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SEM FIM
CÉREBRO
3
DARCY 03 CARTA DOS EDITORES 18 O QUE EU CRIEI PARA VOCÊ
Steve, Jobs, Ray Bradbury e por que Uma tinta ambientalmente correta
REVISTA DE JORNALISMO
CI ENTÍ FICO E CULTURAL
DA UN IVERSI DADE DE BRASÍ LIA fazemos Darcy à base de óleo de fritura
06 26
Universidade de Brasília
Vice-Reitor
João Batista de Sousa
escrevem sobre ensino ao entretenimento
08 30
Conselho Editorial
Presidente do Conselho Editorial
Isaac Roitman CARA DARCY FRONTEIRAS DA CIÊNCIA
Professor do Departamento de Biologia Celular
Ex-Decano de Pesquisa e Pós-graduação
Conquistamos uma carta de Triunfo e Luiz Gonzaga Motta escreve sobre a
uma futura leitora experiência do mistério
Coordenador do Conselho Editorial
10 51
Luiz Gonzaga Motta
Professor da Faculdade de Comunicação
EXPEDIENTE
Editores
Ana Beatriz Magno, Érica Montenegro e José Negreiros
Reportagem
Cecília Lopes, Diogo Lopes de Oliveira, Érica
Montenegro, Hugo Costa, João Paulo Vicente, Thássia
Alves; Mariana Vieira e Tiago Padilha (estagiários);
Carolina Pettro (colaboradora)
Colaboradores
Isaac Roitman, José Geraldo de Sousa Junior,
José Otávio Nogueira Guimarães e Luiz Gozaga Motta
(colunas); Bernardo Mueller (texto); Carmen Santhiago
(ilustração); Coletivo Grande Circular (design)
Editor de Arte
Apoena Pinheiro
Design
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Apoena Pinheiro, Marcelo Jatobá e Miguel Vilela
Fotografia
Alexandra Martins, Fábio Tito, Luana Lleras, Luiz Filipe
Barcelos, Marcelo Brandt, Marcelo Jatobá e
Mariana Costa
Relações Públicas
Iêda Campos
Revisão
Christiana Ervilha
Revista darcy
Telefones: 61 3107-0214
E-mail: revistadarcy@unb.br
PERFIL
www.revistadarcy.unb.br
Campus Universitário Darcy Ribeiro
Secretaria de Comunicação
cineasta e roqueiro
Impressão: Gráfica Suprir
Tiragem: 25 mil exemplares
52 LITERATURA
Grande Circular
Três estilos diferentes
de escrever Brasília
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56 UnB 50 ANOS
Criação e consolidação do
Instituto de Geociências
60 ENSAIO
Mauro Giuntini usa a tecnologia
para dar cor à morte
66 EU ME LEMBRO DOSSIÊ
Bernardo Mueller conta como a
UnB influenciou o rock nacional A busca para entender a
parte mais complicada
do ser humano
Wilson Dias/Agência Brasil
34 40
20
46
CLIMA
A ciência explica as Pesquisas repensam o
tragédias naturais equilíbrio
DIÁLOGOS
N
UMA EXPERIÊNCIA NO CEARÁ
Isaac Roitman*
* Professor aposentado da UnB, membro titular da Academia Brasileira de Ciências e Presidente do Conselho Editorial da DARCY
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Ilustração: Apoena Pinheiro/UnB Agência sobre fotografia de Roberto Fleury/UnB Agência
S
A NOSSA EXPERIÊNCIA
José Geraldo de Sousa Junior **
ão apenas 15 anos, mas é possível falar em signifi- quanto do vestibular, com o objetivo de aprimorar os pro-
cados históricos e pedagógicos do PAS (Programa cessos de seleção para os cursos oferecidos pela UnB. E,
de Avaliação Seriada) da Universidade de Brasília. finalmente, também está consolidada a diretriz de fortaleci-
Pedagogicamente, a principal contribuição do mento dos elementos de contextualização e de interdiscipli-
PAS foi melhorar a qualidade de ensino no segundo grau naridade como eixos estruturadores das provas do PAS.
nas redes pública e privada. À base dessas qualificações, esse programa tornou-
O sistema conferiu aos professores de ensino médio o se um instrumento diferenciado, confiável e compartilha-
protagonismo para estabelecer padrões de conhecimento (o do em seus objetivos. Ele não enfatiza a memorização de
que é realmente necessário para enfrentar o exame) e permi- fórmulas, regras e classificações. Ao contrário, estimula o
tiu que novos enfoques ou contextos psicopedagógicos e so- aluno a ser capaz de compreender, raciocinar e analisar
ciais fossem incluídos na seleção dos nossos universitários. questões pertinentes para a sua formação consciente e o
Uma releitura dos pressupostos fundamentadores da torna apto a opinar criticamente acerca dos problemas de
proposta lançada em 1995 e ainda atual, se tomamos por seu tempo e de como agir no mundo.
referência o contorno vigente do Programa, põe em rele- Apesar de esforços notáveis como o PAS terem avan-
vo o que pode ser chamado de uma virada sistêmica. Isso çado na qualificação dos padrões de inteligência e de co-
se caracteriza pela participação efetiva e indispensável de nhecimento requeridos, ainda estão longe de superar os
todos os atores no processo (docentes, pesquisadores, téc- déficits de exclusão: essa é a situação dos vestibulares, em
nicos e administradores, juntamente com professores, téc- que os pobres e os discriminados historicamente parecem
nicos e gestores do ensino médio e também os pais). condenados a serem excluídos.
Essa realidade pode ser alcançada, estruturalmente, por Mas esse é um desafio para governos e políticas públi-
meio de alguns instrumentos de interação que, ainda hoje, cas de acesso, a exemplo das políticas de cotas (na UnB,
distinguem a metodologia do PAS. A criação de Comitês ad praticadas para admissão de negros, de indígenas, e sob
hoc, com participação de professores do ensino médio, arti- forma de bônus, para candidatos a cursos nos novos campi
culados em fóruns por disciplinas, encarrega-se de elaborar das cidades). O grande desafio para o PAS, a partir de uma
propostas de conteúdos programáticos relevantes. cabal avaliação de seu percurso nesses 15 anos, é manter
O Fórum Permanente de Professores contribui para um vigorosamente seus pressupostos históricos e político-pe-
programa de formação e de aperfeiçoamento por meio de dagógicos, a fim de inserir-se no centro dos avanços que
cursos e seminários. A Sala dos Professores é uma ativida- as novas políticas venham a realizar, de modo a alcançar
de realizada durante a aplicação de provas, tanto do PAS sua universalização.
Prezado leitor,
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Sávio Freire/Panoptes Fotografia Criativa
EU CONHECEREI A DARCY
A garotinha aí ao lado é a Yasmin, de 8 meses, futura leitora da
darcy. Ela acompanhava a mãe, Irmina Walczak, doutoranda do
Centro de Estudos e Pesquisa da América Latina (Cepac/UnB) numa
reunião quando foi clicada pelo pai, Sávio Freire. É claro que você
está hipnotizado pelos brilhantes olhos azuis dela, mas, se reparar
bem, do lado direito da foto, vai enxergar um exemplar da 4ª edição
da nossa gloriosa revista. A mãe da Yasmin quer que a pequena se
apaixone pelos livros e, para tanto, procura cercá-la de boas leituras.
RECONHECIMENTO ARQUITETURA
Acompanho a revista desde a primeira edição. Acho Excelente arte e oportuna chamada de capa da edição
formidável a maneira como temas cotidianos se misturam n.º 07 da revista darcy (O que resta do Plano?). A matéria
a matérias acadêmicas com uma abordagem cientifica- aborda um dos principais dilemas deste século: o desen-
mente embasada e interessante. A darcy faz divulgação volvimento acoplado à sustentabilidade. O texto alerta
científica de qualidade. Parabéns! para o iminente caos que o Plano Piloto insiste em não
Paulo Miranda Moreira, graduado em Ciências Biológicas pela UnB, conhecer e faz referência à “inoperância” constante do
Sobradinho-DF Poder Público acerca da expansão imobiliária desenfre-
ada. Que a cuidadosa reportagem sirva de norte aos que
INFORMAÇÃO detêm a responsabilidade de decidir algo relevante na
Primeiramente gostaria de cumprimentá-los e capital da República.
parabenizá-los pela excelente revista. Através dela me Felipe Cabral, jornalista, especializado em Ciência Política
foi possível, por exemplo, saber de um grupo de pesquisa
que está trabalhando com georeferenciamento de ENSINO
mapas antigos, que se aproxima muito de meu projeto Trabalho em sala de aula algumas matérias da revista
de doutorado. O outro motivo desse email é sugerir uma darcy com o propósito de realizar divulgação da ciência
tecnologia free do Issuu que, certamente, tornaria a produzida pela Universidade de Brasília. As matérias
revista muito mais amigável de ser lida. despertam o interesse de muitos alunos que comentam,
Niraldo José do Nascimento, doutorando em Ciência da Informação na UnB após algumas semanas, terem aprofundado os seus
Resposta: Obrigada por acompanhar a revista. Sua conhecimentos ao navegarem também pelo site da UnB.
sugestão será implantada. Arquimedes Belo Paiva, sociólogo e professor universitário, Brasília – DF
EXPANSÃO
PEDIDO É muito importante a revista darcy documentar as
Gostaríamos de receber, para nossa biblioteca, os atividades de ensino, pesquisa e extensão da UnB,
exemplares já publicados da darcy. Acreditamos que a especialmente nesta fase de expansão da Universidade.
revista vai enriquecer as pesquisas do corpo docente José Alencar Carneiro de Freitas, professor da Faculdade de Agronomia e
e discente, principalmente do curso de Comunicação Medicina Veterinário da UnB – Brasília - DF
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DI.CIO.NÁ.RIO
ARQUEOLOGIA DE UMA IDEIA
SAIBA MAIS
Dicionários – Vera Amália Macedo
http://pt.scribd.com/doc/58342477/4/Dicionarios#page=5
10 Em 1975, Aurélio lançou o Novo 11 Com a internet, a humanidade Um passeio pelo dicionário: a origem de um novo discurso, de
Dicionário da Língua Portuguesa, conhecido encontrou um novo jeito de Concísia Lopes dos Santos. Tese defendida no Departamento de
como Dicionário Aurélio ou Aurelião. Em formular e manter atualizados os Letras – Programa de Pós-graduação em Estudos da Linguagem da
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
1977, lançou o Minidicionário da Língua dicionários. O urban dictionary – http://www.cchla.ufrn.br/humanidades/ARTIGOS/GT07/
Portuguesa, o Miniaurélio. Em 1989, especializado em gírias em inglês XVI%20Semana%20de%20Humanidades%20-%20TEXTO.pdf
o Dicionário Aurélio Infantil da Língua – foi criado em 1999 e é escrito
Biografia de Aurélio Buarque de Holanda Ferreira
Portuguesa, com ilustrações do cartunista em tempo real por colaboradores http://aurelio.ig.com.br/dicaureliopos/manual/biografia.asp
Ziraldo, o Aurelinho. Desde então, Aurélio do mundo inteiro. No dicionário
passou a ser sinônimo de dicionário. Em InFormal (criado em 2006), Site da Accademia della Crvsca
http://www.accademiadellacrusca.it/
2001, ganhou a companhia do Houaiss, de palavras em português, os
iniciado pelo linguista Antônio Houaiss em usuários escolhem a melhor forma Página eletrônica da Academia Francesa
1986. Algum dos dois está aí perto de você? de definir determinada palavra. http://www.academie-francaise.fr/
11
PERFIL
VLADIMIR
ROCK
H
da UnB, ele continua jovem aos 76
João Paulo Vicente
Repórter · Revista darcy
otel Nacional, 1969. Convidado para segurar as próprias mãos e escondê-las atrás
o 5º Festival de Brasília do Cinema do corpo. No palco da Villa Lobos, ao lado de
Brasileiro, um jovem cineasta toma músicos da Legião Urbana e da Plebe Rude,
caipirinhas à beira da piscina. O pe- confessou: “Posso sentir meu coração aos pu-
ríodo chuvoso no Cerrado o obriga a esquen- los. No fundo, fiz esse filme para dizer ‘Eu te
tar o corpo antes do mergulho. Sala Villa- amo, Brasília’”.
Lobos, Teatro Nacional, 2011. Um veterano do Tratava-se de uma declaração política. Rock
cinema brasileiro controla a ansiedade dian- Brasília foi finalizado em meio ao escândalo de
te de mais de duas mil pessoas que esperam corrupção do governo Arruda, uma bandalhei-
para ver seu último filme. ra que arrasou a auto-estima da cidade. Nele,
O protagonista das duas cenas é Vladimir Vladimir conta a história dos garotos que, nos
Carvalho, paraibano de Itabaiana, filho de anos 80, criaram uma identidade musical para
Lula, um moveleiro, e de Mazé, uma professora Brasília, que até então estava fora do cenário
primária. Entre elas, passaram-se 42 anos, 23 cultural do país.
filmes e 26 prêmios. No período, Vladimir es-
colheu Brasília para morar, virou professor da ***
UnB, documentou a consolidação da capital e Foi pelo cinema que Vladimir ficou em
influenciou gerações do cinema brasileiro. Brasília. Naquele 69, o segundo curta do diretor
No último dia 26 de setembro, durante a – A Bolandeira – foi selecionado para o Festival
abertura do 44ª festival, o veterano estava e ganhou o prêmio de Melhor Filme ofereci-
visivelmente emocionado, alternava-se entre do pelo Clube de Cinema de Brasília. Não se
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“Lembro-me
de Vladimir
Carvalho, o
Rosselini do
sertão, Vertov
das caatingas,
Flaherty de
Euclides,
máquina
voadora
do pássaro
preto, corte
do Cascavel,
discípulo
do Santo
Linduarte, o
apóstolo de
Geraldo Sarno,
Fotos: Marcelo Brandt/UnB Agência
o poeta de
Paulo Dantas”.
GLAUBER ROCHA
em Revolução no Cinema Novo
13
Carlos Namba
Divulgação na força: Em 84, Vladimir anuncia O Homem de Areia na plataforma do Conjunto Nacional. Ao lado, durante as gravações
do mesmo filme, na Serra do Tendó, Paraíba
“HAVIA DE
raibano dentro de uma sala de aula. “Aí eu, re- terminaram por fazer parte do Rock Brasília,
MINHA PARTE
lutantemente, falei pros alunos sobre a minha como uma entrevista com Renato Russo e o
experiência com o cinema e deu certo.” histórico show da Legião Urbana no Mané
UMA RELAÇÃO
Vladimir Carvalho e Fernando Duarte co- Garrincha que terminou numa quebradeira ge-
COM OS
nheciam-se da primeira etapa do filme Cabra neralizada, em 88. “Ele conseguia perceber o
Marcado para Morrer, de Eduardo Coutinho. fato no momento exato, onde quer que fosse”,
ALUNOS DE
Finalizada apenas em 84, a história sobre o explica Marcos Mendes.
TRABALHAR,
assassinato do líder camponês João Pedro “A filmografia do Vladimir é muito signifi-
Teixeira foi interrompida em 64, por causa da cante porque há uma leitura do Brasil em toda
PENSAR,
ditadura. Na noite em que os militares alcan- obra dele. É um cinema que interage muito
VIVER,
çaram a região onde ocorriam as filmagens, a com a política brasileira e traz à tona histó-
equipe teve de fugir e Vladimir foi o responsá- rias que ficam à margem”, define a professora
INTERPRETAR
vel por esconder a viúva do líder camponês, da FAC Dácia Ibiapina, diretora do documen-
O QUE
Elizabeth Teixeira. tário Vladimir Carvalho: Conterrâneo velho de
“A grande contribuição do Vladimir como Guerra, de 2004, sobre a vida do paraibano.
ACONTECIA
professor, para mim, foi fazer com que os alu-
NA CIDADE”
nos adquirissem uma cidadania brasileira por ***
meio dos filmes que ele exibia em sala”, afir- Os temas, em parte, podem ser atribuí-
14
Walter Carvalho
dos à influência paterna do cineasta. O pai, de Vladimir no ginásio, convidou o ex-aluno região. O resultado foi uma perambulação de
de nome Luís Martins, mas conhecido como para ajudá-lo a escrever o roteiro de Aruanda. anos pelo interior do Nordeste para a produção
Lula, era comunista (Vladimir é uma homena- O filme, um marco do cinema novo e precursor do primeiro longa-metragem, chamado O País
gem à Lênin) e exerceu grande influência no do documentário brasileiro, mostrava um po- de São Saruê. Nesse processo, muito antes de
filho. Escultor de móveis em madeira e jorna- voado fundado por um escravo alforriado no ser professor, já ensinava.
lista ocasional, Lula enviou Vladimir para es- interior da Paraíba. Vladimir arrastou o irmão Walter Carvalho,
tudar fora antes dos 10 anos. Fez isso quando Vladimir estrearia na direção dois anos de- 13 anos mais moço, para as gravações de São
o menino apareceu com uma faca na cintura, pois, com Romeiros da Guia. De certa forma, Saruê. Walter, hoje um consagrado diretor de
presente do avô. o filme parece uma homenagem ao Homem fotografia do Brasil, conta: “ali foi aplicada em
Vladimir foi despachado para a casa de de Aran de Flaherty. Ambos têm como assun- mim uma substância chamada cinema. Eu
uma tia, na capital pernambucana. Lá, duran- to principal pescadores e trazem certa seme- aprendi muito com ele, quando trabalhamos
te a adolescência, conheceu o documentário. lhança no estilo de usar não-atores da região juntos, só quem leva vantagem sou eu”. Em
Lembra assistir a uma cópia de O Homem de para reencenar seu dia a dia. No filme de troca, Vladimir diz que se familiarizou com o
Aran, de Robert Flaherty. “Ali me aconteceu Vladimir, o tema é a romaria de uma comu- rock por meio do irmão.
um chamado a realidade”, destaca Vladimir. nidade de pescadores às ruínas da igreja de “Minha mãe, já viúva, começou a se pre-
Ele atendeu esse chamado anos depois, Nossa Senhora da Guia. ocupar porque o Walter se enturmou com os
em 1960, quando morava em João Pessoa. A vivência nordestina despertou no diretor roqueiros. Isso eu tinha uns 26 anos”, conta
Linduarte Noronha, que havia sido professor a vontade de investigar e revelar a miséria na Vladimir. No papel do homem da família, ele foi
15
Walter Carvalho
O homem e a câmera:
Ao lado, Vladimir no agreste nordestino,
durante as filmagens de O País de
São Saruê. Abaixo, na Fundação
Cinememória, casa localizada na W3 Sul
onde juntou grande coleção de objetos
cinematográficos
16
“SEJA
QUEM FOR,
desvendar esse novo estilo musical. “Eu sou Vladimir sobre a construção de Brasília iniciada
um cara aberto, gostei daquilo, da contesta- com os curtas Brasília Segundo Feldman (79) e
JAMAIS DEVE
ção, da bagunça, ai tranquilizei minha mãe... Perseghini (84), fosse finalizada com o longa
HAVER UMA
Hoje em dia eu nado de braçada nessa ques- Conterrâneos Velhos de Guerra, de 1990.
tão”, brinca, como quem está acostumado a “E era uma correria danada, porque eu ti-
IDEIA PRÉ-
esclarecer o porquê de filmar Rock Brasília. nha dedicação integral à UnB. Então filmava
CONCEBIDA
nas férias de meio de ano e editava nas férias
*** de fim de ano”, conta Vladimir. Ele se recorda
DO QUE VOCÊ
São Saruê estava programado para estre- da década de 70 como um período muito difícil
QUER SABER.
ar no Festival de Brasília de 71, segundo ano na Universidade, época em que o Capitão-de-
de Vladimir na capital. O filme conta a história Mar-e-Guerra José Carlos Azevedo era o reitor
É PRECISO
da exploração do homem pelo homem no ser- da UnB: “ele deixou que a polícia ocupasse o
RESPEITAR O
tão e retrata hábitos e costumes antigos de um campus e humilhasse professores e alunos”.
povo que sofre com a miséria. “Na véspera do “Orgulho-me de ter feito frente a ele. Uma
OUTRO, OUVIR
Festival, fui brutalmente retirado da seleção”, vez, ele (Azevedo) chegou a afirmar que ali
A DIZER.”
do diretor, como Mutirão (76) e O Evangelho crise’”, lembra. Antes de se aposentar em 93,
Segundo Teotônio (84), mas nada tão forte Vladimir foi um dos responsáveis por criar o
como o que aconteceu com São Saruê. “Ele currículo do curso de cinema da UnB, em 85.
foi verdadeiramente interditado, não podia
ser exibido ou lançado de forma alguma”, ex- ***
plica Vladimir. Em 2000, Vladimir lançou o filme Barra 68,
“Com o tempo decorrido, me dei conta de Sem Perder a Ternura. Com imagens de arqui-
que nesses primeiros dez anos de Brasília, um vo, cenas gravadas ao longo dos anos e en-
dos motivos para ficar ali era defender meu trevistas com ex-alunos, ele reconstruiu a in-
filme. O prédio da censura, conhecido como vasão do campus Darcy Ribeiro pela Polícia
Máscara Negra, ficava na capital, e a gente fi- Militar, em 1968.
cava lá, na batalha para que liberassem.” São Vladimir foi eleito professor emérito da UnB
Saruê só seria exibido em 79. “Mas enquanto em agosto de 2011 junto com os ex-professo-
isso não fiquei parado um minuto sequer!” res da FAC Luis Humberto e Carlos Chagas. O
Com apenas três meses de Brasília, Vladimir professor Gustavo Lins Ribeiro, ao defender
já botou as lentes cinematográficas em ação. a distinção, afirmou “se sentir honrado com
O curta Vestibular 70 documentou a tentativa a oportunidade de examinar o processo que
de jovens de todo país de ingressar numa UnB indica o título a três professores cujas trajetó-
onde pairava um pesado clima de repressão rias tanto dignificam a UnB, a vida acadêmica,
pela ditadura. “Brasília me encantou também jornalística, cultural, política e artística brasi-
por ser uma soma de todo o Brasil, o centro liense e brasileira”.
geográfico. A cidade é uma caixa ressonante “Isso para mim é uma consagração, a cul-
dos problemas do país, eles se refletem na ca- minância de um processo de vida em que a
pital”, afirma Vladimir. Universidade teve um papel muito grande. É o
“Como nasci no Nordeste, tinha afetivida- coroamento da minha carreira que se baseia
de instintiva com os nordestinos. Aí vim para em três pilares, praticamente: o cinema, o en-
Brasília e tinha a história oficial da construção, sino e a UnB”, afirma. “Aliás, costumo brincar
épica, dos grandes personagens. Eu fiquei com que eu saí da UnB, mas ela não sai de mim.”
vontade de descobrir a outra história, sobre o A cena final dessa história já foi planeja-
povo que levantou a cidade, os calangos nor- da pelo cineasta: “a UnB é a fiel depositária
destinos que vieram para Brasília fugindo da do meu tesouro”. Ele se refere à Fundação
seca e da miséria como se a capital fosse um Cinememória, uma casa na 703 Sul, virada
verdadeiro Eldorado.” para a avenida W3, que é um verdadeiro mu-
No seu jeito simples, Vladimir partiu em seu do cinema brasiliense. “Isso foi um inci-
busca dessa história. “Assuntava”, como ele dente na minha vida, como coleciono tudo,
próprio diz, com taxistas, comerciantes, pe- guardo tudo, juntei muita coisa, filmes, equi-
dreiros, agricultores. Saía do Plano Piloto e ia pamentos, quase quatro mil livros”, explica.
até as feiras nas cidades satélites (“Satélites Vladimir conversa sem formalidade. Aos
nada, é tudo Brasília!”, deixa claro). Durante 76 anos, parece se sentir mais confortável
esse processo, se deparou com a história do quando é chamado pelo primeiro nome do
massacre de operários nos pátios da constru- que quando ouve um senhor. Quando respon-
tora Pacheco Fernandes Dantas, episódio nun- de as perguntas, o faz da mesma maneira que
ca bem esclarecido. trata os personagens dos seus filmes. “Seja
Decidido a desvendar o caso, novamente quem for, jamais deve haver uma ideia pré-
trombou com a ditadura. Aqueles que tinham concebida do que você quer saber. É preciso
algo a falar sobre o assunto sentiam medo de respeitar o outro, ouvir o que ele tem a dizer.
conversar frente às câmeras. Foi necessário o Por isso sempre deixo uma porta escancarada
fim do governo militar para que a trilogia de para a realidade.”
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O QUE EU CRI EI PARA VOCÊ
Q
transforma resto de fritura em tinta para impressão
Tiago Padilha
Repórter · Revista darcy
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C0
M0
1 000 000
Y 100
K0
C0
M 100
Y0
K0
C0
M 100 1
40%
Y 100
K0 O primeiro passo é recolher o óleo
usado. No laboratório, ele é filtrado O óleo despejado na
para retirar qualquer resíduo sólido. tubulação encarece
Em seguida, o óleo é misturado a um os custos da Caesb
R$ 40
catalisador patenteado pelo laboratório com o tratamento de
e aquecido a 300 graus por cerca de esgoto em
6 horas
R$ 2
tinta já pode ser usada nas
impressões offset
1/2
C 100 Y 0
M 0 K 100
C0
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CLIMA
INTEMPÉRIES
AS NOSSAS
Saiba quais fenômenos naturais ocorrem em nosso
território e quais são os recursos científicos que
existem para prevê-los
Wilson Dias/ABr
S
Diogo Lopes de Oliveira
Repórter · Revista darcy
omos um país bonito por natureza. cia ainda não consegue prever com segurança
Isso não se discute. Mas talvez não são terremotos, tornados e raios. Para todos
sejamos tão abençoados como nos os outros, existe tecnologia suficiente para
acostumamos a crer. Por um lado, não evitar tragédias, o que aumenta a responsa-
temos terremotos de alta magnitude, nem tsu- bilidade dos gestores públicos quando elas
namis, nem avalanches de neve. Por outro, co- ocorrem. Nas próximas páginas, você conhe-
nhecemos o flagelo da seca e das chuvas. E so- cerá os fenômenos naturais que ocorrem em
mos o país do mundo mais afetado por raios. nosso território.
Na linguagem técnica da meteorologia,
calor, frio, vento, chuvas, neve, nevoeiro são TERREMOTOS
chamados de eventos atmosféricos. Cada um De 1500 até hoje, foram registrados mais de
deles tem escalas próprias, mas todos po- 8 mil terremotos no Brasil. Até a década de 50
dem ser divididos em fracos, moderados ou do século passado, as informações sobre aba-
fortes. “De alguma forma todos os países so- los sísmicos eram decorrentes de livros e rela-
frem com algum tipo de catástrofe natural, o tos. Nos anos 70, os registros passaram a ser
Brasil só é privilegiado por não ter avalanches mais confiáveis, mas só a partir de 2003 a rede
de neve, terremotos de grandes proporções, de informações conseguiu capacidade instru-
vulcões e tsunamis”, explica Luiz Cavalcanti, mental para monitorar quase todo o país.
Tragédia no Rio: meteorologista e chefe do Centro de Análise Atualmente, um dos princípios centros de
mais de 700 pessoas e Previsão do Tempo do Instituto Nacional de monitoramento é o Observatório Sismológico
morreram no início de
2011 em enchentes na Meteorologia (INMET). da Universidade de Brasília, localizado no cam-
Região dos Lagos Os únicos fenômenos naturais que a ciên- pus Darcy Ribeiro. Só nos últimos três anos, o
21
Os tremores em
território nacional são
Monitoramento na UnB: chefiado por Lucas Vieira Bastos, Observatório Sismológico é um dos principais centros do país
sismos com magnitudes de até cinco pontos. ocorrer em qualquer lugar, até mesmos onde
Os sismos em território nacional têm a particu- nunca se observou atividade sísmica.
laridade de serem de baixas magnitudes.
O Brasil treme, mas raramente os tremo- ENCHENTES
res provocam estragos como os que aconte- No Brasil, o fenômeno atmosférico que pro-
cem em outras partes do mundo. Há um único duz mais vítimas são as enchentes. No último
registro de morte provocada por terremoto no janeiro, o país viveu um dos piores desastres
país, uma garota morreu em 2007 na cidade naturais de sua história. Na Região dos Lagos,
de Caraíbas, Minas Gerais. no estado do Rio de Janeiro, mais de 700 pes-
O maior terremoto registrado no Brasil soas perderam suas vidas e cerca de 15 mil fo-
aconteceu em 1955, em Porto dos Gaúchos, no ram desalojadas devido às fortes chuvas.
estado do Mato Grosso, a 663 quilômetros de Em 2010, o IBGE publicou levantamento
Cuiabá, com 6,2 pontos. Para se ter uma ideia, mostrando que mais da metade (51%) dos
a bomba atômica lançada sobre o Japão, em municípios tem problemas com inundações,
1945, teve magnitude seis. e desses, 61% admite a ocupação das áre-
Os tremores em território nacional são as inundáveis. Em outras palavras, apesar
reflexo de grandes terremotos na região da de a população sofrer com as consequên-
Cordilheira dos Andes. O geólogo Lucas Vieira cias das chuvas, os gestores públicos reco-
Barros, chefe do Observatório Sismológico da nhecem a desordem na ocupação do solo.
UnB, explica que a litosfera - camada rígida Levantamento recente feito pela Agência
superficial da Terra, está dividida em grandes Nacional de Águas, a partir de dados da
porções, chamadas placas litosféricas ou pla- Defesa Civil Nacional, indica que, no período
cas tectônicas, que se movem a velocidades entre 2007 a abril de 2011, as regiões mais
muito pequenas em diferentes sentidos. atingidas por inundações e enxurradas foram
“A placa Sul-Americana está sujeita princi- o Nordeste e o Sul do País.
palmente a um “empurrão” da cadeia, à co- Para Luiz Cavalcanti, do INMET, as mor-
lisão com as placas de Nazca e do Caribe, a tes decorrentes das chuvas são inaceitáveis.
“raspões” com a placa da Scotia (no sul do “Não adianta termos satélites modernos, mo-
continente americano) e a forças topográfi- delos com previsões de hora em hora e equipes
cas”, comenta Vieira Barros. fantásticas de meteorologistas. Enquanto não
22
www.sxc.hu
Descarga no céu: raios provocam pelo menos uma centena de mortes ao ano apenas no Brasil
existirem políticas sérias, vamos continuar con- raios. “Principalmente o gado sofre com os
tando os mortos”, indigna-se. raios ao estar próximo de cercas durante as
tempestades”, explica.
RAIOS A única “vantagem” é a beleza do fenôme-
Outro fenômeno bastante comum no Brasil no natural, que dura até dois segundos. “Do
– embora desconhecido pela maior parte da ponto de vista técnico e prático não é simples
população – são os raios. O Brasil é o país com conseguir aproveitar os raios”, explica. Isso
a maior concentração de raios no mundo. Por acontece por duas razões: baixa densidade
ano, 60 milhões de raios caem em território energética do raio e a impossibilidade de sa-
nacional e cerca de cem pessoas perdem a ber onde ele vai ocorrer.
vida por causa deles. Desde julho deste ano, o INMET passou a
Até meados da década de 80, os registros integrar a rede global de sensoriamento de
de raios no território nacional eram feitos de raios. Esse sistema permite o monitoramento
forma rudimentar, a partir da simples obser- em toda a América do Sul e parte dos ocea-
vação. Hoje em dia, os modernos recursos de nos adjacentes por meio de satélites. “Com
sensoriamento de raios do INMET conseguem esse novo sistema, o número de raios regis-
precisar o quanto os raios são corriqueiros. trados certamente crescerá”, explica Luiz
Segundo o Grupo de Eletricidade Atmos Cavalcanti, meteorologista do INMET.
férica (ELAT) do Instituto Nacional de Pes
quisas Espaciais (INPE), a incidência de raios SECAS
no país é responsável por 70% dos desliga- Apesar de o nordeste ter sofrido com chu-
mentos na transmissão e 40% dos transforma- vas que devastaram cidades em Pernambuco
dores que são queimados. “Ainda que linhas de e Alagoas este ano, na região é mais comum
alta tensão e edificações tenham proteção, às que seus habitantes sofram com longos perío
vezes os sistemas não suportam a descarga. dos de seca.
Já nas edificações podem ocorrer incêndios Hoje, no entanto, existem sistemas moder-
e danos a telhados e paredes, por exemplo”, nos de detecção de secas e políticas governa-
explica o professor de Engenharia Elétrica da mentais que diminuem o impacto sobre a po-
UnB, Mauro Moura. pulação rural. “Nos anos 50, as pessoas eram
O professor cita ainda a morte de animais obrigadas a migrar para as grandes cidades
como outra consequência da incidência de porque não conseguiam produzir alimento.
23
DESTES, ESTAMOS LIVRES
Temperaturas extremas: Na maior par-
Sistemas de previsão Hoje, nós somos capazes de prever uma seca entre 80 e 120 dias sem chuva”, conta Luiz
aliados a medidas com três meses de antecedência. Além disso, Cavalcanti. Menos de 10% dos incêndios na
de prevenção
nos últimos 30 anos foram construídas bar- região são combustões espontâneas. O res-
ragens e criados de tanques para coleta de tante, de alguma maneira, tem a interferência
conseguem diminuir águas das chuvas”, explica Luiz Cavalcanti. humana, segundo dados da Defesa Civil do
os prejuízos causados
Ele lembra que na metade do século passa- Distrito Federal.
do, milhares de mortes eram causadas pelas Longos períodos de seca também podem
24
chocaram o mundo.
NASA
As ondas de um tsunami podem atingir mais
de 30 metros de altura e viajar a mais de 800
km/h. No entanto, no Brasil, nenhum sinal des-
sa atividade foi percebido.
“O Brasil nunca foi, até onde sabemos, atin-
gido por tsunamis porque as fontes gerado-
ras desse fenômeno não existem no Oceano
Atlântico. Para que um tsunami atinja o Brasil
é necessário que um grande sismo aconteça
na região central do Oceano Atlântico mas lá
ocorrem deslocamentos horizontais das fa-
lhas. Então, é muito baixo o risco de tsunamis
no Brasil”, explica o doutor em geologia Lucas
Vieira Barros, da UnB.
Vulcões: No território brasileiro não há
nenhum vulcão ativo. Em 2010, o vulcão
Eyjafjallajokul entrou em atividade na Islândia
e provocou o fechamento de aeroportos eu-
ropeus e causou transtornos a milhares de
passageiros. O mesmo cenário repetiu-se no Vôos cancelados: fumaça dispersada pela erupção do Puyehue sobre os espaços aéreos do Chile, Argentina e Uruguai
último mês de maio, desta vez devido ao vul-
cão Grimsvotn, também na Islândia. No último
dia 4 de junho a atividade do vulcão chileno
Puyehue fechou o espaço aéreo do Chile, da ou do Peru afete o espaço aéreo no oeste bra- tato com aviões em alta velocidade provocam
Argentina e do Uruguai. sileiro, como ocorreu com os vulcões islande- abrasão em metais e componentes. Isso con-
A instituição responsável por monitorar a ses em relação à Europa. Tudo dependeria da some as palhetas que giram dentro dos com-
dispersão das cinzas vulcânicas na maior par- magnitude da erupção. pressores das turbinas. Essas partículas, ao
te da América do Sul e do Brasil é o Sistema Damiani explica as razões que levam as au- entrarem na câmera de combustão, fundem-
Meteorológico Nacional da Argentina (SMN) toridades a fechar o espaço aéreo em áreas se porque a sua temperatura de fusão é menor
onde funciona o Centro de Avisos de Cinzas próximas a vulcões em atividade: “As cinzas que a do motor. Quando essas partículas ade-
Vulcânicas. Segundo Gabriel Damiani, super- vulcânicas são como vidro moído, em partícu- rem e se depositam nos condutores fazem com
visor operacional do SMN, é possível que al- las muito pequenas de alguns milionésimos de que os motores fiquem praticamente inutiliza-
gum vulcão do norte do Chile e da Argentina metro com bordas muito afiadas, que em con- dos, entre outros problemas menores”.
Em 2004, ocorreu o único furacão registra- Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE)
do no Brasil: o Catarina, que atingiu a costa da www.inpe.br
região sul. Embora à época muitos especialis- Observatório Sismológico da UnB (OBSIS)
tas tenham considerado o fenômeno como um www.obsis.unb.br
25
Ilustrações: Pedro Ernesto/Grande Circular
MÍDIA
26
ESPETÁCULO
TUDO EM NOME DO
Q
Imprensa esportiva privilegia emoção das disputas em detrimento
da reflexão crítica. Autora da dissertação é ex-jogadora de vôlei
Hugo Costa uando a partida é disputada nas aíses, entre eles Estados Unidos, Inglaterra
p
Repórter · Revista darcy redações, quem perde é o conte- e Alemanha, em 2005.
údo. A conclusão está no trabalho Segundo Rowe, apenas 2,5% dos textos
de mestrado da jornalista Verônica analisados abordam os impactos sociais do
Lima da Silva, que além de comu- esporte, 3% falam de financiamento e 5% tra-
nicadora é ex-atleta profissional. Depois de tam de política esportiva. O puro relato das
revisar a bibliografia sobre o tema e analisar competições e de seus preparativos corres-
notícias publicadas na imprensa nacional, ponde à maioria das matérias, está presente
Verônica constatou o que já desconfiava: o em 58% dos textos. Os resultados corroboram
jornalismo esportivo está mais voltado para o a pecha de toy departament do jornalismo es-
entretenimento do que para a crítica. portivo, traduzido de maneira livre na disserta-
A cobertura de esportes está centrada em ção como editoria de entretenimento.
resultados, performances e expectativas. A in- Os dados apurados na imprensa nacional
vestigação jornalística e a apuração de fatores confirmam a tendência de privilegiar o show.
sociais ligados ao esporte ocupam pouco espa- Ainda em sua graduação, em 2004, Verônica
ço e tempo no noticiário. “Existe um jogo de for- analisou 169 matérias em destaque publica-
ça entre esporte, comunicação, economia e po- das no jornal Estado de Minas sobre os Jogos
lítica que conforma o universo esportivo e que, Olímpicos de Atenas. O resultado mostrou que
acredito, não deveria ser excluído da cobertura 85,5% dos textos tratavam de assuntos como
do jornalismo”, ressalta Verônica, que integrou a programação das competições, os prepara-
as seleções brasileiras de base no fim da dé- tivos para as provas e os resultados.
cada de 90 e foi campeã nacional em 2002, Na amostra, fatos curiosos e casualida-
quando defendeu o MRV/Minas na Superliga. des correspondiam a 9,5% das reportagens e
Entre os números que embasam a disser- apenas 5% apontavam a existência de proble-
tação, Verônica destaca o levantamento fei- mas e traziam posicionamentos críticos. “Não
to pelo pesquisador australiano David Rowe, creio que seja preciso extinguir a cobertura
que analisou o conteúdo de 10 mil reporta- mais emocional, voltada para o entretenimen-
gens publicadas em 37 jornais de diversos to. Mas é preciso que ela conviva com abor
27
dagens mais profundas e questionadoras”, não de competir e quem foi o responsável pela
afirma a pesquisadora. Ela acredita que mui- autorização de participação da atleta.
tas matérias são carregadas de paixão porque As publicações informavam que Jade sofria
os repórteres não mantêm o afastamento ne- de uma necrose no captato, pequeno osso da
cessário e se comportam como torcedores. mão, mas os infográficos não continham deta-
lhes anatômicos sobre a origem desse tipo de
JADE BARBOSA lesão, nem indicavam as limitações nos movi-
Para a dissertação de mestrado, Verônica mentos que ele traz. “A informação de que a
Lima da Silva fez um estudo de caso sobre idade óssea de Jade corresponderia à de uma
as notícias publicadas a respeito da lesão pessoa de 50 anos é apresentada sem mais
no punho da ginasta Jade Barbosa duran- explicações, como se fosse natural para uma
Os atletas são
te os Jogos Olímpicos de 2008, realizados atleta jovem apresentar sinais de 30 anos de
na China. Apontada por especialistas da im- desgaste extra”, traz um trecho do trabalho
imprensa como
a jovem de então 17 anos ficou em 10° lugar A dissertação ainda menciona a ausência
na competição, melhor marca da história da de críticas sobre as rotinas de treinamento a
mitos e a rotina ginástica nacional. qual estão expostos os atletas de alto rendi-
de treinos vista
Ao final das olimpíadas chinesas, uma sé- mento. Uma atleta como Jade Barbosa cumpre
rie de acusações entre a família da atleta e até sete horas de treino, o que não é mencio-
como uma espécie a Confederação Brasileira de Ginástica (CBG) nado como possível causa do problema.
de sacrifício
apareceu nos noticiários esportivos. O pai de
Jade, César Barbosa, dizia que a CBG fora ne- MITOS
necessário gligente ao permitir que ela atuasse com pro-
blemas de saúde. A confederação informava
Verônica se opõe ao que chama de “visão
idealizada do esporte”, lamenta a falta de es-
que a ginasta tinha conhecimento de suas tímulo à formação educacional dos atletas e
condições físicas, que havia acompanhamen- alega que os sacrifícios e os sofrimentos são
to médico adequado e ameaçava processar entendidos no universo esportivo como parte
César pelas acusações. do jogo. “A gente tem que começar a questio-
De acordo com a dissertação de Verônica, a nar o valor da medalha”, afirma. “Se um indi-
tensão não foi tratada com os cuidados jorna- víduo coloca de lado a saúde, a educação e
lísticos necessários. Para chegar a essa conclu- seus valores, para que serve a medalha que
são, ela analisou 65 matérias que circularam ele ganha?”
em jornais impressos e na internet e consta- Os atletas são retratados pela imprensa
tou a falta de elementos-chave que esclareces- como mitos e a rotina de treinos vista como
sem o fato. As reportagens não abordaram, por uma espécie de sacrifício necessário. A autora
exemplo, o momento em que a lesão de Jade mostra que os próprios atletas vencedores não
foi diagnosticada, se o trauma a impedia ou se dão conta dos excessos e até demonstram
DESEMPENHO EM QUADRA
O vôlei surgiu para Verônica Lima da Silva ainda na adolescência, no fim dos anos 80. Por
iniciativa própria, aos 12 anos, começou a jogar no Minas Tênis Clube, em Belo Horizonte.
Fã de jogadores de seleção brasileira como Flávia e Carlão, a menina tomou gosto pelo
esporte e começou a praticá-lo com o auxílio de treinadores. A facilidade para jogar foi
reconhecida pelos primeiros técnicos, as habilidades com a bola evoluíram a passos largos
e Verônica começou a ser convocada para integrar as seleções estaduais de base.
Chegar ao selecionado nacional foi questão de tempo. No início da década de 90, ela
integrou a seleção infanto-juvenil (até 17 anos). Em 1994, foi campeã sul-americana da
categoria e eleita a melhor jogadora da competição. No mesmo ano, passou a ser juvenil
(até 19 anos) e mais uma vez fez parte do time que ficou em primeiro lugar no continente.
Com a base juvenil, ainda disputou os Jogos Panamericanos de Mar de Plata, em 1995.
No fim da década, Verônica buscou novos ares e mudou-se para o Havaí. Permaneceu no
território norte-americano por três anos e manteve o compromisso com o vôlei. Em 2000,
disputou o campeonato universitário dos Estados Unidos e ficou em quarto lugar. Dois
anos mais tarde, já de volta ao Brasil, foi campeã da Superliga Nacional defendendo o
MRV Minas, ao lado de jogadoras como Érika, Fofão e Pirv. Aos 25 anos, Verônica deixou o
esporte para dedicar-se ao jornalismo.
28
Wilson Dias/ABr
satisfação por alcançar um patamar acima
das pessoas comuns. Os mitos do esporte ali-
mentam uma outra indústria: a publicidade.
Orientador da dissertação, o professor
Sérgio Porto, vê semelhanças entre o jornalis-
mo esportivo e a imprensa que acompanha a
vida das celebridades. “É um jornalismo que
vive muito das grandes estrelas”. Pós-doutor
em Comunicação Social, Porto avalia que se-
ria “um pouco utópico” pensar numa conver-
são do trabalho da mídia especializada em
esportes para uma abordagem mais crítica e
investigativa.
OUTRO LADO
O Correio Braziliense foi um dos veículos
analisados na pesquisa. Responsável pela Hora da dor: Jade machucou-se em 2007 durante o Panamericano, mesmo assim competiu nas Olimpíadas de 2008
editoria de esporte do jornal em 2008, o jor-
nalista Paulo Rossi discorda das críticas so-
bre a cobertura do caso Jade. “Fizemos sim Juca Kfouri, um dos nomes mais conheci- para as duas coisas: o entretenimento e o jor-
muitas matérias com contrapontos e ouvimos dos e respeitados da mídia esportiva no país, nalismo mais sério”. Ele alerta para os perigos
especialistas. Vários veículos também tiveram avalia que “jornalismo sem aprofundamento da falta de investigação. Entre os riscos, lem-
esse cuidado”, afirma. é enganaçāo e sem espírito critico é empulha- bra que confiar em boatos nas redes sociais da
Quanto à avaliação de que o jornalismo es- ção”. Colunista da Folha de S. Paulo, veículo internet pode gerar “barrigadas”, jargão atribu-
portivo tem um quê de superficialidade, Rossi também analisado na dissertação, Juca con- ído a publicação de informações erradas pela
diz que essa é uma “visão antiga” e que não sidera que o periódico paulistano acompa- mídia. “É preciso apurar sempre”, reforça.
se aplica às publicações mais respeitadas. “O nhou bem o caso da lesão de Jade, ao contrá- Editor por 12 anos do Globo Esporte em
jornalismo esportivo é cada vez mais multidis- rio do que observou nas coberturas das tevês. Brasília, Rogério Ippoliti enxerga superficiali-
ciplinar e tem exigido mais dos profissionais A prevalência do entretenimento no noticiário dade nas reportagens, mas diz que essa não
nos últimos anos. Análises mais profundas esportivo é criticada pelo jornalista por ele. é uma característica exclusiva da imprensa es-
têm sido feitas.” Reportagens sobre os gastos “O entretenimento deve fazer parte, mas ja- portiva. “Falta uma visão mais crítica de ma-
e as dificuldades para a realização da Copa mais ser o grande filāo. O grande filāo deve neira geral. Essa abordagem rasa também é
do Mundo e das Olimpíadas são mencionadas ser a informação bem apurada daquilo que se perceptível nas demais editorias”, afirma o jor-
pelo jornalista como exemplos da investigação quer esconder”. nalista, hoje na TV Brasil. “O papel investigati-
feita por profissionais da área. Rossi deixou a Coordenador de esportes da Rádio CBN, vo e a liberdade de imprensa são muitas vezes
redação do Correio no início do ano, após mais André Sanches diz considerar pertinentes as limitados pelos interesses dos próprios meios
de 20 anos de trabalho na publicação. observações feitas na dissertação. “Há espaço de comunicação”, acrescenta.
EU FAÇO CIÊNCIA
Quem é a pesquisadora: Verônica Lima da
Arquivo pessoal
29
FRONTEIRAS DA CIÊNCIA
A EXPERIÊNCIA
gum tempo e ao final se apaga, permitindo ao
espírito desembocar de novo no profano.
Q
DO MISTÉRIO
Pode estalar-se de súbito no espírito, entre
embates e convulsões, levar à embriaguez ou
êxtase. Apresenta-se, então, de forma feroz e
Luiz Gonzaga Motta * demoníaca, fundindo a alma em horrores e es-
pantos bruxescos. O que nos lembra os espas-
uantas vezes, no transcurso regular mos experimentados por seguidores de algu-
de nossas vidas, nos deparamos com mas seitas pentecostais, muito comuns hoje
algum fenômeno que nos transtorna nas nossas telas de TV.
e assombra, que não compreende- Se não podemos explicar essas experiências
mos nem sabemos explicar? Não falo de sur- por palavras, podemos fazê-lo através de con-
presas corriqueiras, mas de algo que provoca traposições e analogia. Numa primeira analo-
uma inquietação mais profunda que o simples gia a respeito dos aspectos do tremendo, Rudolf
susto com os imprevistos cotidianos. Falo de Otto iguala tremor a temor, sentimento natural
Carmen Santhiago
fenômenos que nos remetem a processos psí- bastante conhecido. Mas tremor, diz ele, não
quicos difíceis de serem descritos em pala- é exatamente atemorizar-se. O mistério, fenô-
vras, de um sentimento que talvez possa ser meno que estamos procurando circunscrever,
definido como encontro com uma grandeza pode ter uma dimensão de pavor religioso. Seu
exterior absoluta. Filósofos, psicólogos e teó- grau mais primitivo pode corresponder a um
logos chamam essa experiência de mistério, pavor demoníaco, a um terror fantasmagórico,
do grego mysterion (coisa secreta, que não se sentimento inquietante de onde surgiram e evo- pressão integradora majestad tremenda. Esse
pode explicar). luíram historicamente todas as religiões. novo elemento corresponde, no sujeito, a um
Para explorar a experiência do mistério, to- Ainda que tenha em comum o desassosse- sentimento de submissão, de aniquilação que
marei como referência as reflexões do teólogo go, o sentimento que estamos buscando iden- constitui a matéria prima para a humildade re-
e historiador alemão Rudolf Otto, falecido em tificar aqui vai além do simples pavor demo ligiosa, e que recupera então, como um efeito,
1937, autor de um livro sobre a ideia do sa- níaco. Esse tremor, ao ser referido a um objeto o sentimento de dependência acima mencio-
grado (Das Heilige), publicado originalmente numinoso, que é a sua causa, descobre a có- nado: a sombra projetada sobre o sentimen-
em 1917, traduzido para mais de 30 idiomas, lera divina (ira deorum), que tem parentesco to que tenho de mim mesmo procede de um
mas relativamente pouco conhecido por aqui. com o pavor demoníaco. objeto exterior. O sentimento de inferioridade
A publicação de seu livro no Brasil demorou A cólera divina tem pouco a ver com ques- decorre muito mais da irracional ideia de impo-
90 anos. Otto toma como ponto de partida a tões morais, descadeia-se misteriosamente tência frente à onipotência divina. Por um lado,
ideia do numinoso, experiência não-racional como uma força obscura, como uma eletri- conduz à aniquilação do sujeito; por outro, à
cujo objeto é algo externo ao sujeito, aqueles cidade acumulada que se descarrega sobre realidade única e total do Ser transcendente.
fenômenos incompreensíveis e inexplicáveis quem se aproxima: é uma expressão natural Finalmente Otto chega a uma terceira di-
do plano mais profundo da realidade. de uma santidade. Essa ira não é senão uma mensão, ou qualidade do tremendo mistério:
No momento em que experimentamos um expressão do tremendum, diz Otto. Mas vista a energia que evoca expressões simbólicas
desassossego frente ao inexplicável passa- assim, ela é apenas uma analogia, um simples como paixão, vontade, força, impulso. Por
mos por um sentimento de “dependência ab- signo alusivo de um componente sentimen- mais racionais e instruídos que sejam os ho-
soluta”, que guarda certo parentesco com a tal da expressão religiosa, ainda que muitas mens, nenhum de nós escapa da experiência
dependência no sentido natural da palavra: in- vezes transtorne aqueles que só querem ver do mistério porque nenhum de nós pode elimi-
suficiência, carência ou sujeição. Mas a expe- amor, ternura e compaixão nas divindades. Na nar a transcendência afetiva de nossos pro-
riência do mistério não é do mesmo tipo nem concepção ético-racional, banaliza-se na ma- cessos psíquicos. Ela pode manifestar-se num
dimensão. Implica um desestímulo do sujeito nifestação da justiça divina e na punição. temor demoníaco e levar pessoas desespera-
diante de si mesmo, na medida em que a co- Ainda por analogia, Rudolf Otto avança das a êxtases toscos. Pode manifestar-se num
moção se relaciona a algo inacessível, a uma sobre uma segunda dimensão do tremendo deslumbramento mais comedido e contempla-
carência espiritual do sujeito frente a algo mistério, a prepotência ou majestas: a ina- tivo, como nas meditações e orações íntimas.
transcendental, grande demais para ser ex- cessibilidade absoluta, à qual ele agrega ou- A vida profana jamais elimina algum tipo de
presso em palavras. tro elemento, a onipotência, utilizando a ex- vibração espiritual.
30
DOSSIÊ
Érica Montenegro, João Paulo Vicente e Thássia Alves Repórteres · Revista darcy · Grande Circular Design e ilustrações
31
DOSSIÊ
NOVAS PESQUISAS
DESCOMPLICAM O CÉREBRO
A
João Paulo Vicente
Repórter · Revista darcy
té o século XIX, uma das formas de havia sido em vida. Como se pode imaginar, máquina compartimentada, mas sim como um
estudar o cérebro era a frenologia, os erros eram constantes. todo integrado.
técnica pela qual apalpava-se a ca- Um cenário muito distante dos dias de hoje, O professor Carlos Tomaz, do Laboratório
beça de uma pessoa, analisando as quando grande parte do trabalho é feito com de Neurociências e Comportamento do
protuberâncias e saliências para descrever pequenos eletrodos ligados ao couro cabeludo Instituto de Biologia, defende que o cérebro
suas características e comportamento. ou grandes aparelhos de ressonância magné- deve ser visto no conjunto, como um todo. “O
Um dos entusiastas da teoria era o po- tica. As novas máquinas são capazes de pro- papel de uma estrutura é integrar um siste-
eta americano Walt Whitman (1819-1892). duzir neuroimagens precisas, que dão indícios ma”, afirma. Ele exemplifica o caso com a me-
Decidido a contribuir para os estudos na área, de como ocorre a atividade dos neurônios e mória de uma maçã. Pode-se identificar que
Whitman deixou em testamento seu cérebro que regiões apresentam anomalias. áreas do cérebro registram a fruta como ver-
para a Sociedade Antropométrica Americana. Entre as pesquisas atuais, muitas buscam melha e arredondada, mas o conceito do que
Infelizmente, um assistente derrubou a massa desvendar como determinadas áreas do cé- é, em si, a maçã é maior que essas caracterís-
encefálica no chão e os restos do poeta foram rebro controlam e se relacionam com algum ticas. “O processo cerebral é muito dinâmico”,
parar no lixo. sentido, órgão ou com o desempenho de ativi- explica o professor.
A frenologia não resistiu aos testes du- dades específicas do corpo humano. Em con- Tomaz aponta o que para ele é a frontei-
plo-cego que começaram a ser realizados trapartida, existe outra vertente de trabalho ra a ser desbravada no cérebro: o estudo da
no fim do século XIX. Nesse tipo de exame, que, apesar de não negar a preponderância consciência. Isto é, como se formam os pensa-
o frenólogo analisava uma caixa craniana dessas áreas sobre determinadas atividades, mentos e como os indivíduos evoluem em seu
de uma pessoa morta para afirmar como ela acredita que o cérebro não funciona como uma auto-conhecimento. “Por mais que os instru-
32
mentos que temos sejam avançados tecnolo- neurociências, nem esta pode ignorar as dis- usa uma metáfora para explicar o problema. É
gicamente, ainda não existe a ferramenta ne- cussões filosóficas, e tampouco a concepção como se cada pesquisa, cada avanço, fosse
cessária para fazer uma introspecção do eu”, de senso comum do que nos constitui como uma peça de um grande quebra-cabeça. De
reflete Tomaz. seres humanos”. nada adianta olhar cada peça isoladamente,
“Existe uma posição muito confortável en- A multiplicidade de perguntas é um estímulo é preciso ter uma visão completa. O somatório
tre cientistas de apresentar seus dados e se para os pesquisadores. Raphael Boechat, psi- das partes é maior que o todo. Para complicar
segurar neles. É preciso ir além, interpretar es- quiatra e professor da Faculdade de Medicina, ainda mais, Tomaz lembra que cada bom tra-
ses dados, questionar as implicações éticas, conta que a motivação para se especializar no balho levanta novas perguntas.
inserir essas informações dentro de uma vi- campo é justamente o fato das doenças psi- Isso, no entanto, não minimiza as pesqui-
são global. Aí nós começamos a entender o quiátricas não terem uma causa determina- sas e descobertas da neurociência. São “pas-
ser humano.” da. “Não é uma questão de ação e reação. sos de formiguinha”, como define Tomaz, que
Para Tomaz, uma necessidade na busca Patologias como a esquizofrenia, por exemplo, muito fazem pelo avanço da ciência. Estudos
de entender a consciência é uma aproxima- têm muitas causas. E, em virtude disso, exis- sobre a memória, problemas auditivos e equilí-
ção entre os que pesquisam o cérebro a par- tem muitas respostas para entendê-la.” brio mostram pesquisadores dedicados a des-
tir do ponto de vista das neurociências com “É muito difícil ser cientista, a gente não vendar enigmas que podem facilitar o dia a dia
áreas como a filosofia e a psicologia. O pro- sabe nada”, afirma o professor Tomaz. Com de milhões de pessoas. Leia nas próximas pá-
fessor Paulo Abrantes, do Departamento de 35 anos de carreira acadêmica, ele não sente ginas como os pesquisadores da Universidade
Filosofia, concorda: “Nem a filosofia da mente vergonha em admitir que as vezes se frustra de Brasília estão desvendando o órgão mais
pode ignorar o que é feito na psicologia e nas com o quão pouco se sabe sobre o cérebro. Ele complexo do ser humano.
33
DOSSIÊ
34
M
esmo depois de uma década, a ticas externas alterassem os dados captados MAPAS DA CABEÇA
maioria das pessoas é capaz de pelo EEG, os voluntários se sentavam dentro “Sem dúvida nenhuma, a maior contribui-
lembrar o que fazia e onde esta- de uma armação de metal que isolava o am- ção do trabalho é o mapeamento topográfico
va na manhã de 11 de setembro de biente como uma gaiola de Faraday (ali dentro de quais áreas estão envolvidas em determi-
2001. O impacto das imagens de aviões explo- não funcionam internet sem fio ou celulares, nado momento da formação e recordação de
dindo contra as torres gêmeas do World Trade por exemplo). memória no contexto emocional. Na realidade,
Center cravou na memória detalhes daquela Uribe também queria saber a influência do isso é uma grande contribuição da UnB para
terça-feira. Agora tente recordar algo da segun- contexto emocional sobre a memória. “A maio- os estudos sobre o cérebro”, orgulha-se o pro-
da, dia 10, ou da quarta, dia 12. Conseguiu? ria das pesquisas nessa área enfoca o conteú- fessor Tomaz.
Provavelmente não, e a explicação para isso do emocional”, conta o pesquisador. No caso Para simplificar, o autor da tese responde
está na memória emocional. Acontecimentos do World Trade Center, por exemplo, é o con- que as áreas envolvidas na formação da me-
emocionalmente significantes são fixados e, texto de realidade que torna as explosões tão mória emocional são as partes frontal e parie-
posteriormente, relembrados com maior faci- marcantes. Se as imagens (conteúdo) estives- tal do hemisfério esquerdo do cérebro, ou seja,
lidade do que outros sem essa característica. sem em um filme de ação (contexto de ficção) a frente e a parte de cima. Isso, no entanto, re-
Até aí, nenhuma novidade. “A noção de que elas não seriam tão lembradas. flete apenas a atividade no córtex, a camada
as emoções afetam a memória remonta aos Durante o teste os voluntários foram divi- mais superficial do cérebro.
escritos de Francis Bacon”, afirma o professor didos em dois grupos e acompanharam duas “O EEG tem a limitação de captar principal-
Carlos Tomaz, em relação ao cientista inglês histórias compostas pelo mesmo conjunto de mente os estímulos mais superficiais”, explica
que viveu entre 1561 e 1626. 11 imagens (conteúdos), mas narradas (con- Uribe. Essa limitação, no entanto, é pequena
Tomaz é um dos professores responsáveis texto) de maneiras diferentes. O começo e o comparada às vantagens do equipamento. O
pelo Laboratório de Neurociências da UnB, lo- final das narrações eram iguais, mas o trecho pesquisador não queria apenas saber onde as
calizado no Instituto de Biologia. Recentemente, intermediário era carregado de emoção em respostas elétricas eram desencadeadas, mas
ele orientou uma pesquisa de doutorado que é uma delas e indiferente na outra. sim descrever com precisão de milésimos de
mais um passo em busca de resolução da par- Como as imagens se mantinham idênticas segundos em que momentos isso se dava, jus-
te realmente difícil da relação entre memória e nos dois casos, as diferenças de respostas ce- tamente o que o EEG proporciona.
emoção: descobrir como a presença da segun- rebrais eram relativas às informações revela- Como a narração referente a cada imagem
da afeta a formação da primeira. das pelo áudio e pela forma como isso modifi- da história era apresentada um segundo antes
O grande avanço da pesquisa é um mapea- cava a compreensão das imagens. da imagem correlata, ele media a atividade do
mento visual preciso da atividade cerebral que Uma semana depois da primeira sessão, os cérebro num intervalo entre 0,5 segundo antes
indica como variam diversas frequências de voluntários foram novamente chamados e ti- e 2 segundos depois do aparecimento da foto.
ondas elétricas emitidas por neurônios em in- verem de fazer dois tipos de testes. Em um de- Na hora de fazer a análise final, porém, Uribe
tervalos temporais de milésimos de segundos. les, eram expostos a um total de 47 imagens e debruçou-se apenas nos 800 milissegundos
Para conseguir essas imagens, ele sub- tinham que apertar um botão quando reconhe- (0,8 segundos) que se seguiam ao momento
meteu 26 voluntários a um teste enquanto os ciam uma delas da semana anterior. No outro, do estímulo visual.
analisava com um eletroencefalograma (EEG). faziam um relato escrito da história. Para cada um desses milissegundos, ele tinha
O nome complicado não condiz com o equipa- No teste de reconhecimento com as ima- a leitura de toda atividade elétrica em cada um
mento. Trata-se de um pequeno receptor co- gens, não houve grandes diferenças entre os dos 21 eletrodos colocados na cabeça dos volun-
nectado a eletrodos que são presos a pontos dois grupos. Já na descrição, a acuidade dos tários. Nesse ponto, ele deu um passo adiante.
determinados no couro cabeludo dos voluntá- que ouviram a narração emocional foi consi- A atividade elétrica, medida em microvolts ( V
rios. No outro lado da linha, um computador lê deravelmente maior. “Isso demonstra que o – equivalente a 0,000001 volts), é composta por
e processa os dados gerados pela máquina. contexto emocional faz que com as pessoas uma grande quantidade de frequências.
Para evitar que interferências eletromagné- gravem mais detalhes” explica Uribe. É possível dividir essas frequências em fai-
ACONTECIMENTOS
EMOCIONALMENTE
IMPORTANTES SÃO
FIXADOS COM
MAIOR EFICIÊNCIA
PELO CÉREBRO
36
xas que designam uma onda que tem determi- O TESTE Os dois grupos de voluntários ouvem
nado efeito sob o cérebro. “É como se estivésse- narrativas distintas. Para um dos grupos, a
história é normal (N), para o outro, a história
mos escrevendo a partitura de uma orquestra”, tem fortes características emocionais (E)
explica Carlos. A atividade elétrica cerebral
como um todo seria a música e as frequências
de ondas seriam os sons produzidos por cada
um dos instrumentos individualmente.
Uribe analisou a presença de quatro des-
sas ondas: Teta (de frequência mais baixa),
Alfa, Beta e Gama (de frequências mais altas).
“Muitas pessoas tentam atribuir funções espe-
cíficas para cada frequência, mas isso não tem
sido muito frutífero”, afirma o pesquisador.
“Na verdade, parece que essas frequên-
cias tem a ver com funções mais gerais do
cérebro definidas pela área onde aparecem.”
Considera-se que as ondas Gama, por exem-
plo, estão relacionadas à comunicação entre
regiões vizinhas do cérebro.
A partir dessa análise, Carlos Uribe cons-
truiu dois tipos de gráficos. Num deles está re-
presentada a atividade em cada um dos eletro-
dos, para cada tipo de onda, tanto no momento A narrativa é dividida em 11
em que os voluntários assistiram à história pela pequenos trechos. Depois que
os voluntários ouvem cada um
primeira vez quanto na semana seguinte, quan- desses trechos, é exibida uma
do foram convidados a reconhecer as imagens. imagem que o acompanha.
Nesse gráfico, a atividade está descrita durante As 11 imagens exibidas são
idênticas para os dois grupos,
todo o intervalo de 0,8 segundos. ou seja, visualmente não há
O outro gráfico são as imagens topográfi- diferença entre as histórias
cas da atividade de cada onda na parte su- normal e emocional
37
O RESULTADO
21 eletrodos ligados à cabeça
dos voluntários registram a
atividade cerebral no córtex
enquanto o teste ocorre
38
Os impulsos elétricos fazem parte do “Uma das pesquisas que fazemos em
processo de comunicação entre os parceria com o professor Joseph Huston,
neurônios, as células que compõem o da Universidade de Düsseldorf (Universität
cérebro. A frequência de geração dos Düsseldorf), é tentar desvendar o papel
impulsos em cada neurônio pode ser alta ou dos neurotransmissores na formação da
baixa. Esses impulsos viajam pelo neurônio e memória”, afirma Carlos Tomaz.
IMPULSOS ELÉTRICOS ativam a liberação de neurotransmissores.
Dopamina, serotonina, endorfina, todas
Os neurotransmissores são substâncias essas substâncias com nomes conhecidos
químicas que agem nas sinapses, o espaço são neurotransmissoras. “Por enquanto,
que existe entre dois neurônios. Os diversos sabemos que o neurotransmissor
tipos de neurotransmissores transmitem glutamato, que envolve sinapses
informações variadas que são interpretadas de longo prazo, está relacionado ao
por meio de novos estímulos elétricos pelos armazenamento das memórias”, conta o
neurônios que os recebem. professor Tomaz.
39
DOSSIÊ
LÁÁÁÁÁÁÁÁÁÁÁÁÁÁÁÁ...
Técnicas de neuroestimulação pretendem
inibir o zumbido auditivo. Mal afeta pelo
menos 28 milhões de brasileiros
Thássia Alves
Repórter · Revista darcy
40
R
obert Alexander Schumann (1810-1856), maior compositor do
romantismo alemão, sofria de um mal que, literalmente, tirou-
lhe o juízo. O pianista ouvia um insistente lááááááááááááááááá
onde quer que estivesse. Em ambientes silenciosos, o volume
aumentava. Era como se a tecla de seu piano correspondente ao som
estivesse permanentemente apertada.
O barulho inabalável pode ter sido uma das causas para os inúmeros
surtos mentais que marcaram a biografia de Schumann. Em 1854, o en-
tão regente da orquestra de Düsseldorf tentou o suicídio, atirando-se no
rio Reno. Em 1856, com a saúde física bastante fragilizada, internou-se
num asilo para tratar delírios de perseguição cada vez mais frequentes.
Lá, morreria, num fim prematuro para uma carreira brilhante.
Um século e meio depois, a cura para o mal que atrapalhava a con-
centração do esplêndido pianista ainda não foi encontrada. Os cientis-
tas sequer conhecem o que provoca o zumbido, problema de audição
que aflige pelo menos 28 milhões de brasileiros de acordo com estima-
tivas da Organização Mundial de Saúde (OMS).
Neste semestre, pesquisadores da Univer terno do médio e vibra cada vez que se depara
sidade de Brasília (UnB) iniciarão testes iné- com um som.
ditos com técnicas de neuroestimulação em Dentro da orelha, três ossinhos agem como
busca de uma alternativa de tratamento. Até amplificadores das vibrações: martelo, que
aqui, o conselho médico oferecido aos pacien- diante da menor oscilação chacoalha a bigor-
tes é de que se acostumem com o som inces- na, osso vizinho que, por sua vez, transfere o
sante. Alguns truques como abafar o barulho movimento para o estribo. No ouvido interno,
com outros ruídos também são sugeridos. a cóclea – parecida com um casco de cara-
mujo - transforma as vibrações em impulsos
DEFEITO elétricos, e dessa forma, os sons são levados
Em um processo de audição normal, a ore- ao cérebro pelo nervo auditivo.
lha capta as ondas sonoras, que deslizam pelo O funcionamento do córtex auditivo pode
ar até chegar ao canal auditivo. Durante o per- ser comparado ao de um piano, instrumento
curso, as ondas vão se tornando mais inten- estudado com afinco por Schumann. “Cada
sas à medida que o túnel fica menor. Ao fim nota é representada por uma tecla, que ao
do canal auditivo, o som encontra o tímpano, invés de ser tocada por um dedo é acionada
delicada membrana que separa o ouvido ex- por um neurônio”, explica o professor Joaquim
A AUDIÇÃO
As ondas sonoras chegam Este, por sua vez, faz os três As vibrações são passadas para a cóclea (4), onde
até o aparelho auditivo (1) e ossos da orelha (martelo, viram impulsos nervosos (sinais eletroquímico) que
fazem o tímpano vibrar (2) bigorna e estribo) vibrarem (3) são transmitidos ao cérebro pelo nervo auditivo (5)
42
O ZUMBIDO
Dentro do cérebro,
neurônios especializados
reagem aos impulsos
nervosos, interpretando as
diferentes freqüências do
som. Como teclas de um
O FUNCIONAMENTO
piano, alguns neurônios
respondem quando o som é
DO CÓRTEX
mais agudo; outros, quando
é mais grave
UM PIANO
de ouvir os sons mais
agudos. Nos pacientes que
desenvolvem zumbido,
acontece o contrário.
O cérebro interpreta os
sons como se as teclas
de agudo/neurônios
especializados estivessem
continuamente apertadas/
acionados
Pereira Brasil Neto, professor do Instituto de da Saúde, Karini Cavalcanti, testará duas téc-
Biologia e orientador da pesquisa que testará nicas de neuroestimulação.
a neuroestimulação. Há neurônios especiali- Por meio da estimulação magnética trans-
zados em reagir a diferentes frequências do craniana de repetição e da estimulação trans-
som. Alguns respondem quando o tom é mais craniana por corrente direta (TDCs), Karini
agudo, outros quando é mais grave. tentará reequibilibrar o sistema cerebral de
Nos ouvidos que zunem, o piano está com percepção de sons dos voluntários. A pesqui-
defeito: os neurônios não conseguem fazer a sa será pioneira ao comparar os resultados
interpretação correta dos sons. “O normal se- obtidos pelas duas técnicas. Outros trabalhos
ria que os neurônios que interpretam os agu- semelhantes, também com a utilização de téc-
dos parassem de funcionar com o tempo pois nicas de neuroestimulação, estão conseguin-
a cóclea perde a capacidade de reagir a frequ- do avanços no tratamento da epilepsia e de
ências mais altas. Mas, por alguma razão mis- distúrbios psiquiátricos.
teriosa, os neurônios continuam funcionando O protocolo dos experimentos ainda de-
e, pior, respondendo a outros tons”, completa o pende de aprovação na Comissão de Ética da
professor Joaquim Pereira Brasil Neto. Faculdade de Ciências da Saúde. A pesquisa-
dora planeja aplicar as técnicas em 40 pacien-
NEUROESTIMULAÇÃO tes com idade superior a 18 anos, portadores
Em busca de soluções para corrigir o pro- de zumbido por mais de seis meses e perda
blema, a mestranda da Faculdade de Ciências auditiva comprovada por laudo médico.
43
O SILÊNCIO
A pesquisa desenvolvida na UnB tentará reequilibrar o sistema
nervoso por meio da neuroestimulação
O TRATAMENTO
PROMETE SER
SIMPLES, RÁPIDO,
E INDOLOR
Na estimulação elétrica
transcraniana, a pesquisadora usará
eletrodos para aplicar uma corrente
fraca, com amperagem entre 0,5 e 2
miliampères, no paciente
44
Os registros mais antigos do uso da eletricidade para curar doenças
datam de 2.750 a.C.. Peixes elétricos eram usados para produzir
choques e assim sanar dores. Scribonius Largus, médico do imperador
Cláudio (10 a.C. a 54 d.C) na Roma Antiga, descreveu a aplicação de
PEIXES PARA CURAR descarga elétrica com fonte em peixes para o tratamento de dores
DOR DE CABEÇA de cabeça. Largus publicou em latim o receituário de medicina De
compositione medicamentorum, onde indicava a utilização de drogas
e prescrições. “Os peixes eram colocados na cabeça dos pacientes
que sofriam com dores crônicas”, afirma o pesquisador Ronney Jorge.
O uso dos animais é anterior à descoberta da pilha voltaica, feita por
Alessandro Volta (1745 – 1827), e das pesquisas de Luigi Galvani (1737
– 1798), que descobriu que músculos e células nervosas eram capazes
de produzir eletricidade em estudos em coxas de rã.
45
DOSSIÊ
DO PÉ
NA PONTA Estudos com pacientes
sobreviventes de acidente
vascular encefálico desafiam
um dos cânones da fisioterapia:
o de que o equilíbrio da postura
depende da simetria
Érica Montenegro
Repórter · Revista darcy
46
A POSTURA
O controle da postura de pé
é feito pelo sistema nervoso,
composto pelo sistema nervoso
central (encéfalo e medula)
e sistema nervoso periférico
(fibras nervosas)
A informação visual do
ambiente, obtida pelos olhos
N
A informação tátil, obtida
pelo contato do corpo com as
superfícies do pé com o chão
este exato momento, seu cérebro danos cerebrais podem resultar em perda na ser a melhor estratégia. “Acreditamos que o
lhe dá ordens para que, entre outras capacidade de produzir tais ordens. cérebro responde aos danos cerebrais buscan-
coisas, você respire, relaxe o corpo, A principal consequência dos AVEs é com- do novas possibilidades de funcionamento e, a
leia este texto e interprete estas pa- prometer parcial ou totalmente os movimentos partir daí, desenvolve suas próprias estratégias
lavras. Caso esteja de pé, o seu cérebro, entre do lado contrário ao hemisfério cerebral danifi- de compensação. Uma dessas estratégias pode
muitas outras coisas, está coordenando ossos, cado. Os pacientes com sequelas são chama- ser a assimetria”, afirma o professor Emerson
articulações e músculos do seu corpo para que dos de hemiparéticos ou hemiplégicos – pala- Fachin Martins, líder do grupo.
você não caia. vras de origem grega que significam algo como
O controle dos movimentos e posturas é fei- “paralisado pela metade”. NEUROPLASTICIDADE
to pelo sistema nervoso, que inclui o sistema As pesquisas do grupo que questionam
nervoso central e o periférico. O sistema ner- SIMETRIA um dos cânones da fisioterapia - a simetria
voso central é composto pelo encéfalo e pela Até aqui, a maioria dos fisioterapeutas su- como sendo a melhor estratégia de equilí-
medula espinhal que estão, respectivamente, gere que o equilíbrio seja retomado pela si- brio - começaram quase que de maneira aci-
dentro do crânio e da coluna vertebral. O siste- metria na distribuição do peso sobre os pés. dental. O professor Emerson dava aulas na
ma nervoso periférico é constituído pelas fibras Ou seja, os profissionais de saúde treinam Universidade Municipal de São Caetano do
nervosas que estão presentes por todo o corpo. os pacientes de AVE para que eles consigam Sul, na região do grande ABC Paulista, quan-
Por impulso elétrico, as fibras nervosas levam e voltar a dividir o peso de maneira semelhan- do orientou um trabalho de conclusão de cur-
trazem informações necessárias para cumprir te entre os dois lados do corpo. Dependendo so envolvendo hemiparéticos. O ano era 2008
as funções, entre elas - o controle postural. do comprometimento dos movimentos, os fi- e 14 pacientes foram submetidos a um teste
Em pessoas sadias, o equilíbrio necessário sioterapeutas recomendam, inclusive, que os de alcance funcional.
para permanecer de pé, andar ou correr é con- pacientes usem bengalas, andadores ou ou- A conclusão do trabalho foi totalmente
seguido dividindo o peso de maneira pratica- tros dispositivos de apoio até que a simetria inesperada: quanto mais assimétrico era o
mente igual (simétrica) entre os dois lados do perdida seja alcançada. paciente, melhor o desempenho dele no teste
corpo. O cérebro dá as ordens e o corpo auto- Estudos desenvolvidos no Laboratório de de alcance funcional. No final dos anos 90, os
maticamente as cumpre. Em pessoas que so- Análise do Movimento do grupo de pesquisa cientistas descobriram que uma das proprie-
freram um acidente vascular encefálico (AVE) Funcionalidade e Saúde da UnB mostram, en- dades do cérebro é a neuroplasticidade, capa-
– conhecido popularmente como derrame, os tretanto, que a busca pela simetria pode não cidade de se remodelar sempre que submetido
47
O CONTROLE No teste de alcance funcional, O teste avalia indiretamente
os examinadores pedem que os a capacidade do sistema
voluntários inclinem o corpo para nervoso de controlar a postura
frente com os braços esticados, de pé, pois os que conseguem
sem tirar os pés do chão. Quanto alcançar a maior distância com
mais longe o voluntário consegue o braço esticado sem perder o
esticar o braço sem perder o equilíbrio estão enviando ordens
equilíbrio, melhor é o controle e interpretando informações com
dele sobre sua postura. mais eficiência.
O GRUPO QUER
a uma nova situação. Os lados direito e es- metria e assimetria não estão necessariamente
CRIAR UM MÉTODO
querdo do cérebro são unidos por um sistema relacionadas a ter tido ou não um AVE.
de milhões de fibras nervosas. É a comunica- A consequência prática dos dois trabalhos
DE AVALIAÇÃO
ção entre os dois lados, por meio dessas fi- é que o tratamento nos consultórios de fisiote-
COMPATÍVEL COM
bras, que possibilita a transmissão das ordens rapia não pode ser uniforme, pois os hemiparé-
do sistema nervoso central para o periférico. ticos nem sempre são assimétricos e, quando
A REALIDADE DO
Quando uma destas comunicações é danifi- eles são, a assimetria pode ser uma vantagem.
SERVIÇO PÚBLICO
cada - situação que acontece, por exemplo, no “Os trabalhos mostram que há um grande cam-
caso de um derrame; a informação procura ou- po de pesquisa a ser explorado”, afirma o pro-
DE SAÚDE
tra via para cumprir as suas funções. A hipótese fessor Emerson Fachin Martins. “Um bom trata-
do professor Emerson é que o cérebro dos he- mento precisa levar em consideração a maneira
miparéticos, provavelmente, encontrou um novo como o cérebro do paciente respondeu ao AVE,
ponto de equilíbrio que dispensa a simetria. por isso a medida de simetria é fundamental
para orientar as decisões dos fisioterapeutas
METODOLOGIA e dos outros profissionais que trabalham com
Tudo muito simples, se a ciência – como reabilitação” explica.
parte da vida que é, não fosse um pouquinho Os AVEs são uma das maiores causas de
mais complicada. Para ter uma ideia do alcan- morte da população brasileira. Os derrames
ce da descoberta, o grupo de pesquisa repe- decorrem de um conjunto de fatores que nor- continha itens de avaliação sobre postura e ob-
tiu o experimento (teste de alcance funcional) malmente estão associados ao estilo de vida servações sobre a execução de movimentos.
com 20 pacientes hemiparéticos e com um dos pacientes: má alimentação, estresse, ta- No formulário, os itens observados pelos es-
grupo de controle formado por 20 pacientes bagismo, sedentarismo dentre outros. De acor- tudantes eram utilizados para pontuar o quão
saudáveis com o mesmo peso e idade dos he- do com o SUS, só no mês de janeiro de 2010, o simétrico era o paciente na avaliação dos alu-
miparéticos. Os voluntários do grupo controle Distrito Federal registrou 548 internações em nos. Para confirmar a acuidade do questioná-
funcionavam como “espelhos” saudáveis dos consequência de acidentes vasculares ence- rio quanto à avaliação da simetria, os mesmos
pacientes que tinham problemas em decorrên- fálicos. Destes, 66 pacientes morreram e 482 voluntários foram pesados colocando cada pé
cia do AVE. provavelmente tornaram-se hemiparéticos ou em uma balança. Eis que, ao comparar as ava-
O objetivo deste segundo experimento era hemiplégicos. liações feitas no formulário com os resultados
confirmar o pressuposto até então aceito de Em outro trabalho, o grupo Funcionalidade das balanças, o grupo de pesquisa percebeu
que a assimetria é uma característica dos he- e Saúde da Universidade de Brasília testou a que as classificações feitas pelos estudantes
miparéticos e a simetria, uma característica das confiabilidade de um formulário de avaliação não batiam com as medições da balança.
pessoas saudáveis. Pois bem, o resultado obtido de simetria postural sugerido num artigo cien- “A avaliação de simetria por formulário de
bagunçou tudo: na amostra foram encontrados tífico publicado na Revista de Fisioterapia da observação não é eficiente. Ela é viciada pela
hemiparéticos simétricos (que dividiam o peso Universidade de São Paulo. Durante a pesqui- nossa ideia de que esse tipo de paciente é as-
do corpo de maneira equilibrada) e pessoas sa, ao observar voluntários com hemiparesia, simétrico por natureza e dá margem para a
saudáveis que eram assimétricas. Ou seja, si- os estudantes preenchiam o formulário que subjetividade”, detalha o professor Emerson.
48
O CÉREBRO 1 Os lados direito e esquerdo do cérebro são
unidos por um sistema de milhões de fibras
nervosas. Cada lado do cérebro controla
os movimentos do lado oposto do corpo.
A comunicação organizada e simultânea
entre os dois lados, por meio das fibras
nervosas, possibilita a manutenção das
posturas e a realização dos movimentos
rar se os resultados da plataforma de força va- “O acesso da população daqui a esse tipo de
lidam as medidas feitas por balanças comuns. atendimento praticamente não existe, vamos
“Queremos checar a confiabilidade das balan- contribuir para modificar isso”, afirma o pro-
ças na avaliação de simetria”, afirma Paulo fessor Emerson.
49
DOSSIÊ
FONTES
Muito além do nosso eu – A nova neurociência que une cérebro e
máquinas e como ela pode mudar nossas vidas
www.who.int
www.emtr.com.br
O filme retrata um suposto tratamento cerebral que faria com que Joel
Barish (Jim Carrey) esquecesse o relacionamento conturbado com
Clementine Kruczynski (Kate Winslet). Através de um mapa mental de
associações, o médico promete apagar as lembranças do protagonista
relacionadas à ex-namorada
50
HISTÓRIAS DA HISTÓRIA
N
CÍCERO E NÓS
Carmen Santhiago
José Otávio Nogueira Guimarães *
a tradição intelectual do Ocidente, é tos relativos à investigação e à pesquisa dos mas “quem já transpôs os limites da reserva
muito antiga a ideia de que a histó- fatos. Os fatos (rebus) estão dados e dispo- deve ser bem e deliberadamente imprudente.
ria, porque repositório de exemplos, níveis, só precisam de palavras (verbis), po- Eis por que te peço claramente, uma vez e ain-
possui evidente caráter pedagógi- dendo ser ordenados e apresentados, mas, de da outra vez mais, que faças brilhar os fatos
co. Dizem que tal ideia remonta ao historia- modo algum, estabelecidos. com mais ardor do que talvez sintas, negligen-
dor grego Tucídides (c.460–c.400 a.C.), que Essa falta de reflexão sobre as condições de ciando as leis da história”. Por fim, faz o pedido
acreditava ser sua narrativa acerca da Guerra produção do saber histórico não impediu Cícero derradeiro a Lucéio: “debites à nossa afeição
do Peloponeso uma “aquisição para sempre”. de destacar, no mesmo Do Orador, as leis bá- este pouco mais do que permite a verdade”.
Foi, todavia, um romano, do turbulento século sicas do ofício do historiador: não ousar dizer
I a.C., que fez essa ideia ecoar até nossos dias. algo falso, não ousar dizer algo que não seja * * *
Refiro-me a Cícero (106-43 a.C.) e sua famo- verdadeiro, não levantar suspeitas de compla-
sa expressão: “história mestra de vida” (his- cência ou rancor, enfim, zelar pela imparciali- Essa última frase pode soar desagradável
toria magistra vitae). O curioso é que o autor dade. Essas leis, ademais, não precisavam ser no momento em que, no Brasil, está prestes
da expressão de sucesso nunca escreveu uma aprofundadas, pois eram do conhecimento de a ser instalada uma Comissão Nacional da
obra de história. Dele se pode dizer que foi elo- todos. Talvez, também, não precisassem ser Verdade. O Projeto de Lei 7.376/2010, já apro-
quente jurista, autor de reconhecidos textos aprofundadas porque o teórico da história ja- vado no Congresso Nacional e sancionado
sobre retórica, filósofo que soube traduzir para mais pensou em sobrepor-se ao homem políti- no último dia 18 de novembro pela presidente
a cultura latina a riqueza conceitual do pensa- co. Pensando na sobrevivência de sua carreira Dilma Rousseff, estabelece que a finalidade da
mento grego e um importante homem político como homem público e na fama que poderia Comissão é examinar e esclarecer as violações
– tendo atingido, em 63 a.C., a mais alta ma- desfrutar ainda em vida, Cícero escreveu ao de direitos humanos praticadas entre 1946 e
gistratura romana, o Consulado –; mas não se seu amigo Lucéio (Ad Familiares), solicitando- 1985, a fim de “efetivar o direito à memória e
pode dizer que tenha sido um historiador. lhe que celebrasse logo os feitos de seu consu- à verdade histórica e promover a reconcilia-
Se não escreveu história, escreveu sobre a lado. A pena historiográfica do amigo deveria ção nacional”. Depois de mais de 20 anos de
história, como o fez em Do Orador. Descontente mostrar, sobretudo, como o cônsul fora capaz espera, parece que, agora, há pressa nesses
com os historiadores da Roma de seu tempo, de salvar a República das conturbações pro- exames e esclarecimentos. O que a sociedade
que, segundo ele, eram simples narratores, isto vocadas na vida cívica romana pela violenta brasileira não gostaria de ver tomar forma é o
é, relatores, sem estilo, de fatos, Cícero lembra- conjuração de Catilina (63 a.C.). Cícero tinha cenário ciceroneano: pela fama em vida, ligada
va-lhes o exemplo dos historiadores gregos, ver- pressa, pois, de volta à capital do Império, após aos avatares da conjuntura política, atropela-
dadeiros exornatores, que não se preocupavam inglório exílio, gostaria de reforçar novamente rem-se as “leis básicas da história”. O risco é
apenas com a concisão, e sabiam compor e or- sua posição no jogo político de Roma. de que a “afeição” dos aristocratas romanos
nar um discurso. Explicação possível: em Roma, Os termos usados por Cícero na carta a possa servir de inspiração a uma “reconcilia-
a história se teria mantido afastada da eloquên- Lucéio não deixam dúvidas com relação às ção” feita por cima, característica da histó-
cia do orador, voltada para o combate do fórum, suas intenções. Ele começa por admitir que, no ria nacional, e, assim, conduzir a Comissão a
para os discursos de defesa e acusação, ao pas- contato pessoal com o historiador, fora tomado operar no registro do “pouco mais do que per-
so que, na Grécia, a retórica se exercitou pelo de “certo pudor um tanto rústico”, mas que, na mite a verdade”. Nesse caso, a “apressada”
discurso fluido e regular de seus historiadores. ausência do amigo, falaria com “mais audácia: Comissão estaria apenas dando continuidade
Para o político, advogado e filósofo latino, pois uma carta não enrubesce”. Em seguida, à lenta, gradual e segura transição brasileira.
a história, portanto, não poderia ser somente admite as razões de sua pressa: “é que não só Nesse exame e esclarecimento de nosso pas-
narratio, necessitando da mão amiga do ora- poder ser recordado pela posteridade me arras- sado recente, espera-se que sejam respeita-
dor. “Que voz, senão a do orador” – escreveu ta a uma certa esperança de imortalidade, mas das as regras básicas do ofício historiográfi-
Cícero – “pode torná-la [a história] imortal?” também o desejo de gozar em vida do prestígio co, que o relatório final da Comissão contenha
No final das contas, a história é considerada do teu testemunho”. Cícero tem consciência de apenas enunciados produzidos sob o regime
um ramo da retórica – perspectiva que perdu- que viola as regras do ofício daqueles que es- do que permite a verdade, contribuindo, assim,
raria por séculos –, não havendo nenhum in- crevem sobre o passado: “não ignoro quão im- para que, finalmente, seja posto um ponto final
teresse em se interrogar a respeito de aspec- punemente ajo (...) pedindo que me honres”, nessa mais que longa transição.
* José Otávio Nogueira Guimarães é professor e chefe do Departamento de História da Universidade de Brasília
51
LITERATURA
PLANALTO
RELATOS SOBRE O
CENTRAL
Capital planejada, templo modernista, metrópole-
maquete. Que Brasília você habita? Tese descortina o
Distrito Federal de escritores, poetas e compositores
Carolina Pettro *
Especial para a Revista darcy
1
das cidades contemporâneas, principalmente que a cidade encravada no Planalto Central paço que promete tudo ao indivíduo, aqui tudo
as do hemisfério sul. “A megalopolização é um encantou gente que jamais pensou em aban- será possível”, diz a professora.
“BRASÍLIA
O trabalho, defendido no Departamento
de Sociologia da UnB, ajuda a entender
AMOROSA E CLARA
como as pessoas enxergam a cidade, suas
promessas e o processo que deve torná-la
mais uma megalópole brasileira. “Isso é
A CIDADE VOA
COM AS PRÓPRIAS ASAS”
importante, porque o pensamento científico
no Brasil nunca foi dissociado da literatura.
Os primeiros acadêmicos do país, inclusive,
foram escritores”, lembra Eloísa (trecho de poema de Joanyr de Oliveira)
53
O poeta Antônio Miranda, 71 anos, se en- dce (abreviatura de dependência completa que a verdadeira face de Brasília não está nas
quadra na classificação dos amantes de de empregada). Os poemas de Pilati relatam bem traçadas linhas do Plano Piloto, mas fica
Brasília, segundo o estudo de Eloísa. “Adoro a experiência de um brasiliense típico que visível nas cidades satélites. É de lá que sur-
esse lugar. Aqui é a síntese de todo o Brasil”, sai pelas ruas da cidade e observa tudo que gem os personagens de João Almino, cônsul-
diz Miranda, atual diretor da Biblioteca ocorre a sua volta. Na obra, Alexandre, pro- geral do Brasil nos Estados Unidos e escritor
Nacional . O poeta é um dos principais nomes fessor do Instituto de Letras da UnB, denuncia nas horas vagas. O autor escreveu cinco livros
da literatura brasiliense, autor do livro Brasília: com palavras o que acredita ser um projeto que têm Brasília como cenário e personagem,
capital da utopia, que reúne informações so- frustrado de capital. “A gente vive numa ilha na medida em a própria cidade influencia o en-
bre os escritos da cidade desde a construção da fantasia. O Plano Piloto só funciona para redo. “Como escritor, tenho o dever de manter
até a queda da ditadura militar, em 1984. Para quem tem carro e dinheiro. A vida nessa cida- meu olhar crítico sobre a realidade. Acho pro-
ele, Brasília é símbolo concreto da modernida- de não parece real e isso acaba anestesiando vável que Brasília se torne uma cidade grande
de. “Quando Brasília saiu das pranchetas dos as pessoas”, opina. como as outras, mas meu papel não é fazer
arquitetos, o Brasil era mundial, vanguardista. Clarice Lispector, a grande dama da litera- profecias”, esclarece o autor.
Enquanto os outros construíam prédios mo- tura brasileira, compartilha desse desencanto. O cônsul/romancista acredita que a capi-
dernistas, aqui se ergueu uma cidade inteira”, Na tese de Eloísa Barroso, os textos de Clarice tal brasileira carrega consigo uma enorme car-
completa Miranda, que é também professor destacam a angústia de passar pela cidade ga simbólica, qualquer que seja o seu futuro.
aposentado do Departamento de Ciência da planejada. “Esses autores enxergam Brasília “Quando você conta para as pessoas que é de
Informação e Documentação da UnB. como um lugar que não permite ao sujeito se Brasília, todo mundo pensa que você é rico. A
tornar cidadão. Seus amplos espaços impe- cidade é vista como uma utopia, o lugar onde
TRISTES DESENCANTOS dem a circulação e os encontros”, esclarece as pessoas têm a vida fácil e sem problemas,
Na contramão dos empolgados com a pesquisadora. como se encontrássemos o presidente todos
Brasília, o escritor Alexandre Pilati, 35 anos, Alexandre Pilati acredita que a empreitada os dias”, lembra a pesquisadora Eloísa. Para
publicou, em 2004, o livro sqs 120 m2 com de JK se tornou um laboratório de sonhos e ela, o aspecto comum entre as pessoas que
vivem o projeto Brasília – escritores ou não – é
a esperança. “Mesmo os que se decepciona-
ram com a proposta sentem que aqui o futuro
Fábio Tito/UnB Agência
RETRATO CAPITAL
É nesse cenário que autores como Cassiano
Nunes, Hermenegildo Bastos e José Carlos
Vieira colocam “na ponta da pena” o cotidia-
no de personagens que vivem para além da or-
ganização das asas Sul e Norte. São escritores
que vivem na cidade, na periferia, conhecem
o bar, o ônibus, a van ilegal. Em um dos tex-
tos analisados pela pesquisadora, o escritor
Daniel Mota relata a aventura de Inécio, mo-
rador de Ceilândia que ousa tentar uma ida ao
Plano Piloto em pleno domingo.
2
Nascido no DF: Alexandre
54
Fábio Tito/UnB Agência
za exposta dos casebres de Ceilândia, filhos Apesar de esses autores escreverem sobre Brasília, capital da utopia, de Antônio Miranda.
da majestade de Brasília?”. Eloísa Barroso ex- a realidade “oculta” de Brasília, Eloísa Barroso Editora Theasaurus, 1985
plica que os versos de Drummond revelam o prefere não classificar os textos como uma Canto Brasília, de Antônio Miranda. Editora
processo de favelização da cidade, embora o descrição do real. Para a professora, a euforia Thesaurus, 2002
termo não seja muito usado por aqui. e a desilusão de outros escritores também são sqs 120m2 com dce, de Alexandre Pilati
A pesquisadora incluiu no estudo letras de reais, tratam-se apenas de leituras diferentes www.alexandrepilati.com
música de rappers da capital. A canção De da mesma situação. “Eu acredito que a noção 50 anos em seis: Brasília – prosa e poesia.
que vale o crime?, do grupo Atitude Feminina, de Brasília como promessa de futuro nunca vai Editora Teixeira – gráfica e editora, 2010
3
conta a história fictícia de um jovem de São desaparecer”, pondera a pesquisadora. Site do grupo de rap Atitude Feminina
www.atitudefeminina.com.br
“CEILÂNDIA, CEILÂNDIA
RESPEITO TODAS AS QUEBRADAS BECOS E VIELAS
QUEBRAS CABULOSAS SATÉLITES E QUALQUER FAVELA
TODAS SE PARECEM MUITO SÓ QUE A CEI É DIFERENTE”
(trecho da música Ceilândia, a revanche do gueto, da banda Câmbio Negro)
55
UnB 50 ANOS
1 Aula de Paleontologia na
década de 70
2 Visita ao Vulcão
Lonquimay, no Chile,
em 1988
3
4 Turma de
formandos de 1978
56
O CAMINHO
DA
GEOLOGIA
Com um currículo centrado na pesquisa científica,
o Instituto contornou dificuldades para se tornar
referência nacional
O
Mariana Vieira
Repórter · Revista darcy
fazer científico caracteriza a uni- Uma das novidades da UnB era o sistema de
versidade. Mas fazer ciência custa cursos-tronco, no qual os Institutos Centrais
caro e demanda estrutura e pes ministravam disciplinas básicas num ciclo de
soal capacitado. No início de 1964, dois anos e, depois, os alunos escolhiam seus
quando a Universidade de Brasília ainda es- cursos de graduação. “Tinha sido ministrado
tava em processo de implantação, já havia a muita química, biologia, matemática, física.
preocupação de instalar equipamentos e for- Cheguei para ensinar a matéria básica: geo-
mar pesquisadores para criar centros de exce- logia geral”, conta.
lência científica. Nos anos 60, os livros sobre Geologia em
O coordenador geral dos institutos de português eram raríssimos. “Para dar o cur-
Ciência e Tecnologia à época, o físico Roberto so, eu tinha que preparar material no famo-
Salmeron, expôs em seu livro A universidade so estêncil para entregar para os alunos, fazia
interrompida – 1964-1965 os problemas enfren- apostilas para eles estudarem”, conta Marini.
tados para o início das aulas de ciências: “A or- O material didático demonstrativo também era
ganização do Instituto Central de Geociências produzido pelos professores: blocos de madei-
era a que apresentava mais dificuldades, por- ra talhados e pintados replicavam a estrutura
que eram essas as ciências menos desenvol- dos solos e serviam para explicar aos alunos
vidas no Brasil entre as ciências da natureza, as falhas geológicas.
na década de 1960”. A estrutura física do curso também era im-
Para organizar o instituto, Salmeron e o provisada, duas salinhas no prédio onde hoje
reitor Anísio Teixeira convidaram o geólo- está a Faculdade de Educação (FE), próximo
go Marcello José Ribeiro, da Universidade ao Dois Candangos.
Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Mesmo sem estrutura, havia planos gran-
Depois vieram auxiliá-lo Jairo Ferreira Pinto diosos. Geólogos internacionais foram con-
e Onildo João Marini. tactados. “Anísio Teixeira e eu concordávamos
Marini, o mais novo à época, chegou a que seria prudente procurarmos especialistas
Brasília em julho de 1965, aos 25 anos. Havia no exterior ”, conta Salmeron em seu livro.
se formado dois anos antes na UFRGS e traba- Em agosto de 1965, os estudantes inicia-
lhava para a Petrobras na Bahia. “O sonho era ram uma greve para protestar contra a falta de
criar a universidade modelo. Atraiu tanto que condições de ensino, principalmente para as
vim para ganhar um terço do que ganhava na áreas de ciência aplicada, que não possuíam
Petrobras”, lembra o professor aposentado. laboratórios. O movimento político envolvia
Quando Onildo João Marini chegou, o cur- professores e alunos, e na Geologia, um dos
so de Geologia já estava montado e a primeira líderes era Honestino Guimarães, que depois
turma tinha passado pelas disciplinas básicas. se tornaria um militante famoso.
57
Honestino
Guimarães era da
primeira turma
As tensões começaram ainda em 64, quan- nou o ato de demissão”, recorda Marini, que,
Júlio César Magalhães/Divulgação do tropas do exército invadiram a UnB pela pri- como outros 233 professores, pediu demissão
meira vez. Na ocasião, alunos e professores do cargo em resposta a atitude do reitor.
foram interrogados, alguns foram presos e os A turbulência política atrapalhou os planos
militares recolheram panfletos, livros e carta- científicos. “Estávamos em vias de obter auxí-
zes que julgaram subversivos. “O que os mili- lio do governo francês. Numa viagem a Paris,
tares faziam era tachar tudo como subversivo. discuti longamente com dirigentes e pesquisa-
Então os professores rebatiam: ‘se é subver- dores do Bureau de Recherches Géologiques
sivo, então prove!’. Eles ficavam loucos com et Minières, importante laboratório de geo
isso”, recorda Marini. ciências da França, tomando a precaução de
Em setembro de 1965, Laerte Ramos subs- expor com a maior clareza as dificuldades da
titui Zeferino Vaz na reitoria. Alinhado com os Universidade de Brasília e a absoluta falta de
ideais militares, Ramos demitiu 15 professo- condições para iniciarmos qualquer colabora-
res. “Ele chegou, fez uma reunião na qual pro- ção antes de, pelo menos, dois anos”, relata
meteu não demitir ninguém e o pessoal ficou Salmeron no livro A universidade interrompida.
até mais animado. Mas dois dias depois, os “Queríamos equipar a UnB, trazer cientistas
militares o chamaram. Ele voltou atrás e assi- internacionais. Depois da invasão e da demis-
58
Aula no anfiteatro na
década de 70
Arquivo Cedoc/UnB
menta Marini. O ex-professor acredita que o
cenário atrapalhou a consolidação da univer-
sidade: “Teríamos realizado muito mais, não
só no Instituto de Geociência. Teríamos reali-
zado muito mais e muito antes”.
Na demissão coletiva, em 65, a maioria dos
professores de Geologia abandonou a univer-
sidade. Restou apenas o fundador Marcelo
Ribeiro. Para dar continuidade ao curso, ele
recorreu a seminários ministrados por profes-
sores visitantes.
RECOMEÇO E TURBULÊNCIAS
A primeira turma de Geologia, com 12 alu-
nos, se formou em 1968. O pesquisador Raul
Minas Kuyumjian foi um deles. “Quando in-
gressamos na vida profissional, verificamos
que havíamos tido uma formação universitária
com algumas deficiências”, revela o geólogo.
“Acredito que o curso de geologia em forma-
ção e a repressão policial frequente em todo
o campus atrapalharam nossa vida acadêmi-
ca”, completa.
Na década de 70, a direção do instituto co-
meçou a recompor o quadro de professores. Aluna da década de 1990 e, atualmente,
Um dos convidados foi Adolfo Fuck, nomeado professora da Geologia e pesquisadora do
professor emérito da Universidade de Brasília CNPq, Débora Passos Araújo se orgulha de
no começo deste ano. “Cheguei aqui no dia ter tido aulas com muitos dos professores que
primeiro de fevereiro de 1969, às 15 horas. ajudaram na retomada do curso: “Hoje nós, a
Cheguei na Asa Sul e pensei, cadê a cidade?”, turma daquela época, falamos que fomos fe-
brinca o pesquisador. lizardos por termos como professores os fun-
A impressão de cidade fantasma não era à dadores do curso de geologia na UnB. Os pro-
toa: “Brasília tinha sido praticamente fechada fessores eram excelentes”.
(por conta do AI-5). O congresso estava fecha- As lembranças de Stella Bijus Guimarães,
do, os políticos estavam quase todos no Rio, aluna nos anos 2000, também são boas.
acho que a única coisa que funcionava real- Pesquisadora em Geociências no Serviço
mente era a UnB, apesar de todos os proble- Geológico do Brasil, Stella conta que a ênfase
mas”, conta Fuck. do curso na pesquisa ajudou-a na consolidação
Já nos anos 70, a retomada do Instituto de da carreira. “Os laboratórios estavam sempre
Geologia começou a ser reconhecida. “Aos equipados e à disposição para utilização fora
poucos fomos consolidando a graduação e de- do horário de aula para fixar o conteúdo apre-
pois a pós-graduação. Rapidamente apareceu sentado. A geóloga acredita que ter estudado
a qualidade do fruto do nosso trabalho, com no Instituto de Geociências foi importante para
pesquisas, parcerias e alunos empregados em seu desenvolvimento como pesquisadora. “Um
grandes instituições. Isso foi e continua sendo diploma da UnB em Geologia traz muito reco-
muito gratificante”. nhecimento na área de pesquisa.”
59
ENSAIO
Professor da Comunicação
usa manipulação digital de
fotografias para transformar o
fim em recomeço
E
João Paulo Vicente
Repórter · Revista darcy
60
EM CORES
A MORTE
AMANHÃ
61
Do cinema, Mauro trouxe para
o ensaio a narrativa. “Eu não pos-
so controlar o tempo que cada um
olha para as imagens, então cons-
truí isso por meio de um ordena-
mento”, explica o cineasta, que
também deu nomes a cada uma
das fotos e deixou uma surpresa
para o final. Com isso, ele espera
despertar algum tipo de sentimen-
to ou emoção nas pessoas.
DAQUI A POUCO
62
ONTEM
PATO
63
PRIMAVERA
64
O efeito exato das imagens,
no entanto, parece não preocu-
par Mauro. Para ele, as fotos po-
dem adquirir significados maiores
ou diferentes do que ele preten-
dia. “Quando são publicadas, é
como se não me pertencessem
mais”, afirma. O professor da FAC
convida os leitores de darcy para
uma colaboração: “Gostaria de
receber fotos de animais mortos
– abelhas, cobras, um elefante! –
e depois trabalhar com elas. Seria
muito divertido”.
AGORA
POMBA
65
eu
me
lembro...
O
Professor da Economia revela o que a Universidade
de Brasília tem a ver com o rock dos anos 80
fato de Brasília ter sido o berço de um vigoroso O ingrediente central no surgimento das bandas em
movimento musical na década de 80, com o sur- Brasília antes do resto do país foi o acesso à informação.
gimento de diversas bandas que faziam um som Naquela época não havia internet, havia três canais de te-
totalmente diferente do que se conhecia até en- levisão e filmes e livros eram lançados no Brasil com anos
tão no país, sempre pareceu ser um enigma que precisasse de atraso. Informação se movia de maneira extremamente
ser explicado. Por que algo tão novo e revolucionário teria lenta, especialmente para os países periféricos.
acontecido numa cidade tão improvável em vez de grandes Assim, poucos no Brasil estavam cientes da revolu-
centros como o Rio e São Paulo? ção punk que estava mudando a música e a estética na
Uma hipótese frequentemente invocada por jornalistas Inglaterra no final da década de 70. Só muito raramen-
é que o surgimento das bandas teria sido causado pela te aparecia um disco um pouco diferente na Discodil do
falta de opções de diversão na capital do país. Se fosse Conjunto Nacional, e mais raramente ainda passava um
assim, certamente outras cidades sem praia seriam celei- vídeo de alguma banda nova na televisão.
ros de bandas. Outra hipótese
é que Brasília estava banhada
por ondas esotéricas por es-
tar em cima de uma camada
de cristal ou por estar na mes-
ma latitude de Macchu Picchu
Nicolau El-Moor
e por isso haveria forças cria-
tivas no ar que induziram a
uma revolução criativa. Sem
comentários.
Um pouco mais séria é a hi-
pótese que atribui o surgimen-
to das bandas ao fato de certas
pessoas excepcionais terem
estado no lugar certo na hora
certa. Essa hipótese parece fa-
zer sentido, pois muitas dessas
bandas alcançaram, de fato,
sucesso no país inteiro. Na for-
ma que tenho visto essa hipóte-
se repetidamente colocada pela
imprensa, o local onde tudo te-
ria começado foi a Colina, con-
junto residencial de professo- Punk acadêmico: Bernardo Mueller a frente da
res e funcionários no campus Escola de Escândalo
Bernardo Mueller é professor do Departamento de Economia desde 1995. Morou na Colina entre 1972 e 1976 e foi vocalista da banda Escola de Escândalo, formada em 1983
66
Publicação semestral
da Editora Universidade
de Brasília, em
parceriacom o SESC/DF
humanidade S
CONFIRA
NA PRÓXIMA EDIÇÃO:
REDESFLUXOSMIGRAÇÕES
Nº 59 movimentos
planetários
de pessoas,
informações e
bens materiais e
imateriais
apátridas e
refugiados,
multilinguismo,
a internet e seus
efeitos
fluxos acelerados
de capitais e
internacionalização
da economia