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Universidade Federal do Rio Grande Do Norte

Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes

Programa de Pós-Graduação em Psicologia

QUESTÃO SOCIAL: OS GOVERNOS PETISTAS E A PROTEÇÃO SOCIAL NO

CAPITALISMO CONTEMPORÂNEO

Victor Cesar Amorim Costa

Natal

2021
Victor Cesar Amorim Costa

QUESTÃO SOCIAL: OS GOVERNOS PETISTAS E A PROTEÇÃO SOCIAL NO

CAPITALISMO CONTEMPORÂNEO

Dissertação elaborada sob orientação da Prof.

Dra. Isabel Maria Farias Fernandes de Oliveira

e apresentada ao Programa de Pós-Graduação

em Psicologia da Universidade Federal do Rio

Grande do Norte, como requisito parcial à

obtenção do título de Mestre em Psicologia.

Natal

2021
1

Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN


Sistema de Bibliotecas - SISBI
Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes - CCHLA

Costa, Victor Cesar Amorim.


Questão social: os governos petistas e a proteção social no
capitalismo contemporâneo / Victor Cesar Amorim Costa. - 2021.
180f.: il.

Dissertação (mestrado) - Centro de Ciências Humanas, Letras e


Artes, Programa de Pós-graduação em Psicologia, Universidade
Federal do Rio Grande do Norte, Natal, RN, 2021.
Orientadora: Prof.ª Dr.ª Isabel Maria Farias Fernandes de
Oliveira.

1. Questão social - Dissertação. 2. Proteção social -


Dissertação. 3. Capitalismo - Dissertação. 4. Dependência -
Dissertação. 5. Psicologia - Dissertação. I. Oliveira, Isabel
Maria Farias Fernandes de. II. Título.

RN/UF/BS-CCHLA CDU 159.9

Elaborado por Ana Luísa Lincka de Sousa - CRB-15/748


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Universidade Federal do Rio Grande do Norte


Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes

Programa de Pós-Graduação em Psicologia

A dissertação "Questão Social: os governos petistas e a proteção social no capitalismo

contemporâneo", elaborada por "Victor Cesar Amorim Costa", foi considerada aprovada por

todos os membros da Banca Examinadora e aceita pelo Programa de Pós-Graduação em

Psicologia, como requisito parcial à obtenção do título de MESTRE EM PSICOLOGIA.

Natal, RN, 13 de dezembro de 2021

BANCA EXAMINADORA

Profa. Dra. Isabel Maria Farias Fernandes de Oliveira ______(assinatura)__________

Prof. Dr. Henrique André Ramos Wellen ______(assinatura)__________

Prof. Dr. Fernando Lacerda Jr. ______(assinatura)__________


3

É verdadeiramente revoltante o modo como a sociedade

moderna trata a imensa massa dos pobres. [...]

Submete-os às mais violentas emoções, às mais bruscas

oscilações entre o medo e a esperança e persegue-os

como a uma caça, não lhes concedendo nunca um pouco

de paz e de tranquilidade.

Friedrich Engels
4

Para meus pais, Rejane Amorim e Paulo Costa

Para minha mestra e camarada, Márcia Pereira Cassin

Para meus mestres além-mar, Terry Eagleton e Fredric Jameson


5

Agradeço aos meus pais por terem estado ao meu lado o tempo todo, mesmo estando

tão distantes.

Agradeço aos meus amigos, os potiguares que estiveram comigo a maior parte do

tempo, e os mineiros que mesmo de longe marcavam presença com carinho e cuidado.

Agradeço ao Fabrício pela companhia prazerosa, pois não há nada melhor que criticar

a ordem vigente ao lado de quem a gente ama.

Agradeço à Isabel pela confiança depositada nessa empreitada. Fez muita diferença!

Agradeço ao Yamamoto, sem as contribuições e orientações dele este projeto não teria

tomado a presente forma.

À Universidade Federal do Rio Grande do Norte, por ser a primeira instituição pública

de ensino superior em que tive a oportunidade de me matricular. Isso deveria ser direito de

todos!

Ao povo potiguar por me acolher de maneira tão maravilhosa.


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Sumário
LISTA DE FIGURAS E TABELAS ......................................................................................................................7
1. INTRODUÇÃO .................................................................................................................................................10
1.1 JUSTIFICATIVA .............................................................................................................................................14
1.2 OBJETIVO .....................................................................................................................................................26
1.2.1 OBJETIVO GERAL .........................................................................................................................................................................26
1.2.2 OBJETIVOS ESPECÍFICOS ...........................................................................................................................................................27
1.3 MÉTODO .......................................................................................................................................................27
1.3.1 SOBRE MÉTODO E ESTRATÉGIA DE TRABALHO ....................................................................................................................27
1.3.2 SOBRE OS CRITÉRIOS E FORMAS DE MAPEAMENTO, IDENTIFICAÇÃO E SELEÇÃO DA BIBLIOGRAFIA .....................31
1.3.3 SOBRE O PROCESSO DE REVISÃO E CONSTRUÇÃO DA DISCUSSÃO ..................................................................................42

2. A QUESTÃO SOCIAL NA TRADIÇÃO MARXISTA.................................................................................44


2.1 O CONFLITO MATERIAL EM TORNO DOS SENTIDOS DA QUESTÃO SOCIAL .................................................44
2.1.1 MATERIALIDADE E HISTÓRIA DA QUESTÃO SOCIAL....................................................................................44
2.2 ESTADO CAPITALISTA E QUESTÃO SOCIAL .................................................................................................66
2.2.1 O NASCIMENTO DE UM NOVO MODO DE PRODUÇÃO: A NOVIDADE DAS RELAÇÕES SOCIAIS CAPITALISTAS ...66
2.2.2 ESTADO CAPITALISTA, FORMAÇÃO SOCIAL E AS EXPRESSÕES DA QUESTÃO SOCIAL ....................................73
2.2.3 OS TRINTA ANOS “DOURADOS” DO “CAPITALISMO”: O NASCIMENTO DOS SISTEMAS DE PROTEÇÃO SOCIAL
NA EUROPA OCIDENTAL ..................................................................................................................................79
2.2.4 PROTEÇÃO SOCIAL NO CAPITALISMO CONTEMPORÂNEO: TENDÊNCIAS NO CENTRO E NA PERIFERIA ...........89
2.3 ESTADO E AS EXPRESSÕES DA QUESTÃO SOCIAL NO BRASIL CONTEMPORÂNEO ....................................102
2.3.1 ESTADO, ACUMULAÇÃO E PRODUÇÃO DA QUESTÃO SOCIAL NA TRANSIÇÃO AO NEOLIBERALISMO .............102
2.3.2 PROTEÇÃO SOCIAL NO CAPITALISMO BRASILEIRO CONTEMPORÂNEO .......................................................113
3. PROTEÇÃO SOCIAL NOS GOVERNOS DO PT .....................................................................................121
3.1 ALGUÉM DISSE NEOLIBERALISMO? ..........................................................................................................121
3.1.1 SOBRE A SITUAÇÃO DOS GOVERNOS PETISTAS .........................................................................................121
3.1.2 O CAMINHO DO NEOLIBERALISMO: A REVERSÃO CONSERVADORA CONTRA A PROTEÇÃO SOCIAL ...............125
3.1.3 O SEGUNDO GOVERNO DILMA: DOIS GOLPES (2014-2016) CONTRA A PROTEÇÃO SOCIAL .......................146
4. CONSIDERAÇÕES .......................................................................................................................................153
4.1 QUESTÕES SOBRE O PRESENTE E O FUTURO DA DESPROTEÇÃO SOCIAL NO CAPITALISMO DEPENDENTE
BRASILEIRO ......................................................................................................................................................153
4.4.1 CONSIDERAÇÕES FINAIS: PROBLEMAS E TESES SOBRE O PRESENTE E O FUTURO DA DEPENDÊNCIA
BRASILEIRA ....................................................................................................................................................153
4.2 BREVES CONSIDERAÇÕES FINAIS SOBRE O SIGNIFICADO DESTA PESQUISA E DE SEUS RESULTADOS PARA
A PSICOLOGIA ..................................................................................................................................................170

5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ..........................................................................................................172


7

Lista de Figuras e Tabelas

Figura 1. Modelo de produção da crítica. Baseado em Netto (2012)......................................28

Tabela 1. Resumo dos resultados da primeira fase do processo de seleção dos textos...........39

Tabela 2. Resultados da segunda fase do processo de seleção dos textos...............................41


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RESUMO

Esta pesquisa foi movida desde o início pela busca da apreensão das tendências em termos de

tratamento da questão social nos governos petistas, tomada enquanto uma via de investigação sobre as

possibilidades estruturais de proteção social em um capitalismo dependente do Cone Sul. Passados os

anos de furor do crescimento efêmero e tendo o país mergulhado em crises consecutivas após junho de

2013, o golpe parlamentar de 2016 colocava um fim numa trajetória de 12 anos de governos petistas,

os quais se iniciaram de uma maneira completamente diferente. Nesse contexto, nosso esforço geral se

voltou à análise de como a questão social foi tratada no Brasil tendo como foco os governos petistas.

Nessa trajetória, realizamos uma revisão um tanto híbrida, inspirados em elementos da revisão

sistemática, mas não ferrenhamente presos a ela. No total foram selecionadas oito obras após fases

consecutivas de filtragem dos resultados obtidos. Por fim, os resultados da revisão indicam um

consenso em torno do aprofundamento do neoliberalismo, no sentido do ordenamento da proteção

social a partir da lógica do mercado. A privatização persiste firme e forte como um processo gradual,

as vezes mais intenso, as vezes mais lento contra qualquer coisa que ainda reste pública. O boom das

commodities e os efeitos de seu declínio, especialmente os rebatimentos “tardios” da crise de 2008

foram peças fundamentais nas possibilidades de gestão da contrarreforma permanente. A captura do

Fundo Público pelos serviços da dívida pública, a mantença do tripé macroeconômico neoliberal e o

caráter intocável da Lei de Responsabilidade Fiscal, esta última utilizada para derrubar Dilma,

denunciam o caráter antidemocrático de nossa democracia dependente. Ao final, exploramos alguns

cenários e tendências contra a proteção social no capitalismo dependente brasileiro.

Palavras-chave: questão social, proteção social; capitalismo; dependência; psicologia.


9

ABSTRACT

From the beginning, this research was driven by the search for the apprehension of tendencies

in terms of treatment of the social issue in PT governments, taken as a way of investigating

the structural possibilities of social protection in a capitalism dependent on the Southern

Cone. of ephemeral growth and having the country plunged into consecutive crises after June

2013. The parliamentary coup of 2016 put an end to a 12-year trajectory of PT governments,

which started in a completely different way. In this context, our general effort turned to the

analysis of how the social question was treated in Brazil, focusing on PT governments. In this

trajectory, we carried out a somewhat hybrid review, inspired by elements of systematic

review, but not fiercely attached to it. In total, eight works were selected after consecutive

stages of filtering the results obtained. Finally, the results of the review indicate a consensus

around the deepening of neoliberalism, in the sense of ordering social protection based on the

logic of the market. Privatization remains firm and strong as a gradual process, sometimes

more intense, sometimes slower against anything that remains public. The commodity boom

and the effects of its decline, especially the “late” repercussions of the 2008 crisis, were

fundamental elements in the possibilities of managing the permanent counter-reform. The

capture of the Public Fund for servicing the public debt, the maintenance of the neoliberal

macroeconomic tripod and the untouchable nature of the Fiscal Responsibility Law, the latter

used to overthrow Dilma, denounce the undemocratic character of our dependent democracy.

Finally, we explore some scenarios and trends against social protection in Brazilian dependent

capitalism.

Keywords: social question, social protection; capitalism; dependency; psychology.


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1. Introdução

Há alguns anos, vivíamos em tempos interessantes. Quase cerca de duas décadas atrás

o Partido dos Trabalhadores (PT) chegava ao poder na liderança de Lula da Silva. Muitas

eram as expectativas em relação às grandes questões nacionais – fome, desemprego,

habitação, saúde e educação, com uma quantidade significativa de sua população vivendo em

condições extremas quando não precárias de vida e trabalho – diante de um cenário arrasado

pela interdição histórica neoliberal à proteção social. A realidade capitalista que vivemos hoje

é produto de uma longa onda de interdição histórica à constituição de um sistema de proteção

social no capitalismo brasileiro, operada por contínuas e sistemáticas contrarreformas que

quando não precariza ou extingue os serviços e benefícios, os colocam no caminho de uma

privatização gradual. Nesse entendimento, a “retirada de direitos sociais”, ou seja, as

contrarreformas são o modus operandi que faz a mantença do status quo dessa interdição

histórica. Para Boschetti (2016), essa derruição de direitos anuais se trata, na verdade, de

processos de expropriação das condições de vida e trabalho dos trabalhadores via retirada de

direitos sociais duramente conquistados. Uma forma sui generis de expropriação que, como

veremos adiante, possui uma importante função estrutural no capitalismo contemporâneo.

Passados algumas porções de anos, muitas ainda são as indagações e as ponderações

sobre qual foi o rumo material e histórico daquele acontecimento e dos processos que se

seguiram, a saber, a chegada do PT ao poder executivo nacional. Neste assunto, é conhecida a

intervenção de origem gramsciana que denota um relevante processo de metamorfose do

partido diante das questões de hegemonia na luta de classes, sempre abarcado e explorado

pelas vias do conceito de transformismo (Cassin, 2015). São muitas as análises que partem

do cotejamento do PT do nascimento da instituição no final do século passado ao PT que

chegou ao poder executivo nacional no início deste século, analisando com apropriada
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minúcia esse tortuoso caminho numa nação de final de século XX, na qual a democracia

oligárquica sempre foi a única alternativa ao autoritarismo, essa sempre circunscrita à ordem

do patrimonialismo e do clientelismo país adentro. Ao pensar sobre essa situação através dos

olhos escritos de Benjamin (1987), a saber, seus textos, poderíamos representar o “anjo da

história” brasileiro: o que ele vê à sua frente ao olhar para o passado recente a não ser a

barbárie parindo cada vez mais barbáries?

Essas agudas contradições econômico-políticas brasileiras moveram os moinhos da

crítica marxista. Para alguns, esse período não só moveu tais moinhos, como também veio

supostamente relevar suas deficiências no sentido de que se tratava, na verdade, de “uma

revolução epistemológica para a qual ainda não dispomos da ferramenta teórica adequada.

Nossa herança marxista-gramsciana pode ser o ponto de partida, mas já não é o ponto de

chegada” (Oliveira, 2007, s/p). Para este mesmo autor, a “hegemonia lulista” seria uma

“hegemonia às avessas” e tal período nos trouxera uma verdadeira esfinge, desafiando toda

uma producente linhagem de uma tradição crítica. O que seria isto senão uma afirmação da

debilidade da crítica marxista diante de nossas urgências modernas mais cabais? Mais adiante

no tempo, as ressalvas a tal “constatação” vieram de um prestigioso integrante dessa mesma

linhagem da tradição.

A expressão “hegemonia às avessas”, inventada por nosso querido Chico de Oliveira, é


certamente provocativa. Trata-se de uma das muito instigantes e sempre oportunas
provocações (no bom sentido da palavra!) postas por ele. Lembro aqui, por exemplo, suas
formulações sobre o modo de produção social-democrata, o antivalor, o ornitorrinco e o
surgimento de uma nova classe formada pelos gestores dos fundos públicos etc. Mesmo
que discordemos de Chico em alguns casos, aprendemos sempre – e muito – com essas
provocações, pois nos obrigam a pensar. É o caso também de “hegemonia às avessas”
(Coutinho, 2010, p. 29).
12

Nesta ocasião, Coutinho (2010) observou, respeitosamente, a banda da “crítica da

crítica” passar, mas não a seguiu. Preferiu apostar no léxico gramsciano precisamente num

momento de desdenho para com o mesmo, apontando a existência de uma “hegemonia da

pequena política”. Hoje, após contrarreformas petistas, o choque neoliberal de 2015,

sequenciado pelo golpe parlamentar de 2016 (Miguel. 2017), o poder político no executivo

nacional passou pelas mãos de Michel Temer e agora se encontra nas mãos de Jair Bolsonaro.

Atualmente, sobrevivemos a dias interessanes. Antes havia certa parcela de otimismo,

devemos confessar. A barbárie se avizinhava, batia à porta. Hoje ela se encontra em nossa

sala de estar tomando café e não conseguimos fazer quase nada quanto a isso.

O genocídio em contínuo processo de efetivação pelo presente governo executivo

federal é a maior prova disso. Anteriormente, a relação entre o pessimismo e a esperança do

presente pesquisador se encontrava numa condição em que era possível enunciar aqueles

tempos como tempos interessantes, mesmo que fossem interessantes num sentido muito

estrito, na qual havia a percepção da tendência de contínuo aprofundamento da degradação da

ordem política e dos direitos sociais, mas na qual também se acreditava que poderiam vir

resistências com forças efetivas para barrar a barbárie. Essa crença positiva foi por água

abaixo junto com a derruição da instável e discricionária sensibilidade das instituições do

Estado Capitalista brasileiro às normas legais, o que comumente é enunciado como a

degradação da “normalidade” do Estado Democrático de Direito.

O surgimento da pandemia de Covid-19 encontrou grandes aliados no governo federal

e na sociedade brasileira, numa mistura muito singular entre formas de obscurantismo,

autoritarismo, neoliberalismo e populismo conservador. No decorrer da condução desta

pesquisa contabilizaram, até o momento, 614.754 mortes e 22.093.195 infecções pelo Sars-

CoV-2, segundo balanço do consórcio de veículos de imprensa com dados das Secretarias

Municipais e Estaduais de Saúde (Watanabe, 2021), uma vez que a União sob os mandos de
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Bolsonaro passou a censurar os dados atrasando a sua disponibilização a fim de evitar o seu

devido uso político pelos principais jornais nacionais, pela mídia independente e pelos

movimentos sociais, um número total que está eivado por muita subnotificação produzida

intencionalmente pelo já mencionado governo.

Nossa preocupação frente a esses tempos horrendos é direcionada ao passado recente,

o qual ainda despertava sóbrios e animados interesses por parte deste pesquisador. Em

oposição à indicação de Oliveira (2007) sobre as limitações de certa linhagem da tradição

marxista em ler aquele período, os acontecimentos posteriores acabaram por cumprir o papel

de alavancar a produção acadêmica e intelectual. E se assim o é, a revisão dessas produções se

faz necessária. Considerando toda a polêmica brevemente apresentada sobre o período dos

governos petistas e a tradição marxista, e considerando o incremento das produções desta

última diante de novos acontecimentos no passado recente, questionamos como foi o

tratamento da questão social nos governos petistas.

Entendemos questão social como um conceito que faz referência a um complexo

material/físico de condições gerais de não-liberdade de determinação da vida humana

autônoma, justamente pelo fato de a vida humana coletiva estar privada dos meios

fundamentais de produção. Neste Régime é autorizado e cumprido pelo Estado Capitalista e

seu poder burocrático e repressivo o aprisionamento da propriedade coletiva, ou seja, as terras

comunais, logo, todo o complexo de vida no planeta, possibilitando a cristalização da

apropriação privada da terra, operada por processos fundamentais de expropriação da terra e

dos recursos naturais e, atualmente, de direitos sociais duramente conquistados, assim como

pela exploração e superexploração das massas trabalhadoras dos mais recantos lugares deste

planeta. A principal característica desse tipo específico de Estado-nação, capitalista, é que a

riqueza é produzida na mesma medida em que a pobreza. É por isso que o absurdo das casas
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decimais dos bilionários chama tanta atenção quanto as milhares de vidas humanas na miséria

e na pobreza, em suma, em extremas quando não precárias condições de vida e trabalho.

A escolha da questão social para nos guiar na viagem pelos textos que tratam do

período se refere justamente ao fato dela ser um potente aglutinador de sentidos e práticas nos

termos do debate sobre as políticas sociais na ordem do capital. Investigar as obras se

orientando pela questão social é uma das possibilidades de se investigar as leituras sobre os

paradeiros da luta de classes no período. Outro aspecto de suma importância quanto à escolha

desse conceito se refere à própria forma com que as produções que buscam analisar o período

organizam suas análises. Muitas vezes, os textos não tratam de cada tema social brasileiro, as

grandes questões nacionais, separadamente. Justamente por isso entendemos que o conceito

de questão social se adequaria satisfatoriamente como guia na investigação das interpretações

sobre o período a partir de vários pontos teóricos e metodológicos muito diversos.

1.1 Justificativa

Necessário se faz expor o porquê da escolha e a importância desta pesquisa em alguns

aspectos. Do ponto de vista pessoal, enquanto marxista em formação, o interesse urgente por

compreender o capitalismo contemporâneo no Brasil acabou direcionando o pesquisador até a

presente temática, vista como uma grande oportunidade para o aprofundamento em leituras

atuais. Essa dissertação é vista, sobretudo, como um espaço oportuno de aprendizagem e

formação intelectual no campo da tradição marxista.

Um segundo aspecto seria a contribuição que iriamos oferecer para a psicologia que se

quer “crítica”. Falta materialidade a essa psicologia. Sabemos que essa é uma afirmação

profundamente tautológica, mas mesmo assim deveria incomodar tal constatação do ponto de

vista da relevância social dos espaços de intervenções que a profissão possui, os quais a

forçam a lidar diretamente com as sequelas da questão social. De tanto estudar subjetividades,
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identidades, afetos e etc., os estudantes e professores das universidades públicas, bem como

os e as profissionais que atuam no campo da política social, estão assistindo seu mundo ruir –

espaços de trabalho e também de certa “resistência”, essa última muitas vezes subestimada ou

superestimada, quando na verdade se trata especificamente de fissuras no Estado Capitalista a

partir das quais é possível explorar intervenções contra-hegemônicas mais diretamente com as

massas, mesmo que se esteja numa posição muitas vezes longínqua dos espaços de poderes

decisórios finais das várias esferas do executivo – sem produzirem uma crítica radical sobre a

ontologia do nosso presente, sem produzir o alimento intelectual que as extremas quando não

precárias condições de vida e trabalho das massas populares demanda, muito em função de

não possuírem nem as ferramentas para isso e nem essa disponibilidade, no sentido mesmo de

uma constatável hegemonia do pós-modernismo e do pós-estruturalismo, quando não de um

marxismo subjetivista e voluntarista. Em outras palavras, ao eleger soberbamente o

psicológico, o subjetivo, o afetivo, o cultural, sobretudo o espiritual como sublimes objetos de

estudo, a psicologia “crítica” se tornou cega e não crítica para tudo aquilo que não é

puramente cultural e muito menos subjetivo ou espiritual, justamente por serem questões da

realidade capitalista, coisas materiais, uma situação específica que chamamos de modernidade

(Jameson, 2005). Entremeadas nessa cegueira estão as relações sociais capitalistas, a

exploração, as expropriações e a financeirização e suas relações com a democracia oligárquica

e a política social, além das ondulações econômicas e as crises endêmicas desse modo de

produção cujo rebatimento nos países periféricos sempre causou mais estragos. Nossa

contribuição será na contramão dessa ortodoxia corrente. Nossa proposta é falar desses temas.

Não há, nesta empreitada, interesse e esforço imediato algum na produção substantiva

e ampla de algo que possa ser enquadrado como uma “psicologia crítica” ou, o que vemos

como mais coerente, uma crítica da psicologia. E isso é parte integrante da problemática que

trazemos. O interesse é buscar incessantemente escapar das divisórias disciplinares do saber


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contemporâneo e tratar de forma una, plural e complexa o que o imperativo desse saber busca

incansavelmente separar: a economia e a política.

Doutra maneira, significa dizer que toda a presente estrutura desta dissertação não

trata em momento algum de uma resposta imediata de dentro do campo da psicologia, no

sentido de envolver a psicologia e seus debates, de alguma forma, em relação ao tema do

tratamento da questão social no período dos governos petistas. Entretanto, isso diz

propriamente da relevância social desta pesquisa para o campo e seu enquadramento dentro de

um programa de psicologia por três grandes motivos interconectados.

Em primeiro, temos a constatação e a denúncia de que,

De modo geral, a QS [(questão Social)] coloca-se como desafio para a PS [(psicologia


social)], que passa a abarcá-la prioritariamente de maneira transversal, por meio de suas
distintas manifestações, sem maior clarificação ou até mesmo conhecimento acerca de sua
existência como conceito que expressa uma dimensão de nossa configuração societária. Esse
desconhecimento aponta para uma não centralidade da QS e sua discussão neste campo de
saber e práticas, tendo como consequência a sua diluição em outros conceitos ou categorias
analíticas. Sendo assim, ao invés de se pensar em uma questão una, como a QS, inerente às
próprias formas de exploração e contradições da sociedade capitalista, como a relação capital-
trabalho e suas múltiplas manifestações, concebe-se a existência de inúmeros problemas ou
questões ditas “sociais”, mas que aparecem de forma fragmentada, sendo tratadas
separadamente entre si (Costa, 2020, p. 07).

Costa (2020) ainda narra o vácuo proporcionado por um tratamento qualificado da

questão social e suas expressões como um movimento de autonomização e individualização

delas no plano prático e discursivo da ciência psicológica, a qual muitas vezes transita num

espectro no qual, por um lado, vemos esta última eivada por ingenuidade e propostas

messiânicas, e por outro, tomada como por um câncer por um conservadorismo fatalista e

moralizador da questão social e suas expressões. Em ambos os casos, a realidade é resumida à

subjetividade e à experiência subjetiva da realidade, ou melhor, ocorre um processo de


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psicologização e individualização no discurso da psicologia sobre a realidade (Oliveira &

Amorim, 2012), num claro, firme e histórico posicionamento onto-epistemológico que nos

termos ocidentais conhecemos como idealismo. De acordo com Costa (2020), é como se a

psicologia vivesse fadada a viver na mesmice circular de sua constituição enquanto campo do

conhecimento e profissão, o que o autor chama de “Síndrome de Gabriela” enquanto um

“fenômeno individualizante, a-histórico e de reificação do ser humano e realidade social que

fundamenta as compreensões sobre os indivíduos” (p. 07). No campo da assim chamada

“psicologia social” e em relação às suas rupturas na América Latina em relação ao

conhecimento e às práticas norte-americanas e europeias, esse fenômeno foi abordado por

Yamamoto (1987) como as “alternativas que não alternam”. Temos dois exemplos

emblemáticos desse fenômeno.

Em certos casos, como no de Spink (2018), por exemplo, é asseverado que a realidade

não existe, de fato, afirmando a existência, na verdade, de vários “reais”, numa relativização

absoluta, uma típica forma idealista de ver as relações entre seres humanos como relações

espirituais, as quais não possuem determinações comuns, sobretudo materiais, sendo

construções sociais em absoluto. É defendida a ideia de que a realidade não existe sem o

humano. Ora, se acontecer o que os estúdios de Hollywood apregoam, e vier a descer dos céus

uma legião de vidas extraterrestres, que mundo eles irão invadir a não ser o que vivemos? O

real não é algo do reino do relativo em absoluto, ele é do reino das autonomias relativas, o que

é bem diferente. Ponderando ainda a partir de outro ponto, se realmente formos exterminados

algum dia, será que objetos como “fogão” e “relógio” deixarão de ser esses respectivos

objetos só porque a civilização de seres vivos que as criou e utilizava foi exterminada? Se

esses são os pressupostos estruturantes e ordenadores desse tipo de discurso, posicionamento

e prática da ciência psicológica, mesmo a que se quer “social” ou “crítica”, é claro que o

ponto de partida sempre será algo tomado como “imaterial”, como “subjetividades”,
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“linguagens” e “culturas” e demais termos que sustentam os estudos construcionistas do

campo denominado de “estudos culturais”. São produções que postulam o que Eagleton

(2016) chamou de doutrina pós-moderna do culturalismo.

O próprio texto de Spink (2018) é um exemplo emblemático desse tipo de

posicionamento. O autor alerta que “a concepção moderna das ‘políticas públicas’ como um

campo analítico, acadêmico e profissional se firmou, inicialmente, no mundo anglo-saxão

(Estados Unidos e Reino Unido), no princípio da década de 1970” (p. 14). Contudo, sua

narrativa não foge à doxa acadêmica liberal, embora seguindo em seu estilo pós-moderno, o

qual toma o Estado a partir de uma perspectiva culturalista, concebendo a linguagem na forma

do discurso como central na determinação do ser humano, cujo sujeito centrado é o suposto da

própria subjetividade, da cultura, em suma, do espírito. Ocorre que de tanto “criticar” a ideia

de neutralidade do Estado a partir de uma perspectiva espiritualista, própria do idealismo

europeu, acaba por pulverizar as determinações materiais desse complexo de instituições da

modernidade. De tantos exercícios de relativização absoluta – as chamadas “desconstruções”

praticadas no nível do discurso, pois a realidade permanece intacta (Eagleton, 1991) – esse

posicionamento acaba por cair na vala dos que concebem o Estado como figura neutra

especificamente ao não considerar a centralidade real antes que apenas discursiva da luta de

classes em toda a sua discussão, o que em última instancia significa a rejeição de todas as

contribuições científicas e filosóficas da crítica à economia política burguesa. A título de

exemplo, ao falar das “políticas públicas”, Spink (2018) afirma que

Permanece o pressuposto da sua centralidade para compreender o agir governamental, mas o


foco se desloca do conteúdo para seus processos de elaboração e implementação. Se na
primeira vertente das políticas públicas há uma dedicação a um real existente, nesta segunda
vertente podemos falar de perspectivas: de cima para baixo e de baixo para cima, de fora para
dentro e de dentro para fora; de grupos que se fazem presentes e de grupos excluídos e
ausentes, tornando-se vulneráveis (Spink, 2018, p. 21).
19

Spink (2018) traz uma perspectiva que, ao nosso ver, se trata de uma alegoria. O texto

parece trazer uma alternativa pós-moderna com um suposto tom de anti-positivismo, fazendo

frente contra o liberalismo clássico, mas acaba ao fim e ao cabo se fundamentando num

pomposo discurso estruturado por um espécime singular, pós-moderno, de positivismo

linguístico, acabando por produzir uma visão de mundo própria de um liberalismo tardio ao

fazer desmanchar no ar em sua narrativa a materialidade do Estado Capitalista. É bom

atentarmos para um alinhamento lexicológico com instituições como o Fundo Monetário

Internacional (FMI) e o Banco Mundial (BM), cuja influência sobre os governos petistas fez

adotarem termos como “vulnerabilidade” e “risco” sociais, os quais descrevem as situações,

mas nada dizem em termos da ontologia dos antagonismos políticos existentes no sentido de

suas determinações, dada a tirania do relativismo absoluto que embasa essas expressões.

Isso é evidente no fato de Spink (2018) adotar o termo “políticas públicas” como

objeto de estudo e análise. Essa expressão surgiu num contexto em que os sistemas de

proteção social europeus estavam sendo atacados, num momento histórico de crise do Estado

Capitalista diante do seu contraditório papel de ser efetivo em lidar com as crises do próprio

capitalismo. Surgiu, portanto, em íntima relação com as políticas “neoliberais”, junto de

outros conceitos e práticas como, por exemplo, a descentralização político-administrativa das

ações do Estado Capitalista, ou seja, do seu poder de ação, tendo por justificativa uma

oposição ao dito "totalitarismo" soviético (leia-se formas de democracia direta com alta

centralizadação político-administrativa); a "participação política" como intento de

democratização burocrática de uma parte mínima de ações do Estado Capitalista; a "gestão

social" como modelo eficiente numa perspectiva muito íntima com a administração pública,

dadas as características próprias das ciências sociais aplicadas. Expressões, discursos e

práticas que surgiram atreladas ao que certo barão anglo-saxão batizou de “terceira via”.
20

Noutros termos, a expressão “políticas públicas” e as demais mencionadas surgem e se

fortalecem ganhando consenso no caminho em que se avistava o que Netto (2012) chamou de

tempos de “crise do socialismo e ofensiva neoliberal”, sendo ideias liberais nativas do que

chamamos de regime de acumulação flexível, com seu respectivo regime de desproteção

social, que se caracteriza pelas contrarreformas que interditam a proteção social no país e no

mundo, o que a cada vez mais nos leva em direção a uma proteção social residual, sendo que

a centralidade da proteção é outorgada ao mercado e não mais ao Estado Capitalista

(Boschetti, 2016). É neste momento que assistimos a expansão privada da mercantilização em

massa de serviços e seguros de proteção social. Justamente por conta de sua historicidade, não

utilizamos essas expressões neste texto, uma vez que a “política pública” enquanto expressão

normativa diz de um ordenamento econômico-político no qual se enuncia o caráter público

das ações, mas não declara nada a respeito de seu fim, de seu objetivo final. Sendo assim,

financiar o SUS é tão política pública quanto o Estado Capitalista brasileiro custear a

infraestrutura em termos de rodovias e aeroportos, como o Programa de Aceleração do

Crescimento (PAC) de Dilma Rousseff o fez. Mas será que financiar o SUS e a construção de

aeroportos e rodovias realmente tem o mesmo fim? É claro que não, pois não só não possuem

o mesmo público como os objetivos de ambas as ações públicas são distintas.

É por essas e outras que escolhemos e defendemos o uso não apenas da expressão,

mas do corpus teórico-político que tem como central a expressão “política social” (Boschetti

& Behring, 2011), a partir do qual tanto a origem das ações como o fim delas são pensadas

para a proteção social das massas trabalhadoras em toda a sua heterogeneidade e diversidade

que atravessam a sua universalidade material. Todavia, o foco é outro. O ponto de partida é a

investigação dos determinantes materiais das sequelas da questão social. Trata-se de ser

radical no sentido mais literal possível em relação à metodologia, indo em direção às raízes da
21

questão social. Ainda sobre essa problemática política, antes que terminológica apenas,

Oliveira e Costa nos trazem que

É importante atentar para o caráter ‘social’ da política. Esse adjetivo lhe confere o estatuto de
ser direcionada para a coletividade pauperizada, assim, as políticas sociais, diferentemente das
políticas públicas (que podem voltar-se para a sociedade em geral, a exemplo da segurança
pública), voltam-se para um segmento que necessita de um suporte do Estado para manter ou
adquirir condições mínimas de sobrevivência. Seu caráter social engloba tanto políticas sob
responsabilidade exclusiva do Estado (políticas públicas sociais) como parcerias público-
privadas e intervenções do “Terceiro Setor” voltadas para o social (políticas sociais).
Portanto, o caráter social atribui à política uma função particular no MPC [modo de produção
capitalista]: minimizar as sequelas da “questão social” (Oliveira & Costa, 2018, p. 33-34).

A partir das críticas não apenas teóricas, mas, sobretudo ideopolíticas ao estudo

analisado acima, podemos perceber o quão certeiras são as considerações de Costa (2020). O

autor resume a conclusão de sua investigação sobre a questão social e o discurso da psicologia

apontando um tratamento aquém tanto quantitativa quanto qualitativamente do conceito e de

seus debates diante de sua imanência e relevância na realidade capitalista brasileira. Ao

elaborar suas considerações sobre a investigação realizada, o autor aponta três fatores que a

atravessam:

a) sua dissolução em problemas sociais supostamente autônomos que, na verdade, são suas
variadas manifestações; b) as formas como é conceituada e as teorias empregadas para sua
compreensão e suas consequências (individualização, subjetivação, responsabilização dos
indivíduos etc.); c) ou até mesmo um desconhecimento de sua existência por grande parte da
PS [(psicologia social)] brasileira como conceito analítico que expressa a realidade (Costa,
2020, p. 010).

Portanto, esta pesquisa tem possibilidade de ser uma resposta não à psicologia, mas ao

seu silêncio, omissões e mistificações diante da relação da questão social e suas expressões

em nosso país.
22

O segundo grande motivo diz respeito ao fato de ter sido no período dos governos

petistas que a psicologia experimentou grande expansão nas áreas de atuação e no contingente

de vagas no mercado de trabalho em função das políticas sociais. Em suma, ocorreram

significativas transformações no campo da psicologia enquanto ciência e profissão.

Se retomarmos o período de profissionalização da Psicologia e os caminhos por onde se


desenvolveu, dificilmente seria possível pensar num trabalho com a pobreza ou com um
caráter político reformista. A hegemonia da clínica privada e dos referenciais importados,
sem a devida consideração acerca da adequabilidade às situações nas quais aplicar, que em
quase nada ajudam na compreensão da realidade brasileira, pareciam não dar espaço a
transformações no campo. Contudo, ainda que primordialmente impulsionados por
aspectos contextuais (e não políticos), os psicólogos adentraram no terreno do trabalho
com populações pobres e, desde então, esse campo só tem crescido, seja em intervenção,
seja em pesquisa. Ramificações da Psicologia surgem, adaptações de referenciais teóricos e
técnicos idem, assim como o direcionamento das entidades de representação em busca da
problematização dos campos e da construção de parâmetros que guiem o trabalho dos
psicólogos de forma transformadora e não mais adaptativa (Yamamoto & Oliveira, 2010,
p. 22, grifos nossos).

O terceiro grande motivo intrinsecamente relacionado ao segundo é a determinação

advinda da dependência dos ciclos longos econômicos que acabam por produzir as

possibilidades de rumos gerais para a psicologia em termos de forma e conteúdo do mercado

de trabalho no setor público, ou seja, estamos falando aqui do quanto a psicologia enquanto

força produtiva e reprodutiva do setor de serviços e enquanto mercado de trabalho depende do

Estado Capitalista e das transições entre os ciclos do capitalismo e suas crises cíclicas ou

agudas de longa duração. O que tentamos chamar atenção com isso é para a necessidade de

refletirmos sobre a relação entre a democratização do serviço social de psicologia, o

capitalismo e a luta de classes.


23

Indo mais fundo ainda nesse debate, cabe questionarmos o próprio processo de

denominado de supercapitalização no sistema teórico mandeliano. De acordo com Behring

(2015), esse fenômeno ocorre quando a lógica industrial antes fordista e agora flexível faz o

mercado capitalista avançar sobre a esfera da reprodução social, consolidando e mantendo a

demanda de toda uma cadeia produtiva do cuidado humano nas suas mais diversas

possibilidades, principalmente quando mencionado o incremento da associação desse campo

com os avanços das tecnologias digitais. Noutras palavras, estamos falando do inchaço do

setor de serviços como forma de dar liquidez e sustentar a improdutividade desregulada da

ordem capitalista atual. Enquanto uma forma mercadoria, cabe-nos refletir que em uma

sociedade que vende a saúde corporal-mental – dada unicidade material da mente e do corpo,

pois um não pode existir sem o outro – é fundamentalmente tautológica tanto quanto

necessária a denúncia de que a expropriação da saúde corporal-mental das massas

trabalhadoras faz parte de um grande negócio que se orienta pela produção massificada do

adoecimento enquanto uma condição fundamental e elementar para manter o mercado da

“saúde” funcionando. Algo muito bem já explicitado por Parker (2014) em texto digno de ser

tratado como um manifesto europeu da crítica da psicologia, assim como o texto de

Yamamoto (1987) se trata de um manifesto latino-americano dessa mesma perspectiva. A

psicologia, portanto, é vista como apenas uma engrenagem desse processo. A crítica da

psicologia que propomos será produzida através do conceito de questão social como via

teórica possível de nos fazer produzir uma intervenção de cunho situacionista e de crítica da

psicologia, ou seja, uma maneira de tratar as questões e de ver o mundo que desloca o sujeito

da psicologia do plano psicológico/subjetivo/cultural, enfim espiritual, indo em direção ao

exame da situação em que nos encontramos.

Como Yamamoto e Oliveira (2010) asseveraram há uma década, foram os aspectos

contextuais que, primordialmente, impulsionaram tais transformações. Ao propormos


24

investigar como o tratamento da questão social pelos governos petistas, estaremos dando uma

contribuição, a partir da tradição marxista e dentro de um programa de psicologia, para

aqueles e aquelas que desejam compreender esses importantes aspectos contextuais, os quais

geralmente são brutalmente excluídos pela estruturação e pelo ordenamento discursivo da

prática e do debate na psicologia pelo pós-modernismo enquanto força política cínica, que

finge não possuir projeto societário e nem ideologia. Atualmente, temos ouvido falar muito,

ainda, do âmbito “micro” da política enquanto oposição privilegiada ao moribundo e mal

afamado “macro”, sendo que o que deveríamos fazer mesmo é desconstruir essas dicotomias

do idealismo francês do final do século XX, que dividem o nosso viver a política entre o

“macro” e o “micro” num dualismo ficcional, pois na verdade se trata de um continuum linear

e vertical no qual temos nossas condições de vidas determinadas de acordo com a organização

e os movimentos das classes sociais e seus acirrados conflitos no contexto dos ciclos

econômicos. É nesse ponto que denunciamos o caráter despolitizado da psicologia em termos

de questões de classe e projetos societários (Oliveira & Costa, 2018).

A partir desse momento passamos a ter essa visão sistêmica em oposição a uma visão

psicológica ou, num termo mais apropriado, espiritual das relações humanas, as quais não são

nada além de produto da matéria e da finitude humana e seus desejos de eternidade. Portanto,

cabe compreender que a psicologia se trata de um serviço público especializado que integra

uma ampla teia relativamente estável de estratégias e instrumentos organizacionais e

científicos para a efetivação das máximas motivações inscritas no sistema de proteção social

brasileiro fundado pela Carta Magna de 1988, tudo isso num contexto de interdição histórica à

constituição integral de um sistema de proteção social no capitalismo brasileiro. Ocorre que a

psicologia não se vê assim. De tão perdida ora ela se vê enquanto profissão da saúde, hoje

emaranhada no discurso “multiprofissional”, ora se vê como profissão da assistência social, o

que muitas vezes significa estar completamente perdida, ficando por demais sem rumo
25

quando assunto é identidade grupal e claramente conservadora e autoritária quando o assunto

é compromisso social prático-ideológico. Isso denuncia o fundamental que não é visto

justamente por ter um desempenho discursivo – performance em termos pós-modernos – que

muito raramente lembra, reconhece ou ao menos sabe que essa ciência e essa profissão,

quando presentes em políticas sociais, fazem parte não dessas “políticas” separadamente, mas

de um interditado sistema de proteção social de uma das maiores e mais diversas nações deste

planeta, e tão pobre e desigual quanto. Esse é o caminho que pretendemos traçar em direção à

produção de uma contribuição que se esforce no devido enfrentamento à ortodoxia corrente

no campo da psicologia.

Se for necessário realmente o estabelecimento de uma necessidade para as

trabalhadoras do campo da psicologia, para longe de qualquer moralismo romântico e nos

aproximando do realismo, entendemos que seu lugar enquanto executor terminal de

políticas segmentadas (Yamamoto, 2012) demanda uma acurada, sempre exploratória e

contínua busca por “compreender o contexto no qual atua e as mediações que o configuram

assim como os limites e possibilidades postos por este campo” (Oliveira & Costa, 2018, p. 40)

enquanto força produtiva e reprodutiva da sociedade capitalista. Estar na base da pirâmide

estatal implica olhar para cima e ver as estruturas que nos constrangem e circunscrevem

nossas possibilidades de ação a partir desse lugar institucional contraditório que a atuação nas

políticas sociais proporciona. Antes de desconstruir o Estado Capitalista discursivamente é

necessário o seu dedicado exame para não cairmos na armadilha de achar que desatamos um

nó quando estamos só ignorando o caráter regular quando não permanente do ordenamento da

nossa própria vida pelo capital. E esse exame deve começar por compreender a psicologia não

como uma profissão que caiu dos céus nos braços da classe média para deleite coletivo de

poucos, mas sim como uma força produtiva e reprodutiva capaz que circular valor em massa

através de um mercado de trabalho disforme e estruturalmente deficitário em formalidade,


26

qualidade e proteção. Tomando o realismo de Yamamoto (2007) como panorama, devemos

jamais deixar cair no esquecimento ou ser silenciado por discursos moralistas e pelegos de

“compromisso social” o fato irremediável nos limites do presente do tempo histórico de que a

trabalhadora de psicologia não é uma revolucionária; ela não é uma militante identitária e

“performática” que optou por tentar mudar a realidade brasileira num serviço público com

contrato intermitente ganhando mil e duzentos reais sem saber se daqui a seis meses estará

empregada, tendo filhos, aluguel e boletos para pagar. Através do marxismo e do feminismo

compreendemos que a trabalhadora de psicologia, em nível ontológico e diante do presente,

não é outra coisa senão apenas uma trabalhadora mesmo, muitas vezes apenas alguns degraus

acima da população que costuma atender no dia a dia do seu trabalho nas políticas sociais no

Brasil. Singer (2018) aponta que essa condição precária e desprotegida de vida e trabalho da

população brasileira adulta jovem advinda das camadas populares é um produto recente de

transformações societárias dos últimos dez anos. O trabalho da psicologia se resume na

necessidade de prover proteção em migalhas para uma população vasta estando nós mesmos

cada vez mais desprotegidos também. É com base nessa leitura do cenário atual que

justificamos a presente pesquisa num programa de pós-graduação em psicologia e

explicitamos a sua relevância social.

1.2 Objetivo

1.2.1 Objetivo geral

Analisar as relações entre as politicas sociais e a questão social no Brasil com foco nos

governos petistas.
27

1.2.2 Objetivos específicos

a) Identificar, mapear e selecionar as produções originadas em centros de pesquisa

social de instituições de ensino superior e publicadas em formatos de livro que

contenham produções marxistas sobre o período dos governos petistas.

b) Identificar os fundamentos teóricos e analíticos dessas produções.

c) Traçar os consensos e explorar as possibilidades de sínteses entre essas produções,

em suas análises sobre como a questão social foi tratada nos governos petistas.

1.3 Método

1.3.1 Sobre método e estratégia de trabalho

Nesta subseção vamos desenvolver o plano de trabalho fundamentando-o através de

algumas questões de método e estratégia de trabalho.1 De forma lúcida e clara, Netto (2012)

nos mostrou que a necessidade impreterível do retorno à forma de trabalho de Marx, algo

propriamente estético, mas que, como toda estética, possui conteúdo político e, no caso de

Marx, na verdade, temos uma bem desenvolvida, arraigada e articulada estratégia teórica e

política, algo fundamental para a vida da tradição marxista. Ele aponta uma triangulação entre

a tradição marxista e as tradições e vertentes não-marxistas e antimarxistas, no sentido de uma

constante e crítica interlocução, e os movimentos e forças sociais que operam factualmente

contra a ordem burguesa, no sentido de uma viva interação para com elas (Figura 1.).

1
Não está em questão, aqui, o materialismo histórico. Trata-se, como dito, do método e estratégia de trabalho e
não especificamente do método marxiano.
28

Crítica Marxista

Uma viva interação com


os movimentos e forças
sociais anticapitalistas

Uma constante e crítica


interlocução com as
tradições e vertentes não-
marxistas e antimarxistas

Figura 1. Modelo de produção da crítica. Baseado em Netto (2012).

Netto (2012) aponta essa triangulação como sendo vital para a tradição. Diante de tal

asserção, vemos ser necessário realizar algumas breves observações complementares que

nortearão todo o trabalho a ser realizado e ensaiar a conformação da presente pesquisa aos

apontamentos deste autor.

Em primeiro lugar, devemos lembrar que Marx e Engels estão mortos, logo, a crítica é

marxista e não marxiana, ou seja, ela não é única, a não ser em estritos termos. Sendo assim, é

fundamental compreender como ponto inicial dessa triangulação a necessidade de um

constante diálogo entre os e as integrantes da própria tradição marxista, no sentido das

linhagens teóricas e políticas que representam e suas intervenções. Em outros termos,

referimo-nos ao necessário “exame cuidadoso da constituição e desenvolvimento desta

tradição” (Netto, 2012, p. 29).

Neste caso não se trata, como bem defendeu Hobsbawm (2011), de apontar quem é

marxista e quem não o é, como se alguém tivesse direitos autorais para isso, autoridade para

tal. Hobsbawm (2011) ressaltou que, em situações de significativo enraizamento social do


29

marxismo, acabamos por presenciar o surgimento de linhagens particulares, embora não livres

de problemáticas, justamente em função das condições históricas dessas construções

particulares e suas influências teóricas outras. Um exemplo disso foi o próprio estruturalismo

na França na segunda metade do século passado.

No nosso caso se trata, sobretudo, de uma busca a fim de demarcar como é analisado o

tratamento da questão social pelos governos petistas na tradição marxista. Temos aí, então,

um movimento primeiro dessa triangulação necessária: antes de lidarmos com as demais

tradições temos de lidar com nós mesmos. Dois passos nessa direção são importantes.

Em primeiro lugar, tomar um minucioso e amplo conhecimento da produção existente,

o que será trabalhado na próxima subseção. Em segundo, mover esforços para revisar e

debater a própria crítica marxista sobre o referido período. Talvez seja isso que Lukács

(2018/1923) quis dizer, também, quando apontou a necessidade de aplicar o método ao

próprio método, o que, obviamente, se dá por diferentes mãos, no sentido de ser um trabalho

fundamentalmente coletivo. Essas questões seriam de primeira ordem, no sentido de serem, de

certa forma, preliminares e fundamentais à triangulação acima. Esse movimento preliminar e

inicial de lidar com a própria tradição e seus desdobramentos teóricos e políticos novos já

ocorreram em diversos episódios da tradição nas mais diversas regiões do globo onde se

enraizou e é em função disso, além de outros tantos fatores, que ainda estamos aqui.

Logo, a partir dessa estratégia de trabalho de Marx, esta pesquisa se dedicará

integralmente a esse primeiro momento de lidar com a própria tradição. Dado o tempo

disponível do mestrado e o planejamento pensado, a constante e crítica interlocução com as

tradições e vertentes não-marxistas e as antimarxistas e suas análises sobre como a questão

social foi tratada nos governos petistas poderão se dar no futuro, em momento oportuno.

Agora, no mestrado, o pesquisador estará ainda aprendendo, literalmente, com as


30

interpretações marxistas sobre o período e só posteriormente terá condições teóricas para lidar

com as interpretações e posicionamentos distintos ou diametralmente opostos a elas.

Temos que observar, também, que essa estratégia aqui discutida em pormenores e de

forma um tanto esquemática, é verdade, não se dá de maneira linear, por etapas rígidas e

contínuas. Ela é processual, dependente da conjuntura, ou seja, do momento do perigo, além

de tantas outras questões. E como se trata de marxismo e não mais de Marx e Engels, é um

tanto óbvio que essa parte da estratégia de trabalho – o constante diálogo e balanço crítico da

própria tradição marxista e a também constante e crítica interlocução com as tradições e

vertentes não-marxistas e antimarxistas –, foi, é e deverá ser realizada por diferentes mãos.

Seria ingênuo supor que qualquer pesquisa ou pesquisador poderia esgotar tal forma de

trabalho, até mesmo em função de que o que está em jogo é a vitalidade da tradição e não a de

algum autor ou autora em específico. Portanto, esta pesquisa é apenas uma iniciativa nesse

caminho de defesa da tradição, com suas peculiaridades, vantagens e desvantagens. É por esse

motivo que é melhor vê-la como parte de um projeto coletivo maior, e não como absoluta e

suficiente em seus propósitos.

Por último, mas não menos importante, temos a questão tão cara e, precisamente, uma

das mais difíceis ou negligenciadas hoje em dia na tradição marxista desde o chamado

marxismo ocidental: a viva interação com os movimentos e forças sociais anticapitalistas, que

se constitui uma necessidade última para que essa construção se dê com os pés no solo, na

língua do povo e de forma estratégica no tocante à transformação social.

No que toca a isso, o presente pesquisador, além de frequentar as manifestações gerais

ocorridas desde o início do mandato presidencial atual, buscar manter-se atualizado o quanto

possível das organizações e movimentos, tem buscado, recentemente, se aproximar do Partido

Comunista Brasileiro (PCB), para a formação política e partidária, propriamente dita.

Certamente, mais importante que qualquer formalidade será a necessidade de construir e


31

manter proximidade com uma rede de figuras e movimentos sociais a ponto de pôr à prova a

produção “intelectual” a ser realizada, tanto no ponto de vista da sua forma como no seu

conteúdo, o que no final das contas determinará o quão intelectual ela será. Em termos

práticos, não de forma adicional, mas como um verdadeiro fundamento, isso significa que a

presente pesquisa deverá ser traduzida da melhor maneira possível e que seus principais frutos

deverão ser colocados numa versão que se esforce o máximo para que qualquer trabalhadora

entenda, literalmente. A obra de Miguel (2019) seria um exemplo concreto desse esforço. A

forma de um livro digital gratuito é uma possibilidade posta. Obviamente, esse desejo não se

concretizará no tempo do mestrado, até porque tal elaboração só poderá ser pensada após a

avaliação e as críticas sobre a dissertação como num todo, ou seja, após a sua defesa.

Ademais, considerando o tempo de maturação dos textos, como é de costume quando uma

dissertação se torna uma obra editada e publicada, o momento em que esse desejo virá a se

realizar é incerto.

Até este ponto foram expostas as formas como foi pensada a possibilidade de

aplicação daquela triangulação ao itinerário de trabalho nos dias atuais, no caso do

pesquisador e da pesquisa em questão. Não se trata, contudo, de uma questão fechada, mas,

como já explicitado, essa triangulação é um processo que depende muito do momento do

perigo, da urgência e direção das respostas a serem elaboradas e até mesmo da criatividade no

processo da escrita. Adiante trataremos do itinerário do trabalho de seleção da bibliografia e

de revisão em si.

1.3.2 Sobre os critérios e formas de mapeamento, identificação e seleção da bibliografia

Em primeiro lugar, devemos explicar a escolha do objeto da revisão: publicações em

formato de livros originadas em centros de pesquisa social de instituições de ensino superior.

Quando esta pesquisa foi pensada, o seu tema, problema e objetivos, uma das questões que
32

mais faziam os olhos do presente pesquisador brilhar era a possibilidade de pesquisar como os

governos petistas trataram a questão social, partindo da revisão das análises elaboradas por

quem tem trabalhado com essa temática em longo prazo, ou seja, lulismo, politicas sociais,

democracia e capitalismo no Brasil do século XXI.

Ao pensar e debater os desejos envoltos no processo de construção desse projeto de

pesquisa, o objeto que mais se adequou foram as publicações acadêmicas em formato de livro.

Muitas vezes, livros contêm vários textos reunidos, constituindo, assim, um texto mais

abrangente, amplo. Livros são considerados publicações “finais”, “acabadas”, em seu estado

considerado como último, até que o tempo peça uma edição ampliada, um novo prefácio ou

posfácio, indicando mudanças históricas relevantes no período. Foi aí que pensamos que, se

quiséssemos nos deter a leituras do Brasil contemporâneo que possuam um caráter realmente

mais amplo, de pesquisadores e pesquisadoras que tenham dispensado significativos esforços

na construção de narrativas sobre o Brasil, deveríamos nos deter ao formato de livros.

Essa escolha, longe de ser convencional, traz virtudes, apesar da avalanche de críticas

que trouxe no primeiro seminário de dissertações. Esses textos adjetivados como amplos se

tratam, na verdade, de produções construídas a partir de intervenções anteriores (artigos,

dissertações, teses e produções pós-doutorado, por exemplo), ou, ainda, obras que são

compilados de artigos de diversos autores. Com isso, ao final desta revisão obtivemos não um

material para ser estudado apenas, mas um material que diz muito daquelas produções

acadêmicas que alcançaram espaços para além do Scientific Electronic Library Online

(SCIELO), periódicos e academia, de forma geral, e que alcançaram um lugar na esfera

pública, principalmente em termos de “possibilidade de acesso” pela população. A virtude

dupla foi estar com um olho no meio acadêmico e outro na esfera pública, mesmo que se

estivesse apenas com um livro em mãos.


33

Se há a percepção desta proposta de revisão a partir de livros como um tanto

incomum, é necessário perceber que isso é algo próprio do contemporâneo. A título de

exemplo de consciência histórica, Immanuel Kant não tinha internet e nem as plataformas de

publicações virtuais e jamais arredou o pé 80 quilômetros de onde nascera para realizar seus

estudos: ele só tinha acesso a bibliotecas locais. O que queremos explicitar com isso é o fato

de que o estreitamento cada vez mais frequente e, portanto, hegemônico de revisões ao

formato de artigos é algo recente, que se iniciou algumas décadas atrás. A escolha dos livros

em vez dos artigos diz respeito não a uma escolha arbitrária sem motivos, mas ao problema de

pesquisa colocado. Em artigos, muitas vezes encontramos “fragmentos” de narrativas, ao

contrário das obras onde um mesmo autor ou autora organiza seus textos previamente

publicados, dando contornos mais definidos à sua narrativa sobre o Brasil recente.

A questão, contudo, foi como realizar esse tipo de revisão, um tanto incomum,

atualmente. E não apenas de realizá-la, pura e simplesmente, mas fazê-lo de forma a satisfazer

minimamente os desejos da acadêmica por “objetividade científica”. E esta é uma

característica muito particular da psicologia, justamente em função do programa de pós-

graduação no qual esta pesquisa se insere ser heterogêneo, numa configuração do curso que,

tanto a partir das linhas de pesquisa como a partir de cada docente, ora a psicologia se

encontra nas humanidades, ora nas ciências da saúde, com cunho propriamente positivista.

A solução encontrada foi, em vez da utilização pura da revisão narrativa, algo próprio

das humanidades, combinar a revisão narrativa com elementos da revisão sistemática. Os

elementos utilizados deste último tipo de revisão foram: a) formulação da pergunta; b)

identificação de bases de dados para a localização dos estudos; c) elaboração das estratégias

de busca e estabelecimento de critérios para a seleção dos textos; d) aplicação dos critérios na

seleção dos textos (Sampaio & Mancini, 2007; Rother, 2007; Cordeiro, Oliveira, Rentería &

Guimarães, 2007; Galvão & Pereira, 2014). Os elementos utilizados da revisão narrativa
34

foram a escolha do formato de publicações em livros como alvo da revisão, tida como

tradicional neste tipo de revisão, e a amplitude na construção da análise, cuja especialidade se

volta para a descrição e discussão do desenvolvimento ou o “estado da arte” de um assunto

particular através de determinado ponto de vista teórico ou contextual (Rother, 2007).

A inspiração buscada na revisão sistemática através da recuperação desses elementos

tem como objetivo satisfazer a mencionada objetividade científica. A ideia era possibilitar

uma configuração da pesquisa em que o pesquisador não revisasse apenas o que,

arbitrariamente, ele decidiu por revisar. Tudo isso sem abrir mão das grandes vantagens da

revisão narrativa em termos analíticos e de possibilidades de ampla discussão da temática

desta pesquisa.

A formulação da pergunta (item a) se baseou nas perguntas inicialmente postas e no

objetivo geral de pesquisa. Para revisar interpretações marxistas sobre o período dos governos

petistas originadas em centros de pesquisa social de instituições de ensino superior e

publicadas em formatos de livro é necessário saber quantas e quais são essas análises.

Uma vez formulada a pergunta, partimos para a identificação de bases de dados para a

localização dos estudos (item b). Considerando que o objeto desta revisão são publicações em

formatos de livros, onde se daria essa busca? Precisávamos de plataformas virtuais substitutas

para o SCIELO, por exemplo, que é geralmente utilizada na revisão sistemática de artigos.

Em se tratando de livros e do tema em questão, optamos por seguir um mesmo caminho em

duas vias: as livrarias virtuais. De um lado, foi decidida a realização da busca através de

alguma livraria virtual de massa e, de outro, livrarias e lojas virtuais de editoras do campo que

poderíamos chamar, genericamente, de “progressista”.

Essa bifurcação simultânea se fez necessária, pois existem livros que se encontram em

livrarias de massa que dificilmente se acha em outros lugares, ao passo que existem

publicações do campo à esquerda que não alcançam as livrarias de massa, infelizmente. Isso
35

tudo se contarmos com a competência dos mecanismos de buscas, em ambos os casos. Essas e

outras questões vieram à tona através da fase de pesquisa piloto, uma pesquisa exploratória

realizada passo a passo toda vez que uma decisão era tomada na execução dos itens b e c.

No que toca à livraria virtual de massa, construirmos dois critérios de seleção: 1)

abrangência do catálogo; 2) disponibilidades dos produtos. Estabelecemos, também, a

restrição à seleção de apenas uma livraria, pois a pesquisa piloto mostrou que o volume de

informações seria gigantesco. No Brasil temos, hoje, cerca de três livrarias reconhecidamente

de massa. A Livraria Saraiva, a Livraria Cultura e o setor de livros da Amazon. Tanto a

Saraiva quanto a Cultura, como livrarias em seu caminho para a massificação, além de

ampliarem significativamente o catálogo de livros, passaram a vender também produtos de

diversas naturezas, para além do comércio de livros. Já a Amazon é uma conhecida loja

varejista virtual, que tem ampliado significativamente seu catálogo, principalmente pela

instituição do marketplace, uma plataforma dentro da sua plataforma, um fenômeno misto de

uberização do trabalho e de pejotização, de uma forma que qualquer pessoa, física ou jurídica,

pode fazer um cadastro na loja e vender, entre outras coisas, livros.

A pesquisa piloto acabou por mostrar que a Amazon atendia da melhor forma os dois

critérios elencados, precisamente pela questão do marketplace. Além de possibilitar que

pequenos livreiros e sebos sem condições de estabelecer um sítio possam vender virtualmente,

tal instituição permite também que até mesmo autores e autoras possam fazer cadastro no

marketplace a fim de ou incluírem uma obra de autoria própria que se encontra fora do

catálogo da loja ou competirem com o preço da loja em relação à obra em questão, tentando

abaixá-lo.2 Em resumo, a uberização do trabalho e a pejotização possibilitam que esta

2
O oposto também ocorre. A Amazon foi acusada de “práticas comerciais injustas ou anticompetitivas relativas
a vendas próprias e de terceiros para alavancar e aumentar suas margens [de lucro], como impor termos
arbitrários e resoluções de disputas aos vendedores do marketplace” (McKay, 2020, sem paginação). A título de
exemplo, Amazon detectava produtos novos e com potencial de venda ofertados por seus “parceiros” do
marketplace e se adiantava adquirindo tais produtos em atacado e, a partir disso, ofertava o mesmo produto,
36

instituição tenha um catálogo gigantesco de livros, ao passo que não estabelece quaisquer

relações empregatícias com o contingente populacional que torna isso possível, sejam elas

pessoas físicas ou jurídicas. Isso sem mencionar os lucros absurdos que são obtidos através

deste novo e peculiar processo de acumulação de capital.

Com relação às livrarias e lojas virtuais do campo progressista, é necessário tomar

algumas notas. Em primeiro lugar, diferenciamos livrarias de lojas virtuais. Existem editoras

que possuem apenas lojas virtuais, como a Boitempo Editorial, ou seja, uma livraria restrita

ao seu próprio catálogo editorial. Todavia, existem editoras, como a Expressão Popular, que

possuem uma livraria própria, na qual são encontrados livros seus e de outras editoras, com

certa variedade e abrangência.

Em segundo, precisamos falar sobre o progressismo. Ao denominar algumas editoras

como do campo “progressista”, pensamos tanto em incluir editoras populares e claramente de

esquerda, muito à esquerda do progressismo corrente, quanto editoras claramente liberais,

mas que prezam pela pluralidade de ideias em seus títulos, além de abarcar também as

editoras das universidades públicas. É por esse motivo que denominamos, de forma genérica,

como editoras do campo “progressista”. E é por esse mesmo motivo que usamos aspas, pois,

embora nesta fase da pesquisa esses diferentes tipos de editoras, de certa forma, se misturem e

homogeneízem, é importante lembrar que as marcas da editoração popular e de esquerda

vieram dos tempos da ditadura e da resistência contra ela, as quais “se caracterizam pela

edição política, ou seja, a edição diretamente vinculada ao engajamento político” (Maués,

2014, p. 7).

O texto de Maués (2014) nos auxiliou na construção do rol de editoras existentes de

esquerda. Mais informações foram buscadas também na lista completa de associados do

Sindicato Nacional dos Editores de Livros (SNEL) (SNEL, 2019). Algumas editoras mais

jogando os preços dos mesmos para baixo e seus lucros para cima. Isso ocorre com todas as mercadorias
disponíveis na plataforma, incluindo os livros.
37

recentes, como a Elefante, por exemplo, estavam ausentes nessas fontes citadas. Então, vimos

a necessidade de aqui também construir critérios para a seleção das editoras que conseguisse

articular informações de terceiros confiáveis com as informações advindas da pesquisa piloto

e com as informações que o próprio pesquisador possuía, enquanto leitor, acadêmico e

militante. São eles: 1) a orientação política de esquerda; 2) relevância atual das publicações;

3) conhecimento prévio, pelo pesquisador em questão, de publicação de obras relacionadas ao

tema da pesquisa. Este último critério (3) foi construído a fim de que, em situações como a da

editora Elefante, se pudesse incluir editoras com obras sobre a temática da pesquisa que não

estivessem no texto de Maués (2014) ou na lista da SNEL (2019) por serem de fundação

recente ou por algum outro motivo.

Destarte, as editoras selecionadas para a revisão foram Alameda, Unicamp, Perseu

Abramo, FGV, Canal 6 (Projeto Editorial Práxis), Mauad, Elefante, Autonomia Literária,

Cortez, Expressão Popular e Boitempo.

Concluído esse momento, nos movemos em direção à elaboração das estratégias de

busca e estabelecimento de critérios para a seleção dos textos (item c). No que concerne às

estratégias de busca, percebemos, desde cedo, através da pesquisa piloto, que essa bifurcação

em duas direções distintas, a saber, o setor de livros da Amazon e as livrarias do campo

“progressista”, se mostrava problemática devido ao volume de informações que viria quando

iniciada, de fato, a busca pelos textos. Logo, a barreira pensada cuidadosamente para lidar

com esse volume sem a ocorrência de perda de material interessado a esta pesquisa foram os

descritores. Foram construídos cinco descritores, todos eles relacionados ao período dos

governos petistas, direta ou indiretamente. São eles: 1) impeachment Dilma; 2) golpe Dilma;

3) pedalada fiscal; 4) crime de responsabilidade fiscal; 5) crise política e econômica Dilma.

O questionamento inicial de pesquisa buscou se voltar para as produções mais recentes

que tratavam do período dos governos petistas, enquanto esforços teóricos novos, posteriores
38

àquele momento do debate entre Oliveira (2007) e Coutinho (2010). Foi em função da

reestruturação do projeto de pesquisa inicial que os descritores tratam do período dos

governos petistas, não tendo sido incluído nenhum descritor específico sobre os governos

Lula. Todavia, não acreditamos que isso trará resultando muito distintos, pois a maioria dos

textos trata de temas do período por inteiro.

Decididas as plataformas e os descritores, iniciamos a saga em busca dos resultados e

de seu devido registro. Esta primeira fase do processo de seleção dos textos começou dia

21/11/2019 e terminou dia 17/06/2020. Houve considerável atraso em função da pandemia

Covid-19 e de questões correlacionadas. Os resultados foram armazenados e organizados em

uma planilha Excel. Para cada linha da planilha foram construídas 13 colunas, sendo elas: 1)

editora; 2) descritor; 3) autores; 4) título; 5) subtítulo; 6) edição; 7) editora; 8) ano; 9) página;

10) sinopse; 11) forma; 12) gênero; 13) link. A busca era realizada a partir de cada descritor.

Os resultados eram lançados na planilha. Quando terminado, esse processo era reiniciado com

outro descritor. Em muitos casos, os resultados não eram suficientes para preencher todas as

colunas. Muitos sites, até mesmo das lojas das editoras, não disponibilizavam informações

completas das obras. O resumo dos resultados estão na Tabela 1.


39

Tabela 1. Resumo dos resultados da primeira fase do processo de seleção dos textos
impeachment golpe pedalada crime de crise Total
Dilma Dilma fiscal responsabilidade política e
fiscal econômica
Dilma
Amazon 94 59 5 15 63 236
Alameda 1 1 0 0 0 2
Unicamp 0 0 0 0 0 0
Perseu 0 0 0 0 0 0
Abramo
FGV 3 2 1 0 1 7
Canal 6 8 8 0 0 0 16
Mauad 0 0 0 0 0 0
Elefante 0 2 0 0 1 3
Autonomia 0 0 0 0 0 0
Literária
Cortez 0 0 0 0 0 0
Expressão 13 12 0 0 0 25
Popular
Boitempo 0 2 0 1 165 168
Total 119 86 6 16 230

No que toca a esta fase, é importante relatar que houve considerável discrepância no

desempenho dos mecanismos de buscas de cada site. O mecanismo de busca de um sítio se

trata da construção contínua de um banco de dados que possibilita o acesso a informações na

internet através de palavras ou termos utilizados por uma pessoa. Se no site da Amazon os

resultados foram sempre amplos, incluindo obras de outros períodos, como o golpe de 1964,

assim como obras de ficção diversas, em outros sites, como nos das editoras Unicamp, Perseu

Abramo, Mauad, Autonomia Literária e Cortez, para citar exemplos extremos, os resultados

foram nulos, embora essas editoras tenham obras sobre o tema da pesquisa, conhecidas
40

através da pesquisa piloto. Em alguns casos, o mecanismo de busca foi significativamente

disfuncional, a ponto de apenas digitando, precisamente, o nome inteiro da obra ou do autor

ou autora, é que o resultado da busca retornava com a obra sobre o tema, conhecida

previamente pelo pesquisador e interessada ao tema da pesquisa. Isso foi percebido na

pesquisa piloto e consideramos ser uma questão de resolução difícil. Buscamos montar os

descritores mais potentes possíveis. Todavia, os resultados foram nulos em alguns casos, para

muitos ou para todos os descritores, como já relatamos. Queremos explicitar, com isso, que o

problema com relação ao resultado nulo de algumas editoras tem mais a ver com as

capacidades e o desempenho dos mecanismos de busca de seus sítios do que com a precisão

ou não dos descritores construídos.

Essa situação implica o apontamento e a consideração de que os resultados da

pesquisa foram impactados negativamente pelo mecanismo de busca de cada sítio pesquisado.

Contudo, em se tratando de uma seleção dos textos inspirada na revisão sistemática e restrita a

livros em plataformas virtuais, trabalhamos com os resultados obtidos. Desde o início

estávamos cientes de que, ao substituir plataformas virtuais acadêmicas públicas ou de

instituições “sem fins lucrativos” por plataformas virtuais do mercado de livros e do mercado

editorial, estaríamos sujeitos à perda de qualidade e precisão nos resultados da pesquisa.

Uma vez concluído este momento, passamos para o estabelecimento de critérios para a

seleção dos textos (segunda parte do item c). Em função da quantidade de resultados,

incluindo aí resultados repetidos, ou seja, quando mais de uma busca retornava resultados

iguais em plataformas distintas e com o uso de descritores distintos, foram estabelecidos

novos critérios para filtrar novamente os resultados, no sentido de afunilá-los, tornando-os

mais precisos. O estabelecimento dos critérios não obedeceu ao padrão da revisão sistemática,

em que há a necessidade da firmação de examinadores “independentes”. Ao contrário, tais

examinadores se perfizeram na pessoa do presente pesquisador e de sua orientadora. Os


41

critérios estabelecidos para refinar os resultados na segunda fase do processo de seleção dos

textos foram: 1) produções específicas sobre o período dos governos petistas; 2) obras que se

filiam à tradição marxista ou que dela fazem uso, sendo característica a crítica da relação

entre democracia e capitalismo.

Esta segunda fase se iniciou com a aplicação dos critérios na seleção dos textos (item

d), a qual ocorreu entre 17/06/2020 até 16/08/2020. Foi realizada uma leitura casuística de

cada resultado obtido na primeira fase e que fora organizado na mencionada planilha. Após a

leitura linha por linha com foco nas colunas onde se localizavam os títulos, subtítulos e

sinopses, os resultados correspondentes aos novos critérios estabelecidos foram lançados

numa nova planilha com as colunas: 1) Autores; 2) Título; 3) Subtítulo; 4) Páginas. As linhas

se referem aos dados das obras. Os resultados constam na Tabela 2.

Tabela 2. Resultados da segunda fase do processo de seleção dos textos


Autores Título Subtítulo Páginas
Um quebra-cabeça do período
Singer, André O lulismo em crise: Dilma (2011-2016) 333
Sampaio Jr., Plínio de Crônica de uma crise Crítica à economia política de
Arruda anunciada: Lula e Dilma 344
Mascaro, Alysson
Leandro Mascaro Crise e Golpe 208
Reforma e crise política os conflitos de classe nos
Boito Júnior, Armando no Brasil governos PT 331
O Colapso da democracia da Constituição ao Golpe de
Miguel, Luis Felipe no Brasil 2016 212
Saad Filho, Alfredo & neoliberalismo versus
Morais, Lécio Brasil democracia 304
a crise da esquerda brasileira
Santos, Fábio dos Além do PT em perspectiva latino-americana 240
Anderson, Perry Brasil à Parte 1964-2019 192
Total oito obras 2164
42

A aplicação dos critérios na seleção dos textos ocorreu através do processo de

orientação acadêmica. Nas situações em que havia a dúvida sobre os critérios estabelecidos

nesta fase e a adequação das obras ou não a eles, sempre era realizado uma pesquisa adicional

sobre o autor ou as obras em questão, a fim de sanar as dúvidas. Essa pesquisa informal era

realizada com a orientadora do pesquisador em questão e demais pesquisadores do Grupo de

Pesquisa em Marxismo e Educação (GPME). Em alguns casos, para além da consulta à base

de pesquisa, essa pesquisa adicional foi realizada também através da internet, a fim de

encontrar informações sobre obras cujo autor ou autora e obra específica eram desconhecidas

pela rede de contatos do pesquisador em questão.

O modelo pensado e executado até este momento da pesquisa pode ser visto como

uma revisão inspirada, até certo ponto, na revisão sistemática, sendo restrita à busca de

produções em formato de livros, sejam eles físicos ou digitais disponíveis em livrarias

virtuais, possuindo moderada sistematicidade na busca e na seleção desses textos. É

necessário ressaltar que a inspiração na revisão sistemática começou e terminou nesse aspecto

de busca e seleção das obras, sendo a revisão em si inspirada estritamente na velha e boa

revisão narrativa. Se não se trata da tão postulada neutralidade axiológica, hoje em dia

ressurgida e renovada através da discussão dos “vieses pessoais e subjetivos” das revisões

narrativas, também não se trata de pura arbitrariedade cínica ao positivismo, por mais

saudável e legítima que esta última seja às humanidades.

1.3.3 Sobre o processo de revisão e construção da discussão

Em primeiro lugar, é necessário apontar, sobretudo, que os resultados da discussão

realizada, tanto do ponto de vista de suas contribuições quanto de suas limitações, são

tributários das particularidades, positivas e negativas, do próprio processo de construção dos

critérios e formas de mapeamento, identificação e seleção da bibliografia. As limitações desse


43

processo se referem à própria escolha de realizar uma revisão partindo por livros, à construção

dos critérios, à opção pela busca através da internet, às debilidades dos mecanismos de

buscas, à livraria virtual selecionada e ao conjunto de editoras escolhidas.

Em segundo, a própria forma que tomou o processo de revisão e elaboração da

discussão para a apresentação foi outro fator determinante na produção dos avanços e das

limitações das considerações finais da investigação realizada. Dado o tempo padrão

estipulado para os programas de mestrado, não partimos para exposição detalhada dos

contornos das análises sobre os governos petistas. Portanto, a discussão buscou apresentar os

consensos entre as análises e moveu esforços em prol de elaborar sínteses. Especificamente

em função disso, a discussão poderá levar o leitor a ter a percepção de que a maioria dos

autores concorda sobre muitos temas, principalmente quando citados próximos uns dos

outros, como se houvesse considerável homogeneidade nas análises produzidas. Todavia, essa

aparência se deve especialmente à escolha por traçar consensos e explorar as possibilidades de

sínteses. Doutra maneira, isso significa dizer que outra investigação preocupada com as

dissonâncias entre as análises encontraria um amplo leque de possibilidades de explorar a

grande heterogeneidade existente entre as linhagens vivas da tradição marxista no presente,

selecionadas para revisão nesta pesquisa.

A busca de consensos e sínteses foi orientada, portanto, pelo próprio objetivo da

pesquisa, qual foi, a análise de como a questão social foi tratada no Brasil tendo como foco os

governos petistas. Os textos selecionados foram explorados em busca da identificação de temas

relacionados às formas com que as variadas expressões da questão social foram tratadas no período

dos governos petistas. Esses fragmentos das análises, uma vez condizentes ou próximos, foram

aproximados ainda mais. Embora possa parecer uma simples síntese de teses, excluídas as antíteses, a

construção do texto buscou explorar as continuidades mais sólidas através do tempo, nos governos

analisados e em relação ao período imediatamente anterior. Ainda com relação a esse cotejamento em
44

termos de minerar continuidades e rupturas entre o período dos governos petistas e o período anterior

mais imediato em termos de proteção social no capitalismo, é importante dizer que a partir da

subseção 2.3, do capítulo 2, a breve discussão sobre o período anterior foi construída com forte porção

de contribuição dos próprios textos selecionados para a revisão, o que acabou por dar sustentação

maior aos próprios consensos identificados, expostos no capítulo 3, assim como sedimentou as

possibilidades de sínteses.

2. A questão social na tradição marxista

2.1 O conflito material em torno dos sentidos da questão social

2.1.1 Materialidade e história da questão social

No contexto de grandes transformações sociais, políticas e econômicas paridas pela

revolução industrial foi que, por volta de 1830, surgiu a utilização de “questão social” para

nomear um conjunto de novos problemas ligados às modernas condições do trabalho urbano

(Stein, 2000). A expressão “questão social” não possui um significado unívoco, existindo uma

variedade de compreensões distintas a seu respeito. Inicialmente, seu uso se deu por críticos

da sociedade e filantropos das mais variadas matizes do espectro político. Seu surgimento

coincide, curiosamente, com o da palavra “socialismo” no léxico político (Netto, 2001).

Em seu texto clássico, Engels (2010/1845) descreveu e analisou, detalhadamente, A

Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra. A riqueza de dados é tão impressionante

quanto horrenda é a realidade que eles denunciam. O autor relata o surgimento das grandes

cidades no contexto da industrialização e os problemas daí advindos, como o amontoamento

desordenado de casas, empilhadas umas sobre as outras. Nas próprias palavras do autor,

foi a indústria que permitiu aos proprietários desses estábulos alugá-los a altos preços, como
se fossem habitações humanas, explorando a miséria dos operários, minando a saúde de
milhares de pessoas e enriquecendo-os apenas a eles, os proprietários; [...] onde ainda havia
uma parcela de terra livre, construiu-se uma casa; onde ainda havia uma passagem supérflua,
45

ela foi substituída por uma edificação; o valor da terra tornou-se mais alto com o
desenvolvimento industrial e quanto mais subia, mais freneticamente se construía, sem a
menor preocupação com a saúde e o conforto dos moradores, com o único objetivo de obter o
maior lucro possível e com base no princípio de que, por pior que seja um casebre, há
sempre um pobre que não pode pagar outro menos ruim (Engels, 2010, p. 96, grifos do
autor).

O avanço da urbanização numa escala nunca vista até então acabou por produzir um

descompasso inédito relacionado à engenharia urbana e as questões sanitárias. Referindo a

Manchester, Engels (2010) retrata que era evidente a demanda por pavimentação das ruas,

ruelas e pátios, e por construção de esgotos e demais formas de escoamento. A situação era tal

que detritos e sujeiras de toda sorte se acumulavam e apodreciam. A água não escoada

formava charcos por todo canto da cidade. Da mesma forma eram graves as condições de

moradia do proletariado. Em cada casa habitava três ou quatro famílias. As casas eram

degradadas, não possuíam acesso à água e nem espaço para as necessidades de excreção, além

de serem mal arejadas. Nessas casas havia poucos móveis ou nenhum e os seus habitantes

dormiam em palhas. Em muitos casos, até os porões das casas eram habitados por proletários.

Engels (2010) relata a existência de um contingente excedente significativo de

trabalhadores, o que era impulsionado, também, pela imigração irlandesa, o que, em conjunto

com a inserção de mulheres e crianças no mercado de trabalho, lançava muito para baixo o

valor da força de trabalho. Foi em plena revolução industrial que houve, na Inglaterra, um

absurdo processo de pauperização absoluta que incidia, principalmente, mas não apenas,

sobre os imigrantes irlandeses. Além de moradia inadequada e insalubre, reinava a má

alimentação e a fome. Os operários, na sua grande maioria, ingleses, quando conseguiam ter

acesso a alimentos, eram de má qualidade, especialmente no que toca ao consumo de carnes,

além das fraudes relativas às quantidades, tudo isso devido à ausência de controle público do

mercado de alimentos. Já os paupérrimos, em sua maioria irlandeses, consumiam apenas


46

batatas na maior parte do tempo. Com relação à vestimenta, imperava a privação de roupas, as

quais, nas palavras do autor, não passavam de “de verdadeiros farrapos, já impossíveis de

remendar ou de reconhecer a cor original em razão da quantidade de remendos” (p. 109).

Diante dos dados e de sua imersão no campo, o autor constrói a sua denuncia:

É verdadeiramente revoltante o modo como a sociedade moderna trata a imensa massa dos
pobres. Ela os atrai para as grandes cidades, onde respiram uma atmosfera muito pior que em
sua terra natal. Põe-nos em bairros cuja construção torna a circulação do ar muito mais difícil
que em qualquer outro local. Impede-os de usar os meios adequados para se manterem
limpos: a água corrente só é instalada contra pagamento e os cursos de água poluídos não
podem ser utilizados para a higiene; compele-os a jogar na rua todos os detritos e as
imundícies, toda a água servida e até mesmo os excrementos mais nauseabundos, para os
quais não há outra forma de escoamento – enfim, obriga-os a empestear seus próprios locais
de moradia. E nem isso lhe basta: acumula sobre eles todos os males possíveis. Se, em geral, a
população das cidades já é demasiado densa, são os pobres os mais amontoados em espaços
exíguos. Não contente com a atmosfera envenenada das ruas, encerra-os às dezenas em
habitações de um único cômodo, de tal modo que o ar que respiram à noite é ainda mais
sufocante. Oferece-lhes alojamentos úmidos, porões onde a água mina do chão ou mansardas
de cujo teto ela goteja. Constrói-lhes casas que não permitem que o ar viciado circule.
Fornece-lhes roupas de má qualidade ou farrapos e alimentos adulterados ou indigestos.
Submete-os às mais violentas emoções, às mais bruscas oscilações entre o medo e a esperança
e persegue-os como a uma caça, não lhes concedendo nunca um pouco de paz e de
tranquilidade ( p. 137).

De qualquer ponto que venhamos a observar aquela nascente sociedade, o que Engels

(2010) conseguia apreender era a insegurança social em seu extremo. O risco do desemprego

era generalizado e a ameaça de despedimento se constituía como “chicote moral da escravidão

moderna” (p. 243). Não havia o que, muito tempo depois, seria nomeado como estabilidade.

A classe operária era dotada de uma perversa fluidez a qual, mesmo havendo certas vantagens

entre suas frações, imperava a instabilidade: “qualquer trabalhador pode ter de percorrer todos
47

os degraus da escala, do modesto conforto à privação extrema, com o risco de morte pela

fome” (p. 116), e eram consideráveis os casos de morte por fome.

Perverso tanto quanto eram os demais aspectos relacionados ao trabalho e suas

condições. O trabalho fabril era caracterizado por extrema monotonia, exigindo repetições de

movimentos às vezes simples, às vezes mais complexos, por várias horas consecutivas, o que

Engels (2010) nomeia como uma tortura. O autor também revela os detalhes do sistema de

trabalho noturno, no qual um grupo de trabalhadores operava doze horas durante o dia e outro

doze horas à noite. Contudo, não havia regulação estatal da carga horária, sendo que uma das

lutas do movimento operário se tratava da necessária limitação da carga horária de trabalho.

Dessa forma, não tendo o que temer, havia casos em que os burgueses industriais colocavam

os operários a trabalhar horas a fio, dia e noite, sendo apenas substituídos quando se

estafavam por completo. Muitas ocupações acabavam por não possuir regularidade quanto ao

horário de trabalho. O mesmo ocorria com o horário das refeições: os trabalhadores comiam

quando “possuíam” tempo e fome.

Como já dito, não apenas homens trabalhavam, mas também mulheres e crianças de

até dois anos em diante, num movimento inédito até então de inserção em massa no mercado

de trabalho. Às mulheres, chegava ao ponto de servirem a comida já em pedaços, a fim de que

pudessem engolir o mais rapidamente possível. Muitas mulheres trabalhavam “até quase o

momento do parto” (Engels, 2010, p. 198, grifos do autor). O autor ressalta que não havia

qualquer cuidado com o puerpério. Mulheres com medo do despedimento, mesmo ainda

fracas e com dores, retornavam rapidamente ao trabalho. Muitas delas mal amamentavam

suas crianças, mesmo nos primeiros meses. Havia também a recorrência do que hoje

chamamos de assédio sexual e estupro por parte dos burgueses industriais, os quais, se

utilizando da ameaça do despedimento sobre as mulheres, faziam da fábrica seu “harém”, para

usar o termo do autor. As crianças eram exploradas sem qualquer pudor, privando-as da
48

própria infância, da alimentação necessária e do repouso, considerando o já mencionado

sistema de trabalho noturno. Não havia, também, por parte da grande maioria das crianças de

famílias pobres e operárias, acesso à educação pública. Às escolas privadas, de caráter

filantrópico, restavam a mais baixa qualidade, dado que inexistia controle público do setor.

Em seu nascimento, a exploração capitalista possuía um caráter despótico. É por esse

motivo mesmo que os operários fabris foram chamados de white slaves. Engels (2010) ainda

discute essa expressão apontando que o apelo ao cotejamento entre as condições dos brancos

britânicos com a dos negros africanos escravizados na América possuía relevância justamente

pelo caráter despótico com que os trabalhadores fabris eram tratados na Inglaterra, sendo

vigiados em todo o momento do trabalho. Multas eram aplicadas e apenas posteriormente, no

momento do pagamento, o trabalhador tomava conhecimento das mesmas. Havia também o

truck system, um sistema imposto aos trabalhadores no qual o pagamento não se dava em

dinheiro, mas em espécie de um vale utilizável em armazéns dos próprios patrões industriais,

nos quais os valores das mercadorias tendiam a estar acima do valor de mercado. De natureza

próxima era o cottage system, um sistema de moradia disponibilizado pelo patronato aos

trabalhadores. Além de possuírem, em muitos casos, péssimas condições de moradia e de

serem superlotados, os trabalhadores acabavam por se encontrar uma vez mais reféns de seus

patrões. Tudo isso nos mostra a estrutura despótica das condições de trabalho naquele

momento histórico.

Além da instabilidade e do despotismo, o trabalho era tecido pelos fios do risco à

própria condição de existência dos trabalhadores, sejam homens, mulheres ou crianças. Eram

muitos os trabalhadores e trabalhadoras, adultos, jovens ou crianças, estropiados, com

enfermidades e deformações corporais em função de lesões relacionadas ao trabalho repetitivo

e exaustivo ou a acidentes no trabalho, muito comuns e frequentes naquela época.

Comentando o impacto disso na classe trabalhadora no que diz respeito às suas condições
49

físicas de saúde, Engels (2010) chega a dizer que é “como se estivéssemos em meio a um

exército que regressa de uma batalha” (p. 201). Em outros tantos casos, o autor apontou a

presença de uma enorme fadiga e de um exaurimento sobremaneira generalizado e extremo. O

desenvolvimento de doenças crônicas, o envelhecimento prematuro e a morte precoce eram

prevalentes na classe trabalhadora, tendo em vista as extremas condições de vida e trabalho.

Aos trabalhadores acidentados no trabalho e impedidos, fisicamente, de voltar à ocupação só

lhes restava o despedimento por parte do patrão e a mendicância como alternativa. Não havia

qualquer espécie de pensão vitalícia por acidentes incapacitantes para o trabalho. Mulheres e

crianças assumiam o papel de garantir a renda da casa, o que era difícil, pois naquela época a

desigualdade salarial em função de gênero e idade era gritante, pois administradas pelos

burgueses com o fim de diminuir os custos da produção ao empregar em massa mulheres e

crianças pagando bem menos que aos homens adultos. Nos casos de morte por acidente ou

precoce, ambas relacionadas ao trabalho, inexistiam qualquer tipo de socorro às famílias.

A saúde e o risco à vida dos trabalhadores estavam em voga em função do violento

processo de industrialização e a urbanização que ele impelia, a qual passava ao largo de

condições sanitárias essenciais, como já exposto. Nesse contexto, Engels (2010) expõe que as

epidemias também vitimavam a classe trabalhadora, sendo um grande exemplo a epidemia de

cólera em Manchester. À grande massa pauperizada, quando a vida própria não era tocada

pelas doenças e pela morte, restava pouco, pois se encontravam privados “de todos os

prazeres, exceto do sexo e da bebida” (p. 137). A quantidade de paternidades não assumidas

em função da busca pelo prazer sexual naquela época se tornou significativa e o fenômeno do

alcoolismo se mostrava generalizado. Em função das extremas condições de vida e trabalho, o

autor narra um processo em massa de desagregação familiar, que se encerrava em uma

desagregação da própria sociedade, no sentido do esgarçamento dos vínculos sociais. O


50

suicídio se tornava uma alternativa concreta como fuga à miséria que imperava, sendo muitos

os que o cometiam.

Outra questão que não podemos deixar passar incólume era o agravamento das

condições de vida já extremadas pelas crises capitalistas. Se hoje uma pessoa se encontrava

empregada, amanhã ou depois, mais cedo ou mais tarde, ela poderia ser despedida, não apenas

pela vontade do patrão, mas, também, pelas crises econômicas, uma marca do modo de

produção capitalista. No referido período, as crises eram endêmicas do capitalismo em seu

estágio concorrencial. Se no despedimento de um único trabalhador, seja homem ou mulher,

se encontrava o motor que deslocava toda a família e seus integrantes para a extrema pobreza

de forma súbita, durante as crises econômicas desse período, segundo Engels (2010), esse

fenômeno ocorria numa escala de massas, sendo que apenas passada a crise, as quais duravam

meses e até anos, as fábricas voltavam a funcionar normalmente e a empregar.

Se o proletariado urbano, no seio da industrialização, vivia a condição de pobreza e

miséria de forma intermitente, nas zonas rurais o proletariado agrícola vivia essa condição de

forma permanente (Engels, 2010). Tanto para o contingente urbano quanto para o rural, ou

seja, para a classe trabalhadora em suas diversas frações e a grande massa de pobres e

camponeses despossuídos, o único recurso institucional existente era a chamada workhouse.

Nessas “casas de trabalho”, em nossa língua, encontramos as raízes históricas daquele

despotismo presente no sistema fabril, como relatamos a pouco. Desde o século XV ao século

XVI surgiu na Europa Ocidental o que Marx (2017 [1845]) chamou de “uma legislação

sanguinária contra a vagabundagem” (p. 806). Essa legislação, ainda segundo Marx (2017),

buscava regular o mercado de trabalho através da violência extraeconômica, sendo “um

momento essencial da assim chamada acumulação primitiva” (p. 809). Na Inglaterra, essa

legislação havia sofrido várias mudanças desde seu surgimento, sendo que, no alvorar da

revolução industrial, ela foi revista. Engels (2010) conta que


51

A velha lei, baseada num decreto do ano de 1601, 43rd of Elisabethª, ainda partia
ingenuamente do princípio segundo o qual a comunidade tinha o dever de garantir a
manutenção dos pobres; quem não dispunha de trabalho recebia um subsídio e, com o tempo,
o pobre convenceu-se de que a comunidade tinha o dever de protegê-lo da fome. Ele passou a
receber seu auxílio semanal como um direito e não como uma dádiva, o que, ao fim, tornou-se
intolerável aos olhos da burguesia (p. 316).

Engels (2010) continua apontando que a pouca e residual proteção que essa legislação

possibilitava aos trabalhadores, desempregados ou sub-remunerados, foi vista como uma

pedra no caminho da indústria pela burguesia. Essa legislação sanguinária acabou por ser

alterada no ano de 1834, pela Poor Law Amendment Act. A nova legislação, conta o autor,

possuía um papel de ativa intervenção na vida dos pobres, intervenção essa recheada de

despotismo e violência extraeconômica. Os subsídios em dinheiro ou in natura foram todos

extinguidos e a única assistência ofertada se tornou o acolhimento nas workhouses, as quais

foram sobremaneira multiplicadas. Engels (2010) diz que o povo nomeara essas casas como

“bastilhas da lei dos pobres”, o que denuncia o caráter da organização delas, operadas na

direção de dissuadir “qualquer um que pretenda sobreviver apelando para essa forma de

assistência”, fazendo com “que os esforços de cada indivíduo sejam levados ao extremo antes

de procurá-la” (p. 318), o que, há um só tempo, fazia com que se reduzisse o recurso ao

orçamento da Caixa dos Pobres e produzisse uma massa de pobres não apenas

desempregados, mas desamparados, tendo como a melhor opção a disponibilização de sua

força de trabalho no mercado, sendo desnecessário, neste ponto, relembrarmos dos baixos

salários, das extremas condições de trabalho e da absurda concorrência e instabilidade.

Toda a estrutura institucional e física dessas “casas de trabalho” era feita para que ela

realmente fosse tomada como opção última. Engels (2010) narra que a alimentação era pior

que a dos operários mal pagos ao passo que o trabalho era mais penoso. A situação era tal
52

que, sendo a comida das prisões menos ruim, muitos preferiam cometer delitos e serem presos

que estarem numa workhouse. Para que essa instituição não concorresse com a indústria

privada, o trabalho realizado era inútil, muitas vezes se resumindo a quebrar pedras. As visitas

eram raras e em períodos determinados, condicionadas ao bom comportamento, apenas

realizáveis no parlatório e sob a vigilância dos funcionários, sendo vedada qualquer

correspondência com o mundo exterior sem expressa autorização. Os quartos eram

superlotados e muitas vezes uma única cama era dividida por várias pessoas. Idosos eram

forçados a quebrar pedras, assim como os mais jovens e punidos quando se recusavam dada a

fraqueza de seus corpos. As condições de saúde dos integrantes desses lugares eram objeto de

singular indiferença. O autor menciona com detalhes, ainda, a existência de práticas de

tortura, sendo que, a título de exemplos, homens e mulheres eram colocados nus em locais

insalubres e sem alguma fonte de calor por dias, restando apenas o abraço entre eles como

forma de enfrentar o frio. A prática de violência sexual contra mulheres também marcava

presença. Em muitas situações, em função de todo o despotismo dos responsáveis pela

instituição, os vínculos sociais e familiares dos “assistidos” eram rompidos plenamente, às

vezes de forma permanente. A opção pela saída do local, vista como forma de fugir da

violência e de reestabelecer os vínculos com a sociedade e a família, muitas vezes era

arbitrariamente negada. É por esses motivos e outros mais que Marx denunciou a escravidão

da workhouse, nomeando-a como “penitenciária da miséria” (Marx, 2017, p. 729).

A esse horizonte bárbaro não faltou o aumento da criminalidade como resposta

imediata e individualizada ao império do capital. Ao operário, vivendo na miséria e na

indigência, não era compreensível como outros podiam desfrutar de existência melhor, sendo

racionalmente muito difícil de conceber “porque precisamente ele, fazendo pela sociedade o

que não faziam os ricos ociosos, tinha de suportar condições tão horríveis” (Engels, 2010, p.

248). Segundo o mesmo autor, a miséria prevaleceu sobre o respeito à propriedade privada.
53

Além de roubos, tanto no campo como nos meios urbanos as propriedades eram alvos de

ataques, seja incendiando as plantações, seja causando explosões em fábricas.

Esse foi o horizonte em que a expressão “questão social” surgiu e ao qual ela faz

referência. Para pessoas sensíveis ao mundo contemporâneo e consciente dos seus problemas,

o contexto narrado pode parecer, à primeira vista, como de pouca novidade. Para aqueles sem

leitura crítica sobre o presente, esse passado específico pode parecer uma grande

excepcionalidade. Vemos como necessário enfrentar ambas as visões sobre o passado e o

presente da questão social.

De todos os problemas existentes naquele contexto e explicitados acima, podemos ver

que o protagonismo pertenceu ao intenso e massivo processo de pauperização da população

trabalhadora, mas não qualquer pauperização. Netto (2001) nos lembra que essa pauperização

específica compreendeu o aspecto mais imediato do nascimento do capitalismo em seu

estágio industrial-concorrencial. Quanto mais a sociedade capitalista se desenvolvia e se

tornava capaz de produzir mais bens e serviços, mais aumentava o contingente de seus

integrantes que, uma vez despossuídos das suas anteriores condições materiais de vida, não

tinham acesso a esses bens e serviços. Antes do modo de produção capitalista, a pobreza

derivava de um quadro geral de escassez, algo intrinsecamente ligado ao nível de

desenvolvimento das forças produtivas materiais e sociais. Já no modo de produção

capitalista, a pobreza passa a se relacionar, de forma contraditória, a uma configuração com

potente tendência a reduzir a escassez. Nas límpidas palavras do autor, pela primeira vez na

história, “a pobreza crescia na razão direta em que aumentava a capacidade social de

produzir riquezas” (p. 42, grifos do autor). Em resumo, o pauperismo, aquela pobreza

aprofundada e generalizada no início do século XIX na Inglaterra, “aparecia como nova

precisamente porque ela se produzia pelas mesmas condições que propiciavam os supostos,

no plano imediato, da sua redução e, no limite, da sua supressão” (Netto, 2001, p. 43, grifos
54

nossos). Noutras palavras, a questão social, tomada como expressão ampliada das

desigualdades sociais, é parte que constitui as relações sociais capitalistas, sendo “o anverso

do desenvolvimento das forças produtivas do trabalho social” (Iamamoto, 2001, p. 10).

Mas o pauperismo e os demais problemas que emergiam no nascimento do capitalismo

não foram nomeados como questão social espontânea e voluntariamente. Ocorreu que, como

Netto (2001) explicita, essa nomeação veio diretamente em função dos desdobramentos sócio-

políticos do pauperismo e daquelas tantas questões entrelaçadas a ele naquele momento. Foi

nesse contexto que surgiram as primeiras formas de organização dos trabalhadores, com

protagonismo do movimento cartista, inicialmente. Não sem motivos, Engels (2010) afirmou

que o “fruto mais importante dessa revolução industrial, porém, é o proletariado inglês” (p.

59). Seja pelas violentas reações individuais por parte da população, como os crimes contra as

propriedades e contra outros trabalhadores que apoiavam os burgueses industriais, seja pela

novidade do poder da organização dos trabalhadores e as primeiras greves, foi precisamente

naquele contexto absurdo e extremo que o pauperismo foi alçado como uma questão

importante na esfera pública em formação. Como afirma Netto (2001), foi através do risco de

uma eversão da própria ordem burguesa que o pauperismo foi alçado como “questão social”.

Mas as transformações sociais posteriores a esse momento, com protagonismo para a

Revolução de 1848 e a guinada conservadora da burguesia, acabariam por fazer o significado

da expressão deslizar no espectro político, sendo cristalizado o seu uso por conservadores em

cujo entendimento os nexos entre economia e sociedade foram varridos, interditando, assim, a

compreensão dos fortes laços entre desenvolvimento capitalista e pauperização (Netto, 2001).

Após essa guinada conservadora, a questão social e suas expressões passaram a ser pensadas

estritamente sob o ângulo do poder burguês, compreendidas como a “ameaça que a luta de

classes - em especial, o protagonismo da classe operária - representava à ordem instituída”

(Iamamoto, 2001, p. 11). A primazia da manutenção e defesa da ordem burguesa, tanto no


55

pensamento conservador laico quanto no confessional, fez a questão social e suas expressões

perderem a sua historicidade. Para os laicos, a desigualdade gritante, o desemprego, a fome,

as doenças, a penúria e o desamparo diante de conjunturas adversas são tomados como

consequência, na sociedade moderna, de características impossíveis de se eliminar de toda e

qualquer ordem social (Netto, 2001). A questão social e suas expressões são tomadas como

absolutas e universais, não importando nem o tempo e nem o lugar de suas ocorrências. A

partir desse entendimento, Netto (2001) nos lembra que, no máximo, a questão social se torna

objeto de intervenção limitada, muitas vezes suportada por um saber científico de cunho

positivista, capacitada a amenizar e reduzir suas expressões num escopo de ideias reformistas.

Já no caso do conservadorismo confessional, o autor aponta a presença do reconhecimento da

relevância da questão social e a apelação a meios sócio-políticas para diminuir a sua agudez,

insistindo que esta última contraria a vontade divina. Em ambos os casos, as residuais

reformas sociais possíveis acabam por cair na vala de uma reforma moral do ser humano e

da sociedade. Ao mesmo passo em que sofria um processo de naturalização, as expressões

da questão social também se tornavam objeto de ação moralizadora. O tratamento das suas

manifestações passava a girar em torno de programáticas reformistas que preservassem, acima

tudo e qualquer outra coisa, a propriedade privada dos meios de produção. O laço entre a

atenção às manifestações da questão social e as intervenções tendentes a problematizar a

ordem social instituída se rompe. As ideias e as intervenções elaboradas para tratar a questão

social passam a caminhar ao largo dos fundamentos da sociedade burguesa se constituindo,

em resumo, num “reformismo para conservar” (p. 44).

Já do lado dos trabalhadores o oposto ocorrera: os trabalhadores tornavam-se

conscientes sobre sua condição numa medida que os propiciava uma sensível capacidade de

tocar nos fios que tecem questão social e capitalismo, sendo a existência de uma condicionada

à do outro, mutua e fundamentalmente. É por esse motivo que a expressão questão social
56

passou a ser tomada como uma tergiversação conservadora pelo pensamento revolucionário,

só a utilizando junto à denúncia deste traço mistificador (Netto, 2001). Considerando a

trajetória conservadora da expressão, Montaño e Duriguetto (2011) ressaltam o desvelo

necessário ao se falar em “questão social”, pois no seu uso literal a expressão acaba por servir

à segmentação do “social” de suas raízes econômicas, políticas e históricas.

Há cerca de duas décadas, Iamamoto (2001) nos lembrava que a expressão “questão

social” não pertence ao universo da teoria marxiana. Engels (2010), por exemplo, utiliza essa

expressão apenas três vezes em toda a sua obra, e sempre de maneira difusa, sem dar a ela

qualquer centralidade. Todavia, hoje não podemos dizer o mesmo sobre a relação entre

questão social e a tradição marxista, precisamente em suas linhagens brasileiras e hispânicas.

No final do século passado, houve o retorno da disputa pela expressão no debate intelectual na

França, marcadamente no campo da sociologia e girando em torno da romântica e

mistificadora denúncia da “exclusão social”.3 Muitos intelectuais no Brasil entraram nesse

campo de batalha em disputa pela expressão, especialmente os filiados ao Serviço Social

brasileiro, os quais já vinham trabalhando a questão social em suas produções, o que acabou

nos dando uma profícua produção marxista, aqui em parte esmiuçada, que buscou dar à

questão social o seu devido significado para os trabalhadores.

À época do debate, Iamamoto (2001), uma de suas protagonistas, argumentou que os

processos sociais que “questão social” traduz ocupam um lugar central na análise que Marx

realizou sobre o modo de produção capitalista. Embora “questão social” não possa ser

considerada uma categoria, nos moldes da teoria marxiana, enquanto forma de

ser/determinação da existência, em função de não possuir existência concreta/real, ela deve

ser tomada como um conceito a partir da afirmação da existência real não da questão social,

3
Algumas ideias que marcaram as intervenções que foram protagonistas desse debate podem ser encontradas em
Rosanvallon (1998), Paugam (2013; 2014) e Castel (2015; 2013a; 2013b). Iamamoto (2015) sumariza os
problemas dessas ideias a partir do marxismo. Para um tratamento mais aprofundado, ver as argutas respostas
elaboradas por Fontes (2005), Maranhão (2010) e Siqueira (2013).
57

mas de suas expressões, as quais provêm de determinações ligadas à desigualdade

fundamental do modo de produção capitalista (Santos, 2012). Essa virada da tradição marxista

em direção à “questão social” foi importante uma vez que junto com o reaparecimento

atualizado de sua conceituação vinha o seu conservadorismo, também atualizado. Entretanto,

cabe considerar que, bem mais que um conceito, apenas, a questão social é, de fato, uma

questão, uma problemática substanciada nas condições sociais, econômicas e culturais de

existência das massas trabalhadoras (Mota, 2010).

Iamamoto (2001) conta que no episódio do reaparecimento de seu uso, a questão

social foi tomada pela perspectiva sociológica como uma “disfunção” ou “ameaça” à ordem e

à coesão social, sendo apresentada como uma “nova” questão social, produto da “crise” do

“Estado Providência”. Num contexto de mundialização do capital sob o ímpeto do grande

capital financeiro e das políticas neoliberais, as “soluções” apresentadas para lidar com sua

suposta nova forma possuíam como traço comum uma "gestão” mais “humanizada” e

“eficiente” dos problemas sociais. Dessa maneira, as respostas à questão social foram

direcionadas aos mecanismos reguladores do mercado e, em direção cada vez mais distante de

uma proteção social realmente pública e sob a insígnia do “combate à pobreza e à exclusão

social”, programas focalizados e descentralizados foram implementados de forma partilhada

entre o Estado e organizações privadas.

As intervenções da tradição marxista no debate sobre a questão social buscaram

enfrentar esse conservadorismo colocando na ordem do dia a discussão da pobreza não

enquanto ente da natureza das sociedades desde sempre, mas da sua específica produção sob o

modo de produção capitalista. Em outras palavras, afirmamos que ao estudar a pobreza não

devemos de forma alguma segmentá-la da riqueza socialmente produzida, pois dizem respeito

de uma unidade contraditória de opostos (Siqueira, 2013). É assim que em vez de se estudar a

pobreza per se, damos um passo atrás e estudamos a pobreza como socialmente produzida,
58

enquanto uma contradição de uma sociedade que se funda na expropriação de bens comunais

e na exploração do trabalho pelo capital.

O modo de produção capitalista é caracterizado por possuir no seu centro a produção

de valor e para produzir valor é necessário haver seres humanos dispostos a vender a única

coisa que possuem sob a tirania da propriedade privada: a mercadoria humana chamada força

de trabalho. É através da força de trabalho que o capitalista se apropria de um valor

excedente produzido pelos trabalhadores, ou seja, um valor para além do valor de troca da

força de trabalho, ou seja, o salário pago aos trabalhadores (Netto & Braz, 2012). A tal valor

excedente damos o nome de mais-valor4.

A partir do processo de produção capitalista tem-se também a sua reprodução, pois “o

capital é valor que busca valorizar-se” (Netto & Braz, 2012, p.138). No processo de

reprodução ampliada do capital apenas uma parte do mais-valor é tomado pelo capitalista

para uso pessoal, o restante é convertido novamente em capital, ou seja, utilizada a fim de

ampliar a escala de produção de mercadorias (aquisição de maquinário novo, contratação de

mais força de trabalho e etc.). A conversão do mais-valor em capital caracteriza, portanto, a

reprodução ampliada do capital, que por sua vez possibilita a acumulação de capital (Netto

& Braz, 2012).

A acumulação de capital é fundante do capitalismo e o mesmo não pode existir sem

perseguir constantemente esse objetivo. Sob esta lógica, a composição orgânica do capital é

alterada e elevada, de forma que o capital constante (a parte investida em meios de

produção: matéria prima, máquinas e demais emprego de tecnologias) se torna superior ao

capital variável (a força de trabalho a ser empregada). E não pense que é em si o avanço

tecnológico que produz essa redução no uso da força de trabalho, ou seja, redução das ofertas

4
Mario Duayer, em criterioso trabalho de tradução das obras de Marx, assinalou que a tradução apropriada do
termo alemão mehrwert para o português seria mais-valor, e não a difundida expressão “mais-valia”,
provavelmente derivada da tradução francesa d’O Capital (Fontes, 2010).
59

de emprego, pois a questão é mais profunda (Netto & Braz, 2012). A lógica do capitalismo

fundada na acumulação insaciável é que justifica um uso do avanço tecnológico ou, noutro

dizer, possibilita o avanço das forças produtivas a fim de que se produza cada vez mais valor.

Netto e Braz (2012) explicam que é o desenvolvimento das forças produtivas sob essa lógica

que produz o desemprego em massa, e não a aplicação dos avanços tecnológicos na produção

per se. Portanto, elimina-se o possível significado emancipador dos avanços tecnológicos ao

subordinar este à lógica destrutiva do capital (Antunes, 2015).

Retornando a questão da alteração na composição orgânica do capital, Siqueira (2013)

explica que, por um lado, a referida alteração faz com que uma parte da força de trabalho seja

expulsa do processo de produção, por outro lado, a simples expansão quantitativa da indústria

absorve a força de trabalho. Nesse sentido, há um movimento constante de repelir e atrair

força de trabalho de acordo com as necessidades do capital.

É importante aqui ter cuidado em compreender que não se trata de processos de

“exclusão social” ou de “marginalização” num sentido de um fenômeno “novo”, ou ainda um

fenômeno residual e transitório do capitalismo na periferia, passível de eliminação ou coisa

parecida. As massas trabalhadoras expulsas do mercado de trabalho são extremamente

funcionais e constituem estruturalmente o modo de produção capitalista (Maranhão, 2010;

Netto & Braz, 2012; Siqueira, 2013; Iamamoto, 2001). A elas dá-se a denominação de

superpopulação relativa, no sentido de ser uma parcela sobrante, supérflua, excedente do

proletariado, algo denominado por Marx à época da revolução industrial inglesa de exército

industrial de reserva. Nas palavras de Marx, a “acumulação capitalista produz,

constantemente, e na proporção de sua energia e seu volume, uma população trabalhadora

adicional relativamente excedente, isto é, excessiva para as necessidades médias de

valorização do capital e, portanto, supérflua” (Marx, 2017, p. 705).


60

Netto e Braz (2012) explicam que a superpopulação relativa deriva de uma dinâmica

interna à reprodução ampliada do capital e a mesma possui funcionalidade a tal reprodução.

De acordo com tais autores, a existência da superpopulação relativa enquanto um contingente

de grandeza significativa de desempregados possibilita aos capitalistas, por exemplo,

pressionarem os salários para um nível inferior, em função mesmo da alta oferta da força de

trabalho disponível. Outro exemplo dado é a possibilidade de mobilização a qualquer

momento de toda essa força de trabalho excedente quando da expansão de um setor específico

da produção, gerando, inclusive, processos migratórios, em função de demandas temporárias

dos capitalistas. Ainda segundo tais autores, se a superpopulação relativa inicialmente resulta

da acumulação de capital, ela “torna-se em seguida indispensável ao prosseguimento dela; por

isso mesmo, constitui um componente ineliminável da dinâmica capitalista” (p. 148).

Outro aspecto a respeito apontado por Siqueira (2013) se refere ao aumento da

exploração dos trabalhadores em seus postos de trabalho possibilitados pela existência da

superpopulação relativa, no sentido de ser esta um determinante no processo de concorrência

entre trabalhadores. Funciona da seguinte forma: o trabalhador se vê obrigado a produzir cada

vez mais e em situações precárias, em termos de remuneração e condições de trabalho, em

função de ter, do lado de fora da fábrica ou da empresa que trabalha, uma fila de trabalhadores

disponíveis. Portanto, têm-se assim um aumento do capital variável (força de trabalho), sem

necessariamente haver um aumento dos trabalhadores empregados, ou seja, em função do

trabalho excessivo de uma parte da classe trabalhadora (a parte ocupada), outra parte é

forçosamente levada à ociosidade (Siqueira, 2013; Iamamoto, 2001).

Netto e Braz (2012) e Siqueira (2013) explicam que no decorrer da acumulação de

capital a classe trabalhadora vivencia processos de pauperização, se expressando de duas

formas distintas. A pauperização absoluta ocorre quando se experimentam condições de vida

e trabalho degradantes (desvalorização real do salário, padrões de alimentação e moradia


61

insuficientes, precarização do trabalho e aumento do desemprego) (Netto & Braz, 2012).

Enquanto componente estrutural do modo de produção capitalista, o desemprego é a condição

na qual trabalhadoras e trabalhadores não encontram a possibilidade de vender a sua força de

trabalho no mercado. Uma trabalhadora sem emprego é uma trabalhadora sem salário,

portanto, sem fonte de renda, a qual acaba por vivenciar situação de extremo empobrecimento

que a impede de acessar por seus próprios meios bens e serviços necessários à sua reprodução

e de sua família (Siqueira, 2013).

Portanto, a barbárie do empobrecimento involuntário, ou seja, da determinação social

da pobreza não é algo exterior que penetra a lógica sistêmica do capital, mas é algo

estruturante do seu próprio funcionamento desde o seu nascimento, podendo variar de acordo

com as singulares formações sociais e os ciclos econômicos. Houve um momento da história

do capitalismo restrita a algumas regiões do ocidente antigo, portanto em um contexto

específico e sob conjunturas excepcionais, em que a pauperização absoluta foi não só

limitada, como também sua incidência foi revertida (Neto & Braz, 2012; Siqueira, 2013,

Maranhão, 2010). Todavia, em um contexto de fase imperialista do capitalismo em que opera

de forma hegemônica a financeirização do capital e a exploração de um Estado pelo outro

(Maranhão, 2010; Netto & Braz, 2012), além da questão da dependência capitalista e dos

interesses domésticos das classes dominantes das nações, a possibilidade de reedição desse

momento histórico específico do capitalismo do ocidente antigo caminha para se tornar uma

fábula para as populações trabalhadoras das demais nações no século XXI. Noutros termos, é

muito improvável que esse momento específico e regionalizado deste modo de produção hoje

mundializado e onipotente se repita. Muito pelo contrário, apreendemos atualmente uma

consequência da mudança na composição orgânica do capital, a saber, a desproletarização

industrial, fabril. Esse fenômeno ocorre hoje nos países centrais e em maior ou menor escala

nos países que se localizam na periferia do capitalismo, se caracterizando basicamente por


62

uma diminuição do operariado industrial tradicional, ocorrendo, paralelamente, uma

significativa expansão do trabalho assalariado no setor de serviços, além de outras

transformações; a sua consequência mais grave é o avanço do desemprego estrutural em

escala mundial, de uma forma sem precedentes na história, além do advento generalizado da

precarização e desproteção social (Antunes, 2015).

A pauperização absoluta é o objeto primo da intervenção da assistência social. Não se

trata aqui de afirmar, com bem apontou Sposati (2009), que a assistência social é a política

setorial responsável por “tudo” relacionado aos “pobres”. Muito pelo contrário, as

necessidades humanas de proteção sob a ordem do capital são diversas, amplas e complexas,

sendo objeto de diferentes e diversas intervenções da política social segmentadas em setores

(educação, saúde, habitação, alimentação, para além da própria assistência social). O que

afirmamos é que a pauperização absoluta foi a razão do surgimento e é a razão da existência

da assistência social, embora ela não deva (e não possa) sozinha atender a todas as demandas

da classe trabalhadora pauperizada5.

A pauperização relativa difere da forma anteriormente detalhada e pode ocorrer

mesmo quando os trabalhadores vivenciam melhoras nas condições de suas vidas

(alimentação, moradia, por exemplo), estando também relacionada à produção de riqueza no

modo de produção capitalista: quanto mais se produz riqueza menor é a parte desta que cabe

aos trabalhadores, enquanto aumenta a parte apropriada pelos capitalistas (Netto & Braz,

2012). Noutras palavras, quanto menos “pobre” um trabalhador se tornar através da venda da

5
Sem dúvidas esse é um debate por demais extenso, não podendo aqui se ater devidamente a ele. Cabe explicitar
que ao direcionar e expandir a política de assistência social a fim de atender todas as necessidades de todos os
pobres (alfabetização e outras intervenções que são do campo da educação; fornecimento de cadeiras de rodas,
próteses e demais necessidades referentes à saúde e etc.) tem-se uma situação na qual uma de intervenção social
pensada a partir da discriminação positiva produz uma discriminação negativa, no sentido de que acaba por se
associar aos pobres “um destino embasado numa característica que não se escolhe, mas que os outros no-la
devolvem como uma espécie de estigma” (Castel, 2008, p. 14). Neste caso, a assistência social deixa de ser uma
política social setorial responsável por determinadas necessidades de proteção social, operando a partir da
efetivação de seguranças sociais como direitos, para se constitui como uma política transversal, responsável
pelos necessitados sociais, frágeis e carentes, operando pela negação de direitos (Sposati, 2009).
63

sua força de trabalho, ou seja, quanto mais se valorizar o seu salário num ciclo econômico

específico, maior será a riqueza acumulada através do seu trabalho. Neste sentido,

pauperização relativa pode ser tomada como sinônimo para exploração do trabalho pelo

capital. É por esse motivo que Siqueira (2013) assevera que os planos de findar a miséria

podem até possuir algum realismo, contudo, haverá pauperização relativa enquanto houver

modo de produção capitalista.

Portanto, a pobreza não é algo remanescente de sociedade pré-capitalistas, no sentido

da escassez ou ainda fruto de um desenvolvimento insatisfatório; muito menos ainda algo

transitório, de caráter residual e passível de superação; a pobreza é estrutural do modo de

produção capitalista e fruto genuíno de seu próprio desenvolvimento. De outra forma,

significa dizer que a pobreza é prova legítima da persistência da lei geral de acumulação

capitalista. Ao mesmo passo em que, por um lado, se produz riqueza, por outro, se produz a

pobreza, seja ela absoluta ou relativa (Siqueira, 2013).

Ao religar novamente os laços entre questão social e modo de produção capitalista, as

intervenções marxistas no debate em que se disputou o significado de questão social se

armaram pelo enfrentamento do conservadorismo atualizado. Por mais disfarçado que ele

apareça, o contrarreformismo neoliberal não propõe outra coisa a não ser uma reforma moral

do ser humano e da sociedade, buscando a adequação destes à lógica do capital. A questão

social é naturalizada ao mesmo passo em que é tornada objeto de ação moralizadora, agora

por parte do Estado em conluio com organizações privadas, filantrópicas ou não.

No raiar do século XXI, o tratamento conservador da questão social permanece tão

vivido como antes, no mundo e no Brasil. Na Europa, a obra de Guy (2014), O Precariado: a

nova classe perigosa é um exemplo emblemático. A obra trata da importância de voltarmos as

nossas atenções à ascensão de uma classe social “nova” na Europa, com baixos salários e

péssimas condições de vida e trabalho e sem perspectiva alguma de melhora. Contudo, se o


64

faz é mais em função de se propor um movimento de antecipação do risco de perturbação da

ordem, neutralizando a latente possibilidade de agravamento das insatisfações sociais e a

consequente produção de uma agitação política violenta de um tecido social sem organização

política, cuja tendência ideológica tem se mostrado uma inclinação autoritária e populista,

quando não com distintos traços proto-fascistas. Não se trata de negar a precariedade da

condição de vida e trabalho do proletariado no mundo todo, especialmente aquela fração

localizada, atualmente, no sobremaneira ampliado setor de serviços, que no alvorar do século

XXI seus trabalhadores concorrem ao título de “novos escravos modernos”, e nem de

discordar das consequências políticas e sociais prognosticadas. Ocorre que propor reformas

sociais tendo em vista a antecipação e a neutralização dos riscos da insatisfação social aguda

de determinada classe ou população trabalhadora mostra que a preocupação prima do autor é

movida mais por um compromisso com a manutenção da ordem do capital do que por uma

solidariedade real para com os grupos sociais insatisfeitos. A neutralização das insatisfações

sociais de classe e de suas consequências imediatas ou de longo prazo não é outra coisa senão

a neutralização da luta de classes com o fim de deslocar para um ponto cego a materialidade

histórica da propriedade privada.

No Brasil, Souza (2015) é outro exemplo ao identificar como um dos problemas

estruturais das massas subalternas brasileiras a ausência de uma “organização psicossocial

capitalista”, um aspecto até então pouco visível nos estudos do que nomeia como

“subcidadania brasileira”, outro nome para as expressões da questão social no Brasil. Outra

vez nos deparamos com a naturalização da questão social e sua transformação em objeto de

ação moralizadora, pois, caso contrário, o que poderia significar uma demanda por

internalização da organização psicossocial capitalista? No mais, o autor parece supor em sua

narrativa que o problema do “atraso” brasileiro (leia-se as expressões da questão social no

Brasil) está relacionado com o “atraso” da elite brasileira, não à toa chamada por ele de “elite
65

do atraso”. Portanto, a solução para o problema seria uma evangelização socialdemocrata

exaustiva para com a burguesia nativa, que ele chama de elite, a fim de convertê-la em

direção ao “avanço” da nação. Certamente, a ideologia da nossa classe dominante é um

determinante de nossa situação, mas não só e nem o mais importante, jamais devendo-nos

esquecer do peso da própria propriedade privada, da dependência capitalista e das

transformações atuais no capitalismo contemporâneo, como a mundialização do capital e sua

lógica financeira.

Como bem deixou claro Iamamoto (2001), a análise da questão social se situa numa

arena de disputas entre distintos projetos societários, sedimentados por diferentes interesses

de classe, no que se refere às concepções e propostas pra a condução da política econômica e

da política social. Portanto, todas as querelas nos meios acadêmicos e na administração

pública não se resumem a conflitos no plano “teórico”, mas precisamente de projetos

societários distintos e conflitantes. A questão, todavia, está em passar os debates através da

crítica da economia política dos projetos em disputa. É por esse motivo que falamos em

conflito material em torno dos sentidos da questão social, pois a “disputa de sentidos” não

ocorre num vácuo de matéria, seja no materialismo, seja na física moderna. Acreditar

impiedosamente que a realidade e a linguagem/discurso não possuem determinação material

supõe a existência de uma “imanência da imaterialidade” de nosso ser e de nossa situação. Em

resumo, é como se nós fossemos seres imateriais, portanto, seres espirituais. Chega a ser

curioso tanto quanto irônico essa semelhança desse pressuposto da filosofia negativa francesa

com o cristianismo, pois em ambos os casos vemos os seres humanos como criaturas

espirituais, ou como criaturas cuja primazia é a do espirito sobre a carne, como se fosse capaz

de “transcendermos” nossa materialidade. Daí outros tantos consensos como a saga

antinaturalista de ambas, tanto da filosofia negativa francesa quanto do cristianismo, contra as

ciências e qualquer forma histórica de positivismo e realismo.


66

O materialismo sempre buscou conceber o sublime sem jamais descolar nossa atenção

da miséria e da animalidade humana. Somos seres de carne, lutando para um lugar para

dormir, comer, em busca de trabalho, para nos sustentarmos e vivermos a vida, para só depois

produzirmos/lidarmos com coisas como política e religião (Engels, 2018/1883). O grande

sistema de problemas econômico-políticos que o materialismo denuncia no modo de produção

capitalista, a questão social, é atravessada por um conflito bem antes material que político. O

próprio passado e o presente da América Latina denunciam as veias altas do autoritarismo das

burguesias, ou seja, o histórico recurso à categoria do apolítico para vencer as batalhas desse

conflito material. As diversas ditaduras e as democracias oligárquicas com intermitentes

rupturas são marcas da história desta terra. Portanto, a disputa em torno dos sentidos da

questão social, sua centralidade ou marginalização, sua legitimidade ou sua mistificação, sua

historicidade ou sua naturalização, sua unicidade material ou sua fragmentação abstrata numa

grandeza amorfa de “pequenas-questões sociais” irresolutas, se dão no contexto de uma

sociedade na qual a burguesia, o famigerado um por cento das sociedades capitalistas, detêm a

riqueza de todo o restante, sendo uma expressão da continuidade da barbárie as condições

precárias quando não extremas de vida e trabalho das massas trabalhadoras brasileiras.

2.2 Estado Capitalista e questão social

2.2.1 O nascimento de um novo modo de produção: a novidade das relações sociais

capitalistas

Como vimos, falar do nascimento do modo de produção capitalista é falar, a um só

tempo, do surgimento da questão social. E falar do surgimento do modo de produção

capitalista é também falar do surgimento do Estado Capitalista, afinal de contas, um não

existe sem o outro, como buscaremos mostrar adiante.


67

Marx (2017) usa a expressão modo de produção pra diferenciar o capitalismo de

outros modos de produção, apontando a sua especificidade e seu ineditismo, frutos de longa

gestação, a assim chamada acumulação primitiva, um período no qual reside a “pré-história”

da questão social, para utilizar uma expressão de Santos (2012). O período da acumulação

primitiva vai do final do século XV a meados do século XVIII e se inicia na Inglaterra (Netto

& Braz, 2012). Na acumulação primitiva, um período bárbaro, este novo modo de produção

foi forjado sobre duas instituições nefandas: a exploração e a expropriação. Sem ambas este

novo modo de produção não poderia ter surgido e sem elas ele não pode permanecer de pé.

Portando, a exploração e as expropriações são um continnum enquanto este modo de

produção existir (Fontes, 2010).

A exploração se realiza através da mercantilização da força de trabalho, pedra angular

da acumulação de capital. Como vimos, quem vende a sua força de trabalho a um capitalista

recebe apenas uma parte de todo o trabalho realizado, daí advindo a cisão entre o tempo de

trabalho necessário à produção das mercadorias e o tempo de trabalho excedente, o primeiro é

pago ao trabalhador na forma de salário, o segundo é o mais-valor, o valor acumulado pelo

capitalista, a parte do trabalho não pago ao trabalhador. A exploração só é possível através da

separação concreta entre trabalhadores e trabalhadoras e os meios fundamentais de produção.

É esse processo violento de separação que recebe o nome de expropriação: para que existam

seres humanos dispostos a vender a sua força de trabalho a alguns poucos é necessário existir

a condição de privação dos meios fundamentais de produção às grandes maiorias. Essa

condição é aquela que no liberalismo é a mãe da “liberdade econômica”. Aos poucos

detentores da propriedade privada dos meios de produção caberá a compra da força de

trabalho, e aos trabalhadores “livres” restará a venda da única coisa que possuem e que agora

passa a ser mercantilizada: a sua própria força de trabalho (Netto & Braz, 2012; Iamamoto,

2001). O trabalho que teria de ser “a forma humana de realização do indivíduo”, no modo de
68

produção capitalista, se reduz ao único meio possível de subsistência do despossuído

(Antunes, 2015, p. 171). Único meio possível de subsistência, pois, como Marx (2017)

mostrou ao relatar as legislações sangrentas do período da acumulação primitiva, em especial

na Inglaterra a partir do período elisabetano, a mendicância era um crime e não sem motivos.

A criminalização da mendicância servia fundamentalmente à cristalização da venda da força

de trabalho como uma moral, uma norma que esteve em longa gestação no período primitivo

da acumulação capitalista. E se em certas regiões as duras penas dessa legislação, verdadeiros

atos de tortura, não foram devidamente aplicados, como Marx (2017) relata, é porque havia

resistência comunitária ao modo de produção ainda em formação.

O trabalho tal como hoje é concebido não é o mesmo que em outros determinados

momentos da história. O trabalho nas comunidades primitivas, assim como no escravismo e

no feudalismo possuía formas distintas. Já no nascente modo de produção capitalista, a

produção mercantil avança a um ponto no qual o trabalho assalariado se torna fundamental,

constituindo-se assim como uma pedra angular desse sistema. O trabalho assalariado só pôde

tomar tal forma diante de um contexto de primitiva acumulação no qual houve o significativo

enriquecimento de grupos de comerciantes (a nascente burguesia), enriquecimento esse que

foi expandido e ampliado através dos processos de colonização do Novo Mundo (Netto &

Braz, 2012; Marx, 2017). Apontar e situar o nascimento da burguesia é importante uma vez

que seu nascimento não significa outra coisa senão o fato de que a partir daquele acúmulo

primitivo de capital é que surgiu a novíssima possibilidade de se comprar força de trabalho

em massa. Mas para que essa força de trabalho fosse comprada era necessário, como vimos,

que houvesse força de trabalho disponível em massa, essa última produzida através das

violentas expropriações. O capataz a realizar essas expropriações foi e ainda é o Estado

Capitalista.
69

No estágio fundacional desse sistema, a expropriação se voltou contra as terras

comunais em episódios de extrema violência contra a fração trabalhadora campesina inglesa

(Netto & Braz, 2012; Engels, 2011), os quais consistiam na “pura e simples expropriação dos

camponeses de suas terras, objetivando transformá-las, majoritariamente, em pastagens para

ovelhas” (Santos, 2012, p. 31). Ainda segundo Santos (2012),

Os conhecidos “cercamentos” das terras se fizeram objetivando gerar uma oferta de trabalho
adequada às necessidades do capital que, para dar lucro, precisa, necessariamente, explorar a
força de trabalho. Ante os níveis de desemprego atuais chega a ser difícil imaginar que algum
dia a oferta de força de trabalho tenha sido um problema para os capitalistas. No entanto
devemos lembrar que, nesse momento, o acesso à terra por parte dos camponeses supria suas
necessidades de modo que era preciso apartá-los desses meios de produção para que
estivessem dispostos a trabalhar em troca de um salário (p. 32).

A existência de terras comunais, através das quais cada um podia satisfazer as suas

necessidades, era um entrave real à constituição das relações sociais capitalistas. É nesse

sentido que a expropriação produz trabalhadores “livres”, os quais são indispensáveis à

acumulação capitalista. Exploração e expropriação, portanto, se generalizaram e enraizaram

nas sociedades pelas mãos de cada Estado nacional, transformando profundamente cada

nação, cada sociedade. Foi assim que o Estado Capitalista nasceu, através da formação e

cristalização de suas relações sociais constitutivas, relações sociais capitalistas. De acordo

com Mascaro (2013), esse modo de relação social é estruturado e ordenado pelo que

poderíamos chamar de uma triangulação irregular e desigual fundamental em torno da

propriedade privada dos meios fundamentais de produção: o Estado interdita e regula a

apropriação privada dos meios fundamentais de produção, mediando as relações entre

trabalhadores “livres” e apropriadores dos meios fundamentais de produção, os capitalistas. É

assim que surgiu e se mantem as relações sociais capitalistas, por mais diversas e singulares

que possam ser as formações sociais.


70

Mascaro (2013) nos explica que

Em modos de produção anteriores ao capitalismo, não há uma separação estrutural entre


aqueles que dominam economicamente e aqueles que dominam politicamente: de modo geral,
são as mesmas classes, grupos e indivíduos – os senhores de escravos ou os senhores feudais
– que controlam tanto os setores econômicos quanto os políticos de suas sociedades. [...] No
capitalismo, no entanto, abre-se a separação entre o domínio econômico e o domínio político.
O burguês não é necessariamente o agente estatal. As figuras aparecem, a princípio, como
distintas. Na condensação do domínio político em uma figura distinta da do burguês, no
capitalismo, identifica-se especificamente os contornos do fenômeno estatal (p.17).

A unidade entre o econômico e o político nos modos de produção pré-capitalistas

produzia um controle da vida social direto e mais simplificado. Uma vez separados no modo

de produção capitalista, a dinâmica da reprodução social se pulveriza, diz Mascaro (2013),

ocorrendo que, desde então, “em muitas ocasiões as vontades do domínio econômico e do

domínio político parecem não coincidir em questões específicas” (p. 17). Ocorre que isso não

se trata de uma obstinação injustificada. A transmutação do político como uma instância

específica distinta da do econômico é o tour de force da reprodução capitalista, que consegue,

assim, borrar os traços da dominação econômico-política. Essa é a particularidade histórica

que distingue as relações sociais capitalistas dos modos de relações de produção anteriores.

Essa relação trina e hierarquizada entre Estado, trabalhadores e burgueses em torno da

propriedade privada dos meios fundamentais de produção é uma organização social muito

singular do ponto de vista histórico dos modos de produção. É através da expropriação

praticada pelo Estado contra as trabalhadoras e trabalhadores que é produzida uma rede

necessária de trabalho assalariado. A exploração não é mais praticada pela posse bruta ou pela

violência física. A violência extraeconômica ocorre apenas nos atos de expropriação pelo

Estado. Ao capitalista apenas compete contratar e explorar a força de trabalho do trabalhador

tragicamente livre. Portanto, é o fato desse Estado ser o grande garantidor dessa apropriação
71

privada dos meios fundamentais de produção pelos capitalistas que nos permite nomeá-lo

como Estado Capitalista (Mascaro, 2013).

Em função da circulação mercantil e à seguinte estruturação da sociedade por inteiro

sobre parâmetros de troca, uma vez naturalizada a apropriação privada dos meios

fundamentais de produção, o Estado exsurge como terceiro em relação à dinâmica capital-

trabalho, passando a ser “estranho a cada burguês e a cada trabalhador explorado,

individualmente tomados” (Mascaro, 2013, p. 19), tornando possível, assim, como se fosse

externo à sociedade, apreendê-lo como um poder público impessoal. Ainda de acordo com

este autor, a “reprodução da exploração assalariada e mercantil fortalece necessariamente uma

instituição política apartada dos indivíduos” (p. 18) uma vez que naturaliza as relações sociais

capitalistas, tornando difícil vê-las. Noutros termos, essa naturalização do Estado como

instituição apartada torna difícil ver as conexões entre capitalismo e Estado.

O que caracteriza o Estado Capitalista e seu modo de relações sociais, as relações

sociais capitalistas é precisamente o fato de seu surgimento como terceiro na relação entre

trabalhadores e capital, sendo que é nessa apartação social que podemos apreender a natureza

de sua autonomia relativa. O Estado Capitalista é autônomo uma vez que enquanto guardião

da apropriação privada dos meios fundamentais de produção adquire a função de mediador

central entre trabalhadores e capital. Contudo, ele não é um mediador neutro, e nem um

mediador que toma exclusivamente o partido da burguesia. As correlações de forças em seu

seio podem variar muito, havendo, de tempos em tempos, muitas conquistas por direitos

através de muita luta de movimentos trabalhistas e socialistas. Entretanto, uma vez que media

a relação entre trabalhadores e capitalistas com o objetivo primo de efetivar a manutenção da

propriedade privada dos meios fundamentais de produção, essa autonomia é relativa, e não

absoluta. Noutros dizeres, a conquista de direitos sociais através de muita luta e sangue não

apaga o fato da persistência da apropriação privada dos meios fundamentais de produção


72

pelos capitalistas, garantida, mesmo diante de reveses históricos, pelo Estado Capitalista

(Mascaro, 2013).

A autonomia relativa do Estado Capitalista é uma autonomia, como o próprio nome

diz, relativa, não absoluta. Essa autonomia relativa se perfaz na possibilidade de um partido

popular chegar ao controle do poder executivo de um Estado nacional, na possibilidade de

ocorrerem conquistas reais por meio ou apesar das regras do “jogo democrático”. Mas chegar

ao topo do Estado Capitalista não possibilita a interrupção da apropriação privada dos meios

fundamentais de produção, pois isso é o que estrutura esse Estado. É nesse ponto em que

vemos o caráter não absoluto dessa autonomia e a razão de ser das relações sociais

capitalistas. Compreender a natureza do Estado Capitalista e o caráter relativo de sua

autonomia é fundamental quando falamos da questão social. Ao Estado Capitalista resta o

tratamento da questão social e não a sua dissolução, pois ambos estão ligados por nascença.

Enquanto esse tipo específico de Estado existir, a questão social não morrerá. A existência de

uma autonomia relativa nesse Estado diante dos trabalhadores e do capital permite que de

tempos em tempos, em distintos lugares, se conquistem direitos sociais, o que foi

importantíssimo para que as expressões da questão social fossem não apenas administradas,

mas realmente enfrentadas em muitas nações em momentos históricos específicos, o que nos

permite hoje ver toda aquela situação narrada por Engels (2010) como absurda e distante da

nossa realidade em diversos aspectos, considerando que aquela forma e nível da pobreza eram

muito “bizarros”, poderíamos dizer. Embora não em tantos outros aspectos se nos

permitirmos a enxergarmos justamente as diferentes e contemporâneas formas e níveis de

pobreza e, sobretudo, a desproteção social nas regiões do Sul do mundo.

Ocorre que as relações sociais capitalistas e as condições de luta em torno dessa

autonomia relativa do Estado Capitalista não dependem apenas da organização política dos

trabalhadores e dos movimentos socialistas e de classe em geral. A constituição de um Estado


73

Capitalista em particular e a análise da luta de classes deve passar necessariamente por dois

caminhos, a saber, o estudo das formações sociais e a investigação histórica sobre a

geopolítica, mais especificamente, sobre o imperialismo e os ciclos econômicos do

capitalismo, hoje mundializado. É através desses dois caminhos que conseguimos

compreender com propriedade as raízes materiais e históricas das expressões da questão

social em um país e região específicos do globo.

2.2.2 Estado Capitalista, formação social e as expressões da questão social

A leitura da realidade social não é um mar de calmaria. Muito pelo contrário. Ela

parece mais um torvelinho agressivo, o qual quando achamos que estamos muito próximos do

chão da realidade, às vezes nos encontramos distantes, e vice-versa. Coutinho (2008) traz

comentários preciosos a respeito. Segundo este autor, as abordagens marxistas do Estado

podem variar entre dois polos de uma mesma linha, em que, de um lado, temos uma análise

restrita e, de outro, temos uma análise ampla. Restrita e ampla são palavras que para o autor

se equiparam às categorias de abstrato e concreto. O caminho do abstrato ao concreto é o

caminho do menos complexo ao mais complexo, o qual possui como meta a construção

progressiva de um corpus teórico que caminha em direção ao concreto se perfazendo na

síntese de múltiplas determinações, na qual as muitas determinações abstratas, entendidas

aqui como sinônimos de parciais, emergem repostas e transmutadas no corpus teórico que as

mediatiza e, especialmente por isso, as concretiza” (Coutinho, 2008, p. 14). Nesta visão, a

construção da teoria é uma prática artesanal que se realiza no ato de narrar o mundo material

se aproximando o máximo possível dele. O autor continua nos explicando que

numa primeira aproximação, poderíamos dizer que uma concepção marxista de Estado é tanto
mais “ampla” quanto maior for o número de determinações do fenômeno estatal por ela
mediatizados/sintetizados na construção do conceito do Estado; e que, vice-versa, será
“restrita” uma formulação que, consciente ou inconscientemente, concentre-se no exame de
74

apenas uma ou de relativamente poucas determinações da esfera político-estatal. Mas a


elevação do abstrato ao concreto – ou, no que aqui nos interessa, a “ampliação” do conceito
de Estado – possui uma dupla dimensão. Por um lado, temos uma dimensão gnosiológica,
referente ao nível maior ou menor de abstração conceitual no qual se situa o pesquisador para
analisar o seu objeto; por outro, temos uma dimensão histórico-ontológica, que se refere ao
grau maior ou menor de complexificação (de concretização) da própria realidade objetiva
com a qual o pesquisador se depara. (p.14-15, grifos do autor).

Coutinho (2008) dá o exemplo no qual, propositalmente, uma pesquisadora marxista

pode se situar no nível abstrato que constitui o modo de produção capitalista e a partir daí

derivar não somente a teoria do Estado, entendido de forma abstrata como aparelho de

dominação da classe economicamente dominante, mas a estrutura de classes mesmo, expostas

como contraposição bipolar abstrata entre as duas classes fundantes do modo de produção

capitalista. E segue dizendo

Creio que nenhum marxista negaria o fato de que essa abordagem abstrata preliminar, situada
no nível das leis mais gerais do modo de produção, é um momento necessário da investigação
histórico-materialista do Estado; nem todos, porém, reconhecem que ela é insuficiente para a
apreensão das múltiplas determinações que caracterizam o fenômeno estatal em suas
manifestações concretas. Poderíamos recordar que quando essa insuficiência não é
reconhecida – ou seja, quando os resultados da dedução abstrata são projetados, sem
mediações, em níveis mais concretos da realidade social –, o momento parcial (ainda que
necessário) se coagula em fetiche e leva à deformação e ao erro (p.15, grifos do autor).

O que está em questão, portanto, é o nível de proximidade da leitura teórica com a

realidade concreta. Coutinho (2008) aponta que essas diferenças em nível de análise já

estavam presentes nos próprios escritos fundadores da tradição marxista, sendo emblemática a

diferença entre o Manifesto Comunista (Marx & Engels, 1998), uma análise em um nível mais

abstrato, e o 18 Brumário de Luis Bonaparte (Marx, 2011), uma análise consideravelmente

mais concreta. No primeiro texto, vemos a afirmação de que a época da burguesia veio a
75

simplificar dos antagonismos sociais, na qual a sociedade é divida apenas em duas classes

fundamentais. Já no segundo texto, vemos a aparição de um leque amplo de classes e frações

de classe na França do século XIX, o que significa uma considerável complexidade na luta de

classes na França apreendida pela leitura marxiana tardia, apontada pelo autor como quiçá a

análise mais rica e concreta existente em toda a produção marxiana. O autor ainda busca

despertar a nossa atenção para o curioso embora não surpreendente fato de que essa

“dualidade de abordagens se reproduz também no pensamento marxista contemporâneo”

(Coutinho, 2008, p.16).

Se a enorme contribuição de Mascaro (2013) nos possibilita uma visão mais ampla e

complexa de Estado Capitalista a partir da escola derivacionista, é importante percebermos

que suas contribuições ainda são gerais em termos de constituição desse Estado. Como

explicitado na seção anterior, o estudo deste autor exuma as relações sociais capitalistas

relevando seus componentes estruturais, os quais independem de formação social, embora o

autor faça questão de tecer consideráveis ponderações sobre a relação entre Estado Capitalista

e formações sociais, marcando uma atenção maior ao tema. No entanto, o caminho proposto

por Coutinho (2008), enquanto representante da escola gramsciana, é que a análise mais

concreta do Estado Capitalista nos demanda caminhar em direção ao estudo das formações

sociais, para além daquelas questões estruturais presentes, de uma forma ou de outra, em

todas as sociedades capitalistas. Nessa perspectiva é dispensada maior atenção à forma

particular que as formações sociais dão a cada Estado Capitalista, as quais o particularizam, o

singularizam. Noutros termos, o foco na elaboração do conceito de Estado se volta às

complexas articulações de cada formação social específica com o modo de produção

capitalista. Se uma deriva a teoria do Estado a partir do modo de produção capitalista, a outra

busca a apreensão das articulações complexas existentes entre formação social e modo de
76

produção capitalista. Trata-se de duas formas diferentes de ler o Estado e, sobretudo, de ler a

realidade capitalista, cada uma com sua inestimável contribuição.

Se lembrarmos de que as expressões da questão social estão intricadas por sua

natureza material às relações sociais capitalistas, perceberemos que a atenção maior à

formação social não é só importante apenas no que concerne ao estudo do Estado, mas

também ao estudo da constituição das expressões da questão social nesse Estado. É nesse

ponto que, em seus estudos sobre a questão social, Santos (2012) aplica ipsis litteris a

perspectiva de Coutinho (2008) ao estudo da questão social e de suas expressões. A autora

aponta a existência de dois níveis possíveis de tratamento da questão social. Embora ambos

estejam necessariamente associados, eles não são idênticos. O nível conceitual se relaciona

ao escoramento nos fundamentos marxianos e a decorrente e determinada concepção a

respeito do processo de produção e reprodução da questão social. O histórico se refere às

manifestações históricas da questão social, no sentido da consideração e atenção às

particularidades que esta possui nos seus diferentes contextos, a título de exemplo, a realidade

brasileira e o estudo das particularidades concernentes à constituição do capitalismo na

formação social brasileira. Embora a autora não fale nesses termos, podemos claramente ver

que uma perspectiva deriva a questão social e suas expressões do modo de produção

capitalista, enquanto a outra busca apreender as articulações complexas entre formação social

e modo de produção capitalista ao investigar a constituição histórica das expressões da

questão social. Em termos de modo de produção capitalista, o conceitual se refere ao

universal, que independe da formação social, ao passo que o histórico se volta ao particular,

produto das articulações complexas da formação social com o modo de produção capitalista.

Não teríamos outro exemplo melhor a não ser o texto da própria Santos (2012) sobre

as particularidades da questão social no Brasil. Entre a miríade de expressões da questão

social, a autora se dedicou a revirar os determinantes do desemprego no Brasil enfocando a


77

constituição do mercado de trabalho e do regime de trabalho no Brasil, o que acaba por incluir

os mecanismos de proteção social e de regulação do trabalho no país. Um dos pontos altos de

sua contribuição frente ao tema é a firme asserção de que a flexibilidade e a precariedade do

trabalho no Brasil são características particulares, portanto, históricas do trabalho no país.

Muito longe de serem produtos da decadência do “fordismo” e de uma virada “neoliberal”,

são características constitutivas da nossa própria história no caminho para o capitalismo, com

grande influência de nossa própria formação social. Nos dizeres da autora

Venho insistindo que é preciso pensar como os movimentos universais do modo de produção
capitalista se traduzem, concretamente, no nível das formações sociais particulares, para que
se tenham condições de captar a diferencialidade nas expressões da “questão social” em cada
contexto, importando-me, no presente trabalho, a realidade brasileira. Tal premissa é válida
para dimensionar, no caso do regime de trabalho brasileiro, o quanto se tornam pouco
aproximativas da realidade certas análises que, ao considerarem as linhas gerais do fordismo,
as tomam como parâmetros para enquadrar a dinâmica da acumulação no Brasil durante a
“industrialização pesada”, incapazes de apanhar a flexibilidade como componente estrutural
do regime de trabalho no Brasil (Santos, 2012, p. 158).

Santos (2012) segue caracterizando o fordismo em seu período, comumente

denominado como os “anos dourados” do “capitalismo” – nomeação problemática que

trataremos com mais detalhes adiante –, e aponta o abismo entre o fordismo deles (Europa) e

o nosso, desvelando que no “fordismo à brasileira” não existiu estabilidade, mas sim

flexibilidade e precariedade na estrutura das relações de trabalho no setor privado. Noutras

palavras, a acumulação no Brasil no grande setor privado sempre foi flexível, ao contrário da

Europa. A autora não apenas asseverou a importância de se olhar para a formação social

quando falamos da questão social e suas expressões, ela mostrou isso através da sua

investigação. O produto de sua investigação é importante uma vez que expõe o quanto a
78

discussão sobre o neoliberalismo no Brasil acaba por ser eurocêntrica e, como diria Coutinho

(2008), se coagula em fetiche e leva à deformação e ao erro.

Sem falsa modéstia, muito antes de surgirem o pós-colonialismo e o decolonialismo

como perspectivas teóricas que buscam decantar o eurocentrismo de cada dia não só na

produção de conhecimento, mas nas próprias epistemologias das humanidades, a tradição

marxista se reinventou no Brasil ao pensar a nossa realidade com nossas próprias cabeças e

com os nossos pés no nosso próprio chão.6 Santos (2012), de longe, é uma representante

dentro de tantas outras figuras que dispensam o mesmo esforço. O que a autora mostrou é que

para além de conceber o neoliberalismo como um regime de acumulação atualmente

hegemônico no mundo todo, devemos apreender as complexas articulações da nossa

formação social com esse regime de acumulação. Curiosamente, o pós-colonialismo e o

decolonialismo caem na vala eurocêntrica do debate sobre as “consequências do

neoliberalismo no Brasil”, ao passo que a tradição marxista, especialmente em sua linhagem

gramsciana, insiste que devemos navegar em águas mais profundas em direção ao debate

sobre as consequências do neoliberalismo no capitalismo brasileiro, ou, noutras palavras,

sobre as consequências do neoliberalismo diante da nossa formação social particular e o modo

de produção capitalista que se erigiu nela. Justamente por ter sido e ainda ser muito criticado

de forma caricata, é necessário reconhecer e afirmar continuamente que o marxismo foi

marginal desde a sua fundação (Anderson, 2019) e ainda se esforça por continuar a ser nos

dias atuais, agora especialmente por mãos próprias, latino-americanas.

6
É bom constar que nessa busca por razões “não eurocêntricas” está fora de jogo qualquer coisa que fuja ao que
conhecemos como idealismo, algo inegavelmente de raízes europeias. Mas ao falarmos isso alguém se levantará
em defesa dessas perspectivas para falar que se trata mais da nossa mania de ver o resto do mundo pelos olhos
das categorias do ocidente. É assim que a filosofia negativa europeia, filha do singular idealismo francês, busca a
reinvenção da roda em pleno século XXI. Na verdade, trata-se de uma razão europeia fingindo não ser europeia
em cabeças não europeias. Neste caso, a questão ideológica para investigarmos é a razão de ser desse fingimento
e suas relações com o imperialismo no plano das ideias.
79

De todo esse debate, devemos tirar como máximas a perspectiva de estudar o Estado e

a produção das expressões da questão social não somente a partir do modo de produção

capitalista de forma abstrata, mas buscando apreender as complexas relações entre estes e a

nossa formação social. Uma coisa é afirmarmos que a pobreza é produzida pelo capitalismo

na mesma medida em que se produz a riqueza, embora certeira, essa afirmação é insuficiente

diante de um debate mais aprofundado sobre o tema. Outra coisa é investigarmos o como essa

riqueza e essa pobreza são produzidas no capitalismo à brasileira, e que forma e proporção

ambas tomam, algo fundamental para o debate atual, principalmente para lidarmos com a luta

de classes no plano das ideias, enfrentando teorias que relativizam as contradições do modo

de produção capitalista ao mesmo passo que colocam o neoliberalismo como o grande vilão

produtor dos males do contemporâneo em discursos novidadeiros que ofendem qualquer

latino-americano com consciência histórica.

2.2.3 Os trinta anos “dourados” do “capitalismo”: o nascimento dos sistemas de proteção

social na Europa Ocidental

Como vimos na produção de Engels (2010), no momento do nascimento do

capitalismo tínhamos uma situação na qual as massas trabalhadoras estavam longe de possuir

uma proteção próxima à atualmente existente em muitos países do Norte Ocidental,

principalmente na Europa Ocidental, e até mesmo muito distante do Brasil se pensarmos nas

regiões mais industrializadas do Brasil e com maior organização dos trabalhadores. Todavia,

isso não deve obscurecer o fato de que o que por diversas vezes nós chamamos no início deste

capítulo de “extremas condições de vida e trabalho” são, na verdade, as condições de vida e

trabalho originais do capitalismo, presentes na sua gênese, em um estado “selvagem”, como

diriam alguns apologistas do capitalismo “civilizado”. Embora esse discurso desconsidere que
80

contraposta à uma quantidade ínfima de países no centro do sistema, uma imensa quantidade

na periferia estava e permanece nessa selvageria a maior parte do tempo.

Em meio a essas condições extremas, como vimos, existia alguma “proteção social”,

embora ela mais violentasse que protegesse na maioria absoluta dos momentos. De acordo

com Behring e Boschetti (2011), na acumulação primitiva as forças de mercado não possuíam

protagonismo diante da sociedade, sendo que eram assumidas algumas responsabilidades

sociais, embora não com o objetivo moderno e contraditório de garantir o bem comum, mas

com a direção de fazer a mantença da ordem social e punir a vagabundagem. As autoras

apontam que neste período havia, na verdade, protoformas de políticas sociais, as quais se

constituíam em intervenções pontuais com características assistenciais ao lado da caridade

privada e de ações filantrópicas. Com o nascimento do capitalismo, ocorre a multiplicação e a

generalização das políticas sociais nos países do Norte Ocidental, o que não ocorreu por

acaso, tendo apenas sido possível sobre uma particular base material. De acordo com Behring

(2015)

Pois bem, cada período da história do capitalismo atravessou um ciclo longo de aceleração e
desaceleração da acumulação de capital, entrecortado por pequenos ciclos. São as ondas
longas com tonalidade de crescimento e as ondas longas com tonalidade depressiva. Com
base na periodização mandeliana, é possível afirmar que as políticas sociais se multiplicam no
final de um longo período depressivo, que se estende de 1914 a 1939, e se generalizam no
início de um período de expansão, que teve como substrato a guerra e o fascismo, e segue até
fins da década de 1960 (p. 176, grifos da autora).

Ainda de acordo com Behring (2015), o cume do período depressivo produziu uma

marcante desconfiança da burguesia para com os automatismos do mercado. Numa outra

ponta, a autora argumenta que seria insustentável para o capitalismo uma crise nova com as

mesmas características e amplitude da de 1929, precisamente no momento em que se

consolidava, com seus muitos limites, a experiência soviética. A saída, numa outra via, seria o
81

fascismo, também avaliado como insustentável em médio prazo. É neste contexto que

assistimos a multiplicação e a generalização da política social ao Norte Ocidental.

Posteriormente, apreendemos o nascimento dos sistemas de proteção social. O importante é

salientar o quanto essas transformações sociais só foram possíveis ao final de um longo

período depressivo, no qual a legitimidade do mercado enquanto deus da proteção econômica

foi deveras questionada na prática não só pelos trabalhadores, mas, de forma inédita,

precisamente pela burguesia e pelos governantes do período, tanto na Europa Ocidental

quanto nos EUA.

É importante, quando falamos em sistemas de proteção social, distinguirmos estes da

simples multiplicação e generalização das políticas sociais. Boschetti (2016) trouxe grande

contribuição quanto a este tema.

Isso porque um sistema de proteção social não é somente a justaposição de programas e


políticas sociais, e tampouco se restringe a uma política social, o que significa dizer que a
existência de políticas sociais em si não constitui um sistema de proteção social. O que
configura a existência de um sistema de proteção social é o conjunto organizado, coerente,
sistemático, planejado de diversas políticas sociais, financiado pelo fundo público e que
garante proteção social por meio de amplos direitos, bens e serviços sociais, nas áreas de
emprego, saúde, previdência, habitação, assistência social, educação, transporte, entre outros
bens e serviços públicos. Tem como premissa o reconhecimento legal de direitos e a garantia
de condições necessárias ao exercício do dever estatal para garanti-los (p. 16).

Apontar a base material da multiplicação e generalização das políticas sociais nos leva

a uma posição de rejeitar qualquer voluntarismo, seja a partir das classes trabalhadoras, seja

das burguesias das nações do Norte Ocidental. É necessário retomarmos à importante

contribuição de Behring (2015) na qual, noutras palavras, vimos que a multiplicação das

políticas sociais ocorreu num contexto de fim de um longo período econômico depressivo,

ocorrendo a generalização das políticas sociais no início de um novo período econômico de


82

expansão, possibilitado pela economia política da guerra e do fascismo, e que vai até o fim da

primeira década da segunda metade do século XX. Portanto, não se tratou, de forma alguma,

de “concessões” das burguesias nativas e nem unicamente da luta dos trabalhadores, mas

precisamente de uma situação de transição entre um período depressivo para um período de

expansão econômica, transição essa que, a um só tempo, foi tão profundamente traumática

para a burguesia, a qual obteve razões seguras para desconfiar da suposta onipotência do

mercado, quanto foi favorável à luta nos trabalhadores contra os ímpetos do capital, seja na

luta socialista, seja na saga socialdemocrata-trabalhista. Noutras palavras,

O Estado social capitalista é, portanto, o mediador que garante o sistema legal e jurídico dessa
forma de segurança social, mas sua conformação como Estado de Direito depende de uma
série de condições materiais na reprodução das relações capitalistas, e também de condições
políticas relacionadas à luta de classes, ou seja, à organização e pressão da classe
trabalhadora. Essa forma de segurança social não garante somente a segurança material, mas
também inscreve o indivíduo na ordem do direito burguês. O que garante os benefícios e
serviços sociais não é uma relação clientelista ou de tutela, mas o fato de o indivíduo estar
inscrito em uma ordem jurídica universalista associada ao direito do trabalho (Boschetti,
2016, p.106-107, grifos nossos).

Existe uma considerável confusão ao se passar da análise da multiplicação e

generalização das políticas sociais para a análise dos sistemas de proteção sociais. Isso ocorre

porque a constituição dos sistemas de proteção social ocorre nacionalmente, ou seja, em

complexa articulação com a formação social. Noutras palavras, cada regime de proteção

social no capitalismo possui profundo entrelaçamento com a historicidade de cada nação

(Boschetti, 2016). Sem adentrar a fundo em cada detalhe dos liames dessa importantíssima

discussão, é necessário observar, em resumo, que toda a confusão entre os diversos conceitos

relacionados à diversidade do Estado social capitalista europeu, dentre eles os de Sozialstaat,

Wohlfahrstaat, Welfare State, État Providence, État Social e Estado de Bem-estar Social,
83

acabam por se perfazer num descuidado gritante com as traduções dos textos fundadores de

cada perspectiva para as demais línguas e suas limitações. Entretanto, o maior problema está

na utilização desses termos de forma indiscriminada e desatenta a cada formação social

específica, que acaba por chamar atenção à ordem de cada discurso particular em relação à

proteção social no capitalismo. Diante dessa importantíssima querelle econômico-política,

optamos pela definição de Estado Social Capitalista (Boschetti, 2016). De acordo com essa

concepção,

Designar de “Estado social” a regulação econômica e social efetivada pelo Estado no


capitalismo tardio não significa atribuir ao Estado uma natureza anticapitalista, e menos ainda
lhe atribuir qualquer intencionalidade de socializar a riqueza por meio de políticas sociais.
Trata-se, ao contrário, de tentar lhe atribuir uma designação ou caracterização para
demonstrar que o fato de assumir uma “feição” social por meio de direitos implementados
pelas políticas sociais não retira do Estado sua natureza capitalista e nem faz dele uma
instância neutra de produção do bem-estar (2016, p. 24).

O desenvolvimento dos sistemas de proteção social em cada nação do Norte Ocidental

é produto da relação de proximidade para com as influências das experiências de vários países

dessa região do globo, no contexto já mencionado de transição entre períodos econômicos

opostos. Marcadamente, se for necessário apontar as influências protagonistas, podemos

relevar as seguintes: 1) os seguros sociais obrigatórios bismackianos desenvolvidos na

Alemanha do século XIX, os quais se voltavam para a mantença compulsória de prestações

que substituem a renda em momentos de risco advindos da perda do trabalho assalariado,

além de legislações municipais de assistência social; 2) o Plano Beveridge, o qual se guiava

pela busca de manter elevado o nível de emprego através da regulação da economia de

mercado, pela universalização dos serviços sociais e através da implantação de uma rede de

serviços de assistência; 3) a teorização keynesiana que questionou assim como se contrapôs à

ortodoxia liberal, inspirada no New Deal norte-americano, a qual fundamentou e guiou as


84

saídas europeias da crise, tendo como ponto em central a elaboração de um conjunto de

medidas anticrise ou anticíclicas com sustentação pública (Boschetti, 2016; Behring, 2015).

Problemática semelhante ocorre no debate sobre o conceito de seguridade social, cujas

muitas e variadas denominações se relacionam aos princípios norteadores da proteção social

em cada país europeu, dentre elas Social Insurance, Social Security, Seguro Social,

Segurança Social e Sécurité Sociale. A esse respeito, Boschetti (2016) nos diz que a

seguridade social integra o Welfare State – inglês –, mas não sucumbe a ele, apontando que

ela também pode possuir características e abrangência distintas, a depender das

particularidades de cada país, podendo ficar restrita aos seguros ou incorporar outras políticas

sociais. Da mesma forma, a seguridade social é uma dimensão do État Providence – francês –

, mas não se confunde com ele, sendo que neste país a seguridade social foi produto de um

longo processo de articulação entre formas distintas de proteção social até então existentes na

Europa. Em síntese,

é possível afirmar que a seguridade social não se confunde e nem é sinônimo de Welfare
State, État Providence ou Sozialstaat, mas é parte integrante, e mesmo elemento fundante e
constituinte de sua natureza, bem como de sua abrangência. Isso significa que a
compreensão de seguridade social predominante em qualquer país é imprescindível para a
compreensão da natureza do Estado social. Também é evidente que a seguridade social não se
confunde e nem se restringe ao seguro social (ou previdência social, para utilizar a expressão
brasileira). Ainda que possa haver importantes distinções em cada país, pelo menos três
elementos passaram a constituir historicamente a seguridade social: os seguros, a assistência
médica/saúde e as prestações assistenciais (Boschetti, 2016, p. 44, grifos nossos).

A esta altura do debate, devemos explicitar duas máximas. Em primeiro lugar, não é

possível representar os sistemas de proteção social de forma transcendente às condições

nacionais, como se houvesse um continuum entre eles a não ser o fato de que se trata de uma

proteção social no capitalismo, pois inexiste sistema de proteção social transnacional. Tal
85

suposição é pura ideologia. Os sistemas de proteção social são produtos históricos nacionais.

Como muito bem elaborou Boschetti (2016), as experiências concretas de proteção social no

capitalismo exsurgem na relação histórica entre o nível de desenvolvimento das forças

produtivas, de um lado, e o papel do Estado e das classes sociais, de outro, tudo isso no

contexto de cada nação em específico. Portanto, são centrais as condições nacionais, as quais

dão aos sistemas de proteção social “características e particularidades que os distinguem sem,

contudo, suprimir sua morfologia estruturalmente capitalista” (p. 25). Acrescentamos a essa

asserção o certeiro apontamento de Behring (2015), a partir do qual a formação de sistemas de

proteção social no capitalismo é determinada, no sentido não da certeza de sua constituição,

mas no sentido da possibilidade material de sua existência, por cada período da história do

capitalismo, ou seja, seus longos ciclos de aceleração e desaceleração da acumulação e os

pequenos ciclos nestes entremeios. Essas asserções mostram o quanto é voluntarista supor que

a proteção social dependa apenas de luta organizada dos trabalhadores ou de evangelização

socialdemocrata das burguesias nacionais e transnacionais, dependendo significativamente

tanto das possibilidades postas pelas formações sociais quanto pelos períodos do capitalismo

mundializado, questões essas que estão fora dos controles de ambas as classes fundamentais

antagônicas, justamente pelo fato do modo de produção capitalista ser profundamente avesso

a qualquer tipo de planejamento e estabilidade.

Em segundo lugar, como latino-americanos que somos, enquanto sul-ocidentais – por

mais que tentem atualmente negar de forma romântica e grotesca a nossa ocidentalidade –

devemos jamais deixar de relevar que os sistemas de proteção social nasceram na Europa e,

como já a miúde explicitado, numa base material específica. O ouro sempre representou

riqueza e poder, não só no imaginário do ocidente antigo, mas na sua própria prática colonial.

No Brasil, usamos a frase “nasceu em berço de ouro” para falarmos dos privilégios

hereditários pequeno-burgueses em função da família imperial realmente ter possuído um


86

berço de ouro, hoje localizado no Museu Imperial de Petrópolis, no Rio de Janeiro. Ocorre

que ao falarmos em berço de “ouro”, nem sempre nos atentamos a esse fato e são muitos os

que desconhecem sua existência real. Semelhante autonomia relativa ocorre entre a

representação da expressão “trinta anos dourados do capitalismo” e toda a sua materialidade e

historicidade. Foram cerca de trinta anos de histórica constrição do capital alcançada aos

custos de muita luta e sangue advindas não apenas do movimento operário e socialista

europeu, mas, também, do que ocorrera e se lutava para manter de pé no leste europeu: a

experiência em direção ao socialismo. Tudo isso determinado enquanto possibilidade de

existência por um contexto de transição entre períodos opostos do capitalismo enquanto modo

de produção mundializado. Apesar da construção de todo o monumento chamado de Welfare

State, aquela expressão nos lembra de que seus trinta anos dourados duraram trinta anos

apenas, pouco diante de toda a existência do capitalismo e que nunca alcançaram um ponto da

transformação social em que fosse legítimo e preciso o abandono deste nome, continuando a

ser o mesmo capitalismo, apenas particularizado e menos despótico para com o trabalhador

numa região que foi o berço desse modo de produção. Por fim, nós, brasileiros, não

deveríamos esquecer o significado do dourado no ocidente antigo: ouro e poder. Numa

palavra, a concentração europeia da riqueza mundialmente produzida através do trabalho de

pessoas das mais distantes regiões. Essa acumulação de riqueza transnacionalizada em direção

aos grandes monopólios localizados no centro do sistema e o constrangimento quando não a

explícita violência dos Estados europeus às demais nações recebe o nome de imperialismo

(Netto & Braz, 2012). Maranhão (2010), comentando a respeito dos ditos “trinta anos

dourados do capitalismo”, diz que

Na época, em alguns países da Europa, como resultado de uma intensa pressão dos
trabalhadores, a dinâmica de criação da força de trabalho excedente foi amenizada. Nesse
período, os mecanismos exteriores de controle político exercidos nesses países, quando não
87

atingiram seu objetivo de estabelecer um pleno emprego da força de trabalho, conseguiram


fazer com que os efeitos perversos de criação da superpopulação relativa permanecessem
apenas de uma forma latente e controlada. Essa foi a base para a criação de um ambiente
relativamente estável na economia capitalista que conseguiu, através do ideário keynesiano de
“eutanásia do rentista”, conter ou pelo menos transferir para os países periféricos o ímpeto
do capital financeiro por uma extração de mais-valia acelerada e intensa (p.115, grifos
nossos).

Netto (2001), comentando sobre a referida expressão de origem francesa, anotou que a

partir do processo de reconstrução econômica e social da Europa Ocidental, que se seguiu à

Segunda Guerra Mundial, e que vai até os anos sessenta aos setenta do século XX,

mesmo sem erradicar as suas crises periódicas, o regime do capital viveu uma larga
conjuntura de crescimento econômico. Não por acaso, a primeira metade dos anos sessenta
assistiu à caracterização da sociedade capitalista – evidentemente desconsiderando o
inferno da sua periferia, o então chamado Terceiro Mundo – como sociedade afluente,
sociedade de consumo (Netto, 2001, p. 47, grifos nossos).

Netto (2001) ainda aponta que o nascimento dos sistemas de proteção social na Europa

Ocidental, ao lado do dinamismo da economia norte-americana, simulava ter aprisionado no

passado a questão social e suas expressões, as quais “eram um quase privilégio da periferia

capitalista, às voltas com os seus problemas de ‘subdesenvolvimento’” (p. 47), embora o

conjunto das melhoras nas condições de vida das massas trabalhadoras não fugisse à norma

exploradora do modo de produção capitalista, a qual continuava a se expressar através de

intensos processos de pauperização relativa.

O famigerado “pleno emprego” europeu ocidental - que é, na verdade, um quasi-

pleno-emprego, pois os níveis de desemprego nunca chegaram a ficar nulos realmente – longe

de ser uma regra, sempre foi uma exceção na história do capitalismo. É nesse ponto que a

ideologia do reformismo europeu expressa o quanto ela realmente é um reformismo não só


88

europeu, de fato, mas eurocêntrico também, ao postular a “humanização” do capitalismo

através de suas temporárias conquistas, consolidando socialmente um discurso a partir do qual

o capitalismo é tomado como neutro, devendo serem disputadas as conquistas de suas

qualidades “positivas”. A nossa tarefa consiste, em todo caso, em observar as severas

inconsistências históricas e materiais desse discurso, denunciando o caráter histórico de

exceção, atípico e transitório dos sistemas de proteção social europeus ocidentais.

Como já apontado, os “trinta anos dourados do capitalismo” só foram possíveis

também através do imperialismo. Em outras palavras, o ouro teve de sair de algum outro lugar

que não da Europa Ocidental, mais uma vez na história do capitalismo. A proteção social

conquistada pelo movimento operário, trabalhista e socialista, além de ter influência

determinante da experiência socialista em curso ao leste e possibilitada pela fase de transição

entre períodos de acumulação de capital, só foi possível por que ainda havia uma massa

gigantesca de força de trabalho sem organização política sólida e com parca experiência

democrática lidando com a voracidade capitalista transbordada da Europa Ocidental em

direção ao sul do mundo. A eutanásia do rentista lá só foi possível através de sua livre e cada

vez mais desregulada existência por aqui. Seria dificultosa a existência dos trinta anos

dourados do capitalismo sem as nações capitalistas periféricas, seus regimes despóticos e suas

formas agudas de exploração e expropriação. É nesse sentido que devemos enfrentar o

universalismo e a abstração frente a essa expressão e discurso profundamente eurocêntricos,

buscando ressaltar, sempre, que os trinta anos “dourados” do “capitalismo” foram trinta anos

de transferência imperialista das mazelas capitalistas para a periferia do sistema e que se

tratou de uma experiência do capitalismo europeu ocidental, especificamente. Por fim, como

argumentou Maranhão (2010), pesa que essa “dinâmica civilizatória – saturada de situações

históricas muito peculiares à época e que se limitou a um número reduzido de países centrais
89

– parece não fazer mais parte da lógica de reprodução do capitalismo contemporâneo” (p.

115).

Em fragmentos sintéticos, este foi um resumo da ontologia da proteção social no

capitalismo europeu ocidental, dos seus problemas e do seu caráter tão imperialista quanto

efêmero e regionalmente circunscrito. Essa experiência se esgotou junto com o esgotamento

do longo período de aceleração da acumulação de capital que a possibilitou. Partamos, agora,

para as tendências contemporâneas de proteção social, desde a Europa Ocidental, em crise

diante da derrocada do regime keynesiano-fordista de acumulação e da ascensão da tirania da

acumulação flexível, até a América Latina.

2.2.4 Proteção social no capitalismo contemporâneo: tendências no centro e na periferia

Duas pontuações iniciais sobre a proteção social no capitalismo contemporâneo são

necessárias. Uma vez transformado o regime de acumulação, também se transforma o regime

de proteção social, tanto no centro quanto na periferia do sistema. Todavia, as transformações

não são as mesmas e por motivos basilares. Como explicitado acima, ao contrário do que

certos discursos reformistas ou liberais trazem, a Europa Ocidental e seu capitalismo foram

uma exceção histórica quando contrastadas com as trajetórias daquelas muitas nações

existentes no mundo, considerando não apenas o modo de produção capitalista, mas as

complexas e determinantes articulações deste modo de produção com a formação social de

cada nação e região específica, tudo isso subjugado pelo imperialismo enquanto processo de

hierarquização geopolítica da acumulação na fase dos monopólios. O nascimento dos sistemas

de proteção social naquela região capitalista central tratou-se de uma situação especial que faz

mais parte do passado deles do que do nosso presente ou futuro. Então ao falarmos de

transformações nos sistemas de proteção social, temos que considerar que, assim como num

aborto, muitos sistemas de proteção social, muito longe de sofrerem um “desmonte”, pois só é
90

possível desmontar o que está montado, sofreram uma forte e abrupta interdição, um

verdadeiro aborto. De acordo com Sitcovsky (2010), a esses sistemas de proteção social ainda

em gestação no final do século passado para o início deste dizemos que eles possuíram um

desenvolvimento tardio.

A segunda pontuação se refere ao fato de que em muitos discursos sobre o

neoliberalismo é dito que o mesmo se trata de uma restruturação produtiva e de um regime de

acumulação distinto que desceu do Norte para o Sul do mundo como se fosse um Cavalo de

Tróia. Contudo, a verdade é que antes de Thatcher e Reagan tornarem suas nações em

exemplos e modelos de aplicação do pensamento econômico e político neoliberal o

verdadeiro laboratório foi a América Latina e sua cobaia e vítima mais importante foi o povo

chileno (Anderson, 1995). Portanto, é necessário ponderar o que é novidade e o que não é

novidade em tudo aquilo que o neoliberalismo nos traz, tudo isso a partir da América Latina,

pois em vez do “novo” estar chegando, pode ser que seja um velho retornando de uma forma

nova. Destarte, pelo fato desse padrão de acumulação ter sido primeiro experimentado aqui e

não lá, não seria correto falar em novidade, tratando-se mais de um discurso novidadeiro.

Por outro, a flexibilidade e a precariedade sempre foram marcas do nosso capitalismo,

produzidas nos complexos interstícios do modo de produção capitalista com nossa singular

formação social, não podendo ser critérios exclusivos para a análise do novo regime. A

novidade talvez resida mais na revolução tecnológica permanente e do como ela se relaciona

com a flexibilidade e a precariedade do que nessas características per se. A interdição história

do desenvolvimento dos sistemas de proteção social na América Latina também é prova viva

de que quando a ideia da desproteção social generalizada surgiu com força na Europa

Ocidental em meio à crise capitalista daquele período, no final do século passado, nós ainda

estávamos em busca dos tais “anos dourados do capitalismo”, os quais nunca chegamos a ver

e tocar, pois nunca nos pertenceram no plano material e histórico.


91

Feitas essas pontuações, passamos à análise das tendências mais consistentes nos

regimes de proteção social, tanto no centro quanto na periferia do sistema. A tendência mais

consistente, e por isso a principal tendência, tem sido o redimensionamento das políticas

sociais no interior dos sistemas de proteção social, o que acaba por desconfigurá-los, quando

não desmontá-los de fato. Esse redimensionamento das politicas sociais setoriais no interior

dos sistemas de proteção social são imperadas pela austeridade fiscal, produto da estrutural

crise fiscal do Estado Capitalista. Em termos claros, quanto menor o custo de uma política

social setorial, maior a probabilidade de ser mantida e ampliada. Quanto mais custosa uma

politica social, maior a probabilidade de perda massiva de qualquer protagonismo existente.

Como vimos, um sistema de proteção social não é apenas a sobreposição de políticas sociais,

mas a formação de um complexo de políticas sociais que em vez de apenas se sobreporem,

elas se articulam e se complementam, tudo isso com a égide do financiamento público, seu

pilar central. Ao mudar a importância e o lugar de cada política social setorial, os sistemas de

proteção social sofrem um violento e real processo de desconstrução, o que os ameaça

transformá-los num conglomerado de politicas sociais setoriais focalizadas e não articuladas,

mediadas pelo mercado.

De acordo com Sitcovsky (2010), a análise das transformações contemporâneas nos

sistemas de proteção social requer o conhecimento sobre as tendências que orientam a

intervenção estatal direcionada à mantença da reprodução da força de trabalho. Este autor

nos explica que o nascimento dos sistemas de proteção social são produtos do surgimento da

intervenção estatal nas situações de risco derivadas do trabalho. Quando observamos toda

aquela situação descrita e analisada por Engels (2010), vemos todo o emaranhado de riscos

derivados do trabalho, ou seja, as expressões da questão social produzidas pela condição de

“trabalhador livre”, de quem tem que vender a sua força de trabalho para sobreviver.

Sitcovsky (2010) nos aponta que a intervenção estatal na direção do enfrentamento desses
92

riscos jamais possuiu neutralidade, sendo primeiro interessada à própria manutenção do

sistema, de seu funcionamento e de sua legitimidade diante do povo, ou seja, diante das

massas trabalhadoras. Nas palavras deste autor,

embora as ações do Estado destinadas à reprodução da força de trabalho possuam um


invólucro de benefício, de conquista do trabalhador, são reveladoras de um importante
mecanismo de controle/disciplina da classe trabalhadora ocupada e excedente. Com isso,
imputa ao Estado a função de construir consensos (Sitcovsky, 2010, p. 89-90).

Juntamente a esse processo de controle e disciplina e a construção de consensos, temos

um importante mecanismo anticrises cíclicas do capitalismo no que se refere ao

enfrentamento do subconsumo (Netto, 2011; Sitcovsky, 2010). Nas palavras de Sitcovsky

(2010),

Isso significa que as políticas sociais ao garantirem parte da reprodução material da força de
trabalho, liberam, por seu turno, parte da renda dos trabalhadores para o consumo de
mercadorias. Nestes termos, as políticas sociais assumem um lugar estratégico na reprodução
ampliada do capital e se constituem como parte dos mecanismos anticrises (p. 89).

Portanto, temos um complexo de mecanismos que de forma articulada disciplinam e

controlam os trabalhadores construindo consensos pari passu à mantença da demanda pelo

consumo de mercadorias, possibilitando a realização dessas últimas e a continuidade do

ciclo do capital, um verdadeiro sopro de vida para todo o sistema. Neste ponto é necessário

um esclarecimento. O fato de considerarmos que a proteção ao trabalhador vem primeiro

interessada à manutenção do sistema não pode ser reduzida a um estruturalismo clássico,

acrítico. O fato de considerar que o sistema se volta à sua própria proteção ao angariar a

proteção dos trabalhadores em formas específicas e em situações materiais e históricas

específicas significa, em última instância, que a proteção social jamais partiu de uma

instituição neutra e se voltou a favor de um sujeito neutro, mas sim do Estado Capitalista para
93

os trabalhadores. E ao proteger trabalhadores, acaba por proteger a si mesmo, ao fim e ao

cabo. Noutros termos, ao proteger o sujeito da estrutura acaba por proteger, por conseguinte, a

própria estrutura. É nesse sentido que o reformismo progressivo não possui nada de

revolucionário, mais por questões materiais e históricas do que por quaisquer outras. Noutros

termos,

Importa ressaltar que a despeito de as políticas sociais se constituírem em antecipações


estratégicas das classes dominantes, estas são impensáveis sem a organização da classe
trabalhadora. Não resta dúvida de que ela adquiriu maior vigor, graças à luta de classes; o
Estado burguês reconheceu direitos sociais e implementou políticas sociais mais amplas.
Contudo, o reconhecimento de que a luta de classes é uma importante mediação para o
desenvolvimento das políticas sociais não pode servir de justificativa para operar uma
mistificação na qual se tenta apagar o conteúdo de classe do Estado (Sitcovsky, 2010, p. 90,
grifos do autor).

Este ponto é especialmente importante uma vez que as transformações no regime de

proteção social significam, em primeira instância, transformações nos mecanismos de

mantença da reprodução da força de trabalho e da demanda pelo consumo de mercadorias,

interessada ao próprio Estado Capitalista, sobretudo. Como já mencionado, em um momento

de crise do modo de produção capitalista que atravessa os vários Estados Capitalistas

existentes no mundo, uma das tendências mais relevantes se refere às transformações desses

mecanismos de mantença da reprodução da força de trabalho e da demanda pelo consumo de

mercadorias. No bojo dessas contradições e conflitos econômico-políticos contemporâneos

está a assistência social.

Assistência social e modo de produção capitalista possuem uma longa relação, a qual

tem se tornado cada vez mais íntima nas últimas décadas, na ordem neoliberal mundial. É isso

o que nos assevera Boschetti (2016). Para esta autora, desde a acumulação primitiva, até a

forma como hoje esse modo de produção se apresenta, assistência social e trabalho vivem
94

uma relação de atração e rejeição, a qual é contraditória e insolúvel dentro deste modo de

produção. Rejeição no sentido daqueles que têm o suposto “dever” de trabalhar, mesmo

quando não encontram trabalho, acabam por precisar da assistência social, mas não possuem

direito a ela. Assim sendo, o trabalho tolhe a proteção que provém da assistência social. E

atração no sentido de que a ausência de um deles, trabalho ou assistência social, impele a

classe trabalhadora para o outro, como um pêndulo, “mesmo que não possa, não deva, ou não

tenha direito” (Boschetti, 2016, p. 81).

Boschetti (2016) relembra que, para Marx (2017), a tensão entre as leis dos pobres na

Inglaterra e a exploração da força de trabalho atua como uma mediação na constituição da

superpopulação relativa. Pensando o presente, Boschetti (2016) afirma que o entrelaçamento

entre trabalho e assistência social continua a atuar ativamente no processo de formação da

superpopulação relativa. Como vimos, Marx (2017) define superpopulação relativa como um

contingente de trabalhadores desocupados, seja parcial ou totalmente com relação ao tempo

disponível. Esse contingente é profundamente heterogêneo, possuindo várias camadas. Uma

delas ele nomeou de superpopulação relativa flutuante, abrangendo os trabalhadores que num

momento são inseridos e noutro são expulsos das fábricas, minas, siderúrgicas e manufaturas,

indicando uma variável permeabilidade do mercado de trabalho a eles, caracterizada pela

rotatividade. A superpopulação relativa latente se refere aos trabalhadores rurais ou

camponeses que foram expropriados pelo capitalismo, mas que não são tão facilmente

absorvidos pelo mercado. A superpopulação relativa estagnada é constituída por uma fração

dos trabalhadores ativos, mas cuja ocupação é irregular. O pauperismo é o sedimento mais

profundo da superpopulação relativa estagnada, possuindo outras três camadas. A primeira é

formada por aqueles considerados aptos ao trabalho. A segunda se refere aos órfãos e crianças

indigentes e a terceira é composta por aqueles com capacidades para o trabalho altamente

degradadas.
95

Boschetti (2016) releva que a dicotomia capacidade/incapacidade para o trabalho,

juntamente com a assistência social, constituem um modo de mediar a reprodução da

superpopulação relativa, especialmente a estagnada. Para a autora

a relação de atração e rejeição entre assistência social e trabalho tem origem anterior à
consolidação da sociedade de mercado, mas perpetua-se na sociabilidade capitalista e
mantém-se no capitalismo contemporâneo, com matizes que alteram sua ênfase e abrandam
sua intensidade, mas mantém sua indissociabilidade no processo de reprodução da força de
trabalho (Boschetti, 2016, p. 96).

Na Europa, no período de expansão e consolidação do Estado social capitalista, no

âmbito do quase pleno emprego keynesiano, os seguros sociais provenientes do trabalho

assalariado minimizaram a tensão entre assistência social e trabalho. Nesse contexto, a

assistência social ocupava um lugar marginal no processo de reprodução ampliada do capital,

se restringindo à reprodução da superpopulação relativa estagnada. A política de assistência

social, mesmo quando alçava o patamar de direito social, se voltava com prioridade em

direção aos incapacitados para o trabalho ou, ainda, à expressão mais cruciante do pauperismo

(Boschetti, 2016).

Já nos países de capitalismo periférico, a situação é distinta. De acordo com Boschetti

(2016), nestes países, os quais não instauraram nem um Estado social ampliado e nem uma

“sociedade salarial”, a tensão de atração e rejeição entre assistência social e trabalho chega a

um ponto extremo. Tanto quanto maior o nível de desigualdade, o empobrecimento, o

desemprego e a ausência ou a impotência da proteção social vinculada ao trabalho como, por

exemplo, a previdência social, as pensões, o seguro desemprego e o seguro saúde, mais é

precisada e demandada a assistência social. Todavia, é precisamente nesses países que a

assistência social ocupa um lugar mais marginal ou até mesmo inexistente como política

social, sendo que suas ações, significativamente limitadas, circunscritas e focalizadas sofrem,
96

até hoje, com visões estreitas que a lançam aos domínios da filantropia, operando no limite da

reprodução da superpopulação relativa estagnada, incapacitada para o trabalho.

Entretanto, algo tem mudado, fazendo com que essa configuração dos sistemas de

proteção social não possa mais ser generalizada no presente. Tais mudanças tem uma

intrínseca relação com as “recomendações” de órgãos internacionais, representantes do grande

capital, como o Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco Mundial (BM), a Organização

Mundial do Comércio (OMC) e a Comunidade Europeia (CE). “Recomendações” no sentido

de que não há liberdade para os países escolherem ou não acatá-las. Aos países da América

Latina, por exemplo, o FMI e o BM condicionaram gordos empréstimos ao acolhimento, a

rigor, de um plexo de recomendações orientadas pelo ideário neoliberal. As aplicações dessas

recomendações pelos governos geralmente são postas como “reformas”, “ajustes fiscais”

inadiáveis pelo “bem” e pela “saúde” da economia desses países, o que não passa de uma

estratégia discursiva tecnocrática última a fim de dar legitimidade e construir consenso em

torno da austeridade desejada.

Behring e Boschetti (2011) nos disseram que reforma não é um termo a-histórico e

livre de localização e pertencimento no espectro político. A ideia de reforma foi forjada no

interior do movimento operário socialista europeu, que lutava em busca de melhores

condições de vida e trabalho para as massas trabalhadoras. O reformismo e seu sentido

redistributivo socialdemocrata, mesmo tendo fracassado em suas estratégias e sendo limitado

do ponto de vista de suas conquistas no capitalismo, é um patrimônio da esquerda. Destarte,

as autoras se referem a tais medidas como verdadeiras contrarreformas.

Essas contrarreformas são, de fato, formas contemporâneas de expropriações,

mecanismos de restauração do capitalismo frente à sua crise estrutural. Como vimos, na

acumulação primitiva ocorreram expropriações diretas dos meios de produção dos

camponeses e dos trabalhadores do campo, colocando-os numa condição de subsunção real ao


97

trabalho explorado. A única forma de sobreviverem seria curvando-se à acumulação

capitalista. Embora tais expropriações ainda persistam, Boschetti (2016) aponta o surgimento

de novas formas de expropriações que se realizam através da aplicação das referidas

“recomendações” das instituições econômicas internacionais. As privatizações diretas e

indiretas da previdência e saúde públicas são uma forma comum dessas expropriações

contemporâneas. Trabalhadores e trabalhadoras, ao terem seus direitos sociais de

subsistência derruídos, acabam por serem lançados numa condição a qual não há outra

escolha a não ser a disponibilização incondicional à venda da força de trabalho no mercado.

Noutras palavras, aqueles que necessitam de vender sua força de trabalho para sobreviver,

agora terão que fazê-lo sem qualquer critério, aceitando qualquer ocupação por mais precária

e desprotegida que ela seja. Tudo isso em função do mercado se tornar a principal fonte

possível de proteção. Doutra maneira, significa afirmar o aprofundamento de um processo de

mercantilização do que antes eram direitos sociais, ou seja, direitos essenciais à

sobrevivência, agora transformados em mercadorias. Seja qual forem os serviços ou bens

necessários à sobrevivência, trabalhadores terão que obtê-los comprando-os no mercado, o

que inclui, especialmente, serviços e planos de saúde e previdência privados, para além dos

gastos com alimentação, habitação, vestuário e transporte, por exemplo. Esses mesmos

trabalhadores hoje enfrentam um mercado de trabalho com empregos em sua maioria sem

proteção, com alta rotatividade e parca remuneração.

Essas contrarreformas, ao serem efetivadas, transformaram a configuração dos

sistemas de proteção social de diversos países. Em resumo, temos a seguinte explanação:

O Estado social mantém sua função de regulação e distribuição de parcelas do excedente


social e não deixa de participar da reprodução ampliada do capital, mas realiza as funções de
reprodução da força de trabalho e de manutenção da população não trabalhadora nos limites
da sobrevivência. No âmbito da previdência e saúde, a ação estatal se limita cada vez mais à
manutenção de sistemas públicos mínimos ou básicos (os chamados planos de base) e regula a
98

instituição de planos privados abertos e/ou fechados que se constituem em novos nichos de
acumulação. No âmbito do trabalho, reedita a antiga e insolúvel tensão entre assistência social
e trabalho, mas agora com novas nomenclaturas e configurações chamadas políticas de
ativação da proteção social (Boschetti, 2016, p. 137).

Em sua pesquisa, Boschetti (2016) constatou ser essa uma tendência que atravessa os

continentes: ao compasso da retração da proteção social em saúde, previdência e demais

seguros sociais vinculados ao trabalho, a assistência social tem se expandido paulatinamente.

Essa tendência é observada desde a Europa até a América Latina. Mas tal expansão ocorre de

uma forma muito particular e por motivos muito específicos.

A expansão da assistência social se expressa através das transferências monetárias

diretas, as quais passam a ter uma abrangência populacional maior, em detrimento do

investimento em serviços sociais. A assistência social passa a ter um protagonismo inédito nas

configurações dos sistemas de proteção social. Tal protagonismo não ocorre na forma de

estabelecimento de direitos sociais, ou seja, ocorre sem quaisquer garantias de continuidade a

nível constitucional. Numa direção totalmente oposta, essas transferências monetárias diretas

são estabelecidas enquanto programas e sua estrutura é recheada de condicionalidades para

a concessão e continuidade da oferta dos benefícios.

Esse protagonismo diante dos sistemas de proteção social tem relação direta com o

aumento do desemprego de longa duração, com as baixas remunerações e a informalidade e

desproteção no mercado de trabalho. Noutros termos, o protagonismo da assistência social é

prova viva da decadência da proteção social vinculada ao trabalho ou, se preferir, ao trabalho

protegido (Boschetti, 2016; Sitcovsky, 2010). Sitcovsky (2010) nos diz que esse

deslocamento da assistência social possui relação direta com a crise da sociedade salarial

enquanto um complexo de amplas e intensas transformações no mundo do trabalho, as quais


99

produzem um desemprego estrutural pari passu à rarefação do trabalho assalariado protegido.

Ainda nos dizeres do autor,

Na medida em que cresce o desemprego e o trabalho assalariado protegido deixa de ser,


gradativamente, para uma parcela crescente da população, o ideário de integração à ordem, a
assistência social, particularmente através dos programas de transferência de renda, com
política compensatória, parece cumprir este papel econômico e político, uma vez que
possibilita, ainda que precariamente, o acesso aos bens de consumo. Assim, a parcela da
população que não tiver suas necessidades atendidas nas vitrines do mercado, mediante os
seus salários, tornar-se-á o público alvo da assistência social. Isso denota a relação existente
entre assistência social, trabalho assalariado e intervenção do Estado na reprodução material e
social da força de trabalho (p. 118-119).

Neste contexto, as intervenções da assistência social são instituídas como programas e

não como direitos sociais, se tornam alvos fáceis do populismo e do clientelismo político. No

entanto, esse protagonismo é farsesco. Os dados revelam que o investimento dos países

latino-americanos em assistência social via transferências monetárias é irrisório quando

observado em relação à percentagem do Produto Interno Bruto (PIB). Isso mostra “que os

montantes dessas prestações assistenciais se destinam ao limite da sobrevivência na

reprodução da força de trabalho” (Boschetti, 2016, p. 163). Quando a autora fala em

prestações sociais que atuam no limite da sobrevivência, ela se refere expressamente ao

caráter ideológico das transferências monetárias. Muitas delas são os pilares centrais dos

famígeros programas de enfrentamento à “fome” e à “pobreza”, quando, na verdade, mantém

a fome latente e a pobreza intacta. Esses programas não enfrentam a pobreza, eles são uma

intervenção paliativa sobre ela. A pobreza é produzida pelo modo de produção capitalista,

acentuada em países de capitalismo periférico e dependente, sendo que sua forma e

composição dependerão da estrutura do mercado de trabalho. Apenas fortes e amplas


100

intervenções estatais no mercado mudariam essa composição, tudo isso a depender dos ciclos

econômicos, como vimos.

Boschetti (2016), ao falar em reprodução da força de trabalho, se refere à

funcionalidade estrutural destas transferências em relação à manutenção da existência de uma

fração da classe trabalhadora, mais especificamente, a superpopulação relativa estagnada, ou

seja, mantém no limite da sobrevivência uma fração altamente pauperizada, apta ao trabalho,

mas desocupada. Essa reprodução da força de trabalho não só mantém a legitimidade do

sistema, mas acaba por baratear a força de trabalho como num todo ao manter um imenso de

contingente de trabalhadores desocupados e disponíveis ao mercado, um verdadeiro exército

reserva de força de trabalho. Noutro ângulo, a estudiosa aponta que a expansão atual da

assistência social também tem sido uma efetiva estratégia anticíclica, no sentido de propiciar

uma estabilização econômica, o que significa afirmar que a assistência social garante a

reprodução ampliada do capital ao estimular o consumo e manter o ciclo do capital.

Nesse horizonte de expansão da assistência social, a forma em que é apresentada a

relação de atração e rejeição entre assistência social e trabalho se transmuta. Se o desemprego,

a precariedade nas relações de trabalho e o processo de pauperização propicia a atração de

trabalhadores à assistência social, são as chamadas políticas de ativação que expressam a

rejeição. Elas se perfazem na exigência de que trabalhadores realizem cursos e se inscrevam

em atividades específicas, além de outras requisições. As políticas de ativação, enquanto

condicionalidades para que os trabalhadores tenham os benefícios concedidos e que os

continue recebendo, expressam a rejeição, o afastamento entre assistência social e trabalho.

Muitas vezes, tais solicitações e a realização dessas atividades implicam situações

vexaminosas para os trabalhadores (Boschetti, 2016).

De acordo com Krein (2018), uma das formas que as politicas de ativação assumem é

o aprofundamento de ações voltadas à estimulação do famigerado empreendedorismo. O autor


101

aponta que se trata, na verdade, da continuação e do agravamento da administração do

desemprego, avançando em direção à uma lógica perversa de “incutir nos trabalhadores a

visão de empreendedorismo e empregabilidade como saída para um mercado de trabalho

hostil e escasso, o que constitui um grande problema para a construção de identidade coletiva”

(p. 98). Não sem motivos hoje assistimos ao boom do coaching, nada mais que um sintoma de

um mercado de trabalho profundamente inóspito, dada a precariedade das ocupações, as altas

taxas de desemprego e a violenta concorrência.

Sitcovsky (2010) nos lembra que

A tendência para o desemprego estrutural não se configura como um fenômeno


contemporâneo. Na verdade, esta é uma tendência inerente ao modo de produção capitalista,
que desde o século XIX foi enunciada por [...] [Marx (2017)]. A novidade consiste no fato de
a crise atual acentuar esta tendência e elevá-la a níveis jamais vistos na história (2010, p. 43).

É precisamente nesse contexto que “o desemprego estrutural é naturalizado e só resta a

preparação dos indivíduos para a brutal competição num mercado para poucos” (Behring,

2015, p. 189). No que concerne às necessárias considerações sobre o protagonismo da

assistência social diante dessas agudas expressões contemporâneas da questão social, se ainda

restar grandes lacunas depois da exposição do debate, é primordial apreendermos o

significado e a funcionalidade do protagonismo da assistência social subordinada à

acumulação de capital a partir do momento em que toma para si a responsabilidade principal

pela reprodução ampliada da superpopulação relativa em uma situação de exasperação do

pauperismo e de um processo generalizado e agressivo de precarização do trabalho (Boschetti,

2016). Ainda de acordo com a síntese desta autora,

Do ponto de vista político-social [...] em contexto de crise do capital, a assistência social é


capturada pelas mais insidiosas estratégias conservadoras, que a superdimensionam como
campo de proteção social, quando sua expansão, na verdade, consolida os processos de
focalização do Estado social na franja mais pauperizada e expropriada da classe trabalhadora.
102

Essa expansão da assistência social como principal estratégia de proteção social rebaixa a
dimensão e o significado dos direitos e serviços públicos e favorece a transferência do fundo
público ao capital. Em contexto de crise do capital, marcado pela bárbara destruição dos
direitos do trabalho, essa expansão da assistência social não consolida a universalização do
Estado social, como muitos querem nos fazer acreditar; antes, transmuta-o em espaço de
submissão da classe trabalhadora às mais ignóbeis formas de exploração e condições de vida
(2016, p. 18-19).

É nesse ponto que tomamos como sintomático o recente protagonismo da assistência

social tanto na Europa quanto na América Latina, conquanto seja emblemática a confusão

conceitual e prática que ocorre: tal política que em sua especificidade seria uma das variadas

formas de respostas à questão social, tendo a sua forma específica como característica o fato

de ser não contributiva, acaba por ser remodelada pelo ideário neoliberal, o que significa que

ela não só tenha como foco a pobreza e a miserabilidade, mas que ele venha a assumir

significativamente o lugar de protagonista da “proteção social”, no sentido de que assistência

social acaba por se confundir com seguridade social, sobrepondo-a.

2.3 Estado e as expressões da questão social no Brasil contemporâneo

2.3.1 Estado, acumulação e produção da questão social na transição ao neoliberalismo

Passados os anos e a persistência do famigerado discurso conservador e liberal de um

Brasil imerso em uma “crise política, econômica e social”, construído pela grande mídia para

dar conta de intervir e esquadrinhar os acontecimentos posteriores a Junho de 2013, a

contraposição marxista é a de lembrar que capitalismo é crise. As crises são uma condição do

capitalismo. Falarmos das crises do Brasil implica falar da crise de reprodução do capital em

escala internacional, a qual repercute e condensa, de maneira singular, em solo nacional. É

por isso que não faz sentido segmentar por absoluto as crises domésticas, sejam lá quais

forem, da crise de reprodução do capital internacional, pois, uma vez inserido na ordem global
103

do capital pelo violento processo de abertura econômica, os elos subterrâneos de

determinação entre o que acontece em termos políticos, econômicos e sociais no país e as

vicissitudes e interesses do capital internacional, de claro teor imperialista, de manutenção da

dependência brasileira, não apenas se cristalizaram, mas se fortaleceram sobremaneira

(Sampaio Jr., 2017).

Olhando para o passado com zelo aos movimentos do capital, observamos

continuidades em meio a rupturas entre o que é chamado de “transição da ditadura à

democracia”, outras vezes também denominado de “abertura democrática”. É interessante

notar que realmente se tratou de uma abertura de um regime, em termos políticos liberais, mas

muito da estrutura do regime autoritário permaneceu, de tal modo que as características gerais

são a de uma transição conservadora de poder, ou, como ficou também conhecido esse

processo, uma “transição por cima”, em que o aparato institucional autoritário e conservador

fora mantido e seus representantes inseridos formalmente na oligarquia política do país no

processo de abertura da Assembleia Constituinte. De acordo com Mascaro (2018), essas

transformações devem ser lidas como transformações da forma política estatal produzida pela

luta de classes em meio à crise de reprodução do capitalismo. É por esse motivo que este

autor sublinha a cautela preciosa ao lermos as transformações de 1988, não sendo possível

tomá-las em absoluto como uma ruptura em derradeira direção à democracia, apesar das

fortes pressões populares mobilizadas naquele momento. Em sua palavra,

a Constituição Federal resultou de um pacto entre classes e grupos dominantes do país,


mantendo, em linhas gerais, o arranjo institucional e social da ditadura militar. Não só a
Constituinte de 1988 foi convocada pelas autoridades competentes a partir do ordenamento
jurídico anterior, ditatorial, como também sua amplitude de atuação foi tolhida institucional e
socialmente pelos partidos, interesses, disputas e meios de comunicação de massa fomentados
pela ditadura (Mascaro, 2018, p. 79).
104

Noutros termos, a tal “abertura democrática” foi produto de uma perda da legitimidade

da ditadura durante grave crise econômica não apenas diante da população e dos movimentos

sociais, mas, de modo muito determinante, das burguesias nacionais, cada vez mais atraídas

pelos interesses do capital internacional e desconfiadas com o tamanho do Estado no período

militar. A queda de braços foi vencida por uma frente burguesa que era a favor da abertura

econômica, e a perda foi o que restou ao nacionalismo desenvolvimentista autoritário e

conservador. Nesse momento histórico na arena da luta de classes, as pressões populares e

democráticas obtiveram conquistas importantes, mas não absolutas. Se comparado com a

trajetória do país, a Constituição de 1988 angariou muitos avanços, porém, não chegou a

representar o conjunto de avanços esperados para a época. Behring e Boschetti (2011)

ressaltaram o quanto o princípio da universalidade proposto não possui a pretensão de garantir

direitos iguais a todos os cidadãos, embora assegure a saúde como direito universal, a

assistência como um direito para os que dela necessitarem, ao passo que mantém a

previdência sob a lógica do seguro social, tendo em vista a necessidade de contribuição direta

anterior. Em suma,

A seletividade e a distributividade na prestação dos serviços apontam para a possibilidade


de instituir benefícios orientados pela “descriminação positiva”. Esse princípio não se refere
apenas aos direitos assistenciais, mas também permite tornar seletivos os benefícios das
políticas de saúde e de assistência social, numa clara tensão com o princípio da universalidade
(Behring & Boschetti, 2011, p. 157, grifos das autoras).

Em confluência com essa “conquista incompleta”, a Constituição de 1988 foi

duramente atacada pela ofensiva neoliberal, abertamente antidemocrática, produzindo daí a

matriz contraditória insolúvel entre os direitos sociais garantidos numa Constituição em

profundo conflito desde os seus princípios norteadores em termos de proteção social, e as

transformações que o capitalismo brasileiro passa nesse processo de transição, as quais se


105

consolidaram com as contrarreformas dos governos seguintes, que garantiram a abertura

econômica e pavimentaram o caminho para a transição em direção ao neoliberalismo (Saad

Filho & Morais, 2018; Sampaio Jr., 2017; Mascaro, 2018).

Miguel (2019) chama a atenção para um fator particular e agravante no caso brasileiro:

a ditadura militar não entrou em colapso. Muito pelo contrário, ela negociou a transição

dispondo de consideráveis recursos políticos. Do início do declínio político do regime, o que

o autor chama de “distensão política”, até o retorno de um civil à Presidência da República se

passaram mais de dez anos. Isso evidencia, segundo o autor, um grau de considerável de

controle exercido pelos militares sobre o processo de “transição”. Em uma leitura precisa da

situação da transição brasileira, o autor declina qualquer ideia de desconsideração dos

movimentos sociais como forças ativas no processo histórico. Na sua proposta, os militares

negociaram em condições de vantagem em decorrência do controle que possuíam dos muitos

recursos, todavia, acabaram sendo forçados a negociar em função da ampliação das forças

populares.

Ocorre que a obtenção de conquistas na letra da lei, especialmente no caso das mais

democráticas possíveis, considerando as severas contradições mencionadas acima, produto da

correlação de forças naquele momento, não significa que a lei será cumprida, que o direito

será aplicado, que do dia para a noite ela transformará o Estado e a sociedade, cristalizando-os

assim por um certo tempo. Quando se trata de capitalismo as coisas não funcionam dessa

forma, sendo essa visão eivada de grosseiro voluntarismo. As ilusões que sedimentaram a

transição democrática brasileira, ressalta Miguel (2019), estão na crença que o processo de

superação da ditadura militar teria a democracia como um “pré-definido” “ponto de chegada”.

Poderíamos acrescentar, não só predefinido como predestinado nas visões mais românticas.

Todavia, como Mascaro (2013; 2018) apontou, a lei e o direito são instituições elementares da

reprodução capitalista: não há conquista permanente sem luta permanente sob o capitalismo.
106

Para que aquelas conquistas democráticas fossem realmente efetivadas, tornadas conquistas

reais, de fato uma transformação social, seria necessário a cristalização daquela mesma força

progressista ampla que fez com que na lei e no direito brasileiros de 1988 fossem inscritos

direitos sociais elevados, embora não livres de contradições e limitações, realmente de claro

cariz socialdemocrata europeu. Ocorre que esses direitos de outra época e lugar, de um

contexto específico da história do capitalismo europeu ocidental, exigiriam no mínimo a

mesma força social que os fez serem inscritos, que, no entanto, no Brasil pós-1988 entrou em

aprofundado declínio em direção ao colapso. A abertura econômica e o processo de

reestruturação produtiva solaparam o poder dos sindicatos e dos movimentos sociais de

esquerda e inundou a sociedade com a ideologia neoliberal. A transição ao neoliberalismo

provocou transformações significativas na sociedade brasileira. Uma representação dos

efeitos dessa transição pode ser extraída de Sampaio Jr. (2017).

Desde então, a conjuntura nacional passou a ser condicionada pelos ajustes que a lógica dos
negócios do grande capital e a corrida para mimetizar os estilos de vida das economias
centrais impõem ao processo de acumulação e dominação no Brasil. Ficou para trás um ciclo
de expressivo avanço das lutas populares, marcado pelo fortalecimento do movimento
sindical, o crescimento da igreja ligada à teoria da libertação, a ofensiva dos partidos
comprometidos com as causas das classes trabalhadoras e o fortalecimento de movimentos
sociais que lutavam pela democratização da sociedade brasileira. Teve início uma fase de
refluxo do movimento popular e de grande confusão e desalento nas hostes nacionalistas e
democráticas, caracterizada pela descrença na política e pelo culto irracional às virtudes do
mercado (Sampaio Jr., 2017, p. 11-12).

Esta visão aproximada sobre as transformações no capitalismo e as condições da luta

de classes no início deste novo milênio, publicada originalmente em fragmentos entre 1997 e

1998 permanece muito atual. Aquele momento de fervura das lutas populares realmente

pertence ao passado. Após aprovada, a Carta Magna exigia a chamada “legislação


107

complementar”, uma série de leis infraconstitucionais as quais possuem o papel de organizar

institucionalmente aqueles direitos sociais inscritos na lei para, assim, serem aplicados, para aí

sim tocarem na sociedade brasileira gerando transformações reais. Boa parte dessa legislação

social reguladora enfrentou problemas em sua elaboração e aprovação diante da avalanche

neoliberal e o arrefecimento dos movimentos sociais e instituições políticas de esquerda

(Miguel, 2019). Numa verdadeira digressão, a frágil e contraditória Constituição sofreu várias

contrarreformas. Era a liquidação de parte substantiva do sistema de proteção social que lutas

populares de esquerda ensejaram e conseguiram inscrever na lei e no direito brasileiros em

1988, mesmo em meio a reveses consideráveis. Sem condições de enfrentamento político e

social amplo, a transição ao neoliberalismo se cumpriu.

Todavia, isso não implicava que ele tivesse angariado imunidade em relação à sua

legitimidade.

Após anos de baixo dinamismo, forte instabilidade, acelerada intensificação das


desigualdades sociais e progressiva deterioração dos serviços públicos, no final da década de
noventa começaram a aparecer vários sintomas de que o “modelo econômico” enfrentava uma
crise estrutural que colocava em questão sua própria continuidade. As contradições inerentes à
inserção subalterna da economia brasileira na ordem global manifestaram-se com toda força
no ano de 2002 (Sampaio Jr., 2017, p. 49).

Sampaio Jr. (2017) discerne duas dimensões principais da assim chamada “crise do

Real”. No aspecto econômico, tratava-se de uma típica crise de estrangulamento cambial.

Diante de um profundo desequilíbrio entre o volume dos compromissos gerados pelo passivo

e a capacidade do Estado de gerar superávits comerciais, deixando em evidência a insolvência

das contas externas. A falta da famigerada “credibilidade” na moeda, ou seja, a medida que

separa países periféricos bons para exploração dos ruins, aqueles que ainda possuem

mecanismos de proteção social ainda em pé, mesmo que a trancos e barrancos, pois a fuga de
108

capitais seria a estratégia mais “segura” para os investidores estrangeiros. O autor evidencia a

absoluta recusa de FHC e sua equipe econômica de controlar os movimentos de capitais,

colocando as autoridades econômicas subsumidas ao mercado. No que toca à política, pela

primeira vez na década de 1990 o neoliberalismo tropeçava em relação à sua legitimidade. O

autor anotou que “o descontentamento com o neoliberalismo tinha determinantes estruturais”

(p. 50). Ao fazer o balanço da dificultosa trajetória do país, o mesmo resume que

Ao transformar direitos sob responsabilidade do Estado em serviços públicos, elevar


sistematicamente o volume relativo de recursos fiscais destinados ao superávit primário e
priorizar as políticas compensatórias em detrimento das políticas universais, as reformas
liberais solaparam a capacidade do Estado brasileiro de implementar políticas públicas
(Sampaio Jr, 2017, p. 50).

Olhando mais de perto ainda os movimentos do capital naquele momento, Saad Filho

e Morais (2018) estudaram a transição para o neoliberalismo enquanto um Sistema de

Acumulação (SA), uma forma mais concreta do modo de produção. O SA pode ser entendido

como uma fotografia do sistema em dada conjuntura, conseguindo captar as singularidades e

as tendências no capitalismo brasileiro em determinados aspectos. Os autores analisaram o

panorama da transição do SA anterior, a Industrialização por Substituição de Importações

(ISI) em direção ao neoliberalismo.

As reformas neoliberais no fim dos anos 1980 e no início dos anos 1990 foram justificadas
pelo suposto esgotamento da ISI, pela necessidade de melhorar a eficiência econômica e pelo
imperativo de controlar a inflação. Tais desafios forneceram cobertura ideológica para a
transição econômica da ISI ao neoliberalismo. [...] Demonstra-se que, embora tenha
continuado a ser uma economia desigual, dependente e geradora de pobreza após a transição,
o Brasil, em contraste com o período da ISI, tornou-se uma economia de baixo crescimento,
cujo desempenho foi permanentemente limitado pela ameaça de crises cambiais e de balanço
de pagamentos. Oscilações cambiais nos fluxos internacionais de capital desencadearam a
109

crise do real, em 1999, mas a causa última da crise foram as fragilidades criadas pela
transição neoliberal. Essas deficiências foram atendidas, em parte, pelo “tripé de políticas
macroeconômicas neoliberais” introduzido em 1999 (incluindo metas de inflação e
independência operacional do Banco Central, fluxos relativamente livres de capital e taxas de
câmbio flutuantes, além de políticas fiscais e monetárias contracionistas). Deste então, o tripé
tem governado a política macroeconômica brasileira (Saad Filho & Morais, 2018, p. 29-30,
grifos dos autores).

Essas variadas fragilidades são uma evidência material de que a dependência havia se

agravado sobremaneira. Em acréscimo, os autores propuseram uma visão sumária das

transformações ocorridas na transição para o novo SA e que implicara a produção, a estrutura

industrial e o nível e os padrões de emprego durante a década de 1990.

A liberalização das importações e a maior integração comercial do Brasil esvaziaram a base


manufatureira, fomentaram a reprimarização da economia e aumentaram a dependência do
país em relação ao comércio exterior, ao investimento e à tecnologia. O emprego no setor
manufatureiro declinou, e a capacidade produtiva caiu em setores-chave, em especial nos
ramos tecnologicamente mais sofisticados da indústria. Enquanto a economia perdeu
dinamismo e capacidade de criar “bons empregos”, o Estado tornou-se cada vez menos
capacitado a enfrentar os problemas do crescimento, da reestruturação produtiva e da
coordenação de políticas econômicas. Em paralelo, as reformas neoliberais foram
gradualmente incorporadas à Constituição, especialmente por meio de regras fiscais
justificadas pelos imperativos da estabilização da inflação e da “boa governança”. Com isso, o
neoliberalismo ganhou legitimidade e reforçou sua influência sobre o tecido institucional do
país, minando as aspirações democráticas incorporadas à Constituição (Saad Filho & Morais,
2018, p. 30).

A reprimarização da economia, explicam Saad Filho & Morais (2018), se constitui

uma involução econômica, na qual uma economia industrializada perde de forma gradual

parte de sua base manufatureira, ao passo que a participação da produção primária no Produto
110

Interno Bruto (PIB) se amplia. Ainda segundo os autores, a reestruturação produtiva em

direção ao neoliberalismo logrou taxas de desemprego e de empregos precários

consideravelmente mais altas que o SA anterior, a ISI. A esse processo Sampaio Jr. (2017) e

Boito Jr. (2018) denominam de especialização regressiva.

De acordo com Sampaio Jr. (2017), na segunda metade da década de 1990, de modo

aproximado, cerca de 40% da força de trabalho estava subempregada ou desempregada. Na

ausência de possibilidade de incorporação às indústrias modernas, as massas urbanas

marginalizadas viviam em desesperança, embebidas de ilusões de um misticismo

mercantilizado, entregues ao descaso do poder público e à violência advinda do crime

organizado. Com o meio urbano escasso de possibilidades de inserção, trabalhadores expulsos

do campo vagueavam pelo país. Além de agravar a crise na cidade e no campo, o autor

apontou que a ruptura das bases materiais que mantinham as correntes migratórias que faziam

o abastecimento do mercado de trabalho urbano fomentava processos ativos de segregação

social e elevava rivalidades regionais. A famigerada promessa de que as privatizações

atrairiam investimentos não se cumpriu. O acesso por brasileiros aos padrões de consumo das

economias centrais se restringiu ainda mais a um pequeno punhado de gente. Vimos a

desnacionalização da economia, orientada para o aumento da dependência do capital

internacional, iniciando uma fase de crônica crise da industrialização. Um verdadeiro

processo de reversão neocolonial. A fragilidade fiscal também se tornou uma marca do

Brasil diante da dependência financeira. Em suma, víamos nascer um capitalismo frágil diante

da alta concorrência internacional, eivado de crises e conflitos imersos em meio a altíssima

desigualdade social. Esses efeitos negativos e de caráter cristalizador do dano econômico e

social nacional parecem ter sido efetivamente sobrepostos pela ideologia dessa nova forma de

existência do capitalismo brasileiro. Era uma vitória arrasadora das forças burguesas que se

apoderaram das possibilidades de influências nas direções gerais do Estado e o transformaram


111

de forma significativa, tudo isso na ausência de resistências e enfrentamentos populares à

altura do valor do combate. Ainda na leitura de Sampaio Jr. (2017) sobre a década de 1990 e

os desafios do novo milênio,

No plano mental, a avassaladora hegemonia da ideologia neoliberal e a utilização


inescrupulosa de todos os meios para estigmatizar qualquer oposição ao status quo bloqueiam
a formação de uma visão crítica do modelo econômico, impedindo o amadurecimento na
opinião pública de opções de política econômica capazes de abrir novos horizontes para o
povo brasileiro. A ideia de que não existe nenhuma alternativa sustentável de política
econômica – uma bobagem incomensurável que de tanto ser repetida acabou ganhando
estatuto de verdade absoluta – explicita de maneira cabal o esforço sistemático de convencer a
opinião pública de que o neoliberalismo é irreversível. A obsessão de expressiva parcela da
população com a modernização dos padrões de consumo – produto de uma sociedade sem
projeto nacional que fomenta o consumismo desbragado e endeusa a cópia dos estilos de vida
das economias centrais – constitui um obstáculo adicional, certamente o mais difícil de ser
superado, à construção de uma “vontade política” capaz de romper com o neoliberalismo. A
mera possibilidade de se verem marginalizados das últimas novidades dos mercados centrais
suscita reações histéricas que comprometem a possibilidade de um debate racional sobre as
opções mais adequadas para impulsionar o desenvolvimento nacional (p. 31-32).

Tem sido assim o caminho em direção ao neoliberalismo. Esse “sucesso” da transição

não teria sido o mesmo sem um governante tão empenhado em entregar a nação ao capital

internacional como FHC. O período FHC, considerando desde a sua direção institucional do

Plano Real como ministro de Itamar Franco até as contrarreformas dos seus dois mandatos na

cabeça do executivo nacional, é de fundamental importância na história do país em função de

seus impactos na relação entre modo de produção e formação social. Para longe de suposições

de uma dependência antiga, arcaica e colonial, expressa nas vicissitudes do país durante o

século XX, a estrutura atual da dependência do capitalismo brasileiro tem raízes recentes, que

agravaram a dependência estrutural já existente. Desde a dita “transição” para a democracia,

passando pelas contrarreformas de Collor de Melo e Itamar Franco, seguidas pelo período
112

intensificado de contrarreformas da era FHC, a dependência brasileira foi reformulada e

agravada. Anderson (2019) cita este como o curioso caso no qual um outrora sociólogo

especializado na dependência do capitalismo brasileiro, após sua guinada ao neoliberalismo e

sua passagem pelo executivo nacional, deixou o país mais dependente do que já era. Os

desafios para a transformação social se agravaram ao mesmo passo em que foi iniciada uma

era de contrarreforma compulsória (Sampaio Jr., 2017; Saad Filho & Morais, 2018).

O discurso da estabilização da inflação com o Plano Real se mostrou enganoso com o

passar do tempo. Muito pelo contrário, a nova moeda havia se tornado o elemento-chave das

novas fragilidades, a saber, tendências de baixo crescimento e de grandes dificuldades no

balanço de pagamentos. O Brasil atravessava o milênio com um aumento de circunscrições

reais em termos de graves fragilidades de solvência fiscal e aumento da desigualdade em

função da alta concentração de riquezas no regime de acumulação neoliberal. As

transformações na acumulação são um par com os padrões de produção da questão social no

país, sendo duas faces de uma mesma moeda. Em termos gerais, esse SA tem como

características tendenciais baixas taxas de crescimento, baixa formalização, desemprego

estrutural e produção de empregos precários e desprotegidos em termos de direitos sociais

vinculados ao trabalho.

Essas são as sequelas da questão social diante do vigente regime de acumulação de

capital no Brasil. Uma forma sui generis de capitalismo financeirizado numa formação social

de raiz colonial e escravocrata, profundamente conservadora e autoritária, dependente de

nascença e tomada como objeto de expiação da crise do capital em escala mundial desde o

fim do século XX em diante. Daí a constatação de uma investida neocolonial nua e crua

contra os países da periferia do capital, um produto do imperialismo em sua existência

contemporânea num contexto de inserção periférica e de uma economia cada vez mais
113

financeirizada. Sendo esta a situação do Brasil contemporâneo, cabe investigarmos mais de

perto as fragilidades fiscais e cambiais e suas determinações para a proteção social.

2.3.2 Proteção social no capitalismo brasileiro contemporâneo

Falar em proteção social no capitalismo contemporâneo se refere especificamente às

investigações e análises de padrões, tendências e regularidades observadas no sistema de

proteção social brasileiro, instituído em 1988, quando da transição ao neoliberalismo e a

história da disputa entre capital e trabalho pelo Fundo Público. O que está em jogo aqui é a

proteção social incompleta inscrita na lei e no direito brasileiros e seu inevitável conflito com

a forma contemporânea de existência do capitalismo.

Proteção social no capitalismo se refere às variadas formas de tratamento sistemático e

organizado das sequelas da questão social que emergem por parte do Estado, diante de

conflitos de classes ou, propriamente, da luta de classes no contexto do capitalismo

contemporâneo, neoliberal, e suas contradições. “Proteção social” não deve ser entendida

como algo positivo per se ou como um produto de uma disputa de forças num Estado neutro,

imparcial, impessoal, em suma, justo. Não, proteção social é uma demanda insolúvel ao

capital em crise, a saber, a exigência de boas condições de vida e trabalho para a grande

maioria da população. Proteção social é sinônimo de política social no capitalismo

contemporâneo nas direções da crítica marxista da crise (Behring, 2015; Behring & Boschetti,

2011; Boschetti, Behring, Santos & Mioto, 2010; Salvador, Behring, Boschetti & Granemann,

2012; Mota, 2010). Portanto, a proteção social é um problema no capitalismo, principalmente

em seu modo de acumulação neoliberal, profundamente impermeável às demandas das

massas, tornando toda luta por proteção social, enquanto uma garantia inteiramente pública,

uma questão de luta de classes. É neste ponto que proteção social se equivale à questão social
114

enquanto o que de fato ela é, uma questão, um problema estrutural dos modos de existência

do capitalismo.

Em acordo com as tendências mundiais, quanto mais a transição ao neoliberalismo

avançava um cenário adverso se cristalizava no campo da proteção social no país. Tanto pela

despolitização e apassivamento da sociedade quanto pelas novas fragilidades estruturais do

Estado adquiridas na transição.

O aumento acelerado do passivo externo tem como contrapartida a expansão exponencial da


dívida interna. Na fase inicial de cada ciclo de endividamento externo, a dívida do setor
público aumenta porque, para incentivar a entrada de recursos externos, os juros dos títulos
públicos são fixados num patamar muito superior aos juros externos, dando início a uma
ciranda financeira. Quando a economia fica sob a ameaça de estrangulamento cambial, a
dívida pública aumenta ainda mais porque, para desestimular a fuga de capitais, as
autoridades jogam os juros na estratosfera e socializam os prejuízos do grande capital,
estatizando o risco da desvalorização cambial e cobrindo os prejuízos de quem foi pego no
contrapé do movimento econômico (Sampaio Jr., 2017, p. 26, grifos nossos).

Sampaio Jr. (2017) ainda chama atenção para a constatação de uma dinâmica

eminentemente financeira de expansão da dívida pública. Ele utiliza os próprios governos

FHC como exemplo: mesmo não havendo muita “gastança”, realmente, a dívida pública

galopou. Isso significa que independente dos gastos públicos a dívida pública sobe. O

discurso neoliberal contra um suposto Estado “gastador”, cheio de garantias “excessivas” e

“limitadoras da liberdade econômica”, que estabelece uma relação de causa e efeito entre

gastos públicos e aumento da dívida pública não condiz com a realidade do vigente modo de

acumulação. No mais, é necessário lembrar uma coisa elementar em termos de economia

política: o modo de produção capitalista é um sistema organizado em torno da rolagem de

divida pública. A suposição que o discurso neoliberal dá de que a dívida pública deva ser
115

enfim sanada algum dia é ilusório. Na verdade, o que se quer é a confiança do capital

internacional, eleito o grande financiador do capitalismo brasileiro pelo Plano Real, e a

rolagem da dívida pública num nível que garanta a manutenção da acumulação em níveis

“bons” diante da concorrência internacional. Sampaio Jr. (2017) ainda põe em relevo a

herança histórica da dependência se aprofundando uma vez mais num país de dimensões

continentais, apontando que o “subdesenvolvimento brasileiro está relacionado

fundamentalmente à persistência de um extremo primitivismo nas relações sociais que regem

os mecanismos de exploração e dominação” (p.13), uma tendência extremada com a nova

divisão internacional do trabalho.

Uma visão tanto mais aproximada quanto mais cautelosa irá mostrar que o problema

está na relação determinante entre o serviço da dívida pública e a variação da taxa de juros em

função da política monetária adotada, sempre de teor ortodoxo, contracionista, algo amarrado

institucionalmente em função da autonomia (leia-se: autorização para ser despótico com as

massas) do BC. O aumento da dívida pública é produto de uma política econômica que no

furor da busca desesperada de manter o controle sobre a inflação, acabou por se entregar de

corpo e alma às exigências do capital financeiro (Sampaio Jr., 2017). O problema estava

inscrito na própria fragilidade estrutural da moeda chamada Real, sempre onerando as massas

em casos de perdas. A política de socialização dos prejuízos se tornou um fardo adicional nas

contas públicas. As contas externas sofrem cíclicas ameaças de desestabilização em função da

fuga de capitais. A gravíssima fragilidade cambial e fiscal da economia brasileira é um arranjo

econômico-político que impede uma proteção social nos termos constitucionais.

Em ciclos de baixo crescimento e pouca “credibilidade” fiscal, ou seja, uma negativa

relação dívida/PIB e perspectiva de alta do risco de solvência, as saídas no plano da política

econômica são sempre contracionistas, estando condenada a, de tempos em tempos, propor, a

qualquer preço, novos ciclos de desnacionalização, ou seja, privatizações, para atrair capital
116

internacional em busca de estabilizar a balança comercial. É como se a nação tivesse que cada

vez ficar mais e mais imóvel e dominada pelo mercado num intenso processo de exploração e

expropriação pelo capital internacional. Sampaio Jr. (2017) fala na tendência de crise

permanente, ajuste fiscal sem fim e intensificação da insatisfação social das massas. Ao

analisar a transição ao neoliberalismo na década de 1990, o autor faz uma análise que mostrou

não ser conjuntural, mas sim uma tendência do Estado brasileiro no neoliberalismo.

[Havia uma] verdadeira blindagem legal que imobilizava o Estado diante dos grandes grupos
econômicos. O poder descomunal do grande capital de sabotar toda iniciativa que pudesse
representar uma ameaça à continuidade do neoliberalismo inviabilizava qualquer
possibilidade de mudança no rumo da política econômica sem uma abrupta e traumática
desorganização da economia. Impotente para coibir processos desestabilizadores que colocam
a economia na beira do caos, o país fica refém do terrorismo de mercado e, nos momentos de
crise aguda, não tem alternativa senão celebrar a tutela do FMI (Sampaio Jr., 2017, p. 31).

Terrorismo de mercado, essa foi a expressão que Sampaio Jr. (2017) utilizou para se

referir ao caráter manipulador do “mercado”, uma alegoria do capital internacional, altamente

capaz de definir suas vontades através de seus gritos transcritos em quedas “relâmpago” na

bolsa de valores (IBOVESPA), na fuga de capitais em massa e na desvalorização da moeda a

cada vez que alguma decisão política ou jurídica que envolva alguma perda mínima, ou seja,

alguma leve diminuição na intensidade do processo de exploração e expropriação das massas

trabalhadoras brasileiras, se mostra a vista de uma possibilidade real, mesmo que distante.

Isso ocorre principalmente em períodos eleitorais ou de votações parlamentares de temas de

interesse do capital. A grande mídia tem esse “mercado” como um grande chefe

supranacional de interesses dele mesmo, o capital internacional. Portanto, ao canalizar a voz

do capital internacional sobre as direções da nação, cada político se vê refém e, na maioria das

vezes, dá um passo atrás ou um para o lado direito à posição que havia assumido sobre
117

determinado assunto. A autonomia do BC é um ponto nodal na blindagem da democracia

brasileira contra o capital: a autoridade máxima desta instituição, geralmente um “homem

branco rico do mercado financeiro”, figuras ortodoxas em termos de política econômica,

justamente por essas características e pela sensibilidade às reações das oligarquias da mídia,

ele acaba respondendo sempre da mesma maneira, elevando os juros no afã de controlar a

inflação. Junto com os demais elementos da Lei de Responsabilidade Fiscal de FHC, a qual

determina que toda política atenda sempre ao chamado tripé macroeconômico neoliberal, está

formada a blindagem da democracia contra o capital no Brasil.

Em tempos de “crescimento” econômico, há quem seja pego na ilusão de crer que o

Brasil possa se “emancipar” de alguma forma. Ocorre que o SA flexível brasileiro não

funciona dessa forma. São estruturas e tendências. A existência de tendências de baixas taxas

de crescimento, baixa formalização, desemprego estrutural e produção de empregos precários

e desprotegidos em termos de direitos sociais vinculados ao trabalho determinam em boa

medida o futuro, afinal de contas, são tendências. Assim que o ciclo de prosperidade

internacional passa, ele leva junto qualquer “alívio” do Brasil obtido pelos anos de

crescimento.

Quando o fluxo de recursos externos é favorável ao país, o impacto nefasto da inserção


subalterna na economia mundial sobre o nível de emprego, a distribuição de renda e os
desequilíbrios regionais é menor do que quando há uma inflexão no movimento de capitais e
os recursos voltam a se dirigir para fora do país, forçando um ajuste abrupto da economia para
pagar o sobre-endividamento da fase anterior. Neste segundo momento, desdobramento
inexorável do primeiro, a necessidade de gerar megassuperávits comerciais obriga o país a
adotar políticas restritivas draconianas que agravam ainda mais os efeitos desorganizadores da
nova dependência sobre o sistema econômico nacional (Sampaio Jr., 2017, p. 19).

É importante notar os contornos do realismo através do qual o autor denuncia a

gravidade da situação brasileira, pois mesmo quando o país “ganha”, perde, seja com
118

investimento externo positivo, mas sem crescimento, ou crescimento alto com pouca

redistribuição, poucas mudanças nos níveis de desemprego, baixa formalização do trabalho e

pouco ou nulo avanço tecnológico para a exportação (manufatura). Quando “perde” em

tempos de recessão as coisas se complicam ainda mais. É importante notar uma questão

central em relação aos ciclos de crescimento e a crise “fiscal” do Estado no capitalismo, uma

expressão da crise do capitalismo contemporâneo. Sampaio Jr. (2017) aponta, assim como

O’Connor (1977) propôs, que a crise de sobre-endividamento do Estado é sempre produto de

uma expansão dos gastos na imediata fase de crescimento anterior. Em razão disso, esse

último fala em dividendos de crescimento e seu imediato remédio, a tributação forçada,

aumentos de impostos de forma regressiva em função da socialização dos custos da crise. Em

relação ao caso brasileiro, Sampaio Jr. (2017) propôs uma tendência importante: a existência

de ciclos efêmeros de expansão e “euforia” – palavra que o autor utiliza para se referir às

ilusões crescimento na dependência – em contrapartida a ciclos cada vez mais longos de

recessão e austeridade fiscal contra a proteção social. Não há espaço, portanto, para a proteção

social no capitalismo brasileiro, neoliberal. A dependência do capital financeiro e sua

maquinaria de guerra, o mercado, não possibilitam mudanças de nenhum tipo reformista, de

fato, em um capitalismo em crise. Sobram apenas tonalidades distintas e, no máximo,

heterodoxas de contrarreformas. É a era neoliberal no Brasil e sua tendência estrutural de um

específico processo de contrarreforma compulsória.

Enquanto uma crise do Estado Capitalista, ela se irradia por todas as capilaridades

deste mesmo Estado afetando, assim, o que chamamos de “pacto federativo”. Trata-se de uma

divisão ideal das responsabilidades em face da distribuição de recursos entre cada ente

federativo: união, distrito federal, estados e municípios. As crises dos estados e de alguns

municípios é atravessada por esta mesma estrutura de crise fiscal, formando um conjunto de

várias espirais em escalas graduais de endividamento e instabilidade política em função da


119

crise fiscal. No Brasil esse processo é mais perverso ainda, uma vez que o “pacto federativo”

inaugurado em 1988 responsabilizou estados e municípios por executar programas de

assistência social, saúde e educação, sem, contudo, garantir os valores de recursos necessário

para tais ações de proteção social. Foi assim que se produziu a presente situação crítica de

estados e municípios país adentro. Em um relatório, ao comentar o estabelecimento do teto

durante o governo ilegítimo de Michel Temer em 2016, a Firjan (2017) afirma o seguinte:

O desequilíbrio fiscal e a necessidade de ajuste das contas públicas, nos três níveis de
governo, têm dominado o debate econômico. [...] Nos estados e municípios, o quadro fiscal
talvez seja ainda mais grave, na medida em que sequer há recursos para pagar funcionários e
fornecedores em alguns casos, prejudicando muitas vezes a prestação de serviços públicos
essenciais. De fato, diversos entes federativos estão à beira da insolvência, tendo como
agravante o fato de que já estão descumprindo os limites impostos pela Lei de
Responsabilidade Fiscal – LRF. Isso significa que, além dos riscos fiscais, há riscos sociais e
politico-institucionais (Firjan, 2017, p. 1).

Ao elaborar esta Nota Técnica, a Firjan (2017) aponta que o “grande desafio” a um

equilíbrio fiscal, no caso da maioria dos estados, é a “despesa com inativos e pensionistas”,

considerando que é um grande desafio às contas públicas estaduais, em função do volume de

contribuições não fazer frente ao de benefícios, pincipalmente em tempos de recessão, quando

a arrecadação entra em declínio. O documento ainda mostra que no total apenas três estados

(Rondônia, Roraima e Amapá) não fecharam o ano no vermelho em termos de previdência.

No mais, é explicitado o nível de fragilidade fiscal dos estados em tempos de recessão,

especialmente em função da perca da possibilidade de financiar investimentos públicos, em

franco declínio na maioria dos estados, exceto Piauí, Bahia e Ceará. Contudo, a solução desta

instituição é um pacote de privatização a fim de “esquentar o mercado” e “gerar empregos”.


120

Só esqueceram de detalhar que este “novos-velhos” empregos serão mal remunerados e

desprotegidos.

A situação dos estados é tão grave que as “maquiagens nos indicadores fiscais”, que

depois se transformaram nas tais “pedaladas fiscais”, se tornaram um padrão nos Estados e

municípios. A Pública vasculhou manifestações dos Ministérios Públicos de Contas (MPCs) e

pareceres prévios dos Tribunais de Contas dos estados (TCEs). Analisou também os votos de

alguns de seus conselheiros em 20 estados da federação, no intervalo entre 2013 e 2014, e

acabou por considerar ao fim que, na corrente interpretação geral do conceito, pelo menos 17

governadores “pedalaram impunemente” (Medeiros, 2016, s/p). Esses governadores

claramente exploram formas ilícitas como essa para lidar com o risco de situações fiscais

adversas a até casos de insolvência fiscal. Em situações como essas os governos estaduais e

municipais são levados, estruturalmente, a buscar empréstimos com a União, a qual

geralmente concede, mas desde que sejam realizadas contrarreformas geralmente relacionadas

ao funcionalismo público estadual e municipal. É como se a União, diante de estados e

municípios, operasse como um FMI e um BC internos.

Por fim, vemos o Estado sendo chamado a administrar a crise. É neste ponto alto da

relação entre Estado e capital que vemos o quão raso é a representação de um Estado menor

em favor das vontades do mercado. Trata-se da exigência do capital ao Estado de que ele

assuma com rigidez inescrupulosa o lugar de sujeito administrador da crise, responsável

pelo despotismo de socializar perdas do capital ou atender suas ambições de valorização e

escoação de excedentes, acabando por atuar como um fiel e competente capitão do mato

personificado nos movimentos da forma política estatal no Brasil contra as massas

trabalhadoras. A modernização conservadora se restaura de uma forma diferente. Não é mais

o Estado que assume as iniciativas que “comumente” o capital assumiria, como investimento

em infraestrutura, por exemplo. É, em suma, um Estado que não consegue assumir com
121

competência esse vácuo do capital na infraestrutura em função de viver em crise fiscal quando

não cambial também. É um novo Estado com seu mecanismo acorrentado a uma política

econômica neoliberal fundida numa Constituição que no início possuía elementos

socialdemocratas em termos de proteção social, embora seriamente limitada pelas

contradições nos princípios nela inscritos, mas que com o passar dos anos se desidratara mais

e mais. Sampaio Jr. (2017) caracterizou a dependência restaurada como dotada de um

imobilismo desagregador. O autor segue dizendo que se trata de

um padrão ultraconservador de administração das crises econômicas baseado na socialização


dos prejuízos e na privatização dos benefícios. Para tanto, seria necessário enfrentar aquele
que talvez seja o mais perverso legado da era neoliberal: a cristalização de uma teia
institucional e de uma estrutura mental que procuram por todos os meios eternizar o
neoliberalismo no Brasil (Sampaio, Jr. 2017, p. 51).

Talvez esse seja o nosso maior desafio. Em suma, uma democracia frágil e um sistema

de acumulação frágeis, como apontam Saad Filho e Morais (2018), não poderia lograr possuir

outro padrão de proteção social que não um correspondente à sua situação, ou seja, o sistema

de proteção social que ainda existe no país se desenvolveu e tomou uma forma frágil,

tomando formas que poderiam classificar como sistemas de proteção social residuais e em

alguns aspectos conservador.

A partir da próxima seção nos dedicaremos especificamente à discussão da revisão

sobre as formas de tratamento das expressões da questão social nos governos petistas.

3. Proteção social nos governos do PT

3.1 Alguém disse neoliberalismo?

3.1.1 Sobre a situação dos governos petistas

A democracia brasileira permite que de tempos em tempos uma chefia e um substituto

concorram em eleições majoritárias para o executivo federal. Entretanto, essa mesma


122

“democracia” limita as ações de seja lá quem for que chegue a esses cargos, havendo um arco

muito circunscrito de ações dentro das limitações da Constituição de 1988 e das amarras da

política contracionista compulsória forjada e legitimada pelo Plano Real e nas contrarreformas

que dilaceraram a Carta Magna de 1988 na transição ao neoliberalismo enquanto sistema de

acumulação. É uma “democracia” que não cabe, por exemplo, um sujeito eleito dizer que

mudará o sistema de acumulação vigente no país, seja lá em qual direção for que não a de

submissão voluntária ao capital internacional, mesmo possuindo os votos para tal. Cumprir

qualquer promessa desse tipo implicaria a queda da República, pois no ordenamento da

democracia vigente nenhuma mudança brusca é cabível, especialmente em direções

populares. A simples ameaça de qualquer mudança estrutural seria motivo de queda da bolsa,

desvalorização da moeda e instabilidade econômica generalizada e um furdunço da grande

mídia que inflama a esfera pública oligárquica, colhendo crise política como processo e a

crise institucional como movimento agudo de tentativa de administração ou lapidação da

crise, momento em que o Estado Capitalista mostra a sua verdadeira face, quando o ponto de

chegada é o mesmo da largada na corrida pela manutenção do padrão de acumulação

dependente flexível que saiu vitorioso na “transição por cima” da ditadura à “democracia”,

razão última da utilização destas aspas explicitando a substância, ordem e estrutura de uma

democracia altamente antidemocrática, na qual qualquer passo a um lado que não seja à

direita levará a consideração de “soluções extremas” como golpes de Estado. Trata-se,

portanto, da arapuca da contrarrevolução permanente.

Foi precisamente nesta democracia gravemente circunscrita que em 2002 o PT foi

eleito, iniciando uma trajetória de 12 anos nessa chefia. Como as tendências estruturais

determinavam, o Estado deveria continuar a ser responsável e competente em seu papel

compulsório de sujeito administrador da crise do capital. A mudança da chefia pelo sufrágio

universal apenas indicava uma mudança de uma peça importante na direção dessa “atuação”
123

estatal, mas nem de longe algo como uma força institucional independente ou com um

poderio amplo, em exceção das Medidas Provisórias (MP), um instituto conservador e

autoritário presente na Constituição de 1988 (Behring & Boschetti, 2011; Boito, Jr., 2018). As

forças militares contam com uma institucionalidade própria, detém parcelas significativas do

orçamento público da proteção social e integram uma fração considerável da classe média

oligárquica (o vulgo corporativismo militar), operando de fato como um quarto poder, a qual

busca a mantença de considerável nível de renda tanto quanto de militarização do aparelho

repressor, em contraposição ao poder civil, contando até mesmo com seu próprio Tribunal,

militar. Esses são pedaços vivos do corpo da ditadura na democracia que se consolida em

1988. A extrema concentração e desregulação dos meios de comunicação, os quais conectam

oligarquias nativas e capital internacional em suas causas comuns exercendo um papel de

“esfera informal de representação política” (Miguel, 2019). Quanto mais estreita essa

representação, atenta Miguel (2019), pior é a qualidade da mídia tanto quanto da própria

democracia. O judiciário é outra instituição de longe importantíssima, pois comprometida na

manutenção dos seus próprios privilégios, sendo um dos judiciários mais caros do mundo,

tomando fatias consideráveis do orçamento público, embora profundamente ineficiente, sendo

ao fim e ao cabo não a última barreira na proteção da Constituição de 1988, mas o meio

estratégico de manutenção do vigente sistema de acumulação, do qual fazem parte

intrinsecamente (Mascaro, 2018; Boito, Jr., 2018). Nunca é demais lembrar o quanto o

presente regime de acumulação é possui incompatibilidades com a limitada proteção social

outorgada em 1988 através de pressões populares. Portanto, o Judiciário e o STF em

particular, são responsáveis pela manutenção dos pilares antidemocráticos da democracia

brasileira forjados a partir de Collor e FHC.

Portanto, o problema de quem achou que um governo sem grande mobilização

organizada daqueles que vivem do trabalho nas ruas e nos campos conseguiria realizar os
124

direitos sociais constitucionais, ou seja, uma ruptura com a ordem vigente – considerando a

interpretação marxista contemporânea de que qualquer transformação dessa envergadura

requer revolução, uma drástica transformação social – está na teoria política dessas pessoas. É

um equívoco considerar o Estado um espaço neutro. As disputas em busca de permeabilidade

popular no Estado são sempre uma caminhada perigosa em um campo minado, quando não de

amarras institucionais conservadoras e autoritárias, patrimonialismo, coronelismo,

clientelismo e corrupção, é tomado por um estamento de sereias da ordem vigente. Singer

(2018) mostra de forma contundente e detalhada o tortuoso caminho do PT nessa trajetória,

explicitando o peso e o alto nível de entrelaçamento desses riscos no caso particular do Estado

dependente brasileiro.

A polêmica em torno da análise dos governos do PT tem se cristalizado na discussão

em torno das investigações sobre o peso do partido e de suas duas figuras eleitas no balanço

geral do período de doze anos. Existe a denúncia de uma substância e forma moralista de

certas discussões (Mascaro, 2018). Tanto Mascaro (2018) quanto Miguel (2018) minimizam

as possibilidades do partido diante do poder das estruturas, embora ancorem suas intervenções

em estruturalismos diversos e divergentes. O primeiro é tardiamente althusseriano e realiza

um regate de Evguiéni Pachukanis, o segundo bebe nas fontes do último Nicos Poulantzas e

de Claus Offe. Contudo, ambos concordam, embora cada um a sua maneira, de que quanto

mais próximo dos centros de decisão do Estado, mais restringida qualquer ação se torna. A

ausência de massas populares organizadas e de espaços de pressão popular determinam o

fracasso de qualquer aventura democrática que fuja ao status quo.

Todavia, é fundamental lembrar um fato que, se visto pelo prisma monocromático dos

limites da democracia brasileira, leva o debate em outra direção. As transformações do PT em

direção ao centro do espectro político, as vezes se localizando na direita, propriamente, não é

algo que ocorreu na virada do milênio, próximo às eleições que se avizinhavam. O PT que
125

chegou ao poder já não era há muito o mesmo de sua fundação (Saad Filho & Morais, 2018).

Segundo Boito Jr. (2018), desde as greves contra a abertura financeira no final da década de

1990 até a campanha contra a Área de Livre Comércio das Américas (ALCA) em 2002, Lula

e o PT já teriam se aproximado consideravelmente da “grande burguesia interna” na própria

convergência de interesses contrários à abertura financeira e à ALCA, embora houvesse,

claro, muitas divergências, principalmente por parte do movimento sindical e das bases do

próprio partido. Ocorre que mesmo assim as reações às apostas do partido quando no poder

executivo federal pela primeira vez causaram boa dose de estranhamento e decepção de

setores da sociedade no início do que seria a trajetória dos governos petistas (Sampaio Jr.,

2017). Nota-se um deslocamento no espectro político do partido que não havia sido de todo

assimilado pela sociedade. Considerando os poucos partidos “ideológicos” – com uma

mínima coerência programática e ligações com movimentos sociais – que temos no país, o PT

era claramente um partido de esquerda. Isso fez muita diferença. Quando considerada a

desigualdade existente no país e a história da origem do partido, é plenamente compreensível

que a vitória de Lula em 2002 tenha despertado esperanças de mudanças, apesar do partido ter

se tornado outro (Santos, 2017). Para continuarmos, é necessário marcarmos as linhas que

separam uma simples interpelação moralista de um balanço crítico da economia política sobre

o período. Como Mascaro (2018) salienta, o PT não pode ser exigido de expectativas sociais

outras, distintas das suas próprias. Muito pelo contrário, o partido deve passar pelo crivo do

que de fato se propôs a fazer e não conseguiu efetivar.

3.1.2 O caminho do neoliberalismo: a reversão conservadora contra a proteção social

Em primeiro lugar, cabe ressaltar a importância de tomar como central nas análises os

custos de uma “transição pelo alto”: uma democracia antidemocrática. São muitos adjetivos

utilizados nos textos para descrevê-la: limitada, restringida, blindada, frágil, dependente.
126

Portanto, uma democracia frágil é constituída por uma sistema político-eleitoral também

frágil, uma representação política também limitada, restringida, blindada. As análises

demonstram que o PT chegou ao poder do executivo nacional ao se transformar o suficiente

para caber nas circunscrições da democracia após a transição ao neoliberalismo. O partido

percebeu que qualquer transformação social digna deste nome desataria a implacável

resistência “dos de cima” (Santos, 2017), acabando por optar por se curvar “a eles” (Miguel,

2019). As sinalizações oficiais de que não tocaria no pilar do sistema de acumulação

neoliberal constituído no país, vide Carta aos brasileiros, segundo Santos (2017), na verdade,

uma verdadeira “Carta ao capital”, demonstram as condições e os precisos e rígidos contornos

da democracia, lapidados pela burguesia nacional e internacional e suas instituições, como o

FMI e o BM.

Até aqui a história costuma ser contada de modo contínuo, de uma forma em que essas

escolhas se conectam aos seus resultados, os quais discutiremos adiante com cuidado.

Contudo, é necessário distanciarmos de qualquer automatismo ou visão evolutiva. De um

ponto de vista econômico-político, existem duas máximas a serem destacadas. Em primeiro, a

empreitada do PT só logrou os resultados que logrou e só foi possível da forma como ocorreu

em função de uma base material específica: o boom das commodities. Através desse aumento

expansivo do valor das matérias primas exportadas pelo país, relacionado a um ciclo

internacional de prosperidade, especialmente em relação à China (Boito Jr., 2018; Mascaro,

2018), tornaram-se possíveis as ações dos governos Lula, proporcionando a seus dois

governos uma inquestionável popularidade (Santos, 2017). Portanto, o boom das commodities

determinou a possibilidade de existência e continuidade dos governos Lula. Não determinou a

forma de governo, mas abriu possibilidades únicas, sendo tomada como uma conjuntura

internacional sui generis (Sampaio Jr., 2017). Em segundo lugar, existe o peso de outra

conjuntura, desta vez relacionada ao último mandato de Lula e aos de Dilma: a crise de 2008.
127

Muito longe de ser uma “marolinha” como disse Lula, a crise de 2008 teve papel fundamental

e igualmente determinante do ponto de vista estrutural e da dinâmica econômica. Para utilizar

uma expressão de Sampaio Jr. (2017), o Brasil surfou na crise. Segundo este autor, embora a

visão de que o país ia “bem” enquanto o resto do mundo ia mal seja um tanto estranha,

inicialmente, se analisada em minúcia veremos que ela é muito emblemática do que de fato

estava ocorrendo: uma imensa remessa de excedentes de capital demandando valorização

impossível naquele momento no centro do sistema migraram para o Brasil. Mas as marés do

mercado são muito efêmeras, embora mantenham alto poder de destruição diante das

economias dependentes. O capital externo que chega hoje pode ir embora amanhã. Esse é,

como já explicitado, o principal ponto da vulnerabilidade fiscal e cambial brasileira. Mais

tarde esse capital retornou ao centro com a alta dos juros nos países centrais como medida

ortodoxa para a crise. Foi aí que os efeitos nocivos da crise chegaram no país com mais

intensidade, momento que coincide com a derrocada do governo.

Feitas essas duas ponderações, agora entendemos como foi possível ao PT chegar ao

poder em 2003 e iniciar a saga regimental de realizar seus comprometimentos com o tripé

macroeconômico neoliberal, a famigerada “responsabilidade fiscal”, ao mesmo tempo que

conseguiu negociar uma quantidade mínima de recursos para a proteção social, mínima

embora inédita do ponto de vista da história da proteção social no país. A conjuntura

econômica internacional abriu caminho fiscal para os limites próprios do Brasil em “tempos

de crescimento” neoliberal. Como vimos, desde a transição em direção ao neoliberalismo o

país se tornou extremamente frágil em termos fiscais e cambiais (Saad Filho e Morais, 2018;

Sampaio Jr., 2017). O país se tornou extremamente vulnerável aos humores do capital

internacional. Quando há recessão no mundo, ela chega forte por aqui, quando há ciclos de

prosperidade internacional conseguimos crescer, mas sem redistribuir, gerando empregos de

baixa renda e precários e, talvez o mais grave, os problemas estruturais se aguçam


128

especialmente em tempos de crescimento: há uma tendência de crescimento da dívida pública

que está atrelada à própria estrutura financeira neoliberal instalada no país. Se os gastos

sociais aumentam, o pino de uma bomba relógio é puxado, sendo necessário apenas esperar o

desenrolar da crise fiscal. São os dividendos de crescimento (O’Connor, 1977; Behring,

2015). Isso abre uma questão muito importante: os custos dos “ganhos sociais” nos governos

petistas, uma vez que, uma hora ou outra, esses mesmos custos serão socializados com as

massas, não por maldade de qualquer governante, mas por causa da institucionalização do

tripé macroeconômico que amarra o país ao neoliberalismo.

Noutro caminho, entretanto, nosso papel é acordar sobre esses “ganhos sociais”.

Estamos falando especificamente sobre as formas de tratamento das sequelas da questão

social. Como a questão social foi tratada? Em perspectiva histórica, quando os sistemas de

proteção social nasceram, cada um possuiu em sua constituição uma correspondência para

com seus respectivos sistemas de acumulação. Como vimos, a implantação destes primeiros

sistemas responde a um contexto histórico europeu e norte-americano muito específico e

diverso. Contudo, o tempo fordista passou e ficou pelo passado dessas regiões. O Brasil nunca

experimentou algo daquele tipo, naquela amplitude de direitos sociais e empregos. A

estabilidade garantida na Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT) foi removida

imediatamente pela ditadura militar em 1964 (Braga, 2017). Como já explicitamos, a

“transição por cima” nos deu uma Constituição cujos capítulos sociais não apenas padecem de

graves contradições, assim como não podem ser efetivados na letra da lei em função da

transição debilitante ao neoliberalismo como sistema de acumulação. O padrão de proteção

socialdemocrata chegou ao país com 40 anos de atraso (Behring & Boschetti, 2011). Tratou-

se de uma socialdemocracia tardia (Soares, 2009; Saad Filho & Morais, 2018). Uma vez

descolada de seu tempo e de seu espaço, de sua base material e estrutura, tratou-se de um

sistema de proteção social incompleto, fora do lugar desde o seu nascimento. O


129

neoliberalismo e suas amarras institucionais autoritárias agravaram sobremaneira os

impedimentos para a efetivação da contraditória e incompleta proteção social inscrita na

Constituição. Lembrado que os sistemas de acumulação ensejam sistemas de proteção social

correspondentes, a proteção social nas circunstâncias brasileiras depois de iniciada a transição

ao neoliberalismo não pode ser outra que não neoliberal também, principalmente em termos

de restrição orçamentária, reforçando as contradições e as sérias limitações presentes na

“transição à democracia”.

Apesar dos avanços incompletos e contraditórios da Constituição, diante de uma

correlação de forças desfavorável passaram a fazer parte de seu texto orientações que deram

sustentação ao conservadorismo no campo da proteção social, sendo exemplar a contraditória

convivência entre os princípios de universalização, seletividade e suporte legal ao setor

privado, mesmo diante da definição de dever do Estado para alguns setores das políticas

sociais (Behring & Boschetti, 2011). No avançar da transição ao neoliberalismo as coisas

apenas pioraram. Retomando um ponto básico, a acumulação capitalista produz as sequelas da

questão social e lida com as mesmas de uma forma específica. Em termos gerais, o

neoliberalismo é marcado por um processo compulsório de contrarreformas, as quais

independem do sufrágio universal. Portanto, trata-se de um autoritarismo fiscal e monetário

compulsório, do qual essa forma específica de processo de acumulação é dependente

(Sampaio Jr., 2017; Saad Filho e Morais, 2018).

Se no lado do trabalho a retirada de direitos sociais a ele vinculados representa um

polo de ataque do capital à proteção social, do lado das políticas sociais Behring e Boschetti

(2011) apontam um sólido processo de transformismo da política social sob o

neoliberalismo, sob o qual ela se transforma noutra coisa muito diferente: “ações pontuais e

compensatórias direcionadas para os efeitos mais perversos da crise” (p. 156). As autoras

apontam que esse transformismo se orienta por três pilares: a privatização, a focalização e a
130

descentralização. A privatização desfigura a proteção social como coisa pública,

possibilitando cada vez mais o capital avançar sobre serviços de proteção social públicos,

transformando-os em mercadorias a serem vendidas no mercado, uma forma de expansão do

mercado sobre espaços que até então pertenciam ao Estado ou o tinham como protagonista na

oferta. É o que os neoliberais chamam de “reserva de mercado”. Logo, o argumento é de que

o Estado teria o “injustificável” monopólio de um setor que poderia ser altamente lucrativo

para a iniciativa privada. A rigor, na metafísica neoliberal o Estado é imaginado e, sobretudo,

explorado, na prática, como apenas uma empresa grande, a qual atua como uma plataforma

para outras empresas crescerem dentro de si mesmo como parasitas, sugando sua energia ao

máximo no limite de sua sobrevivência – fiscal e cambial, acrescentaria. Por isso a sensação

de “privatização do Estado”, pois a parte que ainda permanece coisa pública acaba por sofrer

recorrentemente ostensivos ataques interessados em sua máxima privatização. Retornando ao

outro extremo do espectro político, a justificativa do monopólio público, contudo, é

justamente a aversão à submissão dos meios fundamentais de proteção social aos imperativos

do capital internacional. Vender serviços (saúde e assistência social) e bens (previdência

privada, capitalizações, seguros de vida e etc.) num mundo cada vez mais inseguro e precário

em termos de relações de trabalho realmente parece ser um casamento descomunal entre a

fome do pobre e a tendência do capital de fazer dinheiro com ela. A focalização se orienta por

uma rígida discriminação do público a que se destina a proteção social, na qual

discriminações negativas se mesclam com positivas e o fundamental é a barragem a qualquer

tipo de proteção vinculada ao trabalho e ampla, de desenho universal. A proteção se volta às

frações da classe trabalhadora que vão desde a parcela desprotegida e pauperizada, a fração

informal, até o lumpesinato. A descentralização atua no âmbito político-administrativo. A

maior atenção à essa especificidade na forma de descentralização, neoliberal, evidenciará

realmente uma descentralização política e administrativa, tanto dos espaços de decisões dos
131

gestores como das instâncias de participação social, voltadas ao controle público da proteção

social. O que não ocorre e que é estrutural do regime de acumulação neoliberal brasileiro é a

tão necessária descentralização de recursos entre as esferas da federação, sequestradas pelo

ajuste fiscal permanente por diversos dispositivos legais. Behring e Boschetti (2011)

ressaltam que essa forma neoliberal de descentralização é estabelecida como simples

transferência de responsabilidades para entes federativos ou para instituições privadas e novas

modalidades jurídico-institucionais. Não há, portanto, um efetivo compartilhamento de poder

entre as esferas públicas.

Essa descentralização de responsabilidade desacompanhada dos recursos necessários à

sua efetivação não é uma falha do modelo neoliberal. Ela é constitutiva do que ficou

conhecido por “terceira via”, um tipo peculiar de “neoliberalismo social” que surgiu na

Inglaterra do primeiro-ministro Tony Blair, responsável por bombardear Bagdá, e do seu

conselheiro e até então sociólogo, hoje barão por condecoração do próprio Blair, Anthony

Giddens, sendo defendida como uma “alternativa” aos “autoritarismos” de esquerda e direita

(Petras, 2016), embora seu compromisso com o livre-mercado fosse inconteste (Jameson,

2005). Em resumo, essa “terceira via”, esse neoliberalismo “social” ou “progressista”

propunha formas de proteção social num arranjo “público-privado”, na qual a transferência de

recursos públicos para empresas privadas, entidades filantrópicas e Organizações Não-

governamentais (ONGs) se tornasse a regra. É um modelo de (des)proteção social construído

dentro das amarras das estruturas do neoliberalismo. Não sem motivos, o FMI e o BC

impuseram e impõem a replicação desse modelo mundo a fora, especialmente nos países

periféricos endividados. Trata-se da tendência de mercantilização da proteção social até então

conquistada em cada Estado nacional. Portanto, se a descentralização político-administrativa

dá responsabilidades a estados e municípios, mas não dá os recursos necessários, é porque

nesse arranjo de (des)proteção neoliberal, às vezes chamado de social-liberal, a falta de


132

recursos necessários deve ser sanada com privatização dos serviços de saúde e assistenciais

através da terceirização. O vácuo orçamentário no processo de descentralização implica uma

privatização da saúde e da assistência social, não em bloco, mas processual e gradual, de

baixo para cima, na qual municípios e estados estabelecerão cada vez mais convênios com

instituições privadas, seja com ou “sem” fins lucrativos, a fim de sanar o descompasso

estrutural entre uma demanda crescente e escassos recursos necessários para atendê-la. Ao

focalizar a demanda a ser atendida, sempre a mais pauperizada, se abre uma extensa “reserva

de mercado” pronta para ser explorada pelo capital, livre de monopólio ou protagonismo do

Estado, uma vez enforcado pelo ajuste fiscal. Daí o boom de planos de saúde, previdência, e

de instituições privadas de educação em todos os níveis de ensino. Esse transformismo das

políticas sociais no neoliberalismo significa uma tendência regressiva a um padrão no qual

uma proteção social histórica é revertida em uma plataforma cada vez mais protagonista da

reprodução ampliada do capital. É neste ponto histórico de ruptura com o fordismo-

keynesianismo que as políticas sociais, que sempre foram uma contradição, pois protegiam os

trabalhadores ao mesmo tempo em que os apassivava, sendo um ponto de conflito e razão de

luta pela disputa do Fundo Público, agora perde essa substância primeira de “proteção social”,

de fato, tornando assim apenas uma forma residual funcional ao apassivamento compulsório

das massas trabalhadoras despossuídas. O fator de contradição, se não desaparece por

completo, se transforma apresentando sinais de protagonismo que parece ser de uma outra

categoria que Mascaro (2018) explorou bem, a insuficiência da forma política estatal na

acumulação flexível-dependente. É como se não fosse mais possível proteger as massas

trabalhadoras, a não ser suas franjas mais despossuídas, e exclusivamente para apassivar.

Behring e Boschetti (2011) definiram esse transformismo da política social sob o

neoliberalismo como um contexto de reversão conservadora.


133

É neste ponto que se insere a discussão dos textos sobre a qualificação das formas de

tratamento da questão social encontradas durante o percurso da revisão, dando especificidade

ao termo a partir de cada análise. Ao tentar nomear o movimento que ocorreu durante os

governos petistas, os autores foram tão criativos quanto precisos. Miguel (2019) fala em

“prioridade por mudanças de baixa intensidade”, as quais viessem a permitir “enfrentar” as

privações mais graves das frações despossuídas sem colocar em questão a reprodução da

dominação social. É necessária certa atenção aos parênteses. Quando o autor fala em

enfrentamento das privações mais graves das parcelas despossuídas ao mesmo tempo em que

permanece intocada o modo de acumulação vigente, trata-se, especificamente, de políticas

compensatórias, algo até então inexistente no país em grande escala. Em termos de proteção

social, enfrentar as sequelas da questão social é atacar na raiz da produção da questão social,

intervindo diretamente nas suas causas. Em uma direção diametralmente oposta, a

(des)proteção social desenvolvida no seio do neoliberalismo atua sobre os efeitos das sequelas

da questão social (Sampaio Jr., 2017), na forma de um tratamento paliativo compulsório da

pobreza, eleita o mal maior. O objetivo não é “erradica-la” como o marketing político sempre

tenta fazer parecer, mas sim gerir a miséria “principalmente por meio da alocação condicional

de esmolas, financiadas por impostos, para grupos de pobres ‘merecedores’ da caridade

pública” (Saad Filho & Morais, 2018, p. 84). Essa gestão da miséria ocorre aliada à

generalização da desproteção social através da derruição de direitos sociais, informalidade,

baixas remunerações e precarização das condições de trabalho (Boschetti, 2016). Aliado

porque ao “adotar essa política, o governo apoiava os miseráveis e, ao mesmo tempo,

subsidiava as piores modalidades de emprego, por complementar ‘condicionalmente’ os

rendimentos mais baixos no país” (Saad Filho & Morais, 2018, p. 84).

Singer (2018) fala em “pacto conservador”, o qual custou um “reformismo fraco”. Na

teorização em torno do lulismo proposta por pelo autor, Miguel (2018) ressalta a evidencia de
134

um caminho distinto no processo entre identidade e classe, que, sob o lulismo, “a classe surge

pela identificação que algum outro agente político faz dos desejos e necessidades de um

aglomerado de pessoas” (p. 72). Portanto, em vez das massas pobres encontrarem um político

e um partido, estes últimos é que acabaram por ser agenciadas por eles, de cima para baixo.

Foi aos governos do PT que coube organizar as difusas aspirações das frações trabalhadoras

marginais em torno de um programa de transferência monetária direta, diz Boito Jr. (2018).

De fato, é interessante observar que, de acordo com Sátyro e Cunha (2014), as quais

analisaram a presença e a forma do tema da assistência social nos programas de governo de

1989 a 2002, a assistência social só aparece delineada como uma política social apenas em

2002. Parece que o lulismo foi, sobretudo, bem planejado nesse processo de busca ativa atrás

de uma “classe-apoio”. Em suma, esse foi o movimento do PT e de Lula. Entretanto, carece

de base material a ideia que é transmitida pelas linhas de Singer (2018) de que o

conservadorismo que “travaria” o partido e seu político vem de baixo, das massas

pauperizadas dotadas de um “conservadorismo popular”, e não de cima, das burguesias. Boito

Jr (2017) discorda não apenas das conclusões de Singer (2018), como de seus pontos de

partida propriamente. Boito Jr. (2018) argumenta que a parte conservadora das massas

pauperizadas já estavam em processo de migração para outra sigla, o PSDB. O autor ainda

critica a interpretação de Singer (2018) de que o lulismo se trata de um caso de

“bonapartismo”, considerando a ausência de elementos históricos fundamentais deste último.

Outra crítica que nos interessa é o fato de Boito Jr. (2018) recusar a ideia de que o lulismo

seria sustentado por algum arranjo majoritariamente popular no que concerne a um suposto

governo do “subproletariado”. Muito pelo contrário, ao recusar a pura e simples divisão entre

capital versus trabalho, o autor mobiliza o Nicos Poulantzas jovem para renovar e ampliar

significativamente o panorama real dos “conflitos de classe”, como prefere utilizar,

diferenciando a luta pela contestação do capitalismo, a luta de classes, das disputas por
135

redistribuição que não colocam em xeque o capital. Ao agir dessa maneira, o autor consegue

trabalhar com cada porção de frações da burguesia e da classe trabalhadora e das demais

frações intermediárias, não de forma separada, mas entrelaçada de tal maneira que é possível

ver as demais frações de classes interagindo com as classes fundamentais, ativamente. O autor

ainda explicita a possibilidade de constituições de frentes políticas por frações misturadas de

ambos os lados ao historicizar o transformismo do PT e tocar nas relações mais por interesses

específicos em comum com a “grande burguesia interna” do que por qualquer coisa que

lembrasse um projeto nacional. É nesse ponto que o autor aponta a aproximação da grande

burguesia interna, aquela que ainda não foi por completo consumida pela financeirização e

possui consideráveis restrições para com o neoliberalismo em sua versão Gustavo Franco. E

as massas pauperizadas, essas seriam o que aquele Poulantzas nomeou como “classe-apoio”,

entendida como “uma classe dominada, excluída do bloco no poder, mas que se ilude com

um determinado governo ou regime político e, por essa razão, oferece a ele uma base de

apoio” (Boito Jr., 2018, p.144, grifos do autor). Portanto, aí vemos o cruzamento entre a

grande burguesia interna e as massas pauperizadas. Mais adiante retornaremos a esse ponto.

O grande problema, no caso de Singer (2018) parece ser a disputa do termo reforma

em si. Voltando brevemente a essa discussão, historicamente, reforma foi um termo sempre

eivado de contradição, em função da dualidade entre proteção e apassivamento da classe

trabalhadora. Contudo, a partir do transformismo produzido pelo neoliberalismo, o termo

mais apropriado é contrarreforma (Behring, 2008; Boschetti & Behring, 2011) e no caso

brasileiro, contrarreforma permanente (Sampaio Jr., 2017; Saad Filho & Morais, 2018). Desta

vez, não a contradição, mas a insuficiência da forma política estatal denuncia a

impossibilidade de “reforma” (Mascaro, 2018). Jameson (2005) põe em relevo a dura batalha

política discursiva em torno da palavra “reforma” no contexto atual. Os neoliberais se

definem como legítimos “reformadores” e as forças em oposição são chamadas de “linha-


136

dura”, ou coisa que o valha. O autor ainda aponta que tomar de forma apressada esse

transformismo do termo como uma vitória da mídia é subestimar “o deslocamento hoje em

dia da luta política para a linguagem e a terminologia” (Jameson, 2005, p. 19). Sem dúvida, o

PT estava atento a isso e jogou sua disputa nesse campo (Sampaio Jr., 2017; Santos, 2017).

Todavia, numa perspectiva ainda não resignada à ordem vigente, não seria melhor

investigarmos a perspectiva “linha-dura”, aquela que denuncia as contrarreformas? É neste

ponto que talvez Boito Jr. (2018) nos possibilite refletir um pouco mais sobre o conjunto da

obra chamada de lulismo e seu neodesenvolvimentismo ao acrescentar que

Esse programa representa concessões aos trabalhadores da massa marginal, ele não era o

centro da política de Estado; melhora as condições de vida dos trabalhadores da massa

marginal, mas não é a prioridade da política de Estado. Se somarmos, por exemplo, o

orçamento do BNDS, que era destinado a empréstimos subsidiados às grandes empresas

nacionais, e os custos da rolagem da dívida pública, ambos dirigidos a reduzido número de

grandes empresários e banqueiros brasileiros, obteremos um número cem vezes maior que o

montante dos recursos do principal programa de transferência de renda que é destinado,

porém, a milhões de trabalhadores. É necessário distinguir, de um lado, as frações burguesas

que integram o bloco no poder e, de outro, uma classe ou camada popular que serve de mera

classe-apoio a um governo determinado (p. 147).

Para Boito Jr. (2018), foi a grande burguesia interna que possuiu prioridade nas

políticas de Estado durante os governos petistas. O cenário contrarreformista permaneceu uma

vez que o modelo neoliberal foi, como Sampaio Jr. (2017) disse, “reciclado”, “melhorado”

pelos governos petistas. Boito Jr. (2018) aponta que sua definição de

“neodesenvolvimentismo” se refere não a nenhuma ressurreição de um desenvolvimentismo

nostálgico dos tempos do nacionalismo dependente e periférico do século XX. Trata-se, mais
137

precisamente, do desenvolvimentismo possível dentro dos marcos do capitalismo neoliberal

periférico. Sampaio Jr. (2018) também aponta a preferência e as benesses dos empresários nos

governos Lula

Sem condições políticas de avançar no atacado como pretendiam, os empresários ganharam

significativas compensações no varejo. Perdidos no meio do pacote econômico encontram-se

perigosos contrabandos. Sem grande alarde, Lula abriu mão do monopólio de resseguros;

introduziu a chamada “governança corporativa”, que estabelece uma maior independência das

empresas estatais em relação ao poder público e reforça a tendência à financeirização de sua

lógica de atuação; e criou uma série de programas de transferência de renda para as empresas,

verdadeiras “bolsas empresários” (p. 89-90, grifos nossos).

No fundo, talvez a tentativa tanto de Miguel (2019) quanto de Singer (2018) seja a de

mostrar a baixa intensidade e a fraqueza do que se tentou fazer nos governos do PT,

encapsulados por um processo dominante de contrarreforma compulsória. É aí que o

“reformismo fraco” denuncia a persistente tendência de forte contrarreforma. Entretanto,

essas nomeações claramente beiram ao eufemismo em termos da balança entre capital e

proteção social, como demonstrado acima. Ademais, como um “pacto conservador” poderia

parir uma “reforma” que não fosse também igualmente conservadora?

Ainda de acordo com Sampaio Jr. (2017), ao analisar a estratégia de investimento

público no segundo governo Lula,

Em suma, o PAC propõe o impossível: superar a estagnação aprofundando o padrão de


acumulação responsável pela paralisia da economia brasileira. Para tanto, recomenda mais
negócios para o capital, mais arrocho para os trabalhadores. A terapia proposta é curiosa:
trata-se, como já dizia Florestan Fernandes, de curar a raiva mordendo o rabo do cachorro
louco. Disfarçado de um giro à esquerda, a nova política econômica é, na verdade, um
inequívoco ataque à classe trabalhadora. Ao renunciar à utilização da política de rendas como
138

instrumento distributivo, Lula abandonou o único elemento não regressivo de sua tacanha
política social. Nesse sentido, o PAC representa um passo atrás – um claro retrocesso em
relação ao primeiro mandato. A plutocracia brasileira não conseguiu finalizar o xeque-mate
que pretendia, mas logrou passar um peão estratégico no complexo xadrez que determina os
condicionantes da distribuição da riqueza nacional. Poderia ter sido pior, mas foi um péssimo
começo de governo (p. 90).

Assim como explicitado por Boito Jr. (2018), Sampaio Jr. (2017) segue a mesma linha

em apontar a captura do Fundo Público uma vez mais tomada como via de financiamento de

investimento público da execução privada das obras de infraestrutura pelo país. Era mais uma

forma dos governos petistas de favorecer sua aliada, a grande burguesia interna. Pensando

também em termos econômico-políticos, Saad Filho e Morais (2018) falam em

“neoliberalismo desenvolvimentista” ao se voltarem para a análise do segundo mandato de

Lula ao primeiro de Dilma.

Essa variedade híbrida de neoliberalismo incluiu algumas políticas econômicas novo-


desenvolvimentistas, ao mesmo tempo que era preservada a estrutura de políticas neoliberais,
sintetizada no tripé. O neoliberalismo desenvolvimentista teve implicações positivas para o
crescimento econômico, o emprego, a distribuição e o bem-estar social, e deu apoio à
impressionante recuperação do Brasil após a crise econômica global iniciada em 2007. Os
altos preços das commodities e a liquidez internacional abundante aliviaram a restrição no
balanço de pagamentos, enquanto a valorização do real reduziu a inflação, No entanto, o
investimento privado não se elevou, não houve transformações significativas na estrutura
produtiva, o investimento público foi insuficiente para sustentar um crescimento econômico
com uma base diversificada e não foi feita nenhuma tentativa de reduzir a desigualdade de
riquezas. Além disso, a ISI, sua desintegração na década de 1980 e a imposição do
neoliberalismo na década de 1990 entrincheiraram uma tendência persistente à
desindustrialização, ao desemprego, à criação de empregos precários e de baixos salários e à
concentração de renda. Esses processos erodiram a base tributária, expandiram necessidades
populares, criaram pressões financeiras no setor público e impuseram restrições orçamentárias
rígidas ao emergente Estado de bem-estar social. Contratendências limitadas prevaleceram
139

por algum tempo, ainda durante as administrações do PT, mas acabaram soterradas pela
contração econômica e pela reação da aliança neoliberal (p.29-30).

Sampaio Jr. (2017) critica o embuste “neodesenvolvimentista” como suposto eclipse

do neoliberalismo sob os governos petistas, uma impostura do partido, o qual tenta diluir a

substância da política econômica conservadora aplicada ao resgatar no nome as teorias

desenvolvimentistas e seu peso histórico. Este autor conceitua a escolha petista como um

“melhorismo” dentro da ordem. Noutras vezes fala em “reciclagem” do modelo neoliberal de

FHC. Não à toa, as palavras que emergem nesse debate, seja lá de que lado seja, sempre

surgem com essa substância de fragilidade. Saad Filho e Morais (2018) falam de ganhos e

leve redistribuição na “margem”.

Sobretudo parece haver um engano, para além de uma artimanha discursiva na defesa

de que houve uma ruptura através dos “esforços” do PT, supostamente na direção de uma era

“pós-neoliberal” ou, numa posição mais comedida embora fiel ao partido, na argumentação

pela prevalência da categoria contradição. Para Mascaro (2018) não se trata, entretanto, de

contradição, mas sim de insuficiência, derivada da própria forma política estatal vigente. Se

entendemos corretamente, não se trata do caso da contradição entre o que se queria fazer e o

que efetivamente foi feito na ordem vigente. Trata-se, na verdade, de insuficiência da própria

forma política estatal dependente flexível, a qual mina as possibilidades de fazer “algo

diferente”, fora da quadradura do sistema de acumulação corrente, neoliberal. Portanto, temos

que refletir até mesmo sobre o discurso de que o PT teria servido a dois senhores. Antes,

devemos perguntar que tipo de senhor é o capital e se ele permite dividir seus ganhos com as

massas. A resposta é não. Uma leitura mais atenta ao modelo de acumulação neoliberal

mostrará que o Estado se torna um servo fiel do capital internacional, sendo que as migalhas é

que caem ao povo através de um orçamento da proteção social cada vez mais restringido e seu
140

desenho desfigurado, porque cada vez mais focalizado e compensatório. As massas não são

um outro senhor servido pelo Estado. Neste regime de acumulação suas demandas são

encaminhadas para o “mercado”, a fim de comprarem a proteção de que necessitam, ao passo

que a atenção do Estado se volta exclusivamente às parcelas mais pauperizadas (Saad Filho &

Morais, 2018), usadas como massa de manobra política e de estabilização do ciclo de capital

em tempos de crise através do financiamento do consumo das famílias pobres. Ao enunciar

que um partido serviu ao capital e às massas, simultaneamente, como a dois senhores,

percebemos uma confusão entre partido e Estado, um problema elementar de teoria política

crítica, aquela que pensa a democracia a partir da crítica à economia política dominante.

Quem serve ao capital é o Estado, e desde nascença. Ocupar um lugar de chefia no executivo

nacional não altera a substância deste último (Mascaro, 2013; 2018). No neoliberalismo,

qualquer Estado serve às prioridades do capital, financiando políticas focalizadas e

compensatórias com o que sobra do orçamento público, engolido pelo pagamento do serviço

da dívida pública. Por isso a expressão “neoliberalismo desenvolvimentista” de Saad Filho e

Morais (2018) parece ser tão interessante, pois traz precisamente o caminho optado pelo PT

dentro da ordem vigente. Aliás, antes de qualquer dúvida, sem uma mudança drástica no

padrão de acumulação vigente, qualquer governo sempre será definido como neoliberal

“alguma coisa”. Esses são os limites de nossa democracia frágil, forjada no contexto do

capitalismo dependente flexível.

Existe uma polêmica mais política que sociológica ou econômico-política sobre o

padrão de acumulação e as transformações do período dos governos petistas. No partido, ecoa

a defesa de uma tese segundo a qual os governos petistas iniciaram um período “pós-

neoliberal”. Contudo, longe de algo pós-neoliberal, vimos um outro movimento. Uma questão

muito importante quando desse debate entre as formas de tratamento da questão social e o

desenho da política macroeconômica adotada. Se o processo de contrarreforma é permanente


141

por causas estruturais do Brasil depois do início da transição ao neoliberalismo (Saad Filho &

Morais, 2018; Sampaio Jr., 2017), existe um fator fundamental que foi largamente explorado

pelos dois governos de Lula e o primeiro de Dilma: o ciclo internacional de prosperidade

econômica e seu declínio. O boom das commodities e os efeitos de seu declínio,

especialmente os rebatimentos “tardios” da crise de 2008 foram peças fundamentais nas

possibilidades de gestão da contrarreforma permanente. Foi nesse contexto econômico

internacional que Lula pôde escolher em quais temas aplicar duras contrarreformas, como a

da previdência e da nova regulação das falências de empresas ainda no início de seu primeiro

mandato, por exemplo, e em quais diluir algumas contrarreformas radicais através do tempo

com o PAC, por exemplo, numa privatização pouco escancarada perto do estilo e, sobretudo,

da velocidade de FHC. Sem muito impacto e conflito a curto prazo e em plena conformidade

com a estrutura fiscal contracionista recebida de FHC. Diluir certas contrarreformas no tempo

é a melhor forma de não se parecer contrarreformista, afinal de contas, você abranda um

processo que iria gerar mais exploração e insegurança social e civil generalizada entre as

massas e, ao mesmo tempo, consegue manter a ordem vigente intacta ao preservar os padrões

gerais de contrarreforma permanente, tudo dentro da quadradura do neoliberalismo

dependente brasileiro. Embora, como sabemos, a escalada da violência civil, do

encarceramento em massa e da precarização do trabalho permaneceram fortes tendências no

período. Por isso as ideias de um reformismo desidratado ecoam nos textos. A contradição

defendida por muitos ao interpretar as “rupturas” do lulismo parece ser mais um problema

focal do que de aproximação ou não da realidade brasileira, conforme Santos (2017).

Defender uma leitura petista de ruptura nos mandatos do partido é comprar junto no combo

toda a metafísica petista do período, verdadeiras pérolas ideológicas: desde a ressurreição

infeliz do mito do crescimento até o mito da classe média fruto do mito do crescimento e a

insatisfação social generalizada, embora latente e explosiva, como produto das “melhorias”
142

petistas numa leitura tocquevilliana. Será mesmo que as pessoas querem melhorar “mais” de

vida, nessa mesma direção atual, ou será que essa juventude trabalhadora quer “outra”

modernidade? A “nova” classe trabalhadora de Singer (2018) quer ser ela mesma ou quer ser

outra? Olhar para trás cultivando solidariedade entre as demais frações trabalhadoras nos

andares abaixo a levaria a votar ou não no PT novamente em termos de projeto societário do

partido?

O país, uma vez mais dependente do que já era, materializou uma proteção social

residual, típica do modelo neoliberal de gestão da desproteção social. Era um sistema de

proteção social de tipo socialdemocrata, incompleto e limitado de nascença, com o orçamento

de um sistema de proteção social residual. Com o passar do tempo, o SUS se consolidou

como um plano de saúde da porção mais pobre da classe trabalhadora. A contribuição

previdenciária, que chegou até a subir nos efêmeros anos “dourados” petistas antes da crise,

agora despenca ao passo que o assalto ao Fundo Público pelo pagamento do serviço da Dívida

Pública se torna a regra geral. Assistência social começa sua difícil transição para a

institucionalização, uma vez que esse campo sempre foi relegado à filantropia e à caridade

confessional. Embora muito elogiado, o SUAS sempre recebeu menos investimento em

repasses, infraestrutura e nos serviços socioassistenciais frente ao PBF. A focalização e a

discriminação negativa e positiva tenderam a ser o padrão tanto na assistência social, como na

saúde e na educação superior com o ProUni e o Fies, através de sistemas de cotas. Pouco se

comentou até hoje sobre os impactos da discriminação negativa e positiva nas políticas sociais

no Brasil. A tendência dos teóricos, quase de todos os analisados, é de criticar a classe média

em função de seu “caráter” tendencioso à uma espécie de aporofobia, uma fobia aos pobres.

Contudo, como Castel (2008) certa vez interviu, talvez não sejam apenas tendências

endógenas, mas o resultado da interação ativa entre as classes atravessadas por políticas

compensatórias, que produzem mais preconceito na sociedade. Afinal de contas, a pessoa


143

negra ou periférica que ocupava uma vaga no ProUni em uma faculdade privada não apenas

sofria preconceito, como a qualidade do ensino era péssima na maioria dos casos. Tudo isso

produz uma confluência de insatisfações sociais. Contudo, vivemos um momento em que

criticas a políticas afirmativas são censuradas a partir de certa “esquerda” pós-moderna como

se se tratasse de um cânone, curiosamente. Ora, as políticas afirmativas ao estilo da feminista

Iris Young estão longe de ser coisa radical. São estratégias compensatórias via privatização da

educação na terceirização dos serviços educacionais que deveriam ser inteiramente públicos.

Nesse jorrar de dinheiro público em direção ao mercado privado da educação superior em

volumosas quantias, hoje esse mercado não apenas encontra-se bem maior do que era antes do

PT como está mais monopolista que antes. Em todo caso, a escolha foi por uma educação

barata e de péssima qualidade para as massas populares brasileiras, aquelas que buscam um

lugar ao sol nesse Brasil tão desigual (Santos, 2017). Já o programa “Minha Casa, Minha

Vida” se tornou a “solução compensatória da reforma urbana que não ocorreu” (Santos, 2017,

p. 95).

Saad Filho e Morais (2018) apontaram a urbanização desordenada, orientada pelo

capital especulativo imobiliário e a enxurrada de carros nas grandes cidades em detrimento de

transporte público de qualidade e com segurança. A desproteção social e sua outra face, a

mercantilização da vida, tomaram uma dimensão espacial, o que já era uma tendência desde

o início da transição ao neoliberalismo. Em termos de formas de vida, Sampaio Jr. (2017)

denuncia a escalada de ilusões de um misticismo mercantilizado das seitas evangélicas no

contexto da ascensão da milícia e do tráfico. No tocante ao horrendo cenário de

encarceramento em massa e à distância entre o direito, a lei e a realidade, vale a pena

consultarmos certa leitura dessa tragédia.

A promulgação da chamada “nova Lei de Drogas”, em 2006, trazia consigo a ideia de


descriminalização do uso de entorpecentes e, consequentemente, o fim do encarceramento de
144

usuários de drogas. Contudo, como as mudanças legislativas de ordem “progressista” nem


sempre surtem efeitos sobre práticas “conservadoras” estabelecidas, o encarceramento de
usuários e pequenos traficantes se tornou regra na atividade policial, especialmente diante de
pressões por produtividade, com metas administrativas a serem cumpridas (Silvestre & Melo,
2017, s/p).

O encarceramento em massa surge como protagonista social da regulação e repressão

das camadas pobres. Isso sem mencionarmos a correspondente expansão da indústria de

serviços e equipamentos de segurança civil. Enquanto isso o país estava sendo inundado pelo

que Sampaio Jr. (2017) agrupou como “automóveis e bugigangas”. Ora, o país em 2013

estava aos gargalos com o ciclo insano de produção de carros, tudo isso com IPI a 0%!

Quando a crise chegou as montadoras demitiram trabalhadores em massa. Isenção de

impostos e subsidiariedade eram as chaves mestras do tal neoliberalismo desenvolvimentista.

São elementos profundamente contrarreformistas, pois o Estado abre mão dos deveres

tributários das grandes empresas, montadoras, construtoras, mas quem vai pagar se vivemos

em crise fiscal permanente? As massas trabalhadoras.

Ainda em se tratando das formas de vida, principalmente da classe trabalhadora e suas

diversas frações, notamos um profundo automatismo diante das transformações da tecnologia

digital. Desde idosos até crianças estão viciadas em smartphones. Perry Anderson (2020)

ressaltou que, ao lado dos EUA, o Brasil é um dos países mais viciados em Facebook. E nesse

interim Mark Zuckerberg acumula tanto em função da publicidade quanto da mercantilização

de dados de trabalhadores que usam as suas redes sociais. Desde as capitais até o país adentro.

Os interiores são vítimas fáceis dessas novas empreitadas das chamadas BigTech e outras

grandes marcas famintas por expansão de “novos mercados”. Todavia, uma tendência muito

bem anotada por Sampaio Jr. (2018) é a de que a socialização dos bens de consumo não

ocorre de forma horizontal, mas de forma hierárquica e altamente estratificada, elitista, como
145

a nossa própria sociedade é, afinal. Hoje vemos a classe média alta comprar os Iphones

recém-lançados e a classe trabalhadora comprando seus modelos antigos usados. Isso é

inclusão social por consumo? Ou se trata, simplesmente, da expansão do mercado em função

da alta demanda, o que Sampaio Jr. (2017) apontava desde antes do primeiro governo Lula,

uma evidente reação histérica diante da impossibilidade de consumir as coisas que são

consumidas pelas classes trabalhadoras do centro do capitalismo. Nós, que defendemos um

socialismo científico, devemos questionar se, realmente, estimular o consumo dessa forma,

tão invasiva e agressiva, seria de fato de alguma forma “civilizador”. Porque do contrário,

temos apenas uma plataforma de reprodução ampliada do capital. No linguajar dos

economistas, trata-se da estabilidade da economia. É fácil notar que a busca de estabilização

da economia através do financiamento público do consumo, seja através de transferências

monetárias diretas, seja através de isenções fiscais e tributárias, uma forma de captura do

Fundo Público pelo mercado, se configura como uma forma contemporânea de nossa

tradicional “fuga para frente”.

Deveríamos pensar também na institucionalização da agiotagem (Sitcovsky, 2010) por

parte de bancos públicos e privados, quando a própria política econômica do governo contava

com o endividamento das famílias pobres, especialmente de aposentados e pensionistas

(Sampaio Jr., 2017).

Por fim, temos que não apenas a autoritária Lei de Responsabilidade Fiscal ficou de pé

o tempo todo – em momento nenhum esse dispositivo monetarista draconiano ficou

ameaçado. O despótico tripé macroeconômico chegou a ser abalado no primeiro governo de

Dilma, ao ponto de Saad Filho e Morais (2018) dizerem que este foi o governo mais à

esquerda desde João Goulart. Todavia, como veremos a seguir, o sonho durou pouco. Ocorre

que a própria ideologia neoliberal fundada na privatização, na focalização e na

descentralização contínua, mesmo que numa velocidade menor que a de FHC em certos casos
146

– o segredo do tempo determinado pelos ciclos de expansão do capital em crise –,

atravessaram as iniciativas petistas de cabo a rabo, seja lá em qual setor da política social

analisado. Isso está denunciado em todos os textos revisados. Não restou um que negasse tais

continuidades. Portanto, tratando da matéria em questão, as formas de tratamento das sequelas

da questão social desenvolvidas e executadas pelo poder executivo nacional, em vez de

qualquer ruptura, os governos petistas acabaram por dar seguimento à transição ao

neoliberalismo nos termos do padrão de (des)proteção social desse modo de acumulação,

marcado pela acentuação de formas de proteção social não-contributivas focalizadas, de

caráter compensatório e recheadas de condicionalidades, as chamadas políticas de ativação.

Santos (2017), após extensa investigação da situação brasileira em perspectiva latino-

americana, afirmou que o “mundo do trabalho sob o PT avançou, a passos rápidos, em

consonância com o movimento global de precarização do trabalho” (p. 91). É aqui que vemos

todo esse caráter compensatório se revelar uma forma de financiamento público indireto das

formas contemporâneas da exploração compulsória da força de trabalho brasileira,

característica basilar de nossa dependência, servindo de suporte à sua reprodução ampliada do

capital. Portanto, olhando mais de perto, não se tratam de políticas de “compensação”, mas

sim de espoliação, por isso a importância de notar que muito antes de uma proteção social, em

seu sentido como evento histórico, o neoliberalismo mantém um contínuo e flexível processo

de generalização da desproteção social pari passu à ofensiva pela exploração.

3.1.3 O segundo governo Dilma: dois golpes (2014-2016) contra a proteção social

Singer (2018) anotou que “Dilma resistiu, ao menos parcialmente, à pressão neoliberal

no primeiro” mandato (p. 77). Todavia, poucos dias antes do primeiro mandato acabar ela já

havia colocado um burocrata do setor financeiro internacional no Ministério da Fazenda. A

ideia mesmo era colocar o próprio Trabuco, do Banco Bradesco, mas ele declinou. Na
147

passagem ao segundo mandato ela vendeu sua alma a fim de lidar com a vitória perdida de

2014 em meio ao fim do ciclo de prosperidade internacional que determinou a possibilidade

de uma maior margem de manobra para com a gestão da contrarreforma permanente nos

governos anteriores do PT.

O contexto se tornara bastante adverso. Dilma quase não foi reeleita. Santos (2017)

crítica a ideia de quem, diante do golpe de 2016, interpretou a reação das massas apenas como

produto do apassivamento petista. Na sua visão talvez tenha se tratado de saúde política

mesmo. É desse ponto que temos que partir. Não havia distinção, ruptura descomunal na

transição entre Dilma e Temer em termos de proteção social no capitalismo. Certamente, isso

pouco importa, pois continua sendo golpe mesmo assim. Mas o que nos interessa aqui é

ressaltar a desfaçatez com que Dilma Rousseff disse que não faria ajuste fiscal “nem que a

vaca tossisse”. Parte considerável da esquerda não só ficou muda, mas como abandonou

literalmente a presidenta, uma vez que ela traiu a confiança legítima do sufrágio universal em

uma disputa acirradíssima.

Portanto, cabe pensarmos essa problemática de um ponto de vista específico. O ponto

de vista institucionalista e neoelitista desconsidera o caráter de classe da proteção social e a

importância das investigações sobre a forma das suas transformações, seus determinantes

mais gerais e as tendências que surgem. Transformações na proteção social atingem os

conflitos de classe, uma vez que o que está em jogo é a disputa pelo Fundo Público.

Para uma parcela considerável da esquerda, incluindo os movimentos sociais do PT,

mas não o partido, óbvio, ocorreu um golpe em 2016. Para alguns setores mais radicais, não

houve golpe em 2016, houve uma continuidade do golpe de Dilma contra as massas em 2014.

Para outros radicais, houveram dois golpes, um em 2014 e outro em 2016. Exploraremos essa

última linhagem de crítica radical. Ambos os golpes são indissociáveis, pois o primeiro

determinou a possibilidade de existência do segundo (Sampaio, Jr., 2017; Santos, 2017).


148

Singer (2018) foi o responsável por produzir as mediações teóricas importantes sobre essas

determinações entre ambos os golpes, todavia, é um dos que apenas assume o segundo golpe.

Muitos o fazem, mas é verdade que estes também mencionam o primeiro golpe, embora não o

nomeiem dessa forma.

Do ponto de vista das massas trabalhadoras, foram tanto dois golpes quanto um só

golpe em dois tempos. Era o que o neoliberalismo precisava para restaurar sua legitimidade

contra o seu clone versão neodesenvolvimentista, uma reciclagem do modelo de FHC.

Sampaio Jr. (2017) expôs a questão da seguinte forma

A narrativa de que a presidente foi vítima de um “golpe” não é falsa, mas omite o fato de que
o primeiro golpe – o estelionato eleitoral – foi cometido pela própria Dilma ao jurar na
campanha eleitoral que não faria o ajuste fiscal “nem que a vaca tossisse”. Denunciar o
segundo golpe, ocultando o primeiro, deixa na penumbra o fato de que a verdadeira vítima
dos atentados contra a democracia é a classe trabalhadora, que votou de maneira inequívoca
contra o ajuste neoliberal. Na conspiração contra os direitos dos trabalhadores, Dilma e Temer
são cúmplices, pois o segundo golpe apenas arrematou o primeiro. Mais ainda, sem a devida
ponderação sobre o caráter restrito da democracia brasileira, a denúncia do golpe parlamentar
como um atentado à democracia não permite perceber a essência da crise que abala o sistema
representativo: a impermeabilidade do Estado brasileiro às demandas populares.
Supervalorizar os aspectos formais da democracia brasileira sem a devida explicitação sobre
seu conteúdo real é uma forma capciosa de esconder os atentados perpetrados pelo PT contra
a classe trabalhadora e manter o debate político hermeticamente enquadrado na lógica fechada
do cretinismo parlamentar (p. 250).

Mesmo os que não reconhecem o primeiro golpe, mencionam ele, embora sem dar a

devida centralidade. Singer (2018) fala em uma “virada neoliberal”. O autor ainda fala em

“cavalo de pau”. Dada a reversão no ciclo econômico internacional e seus efeitos “tardios” no

Brasil, Dilma se viu sem condições materiais de dar seguimento à diluição do

contrarreformismo permanente em porções menores. Para dar seguimento com o tripé


149

macroeconômico neoliberal, Dilma teria de aplicar as contrarreformas por bloco, e não de

forma lenta e processual, pois chegara ao fim aquela margem de manobra possibilitada pelo

ciclo de prosperidade internacional aos governos anteriores do PT. Daí que a visão de que ela

tenha cambaleado várias vezes para a esquerda e a direita, para ao fim cair de braços para a

direita é realmente muito precisa. É curioso notar que Singer (2018) escreve as coisas meio

sem querer fazer notá-las. Em seu trecho ele anotou uma parte importantíssima para a questão

de que estamos tratando aqui, ou seja, o golpe de 2014 contra as massas trabalhadoras. O

autor diz que apesar de Dilma ter feito juras contra a austeridade fiscal contra a proteção

social, Guido Mantega, antes de sair, deixou um “pré-plano” que “previa cortes no seguro-

desemprego, no auxílio-doença e na pensão por morte” (p. 195). Assim como o seu partido

quando chegou ao poder executivo nacional pela primeira vez, Dilma não mudou de ideia

sobre suas promessas nas eleições. Ela já sabia o que iria fazer. Ela mentiu consciente e

deliberadamente. Ela não pegou o projeto do Aécio. Era o próprio projeto deles que

compartilhavam muitas semelhanças de antemão, embora Dilma tenha preferido enganar a

população. Mas isso parecia não ser uma decisão apenas dela, mas de Lula e do PT.

Seja como for, ao chegar à conclusão de que era necessário apelar para a ortodoxia, ela teria
que se cercar de todos os cuidados, pois se tratava de uma operação arriscadíssima para
qualquer presidente. Mas em lugar de chamar o experimentado Meirelles, que Lula garantia
controlar, para dirigir o choque, Dilma convidou o banqueiro Luiz Carlos Trabuco,
presidente do Bradesco. E, quando Trabuco recusou o convite, aceitou um subordinado dele,
Joaquim Levy, que desempenhava o cargo de diretor-superintendente do Bradesco Asset
Management, braço de fundos de investimentos do Bradesco (Singer, 2018, p. 197, grifos
nossos).

A ideia era mesmo que o Partido dos Trabalhadores dirigisse o choque neoliberal,

como se fosse a personificação do partido em uma espécie de capitão do mato do capital

internacional colocado para socializar os prejuízos com novas rodadas de contrarreformas


150

agressivas. Ocorre que, como Singer (2018) mesmo ressaltou, esse era um caminho muito

arriscado. Logo Dilma se viu sozinha contra um parlamento correndo da Lava Jato e que viu

nela o melhor meio para expiar seus crimes, a fim de continuar a cometê-los.

Em termos estritos, a partir da narrativa de Singer (2018), Dilma caiu porque a

militância do partido, que é diferente do partido, como salientado, sacudiram os parlamentares

do PT a fim da cassação de Eduardo Cunha andar. E quando há pressão social as coisas

funcionam. Foi nesse dia em que os parlamentares desobedeceram ao acordo de Lula com o

MDB para salvar a pele de Cunha, o qual acabou por abrir o processo de impeachment contra

a presidenta, para logo depois o próprio Cunha ser varrido do tabuleiro pela Lava Jato. Em

termos de ordem dos fatos, Dilma caiu, em parte, pela subversão e coragem dos militantes

petistas que não aceitaram as decisões a quatro paredes de Lula e dos altos escalões do

partido. O PT acabou por se enforcar no próprio laço de suas alianças (Santos, 2017). No

decorrer do processo Dilma não só seguia normalmente a sua vida, mas continuava movendo

os pauzinhos para alguns elementos do ajuste fiscal passarem. Ela realmente estava

empenhada em se mostrar útil ao capital internacional e ao Parlamento, mas, como bem

apontou Santos (2017), uma vez passado o ano de 2013, a burguesia e a grande mídia viram

que não precisavam mais do PT para apassivar as massas, pois elas haviam saído do controle

do partido. Em par com essas transformações, houve um processo de recomposição da direita

no país (Miguel, 2019). O PBF não seria mexido, portanto, o segredo do clientelismo

compulsório já havia sido socializado e aceito pelas burguesias, óbvio, em função do seu

baixo custo comparado aos direitos sociais. Mais tarde, ainda em 2015 ela aprovaria o pré-

plano de direção do choque neoliberal elaborado por Mantega, pouco antes de sua derrocada

do cargo.
151

Mesmo sem reconhecer e dar a devida centralidade ao estelionato eleitoral de Dilma,

Miguel (2017) narrou aquela sequencia de golpes ao se referir ao início do segundo mandato

da presidenta.

Em dois ou três meses, foram anuladas tantas das conquistas dos doze anos anteriores
de governos do PT. Em seguida, o próprio governo reformista foi derrubado por um golpe
parlamentar, com resistência pífia. E o novo governo implanta, de forma acelerada, uma
agenda de profundo retrocesso nos direitos, mais uma vez diante de uma população quase
passiva. Como sempre, os grupos privilegiados mostram ser aqueles que melhor expressam
suas preferências na ausência de espaços de pressão popular (p. 109, grifos nossos).

Dilma não só foi cirúrgica, mas rápida na austeridade fiscal. Singer (2018) ainda

comenta que ela acreditava que administraria o choque neoliberal “um semestre e, no

máximo, um ano” (p. 198) e depois a recessão já teria passado, o que mostra o quanto a

direção do choque neoliberal foi planejada pela presidenta. O mais estranho é não ser comum

recessões durarem apenas um ano, ainda mais no período imediato à crise de 2008 e seus

efeitos negativos “tardios” para o Brasil.

Em 2015 as consequências negativas da crise de 2008 chegaram com mais força e ela

se encontrou com a política contracionista da presidenta. Foi nesse momento que começara a

contar um outro aspecto relacionado ao ciclo internacional de prosperidade econômica. Se

realmente o lulismo for uma forma de “reformismo fraco”, de “mudanças de baixa

intensidade”, assim como uma tinta ou um esmalte ruim, fracos, devem todos durar pouco

tempo diante de mudanças ambientais extremas, ou seja, diante da própria efemeridade dos

ciclos de expansão econômica internacional. A crise fiscal do segundo governo Dilma foi uma

crise de dividendos de crescimento, quando uma receita que se expandiu com folga na folha

de pagamentos em tempos de prosperidade, acaba por se tornar insustentável em tempos de

recessão e queda brusca da arrecadação. Noutras palavras, o mito do crescimento do lulismo


152

cobrava o seu alto preço. A efemeridade dos tão aclamados avanços nos “indicadores sociais”

denuncia a fragilidade da própria democracia brasileira, forjada no contexto do capitalismo

dependente flexível.

Diante do risco real e cada vez mais iminente de queda, Dilma e Cardoso, ex-

Advogado Geral da União (AGU), nos termos de Mascaro (2018), atuaram como firmes e

fortes fiéis do juspositivismo, a crença ingênua na ideia de um Estado Democrático de Direito

de fato. Boito Jr. (2018) por diversas vezes ressaltou que foi a própria Dilma e Cardoso que

não apelaram para as massas em momento algum. É como se o PT tivesse escolhido jogar e se

necessário morrer naquela quadradura do jogo perdido da democracia blindada brasileira.

Tendo um primeiro governo elogiado em termos de coragem para enfrentar

minimamente a doxa neoliberal do sacrossanto tripé macroeconômico, Dilma não só foi a

presidente a apresentar uma política econômica mais à esquerda desde João Goulart, como

ressaltam Saad Filho e Morais (2018). Ela também foi, graças a seu segundo mandato, a

detentora do governo mais à direita desde FHC.

Estas, em síntese, são as medidas propostas no PLP 257/2016, de iniciativa do Poder

Executivo Federal. Como se pode ver, o projeto adota uma política de ajuste fiscal e controle

de gasto, de redução do papel do Estado e estímulo à privatização e, principalmente, de corte

de direitos dos servidores públicos. Lembra, em grande medida, o conjunto de propostas

encaminhado por FHC em 1997, e que tiveram, como resultado, um sucateamento sem

precedentes da máquina pública, e a supressão de mais de 50 direitos dos trabalhadores e

servidores públicos (Queiroz, 2016, s/p).

Um teto de gastos já estava proposto nesse projeto de lei enviado pela presidenta.

Portanto, o primeiro golpe de Dilma foi fundamental para a execução do segundo. É assim

que o espectro político funciona, quanto mais pra direita você sede, mais tudo tende a ir para a
153

direita. A virada do PT em um partido que disputa eleições por disputar, apenas no sentido de

administrar e não de subverter a ordem é realmente o que a classe trabalhadora e as massas

não precisavam em um país dependente flexível com uma desigualdade descomunal no século

XXI.

4. Considerações

4.1 Questões sobre o presente e o futuro da desproteção social no capitalismo

dependente brasileiro

4.4.1 Considerações finais: problemas e teses sobre o presente e o futuro da dependência

brasileira

Reservei esse espaço para explorar algumas questões a fim de provocar investigações

futuras de diversas partes e por diversas orientações. O formato transita entre aforismos e

epifanias, numa versão de produção da teoria. Alguns parágrafos são desconexos e aleatórios

em relação ao tema, isso faz parte da proposta.

O neoliberalismo, ao construir esse sistema paliativo de desproteção social fundado

em discriminações negativas e positivas, acaba por ensejar um moderno sistema de castas

sociais. Ou seja: a transição ao neoliberalismo cristalizou coisa de cerca de 1/4 a 2/4 da força

de trabalho no campo da informalidade e da subremuneração, com parcas condições de vida e

em meio a alta concorrência. Ao olharmos essa cristalização através do tempo nas favelas, nas

periferias em geral e da pobreza nos interiores, perceberemos a situação da classe

trabalhadora no Brasil do início do século XXI.

A transição a esse modelo de desproteção social expôs a democracia brasileira às

fragilidades já experimentadas internacionalmente nesse modelo: o populismo e o

clientelismo (Boschetti, 2016). Se é verdade de que não existe um consenso muito sólido em
154

torno do caráter populista do lulismo, todavia, o clientelismo é um teto de vidro indefensável

de tão evidente. A própria teoria de Singer (2018) mostra isso.

A tese do lulismo como um “modo lulista de regulação dos conflitos sociais” (Braga,

2017) parece fazer todo sentido, porque o poder não só de Lula, mas do partido que parece

operar hoje com o mesmo modus operandi dele, puramente eleitoreiro, de atuar regulando o

lado esquerdo institucional do espectro político desde as disputas do executivo nacional até os

governos, as prefeituras de capitais e o interior do país, fora a influência por dentro dos

movimentos sociais mais próximos ao partido em nível nacional. De todo modo, o

neoliberalismo como sistema de acumulação dependente parece produzir das suas entranhas

nestas terras uma tentação populista-clientelista, algo estritamente imanente à ordem

capitalista dependente contemporânea, parafraseando Žižek (2019). Trata-se de uma

organização estrutural da dependência que perpassa por uma incontornável necessidade de

mistificar a luta de classes a fim de interditá-la ao menos temporariamente. Daí o

apassivamento sistemático das massas empobrecidas, desprotegidas e desorganizadas. Essa

tentação populista seria endógena ao sistema de castas sociais cristalizado pela transição ao

neoliberalismo, incluindo aí o papel do padrão de (des)proteção social neoliberal

correspondente ao regime de acumulação dependente flexível. Talvez esse cenário caiba

muito bem no que Sampaio, Jr., (2017) chamou de reversão neocolonial. Faria todo sentido

olhar para trás e ver todo esse cenário como fruto de um avanço imperialista sobre o sul: o

surgimento do neocolonialismo enquanto concretude do movimento histórico da própria

dependência neste século, que parece realmente estar superando a fase anterior, ao menos em

termos de um evidente declínio civilizatório do capital (Alves, 2019). E talvez é aqui que

tenhamos uma expressão mais delineada da tentação populista-clientelista versão anos dois

mil: o lulismo. Parafraseando descaradamente o autor esloveno novamente, ao pensarmos

sobre o quanto é contraditório Lula posar como porta-voz dos despossuídos, pensando Žižek
155

(2019) com Braga (2017), o primeiro neoestruturalista (e não “pós’, tem muita diferença

nisso), o segundo thompsoniano, poderíamos refletir se o “modo lulista de regulação dos

conflitos sociais” não seria o pino que segura o desarme da bomba da luta de classes ao ter

como função estratégica impedir que os próprios despossuídos se defendam, inclusive do

próprio Lula e sua política econômica conservadora. Neste caso, Lula estaria longe de ser

inconsistente ou contraditório, pois o que parece inconsistência é algo que está no próprio

cerne de seu projeto. Santos (2017) faz bons apontamentos nesse sentido. No mais, vejo como

necessidade fazermos as contas de quanto de tudo isso escrito acima está na conta do Lula e o

quanto está na conta do PT.

Talvez seja interessante vermos o lulismo como ideologia de negação da dependência

flexível. Acreditar em reformismo fraco é negar o processo de contrarreforma permanente que

constitui o capitalismo dependente flexível, uma transição inaugurada pelas limitações e

contradições da Constituição de 1988 e por Collor de Melo em 1990. Falar do processo de

contrarreforma permanente, que independe de quem ocupa a chefia do executivo nacional, é

falar da dependência clássica brasileira reatualizada na transição ao neoliberalismo. Nesse

período de transição, em termos gramscianos, o intervalo entre a ordem que está para morrer e

a que está para nascer, no caso do Brasil, se refere à uma grande fase da contrarreforma

permanente. Perceba-se que ao cunhar esse termo, os formuladores e adeptos dessa expressão

jamais veem possibilidades de apontar uma ruptura plena com esse processo. Daí que a

contrarreforma permanente seja, de fato, permanente. Outra coisa, contudo, é dizer que ela

sempre ocorrerá nas velocidades de Collor e FHC. A dica ao olhar o processo de

desenvolvimento da acumulação dependente flexível é vê-lo como um processo, como um

trem sobre seus trilhos. O trem é o Brasil e os trilhos se referem aos limites do modelo de

acumulação flexível em um país e região dependentes. O fato de a contrarreforma ser

permanente indica a direção do trem. É possível, segundo a própria experiência petista nos
156

mostra, fazer leves mudanças tanto no ângulo quanto na velocidade em que se segue para

frente, rumo a um Brasil neoliberal. Portanto, as vantagens do lulismo foram demonstrar que

moderações e tensões dentro da ordem são possíveis explorando algumas brechas

especificamente em tempos de crescimento, ou seja, situação de acumulação internacional

favorável ao país. Esta última é que determina as possibilidades, embora não as formas, de

ângulo e velocidade em que o país caminha em direção ao neoliberalismo. Por isso o lulismo

acaba por ser uma ideologia contra a teoria crítica da dependência flexível no país e na região

ao defender coisas como o tão antigo “mito do crescimento”, agora renovado pelo lulismo,

assim como a ideia de que no lulismo vivemos um “reformismo fraco”. Respondendo de

forma distópica sobre este último, acredito que quando tiver sido completada o que parece ser

uma grande fase do processo de contrarreforma permanente, quando a nova ordem em

gestação nascer, aí sim, num Estado sem direitos sociais e sem o funcionalismo público

(talvez excetuando militares, judiciário e demais setores-chaves da forma política estatal

dependente flexível), depois da eleição de uma candidatura popular, sem ter muito a perder,

talvez tenhamos algumas migalhas a arrancar do capital. Aí sim teremos um reformismo

fraco, uma vez que a conta final entre perdas e ganhos passará a ser, depois que a ordem já

estiver nascida, positiva num governo de esquerda ou centro-esquerda. Obviamente, o melhor

a fazermos seria interromper essa gestação e abortar sem dó e qualquer piedade essa gestação

da barbárie nos trópicos. Todavia, como defendemos, a ideologia do lulismo presta tremendo

desserviço impedindo esse aborto do neoliberalismo ao dizer que é possível ser “progressista”

dentro da ordem, que é possível “reformar” dentro de uma ordem cuja tendência primordial,

do ponto de vista da classe que vive do trabalho, é um contrarreformismo permanente, o qual

determina as altas circunscrições à democracia contra o capital no país. Aliás, essa visão de

ser “progressista” ou de praticar um “reformismo fraco” parece ser uma visão a partir da

grande burguesia interna, a qual foi a principal peça em que se apoiou os governos do PT
157

(Boito, Jr., 2018), pois, essa grande burguesia brasileira não é contra o neoliberalismo de

tudo, mas apenas em alguns pontos específicos, na maioria ligada ao protecionismo e ao

financiamento público massivo de sua acumulação. Nos governos do PT essa burguesia, num

balanço geral, ganhou muito mesmo dentro do neoliberalismo, ao passo que os trabalhadores

mais perderam que ganharam em função tanto da proteção compensatória como da contínua

perda de direitos sociais e de privatizações. Não vemos possibilidade e nem motivos para

qualificar “vitórias” sobre o neoliberalismo, mas sim derrotas. Por isso um contrarreformismo

fraco ou forte a depender da matéria em questão seria uma expressão não só mais precisa,

quanto crítica à dependência flexível.

No tocante ao presente, a famigerada “PEC dos precatórios” ou, como também é

conhecida pelas críticas, a “PEC do calote”, não é apenas a negação do próprio “Estado

Democrático de Direito” como a Comissão de Precatórios da OAB Nacional afirmou (Cucolo,

2021), nada de novo no “juspositivismo”, diria Mascaro (2018), mas também é uma absurda

pedalada de 90 bilhões de reais, em pleno ano de 2021 de Bolsonaro, ano pré-eleitoral, uma

pedalada dessa para financiar o Auxílio Brasil (Kliass, 2021) e comprar a fidelidade do

chamado “centrão” com as obscuras e tenebrosas “emendas secretas do relator” (Barbosa,

2021). Essa reciclagem do Bolsa Família “turbinado”, como a equipe de Paulo Guedes

costumou propagandear desde o início do mandato, vai destruir a rede de serviços sociais do

SUAS (De Sordi, 2021), tão duramente conquistada e hoje ainda em grande parte sob

responsabilidade pública – quero dizer, não terceirizado completamente. Talvez um motivo

para a terceirização por ONGs e instituições confessionais no futuro? O cadastro único será

uma vez mais, vejam só, descentralizado num nível de “autoatendimento”, num processo que

em minhas anotações etnográficas tenho chamado de “burocratização robotizada” no

capitalismo “digital”. Famílias pobres terão que “conversar” com um robô para preencher o

cadastro único (Mello, 2021). Tudo isso porque o Estado “economizará” entrevistadores em
158

toda a esfera municipal do Brasil. Com isso Bolsonaro e sua equipe pretendem quebrar o

SUAS ao meio, num dos maiores motivos de instalação do SUAS nos municípios, que é o

cadastro único e, nesse sentido, acaba por “livrar” a União de cumprir com seus repasses

obrigatórios e condicionais aos estados e municípios. Está em curso um processo de

“centralização” da assistência social, na medida em que promove uma marginalização das

esferas municipais quanto ao SUAS, tudo isso com os olhos em 2022 (Mello, 2021b).

Enfim, a desprofissionalização e o aprofundamento, uma vez mais, do processo de

refilantropização da assistência social, juntamente com o renascimento do primeiro-damismo

tendem a ser funcionais não só ao projeto do Bonaparte genocida dos trópicos, que é o

aprofundamento da dependência das massas pauperizadas do país, uma vez que ficarão mais

desprotegidas ainda, mas ao mesmo tempo abrir uma seara que nas décadas recentes de

profissionalização e institucionalização pública da assistência social sob governos petistas

“tomou” das mãos dos evangélicos, filantropos conservadores da classe média em geral, de

coronéis e primeiras-damas dos interiores e das capitais a primazia do trato com a pobreza e

com os pobres. Segundo De Sordi (2021b), está em curso um processo de “(re)moralização da

pobreza”. Onyx Lorenzoni afirmou a poucos dias atrás que o governo já possuía em estado

acabado o projeto para implementar o “serviço social voluntário” (Pupo, 2021). Para finalizar

esta breve descrição do caráter horrendo das tendências atuais, a aprovação pela Câmara Alta

de um pastor para o STF, o qual, logo após uma sabatina em que claramente mentiu para os

Senadores que poucos se importaram com isso, como se fosse combinado mesmo, fez um

discurso proselitista após sua aprovação (Bächtold, 2021), trazendo à tona uma pesquisa que

diz que, caso continuemos no ritmo atual – daquilo que Sampaio Jr. (2017) brilhantemente

chamou de misticismo mercantilizado – a maioria da população do país será “evangélica”

em pouco mais de uma década, afirmou Balloussier (2020). Continuem a ligar os pontos se

quiserem, caso tenham estômago para isso.


159

Dando um passo atrás nessa discussão, a título de contextualização, o chamado

“precatório” é o documento que formaliza a vitória de uma indenização via judicialização, em

processo contra o Estado, seja lá em que nível for, tanto por parte de pessoa física quanto da

pessoa jurídica, embora neste caso estejamos falando especificamente da União. Esta PEC

ameaça produzir outra forma sui generis de “endividamento público”. O que Barbosa (2021)

chamou de “bomba fiscal”. Ao criar uma fila e fugir para frente esquivando do pagamento do

montante de precatórios, no futuro essa corrida desesperada do Bonaparte tardio dos trópicos

pode produzir um montante de R$ 1,4 trilhão até o ano de 2036. Pelo padrão dependente que

analisamos, o pagamento dos juros por parcelamento até sumir de vista de dívidas da União

para com pessoas que integram em considerável proporção as massas mais empobrecidas da

classe trabalhadora. Numa reviravolta descomunal, essa “nova” “dívida pública” disforme, a

tal “bomba fiscal”, surgiu a partir da negação do Estado de executar seu papel inscrito no

texto Constitucional, numa dívida para com as massas trabalhadoras, muitas vezes em

judicializações de direitos previdenciários e assistenciais (BPC) negados pela burocracia do

INSS – considerado o maior litigante nacional no início da década passada, “correspondendo

a 22,3% das demandas dos cem maiores litigantes nacionais, seguido pela Caixa Econômica

Federal, com 8,5%, e pela Fazenda Nacional, com 7,4%” (Carvalho, 2011) – essa negação

poderá custar muito alto no futuro, e quem irá pagar são essas mesmas massas trabalhadoras.

Talvez estejamos prestes a assistir um aprofundamento no nível de reprodução ampliada do

capital, e um avanço agressivo na captura do Fundo Público no nascimento de uma forma

“nova” de rolagem de ‘dívida pública” numa direção que aprofundará a fragilidade fiscal e,

em tempos de recessão internacional, maior fragilidade cambial. Segundo Pires (2021), uma

criatura da Câmara Baixa chegou a explicitar que cada voto para a aprovação desta PEC

chegou a valer R$ 15 milhões, os quais os Deputados usarão para saciar seus currais eleitorais

em investimentos que, como os seridoenses falam, são “sem futuro”, na maioria dos casos,
160

pois atravessados por práticas de clientelismo, coronelismo, patrimonialismo, eivado de

corrupção e carente de planejamento e apoio técnico qualificado em políticas sociais e

públicas, em geral. No total, foram cerca de R$ 1,2 bilhão liberados em recursos do chamado

“orçamento secreto” para garantir a aprovação da proposta na Câmara em primeiro turno. Na

leitura de Fernandes (2021), a votação dessa PEC termina por escancarar a forma como o

“toma lá, dá cá” está se sofisticando na atualidade. Uma característica histórica do que Boito

Jr. (2018) chamou de “presidencialismo autoritário” ou “hiperpresidencialismo”, que coopta a

agenda do congresso ao mesmo tempo em que é refém dele, o que produz uma ciranda da

corrupção como financiamento dessa institucionalidade profundamente anti-representativa em

termos democráticos populares.

Gostaria também de refletir sobre a maturidade do sistema de acumulação vigente no

país. Saad Filho & Morais (2018) afirmam que estamos vivendo a época do neoliberalismo

“maduro”. A questão nem é apenas o que isso significa, se implica estabilidade nas suas

tendências ou coisas do tipo. A questão é um pouco anterior. Parafraseando Terry Eagleton

(2011) ao falar sobre o capitalismo “tardio” mandeliano, deveríamos tomar muita cautela ao

afirmar que o sistema de acumulação dependente flexível brasileiro está maduro, pois não

podemos saber ao certo o quanto maduro ele realmente está.7 A questão, ao meu ver, parece

ser a seguinte: será que realmente não dá para piorar? A história do movimento operário e

socialista mundial nos mostra que sempre dá para piorar, principalmente nas últimas décadas.

Se retornarmos à metafísica neoliberal e seus movimentos para transpor à prática as suas

certezas altamente despóticas, veremos que, no Brasil, ainda há uma faixa de protagonismo do

7
A própria transição energética está prestes a se tornar, se já não é, uma plataforma de acumulação ampliada do
capital internacional. Sim, talvez o capitalismo “tardio” se restaure e essa transição energética, em meio à quarta
revolução industrial-tecnológica, “digital”, seja o espaço necessário de valorização diante da crise vigente. Ou
seja, mesmo os marxistas regulacionistas, que vem o neoliberalismo como um sistema de acumulação apócrifo
em crescente risco de ter sua legitimidade trincada, também não estejam certos sobre o estado de crise do próprio
neoliberalismo. Estamos falando de novo da restauração do capitalismo “tardio”. A própria crise climática e a
necessidade de sobrevivência podem ser o ímpeto que faltava ou de que dependia uma nova rodada de
restauração do capital. De qualquer forma, o que está em jogo é maturidade (e não a idade) de um modo de
produção, contando com múltiplas e variadas réplicas únicas mundo a fora. Nesse caso, toda cautela é pouca.
161

Estado no tal “mercado”, seja de serviços ou industrial. A ideia neoliberal de um ajuste sem

fim é justamente perseguir a todo custo o fim do setor ainda público no “mercado”, ou seja,

mercantilizar tudo. Privatizar completamente o setor de bens e serviços ainda público. O

motivo dessas aspas é que esse discurso parte de uma economia-política que vê tudo como

mercado. É nisso que ela é totalitária e disfarçadamente despótica. Não precisamos concordar

totalmente com a tese do “antivalor” de Chico de Oliveira (1997) para defender que, apesar

dos pesares, a tese dele parece querer denunciar de uma forma hiperbólica que há algo de

errado ali, em ver o Fundo Público absolutamente capturado pelo capital como um fundo

privatizado, tomado por inteiro pela necessidade contínua de valorização e pagamento dos

serviços da dívida. Ora, se no futuro não tivermos mais funcionalismo público no país, qual o

nome do componente que nós perdemos nessa trajetória? Dar nome às coisas ajuda muito no

caminho tortuoso de traduzi-las. O monopólio ou o protagonismo da oferta de certos serviços

por parte do Estado, implicando o poder deste último de interferência na qualidade da

concorrência no “mercado” e no “desenvolvimento” nacional parece ser um dispositivo

importantíssimo para as massas trabalhadoras e suas possibilidades de vida e trabalho. É a

estabilidade que ainda resta dos anos dourados que nunca tivemos. A vanguarda sempre foi

pública no fordismo tardio e dependente brasileiro. Portanto, a destruição do funcionalismo

público, uma privatização por terceirização, não é apenas a demissão e precarização massiva

de uma massa significativa de trabalhadores – inclusive que integram a fração intermediária

da classe média brasileira e que seriam subitamente empobrecidos, equiparados à condição

daqueles seres que eles tanto tem nojo, mas uma massiva privatização e precarização na

prestação de serviços, ademais o aumento nos seus valores. Esta aí uma questão importante de

um ponto crítico desta economia-política: a vantagem do Estado administrar os preços e o

nível de qualidade dos serviços e bens, além de ter alguma influência sobre o valor da força

de trabalho em setores específicos. Num Brasil totalmente neoliberal, talvez aí sim


162

seguramente maduro, os preços dos serviços serão absurdos e sua qualidade ruim se não

desigualmente estratificada: uma oferta boa o suficiente para a classe média, o resto é tudo

padrão Estácio de Sá de (des)educação superior. A questão, contudo, está também na classe

média, seja ela da educação superior, do aparato civil e militar de repressão, do judiciário e de

outras áreas muito bem pagas do funcionalismo público, principalmente federal e estadual,

aqueles que ganham acima de dez salários mínimos com certa folga, pois o conflito em torno

de sua própria existência, implicando refletirmos sobre os conflitos intra-fração de classe,

talvez seja o grande motor da história não visualizado por muitos. A tensão se concentra sobre

a parte do Estado que ainda permanece pública, ela é que será cada vez mais atacada. Daí não

se trata apenas de um setor moderno mantendo o atraso para sobreviver, assim, de forma tão

harmônica, pois parece haver conflitos e pressões infra-setores. Em suma, parece existir um

setor moderno cada vez mais concorrido internamente, sendo comprimido pela continuidade

da transição ao neoliberalismo – aqui está a tese: a transição ainda está em vigor –, num

movimento que tenta expulsar parte de sua parcela de volta pro atraso, tudo isso na

perseguição do “moderno” brasileiro. A grande burguesia interna e o capital internacional

parecem estar loucos por acabar de vez com a burocracia estatal, e o patrimonialismo e o

clientelismo por coronéis do interior que só são possíveis por causa das empresas públicas,

incluindo aí a seguridade social, que para ambos não passa de um conglomerado de empresas

públicas mantendo um monopólio públicos de “serviços” que poderiam ser privados, gerar

lucro, crescimento e enriquecimento para a “nação”. Nesse sonho futuro, o parlamento terá só

representantes diretos das frações do capital, afinal, não vai restar Estado para o clientelismo e

o populismo local, só nas esferas superiores, provavelmente. O discurso da corrupção

utilizado como artilharia anti-Estado se presta justamente a questionar os quase 17 mil cargos

que o presidente nomeia. Óbvio que uma coisa não tem nada a ver com a outra. Democracia

seria tornar essas nomeações representativas de alguma forma, com controle público, outra é
163

querer privatizar para salvar a República da corrupção. Se tem algo importante na obra de

Souza (2015) é ela denunciar com minúcia que a o patrimonialismo e corrupção são nativas

do próprio mercado enquanto expressão da sociedade na qual ele emerge, brasileira, neste

caso.

Seguindo na exposição da problemática, Armínio Fraga (2021) escreveu um texto

recentemente que acredito conter senão uma, várias senhas sobre o que vem por aí. Ele

começa o seu texto falando dos desafios do Brasil no século XXI, pós-pandemia, para depois

pular para o assunto da “austeridade fiscal” – contra o que e quem, é sempre bom

perguntarmos –, a qual nunca sequer foi hegemônica no país. Sim, isso mesmo. E depois

chega no ponto principal. Ele critica o funcionalismo público e logo depois questiona a falta

de “investimento público”, chegando à conclusão de que temos investido no lugar errado,

dado que para ele funcionalismo público não é um investimento obrigatório, uma vez que,

como explicitei ao descrever a metafísica neoliberal, toda aquela “reserva de mercado”

poderia ser “tornada” privada do dia para a noite num mar de transações tenebrosas à la era

FHC, o qual ele cita, defende e exalta. Tudo isso contando que o texto em questão foi

publicado num dos jornais pertencentes ao oligopólio da mídia brasileira, claramente tucana

num dia de vitória de João Dória – o proto-fascista representante do capital internacional que

quando prefeito de São Paulo elaborou o infortúnio da “ração humana” feita com coisas quase

vencidas para famílias famintas – nas prévias presidenciais, prévias essas que essa mesma

grande mídia fez campanha tentando vender o processo como possível parteira de sua

“terceira via”, contra a “terceira via” da “esquerda” – reductio ad absurdum –, o PT8.

Resumindo seu discurso de forma mais direta, ele aponta que a questão não é a aversão a

8
Sobre essa “ração humana” a chamada de Pinho & Ottoni (2017) do portal G1 foi a seguinte: “Doria dará
alimento granulado feito a partir de itens perto do vencimento a famílias carentes”. É isso mesmo, os oligopólios
concordam que isso seja, de fato, um alimento. A lógica de exploração do capitalismo dependente, tanto a de
ontem como a de hoje, parece despertar tendências endógenas de escaladas proto-fascistas por parte das
burguesias. O próprio sistema é eivado à selvageria e canibalismo. A título de complemento desse enredo, de
acordo com Boito Jr. (2018) o PSDB é o partido do capital internacional.
164

investimentos públicos, mas sim ao funcionalismo público ou, melhor, ao monopólio ou

protagonismo do Estado no setor de serviços. Vendo as coisas desse lado, é como se eles

quisessem combater a captura do Fundo Público pelo funcionalismo público. A senha dele

passa ser a seguinte: aceitamos o investimento público, não aceitamos é não permitir a

mercantilização desses setores até então coisa pública.

Resumindo o questionamento inicial, até quando o Brasil ainda tem para se “tornar

mais” neoliberal? A visão futurística tão distópica quanto realista de um Brasil todo

privatizado e do orçamento público liberado para jorrar dinheiro no mercado, principalmente

em seu papel de operador da modernização conservadora, financiando a infraestrutura

nacional e pavimentando a existência do mercado interno e a ampliação das possibilidades de

exploração, algo tão fundamental, agora sem o antigo desvio desse montante de recursos – no

total, 13,7% do PIB em 2019, cerca de R$ 930 bilhões – aos trabalhadores da classe média

brasileira. São muitas as transformações daí decorrentes. A ascensão de uma “burguesia dos

serviços” já foi anotada por Boito Jr. (2018). Teríamos um cenário em que uma massa de

trabalhadores será jogada diretamente no mercado de trabalho privado, aumentando a

qualidade e a concorrência em meio a péssimos valores de remuneração e condições de

trabalho. Tudo indica uma grande insatisfação social das muitas frações da classe média em

decadência e da classe trabalhadora. A qualidade e o valor dos serviços irão cair e os preços

irão subir. Talvez uma aliança entre a ala civil-militar e do judiciário consigam salvar suas

peles entregando a educação fundamental, média e superior e a previdência que ainda restam

públicos como expiação por seus altos salários e rendimentos complementares, talvez as duas

frações mais poderosas do funcionalismo público e, sobretudo, da Nova República que caiu

duas vezes entre 2014-2016. E não para aí, a proposta é terceirizar tudo e em todos os níveis

da federação. As massas trabalhadoras precarizadas do serviço público municipal interiorano

do país serão todas contratadas por empresas privadas e os serviços, portanto, serão, ao gosto
165

da política econômica de Fernando Haddad, “público-privados”. A mesma coisa no Distrito

Federal e nos estados da federação. Neste ponto, é fácil ver como o PT e o lulismo não

estavam indo pro lado com as PPPs. Eles estavam indo para frente mesmo, pavimentando as

estradas para o futuro neoliberal.

Daí o Estado estaria “livre” para “investir e crescer”, vulgo “feliz para sempre”, o

canto da sereia neoliberal. As questões para pensarmos são duas. Se isso tudo algum dia

acontecer o Brasil realmente terá se tornado mais dependente? E, o que é diferente, se existe

possibilidade disso dar certo por algum tempo – assim como o controle temporário da inflação

por FHC – quais seriam os seus padrões de subdesenvolvimento? Armínio Fraga, comissário

do capital, já deu a largada disputando os sentidos das eleições presidenciais do ano que vem.

Chegou a propor que todos os candidatos apresentem uma folha modelo da ideia de

orçamento para o ano que vem como matriz orientadora do voto: quanto mais austeridade

melhor, afinal de contas, o próprio autor nega que a austeridade faça parte da história recente

do país. Parece que ele demanda algo mais, digamos, radical. De um ponto de vista

discursivo, não deveríamos agir como psicanalistas achando que se trata de uma “passagem

ao ato” (acting out). É claro que é bárbaro o sonho de futuro dele, mas é do ponto de vista da

classe trabalhadora. Para ele é um sonho de muitas oportunidades de atuação num mercado

“ampliado”. E não é só o sonho dele, é o sonho da grande burguesia interna e do capital

internacional. Pouquíssimos dias depois, o mesmo Armínio Fraga ressurgi se voluntariando

para “retornar a Brasília” (Gravas, 2021). Percebam que ele não consegue, talvez porque não

possa, segundo certas linhagens do marxismo críticos da teoria política sugerem, ser muito

literal e direto sobre o que ele quer (Boito Jr., 2018; Mascaro, 2018). É sempre um sistema

semiótico relativamente autônomo da base material, mas apenas na esfera pública, ou seja,

ideologia pura. Nas quatros paredes, nos salões que essas criaturas frequentam as coisas são

ditas de forma muito direta, como mostram os áudios vazados nessa era “digital”.
166

Por fim, pensar um projeto nacional de contestação do capitalismo, um projeto de

transição do regime vigente é uma tarefa das mais urgentes. O neoliberalismo é uma máquina

de moer a capacidade fiscal e cambial do Estado brasileiro, dependente justamente pelas

remessas que tem de entregar aos credores internos e externos num volume e numa proporção

de juros raramente vista no mundo. Daí a necessidade do primitivismo nas formas de

exploração como pilar organizativo e funcional da estrutura dependente. Muito menos que um

problema da burguesia interna – outra questão a pensar, até quando ela resistirá interna, se é

que realmente seja interna – trata-se de um problema do Estado brasileiro e de suas contas.

Este estilo genuíno de Estado não vive sem a exploração em formas primitivas, ele é

dependente também dela, pois a utiliza como instrumento para lidar com sua dependência do

capital interno e externo. Trata-se de uma ciranda da dependência. Nela os burgueses saem

ganhando e as massas, exploradas, sempre. Talvez o mais importante, se o esquema acima

estiver próximo da realidade, é que classe média e massas trabalhadoras se enfrentam na

disputa pelo que resta do Fundo Público, tendo em vista a desproporção de poder com o

grande capital. A classe média oriunda do funcionalismo público está em disputa interna

também, com alta probabilidades de rachaduras, como explicitado. Nesse contexto, temos, de

acordo com Boito Jr. (2018), conflitos de classe, e não luta, propriamente. Se realmente for

esse o caso, que fazer diante desta conjuntura?

Retornando à problemática em torno do que foi nomeado por “antivalor”, e, ao mesmo

tempo prosseguindo nas investigações sobre a ordem que está para nascer, talvez esteja muito

errado, mas parece que Chico de Oliveira não estava com os olhos voltados ao presente

apenas, mas ao passado e, sobretudo, ao futuro tenebroso que ele via nascer no período pós-

fordista mundial. Não se trata de negar o valor produzido pela classe proletária que atravessa

o Fundo Público, mas do Fundo Público que ainda resta público ser algo não só diferente, mas

antagonista do que está para nascer: a privatização completa do Fundo Público. Nesse cenário
167

futuro possível, o funcionalismo “público-privado”, terceirizado nas duas esferas inferiores da

federação, estados e municípios, a parte pública do Fundo “Público” seria ínfima, porque

privatizada na execução dos serviços, educação, saúde, assistência social e demais setores

burocráticos em nível estadual e municipal. O Orçamento Público anual seria, bem mais do

que já é hoje, capturado não só pela dívida pública, mas pela própria privatização do que resta

de público na execução da Seguridade Social. A terceirização seria uma etapa final na qual o

Fundo Público passaria, digamos, a ser bem mais pró-valorização do capital que antes.

Valorização não apenas em sentido estrito, de produção de valor, mas de possibilitar que o

capital excedente transite com mais espaço que antes, numa reprodução plenamente ampliada.

A assistência social, na ordem que está para nascer, será mais transversal, um futuro

que se parece muito com o passado brasileiro nessa matéria. As transferências monetárias

tenderão a atingir níveis bem maiores que os atuais, hoje na faixa de R$91,00 (PBF) a até

R$1.800,00 (Auxílio Emergencial) no auge da pandemia covid-19. A própria pandemia tratou

de elevar muito os valores diante da situação de calamidade que emergiu num país com mais

de 40% de sua população desprotegida em termos de direitos vinculados ao trabalho,

dependentes da formalização. Uma parcela que sempre variou perto dessa porcentagem na

trajetória do país até o presente. Essa transversalização ocorrerá via transferências monetárias,

uma vez que os “salários indiretos”, os direitos sociais, estarão derruídos, em péssimas

condições e bem focalizadas aos mais pobres, bem mais do que, por exemplo, SUS já é hoje e

que em parte se consolidou assim atravessando o lulismo. Notemos que a assistência social

não será absoluta, porque as estruturas, prédios e etc., permanecerão propriedades públicas,

mas cedidas ao capital. Daí a aparência dos serviços ainda permanecerem públicos. Essa

forma de privatização da parte do Estado que ainda resta pública hoje aparenta ter a tendência

de ser capciosa no nível da ideologia. Contudo, nada de novo na história dos períodos de

restauração do capital.
168

Esses conflitos entre frações da classe média nos serviços públicos denuncia a

tendência ao corporativismo no sindicalismo por categoria e setor de atuação (Boito Jr.,

2018). Portanto, essa classe está totalmente não só desunida, mas em profundo conflito.

Assim sendo, como o funcionalismo público, o elo mais fraco e o inimigo número um da

burguesia interna tanto quanto do capital internacional, se defenderá dos ataques? Esta fração

ainda fordista da classe trabalhadora em um Brasil de resto pós-fordista é vista como o que de

fato ela é: a ainda detentora de uma parcela considerável das quantias brutas do Fundo

Público. Esta fração da classe trabalhadora é a última trincheira entre um Brasil

completamente neoliberal, no qual o Fundo Público seria repartido, numa hegemonia absoluta

do capital, entre os credores da dívida pública, via pagamento dos serviços da dívida, e a

grande burguesia interna e esses mesmos credores, novamente, via investimento “público-

privado” – investimentos financiados por empréstimos a juros subsidiados pelo BNDES. Este

hífen do “público-privado” significa uma via de mão única no fluxo da reprodução ampliada

do capital. O Brasil neoliberal não foi parido como parecem sugerir Saad Filho e Morais

(2018), ele ainda está por nascer. A transição ainda está em curso. Nos governos Lula a

velocidade da gestação diminuiu levemente em certos aspectos. Isso continuou até o primeiro

governo Dilma. Do segundo governo Dilma em diante, Temer e Bolsonaro, a velocidade

voltou a um padrão próximo ao FHC de gestação do Brasil Neoliberal. É esta a minha leitura

da ordem que está para nascer no Brasil. Quando Lula e Dilma financiaram os “campeões

nacionais” num contexto internacional favorável, acabaram por formar os traços centrais do

Brasil neoliberal desejado por muitos, parte do 1%. A burguesia em geral viu que dá para

ganhar muito com investimento “público” no país. Os pobres? Uma renda básica “universal”

para os “mais pobres” resolveria a questão da legitimidade, embora temporariamente. Nesse

ponto, principalmente depois da recessão no segundo mandato de Dilma, o funcionalismo

público ficou evidente como ente desnecessário, arcaico, sobretudo fordista demais. Sendo
169

um esperançoso pessimista, vejo necessário apontar que a luta de classes, ou os conflitos,

como alguns propõem a distinção, não morrem com a transição ao neoliberalismo, caso

consumada. Elas se transformarão. Há uma alteração de formas de lutas e conflitos de classe.

Afinal, sendo uma nova ordem, as classes estarão lá, embora de outra forma. A hegemonia

burguesa perfeita, ainda que se torne perfeita, de fato, permanecerá sendo mantida pela classe

que vive da venda de sua força de trabalho. A organização das massas é a nossa única

possibilidade na gestação de alternativas que apontem caminho para um outro Brasil.

É bobagem acharmos que o que está em jogo são as condições de vida e trabalho da

classe trabalhadora brasileira, desde o funcionalismo público ao lúmpem, passando pelos

formais e informais. Isso é um absurdo na verdade. É ficar preso ao presente e ao local, coisa

que essa ordem da acumulação flexível tenta nos enfiar pela goela abaixo, inclusive através da

“esquerda” pós-moderna. As massas trabalhadoras não estão sozinhas, muito menos agora

com a compressão espaço-tempo que exsurge. A luta em busca de outro Brasil só pode ser

pensada como uma luta integrada à América Latina e ao Sul do mundo. A qualidade da

derrota ou da vitória que obter interferirá ativamente no mundo todo na correlação de forças

da classe trabalhadora mundial, de alguma forma e em alguma medida. Uma aliança socialista

transnacional é uma demanda de uma ordem internacional do capital. No mais, está em jogo a

memória e o legado concreto das classes trabalhadoras que habitam o passado, brasileiras,

latino-americanas e mundiais. O que está em jogo, sobretudo, é o conflito entre o capital e os

restos da face humana que ainda restam neste modo de produção, arrancados pela luta

operária e socialista. Daí a constatação da tendência de declínio civilizatório do capital

(Alves, 2019). Parafraseando Žižek (2019), depois de o capital destruir o inimigo (o

socialismo), a destruição se volta contra si mesmo. Portanto, o que está em jogo é aquilo que a

classe trabalhadora conseguiu arrancar, mesmo que parcialmente, das mãos do capital.
170

4.2 Breves considerações finais sobre o significado desta pesquisa e de seus resultados

para a psicologia

Por mais que eu tenha previsto desde o início do projeto de pesquisa, ou mesmo antes,

na tentativa de seleção, uma resistência institucional à minha perspectiva e proposta de

estudo, foi bem diferente viver na pele essas resistências, tocar nessas barreiras reais à crítica

materialista. Ainda no seminário de defesa do projeto, foi me perguntado o que meu tema

trazia de ou para a “psicologia”. A minha melhor resposta, preparada alguns dias antes, foi

negar qualquer resposta positiva e evocar subitamente a lembrança do Vaticano esconjurando

os teólogos da libertação, muitos deles latino-americanos, propositores de uma teologia dos

latino-americanos para os latino-americanos. Na ocasião, comparei quem me questionava a

Joseph Ratzinger ao não aceitar uma teologia sem deus: o que eu propunha e continuo

propondo é uma psicologia sem “psicologia”. A tréplica final da à época coordenadora do

curso de pós-graduação em psicologia foi a de que ela entendia o argumento, mas achava

necessário ter “algo” que “nos” “diferenciasse”. Esse signo de distinção a que ela se refere é a

subjetividade como objeto de estudo central. Ocorre que o meu projeto intelectual, bem mais

que apenas essa pesquisa específica, caminha numa direção diametralmente oposta.

A fim de não restar tantas dúvidas a respeito, considero necessário tornar explícito que

a trajetória e a presença do Prof. Oswaldo Yamamoto e da Profa. Isabel Oliveira me

chamaram a atenção e me atraíram para o nordeste justamente pela distinção que considero

uma das mais importantes características de seus estudos no país, mas infelizmente muito

marginalizada em tempos do domínio institucional de um idealismo europeu aliado a um

liberalismo, às disfarçado às vezes escrachado, que a tudo corroem: o nosso objeto de estudo

não é a psicologia, a subjetividade ou qualquer coisa que o valha. Não é a mente humana e

nem qualquer coisa do tipo, a qual me refiro com aspas. Já faz algum tempo que ambas
171

figuras se encarregaram de inverter as coisas e transformar a própria “psicologia” como

ciência em um objeto de estudo num contexto muito específico. Não mais como ciência

psicológica, uma ciência da subjetividade, mas sim como uma profissão, a psicologia como

uma força produtiva localizada dentro de um complexo e amplo mercado interno de serviços

de reprodução social (psicologia da saúde e congêneres) e de serviços relacionados à própria

produção (psicologia organizacional e etc.), portanto, um elo duplamente importante no

circuito do valor. É essa a grande distinção. E é por essa razão que a proposta desta

dissertação foi a de estudar o contexto de desenvolvimento dessa força produtiva nas últimas

décadas, e não o dessa força produtiva em si. Foi um passo adiante na possibilidade do

desenvolvimento de estudos no campo da psicologia que consigam olhar para fora, para antes

e além dessa ciência e profissão e suas questões, pois temos uma questão social para lidarmos

numa nação destroçada pelo capital. O que querem fazer quando tentam nos impor o

predomínio do estudo da subjetividade a ferro e fogo não deve ser tomado como uma busca

da “diferença”, mas justamente o oposto: o que se busca é a homogeneização do campo de

pesquisa em psicologia e, assim, a eliminação sumária do materialismo e da crítica da

economia política e de seus temas de pesquisa “estranhos” à disciplina. Se essa empreitada

higienista do pensamento crítico der certo algum dia, teremos uma psicologia realmente pura

tanto em sua substância idealista europeia como liberal ou conservadora, restando apenas

alguns estudos de um “marxismo” subjetivista e voluntarista tanto quanto decadente em

relevância social. No que depender do presente pesquisador, essa redenção ao pensamento

único não será tão fácil assim. É por essas razões que o que propomos é mais uma crítica da

psicologia, do que a agregação de algum adjetivo à mesma, seja como ciência, seja como

profissão.

Em suma, a escolha do tema dessa investigação foi um passo primordial para

ensaiarmos a prática de pensar a proteção social não através de disciplinas especializadas em


172

setores das políticas sociais (assistência social, saúde, educação e etc.), mas como um sistema

de proteção social, o que possibilita um ângulo de visão contestador da ortodoxia corrente na

psicologia.

Parafraseando Mascaro (2018), a maioria das vertentes em psicologia hoje são

“juspositivistas”, quando não esboçam certa dose de não-juspositivismo de raiz francófona ou

propriamente nietzschiana, tendem a descartar de forma caricatural a crítica marxista como

puro “economicismo”, quando, na verdade, trata-se de uma estrutura e ordem discursiva que

desautoriza e exclui a possibilidade de pensar qualquer contribuição da crítica da economia

política, considerando que acusar esse campo de “economicismo” é negar a própria proposta

dessa tradição. Prevalece em todo caso a negação das fortes ligações materiais entre economia

e política numa ofensiva por uma dobradinha entre pós-modernos e neoliberais, os quais

guardam bastante consenso em muitos assuntos de relevância para as massas trabalhadoras

brasileiras.

Acredito que este texto poderá ser aproveitado como uma introdução crítica e

alternativa ao tema da proteção social no capitalismo dentro da disciplina, principalmente para

estudantes ainda não familiarizados com o tema, conceitos e categorias envolvidas. Uma

introdução crítica à forma de pensar o Estado Capitalista e as relações que as classes

estabelecem com ele, principalmente em termos de políticas sociais.

5. Referências Bibliográficas

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