o médico e vice-diretor do 12 parceiros públicos e privados e está em fase de
Ciia Antônio Luiz Pinho Ribeiro, que também implementação. O Bios atuará nas áreas da saúde,
coordena o Centro de Telessaúde do Hospital agronegócio e método, ou seja, no desenvolvi-
das Clínicas da UFMG. mento de pesquisa aplicada em ciência de dados

PESQUISA FAPESP 322 | 63


para vários segmentos de atividades. Segundo o minar se o tumor é maligno ou benigno. Nesses
médico obstetra e docente da Unicamp Rodol- casos, todos os pacientes, por precaução, são
fo Pacagnella, coordenador na área da saúde do encaminhados para cirurgias diagnósticas, mas
Bios, três linhas de pesquisas já estão definidas: 80% delas se demonstram desnecessárias por re-
saúde da mulher, diagnóstico de câncer de pele velarem nódulos benignos. Os pacientes poderão
e diagnóstico de câncer de pulmão. O câncer de ter sequelas, como a necessidade de reposição
pele é um dos tumores de maior incidência no hormonal por toda a vida.
mundo e a cientista de computação Sandra Eli- Lançado em 2018, o mirTHYpe faz uma leitura
za Fontes de Ávila, do Instituto de Computação dos microRNAs, pequenas moléculas regulató-
da Unicamp, desenvolveu um software capaz de rias do RNA (ácido ribonucleico) dos nódulos
detectar câncer do tipo melanoma, o mais agres- para determinar se a lesão é benigna ou malig-
sivo dos tumores (ver Pesquisa FAPESP nº 305). na, por meio de inteligência artificial. Com isso,
Na área da saúde da mulher, Pacagnella coor- evitam-se cirurgias dispensáveis (ver Pesquisa
dena pesquisas que utilizam IA para reconhecer FAPESP nº 264). Um estudo realizado pela equipe
padrões de riscos de mortalidade materna e nas- de pesquisa do Onkos com 440 pacientes de 128
cimentos prematuros e assim estabelecer estra- laboratórios que já utilizam o método concluiu
tégias preditivas. “Identificar precocemente um que o mirTHYpe influenciou 92% das tomadas
problema de saúde permite fazer um acompanha- de decisão médicas e reduziu em 75% as cirur-
mento e tratamento mais adequado, mas também gias dispensáveis. O trabalho foi tema de artigo
melhorar a gestão da rede de saúde. Podemos publicado em agosto deste ano na revista cien-
saber, com antecedência, quando precisaremos tífica The Lancet Discovery Science (eBioMedi-
de vagas em UTIs nas maternidades e equipes cine). “Com uma base de dados maior formada

D
médicas de plantão”, exemplifica Pacagnella. nos últimos anos, estamos retreinando nosso
algoritmo e acreditamos que podemos evitar até
uas startups apoiadas pela FAPESP 89% das cirurgias diagnósticas desnecessárias”,
desenvolveram tecnologias de IA diz o biólogo Marcos Tadeu dos Santos, funda-
que já auxiliam o diagnóstico onco- dor da Onkos.
lógico. A Onkos Diagnósticos Mole- A outra startup é a Harpia Health Solutions,
culares, graduada no Supera Parque sediada no Parque Tecnológico de São José dos
Solução Delfos
de Inovação e Tecnologia de Ribei- Campos (SP). Sua equipe de pesquisadores e de-
Mamografia, da Harpia: rão Preto, no interior paulista, criou senvolvedores projetou uma plataforma on-line,
apoio ao diagnóstico um exame genético, o mirTHYpe, a Delfos, que hospeda soluções de IA e visão
de exames de imagem para aperfeiçoar a classificação de computacional para dar suporte ao diagnóstico
(abaixo). Aplicativo
Neonpass, da Hoobox,
nódulos de tireoide indeterminados. Em cerca de exames de imagens médicas. “Funciona como
voltado à gestão de 25% dos diagnósticos, o exame tradicional, uma segunda opinião ao radiologista”, diz o mes-
hospitalar (à dir.) a punção aspirativa (Paaf ), não consegue deter- tre em engenharia biomédica Daniel Aparecido
Vital, sócio-fundador da Harpia.
Na prática, a plataforma recebe por meio de
uma interface de programação de aplicações
(API) os exames e responde em até cinco mi-
nutos diretamente ao sistema de arquivamento
e compartilhamento de imagens de radiologia
(Pacs/Ris) em que o radiologista realiza o lau-
do. Nesse intervalo, a plataforma identifica e
classifica automaticamente anomalias e cria um
índice de triagem que permite a priorização dos
achados anormais a serem diagnosticados. Ao
mesmo tempo, insere no sistema uma imagem
com indicações visuais das anomalias.
“É um método que gera produtividade e as-
sertividade no diagnóstico ao permitir que o ra-
diologista concentre sua atenção nas anomalias
encontradas e reduz erros gerados por cansaço
resultante de longas jornadas de trabalho”, afir-
ma Vital. O primeiro serviço disponibilizado é o
Delfos Mamografia, que já processou mais de 72
mil exames de mamografia. A Harpia também
criou uma solução para raio X de tórax, em fase
1 2 de validação.

64 | DEZEMBRO DE 2022
DESAFIOS ÉTICOS NO HORIZONTE
Algoritmos precisam ser transparentes e evitar preconceito ao auxiliar médicos na tomada de decisão

Ao mesmo tempo que apresenta o potencial “Por maior que seja o índice de acertos norueguesa vai funcionar adequadamente
da inteligência artificial em melhorar a de um algoritmo, o risco de erros continua no Brasil?”, questiona.
prestação de atenção à saúde e apoiar existindo. Para ter uma maior confiabilidade, Pacagnella destaca a necessidade de os
o desenvolvimento de medicamentos, a o algoritmo precisa ser transparente, algoritmos serem treinados com dados
Organização Mundial da Saúde (OMS) alerta demonstrar ao médico não apenas uma abrangentes, que contemplem populações
sobre a necessidade de os desenvolvedores decisão, mas os fatores que foram com diversos perfis, e o cuidado de se evitar
de soluções colocarem a ética e os direitos considerados para chegar a essa decisão”, que preconceitos raciais e socioeconômicos
humanos no centro de suas preocupações. diz o clínico Antônio Luiz Pinho Ribeiro, contaminem os algoritmos, o que pode gerar
O relatório “Ética e governança da vice-diretor do Centro de Inovação em distorções que passam despercebidas nas
inteligência artificial para a saúde”, Inteligência Artificial para a Saúde (Ciia- soluções de IA.
publicado em 2021, destaca os riscos Saúde), com sede em Belo Horizonte (MG). Outra preocupação é sobre a coleta dos
contidos no uso antiético de dados da saúde, O médico obstetra Rodolfo Pacagnella, dados utilizados no aprendizado de máquina.
principalmente relacionados a preconceitos coordenador na área da saúde do Brazilian “Um algoritmo treinado com dados perfeitos,
que podem ser codificados em algoritmos, Institute of Data Science (Bios), ressalta coletados em situações ideais em laboratórios
a exposição de informações que a importância da representatividade dos acadêmicos, não espelha necessariamente a
comprometam a privacidade dos pacientes, dados utilizados para o desenvolvimento realidade do sistema de saúde. O programa de
aos riscos da cibersegurança e a garantia dos algoritmos. “Um algoritmo treinado IA precisa ser validado em situação real de uso,
de transparência, explicabilidade e para detectar câncer de pele que use antes de ser disponibilizado para aplicação
inteligibilidade dos dados gerados. como base dados referentes à população comercial. Mas isso nem sempre ocorre”, afirma.

Os recursos de inteligência artificial também permitem aos gestores saber quantos pacientes e
vêm sendo usados para melhorar a administra- visitantes estão em cada setor, qual recepção está
ção de hospitais. Uma das tecnologias criadas mais cheia e qual o tempo médio de espera para

U
recentemente no país com esse propósito é o uma consulta ou procedimento médico.
Neonpass, que possibilita o acompanhamento
integrado de toda a jornada do paciente dentro m novo módulo que a Hoobox es-
da unidade de saúde. A inovação, já em uso nos tá incorporando ao Neonpass é o
hospitais Sírio-Libanês e Albert Einstein, ambos Sadia, um sistema que utiliza visão
em São Paulo, foi criada pela Hoobox, apoiada computacional e IA para detectar o
pela FAPESP. risco de queda do paciente no leito e
“Hoje a rastreabilidade do paciente e do visi- o de úlcera de pressão, que aumenta
tante é feita por diferentes ferramentas tecnoló- quando a pessoa passa mais de duas
gicas, cada uma com seus requisitos e que muitas horas na mesma posição. As infor-
vezes não se comunicam de forma adequada”, diz mações são capturadas por uma
Paulo Pinheiro, sócio-fundador da startup. Um câmera no leito e usa técnicas de aprendizado
problema gerado por essa situação é o paciente de máquina para identificar o paciente, prever o
precisar informar seus dados de identificação risco de queda e acionar o devido atendimento
na recepção e depois ser perguntado em etapas da enfermagem.
posteriores do atendimento. Além disso, com Além disso, o sistema identifica a categoria de
uma jornada descontinuada, dados de tempo, profissional que realiza diferentes procedimentos
volume e motivos de visitas, por exemplo, são próximos ao leito, contabilizando o total de horas
perdidos, comprometendo os fluxos de atendi- assistenciais, gerando informações aos gestores
FOTOS 1 HARPIAHEALTH.COM 2 REPRODUÇÃO

mento na instituição. hospitalares. A solução segue as diretrizes da


“O Neonpass foi projetado para ser um único Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), o que
barramento que orquestra todas as interações garante que todos os dados sejam tratados e des-
com o paciente, sem perda de dados e com maior cartados imediatamente de maneira a assegurar
eficiência operacional”, descreve Pinheiro. Entre a privacidade dos pacientes. Mais de 100 leitos
as atividades que podem ser executadas estão o já são monitorados pelo sistema da Hoobox. n
check-in, presencial e on-line, a entrada de visitan-
tes e o uso de terminais de atendimento. O acom- Os projetos e os artigos científicos consultados para esta reportagem e
panhamento gera informações em tempo real que um glossário com termos técnicos estão estão listados na versão on-line.

PESQUISA FAPESP 322 | 65


INDICADORES

A MÉTRICA
DO DINAMISMO
Linha de produção
da WEG, em Santa
Catarina, uma das
maiores fabricantes
mundiais de
equipamentos elétricos
Grupo propõe metodologia
para avaliar os impactos
da inovação com base
no desempenho de empresas
que geram muitos empregos
Fabrício Marques

U
m grupo de economistas e pesquisa- gerada pelas empresas dinâmicas e inovadoras. O
dores de instituições como o Senado quarto índice é o Dinnov-Simplex, que relaciona
Federal e o Instituto Brasileiro de a participação das empresas dinâmicas e inova-
Geografia e Estatística (IBGE) está doras com taxas de inovação e de companhias de
sugerindo uma nova abordagem pa- alto crescimento de um país.
ra monitorar o impacto da inovação “No fundo, a principal questão que se quer res-
na economia dos países, cujo foco é ponder é: qual parte do dinamismo ou do cresci-
o desempenho de empresas que são mento da economia é explicada pela inovação?”,
inovadoras e, ao mesmo tempo, geram pergunta o economista Eduardo Baumgratz Viotti,
um número crescente de empregos. A metodologia consultor legislativo do Senado Federal para as-
utiliza dados que companhias brasileiras fornecem suntos de política científica e tecnológica e autor
periodicamente à Pesquisa de Inovação (Pintec) e principal do artigo. Ele lembra que o progresso
também informações do Cadastro Central de Em- econômico de um país baseado em inovação fre-
presas (Cempre), ambos organizados pelo IBGE. quentemente está ligado a ganhos de produtivi-
De acordo com o estudo, publicado em setembro dade e competitividade e que a ideia de associar
na Revista Brasileira de Inovação, o contingente de em um índice esses dois conceitos – dinamismo e
empresas que apresentou crescimento no número capacidade de inovar – pode ser útil para avaliar os
de funcionários superior a 20% ao ano foi de cer- benefícios para a economia e a sociedade. “Cresci-
ca de 9 mil entre 2008 e 2014, em um universo de mento econômico e inovação estão ligados em um
mais de 100 mil firmas brasileiras com mais de 10 círculo virtuoso. A inovação contribui para o cres-
empregados. Ao longo desse período, entre 43% e cimento das empresas e a criação de novas firmas e
49% desses empreendimentos geraram algum ti- atividades econômicas. E, quando há crescimento,
po de inovação. Com base em análises estatísticas, as empresas têm condições favoráveis para inovar.
os autores propõem a criação de um conjunto de Na falta dele, precisam lutar para sobreviver e ge-
índices batizado de Dinnov, em referência aos vo- ralmente têm escassos recursos para investir em
cábulos “dinâmicas” e “inovadoras”, que procura novos produtos e processos.”
mensurar a participação na economia de empre- Para testar a metodologia, o grupo comparou da-
sas que se enquadram nessas duas qualificações. dos sobre o Brasil e 16 nações da Europa e chegou
A família é composta por quatro índices distintos a resultados surpreendentes. Como as informações
que, como destacam seus formuladores, são mais disponíveis na Pintec brasileira correspondiam ao
fáceis de compreender do que outras métricas período de 2008 a 2014, marcado pelo crescimen-
vigentes. O Dinnov-empresas, por exemplo, com- to da economia, o desempenho do país foi muito
preende o número de empresas dinâmicas e ino- expressivo. Nesse intervalo, o valor médio do Din-
vadoras como proporção do total de companhias. nov-Simplex foi estimado para o Brasil em 2,5%,
Da mesma forma, o Dinnov-emprego é calculado mais de duas vezes superior à média das nações
dividindo o número de funcionários nas empresas europeias, que ficou em 1,1%. A diferença não se
inovadoras pelo de empregados no total de firmas. explica pelas diferenças entre as taxas médias de
WEG

O Dinnov-valor adicionado diz respeito à riqueza inovação do Brasil e dos países europeus no perío-

PESQUISA FAPESP 322 | 67


1

do, que foram similares, respectivamente de 36,7%


e 36,3%. A razão do desempenho excepcional é o
fato de o Brasil ter apresentado uma taxa média
2
de empresas de alto crescimento no período de
6,9%, ante apenas 1,9% na média das nações da e Desenvolvimento (P&D) em relação ao Produto Centro de distribuição
Europa incluídas na comparação. “A economia Interno Bruto (PIB) de um país. “Os países líderes da CNH Industrial,
em Sorocaba (à esq.).
brasileira naquele período cresceu em média 3,1% em produção manufatureira têm um expressivo Concepção de avião
ao ano, índice mais de 10 vezes superior ao das 16 desempenho em P&D, com dispêndios elevados na Embraer, em

E
economias europeias analisadas”, explica Viotti. e metas para aumentá-los ainda mais. Mas esses São José dos Campos
indicadores são reconhecidamente limitados para (acima)

le reconhece que serão essenciais mais dar conta do amplo conjunto de atividades e inte-
estudos para avaliar a aplicabilidade da rações envolvidas no processo de inovação”, afirma
metodologia. “Esse exercício deve ser a economista Sandra Hollanda, consultora de um
interpretado como uma prova de que é programa da FAPESP voltado à construção de um
possível calcular os novos indicadores, sistema de Indicadores de Ciência, Tecnologia e
mas pesquisas adicionais, que incluam Inovação para o estado de São Paulo.
dados de períodos mais longos e maior Eduardo Viotti ressalta que há consenso sobre o
número de países, precisam ser realiza- fato de a inovação não estar avançando significati-
das para eventualmente validar a pro- vamente no país, apesar dos progressos da produ-
posta”, afirma. Por falta de dados, não foi possível ção científica. “Embora a inovação tenha passado
avaliar os indicadores nos anos mais recentes, mar- a ocupar posição cada vez de maior destaque nos
cados pela retração econômica. A última Pintec, que discursos, planos, programas e políticas da área,
tem como referência 2017, só teve seus resultados parece que ainda estamos tendo muita dificuldade
divulgados em 2021 (ver Pesquisa FAPESP nº 291). para aprender a fazer políticas de inovação efeti-
Nessa pesquisa, que avaliou o comportamento de vas. Parte dessa ineficiência talvez possa ser atri- FOTOS 1 CNH INDUSTRIAL 2 EMBRAER 3 PETROBRAS 4 GENERAL MOTORS

empresas brasileiras entre 2015 e 2017, a taxa de buída à força da tradição de políticas do passado
inovação foi de 33,6%, patamar inferior aos 36% da inspiradas pela convicção simplista de que exis-
anterior, referente aos anos de 2012 a 2014. A análise tiria uma relação, quase direta, entre o montante
do período de 2018 a 2020 não começou a ser feita. de recursos investidos em P&D e seus resultados
“A série histórica das Pintec, iniciada em 2000, vem em termos de inovação tecnológica”, diz. É certo
sendo comprometida pelo estrangulamento dos que a ênfase na análise dos investimentos em P&D,
recursos orçamentários do IBGE”, observa Viotti. vigente desde a década de 1960, foi complementa-
A ideia de estabelecer um índice com foco no da em 1992 com o lançamento de diretrizes para
desempenho de empresas inovadoras e dinâmicas coletar e interpretar dados de inovação tecnoló-
se enquadra em uma discussão mais ampla sobre gica do chamado Manual de Oslo, da Organização
as dificuldades de produzir indicadores talhados para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico
para calibrar a formulação de políticas públicas. (OCDE). Essa metodologia, adotada em pesquisas
Métricas consagradas hoje são vistas como res- de mais de 80 países, define os diversos tipos de
tritas. Um exemplo é o investimento em Pesquisa inovação e suas características.

68 | DEZEMBRO DE 2022
3

Na década passada, o debate sobre como avaliar


o impacto da inovação ganhou ímpeto quando os
países da União Europeia decidiram criar um novo
indicador. A premissa era de que a inovação tem
4
como arena as empresas, ainda que dependa de
infraestrutura de pesquisa pública e privada, da dicadores da União Europeia sobre empregos e Centro de Pesquisa,
interação entre universidades, corporações e outros exportações”, diz Sandra Hollanda. Desenvolvimento
e Inovação da Petrobras,
parceiros, de legislação adequada e do ambiente A proposta dos índices Dinnov foi uma tentativa no Rio de Janeiro (à esq.).
econômico. E o objetivo era municiar a estratégia de resgatar o objetivo original formulado pela União Fábrica da General
dos países do bloco para enfrentar a competição Europeia, com uma metodologia mais simples e Motors, em São Caetano
dos Estados Unidos e das economias asiáticas. Na calcada em empresas inovadoras e geradoras de do Sul (acima)

formulação dessa estratégia, decidiu-se combinar emprego. Para o economista André Tosi Furtado,
metas de investimentos em P&D com uma métri- do Departamento de Política Científica e Tecnológi-
ca capaz de calcular resultados da inovação. Em ca (DPCT) da Universidade Estadual de Campinas
2010, a Comissão Europeia organizou um painel de (Unicamp), essa nova família de índices poderia
alto nível formado por economistas, estatísticos e ser útil para analisar a evolução do desempenho de
empresários, com a ambição de medir a contribui- empresas ao longo do tempo, mas ele vê obstácu-
ção dos empreendimentos inovadores. Da mesma los para que atinja alguns de seus outros objetivos.
forma, buscavam-se parâmetros que mostrassem Um dos problemas está vinculado a comparações
resultados concretos e seus impactos na sociedade. internacionais. “Não me parece adequado relacio-
“Uma preocupação inicial da União Europeia era nar empresas que criam novos produtos, processos
tentar fugir dos chamados indicadores compostos. ou serviços no Brasil e em países europeus, imagi-
Índices com vários componentes costumam ser nando que elas têm perfis homogêneos. Provavel-
interessantes para sensibilizar e mobilizar a so- mente, há entendimentos diferentes sobre o que é
ciedade e produzir comparações internacionais, inovação no Brasil e na Dinamarca”, afirma. “In-
mas acabam sendo pouco úteis para orientar po- dicadores como a taxa de inovação podem não ser

D
líticas”, explica Hollanda. precisos para refletir o desempenho inovativo das
empresas. É verdade que existe um esforço para
epois de muita discussão, o indicador diferenciar produtos ou processos que são inova-
desenvolvido contemplou múltiplos dores apenas para as empresas dos que são para o
componentes, tais como patentes, mercado nacional ou para o mundo, mas isso não
empregos de alta qualificação e/ou foi contemplado no Dinnov”, diz.
empresas de crescimento rápido, ex- Furtado ressalta que o indicador da taxa de ino-
portação de produtos e serviços inten- vação nem sempre é sensível para fazer uma ca-
sivos em conhecimento, entre outros. racterização rigorosa. “Esse é o tipo de crítica feita
A metodologia recebeu críticas. Por ao Manual de Oslo. O novo indicador de produto
limitação na oferta de dados, vários da União Europeia evitou usar essa metodologia,
componentes continuaram se baseando em in- porém ela está presente nos indicadores Dinnov.”
sumos para a inovação e não em seus resultados Segundo ele, a razão de a União Europeia ter op-
concretos. “Da mesma forma, transformações ob- tado por um indicador composto para mensurar
servadas em períodos recentes, como a formação os resultados da inovação provavelmente foi a ne-
de cadeias globais de suprimento e a digitalização cessidade de considerar diferentes fenômenos
da economia, foram pouco consideradas nos in- envolvidos no complexo processo de inovação. n

PESQUISA FAPESP 322 | 69


TECNOLOGIA

SEJA
SIMPLES

70 | DEZEMBRO DE 2022
Desenvolvida em conjunto com os usuários,
inovação frugal torna-se mais conhecida
e leva a produtos eficientes e de baixo custo

Carlos Fioravanti | ILUSTRAÇÃO Alexandre Affonso

F
oi uma manhã torturante. Em agosto de 2021, um grupo de
engenheiros da Universidade do Sul de Santa Catarina (Uni-
Sul), no município de Palhoça, colecionava fracassos seguidos
nos testes de uma despolpadora de butiá (Butia spp.), o fruto
de uma palmeira usado na região para fazer doces, sucos e
geleias. À tarde, chegou Everaldo Rodrigues, representante dos
extrativistas do município catarinense de Laguna, que havia encomendado
o equipamento. Ele apontou o erro: estavam usando butiás que ainda não
estavam no ponto de serem despolpados. Com os maduros, que ele trouxe,
a máquina funcionou bem.
Elaborada com apoio do governo britânico e da Fundação de Amparo à
Pesquisa e Inovação do Estado de Santa Catarina (Fapesc), a despolpadora
é feita de peças recicladas – essencialmente, um tubo de inox comprado em
uma loja de sucata, munido de filtros com poros de diferentes tamanhos.
Em julho de 2022, após três anos de trabalho, o grupo da Unisul entregou
a versão que passou por todos os testes de avaliação, com um manual de
uso e manutenção, para os integrantes de uma associação comunitária de
Imbituba, no litoral catarinense.
“A despolpadora entrou em uso com uma eficiência de 68%, maior que
os 40% do equipamento que eles usavam anteriormente”, celebra a mate-
mática Ana Regina de Aguiar Dutra, coordenadora da equipe da UniSul.
“E pode ser usada também para seriguela e acerola, com tamanho e outras
características semelhantes.”
O equipamento é um exemplo de inovação frugal, definida como solu-
ções simples, eficientes e de baixo custo, que resolvem problemas locais de
pequenos produtores e consumidores de baixa renda. Também chamada
de inovação com restrição de recursos, de custo ou reversa, a abordagem
firmou-se com esse nome a partir de uma reportagem de abril de 2010 da
revista britânica The Economist sobre versões simplificadas de equipa-
mentos médicos ou de carros desenvolvidos na Índia para consumidores
de baixa renda.
“Conhecemos o conceito em 2018 em um congresso na UniSul, assis-
tindo a uma apresentação de uma pesquisadora do grupo de Alexander
Brem, especialista nessa área, da Universidade de Stuttgart, na Alemanha,
Ilustração sem escala com quem começamos a trabalhar em seguida”, conta Dutra. “Já fazíamos
da despolpadora de butiá inovações frugais e não sabíamos.”

PESQUISA FAPESP 322 | 71


Em 2017, a equipe da Unisul começou a prepa- uma patente”, comenta a engenheira química
rar um carrinho para catadores de papel e outros Anelise Leal Vieira Cubas, que participa do gru-
resíduos recicláveis entrevistando 20 homens e po de pesquisa. O objetivo não é a produção em
mulheres que coletavam esses materiais em uma série, mas que cada associação de produtores
praia de Palhoça. “Eles reclamavam que o carri- mande fazer seu próprio equipamento.
nho que usavam era pesado e difícil de manobrar”, Às vezes, no entanto, o grau de inovação pode
lembra-se Dutra. Construído em conjunto com valer uma solicitação de patente. Em um estu-
uma oficina próxima à universidade, o protótipo do publicado em setembro de 2021 na Revista
ficou pronto no ano seguinte. Em comparação com Eletrônica de Administração, a administradora
os modelos antes usados, tinha maior capacidade Bruna Hernandes Scarabelli, da Universidade
de carga, custava 60% menos para os usuários e Centro Universitário de Maringá (UniCesumar),
era mais leve e facilmente manobrável, de acordo com duas colegas da Universidade do Oeste de
com um artigo publicado em dezembro de 2020 Santa Catarina (Unoesc), da mesma cidade pa-
na Journal of Cleaner Production. No momento a ranaense, entrevistaram quatro fabricantes de
equipe da universidade trabalha em um protótipo novos modelos de ventiladores mecânicos para
para separar fibras e fios do pseudocaule de ba- pessoas com Covid-19. Três deles enviaram pe-
naneira, usados na produção de roupas e bolsas. didos de patentes ao Instituto Nacional de Pro-
Geralmente associados a mestrados ou douto- priedade Industrial (INPI) e pretendem vender
rados orientados pelos pesquisadores, os equipa- os equipamentos mesmo depois da pandemia.
mentos frugais projetados na UniSul por enquan- Os ventiladores mecânicos desenvolvidos no
to “não têm inovação suficiente que justifique início da pandemia de Covid-19 são conside-

Os diferentes tipos de inovação


Embora já conte com uma base teórica consistente, a inovação frugal ainda não consta entre os três tipos clássicos de inovação,
cuja definição pode variar de acordo com os produtos a que são aplicados e aos mercados a que se destinam. São eles:

INOVAÇÃO RADICAL: resulta de INOVAÇÃO DISRUPTIVA: consumidores dependiam para assistir


um avanço tecnológico que transforma uma tecnologia, a filmes, séries e documentários sem
transforma os negócios de uma produto ou serviço em uma inserção comercial. Outro exemplo
empresa e atrai novos consumidores. solução melhor, mais simples, mais é o Spotify, site de músicas e vídeos que
É o caso do iPhone, da Apple, que mudou acessível ou de custo menor. Atinge muitos atendeu os consumidores insatisfeitos com
o mercado e tornou os smartphones consumidores ao mesmo tempo, com os CDs, que vinham com poucas músicas.
mais populares. resultados de alto impacto. É o caso da
Netflix, que oferece conteúdo em formato As inovações podem ser
INOVAÇÃO INCREMENTAL: de vídeo usando a tecnologia de também: de produto, inicialmente
consiste em pequenas transmissão via internet (streaming) disruptivo e depois incremental,
melhorias ou atualizações e cobra assinatura mensal. Em pouco como a televisão, com suas diferentes
feitas em em produtos, serviços tempo, a empresa ocupou o espaço de tecnologias; de serviço, como a
ou processos de produção, geralmente locadoras de DVD, das quais os encomenda e entrega de comida por
sem gerar grandes impactos. aplicativo; de métodos de produção,
Um bom exemplo é o Gmail, em busca de menor impacto ambiental,
do Google, criado para enviar como os cosméticos que suprimem
e-mails de forma rápida, que os testes com animais; e de modelos
progressivamente incorporou de negócio, como a Amazon, que
novas possibilidades de uso, intermedeia o contato entre vendedores
como chat e chamadas e compradores, e os bancos virtuais,
por vídeo em tempo real. que dispensam agências físicas.
Outro exemplo é a Coca-Cola, Outra categoria, a inovação aberta,
que manteve o interesse aproxima-se da frugal por se valer
dos consumidores lançando de recursos externos à empresa e
novos sabores. promover a colaboração com instituições
de pesquisa, startups, fornecedores
e clientes, além de outras empresas.
Garrafas de Coca-Cola
do início de 1900 à década de Já a fechada se faz apenas dentro
1980: inovação incremental das empresas.

1
72 | DEZEMBRO DE 2022
Painel solar em
sala de aula na Terra
Indígena Panará

rados inovação frugal porque atendiam a uma de uma solução com a casca de angico-vermelho
necessidade urgente por equipamentos desse (Anadenanthera colubrina) para curtir o couro de
tipo, foram elaborados pelas empresas em no tilápia-do-nilo (Oreochromis nicoticus), usado na
máximo dois meses, em conjunto com grupos de produção de bolsas e calçados.
universidades e profissionais da saúde, e cons- Em um estudo publicado em maio de 2021 na
truídos com peças de custo menor que as dos revista Cambridge Journal of Regions, Economy
modelos convencionais. and Society, o geógrafo econômico alemão Hans-
“Por atacar problemas locais, a inovação fru- -Christian Busch, da Universidade de Colônia,
gal pode ser bastante apropriada para países Alemanha, tratou de inovações frugais aplica-
como o Brasil, com sistemas de inovação in- das à energia solar no Brasil. Um dos trabalhos
completos e muitas dificuldades para criar tec- examinados consiste no desenvolvimento de um
nologias próprias”, diz o economista Francisco aquecedor de água solar de baixo custo (ASBC),
José Peixoto Rosário, da Universidade Federal concebido nos anos 1990 pelo engenheiro elé-
de Alagoas (Ufal). trico alemão Augustin Woelz (1942-2022) no

R
Centro de Inovação, Empreendedorismo e Tec-
osário é um dos autores de um es- nologia (Cietec) da Universidade de São Paulo
tudo publicado em janeiro na Di- (USP). Desde 2001, o equipamento é promovido
versitas Journal, que examinou os pela Sociedade do Sol, uma organização não go-
28 projetos de empresas aprovados vernamental (ONG) sediada na capital paulista.
do Programa Centelha em Alagoas. Visando à redução do gasto com a energia do
O programa incentiva o empreen- chuveiro elétrico, o ASBC pode ser montado e ins-
dedorismo e é financiado pelo governo federal talado pelo próprio usuário com as orientações de
e por fundações de apoio à pesquisa de cada es- um manual fornecido pela ONG, peças compradas
tado. No caso analisado pelo pesquisador, uma em lojas de material de construção (caixa-d’água
em cada quatro empresas seguia os princípios de 310 litros, tubos plásticos, misturador, conexões
FOTOS 1 WIKIMEDIA COMMONS 2 MARCELO MARTINS / ISA

da inovação frugal, ainda que seus diretores a hidráulicas e chuveiro) e quatro painéis solares.
desconhecessem conceitualmente. Caso o usuário prefira chamar um instalador es-
É o caso da Apícola Fernão Velho, que, com pecializado, o custo total das peças, montagem e
pesquisadores da Ufal, aprimorou os métodos instalação é de cerca de R$ 1.800,00, a metade do
de coleta e de refino da própolis vermelha, pro- preço dos modelos comerciais, segundo o físico
duzida por abelhas a partir da resina de uma Roberto Matajs, da Sociedade do Sol.
árvore do manguezal alagoano conhecida como “Não nos importamos se copiarem nossa pro-
rabo-de-bugio (Dalbergia ecastophyllum). Por posta”, diz Matajs. “O que queremos é que o
sua vez, artesãos integrados a um arranjo pro- uso dessa tecnologia avance.” Segundo ele, pelo
dutivo local que inclui 14 municípios alagoanos menos 2 mil aparelhos desse tipo já foram ins-
da foz do rio São Francisco aperfeiçoaram o uso talados no país.

PESQUISA FAPESP 322 | 73


Dois enfoques para inovação
Abordagens valorizam mercados locais ou globais

FRUGAL CONVENCIONAL

Produto Orientado por necessidades e preferências Orientado para mercados e preferências


locais, com funções otimizadas, simples e globais, tendência à complexidade,
fácil de usar diferente dos concorrentes

Estratégia Foco em contextos emergentes Foco em conhecimento de mercados

Equipe Colaboração com parceiros locais e Autossuficiente, de alta qualificação e


externos, apoio de pesquisa acadêmica multidisciplinar

FONTE BREM, A. ET AL. JOURNAL OF CLEANER PRODUCTION. 2020

Busch também examinou a instalação de 108 lavar compacta, para pequenas cargas diárias,
sistemas fotovoltaicos em escolas, postos de saú- como alternativa aos modelos grandes e caros.
de, casas comunitárias e pontos de acesso de in- A minilavadora “foi um sucesso imediato, e
ternet em 93 comunidades do território indígena um produto similar baseado nela já foi comer-
do Xingu, em Mato Grosso, e na Terra Indígena cializado em todo o mundo”, contam Marco
Panará, em Mato Grosso e no Pará. Financiados Zeschky, Bastian Widenmayer e Oliver Gas-
por instituições e empresas nacionais e interna- smann, da Universidade de St. Gallen, Suíça,
cionais, com apoio técnico dos especialistas do em artigo publicado em dezembro de 2015 na
Instituto de Energia e Ambiente (IEE) da USP, revista Research-Technology Management. Eles
“os painéis solares são instalados de acordo com examinaram uma máquina de ultrassom por-
as prioridades estabelecidas pelas próprias co- tátil da subsidiária chinesa da General Electric
munidades e permitem uma redução de até 80% para uso em áreas rurais e o minicarro Nano,
no consumo do diesel usado nos geradores elétri- lançado em 2008 pela fabricante indiana Tata.
cos”, diz o engenheiro-agrônomo Marcelo Mar- Após adaptações e o cumprimento de normas
tins, analista do Instituto Socioambiental (ISA), de segurança, esses produtos aos poucos con-
que trabalha na região do Xingu desde 2004. quistaram outros países.
“A inovação frugal pode ser considerada um “Na Índia, a inovação frugal ainda está liga-
suporte para transições energéticas, por meio da ao termo jugaad, semelhante à gambiarra no
da redução da complexidade do processo e do Brasil, uma solução rápida com baixa qualidade
resultado e de estratégias de disseminação que e sem mentalidade de sustentabilidade”, co-
possam ser ampliadas”, observou Busch em seu menta Brem, de Stuttgart, a Pesquisa FAPESP.
estudo, com base nessas experiências. “Essa Seus artigos detalham uma metodologia para
perspectiva amplia o foco orientado para o custo desenvolver produtos com esse enfoque e as-
da inovação frugal e enfatiza o número reduzi- sim evitar que ganhem a designação de frugais
do de componentes que compõem o núcleo das apenas depois de prontos (ver tabela).
soluções frugais em transições energéticas.” No Brasil, a simplicidade, uma característica

E
essencial dessa abordagem, ainda causa admi-
mbora recente no Brasil, o conceito ração. “Quando digo aos inovadores que estão
de frugalidade tecnológica já fez fazendo inovação, eles não acreditam, porque
história na Índia e na China. Para sempre se pensa em tecnologia de alto padrão,
ampliar as vendas e atingir também não em soluções simples”, diz Rosário. n
os consumidores de baixa renda,
empresas locais ou subsidiárias
de empresas multinacionais instaladas nesses Artigos científicos
países criaram versões simplificadas de seus BREM, A. et al. How to design and construct an innovative frugal
equipamentos, que depois conquistaram os con- product? An empirical examination of a frugal new product deve-
sumidores da Europa e da América do Norte. lopment process. Journal of Cleaner Production. v. 275, 122232, p.
1-15. 1° dez. 2020.
Em 1992 a empresa chinesa Galanz desenvol- SCARABELLI, B. H. et al. Inovação frugal: Estudos de caso sobre a
veu um forno micro-ondas pequeno e de baixo criação de ventiladores mecânicos para a pandemia de Covid-19. REAd
custo, para funcionar em cozinhas apertadas. – Revista Eletrônica de Administração. v. 27, n. 3, p. 870-95. 2021.
BUSCH, H-C. Frugal innovation in energy transitions: Insights from
Em 1996, a fabricante de eletrodomésticos Haier, solar energy cases in Brazil. Cambridge Journal of Regions, Economy
também da China, projetou uma máquina de and Society. v. 14, p. 321-40. 17 mai. 2021.

74 | DEZEMBRO DE 2022
CIÊNCIA DA COMPUTAÇÃO

O LEGADO DO PATINHO FEIO


Primeiro computador brasileiro foi desenvolvido há 50 anos na Escola
Politécnica da USP e mudou o ensino e a indústria nacional de tecnologia

Domingos Zaparolli

O
Patinho Feio, o primeiro computador tifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
brasileiro, nasceu em 1972 como o (PUC-RJ) por encomenda da Marinha do Brasil.
trabalho final da disciplina Arqui- O G-10, por sua vez, foi o protótipo para o pri-
tetura de Computadores da pós-gra- meiro computador comercial do país, o MC 500,
LÉO RAMOS CHAVES / REVISTA PESQUISA FAPESP

duação em engenharia elétrica do lançado pela Cobra – Computadores e Sistemas


então Departamento de Engenharia Brasileiros, empresa estatal criada em 1974 com
de Eletricidade da Escola Politécnica o objetivo de desenvolver tecnologia nacional
da Universidade de São Paulo (Poli- de computação.
-USP). A máquina proporcionou um Para viabilizar o recebimento de recursos pela
Detalhe do painel extenso legado para o ensino e a indústria de Escola Politécnica para a construção do G-10, foi
do computador,
computação no país. Ela serviu de base para o instituída a Fundação para o Desenvolvimento
que pesava 100 quilos
e tinha 4 kilobytes desenvolvimento de outro computador, o G-10, Tecnológico da Engenharia (FDTE), uma das
de memória construído em parceria da Poli-USP com a Pon- entidades pioneiras no país com a missão de in-

PESQUISA FAPESP 322 | 75


tegrar universidades públicas e iniciativa priva- Naquela época, os profissionais formados nos
da em esforços de inovação e desenvolvimento cursos de engenharia quase não tinham pers-
tecnológico. “O Patinho Feio, construído com pectivas de emprego na área. “Nosso mercado
recursos do orçamento da Poli, não é só histó- de trabalho se restringia a vagas de represen-
ria. É um projeto que teve desdobramentos que tante comercial de empresas de equipamentos
reverberam até hoje no desenvolvimento tec- eletrônicos, que vendiam os poucos computa-
nológico do país”, diz o engenheiro eletricista dores disponíveis no país. Uma pequena par-
José Roberto Castilho Piqueira, ex-diretor da cela conseguia colocação como analista de sis-
Poli-USP e atual diretor de operações da FDTE. temas”, recorda a engenheira eletricista Edith
Em 22 de setembro deste ano, a unidade acadê- Ranzini, formada em 1969 e uma das primeiras
mica da USP fez um evento comemorativo dos integrantes do LSD.
50 anos do Patinho Feio e da FDTE. Em 1970, o professor da Poli Antônio Hélio
Uma caixa metálica de 100 quilos com 1 metro Guerra Vieira, que mais tarde se tornou presi-
(m) de altura, 1 m de comprimento e 80 centí- dente da FAPESP (1979-1985) e reitor da USP
metros de largura (ver Pesquisa FAPESP no 76), (1982-1986), idealizou uma reforma conhecida
o Patinho Feio possuía 450 pastilhas de circui- como “Currículo 70”, que separou a graduação
tos integrados, com cerca de 3 mil blocos lógicos, em engenharia elétrica na Escola Politécnica
distribuídos em 45 placas de circuito impresso. em duas frentes: uma com ênfase em telecomu-
Foi projetado com apenas 4 kilobytes (kB) de me- nicações e outra em sistemas digitais. Ocorre
mória, valor insignificante hoje, quando as me- que não existiam professores capacitados para
mórias de smartphones que cabem no bolso são o curso de Sistemas Digitais. Era preciso formar
contadas em dezenas de gigabytes (GB). Mesmo e, para isso, foram introduzidas no programa de
naquela época, os 4 kB da máquina uspiana não pós-graduação em engenharia elétrica várias dis-
eram significativos. Alguns modelos de computa- ciplinas na área de computação e eletrônica, que
dor tinham capacidade de armazenamento muito contaram com docentes estrangeiros. Um deles
maior, entre eles o IBM System 360, a família de era o norte-americano Glen Langdon Jr. (1936-
mainframes – sistemas computacionais utilizados 2014), que já havia trabalhado na IBM Brasil. Foi Edith Ranzini, uma
para o processamento de grandes volumes de da- ele que propôs, em 1971, à turma pioneira de 18 das alunas da
pós-graduação da USP
dos – empregada na operação Apollo que levou o alunos da disciplina Arquitetura de Computado- que participaram da
homem à Lua em 1969. No início dos anos 1970, já res, construir um computador como projeto de empreitada, em frente ao

P
havia versões dele com memória de centenas de kB. conclusão do curso de pós-graduação. computador pioneiro

1
ara entender a importância do Patinho
Feio para o Brasil é preciso contex-
tualizar o seu desenvolvimento. Antes
dele, uma única experiência na área
de computação havia sido promovida
com esforços brasileiros. Em 1961, es-
tudantes de engenharia eletrônica do
Instituto Tecnológico de Aeronáutica
(ITA), em São José dos Campos (SP),
construíram o Zezinho, um computador muito
simples, que tinha finalidade exclusivamente
didática e, na prática, não executava tarefas de
computação (ver Pesquisa FAPESP no 101). FOTOS 1 ARQUIVO PESSOAL 2 E 3 MIGUEL BOYAYAN / REVISTA PESQUISA FAPESP

Passados sete anos, em 1968, ainda não exis-


tiam cursos de graduação ou pós-graduação em
computação no Brasil, quando o Departamento
de Engenharia de Eletricidade da Poli-USP criou
o Laboratório de Sistemas Digitais (LSD) – hoje
Departamento de Engenharia de Computação e
Sistemas Digitais (PCS) – para abrigar um mode-
lo IBM 1620, que estava para ser desativado – o
aparelho fora doado pelo Centro de Computação
Eletrônica da USP. O objetivo do grupo era que
o equipamento fosse estudado em procedimen-
tos de engenharia reversa, ou seja, desmontado,
para que se entendesse como funcionava, e, em
seguida, remontado.

76 | DEZEMBRO DE 2022
2 3

Visão interna do Era um grande desafio. Os alunos da USP ti- os desafios da computação”, testemunha Jaime
equipamento: 450 veram que projetar e construir o hardware, os Simão Sichman, formado na Poli nos anos 1980
pastilhas de circuitos
integrados distribuídos
softwares e as interfaces com os periféricos, isto e atual chefe do PCS da escola.
em 45 placas de é, os dispositivos que auxiliam o uso da máqui- O legado para a indústria foi igualmente im-
circuito impresso na. “Nada disso era produzido no Brasil naquela portante. Edson Fregni, Celso Ikeda e Josef Ma-
época. Tivemos que aprender a fazer cada item”, nasterski, que faziam parte da turma de alunos

O
recorda-se Ranzini. da Poli, fundaram em 1975 a Scopus Tecnologia,
a primeira empresa brasileira de periféricos, que,
nome Patinho Feio surgiu de uma nos anos 1980, lançou a linha de microcomputa-
brincadeira do então mestrando Pau- dores Nexus. A Itautec, fabricante de equipamen-
lo Wanderlei Patullo. A Universidade tos de automação bancária, também contou em
Estadual de Campinas (Unicamp) seus quadros com egressos da turma e manteve,
havia anunciado um convênio com durante anos, projetos de desenvolvimento tec-
a Marinha do Brasil para construir nológico com suporte do LSD da Poli.
o que seria o primeiro computador A instituição da FDTE só não é anterior à Fun-
brasileiro, o Cisne Branco. “Dizíamos dação Vanzolini, ligada ao Departamento de En-
que estávamos construindo o Patinho genharia de Produção da Poli. “As fundações da
Feio, mas que ele seria o primeiro a funcionar. Poli são instituições que permitem aos professo-
Por fim, foi o único dos dois a ser concretizado”, res e alunos de engenharia manter um contato
contou Patullo na cerimônia dos 50 anos. próximo com as necessidades do setor produ-
A inauguração do Patinho Feio ocorreu em tivo, com grande benefício para os dois lados”,
24 de julho de 1972 e teve as presenças do go- resume Piqueira.
vernador de São Paulo à época, Laudo Natel, do Entre os principais trabalhos desenvolvidos
então reitor da USP, Miguel Reale, e do bispo ao longo da história da FDTE estão os projetos
dom Ernesto de Paula, que benzeu a máquina. O de análise de segurança do Metrô de São Pau-
detalhe é que não houve uma demonstração do lo, o sistema de operação e controle de trens da
computador funcionando. Um fotógrafo afoito Ferrovia Paulista (Fepasa) – atual Companhia
pisou no fio e desligou o equipamento, que de- Paulista de Trens Metropolitanos, CPTM – e
morou para ser reiniciado. uma série de projetos de automação bancária e
Como relatam seus colegas da Poli, Guerra industrial. A FDTE mantém um convênio com a
Vieira, hoje com 92 anos, sempre que instigado, Agência Internacional de Energia Atômica (Aiea)
conta que o principal legado do Patinho Feio foi para simulações de risco em atividades de usi-
a formação de uma equipe de professores qua- nas nucleares e deu suporte à implementação
lificados que disseminaram o ensino de com- de sistemas de segurança em redes elétricas e
putação no país. “Foi um aprendizado que nós de telefonia.
levamos para as salas de aula. Ensinamos o que “O Patinho Feio foi um investimento público
vivemos, não apenas o que tínhamos lido”, re- exemplar”, constata Piqueira. “Custou o equiva-
ferenda Ranzini. “Foi um grande privilégio ter lente ao necessário para a compra de um carro
aula com professores que participaram desse básico em 1972 e gerou muitos frutos diretos e
projeto. Sentíamos que eles conheciam de fato indiretos.” n

PESQUISA FAPESP 322 | 77


ESPORTE

DA VÁRZEA
ÀS ARENAS

78 | DEZEMBRO DE 2022
Em meio século, estudos sobre futebol
nas ciências humanas passaram de área menor
a campo estruturado e multidisciplinar

Diego Viana

N
o começo da década de 1980, quando Heloisa Reis iniciava
sua carreira de jogadora de futebol no Guarani Futebol
Clube, em Campinas, um fato recorrente atiçou sua curio-
sidade. A cada semana, um público majoritariamente
masculino saía de casa para acompanhar as partidas, mas,
em vez de torcer e incentivar as jogadoras que defendiam
as cores de seu time, dedicava seu tempo a lançar impropérios e insultos
contra as atletas.
Além de insultada, ela se sentia intrigada: o que é esse impulso que leva
pessoas à arquibancada no domingo, não pela alegria do esporte, mas para
agredir? Hoje professora titular de educação física na Universidade Esta-
dual de Campinas (Unicamp), a ex-jogadora relata que a pergunta está na
base de muitas pesquisas que realizou na carreira acadêmica. “Com as en-
trevistas que fiz para o doutorado, comecei a entender melhor a violência
que marcou a minha vida e impediu tantas meninas de seguirem jogando.”
A experiência de Reis ilustra como o esporte bretão é um campo de pes-
quisa privilegiado das relações sociais na nação que já foi chamada de “país
do futebol” e “pátria de chuteiras”. Praticado por profissionais e amadores
em todo o país, em estádios para dezenas de milhares de espectadores ou
campos improvisados de terra na chamada “várzea”, capaz de mobilizar
multidões em festas coloridas ou confrontos violentos, transmitido ao vivo
pela televisão e internet, o futebol está por toda parte.
“A questão de base é se o futebol deve ser visto como espelho ou como
MAURÍCIO RUMMENS / FOTOARENA

vetor da sociedade”, resume o historiador Bernardo Buarque de Hollanda,


do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do
Brasil, da Fundação Getulio Vargas (CPDOC-FGV). “A diferença é que o
espelho apenas reflete, é uma relação mecânica. O futebol também é algo
que engendra a sociedade, é produtor de relações sociais e deve ser exa-
minado por esse prisma.”

PESQUISA FAPESP 322 | 79


Registro do estádio
localizado em Itaquera,
na cidade de São Paulo,
meses antes de sediar
o jogo de abertura da
Copa do Mundo de 2014

Apesar de entranhado na cultura brasileira, o 1980 por Ricardo Benzaquen de Araújo (1952-2017)
futebol só passou a ser estudado com regularidade na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ),
nas ciências humanas a partir do final da década e as coletâneas Universo do futebol: Esporte e socie-
de 1970, conforme apontam Sérgio Settani Giglio, dade brasileira (Pinakotheke, 1982), organizada pelo
coordenador do Grupo de Estudos e Pesquisas em antropólogo Roberto DaMatta, e Futebol e cultura,
Esporte e Humanidades da Unicamp, e o economis- organizada pelos historiadores José Carlos Sebe
ta Marcelo Weishaupt Proni, da mesma universi- Bom Meihy e José Sebastião Witter.
dade, na introdução do livro O futebol nas ciências “Naquele momento, anos 1980, os estudos pas-
humanas no Brasil (2020, Editora Unicamp). Até saram a enfatizar a especificidade do futebol como
então, o esporte favorito dos brasileiros era consi- fenômeno social. O futebol se mostra uma fonte de
derado um tema menor, abordado sobretudo em en- identidade regional e nacional, como elemento de
saios de jornalistas, como Mário Filho (1908-1966), criatividade”, afirma o filósofo Felipe Paes Lopes, da
autor de O negro no futebol brasileiro (Pongetti, Universidade de Sorocaba (Uniso), que desenvolve
1947), e estrangeiros, como o filósofo alemão Anatol pesquisa sobre o papel social e político das torcidas
Rosenfeld (1912-1973), autor dos artigos reunidos uniformizadas. “Na obra por ele organizada, Da-
em Negro, futebol e macumba (Perspectiva, 2006). Matta busca entender como o futebol permite ao

O
brasileiro vivenciar uma experiência de democra-
estudo pioneiro sobre futebol foi cia e justiça social, diferente das outras esferas da

FOTOS 1 PAULO FRIDMAN / CORBIS VIA GETTY IMAGES 2 TIM CLAYTON / CORBIS VIA GETTY IMAGES
produzido no mesmo período sociedade, em que valem as relações clientelistas.”
em que Heloisa Reis disputava “Comparando com essas pessoas que, nos anos
suas primeiras partidas amado- 1980, quase tinham de pedir desculpas por querer
ras em Campinas. E, apesar de investigar o tema, hoje estamos em um lugar inima-
o futebol ser considerado então ginável. O livro que organizamos revela o amadure-
um ambiente quase exclusivamente masculino, sua cimento das pesquisas no Brasil”, comenta Giglio.
autoria também é de uma mulher: a antropóloga “Reunimos cerca de 50 autores que construíram
Simoni Lahud Guedes (1950-2019), que defendeu essa trajetória, constituindo grupos de pesquisa
em 1977 a dissertação “O futebol brasileiro – Ins- e publicando intensamente. E mesmo assim ficou
tituição zero”, pelo Museu Nacional, no Rio de muita gente de fora”, diz. O pesquisador é um dos
Janeiro. Uma publicação póstuma do texto está criadores da organização não governamental Ins-
programada pela editora Ludopédio. tituto Ludopédio, de divulgação da produção aca-
Na esteira de Guedes, emergiu a primeira ge- dêmica em torno do futebol.
ração de sociólogos, antropólogos e historiadores A década de 1990, em particular, vivenciou uma
que olharam com atenção para o tema no Brasil. significativa expansão das pesquisas. “Várias abor-
Destacam-se o livro História política do futebol bra- dagens teóricas foram testadas, metodologias de
sileiro (Brasiliense, 1981), de Joel Rufino dos Santos análise científica foram aplicadas, interpretações
(1941-2015), a dissertação “Os gênios da pelota: Um diferentes ganharam densidade, congressos abri-
estudo do futebol como profissão”, defendida em ram espaço para novos pesquisadores. Mas a pro-

80 | DEZEMBRO DE 2022
dução acadêmica era ainda incipiente”, escrevem que via nos estádios um espaço propício à catarse
Giglio e Proni na apresentação do livro. coletiva, como contraponto ao modo de vida rotinei-
Na primeira década deste século, o financia- ro e controlado das sociedades desenvolvidas mo-
mento às pesquisas sobre o tema ganhou força, dernas. “Essa catarse explica a violência simbólica
sobretudo após a escolha do Brasil como sede da entre as torcidas, que se insultam durante os jogos.
Copa do Mundo de 2014 e do Rio de Janeiro como Lendo Elias, reconheci a sensação de expurgar as
sede dos Jogos Olímpicos de 2016, constituindo o frustrações que havia nos homens que me ofendiam
que ficou conhecido como “década do esporte”. A quando eu jogava”, explica Reis.

L
própria Copa do Mundo, que suscitou protestos
nas ruas e trouxe uma grande decepção para o tor- opes associa o interesse pelo futebol nas
cedor brasileiro, inspirou novas levas de pesquisa. ciências humanas aos conflitos sociais
“A Copa de 2014 talvez tenha provocado uma ocorridos na Europa a partir do final da
nova inflexão nos estudos sobre o futebol brasilei- década de 1960. Episódios traumáticos da
ro em alguns aspectos, mas em outros não”, afir- década de 1980 reforçaram a tendência.
mam os organizadores da obra. “Mais de 30 anos Brigas de torcedores, por lá conhecidos
depois, o futebol é debatido frequentemente nas como hooligans, suscitaram questões sobre o papel
universidades brasileiras, e nenhum integrante da do esporte na sociedade. Em 1989, a tragédia de
academia ousaria dizer que esse não é um tema de Hillsborough, em que o público de uma partida ficou
estudo para ser levado a sério.” preso em um estádio superlotado, causando a morte
Não foi só no Brasil que o futebol demorou a se de 97 pessoas em Sheffield, na Inglaterra, foi um
Em 2010, no Maracanã, consolidar como campo de estudos nas ciências hu- divisor de águas, evidenciando que o futebol deveria
torcedores do Fluminense manas. A maior referência estrangeira citada pelos ser objeto de políticas públicas efetivas. Para tanto,
lançam talco para
receber a equipe, em
estudiosos do tema é a chamada Escola de Leicester, o esporte precisava ser estudado cuidadosamente.
referência ao pó de arroz. que se desenvolveu a partir da década de 1970, cujo Uma resposta à tragédia de Hillsborough foi
O cosmético é símbolo do nome mais importante é o do sociólogo britânico Eric a elaboração do relatório Taylor, no ano seguin-
time carioca desde 1914, Dunning (1936-2019), autor de livros sobre o com- te, recomendando, entre outras medidas, que as
quando o atleta Carlos
Alberto foi ironizado pela
portamento dos torcedores e a violência nos estádios. partidas tivessem apenas espectadores sentados.
torcida adversária por No início da carreira, Dunning foi supervisionado Na ausência de espaços para torcedores em pé, os
usá-lo para clarear a pele pelo sociólogo alemão Norbert Elias (1897-1990), estádios encolheram e os ingressos encareceram.
2

PESQUISA FAPESP 322 | 81


O processo coincidiu com o período em que a liga equivocada entre os chamados hooligans e as tor-
inglesa de futebol visava modernizar-se para am- cidas organizadas. “Mas esses grupos de homens,
pliar suas receitas, na concorrência com ligas como que buscam briga porque sentem prazer quando se
a espanhola e a alemã. Em 1992, surgiu a Premier colocam em situação de perigo, estão tanto dentro
League, o campeonato inglês que atualmente é o quanto fora das torcidas”, explica.
mais valioso do mundo, movimentando £ 7,6 bi- Por isso, em sua avaliação, soluções como o uso
lhões (cerca de R$ 45,2 bilhões) por ano, segundo de câmeras nos estádios são insuficientes, porque os
a consultoria Ernst & Young. grupos se encontram, por exemplo, nos trajetos dos
Essas reformas contribuíram para mudar o perfil jogos. Reis considera que cabe ao Estado implemen-
das torcidas presentes aos estádios, em processo tar uma política que envolva o monitoramento dos
conhecido como gentrificação (em que espaços grupos violentos e policiamento preventivo, não re-
inicialmente ocupados por populações de renda pressivo. “A política pública deve vigiá-los e dificultar
mais baixa passam a servir a grupos de renda mais sua ação. E, se a vigilância não for suficiente, a polícia
alta) e “arenização”: são chamados de “arenas” deve ser capaz de intervir rapidamente”, resume.

R
aqueles estádios que oferecem mais conforto, com
ingressos de valores elevados. Esse movimento eis foi uma das pesquisadoras à frente
contribuiu para a aceleração de outro processo da criação da Comissão Nacional de
iniciado nos anos 1980: a expansão do futebol co- Prevenção da Violência para a Segu-
mo mercado que movimenta centenas de bilhões rança dos Espetáculos Esportivos, ins-
de dólares. Foi naquela década que as redes de TV talada pelo governo federal em 2004
passaram a transmitir regularmente as partidas e e conhecida como Comissão Paz no
as equipes começaram a estampar as marcas de Esporte. Em 2006, a comissão, coordenada por
patrocinadores em suas camisas. Marco Aurélio Klein, professor de marketing es-
“A preocupação com a violência e o impulso de portivo da FGV-SP, publicou o relatório “Preservar
arenização estão completamente vinculados. Só o espetáculo, garantindo a segurança e o direito à
não podemos ter certeza, no caso do Brasil, de qual cidadania”, que propôs medidas para evitar con-
deles veio primeiro”, afirma Reis, que começou a frontos durante partidas de futebol. Naquele mesmo
trabalhar em sua tese doutoral em 1995, ano daque- ano, Reis promoveu reuniões entre integrantes do Policiais tentam conter
invasão de torcedores no
la que ficaria conhecida como a “batalha campal do Ministério dos Esportes e representantes de torcidas
gramado do Pacaembu,
Pacaembu”, conflito entre torcedores de Palmeiras organizadas. Um resultado do processo foi a criação durante jogo entre
e São Paulo que resultou em uma morte e mais de da Associação Nacional de Torcidas Organizadas Palmeiras e São Paulo
100 feridos. Episódios como esse serviram de incen- (Anatorg). “Desde então, a Anatorg tem desem- pela Supercopa de
Juniores, em agosto de
tivo nas universidades para o estudo dos hábitos de penhado um papel fundamental na pacificação da
1995 (à esq.). Violência
torcida, buscando modos de evitar que a violência violência ligada ao futebol no Brasil”, afirma Reis. registrada uma década
simbólica dos insultos gritados nas arquibancadas A geração mais recente de pesquisadores incorpo- antes durante partida
descambasse para agressões físicas. rou o entendimento de que o futebol é um vetor da entre Juventus e Liverpool
em final da Eurocopa
A professora da Unicamp argumenta que a vio- vida social brasileira, diz Hollanda. Esse entendimen-
no estádio Heysel,
lência no futebol é um problema com múltiplas di- to produziu uma onda de estudos sobre as dinâmicas em Bruxelas, Bélgica
mensões. Para ela, há no Brasil uma identificação sociais que se manifestam em jogos, sobretudo entre (abaixo)

1 2

82 | DEZEMBRO DE 2022
Camisa 10 da seleção
feminina, a jogadora
Marta passa instruções
para suas companheiras
durante partida contra
a Argentina, no estádio
Exploria, em Orlando,
Flórida, em 2021

as torcidas. “Mesmo depois que passou a década do a expansão do futebol feminino, proibido no Brasil
esporte, o interesse por estudá-lo continuou se ex- entre 1941 e 1979. A participação no Programa de
pandindo. Hoje, orientamos muitas pesquisas sobre Modernização da Gestão e de Responsabilidade
gênero, raça, sexualidade e temas semelhantes no Fiscal do Futebol Brasileiro (Profut) exige, desde
futebol”, afirma o pesquisador da FGV. 2015, que as agremiações invistam em equipes fe-

O
mininas, o que levou ao fortalecimento de torneios
s clubes também passaram a regionais e nacionais. Campeonatos como a Copa
reconhecer seu papel social e Libertadores da América têm transmissão pela
adotaram políticas para reinter- televisão, e a seleção nacional já produziu ídolos
pretar sua história. Hollanda ci- populares como Marta e Formiga.
ta iniciativas como a do Esporte A violência simbólica que Reis enfrentou quan-
Clube Bahia, que associa suas do jogava pelo Guarani não desapareceu. O espaço
três cores (azul, vermelha e branca) ao arco-íris das mulheres no futebol continua limitado, aler-
FOTOS 1 ROBERTODUQUE / FOLHAPRESS 2 LIVERPOOL ECHO / MIRRORPIX / GETTY IMAGES   3 ALEXMENENDEZ / GETTY IMAGES

da diversidade sexual, a da Associação Atlética ta a professora da Unicamp. Nas torcidas orga-


Ponte Preta, que busca ser reconhecida como nizadas, elas ainda são minoria e, embora tenha
primeira agremiação a incluir atletas negros, e a havido uma expansão na última década, as ativi-
do Fluminense Futebol Clube, que visa reverter sua dades atribuídas a mulheres seguem subalternas.
imagem de clube elitista por meio de uma websérie Assim como as praticantes na década de 1980,
a partir de um torcedor pioneiro, o capoeirista atualmente árbitras e auxiliares sofrem agressões
Chico Guanabara, que era negro. verbais misóginas. A legislação que visa promover
Essas iniciativas se beneficiam de investigações a profissionalização das jogadoras, como a Lei n°
acadêmicas, como as do sociólogo José Jairo Vieira, 12.395/2011, atualização da Lei Pelé que obrigou
da UFRJ, autor do livro As relações étnico-raciais os clubes a registrar atletas acima dos 20 anos, é
e o futebol do Rio de Janeiro: Mitos, discriminação sistematicamente violada, lamenta.
e mobilidade social (Mauad, 2018). A pesquisa de Ainda assim, a pesquisadora e ex-jogadora afir-
Vieira lança luz sobre fenômenos racistas que por ma que a condição das mulheres melhorou subs-
décadas permaneceram invisíveis ou ignorados. Em tancialmente tanto dentro de campo quanto nas
2014, com a Copa do Mundo e em reação à recor- arquibancadas, a despeito de ocasionais retrocessos
rência de casos de injúria racial contra jogadores e da persistência do registro de violência de gênero
como Tinga, Arouca, Aranha e Márcio Chagas, o nos estádios. “Moro perto do mar e me emociono
administrador gaúcho Marcelo Carvalho criou o muito vendo tantas meninas pequenas praticando
Observatório da Discriminação Racial no Futebol, futebol na areia, às vezes com o pai e a mãe. Para
que produz relatórios anuais sobre a realidade ob- mim, jogar era um desafio e uma luta. Para elas,
servada nos estádios brasileiros. Em 2021, foram é um hábito perfeitamente normal”, comenta. n
registrados 158 casos de racismo.
Os clubes também estão tendo que se adaptar à Os livros e os artigos científicos consultados para esta reportagem
mudança de cultura e de legislação para promover estão listados na versão on-line.

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LITERATURA

MÁRIO
DE ANDRADE
SEM
84 | DEZEMBRO DE 2022
PUDOR
Componente erótico da obra do modernista permanece
cercado de tabu e pouco estudado, dizem especialistas

Ana Paula Orlandi

Ele deitou, exagerando a fadiga, sentindo gosto


em obedecer. Sentei na borda da cama, como
que pra tomar conta dele, e olhei o meu amigo.
Ele tinha o rosto iluminado por uma frincha
de janela vespertina. Estava tão lindo que o

O
contemplei embevecido. Ele principiou lento, trecho ao lado faz parte do conto
meio menino, reafirmando projetos. […] Com “Frederico Paciência”, escrito ao
os lábios se movendo rubros, naquele ondular longo de quase duas décadas pelo
autor modernista Mário de Andrade
de fala propositalmente fatigada. Eu olhava só. (1893-1945) e publicado pela primei-
Frederico Paciência percebeu, parou de falar ra vez no livro Contos novos (Livra-
ria Martins Editora, 1947). Narrada
de repente, me olhando muito também. Percebi em primeira pessoa, a história versa
o mutismo dele, entendi por que era, mas não sobre a amizade entre dois adoles-
podia, custei a retirar os olhos daquela boca tão centes do mesmo sexo. “É um conto homoeró-
tico no qual se reconhecem traços biográficos
linda. E quando os nossos olhos se encontra- do próprio Mário. Nele, Juca, o narrador que se
ram, quase assustei porque Frederico Paciên- autodeclara fraco e feio, nutre enorme admiração
pela ‘solaridade escandalosa’ do amigo Frede-
cia me olhava, também como eu estava, com rico”, diz Eliane Robert Moraes, professora de
olhos de desespero, inteiramente confessado. literatura brasileira do Departamento de Letras
Clássicas e Vernáculas da Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP).
“Frederico Paciência” é uma das histórias selecionadas por Moraes para a
compilação de O corpo desvelado – Contos eróticos brasileiros (1922-2022), que
acaba de ser lançada pela Cepe. A obra reúne 60 autores brasileiros dos últi-
mos 100 anos que se aventuraram na erótica literária. O conto também integra
Seleta erótica/Mário de Andrade, outro título organizado por Moraes, lançado
este ano pela Ubu. Dividido em oito partes, o livro é resultado de investigação
BENEDITO JUNQUEIRA DUARTE / BIBLIOTECA NACIONAL

realizada pela especialista em literatura erótica durante período sabático no


Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP, em 2021.
Estão ali, por exemplo, poemas, correspondências, trechos de obras canônicas,
como O turista aprendiz (concluído em 1943, mas publicado em 1976), e escri-
tos inacabados como o romance Café, editado em 2015 pela Nova Fronteira. Há
ainda material coletado em pesquisas sobre cultura popular realizadas pelo mo-
Registro de 1930 dernista como a cantiga Corujinha, presente no livro As melodias do boi e outras
do escritor paulistano,
que transitou por uma
peças (Itatiaia, 2006). “Ao lado de nomes como Hilda Hilst [1930-2004], Mário é
elite conservadora e um dos autores brasileiros que mais se interessaram pelo sexo, mas esse aspecto
enfrentou preconceitos de sua obra ainda é cercado de tabu e muito pouco estudado”, afirma Moraes.

PESQUISA FAPESP 322 | 85


“Um dos motivos desse aspecto ter se mantido à sombra foi a dificuldade da críti-
ca em lidar com sua homossexualidade, que permaneceu velada até 2015”, observa
o sociólogo André Botelho, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e
estudioso do autor de Macunaíma. Naquele ano, a Fundação Casa de Rui Barbosa
tornou acessível para consultas uma carta do modernista ao poeta Manuel Bandeira
(1886-1968) em que o próprio autor faz referências diretas à homossexualidade.
Mário de Andrade conduzia o assunto cheio de dedos: em “Frederico Paciência”,
por exemplo, utiliza expressões ambíguas como “amigos demais”, “desejos curio-
sos” e “instintos espaventados” para tratar da relação entre os dois personagens. O
cuidado não se restringia à questão homoerótica. Em Seleta erótica, Moraes pinça
um trecho presente na primeira edição de Macunaíma (1928), posteriormente cen-
surado pelo próprio autor. Nele, o escri-
tor descreve posições sexuais inventadas
pelo protagonista e sua companheira, Ci.
“Por causa desse trecho, o livro Macunaí-
ma foi acusado de atentado ao pudor e, SOTAQUE PRÓPRIO
durante certo tempo, tido como leitura
proibida”, diz a especialista. Obra reúne reflexões de Mário de Andrade sobre a língua
“Mário transitava por uma elite con- escrita e falada no Brasil
servadora e enfrentava preconceito não
apenas pelas suspeitas em torno de sua “Fiori de la Pá/ Geni transférdi güide nôs pigórdi/ Geni trâns! Feligüinórdi/ Geny!...”.
sexualidade, mas também por ser, para No primeiro poema criado pelo então adolescente Mário de Andrade, em língua inven-
utilizar termos da época, mulato e menos tada por ele mesmo, o “conteúdo sexual se oculta em meio a um tecido textual turvo
abastado financeiramente do que outros e pouco inteligível”, enquanto os gêneros masculino e feminino se confundem, como
colegas modernistas, como Oswald de registra Moraes em Seleta erótica. O próprio Mário escreveu: “Neste ‘Geni trâns!...’ eu
Andrade [1890-1954]”, constata Bote- era possuído por um êxtase inconcebível. Erguia a voz, dava uma fermata e sofria”. O
lho. Na avaliação do estudioso, o autor trecho está em A gramatiquinha da fala brasileira, obra recém-lançada pela Fundação
passou por um processo de sacralização Alexandre de Gusmão (Funag) e pelo Instituto Guimarães Rosa, órgãos do Ministério
desenvolvido pela crítica a partir da dé- das Relações Exteriores.
cada de 1940, que encobriu temas como a A edição tem como base um manuscrito do autor, depositado no Instituto de Es-
homossexualidade. “Suas ambiguidades tudos Brasileiros (IEB-USP). “Não é uma gramatiquinha no sentido escolar do termo”,
e contradições foram apagadas para que avisa a pesquisadora Aline Novais de Almeida, organizadora da obra. “Trata-se de
ele pudesse ser monumentalizado como um estudo inacabado sobre o português escrito e falado no Brasil. Para Mário, os
matriz oficial da modernidade cultural chamados ‘erros’ gramaticais em relação ao português de Portugal refletem a nossa

S
brasileira”, defende. forma de se expressar e deveriam ser integrados a uma gramática da fala brasileira,
inclusive como forma de se libertar do colonizador. Essa ideia original de construir
egundo Botelho, o mergulho uma gramática não avança e ele se encaminha para o formato mais ensaístico, em-
na seara da sexualidade e do bora sejam textos que guardam o aspecto inacabado.”
erotismo é bem-vindo e pode Almeida pesquisou o manuscrito durante seu mestrado na FFLCH-USP. Além de
iluminar outros aspectos da esboços, o material reúne documentos como bilhetes, cartas, recortes de artigos ex-
produção marioandradina, traídos de periódicos e até o anúncio de um cabaré paulistano. A investigação inte-
“A questão erótica está na ba- grou um projeto apoiado pela FAPESP, coordenado por Telê Ancona Lopez. Segundo
se do pensamento de Mário Almeida, o primeiro estudo acadêmico sobre o manuscrito foi feito há 40 anos: a tese
de Andrade, é essencial para de livre-docência de Edith Pimentel Pinto (1924-1992), do Departamento de Filologia
se entender a obra dele co- e Língua Portuguesa da FFLCH-USP, que se transformou no livro A gramatiquinha de
mo um todo”, defende o sociólogo, autor Mário de Andrade: Texto e contexto (Livraria Duas Cidades/Secretaria da Cultura do Es-
com Maurício Hoelz de Modernismo como tado de São Paulo, 1990). “Trata-se de obra pioneira em que a autora tenta organizar
movimento cultural: Mário de Andrade, esses papéis que estavam arquivados e cobrir as lacunas deixadas pelo autor”, conta.
um aprendizado, recentemente publica- Na edição recém-lançada, Almeida vai por outro caminho. “No meu entender, essa
do pela Vozes. “Pelo erotismo, é possível é uma obra fragmentária. Mário alimentou e consultou esse material ao longo da vida
compreender novos ângulos da relação de e tirou dali muitas ideias, como se percebe no artigo ‘O baile dos pronomes’, publicado
Mário com elementos recorrentes em sua em 1941, em O Estado de S. Paulo.” A pesquisadora optou por utilizar apenas parte dos
obra, como a música e a dança.” documentos que compõem o manuscrito. No caso, privilegiou os textos “mais assen-
Ao analisar a fortuna crítica formulada, tados e maduros”, o que inclui dois poemas, além da transcrição de uma caderneta
sobretudo a respeito da poesia de Mário de de 60 páginas do autor e do esboço de Inquérito geral etnográfico (Formulário das pes-
Andrade por nomes como Roger Bastide quisas folclóricas – Língua nacional). “O contato de Mário com a fala brasileira era um
(1898-1974), Antonio Candido (1918-2017) lugar prazeroso, de satisfação artística e intelectual. Embora não tenha publicado essa
e João Luiz Lafetá (1946-1996), o pesqui- obra, ela é seu inventário de forma linguística e serve de apoio para estilização da fala
sador paulista César Braga-Pinto escreve brasileira que o autor opera em seus textos, literários e não literários”, finaliza Almeida.

86 | DEZEMBRO DE 2022
em um dos capítulos do livro Modernismos 1922-2022, lançado pela Companhia
das Letras este ano: “Em geral, a crítica tem abordado o ‘x’ da sexualidade em/de
Mário de forma mais ou menos homofóbica, às vezes com cuidado, às vezes com
constrangimento, outras com dissimulação e, não raro, em gestos de desqualificação
ou obliteração [...] esvaziamento e distorção são dois dos principais movimentos da

E
crítica diante do ‘segredo’ de Mário”.

m entrevista a Pesquisa FAPESP, Braga-Pinto, professor de literatura


brasileira e comparada da Universidade Northwestern, nos Estados
Unidos, explicou por que se referiu, no texto, à homofobia estrutural.
“Não estou denominando os críticos de homofóbicos. Estou chamando
a atenção para o fato de como a homofobia está entranhada na socie-
dade brasileira, o que leva, em várias gradações, a homossexualidade
ser entendida como uma doença, um desvio moral, uma questão a ser
evitada”, diz. “Em Mário de Andrade, vida e obra se misturam em sua
recepção crítica de maneira inevitável. O fato de os críticos terem evi-
tado o tema da sexualidade com certeza atrapalhou a análise de sua obra, mas a
recente obsessão em tirá-lo do armário também não deixa de ser problemática.”
O pesquisador é um dos organizadores dos dois volumes de Dissidências de gê-
nero e sexualidade na literatura brasileira, lançado no ano passado pela Devires,
com textos produzidos por autores diversos entre 1842 e 1930. A obra traz dois
trabalhos de Mário de Andrade. Um deles é o conto “Nizia Figueira, sua criada”.
Nele, conforme Braga-Pinto, o afeto entre duas mulheres transita no limite do eró-
tico. Outro exemplo é o poema “Cabo Machado” (1926), em que o modernista diz:

Cabo Machado é moço


bem bonito./ É como se
a madrugada andasse na
minha frente./ Entreabre Um exercício que Braga-Pinto costuma
fazer para refletir sobre a relação entre a
a boca encarnada num sexualidade e a obra de Mário de Andrade
sorriso perpétuo/ Adon- é pensar o autor fora do contexto moder-
de alumia o sol de ouro nista. “É interessante observar como ele
dialoga com outros escritores homosse-
dos dentes/ Obturados xuais que foram seus contemporâneos, a
com um luxo oriental. exemplo do britânico Oscar Wilde [1854-
-1900] e seu tradutor, o carioca João do
Rio [1881-1921]”, afirma e acrescenta: “Na década de 1930, o jornal literário Dom
Casmurro costumava rotular Mário como ‘sub-Wilde mestiço’. Em um de seus
insultos homofóbicos, Oswald [de Andrade] chegou a dizer que Mário era muito
‘parecido pelas costas com Oscar Wilde’”.
A ruptura entre Mário de Andrade e Oswald de Andrade, diga-se, se deu em ra-
zão dos textos de teor homofóbico veiculados na Revista de Antropofagia, em 1929,
como afirma James Green, historiador da Universidade Brown (EUA), no livro Além
do Carnaval: A homossexualidade masculina no Brasil do século XX (Editora Unesp,
2000). No periódico editado por Oswald de Andrade e Oswaldo Costa, Mário foi
chamado de “Miss São Paulo”, “Miss Macunaíma” e “Dona Maria”. Em sua corres-
pondência, Mário registrou a mágoa em relação à atitude do “ex-amigo”. À pintora
Tarsila do Amaral (1886-1973), então casada com Oswald, escreveu naquele 1929:
MÁRIO, 1932 / FOTO DE GILDA DE MORAES ROCHA

“Asseguro a vocês [...] que as acusações, insultos, caçoadas feitas [sic] a mim não me
podem interessar. Já os sofri todos mais vezes e sempre passando bem [...]. Mas não
posso ignorar que tudo foi feito na assistência dum amigo meu. Isso é que me quebra
cruelmente, Tarsila, e apesar de meu orgulho enorme, não tenho força no momen-
to que me evite de confessar que ando arrasado de experiência. Eu sei que fomos
O jornal literário todos vítimas dum ventarão que passou. Passou. Porém a árvore caiu no chão e no
Dom Casmurro
costumava rotular
lugar de uma árvore grande, outra árvore tamanha não nasce mais. É impossível.” n
Mário como
"sub-Wilde mestiço" O projeto, o artigo científico e o livro consultados para esta reportagem estão listados na versão on-line.

PESQUISA FAPESP 322 | 87


OBITUÁRIO O físico em sua casa,
no Rio de Janeiro,
durante entrevista
concedida em 2010
a Pesquisa FAPESP

A PESQUISA E
m um artigo de cinco páginas
publicado em 1969 na revista
Science, o físico Herch Moy-

COMO
sés Nussenzveig denunciou à
comunidade científica internacional a
perseguição política sofrida por pesqui-

PAIXÃO
sadores no Brasil, além das condições
precárias em que se fazia ciência na
América Latina. O país vivia, então, um

E MISSÃO
dos períodos mais tenebrosos da ditatura
militar, e suas instituições científicas,
muitas ainda incipientes, sofriam com
a descontinuidade de verbas e o descaso
Morreu em novembro, dos governantes, o que motivou a migra-
ção de parte de seus melhores quadros
aos 90 anos, Herch Moysés para o exterior. À época professor na
Universidade de Rochester, nos Estados
Nussenzveig, estudioso de Unidos, Nussenzveig acolheu muitos dos
que tiveram de deixar o Brasil e articulou
FOTOS LÉO RAMOS CHAVES / REVISTA PESQUISA FAPESP

fenômenos ópticos como


protestos que chegaram ao então presi-
o arco-íris, defensor da ciência dente Artur da Costa e Silva (1899-1969).
Essa foi apenas uma das vezes em que o
e entusiasta do ensino de física físico veio a público em defesa da ciência.
Estudioso do arco-íris e da auréola,
Ricardo Zorzetto dois fenômenos ópticos que considerava
ser dos mais belos da natureza, Nussen-
zveig foi ainda um pesquisador apaixo-
nado pelo ensino da física: organizou
cursos, criou departamentos e labora-

88 | DEZEMBRO DE 2022
tórios de física nas universidades brasi- do, autor de artigos e livros prestigiados do Beck (1903-1988), nascido em Rei-
leiras e escreveu de próprio punho uma internacionalmente, comprometido com chenberg (hoje Liberec, na República
respeitada coleção de livros didáticos, o ensino de ciência, defensor destemido Tcheca), que havia trabalhado com os
até hoje adotada em cursos de graduação. de cientistas perseguidos e do apoio à criadores da mecânica quântica.
Também integrou grupos que ajudaram ciência, Moysés fará muita falta nesses Nussenzveig realizou estágios de pós-
a organizar a estrutura atual de finan- tempos desafiadores”, completou Davi- -doutorado nos Países Baixos, na Ingla-
ciamento da pesquisa nacional. Nussen- dovich no texto. terra e na Suíça e, em 1960, de volta ao
zveig morreu no sábado, 5 de novembro, Brasil, instalou-se no Centro Brasileiro

N
no Rio de Janeiro, cidade para a qual ussenzveig nasceu em São de Pesquisas Físicas (CBPF), no Rio de
havia se transferido definitivamente no Paulo em 23 de agosto de 1932. Janeiro. Com o país em crise econômica,
início dos anos 1980. O professor Moysés, Era o terceiro filho de um ca- seguiu o conselho de Beck e foi para os
como os discípulos o chamavam, estava sal que chegou ao Brasil em Estados Unidos. Passou uma temporada
com 90 anos e a saúde debilitada desde 1925 fugindo da pobreza e do antissemi- na Universidade de Nova York e outra
2020, após uma cirurgia nos rins. Dei- tismo na Polônia. Cresceu no Bom Re- em Princeton, antes de ser contratado
xou a mulher, a química Micheline, com tiro, bairro na região central da capital por Rochester. “O que deveria ser um
quem se casou durante a final da Copa paulista, e estudou em escolas públicas. estágio de um ano tornou-se uma diás-
do Mundo de 1962, além de três filhos Ao final do segundo grau (atual ensino pora de quase 13 anos”, lembrou o filho
– a matemática Helena, o bioquímico médio), venceu um concurso literário Paulo, professor do Instituto de Física
Roberto e o físico Paulo – e seis netos. na Aliança Francesa e cursou o primei- (IF) da USP e pró-reitor de pesquisa e
“Perdemos uma luz intensa, um fa- ro ano de matemática na Universidade inovação da universidade, em um texto
rol”, escreveu o físico Luiz Davidovich, Sorbonne, em Paris. publicado em 5 de novembro no Jornal
professor emérito da Universidade Fe- Por influência de um colega de ginásio, da USP. Nos Estados Unidos, Nussen-
deral do Rio de Janeiro (UFRJ) e ex- o físico Ernst Hamburger (1933-2016), zveig denunciou a perseguição do regi-
-presidente da Academia Brasileira de no retorno ao Brasil, em 1951, foi cur- me militar aos pesquisadores brasileiros
Ciências (ABC), em uma nota publicada sar física na Universidade de São Paulo e auxiliou professores que haviam sido
em 6 de novembro no site da ABC. Após (USP). “Passei boa parte do bacharelado cassados.
ser considerado subversivo e expulso do como aprendiz de físico experimental”, A convite do físico José Goldemberg,
curso de física da Pontifícia Universida- contou Nussenzveig em uma entrevista retornou para a USP em 1975, onde criou
de Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ) anos atrás (ver Pesquisa FAPESP nº 173). no IF o Departamento de Física-mate-
em 1969, Davidovich foi recebido em Ro- Perto do final do curso, interessou-se mática. Contra sua vontade, dirigiu o
chester por Nussenzveig, que o orientou pela física teórica e fez seu doutorado, instituto por quatro anos, antes de se
durante o doutorado. “Cientista renoma- na USP, sob a orientação do físico Gui- transferir para a PUC-RJ e depois para
a UFRJ, onde criou e coordenou o Labo-
ratório de Pinças Ópticas e se aposentou.
Desde seu retorno ao Brasil, Nussenzveig
participou de importantes comissões,
como a que estruturou o Programa de
Apoio ao Desenvolvimento Científico e
Tecnológico (PADCT), do então Minis-
tério da Ciência e Tecnologia, e idealizou
o Programa de Laboratórios Associados,
que serviu de inspiração para o Progra-
ma de Núcleos de Excelência (Pronex)
do ministério, que apoiava por perío-
dos mais longos o trabalho de grupos já
consolidados. Foi fundador e coorde-
nador de um programa interdisciplinar
na UFRJ com ciclos de palestras para o
público geral, dadas por especialistas do
Brasil e do exterior. Também se dedicou
à divulgação científica. n

Os artigos científicos consultados para esta reportagem


Edição de Curso básico de física redigida de próprio punho por Nussenzveig estão listados na versão on-line.

PESQUISA FAPESP 322 | 89


MEMÓRIA

Pasteur em
seu laboratório
na Escola Normal
de Paris,
cerca de 1880

AS IDEIAS
2

DE PASTEUR
EM NOSSO
DIA A DIA
Nascido há 200 anos, o químico
francês estabeleceu as formas usadas
até hoje para prevenir a transmissão de
doenças infecciosas
O anjo da inoculação, charge
de Charles Gilbert-Martin
Carlos Fioravanti publicada em 1886
Retrato do
químico francês
feito por Félix
Nadar em 1878
3

L
avar as mãos, cortar o cabelo, mentos de cirurgia e a área do corpo a ser cos ou sociais. Essa ideia se contrapôs
tomar água filtrada e leite fervi- operada, assim reduzindo as infecções. à separação entre ciência pura e ciên-
do, manter a casa limpa e outros Pasteur rompeu a separação entre cia aplicada, fortalecida após a Segunda
hábitos do dia a dia resultam das ciência básica e aplicada ao afirmar que Guerra Mundial, que influenciou a polí-
ideias sobre transmissão de doenças não havia ciência aplicada, mas sim apli- tica científica e tecnológica nas décadas
por microrganismos promovidas pelo cações da ciência. No livro O quadrante seguintes (ver Pesquisa FAPESP nº 110).
químico francês Louis Pasteur no fi- de Pasteur — A ciência básica e a ino-
nal do século XIX. Ele nasceu há 200 vação tecnológica (Editora Unicamp, VACINAS
anos, em dezembro de 1822, em Dôle, 2005), o cientista político norte-ame- Com sua equipe, foi um dos primeiros
cidade a leste da França. Ao morrer, aos ricano Donald Stokes (1927-1997) usou a produzir em laboratório, com bases
72 anos, em 1895, havia se tornado um dois eixos para classificar as atividades científicas, vacinas de uso veterinário e
dos personagens mais importantes da de pesquisa – o vertical, representa- humano contra doenças infecciosas. A
história da ciência mundial – e ainda do a capacidade de gerar conhecimen- primeira foi para uma doença de ovelhas,
hoje é nome de ruas, escolas, edifícios, to básico, e o horizontal, refletindo as o carbúnculo ou antraz, causada pela
centros de pesquisa e laboratórios de aplicações. bactéria Bacillus anthracis, identificada
análises clínicas. O Instituto Pasteur Emergem daí quatro quadrantes: em- por Koch em 1877. Confiante em suas ex-
de Paris é uma das maiores instituições baixo, o mais próximo do encontro dos periências com animais em laboratório,
FOTOS 1 HULTON ARCHIVE / GETTY IMAGES 2 INSTITUTO PASTEUR / MUSEU PASTEUR   3 WELLCOME LIBRARY

de pesquisa em doenças infecciosas e eixos permanece vazio; ao lado, à direita, Pasteur promoveu um espetáculo públi-
produção de vacinas do planeta, com está o de Thomas Edison (1847-1931), em co, em junho de 1881 na vila de Pouilly-
ramificações em 26 países. alusão ao inventor norte-americano que -le-Fort, no sudeste de Paris, diante de
Na segunda metade do século XIX, criou a lâmpada incandescente, de alta veterinários, fazendeiros, políticos locais
com o patologista alemão Robert Koch relevância para as aplicações e pouca e repórteres: com seu auxiliar, o químico
(1843-1910), Pasteur lançou as bases da para o conhecimento; acima, à esquerda, Charles Chamberland (1851-1908), apli-
microbiologia e o conceito – hoje ób- encontra-se o de Niels Bohr (1885-1962), cou uma vacina que tinha elaborado, com
vio – de que as doenças infecciosas são em referência ao físico dinamarquês, uma versão atenuada da bactéria causa-
causadas por microrganismos e podem que permitiu grandes avanços sobre a dora da doença, em 25 ovelhas, deixou
ser prevenidas por meio de medidas de estrutura do átomo; e acima, à direita, o outras 25 sem vacinar e em seguida in-
higiene e de vacinas. “Nossa mente tor- de Pasteur, que concilia os avanços tanto jetou em todas uma solução com a bac-
nou-se pasteuriana”, sintetiza o histo- no conhecimento quanto nas aplicações. téria. Vinte e quatro ovelhas vacinadas
riador da ciência Jaime Benchimol, da Stokes argumentou que o químico sobreviveram, as outras morreram.
Casa de Oswaldo Cruz da Fundação Os- francês tinha dois compromissos: “en- Em 1857, depois de ensinar química
waldo Cruz (COC-Fiocruz) e autor do tender os processos microbiológicos que por três anos na Universidade de Lille,
livro Febre amarela: A doença e a vacina, ele descobriu” e, ao mesmo tempo, “o ele começou a lecionar na Escola Normal
uma história inacabada (Editora Fiocruz, controle dos efeitos de tais processos Superior em Paris. Em 1889, resolveu se
2001). O médico inglês Joseph Lister em vários produtos e em animais e seres dedicar às vacinas de uso humano. Co-
(1827-1912) visitou Pasteur em 1876 em humanos”. Desse modo, o autor mostra meçou com a raiva, doença de origem
Paris e, com base nas ideias do colega que a ciência chamada básica ou funda- viral transmitida principalmente pela
francês, decidiu desinfectar os instru- mental poderia gerar ganhos econômi- saliva de animais infectados.

PESQUISA FAPESP 322 | 91


Em julho de 1885, ele atendeu um me-
nino de 9 anos, Joseph Meister (1876-
1940), que havia sido mordido nos braços
e nas pernas por um cão raivoso. Ele pró-
prio relatou: “A morte da criança parecia
inevitável. Decidi, não sem profunda an-
gústia e ansiedade, como se pode imagi-
nar, aplicar em Joseph Meister o método
que eu havia experimentado com suces-
so consistente nos cães”. Funcionou, e o
menino se recuperou após 13 injeções.
Após examinar os cadernos de labo-
ratório de Pasteur, o historiador norte-
-americano Gerald Geison (1943-2001)
argumenta no livro A ciência particular
de Louis Pasteur (Editora Fiocruz/Con-
traponto, 2002) que Joseph Meister não
foi o primeiro a receber a vacina antir-
rábica. Secretamente, Pasteur já a tinha
usado em um homem de 61 anos cha-
mado Girard, que sobreviveu, e em uma
menina de 11, que morreu. As anotações
1
“revelam que se injetou em Girard um Litografia de clínica para vacinação contra a raiva em Paris
preparado que Pasteur não descrevera
por escrito – a saber, uma emulsão da conta o químico e historiador da ciência vir ao Rio de Janeiro e pesquisar a febre
medula espinhal de um coelho morto Carlos Alberto Lombardi Filgueiras, da amarela, então a causa de uma epidemia
por hidrofobia experimental, que ficara Universidade Federal de Minas Gerais e no Brasil. Ele se desculpava por já estar
secando em um frasco hermeticamen- autor do livro As origens da química no com 62 anos e temer os efeitos de um
te fechado por cerca de duas semanas”, Brasil (Editora da Unicamp, 2015). “Ele clima tropical, argumentava que tinha
relata Geison. ficou fascinado com o que se chamava na de se dedicar à vacina contra a raiva e

FOTOS 1 WELLCOME LIBRARY, LONDON. WELLCOME   2 O ALBUM, ANO 1, Nº 22. 1893 3 WIKIMEDIA COMMONS 4 MUSEU PASTEUR / INSTITUTO PASTEUR
época bacteriologia, hoje microbiologia, recomendava o médico carioca Domin-

S
egundo ele, o químico francês e fez questão de contribuir com dinheiro gos José Freire (1843-1899), que havia
ainda não havia tentado curar a de seu próprio bolso para a construção formulado e aplicava uma vacina expe-
raiva em animais antes de tratar do Instituto Pasteur de Paris.” rimental contra a febre amarela (ver Pes-
de Girard. “Os cadernos não for- Filgueiras encontrou no arquivo do quisa FAPESP no 265).
necem nenhuma prova de que Pasteur Museu Imperial de Petrópolis, Rio de O imperador apoiou também o Ins-
houvesse concluído os experimentos Janeiro, uma carta em que Pasteur res- tituto Pasteur do Rio de Janeiro, vin-
com animais a que recorreu para jus- pondia a um convite do imperador para culado à Santa Casa da Misericórdia e
tificar sua decisão de tratar Meister”, inaugurado em fevereiro de 1888, nove
2
acrescenta o historiador. Quando aten- meses antes do de Paris. “Nossa elite
deu o menino, ele havia apenas inicia- médica era extremamente bem infor-
do um experimento com 40 cães, com mada e bem formada lá fora”, explica
diferentes formulações, e os resultados o historiador Luiz Antonio Teixeira,
ainda não eram comparáveis. Mesmo também da COC-Fiocruz, ao explicar
assim, Pasteur prosseguiu porque se a rapidez da incorporação das técnicas
comoveu com a situação do menino, que de produção do soro contra a raiva. No
trabalharia no Instituto Pasteur até a Recife (PE), foi fundado no ano seguinte
entrada em Paris do Exército nazista um instituto antirrábico, também com
em 1940, quando pôs fim à própria vida. o nome do químico francês; na cidade
Em uma conferência na Academia de de São Paulo, em 1903; em Juiz de Fora
Ciências de Paris em março de 1886, o (MG), em 1908; em Porto Alegre (RS),
químico propôs a criação de um instituto em 1910; e em Florianópolis (SC), dois
para produzir e aplicar a vacina contra a anos depois.
raiva, com base em seus resultados. Com “De modo geral, os institutos no Brasil
apoio da Academia, vieram doações de e em outros países foram criados para
todo lado, incluindo do imperador do serem apenas reprodutores da técnica de
Brasil dom Pedro II (1825-1891). produção de vacinas contra a raiva”, diz
“Dom Pedro II já era muito interessado Domingos José Freire, recomendado pelo francês Teixeira, autor do livro Ciência e saúde
por ciências quando conheceu Pasteur”, para combater a febre amarela no Brasil na terra dos bandeirantes: A trajetória do

92 | DEZEMBRO DE 2022
Instituto Pasteur de São Paulo no período
de 1903-1916 (Editora Fiocruz, 1995). “O
de São Paulo foi o único que se dedicou
também à pesquisa científica porque já
tinha começado uma rede de institutos
de saúde, como o bacteriológico e o va-
cinogênico” (ver Pesquisa FAPESP no
300). Criado como instituição privada
por um grupo de médicos, o instituto
paulista, em razão de dificuldades fi-
nanceiras, foi doado ao governo do esta-
do em 1916. Os de outros estados foram
incorporados por órgãos de saúde ou
fechados após os surtos de raiva desa-
parecerem e hoje a doença é bastante
rara e transmitida principalmente por
morcegos hematófagos.
“Muitos médicos do Rio de Janeiro
[então capital do Brasil] abraçaram ra-
pidamente a teoria do germe proposta
por Pasteur, mas também houve mui-
ta controvérsia, porque as novas ideias 3
contrariavam crenças estabelecidas, Pasteur trabalhando em um experimento em seu laboratório
como a de que as doenças resultavam
tão-somente de ambientes insalubres”, infecção, e sobre os testes com a vacina de vida da população para evitar a trans-
diz Benchimol. “A bacteriologia nasceu contra a raiva, mas também deu espaço missão dos patógenos”, comenta Teixei-
cercada de suspeitas e dúvidas.” Entre a contestações. ra. Foi com base nas ideias de Pasteur
1878 e 1886, a Gazeta Médica da Bahia “A bacteriologia teve um impacto que o médico Oswaldo Cruz (1872-1917)
publicou traduções de artigos de Pasteur imenso na saúde coletiva, porque permi- debelou a epidemia de febre amarela no
sobre as aplicações da teoria dos germes tiu a prevenção de doenças infecciosas, início do século XX.
à medicina, permitindo cirurgias mais por meio do isolamento de doentes, da Segundo Teixeira, um dos limites da
amplas e seguras, com menor risco de vacinação e da melhoria das condições bacteriologia é o que ele chama de uni-
causalidade – a causa única para o sur-
4
gimento de uma doença ou epidemia, o
Delegação oficial que ofusca a existência de outros fatores,
em frente à catedral como as condições de vida, que favore-
de Notre-Dame
em seu funeral em
cem a evolução de enfermidades, como
5 de outubro de 1895 a tuberculose: “Durante décadas, a visão
unicausal das doenças limitou as ações
da saúde pública”. A situação começou
a mudar no Brasil a partir dos anos 1920,
principalmente com o farmacêutico e
médico Geraldo Paula Souza (1889-1951).
Professor da Faculdade de Medicina
da Universidade de São Paulo (USP) e
fundador do Instituto de Higiene, que se
tornaria a Faculdade de Saúde Pública
da USP, Paula Souza via os problemas
de saúde de uma forma ampla, não pu-
ramente biológica, e criou uma rede de
postos de saúde que unia à prevenção
a educação em saúde, com base no que
havia visto nos Estados Unidos. Em 1945,
participou da Conferência de São Fran-
cisco, nos Estados Unidos, que levou à
criação da Organização das Nações Uni-
das (ONU), e apoiou a constituição da
Organização Mundial da Saúde (OMS),
três anos depois. n

PESQUISA FAPESP 322 | 93


ITINERÁRIOS DE PESQUISA

O MÉTODO
CIENTÍFICO
FORA DA
ACADEMIA
1

O biólogo Pedro Ferreira Develey continua


fazendo pesquisa ao observar aves

S
ou um pesquisador saudosista. tal e por seu controle financeiro-admi- das por vezes limitam as possibilidades
Da entrada na graduação, em nistrativo. Mas tenho clareza de que só de investigação científica.
1988, até o término do doutora- tem sido possível dirigir esse braço da Compreendo que o cientista se re-
do vivi 16 intensos anos na Uni- BirdLife International, a aliança global laciona mais com a maneira como vê o
versidade de São Paulo [USP]. Apesar de organizações da qual a Save faz par- mundo do que necessariamente com seu
dos intervalos entre essas formações, te, porque assimilei o método científico espaço de atuação profissional. Minha
sempre me mantive atuante na vida aca- durante minha trajetória universitária. visão de mundo, no caso, é contestadora,
dêmica. Construí uma longa e sólida re- Lembro-me bem do discurso do diretor exigente de dados, não se submete a

FOTOS 1 LÉO RAMOS CHAVES / REVISTA PESQUISA FAPESP 2 E 3 ARQUIVO PESSOAL


lação com esse espaço de conhecimento. do Instituto de Biociências da USP aos ideias que não foram testadas e é rigo-
Prova disso é a predileção pela docên- novos graduados, durante a cerimônia de rosa nas análises estatísticas. A valoriza-
cia, o interesse no compartilhamento formatura: “Levem o método científico ção do método científico confere muito
de dados e informações – na forma de para outros aspectos da vida de vocês, não mais segurança às minhas intervenções
artigos e/ou palestras –, na supervisão somente para o acadêmico”. Essas pala- na ONG, ainda que torne mais complexo
de pesquisas. Sinto falta dessa dinâmica. vras continuam a ressoar na minha vida, encarar os desafios. Para ilustrar, cito um
Na minha atual rotina profissional, há concretizando meu modo de atuação. Nos exemplo. No início da minha gestão na
pouco espaço para ela. projetos da ONG, sempre buscamos de- Save, por causa de um grande projeto
Há 18 anos à frente da Sociedade pa- finir objetivos claros, método adequado, com financiamento da União Europeia,
ra a Conservação das Aves do Brasil, indicadores quantitativos e qualificati- recebemos uma avaliadora externa. De
o fazer acadêmico está mais distante. vos e, também, controle de variáveis. Tal imediato ela perguntou sobre a minha
Como diretor-executivo da Save Brasil, postura nos ajuda muito na avaliação dos experiência como gestor. Não me senti
uma organização não governamental, projetos e no relato aos financiadores. melindrado em responder que, embora
sou responsável pela gestão de quase Nesse sentido, sou um dissidente, mas sem formação na área administrativa,
40 pessoas, pela captação de recursos que se manteve pesquisador, ainda que minha trajetória acadêmica, sobretudo
para projetos de conservação ambien- imerso no terceiro setor, cujas deman- na pós-graduação, me ensinou a ter dis-

94 | DEZEMBRO DE 2022
Exemplar de galo-da-serra ativamente de uma série de atividades.
(abaixo). Araponga, Ao mesmo tempo surgiu o convite pa-
conhecida como a voz da
Mata Atlântica (ao lado)
ra trabalhar na BirdLife. Em 2004 eu
era um jovem doutor, sem experiência
profissional fora do ambiente univer-
sitário, mas me dispus a começar uma
nova história. Afinal, tratava-se de uma
organização ambiental de reconheci-
mento internacional, próxima dos meus
interesses acadêmicos.
3
A despeito de não ser professor uni-
versitário, entre 2016 e 2017 ocupei a
sidero primordial o trabalho acadêmico presidência da Sociedade Brasileira de
e sua difusão. A ciência é o delineador de Ornitologia. Estive em uma posição dis-
tudo que fazemos dentro da Save. Esfor- sidente nesse espaço majoritariamente
ço-me em promover esse modus operandi, acadêmico. Embora houvesse respeito
2
que aprendi com a BirdLife. pela minha gestão, manifestava-se, por
Meu ingresso no terceiro setor se deu vezes, certo estranhamento por parte de
ciplina e uma linha de pensamento ló- ao final do doutorado, a partir de um con- alguns associados. Os questionamentos
gico. No meu cotidiano organizacional, vite de uma amiga, veterana do IB-USP. eram rebatidos com o fato de eu ser efeti-
manejo muitas ferramentas semelhan- Como tínhamos afinidades acadêmicas vamente um pesquisador, mestre e doutor.
tes àquelas utilizadas durante minha e compartilhávamos a mesma área de Sigo circulando por esses espaços por-
passagem pela USP, ou seja, faço análi- pesquisa, ao longo dos anos mantivemos que ainda contribuo com a produção
ses estatísticas, prestação de contas dos contato, apesar de vivermos em países de conhecimento. Fico contente, pois
projetos, controle de processos e prazos. distintos. Em um encontro nos Estados acredito que há um reconhecimento da
A BirdLife surgiu no meio acadêmi- Unidos, em 1998, durante uma conversa própria comunidade acadêmica, e sou
co-científico e ainda hoje mantém um despretensiosa, surgiu a possibilidade de visto como aquele que pode partilhar
núcleo de pesquisa com importantes juntar-me à instituição onde ela já traba- ciência ainda que esteja do lado de fora
ornitólogos. Para além da liderança no lhava. Alguns anos depois, veio a oferta pa- da universidade. Um movimento bastan-
fomento de projetos e políticas públicas ra que eu participasse da implementação te positivo nessa mesma linha está ligado
globais de preservação de aves e ambien- do programa da BirdLife no Brasil. Apesar aos observadores de aves, integrantes de
tes, a organização produz bastante co- de inseguro, aceitei a oportunidade. um grupo identificado como o da “ciên-
nhecimento científico. Recentemente, cia colaborativa”. São pessoas, por vezes

M
houve o lançamento do relatório “State eus planos profissionais leigas, que se dedicam a observar, cata-
of the world’s birds 2022”. Esse volume eram acadêmicos. Queria logar e fotografar aves. Na atualidade, os
tem como objetivo não apenas reunir re- dar continuidade às pesqui- observadores representam um número
sultados de pesquisa de dentro e fora da sas da minha tese de dou- bastante expressivo: cerca de 50 mil es-
organização, mas também propor solu- torado. Nela analisei como diferentes palhados pelo território brasileiro. Isso
ções e, acima de tudo, divulgar ciência, características da floresta afetavam a significa que temos, a serviço da ciência,
para impactar a sociedade. diversidade de aves da Mata Atlântica. milhares de colaboradores que reúnem
Nesse esforço de divulgação científica, Queria ter publicado mais artigos sobre uma amostragem relevante e gigantesca
no ano passado, quando da publicação, em o estudo, mas não consegui. No entan- de observações documentadas de aves.
inglês, de dois artigos de minha autoria, to, orgulho-me de ter produzido, em Na Save acreditamos muito na parti-
traduzimos e disponibilizamos os textos 2004, com a colaboração do fotógrafo cipação ativa e engajada desses obser-
no site da organização e para a imprensa. Edson Endrigo, o Guia de campo – Aves vadores. Incentivamos a participação
Minha equipe busca o acesso permanente da Grande São Paulo. A obra já vendeu 12 de leigos, inclusive com programas de
à produção científica sobre aves. Tal qual mil exemplares e tornou-se referência na formação, treinamento e feiras de ob-
faziam meus mestres, procuro motivá-la a área da observação de aves. Atualmente, servação. Compreendemos que o traba-
conservar certa disciplina de leitura. Con- esse tipo de guia de campo é bem comum, lho dos observadores consegue, de fato,
está disponível inclusive em plataformas romper a bolha acadêmica ao colaborar
digitais e aplicativos para celulares. verdadeiramente com a produção de co-
Próximo ao término do doutora- nhecimento. Em consequência disso,
SAIBA MAIS
do, cogitei iniciar um projeto de pós- conquista-se o que toda a área científica
-doutorado. Imaginava que o único deseja, ou deveria desejar: a integração
caminho possível, para alguém que fez real da sociedade com a academia. Esse
um percurso como o meu, seria a pes- êxito tem sido possível graças às aves.
quisa e o magistério. No primeiro mo- Vejo através delas a capacidade de sal-
mento depois de defender a tese, per- var o planeta. n
maneci muito ligado à USP, participando DEPOIMENTO CONCEDIDO A ALINE NOVAIS DE ALMEIDA

PESQUISA FAPESP 322 | 95


RESENHA

A construção da ideia de golpe


Tessa Moura Lacerda

O
que nos permite, hoje, afirmar que o que tudo a um atentado às leis e à Constituição. Mas
aconteceu na vida política brasileira em é importante mencionar ainda a recuperação da
2016, na ocasião do impeachment da pre- obra de Gabriel Naudé (1600-1653), que forne-
sidenta Dilma Rousseff (PT), foi um golpe? Ou ter ce uma camada de significado à ideia de golpe
a certeza de que em 1964 foi um golpe militar, e anterior ao 18 Brumário: Naudé dá precisão ao
não uma revolução, que instaurou uma ditadura conceito de “golpe de Estado” no século XVII,
por 21 anos no Brasil? enfatizando sua fase de preparação e legitimando
Newton Bignotto persegue em seu livro a gê- o uso da violência numa ação que supostamen-
nese histórica da ideia de golpe de Estado a partir te visa defender o poder legítimo. E menciona
do que ele chama de “camadas de significado” também a análise do jurista nazista Carl Schmitt
que vão se agregando ao longo dos séculos. Não (1888-1985), no século XX, quando o tema já era
se trata de fazer um recenseamento exaustivo das corrente na linguagem política.
Golpe de Estado: ocasiões históricas em que sabidamente ocorreu Nesse trabalho de recuperação das camadas
História um golpe de Estado, mas de eleger alguns mo- que deram origem ao que entendemos como gol-
de uma ideia
Newton Bignotto
mentos marcantes na história do Ocidente e si- pe, é preciso fazer uma depuração da linguagem.
Bazar do Tempo multaneamente acompanhar a análise filosófica Por isso, Bignotto mostra que a ideia de “cons-
384 páginas desses momentos – algumas dessas análises já são piração”, presente em Maquiavel, pode ser lida
R$ 69,90 clássicas, como a que Karl Marx (1818-1883) faz como a origem da ideia de golpe de Estado. E co-
do 18 Brumário, mas outras, como a de Madame menta a proximidade entre os termos “golpe” e
de Staël (1766-1817) sobre o Terror que se seguiu “revolução”, alertando que é preciso especificar
à Revolução Francesa, são pouco conhecidas. as diferenças para evitar que determinados atores
Bignotto descreve, por exemplo, acontecimen- políticos, como as Forças Armadas brasileiras,
tos como a conjuração de Catilina (108 a.C.-62 a.C.) disputem o significado daquilo que aconteceu
e simultaneamente apresenta as análises de um de fato através de uma operação no plano da lin-
de seus personagens, o filósofo Cícero (106 a.C.- guagem – usar a expressão “revolução” serviria,
-43 a.C.); narra o complô contra os Médici na nesse caso, para apagar seu caráter nefasto contra
Florença de 1478 (a chamada conjuração dos Paz­ a democracia brasileira.
zi), o exílio de Maquiavel (1469-1527), acusado Essa construção da ideia de golpe de Estado
de conspiração contra a mesma família em 1512, através da análise das camadas de significado per-
e as análises que Maquiavel faz desses aconte- mite vislumbrar o quanto a ferida provocada por
cimentos; o golpe de Luís Napoleão (1808-1873) um golpe atinge a esfera institucional, mas atinge
em 1851; e a leitura de Victor Hugo (1802-1885). principalmente o corpo político e social: um golpe
Assim, combina análise rigorosa de ideias com é uma fratura na vida das pessoas – para recuperar
uma narrativa viva de acontecimentos históricos, a leitura de Victor Hugo. Bignotto entra na senda
num estilo literário que torna a leitura particu- de Hugo quando apresenta uma leitura dos acon-
larmente prazerosa. tecimentos da história ocidental – ocidental é de
Dentre esses momentos históricos e teóricos, minha lavra, é preciso observar –, que busca a vida
há dois que são particularmente importantes para concreta dos conceitos que estão sendo elabora-
Bignotto. A análise que Maquiavel faz das cons- dos; certamente por isso a recriação literária das
pirações, porque fornece as balizas conceituais cenas históricas é tão importante – e impactante.
do livro, sobretudo o par conceitual conquista/ De uma maneira muito elegante, Bignotto chama
manutenção do poder, ferramenta de interpre- o leitor a se posicionar politicamente sobre acon-
tação de outros golpes. E, em segundo lugar, o tecimentos que se tornaram corriqueiros desde
golpe de Napoleão Bonaparte (1769-1821), que o século XX, os golpes de Estado. Não é possível
põe fim à Revolução Francesa (1789-1799), por- ficar indiferente.
que fornece um modelo paradigmático para a
tópica dos golpes de Estado, instaurando o que Tessa Moura Lacerda é professora de filosofia da Faculdade de Filosofia,
entendemos hoje por golpe, relacionado sobre- Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP).

96 | DEZEMBRO DE 2022
FUNDAÇÃO DE AMPARO À PESQUISA DO ESTADO DE SÃO PAULO
COMENTÁRIOS cartas@fapesp.br

PRESIDENTE
Marco Antonio Zago

VICE-PRESIDENTE
Ronaldo Aloise Pilli

CONSELHO SUPERIOR

Obituário Entrevista
David Everson Uip, Helena Bonciani Nader, Herman Jacobus
Cornelis Voorwald, Ignácio Maria Poveda Velasco, Liedi Legi
Bariani Bernucci, Mayana Zatz, Mozart Neves Ramos, Pedro
Luiz Barreiros Passos, Pedro Wongtschowski, Thelma Krug Professor Moysés [Herch Moysés Nus- Que história magnífica e quanto conhe-
CONSELHO TÉCNICO-ADMINISTRATIVO senzveig] era muito preocupado tam- cimento adquirido sobre os indígenas.
DIRETOR-PRESIDENTE
Carlos Américo Pacheco
bém com o ensino de ciências no ensino Uma indigenista que tem muito a contar
DIRETOR CIENTÍFICO médio, a boa formação dos nossos ado- e agir (“Marta Maria Azevedo: em defesa
Luiz Eugênio Mello
lescentes. Ele, junto com outros pesqui- dos povos originários”, edição 321).
DIRETOR ADMINISTRATIVO
Fernando Menezes de Almeida sadores, produziu kits que deveriam M. Regina Morgado A. Holtz
ser distribuídos para as escolas. Partiu
sonhando com um país que invista em
ISSN 1519-8774 ciência desde o início da formação de Córnea
COMITÊ CIENTÍFICO
seus cidadãos. Ele ficará para sempre Tenho ceratocone avançado em ambos
Luiz Nunes de Oliveira (Presidente),
Agma Juci Machado Traina, Américo Martins Craveiro, Anamaria
na nossa memória e em nossos corações os olhos. Espero que essa tecnologia
Aranha Camargo, Ana Maria Fonseca Almeida, Angela Maria Alonso,
Carlos Américo Pacheco, Claudia Lúcia Mendes de Oliveira,
(“A pesquisa como paixão e missão”). logo esteja disponível para nós aqui no
Deisy das Graças de Souza, Douglas Eduardo Zampieri, Eduardo
de Senzi Zancul, Euclides de Mesquita Neto, Fabio Kon, Flávio Vieira
Monica Dahmouche Brasil. Viva a ciência! (“Córnea artificial
Meirelles, Francisco Rafael Martins Laurindo, João Luiz Filgueiras
de Azevedo, José Roberto de França Arruda, Lilian Amorim, Lucio
restaura a visão”, edição 320).
Angnes, Luciana Harumi Hashiba Maestrelli Horta, Mariana Cabral
de Oliveira, Marco Antonio Zago, Marie-Anne Van Sluys, Maria Julia
Amanda Freire de Assis Riccardi
Manso Alves, Marta Teresa da Silva Arretche, Reinaldo Salomão,
Richard Charles Garratt, Roberto Marcondes Cesar Júnior, Wagner
Lima Barreto
Caradori do Amaral e Walter Colli
Sou apaixonada pelo Lima, li quase tudo
COORDENADOR CIENTÍFICO
Luiz Nunes de Oliveira dele. (“Lima Barreto como intérprete Vídeo
DIRETORA DE REDAÇÃO do Brasil pós-Abolição”, edição 260). Ou seja, melhor comer planta como
Era imenso para um Brasil que pouco se planta mesmo, mais saudável e gostoso
Alexandra Ozorio de Almeida

EDITOR-CHEFE
Neldson Marcolin conhecia à época. Quando passo perto de (“Ultraprocessados de carne ou veganos,
EDITORES Fabrício Marques (Política C&T), Glenda
Mezarobba (Humanidades), Marcos Pivetta (Ciência),
onde foi sua casa, sempre lembro dele. faz diferença?”).
Yuri Vasconcelos (Tecnologia), Carlos Fioravanti e
Ricardo Zorzetto (Editores especiais)
Viva Lima Barreto! Eduardo Gomes Pereira
Clay Esteves
REPÓRTERES Christina Queiroz e Rodrigo de Oliveira Andrade

MÍDIAS DIGITAIS Fabrício Marques (Coordenador), Maria


Guimarães (Editora executiva), Renata Oliveira do Prado (Editora
de mídias sociais), Jayne Oliveira (Analista digital), Kézia Stringhini
Audiovisual
(Redatora on-line), Vitória do Couto (Designer digital) e
Sarah Caravieri (Produtora do programa de rádio Pesquisa Brasil)
Efeméride Parabéns, precisamos de mais médicos
ARTE Claudia Warrak (Editora), O mês de novembro foi do centenário assim (“Pesquisas acadêmicas ganham
Júlia Cherem Rodrigues e Maria Cecilia Felli (Designers),
Alexandre Affonso (Editor de infografia), Felipe Braz (Designer digital), da morte de Lima Barreto (em 1/11) e as telas”).
Amanda Negri (Coordenadora de produção)
esperava alguma matéria sobre as pes- Monica Kestener
FOTÓGRAFO Léo Ramos Chaves
quisas literárias sobre ele, ainda mais
BANCO DE IMAGENS Valter Rodrigues

REVISÃO Alexandre Oliveira e Margô Negro


que coincide com o mês da negritude. Sua opinião é bem-vinda. As mensagens poderão ser re-

COLABORADORES Aline Novais de Almeida, Ana Paula Orlandi,


Adilson Roberto Gonçalves sumidas por motivo de espaço e clareza.
Anna Cunha, Diego Viana, Domingos Zaparolli, Eduardo Geraque,
Giselle Soares, Guilherme Eller, Meghie Rodrigues, Rodrigo Cunha

REVISÃO TÉCNICA Alexandre Falcão, Américo Craveiro,


Ana Maria Fonseca de Almeida, Angela Alonso, Ângela Krabbe
Célio Haddad, Cláudia Regina Plens, Deisy de Souza, Fábio Kon,
ASSINATURAS, RENOVAÇÃO CONTATOS
Jean Ometto, Marcelo Finger, Marta Arretche, Nathan Berkovitz,
Francisco Laurindo, Walter Colli
E MUDANÇA DE ENDEREÇO revistapesquisa.fapesp.br
MARKETING E PUBLICIDADE Paula Iliadis Envie um e-mail para
CIRCULAÇÃO Aparecida Fernandes (Assistente administrativa) redacao@fapesp.br
OPERAÇÕES Andressa Matias assinaturaspesquisa@fapesp.br
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PESQUISA FAPESP 322 | 97


FOTOLAB O CONHECIMENTO EM IMAGENS

Sua pesquisa rende fotos bonitas? Mande para imagempesquisa@fapesp.br


Seu trabalho poderá ser publicado na revista.

Raízes da vida
O tratamento hormonal para superovulação de vacas induz a proliferação de vasos
sanguíneos nos corpos lúteos, as glândulas nos ovários centrais na manutenção da
prenhez. Esse efeito apareceu na imagem (no alto) obtida por microscopia eletrônica
de varredura pelos grupos dos médicos veterinários Carlos Eduardo Bezerra de Moura,
da Universidade Federal Rural do Semi-Árido, e Paula Papa Keohane, da Universidade de
São Paulo. E salta aos olhos com o tratamento artístico por Hilquias de Andrade Costa
para a I Exposição Seridoense de Nanomedicina (embaixo): dos vasos lilases brotam
ramificações bem-sucedidas, em vermelho, e outras abortadas, em amarelo.

Imagem enviada pela bióloga Janine Braz, da Universidade Federal


do Rio Grande do Norte

98 | DEZEMBRO DE 2022
CONFERÊNCIAS FAPESP 60 ANOS

CERIMÔNIA DE ENCERRAMENTO

do Ciclo de Conferências FAPESP 60 ANOS e dos


webinários A ciência no desenvolvimento nacional

Neste evento celebraremos duas das atividades que marcaram as comemorações


dos 60 anos da FAPESP: o ciclo mensal de Conferências, iniciado em junho de 2021, e a

14 DEZ
divulgação do livro FAPESP 60 anos: a ciência no desenvolvimento nacional, com temas
debatidos em webinários promovidos em conjunto com a Aciesp, em 2021 e 2022.

2022
As Conferências FAPESP 60 Anos contaram com a participação de especialistas de
diversas áreas do conhecimento, do Brasil e do exterior, que ofereceram uma versão atual
dos desafios e oportunidades de pesquisa e inovação.
O ciclo teve início com uma conferência do professor Celso Lafer sobre ciência e
diplomacia, seguida por outras 15 com temas de cunho social (pobreza e desigualdade,
10 horas
educação, violência, racismo e riscos à democracia), cultural (memória cultural,
modernismo e cultura digital) e relacionados à sobrevivência de nossa sociedade (meio Auditório da FAPESP
ambiente e sustentabilidade, uso da terra para a produção de alimentos, desenvolvimento
de fármacos e ameaças à saúde global). Os debates trouxeram, ainda, informações novas
sobre o Universo, as novas tecnologias resultantes de pesquisa com materiais quânticos e
os desafios da pesquisa e inovação aplicados à indústria. ABERTURA
Nesta 17ª conferência estarão em pauta o impacto do apoio da FAPESP às atividades Marco Antonio Zago
de pesquisa e inovação e os desafios para a pesquisa no Brasil, com a participação dos Presidente da FAPESP
professores Hernan Chaimovich e Carlos Henrique de Brito Cruz. Ronaldo Pilli
A apresentação do livro da Aciesp será feita por Luiz Eugênio Mello e Adriano Andricopulo. Vice-presidente da FAPESP

PARTICIPAÇÃO

Adriano Andricopulo Carlos H. Brito Cruz Hernan Chaimovich Luiz Eugênio Mello Vanderlan Bolzani Informações e inscrições, acesse
https://60anos.fapesp.br

FAPESP – Rua Pio XI, 1500 – Alto da Lapa – CEP 05468-901 – São Paulo, SP
À VENDA EM BANCAS
DE TODO O PAÍS

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