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CAPITALISMO CONTEMPORÂNEO
Natal
2021
Victor Cesar Amorim Costa
CAPITALISMO CONTEMPORÂNEO
Natal
2021
1
contemporâneo", elaborada por "Victor Cesar Amorim Costa", foi considerada aprovada por
BANCA EXAMINADORA
de paz e de tranquilidade.
Friedrich Engels
4
Agradeço aos meus pais por terem estado ao meu lado o tempo todo, mesmo estando
tão distantes.
Agradeço aos meus amigos, os potiguares que estiveram comigo a maior parte do
tempo, e os mineiros que mesmo de longe marcavam presença com carinho e cuidado.
Agradeço ao Fabrício pela companhia prazerosa, pois não há nada melhor que criticar
Agradeço à Isabel pela confiança depositada nessa empreitada. Fez muita diferença!
Agradeço ao Yamamoto, sem as contribuições e orientações dele este projeto não teria
À Universidade Federal do Rio Grande do Norte, por ser a primeira instituição pública
de ensino superior em que tive a oportunidade de me matricular. Isso deveria ser direito de
todos!
Sumário
LISTA DE FIGURAS E TABELAS ......................................................................................................................7
1. INTRODUÇÃO .................................................................................................................................................10
1.1 JUSTIFICATIVA .............................................................................................................................................14
1.2 OBJETIVO .....................................................................................................................................................26
1.2.1 OBJETIVO GERAL .........................................................................................................................................................................26
1.2.2 OBJETIVOS ESPECÍFICOS ...........................................................................................................................................................27
1.3 MÉTODO .......................................................................................................................................................27
1.3.1 SOBRE MÉTODO E ESTRATÉGIA DE TRABALHO ....................................................................................................................27
1.3.2 SOBRE OS CRITÉRIOS E FORMAS DE MAPEAMENTO, IDENTIFICAÇÃO E SELEÇÃO DA BIBLIOGRAFIA .....................31
1.3.3 SOBRE O PROCESSO DE REVISÃO E CONSTRUÇÃO DA DISCUSSÃO ..................................................................................42
Tabela 1. Resumo dos resultados da primeira fase do processo de seleção dos textos...........39
RESUMO
Esta pesquisa foi movida desde o início pela busca da apreensão das tendências em termos de
tratamento da questão social nos governos petistas, tomada enquanto uma via de investigação sobre as
anos de furor do crescimento efêmero e tendo o país mergulhado em crises consecutivas após junho de
2013, o golpe parlamentar de 2016 colocava um fim numa trajetória de 12 anos de governos petistas,
os quais se iniciaram de uma maneira completamente diferente. Nesse contexto, nosso esforço geral se
voltou à análise de como a questão social foi tratada no Brasil tendo como foco os governos petistas.
Nessa trajetória, realizamos uma revisão um tanto híbrida, inspirados em elementos da revisão
sistemática, mas não ferrenhamente presos a ela. No total foram selecionadas oito obras após fases
consecutivas de filtragem dos resultados obtidos. Por fim, os resultados da revisão indicam um
social a partir da lógica do mercado. A privatização persiste firme e forte como um processo gradual,
as vezes mais intenso, as vezes mais lento contra qualquer coisa que ainda reste pública. O boom das
Fundo Público pelos serviços da dívida pública, a mantença do tripé macroeconômico neoliberal e o
caráter intocável da Lei de Responsabilidade Fiscal, esta última utilizada para derrubar Dilma,
ABSTRACT
From the beginning, this research was driven by the search for the apprehension of tendencies
Cone. of ephemeral growth and having the country plunged into consecutive crises after June
2013. The parliamentary coup of 2016 put an end to a 12-year trajectory of PT governments,
which started in a completely different way. In this context, our general effort turned to the
analysis of how the social question was treated in Brazil, focusing on PT governments. In this
review, but not fiercely attached to it. In total, eight works were selected after consecutive
stages of filtering the results obtained. Finally, the results of the review indicate a consensus
around the deepening of neoliberalism, in the sense of ordering social protection based on the
logic of the market. Privatization remains firm and strong as a gradual process, sometimes
more intense, sometimes slower against anything that remains public. The commodity boom
and the effects of its decline, especially the “late” repercussions of the 2008 crisis, were
capture of the Public Fund for servicing the public debt, the maintenance of the neoliberal
macroeconomic tripod and the untouchable nature of the Fiscal Responsibility Law, the latter
used to overthrow Dilma, denounce the undemocratic character of our dependent democracy.
Finally, we explore some scenarios and trends against social protection in Brazilian dependent
capitalism.
1. Introdução
Há alguns anos, vivíamos em tempos interessantes. Quase cerca de duas décadas atrás
o Partido dos Trabalhadores (PT) chegava ao poder na liderança de Lula da Silva. Muitas
habitação, saúde e educação, com uma quantidade significativa de sua população vivendo em
condições extremas quando não precárias de vida e trabalho – diante de um cenário arrasado
pela interdição histórica neoliberal à proteção social. A realidade capitalista que vivemos hoje
contrarreformas são o modus operandi que faz a mantença do status quo dessa interdição
histórica. Para Boschetti (2016), essa derruição de direitos anuais se trata, na verdade, de
processos de expropriação das condições de vida e trabalho dos trabalhadores via retirada de
direitos sociais duramente conquistados. Uma forma sui generis de expropriação que, como
sobre qual foi o rumo material e histórico daquele acontecimento e dos processos que se
partido diante das questões de hegemonia na luta de classes, sempre abarcado e explorado
pelas vias do conceito de transformismo (Cassin, 2015). São muitas as análises que partem
chegou ao poder executivo nacional no início deste século, analisando com apropriada
11
minúcia esse tortuoso caminho numa nação de final de século XX, na qual a democracia
oligárquica sempre foi a única alternativa ao autoritarismo, essa sempre circunscrita à ordem
do patrimonialismo e do clientelismo país adentro. Ao pensar sobre essa situação através dos
olhos escritos de Benjamin (1987), a saber, seus textos, poderíamos representar o “anjo da
história” brasileiro: o que ele vê à sua frente ao olhar para o passado recente a não ser a
crítica marxista. Para alguns, esse período não só moveu tais moinhos, como também veio
revolução epistemológica para a qual ainda não dispomos da ferramenta teórica adequada.
Nossa herança marxista-gramsciana pode ser o ponto de partida, mas já não é o ponto de
chegada” (Oliveira, 2007, s/p). Para este mesmo autor, a “hegemonia lulista” seria uma
“hegemonia às avessas” e tal período nos trouxera uma verdadeira esfinge, desafiando toda
uma producente linhagem de uma tradição crítica. O que seria isto senão uma afirmação da
debilidade da crítica marxista diante de nossas urgências modernas mais cabais? Mais adiante
linhagem da tradição.
crítica” passar, mas não a seguiu. Preferiu apostar no léxico gramsciano precisamente num
sequenciado pelo golpe parlamentar de 2016 (Miguel. 2017), o poder político no executivo
nacional passou pelas mãos de Michel Temer e agora se encontra nas mãos de Jair Bolsonaro.
devemos confessar. A barbárie se avizinhava, batia à porta. Hoje ela se encontra em nossa
sala de estar tomando café e não conseguimos fazer quase nada quanto a isso.
presente pesquisador se encontrava numa condição em que era possível enunciar aqueles
tempos como tempos interessantes, mesmo que fossem interessantes num sentido muito
ordem política e dos direitos sociais, mas na qual também se acreditava que poderiam vir
resistências com forças efetivas para barrar a barbárie. Essa crença positiva foi por água
pesquisa contabilizaram, até o momento, 614.754 mortes e 22.093.195 infecções pelo Sars-
CoV-2, segundo balanço do consórcio de veículos de imprensa com dados das Secretarias
Municipais e Estaduais de Saúde (Watanabe, 2021), uma vez que a União sob os mandos de
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Bolsonaro passou a censurar os dados atrasando a sua disponibilização a fim de evitar o seu
devido uso político pelos principais jornais nacionais, pela mídia independente e pelos
movimentos sociais, um número total que está eivado por muita subnotificação produzida
o qual ainda despertava sóbrios e animados interesses por parte deste pesquisador. Em
marxista em ler aquele período, os acontecimentos posteriores acabaram por cumprir o papel
faz necessária. Considerando toda a polêmica brevemente apresentada sobre o período dos
autônoma, justamente pelo fato de a vida humana coletiva estar privada dos meios
dos recursos naturais e, atualmente, de direitos sociais duramente conquistados, assim como
pela exploração e superexploração das massas trabalhadoras dos mais recantos lugares deste
riqueza é produzida na mesma medida em que a pobreza. É por isso que o absurdo das casas
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decimais dos bilionários chama tanta atenção quanto as milhares de vidas humanas na miséria
A escolha da questão social para nos guiar na viagem pelos textos que tratam do
período se refere justamente ao fato dela ser um potente aglutinador de sentidos e práticas nos
orientando pela questão social é uma das possibilidades de se investigar as leituras sobre os
paradeiros da luta de classes no período. Outro aspecto de suma importância quanto à escolha
desse conceito se refere à própria forma com que as produções que buscam analisar o período
organizam suas análises. Muitas vezes, os textos não tratam de cada tema social brasileiro, as
grandes questões nacionais, separadamente. Justamente por isso entendemos que o conceito
1.1 Justificativa
aspectos. Do ponto de vista pessoal, enquanto marxista em formação, o interesse urgente por
presente temática, vista como uma grande oportunidade para o aprofundamento em leituras
Um segundo aspecto seria a contribuição que iriamos oferecer para a psicologia que se
quer “crítica”. Falta materialidade a essa psicologia. Sabemos que essa é uma afirmação
profundamente tautológica, mas mesmo assim deveria incomodar tal constatação do ponto de
vista da relevância social dos espaços de intervenções que a profissão possui, os quais a
forçam a lidar diretamente com as sequelas da questão social. De tanto estudar subjetividades,
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identidades, afetos e etc., os estudantes e professores das universidades públicas, bem como
os e as profissionais que atuam no campo da política social, estão assistindo seu mundo ruir –
espaços de trabalho e também de certa “resistência”, essa última muitas vezes subestimada ou
partir das quais é possível explorar intervenções contra-hegemônicas mais diretamente com as
massas, mesmo que se esteja numa posição muitas vezes longínqua dos espaços de poderes
decisórios finais das várias esferas do executivo – sem produzirem uma crítica radical sobre a
ontologia do nosso presente, sem produzir o alimento intelectual que as extremas quando não
precárias condições de vida e trabalho das massas populares demanda, muito em função de
não possuírem nem as ferramentas para isso e nem essa disponibilidade, no sentido mesmo de
estudo, a psicologia “crítica” se tornou cega e não crítica para tudo aquilo que não é
puramente cultural e muito menos subjetivo ou espiritual, justamente por serem questões da
realidade capitalista, coisas materiais, uma situação específica que chamamos de modernidade
e a política social, além das ondulações econômicas e as crises endêmicas desse modo de
produção cujo rebatimento nos países periféricos sempre causou mais estragos. Nossa
contribuição será na contramão dessa ortodoxia corrente. Nossa proposta é falar desses temas.
Não há, nesta empreitada, interesse e esforço imediato algum na produção substantiva
e ampla de algo que possa ser enquadrado como uma “psicologia crítica” ou, o que vemos
como mais coerente, uma crítica da psicologia. E isso é parte integrante da problemática que
contemporâneo e tratar de forma una, plural e complexa o que o imperativo desse saber busca
Doutra maneira, significa dizer que toda a presente estrutura desta dissertação não
tratamento da questão social no período dos governos petistas. Entretanto, isso diz
propriamente da relevância social desta pesquisa para o campo e seu enquadramento dentro de
delas no plano prático e discursivo da ciência psicológica, a qual muitas vezes transita num
espectro no qual, por um lado, vemos esta última eivada por ingenuidade e propostas
messiânicas, e por outro, tomada como por um câncer por um conservadorismo fatalista e
Amorim, 2012), num claro, firme e histórico posicionamento onto-epistemológico que nos
termos ocidentais conhecemos como idealismo. De acordo com Costa (2020), é como se a
psicologia vivesse fadada a viver na mesmice circular de sua constituição enquanto campo do
Yamamoto (1987) como as “alternativas que não alternam”. Temos dois exemplos
Em certos casos, como no de Spink (2018), por exemplo, é asseverado que a realidade
não existe, de fato, afirmando a existência, na verdade, de vários “reais”, numa relativização
absoluta, uma típica forma idealista de ver as relações entre seres humanos como relações
construções sociais em absoluto. É defendida a ideia de que a realidade não existe sem o
humano. Ora, se acontecer o que os estúdios de Hollywood apregoam, e vier a descer dos céus
uma legião de vidas extraterrestres, que mundo eles irão invadir a não ser o que vivemos? O
real não é algo do reino do relativo em absoluto, ele é do reino das autonomias relativas, o que
é bem diferente. Ponderando ainda a partir de outro ponto, se realmente formos exterminados
algum dia, será que objetos como “fogão” e “relógio” deixarão de ser esses respectivos
objetos só porque a civilização de seres vivos que as criou e utilizava foi exterminada? Se
e prática da ciência psicológica, mesmo a que se quer “social” ou “crítica”, é claro que o
ponto de partida sempre será algo tomado como “imaterial”, como “subjetividades”,
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campo denominado de “estudos culturais”. São produções que postulam o que Eagleton
posicionamento. O autor alerta que “a concepção moderna das ‘políticas públicas’ como um
(Estados Unidos e Reino Unido), no princípio da década de 1970” (p. 14). Contudo, sua
narrativa não foge à doxa acadêmica liberal, embora seguindo em seu estilo pós-moderno, o
qual toma o Estado a partir de uma perspectiva culturalista, concebendo a linguagem na forma
do discurso como central na determinação do ser humano, cujo sujeito centrado é o suposto da
própria subjetividade, da cultura, em suma, do espírito. Ocorre que de tanto “criticar” a ideia
praticadas no nível do discurso, pois a realidade permanece intacta (Eagleton, 1991) – esse
posicionamento acaba por cair na vala dos que concebem o Estado como figura neutra
especificamente ao não considerar a centralidade real antes que apenas discursiva da luta de
classes em toda a sua discussão, o que em última instancia significa a rejeição de todas as
Spink (2018) traz uma perspectiva que, ao nosso ver, se trata de uma alegoria. O texto
parece trazer uma alternativa pós-moderna com um suposto tom de anti-positivismo, fazendo
frente contra o liberalismo clássico, mas acaba ao fim e ao cabo se fundamentando num
linguístico, acabando por produzir uma visão de mundo própria de um liberalismo tardio ao
Internacional (FMI) e o Banco Mundial (BM), cuja influência sobre os governos petistas fez
mas nada dizem em termos da ontologia dos antagonismos políticos existentes no sentido de
suas determinações, dada a tirania do relativismo absoluto que embasa essas expressões.
Isso é evidente no fato de Spink (2018) adotar o termo “políticas públicas” como
objeto de estudo e análise. Essa expressão surgiu num contexto em que os sistemas de
proteção social europeus estavam sendo atacados, num momento histórico de crise do Estado
Capitalista diante do seu contraditório papel de ser efetivo em lidar com as crises do próprio
ações do Estado Capitalista, ou seja, do seu poder de ação, tendo por justificativa uma
oposição ao dito "totalitarismo" soviético (leia-se formas de democracia direta com alta
social" como modelo eficiente numa perspectiva muito íntima com a administração pública,
práticas que surgiram atreladas ao que certo barão anglo-saxão batizou de “terceira via”.
20
fortalecem ganhando consenso no caminho em que se avistava o que Netto (2012) chamou de
tempos de “crise do socialismo e ofensiva neoliberal”, sendo ideias liberais nativas do que
social, que se caracteriza pelas contrarreformas que interditam a proteção social no país e no
mundo, o que a cada vez mais nos leva em direção a uma proteção social residual, sendo que
massa de serviços e seguros de proteção social. Justamente por conta de sua historicidade, não
utilizamos essas expressões neste texto, uma vez que a “política pública” enquanto expressão
das ações, mas não declara nada a respeito de seu fim, de seu objetivo final. Sendo assim,
financiar o SUS é tão política pública quanto o Estado Capitalista brasileiro custear a
Crescimento (PAC) de Dilma Rousseff o fez. Mas será que financiar o SUS e a construção de
aeroportos e rodovias realmente tem o mesmo fim? É claro que não, pois não só não possuem
É por essas e outras que escolhemos e defendemos o uso não apenas da expressão,
mas do corpus teórico-político que tem como central a expressão “política social” (Boschetti
& Behring, 2011), a partir do qual tanto a origem das ações como o fim delas são pensadas
para a proteção social das massas trabalhadoras em toda a sua heterogeneidade e diversidade
que atravessam a sua universalidade material. Todavia, o foco é outro. O ponto de partida é a
investigação dos determinantes materiais das sequelas da questão social. Trata-se de ser
radical no sentido mais literal possível em relação à metodologia, indo em direção às raízes da
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questão social. Ainda sobre essa problemática política, antes que terminológica apenas,
É importante atentar para o caráter ‘social’ da política. Esse adjetivo lhe confere o estatuto de
ser direcionada para a coletividade pauperizada, assim, as políticas sociais, diferentemente das
políticas públicas (que podem voltar-se para a sociedade em geral, a exemplo da segurança
pública), voltam-se para um segmento que necessita de um suporte do Estado para manter ou
adquirir condições mínimas de sobrevivência. Seu caráter social engloba tanto políticas sob
responsabilidade exclusiva do Estado (políticas públicas sociais) como parcerias público-
privadas e intervenções do “Terceiro Setor” voltadas para o social (políticas sociais).
Portanto, o caráter social atribui à política uma função particular no MPC [modo de produção
capitalista]: minimizar as sequelas da “questão social” (Oliveira & Costa, 2018, p. 33-34).
A partir das críticas não apenas teóricas, mas, sobretudo ideopolíticas ao estudo
analisado acima, podemos perceber o quão certeiras são as considerações de Costa (2020). O
autor resume a conclusão de sua investigação sobre a questão social e o discurso da psicologia
elaborar suas considerações sobre a investigação realizada, o autor aponta três fatores que a
atravessam:
a) sua dissolução em problemas sociais supostamente autônomos que, na verdade, são suas
variadas manifestações; b) as formas como é conceituada e as teorias empregadas para sua
compreensão e suas consequências (individualização, subjetivação, responsabilização dos
indivíduos etc.); c) ou até mesmo um desconhecimento de sua existência por grande parte da
PS [(psicologia social)] brasileira como conceito analítico que expressa a realidade (Costa,
2020, p. 010).
Portanto, esta pesquisa tem possibilidade de ser uma resposta não à psicologia, mas ao
seu silêncio, omissões e mistificações diante da relação da questão social e suas expressões
em nosso país.
22
O segundo grande motivo diz respeito ao fato de ter sido no período dos governos
petistas que a psicologia experimentou grande expansão nas áreas de atuação e no contingente
advinda da dependência dos ciclos longos econômicos que acabam por produzir as
de trabalho no setor público, ou seja, estamos falando aqui do quanto a psicologia enquanto
Estado Capitalista e das transições entre os ciclos do capitalismo e suas crises cíclicas ou
agudas de longa duração. O que tentamos chamar atenção com isso é para a necessidade de
Indo mais fundo ainda nesse debate, cabe questionarmos o próprio processo de
(2015), esse fenômeno ocorre quando a lógica industrial antes fordista e agora flexível faz o
demanda de toda uma cadeia produtiva do cuidado humano nas suas mais diversas
com os avanços das tecnologias digitais. Noutras palavras, estamos falando do inchaço do
ordem capitalista atual. Enquanto uma forma mercadoria, cabe-nos refletir que em uma
sociedade que vende a saúde corporal-mental – dada unicidade material da mente e do corpo,
pois um não pode existir sem o outro – é fundamentalmente tautológica tanto quanto
trabalhadoras faz parte de um grande negócio que se orienta pela produção massificada do
“saúde” funcionando. Algo muito bem já explicitado por Parker (2014) em texto digno de ser
psicologia, portanto, é vista como apenas uma engrenagem desse processo. A crítica da
psicologia que propomos será produzida através do conceito de questão social como via
teórica possível de nos fazer produzir uma intervenção de cunho situacionista e de crítica da
psicologia, ou seja, uma maneira de tratar as questões e de ver o mundo que desloca o sujeito
investigar como o tratamento da questão social pelos governos petistas, estaremos dando uma
aqueles e aquelas que desejam compreender esses importantes aspectos contextuais, os quais
prática e do debate na psicologia pelo pós-modernismo enquanto força política cínica, que
finge não possuir projeto societário e nem ideologia. Atualmente, temos ouvido falar muito,
afamado “macro”, sendo que o que deveríamos fazer mesmo é desconstruir essas dicotomias
do idealismo francês do final do século XX, que dividem o nosso viver a política entre o
“macro” e o “micro” num dualismo ficcional, pois na verdade se trata de um continuum linear
e vertical no qual temos nossas condições de vidas determinadas de acordo com a organização
e os movimentos das classes sociais e seus acirrados conflitos no contexto dos ciclos
A partir desse momento passamos a ter essa visão sistêmica em oposição a uma visão
psicológica ou, num termo mais apropriado, espiritual das relações humanas, as quais não são
nada além de produto da matéria e da finitude humana e seus desejos de eternidade. Portanto,
cabe compreender que a psicologia se trata de um serviço público especializado que integra
científicos para a efetivação das máximas motivações inscritas no sistema de proteção social
brasileiro fundado pela Carta Magna de 1988, tudo isso num contexto de interdição histórica à
psicologia não se vê assim. De tão perdida ora ela se vê enquanto profissão da saúde, hoje
que muitas vezes significa estar completamente perdida, ficando por demais sem rumo
25
muito raramente lembra, reconhece ou ao menos sabe que essa ciência e essa profissão,
quando presentes em políticas sociais, fazem parte não dessas “políticas” separadamente, mas
de um interditado sistema de proteção social de uma das maiores e mais diversas nações deste
planeta, e tão pobre e desigual quanto. Esse é o caminho que pretendemos traçar em direção à
no campo da psicologia.
contínua busca por “compreender o contexto no qual atua e as mediações que o configuram
assim como os limites e possibilidades postos por este campo” (Oliveira & Costa, 2018, p. 40)
estatal implica olhar para cima e ver as estruturas que nos constrangem e circunscrevem
nossas possibilidades de ação a partir desse lugar institucional contraditório que a atuação nas
necessário o seu dedicado exame para não cairmos na armadilha de achar que desatamos um
nossa própria vida pelo capital. E esse exame deve começar por compreender a psicologia não
como uma profissão que caiu dos céus nos braços da classe média para deleite coletivo de
poucos, mas sim como uma força produtiva e reprodutiva capaz que circular valor em massa
jamais deixar cair no esquecimento ou ser silenciado por discursos moralistas e pelegos de
“compromisso social” o fato irremediável nos limites do presente do tempo histórico de que a
trabalhadora de psicologia não é uma revolucionária; ela não é uma militante identitária e
“performática” que optou por tentar mudar a realidade brasileira num serviço público com
contrato intermitente ganhando mil e duzentos reais sem saber se daqui a seis meses estará
empregada, tendo filhos, aluguel e boletos para pagar. Através do marxismo e do feminismo
não é outra coisa senão apenas uma trabalhadora mesmo, muitas vezes apenas alguns degraus
acima da população que costuma atender no dia a dia do seu trabalho nas políticas sociais no
Brasil. Singer (2018) aponta que essa condição precária e desprotegida de vida e trabalho da
população brasileira adulta jovem advinda das camadas populares é um produto recente de
necessidade de prover proteção em migalhas para uma população vasta estando nós mesmos
cada vez mais desprotegidos também. É com base nessa leitura do cenário atual que
1.2 Objetivo
Analisar as relações entre as politicas sociais e a questão social no Brasil com foco nos
governos petistas.
27
em suas análises sobre como a questão social foi tratada nos governos petistas.
1.3 Método
algumas questões de método e estratégia de trabalho.1 De forma lúcida e clara, Netto (2012)
nos mostrou que a necessidade impreterível do retorno à forma de trabalho de Marx, algo
propriamente estético, mas que, como toda estética, possui conteúdo político e, no caso de
Marx, na verdade, temos uma bem desenvolvida, arraigada e articulada estratégia teórica e
política, algo fundamental para a vida da tradição marxista. Ele aponta uma triangulação entre
contra a ordem burguesa, no sentido de uma viva interação para com elas (Figura 1.).
1
Não está em questão, aqui, o materialismo histórico. Trata-se, como dito, do método e estratégia de trabalho e
não especificamente do método marxiano.
28
Crítica Marxista
Netto (2012) aponta essa triangulação como sendo vital para a tradição. Diante de tal
asserção, vemos ser necessário realizar algumas breves observações complementares que
nortearão todo o trabalho a ser realizado e ensaiar a conformação da presente pesquisa aos
Em primeiro lugar, devemos lembrar que Marx e Engels estão mortos, logo, a crítica é
marxista e não marxiana, ou seja, ela não é única, a não ser em estritos termos. Sendo assim, é
Neste caso não se trata, como bem defendeu Hobsbawm (2011), de apontar quem é
marxista e quem não o é, como se alguém tivesse direitos autorais para isso, autoridade para
marxismo, acabamos por presenciar o surgimento de linhagens particulares, embora não livres
particulares e suas influências teóricas outras. Um exemplo disso foi o próprio estruturalismo
No nosso caso se trata, sobretudo, de uma busca a fim de demarcar como é analisado o
tratamento da questão social pelos governos petistas na tradição marxista. Temos aí, então,
tradições temos de lidar com nós mesmos. Dois passos nessa direção são importantes.
o que será trabalhado na próxima subseção. Em segundo, mover esforços para revisar e
debater a própria crítica marxista sobre o referido período. Talvez seja isso que Lukács
próprio método, o que, obviamente, se dá por diferentes mãos, no sentido de ser um trabalho
inicial de lidar com a própria tradição e seus desdobramentos teóricos e políticos novos já
ocorreram em diversos episódios da tradição nas mais diversas regiões do globo onde se
enraizou e é em função disso, além de outros tantos fatores, que ainda estamos aqui.
integralmente a esse primeiro momento de lidar com a própria tradição. Dado o tempo
social foi tratada nos governos petistas poderão se dar no futuro, em momento oportuno.
interpretações marxistas sobre o período e só posteriormente terá condições teóricas para lidar
Temos que observar, também, que essa estratégia aqui discutida em pormenores e de
forma um tanto esquemática, é verdade, não se dá de maneira linear, por etapas rígidas e
de tantas outras questões. E como se trata de marxismo e não mais de Marx e Engels, é um
tanto óbvio que essa parte da estratégia de trabalho – o constante diálogo e balanço crítico da
vertentes não-marxistas e antimarxistas –, foi, é e deverá ser realizada por diferentes mãos.
Seria ingênuo supor que qualquer pesquisa ou pesquisador poderia esgotar tal forma de
trabalho, até mesmo em função de que o que está em jogo é a vitalidade da tradição e não a de
algum autor ou autora em específico. Portanto, esta pesquisa é apenas uma iniciativa nesse
caminho de defesa da tradição, com suas peculiaridades, vantagens e desvantagens. É por esse
motivo que é melhor vê-la como parte de um projeto coletivo maior, e não como absoluta e
Por último, mas não menos importante, temos a questão tão cara e, precisamente, uma
das mais difíceis ou negligenciadas hoje em dia na tradição marxista desde o chamado
marxismo ocidental: a viva interação com os movimentos e forças sociais anticapitalistas, que
se constitui uma necessidade última para que essa construção se dê com os pés no solo, na
ocorridas desde o início do mandato presidencial atual, buscar manter-se atualizado o quanto
manter proximidade com uma rede de figuras e movimentos sociais a ponto de pôr à prova a
produção “intelectual” a ser realizada, tanto no ponto de vista da sua forma como no seu
conteúdo, o que no final das contas determinará o quão intelectual ela será. Em termos
práticos, não de forma adicional, mas como um verdadeiro fundamento, isso significa que a
presente pesquisa deverá ser traduzida da melhor maneira possível e que seus principais frutos
deverão ser colocados numa versão que se esforce o máximo para que qualquer trabalhadora
entenda, literalmente. A obra de Miguel (2019) seria um exemplo concreto desse esforço. A
forma de um livro digital gratuito é uma possibilidade posta. Obviamente, esse desejo não se
concretizará no tempo do mestrado, até porque tal elaboração só poderá ser pensada após a
avaliação e as críticas sobre a dissertação como num todo, ou seja, após a sua defesa.
Ademais, considerando o tempo de maturação dos textos, como é de costume quando uma
dissertação se torna uma obra editada e publicada, o momento em que esse desejo virá a se
realizar é incerto.
Até este ponto foram expostas as formas como foi pensada a possibilidade de
pesquisador e da pesquisa em questão. Não se trata, contudo, de uma questão fechada, mas,
perigo, da urgência e direção das respostas a serem elaboradas e até mesmo da criatividade no
de revisão em si.
Quando esta pesquisa foi pensada, o seu tema, problema e objetivos, uma das questões que
32
mais faziam os olhos do presente pesquisador brilhar era a possibilidade de pesquisar como os
governos petistas trataram a questão social, partindo da revisão das análises elaboradas por
quem tem trabalhado com essa temática em longo prazo, ou seja, lulismo, politicas sociais,
pesquisa, o objeto que mais se adequou foram as publicações acadêmicas em formato de livro.
Muitas vezes, livros contêm vários textos reunidos, constituindo, assim, um texto mais
abrangente, amplo. Livros são considerados publicações “finais”, “acabadas”, em seu estado
considerado como último, até que o tempo peça uma edição ampliada, um novo prefácio ou
posfácio, indicando mudanças históricas relevantes no período. Foi aí que pensamos que, se
quiséssemos nos deter a leituras do Brasil contemporâneo que possuam um caráter realmente
Essa escolha, longe de ser convencional, traz virtudes, apesar da avalanche de críticas
que trouxe no primeiro seminário de dissertações. Esses textos adjetivados como amplos se
dissertações, teses e produções pós-doutorado, por exemplo), ou, ainda, obras que são
compilados de artigos de diversos autores. Com isso, ao final desta revisão obtivemos não um
material para ser estudado apenas, mas um material que diz muito daquelas produções
acadêmicas que alcançaram espaços para além do Scientific Electronic Library Online
dupla foi estar com um olho no meio acadêmico e outro na esfera pública, mesmo que se
exemplo de consciência histórica, Immanuel Kant não tinha internet e nem as plataformas de
publicações virtuais e jamais arredou o pé 80 quilômetros de onde nascera para realizar seus
estudos: ele só tinha acesso a bibliotecas locais. O que queremos explicitar com isso é o fato
formato de artigos é algo recente, que se iniciou algumas décadas atrás. A escolha dos livros
em vez dos artigos diz respeito não a uma escolha arbitrária sem motivos, mas ao problema de
contrário das obras onde um mesmo autor ou autora organiza seus textos previamente
publicados, dando contornos mais definidos à sua narrativa sobre o Brasil recente.
A questão, contudo, foi como realizar esse tipo de revisão, um tanto incomum,
atualmente. E não apenas de realizá-la, pura e simplesmente, mas fazê-lo de forma a satisfazer
graduação no qual esta pesquisa se insere ser heterogêneo, numa configuração do curso que,
tanto a partir das linhas de pesquisa como a partir de cada docente, ora a psicologia se
encontra nas humanidades, ora nas ciências da saúde, com cunho propriamente positivista.
A solução encontrada foi, em vez da utilização pura da revisão narrativa, algo próprio
identificação de bases de dados para a localização dos estudos; c) elaboração das estratégias
de busca e estabelecimento de critérios para a seleção dos textos; d) aplicação dos critérios na
seleção dos textos (Sampaio & Mancini, 2007; Rother, 2007; Cordeiro, Oliveira, Rentería &
Guimarães, 2007; Galvão & Pereira, 2014). Os elementos utilizados da revisão narrativa
34
foram a escolha do formato de publicações em livros como alvo da revisão, tida como
tem como objetivo satisfazer a mencionada objetividade científica. A ideia era possibilitar
arbitrariamente, ele decidiu por revisar. Tudo isso sem abrir mão das grandes vantagens da
desta pesquisa.
objetivo geral de pesquisa. Para revisar interpretações marxistas sobre o período dos governos
publicadas em formatos de livro é necessário saber quantas e quais são essas análises.
Uma vez formulada a pergunta, partimos para a identificação de bases de dados para a
localização dos estudos (item b). Considerando que o objeto desta revisão são publicações em
formatos de livros, onde se daria essa busca? Precisávamos de plataformas virtuais substitutas
para o SCIELO, por exemplo, que é geralmente utilizada na revisão sistemática de artigos.
duas vias: as livrarias virtuais. De um lado, foi decidida a realização da busca através de
alguma livraria virtual de massa e, de outro, livrarias e lojas virtuais de editoras do campo que
Essa bifurcação simultânea se fez necessária, pois existem livros que se encontram em
livrarias de massa que dificilmente se acha em outros lugares, ao passo que existem
publicações do campo à esquerda que não alcançam as livrarias de massa, infelizmente. Isso
35
tudo se contarmos com a competência dos mecanismos de buscas, em ambos os casos. Essas e
outras questões vieram à tona através da fase de pesquisa piloto, uma pesquisa exploratória
realizada passo a passo toda vez que uma decisão era tomada na execução dos itens b e c.
restrição à seleção de apenas uma livraria, pois a pesquisa piloto mostrou que o volume de
informações seria gigantesco. No Brasil temos, hoje, cerca de três livrarias reconhecidamente
Saraiva quanto a Cultura, como livrarias em seu caminho para a massificação, além de
diversas naturezas, para além do comércio de livros. Já a Amazon é uma conhecida loja
varejista virtual, que tem ampliado significativamente seu catálogo, principalmente pela
uberização do trabalho e de pejotização, de uma forma que qualquer pessoa, física ou jurídica,
A pesquisa piloto acabou por mostrar que a Amazon atendia da melhor forma os dois
pequenos livreiros e sebos sem condições de estabelecer um sítio possam vender virtualmente,
tal instituição permite também que até mesmo autores e autoras possam fazer cadastro no
marketplace a fim de ou incluírem uma obra de autoria própria que se encontra fora do
catálogo da loja ou competirem com o preço da loja em relação à obra em questão, tentando
2
O oposto também ocorre. A Amazon foi acusada de “práticas comerciais injustas ou anticompetitivas relativas
a vendas próprias e de terceiros para alavancar e aumentar suas margens [de lucro], como impor termos
arbitrários e resoluções de disputas aos vendedores do marketplace” (McKay, 2020, sem paginação). A título de
exemplo, Amazon detectava produtos novos e com potencial de venda ofertados por seus “parceiros” do
marketplace e se adiantava adquirindo tais produtos em atacado e, a partir disso, ofertava o mesmo produto,
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instituição tenha um catálogo gigantesco de livros, ao passo que não estabelece quaisquer
relações empregatícias com o contingente populacional que torna isso possível, sejam elas
pessoas físicas ou jurídicas. Isso sem mencionar os lucros absurdos que são obtidos através
algumas notas. Em primeiro lugar, diferenciamos livrarias de lojas virtuais. Existem editoras
que possuem apenas lojas virtuais, como a Boitempo Editorial, ou seja, uma livraria restrita
ao seu próprio catálogo editorial. Todavia, existem editoras, como a Expressão Popular, que
possuem uma livraria própria, na qual são encontrados livros seus e de outras editoras, com
mas que prezam pela pluralidade de ideias em seus títulos, além de abarcar também as
editoras das universidades públicas. É por esse motivo que denominamos, de forma genérica,
como editoras do campo “progressista”. E é por esse mesmo motivo que usamos aspas, pois,
embora nesta fase da pesquisa esses diferentes tipos de editoras, de certa forma, se misturem e
vieram dos tempos da ditadura e da resistência contra ela, as quais “se caracterizam pela
2014, p. 7).
Sindicato Nacional dos Editores de Livros (SNEL) (SNEL, 2019). Algumas editoras mais
jogando os preços dos mesmos para baixo e seus lucros para cima. Isso ocorre com todas as mercadorias
disponíveis na plataforma, incluindo os livros.
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recentes, como a Elefante, por exemplo, estavam ausentes nessas fontes citadas. Então, vimos
a necessidade de aqui também construir critérios para a seleção das editoras que conseguisse
militante. São eles: 1) a orientação política de esquerda; 2) relevância atual das publicações;
tema da pesquisa. Este último critério (3) foi construído a fim de que, em situações como a da
editora Elefante, se pudesse incluir editoras com obras sobre a temática da pesquisa que não
estivessem no texto de Maués (2014) ou na lista da SNEL (2019) por serem de fundação
Abramo, FGV, Canal 6 (Projeto Editorial Práxis), Mauad, Elefante, Autonomia Literária,
busca e estabelecimento de critérios para a seleção dos textos (item c). No que concerne às
estratégias de busca, percebemos, desde cedo, através da pesquisa piloto, que essa bifurcação
iniciada, de fato, a busca pelos textos. Logo, a barreira pensada cuidadosamente para lidar
com esse volume sem a ocorrência de perda de material interessado a esta pesquisa foram os
descritores. Foram construídos cinco descritores, todos eles relacionados ao período dos
governos petistas, direta ou indiretamente. São eles: 1) impeachment Dilma; 2) golpe Dilma;
que tratavam do período dos governos petistas, enquanto esforços teóricos novos, posteriores
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àquele momento do debate entre Oliveira (2007) e Coutinho (2010). Foi em função da
governos petistas, não tendo sido incluído nenhum descritor específico sobre os governos
Lula. Todavia, não acreditamos que isso trará resultando muito distintos, pois a maioria dos
de seu devido registro. Esta primeira fase do processo de seleção dos textos começou dia
uma planilha Excel. Para cada linha da planilha foram construídas 13 colunas, sendo elas: 1)
10) sinopse; 11) forma; 12) gênero; 13) link. A busca era realizada a partir de cada descritor.
Os resultados eram lançados na planilha. Quando terminado, esse processo era reiniciado com
outro descritor. Em muitos casos, os resultados não eram suficientes para preencher todas as
colunas. Muitos sites, até mesmo das lojas das editoras, não disponibilizavam informações
Tabela 1. Resumo dos resultados da primeira fase do processo de seleção dos textos
impeachment golpe pedalada crime de crise Total
Dilma Dilma fiscal responsabilidade política e
fiscal econômica
Dilma
Amazon 94 59 5 15 63 236
Alameda 1 1 0 0 0 2
Unicamp 0 0 0 0 0 0
Perseu 0 0 0 0 0 0
Abramo
FGV 3 2 1 0 1 7
Canal 6 8 8 0 0 0 16
Mauad 0 0 0 0 0 0
Elefante 0 2 0 0 1 3
Autonomia 0 0 0 0 0 0
Literária
Cortez 0 0 0 0 0 0
Expressão 13 12 0 0 0 25
Popular
Boitempo 0 2 0 1 165 168
Total 119 86 6 16 230
No que toca a esta fase, é importante relatar que houve considerável discrepância no
internet através de palavras ou termos utilizados por uma pessoa. Se no site da Amazon os
resultados foram sempre amplos, incluindo obras de outros períodos, como o golpe de 1964,
assim como obras de ficção diversas, em outros sites, como nos das editoras Unicamp, Perseu
Abramo, Mauad, Autonomia Literária e Cortez, para citar exemplos extremos, os resultados
foram nulos, embora essas editoras tenham obras sobre o tema da pesquisa, conhecidas
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ou autora, é que o resultado da busca retornava com a obra sobre o tema, conhecida
pesquisa piloto e consideramos ser uma questão de resolução difícil. Buscamos montar os
descritores mais potentes possíveis. Todavia, os resultados foram nulos em alguns casos, para
muitos ou para todos os descritores, como já relatamos. Queremos explicitar, com isso, que o
problema com relação ao resultado nulo de algumas editoras tem mais a ver com as
capacidades e o desempenho dos mecanismos de busca de seus sítios do que com a precisão
pesquisa foram impactados negativamente pelo mecanismo de busca de cada sítio pesquisado.
Contudo, em se tratando de uma seleção dos textos inspirada na revisão sistemática e restrita a
instituições “sem fins lucrativos” por plataformas virtuais do mercado de livros e do mercado
Uma vez concluído este momento, passamos para o estabelecimento de critérios para a
seleção dos textos (segunda parte do item c). Em função da quantidade de resultados,
incluindo aí resultados repetidos, ou seja, quando mais de uma busca retornava resultados
mais precisos. O estabelecimento dos critérios não obedeceu ao padrão da revisão sistemática,
critérios estabelecidos para refinar os resultados na segunda fase do processo de seleção dos
textos foram: 1) produções específicas sobre o período dos governos petistas; 2) obras que se
filiam à tradição marxista ou que dela fazem uso, sendo característica a crítica da relação
Esta segunda fase se iniciou com a aplicação dos critérios na seleção dos textos (item
d), a qual ocorreu entre 17/06/2020 até 16/08/2020. Foi realizada uma leitura casuística de
cada resultado obtido na primeira fase e que fora organizado na mencionada planilha. Após a
leitura linha por linha com foco nas colunas onde se localizavam os títulos, subtítulos e
numa nova planilha com as colunas: 1) Autores; 2) Título; 3) Subtítulo; 4) Páginas. As linhas
orientação acadêmica. Nas situações em que havia a dúvida sobre os critérios estabelecidos
nesta fase e a adequação das obras ou não a eles, sempre era realizado uma pesquisa adicional
sobre o autor ou as obras em questão, a fim de sanar as dúvidas. Essa pesquisa informal era
Pesquisa em Marxismo e Educação (GPME). Em alguns casos, para além da consulta à base
de pesquisa, essa pesquisa adicional foi realizada também através da internet, a fim de
encontrar informações sobre obras cujo autor ou autora e obra específica eram desconhecidas
O modelo pensado e executado até este momento da pesquisa pode ser visto como
uma revisão inspirada, até certo ponto, na revisão sistemática, sendo restrita à busca de
necessário ressaltar que a inspiração na revisão sistemática começou e terminou nesse aspecto
de busca e seleção das obras, sendo a revisão em si inspirada estritamente na velha e boa
revisão narrativa. Se não se trata da tão postulada neutralidade axiológica, hoje em dia
ressurgida e renovada através da discussão dos “vieses pessoais e subjetivos” das revisões
narrativas, também não se trata de pura arbitrariedade cínica ao positivismo, por mais
realizada, tanto do ponto de vista de suas contribuições quanto de suas limitações, são
processo se referem à própria escolha de realizar uma revisão partindo por livros, à construção
dos critérios, à opção pela busca através da internet, às debilidades dos mecanismos de
discussão para a apresentação foi outro fator determinante na produção dos avanços e das
estipulado para os programas de mestrado, não partimos para exposição detalhada dos
contornos das análises sobre os governos petistas. Portanto, a discussão buscou apresentar os
em função disso, a discussão poderá levar o leitor a ter a percepção de que a maioria dos
autores concorda sobre muitos temas, principalmente quando citados próximos uns dos
outros, como se houvesse considerável homogeneidade nas análises produzidas. Todavia, essa
sínteses. Doutra maneira, isso significa dizer que outra investigação preocupada com as
pesquisa, qual foi, a análise de como a questão social foi tratada no Brasil tendo como foco os
relacionados às formas com que as variadas expressões da questão social foram tratadas no período
dos governos petistas. Esses fragmentos das análises, uma vez condizentes ou próximos, foram
aproximados ainda mais. Embora possa parecer uma simples síntese de teses, excluídas as antíteses, a
construção do texto buscou explorar as continuidades mais sólidas através do tempo, nos governos
analisados e em relação ao período imediatamente anterior. Ainda com relação a esse cotejamento em
44
termos de minerar continuidades e rupturas entre o período dos governos petistas e o período anterior
mais imediato em termos de proteção social no capitalismo, é importante dizer que a partir da
subseção 2.3, do capítulo 2, a breve discussão sobre o período anterior foi construída com forte porção
de contribuição dos próprios textos selecionados para a revisão, o que acabou por dar sustentação
maior aos próprios consensos identificados, expostos no capítulo 3, assim como sedimentou as
possibilidades de sínteses.
revolução industrial foi que, por volta de 1830, surgiu a utilização de “questão social” para
(Stein, 2000). A expressão “questão social” não possui um significado unívoco, existindo uma
variedade de compreensões distintas a seu respeito. Inicialmente, seu uso se deu por críticos
da sociedade e filantropos das mais variadas matizes do espectro político. Seu surgimento
quanto horrenda é a realidade que eles denunciam. O autor relata o surgimento das grandes
desordenado de casas, empilhadas umas sobre as outras. Nas próprias palavras do autor,
foi a indústria que permitiu aos proprietários desses estábulos alugá-los a altos preços, como
se fossem habitações humanas, explorando a miséria dos operários, minando a saúde de
milhares de pessoas e enriquecendo-os apenas a eles, os proprietários; [...] onde ainda havia
uma parcela de terra livre, construiu-se uma casa; onde ainda havia uma passagem supérflua,
45
ela foi substituída por uma edificação; o valor da terra tornou-se mais alto com o
desenvolvimento industrial e quanto mais subia, mais freneticamente se construía, sem a
menor preocupação com a saúde e o conforto dos moradores, com o único objetivo de obter o
maior lucro possível e com base no princípio de que, por pior que seja um casebre, há
sempre um pobre que não pode pagar outro menos ruim (Engels, 2010, p. 96, grifos do
autor).
O avanço da urbanização numa escala nunca vista até então acabou por produzir um
Manchester, Engels (2010) retrata que era evidente a demanda por pavimentação das ruas,
ruelas e pátios, e por construção de esgotos e demais formas de escoamento. A situação era tal
que detritos e sujeiras de toda sorte se acumulavam e apodreciam. A água não escoada
formava charcos por todo canto da cidade. Da mesma forma eram graves as condições de
moradia do proletariado. Em cada casa habitava três ou quatro famílias. As casas eram
degradadas, não possuíam acesso à água e nem espaço para as necessidades de excreção, além
de serem mal arejadas. Nessas casas havia poucos móveis ou nenhum e os seus habitantes
dormiam em palhas. Em muitos casos, até os porões das casas eram habitados por proletários.
trabalhadores, o que era impulsionado, também, pela imigração irlandesa, o que, em conjunto
com a inserção de mulheres e crianças no mercado de trabalho, lançava muito para baixo o
valor da força de trabalho. Foi em plena revolução industrial que houve, na Inglaterra, um
absurdo processo de pauperização absoluta que incidia, principalmente, mas não apenas,
alimentação e a fome. Os operários, na sua grande maioria, ingleses, quando conseguiam ter
além das fraudes relativas às quantidades, tudo isso devido à ausência de controle público do
batatas na maior parte do tempo. Com relação à vestimenta, imperava a privação de roupas, as
quais, nas palavras do autor, não passavam de “de verdadeiros farrapos, já impossíveis de
Diante dos dados e de sua imersão no campo, o autor constrói a sua denuncia:
É verdadeiramente revoltante o modo como a sociedade moderna trata a imensa massa dos
pobres. Ela os atrai para as grandes cidades, onde respiram uma atmosfera muito pior que em
sua terra natal. Põe-nos em bairros cuja construção torna a circulação do ar muito mais difícil
que em qualquer outro local. Impede-os de usar os meios adequados para se manterem
limpos: a água corrente só é instalada contra pagamento e os cursos de água poluídos não
podem ser utilizados para a higiene; compele-os a jogar na rua todos os detritos e as
imundícies, toda a água servida e até mesmo os excrementos mais nauseabundos, para os
quais não há outra forma de escoamento – enfim, obriga-os a empestear seus próprios locais
de moradia. E nem isso lhe basta: acumula sobre eles todos os males possíveis. Se, em geral, a
população das cidades já é demasiado densa, são os pobres os mais amontoados em espaços
exíguos. Não contente com a atmosfera envenenada das ruas, encerra-os às dezenas em
habitações de um único cômodo, de tal modo que o ar que respiram à noite é ainda mais
sufocante. Oferece-lhes alojamentos úmidos, porões onde a água mina do chão ou mansardas
de cujo teto ela goteja. Constrói-lhes casas que não permitem que o ar viciado circule.
Fornece-lhes roupas de má qualidade ou farrapos e alimentos adulterados ou indigestos.
Submete-os às mais violentas emoções, às mais bruscas oscilações entre o medo e a esperança
e persegue-os como a uma caça, não lhes concedendo nunca um pouco de paz e de
tranquilidade ( p. 137).
De qualquer ponto que venhamos a observar aquela nascente sociedade, o que Engels
(2010) conseguia apreender era a insegurança social em seu extremo. O risco do desemprego
moderna” (p. 243). Não havia o que, muito tempo depois, seria nomeado como estabilidade.
A classe operária era dotada de uma perversa fluidez a qual, mesmo havendo certas vantagens
entre suas frações, imperava a instabilidade: “qualquer trabalhador pode ter de percorrer todos
47
os degraus da escala, do modesto conforto à privação extrema, com o risco de morte pela
condições. O trabalho fabril era caracterizado por extrema monotonia, exigindo repetições de
movimentos às vezes simples, às vezes mais complexos, por várias horas consecutivas, o que
Engels (2010) nomeia como uma tortura. O autor também revela os detalhes do sistema de
trabalho noturno, no qual um grupo de trabalhadores operava doze horas durante o dia e outro
doze horas à noite. Contudo, não havia regulação estatal da carga horária, sendo que uma das
Dessa forma, não tendo o que temer, havia casos em que os burgueses industriais colocavam
os operários a trabalhar horas a fio, dia e noite, sendo apenas substituídos quando se
estafavam por completo. Muitas ocupações acabavam por não possuir regularidade quanto ao
horário de trabalho. O mesmo ocorria com o horário das refeições: os trabalhadores comiam
Como já dito, não apenas homens trabalhavam, mas também mulheres e crianças de
até dois anos em diante, num movimento inédito até então de inserção em massa no mercado
pudessem engolir o mais rapidamente possível. Muitas mulheres trabalhavam “até quase o
momento do parto” (Engels, 2010, p. 198, grifos do autor). O autor ressalta que não havia
qualquer cuidado com o puerpério. Mulheres com medo do despedimento, mesmo ainda
fracas e com dores, retornavam rapidamente ao trabalho. Muitas delas mal amamentavam
suas crianças, mesmo nos primeiros meses. Havia também a recorrência do que hoje
chamamos de assédio sexual e estupro por parte dos burgueses industriais, os quais, se
utilizando da ameaça do despedimento sobre as mulheres, faziam da fábrica seu “harém”, para
usar o termo do autor. As crianças eram exploradas sem qualquer pudor, privando-as da
48
sistema de trabalho noturno. Não havia, também, por parte da grande maioria das crianças de
filantrópico, restavam a mais baixa qualidade, dado que inexistia controle público do setor.
motivo mesmo que os operários fabris foram chamados de white slaves. Engels (2010) ainda
discute essa expressão apontando que o apelo ao cotejamento entre as condições dos brancos
britânicos com a dos negros africanos escravizados na América possuía relevância justamente
pelo caráter despótico com que os trabalhadores fabris eram tratados na Inglaterra, sendo
truck system, um sistema imposto aos trabalhadores no qual o pagamento não se dava em
dinheiro, mas em espécie de um vale utilizável em armazéns dos próprios patrões industriais,
nos quais os valores das mercadorias tendiam a estar acima do valor de mercado. De natureza
próxima era o cottage system, um sistema de moradia disponibilizado pelo patronato aos
serem superlotados, os trabalhadores acabavam por se encontrar uma vez mais reféns de seus
patrões. Tudo isso nos mostra a estrutura despótica das condições de trabalho naquele
momento histórico.
própria condição de existência dos trabalhadores, sejam homens, mulheres ou crianças. Eram
Comentando o impacto disso na classe trabalhadora no que diz respeito às suas condições
49
físicas de saúde, Engels (2010) chega a dizer que é “como se estivéssemos em meio a um
exército que regressa de uma batalha” (p. 201). Em outros tantos casos, o autor apontou a
lhes restava o despedimento por parte do patrão e a mendicância como alternativa. Não havia
qualquer espécie de pensão vitalícia por acidentes incapacitantes para o trabalho. Mulheres e
crianças assumiam o papel de garantir a renda da casa, o que era difícil, pois naquela época a
desigualdade salarial em função de gênero e idade era gritante, pois administradas pelos
crianças pagando bem menos que aos homens adultos. Nos casos de morte por acidente ou
condições sanitárias essenciais, como já exposto. Nesse contexto, Engels (2010) expõe que as
cólera em Manchester. À grande massa pauperizada, quando a vida própria não era tocada
pelas doenças e pela morte, restava pouco, pois se encontravam privados “de todos os
prazeres, exceto do sexo e da bebida” (p. 137). A quantidade de paternidades não assumidas
em função da busca pelo prazer sexual naquela época se tornou significativa e o fenômeno do
suicídio se tornava uma alternativa concreta como fuga à miséria que imperava, sendo muitos
os que o cometiam.
Outra questão que não podemos deixar passar incólume era o agravamento das
condições de vida já extremadas pelas crises capitalistas. Se hoje uma pessoa se encontrava
empregada, amanhã ou depois, mais cedo ou mais tarde, ela poderia ser despedida, não apenas
pela vontade do patrão, mas, também, pelas crises econômicas, uma marca do modo de
se encontrava o motor que deslocava toda a família e seus integrantes para a extrema pobreza
de forma súbita, durante as crises econômicas desse período, segundo Engels (2010), esse
fenômeno ocorria numa escala de massas, sendo que apenas passada a crise, as quais duravam
miséria de forma intermitente, nas zonas rurais o proletariado agrícola vivia essa condição de
forma permanente (Engels, 2010). Tanto para o contingente urbano quanto para o rural, ou
seja, para a classe trabalhadora em suas diversas frações e a grande massa de pobres e
despotismo presente no sistema fabril, como relatamos a pouco. Desde o século XV ao século
XVI surgiu na Europa Ocidental o que Marx (2017 [1845]) chamou de “uma legislação
sanguinária contra a vagabundagem” (p. 806). Essa legislação, ainda segundo Marx (2017),
momento essencial da assim chamada acumulação primitiva” (p. 809). Na Inglaterra, essa
legislação havia sofrido várias mudanças desde seu surgimento, sendo que, no alvorar da
A velha lei, baseada num decreto do ano de 1601, 43rd of Elisabethª, ainda partia
ingenuamente do princípio segundo o qual a comunidade tinha o dever de garantir a
manutenção dos pobres; quem não dispunha de trabalho recebia um subsídio e, com o tempo,
o pobre convenceu-se de que a comunidade tinha o dever de protegê-lo da fome. Ele passou a
receber seu auxílio semanal como um direito e não como uma dádiva, o que, ao fim, tornou-se
intolerável aos olhos da burguesia (p. 316).
Engels (2010) continua apontando que a pouca e residual proteção que essa legislação
pedra no caminho da indústria pela burguesia. Essa legislação sanguinária acabou por ser
alterada no ano de 1834, pela Poor Law Amendment Act. A nova legislação, conta o autor,
possuía um papel de ativa intervenção na vida dos pobres, intervenção essa recheada de
foram sobremaneira multiplicadas. Engels (2010) diz que o povo nomeara essas casas como
“bastilhas da lei dos pobres”, o que denuncia o caráter da organização delas, operadas na
direção de dissuadir “qualquer um que pretenda sobreviver apelando para essa forma de
assistência”, fazendo com “que os esforços de cada indivíduo sejam levados ao extremo antes
de procurá-la” (p. 318), o que, há um só tempo, fazia com que se reduzisse o recurso ao
orçamento da Caixa dos Pobres e produzisse uma massa de pobres não apenas
força de trabalho no mercado, sendo desnecessário, neste ponto, relembrarmos dos baixos
Toda a estrutura institucional e física dessas “casas de trabalho” era feita para que ela
realmente fosse tomada como opção última. Engels (2010) narra que a alimentação era pior
que a dos operários mal pagos ao passo que o trabalho era mais penoso. A situação era tal
52
que, sendo a comida das prisões menos ruim, muitos preferiam cometer delitos e serem presos
que estarem numa workhouse. Para que essa instituição não concorresse com a indústria
privada, o trabalho realizado era inútil, muitas vezes se resumindo a quebrar pedras. As visitas
superlotados e muitas vezes uma única cama era dividida por várias pessoas. Idosos eram
forçados a quebrar pedras, assim como os mais jovens e punidos quando se recusavam dada a
fraqueza de seus corpos. As condições de saúde dos integrantes desses lugares eram objeto de
tortura, sendo que, a título de exemplos, homens e mulheres eram colocados nus em locais
insalubres e sem alguma fonte de calor por dias, restando apenas o abraço entre eles como
forma de enfrentar o frio. A prática de violência sexual contra mulheres também marcava
vezes de forma permanente. A opção pela saída do local, vista como forma de fugir da
arbitrariamente negada. É por esses motivos e outros mais que Marx denunciou a escravidão
indigência, não era compreensível como outros podiam desfrutar de existência melhor, sendo
racionalmente muito difícil de conceber “porque precisamente ele, fazendo pela sociedade o
que não faziam os ricos ociosos, tinha de suportar condições tão horríveis” (Engels, 2010, p.
248). Segundo o mesmo autor, a miséria prevaleceu sobre o respeito à propriedade privada.
53
Além de roubos, tanto no campo como nos meios urbanos as propriedades eram alvos de
Esse foi o horizonte em que a expressão “questão social” surgiu e ao qual ela faz
referência. Para pessoas sensíveis ao mundo contemporâneo e consciente dos seus problemas,
o contexto narrado pode parecer, à primeira vista, como de pouca novidade. Para aqueles sem
leitura crítica sobre o presente, esse passado específico pode parecer uma grande
trabalhadora, mas não qualquer pauperização. Netto (2001) nos lembra que essa pauperização
tornava capaz de produzir mais bens e serviços, mais aumentava o contingente de seus
integrantes que, uma vez despossuídos das suas anteriores condições materiais de vida, não
tinham acesso a esses bens e serviços. Antes do modo de produção capitalista, a pobreza
potente tendência a reduzir a escassez. Nas límpidas palavras do autor, pela primeira vez na
produzir riquezas” (p. 42, grifos do autor). Em resumo, o pauperismo, aquela pobreza
precisamente porque ela se produzia pelas mesmas condições que propiciavam os supostos,
no plano imediato, da sua redução e, no limite, da sua supressão” (Netto, 2001, p. 43, grifos
54
nossos). Noutras palavras, a questão social, tomada como expressão ampliada das
desigualdades sociais, é parte que constitui as relações sociais capitalistas, sendo “o anverso
não foram nomeados como questão social espontânea e voluntariamente. Ocorreu que, como
Netto (2001) explicita, essa nomeação veio diretamente em função dos desdobramentos sócio-
políticos do pauperismo e daquelas tantas questões entrelaçadas a ele naquele momento. Foi
nesse contexto que surgiram as primeiras formas de organização dos trabalhadores, com
protagonismo do movimento cartista, inicialmente. Não sem motivos, Engels (2010) afirmou
que o “fruto mais importante dessa revolução industrial, porém, é o proletariado inglês” (p.
59). Seja pelas violentas reações individuais por parte da população, como os crimes contra as
propriedades e contra outros trabalhadores que apoiavam os burgueses industriais, seja pela
naquele contexto absurdo e extremo que o pauperismo foi alçado como uma questão
importante na esfera pública em formação. Como afirma Netto (2001), foi através do risco de
uma eversão da própria ordem burguesa que o pauperismo foi alçado como “questão social”.
da expressão deslizar no espectro político, sendo cristalizado o seu uso por conservadores em
cujo entendimento os nexos entre economia e sociedade foram varridos, interditando, assim, a
compreensão dos fortes laços entre desenvolvimento capitalista e pauperização (Netto, 2001).
Após essa guinada conservadora, a questão social e suas expressões passaram a ser pensadas
estritamente sob o ângulo do poder burguês, compreendidas como a “ameaça que a luta de
pensamento conservador laico quanto no confessional, fez a questão social e suas expressões
qualquer ordem social (Netto, 2001). A questão social e suas expressões são tomadas como
absolutas e universais, não importando nem o tempo e nem o lugar de suas ocorrências. A
partir desse entendimento, Netto (2001) nos lembra que, no máximo, a questão social se torna
objeto de intervenção limitada, muitas vezes suportada por um saber científico de cunho
positivista, capacitada a amenizar e reduzir suas expressões num escopo de ideias reformistas.
relevância da questão social e a apelação a meios sócio-políticas para diminuir a sua agudez,
insistindo que esta última contraria a vontade divina. Em ambos os casos, as residuais
reformas sociais possíveis acabam por cair na vala de uma reforma moral do ser humano e
da questão social também se tornavam objeto de ação moralizadora. O tratamento das suas
tudo e qualquer outra coisa, a propriedade privada dos meios de produção. O laço entre a
ordem social instituída se rompe. As ideias e as intervenções elaboradas para tratar a questão
conscientes sobre sua condição numa medida que os propiciava uma sensível capacidade de
tocar nos fios que tecem questão social e capitalismo, sendo a existência de uma condicionada
à do outro, mutua e fundamentalmente. É por esse motivo que a expressão questão social
56
passou a ser tomada como uma tergiversação conservadora pelo pensamento revolucionário,
necessário ao se falar em “questão social”, pois no seu uso literal a expressão acaba por servir
Há cerca de duas décadas, Iamamoto (2001) nos lembrava que a expressão “questão
social” não pertence ao universo da teoria marxiana. Engels (2010), por exemplo, utiliza essa
expressão apenas três vezes em toda a sua obra, e sempre de maneira difusa, sem dar a ela
qualquer centralidade. Todavia, hoje não podemos dizer o mesmo sobre a relação entre
No final do século passado, houve o retorno da disputa pela expressão no debate intelectual na
brasileiro, os quais já vinham trabalhando a questão social em suas produções, o que acabou
nos dando uma profícua produção marxista, aqui em parte esmiuçada, que buscou dar à
processos sociais que “questão social” traduz ocupam um lugar central na análise que Marx
realizou sobre o modo de produção capitalista. Embora “questão social” não possa ser
ser tomada como um conceito a partir da afirmação da existência real não da questão social,
3
Algumas ideias que marcaram as intervenções que foram protagonistas desse debate podem ser encontradas em
Rosanvallon (1998), Paugam (2013; 2014) e Castel (2015; 2013a; 2013b). Iamamoto (2015) sumariza os
problemas dessas ideias a partir do marxismo. Para um tratamento mais aprofundado, ver as argutas respostas
elaboradas por Fontes (2005), Maranhão (2010) e Siqueira (2013).
57
fundamental do modo de produção capitalista (Santos, 2012). Essa virada da tradição marxista
em direção à “questão social” foi importante uma vez que junto com o reaparecimento
cabe considerar que, bem mais que um conceito, apenas, a questão social é, de fato, uma
social foi tomada pela perspectiva sociológica como uma “disfunção” ou “ameaça” à ordem e
à coesão social, sendo apresentada como uma “nova” questão social, produto da “crise” do
capital financeiro e das políticas neoliberais, as “soluções” apresentadas para lidar com sua
suposta nova forma possuíam como traço comum uma "gestão” mais “humanizada” e
“eficiente” dos problemas sociais. Dessa maneira, as respostas à questão social foram
direcionadas aos mecanismos reguladores do mercado e, em direção cada vez mais distante de
uma proteção social realmente pública e sob a insígnia do “combate à pobreza e à exclusão
enquanto ente da natureza das sociedades desde sempre, mas da sua específica produção sob o
modo de produção capitalista. Em outras palavras, afirmamos que ao estudar a pobreza não
devemos de forma alguma segmentá-la da riqueza socialmente produzida, pois dizem respeito
de uma unidade contraditória de opostos (Siqueira, 2013). É assim que em vez de se estudar a
pobreza per se, damos um passo atrás e estudamos a pobreza como socialmente produzida,
58
enquanto uma contradição de uma sociedade que se funda na expropriação de bens comunais
de valor e para produzir valor é necessário haver seres humanos dispostos a vender a única
coisa que possuem sob a tirania da propriedade privada: a mercadoria humana chamada força
excedente produzido pelos trabalhadores, ou seja, um valor para além do valor de troca da
força de trabalho, ou seja, o salário pago aos trabalhadores (Netto & Braz, 2012). A tal valor
capital é valor que busca valorizar-se” (Netto & Braz, 2012, p.138). No processo de
reprodução ampliada do capital apenas uma parte do mais-valor é tomado pelo capitalista
para uso pessoal, o restante é convertido novamente em capital, ou seja, utilizada a fim de
reprodução ampliada do capital, que por sua vez possibilita a acumulação de capital (Netto
perseguir constantemente esse objetivo. Sob esta lógica, a composição orgânica do capital é
capital variável (a força de trabalho a ser empregada). E não pense que é em si o avanço
tecnológico que produz essa redução no uso da força de trabalho, ou seja, redução das ofertas
4
Mario Duayer, em criterioso trabalho de tradução das obras de Marx, assinalou que a tradução apropriada do
termo alemão mehrwert para o português seria mais-valor, e não a difundida expressão “mais-valia”,
provavelmente derivada da tradução francesa d’O Capital (Fontes, 2010).
59
de emprego, pois a questão é mais profunda (Netto & Braz, 2012). A lógica do capitalismo
fundada na acumulação insaciável é que justifica um uso do avanço tecnológico ou, noutro
dizer, possibilita o avanço das forças produtivas a fim de que se produza cada vez mais valor.
Netto e Braz (2012) explicam que é o desenvolvimento das forças produtivas sob essa lógica
que produz o desemprego em massa, e não a aplicação dos avanços tecnológicos na produção
per se. Portanto, elimina-se o possível significado emancipador dos avanços tecnológicos ao
explica que, por um lado, a referida alteração faz com que uma parte da força de trabalho seja
expulsa do processo de produção, por outro lado, a simples expansão quantitativa da indústria
Netto & Braz, 2012; Siqueira, 2013; Iamamoto, 2001). A elas dá-se a denominação de
proletariado, algo denominado por Marx à época da revolução industrial inglesa de exército
Netto e Braz (2012) explicam que a superpopulação relativa deriva de uma dinâmica
pressionarem os salários para um nível inferior, em função mesmo da alta oferta da força de
momento de toda essa força de trabalho excedente quando da expansão de um setor específico
dos capitalistas. Ainda segundo tais autores, se a superpopulação relativa inicialmente resulta
função de ter, do lado de fora da fábrica ou da empresa que trabalha, uma fila de trabalhadores
disponíveis. Portanto, têm-se assim um aumento do capital variável (força de trabalho), sem
trabalho excessivo de uma parte da classe trabalhadora (a parte ocupada), outra parte é
trabalho no mercado. Uma trabalhadora sem emprego é uma trabalhadora sem salário,
portanto, sem fonte de renda, a qual acaba por vivenciar situação de extremo empobrecimento
que a impede de acessar por seus próprios meios bens e serviços necessários à sua reprodução
da pobreza não é algo exterior que penetra a lógica sistêmica do capital, mas é algo
estruturante do seu próprio funcionamento desde o seu nascimento, podendo variar de acordo
limitada, como também sua incidência foi revertida (Neto & Braz, 2012; Siqueira, 2013,
(Maranhão, 2010; Netto & Braz, 2012), além da questão da dependência capitalista e dos
interesses domésticos das classes dominantes das nações, a possibilidade de reedição desse
momento histórico específico do capitalismo do ocidente antigo caminha para se tornar uma
fábula para as populações trabalhadoras das demais nações no século XXI. Noutros termos, é
muito improvável que esse momento específico e regionalizado deste modo de produção hoje
industrial, fabril. Esse fenômeno ocorre hoje nos países centrais e em maior ou menor escala
escala mundial, de uma forma sem precedentes na história, além do advento generalizado da
trata aqui de afirmar, com bem apontou Sposati (2009), que a assistência social é a política
setorial responsável por “tudo” relacionado aos “pobres”. Muito pelo contrário, as
necessidades humanas de proteção sob a ordem do capital são diversas, amplas e complexas,
(educação, saúde, habitação, alimentação, para além da própria assistência social). O que
da assistência social, embora ela não deva (e não possa) sozinha atender a todas as demandas
modo de produção capitalista: quanto mais se produz riqueza menor é a parte desta que cabe
aos trabalhadores, enquanto aumenta a parte apropriada pelos capitalistas (Netto & Braz,
2012). Noutras palavras, quanto menos “pobre” um trabalhador se tornar através da venda da
5
Sem dúvidas esse é um debate por demais extenso, não podendo aqui se ater devidamente a ele. Cabe explicitar
que ao direcionar e expandir a política de assistência social a fim de atender todas as necessidades de todos os
pobres (alfabetização e outras intervenções que são do campo da educação; fornecimento de cadeiras de rodas,
próteses e demais necessidades referentes à saúde e etc.) tem-se uma situação na qual uma de intervenção social
pensada a partir da discriminação positiva produz uma discriminação negativa, no sentido de que acaba por se
associar aos pobres “um destino embasado numa característica que não se escolhe, mas que os outros no-la
devolvem como uma espécie de estigma” (Castel, 2008, p. 14). Neste caso, a assistência social deixa de ser uma
política social setorial responsável por determinadas necessidades de proteção social, operando a partir da
efetivação de seguranças sociais como direitos, para se constitui como uma política transversal, responsável
pelos necessitados sociais, frágeis e carentes, operando pela negação de direitos (Sposati, 2009).
63
sua força de trabalho, ou seja, quanto mais se valorizar o seu salário num ciclo econômico
específico, maior será a riqueza acumulada através do seu trabalho. Neste sentido,
pauperização relativa pode ser tomada como sinônimo para exploração do trabalho pelo
capital. É por esse motivo que Siqueira (2013) assevera que os planos de findar a miséria
podem até possuir algum realismo, contudo, haverá pauperização relativa enquanto houver
significa dizer que a pobreza é prova legítima da persistência da lei geral de acumulação
capitalista. Ao mesmo passo em que, por um lado, se produz riqueza, por outro, se produz a
armaram pelo enfrentamento do conservadorismo atualizado. Por mais disfarçado que ele
apareça, o contrarreformismo neoliberal não propõe outra coisa a não ser uma reforma moral
social é naturalizada ao mesmo passo em que é tornada objeto de ação moralizadora, agora
vivido como antes, no mundo e no Brasil. Na Europa, a obra de Guy (2014), O Precariado: a
nossas atenções à ascensão de uma classe social “nova” na Europa, com baixos salários e
consequente produção de uma agitação política violenta de um tecido social sem organização
política, cuja tendência ideológica tem se mostrado uma inclinação autoritária e populista,
quando não com distintos traços proto-fascistas. Não se trata de negar a precariedade da
discordar das consequências políticas e sociais prognosticadas. Ocorre que propor reformas
sociais tendo em vista a antecipação e a neutralização dos riscos da insatisfação social aguda
movida mais por um compromisso com a manutenção da ordem do capital do que por uma
solidariedade real para com os grupos sociais insatisfeitos. A neutralização das insatisfações
sociais de classe e de suas consequências imediatas ou de longo prazo não é outra coisa senão
a neutralização da luta de classes com o fim de deslocar para um ponto cego a materialidade
capitalista”, um aspecto até então pouco visível nos estudos do que nomeia como
“subcidadania brasileira”, outro nome para as expressões da questão social no Brasil. Outra
vez nos deparamos com a naturalização da questão social e sua transformação em objeto de
ação moralizadora, pois, caso contrário, o que poderia significar uma demanda por
Brasil) está relacionado com o “atraso” da elite brasileira, não à toa chamada por ele de “elite
65
exaustiva para com a burguesia nativa, que ele chama de elite, a fim de convertê-la em
determinante de nossa situação, mas não só e nem o mais importante, jamais devendo-nos
lógica financeira.
Como bem deixou claro Iamamoto (2001), a análise da questão social se situa numa
arena de disputas entre distintos projetos societários, sedimentados por diferentes interesses
crítica da economia política dos projetos em disputa. É por esse motivo que falamos em
conflito material em torno dos sentidos da questão social, pois a “disputa de sentidos” não
ocorre num vácuo de matéria, seja no materialismo, seja na física moderna. Acreditar
resumo, é como se nós fossemos seres imateriais, portanto, seres espirituais. Chega a ser
curioso tanto quanto irônico essa semelhança desse pressuposto da filosofia negativa francesa
com o cristianismo, pois em ambos os casos vemos os seres humanos como criaturas
espirituais, ou como criaturas cuja primazia é a do espirito sobre a carne, como se fosse capaz
O materialismo sempre buscou conceber o sublime sem jamais descolar nossa atenção
da miséria e da animalidade humana. Somos seres de carne, lutando para um lugar para
dormir, comer, em busca de trabalho, para nos sustentarmos e vivermos a vida, para só depois
capitalista, a questão social, é atravessada por um conflito bem antes material que político. O
próprio passado e o presente da América Latina denunciam as veias altas do autoritarismo das
burguesias, ou seja, o histórico recurso à categoria do apolítico para vencer as batalhas desse
rupturas são marcas da história desta terra. Portanto, a disputa em torno dos sentidos da
questão social, sua centralidade ou marginalização, sua legitimidade ou sua mistificação, sua
historicidade ou sua naturalização, sua unicidade material ou sua fragmentação abstrata numa
sociedade na qual a burguesia, o famigerado um por cento das sociedades capitalistas, detêm a
precárias quando não extremas de vida e trabalho das massas trabalhadoras brasileiras.
capitalistas
outros modos de produção, apontando a sua especificidade e seu ineditismo, frutos de longa
da questão social, para utilizar uma expressão de Santos (2012). O período da acumulação
primitiva vai do final do século XV a meados do século XVIII e se inicia na Inglaterra (Netto
& Braz, 2012). Na acumulação primitiva, um período bárbaro, este novo modo de produção
foi forjado sobre duas instituições nefandas: a exploração e a expropriação. Sem ambas este
novo modo de produção não poderia ter surgido e sem elas ele não pode permanecer de pé.
da acumulação de capital. Como vimos, quem vende a sua força de trabalho a um capitalista
recebe apenas uma parte de todo o trabalho realizado, daí advindo a cisão entre o tempo de
É esse processo violento de separação que recebe o nome de expropriação: para que existam
seres humanos dispostos a vender a sua força de trabalho a alguns poucos é necessário existir
trabalho, e aos trabalhadores “livres” restará a venda da única coisa que possuem e que agora
passa a ser mercantilizada: a sua própria força de trabalho (Netto & Braz, 2012; Iamamoto,
2001). O trabalho que teria de ser “a forma humana de realização do indivíduo”, no modo de
68
(Antunes, 2015, p. 171). Único meio possível de subsistência, pois, como Marx (2017)
na Inglaterra a partir do período elisabetano, a mendicância era um crime e não sem motivos.
de trabalho como uma moral, uma norma que esteve em longa gestação no período primitivo
atos de tortura, não foram devidamente aplicados, como Marx (2017) relata, é porque havia
O trabalho tal como hoje é concebido não é o mesmo que em outros determinados
constituindo-se assim como uma pedra angular desse sistema. O trabalho assalariado só pôde
tomar tal forma diante de um contexto de primitiva acumulação no qual houve o significativo
foi expandido e ampliado através dos processos de colonização do Novo Mundo (Netto &
Braz, 2012; Marx, 2017). Apontar e situar o nascimento da burguesia é importante uma vez
que seu nascimento não significa outra coisa senão o fato de que a partir daquele acúmulo
em massa. Mas para que essa força de trabalho fosse comprada era necessário, como vimos,
que houvesse força de trabalho disponível em massa, essa última produzida através das
Capitalista.
69
(Netto & Braz, 2012; Engels, 2011), os quais consistiam na “pura e simples expropriação dos
Os conhecidos “cercamentos” das terras se fizeram objetivando gerar uma oferta de trabalho
adequada às necessidades do capital que, para dar lucro, precisa, necessariamente, explorar a
força de trabalho. Ante os níveis de desemprego atuais chega a ser difícil imaginar que algum
dia a oferta de força de trabalho tenha sido um problema para os capitalistas. No entanto
devemos lembrar que, nesse momento, o acesso à terra por parte dos camponeses supria suas
necessidades de modo que era preciso apartá-los desses meios de produção para que
estivessem dispostos a trabalhar em troca de um salário (p. 32).
A existência de terras comunais, através das quais cada um podia satisfazer as suas
necessidades, era um entrave real à constituição das relações sociais capitalistas. É nesse
nas sociedades pelas mãos de cada Estado nacional, transformando profundamente cada
nação, cada sociedade. Foi assim que o Estado Capitalista nasceu, através da formação e
com Mascaro (2013), esse modo de relação social é estruturado e ordenado pelo que
assim que surgiu e se mantem as relações sociais capitalistas, por mais diversas e singulares
produzia um controle da vida social direto e mais simplificado. Uma vez separados no modo
ocorrendo que, desde então, “em muitas ocasiões as vontades do domínio econômico e do
domínio político parecem não coincidir em questões específicas” (p. 17). Ocorre que isso não
que distingue as relações sociais capitalistas dos modos de relações de produção anteriores.
propriedade privada dos meios fundamentais de produção é uma organização social muito
praticada pelo Estado contra as trabalhadoras e trabalhadores que é produzida uma rede
necessária de trabalho assalariado. A exploração não é mais praticada pela posse bruta ou pela
violência física. A violência extraeconômica ocorre apenas nos atos de expropriação pelo
tragicamente livre. Portanto, é o fato desse Estado ser o grande garantidor dessa apropriação
71
privada dos meios fundamentais de produção pelos capitalistas que nos permite nomeá-lo
sobre parâmetros de troca, uma vez naturalizada a apropriação privada dos meios
individualmente tomados” (Mascaro, 2013, p. 19), tornando possível, assim, como se fosse
externo à sociedade, apreendê-lo como um poder público impessoal. Ainda de acordo com
instituição política apartada dos indivíduos” (p. 18) uma vez que naturaliza as relações sociais
capitalistas, tornando difícil vê-las. Noutros termos, essa naturalização do Estado como
sociais capitalistas é precisamente o fato de seu surgimento como terceiro na relação entre
trabalhadores e capital, sendo que é nessa apartação social que podemos apreender a natureza
de sua autonomia relativa. O Estado Capitalista é autônomo uma vez que enquanto guardião
central entre trabalhadores e capital. Contudo, ele não é um mediador neutro, e nem um
seio podem variar muito, havendo, de tempos em tempos, muitas conquistas por direitos
através de muita luta de movimentos trabalhistas e socialistas. Entretanto, uma vez que media
propriedade privada dos meios fundamentais de produção, essa autonomia é relativa, e não
absoluta. Noutros dizeres, a conquista de direitos sociais através de muita luta e sangue não
pelos capitalistas, garantida, mesmo diante de reveses históricos, pelo Estado Capitalista
(Mascaro, 2013).
diz, relativa, não absoluta. Essa autonomia relativa se perfaz na possibilidade de um partido
ocorrerem conquistas reais por meio ou apesar das regras do “jogo democrático”. Mas chegar
ao topo do Estado Capitalista não possibilita a interrupção da apropriação privada dos meios
fundamentais de produção, pois isso é o que estrutura esse Estado. É nesse ponto em que
vemos o caráter não absoluto dessa autonomia e a razão de ser das relações sociais
tratamento da questão social e não a sua dissolução, pois ambos estão ligados por nascença.
Enquanto esse tipo específico de Estado existir, a questão social não morrerá. A existência de
uma autonomia relativa nesse Estado diante dos trabalhadores e do capital permite que de
importantíssimo para que as expressões da questão social fossem não apenas administradas,
mas realmente enfrentadas em muitas nações em momentos históricos específicos, o que nos
permite hoje ver toda aquela situação narrada por Engels (2010) como absurda e distante da
nossa realidade em diversos aspectos, considerando que aquela forma e nível da pobreza eram
muito “bizarros”, poderíamos dizer. Embora não em tantos outros aspectos se nos
autonomia relativa do Estado Capitalista não dependem apenas da organização política dos
Capitalista em particular e a análise da luta de classes deve passar necessariamente por dois
A leitura da realidade social não é um mar de calmaria. Muito pelo contrário. Ela
parece mais um torvelinho agressivo, o qual quando achamos que estamos muito próximos do
chão da realidade, às vezes nos encontramos distantes, e vice-versa. Coutinho (2008) traz
podem variar entre dois polos de uma mesma linha, em que, de um lado, temos uma análise
restrita e, de outro, temos uma análise ampla. Restrita e ampla são palavras que para o autor
caminho do menos complexo ao mais complexo, o qual possui como meta a construção
aqui como sinônimos de parciais, emergem repostas e transmutadas no corpus teórico que as
mediatiza e, especialmente por isso, as concretiza” (Coutinho, 2008, p. 14). Nesta visão, a
construção da teoria é uma prática artesanal que se realiza no ato de narrar o mundo material
numa primeira aproximação, poderíamos dizer que uma concepção marxista de Estado é tanto
mais “ampla” quanto maior for o número de determinações do fenômeno estatal por ela
mediatizados/sintetizados na construção do conceito do Estado; e que, vice-versa, será
“restrita” uma formulação que, consciente ou inconscientemente, concentre-se no exame de
74
pode se situar no nível abstrato que constitui o modo de produção capitalista e a partir daí
derivar não somente a teoria do Estado, entendido de forma abstrata como aparelho de
como contraposição bipolar abstrata entre as duas classes fundantes do modo de produção
Creio que nenhum marxista negaria o fato de que essa abordagem abstrata preliminar, situada
no nível das leis mais gerais do modo de produção, é um momento necessário da investigação
histórico-materialista do Estado; nem todos, porém, reconhecem que ela é insuficiente para a
apreensão das múltiplas determinações que caracterizam o fenômeno estatal em suas
manifestações concretas. Poderíamos recordar que quando essa insuficiência não é
reconhecida – ou seja, quando os resultados da dedução abstrata são projetados, sem
mediações, em níveis mais concretos da realidade social –, o momento parcial (ainda que
necessário) se coagula em fetiche e leva à deformação e ao erro (p.15, grifos do autor).
realidade concreta. Coutinho (2008) aponta que essas diferenças em nível de análise já
estavam presentes nos próprios escritos fundadores da tradição marxista, sendo emblemática a
diferença entre o Manifesto Comunista (Marx & Engels, 1998), uma análise em um nível mais
mais concreta. No primeiro texto, vemos a afirmação de que a época da burguesia veio a
75
simplificar dos antagonismos sociais, na qual a sociedade é divida apenas em duas classes
de classe na França do século XIX, o que significa uma considerável complexidade na luta de
classes na França apreendida pela leitura marxiana tardia, apontada pelo autor como quiçá a
análise mais rica e concreta existente em toda a produção marxiana. O autor ainda busca
despertar a nossa atenção para o curioso embora não surpreendente fato de que essa
Se a enorme contribuição de Mascaro (2013) nos possibilita uma visão mais ampla e
que suas contribuições ainda são gerais em termos de constituição desse Estado. Como
explicitado na seção anterior, o estudo deste autor exuma as relações sociais capitalistas
autor faça questão de tecer consideráveis ponderações sobre a relação entre Estado Capitalista
e formações sociais, marcando uma atenção maior ao tema. No entanto, o caminho proposto
por Coutinho (2008), enquanto representante da escola gramsciana, é que a análise mais
concreta do Estado Capitalista nos demanda caminhar em direção ao estudo das formações
sociais, para além daquelas questões estruturais presentes, de uma forma ou de outra, em
particular que as formações sociais dão a cada Estado Capitalista, as quais o particularizam, o
capitalista. Se uma deriva a teoria do Estado a partir do modo de produção capitalista, a outra
busca a apreensão das articulações complexas existentes entre formação social e modo de
76
produção capitalista. Trata-se de duas formas diferentes de ler o Estado e, sobretudo, de ler a
formação social não é só importante apenas no que concerne ao estudo do Estado, mas
também ao estudo da constituição das expressões da questão social nesse Estado. É nesse
ponto que, em seus estudos sobre a questão social, Santos (2012) aplica ipsis litteris a
aponta a existência de dois níveis possíveis de tratamento da questão social. Embora ambos
estejam necessariamente associados, eles não são idênticos. O nível conceitual se relaciona
particularidades que esta possui nos seus diferentes contextos, a título de exemplo, a realidade
formação social brasileira. Embora a autora não fale nesses termos, podemos claramente ver
que uma perspectiva deriva a questão social e suas expressões do modo de produção
capitalista, enquanto a outra busca apreender as articulações complexas entre formação social
universal, que independe da formação social, ao passo que o histórico se volta ao particular,
produto das articulações complexas da formação social com o modo de produção capitalista.
Não teríamos outro exemplo melhor a não ser o texto da própria Santos (2012) sobre
constituição do mercado de trabalho e do regime de trabalho no Brasil, o que acaba por incluir
são características constitutivas da nossa própria história no caminho para o capitalismo, com
Venho insistindo que é preciso pensar como os movimentos universais do modo de produção
capitalista se traduzem, concretamente, no nível das formações sociais particulares, para que
se tenham condições de captar a diferencialidade nas expressões da “questão social” em cada
contexto, importando-me, no presente trabalho, a realidade brasileira. Tal premissa é válida
para dimensionar, no caso do regime de trabalho brasileiro, o quanto se tornam pouco
aproximativas da realidade certas análises que, ao considerarem as linhas gerais do fordismo,
as tomam como parâmetros para enquadrar a dinâmica da acumulação no Brasil durante a
“industrialização pesada”, incapazes de apanhar a flexibilidade como componente estrutural
do regime de trabalho no Brasil (Santos, 2012, p. 158).
trataremos com mais detalhes adiante –, e aponta o abismo entre o fordismo deles (Europa) e
o nosso, desvelando que no “fordismo à brasileira” não existiu estabilidade, mas sim
palavras, a acumulação no Brasil no grande setor privado sempre foi flexível, ao contrário da
Europa. A autora não apenas asseverou a importância de se olhar para a formação social
quando falamos da questão social e suas expressões, ela mostrou isso através da sua
investigação. O produto de sua investigação é importante uma vez que expõe o quanto a
78
discussão sobre o neoliberalismo no Brasil acaba por ser eurocêntrica e, como diria Coutinho
como perspectivas teóricas que buscam decantar o eurocentrismo de cada dia não só na
marxista se reinventou no Brasil ao pensar a nossa realidade com nossas próprias cabeças e
com os nossos pés no nosso próprio chão.6 Santos (2012), de longe, é uma representante
dentro de tantas outras figuras que dispensam o mesmo esforço. O que a autora mostrou é que
gramsciana, insiste que devemos navegar em águas mais profundas em direção ao debate
de produção capitalista que se erigiu nela. Justamente por ter sido e ainda ser muito criticado
marginal desde a sua fundação (Anderson, 2019) e ainda se esforça por continuar a ser nos
6
É bom constar que nessa busca por razões “não eurocêntricas” está fora de jogo qualquer coisa que fuja ao que
conhecemos como idealismo, algo inegavelmente de raízes europeias. Mas ao falarmos isso alguém se levantará
em defesa dessas perspectivas para falar que se trata mais da nossa mania de ver o resto do mundo pelos olhos
das categorias do ocidente. É assim que a filosofia negativa europeia, filha do singular idealismo francês, busca a
reinvenção da roda em pleno século XXI. Na verdade, trata-se de uma razão europeia fingindo não ser europeia
em cabeças não europeias. Neste caso, a questão ideológica para investigarmos é a razão de ser desse fingimento
e suas relações com o imperialismo no plano das ideias.
79
De todo esse debate, devemos tirar como máximas a perspectiva de estudar o Estado e
a produção das expressões da questão social não somente a partir do modo de produção
capitalista de forma abstrata, mas buscando apreender as complexas relações entre estes e a
nossa formação social. Uma coisa é afirmarmos que a pobreza é produzida pelo capitalismo
na mesma medida em que se produz a riqueza, embora certeira, essa afirmação é insuficiente
diante de um debate mais aprofundado sobre o tema. Outra coisa é investigarmos o como essa
riqueza e essa pobreza são produzidas no capitalismo à brasileira, e que forma e proporção
ambas tomam, algo fundamental para o debate atual, principalmente para lidarmos com a luta
de classes no plano das ideias, enfrentando teorias que relativizam as contradições do modo
de produção capitalista ao mesmo passo que colocam o neoliberalismo como o grande vilão
capitalismo tínhamos uma situação na qual as massas trabalhadoras estavam longe de possuir
principalmente na Europa Ocidental, e até mesmo muito distante do Brasil se pensarmos nas
regiões mais industrializadas do Brasil e com maior organização dos trabalhadores. Todavia,
isso não deve obscurecer o fato de que o que por diversas vezes nós chamamos no início deste
diriam alguns apologistas do capitalismo “civilizado”. Embora esse discurso desconsidere que
80
contraposta à uma quantidade ínfima de países no centro do sistema, uma imensa quantidade
Em meio a essas condições extremas, como vimos, existia alguma “proteção social”,
embora ela mais violentasse que protegesse na maioria absoluta dos momentos. De acordo
com Behring e Boschetti (2011), na acumulação primitiva as forças de mercado não possuíam
sociais, embora não com o objetivo moderno e contraditório de garantir o bem comum, mas
apontam que neste período havia, na verdade, protoformas de políticas sociais, as quais se
generalização das políticas sociais nos países do Norte Ocidental, o que não ocorreu por
acaso, tendo apenas sido possível sobre uma particular base material. De acordo com Behring
(2015)
Pois bem, cada período da história do capitalismo atravessou um ciclo longo de aceleração e
desaceleração da acumulação de capital, entrecortado por pequenos ciclos. São as ondas
longas com tonalidade de crescimento e as ondas longas com tonalidade depressiva. Com
base na periodização mandeliana, é possível afirmar que as políticas sociais se multiplicam no
final de um longo período depressivo, que se estende de 1914 a 1939, e se generalizam no
início de um período de expansão, que teve como substrato a guerra e o fascismo, e segue até
fins da década de 1960 (p. 176, grifos da autora).
Ainda de acordo com Behring (2015), o cume do período depressivo produziu uma
ponta, a autora argumenta que seria insustentável para o capitalismo uma crise nova com as
consolidava, com seus muitos limites, a experiência soviética. A saída, numa outra via, seria o
81
fascismo, também avaliado como insustentável em médio prazo. É neste contexto que
foi deveras questionada na prática não só pelos trabalhadores, mas, de forma inédita,
simples multiplicação e generalização das políticas sociais. Boschetti (2016) trouxe grande
Apontar a base material da multiplicação e generalização das políticas sociais nos leva
a uma posição de rejeitar qualquer voluntarismo, seja a partir das classes trabalhadoras, seja
contribuição de Behring (2015) na qual, noutras palavras, vimos que a multiplicação das
políticas sociais ocorreu num contexto de fim de um longo período econômico depressivo,
expansão, possibilitado pela economia política da guerra e do fascismo, e que vai até o fim da
primeira década da segunda metade do século XX. Portanto, não se tratou, de forma alguma,
de “concessões” das burguesias nativas e nem unicamente da luta dos trabalhadores, mas
expansão econômica, transição essa que, a um só tempo, foi tão profundamente traumática
para a burguesia, a qual obteve razões seguras para desconfiar da suposta onipotência do
mercado, quanto foi favorável à luta nos trabalhadores contra os ímpetos do capital, seja na
O Estado social capitalista é, portanto, o mediador que garante o sistema legal e jurídico dessa
forma de segurança social, mas sua conformação como Estado de Direito depende de uma
série de condições materiais na reprodução das relações capitalistas, e também de condições
políticas relacionadas à luta de classes, ou seja, à organização e pressão da classe
trabalhadora. Essa forma de segurança social não garante somente a segurança material, mas
também inscreve o indivíduo na ordem do direito burguês. O que garante os benefícios e
serviços sociais não é uma relação clientelista ou de tutela, mas o fato de o indivíduo estar
inscrito em uma ordem jurídica universalista associada ao direito do trabalho (Boschetti,
2016, p.106-107, grifos nossos).
generalização das políticas sociais para a análise dos sistemas de proteção sociais. Isso ocorre
complexa articulação com a formação social. Noutras palavras, cada regime de proteção
(Boschetti, 2016). Sem adentrar a fundo em cada detalhe dos liames dessa importantíssima
discussão, é necessário observar, em resumo, que toda a confusão entre os diversos conceitos
Wohlfahrstaat, Welfare State, État Providence, État Social e Estado de Bem-estar Social,
83
acabam por se perfazer num descuidado gritante com as traduções dos textos fundadores de
cada perspectiva para as demais línguas e suas limitações. Entretanto, o maior problema está
específica, que acaba por chamar atenção à ordem de cada discurso particular em relação à
optamos pela definição de Estado Social Capitalista (Boschetti, 2016). De acordo com essa
concepção,
é produto da relação de proximidade para com as influências das experiências de vários países
mercado, pela universalização dos serviços sociais e através da implantação de uma rede de
medidas anticrise ou anticíclicas com sustentação pública (Boschetti, 2016; Behring, 2015).
em cada país europeu, dentre elas Social Insurance, Social Security, Seguro Social,
Segurança Social e Sécurité Sociale. A esse respeito, Boschetti (2016) nos diz que a
seguridade social integra o Welfare State – inglês –, mas não sucumbe a ele, apontando que
particularidades de cada país, podendo ficar restrita aos seguros ou incorporar outras políticas
sociais. Da mesma forma, a seguridade social é uma dimensão do État Providence – francês –
, mas não se confunde com ele, sendo que neste país a seguridade social foi produto de um
longo processo de articulação entre formas distintas de proteção social até então existentes na
Europa. Em síntese,
é possível afirmar que a seguridade social não se confunde e nem é sinônimo de Welfare
State, État Providence ou Sozialstaat, mas é parte integrante, e mesmo elemento fundante e
constituinte de sua natureza, bem como de sua abrangência. Isso significa que a
compreensão de seguridade social predominante em qualquer país é imprescindível para a
compreensão da natureza do Estado social. Também é evidente que a seguridade social não se
confunde e nem se restringe ao seguro social (ou previdência social, para utilizar a expressão
brasileira). Ainda que possa haver importantes distinções em cada país, pelo menos três
elementos passaram a constituir historicamente a seguridade social: os seguros, a assistência
médica/saúde e as prestações assistenciais (Boschetti, 2016, p. 44, grifos nossos).
A esta altura do debate, devemos explicitar duas máximas. Em primeiro lugar, não é
nacionais, como se houvesse um continuum entre eles a não ser o fato de que se trata de uma
proteção social no capitalismo, pois inexiste sistema de proteção social transnacional. Tal
85
suposição é pura ideologia. Os sistemas de proteção social são produtos históricos nacionais.
Como muito bem elaborou Boschetti (2016), as experiências concretas de proteção social no
produtivas, de um lado, e o papel do Estado e das classes sociais, de outro, tudo isso no
contexto de cada nação em específico. Portanto, são centrais as condições nacionais, as quais
dão aos sistemas de proteção social “características e particularidades que os distinguem sem,
contudo, suprimir sua morfologia estruturalmente capitalista” (p. 25). Acrescentamos a essa
mas no sentido da possibilidade material de sua existência, por cada período da história do
pequenos ciclos nestes entremeios. Essas asserções mostram o quanto é voluntarista supor que
tanto das possibilidades postas pelas formações sociais quanto pelos períodos do capitalismo
mundializado, questões essas que estão fora dos controles de ambas as classes fundamentais
antagônicas, justamente pelo fato do modo de produção capitalista ser profundamente avesso
mais que tentem atualmente negar de forma romântica e grotesca a nossa ocidentalidade –
devemos jamais deixar de relevar que os sistemas de proteção social nasceram na Europa e,
como já a miúde explicitado, numa base material específica. O ouro sempre representou
riqueza e poder, não só no imaginário do ocidente antigo, mas na sua própria prática colonial.
No Brasil, usamos a frase “nasceu em berço de ouro” para falarmos dos privilégios
berço de ouro, hoje localizado no Museu Imperial de Petrópolis, no Rio de Janeiro. Ocorre
que ao falarmos em berço de “ouro”, nem sempre nos atentamos a esse fato e são muitos os
que desconhecem sua existência real. Semelhante autonomia relativa ocorre entre a
historicidade. Foram cerca de trinta anos de histórica constrição do capital alcançada aos
custos de muita luta e sangue advindas não apenas do movimento operário e socialista
europeu, mas, também, do que ocorrera e se lutava para manter de pé no leste europeu: a
existência por um contexto de transição entre períodos opostos do capitalismo enquanto modo
State, aquela expressão nos lembra de que seus trinta anos dourados duraram trinta anos
apenas, pouco diante de toda a existência do capitalismo e que nunca alcançaram um ponto da
transformação social em que fosse legítimo e preciso o abandono deste nome, continuando a
ser o mesmo capitalismo, apenas particularizado e menos despótico para com o trabalhador
numa região que foi o berço desse modo de produção. Por fim, nós, brasileiros, não
pessoas das mais distantes regiões. Essa acumulação de riqueza transnacionalizada em direção
explícita violência dos Estados europeus às demais nações recebe o nome de imperialismo
(Netto & Braz, 2012). Maranhão (2010), comentando a respeito dos ditos “trinta anos
Na época, em alguns países da Europa, como resultado de uma intensa pressão dos
trabalhadores, a dinâmica de criação da força de trabalho excedente foi amenizada. Nesse
período, os mecanismos exteriores de controle político exercidos nesses países, quando não
87
Netto (2001), comentando sobre a referida expressão de origem francesa, anotou que a
Segunda Guerra Mundial, e que vai até os anos sessenta aos setenta do século XX,
mesmo sem erradicar as suas crises periódicas, o regime do capital viveu uma larga
conjuntura de crescimento econômico. Não por acaso, a primeira metade dos anos sessenta
assistiu à caracterização da sociedade capitalista – evidentemente desconsiderando o
inferno da sua periferia, o então chamado Terceiro Mundo – como sociedade afluente,
sociedade de consumo (Netto, 2001, p. 47, grifos nossos).
Netto (2001) ainda aponta que o nascimento dos sistemas de proteção social na Europa
passado a questão social e suas expressões, as quais “eram um quase privilégio da periferia
conjunto das melhoras nas condições de vida das massas trabalhadoras não fugisse à norma
pleno-emprego, pois os níveis de desemprego nunca chegaram a ficar nulos realmente – longe
de ser uma regra, sempre foi uma exceção na história do capitalismo. É nesse ponto que a
também através do imperialismo. Em outras palavras, o ouro teve de sair de algum outro lugar
que não da Europa Ocidental, mais uma vez na história do capitalismo. A proteção social
entre períodos de acumulação de capital, só foi possível por que ainda havia uma massa
gigantesca de força de trabalho sem organização política sólida e com parca experiência
direção ao sul do mundo. A eutanásia do rentista lá só foi possível através de sua livre e cada
vez mais desregulada existência por aqui. Seria dificultosa a existência dos trinta anos
dourados do capitalismo sem as nações capitalistas periféricas, seus regimes despóticos e suas
buscando ressaltar, sempre, que os trinta anos “dourados” do “capitalismo” foram trinta anos
tratou de uma experiência do capitalismo europeu ocidental, especificamente. Por fim, como
argumentou Maranhão (2010), pesa que essa “dinâmica civilizatória – saturada de situações
históricas muito peculiares à época e que se limitou a um número reduzido de países centrais
89
– parece não fazer mais parte da lógica de reprodução do capitalismo contemporâneo” (p.
115).
capitalismo europeu ocidental, dos seus problemas e do seu caráter tão imperialista quanto
não são as mesmas e por motivos basilares. Como explicitado acima, ao contrário do que
certos discursos reformistas ou liberais trazem, a Europa Ocidental e seu capitalismo foram
uma exceção histórica quando contrastadas com as trajetórias daquelas muitas nações
cada nação e região específica, tudo isso subjugado pelo imperialismo enquanto processo de
de proteção social naquela região capitalista central tratou-se de uma situação especial que faz
mais parte do passado deles do que do nosso presente ou futuro. Então ao falarmos de
transformações nos sistemas de proteção social, temos que considerar que, assim como num
aborto, muitos sistemas de proteção social, muito longe de sofrerem um “desmonte”, pois só é
90
possível desmontar o que está montado, sofreram uma forte e abrupta interdição, um
verdadeiro aborto. De acordo com Sitcovsky (2010), a esses sistemas de proteção social ainda
em gestação no final do século passado para o início deste dizemos que eles possuíram um
desenvolvimento tardio.
acumulação distinto que desceu do Norte para o Sul do mundo como se fosse um Cavalo de
Tróia. Contudo, a verdade é que antes de Thatcher e Reagan tornarem suas nações em
verdadeiro laboratório foi a América Latina e sua cobaia e vítima mais importante foi o povo
chileno (Anderson, 1995). Portanto, é necessário ponderar o que é novidade e o que não é
novidade em tudo aquilo que o neoliberalismo nos traz, tudo isso a partir da América Latina,
pois em vez do “novo” estar chegando, pode ser que seja um velho retornando de uma forma
nova. Destarte, pelo fato desse padrão de acumulação ter sido primeiro experimentado aqui e
não lá, não seria correto falar em novidade, tratando-se mais de um discurso novidadeiro.
produzidas nos complexos interstícios do modo de produção capitalista com nossa singular
formação social, não podendo ser critérios exclusivos para a análise do novo regime. A
novidade talvez resida mais na revolução tecnológica permanente e do como ela se relaciona
com a flexibilidade e a precariedade do que nessas características per se. A interdição história
do desenvolvimento dos sistemas de proteção social na América Latina também é prova viva
de que quando a ideia da desproteção social generalizada surgiu com força na Europa
Ocidental em meio à crise capitalista daquele período, no final do século passado, nós ainda
estávamos em busca dos tais “anos dourados do capitalismo”, os quais nunca chegamos a ver
Feitas essas pontuações, passamos à análise das tendências mais consistentes nos
regimes de proteção social, tanto no centro quanto na periferia do sistema. A tendência mais
consistente, e por isso a principal tendência, tem sido o redimensionamento das políticas
sociais no interior dos sistemas de proteção social, o que acaba por desconfigurá-los, quando
não desmontá-los de fato. Esse redimensionamento das politicas sociais setoriais no interior
dos sistemas de proteção social são imperadas pela austeridade fiscal, produto da estrutural
crise fiscal do Estado Capitalista. Em termos claros, quanto menor o custo de uma política
social setorial, maior a probabilidade de ser mantida e ampliada. Quanto mais custosa uma
Como vimos, um sistema de proteção social não é apenas a sobreposição de políticas sociais,
elas se articulam e se complementam, tudo isso com a égide do financiamento público, seu
pilar central. Ao mudar a importância e o lugar de cada política social setorial, os sistemas de
nos explica que o nascimento dos sistemas de proteção social são produtos do surgimento da
intervenção estatal nas situações de risco derivadas do trabalho. Quando observamos toda
aquela situação descrita e analisada por Engels (2010), vemos todo o emaranhado de riscos
“trabalhador livre”, de quem tem que vender a sua força de trabalho para sobreviver.
Sitcovsky (2010) nos aponta que a intervenção estatal na direção do enfrentamento desses
92
sistema, de seu funcionamento e de sua legitimidade diante do povo, ou seja, diante das
(2010),
Isso significa que as políticas sociais ao garantirem parte da reprodução material da força de
trabalho, liberam, por seu turno, parte da renda dos trabalhadores para o consumo de
mercadorias. Nestes termos, as políticas sociais assumem um lugar estratégico na reprodução
ampliada do capital e se constituem como parte dos mecanismos anticrises (p. 89).
ciclo do capital, um verdadeiro sopro de vida para todo o sistema. Neste ponto é necessário
acrítico. O fato de considerar que o sistema se volta à sua própria proteção ao angariar a
específicas significa, em última instância, que a proteção social jamais partiu de uma
instituição neutra e se voltou a favor de um sujeito neutro, mas sim do Estado Capitalista para
93
cabo. Noutros termos, ao proteger o sujeito da estrutura acaba por proteger, por conseguinte, a
própria estrutura. É nesse sentido que o reformismo progressivo não possui nada de
revolucionário, mais por questões materiais e históricas do que por quaisquer outras. Noutros
termos,
existentes no mundo, uma das tendências mais relevantes se refere às transformações desses
Assistência social e modo de produção capitalista possuem uma longa relação, a qual
tem se tornado cada vez mais íntima nas últimas décadas, na ordem neoliberal mundial. É isso
o que nos assevera Boschetti (2016). Para esta autora, desde a acumulação primitiva, até a
forma como hoje esse modo de produção se apresenta, assistência social e trabalho vivem
94
uma relação de atração e rejeição, a qual é contraditória e insolúvel dentro deste modo de
produção. Rejeição no sentido daqueles que têm o suposto “dever” de trabalhar, mesmo
quando não encontram trabalho, acabam por precisar da assistência social, mas não possuem
direito a ela. Assim sendo, o trabalho tolhe a proteção que provém da assistência social. E
classe trabalhadora para o outro, como um pêndulo, “mesmo que não possa, não deva, ou não
Boschetti (2016) relembra que, para Marx (2017), a tensão entre as leis dos pobres na
superpopulação relativa. Como vimos, Marx (2017) define superpopulação relativa como um
delas ele nomeou de superpopulação relativa flutuante, abrangendo os trabalhadores que num
momento são inseridos e noutro são expulsos das fábricas, minas, siderúrgicas e manufaturas,
camponeses que foram expropriados pelo capitalismo, mas que não são tão facilmente
absorvidos pelo mercado. A superpopulação relativa estagnada é constituída por uma fração
dos trabalhadores ativos, mas cuja ocupação é irregular. O pauperismo é o sedimento mais
formada por aqueles considerados aptos ao trabalho. A segunda se refere aos órfãos e crianças
indigentes e a terceira é composta por aqueles com capacidades para o trabalho altamente
degradadas.
95
a relação de atração e rejeição entre assistência social e trabalho tem origem anterior à
consolidação da sociedade de mercado, mas perpetua-se na sociabilidade capitalista e
mantém-se no capitalismo contemporâneo, com matizes que alteram sua ênfase e abrandam
sua intensidade, mas mantém sua indissociabilidade no processo de reprodução da força de
trabalho (Boschetti, 2016, p. 96).
social, mesmo quando alçava o patamar de direito social, se voltava com prioridade em
direção aos incapacitados para o trabalho ou, ainda, à expressão mais cruciante do pauperismo
(Boschetti, 2016).
(2016), nestes países, os quais não instauraram nem um Estado social ampliado e nem uma
“sociedade salarial”, a tensão de atração e rejeição entre assistência social e trabalho chega a
assistência social ocupa um lugar mais marginal ou até mesmo inexistente como política
social, sendo que suas ações, significativamente limitadas, circunscritas e focalizadas sofrem,
96
até hoje, com visões estreitas que a lançam aos domínios da filantropia, operando no limite da
Entretanto, algo tem mudado, fazendo com que essa configuração dos sistemas de
proteção social não possa mais ser generalizada no presente. Tais mudanças tem uma
capital, como o Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco Mundial (BM), a Organização
de que não há liberdade para os países escolherem ou não acatá-las. Aos países da América
recomendações pelos governos geralmente são postas como “reformas”, “ajustes fiscais”
inadiáveis pelo “bem” e pela “saúde” da economia desses países, o que não passa de uma
Behring e Boschetti (2011) nos disseram que reforma não é um termo a-histórico e
capitalista. Embora tais expropriações ainda persistam, Boschetti (2016) aponta o surgimento
indiretas da previdência e saúde públicas são uma forma comum dessas expropriações
subsistência derruídos, acabam por serem lançados numa condição a qual não há outra
Noutras palavras, aqueles que necessitam de vender sua força de trabalho para sobreviver,
agora terão que fazê-lo sem qualquer critério, aceitando qualquer ocupação por mais precária
e desprotegida que ela seja. Tudo isso em função do mercado se tornar a principal fonte
que inclui, especialmente, serviços e planos de saúde e previdência privados, para além dos
gastos com alimentação, habitação, vestuário e transporte, por exemplo. Esses mesmos
trabalhadores hoje enfrentam um mercado de trabalho com empregos em sua maioria sem
instituição de planos privados abertos e/ou fechados que se constituem em novos nichos de
acumulação. No âmbito do trabalho, reedita a antiga e insolúvel tensão entre assistência social
e trabalho, mas agora com novas nomenclaturas e configurações chamadas políticas de
ativação da proteção social (Boschetti, 2016, p. 137).
Em sua pesquisa, Boschetti (2016) constatou ser essa uma tendência que atravessa os
Essa tendência é observada desde a Europa até a América Latina. Mas tal expansão ocorre de
investimento em serviços sociais. A assistência social passa a ter um protagonismo inédito nas
configurações dos sistemas de proteção social. Tal protagonismo não ocorre na forma de
nível constitucional. Numa direção totalmente oposta, essas transferências monetárias diretas
Esse protagonismo diante dos sistemas de proteção social tem relação direta com o
prova viva da decadência da proteção social vinculada ao trabalho ou, se preferir, ao trabalho
protegido (Boschetti, 2016; Sitcovsky, 2010). Sitcovsky (2010) nos diz que esse
deslocamento da assistência social possui relação direta com a crise da sociedade salarial
não como direitos sociais, se tornam alvos fáceis do populismo e do clientelismo político. No
entanto, esse protagonismo é farsesco. Os dados revelam que o investimento dos países
observado em relação à percentagem do Produto Interno Bruto (PIB). Isso mostra “que os
caráter ideológico das transferências monetárias. Muitas delas são os pilares centrais dos
a fome latente e a pobreza intacta. Esses programas não enfrentam a pobreza, eles são uma
intervenção paliativa sobre ela. A pobreza é produzida pelo modo de produção capitalista,
intervenções estatais no mercado mudariam essa composição, tudo isso a depender dos ciclos
seja, mantém no limite da sobrevivência uma fração altamente pauperizada, apta ao trabalho,
sistema, mas acaba por baratear a força de trabalho como num todo ao manter um imenso de
reserva de força de trabalho. Noutro ângulo, a estudiosa aponta que a expansão atual da
assistência social também tem sido uma efetiva estratégia anticíclica, no sentido de propiciar
uma estabilização econômica, o que significa afirmar que a assistência social garante a
De acordo com Krein (2018), uma das formas que as politicas de ativação assumem é
hostil e escasso, o que constitui um grande problema para a construção de identidade coletiva”
(p. 98). Não sem motivos hoje assistimos ao boom do coaching, nada mais que um sintoma de
preparação dos indivíduos para a brutal competição num mercado para poucos” (Behring,
assistência social diante dessas agudas expressões contemporâneas da questão social, se ainda
Essa expansão da assistência social como principal estratégia de proteção social rebaixa a
dimensão e o significado dos direitos e serviços públicos e favorece a transferência do fundo
público ao capital. Em contexto de crise do capital, marcado pela bárbara destruição dos
direitos do trabalho, essa expansão da assistência social não consolida a universalização do
Estado social, como muitos querem nos fazer acreditar; antes, transmuta-o em espaço de
submissão da classe trabalhadora às mais ignóbeis formas de exploração e condições de vida
(2016, p. 18-19).
social tanto na Europa quanto na América Latina, conquanto seja emblemática a confusão
conceitual e prática que ocorre: tal política que em sua especificidade seria uma das variadas
formas de respostas à questão social, tendo a sua forma específica como característica o fato
de ser não contributiva, acaba por ser remodelada pelo ideário neoliberal, o que significa que
ela não só tenha como foco a pobreza e a miserabilidade, mas que ele venha a assumir
Brasil imerso em uma “crise política, econômica e social”, construído pela grande mídia para
contraposição marxista é a de lembrar que capitalismo é crise. As crises são uma condição do
capitalismo. Falarmos das crises do Brasil implica falar da crise de reprodução do capital em
por isso que não faz sentido segmentar por absoluto as crises domésticas, sejam lá quais
forem, da crise de reprodução do capital internacional, pois, uma vez inserido na ordem global
103
notar que realmente se tratou de uma abertura de um regime, em termos políticos liberais, mas
muito da estrutura do regime autoritário permaneceu, de tal modo que as características gerais
são a de uma transição conservadora de poder, ou, como ficou também conhecido esse
processo, uma “transição por cima”, em que o aparato institucional autoritário e conservador
transformações devem ser lidas como transformações da forma política estatal produzida pela
luta de classes em meio à crise de reprodução do capitalismo. É por esse motivo que este
autor sublinha a cautela preciosa ao lermos as transformações de 1988, não sendo possível
tomá-las em absoluto como uma ruptura em derradeira direção à democracia, apesar das
Noutros termos, a tal “abertura democrática” foi produto de uma perda da legitimidade
da ditadura durante grave crise econômica não apenas diante da população e dos movimentos
sociais, mas, de modo muito determinante, das burguesias nacionais, cada vez mais atraídas
militar. A queda de braços foi vencida por uma frente burguesa que era a favor da abertura
trajetória do país, a Constituição de 1988 angariou muitos avanços, porém, não chegou a
direitos iguais a todos os cidadãos, embora assegure a saúde como direito universal, a
assistência como um direito para os que dela necessitarem, ao passo que mantém a
previdência sob a lógica do seguro social, tendo em vista a necessidade de contribuição direta
anterior. Em suma,
Miguel (2019) chama a atenção para um fator particular e agravante no caso brasileiro:
a ditadura militar não entrou em colapso. Muito pelo contrário, ela negociou a transição
passaram mais de dez anos. Isso evidencia, segundo o autor, um grau de considerável de
controle exercido pelos militares sobre o processo de “transição”. Em uma leitura precisa da
movimentos sociais como forças ativas no processo histórico. Na sua proposta, os militares
recursos, todavia, acabaram sendo forçados a negociar em função da ampliação das forças
populares.
Ocorre que a obtenção de conquistas na letra da lei, especialmente no caso das mais
correlação de forças naquele momento, não significa que a lei será cumprida, que o direito
será aplicado, que do dia para a noite ela transformará o Estado e a sociedade, cristalizando-os
assim por um certo tempo. Quando se trata de capitalismo as coisas não funcionam dessa
forma, sendo essa visão eivada de grosseiro voluntarismo. As ilusões que sedimentaram a
transição democrática brasileira, ressalta Miguel (2019), estão na crença que o processo de
Poderíamos acrescentar, não só predefinido como predestinado nas visões mais românticas.
Todavia, como Mascaro (2013; 2018) apontou, a lei e o direito são instituições elementares da
reprodução capitalista: não há conquista permanente sem luta permanente sob o capitalismo.
106
Para que aquelas conquistas democráticas fossem realmente efetivadas, tornadas conquistas
reais, de fato uma transformação social, seria necessário a cristalização daquela mesma força
progressista ampla que fez com que na lei e no direito brasileiros de 1988 fossem inscritos
direitos sociais elevados, embora não livres de contradições e limitações, realmente de claro
cariz socialdemocrata europeu. Ocorre que esses direitos de outra época e lugar, de um
mesma força social que os fez serem inscritos, que, no entanto, no Brasil pós-1988 entrou em
Desde então, a conjuntura nacional passou a ser condicionada pelos ajustes que a lógica dos
negócios do grande capital e a corrida para mimetizar os estilos de vida das economias
centrais impõem ao processo de acumulação e dominação no Brasil. Ficou para trás um ciclo
de expressivo avanço das lutas populares, marcado pelo fortalecimento do movimento
sindical, o crescimento da igreja ligada à teoria da libertação, a ofensiva dos partidos
comprometidos com as causas das classes trabalhadoras e o fortalecimento de movimentos
sociais que lutavam pela democratização da sociedade brasileira. Teve início uma fase de
refluxo do movimento popular e de grande confusão e desalento nas hostes nacionalistas e
democráticas, caracterizada pela descrença na política e pelo culto irracional às virtudes do
mercado (Sampaio Jr., 2017, p. 11-12).
de classes no início deste novo milênio, publicada originalmente em fragmentos entre 1997 e
1998 permanece muito atual. Aquele momento de fervura das lutas populares realmente
institucionalmente aqueles direitos sociais inscritos na lei para, assim, serem aplicados, para aí
sim tocarem na sociedade brasileira gerando transformações reais. Boa parte dessa legislação
(Miguel, 2019). Numa verdadeira digressão, a frágil e contraditória Constituição sofreu várias
contrarreformas. Era a liquidação de parte substantiva do sistema de proteção social que lutas
Todavia, isso não implicava que ele tivesse angariado imunidade em relação à sua
legitimidade.
Sampaio Jr. (2017) discerne duas dimensões principais da assim chamada “crise do
Diante de um profundo desequilíbrio entre o volume dos compromissos gerados pelo passivo
das contas externas. A falta da famigerada “credibilidade” na moeda, ou seja, a medida que
separa países periféricos bons para exploração dos ruins, aqueles que ainda possuem
mecanismos de proteção social ainda em pé, mesmo que a trancos e barrancos, pois a fuga de
108
capitais seria a estratégia mais “segura” para os investidores estrangeiros. O autor evidencia a
(p. 50). Ao fazer o balanço da dificultosa trajetória do país, o mesmo resume que
Olhando mais de perto ainda os movimentos do capital naquele momento, Saad Filho
Acumulação (SA), uma forma mais concreta do modo de produção. O SA pode ser entendido
As reformas neoliberais no fim dos anos 1980 e no início dos anos 1990 foram justificadas
pelo suposto esgotamento da ISI, pela necessidade de melhorar a eficiência econômica e pelo
imperativo de controlar a inflação. Tais desafios forneceram cobertura ideológica para a
transição econômica da ISI ao neoliberalismo. [...] Demonstra-se que, embora tenha
continuado a ser uma economia desigual, dependente e geradora de pobreza após a transição,
o Brasil, em contraste com o período da ISI, tornou-se uma economia de baixo crescimento,
cujo desempenho foi permanentemente limitado pela ameaça de crises cambiais e de balanço
de pagamentos. Oscilações cambiais nos fluxos internacionais de capital desencadearam a
109
crise do real, em 1999, mas a causa última da crise foram as fragilidades criadas pela
transição neoliberal. Essas deficiências foram atendidas, em parte, pelo “tripé de políticas
macroeconômicas neoliberais” introduzido em 1999 (incluindo metas de inflação e
independência operacional do Banco Central, fluxos relativamente livres de capital e taxas de
câmbio flutuantes, além de políticas fiscais e monetárias contracionistas). Deste então, o tripé
tem governado a política macroeconômica brasileira (Saad Filho & Morais, 2018, p. 29-30,
grifos dos autores).
Essas variadas fragilidades são uma evidência material de que a dependência havia se
uma involução econômica, na qual uma economia industrializada perde de forma gradual
parte de sua base manufatureira, ao passo que a participação da produção primária no Produto
110
consideravelmente mais altas que o SA anterior, a ISI. A esse processo Sampaio Jr. (2017) e
De acordo com Sampaio Jr. (2017), na segunda metade da década de 1990, de modo
do campo vagueavam pelo país. Além de agravar a crise na cidade e no campo, o autor
apontou que a ruptura das bases materiais que mantinham as correntes migratórias que faziam
atrairiam investimentos não se cumpriu. O acesso por brasileiros aos padrões de consumo das
Brasil diante da dependência financeira. Em suma, víamos nascer um capitalismo frágil diante
social nacional parecem ter sido efetivamente sobrepostos pela ideologia dessa nova forma de
existência do capitalismo brasileiro. Era uma vitória arrasadora das forças burguesas que se
altura do valor do combate. Ainda na leitura de Sampaio Jr. (2017) sobre a década de 1990 e
não teria sido o mesmo sem um governante tão empenhado em entregar a nação ao capital
internacional como FHC. O período FHC, considerando desde a sua direção institucional do
Plano Real como ministro de Itamar Franco até as contrarreformas dos seus dois mandatos na
seus impactos na relação entre modo de produção e formação social. Para longe de suposições
de uma dependência antiga, arcaica e colonial, expressa nas vicissitudes do país durante o
século XX, a estrutura atual da dependência do capitalismo brasileiro tem raízes recentes, que
passando pelas contrarreformas de Collor de Melo e Itamar Franco, seguidas pelo período
112
agravada. Anderson (2019) cita este como o curioso caso no qual um outrora sociólogo
sua passagem pelo executivo nacional, deixou o país mais dependente do que já era. Os
desafios para a transformação social se agravaram ao mesmo passo em que foi iniciada uma
era de contrarreforma compulsória (Sampaio Jr., 2017; Saad Filho & Morais, 2018).
passar do tempo. Muito pelo contrário, a nova moeda havia se tornado o elemento-chave das
país, sendo duas faces de uma mesma moeda. Em termos gerais, esse SA tem como
vinculados ao trabalho.
capital no Brasil. Uma forma sui generis de capitalismo financeirizado numa formação social
nascença e tomada como objeto de expiação da crise do capital em escala mundial desde o
fim do século XX em diante. Daí a constatação de uma investida neocolonial nua e crua
contemporânea num contexto de inserção periférica e de uma economia cada vez mais
113
história da disputa entre capital e trabalho pelo Fundo Público. O que está em jogo aqui é a
proteção social incompleta inscrita na lei e no direito brasileiros e seu inevitável conflito com
organizado das sequelas da questão social que emergem por parte do Estado, diante de
contemporâneo, neoliberal, e suas contradições. “Proteção social” não deve ser entendida
como algo positivo per se ou como um produto de uma disputa de forças num Estado neutro,
imparcial, impessoal, em suma, justo. Não, proteção social é uma demanda insolúvel ao
capital em crise, a saber, a exigência de boas condições de vida e trabalho para a grande
contemporâneo nas direções da crítica marxista da crise (Behring, 2015; Behring & Boschetti,
2011; Boschetti, Behring, Santos & Mioto, 2010; Salvador, Behring, Boschetti & Granemann,
massas, tornando toda luta por proteção social, enquanto uma garantia inteiramente pública,
uma questão de luta de classes. É neste ponto que proteção social se equivale à questão social
114
enquanto o que de fato ela é, uma questão, um problema estrutural dos modos de existência
do capitalismo.
avançava um cenário adverso se cristalizava no campo da proteção social no país. Tanto pela
Sampaio Jr. (2017) ainda chama atenção para a constatação de uma dinâmica
FHC como exemplo: mesmo não havendo muita “gastança”, realmente, a dívida pública
galopou. Isso significa que independente dos gastos públicos a dívida pública sobe. O
“limitadoras da liberdade econômica”, que estabelece uma relação de causa e efeito entre
gastos públicos e aumento da dívida pública não condiz com a realidade do vigente modo de
divida pública. A suposição que o discurso neoliberal dá de que a dívida pública deva ser
115
enfim sanada algum dia é ilusório. Na verdade, o que se quer é a confiança do capital
rolagem da dívida pública num nível que garanta a manutenção da acumulação em níveis
“bons” diante da concorrência internacional. Sampaio Jr. (2017) ainda põe em relevo a
herança histórica da dependência se aprofundando uma vez mais num país de dimensões
Uma visão tanto mais aproximada quanto mais cautelosa irá mostrar que o problema
está na relação determinante entre o serviço da dívida pública e a variação da taxa de juros em
função da política monetária adotada, sempre de teor ortodoxo, contracionista, algo amarrado
massas) do BC. O aumento da dívida pública é produto de uma política econômica que no
furor da busca desesperada de manter o controle sobre a inflação, acabou por se entregar de
corpo e alma às exigências do capital financeiro (Sampaio Jr., 2017). O problema estava
inscrito na própria fragilidade estrutural da moeda chamada Real, sempre onerando as massas
em casos de perdas. A política de socialização dos prejuízos se tornou um fardo adicional nas
qualquer preço, novos ciclos de desnacionalização, ou seja, privatizações, para atrair capital
116
internacional em busca de estabilizar a balança comercial. É como se a nação tivesse que cada
vez ficar mais e mais imóvel e dominada pelo mercado num intenso processo de exploração e
expropriação pelo capital internacional. Sampaio Jr. (2017) fala na tendência de crise
permanente, ajuste fiscal sem fim e intensificação da insatisfação social das massas. Ao
analisar a transição ao neoliberalismo na década de 1990, o autor faz uma análise que mostrou
não ser conjuntural, mas sim uma tendência do Estado brasileiro no neoliberalismo.
[Havia uma] verdadeira blindagem legal que imobilizava o Estado diante dos grandes grupos
econômicos. O poder descomunal do grande capital de sabotar toda iniciativa que pudesse
representar uma ameaça à continuidade do neoliberalismo inviabilizava qualquer
possibilidade de mudança no rumo da política econômica sem uma abrupta e traumática
desorganização da economia. Impotente para coibir processos desestabilizadores que colocam
a economia na beira do caos, o país fica refém do terrorismo de mercado e, nos momentos de
crise aguda, não tem alternativa senão celebrar a tutela do FMI (Sampaio Jr., 2017, p. 31).
Terrorismo de mercado, essa foi a expressão que Sampaio Jr. (2017) utilizou para se
capaz de definir suas vontades através de seus gritos transcritos em quedas “relâmpago” na
cada vez que alguma decisão política ou jurídica que envolva alguma perda mínima, ou seja,
trabalhadoras brasileiras, se mostra a vista de uma possibilidade real, mesmo que distante.
interesse do capital. A grande mídia tem esse “mercado” como um grande chefe
do capital internacional sobre as direções da nação, cada político se vê refém e, na maioria das
vezes, dá um passo atrás ou um para o lado direito à posição que havia assumido sobre
117
justamente por essas características e pela sensibilidade às reações das oligarquias da mídia,
ele acaba respondendo sempre da mesma maneira, elevando os juros no afã de controlar a
inflação. Junto com os demais elementos da Lei de Responsabilidade Fiscal de FHC, a qual
determina que toda política atenda sempre ao chamado tripé macroeconômico neoliberal, está
Brasil possa se “emancipar” de alguma forma. Ocorre que o SA flexível brasileiro não
funciona dessa forma. São estruturas e tendências. A existência de tendências de baixas taxas
medida o futuro, afinal de contas, são tendências. Assim que o ciclo de prosperidade
internacional passa, ele leva junto qualquer “alívio” do Brasil obtido pelos anos de
crescimento.
gravidade da situação brasileira, pois mesmo quando o país “ganha”, perde, seja com
118
investimento externo positivo, mas sem crescimento, ou crescimento alto com pouca
tempos de recessão as coisas se complicam ainda mais. É importante notar uma questão
central em relação aos ciclos de crescimento e a crise “fiscal” do Estado no capitalismo, uma
expressão da crise do capitalismo contemporâneo. Sampaio Jr. (2017) aponta, assim como
uma expansão dos gastos na imediata fase de crescimento anterior. Em razão disso, esse
relação ao caso brasileiro, Sampaio Jr. (2017) propôs uma tendência importante: a existência
de ciclos efêmeros de expansão e “euforia” – palavra que o autor utiliza para se referir às
recessão e austeridade fiscal contra a proteção social. Não há espaço, portanto, para a proteção
Enquanto uma crise do Estado Capitalista, ela se irradia por todas as capilaridades
deste mesmo Estado afetando, assim, o que chamamos de “pacto federativo”. Trata-se de uma
divisão ideal das responsabilidades em face da distribuição de recursos entre cada ente
federativo: união, distrito federal, estados e municípios. As crises dos estados e de alguns
municípios é atravessada por esta mesma estrutura de crise fiscal, formando um conjunto de
crise fiscal. No Brasil esse processo é mais perverso ainda, uma vez que o “pacto federativo”
assistência social, saúde e educação, sem, contudo, garantir os valores de recursos necessário
para tais ações de proteção social. Foi assim que se produziu a presente situação crítica de
durante o governo ilegítimo de Michel Temer em 2016, a Firjan (2017) afirma o seguinte:
O desequilíbrio fiscal e a necessidade de ajuste das contas públicas, nos três níveis de
governo, têm dominado o debate econômico. [...] Nos estados e municípios, o quadro fiscal
talvez seja ainda mais grave, na medida em que sequer há recursos para pagar funcionários e
fornecedores em alguns casos, prejudicando muitas vezes a prestação de serviços públicos
essenciais. De fato, diversos entes federativos estão à beira da insolvência, tendo como
agravante o fato de que já estão descumprindo os limites impostos pela Lei de
Responsabilidade Fiscal – LRF. Isso significa que, além dos riscos fiscais, há riscos sociais e
politico-institucionais (Firjan, 2017, p. 1).
Ao elaborar esta Nota Técnica, a Firjan (2017) aponta que o “grande desafio” a um
equilíbrio fiscal, no caso da maioria dos estados, é a “despesa com inativos e pensionistas”,
a arrecadação entra em declínio. O documento ainda mostra que no total apenas três estados
franco declínio na maioria dos estados, exceto Piauí, Bahia e Ceará. Contudo, a solução desta
desprotegidos.
A situação dos estados é tão grave que as “maquiagens nos indicadores fiscais”, que
depois se transformaram nas tais “pedaladas fiscais”, se tornaram um padrão nos Estados e
pareceres prévios dos Tribunais de Contas dos estados (TCEs). Analisou também os votos de
acabou por considerar ao fim que, na corrente interpretação geral do conceito, pelo menos 17
claramente exploram formas ilícitas como essa para lidar com o risco de situações fiscais
adversas a até casos de insolvência fiscal. Em situações como essas os governos estaduais e
geralmente concede, mas desde que sejam realizadas contrarreformas geralmente relacionadas
Por fim, vemos o Estado sendo chamado a administrar a crise. É neste ponto alto da
relação entre Estado e capital que vemos o quão raso é a representação de um Estado menor
em favor das vontades do mercado. Trata-se da exigência do capital ao Estado de que ele
escoação de excedentes, acabando por atuar como um fiel e competente capitão do mato
o Estado que assume as iniciativas que “comumente” o capital assumiria, como investimento
em infraestrutura, por exemplo. É, em suma, um Estado que não consegue assumir com
121
competência esse vácuo do capital na infraestrutura em função de viver em crise fiscal quando
não cambial também. É um novo Estado com seu mecanismo acorrentado a uma política
contradições nos princípios nela inscritos, mas que com o passar dos anos se desidratara mais
Talvez esse seja o nosso maior desafio. Em suma, uma democracia frágil e um sistema
de acumulação frágeis, como apontam Saad Filho e Morais (2018), não poderia lograr possuir
outro padrão de proteção social que não um correspondente à sua situação, ou seja, o sistema
de proteção social que ainda existe no país se desenvolveu e tomou uma forma frágil,
tomando formas que poderiam classificar como sistemas de proteção social residuais e em
sobre as formas de tratamento das expressões da questão social nos governos petistas.
“democracia” limita as ações de seja lá quem for que chegue a esses cargos, havendo um arco
muito circunscrito de ações dentro das limitações da Constituição de 1988 e das amarras da
política contracionista compulsória forjada e legitimada pelo Plano Real e nas contrarreformas
acumulação. É uma “democracia” que não cabe, por exemplo, um sujeito eleito dizer que
mudará o sistema de acumulação vigente no país, seja lá em qual direção for que não a de
submissão voluntária ao capital internacional, mesmo possuindo os votos para tal. Cumprir
populares. A simples ameaça de qualquer mudança estrutural seria motivo de queda da bolsa,
mídia que inflama a esfera pública oligárquica, colhendo crise política como processo e a
crise, momento em que o Estado Capitalista mostra a sua verdadeira face, quando o ponto de
dependente flexível que saiu vitorioso na “transição por cima” da ditadura à “democracia”,
razão última da utilização destas aspas explicitando a substância, ordem e estrutura de uma
democracia altamente antidemocrática, na qual qualquer passo a um lado que não seja à
eleito, iniciando uma trajetória de 12 anos nessa chefia. Como as tendências estruturais
universal apenas indicava uma mudança de uma peça importante na direção dessa “atuação”
123
estatal, mas nem de longe algo como uma força institucional independente ou com um
autoritário presente na Constituição de 1988 (Behring & Boschetti, 2011; Boito, Jr., 2018). As
forças militares contam com uma institucionalidade própria, detém parcelas significativas do
orçamento público da proteção social e integram uma fração considerável da classe média
oligárquica (o vulgo corporativismo militar), operando de fato como um quarto poder, a qual
repressor, em contraposição ao poder civil, contando até mesmo com seu próprio Tribunal,
militar. Esses são pedaços vivos do corpo da ditadura na democracia que se consolida em
“esfera informal de representação política” (Miguel, 2019). Quanto mais estreita essa
representação, atenta Miguel (2019), pior é a qualidade da mídia tanto quanto da própria
manutenção dos seus próprios privilégios, sendo um dos judiciários mais caros do mundo,
ao fim e ao cabo não a última barreira na proteção da Constituição de 1988, mas o meio
intrinsecamente (Mascaro, 2018; Boito, Jr., 2018). Nunca é demais lembrar o quanto o
organizada daqueles que vivem do trabalho nas ruas e nos campos conseguiria realizar os
124
direitos sociais constitucionais, ou seja, uma ruptura com a ordem vigente – considerando a
requer revolução, uma drástica transformação social – está na teoria política dessas pessoas. É
popular no Estado são sempre uma caminhada perigosa em um campo minado, quando não de
explicitando o peso e o alto nível de entrelaçamento desses riscos no caso particular do Estado
dependente brasileiro.
em torno das investigações sobre o peso do partido e de suas duas figuras eleitas no balanço
geral do período de doze anos. Existe a denúncia de uma substância e forma moralista de
certas discussões (Mascaro, 2018). Tanto Mascaro (2018) quanto Miguel (2018) minimizam
as possibilidades do partido diante do poder das estruturas, embora ancorem suas intervenções
um regate de Evguiéni Pachukanis, o segundo bebe nas fontes do último Nicos Poulantzas e
de Claus Offe. Contudo, ambos concordam, embora cada um a sua maneira, de que quanto
mais próximo dos centros de decisão do Estado, mais restringida qualquer ação se torna. A
Todavia, é fundamental lembrar um fato que, se visto pelo prisma monocromático dos
algo que ocorreu na virada do milênio, próximo às eleições que se avizinhavam. O PT que
125
chegou ao poder já não era há muito o mesmo de sua fundação (Saad Filho & Morais, 2018).
Segundo Boito Jr. (2018), desde as greves contra a abertura financeira no final da década de
1990 até a campanha contra a Área de Livre Comércio das Américas (ALCA) em 2002, Lula
claro, muitas divergências, principalmente por parte do movimento sindical e das bases do
próprio partido. Ocorre que mesmo assim as reações às apostas do partido quando no poder
executivo federal pela primeira vez causaram boa dose de estranhamento e decepção de
setores da sociedade no início do que seria a trajetória dos governos petistas (Sampaio Jr.,
2017). Nota-se um deslocamento no espectro político do partido que não havia sido de todo
mínima coerência programática e ligações com movimentos sociais – que temos no país, o PT
era claramente um partido de esquerda. Isso fez muita diferença. Quando considerada a
que a vitória de Lula em 2002 tenha despertado esperanças de mudanças, apesar do partido ter
se tornado outro (Santos, 2017). Para continuarmos, é necessário marcarmos as linhas que
separam uma simples interpelação moralista de um balanço crítico da economia política sobre
o período. Como Mascaro (2018) salienta, o PT não pode ser exigido de expectativas sociais
outras, distintas das suas próprias. Muito pelo contrário, o partido deve passar pelo crivo do
Em primeiro lugar, cabe ressaltar a importância de tomar como central nas análises os
custos de uma “transição pelo alto”: uma democracia antidemocrática. São muitos adjetivos
utilizados nos textos para descrevê-la: limitada, restringida, blindada, frágil, dependente.
126
Portanto, uma democracia frágil é constituída por uma sistema político-eleitoral também
percebeu que qualquer transformação social digna deste nome desataria a implacável
resistência “dos de cima” (Santos, 2017), acabando por optar por se curvar “a eles” (Miguel,
neoliberal constituído no país, vide Carta aos brasileiros, segundo Santos (2017), na verdade,
FMI e o BM.
Até aqui a história costuma ser contada de modo contínuo, de uma forma em que essas
escolhas se conectam aos seus resultados, os quais discutiremos adiante com cuidado.
empreitada do PT só logrou os resultados que logrou e só foi possível da forma como ocorreu
em função de uma base material específica: o boom das commodities. Através desse aumento
expansivo do valor das matérias primas exportadas pelo país, relacionado a um ciclo
2018), tornaram-se possíveis as ações dos governos Lula, proporcionando a seus dois
governos uma inquestionável popularidade (Santos, 2017). Portanto, o boom das commodities
forma de governo, mas abriu possibilidades únicas, sendo tomada como uma conjuntura
internacional sui generis (Sampaio Jr., 2017). Em segundo lugar, existe o peso de outra
conjuntura, desta vez relacionada ao último mandato de Lula e aos de Dilma: a crise de 2008.
127
Muito longe de ser uma “marolinha” como disse Lula, a crise de 2008 teve papel fundamental
uma expressão de Sampaio Jr. (2017), o Brasil surfou na crise. Segundo este autor, embora a
visão de que o país ia “bem” enquanto o resto do mundo ia mal seja um tanto estranha,
inicialmente, se analisada em minúcia veremos que ela é muito emblemática do que de fato
impossível naquele momento no centro do sistema migraram para o Brasil. Mas as marés do
mercado são muito efêmeras, embora mantenham alto poder de destruição diante das
economias dependentes. O capital externo que chega hoje pode ir embora amanhã. Esse é,
tarde esse capital retornou ao centro com a alta dos juros nos países centrais como medida
ortodoxa para a crise. Foi aí que os efeitos nocivos da crise chegaram no país com mais
Feitas essas duas ponderações, agora entendemos como foi possível ao PT chegar ao
poder em 2003 e iniciar a saga regimental de realizar seus comprometimentos com o tripé
conseguiu negociar uma quantidade mínima de recursos para a proteção social, mínima
econômica internacional abriu caminho fiscal para os limites próprios do Brasil em “tempos
país se tornou extremamente frágil em termos fiscais e cambiais (Saad Filho e Morais, 2018;
Sampaio Jr., 2017). O país se tornou extremamente vulnerável aos humores do capital
internacional. Quando há recessão no mundo, ela chega forte por aqui, quando há ciclos de
que está atrelada à própria estrutura financeira neoliberal instalada no país. Se os gastos
sociais aumentam, o pino de uma bomba relógio é puxado, sendo necessário apenas esperar o
2015). Isso abre uma questão muito importante: os custos dos “ganhos sociais” nos governos
petistas, uma vez que, uma hora ou outra, esses mesmos custos serão socializados com as
massas, não por maldade de qualquer governante, mas por causa da institucionalização do
Noutro caminho, entretanto, nosso papel é acordar sobre esses “ganhos sociais”.
social. Como a questão social foi tratada? Em perspectiva histórica, quando os sistemas de
proteção social nasceram, cada um possuiu em sua constituição uma correspondência para
com seus respectivos sistemas de acumulação. Como vimos, a implantação destes primeiros
diverso. Contudo, o tempo fordista passou e ficou pelo passado dessas regiões. O Brasil nunca
“transição por cima” nos deu uma Constituição cujos capítulos sociais não apenas padecem de
graves contradições, assim como não podem ser efetivados na letra da lei em função da
socialdemocrata chegou ao país com 40 anos de atraso (Behring & Boschetti, 2011). Tratou-
se de uma socialdemocracia tardia (Soares, 2009; Saad Filho & Morais, 2018). Uma vez
descolada de seu tempo e de seu espaço, de sua base material e estrutura, tratou-se de um
ao neoliberalismo não pode ser outra que não neoliberal também, principalmente em termos
“transição à democracia”.
correlação de forças desfavorável passaram a fazer parte de seu texto orientações que deram
privado, mesmo diante da definição de dever do Estado para alguns setores das políticas
questão social e lida com as mesmas de uma forma específica. Em termos gerais, o
polo de ataque do capital à proteção social, do lado das políticas sociais Behring e Boschetti
neoliberalismo, sob o qual ela se transforma noutra coisa muito diferente: “ações pontuais e
compensatórias direcionadas para os efeitos mais perversos da crise” (p. 156). As autoras
apontam que esse transformismo se orienta por três pilares: a privatização, a focalização e a
130
possibilitando cada vez mais o capital avançar sobre serviços de proteção social públicos,
mercado sobre espaços que até então pertenciam ao Estado ou o tinham como protagonista na
o Estado teria o “injustificável” monopólio de um setor que poderia ser altamente lucrativo
explorado, na prática, como apenas uma empresa grande, a qual atua como uma plataforma
para outras empresas crescerem dentro de si mesmo como parasitas, sugando sua energia ao
máximo no limite de sua sobrevivência – fiscal e cambial, acrescentaria. Por isso a sensação
de “privatização do Estado”, pois a parte que ainda permanece coisa pública acaba por sofrer
justamente a aversão à submissão dos meios fundamentais de proteção social aos imperativos
privada, capitalizações, seguros de vida e etc.) num mundo cada vez mais inseguro e precário
fome do pobre e a tendência do capital de fazer dinheiro com ela. A focalização se orienta por
frações da classe trabalhadora que vão desde a parcela desprotegida e pauperizada, a fração
realmente uma descentralização política e administrativa, tanto dos espaços de decisões dos
131
gestores como das instâncias de participação social, voltadas ao controle público da proteção
social. O que não ocorre e que é estrutural do regime de acumulação neoliberal brasileiro é a
ajuste fiscal permanente por diversos dispositivos legais. Behring e Boschetti (2011)
sua efetivação não é uma falha do modelo neoliberal. Ela é constitutiva do que ficou
conhecido por “terceira via”, um tipo peculiar de “neoliberalismo social” que surgiu na
conselheiro e até então sociólogo, hoje barão por condecoração do próprio Blair, Anthony
Giddens, sendo defendida como uma “alternativa” aos “autoritarismos” de esquerda e direita
(Petras, 2016), embora seu compromisso com o livre-mercado fosse inconteste (Jameson,
dentro das amarras das estruturas do neoliberalismo. Não sem motivos, o FMI e o BC
impuseram e impõem a replicação desse modelo mundo a fora, especialmente nos países
recursos necessários deve ser sanada com privatização dos serviços de saúde e assistenciais
baixo para cima, na qual municípios e estados estabelecerão cada vez mais convênios com
instituições privadas, seja com ou “sem” fins lucrativos, a fim de sanar o descompasso
estrutural entre uma demanda crescente e escassos recursos necessários para atendê-la. Ao
focalizar a demanda a ser atendida, sempre a mais pauperizada, se abre uma extensa “reserva
de mercado” pronta para ser explorada pelo capital, livre de monopólio ou protagonismo do
Estado, uma vez enforcado pelo ajuste fiscal. Daí o boom de planos de saúde, previdência, e
uma proteção social histórica é revertida em uma plataforma cada vez mais protagonista da
keynesianismo que as políticas sociais, que sempre foram uma contradição, pois protegiam os
luta pela disputa do Fundo Público, agora perde essa substância primeira de “proteção social”,
de fato, tornando assim apenas uma forma residual funcional ao apassivamento compulsório
completo, se transforma apresentando sinais de protagonismo que parece ser de uma outra
categoria que Mascaro (2018) explorou bem, a insuficiência da forma política estatal na
trabalhadoras, a não ser suas franjas mais despossuídas, e exclusivamente para apassivar.
É neste ponto que se insere a discussão dos textos sobre a qualificação das formas de
ao termo a partir de cada análise. Ao tentar nomear o movimento que ocorreu durante os
governos petistas, os autores foram tão criativos quanto precisos. Miguel (2019) fala em
privações mais graves das frações despossuídas sem colocar em questão a reprodução da
dominação social. É necessária certa atenção aos parênteses. Quando o autor fala em
enfrentamento das privações mais graves das parcelas despossuídas ao mesmo tempo em que
compensatórias, algo até então inexistente no país em grande escala. Em termos de proteção
social, enfrentar as sequelas da questão social é atacar na raiz da produção da questão social,
(des)proteção social desenvolvida no seio do neoliberalismo atua sobre os efeitos das sequelas
pobreza, eleita o mal maior. O objetivo não é “erradica-la” como o marketing político sempre
tenta fazer parecer, mas sim gerir a miséria “principalmente por meio da alocação condicional
pública” (Saad Filho & Morais, 2018, p. 84). Essa gestão da miséria ocorre aliada à
rendimentos mais baixos no país” (Saad Filho & Morais, 2018, p. 84).
teorização em torno do lulismo proposta por pelo autor, Miguel (2018) ressalta a evidencia de
134
um caminho distinto no processo entre identidade e classe, que, sob o lulismo, “a classe surge
pela identificação que algum outro agente político faz dos desejos e necessidades de um
aglomerado de pessoas” (p. 72). Portanto, em vez das massas pobres encontrarem um político
e um partido, estes últimos é que acabaram por ser agenciadas por eles, de cima para baixo.
Foi aos governos do PT que coube organizar as difusas aspirações das frações trabalhadoras
marginais em torno de um programa de transferência monetária direta, diz Boito Jr. (2018).
De fato, é interessante observar que, de acordo com Sátyro e Cunha (2014), as quais
1989 a 2002, a assistência social só aparece delineada como uma política social apenas em
2002. Parece que o lulismo foi, sobretudo, bem planejado nesse processo de busca ativa atrás
de base material a ideia que é transmitida pelas linhas de Singer (2018) de que o
conservadorismo que “travaria” o partido e seu político vem de baixo, das massas
Jr (2017) discorda não apenas das conclusões de Singer (2018), como de seus pontos de
partida propriamente. Boito Jr. (2018) argumenta que a parte conservadora das massas
pauperizadas já estavam em processo de migração para outra sigla, o PSDB. O autor ainda
Outra crítica que nos interessa é o fato de Boito Jr. (2018) recusar a ideia de que o lulismo
seria sustentado por algum arranjo majoritariamente popular no que concerne a um suposto
governo do “subproletariado”. Muito pelo contrário, ao recusar a pura e simples divisão entre
capital versus trabalho, o autor mobiliza o Nicos Poulantzas jovem para renovar e ampliar
diferenciando a luta pela contestação do capitalismo, a luta de classes, das disputas por
135
redistribuição que não colocam em xeque o capital. Ao agir dessa maneira, o autor consegue
trabalhar com cada porção de frações da burguesia e da classe trabalhadora e das demais
frações intermediárias, não de forma separada, mas entrelaçada de tal maneira que é possível
ver as demais frações de classes interagindo com as classes fundamentais, ativamente. O autor
ambos os lados ao historicizar o transformismo do PT e tocar nas relações mais por interesses
específicos em comum com a “grande burguesia interna” do que por qualquer coisa que
lembrasse um projeto nacional. É nesse ponto que o autor aponta a aproximação da grande
burguesia interna, aquela que ainda não foi por completo consumida pela financeirização e
possui consideráveis restrições para com o neoliberalismo em sua versão Gustavo Franco. E
as massas pauperizadas, essas seriam o que aquele Poulantzas nomeou como “classe-apoio”,
entendida como “uma classe dominada, excluída do bloco no poder, mas que se ilude com
um determinado governo ou regime político e, por essa razão, oferece a ele uma base de
apoio” (Boito Jr., 2018, p.144, grifos do autor). Portanto, aí vemos o cruzamento entre a
grande burguesia interna e as massas pauperizadas. Mais adiante retornaremos a esse ponto.
O grande problema, no caso de Singer (2018) parece ser a disputa do termo reforma
em si. Voltando brevemente a essa discussão, historicamente, reforma foi um termo sempre
mais apropriado é contrarreforma (Behring, 2008; Boschetti & Behring, 2011) e no caso
brasileiro, contrarreforma permanente (Sampaio Jr., 2017; Saad Filho & Morais, 2018). Desta
impossibilidade de “reforma” (Mascaro, 2018). Jameson (2005) põe em relevo a dura batalha
dura”, ou coisa que o valha. O autor ainda aponta que tomar de forma apressada esse
dia da luta política para a linguagem e a terminologia” (Jameson, 2005, p. 19). Sem dúvida, o
PT estava atento a isso e jogou sua disputa nesse campo (Sampaio Jr., 2017; Santos, 2017).
Todavia, numa perspectiva ainda não resignada à ordem vigente, não seria melhor
ponto que talvez Boito Jr. (2018) nos possibilite refletir um pouco mais sobre o conjunto da
Esse programa representa concessões aos trabalhadores da massa marginal, ele não era o
grandes empresários e banqueiros brasileiros, obteremos um número cem vezes maior que o
que integram o bloco no poder e, de outro, uma classe ou camada popular que serve de mera
Para Boito Jr. (2018), foi a grande burguesia interna que possuiu prioridade nas
vez que o modelo neoliberal foi, como Sampaio Jr. (2017) disse, “reciclado”, “melhorado”
pelos governos petistas. Boito Jr. (2018) aponta que sua definição de
nostálgico dos tempos do nacionalismo dependente e periférico do século XX. Trata-se, mais
137
periférico. Sampaio Jr. (2018) também aponta a preferência e as benesses dos empresários nos
governos Lula
perigosos contrabandos. Sem grande alarde, Lula abriu mão do monopólio de resseguros;
introduziu a chamada “governança corporativa”, que estabelece uma maior independência das
lógica de atuação; e criou uma série de programas de transferência de renda para as empresas,
No fundo, talvez a tentativa tanto de Miguel (2019) quanto de Singer (2018) seja a de
mostrar a baixa intensidade e a fraqueza do que se tentou fazer nos governos do PT,
proteção social, como demonstrado acima. Ademais, como um “pacto conservador” poderia
instrumento distributivo, Lula abandonou o único elemento não regressivo de sua tacanha
política social. Nesse sentido, o PAC representa um passo atrás – um claro retrocesso em
relação ao primeiro mandato. A plutocracia brasileira não conseguiu finalizar o xeque-mate
que pretendia, mas logrou passar um peão estratégico no complexo xadrez que determina os
condicionantes da distribuição da riqueza nacional. Poderia ter sido pior, mas foi um péssimo
começo de governo (p. 90).
Assim como explicitado por Boito Jr. (2018), Sampaio Jr. (2017) segue a mesma linha
em apontar a captura do Fundo Público uma vez mais tomada como via de financiamento de
investimento público da execução privada das obras de infraestrutura pelo país. Era mais uma
forma dos governos petistas de favorecer sua aliada, a grande burguesia interna. Pensando
por algum tempo, ainda durante as administrações do PT, mas acabaram soterradas pela
contração econômica e pela reação da aliança neoliberal (p.29-30).
do neoliberalismo sob os governos petistas, uma impostura do partido, o qual tenta diluir a
desenvolvimentistas e seu peso histórico. Este autor conceitua a escolha petista como um
FHC. Não à toa, as palavras que emergem nesse debate, seja lá de que lado seja, sempre
surgem com essa substância de fragilidade. Saad Filho e Morais (2018) falam de ganhos e
Sobretudo parece haver um engano, para além de uma artimanha discursiva na defesa
de que houve uma ruptura através dos “esforços” do PT, supostamente na direção de uma era
“pós-neoliberal” ou, numa posição mais comedida embora fiel ao partido, na argumentação
pela prevalência da categoria contradição. Para Mascaro (2018) não se trata, entretanto, de
contradição, mas sim de insuficiência, derivada da própria forma política estatal vigente. Se
entendemos corretamente, não se trata do caso da contradição entre o que se queria fazer e o
que efetivamente foi feito na ordem vigente. Trata-se, na verdade, de insuficiência da própria
forma política estatal dependente flexível, a qual mina as possibilidades de fazer “algo
que refletir até mesmo sobre o discurso de que o PT teria servido a dois senhores. Antes,
devemos perguntar que tipo de senhor é o capital e se ele permite dividir seus ganhos com as
massas. A resposta é não. Uma leitura mais atenta ao modelo de acumulação neoliberal
mostrará que o Estado se torna um servo fiel do capital internacional, sendo que as migalhas é
que caem ao povo através de um orçamento da proteção social cada vez mais restringido e seu
140
desenho desfigurado, porque cada vez mais focalizado e compensatório. As massas não são
um outro senhor servido pelo Estado. Neste regime de acumulação suas demandas são
que a atenção do Estado se volta exclusivamente às parcelas mais pauperizadas (Saad Filho &
Morais, 2018), usadas como massa de manobra política e de estabilização do ciclo de capital
percebemos uma confusão entre partido e Estado, um problema elementar de teoria política
crítica, aquela que pensa a democracia a partir da crítica à economia política dominante.
Quem serve ao capital é o Estado, e desde nascença. Ocupar um lugar de chefia no executivo
nacional não altera a substância deste último (Mascaro, 2013; 2018). No neoliberalismo,
compensatórias com o que sobra do orçamento público, engolido pelo pagamento do serviço
Morais (2018) parece ser tão interessante, pois traz precisamente o caminho optado pelo PT
dentro da ordem vigente. Aliás, antes de qualquer dúvida, sem uma mudança drástica no
padrão de acumulação vigente, qualquer governo sempre será definido como neoliberal
“alguma coisa”. Esses são os limites de nossa democracia frágil, forjada no contexto do
a defesa de uma tese segundo a qual os governos petistas iniciaram um período “pós-
neoliberal”. Contudo, longe de algo pós-neoliberal, vimos um outro movimento. Uma questão
muito importante quando desse debate entre as formas de tratamento da questão social e o
por causas estruturais do Brasil depois do início da transição ao neoliberalismo (Saad Filho &
Morais, 2018; Sampaio Jr., 2017), existe um fator fundamental que foi largamente explorado
internacional que Lula pôde escolher em quais temas aplicar duras contrarreformas, como a
da previdência e da nova regulação das falências de empresas ainda no início de seu primeiro
mandato, por exemplo, e em quais diluir algumas contrarreformas radicais através do tempo
com o PAC, por exemplo, numa privatização pouco escancarada perto do estilo e, sobretudo,
da velocidade de FHC. Sem muito impacto e conflito a curto prazo e em plena conformidade
com a estrutura fiscal contracionista recebida de FHC. Diluir certas contrarreformas no tempo
processo que iria gerar mais exploração e insegurança social e civil generalizada entre as
massas e, ao mesmo tempo, consegue manter a ordem vigente intacta ao preservar os padrões
período. Por isso as ideias de um reformismo desidratado ecoam nos textos. A contradição
defendida por muitos ao interpretar as “rupturas” do lulismo parece ser mais um problema
Defender uma leitura petista de ruptura nos mandatos do partido é comprar junto no combo
infeliz do mito do crescimento até o mito da classe média fruto do mito do crescimento e a
insatisfação social generalizada, embora latente e explosiva, como produto das “melhorias”
142
petistas numa leitura tocquevilliana. Será mesmo que as pessoas querem melhorar “mais” de
vida, nessa mesma direção atual, ou será que essa juventude trabalhadora quer “outra”
modernidade? A “nova” classe trabalhadora de Singer (2018) quer ser ela mesma ou quer ser
outra? Olhar para trás cultivando solidariedade entre as demais frações trabalhadoras nos
partido?
O país, uma vez mais dependente do que já era, materializou uma proteção social
previdenciária, que chegou até a subir nos efêmeros anos “dourados” petistas antes da crise,
agora despenca ao passo que o assalto ao Fundo Público pelo pagamento do serviço da Dívida
Pública se torna a regra geral. Assistência social começa sua difícil transição para a
institucionalização, uma vez que esse campo sempre foi relegado à filantropia e à caridade
discriminação negativa e positiva tenderam a ser o padrão tanto na assistência social, como na
saúde e na educação superior com o ProUni e o Fies, através de sistemas de cotas. Pouco se
comentou até hoje sobre os impactos da discriminação negativa e positiva nas políticas sociais
no Brasil. A tendência dos teóricos, quase de todos os analisados, é de criticar a classe média
em função de seu “caráter” tendencioso à uma espécie de aporofobia, uma fobia aos pobres.
Contudo, como Castel (2008) certa vez interviu, talvez não sejam apenas tendências
endógenas, mas o resultado da interação ativa entre as classes atravessadas por políticas
negra ou periférica que ocupava uma vaga no ProUni em uma faculdade privada não apenas
sofria preconceito, como a qualidade do ensino era péssima na maioria dos casos. Tudo isso
criticas a políticas afirmativas são censuradas a partir de certa “esquerda” pós-moderna como
Iris Young estão longe de ser coisa radical. São estratégias compensatórias via privatização da
educação na terceirização dos serviços educacionais que deveriam ser inteiramente públicos.
volumosas quantias, hoje esse mercado não apenas encontra-se bem maior do que era antes do
PT como está mais monopolista que antes. Em todo caso, a escolha foi por uma educação
barata e de péssima qualidade para as massas populares brasileiras, aquelas que buscam um
lugar ao sol nesse Brasil tão desigual (Santos, 2017). Já o programa “Minha Casa, Minha
Vida” se tornou a “solução compensatória da reforma urbana que não ocorreu” (Santos, 2017,
p. 95).
transporte público de qualidade e com segurança. A desproteção social e sua outra face, a
mercantilização da vida, tomaram uma dimensão espacial, o que já era uma tendência desde
serviços e equipamentos de segurança civil. Enquanto isso o país estava sendo inundado pelo
que Sampaio Jr. (2017) agrupou como “automóveis e bugigangas”. Ora, o país em 2013
estava aos gargalos com o ciclo insano de produção de carros, tudo isso com IPI a 0%!
São elementos profundamente contrarreformistas, pois o Estado abre mão dos deveres
tributários das grandes empresas, montadoras, construtoras, mas quem vai pagar se vivemos
digital. Desde idosos até crianças estão viciadas em smartphones. Perry Anderson (2020)
ressaltou que, ao lado dos EUA, o Brasil é um dos países mais viciados em Facebook. E nesse
de dados de trabalhadores que usam as suas redes sociais. Desde as capitais até o país adentro.
Os interiores são vítimas fáceis dessas novas empreitadas das chamadas BigTech e outras
grandes marcas famintas por expansão de “novos mercados”. Todavia, uma tendência muito
bem anotada por Sampaio Jr. (2018) é a de que a socialização dos bens de consumo não
ocorre de forma horizontal, mas de forma hierárquica e altamente estratificada, elitista, como
145
a nossa própria sociedade é, afinal. Hoje vemos a classe média alta comprar os Iphones
da alta demanda, o que Sampaio Jr. (2017) apontava desde antes do primeiro governo Lula,
uma evidente reação histérica diante da impossibilidade de consumir as coisas que são
socialismo científico, devemos questionar se, realmente, estimular o consumo dessa forma,
tão invasiva e agressiva, seria de fato de alguma forma “civilizador”. Porque do contrário,
monetárias diretas, seja através de isenções fiscais e tributárias, uma forma de captura do
Fundo Público pelo mercado, se configura como uma forma contemporânea de nossa
parte de bancos públicos e privados, quando a própria política econômica do governo contava
Por fim, temos que não apenas a autoritária Lei de Responsabilidade Fiscal ficou de pé
Dilma, ao ponto de Saad Filho e Morais (2018) dizerem que este foi o governo mais à
esquerda desde João Goulart. Todavia, como veremos a seguir, o sonho durou pouco. Ocorre
descentralização contínua, mesmo que numa velocidade menor que a de FHC em certos casos
146
atravessaram as iniciativas petistas de cabo a rabo, seja lá em qual setor da política social
analisado. Isso está denunciado em todos os textos revisados. Não restou um que negasse tais
consonância com o movimento global de precarização do trabalho” (p. 91). É aqui que vemos
todo esse caráter compensatório se revelar uma forma de financiamento público indireto das
capital. Portanto, olhando mais de perto, não se tratam de políticas de “compensação”, mas
sim de espoliação, por isso a importância de notar que muito antes de uma proteção social, em
seu sentido como evento histórico, o neoliberalismo mantém um contínuo e flexível processo
3.1.3 O segundo governo Dilma: dois golpes (2014-2016) contra a proteção social
Singer (2018) anotou que “Dilma resistiu, ao menos parcialmente, à pressão neoliberal
no primeiro” mandato (p. 77). Todavia, poucos dias antes do primeiro mandato acabar ela já
ideia mesmo era colocar o próprio Trabuco, do Banco Bradesco, mas ele declinou. Na
147
passagem ao segundo mandato ela vendeu sua alma a fim de lidar com a vitória perdida de
de uma maior margem de manobra para com a gestão da contrarreforma permanente nos
O contexto se tornara bastante adverso. Dilma quase não foi reeleita. Santos (2017)
crítica a ideia de quem, diante do golpe de 2016, interpretou a reação das massas apenas como
produto do apassivamento petista. Na sua visão talvez tenha se tratado de saúde política
mesmo. É desse ponto que temos que partir. Não havia distinção, ruptura descomunal na
transição entre Dilma e Temer em termos de proteção social no capitalismo. Certamente, isso
pouco importa, pois continua sendo golpe mesmo assim. Mas o que nos interessa aqui é
ressaltar a desfaçatez com que Dilma Rousseff disse que não faria ajuste fiscal “nem que a
vaca tossisse”. Parte considerável da esquerda não só ficou muda, mas como abandonou
literalmente a presidenta, uma vez que ela traiu a confiança legítima do sufrágio universal em
importância das investigações sobre a forma das suas transformações, seus determinantes
conflitos de classe, uma vez que o que está em jogo é a disputa pelo Fundo Público.
mas não o partido, óbvio, ocorreu um golpe em 2016. Para alguns setores mais radicais, não
houve golpe em 2016, houve uma continuidade do golpe de Dilma contra as massas em 2014.
Para outros radicais, houveram dois golpes, um em 2014 e outro em 2016. Exploraremos essa
última linhagem de crítica radical. Ambos os golpes são indissociáveis, pois o primeiro
Singer (2018) foi o responsável por produzir as mediações teóricas importantes sobre essas
determinações entre ambos os golpes, todavia, é um dos que apenas assume o segundo golpe.
Muitos o fazem, mas é verdade que estes também mencionam o primeiro golpe, embora não o
Do ponto de vista das massas trabalhadoras, foram tanto dois golpes quanto um só
golpe em dois tempos. Era o que o neoliberalismo precisava para restaurar sua legitimidade
A narrativa de que a presidente foi vítima de um “golpe” não é falsa, mas omite o fato de que
o primeiro golpe – o estelionato eleitoral – foi cometido pela própria Dilma ao jurar na
campanha eleitoral que não faria o ajuste fiscal “nem que a vaca tossisse”. Denunciar o
segundo golpe, ocultando o primeiro, deixa na penumbra o fato de que a verdadeira vítima
dos atentados contra a democracia é a classe trabalhadora, que votou de maneira inequívoca
contra o ajuste neoliberal. Na conspiração contra os direitos dos trabalhadores, Dilma e Temer
são cúmplices, pois o segundo golpe apenas arrematou o primeiro. Mais ainda, sem a devida
ponderação sobre o caráter restrito da democracia brasileira, a denúncia do golpe parlamentar
como um atentado à democracia não permite perceber a essência da crise que abala o sistema
representativo: a impermeabilidade do Estado brasileiro às demandas populares.
Supervalorizar os aspectos formais da democracia brasileira sem a devida explicitação sobre
seu conteúdo real é uma forma capciosa de esconder os atentados perpetrados pelo PT contra
a classe trabalhadora e manter o debate político hermeticamente enquadrado na lógica fechada
do cretinismo parlamentar (p. 250).
Mesmo os que não reconhecem o primeiro golpe, mencionam ele, embora sem dar a
devida centralidade. Singer (2018) fala em uma “virada neoliberal”. O autor ainda fala em
“cavalo de pau”. Dada a reversão no ciclo econômico internacional e seus efeitos “tardios” no
forma lenta e processual, pois chegara ao fim aquela margem de manobra possibilitada pelo
ciclo de prosperidade internacional aos governos anteriores do PT. Daí que a visão de que ela
tenha cambaleado várias vezes para a esquerda e a direita, para ao fim cair de braços para a
direita é realmente muito precisa. É curioso notar que Singer (2018) escreve as coisas meio
sem querer fazer notá-las. Em seu trecho ele anotou uma parte importantíssima para a questão
de que estamos tratando aqui, ou seja, o golpe de 2014 contra as massas trabalhadoras. O
autor diz que apesar de Dilma ter feito juras contra a austeridade fiscal contra a proteção
social, Guido Mantega, antes de sair, deixou um “pré-plano” que “previa cortes no seguro-
desemprego, no auxílio-doença e na pensão por morte” (p. 195). Assim como o seu partido
quando chegou ao poder executivo nacional pela primeira vez, Dilma não mudou de ideia
sobre suas promessas nas eleições. Ela já sabia o que iria fazer. Ela mentiu consciente e
deliberadamente. Ela não pegou o projeto do Aécio. Era o próprio projeto deles que
população. Mas isso parecia não ser uma decisão apenas dela, mas de Lula e do PT.
Seja como for, ao chegar à conclusão de que era necessário apelar para a ortodoxia, ela teria
que se cercar de todos os cuidados, pois se tratava de uma operação arriscadíssima para
qualquer presidente. Mas em lugar de chamar o experimentado Meirelles, que Lula garantia
controlar, para dirigir o choque, Dilma convidou o banqueiro Luiz Carlos Trabuco,
presidente do Bradesco. E, quando Trabuco recusou o convite, aceitou um subordinado dele,
Joaquim Levy, que desempenhava o cargo de diretor-superintendente do Bradesco Asset
Management, braço de fundos de investimentos do Bradesco (Singer, 2018, p. 197, grifos
nossos).
A ideia era mesmo que o Partido dos Trabalhadores dirigisse o choque neoliberal,
agressivas. Ocorre que, como Singer (2018) mesmo ressaltou, esse era um caminho muito
arriscado. Logo Dilma se viu sozinha contra um parlamento correndo da Lava Jato e que viu
nela o melhor meio para expiar seus crimes, a fim de continuar a cometê-los.
funcionam. Foi nesse dia em que os parlamentares desobedeceram ao acordo de Lula com o
MDB para salvar a pele de Cunha, o qual acabou por abrir o processo de impeachment contra
a presidenta, para logo depois o próprio Cunha ser varrido do tabuleiro pela Lava Jato. Em
termos de ordem dos fatos, Dilma caiu, em parte, pela subversão e coragem dos militantes
petistas que não aceitaram as decisões a quatro paredes de Lula e dos altos escalões do
partido. O PT acabou por se enforcar no próprio laço de suas alianças (Santos, 2017). No
decorrer do processo Dilma não só seguia normalmente a sua vida, mas continuava movendo
os pauzinhos para alguns elementos do ajuste fiscal passarem. Ela realmente estava
apontou Santos (2017), uma vez passado o ano de 2013, a burguesia e a grande mídia viram
que não precisavam mais do PT para apassivar as massas, pois elas haviam saído do controle
no país (Miguel, 2019). O PBF não seria mexido, portanto, o segredo do clientelismo
compulsório já havia sido socializado e aceito pelas burguesias, óbvio, em função do seu
baixo custo comparado aos direitos sociais. Mais tarde, ainda em 2015 ela aprovaria o pré-
plano de direção do choque neoliberal elaborado por Mantega, pouco antes de sua derrocada
do cargo.
151
Miguel (2017) narrou aquela sequencia de golpes ao se referir ao início do segundo mandato
da presidenta.
Em dois ou três meses, foram anuladas tantas das conquistas dos doze anos anteriores
de governos do PT. Em seguida, o próprio governo reformista foi derrubado por um golpe
parlamentar, com resistência pífia. E o novo governo implanta, de forma acelerada, uma
agenda de profundo retrocesso nos direitos, mais uma vez diante de uma população quase
passiva. Como sempre, os grupos privilegiados mostram ser aqueles que melhor expressam
suas preferências na ausência de espaços de pressão popular (p. 109, grifos nossos).
Dilma não só foi cirúrgica, mas rápida na austeridade fiscal. Singer (2018) ainda
comenta que ela acreditava que administraria o choque neoliberal “um semestre e, no
máximo, um ano” (p. 198) e depois a recessão já teria passado, o que mostra o quanto a
direção do choque neoliberal foi planejada pela presidenta. O mais estranho é não ser comum
recessões durarem apenas um ano, ainda mais no período imediato à crise de 2008 e seus
Em 2015 as consequências negativas da crise de 2008 chegaram com mais força e ela
se encontrou com a política contracionista da presidenta. Foi nesse momento que começara a
intensidade”, assim como uma tinta ou um esmalte ruim, fracos, devem todos durar pouco
tempo diante de mudanças ambientais extremas, ou seja, diante da própria efemeridade dos
ciclos de expansão econômica internacional. A crise fiscal do segundo governo Dilma foi uma
crise de dividendos de crescimento, quando uma receita que se expandiu com folga na folha
cobrava o seu alto preço. A efemeridade dos tão aclamados avanços nos “indicadores sociais”
dependente flexível.
Diante do risco real e cada vez mais iminente de queda, Dilma e Cardoso, ex-
Advogado Geral da União (AGU), nos termos de Mascaro (2018), atuaram como firmes e
de fato. Boito Jr. (2018) por diversas vezes ressaltou que foi a própria Dilma e Cardoso que
não apelaram para as massas em momento algum. É como se o PT tivesse escolhido jogar e se
presidente a apresentar uma política econômica mais à esquerda desde João Goulart, como
ressaltam Saad Filho e Morais (2018). Ela também foi, graças a seu segundo mandato, a
Executivo Federal. Como se pode ver, o projeto adota uma política de ajuste fiscal e controle
encaminhado por FHC em 1997, e que tiveram, como resultado, um sucateamento sem
Um teto de gastos já estava proposto nesse projeto de lei enviado pela presidenta.
Portanto, o primeiro golpe de Dilma foi fundamental para a execução do segundo. É assim
que o espectro político funciona, quanto mais pra direita você sede, mais tudo tende a ir para a
153
direita. A virada do PT em um partido que disputa eleições por disputar, apenas no sentido de
não precisavam em um país dependente flexível com uma desigualdade descomunal no século
XXI.
4. Considerações
dependente brasileiro
brasileira
Reservei esse espaço para explorar algumas questões a fim de provocar investigações
futuras de diversas partes e por diversas orientações. O formato transita entre aforismos e
epifanias, numa versão de produção da teoria. Alguns parágrafos são desconexos e aleatórios
sociais. Ou seja: a transição ao neoliberalismo cristalizou coisa de cerca de 1/4 a 2/4 da força
em meio a alta concorrência. Ao olharmos essa cristalização através do tempo nas favelas, nas
clientelismo (Boschetti, 2016). Se é verdade de que não existe um consenso muito sólido em
154
A tese do lulismo como um “modo lulista de regulação dos conflitos sociais” (Braga,
2017) parece fazer todo sentido, porque o poder não só de Lula, mas do partido que parece
operar hoje com o mesmo modus operandi dele, puramente eleitoreiro, de atuar regulando o
lado esquerdo institucional do espectro político desde as disputas do executivo nacional até os
governos, as prefeituras de capitais e o interior do país, fora a influência por dentro dos
neoliberalismo como sistema de acumulação dependente parece produzir das suas entranhas
tentação populista seria endógena ao sistema de castas sociais cristalizado pela transição ao
muito bem no que Sampaio, Jr., (2017) chamou de reversão neocolonial. Faria todo sentido
olhar para trás e ver todo esse cenário como fruto de um avanço imperialista sobre o sul: o
dependência neste século, que parece realmente estar superando a fase anterior, ao menos em
termos de um evidente declínio civilizatório do capital (Alves, 2019). E talvez é aqui que
tenhamos uma expressão mais delineada da tentação populista-clientelista versão anos dois
sobre o quanto é contraditório Lula posar como porta-voz dos despossuídos, pensando Žižek
155
(2019) com Braga (2017), o primeiro neoestruturalista (e não “pós’, tem muita diferença
conflitos sociais” não seria o pino que segura o desarme da bomba da luta de classes ao ter
próprio Lula e sua política econômica conservadora. Neste caso, Lula estaria longe de ser
inconsistente ou contraditório, pois o que parece inconsistência é algo que está no próprio
cerne de seu projeto. Santos (2017) faz bons apontamentos nesse sentido. No mais, vejo como
necessidade fazermos as contas de quanto de tudo isso escrito acima está na conta do Lula e o
período de transição, em termos gramscianos, o intervalo entre a ordem que está para morrer e
a que está para nascer, no caso do Brasil, se refere à uma grande fase da contrarreforma
permanente. Perceba-se que ao cunhar esse termo, os formuladores e adeptos dessa expressão
jamais veem possibilidades de apontar uma ruptura plena com esse processo. Daí que a
contrarreforma permanente seja, de fato, permanente. Outra coisa, contudo, é dizer que ela
trem sobre seus trilhos. O trem é o Brasil e os trilhos se referem aos limites do modelo de
permanente indica a direção do trem. É possível, segundo a própria experiência petista nos
156
mostra, fazer leves mudanças tanto no ângulo quanto na velocidade em que se segue para
frente, rumo a um Brasil neoliberal. Portanto, as vantagens do lulismo foram demonstrar que
favorável ao país. Esta última é que determina as possibilidades, embora não as formas, de
ângulo e velocidade em que o país caminha em direção ao neoliberalismo. Por isso o lulismo
acaba por ser uma ideologia contra a teoria crítica da dependência flexível no país e na região
ao defender coisas como o tão antigo “mito do crescimento”, agora renovado pelo lulismo,
forma distópica sobre este último, acredito que quando tiver sido completada o que parece ser
gestação nascer, aí sim, num Estado sem direitos sociais e sem o funcionalismo público
dependente flexível), depois da eleição de uma candidatura popular, sem ter muito a perder,
fraco, uma vez que a conta final entre perdas e ganhos passará a ser, depois que a ordem já
a fazermos seria interromper essa gestação e abortar sem dó e qualquer piedade essa gestação
da barbárie nos trópicos. Todavia, como defendemos, a ideologia do lulismo presta tremendo
desserviço impedindo esse aborto do neoliberalismo ao dizer que é possível ser “progressista”
dentro da ordem, que é possível “reformar” dentro de uma ordem cuja tendência primordial,
determina as altas circunscrições à democracia contra o capital no país. Aliás, essa visão de
ser “progressista” ou de praticar um “reformismo fraco” parece ser uma visão a partir da
grande burguesia interna, a qual foi a principal peça em que se apoiou os governos do PT
157
(Boito, Jr., 2018), pois, essa grande burguesia brasileira não é contra o neoliberalismo de
financiamento público massivo de sua acumulação. Nos governos do PT essa burguesia, num
balanço geral, ganhou muito mesmo dentro do neoliberalismo, ao passo que os trabalhadores
mais perderam que ganharam em função tanto da proteção compensatória como da contínua
perda de direitos sociais e de privatizações. Não vemos possibilidade e nem motivos para
qualificar “vitórias” sobre o neoliberalismo, mas sim derrotas. Por isso um contrarreformismo
fraco ou forte a depender da matéria em questão seria uma expressão não só mais precisa,
conhecida pelas críticas, a “PEC do calote”, não é apenas a negação do próprio “Estado
2021), nada de novo no “juspositivismo”, diria Mascaro (2018), mas também é uma absurda
pedalada de 90 bilhões de reais, em pleno ano de 2021 de Bolsonaro, ano pré-eleitoral, uma
pedalada dessa para financiar o Auxílio Brasil (Kliass, 2021) e comprar a fidelidade do
2021). Essa reciclagem do Bolsa Família “turbinado”, como a equipe de Paulo Guedes
costumou propagandear desde o início do mandato, vai destruir a rede de serviços sociais do
SUAS (De Sordi, 2021), tão duramente conquistada e hoje ainda em grande parte sob
para a terceirização por ONGs e instituições confessionais no futuro? O cadastro único será
uma vez mais, vejam só, descentralizado num nível de “autoatendimento”, num processo que
capitalismo “digital”. Famílias pobres terão que “conversar” com um robô para preencher o
cadastro único (Mello, 2021). Tudo isso porque o Estado “economizará” entrevistadores em
158
toda a esfera municipal do Brasil. Com isso Bolsonaro e sua equipe pretendem quebrar o
SUAS ao meio, num dos maiores motivos de instalação do SUAS nos municípios, que é o
cadastro único e, nesse sentido, acaba por “livrar” a União de cumprir com seus repasses
esferas municipais quanto ao SUAS, tudo isso com os olhos em 2022 (Mello, 2021b).
tendem a ser funcionais não só ao projeto do Bonaparte genocida dos trópicos, que é o
aprofundamento da dependência das massas pauperizadas do país, uma vez que ficarão mais
desprotegidas ainda, mas ao mesmo tempo abrir uma seara que nas décadas recentes de
“tomou” das mãos dos evangélicos, filantropos conservadores da classe média em geral, de
coronéis e primeiras-damas dos interiores e das capitais a primazia do trato com a pobreza e
pobreza”. Onyx Lorenzoni afirmou a poucos dias atrás que o governo já possuía em estado
acabado o projeto para implementar o “serviço social voluntário” (Pupo, 2021). Para finalizar
esta breve descrição do caráter horrendo das tendências atuais, a aprovação pela Câmara Alta
de um pastor para o STF, o qual, logo após uma sabatina em que claramente mentiu para os
Senadores que poucos se importaram com isso, como se fosse combinado mesmo, fez um
discurso proselitista após sua aprovação (Bächtold, 2021), trazendo à tona uma pesquisa que
diz que, caso continuemos no ritmo atual – daquilo que Sampaio Jr. (2017) brilhantemente
em pouco mais de uma década, afirmou Balloussier (2020). Continuem a ligar os pontos se
processo contra o Estado, seja lá em que nível for, tanto por parte de pessoa física quanto da
pessoa jurídica, embora neste caso estejamos falando especificamente da União. Esta PEC
ameaça produzir outra forma sui generis de “endividamento público”. O que Barbosa (2021)
chamou de “bomba fiscal”. Ao criar uma fila e fugir para frente esquivando do pagamento do
montante de precatórios, no futuro essa corrida desesperada do Bonaparte tardio dos trópicos
pode produzir um montante de R$ 1,4 trilhão até o ano de 2036. Pelo padrão dependente que
analisamos, o pagamento dos juros por parcelamento até sumir de vista de dívidas da União
para com pessoas que integram em considerável proporção as massas mais empobrecidas da
classe trabalhadora. Numa reviravolta descomunal, essa “nova” “dívida pública” disforme, a
tal “bomba fiscal”, surgiu a partir da negação do Estado de executar seu papel inscrito no
texto Constitucional, numa dívida para com as massas trabalhadoras, muitas vezes em
a 22,3% das demandas dos cem maiores litigantes nacionais, seguido pela Caixa Econômica
Federal, com 8,5%, e pela Fazenda Nacional, com 7,4%” (Carvalho, 2011) – essa negação
poderá custar muito alto no futuro, e quem irá pagar são essas mesmas massas trabalhadoras.
“nova” de rolagem de ‘dívida pública” numa direção que aprofundará a fragilidade fiscal e,
em tempos de recessão internacional, maior fragilidade cambial. Segundo Pires (2021), uma
criatura da Câmara Baixa chegou a explicitar que cada voto para a aprovação desta PEC
chegou a valer R$ 15 milhões, os quais os Deputados usarão para saciar seus currais eleitorais
em investimentos que, como os seridoenses falam, são “sem futuro”, na maioria dos casos,
160
públicas, em geral. No total, foram cerca de R$ 1,2 bilhão liberados em recursos do chamado
leitura de Fernandes (2021), a votação dessa PEC termina por escancarar a forma como o
“toma lá, dá cá” está se sofisticando na atualidade. Uma característica histórica do que Boito
agenda do congresso ao mesmo tempo em que é refém dele, o que produz uma ciranda da
país. Saad Filho & Morais (2018) afirmam que estamos vivendo a época do neoliberalismo
“maduro”. A questão nem é apenas o que isso significa, se implica estabilidade nas suas
(2011) ao falar sobre o capitalismo “tardio” mandeliano, deveríamos tomar muita cautela ao
afirmar que o sistema de acumulação dependente flexível brasileiro está maduro, pois não
podemos saber ao certo o quanto maduro ele realmente está.7 A questão, ao meu ver, parece
ser a seguinte: será que realmente não dá para piorar? A história do movimento operário e
socialista mundial nos mostra que sempre dá para piorar, principalmente nas últimas décadas.
certezas altamente despóticas, veremos que, no Brasil, ainda há uma faixa de protagonismo do
7
A própria transição energética está prestes a se tornar, se já não é, uma plataforma de acumulação ampliada do
capital internacional. Sim, talvez o capitalismo “tardio” se restaure e essa transição energética, em meio à quarta
revolução industrial-tecnológica, “digital”, seja o espaço necessário de valorização diante da crise vigente. Ou
seja, mesmo os marxistas regulacionistas, que vem o neoliberalismo como um sistema de acumulação apócrifo
em crescente risco de ter sua legitimidade trincada, também não estejam certos sobre o estado de crise do próprio
neoliberalismo. Estamos falando de novo da restauração do capitalismo “tardio”. A própria crise climática e a
necessidade de sobrevivência podem ser o ímpeto que faltava ou de que dependia uma nova rodada de
restauração do capital. De qualquer forma, o que está em jogo é maturidade (e não a idade) de um modo de
produção, contando com múltiplas e variadas réplicas únicas mundo a fora. Nesse caso, toda cautela é pouca.
161
Estado no tal “mercado”, seja de serviços ou industrial. A ideia neoliberal de um ajuste sem
fim é justamente perseguir a todo custo o fim do setor ainda público no “mercado”, ou seja,
motivo dessas aspas é que esse discurso parte de uma economia-política que vê tudo como
mercado. É nisso que ela é totalitária e disfarçadamente despótica. Não precisamos concordar
totalmente com a tese do “antivalor” de Chico de Oliveira (1997) para defender que, apesar
dos pesares, a tese dele parece querer denunciar de uma forma hiperbólica que há algo de
errado ali, em ver o Fundo Público absolutamente capturado pelo capital como um fundo
privatizado, tomado por inteiro pela necessidade contínua de valorização e pagamento dos
serviços da dívida. Ora, se no futuro não tivermos mais funcionalismo público no país, qual o
nome do componente que nós perdemos nessa trajetória? Dar nome às coisas ajuda muito no
estabilidade que ainda resta dos anos dourados que nunca tivemos. A vanguarda sempre foi
público, uma privatização por terceirização, não é apenas a demissão e precarização massiva
daqueles seres que eles tanto tem nojo, mas uma massiva privatização e precarização na
prestação de serviços, ademais o aumento nos seus valores. Esta aí uma questão importante de
nível de qualidade dos serviços e bens, além de ter alguma influência sobre o valor da força
seguramente maduro, os preços dos serviços serão absurdos e sua qualidade ruim se não
desigualmente estratificada: uma oferta boa o suficiente para a classe média, o resto é tudo
média, seja ela da educação superior, do aparato civil e militar de repressão, do judiciário e de
outras áreas muito bem pagas do funcionalismo público, principalmente federal e estadual,
aqueles que ganham acima de dez salários mínimos com certa folga, pois o conflito em torno
talvez seja o grande motor da história não visualizado por muitos. A tensão se concentra sobre
a parte do Estado que ainda permanece pública, ela é que será cada vez mais atacada. Daí não
se trata apenas de um setor moderno mantendo o atraso para sobreviver, assim, de forma tão
harmônica, pois parece haver conflitos e pressões infra-setores. Em suma, parece existir um
setor moderno cada vez mais concorrido internamente, sendo comprimido pela continuidade
da transição ao neoliberalismo – aqui está a tese: a transição ainda está em vigor –, num
movimento que tenta expulsar parte de sua parcela de volta pro atraso, tudo isso na
parecem estar loucos por acabar de vez com a burocracia estatal, e o patrimonialismo e o
clientelismo por coronéis do interior que só são possíveis por causa das empresas públicas,
incluindo aí a seguridade social, que para ambos não passa de um conglomerado de empresas
públicas mantendo um monopólio públicos de “serviços” que poderiam ser privados, gerar
lucro, crescimento e enriquecimento para a “nação”. Nesse sonho futuro, o parlamento terá só
representantes diretos das frações do capital, afinal, não vai restar Estado para o clientelismo e
utilizado como artilharia anti-Estado se presta justamente a questionar os quase 17 mil cargos
que o presidente nomeia. Óbvio que uma coisa não tem nada a ver com a outra. Democracia
seria tornar essas nomeações representativas de alguma forma, com controle público, outra é
163
querer privatizar para salvar a República da corrupção. Se tem algo importante na obra de
Souza (2015) é ela denunciar com minúcia que a o patrimonialismo e corrupção são nativas
do próprio mercado enquanto expressão da sociedade na qual ele emerge, brasileira, neste
caso.
recentemente que acredito conter senão uma, várias senhas sobre o que vem por aí. Ele
começa o seu texto falando dos desafios do Brasil no século XXI, pós-pandemia, para depois
pular para o assunto da “austeridade fiscal” – contra o que e quem, é sempre bom
perguntarmos –, a qual nunca sequer foi hegemônica no país. Sim, isso mesmo. E depois
chega no ponto principal. Ele critica o funcionalismo público e logo depois questiona a falta
dado que para ele funcionalismo público não é um investimento obrigatório, uma vez que,
poderia ser “tornada” privada do dia para a noite num mar de transações tenebrosas à la era
FHC, o qual ele cita, defende e exalta. Tudo isso contando que o texto em questão foi
publicado num dos jornais pertencentes ao oligopólio da mídia brasileira, claramente tucana
num dia de vitória de João Dória – o proto-fascista representante do capital internacional que
quando prefeito de São Paulo elaborou o infortúnio da “ração humana” feita com coisas quase
vencidas para famílias famintas – nas prévias presidenciais, prévias essas que essa mesma
grande mídia fez campanha tentando vender o processo como possível parteira de sua
Resumindo seu discurso de forma mais direta, ele aponta que a questão não é a aversão a
8
Sobre essa “ração humana” a chamada de Pinho & Ottoni (2017) do portal G1 foi a seguinte: “Doria dará
alimento granulado feito a partir de itens perto do vencimento a famílias carentes”. É isso mesmo, os oligopólios
concordam que isso seja, de fato, um alimento. A lógica de exploração do capitalismo dependente, tanto a de
ontem como a de hoje, parece despertar tendências endógenas de escaladas proto-fascistas por parte das
burguesias. O próprio sistema é eivado à selvageria e canibalismo. A título de complemento desse enredo, de
acordo com Boito Jr. (2018) o PSDB é o partido do capital internacional.
164
protagonismo do Estado no setor de serviços. Vendo as coisas desse lado, é como se eles
quisessem combater a captura do Fundo Público pelo funcionalismo público. A senha dele
passa ser a seguinte: aceitamos o investimento público, não aceitamos é não permitir a
Resumindo o questionamento inicial, até quando o Brasil ainda tem para se “tornar
mais” neoliberal? A visão futurística tão distópica quanto realista de um Brasil todo
exploração, algo tão fundamental, agora sem o antigo desvio desse montante de recursos – no
total, 13,7% do PIB em 2019, cerca de R$ 930 bilhões – aos trabalhadores da classe média
brasileira. São muitas as transformações daí decorrentes. A ascensão de uma “burguesia dos
serviços” já foi anotada por Boito Jr. (2018). Teríamos um cenário em que uma massa de
trabalho. Tudo indica uma grande insatisfação social das muitas frações da classe média em
decadência e da classe trabalhadora. A qualidade e o valor dos serviços irão cair e os preços
irão subir. Talvez uma aliança entre a ala civil-militar e do judiciário consigam salvar suas
peles entregando a educação fundamental, média e superior e a previdência que ainda restam
públicos como expiação por seus altos salários e rendimentos complementares, talvez as duas
frações mais poderosas do funcionalismo público e, sobretudo, da Nova República que caiu
duas vezes entre 2014-2016. E não para aí, a proposta é terceirizar tudo e em todos os níveis
do país serão todas contratadas por empresas privadas e os serviços, portanto, serão, ao gosto
165
Federal e nos estados da federação. Neste ponto, é fácil ver como o PT e o lulismo não
estavam indo pro lado com as PPPs. Eles estavam indo para frente mesmo, pavimentando as
Daí o Estado estaria “livre” para “investir e crescer”, vulgo “feliz para sempre”, o
canto da sereia neoliberal. As questões para pensarmos são duas. Se isso tudo algum dia
acontecer o Brasil realmente terá se tornado mais dependente? E, o que é diferente, se existe
possibilidade disso dar certo por algum tempo – assim como o controle temporário da inflação
por FHC – quais seriam os seus padrões de subdesenvolvimento? Armínio Fraga, comissário
do capital, já deu a largada disputando os sentidos das eleições presidenciais do ano que vem.
Chegou a propor que todos os candidatos apresentem uma folha modelo da ideia de
orçamento para o ano que vem como matriz orientadora do voto: quanto mais austeridade
melhor, afinal de contas, o próprio autor nega que a austeridade faça parte da história recente
do país. Parece que ele demanda algo mais, digamos, radical. De um ponto de vista
discursivo, não deveríamos agir como psicanalistas achando que se trata de uma “passagem
ao ato” (acting out). É claro que é bárbaro o sonho de futuro dele, mas é do ponto de vista da
classe trabalhadora. Para ele é um sonho de muitas oportunidades de atuação num mercado
para “retornar a Brasília” (Gravas, 2021). Percebam que ele não consegue, talvez porque não
possa, segundo certas linhagens do marxismo críticos da teoria política sugerem, ser muito
literal e direto sobre o que ele quer (Boito Jr., 2018; Mascaro, 2018). É sempre um sistema
semiótico relativamente autônomo da base material, mas apenas na esfera pública, ou seja,
ideologia pura. Nas quatros paredes, nos salões que essas criaturas frequentam as coisas são
ditas de forma muito direta, como mostram os áudios vazados nessa era “digital”.
166
transição do regime vigente é uma tarefa das mais urgentes. O neoliberalismo é uma máquina
remessas que tem de entregar aos credores internos e externos num volume e numa proporção
exploração como pilar organizativo e funcional da estrutura dependente. Muito menos que um
problema da burguesia interna – outra questão a pensar, até quando ela resistirá interna, se é
que realmente seja interna – trata-se de um problema do Estado brasileiro e de suas contas.
Este estilo genuíno de Estado não vive sem a exploração em formas primitivas, ele é
dependente também dela, pois a utiliza como instrumento para lidar com sua dependência do
capital interno e externo. Trata-se de uma ciranda da dependência. Nela os burgueses saem
disputa pelo que resta do Fundo Público, tendo em vista a desproporção de poder com o
grande capital. A classe média oriunda do funcionalismo público está em disputa interna
também, com alta probabilidades de rachaduras, como explicitado. Nesse contexto, temos, de
acordo com Boito Jr. (2018), conflitos de classe, e não luta, propriamente. Se realmente for
tempo prosseguindo nas investigações sobre a ordem que está para nascer, talvez esteja muito
errado, mas parece que Chico de Oliveira não estava com os olhos voltados ao presente
apenas, mas ao passado e, sobretudo, ao futuro tenebroso que ele via nascer no período pós-
fordista mundial. Não se trata de negar o valor produzido pela classe proletária que atravessa
o Fundo Público, mas do Fundo Público que ainda resta público ser algo não só diferente, mas
antagonista do que está para nascer: a privatização completa do Fundo Público. Nesse cenário
167
federação, estados e municípios, a parte pública do Fundo “Público” seria ínfima, porque
privatizada na execução dos serviços, educação, saúde, assistência social e demais setores
burocráticos em nível estadual e municipal. O Orçamento Público anual seria, bem mais do
que já é hoje, capturado não só pela dívida pública, mas pela própria privatização do que resta
de público na execução da Seguridade Social. A terceirização seria uma etapa final na qual o
Fundo Público passaria, digamos, a ser bem mais pró-valorização do capital que antes.
Valorização não apenas em sentido estrito, de produção de valor, mas de possibilitar que o
capital excedente transite com mais espaço que antes, numa reprodução plenamente ampliada.
A assistência social, na ordem que está para nascer, será mais transversal, um futuro
que se parece muito com o passado brasileiro nessa matéria. As transferências monetárias
tenderão a atingir níveis bem maiores que os atuais, hoje na faixa de R$91,00 (PBF) a até
de elevar muito os valores diante da situação de calamidade que emergiu num país com mais
dependentes da formalização. Uma parcela que sempre variou perto dessa porcentagem na
trajetória do país até o presente. Essa transversalização ocorrerá via transferências monetárias,
uma vez que os “salários indiretos”, os direitos sociais, estarão derruídos, em péssimas
condições e bem focalizadas aos mais pobres, bem mais do que, por exemplo, SUS já é hoje e
que em parte se consolidou assim atravessando o lulismo. Notemos que a assistência social
não será absoluta, porque as estruturas, prédios e etc., permanecerão propriedades públicas,
mas cedidas ao capital. Daí a aparência dos serviços ainda permanecerem públicos. Essa
forma de privatização da parte do Estado que ainda resta pública hoje aparenta ter a tendência
de ser capciosa no nível da ideologia. Contudo, nada de novo na história dos períodos de
restauração do capital.
168
Esses conflitos entre frações da classe média nos serviços públicos denuncia a
2018). Portanto, essa classe está totalmente não só desunida, mas em profundo conflito.
Assim sendo, como o funcionalismo público, o elo mais fraco e o inimigo número um da
burguesia interna tanto quanto do capital internacional, se defenderá dos ataques? Esta fração
ainda fordista da classe trabalhadora em um Brasil de resto pós-fordista é vista como o que de
fato ela é: a ainda detentora de uma parcela considerável das quantias brutas do Fundo
completamente neoliberal, no qual o Fundo Público seria repartido, numa hegemonia absoluta
do capital, entre os credores da dívida pública, via pagamento dos serviços da dívida, e a
grande burguesia interna e esses mesmos credores, novamente, via investimento “público-
privado” – investimentos financiados por empréstimos a juros subsidiados pelo BNDES. Este
hífen do “público-privado” significa uma via de mão única no fluxo da reprodução ampliada
do capital. O Brasil neoliberal não foi parido como parecem sugerir Saad Filho e Morais
(2018), ele ainda está por nascer. A transição ainda está em curso. Nos governos Lula a
velocidade da gestação diminuiu levemente em certos aspectos. Isso continuou até o primeiro
voltou a um padrão próximo ao FHC de gestação do Brasil Neoliberal. É esta a minha leitura
da ordem que está para nascer no Brasil. Quando Lula e Dilma financiaram os “campeões
nacionais” num contexto internacional favorável, acabaram por formar os traços centrais do
Brasil neoliberal desejado por muitos, parte do 1%. A burguesia em geral viu que dá para
ganhar muito com investimento “público” no país. Os pobres? Uma renda básica “universal”
público ficou evidente como ente desnecessário, arcaico, sobretudo fordista demais. Sendo
169
como alguns propõem a distinção, não morrem com a transição ao neoliberalismo, caso
Afinal, sendo uma nova ordem, as classes estarão lá, embora de outra forma. A hegemonia
burguesa perfeita, ainda que se torne perfeita, de fato, permanecerá sendo mantida pela classe
que vive da venda de sua força de trabalho. A organização das massas é a nossa única
É bobagem acharmos que o que está em jogo são as condições de vida e trabalho da
formais e informais. Isso é um absurdo na verdade. É ficar preso ao presente e ao local, coisa
que essa ordem da acumulação flexível tenta nos enfiar pela goela abaixo, inclusive através da
“esquerda” pós-moderna. As massas trabalhadoras não estão sozinhas, muito menos agora
com a compressão espaço-tempo que exsurge. A luta em busca de outro Brasil só pode ser
pensada como uma luta integrada à América Latina e ao Sul do mundo. A qualidade da
derrota ou da vitória que obter interferirá ativamente no mundo todo na correlação de forças
da classe trabalhadora mundial, de alguma forma e em alguma medida. Uma aliança socialista
transnacional é uma demanda de uma ordem internacional do capital. No mais, está em jogo a
memória e o legado concreto das classes trabalhadoras que habitam o passado, brasileiras,
restos da face humana que ainda restam neste modo de produção, arrancados pela luta
socialismo), a destruição se volta contra si mesmo. Portanto, o que está em jogo é aquilo que a
classe trabalhadora conseguiu arrancar, mesmo que parcialmente, das mãos do capital.
170
4.2 Breves considerações finais sobre o significado desta pesquisa e de seus resultados
para a psicologia
Por mais que eu tenha previsto desde o início do projeto de pesquisa, ou mesmo antes,
estudo, foi bem diferente viver na pele essas resistências, tocar nessas barreiras reais à crítica
materialista. Ainda no seminário de defesa do projeto, foi me perguntado o que meu tema
trazia de ou para a “psicologia”. A minha melhor resposta, preparada alguns dias antes, foi
Joseph Ratzinger ao não aceitar uma teologia sem deus: o que eu propunha e continuo
curso de pós-graduação em psicologia foi a de que ela entendia o argumento, mas achava
necessário ter “algo” que “nos” “diferenciasse”. Esse signo de distinção a que ela se refere é a
subjetividade como objeto de estudo central. Ocorre que o meu projeto intelectual, bem mais
que apenas essa pesquisa específica, caminha numa direção diametralmente oposta.
A fim de não restar tantas dúvidas a respeito, considero necessário tornar explícito que
chamaram a atenção e me atraíram para o nordeste justamente pela distinção que considero
uma das mais importantes características de seus estudos no país, mas infelizmente muito
liberalismo, às disfarçado às vezes escrachado, que a tudo corroem: o nosso objeto de estudo
não é a psicologia, a subjetividade ou qualquer coisa que o valha. Não é a mente humana e
nem qualquer coisa do tipo, a qual me refiro com aspas. Já faz algum tempo que ambas
171
ciência em um objeto de estudo num contexto muito específico. Não mais como ciência
psicológica, uma ciência da subjetividade, mas sim como uma profissão, a psicologia como
uma força produtiva localizada dentro de um complexo e amplo mercado interno de serviços
circuito do valor. É essa a grande distinção. E é por essa razão que a proposta desta
dissertação foi a de estudar o contexto de desenvolvimento dessa força produtiva nas últimas
décadas, e não o dessa força produtiva em si. Foi um passo adiante na possibilidade do
desenvolvimento de estudos no campo da psicologia que consigam olhar para fora, para antes
e além dessa ciência e profissão e suas questões, pois temos uma questão social para lidarmos
numa nação destroçada pelo capital. O que querem fazer quando tentam nos impor o
predomínio do estudo da subjetividade a ferro e fogo não deve ser tomado como uma busca
higienista do pensamento crítico der certo algum dia, teremos uma psicologia realmente pura
tanto em sua substância idealista europeia como liberal ou conservadora, restando apenas
único não será tão fácil assim. É por essas razões que o que propomos é mais uma crítica da
psicologia, do que a agregação de algum adjetivo à mesma, seja como ciência, seja como
profissão.
setores das políticas sociais (assistência social, saúde, educação e etc.), mas como um sistema
psicologia.
puro “economicismo”, quando, na verdade, trata-se de uma estrutura e ordem discursiva que
política, considerando que acusar esse campo de “economicismo” é negar a própria proposta
dessa tradição. Prevalece em todo caso a negação das fortes ligações materiais entre economia
e política numa ofensiva por uma dobradinha entre pós-modernos e neoliberais, os quais
brasileiras.
Acredito que este texto poderá ser aproveitado como uma introdução crítica e
estudantes ainda não familiarizados com o tema, conceitos e categorias envolvidas. Uma
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