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Isabel Maria Freitas Valente

Joel Carlos de Souza Andrade


(Coords)

Cenários da História

1" Edição

Editora da Universidade Federal de Campina Grande


Campina Grande - 20 II
EDUFCG

UNIVERSIDADE FEDERAL DE CAMPINA GRANDE


EDITORA DA UFCG-EDUFCG

Prof. Thompson Fernandes Mariz


Reitor

Prof. Dr. José Edílson Amorin


Vice-Reitor

Prof. Dr. Antônio Clarindo Barbosa de Souza


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Marcial Fernandes
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Prof. José Hélder Pinheiro CFP (Cajazeiras)
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Oados Internacionais de Catalogação na publicação


Biblioteca Central da l'FCG
Cenários da História. Isabel Maria Freiras Valente: Joel Carlos de Souza Andrade (coords)
Campina Grande EDUFCG,2011
Coirnbra: CEIS20, 2011
V.I,157
ISBN 978-85-8001-039-8

I História do Brasil: 2. História de Portugal: 3. Sociologia: 4.Antropologia;


5. Literatura. Título II Valente, Isabel Maria Freiras. Título III, Andrade, .Joel
Carlos de Souza.

CDU

EDUFCG
Campina Grande - 2011
edufcg@reitoriaufcg.edu.br

4
As Representações do Sertão na Arte Seridoense

Lourival Andrade Júnior


Professor Doutor UFRN-CERES-DHC
E-mail: lourivalandradejr@yahoo.com.br

"A seca mata devagar, numa tortura que se estica, numa


resistência que se estira como um rio, como um caminho
quase sem fim.
Ela come a carne aos pouquinhos, afina as pernas, puxa
para fora as costelas, acende um fogo triste nos olhos,
espalha um ar de desalento pelo rosto dos homens
e pelo focinho da égua 'Codorniz',
parida de novo, que já nào relincha.
Os próprios urubus emagrecem.
Fitam impotentes e saudosos, o céu azul.
Sentem pesadas e inúteis as asas.
Eles já se conformam com a morte vagarosa, com a morte
sem pressa, a morte comprida dos animais.
Às vezes, quando a morte chega, só restam mesmo os ossos.
A alma dos bichos ama esses ossos c teima em viver com
eles,
oh, até a redenção total da vida.
- da vida fulminada pelo sol!"
A seca dos Inhamuns - Jáder de Carvalho

Resumo
Com este texto pretendemos penetrar no universo de seca do sertão e da
arte, buscando, mesmo que não definitivamente, as imagens construídas
por artistas que vivem nesta região ou a tem como inspiração e,
historicamente, como estas imagens estão presentes na elaboração mental
dos brasileiros e das visões sobre o nordeste.
Palavras-chave: Seca; Seridó; Artes visuais

9
o Seridó Potiguar é uma regiao do semi-árido brasileiro e que
compreende vinte três municípios do Estado do Rio Grande do Norte
(Caicó, Currais Novos, Parelhas, lpueira, São José do Seridó, Cerro Corá,
São João do Sabugi, Cruzeta, Equador, Florânia, Timbaúba dos Batistas,
Acari, Carnaúba dos Dantas, Serra Negra do Norte, Tenente Laurentino
Cruz, Jucurutu, Jardim do Seridó, São Fernando, Lagoa Nova, São Vicente,
Jardim de Piranhas, Ouro Branco e Santana do Seridó). Marcado por uma
temperatura alta durante todo o ano e com poucas chuvas, esta região traz
uma vivência em relação a natureza e a suas peculiaridades que faz deste
lugar um mosaico de cores e sensibilidades que tem chamado a atenção de
pesquisadores de diversas áreas.
O que chamou a nossa atenção quando chegamos a região em agosto
de 2009 foi a falta de pesquisas no concernente a imagem, arte e
religiosidade popular, assuntos estes que tem feito parte de nossas
pesquisas nos últimos anos. Solicitamos aos alunos do curso de História
(UFRN - Campus Caicó), que nos informassem quais os artistas (pintores e
escultores) de suas cidades, já que temos alunos dos vinte três municípios
anteriormente citados. O que percebemos foi a falta de conhecimento sobre
esta produção artística e seus desdobramentos no campo das ciências
humanas. Um campo de possibilidades se abriu. Por conta disto, decidimos
apresentar a Pró-reitoria de Pesquisa o Projeto "Seridó Visual: arte e
estética", que buscaria em cada um destes municípios os artistas, para que
fossem entrevistados e suas obras fotografadas, tentando suprir uma
necessidade da região e preencher uma lacuna nas possíveis e diversas
leituras sobre o Seridó. Já entrevistamos 104 artistas e já possuímos um
banco de dados com 408 imagens. Em março de 2012 teremos um site
(www.cerescaico.ufrn.br/seridovisual). com todas as informações obtidas,
artigos que já foram apresentados dentro desta temática, contato dos artistas
e as entrevistas, bem como com uma mostra da arte produzida por cada um
deles. Vale destacar. que uma das maiores dificuldades dos artistas é a
comercialização de suas obras. Não há uma política pública que possibilite
a circulação desta produção e os artistas ficam reféns de exposições em
festas de padroeiros e eventos nada frequentes. O que sobra a eles são as

10
encomendas, fugindo do que realmente querem pintar, desenhar e esculpir.
Também é de nosso interesse que novas pesquisas surjam com no que
concerne a investigação sobre as imagens que estão presentes na região.
O mais recorrente sobre as temáticas dos artistas entrevistados é a seca e o
sertão. Mesmo a seca não estando tão presente na vida destes intérpretes é ainda
aquilo que mais aparece como rememoração de suas vidas e de seus
antepassados. A seca parece bater na porta todos os dias, ou no mínimo, mostra a
sua cara a cada dia que o sol escaldante surge e que desnuda a vegetação rasteira,
a coloração ocre da terra e da vegetação, o céu azul límpido sem nuvens, a terra
pedregosa, dura, agreste, onde a poeira gruda na pele e avermelha ainda mais a
paisagem. Aos viajantes que percorrem a região principalmente de setembro a
março, estas imagens aparecem a cada quilômetro percorrido e reses apodrecidas
avistadas aqui e ali ao longo das rodovias compõe uma paisagem desoladora.
Mesmo que estes animais tenham sido mortos por um veículo, este cenário nos
remete as imagens já amalgamadas em todos nós das grandes secas e da
desolação de animais mortos e pessoas buscando sobreviver, ficando ou fugindo
destas regiões. Rememoramos, sem ao menos termos vivido nesta região no
passado. A construção destas imagens, ou representações, ao longo dos séculos
foi eficaz.
Diante desta apresentação inicial, vamos penetrar neste universo de seca,
do sertão e da alie, buscando percebem, mesmo que não definitivamente, as
imagens construídas por artistas que vivem nesta região ou a tem como
inspiração e, historicamente, como estas imagens estão presentes na elaboração
mental dos brasileiros e das visões sobre o nordeste.
O sertão e as definições incorporadas ao longo dos séculos como um lugar
de arnbivalências, resistências e lutas é mostrado em sua espacial idade por Olívia
Morais de Medeiros Neta (20 11) ao analisar os autores do Seridó que produziram
uma historiografia regional bastante relevante e que serve de parâmetros para
novas análises da região. Discutindo as obras de Oswaldo Lamartine, Manoel
Dantas, Juvenal Lamartine de Faria e José Augusto, a autora nos coloca diante de
uma definição que engloba as representações que se forjaram sobre o sertão,
sendo
"a construção do sertão como um espaço de sentimentos
múltiplos que é composto por marcas e formas ambíguas,
mas, que por força de sua formação dentro dos interesses
políticos, econômicos e culturais, é lido de forma

11
universalizante, sendo congelado em formas discursivas que
denotam elementos de composição deste espaço, enunciados
como o gado, a seca e o algodão." (MEDEIROS NETA, 2011,
p.282)1

São diversos os relatos sobre as secas no nordeste brasileiro e suas


consequências terríveis a população. Estes relatos sobre secas aparecem nos
estudos sobre o tema desde 1559, conforme nos informa o memorialista
seridoense Oswaldo Larnartine em seu "Sertões do Seridó", quando descreve o
que chama de "O Mundo Seridoense", São várias secas que também ocupam
anos seguidos de falta de chuva e de uma inexpressiva política pública para
buscar soluções definitivas para o caos que se instalava deste o século XVI.c
Ainda citando autores seridoenses, Juvenal Lamartine de Faria, em um de
seus artigos publicados no jornal Tribuna do Norte em 1954 e depois reunidos
em livro com o título "Velhos Costumes do meu sertão", ao descrever a
alimentação do sertão do Seridó explica que nos períodos da seca ela se
modificava, principalmente na mesa dos pobres, que recorriam "às comidas
brabas - como eram conhecidas as raizes de certas plantas. O pau-pedra e a
mucunã eram as mais tóxicas; mas também se refrigeravam com o xique-xique e
a macambira. além de muitas outras. ,,3

Outro autor que se debruçou sobre o tema foi Marco Antonio Villa, que
descreve a situação da seca nordestina como "holocausto" e relata a seca de
1877-79 como uma das mais terríveis, levando a morte 4% da população
nordestina, Segundo o autor, esta mortandade e a difícil solução para amainar as
vicissitudes que os nordestinos passavam, levou a região a ser vista, deste então,
como "região problema?". Ainda este autor, destaca o semi-árido como uma
região "aparentemente sem história" como se o passado fosse vivido no presente,
assim parece que o sertão "permaneceu inalterado" e se perpetuaram o poder dos
coronéis' e as sensibilidades e os olhares sobre a vida sertaneja se petrificaram,
como as imagens pintadas pelos artistas locais atestam.

) MEDEIROS '-:ET.-'\. 011\ ta vlorais. "Configurações espaciais do Seridó Potiguar" in: Serido Potiguar:
tempos. espaços. movimentos, João Pessoa: Idea, 2011
, LAMARTINE. US\\ aldo Sertões do Serido. Brasílía: Edição do Autor, 1980. pp.171-182.
J FARIA. Juvenal l.amartine Velhos costumes do meu Sertão. Natal: Sebo Vermelho, 2006 .
.) VIl.1.A Marco AntonioI 'ufa e\lorte 110 Sertão: historia das secas 110 Nordeste nos séculos XIX e Xx.
São Paulo: Atica. 2(111. p 13
; Idem, ibidem, p252

12

l
Este Brasil marcado pela seca e que moldou a imagem que parece
eterna e única sobre o nordeste, está presente na obra de Euclides da
Cunha, "Os Sertões", que caminha entre o enaltecimento da vida sertaneja
e o preconceito quanto a sua negação ao progresso, tão caro aos
republicanos de primeira hora, entre eles o próprio Euclides da Cunha, mas
que acabaram se decepcionando quando a República sonhada deu lugar a
escândalos, crises econômicas e governos que atuavam em benefício
próprio ou de seus pares.
Euclides da Cunha descreve um sertão destruído pelas intempéries da
natureza, de um chão que se empedra, de uma caatinga que fere a paisagem
como um "cilício dilacerador"." Este mesmo autor descreve o sertão e seu
personagem central, o sertanejo, como um baluarte da brasilidade, onde a
mestiçagem não foi perversa como no litoral. Um dos estudiosos da obra
euclidiana, Ricardo de Oliveira, faz menção a um "Brasil profundo"
buscado pelo autor de "Os Sertões", onde vê esta região nordestina como
um lugar de esquecimento e por isso mesmo, lugar onde a brasilidade se
conservou, não se degradou e conseguiu ficar longe da influência
estrangeirista do litoral. Assim, neste lugar das secas e das lutas contra
homens e contra a natureza, ou como aliada dela, forjou-se o "primeiro
brasileiro, gerou um ente quase sobrenatural, um homem sublime.?"
Independente desta posição dúbia de Euclides, compreendendo sua
historicidade, fica claro que o sertão é marcado como lugar de
esquecimento, onde o tempo não caminha como nos lugares de
desenvolvimento e de civilização. As imagens impregnadas de descrições
que colocam a natureza como parte da corporal idade humana, ou seja,
homens e mulheres, que de alguma forma empedram-se como o próprio
chão que pisam, que sempre estão caminhando em busca de água, mas que
ficam circunscritos a este espaço calcinado e que assim decidem viver
adaptando-se aos xique-xiques, mandacarus, cabeças de frade, favelas,
faxeiros, rios sem água, gado que se alimenta de vegetação ocre, que se
vestem cobrindo-se dos pés a cabeça e que se mantém firmes em sua fé de

"CUNHA, Euclides. Obras Completas. Rio de Janeiro: Aguilar, 1966, p.120.


7 OUVEI RA, Ricardo. "Os Sertões e a invenção de um Brasil profundo" in Revista Brasileira de

História, São Paulo: ANPUH/Humanitas, voL22, n." 44, 2002. pp. 525-526.

13
que os céus, os santos e os milagreiros possam mandar chuva e diminuir
suas agruras. A fé se renova a cada dia sem chuva. Este Brasi I seco foi
descrito por Euclides e tantos outros que pelo nordeste passaram ou
viveram. A literatura é rica de tais descrições.
Uma das artes literárias mais vivas no nordeste ainda é o Cordel, que
mesmo em cidades pólos e nas capitais, esta literatura popular é encontrada
em grande número em feiras e bancas de revistas. As temáticas são as mais
variadas e não poderia ser diferente, uma delas, é a seca e o sertão.
Um dos cordéis mais famosos é "O triste drama das secas e o pranto
dos nordestinos" de Apolônio Alves dos Santos, onde o autor, que não é
nordestino, na segunda sextilha" mostra o que pode salvar o sertanejo:
"Somente o Juiz divino/ olhará para o Nordeste/ onde os irmãos
nordestinos/ do Seridó ao agreste/ se expõe ao sofrimento/ da seca, da
fome e da peste".9 E mais adiante na sexta sextilha, Silva relata o que a seca
provoca quando vai chegando: ro sol já nasce vermelho/ trazendo seu
triste drama/ e a terra ressecada/ tão quente quanto uma chama/ e as
barragens secando/já se reduzindo em lama". 10

Esta terra de contrastes, onde a seca assola, mas que em alguns


lugares e períodos, contrariando a lógica da natureza tão defendida na
literatura. as enchentes foram sinais de destruição. Parece que o nordeste e
o sertão não vivem sem os excessos. Um dos autores seridoenses mais
intensos em sua produção, sem muita regularidade, e que nunca fugiu da
temática regional, ainda pouco conhecido do grande público, fez
referências em suas obras sobre estas condições adversas que viveram e
vivem os seridoenses. Em "Os Brutos" o currais-novense José Bezerra
Gomes. desnuda o sertão do Seridó e mais precisamente o de Currais
Novos. expondo seus medos e suas necessidades. Autor que não utiliza de
meias palavras para expressar a sua literatura, sendo considerado por
muitos duro demais e para outros um representante vigoroso do realismo
radical. );0 início do romance descreve Currais Novos e o Seridó vivendo

S Sextilha ç uma estrofe de seis \ ersos onde os versos segundo, quarto c sexto rimam. É a estrutura básica

do Cordel. mas pode ganhar ao longo da narrativa contornos mais complexos .


., SANTOS .. ·\plllônIll .\Iv éS dos. O triste drama das secas e o pranto dos nordestinos. Rio de ,1aneiro:
Edição do Autor. 5 d. P I
11.1 Idem, ibidem. p.2

14
uma enorme enchente, com homens andando com água pelo peito. Com o
desenrolar da obra a paisagem vai se alterando e a seca chega avassaladora
e os problemas que advém de sua presença também. Terras são vendidas a
preços humilhantes e uma das alternativas é a fuga para outra região e
tentar melhor sorte: "Só para seu Totafoi bom. Um ano de seca lhe rendia
mais do que um ano se safra, de fartura. Fazia os melhores negócios pela
hora da morte, tomando as terras dos seus devedores atrasados pelo preço
. ,,11
que querta .
Bezerra não idealiza o seu nordeste, nem sua gente. Os homens são
brutos, como o próprio título do romance deixa claro, e a seca vem
acompanhada de uma desmedida desumanização. O que muitos autores
fizeram para transformar o sertanejo e a situação a que é submetido em
algo aprazível, cai por terra nas suas obras. Um dos autores que descreveu
o "seu" nordeste de forma singela e lugar de riquezas em todos os seus
versos, foi Patativa do Assaré, cordelista e romanceiro popular, que cantava
o sertão onde: "Tudo é belo e é importante! tudo teu é naturá/ igualmente o
diamante! ante de argúem lapidá". Esta poesia sem título de Patativa, como
a maioria delas, mostra como o autor convive com o seu entorno, dando
leveza a um lugar pesado de significações, onde a pedra nasce como
árvores do chão sertanejo.
Na literatura dramatúrgica esta poética da seca não ficou esquecida.
Para citar, apenas uma obra, destacamos a peça "As velhas", drama de
Maria de Lourdes Nunes Ramalho, dramaturga e pesquisadora seridoense
(Jardim do Seridó), que denuncia as frentes de trabalho criadas pelo
governo para minimizar os efeitos da seca, mas que foram denunciadas por
roubos e desvios de verbas efetuados por políticos locais. Destacamos a
seguinte passagem no texto:

Branca: Ora, a gente sempre teve onde morar, com que passar
sempre foi considerado - e agora deu pra correr mundo ...
Podia ter ficado em casa, como gente decente ...

11 BEZERRA, José Gomes. Os brutos. Natal: EDUFRN, 1981, p. 56

15
Mariana: (que escutava) E que diabo você queria ficar fazendo
naquele deserto? Comendo lagartixa assada ou fazendo vida de
santa?
Branca: Se a agente não tivesse saído aparecia um jeito - das
outras vez ninguém saiu e escapou tudo - até a criação.
Mariana: Mas isso foi das outras vez. Mas dessa feita - num
tem jeito que dê jeito (veemente) Será que você num via a
urubuzada nas carniça dos bicho morto, as ossada coroando no
sol, nem a derradeira rês, que, pra num morrer de fome - tive
que vender por pouco mais que nada?,,'2

Caminhando para o mundo das imagens, mas que ainda não são
aquelas produzidas por seridoenses, mas que mostram de forma precisa o
olhar que se forja sobre a região e sobre o sertão como um todo, sugerimos
a análise, ainda que rápida, da obra de dois artistas.
O primeiro deles é Candido Portinari, que ao longo de sua vida
produziu uma enormidade de obras, com temáticas diversas, e que também
caminhou para a análise social através de sua arte, bem ao gosto de uma
arte engajada das décadas de 30 e 40 do século passado, que buscava
retratar o Brasil de forma realista. Neste sentido, não poderia deixar de
conter uma série especialmente dedicada ao flagelo da seca. A série "Os
retirantes" retrata o Brasil sertanejo de forma objetiva e expõe o que há de
mais terrível. a tome.
O nordeste é desnudado em suas pinturas, não há espaço para o
deleite meramente artístico, a arte deveria provocar e protestar. Ao mesmo
tempo em que traz à tona a miséria vivida pelos nordestinos do sertão,
Portinari imortaliza a imagem do nordeste da escassez. O vigor e a potência
poética de suas obras, fez com que o olhar que o restante do Brasil e até o
mundo tem sobre a região fosse a mesma. Nordeste da morte e da pobreza.
Por conta da postura política de Portinari, pertencente ao Partido
Comunista. mas também pintor oficial do Estado Novo é evidente que sua

" RAl"L'.LHO. vlana de Lourdes "unes. 'As velhas" in: Coleção Teatro Nordestino. VoLlL Natal:
EDUFRN.20117 p. 1-+ I

16
obra não se propunha a criar estereótipos, mas sim causar impacto e assim
gerar discussões sobre o que deveria ser feito para resolver a situação. Mas,
também não podemos nos furtar em ver o outro lado da moeda. Estas
imagens também construíram um nordeste de "repulsa, medo,
estranhamento e preconceito=.l''
Outro artista das artes visuais que mostrou um nordeste da seca, foi
Sebastião Salgado, que na coleção "Terra", revela através de seu olhar
fotográfico um Brasil sem maquiagens. O objetivo do livro nasceu após o
massacre de Eldorado dos Carajás, Pará (17 de abril de 1996), onde
dezenove trabalhadores rurais sem terra foram assassinados por soldados da
polícia militar do Pará. Mesmo o tema central seja o crime, Salgado não
deixa de caminhar por diversas partes do Brasil, mostrando que o problema
da terra está localizado em todo o território nacional. Mas, das cento e
quatro imagens do livro, mais da metade relaciona-se ao nordeste. A seca
de 1982-3 é retratada em diversas imagens e escancara a dificuldade de
sobrevivência nestas condições. O chão pobre e rachado, a população
faminta, as crianças desnutridas e sua improvisada brincadeira com ossos
de animais, a busca constante do que comer e beber, a morte que
acompanha o dia-a-dia. Salgado, na sua estética do preto e branco nos
inebria com a dureza de sua fotografia, com a realidade sem retoques, e
com um nordeste que não é mais o de Portinari da década de 40, mas o
nordeste no final do século XX e que mantém suas áreas de exclusão e de
sacrifício. Ou seja, pouco mudou em quarenta anos, e a arte testemunhou.
desvelou e denunciou este flagelo. Salgado deixa muito claro e sem
coloridos, o seu protesto contra as políticas ineficientes em relação a seca e
a medíocre falta de uma reforma agrária de fato e de direito.14
É impressionante como é difícil descolar a imagem da seca do
nordeste. Mesmo, que nos últimos anos o nordeste seja apresentado como o
lugar da festa junina e do carnaval de rua, ainda não são poucas as matérias
jornalísticas que exploram a seca como identidade nordestina. Como vimos
à secajá era discutida desde o século XVI, mas há um momento em que a

1) ALBUQUERQUE JR, Durval Muniz de. A invenção do nordeste e outras artes. Recife:

F.lN/Massangana: São Paulo: Cortes, 200 I. p. 251.


14 SALGADO, Sebastião. Terra. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. pp.1-143.

17
seca passa a significar muito mais que um mero retrato de nômades
involuntários. Estamos falando da seca de 1877-79, que como tantas outras
causou desgraça e penúria. Mas, esta atingiu não somente os pobres, já que
a região vivia também uma crise econômica, levando boa parte dos médios
proprietários de terra a perder o que tinham e também migrarem para o sul.
Políticos começaram a usar o discurso da seca como forma de trazer
recursos para a região, buscando resolver o problema das elites e
minimizar, não permanentemente, o suplício do sertanejo. Nascia a
indústria da seca que continuou vitimando os sertanejos e criando mais
áreas de exclusão, e por outro lado, enriqueceu a elite já acostumada em
conviver com o indigente que ela mesmo ajudou a criar.
O nordeste é reconhecido, enquanto termo que designa uma região,
após a criação da Inspetoria Federal de Obras Contra a Seca. Estávamos no
governo de Delfim Moreira, ou como melhor conhecemos, em plena
política do café com leite, onde o sudeste ignorava o norte/nordeste e onde
as políticas agrícolas apenas privilegiavam o café paulista.
O olhar sobre o nordeste é marcado pela distância e pela
desqualificação. Tanto movimentos políticos como artísticos e intelectuais
vão de forma direta e indireta, construir este olhar sobre o sertão, que agora
é sinônimo de nordeste, e da seca, que agora é só nordestina, já que no
restante do país o termo utilizado para a falta de chuva é "estiagem". O que
se reforça na imagem forjada de nordeste é o espaço da seca, de retirantes,
do cangaço. do coronelismo, do messianismo, da corrupção e da
incivilizaçào. Vários foram os fatores que contribuíram para reforçar esta
imagem nordestina. mas é na década de trinta do século passado que isto se
mostra mais eficiente. já que "esta produção literária, iconográfica e
pictórica" criaram um certo padrão que hoje é aceito como verdade única, e
apresenta ícones do nordeste compreendido nacionalmente: seca, cactos,
caveira. retirante. cangaceiro, jagunço, coronel e até Padre Cícero e Frei
Damião."

15 ALBLQl'ERQlE .IR. Dur, ai \luniz de. Preconceito contra a origem geográfica e de lugar: as
fronteiras da dtscord.». S5,' Paulo Corta. 2007. pp. 89-129.

18

--
Entre as imagens que se proliferam pelo nordeste, e mais
especificamente, no Seridó Potiguar está à figura de Frei Damião, este frei
capuchinho, sucessor de padre Cícero no devocionário popular. O povo o
reconheceu como milagreiro e capaz de ajudar através de suas confissões e
pregações. Considerado por muitos como o santo do nordeste ou o santo da
seca, este frei sempre austero em sua vida religiosa, não deixava de lado
todos os ensinamentos que havia apreendido do Concílio de Trento e dos
papas mais radicais do ponto de vista canônico. O que Frei Damião fez de
diferente, foi ser um religioso com posições firmes e sempre estar em
movimento, um andante, levando a todo o sertão a sua pregação. É muito
difícil não encontrar uma imagem (estátua ou monumento) dedicada ao frei
nas cidades seridoenses. Um dos artistas mais requisitados e que possui
obras espalhadas por todo o nordeste é o escultor Oalécio Feitoza Mariz
(38), nascido em Tauá (CE), mas vive desde 1990 em Ipueira (RN). Suas
imagens de Frei Damião tomam tanto as entradas das cidades como os
bairros."

Imagem I - Frei Damião na entrada da Cidade de Ipueira (RN) - Dalécio Feitoza Mariz
(Acervo do Autor)

Partindo para a análise das imagens que se criam sobre o Seridó no


próprio Seridó, vale lembrar que as "imagens são como evidências"!" e por
isso fizemos anteriormente uma historização de como se elaboram

16 Frei Damião é cantado em músicas de compositores nordetinos, como Luiz Gonzaga. Em 2004 foi
inaugurado o Memorial Frei Damião na cidade de Guarabira (PB) e que já atraiu romeiros de todo o
nordeste, e nos próximos anos deve atingir os números de Padre Cícero, em Juazeiro do Norte (CE).
17 BURKE, Peter. Testemunha ocular: história e imagem. Bauru: EDUSC. 2004. p.233.

19
discursos e vão se forjando imagens que de alguma forma servem para
representar o nordeste, nos dão suporte ao aprofundamento da análise sobre
a arte produzida por artistas seridoenses.
Não é uma tarefa fácil fazer a análise de uma obra, visto que os
sentidos da observação e da descrição necessariamente não percorrem os
mesmos caminhos. Baxandall durante sua vida produtiva escreveu sobre
arte, mas sempre se deparando com o dilema de não estar conseguindo em
palavras/escrita desenvolver um pensamento que realmente desse conta da
imagem produzida por um artista. Diz o autor: "Quando queremos explicar
um quadro, no sentido de revelar suas causas históricas, o que de fato
explicamos não é tanto o quadro em si quanto uma representação que
temos dele mediada por lima descrição parcialmente interpretativa. Essa
. - e, pouco 01' d ena d a e VIVI
d escrtçao ' ida. ,,18
Neste sentido, cumpre a nós, pesquisadores, termos o cuidado de não
estabelecer conceitos que ultrapassam a própria dinâmica da arte, e em
nosso caso, a arte regional seridoense. Muitos estudos falam de um
nordeste sertanejo da falta, de uma arte produzida na negação paisagística
do verde, como se este fosse a única possibilidade de felicidade. Antes de
entrarmos na produção de alguns artistas, acreditamos ser de suma
importância Limareflexão sobre a paisagem e a territorialidade que estamos
nos referindo.
Pintar uma paisagem não é apenas uma forma de imitação do real
multidimensional em superfície plana. A escolha dos lugares e de sua
estética faz parte de uma rede de significações e sensibilidades que faz do
artista o intérprete de sua territorialidade, neste sentido a "paisagem não se
refere à sua condição física, mas ao caráter estético eformador de valores.
Ela decorre, assim, do encontro do que é dado a ver e o que a paisagem é
um extrato ordenado da natureza, e ao mesmo tempo, uma forma de
representação. " lY

" BAXANDALL, Michael. Padrões de intençiio: a explicaçâo histórica dos quadros. São Paulo:
Companhia das Letras, 2006. p. 43.
19 KERN, Maria Lúcia Bastos. "Tradição e modemidade: a configuração do lugar na pintura brasileira"
in: América Latina: territorialidades e práticas artísticas. Porto Alegre: UFRGS, 2002. p. 21.

20
L
o artista produz a partir de um lugar, mesmo que a globalização
tente impor a hornogeneização, o indivíduo é único e seu olhar para o
mundo é particular. O território neste caso é carregado de sensibilidades, ou
seja, é o lugar da cultura." É neste encontro entre um passado de seca e um
presente de esperança, que fica nítido nas imagens de seca que teimam em
permanecer e as paisagens verdes do sertão depois de uma chuva
inesperada ou de um inverno tão desejado e que fazem sempre parte das
orações dos devotos de São José no início de cada ano. É neste espaço de
confronto (seca e o verde das plantas do sertão) que há o estabelecimento
de lugares de mestiçagem, que "pressupõe a presença simultânea de seus
diversos elementos constitutivos, os quais não se anulam mutuamente, nem
se fundem, mas permanecem sempre presentes, numa relação tensa,
ambivalente, contradítoriar"
É na busca desta confrontação que partimos em busca de uma
possível estética seridoense. Um percurso que custou muitas viagens e
entrevistas, e que ao nos encaminharmos para estas cidades e encontrar
seus artistas, ficava cada vez mais claro ao término de cada diálogo e da
observação do entorno destes, que a sua estética nasce do seu vivido e
experenciado, isto "seja no campo real ou nos domínios imaginários
produz sensibilidade estética',.22 As pinturas que mais se destacam são
aquelas que falam deste entorno árido, contraditório e sertanejo. Na fala
dos artistas e não apenas em suas obras fica evidente a sensação de
pertencimento que cada um estabelece com o seu lugar: o Seridó.
Pela exiguidade de espaço no presente artigo, não faremos um
descrição longa de cada uma das obras, nem tão pouco dos artistas, aqui
escolhidas. Esperamos em breve, produzir artigos específicos sobre a
produção de cada um destes seridoenses.Na cidade de Parelhas
encontramos lron Garcia Dantas," natural de Jardim do Seridó. Sua obra
está centrada no trabalhador do campo, o sertanejo. Pinta o rural que está

'" BULHÕES, Maria Arnélia. "A paisagem como territorialidade na arte contemporânea" in: Idem.
pp.153-l65.
" BORSA, lclcia Maria. "Os lugares da mestiçagcm na arte contemporânea" in: Idem. pp. 169-173.
" ALMEIDA, Ângela. Encantaria da Pedra: o espaço estético 110 Sertão e na obra de Flávio Freiras.
NataL NAC-UFRN, 2002. p. 7.
" Entrevista realizada no dia 24/09/2010, em Parclhas/RN.

21
em seu entorno e não deseja abandonar este tema, pois reconhece como
sendo seu, ou melhor, de sua cultura. Nunca fez um curso sequer de pintura
e considera-se curioso, busca informações em imagens de livros de arte, e
ao analisa-Ias vai descobrindo contornos e possibilidades para a sua
pintura. Também pinta paisagens, todas do Seridó, e na maioria delas a
imagem do povo sertanejo ao lado de açudes, ou de casas próximas as
serras, ou ainda de frondosas oiticicas solitárias. Mas, como ele mesmo diz,
o que se destaca em sua produção são os trabalhadores do campo e suas
vivências que ficam evidentes em seus rostos e gestos.

Imagens 2, 3, 4, 5, 6 - Obras de Iron Garcia Dantas (Acervo do autor)

o artista André Vicente e Silva24 (39), de Caicó, não se considera um


pintor e sim um desenhista. Especializou-se em pintar a Senhora Santana,
padroeira do Seridó, que é vendida em grande número na festa mais
importante da cidade em homenagem a ela no mês de julho (Caicó)25, mas
dedica boa parte de sua criação a mostrar as suas impressões sobre o
Seridó, os traços sertanejos do lugar. Sua obra é uma das mais descritivas.
Mostra a vegetação em período de seca, as pessoas e sua vida pacata
dividindo seu tempo em cuidar dos animais, do trabalho e do eterno ir e vir
ao açude mais próximo. O ocre da terra contratando com o azul do céu, a

" Entrevista realizada no dia 08/05/2010, em Caicó/RN.


25 A festa de Santana de Caicó já está registada como Património lmaterial Brasileiro. Somente duas

festas se encontram nesta condição: Festa de Santana de Caicó/RN e Círio de Nazaré de Belérn/P A.

22
vegetação quase inexistente e as poucas flores que teimam em resistir ao
solo calcinado fazem parte da estética claramente perceptível do artista.
Outro detalhe que chama a atenção é que André Vicente coloca em
primeiro plano alguns elementos que considera demarcadores da cultura
sertaneja: chapéu de couro, lamparina, cabaça, o xique-xique e sua floração
e os ninhos de pássaros em galhos de árvores secas.

Imagens 7, 8 e 9 - Obras de André Vicente (Acervo do Autor)

Uma dedicação incondicional ao sertão do Seridó está marcada na


obra da artista Maria Davina dos Santos (60), que mora em Caicó desde os
quatro anos de idade, mas que nasceu em Serra Negra do Norte. Sua
afirmação da cultura seridoense é incondicional e emocionada. Faz de sua
obra uma saudação contínua ao sertão, não há para ela maior riqueza que a
caatinga, que sempre está pronta para renascer. Vale a pena descrever
algumas de suas considerações sobre a sua arte e o "seu" Seridó:
Por essa questão da ausência da chuvas, eu acho o sertão
encantador. A grande família sertaneja é o xique-xique, coroa
de frade, gogóia, palmatória e cardeiro. O cardeiro é o profeta.
É o Deus dessa turma. Ele avisa quando a chuva vai chegar
com aquele lírio bem grande , bem branco. Ela (a flor) é
perfumadíssima e a engenharia que existe dentro dela é tão
pura como a entrada do CéU?6

26 Maria Davina dos Santos. Entrevista realizada no dia 22/05/20 IO, em Caicó/RN.

23
Davina em uma tarde ensolarada, como é de costume, mostrou todo
o seu conhecimento sobre o Seridó citando plantas, animais, festas, perdas
e sua tristeza ao ver em períodos de seca intensa a morte de plantas que
haviam resistido a situações limites anteriormente. De alguma forma a
artista humaniza as plantas e faz que sua estrutura natural tome a forma
humana, inclusive com sentimentos. Em um dos momentos chora ao
descrever a morte de uma Jurema, árvore frondosa, em uma das secas que
presenciou. Mas, o que segundo ela mais se identifica com o Seridó é a
festa junina. Já produziu muito sobre o tema e como não possui lugar para
guardar seus quadros, logo os vende e acaba ficando sem nenhum para
mostrar a curiosos que os procuram, como foi o nosso caso.

Imagens 10, 11, 12 e 13 - Obras de Oavina (Acervo do Autor)

De São João do Sabugi merece destaque o pintor José Araujo


Dantas" (62), conhecido pelo nome artístico de Zety. Defende uma pintura
voltada para os temas sertanejos, principalmente os relacionados a vida do
vaqueiro e dos animais que compõem o cenário do Seridó. Em seu relato
informou que ao visitar a filha em São Paulo, expõe seus quadros junto
com uma amiga na Praça da República, e que os nordestinos logo se
aproximam para rememorar as paisagens que não fazem mais de seu dia-a-
dia e sim de um passado que pode seu tocado pelas obras de Zety.

27 Entrevista Entrevista realizada no dia 04/09/20 IO, em São João do Sabugi/RN.

24
Imagens 14 e 15 - Obras de Zety (Acervo do Autor)

Em Currais Novos, elencamos para este artigo, dois artistas com


temáticas diferentes entre si em entre os outros artistas até agora citados.
O primeiro deles é Franscinaldo da Silva Gomes (29), que além de
pintor também é mamulengueiro. Define sua arte como uma forma de
homenagear as crianças e a vida comum das pessoas de sua cidade. Não
utiliza um desenho realista, prefere explorar as formas. Mesmo assim,
percebemos que a temática da vida sertaneja, carente de água potável e
encanada também faz parte de seu olhar para seu território. Uma das coisas
que chama a atenção na obra de Franscinaldo é o colorido de suas
personagens, provavelmente bastante influenciado pelo colorido dos
mamulengos que cria e manipula.

Imagens 16, 17 e 18 - Obras de Franscinaldo da Silva Gomes (Acervo do Autor)

25
o segundo artista currais-novense que destacamos é Álvaro José da
Silva Fonseca (24), que chamou nossa atenção por fugir de uma estética tão
realista e figurativa de sua visão de sertão e Seridó. Sabe que sua obra não
encontra muitos compradores, mas diz que é desta forma que consegue se
expressar. Defende uma arte que mostre com sensibilidade os conflitos
humanos, individuais e coletivos. Sua obra é marcada por uma contundente
dramaticidade e contrasta com os artistas entrevistados. Não deixa de
mostrar o sertão, mas com um olhar mais revelador e impactante. Não
trabalha por encomenda, por que acredita que a arte deve refletir o que o
artista está sentindo ou vivenciando. Considera sua obra como "pesada".
Consideramos que as temáticas nos levam ao passado sem nos esquecer
que o presente ainda encobre injustiças e ódios.

Imagens 19 e 20 - Obras de Álvaro José (Acervo do Autor)

o Seridó é descrito através da arte destes sete seridoenses em sua


diversidade. Assim é o sertão: diverso, surpreendente e ao mesmo tempo
igual. Contradições que não parece incomodar os sertanejos ou aqueles que
os observam com olhar artístico. Há nas imagens uma poética aridez de um
sertão duro e empedrado, mas que se toma leve nos quadros e nas falas dos
artistas. Álvaro José é o único que dramatiza e expõe as agruras de se viver
num lugar onde a injustiça social ainda é perceptível. Nos outros artistas o
que se apresenta é um espaço bucólico e pitoresco, sem deixar de mostrar
que a pedra e o xique-xique são constituintes deste sertão e que o sertanejo
conseguiu driblar o flagelo e fazer deste Seridó um espaço de
sociabilidades e de sentidos.

26
o que nos chamou a atenção é que nenhum dos artistas aqui
elencados possui curso em artes visuais, apenas alguns encontros com
outros artistas locais, mas sem uma formação acadêmica. Ou seja, a sua
estética nasce de seu olhar a observar o cultural que há no espaço que se fez
imagem através de seus pincéis e habilidades natas. Todos se dizem
pintores/desenhistas espontâneos. Quando nos deparamos com este
conceito, nos perguntamos até onde a sua arte não possui elementos do
Nayf28. Não há dúvida que em alguns aspectos o "primitivo" está
marcadamente presente em muitos destes artistas (André Vicente, Davina,
Zety, para citar os que aparecem neste artigo), e que seguem o percurso de
grandes mestres primitivos como Henry Vitor (1939), laperi (1946), José
Luis Soares (1935), Rodelnégio (1915) e Vicente Labriola (1899- ?). O que
se diferencia é o colorido, que nas pinturas dos seridoenses, aqui
especificados, é muito menos intenso e diversificado, mas as ternáticas e a
técnica são muito próximas. Tratando deste Narf de forma mais objetiva,
um destes autores seridoenses se destaca no cenário nacional.
lareri Soares de Araújo, natural de São Vivente no Seridó, mas que
se radicou em Natal há muitos anos. Sua obra já participou de mostras de
Naif no Brasil e exterior, e podemos destacar que a religiosidade aparece
com muita força em seu trabalho, e na maioria dos casos num cenário que
demonstra o sertão desprovido do verdejante das matas, mas que é
encantadoramente poético em suas pinceladas.

Imagens 21,22 e 23 - Obras de Iaperi Soares de Araújo (acervo do autor)

28O Narf também possui outras definições: arte primitiva, ingênua, espontânea, instintiva, ínsita (nata) e
popular.

27
Fica evidente nas duas obras o olhar do artista para seu lugar de
origem. Na primeira (imagem 21) intitulada "Procissão de Nossa Senhora
da Serra de Santana" o casario e a falta de vegetação abundante demarcam
a espacialidade de sua referência e o sertão aparece com suas serras ao
fundo e suas íngremes subidas. A terra ocre amarelada conduz nosso olhar
para o semi-árido presente na paisagem do Seridó retratado por laperi.
Na segunda (imagem 22), novamente a religiosidade é demonstrada
através da obra "Milagrosa Viagem da Sta. Virgem Menina". Três árvores
contrastam com os galhos secos e os cactos da encosta do monte retratado.
O céu azul recorrente em suas imagens se destaca no tom ocre do chão em
que estão os devotos. Esta obra fez parte do catálogo da Bienal Naifs do
Brasil de 2002 promovida pelo SESC São Paulo no Módulo "Mestres de
Ontem e de Hoje".
Já na terceira (imagem 23), a religiosidade do sertanejo nordestino
em "Ex-voto de Padre Cícero" é o tema central. A imagem do "santo"
popular aparece dentro de uma nuvem branca carregada por pequenos
anjos, e tudo isto contrastando com o marrom da terra sem verde e de
galhos secos. Fica evidente a composição artística e o discurso corrente
sobre Padre Cícero como o "santo" dos nordestinos e em especial dos que
sofrem. A seca é elevada a condição de purgadora e é sublevada pela força
da fé dos devotos do Padre do Juazeiro do Norte, que se transformou em
Santo de todos os sertanejos.
Voltando a temática da seca, mesmo com a construção de açudes,
num total de nove.", que servem para abastecer as cidades do Seridó, o
clima semi-árido continua a fazer vítimas e por impossibilidade de
produção agrícola em larga escala, muitas atividades econômicas se
instalam nas cidades, gerando renda e ao mesmo tempo preocupações com
o meio ambiente. Uma delas é a atividade ceramista, que para manter seus
fornos acesos, consomem indiscriminadamente madeira, contribuindo para

Os açudes começaram a ser construidos desde 1920 e o último foi concluído em 1994: Cruzeta (Cruzeta
'c)

-1920/29), Itans (Caicó- 1935), Gargarelhas (Acari - 1956/59), Zangarelhas (Jardim do Seridó - 1957),
Sabugi (São João do Sabugí - 1965), Caldeirão de Parelhas (Parelhas - 1967), Dourados (Currais Novos
- 1982), Boqueirão de Parelhas (Parelhas - 1988), Passagem das Traíras (São José do Seridó - 1994),
perfazendo um total de 377.104.875 m- em sua capacidade máxima. Na maioria do ano estes açudes
permanecem com sua capacidade média em 50 %.

28
a desertificação crescente na região. O Seridó é considerado um dos
principais espaços de desertificação do Brasil, contribuindo para a
degradação de plantas, animais e homens. Ou seja, parece que o tema da
seca continua presente nas vidas dos sertanejos e dos citadinos. e ao que se
indica, a arte vai continuar descrevendo o ambiente em que os artistas estão
inseridos. O passado revivido no presente e o presente não deixando que o
passado seja apenas uma abstração. Diante do controle social e de políticas
públicas mais consistentes, a indústria da seca agoniza e novos atores
começam a traçar o seu destino, através de congressos, encontros e até
mesmo da arte que não pretende se eximir de interpretar através do olhar
sensível de seus produtores o que o seu ambiente cultural e imagético Ihes
propõe.
Não temos a pretensão de definir uma estética específica para o
Seridó, visto que estaríamos caindo no mesmo esquemismo que há tantas
décadas tem construído um sertão de imagens únicas e homogêneas.
queremos sim perceber a diversidade estética, mas que possui um ponto em
comum, a visão do espaço como culturalmente apreendido e interpretado.
individual e coletivamente. O sertão do Seridó tem suas cores e tonalidades
que não são as mesmas de Portinari e Di Cavalcanti, mas são dos artistas
que vêem através do filtro das sensibilidades o que se apresenta diante de
seus olhos ao abrir a janela ou ao caminhar pela terra seca e rica de
expressões culturais. A estética do lugar acaba se encontrando com a
estética de outros lugares e temporal idades, uma não desqualificando a
outra, mas compondo com cores, ou a falta delas, o mapa visual do Seridó
Potiguar.

29

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