Você está na página 1de 201

UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIA

CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA

Claudia Aita Tiellet

SEGUNDA PESSOA E CASOS-LIMITE EM PAUL RICOEUR

Santa Maria, RS
2020
Claudia Aita Tiellet

SEGUNDA PESSOA E CASOS-LIMITE EM PAUL RICOEUR

Tese apresentada ao Curso de Doutorado


do Programa de Pós-Graduação em
Filosofia, Área de Concentração Ética
Normativa e Metaética, da Universidade
Federal de Santa Maria (UFSM, RS), como
requisito para prosseguimento na obtenção
do título de Doutora em Filosofia.

Orientador: Prof. Dr. Noeli Dutra Rossatto

Santa Maria, RS
2020
This study was financied in part by the Coordenação de Aperfeiçoamento de
Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) – Finance Code 001

TIELLET, Claudia Aita


SEGUNDA PESSOA E CASOS-LIMITE EM PAUL RICOEUR /
Claudia Aita TIELLET.- 2020.
200 p.; 30 cm

Orientador: Noeli Dutra Rossatto


Tese (doutorado) - Universidade Federal de Santa
Maria, Centro de Ciências Sociais e Humanas, Programa de
Pós-Graduação em Filosofia, RS, 2020

1. Ética 2. Moral 3. Paul Ricoeur 4. Segunda-pessoa


5. Casos-limite I. Rossatto, Noeli Dutra II. Título.

Sistema de geração automática de ficha catalográfica da UFSM. Dados fornecidos pelo


autor(a). Sob supervisão da Direção da Divisão de Processos Técnicos da Biblioteca
Central. Bibliotecária responsável Paula Schoenfeldt Patta CRB 10/1728.

Declaro, CLAUDIA AITA TIELLET, para os devidos fins e sob as penas da


lei, que a pesquisa constante neste trabalho de conclusão de curso
(Tese) foi por mim elaborada e que as informações necessárias objeto de
consulta em literatura e outras fontes estão devidamente referenciadas.
Declaro, ainda, que este trabalho ou parte dele não foi apresentado
anteriormente para obtenção de qualquer outro grau acadêmico, estando
ciente de que a inveracidade da presente declaração poderá resultar na
anulação da titulação pela Universidade, entre outras consequências
legais.
Claudia Aita Tiellet

SEGUNDA PESSOA E CASOS-LIMITE EM PAUL RICOEUR

Tese apresentada ao Curso de Doutorado


do Programa de Pós-Graduação em
Filosofia, Área de Concentração Ética
Normativa e Metaética, da Universidade
Federal de Santa Maria (UFSM, RS), como
requisito para prosseguimento na obtenção
do título de Doutora em Filosofia.

Aprovada em 31 de março de 2020:

_______________________________
Noeli Dutra Rossatto, Dr. (UFSM)
(Presidente/Orientador)

___________________________
Tomás Domingo Moratalla, Dr. (UNED) (Por parecer)

___________________________
Jair Antônio Krassuski, Dr. (UFSM) (Por parecer)

___________________________
Paulo Gilberto Gubert, Dr. (UCPel) (Por parecer)

___________________________
Paulo Jesus da Costa, Dr. (UFSM) (Por parecer)

Santa Maria, RS
2020
Dedico esta Tese ao meu filho
Lorenzo Tiellet Ethur, tão amoroso e
já tão sábio, e cuja existência dá
todo sentido a minha.
AGRADECIMENTOS

Ao meu orientador Noeli Dutra Rossatto, pela confiança e apoio intelectual.


Aos meus pais, Claudio e Maria Eunice pelo amor e a guarda ao Lorenzo na
minha ausência, pelas orações, apoio e palavras de estímulo, pelo carinho, zelo e
abrigo.
Ao meu irmão Marcelo e sua família, que de muito longe, torcem por mim e
pela minha satisfação profissional.
À família Miranda Ethur, também pelo amor e guarda ao Lorenzo, pelas
palavras e mensagens de incentivo e compreensão, pelos abraços e momentos
alegres e confortantes!
Aos colegas de curso, especialmente à amiga de fé Aline Ibaldo Gonçalvez, a
Bruna Richter, Bruno Fleck e Pâmela Cossul pela parceria entre momentos de
descontração, e de estudo e pesquisa.
Ao professor e amigo ricoeuriano Paulo Gubert, que embora distante,
mostrou-se sempre solícito, torcendo pelo sucesso dessa empreitada.
Ao Douglas Carré, um “presente” deste curso de Pós-graduação e cuja
empatia imediata levou à parceria na produção acadêmica e à amizade afortunada.
A Luciana Cassel, Rafael Bordin, Robson Menezes Palermo e Pandara Mello
pela amizade e mensagens de apoio, pelo carinho e atenção com o Lorenzo, pelos
almoços, cafés, chopes e mates, sorrisos, abraços e cumplicidade, cada um do seu
modo singular.
A Maria Miranda Ethur, muito especialmente, pelas palavras certas, pelo
abrigo, pelo alimento, pelas orações, pelo tanto que me ajuda e me entusiasma,
maior exemplo de sabedoria e coragem que conheço e no qual me inspiro.
Aos demais colegas e professores da pós que fizeram do ambiente
acadêmico um lugar de reflexões animadoras.
Aos professores Jair Krassuski, Paulo Costa e Tomás Moratalla,
examinadores da banca de defesa e ao Prof. Marcelo Fabri, examinador por ocasião
da qualificação.
À secretária Jaíne Vasconcellos, pela atenção e socorro imediatos, sobretudo,
na etapa final do curso.
A CAPES, que tornou possível a dedicação quase que única a este trabalho.
A Oxalá e meus guias espirituais, SALVE!
RESUMO

SEGUNDA PESSOA E CASOS-LIMITE EM PAUL RICOEUR

AUTORA: Claudia Aita Tiellet


ORIENTADOR: Noeli Dutra Rossatto

A presente pesquisa parte da constatação do filósofo Paul Ricoeur, de que as duas maiores
tradições da ética filosófica, a corrente da teleologia na esteira de Aristóteles e a corrente da
deontologia em Emmanuel Kant, tratam a segunda pessoa da ética de forma obliterada. A
corrente da ética teleológica vê virtude cívica ou humanidade apenas na amizade (philia)
entre homens, livres e iguais. As relações interpessoais só são possíveis ou razoáveis se os
envolvidos forem predominantemente do sexo masculino, de uma mesma e mais elevada
classe socioeconômica. A corrente da moral deontológica, por sua vez, traz consigo o ideal
moderno de sujeito autônomo que se choca constantemente com a exigência de
reciprocidade na relação interpessoal. Ambas as tradições, destarte, não superam a
dissimetria inicial, calcada nas teorias de deposição do outro e cultivam a inércia diante de
tanta violência. Pensando acerca do sofrimento da segunda pessoa imersa nessas
situações de desigualdade, o filósofo francês aponta uma saída, advinda da articulação e
complementariedade entre ética, a partir da noção de solicitude, e moral, a partir da
categoria do respeito. Desse modo, defenderemos que Ricoeur corrige as deficiências do
tratamento da segunda pessoa da ética, em conformidade com as premissas da solicitude e
do respeito e a busca de articulação entre ética e moral. Nossa proposta será mais bem
compreendida a partir da análise da maneira pela qual nosso filósofo opera a deliberação,
ou o juízo moral em situação singular, mediante o exame de casos-limite.

Palavras-chave: Ética. Moral. Aristóteles. Kant. Segunda pessoa. Solicitude. Respeito.


Casos-limite.
ABSTRACT

SEGUNDA PESSOA E CASOS-LIMITE EM PAUL RICOEUR

AUTHOR: Claudia Aita Tiellet


ADVISOR: Noeli Dutra Rossatto

The present research starts from the observation of the philosopher Paul Ricoeur, who, like
two major philosophical ethical traditions, a chain of teleology in the wake of Aristotle and a
chain of deontology in Emmanuel Kant, treats the second person of ethics in an obliterated
way. The chain of teleological ethics sees civic virtue or humanity only in friendship (philia)
between men, free and equal. Interpersonal relationships are only possible or reasonable if
those involved are predominantly male, from the same and higher socioeconomic class. The
current of deontological morality, in turn, brings with it the modern ideal of an autonomous
subject that constantly clashes with the demand for reciprocity in interpersonal relationships.
Both traditions, therefore, do not overcome the initial dissymmetry, based on the theories of
deposition of the other and cultivate inertia in the face of so much violence. Thinking about
the suffering of the second person immersed in these situations of inequality, the French
philosopher points out a way out, arising from the articulation and complementarity between
ethics, from the notion of solicitude, and moral, from the category of respect. Thus, we will
defend that Ricoeur corrects the deficiencies in the treatment of the second person of ethics,
in accordance with the premises of solicitude and respect and the search for articulation
between ethics and morals. Our proposal will be better understood from the analysis of the
way in which our philosopher operates deliberation, or moral judgment in a singular situation,
through the examination of limit cases.

Keywords: Éthics. Moral, Aristotle. Kant. Second person. Solicitude. Respect. Limit cases.
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .................................................................................................. 10
1 ÉTICA E MORAL EM RICOEUR: DISTINÇÃO NECESSÁRIA, ANTAGONISMO
PREJUDICIAL ................................................................................................... 22
1.1 ANOTAÇÕES INTRODUTÓRIAS SOBRE A MORAL KANTIANA EM
RICOEUR.... ...................................................................................................... 22
1.2 A PEQUENA ÉTICA E SUAS DUAS FORMULAÇÕES ................................... 28
1.2.1 A pequena ética de O Si-mesmo como outro................................. 32
1.2.2 As éticas regionais de o justo........................................................ 53
2 CASOS-LIMITE EM PAUL RICOEUR .............................................................. 70
2.1 SOBRE O DESÍGNIO DA EXPRESSÃO CASOS-LIMITE ............................... 71
3 O RETORNO DA PESSOA ............................................................................. 82
3.1 POR UMA FILOSOFIA DA PESSOA.............................................................. 82
3.2 CAPACIDADE E LIBERDADE, AGENTES E FALANTES: AS TRÊS PESSOAS
DA ÉTICA.........................................................................................................101
4 SOLICITUDE E RESPEITO: ÉTICA DA SEGUNDA PESSOA ..........................121
4.1 SIMPATIA E RESPEITO ..............................................................................122
4.2 RESPEITO..................................................................................................140
4.3 SOLICITUDE ..............................................................................................149
5 SEGUNDA PESSOA E CASOS-LIMITE: SOLICITUDE E RESPEITO EM
SITUAÇÃO.......................................................................................................159
CONSIDERAÇÕES FINAIS...............................................................................185
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ..................................................................191
INTRODUÇÃO

A tese que aqui defendemos é a de que Ricoeur corrige as deficiências no


tratamento da segunda pessoa da ética, em conformidade com as premissas da
solicitude e do respeito e a busca de articulação entre ética e moral. Essa proposta é
mais bem compreendida a partir da análise do modo pelo qual nosso filósofo opera a
deliberação, ou o juízo moral em situação singular, mediante o exame de casos-
limite de vida começando e vida terminando.
Partimos do pressuposto de que o filósofo identifica uma lacuna no tratamento
da segunda pessoa da ética. Para ele, as duas maiores tradições da ética filosófica
tratam a segunda pessoa de forma obliterada, acentuando conflitos e cultivando a
inércia diante de tanta intolerância e preconceito com o “diferente”, com a
singularidade e a pluralidade do humano, com a violência banal nas relações
interpessoais contemporâneas.
A corrente da ética teleológica, na esteira de Aristóteles, vê virtude cívica ou
humanidade apenas na amizade (philia) entre homens, livres e iguais (excluindo
mulheres, estrangeiros, idosos, escravos). Sob a ótica de Aristóteles, portanto, as
relações interpessoais só são possíveis ou razoáveis se os envolvidos forem
predominantemente do sexo masculino, de uma mesma e mais elevada classe
social.
A corrente da moral deontológica, inaugurada por Immanuel Kant, por sua
vez, traz consigo o ideal moderno de sujeito autônomo que se choca
constantemente com a exigência de reciprocidade na relação interpessoal. Além
disso, num primeiro momento, não há o trato explícito da segunda pessoa. E apenas
enquanto se está sob o amparo da lei parece haver alguma garantia de
reconhecimento. A relação interpessoal só encontra aval, portanto, sob o pano de
fundo do instituído.
Por outro lado, também as filosofias de deposição da segunda pessoa (Hegel
e a luta do senhor e do escravo; Hobbes e a luta de todos contra todos, Marx e a
luta de classes; Sartre e o olhar que petrifica pela vergonha e pelo ódio), e as
fenomenologias da simpatia de Scheler e da empatia de Husserl são insuficientes
quanto à questão da reciprocidade.

10
As primeiras, apesar de reconhecerem a dissimetria original (o outro é outro),
se ancoram em sentimentos negativos como a luta, o desprezo, o medo, o ódio,
todos atrelados ao desejo de eliminação. As demais resultam numa fusão afetiva
que encobre totalmente a dissimetria original, ignorando que, de saída, o eu já não é
o outro. Além disso, se permanece no contexto de que os sentimentos negativos
parecem mostrar mais vigorosamente a presença da segunda pessoa do que os
sentimentos positivos de simpatia e empatia.
Se há alguma garantia de reconhecimento da segunda pessoa, continua
sendo à moda hegeliana da consciência infeliz e do mal infinito, que leva a uma
reivindicação sem limites e a um desejo incontrolável de ser reconhecido a qualquer
custo. E à medida que essa violência contra o outro é revelada, se revela também
uma impotência incomum, deixando, portanto, a sensação de que os discursos
ético-filosóficos de que dispomos não dão conta disso.
Assim é que Ricoeur, atento e essas cruéis desigualdades e a um
cerceamento crescente da liberdade da segunda pessoa, elabora a articulação entre
(1) a perspectiva aristotélica, a partir da noção de solicitude e (2) a norma moral
kantiana, a partir da categoria do respeito, inerente a segunda formulação do
imperativo categórico: “Age de modo que trates a humanidade, tanto na tua pessoa
quanto na pessoa de qualquer outro, sempre ao mesmo tempo como um fim e
nunca simplesmente como um meio”. (RICOEUR, 1991, p. 259).
A obra que melhor evidencia e sustenta essa reflexão é O Si-mesmo como
outro (1990), onde nosso filósofo realiza uma elaboração sistemática e completa do
que muito especialmente chama de “mon petit étique”.
A “pequena ética” de Ricoeur se conforma em três momentos, todos
constantes de três estudos de tal obra: 1) o sétimo estudo intitulado “O si e a
perspectiva ética”; 2) o oitavo estudo, “O si e a norma moral”; e 3) o nono estudo, “O
si e a sabedoria prática: a convicção”, que inclui o Interlúdio intitulado “O trágico da
ação”, dando realce ao momento da deliberação. A esses três estudos
correspondem os três momentos que fundam a ética ricoeuriana, a saber: a
perspectiva [a visada] ética, a norma moral e a sabedoria prática.

11
Para Ricoeur, o éthos do grego e o mores do latim precisam ser distintos um
do outro para que se possa sustentar sua proposta de articulação entre as tradições
(1) teleológica de Aristóteles, por meio do predicado bom, remetendo-o a outros três
componentes: a estima de si, a amizade-solicitude e as instituições justas, pela
exigência de uma vida pelas virtudes, com a intenção de felicidade, e (2)
deontológica de Immanuel Kant, por meio do predicado obrigatório, homologamente
tripartido, remetendo-o ao respeito de si, o respeito ao outro (e à norma) e os
princípios de justiça, onde vale a atitude moral e universal.
Enquanto a historiografia contemporânea tem sustentado o antagonismo
entre essas tradições, Ricoeur defende sua complementariedade, na dialética entre
o bom e o obrigatório, mormente em situações singulares de conflito que vêm
exigindo um retorno à intenção ética por meio da sabedoria prática. Há casos cuja
solução pede mais do que um recurso moral ou legal, reivindicando uma capacidade
de agir de modo prudente e conveniente, ao modo teleológico-aristotélico e há casos
que pedem mais do que a prudência, exigindo uma atitude deontológica. A
sabedoria prática em Ricoeur pode ser entendida, destarte, como o discernimento
de um agente moral autônomo que inventa um comportamento adequado à
singularidade de cada caso, de cada situação existencial, seguindo de perto o
sentido já proposto pela phrónesis aristotélica ou pela prudentia latina.
Há que se observar que a noção de autonomia do agente em Ricoeur já não é
a kantiana, sucessora da modernidade. A autonomia ricoeuriana é situada e, neste
sentido, limitada pelas reais condições da existência singular.
Para demonstrar a função ocupada pela sabedoria prática no trato desses
casos-limite, Ricoeur “prepara o terreno” a partir da tragédia grega, no já citado
interlúdio “O trágico da ação”. (RICOEUR, 1991, p. 283-293). Ele afirma que a
tragédia ensina porque, sob um fundo “agonístico de prova humana”, defrontam-se
homem e mulher, jovem e velho, sociedade e indivíduo, suscitando aporias.
A tragédia é um conflito insolúvel, mas ao mesmo tempo, após ter
desorientado nossa perspectiva, gera aquele conhecido paradoxo ético-prático que
deixa uma lição ao homem da práxis, convocando-o a “orientar novamente sua
ação, com seus próprios riscos e custos, no sentido de uma sabedoria prática em
situação que responde melhor à sabedoria trágica”. (RICOEUR, 1991, p. 290).

12
Em um artigo anterior, intitulado O problema do fundamento da moral (1975),
Ricoeur ainda não fala em sua pequena ética e na necessidade da
complementariedade entre o bom e o obrigatório, mas questiona a tradição
deontológica, que toma a lei como fundamento da ética. Seu propósito geral foi o de
buscar um fundamento mais primitivo e escapar do que chamou de “tentação
kantiana”, que consistiria em introduzir logo e demasiado cedo, “a ideia de lei como
ratio cognoscendi da liberdade”. (RICOEUR, 2011, p. 130).
Em suma, a ideia de legislação (momento da obrigação ou de sentir-se
obrigado) não é o princípio da ética, pelo contrário, é sua última categoria. Para
nosso autor, a fonte de toda a ética é a intenção ou o propósito de liberdade; e uma
liberdade com exigência de realização assim (com) partilhada: (a) liberdade na
primeira pessoa, (b) liberdade na segunda pessoa, afirmando-se a liberdade do
outro (alteridade) e (c) liberdade na terceira pessoa, a instituição ou o instituído.
A liberdade na primeira pessoa é requisito para a liberdade na segunda
pessoa. A compreensão do que significa a liberdade na primeira pessoa (ser livre e
querer a liberdade) é requisito essencial para almejar a liberdade do outro. A
liberdade da segunda pessoa é posta por “reduplicação analógica” da liberdade na
primeira pessoa”. (RICOEUR, 2011, p. 132).
Desse modo, “o que era limite para minha liberdade (inadequação de si a si)
passa a ser conflito, com a introdução da segunda pessoa, quer dizer, a atualização
de meu ato (tomar posse de minha liberdade) defronta-se com a ação do outro”. (DE
ALMEIDA, 2002, p. 138).
E não poderia ser diferente. Nas relações interpessoais (eu-outro), é rotineiro
questionarmos quais os limites da liberdade pessoal e vice-versa. Até que ponto ser
livre para agir não implica em fazer do outro um meio para minha liberdade?
O sentimento de ódio e suas decorrências como vingança, preconceito –
sentimentos negativos – são inerentes à relação interpessoal na medida em que se
crê que a segunda pessoa impõe limites à liberdade da primeira pessoa. Não por
menos que este é o núcleo das preocupações ricoeurianas que se movem em torno
da ética, sobretudo, se considerarmos, assim como nosso filósofo, que a tarefa de
tornar a liberdade do outro, a liberdade da segunda pessoa semelhante à minha,
está na própria origem da ética.

13
Diante disso, Ricoeur faz essa declaração sem-par: “O outro é meu
semelhante! Semelhante na alteridade, outro na similitude. Nesse sentido, o
problema do reconhecimento da liberdade na segunda pessoa é o fenômeno central
da ética”. (RICOEUR, 2011, p. 318). Em sua proposta, destacamos, não há o
abandono da questão da primeira pessoa. Pelo contrário, Ricoeur defende que é
necessária uma reafirmação do si-mesmo, porém, sem aquela exaltação defendida
pelas filosofias do cogito.
O si-mesmo (soi-même), a primeira pessoa da ética ricoeuriana, é entendido
como um cogito ferido, ou seja, um cogito que é constituído e atravessado pela
alteridade. Como afirma Gubert (2011, p. 74) trata-se de um si-mesmo que pede
para ser reconhecido com e para o outro, o si-mesmo como outro, numa via
intermediária entre Husserl, para quem o outro é percebido como um alter ego e
Lévinas, onde se tem a alteridade de um totalmente outro. A via intermediária
ricoeuriana estabelece que não há nenhuma implicação de contradição em
considerar como dialeticamente complementares os movimentos do outro para o si-
mesmo e do si-mesmo para o outro (RICOEUR, 1991, p. 396).
Na teleologia ricoeuriana, no lugar dos sentimentos (negativos e positivos), é
a noção de solicitude que irá suprir a deficiência do discurso teleológico em relação
a segunda pessoa da ética. A solicitude pressupõe a tarefa de cuidar do outro,
desviando-se dos excessos que levam tanto à fusão com o outro, presentes na
simpatia e na empatia, como também da deposição do outro, vinculada aos
sentimentos de medo, de desprezo, de ódio e de vergonha. Com a solicitude,
Ricoeur dará movimento à dialética entre a diferença mútua, em que eu não sou o
outro, e a igualdade recíproca, em que eu sou o mesmo que o outro.
Na seara da deontologia, Ricoeur se empreende na tarefa de levar a cabo o
enfraquecimento da autonomia do sujeito moderno (aqui especialmente o kantiano),
e por isso toma o eu na forma reflexiva si-mesmo.
De outra banda, ao repensar as estruturas da reciprocidade (com e para o
outro) no âmbito da moral, toma emprestado de Kant, num primeiro momento, a
distinção entre pessoa e coisa, defendendo a ideia de que a relação com o outro não
pode ser conduzida nos mesmos moldes da relação com os objetos, haja vista que
nos situamos na esfera do interpessoal.

14
E consecutivamente, assimila também da moral kantiana o preceito de que a
segunda pessoa tem de ser reconhecida ou respeitada como “fim em si”, e não
como “meio”, objeto ou instrumento. Em outras palavras, o outro não poderá ser
apreendido em momento algum como mercadoria, dado que é, inicialmente, insétil e
insubstituível em sua dignidade moral.
A predileção por esses dois aspectos da moral kantiana prepara a introdução
de um elemento fundamental na ética ricoeuriana: o respeito.
Ricoeur é consciente de que a noção kantiana de respeito não se remete
diretamente a segunda pessoa da ética. Por isso, se apressa em afirmar que o
pressuposto da existência da segunda pessoa se situa na filosofia prática de Kant.
Segundo nosso autor, quando Kant (2007, p. 135) introduz a noção de pessoa na
segunda fórmula do imperativo categórico, não põe em dúvida a existência do outro.
Mais do que isso, edifica uma moral do respeito que se sustenta na ideia de pessoa
como limite ao outro, terminando por valorar de forma absoluta a existência da
segunda pessoa, considerando-a imediatamente diversa da existência das coisas.
Em coerência com o esquema ético proposto n’O Si-mesmo como outro, o
respeito é a solicitude que passou pelo crivo da norma moral, e a solicitude é o
respeito devolvido ao curso da vida ética. E esse efeito de circularidade no campo
da segunda pessoa, cumprindo com as exigências de reciprocidade, só encontrará
garantia depois de qualificar o sentimento de respeito kantiano, que desempenhará,
no interior da deontologia, a mesma função que a solicitude, na teleologia
(RICOEUR, 1991, p. 249), levando nosso filósofo a articular duas teses distintas a
propósito da reciprocidade na moral de Kant.
A primeira consiste em afirmar que o vínculo que tem de ser estabelecido
entre a solicitude e o respeito só poderá ser alcançado mediante a admissão de uma
similaridade entre a Regra de Ouro, que está na raiz da noção de solicitude, e a
segunda formulação do imperativo categórico.
Solicitude e respeito, embora não tendo o mesmo campo de atuação, pois a
primeira está inserida na esfera da bondade e o segundo está vinculado às regras
morais, vão desempenhar juntos um papel análogo e, como coloca RICOEUR (1991,
P. 263) “estabelecer a reciprocidade aí onde reina a falta de reciprocidade”, de forma
a resgatar a reciprocidade nas relações interpessoais.

15
Podemos notar, finalmente, que a noção ética de solicitude preenche a lacuna
deixada pelo discurso da ética aristotélica em relação a segunda pessoa porque
devolve ao predicado “bom” sua teleologia interna, na medida em que o passa a
conjugar nas três pessoas da ética, a saber: como estima de si na primeira, como
solicitude na segunda e como senso de justiça na terceira.
E a noção de respeito devolve, por seu turno, a teleologia interna às três
pessoas da deontologia ao atribuir “obrigações” morais específicas a cada uma
delas. A primeira pessoa deve seguir as regras do respeito de si, a segunda pessoa
as do respeito ao outro, e a terceira tem de respeitar os princípios da justiça.
A dialética entre teleologia e deontologia, destarte, considerada por um sujeito
moral em situação, tem de levar à convicção adequada para orientar as decisões
nos casos particulares. Esses casos atípicos ou limite acabam num certo momento
por tornar-se uma forma de gerir realidades que são, contudo, mais complexas.
Assumimos, destarte, que os casos-limite (intrínsecos à casuística) serão uma
espécie de meio de observação dessa dialética entre ética e moral caracterizada no
julgamento em situação singular, o locus da convicção e da sabedoria prática,
radicada não mais em um sujeito transcendental, mas situado no mundo e
interessado na reciprocidade necessária para com a segunda pessoa, de acordo
com critérios de equidade exigidos para preservar completude na relação curta, com
e para o outro.
Nosso objetivo, por fim, é demonstrar que solicitude e respeito à luz da
articulação ricoeuriana entre teleologia e deontologia cumprem com a exigência de
um pensamento que se volta cada vez mais e decididamente para equilibrar a
assimetria radicada na esfera da segunda pessoa, restituindo-lhe a dignidade.
Para respaldar nossa tese, dividimos a pesquisa em cinco capítulos, em
aproximação aos temas elencados na descrição do problema, mantendo como pano
de fundo a dialética entre solicitude e respeito que devolve o reconhecimento a
segunda pessoa da ética e a reciprocidade na relação interpessoal.
No primeiro capítulo fizemos, preliminarmente, algumas anotações inaugurais
acerca do rigor do formalismo de Emmanuel Kant, sobre o qual Ricoeur elabora uma
proposta alternativa, pensando que em torno mesmo do princípio universal encontra-
se a visada ética.

16
As criticas que nosso filósofo faz à Kant são: (1) a limitação dos sistemas
normativos morais, numa aplicação cega das normas universais, que terminam mais
por criar embates do que superá-los; (2) o formalismo não reconhece a capacidade
de iniciativa da pessoa, a capacidade de preferir e de agir segundo a preferência; (3)
a cega obediência à lei, que pode ser análoga à cega crença religiosa e, nesse
sentido, trazer à tona posturas dogmáticas e autoritárias; (4) sua ideia de
humanidade, que deixa de lado a segunda pessoa da ética; primeiramente, ao
afirmá-la como espelho da primeira e em seguida, ao diluí-la na fria impessoalidade
sem rosto da terceira.
No momento seguinte, passamos para o tópico da exposição e da análise de
cada uma das duas formulações da petit éthique de Ricoeur. Examinamos os dois
esquemas, a maneira como o filósofo arranja cada um e, por fim, no que isso implica
para nosso estudo. A primeira parte refere-se à ética de O Si-mesmo, aprofundando-
se os estudos sete, oito e nove da obra. Veremos de que maneira a pequena ética
ricoeuriana abarca a ética teleológica de Aristóteles e a moral deontológica de
Emanuel Kant. A pequena ética de Ricoeur sugere então, que se faça uso, ao
mesmo tempo, da virtude e do dever, da constante reflexão que a ética e a moral
impõem ao ser humano capaz de agir, que se reconhece como autor e como
responsável de e por suas ações e que, além disso, está ciente das consequências
de seu agir, que não é e não pode ser isolado do outro e da comunidade.
Na segunda parte, refletimos sobre a ética d’O Justo 2, especialmente
disposta nos artigos Da moral à ética e às éticas e A tomada de decisão no ato
médico e no ato judiciário. Nessa leitura, poderemos constatar que Ricoeur atrela o
conceito de justo à intenção ética da vida boa.
Por um lado, diz ele, o justo tem a ver com o bom, quando ele estende ao
domínio social a força da intenção ética. Por outro lado, ele remete ao legal, que
deve reinar na construção dos sistemas jurídicos. A justiça não é somente a regra
formal da repartição, que permite o bom desenvolvimento das relações humanas,
mas, antes de tudo, um sentido de justiça. O justo, dirá Ricoeur, ressurge no
caminho que remonta da obrigação moral ao desejo raciocinado e ao querer viver
bem.
Notaremos que nosso autor realiza uma espécie de revisão da ética d’O Si-
mesmo como outro deslocando o estágio da moralidade, colocando-o em posição
antecessora às éticas regionais.

17
Além disso, Ricoeur mostra que o reino da ética pode se desdobrar entre uma
ética fundamental, ou anterior, e um conjunto de éticas regionais as quais se refere
como éticas posteriores. É a ética distribuindo-se entre campos dispersos de
aplicação, tais como a ética médica, a ética judiciária, a ética dos negócios, a ética
ambiental, correspondendo à etapa do juízo moral em situação na ética do Si-
mesmo como outro.
Encerramos essa primeira divisão, entendendo que quaisquer dos esquemas
de Ricoeur servem de para o propósito de corrigir as deficiências no tratamento da
segunda pessoa, substituindo-se o face a face conflituoso pela reciprocidade e pelo
reconhecimento.
O segundo capítulo retoma de forma direta a temática dos casos-limite
relacionando-os com nossa discussão. Inicialmente, justificamos a opção pela
expressão casos-limite, seja porque retoma a “boa casuística”, seja porque Ricoeur,
para falar no jogo entre solicitude e respeito, em O Si-mesmo como outro, também
retoma e analisa, a partir da tragédia, casos de vida inicial e vida terminal.
Realizamos uma espécie de varredura nas obras do autor, comprovando-se que, ao
dedicar-se a esse estágio de enfrentamento e deliberação do conflito moral, desses
momentos perturbadores e de escolha difícil, Ricoeur utiliza terminologias diversas,
notando-se que ainda que possuam significados diferentes, todas representam a
conjuntura do julgamento moral em situação, impondo a tomada de decisão, uma
escolha difícil e/ou a invenção de uma regra – pressupondo-se constantemente o
chamamento e o olhar mais solícito para com a segunda pessoa.
No mesmo tópico, iniciamos a reflexão por meio dos conceitos de ação,
prudência e decisão, tão prezados por Ricoeur. Abordamos também o trágico e o
conflito. E em conclusão, tomamos a casuística em Ricoeur por ferramenta de
grande valia na formação do posicionamento ético e do processo de tomada de
decisão racional diante do embate, pois indica uma reflexão genuína. Tudo com o
intuito de auxiliar na formação da argumentação, do posicionamento ético e da
escolha final. Nossa posição é favorável à ideia de que a casuística valoriza mais a
situação e a pessoa (a segunda pessoa) constantemente relacionada. E o objetivo
principal é demonstrar, por meio de dois exemplos de casos-limite, que serão
expostos ao final da pesquisa, uma solução à maneira ricoeuriana.

18
O terceiro capítulo é uma retomada da ideia de pessoa em Ricoeur.
Poderemos compreender o que o autor entende por pessoa e como, a partir daí,
desenvolve uma verdadeira filosofia voltada à pessoa, na esteira, sobretudo, de
Emmanuel Mounier e Eric Weil.
Nosso filósofo desacredita a ideia de pessoa na dualidade cartesiana. Para
ele: (1) a pessoa é um todo unificado entre encarnação e vocação. Introduzindo o
conceito de encarnação, emprestado de Gabriel Marcel, Ricoeur quer mostrar que a
pessoa é um todo unificado, é carne e concomitantemente, é vocação livre, é um
corpo entre os corpos, que cria algo no mundo, que é presença voltada para o
mundo; (2) a pessoa reivindica certo ato e assume a responsabilidade por ele; (3) a
pessoa é dotada de alteridade, solidariedade, de senso de comunhão com o outro;
(4) a pessoa é atitude, na perspectiva de Eric Weil e, igualmente, crise/engajamento
a partir de Landsberg, acrescentando-se aí as decorrências indispensáveis de
fidelidade no tempo a uma causa superior, aceitação da alteridade e da diferença na
identidade; (5) a pessoa, no horizonte da semântica e da pragmática, é identificada
como particular de base, ao modo de Peter Strawson e, considerando-se todas
essas perspectivas (6) a pessoa é conformada por quatro estratos: linguagem, ação,
narrativa, vida ética.
Em seguida, justificamos, com Ricoeur, porque ele inaugura o cogito ferido
em oposição ao cogito exaltado de Descartes. O sujeito não é autoconsciente, nem
um eu todo poderoso. Em Ricoeur o sujeito se configura, conforme o modelo
cartesiano, pela união do ser e do ato e a atribuição do ato ao ser, na acertada
conjugação entre o ser e o agir; e, ao mesmo tempo, na suspeita de Nietzsche, com
uma metodologia de interpretação que permite desmascarar a falsa consciência e as
ilusões da soberania do sentido. Veremos ainda, que Ricoeur caminha da
fenomenologia hermenêutica da pessoa para a hermenêutica do si-mesmo, que
liberta o ego das filosofias do sujeito, abrindo-o para o mundo.
A forma reflexiva “si-mesmo” (soi même), diferentemente do eu [je], além de
carregar consigo o que o autor chama de “amplitude onitemporal”, possui um valor
de reflexivo onipessoal, pois pode assim, estar-se referindo a quaisquer das pessoas
gramaticais. Nesse sentido, confirma-se que aqueles quatro estratos conformam
uma ideia mais enriquecida de pessoa, restando delineadas as quatro maneiras de
responder às perguntas: quem fala? Quem atua? Quem narra? Quem é o sujeito
moral de imputação?

19
Confirmamos que o conceito de pessoa, para Ricoeur, é o que melhor
considera a subjetividade e a intersubjetividade, a corporeidade, a espiritualidade, a
afetividade, os valores, a comunidade e a ética. O termo pessoa não descreve
somente um indivíduo de fato, mas é um conceito prescritivo de ordem ético jurídica.
As dimensões da pessoa, refletidas a partir de Ricoeur, permitem, justamente,
salvaguardar a alteridade e a dignidade do humano e despertar para a importância
da ética nas relações intersubjetivas – perspectiva imprescindível para o
desenvolvimento da tese.
No tópico seguinte, iniciamos com a tese ricoeuriana da liberdade como
fundamento inicial da moral. A intenção ética é a intenção de liberdade, repartida
entre as três pessoas da ética: o si-mesmo, o tu e a instituição ou, respectivamente,
à identidade, à alteridade e à igualdade. Cada uma das três pessoas da ética
ricoeuriana, sujeitos que agem e sofrem e aos quais se pode imputar
responsabilidades no plano moral serão definidas, restando necessário que cada
uma delas se reconheça como sujeito livre e capaz, componentes das relações
interpessoal e institucional.
A problemática da pessoa se identifica, no campo da ação, com a
problemática do quem?. Pretendemos identificar o quem? da ação e da ética, o
agente/o paciente que age e sofre para, conforme nosso autor, preservar a força do
face a face e, concomitantemente, o lugar de cada um sem rosto – da identidade e
da diferença.
No quarto capítulo, a reflexão tem início com a análise do texto Simpatia e
Respeito, que inaugura uma abordagem ética mais profunda sobre a segunda
pessoa. O propósito primeiro é provar que nem a fenomenologia de Husserl e
Scheler, nem as teorias de deposição do outro dão conta do problema da segunda
pessoa. Mas ambas têm lugar em potencial num esquema dialético de compreensão
da alteridade. Nosso percurso vai de uma análise mais curta da categoria da
simpatia, considerando-se que posteriormente nosso autor a substitui pela solicitude
no esquema ético.
A análise do artigo de 1954 mostra-se importante, principalmente, no que toca
à categoria do respeito, retomado nos Estudos de O Si-mesmo como outro para
configurar a petit éthique.

20
E merece destaque também pela afirmação de Ricoeur quanto ao estatuto de
existência-valor da pessoa. Salve-se, de igual modo, a constatação de que não há o
reconhecimento da segunda pessoa em sua singularidade e seu vivido, naquilo que
o filósofo chama de duplo enigma: a estranheza e a semelhança da subjetividade,
ou seja, a aparência de um outro que é ao mesmo tempo a aparência de um
semelhante. Ricoeur demonstra, nessa obra, que o respeito é a ponte de passagem
da constituição da coisa para a constituição da pessoa.
Em seguida, avançamos na linha do respeito como um sentimento a priori em
Kant, tentando compreender a ideia [complexa] de humanidade e de pessoa como
fim em si, central para dar suporte aos argumentos ricoeurianos.
O tópico subsequente vai tratar da categoria da solicitude, pensada para
ocupar o lugar antes reservado à fenomenologia dos sentimentos, destacadamente,
a fenomenologia da simpatia. Os motivos dessa substituição nunca foram
esclarecidos pelo autor, mas jugamos ter encontrado justificativa bem plausível para
que a simpatia tenha ficado para trás. A solicitude aparece nos estudos de O Si-
mesmo como outro e relaciona-se, assim como o respeito na relação dialógica do
segundo componente da petit éthique, ao “com e para o outro”. Para compreendê-la,
percorremos caminho semelhante ao que nosso autor fez na grande obra de 1990.
No quinto e último capítulo, esperamos corroborar a tese. Retomamos as
lacunas de que falamos ao longo do trabalho, deixadas pelas tradições filosóficas de
Aristóteles e Kant. Revisamos os conceitos de solicitude e respeito, de autonomia,
segunda pessoa, capacidade, insubstituibilidade, todos tendo em conta a visada da
vida boa. Procedemos à avaliação da relação interpessoal na perspectiva do
filósofo, recordando as anotações que faz acerca da alteridade. E, por fim, a partir
de dois casos-limite elencados em O Si-mesmo como outro, que contribuem melhor
para a compreensão da proposta de Ricoeur para uma ética da segunda pessoa,
veremos resgatada a reciprocidade na relação com e para o outro, demonstrando-se
que a solicitude adicionada ao respeito, possibilita compreender o outro em sua
alteridade, evitando-se preconceito, violência e injustiça.

21
1 ÉTICA E MORAL EM RICOEUR: DISTINÇÃO NECESSÁRIA, ANTAGONISMO
PREJUDICIAL

1.1 ANOTAÇÕES INTRODUTÓRIAS SOBRE A MORAL KANTIANA EM RICOEUR

“Não quero que se reduza a Ética à moralidade do dever.


A Ética tem raízes no desejo de realização”.
Paul Ricoeur

Pode-se afirmar que o paradigma deontológico kantiano não se ocupa com o


que se deve fazer para se ter uma vida boa ou feliz – em comparação com o
paradigma teleológico aristotélico – mas sim com a maneira como se deve agir para
que a ação seja correta ou, em uma palavra, para que a ação seja moral. Associada
a esse conceito de dever de Kant, encontra-se a questão da universalização como
um dos aspectos centrais para a justificação ou validação de normas morais. A
proposta kantiana de fundamentação racional de normas morais é uma das
primeiras, senão a primeira, a enfatizar o aspecto universal da moralidade. O que é
válido para um deve valer igualmente para todos ou não vale como princípio moral.
A bibliografia produzida acerca do imperativo categórico como princípio
universal de fundamentação racional de normas é ampla e se mostra, em sua
maioria, favorável à proposta kantiana. Ricoeur, por sua vez, elabora uma proposta
alternativa ao rigor do formalismo e ao universalismo de Kant e pensa que ligado à
filosofia kantiana e em torno mesmo do imperativo categórico encontramos o desejo
de viver bem.
Para o filósofo francês, a moral Kantiana é de extrema importância ao assumi-
la como locus de compreensão dos limites do agir humano1. Todavia, nos adverte
sobre a possibilidade de o formalismo rigoroso de Kant ser um modelo ético que
pretende que se garanta a universalidade das normas sem considerar que princípios
abstratos nem sempre se ajustam as nossas visões subjetivas, gerando, portanto,
conflitos2 de toda ordem. Dito de outro modo, a crítica ricoeuriana surge da

1
O “[...] modelo de Aristóteles não é suficiente, pois existe a violência e o mal que necessitam da
norma moral como força balizadora do agir humano. A moral de Aristóteles surge aos olhos de
Ricoeur como incompleta, isto é, necessita da regulação dos sistemas normativos que o pensamento
de Kant vem mais tarde introduzir”. (ABREU, 2015, p. 43).
2
“Para Ricoeur o formalismo das normas, através do seu pendor universalista, acaba por suscitar
desacordos, quando as normas são aplicadas à singularidade de cada caso. As dúvidas de Ricoeur

22
observação dos inúmeros conflitos que a aplicação da norma moral pode criar: a
aplicação geral da norma moral aos casos – sobretudo àqueles casos-limite dos
quais trataremos – parece não atentar às características de cada indivíduo (a
alteridade3) ou à especificidade de cada situação. As máximas sugeridas por Kant,
universais e válidas para todos os homens, sugerem a incapacidade de se adaptar à
singularidade de determinadas circunstâncias.
Consequentemente, essa deficiência dos sistemas normativos morais, numa
aplicação cega das normas universais, mais criam (ou agudizam) embates do que
os superam. Numa perspectiva semelhante, a contenda aqui é entre a pretensão
universalista da regra de justiça e as suas limitações contextuais. A lei é sempre
algo de geral e universal, mas existem casos a respeito dos quais é impossível
enunciar de modo acertado um princípio universal. Conforme compreende Ricoeur,
“a razão disto é que a lei é sempre algo geral e há casos específicos para os quais
não é possível formar um enunciado geral que a eles se apliquem com certeza”
Aristóteles (1992 apud RICOEUR, 1995b, p. 173).
Não bastasse, esse mesmo formalismo das máximas acaba por não
reconhecer a capacidade de iniciativa da pessoa, a capacidade de preferir e de agir
segundo essa preferência. Esta é uma crítica que Ricoeur faz à medida que o
formalismo que as normas carregam tende a esquecer da aspiração ética como
base de sua constituição4. Vemos cada vez mais regras morais, mantendo,
entretanto, um hiato inerente ao campo particular, suprimindo direitos particulares
inerentes a cada cultura, a cada sociedade. Ao aplicar-se o modelo universal no
âmbito das comunidades e suas tradições particulares, é possível o surgimento de
grandes desigualdades e injustiças. Neste sentido, parece pertinente encontrar um
caminho de equilíbrio entre o universal e a tradição histórica 5, num processo que

surgem porque o formalismo presente nas normas cria, por vezes, mais conflitos do que as normas
pretendem suprimir”. (ABREU, 2015, p. 47).
3
A alteridade pode ser caracterizada pela relação de uma pessoa com outra ou entre um grupo de
pessoas, onde se faz necessário aceitar as diferenças ali existentes, isto é, compreender as
diferenças e aprender com elas por meio do respeito ao outro, a pessoa como ser humano
psicossocial.
4
“O desejo ético teleológico que é apresentado por Ricoeur através do pensamento de Aristóteles
necessita sempre de ser complementado pela relação com a moral deontológica que Kant propõe. A
meu ver, este é um dos grandes contributos do modelo de pequena ética de Ricoeur, a importância
da mediação do plano da ética com a moral. Aqui está presente a relação do pensamento Aristóteles,
do seu quase-formalismo, com o já completo formalismo da moral deontológica de Kant. Os dois
planos necessitam da sua relação”. (Ibid, p. 42).
5
“A superação das oposições entre religiões e culturas distintas não pode consistir em uma
unificação niveladora, que reduz todas a um parâmetro único. Supõe o reconhecimento mútuo do

23
compreenda a importância de respeitar as particularidades inerentes a cada
coletividade histórica, pois, estas são a fonte da sua efetivação. Só assim será
possível moderar os conflitos associados aos sistemas normativos6.
Tacitamente, a posição formalista do pensamento Kantiano também traz
consigo certa proibição do prazer e da felicidade. Para Ricoeur, a herança
deontológica kantiana “se caracteriza como uma pretensão à universalidade por um
efeito de constrangimento” (RICOEUR, 1991, p. 200) advindo do uso da razão. Em
Kant, a razão não nos foi dada com o objetivo de proporcionar a felicidade, essa
“fraqueza” baseada na satisfação de nossas inclinações e necessidades. Ocorre que
tal concepção nos deixou de herança a sensação de embaraço ou culpa diante dos
sentimentos de contentamento, sorte, deleite. Nesse sentido Hugo Valente de Abreu
(2015, p. 48) afirma que a moral kantiana é “certamente herdeira de posturas mais
teológicas”, fazendo-nos, assim como a moral cristã, sentir culpa quando
experimentamos sensações de alegria.
Só para ilustrar, Stan Van Hooft (2013, p. 223), depois de perceber que “Um
grande número de debates em bioética está centrado na noção de “santidade da
vida humana” conclui que a noção de dever, tomada por Kant como um dado e que
ele considerou como respeito pela lei, “é um descendente direto da ideia de
obediência à lei de Deus”, o que enfatiza a obrigação (deontologia) no lugar da
virtude (teleologia).
Decisões morais ou jurídicas tomadas em relação ao aborto, à eutanásia, à
clonagem humana, àquelas questões pertinentes ao campo da bioética são
tomadas, em principio, por sujeitos que não costumam se assumir como crentes ou
religiosos7, porém, que terminam por invocar a ideia teológica advinda do uso da

melhor dessas tradições, de modo que cada uma renuncie à posse da verdade, compreendendo que
o fundamental passa também por outras [culturas, está além] de suas ‘múltiplas’ oposições,
alcançando, assim, denominadores éticos comuns, através da razão. Os obstáculos a serem
superados, para que se possa alcançar esse mínimo ético, são: o da pretensão, em cada cultura, à
posse da verdade ou a afirmação de uma verdade única, pois a verdade é plural; o da violência no
plano da linguagem, pela ruptura de pactos e pela desconfiança na palavra do outro; o da violência
no plano da ação, que leva a atentar contra a ‘integridade física e psíquica dos outros’; o da violência
no plano das instituições, que se expressa pela ‘guerra de uns contra os outros’; os conflitos
econômicos e políticos”. (MARCONDES CESAR, 2010, p. 52).
6
“O universalismo da teoria da justiça requer como complemento o reconhecimento das condições
históricas de sua aplicação”. (RICOEUR, 2008b, p. 276).
7
“Essas pessoas vão dizer que estão referindo-se ao “direito à vida”. Elas estão afirmando que todos
os seres vivos têm o direito de ter a sua vida respeitada e protegida, e que cada agente responsável
tem o dever de proteger, e até mesmo melhorar, a vida dos seres humanos. Dessa maneira, será
sugerido que a noção de “santidade” não pertence a um discurso teológico, mas a um discurso moral
que gira em torno de noções tais como “direito”, “deveres”, “obrigações” e “princípios morais” [...].

24
expressão “vida sagrada”, noção que propaga uma proibição irrestrita e universal
contra a interrupção da vida e permanece central na reflexão ética que realça o
dever e a obrigação ao invés da virtude. Ela pertence a um discurso de moralidade
concebido como um conjunto de imperativos universais, determinados e irrefutáveis,
“que têm o seu fundamento ou nos mandamentos de Deus (teoria do mandamento
divino), ou na natureza humana (teoria do direito natural), ou na razão (deontologia
kantiana)”. (ABREU, 2015, p. 223).
Todavia, a simples obediência à lei parece usurpar “a consciência sensível do
que está em causa em situações moralmente difíceis”. (ABREU, 2015, p. 228). O
que pode ser ilustrado pelo atual quadro social, histórico, cultural predominante,
sobretudo, na América: de retomada de crenças fundamentalistas, racistas e
preconceituosas, posturas dogmáticas e autoritaristas, fazendo “morrer” os valores
democráticos e porque não dizer, sensíveis8.
Acerca da simples obediência à moral, Ricoeur faz uma importante
observação: “[...] o que está fundamentalmente em jogo na perspectiva da
moralidade é, precisamente, um posicionamento do desejo de viver bem”.
(RICOEUR, 1994, p. 01). Desse modo, o pensamento de Kant assume, em Ricoeur
e através do respeito pelas máximas universais, uma nova configuração: a de
encontrar a realização do bem comum e não, apenas, a subordinação absoluta aos
imperativos universais. A vida boa com e para os outros em instituições justas, que
soa também como um ideal democrático, só é possível com a mediação (necessária)

Historicamente falando, pode-se argumentar que o nosso discurso moral é uma continuação desse
discurso teológico em forma secular”. (ABREU, 2015, p. 224).
8
Sobre a afirmação da atual retomada de valores autoritaristas e anti-democráticos vide a obra Como
as democracias morrem, de Daniel Ziblatt e Steven Levitsky. Ambos são professores de ciência
política da Universidade de Harvard. Levitsky encabeça a pesquisa na América Latina e em países
em desenvolvimento, enquanto Ziblatt estuda a Europa do século XIX. Com a recente eleição de
Donald Trump, os dois professores uniram seus conhecimentos para realizar, no livro, uma análise
sobre o enfraquecimento das democracias ao redor do mundo na atualidade, comparando o caso de
Trump com exemplos históricos de rompimento da democracia nos últimos cem anos: da ascensão
de Hitler e Mussolini, nos anos 1930, à atual onda populista de extrema-direita na Europa, passando
pelas ditaduras militares da América Latina dos anos 1970. Os autores ainda alertam para o fato de
que a democracia contemporânea não termina com uma ruptura violenta nos moldes de uma
revolução ou de um golpe militar. Mas a escalada do autoritarismo, por seu turno, se dá com o
enfraquecimento lento e constante de instituições críticas – como o judiciário e a imprensa – e a
erosão gradual de normas políticas de longa data. “Mesmo tendo enfoque no caso dos Estados
Unidos, pode ser utilizado como referência para entender o processo de subversão democrática
contemporâneo em outros países, inclusive no Brasil”. (DYER e SOTER, 2018, p. 334).

25
entre o desejo ético de viver bem9 e o universalismo – tácito na Teoria de Justiça de
John Raws – que o pensamento moral de Kant tanto almeja.
É em Aristóteles, nos mostra Ricoeur, “que se encontra um discurso
estruturado sobre a práxis, que faz muita falta em Kant. Tudo se baseia no conceito
de proaíresis, capacidade de preferência racional”. (RICOEUR, 2008b, p. 53).
Igualmente, os sistemas normativos não podem jamais fugir ao contributo originário
da ética e de sua propensão teleológica de viver bem em harmonia com os outros
em sociedades justas.
Em resumo, Ricoeur afirma que, mesmo em dias atuais, quando relemos os
escritos aristotélicos, somos levados a pensar que o debate público e a tomada de
decisão que dele resulta constituem a única instância habilitada a “corrigir a
omissão”, que ele chama agora de “crise de legitimação”. (RICOEUR, 1991, p. 306).
A moral normativa tem de ser equilibrada pela ética da vida boa, de forma a
encontrar prudência na sua aplicação – no que nosso autor vê a oportunidade para
introduzir, entre a obrigação e o formalismo, a terceira parte da sua petit éthique,
relativa, então, à sabedoria prática10.
A sabedoria prática ou o terceiro nível da tese de Ricoeur apresenta-se já
como uma tentativa de analisar com o auxílio da prudência a singularidade de cada
caso e alcançar o ideal de justiça para todos. Nosso filósofo acredita que a
passagem da visada ética sob o crivo da norma fortalece os próprios princípios da
moral e auxilia na supressão dos conflitos que surgem das próprias normas
deontológicas aplicadas ao caso concreto, como já havíamos referido inicialmente.
“A ética já enriquecida pelo peso moral normativo permite auxiliar na resolução das
discórdias que derivam do formalismo das normas”. (ABREU, 2015, p. 47). A origem
de tais discórdias está ligada tanto a uma crise de valores generalizada no seio
social, quanto a um fanatismo exagerado das normas morais: “guerra de valores ou
guerra de comprometimentos fanáticos, o resultado é o mesmo, a nascença de um
trágico da ação sobre o fundo de um conflito de deveres” Ricoeur (1991 apud
ABREU, 2015, p. 52) – problemática assaz contemporânea.

9
“Para mim, o segundo componente desse desejo de viver bem é o outro ou um outro, já sempre
nele implicado. Um outro, próximo nas relações de amizade ou de amor ou um outro longínquo, que
não é o íntimo, mas que surge numa relação profissional, por exemplo, e, portanto, numa forma de
relação mediada por instituições”. (RICOEUR, 1994, p. 01 e p. 02).
10
A ideia de uma moral normativa kantiana equilibrada pela ética da vida boa será analisada no
tópico seguinte deste capítulo, com a revisão das formulações da pequena ética ricoeuriana,
mormente na ética de O Justo 2.

26
O plano do trágico da ação permite a compreensão do conflito latente entre a
normatividade e o desejo do indivíduo, ou seja, entre a universalidade e a
singularidade11. Segundo o pensamento ricoeuriano, a sabedoria prática pretende
encontrar o equilíbrio entre o desejo ético singular e o critério de universalidade das
normas morais. Dito de outro modo, a possibilidade de conflito surge porque a
alteridade das pessoas mostra-se inconciliável com a universalidade das regras que
subentendem a ideia de humanidade, numa condenável cisão em respeito à lei e
respeito às pessoas.
Adiante, no texto, poderemos ratificar que em O Justo, nosso autor conclui
que nenhuma convicção moral tem força sem a pretensão à universalidade.
Entretanto, “devemos nos limitar a dar sentido de universal presumido àquilo que se
apresenta inicialmente como universal pretendido”. (RICOEUR, 2008b, p. 279). O
universal pretendido busca o ideal de reconhecimento 12 “com valor universal
concreto” e o universal presumido, “o reconhecimento por todos”, numa pretensão
de universalidade “oferecida à discussão pública” (RICOEUR, 2008b, p. 279),
conciliando-se o nível da moral abstrata com o da sabedoria prática: universalismo e
contextualismo. O plano universal da obrigação atravessa o plano histórico (singular,
contextualizado) da aplicação valendo-se dos recursos de uma ética das virtudes
que se não resolve, pelo menos atenua “as aporias provocadas pelas exigências
desmedidas [...] de uma teoria da discussão que conte apenas com o formalismo
dos princípios e com o rigor do procedimento”. (RICOEUR, 2008b, p. 280).
Diante disso, justifica-se a escolha por essas anotações – em detrimento de
anotações preliminares acerca da teleologia aristotélica – enfatizando-se, conforme
explicitado desde o problema de tese, que muito da temática da violência, tão latente
no pensamento de Ricoeur está ligado, desde logo, à simples aplicação do
formalismo da lei, ao modo de Kant.

11
Numa perspectiva semelhante, a contenda aqui é entre a pretensão universalista da regra de
justiça e as suas limitações contextuais. A lei é sempre algo de geral e universal, mas existem casos
a respeito dos quais é impossível enunciar de modo acertado um princípio universal. Disso resulta
uma ruptura entre as regras morais e o particular, suprimindo direitos particulares inerentes a cada
cultura, a cada sociedade. Ao aplicar-se o modelo universal no âmbito das comunidades e suas
tradições particulares, é possível o surgimento de grandes desigualdades e injustiças, pois não se
leva em consideração a especificidade, o não universal.
12
A ideia de reconhecimento a qual nos referiremos e assim será inúmeras vezes no decorrer do
trabalho de tese é a ideia de reconhecimento de Ricoeur (2014, p. 347): “Reconhecimento é uma
estrutura do si que se reflete sobre o movimento que leva a estima por si mesmo em direção à
solicitude e esta em direção à justiça. O reconhecimento introduz a díade e a pluralidade na própria
constituição do si. A mutualidade na amizade, a igualdade proporcional na justiça, refletindo-se na
consciência de si mesmo, fazem da própria estima por si uma figura do reconhecimento”.

27
A concepção moderna de justiça, tão apartada da concepção antiga de bem
não nos permitiu desenvolver grandes progressos morais, deixando à comunidade
pós-moderna o desafio de reatar o ideal de liberdade individual com o ideal de
espaço político democrático. Nesse sentido, reafirmamos que o modelo da pequena
ética parece ser fundamental para compreender como aplacar os fenômenos
contemporâneos de hostilidade que estão aí, tão próximos e cada vez mais comuns
em nosso mundo. Passemos, portanto, no próximo tópico, a nos familiarizar com a
perspectiva ética de Paul Ricoeur.

1.2 A PEQUENA ÉTICA E SUAS DUAS FORMULAÇÕES

“Desligado da Regra de Ouro, o mandamento de amar os próprios inimigos não é ético, mas
supra-ético, como toda a economia do dom ao qual ele pertence. Para não tender ao não-
moral, até mesmo ao imoral, ele deve reinterpretar a Regra de Ouro e, ao fazer isso, também
ser reinterpretado por ela”.
Paul Ricoeur

Não é novidade afirmar que a Ética além de esclarecer de modo reflexivo o


campo da moral, também serve de guia para quem pretenda agir racionalmente no
conjunto de sua vida. Dito de outro modo, a partir da Ética é possível pensar sobre a
bondade ou a malícia das intenções, dos atos e das consequências implicados no
agir humano.
Apesar de Paul Ricoeur admitir que não “[...] há verdadeiramente uma ética
bem articulada” Ricoeur (1995 apud HELENO, 2001, p. 24) em seu trabalho13, o
autor desenvolve a temática da ética em numerosos estudos singulares14. Seguindo
certa ordem cronológica15, não é demais recordar de Simpatia e Respeito:
fenomenologia e ética da segunda pessoa e Moral sem pecado ou pecado sem
moralismo? ambos de 1954, Moral de classe, moral universal (1963), O problema do
fundamento da moral (1975), Fundamentos da ética (1984), Depois da lei moral: a

13
“Para elucidar a maneira pela qual Ricoeur aborda os problemas relativos à ética, faz-se necessário
destacar que a inserção de seu pensamento nas discussões contemporâneas sobre a ética não se dá
de forma direta e sistemática, embora tal problemática encontre referências em quase toda a obra do
filósofo. Mesmo nos textos do início da carreira, como sua tese de doutoramento, a primeira parte de
sua filosofia da vontade, intitulada Le volontaire et l’involontaire, aproximam-se da temática da ação
humana”. (VIEIRA, 2013, p. 45).
14
Como bem observa Paulo Gubert (2014, p. 82), existem outros textos e muitas entrevistas nas
quais o autor retoma questões fundamentais da ética e da ética aplicada.
15
Em conformidade com a lista de artigos [list de articles] constante do Fonds Ricoeur, disponível em
http://www.fondsricoeur.fr/uploads/medias/doc/liste-articles-pr-fr.pdf. Acesso em: 18 mar 2019.

28
ética (1985) e a não menos especial entrevista Agir, diz ele (1988).
Domenico Jervolino (1998 apud CORÁ, p. 334) entende que Ricoeur é
original, pelas análises e pesquisas que faz em relação às múltiplas modalidades da
ação e do discurso, esses dois segmentos de uma hermenêutica fenomenológica
com predominância ético-existencial, capaz de revelar todos os elementos de
mediação frágil, mas caros às relações entre o ser e o mundo, entre desejo e fala,
entre o si e a alteridade, investigando-se “as entranhas que constituem a
interioridade desse homem que age e sofre”.
Michel Renaud (2013, p. 82), por sua vez, observa que a partir de 1988,
nosso autor deixa de caracterizar sua filosofia pelo cariz estritamente hermenêutico.
Em entrevistas, conferências, textos e livros publicados ao longo de toda a década
de 1990, Ricoeur firma sua ética em uma base mais larga, situada no seio de seu
ensinamento filosófico. Podemos notar já pelos títulos: A ética, a moral e a regra
(1990), Ética e moral (1990), O Si-mesmo como outro (1990), Para uma ética do
compromisso (1991), O caminho para o si (1991), Da metafísica à moral, Moral, ética
e política, A ética, a política e a ecologia, todos os três de 1993, A ética, entre o mal
e o pior (1994), O Justo (1995) e Conhecimento de si e ética da ação (1996), entre
outros.
Destarte, é possível afirmar que as obras de 1990 foram igualmente um
marco e um desafio no que tange à ética: além das questões do bem e do mal, da
origem da moral, das decisões entre o bom e o melhor, da distinção entre uma moral
objetiva e uma moral subjetiva; nelas o autor desvenda as múltiplas capacidades do
ser humano e aprofunda a questão da imputabilidade, da disposição do homem
capaz de responder por seus atos.
Conforma-se a notável petit éthique16, articulando as clássicas tradições
aristotélica (teleologia) e kantiana (deontologia) e permitindo ao agente moral uma
autonomia adequada a cada contexto da ação, ao mundo da vida.
Cabe observar que apesar de a petit éthique ter sido inaugurada no ensaio
Ética e moral 17 – dividido em três partes intituladas: o desígnio ético, a norma moral

16
Marcus Penchel traduz David Pellauer, fazendo uso do termo “ética menor” no lugar de “pequena
ética”. (PELLAUER, 2009, p. 197). Importa observar que de todas as obras e textos utilizados para a
elaboração da presente tese, esta é a única não se refere à ética de Ricoeur como pequena ética.
17
Nesse texto, na primeira nota de rodapé, consta: “’Ethique et Morale’ [Confer. au Colloque org. par
l’Institut Catholique de Paris sur le theme ‘L’Ethique dans le debat publique’, 1989], in Revue de
l’Institut Catholique de Paris 34 (1990) pp. 131-142; reprod. dans ‘Ethique et morale’, in Revista

29
e a sabedoria prática18 – ela é costumeiramente abordada pelos estudiosos a partir
de O Si-mesmo como outro. Ganha notoriedade integrando, como é amplamente
sabido, um total de dez estudos que conformam a hermenêutica do si e que
possuem unidade temática em torno do agir da pessoa humana. Contudo, ainda que
Ricoeur mantenha a mesma ordem da tríade e praticamente o mesmo conteúdo dos
três capítulos compreendidos naquele ensaio – Ética e Moral –, a pequena ética de
O Si-mesmo como outro, desdobrada agora nos estudos sétimo, oitavo e nono, é
renomeada, certamente adequada à questão central do livro, que é a ipseidade do
ser humano19. A cada uma das três partes correspondem, então, novos títulos: o si e
a visada ética, o si-mesmo e a norma moral e o si-mesmo e a sabedoria prática: a
convicção.
Vale destacar que no grande livro de 1990 a ética de Ricoeur realiza uma
espécie de mediação entre a antropologia filosófica – articulada nas três
modalidades do homo capax (capaz de falar, capaz de agir, capaz de se narrar,
capaz de imputabilidade) – e a ontologia, mostrando que juntas elas firmam o solo
no qual se assenta o debate ético. A respeito disso, Renaud (2013, p. 82) comenta
que enquanto na tradição clássica o ser precede o agir, no Ricoeur de 1990, a
ontologia sucede a ética em vez de precedê-la, o que lhe confere um ritmo bastante
específico, marcado entre outras, pelas categorias do testemunho20 e da
atestação21, contribuindo para uma ética um tanto quanto peculiar.
Além disso, a ética ganha primazia sobre a moral: arranja a anterioridade da
perspectiva teleológica da vida boa e da felicidade em relação ao que se impõe
como dever e obrigação. A perspectiva ética é articulada em normas com pretensão
de validade universal e com efeito de constrangimento e obrigatoriedade; e as
decisões morais, com base em valores recebidos do passado ou em novos valores

Portuguesa de Filosofia 46 (1990) 1, 5-17 [reed. in Lectures 1. Autour du Politique, Paris, Seuil, 1991,
pp. 256-269]”.
18
O texto Ética e Moral também está disponível em:
http://www.lusosofia.net/textos/ricoeur_paul_etica_e_moral_rpf1990.pdf. Acesso em: 23 jun 2019.
19
“[...] conforme mostra o autor, a questão ética é um desdobramento natural dos problemas relativos
à individualidade e à identidade pessoal. Como assinala Pellauer (2009), O Si-mesmo como outro
tem a medida de sua importância também pelo que ele expõe sobre a problemática ética, algo que
Ricoeur constrói sobre as discussões referentes à ipseidade. Esse desvio da investigação sobre o eu
pela esfera da práxis humana acontece porque “[...] o eu em questão é um agente capaz de agir e
responsável por seus atos, de modo que a questão ética tem que emergir”. (VIEIRA, 2013, p. 46).
20
Pode-se dizer que em Ricoeur, a identidade da pessoa produz-se a partir dos testemunhos do seu
agir, uma vez que ela (a identidade) é compassiva a interpretações diversas.
21
A atestação constante das capacidades da pessoa é um dos pilares da sua existência, sendo
possível analisá-la não como ser falível, mas ser capaz.

30
incorporados, são avalizadas por um sujeito autônomo, segundo a perspectiva da
vida boa, o que veremos de modo aprofundando mais adiante.
Posteriormente, em O Justo 2, de 2001, todavia, a pequena ética ganha nova
formulação. Ricoeur confessa que além de conceder a si mesmo a oportunidade de
expressar uma de suas mais antigas preocupações de professor, a saber: “[...] a
pouca importância dada em nossa disciplina às questões pertinentes ao plano
jurídico, em comparação com a atenção dispensada a questões referentes à moral
ou à política” (RICOEUR, 2008a, p. 01), deve elaborar uma reescrita da ética de O
Si-mesmo como outro. A pequena ética passa a conhecer, por conseguinte, uma
nova forma que, de acordo com o próprio Ricoeur (2008b, p. 49), é “um pouco mais
do que esclarecimento e um pouco menos do que retratação [retractatio]”.
A primeira diferença consiste em partir da moral, ao passo que, como visto
em O Si-mesmo como outro é a ética que inaugura o percurso. Entretanto, ainda
que haja consideráveis deslocamentos entre uma e outra das formulações, elas não
se anulam. Ao contrário, se complementam.
No entendimento de João Botton (2017, p. 153), em ambas a distinção entre
ética e moral e a articulação que essa distinção institui entre o ponto de vista
deontológico e o ponto de vista teleológico:

põe em jogo três instâncias de efetuação entre a prescrição e a descrição


das ações: 1) a instância ética de avaliação da ação de acordo com valores
fixados nas culturas particulares nas quais se inserem os agentes, sendo
esses valores determinantes das finalidades intrínsecas à ação; [...]; 2) a
instância de julgamento moral onde a ação se determina não mais de
acordo com o valor em relação à uma finalidade mas pelo obrigatório; [...];
3) a terceira instância constitui a instância de mediação de conflitos e diz
respeito às éticas particulares nas quais têm lugar divergências entre
deveres antagônicos, dada a impossibilidade do formalismo exigido pela
universalidade da norma abarcar todos os casos particulares.

O fato de começar agora pela moral parece ser uma tentativa de


compreender a relação entre o normativo e o obrigatório. A busca da vida boa é
substituída pela constatação empírica de encontrar em cada coletividade a presença
de normas e obrigações específicas, não universais. O que está por trás do desejo
de vida boa só se descobre passando pelo crivo do juízo moral e pela prova de
aplicação prática em campos de ação determinados. O reino da ética se desdobra,
então, entre uma ética anterior e fundamental e um grupo de éticas posteriores e
regionais, distribuídas entre campos dispersos de aplicação: medicina, justiça,

31
negócios, meio ambiente, como afirma o próprio Ricoeur 22.
Por hora, cabe anotar que embora sejam invertidas, ambas as elaborações da
pequena ética mantêm o clima de reconciliação entre Kant e Aristóteles, e essa
reconciliação, por sua vez, tende a corrigir as deficiências no tratamento da segunda
pessoa: tanto em O Si-mesmo como outro como em O Justo 2, nosso filósofo realiza
significativas ponderações, sobretudo, a partir da segunda formulação do imperativo
categórico de Kant.
No primeiro livro, Ricoeur destaca que essa segunda formulação do
imperativo edifica uma moral do respeito que traz a ideia de pessoa como limite ao
outro. Coisas e pessoas pertencem a categorias diversas, a dos meios e a dos fins,
respectivamente: não tratarás o outro apenas como meio, mas como fim, numa
conduta que consagra a dignidade do outro tanto quanto a de si mesmo. No
segundo livro, Ricoeur lembra que a mesma formulação faz referência também
àquilo que é justo. A conduta que respeita a dignidade do outro, não tratando o outro
apenas como meio é também justa, a partir do momento em que, na formulação da
regra kantiana, está implicado o outro a quem se pode prejudicar, logo, que (não)
pode ser tratado de maneira injusta.
Vejamos, a seguir, como Ricoeur arranja cada um dos dois modelos da
pequena ética e como ambos abraçam a segunda pessoa, pois contemplam o
querer viver bem compartilhado, com e para o outro, resguardado por instituições
que buscam corrigir o injusto.

1.2.1 A pequena ética de O Si-mesmo como outro

Ao nos depararmos com o Sétimo Estudo de O Si-mesmo como outro, vemos


Ricoeur (2014, p. 183) esclarecer ao leitor que é chegado o momento da obra
acrescentar às grandezas: linguística, prática e narrativa da ipseidade, uma nova
dimensão: a dimensão ética e moral, “sem qualquer ruptura metodológica” com as
três anteriores23. Pelo contrário. Do mesmo modo que as reflexões anteriores,

22
Isso faz recordar o que já se afirmou anteriormente, no texto: que é necessário conciliar o nível da
moral abstrata com o da sabedoria prática; ou seja, universalismo e contextualismo.
23
“Como foi dito no Prefácio, os quatro subconjuntos que compõem estes estudos até o limiar do
décimo correspondem a quatro maneiras de responder à pergunta quem? quem fala? quem age?
quem se narra? quem é o sujeito moral da imputação? Não saímos do problema da ipseidade durante
o tempo em que ficamos na órbita da pergunta quem?”. (RICOEUR, 2014, p. 183). E conforme

32
também agora o sétimo, o oitavo e o nono estudos atendem à regra fundamental do
desvio da reflexão pela análise. De que maneira? As determinações éticas e morais
da ação serão tratadas, diz ele, por meio dos predicados bom e obrigatório, com a
mesma função que as frases de ação exercem em relação à posição do agente
capaz de fazer.
Nosso autor adverte igualmente que, numa espécie de articulação entre teoria
narrativa, teoria da ação e teoria moral, a relação desses mesmos predicados com o
sujeito da ação será tratada com uma mediação distinta no caminho do retorno para
o si-mesmo24.
Essa mediação rompe com a conhecida oposição entre ser e dever-ser. E
para Ricoeur (2014, p. 184) há dois motivos circunstanciais para não recusá-la: (1)
os seres sobre os quais refletimos são falantes e agentes e é próprio da ideia de
ação ser acessível a regras ou ao que deve ser, também por meio de preceitos em
forma de mera recomendação ou conselho, que nem sempre são de ordem moral.
Há prescrições técnicas, estratégicas, estéticas, só para citarmos; (2) a teoria
narrativa abre espaço de imaginação para experimentar meditações nas quais o
juízo moral é exercido hipoteticamente: ações complexas podem ser refiguradas até
mesmo por ficções narrativas ricas em previsões de caráter ético.
Segue o exame de Ricoeur na grande obra de 1990: a meditação sobre a
identidade que, tendo passado pelo crivo das teorias da narratividade e da ação, se
expande agora por meio da teoria moral e mediante a proposta singular de distinção
entre éthos e mores, respondendo, diz o autor, “à objeção humiana de fosso lógico
entre prescrever e descrever, entre dever-ser e ser”. (RICOEUR, 2014, p. 186).
Nosso autor reconhece que tanto ética [éthos do grego], quanto moral [mores
do latim] carregam o mesmo significado, qual seja, o de costumes. Todavia, sustenta
uma distinção proposital25 entre ambas para fundamentar seu pensamento que
interliga, respectivamente, duas importantes tradições filosóficas: a ética teleológica

demonstra no decorrer de toda a obra, a questão ética é um desdobramento natural dos problemas
relativos à individualidade, à pessoa.
24
O si-mesmo é utilizado por Ricoeur para designar a primeira pessoa, contudo, no “sentido
fundamental” buscado, que é o da reflexividade, sobretudo, em oposição às filosofias do sujeito que
terminam por deixar o “eu” desancorado. “Do ‘eu’ dessas filosofias caberia dizer, como dizem alguns
a respeito do pai, que não está o suficiente ou está de mais?”. (RICOEUR, 2014, p. XVI). A questão
do sujeito como um si-mesmo será analisada mais de perto em seguida, neste trabalho.
25
Ricoeur já havia afirmado algo no mesmo sentido: que se deve “quebrar” a ética em dois níveis;
sendo o primeiro, o nível de uma moral de convicção (do desejável) e o segundo, o nível de uma
moral da responsabilidade (do relativamente possível e também do uso limitado da violência) (Id,
2011, p. 144).

33
de Aristóteles – por meio do predicado bom, e a exigência de uma vida pelas
virtudes, com a intenção de felicidade – e a moral deontológica de Emanuel Kant,
por meio do predicado obrigatório – onde vale a atitude moral e a universalidade26.
Ricoeur faz tal separação para confirmar uma relação de reciprocidade entre
essas duas compreensões: “[...] estabelecer-se-ia entre as duas heranças uma
relação tanto de subordinação quanto de complementaridade, que o recurso final da
moral à ética viria finalmente reforçar”. (RICOEUR, 2014, p. 185). Para ele, destarte,
tanto a ética teleológica quanto a moral deontológica recorrem uma à outra para
superar seus conflitos e para encontrar uma fundamentação para seus argumentos.
Além disso, essa articulação compreendida no nível dos predicados bom e
obrigatório aplicados à ação encontra sua réplica no nível da autodesignação: à
visada teleológica corresponde a estima a si e ao momento deontológico, o respeito.
Ambos representam juntos os estágios mais avançados da ipseidade, tendo em
conta os níveis que seguem: (1) a estima a si é mais fundamental que o respeito; (2)
o respeito corresponde à estima a si ao passar pelo regime da norma; (3) aquilo que
Ricoeur chama de aporias do dever geram situações em que a estima a si-mesmo
se revela como fonte e recurso ao respeito, “quando nenhuma norma certa oferece
mais guia seguro para o exercício hic et nunc do respeito”. (RICOEUR, 2014, p.
185).
Disso temos que a ética ricoeuriana se funda num sujeito autônomo, porém,
marcado pela finitude mundana e pela capacidade de interpretar e reinterpretar de
maneira constante os valores explícitos e implícitos nas narrativas que vive e que

26
De acordo com a vertente teleológica, Ricoeur propõe três momentos para a ética, todos eles
atrelados ao predicado bom, a saber: a estima de si, a amizade-solicitude e o senso de justiça.
Paralelamente, e na mesma ordem, os três momentos da herança deontológica, articulados pelo
predicado obrigatório, serão o respeito de si, o respeito ao outro e os princípios da justiça. Além de
professar a anterioridade da ética sobre a moral, o que implica de saída na precedência da teleologia
sobre a deontologia, Ricoeur entende que os diferentes componentes do predicado bom obedecem a
uma sequência condensada na seguinte definição: “Chamamos ‘perspectiva ética’, a perspectiva da
‘vida boa’ com e para outros nas instituições justas”. (RICOEUR 1991, p. 202, cursivas do autor). A
definição não só conserva a presença do predicado bom nos três momentos da “perspectiva ética” –
e do predicado obrigatório nos três momentos da moral – senão que também serve de parâmetro
para associar cada um desses momentos a um dos sujeitos da ação. O esquema geral propõe duas
sequências em que, na ética e na moral, figuram paralelamente: na primeira pessoa do singular, a
estima de si e o respeito de si; na segunda pessoa do singular, a amizade-solicitude e o respeito
mútuo, respondendo pela relação com e para o outro; e, por fim, o senso de justiça e os princípios da
justiça completam o quadro com a esfera do «cada um» da justiça instituída (ROSSATTO, 2016, p.
187 e p. 188). Vide também sugestão de quadro-esquema para essa dialógica in ROSSATTO (2010,
p. 48).

34
recepciona. Pelo viés da moral, por seu turno, o mesmo sujeito autônomo adapta e
readapta suas próprias escolhas e liberdades aos desafios pessoais e cotidianos.
Nosso escopo aqui avalia o posicionamento de Ricoeur seguindo o mesmo
itinerário realizado em O Si-mesmo como outro, desde o primado do éthos sobre a
moral, retomando primeiramente Aristóteles e sua concepção sobre a vida boa para
no momento posterior, denotar a necessidade da moral kantiana validar aquilo que é
considerado bom. Esse caminho segue em dois sentidos:

em um sentido a ética terá de ser articulada em relação a normas com


pretensão de validade universal, efeito de constrangimento e
obrigatoriedade; e, noutro, as decisões morais, tomadas com referência a
valores pretendidos como universais, terão de ser avalizadas pela
perspectiva da vida boa. (ROSSATTO, 2010a, p. 46).

Dessa articulação, em que a perspectiva ética passa constantemente pelo


crivo da norma e, inversamente, a norma moral se orienta pelo horizonte ético,
resulta a visada ética, a estrutura tripartida da pequena ética ricoeuriana, assim
concebida: “vida boa com e para outrem em instituições justas”. (RICOEUR, 2014, p.
186). Ou como bem observa Noeli Rossatto (2010a, p. 46): “a estima de si, a
solicitude e o senso de justiça” – articulando os três componentes da vida ética em
versão semelhante.
Revendo aspectos da ética de Aristóteles27, acenamos para o primeiro
componente da visada ética, qual seja, a vida boa ou vida verdadeira. Ricoeur
(2014, p. 187) aduz que independentemente do que cada um imagine como vida
plena, isso é indiscutivelmente o fim último de sua ação, no sentido de que o
universo possui finalidade (telos): “toda ação e todo propósito visam a algum bem”,
sendo dito “que o bem é aquilo a que todas as coisas visam”. (ARISTÓTELES, 1992,
p.17). Aristóteles infere, a partir disso, que as ações humanas também são sempre
voltadas, por meio da razão, para um fim que é o bem supremo, o bem de todos e
para todos. Trata-se de um bem que deve necessariamente ser considerado em si
mesmo, pois, como explana o filósofo:

se há, então, para as ações que praticamos, alguma finalidade que


desejamos por si mesma, sendo tudo mais desejado por causa dela, e se

27
“As principais influências aristotélicas na ética ricoeuriana dizem respeito aos conceitos de
felicidade, práxis, phrónesis e amizade. Além disso, o conceito clássico de vida boa, vinculado à ética
das virtudes e da felicidade, é um dos fundamentos da perspectiva que se preocupa com ‘dar a
norma moral seu justo lugar sem lhe deixar a última palavra’”. (SANTOS SOUZA, 2013, pp. 25 e 26).

35
não escolhemos tudo por causa de algo mais (se fosse assim, o processo
prosseguiria até o infinito, de tal forma que nosso desejo seria vazio e vão),
evidentemente tal finalidade deve ser o bem e o melhor dos bens.
(ARISTÓTELES, 1992, p. 18).

O melhor dos bens para Aristóteles, sabido, é a felicidade. “Parece que a


felicidade, mais que qualquer outro bem, é tida como este bem supremo, pois a
escolhemos sempre por si mesma, e nunca por causa de algo mais”. Ela “é uma
certa atividade da alma conforme a excelência” e esta, por sua vez, é a excelência28
humana, a excelência da alma (ARISTÓTELES, 1992, p. 27 e p. 32).
O telos, o fim último da ação humana é, portanto, uma vida feliz, uma ética
pessoal de realização virtuosa por meio de boas ações com o propósito de alcançar
a esse fim. Para Ricoeur, na ética aristotélica o bem é tratado como uma intenção
que serve para o agente estabelecer uma boa prática para a sua ação; a boa prática
sempre justa e equitativa. O que permite afirmar que toda ética aristotélica supõe o
uso do bem como fim último de sua ação. Eis, segundo nosso autor, duas lições
importantes que aprendemos com Aristóteles: “[...] ter buscado na práxis a
ancoragem fundamental da visada da ‘vida boa’”. (RICOEUR, 2014, p. 187). E tentar
erigir a teleologia interna à práxis como princípio estruturante da visada da vida boa.
Trata-se do esquema meio-fim de Aristóteles, em que a boa práxis é por si mesma
seu próprio fim, ao mesmo tempo em que visa a um fim ulterior.
Entretanto, sem perder de vista o caráter extraordinário das lições éticas de
Aristóteles, Ricoeur aponta para uma falta naquele esquema. A escolha (pautada
pela prudência) e a deliberação (fruto do raciocínio) não abrigam por inteiro o campo
da ação, mas tão somente a tekhné: “uma ação que não se esgota em si mesma e,
por isso, tem sua finalidade em outro lugar”. (ROSSATTO, 2010a, p. 50). Para
melhor compreensão, partamos da afirmação do próprio Aristóteles, de que o
estadista tem de convencer. O poder de convencimento se dá pelo uso de um bom
argumento, lançando-se mão da sabedoria prática (phrónesis) capaz de reconhecer
a gama de meios dos quais se pode servir para chegar ao fim de convencer. O
estadista deve convencer, portanto, pelo uso de um argumento que considere a

28
Essa excelência carrega uma classificação que pode ser intelectual (sabedoria, inteligência,
discernimento) ou moral (liberalidade, moderação). A excelência intelectual é devida à instrução, que
requer experiência e tempo. A excelência moral, por seu turno, requer o hábito, e é fruto da prática
reiterada de atos conformes a ela, logo, de ações moralmente boas que vão se aperfeiçoando pela
prática habitual e pela prática habitual chegam até a excelência, que por seu turno leva à felicidade
(ARISTÓTELES, 1992, p. 35).

36
virtude mais elevada da sabedoria prática. Pensemos que disso deve resultar uma
maneira mais adequada ou a maneira mais ética de agir e de convencer.
Mas como, no modelo sugerido por Aristóteles, chegar até ela?29 Ou como
questiona exatamente nosso filósofo: “O que conta como a especificação mais
apropriada aos fins últimos visados?”. (RICOEUR, 2014, p. 191).
Antes de responder – e oferecer possível solução com a introdução dos
conceitos contemporâneos de planos de vida e padrões de excelência – Ricoeur
observa que é através do uso da phrónesis como sabedoria capaz de apreender
determinada situação em sua plena singularidade, que se dá conta de resolver as
dificuldades da proposta aristotélica no tocante à práxis. Aqui Ricoeur pondera:

Todos lembram de que maneira, sob a pressão da teoria narrativa, fomos


conduzidos não só a ampliar, mas também a hierarquizar o conceito de
ação de tal forma que fosse possível elevá-lo ao nível do de práxis: assim,
em alturas diferentes na escala da práxis, colocamos práticas e planos de
vida, reunidos pela previsão da unidade narrativa de vida. [...]. É a mesma
hierarquia da práxis que vamos percorrer de novo, dessa vez do ponto de
vista de sua integração ética sob a ideia de “vida boa”. (RICOEUR, 2014, p.
191).

Na seara da práxis, como diferentes configurações da ação, podemos afirmar


o quão pertinentes são as práticas como um tipo de atividade colaborativa e
tradicional, cujas regras são socialmente estabelecidas. Essas mesmas regras se
desdobram em apreciações de caráter avaliativo e até normativo, vinculadas aos
preceitos do bem fazer. Recordemos então, dos planos de vida30, que fazem com
que as ações sejam praticadas e avaliadas segundo o critério de vantagem e
desvantagem, e dos padrões de excelência [standards of excellence] adotados do

29
“O erro dos exemplos escolhidos por Aristóteles é limitar o pròs to télos a um caso típico, aquele
em que o fim já está fixado, e o singular é tomado no sentido distributivo: o fim do médico, o do
orador, o do político. Em suma, o médico já é médico e não se pergunta todos os dias se teve alguma
razão para escolher tornar-se ou permanecer médico, o que seria deliberar sobre o fim e, como teme
Aristóteles, deliberar sem fim. Um médico, um arquiteto, um político, transformados em Hamlet, já não
seriam, para Aristóteles, um bom médico, um bom arquiteto, um bom político. O fato é que esses
casos típicos não poderiam esgotar o sentido do pròs to télos e deixam a porta aberta à espécie de
deliberação na qual estaria em jogo o seguinte: o que vai contar pra mim como descrição adequada
do fim de minha vida? Se essa fora de fato a questão última, a deliberação assumirá um curso bem
diferente da escolha entre meios; consistirá em especificar essa nebulosa de sentido que chamamos
‘vida boa’, em torná-la mais determinada na prática, em levar à sua cristalização”. (RICOEUR, 2014,
pp. 189-190, em nota).
30
“Mais uma observação sobre a expressão ‘plano de vida’. O aparecimento da palavra ‘vida’ merece
reflexão. Ela não é tomada em sentido puramente biológico, mas no sentido ético-cultural, bem
conhecido dos gregos, quando comparavam os respetivos méritos dos bioi oferecidos à escolha mais
radical: vida de prazer, vida ativa no sentido político, vida contemplativa. A palavra ‘vida’ designa o
homem inteiro em oposição às práticas fragmentadas”. (RICOEUR, 2014, p. 194).

37
estudo intitulado Depois da virtude [After virtue] de MacIntyre, que, no âmbito interno
das profissões, possibilitam classificar como bons um médico, um arquiteto, um
pintor (ROSSATTO, 2010a, p. 50).
Os padrões de excelência são, para Ricoeur, responsáveis por resguardar a
qualificação ética do bem viver, diminuindo o caráter instrumental do modelo meio-
fim de Aristóteles. Antes mesmo de qualificar como bom o executante de uma
prática, esses padrões possibilitam dar sentido à ideia de bens imanentes
correspondentes à prática. O conceito de bem imanente é caro à compreensão da
visada ética porque, segundo Ricoeur, constitui a teleologia interna à ação,
consoante expressa “no plano fenomenológico as noções de interesse e de
satisfação que não devem ser confundidas com as de prazer”. (RICOEUR, 2014, p.
193). Vejamos que é mais um ponto de apoio ao momento reflexivo da estima a si,
pois apreciando minha própria ação, me aprecio como autor dela. De acordo com
isso, os padrões de excelência são ao mesmo tempo, critérios para se estabelecer o
melhor no interior de uma prática específica e o que serve de juízo para o bem agir.
De igual modo, tais padrões são regras de comparação que aplicadas a
resultados diferentes, em função de ideais de perfeição que sejam comuns a certa
coletividade de executantes e interiorizados pelos mestres e virtuosos da prática
considerada, “vêm de mais longe que o executante solitário”. (RICOEUR, 2014, p.
192). Válido anotar que é a cultura comum em “um acordo bastante durável”, que
define os níveis de sucesso e os graus de excelência dos padrões (RICOEUR, 2014,
p. 193).
A partir das noções de planos de vida e de padrões de excelência de
MacIntyre, Ricoeur retoma também a importante reflexão aristotélica acerca da
existência ou não de um érgon, de uma tarefa para o ser humano: “Esse érgon está
para a vida, tomada em seu conjunto, assim como o padrão de excelência está para
uma prática particular”. (RICOEUR, 2014, p. 194). E prossegue, concluindo
finalmente que, da relação entre prática e plano de vida, se torna possível remendar
aquela fenda do modelo Aristotélico. Uma vez eleita, “a vocação confere aos gestos
que a põem em ação esse caráter de ‘fim em si mesmo’”. (RICOEUR, 2014, p. 194).
Vida boa, vida realizada, projeto existencial – ao modo de Sartre – unidade
narrativa de vida, implicam num ser humano tanto padecente quanto atuante,
submetido àquilo que Martha Nussbaum nomeia fragility of goodness, e que Ricoeur
traduz como “fragilidade da boa qualidade do agir humano”, adversidades que uma

38
vida boa tem de enfrentar. Ainda que se trate, destarte, de uma “nebulosa de ideais
e sonhos”, num plano de tempo perdido ou num plano de tempo reencontrado, a
incerteza quanto à orientação de nossa vida, entretanto, jamais “arruína a
autossuficiência das práticas”. (RICOEUR, 2014, p. 196).
No plano ético, a estima a si mesmo atrelada ao predicado bom é, finalmente,
autointerpretação31. É a primeira pessoa buscando pela adequação entre ideais e
decisões pessoais e marcantes de sua vida. Em outras palavras, o predicado bom
na esfera da estima a si, importa em experimentar, pela via da atestação, a certeza
de ser autor das próprias ações com a convicção de bem deliberar e bem agir,
ajustando-se o que parece melhor para o conjunto da própria vida às escolhas
preferenciais que regem suas práticas.
Avançando na vertente teleológica da pequena ética de O Si-mesmo como
outro, esbarramos com o segundo momento da perspectiva ética atrelado ao
predicado bom, o da solicitude32. Aqui Ricoeur reforça a tese da dialética entre
ipseidade e alteridade, “[...] num grau tão íntimo que uma não pode ser pensada
sem a outra, uma passa para dentro da outra, como se diria na linguagem hegeliana.
“[...] si-mesmo semelhante a outro” comparando-se e também implicando num “si-
mesmo na qualidade de... outro”. (RICOEUR, 2014, p. XV).
E, de igual maneira, a tese de que o outro exerce papel fundamental de
mediador entre capacidade e efetivação. Nesse aspecto, é relevante anotar que
Ricoeur nega aquilo que ele mesmo chama de filosofia do sujeito, ou filosofia que
pressupõe um sujeito completo antes mesmo de ingressar na sociedade, fiel ao ego
cartesiano, ao discurso do eu posso que, no tocante ao dever, ainda espera pelo
paternalismo do Estado. Significa dizer, na ótica ricoeuriana, que a hipótese de um
indivíduo ou sujeito de direito constituído antes de qualquer vínculo social não
merece crédito.
Devemos continuar então, com o tema da capacidade e da efetivação, isto é,
da tônica voltada ao poder-fazer do agente – e não, ao eu posso das filosofias do
sujeito – do ser capaz de avaliar suas ações, estimando-as como boas e,

31
“Chego aqui a um tema importante de Ch. Taylor em seus Philosophical Papers: o homem,
segundo diz ele, é um self-interpreting animal”. (RICOEUR, 2014, p. 196).
32
“[...] minha tese é que a solicitude não se soma a partir de fora à estima a si mesmo, mas expande
sua dimensão dialogal até aqui omitida. Para expandir, como já se disse em outro contexto, entendo,
sim, uma ruptura na vida e no discurso, mas uma ruptura que cria as condições para uma
continuidade de segundo grau, de tal modo que a estima a si mesmo e a solicitude não possam ser
vividas e pensadas uma sem a outra”. (Ibid, p. 197).

39
igualmente, estimar-se como bom pela já mencionada autointerpretação. A estima a
si é autointerpretação e autoavaliação, capacidade de imputar a si mesmo a
responsabilidade por seus atos e valorar seus fins como desejáveis e propriamente
bons. Assim, a reflexividade da qual procede a estima a si perde o caráter abstrato,
vez que já não ignora a diferença entre mim e ti, o que é típico da filosofia de
Descartes. De momento, a constatação mais considerável a se fazer é que esse
outrem de Ricoeur é realmente um outro que não eu que, porém, é digno da mesma
condição existencial que eu.
A vida boa ricoeuriana, destarte, só pode ser pensada ou vivida mediada pela
figura desse outro – com e para o outro. O outro é tão digno de estima quanto o si-
mesmo, visto como semelhante ao si e em relação de reciprocidade, atravessada
em toda a sua extensão pela solicitude. A solicitude é o que Ricoeur entende como
uma espécie de movimento do si-mesmo em direção ao outro, imediatamente
ponderando sobre o risco de não se cair em um solipsismo refinado:

A despeito desse perigo certo, minha tese é que a solicitude não se


acrescenta de fora à estima de si, mas explicita a dimensão dialogal
implícita naquela. Estima e solicitude não podem ser vividas e pensadas
uma sem a outra. Dizer si não é dizer eu. Si implica o outro de si, a fim de
que se possa dizer de alguém que ele se estima a si mesmo como um
outro. (RICOEUR, 1995, p. 163).

A dimensão ética envolve, por fim, as instituições justas que são, conforme
Ricoeur: “[...] todas as estruturas do viver-em-comum de uma comunidade histórica,
irredutíveis às relações interpessoais e, contudo, ligadas a elas num sentido
específico, que a noção de distribuição33 [...] permite esclarecer”. (RICOEUR, 1995,
p. 164). A perspectiva ética ricoeuriana inclui, agora pelo senso de justiça, a
intenção do bem viver com e para o outro em pé de igualdade e probidade. Uma
igualdade que certamente implica na ideia de justiça pela via das instituições que

33
“[...] a primeira espécie de justiça particular se define exatamente por uma operação distributiva,
que implica a comunidade política, quer se trate de distribuir ‘honras, riquezas ou outras vantagens
que se repartem entre os membros da comunidade política’. [...] neste estágio de nossa análise, é
preciso dar ao termo distribuição a maior flexibilidade possível, ou seja, trazer à baila o elemento de
distinção que falta à noção de querer agir junto. É esse aspecto de distribuição que passa para o
primeiro plano com o conceito de distribuição que, de Aristóteles aos medievais e a John Rawls, está
estreitamente ligado ao de justiça. Esse conceito não deve ser limitado ao plano econômico, como
complemento do conceito de produção. Designa um traço fundamental de todas as instituições, uma
vez que estas regram a repartição de papéis, tarefas, vantagens e desvantagens entre os membros
da sociedade”. (RICOEUR, 2014, p. 222).

40
devem, a princípio, garantir a distribuição equitativa de direitos e deveres, sob o
pano de fundo do ideal de justiça.
Eis os três componentes da visada ética teleológica da tríade da pequena
ética – ou os três componentes do predicado bom: a estima a si, a solicitude e o
senso de justiça que articulados, podem assegurar o que é bom para mim e, de igual
modo, bom para o outro e o melhor para todos.
Esses três componentes relativos ao predicado bom complementam uma
similar estrutura triádica do campo da moral, agora referente ao predicado
obrigatório: respeito a si, respeito ao outro, princípios de justiça. Eis o tema do oitavo
estudo de O Si-mesmo como outro, com a fundamental tarefa de justificar a
necessidade de submeter a visada ética à prova da norma. Mas porque e de que
maneira a ética teleológica aristotélica deve recorrer à moral deontológica kantiana?
Ricoeur alegou, de imediato, como vimos, que a ética que passa pela norma é uma
ética enriquecida (RICOEUR, 2014, p. 227).
Mas recordemos, antes de descobrir porque é enriquecida, de alguns
fundamentos da concepção moral kantiana ou deontológica. Escolhemos destacar a
dupla dimensão que Kant atribui ao homem e à sua vontade: (1) a dimensão animal,
sujeita ao determinismo natural e, portanto, condicionada; e (2) a racional,
independente dos sentimentos e dos instintos animais e, portanto, incondicionada,
ou então, verdadeiramente livre. O ser humano condicionado é parte da natureza e
está sujeito à irracionalidade dos sentimentos, dos interesses egoístas, das
inclinações, sendo levado a satisfazer seus desejos de forma interessada, sem
considerar os demais. “Todos os princípios práticos materiais são, como tais, sem
exceção, de uma mesma classe, pertencendo ao princípio universal do amor a si
mesmo, ou seja, à felicidade própria". (KANT, 1959, p. 44).
Com isso, o filósofo de Königsberg também pretende demonstrar que a
procura do homem pela felicidade está atrelada à faculdade inferior de desejar, ou
melhor, ela se insere no apego à sensibilidade, às nossas inclinações e não à razão,
pois costumamos colocar nosso bem estar e nossa felicidade em uma e outra coisa,
conforme nosso próprio juízo a despeito do prazer ou da dor. Podemos dizer então,
que Kant coloca a ética teleológica de Aristóteles na dimensão animal do homem.
Entretanto, "Um ser racional não deve conceber as suas máximas como leis
práticas universais, podendo apenas concebê-las como princípios que determinam o
fundamento da vontade, não segundo a matéria, mas sim pela forma". (KANT, 1959,

41
p. 53). O ser humano racional não pode submeter-se ao determinismo natural, às
suas inclinações e aos seus desejos e nem aos seus interesses pessoais. Não
estando submetido à irracionalidade dessa sua tendência animal e egoísta, será
autônomo e livre. Essa autonomia é orientada pela ideia de dever, por meio da
razão, que se assenta na obediência à legislação a priori. Notemos que essa
obediência não é uma limitação da liberdade, mas, pelo contrário, ela (a obediência)
garante a ação livre.
A legislação moral kantiana, então, deve ser independente da experiência do
sujeito, bem como de valores, haja vista o componente cultural que estes últimos
carregam. É a razão que move as escolhas morais desse sujeito, feitas pelos
princípios a priori, ou seja, princípios que não derivam da experiência sensível,
sucedida da experiência individual e do senso comum. Além disso, "A razão pura é
por si mesma prática, facultando (ao homem) uma lei universal que denominamos lei
moral". (KANT, 1959, p. 67).
Vejamos que a força da lei moral kantiana está em sua absoluta necessidade
e em sua universalidade, pois, segundo o filósofo moral, ela é válida, tem valor, para
todos os seres racionais. Essa universalidade significa racionalidade, pois se o dever
ordena universalmente é porque é racional. Disso, Kant alcançou o imperativo
categórico: a lei moral deve ser um mandamento e um mandamento que não
depende de condições quaisquer. Em outras palavras, o dever moral se apresenta
para o sujeito autônomo sob a forma de um imperativo que expressa o conteúdo
incondicionado e universal da lei moral. Em virtude de ser incondicional e universal,
o imperativo categórico possui conteúdo formal, é uma espécie de fórmula: "Age de
tal forma que a máxima de tua vontade possa valer-te sempre como princípio de
uma legislação universal". (KANT, 1959, p. 40). Segundo Kant, nós temos
consciência imediata dessa lei, ela se impõe como um fato, um fato da razão. Mas
não é um fato empírico, é o único fato da razão pura que se manifesta como
originariamente legisladora, impõe-se a nós de forma a priori e possibilita ao sujeito
criar e submeter-se à sua própria legislação, porém, inspirado exclusivamente pela
razão. Só uma vontade que se submeta de forma incondicionada ao dever moral
pode ser indicada, com propriedade, como uma boa vontade.
Em suma, a boa vontade kantiana, por ser universal se torna, pois, obrigação,
uma ação realizada por dever. Todavia, essa boa vontade kantiana não intencionaria
uma vida boa? E não poderia conter traços daquele bom da tradição teleológica?

42
Seria esse o momento no qual a ética teleológica então, mais do que recorrer à
moral deontológica, pede complementação, como entendeu Ricoeur?
Cremos que Ricoeur (1991, p. 227) tenha visualizado que assim como na
tradição ética a vida boa assume significância, também na moral ela surge: “Ora, se
a ética se manifesta para o universalismo através de alguns traços que acabamos
de lembrar, a obrigação moral também não existe sem ligações na perspectiva da
‘vida boa’”. A perspectiva de vida boa é também um dever. Ponderemos: o sujeito
que pensa a sua ação como algo universalizável, pensa que o que é bom e correto
deve ser bom e correto para ele mesmo (respeito a si) e deve ser igualmente assim
para os outros (respeito ao outro – o outro como fim e não como meio – o
reconhecimento e a humanidade do outro).
Se o sujeito deve agir na perspectiva da moral universal, age por meio do
imperativo categórico, e por meio do imperativo categórico almeja uma vida boa. A
vida boa só pode realizar-se para e pelo sujeito, um sujeito autônomo, que estima e
respeita a si e estima e respeita ao outro. Não fica difícil, destarte, compreender que
esse sujeito tem de ser ao mesmo tempo portador da vontade boa teleológica e da
vontade autolegisladora.
Guiado pelos sentimentos de dever para consigo mesmo e para com os
outros, respeito e obediência à lei moral universal, esse sujeito pode alcançar o bem
supremo ou a “experimentação pela norma do desejo de viver bem” (RICOEUR,
1991, p. 238), onde teleologia e deontologia dialogam e se complementam, portanto.
Com isso, podemos perceber também em Ricoeur, que o imperativo
categórico kantiano é uma norma pessoal (universal), que serve de critério e de
garantia para que as pessoas respeitem a si mesmas e aos outros (GUBERT, 2011,
p. 80). O respeito a si corresponde à estima a si perpassada pelo crivo da norma,
restando manifesta a ligação entre norma moral e perspectiva ética: no plano da
obrigação e da regra o respeito se desenvolve, caracterizando uma estrutura
dialogal com a ética. Esse respeito, portanto, se desenvolve no plano da norma, se
conforma na norma e ao mesmo tempo ele é norma em qualquer sociedade que
tenha por princípios uma solicitude em vista de valores universais.
O respeito que devemos ao outro não é um princípio moral que está fora da
autonomia do si, “o respeito devido às pessoas não constitui um princípio moral
heterogêneo em relação à autonomia do si”. (RICOEUR, 2014, p. 246). Revelam-se
características de uma reciprocidade ética (e moral) em si mesma, de uma solicitude

43
ética que tem então como equivalente moral o respeito (por mim mesmo e pelo
outro).
A investigação deontológica de Ricoeur vai mais além e alcança as noções de
universalização e humanidade. Para ele, ambas se complementam, de modo que o
conceito de humanidade contém a expressão plural do desejo de universalização; o
que garante também uma pluralidade à autonomia. Complementa-se ainda, na
passagem do senso de justiça aos princípios de justiça/regra de justiça (RICOEUR,
2014, p. 228). Como isto acontece? Ricoeur considera que a justiça está ligada às
instituições como virtude do cidadão justo, como excelência central e unificadora da
existência pessoal e política, sabidamente presente na tradição teleológica
aristotélica.
O autor refere também que as instituições são estruturas variadas do viver
junto que agregam as pessoas por costumes comuns e não necessariamente por
regras constrangedoras, localizando-as no plano da ética, portanto. Elas também
podem ser entendidas como “todas as estruturas do viver-em-conjunto de uma
comunidade histórica, irredutíveis às relações interpessoais e, contudo, ligadas a
elas num sentido específico, que a noção de distribuição [...] permite esclarecer”.
(SIMÕES, 2013, p. 28).
Remete-se assim à justiça distributiva, dada por Aristóteles. Contudo, que
deve ponderar que:

É possível ainda segundo o próprio Aristóteles, que a controvérsia não


esteja totalmente ausente, uma vez que a forma de avaliação das diferentes
contribuições individuais e o sentido mesmo do princípio de distribuição por
mérito envolva discussões e se altere conforme os regimes políticos, pois os
‘democratas identificam a circunstância de a distribuição dever ser de
acordo com a condição de homem livre, os adeptos da oligarquia com a
riqueza (ou a nobreza de nascimento) e os adeptos da aristocracia com a
excelência’. (SIMÕES, 2013, p. 62).

Enquanto para Aristóteles a justiça retira seu sentido de uma dimensão


teleológica da ação moral, Rawls (assim como Kant) a atrela à ideia de dever e vai
ainda mais além, saindo do plano das relações interpessoais e indo em direção ao
plano das instituições (PADILHA, 2012, p. 35). O justo, desse modo, aponta para
dois horizontes: para o bom, enquanto seguimento da solicitude ao cada um dos
sem-rosto da sociedade; e para o legal: “a tal ponto o prestígio da justiça parece
dissolver-se no da lei positiva”. (RICOEUR, 2014, p. 259). A justiça carrega, para

44
nosso filósofo, uma base teleológica e um estatuto deontológico. Ou já não vimos
que a ética não pode ignorar a moral que, com suas normas e obrigações, sempre
impõe respeito pelo outro e pelo instituído?
Quanto aos princípios de justiça, mantendo-se em aliança com o modelo
rawlsiano, Ricoeur aduz que têm por finalidade extinguir as disparidades na
distribuição, equacionando justiça e igualdade. Parece-nos que para o autor francês,
a justiça deve investigar como são aplicados os seus princípios, deve ancorar-se na
equidade, enfim, também nela própria em vista da vivência efetivamente justa e
igualitária. Nesse sentido, importa ter em mente que:

Se, de um lado, a igualdade ‘... é para a vida das instituições o que a


solicitude é nas relações interpessoais’ (RICOEUR, 1991, p. 236), elas não
devem ser confundidas, pois, de outro lado, o alcance da solicitude é menos
abrangente ainda que mais concreto. A solicitude diz respeito apenas à
relação entre duas pessoas, enquanto a igualdade instituída diz respeito a
todos, isto é, a ‘cada um’ dos envolvidos. (ROSSATTO, 2010a, p. 54).

Até aqui, pudemos perceber que para o Ricoeur de O Si-mesmo como outro a
ética teleológica de Aristóteles é a orientação da ação por excelência, pelo bem e
para a realização da vida boa (CORÁ, 2011, p. 320) e justamente por isso é que a
moral deontológica, tomada como o momento do constrangimento e da interdição da
vida feliz, sobretudo, em detrimento da figura do outro, retoma a perspectiva ética
sem a qual [a moral] não possui significado: “Sem esta intenção ética, a moral não
passaria de um corpo abstrato de regras sem qualquer significado humano”.
(SALDANHA, 2009, p. 27).
Essa dialética quase que obrigatória leva em conta situações conflitivas
advindas da pluralidade das relações, da inexistência de um acordo comum sobre os
fins a perseguir, da ação incontrolada e arbitrária do ser humano, da iminência e do
perigo da violência, em suma, da existência do mal. Entretanto, o retorno do
momento da teleologia posterior ao momento da deontologia ou a ética retomada
depois de haver passado pelo filtro da moral, é uma ética que ainda deve ser
engrandecida, agora pela sabedoria prática34.

34
Em O Si-mesmo como outro, nosso filósofo afirma que: “Primeiramente, não se trata de somar à
perspectiva ética e ao momento do dever uma terceira instância [...]. Se o juízo moral desenvolve a
dialética de que falaremos, a única saída disponível é a convicção, sem nunca constituir uma terceira
instância por acrescentar àquilo que chamamos até aqui de visada ética e norma moral” . (RICOEUR,
2014, p. 275). Em O Justo 2, esclarece que “Precisamos dizer agora as razões pelas quais se mostra

45
É no nono estudo de O Si-mesmo como outro, que nosso autor intensifica a
crença de que não fossem pelos conflitos que põem à prova os princípios de
moralidade, correríamos o risco de se deixar levar por uma espécie de sedução a
um situacionismo moral que nos põe à mercê da arbitrariedade 35. Allan Vieira (2013,
p. 61) citando Fernando Saldanha (2009, p. 24), lembra que “nesse movimento
inverso, a ética designa uma intenção que, nas situações conflituais, fruto do
trabalho ponderado e sensato (phrónesis), é geradora de convicções bem
pensadas”.
Uma nova estrutura triádica é então sugerida por Ricoeur para justificar o uso
da sabedoria prática: instituição e conflito, respeito e conflito e autonomia e conflito.
Nosso autor justifica essa espécie de ordem inversa, começando pela terceira
instância, o ambiente institucional, por duas razões: (1) para que nos vejamos de
imediato diante da Sittlichkeit [moral efetiva] hegeliana, substituta da Moralität [moral
abstrata], que tem como centro, na esfera das instituições, a figura do Estado. A
Sittlichkeit constitui, em relação à ética e à moral, mas “um dos lugares nos quais é
exercida a sabedoria prática [...] para que a justiça mereça realmente o título de
equidade” e (2) nunca se esquecendo de determinar novas características da
ipseidade, confrontar a ideia de autonomia, ao modo de Kant, só depois de analisar
os conflitos interpessoais – entre norma e a solicitude mais ‘singularizante’ – sob o
pano de fundo do instituído.
O conflito ao qual Ricoeur se refere advém, antes de tudo, do confronto entre
aquilo que ele próprio chama de pretensão universalista, vinculada às regras
embasadas pelo princípio da moralidade [tese universalista] e o reconhecimento dos
valores relativos aos contextos históricos e comunitários de efetivação dessas
mesmas regras [tese contextualista] (RICOEUR, 2014, p. 318).
Da maneira mais simples, a sabedoria prática pode ser entendida como o
momento singular da práxis, do uso do juízo prudencial, onde o possível detentor da
perspectiva ética precisa não só recorrer à norma moral, como também fornecer
sentido para a ação e retornar à reflexão ética na tentativa de solução de aporias
práticas, traindo o menos possível a regra. Recordemos, todavia, como fez o próprio

necessário acrescentar [à moralidade] uma terceira dimensão que denominei sabedoria prática” .
(RICOEUR, 2014, p. 272).
35
“O homem é o ser do conflito, um ser marcado pelo desequilíbrio: este é o ser falível e vulnerável.
Com efeito, o sujeito, na procura do seu equilíbrio pode, pela dialética do involuntário e voluntário que
o constitui, dar espaço ao surgimento do mal; o que aqui advém é novamente o desregramento,
abrindo espaço para que ele, através do seu agir, caia no plano do mal moral”. (ABREU, 2015, p. 12).

46
autor, que “não se trata de redimir a moral à ética, ao contrário, trata-se agora de
retornar a uma ética fortalecida e amplificada visto que sujeita foi ao crivo da moral”.
(RICOEUR, 1991, p. 283).
O conflito no âmbito da instituição suscita a ideia de equidade e distribuição
justa. Ricoeur demonstra que a Sittlichkeit hegeliana, que também se enraíza nas
Sitten, isto é, nos costumes, equivale à phrónesis aristotélica e pública, como o
próprio debate. Recorda em seguida, da relação que Aristóteles faz entre justiça e
equidade para dizer que a equidade pode ao mesmo tempo ser superior à justiça e
também justa. Superior, quando corrige a lei, “em casos para os quais não é
possível estabelecer um enunciado geral que se aplique com retidão”, e justa,
quando “o legislador deixa de prever o caso e peca por espírito de simplificação”.
(RICOEUR, 2014, p. 302). A equidade é o senso de justiça já atravessado pelo
conflito provocado pela aplicação da regra de justiça.
O conflito na esfera do respeito para Ricoeur advém diretamente das
aplicações do segundo imperativo de Kant. Nosso autor adverte sobre a ideia de que
“uma fina linha divisória tenderia a separar, por um lado, a vertente universalista do
imperativo, representada pela ideia de humanidade, e, por outro, a vertente que se
pode chamar de pluralista, representada pela ideia das pessoas como fins em si
mesmas”. (RICOEUR, 2014, p. 303). Disso temos, num primeiro momento, a
evidência de conflito entre a alteridade advinda da pluralidade humana e a
universalidade das regras que subjazem a ideia de humanidade e, num segundo
momento, por consequência, o respeito partido entre respeito à lei [universal] e
respeito às pessoas [pluralidade em razão da alteridade]. Eis o maior efeito
implicado aí: a sabedoria prática que pode dar prioridade ao respeito voltado às
pessoas em nome da solicitude voltada para as pessoas em sua singularidade
insubstituível36.
Por hora, interessa inferir que enquanto existem máximas que passam
perfeitamente pela prova de universalização, outras, porém, advindas de situações
bem concretas nas quais a alteridade possa demandar reconhecimento, enfrentam
resistência. A universalidade kantiana tem uso limitado e é posta em xeque quando

36
“[...] é porque o imperativo categórico engendra uma multiplicidade de regras que o universalismo
presumido dessas regras pode entrar em colisão com as demandas da alteridade, inerentes à
solicitude”. (RICOEUR, 2014, p. 304).

47
se vê diante da singularidade insubstituível de outrem37 e, com igualdade, do caráter
histórico, contextual e culturalmente determinado das avaliações entre as quais o
juízo moral precisa orientar-se (RICOEUR, 2014, p. 331).
Ricoeur insiste em afirmar que a pretensão universalista permanece em
constante embate com as diferentes culturas. Neste momento, pode ocorrer que

[...] não só a regra é posta à prova de um modo diverso pelo seu confronto
com as circunstâncias e pelas suas consequências, mas também o
acolhimento à regra em benefício próprio adquire nova forma, um novo
rosto, uma vez que a verdadeira alteridade das pessoas faz nascer em cada
uma, uma acepção particular da regra. (SIMÕES, 2013, p. 71).

É assim que ao modo hegeliano, interpretando a tragédia de Antígona de


Sófocles38, Ricoeur valida esse ponto de vista sobre um dos aspectos da tragédia 39:
a força da ação trágica causada pela “estreiteza do ângulo de visão de cada um dos
protagonistas envolvidos” resulta num conflito irreconciliável entre duas convicções
bem diferentes a respeito do justo e da moral. Não bastasse, as perspectivas de
Antígona e Creonte são simplórias e, pensamos, passionais, no mais das vezes
incluídas no rol das convicções que costumam desconsiderar a presença e o
reconhecimento do outro.
O segundo aspecto é apontado por Martha Nussbaum, mais uma vez em A
fragilidade da bondade. Para a autora, os protagonistas Antígona e Creonte são
possuidores de uma estratégia que consiste em dissociar os conflitos internos em
relação a suas respectivas causas (ROSSATTO, 2010a, p. 55 e p. 56).
Desenvolvendo narrativamente estes dois aspectos e desacreditando a ideia
de que na tragédia o conflito é indissolúvel, Ricoeur, ao contrário, vislumbra uma
oportunidade para agir com a convicção guiada pela phrónesis. Muitas vezes na
aplicação de um juízo em situação, o formalismo da regra constrange e pode dar
lugar a uma espécie de determinação prática que não se deixa reduzir a simples

37
“[...] a consideração das pessoas como fins em si mesmas introduz um fator novo, potencialmente
discordante, em relação à ideia de humanidade, que se limita a prolongar a universalidade na
pluralidade em detrimento da alteridade”. (RICOEUR, 2014, p. 306).
38
Ricoeur deseja “restituir ao conflito o lugar que todas as análises feitas até agora evitaram
conceder-lhe, pareceu-nos apropriado fazer ouvir outra voz que não a da filosofia – ainda que moral
ou prática –, uma das vozes da não-filosofia: a da tragédia grega. [...] Sem dúvida, a tragédia tem por
tema a ação como adiante se verá Hegel ressaltar. [...] Mas como demonstra Antígona de Sófocles,
esses agentes estão a serviço de grandezas espirituais que não só os superam, como também abrem
caminho para energias arcaicas e míticas que são, ademais, fontes imemoráveis da infelicidade” .
(Ibid, p. 277 e 278).
39
“[...] a tragédia é comparável àquelas experiências-limite, geradoras de aporias”. (Ibid, p. 280).

48
modalidade da escolha, como descrevem Kant e Aristóteles (RICOEUR, 2014, p.
278).
A autonomia foi posta no fim do percurso em relação ao conflito, explica
Ricoeur, porque seu sentido é sempre afetado pela regra de justiça no plano das
instituições e pela regra da reciprocidade no plano interpessoal. É dessa forma que
a autoafirmação não pode ser pensada sem autoafetação e, por consequência, a
autonomia diante do conflito não é uma autonomia autossufiente como defendeu
Kant. “A dependência segundo a ‘exterioridade’, ligada à condição dialógica da
autonomia, de algum modo é responsável pela dependência segundo a
‘interioridade’ que essas três aporias [receptividade, passividade, impotência],
revelaram”. (RICOEUR, 2014, p. 320).
Diante das situações conflituosas engendradas pela moral da obrigação, a
sabedoria prática atravessa o percurso dessas três instâncias, da instituição à
autonomia, passando pelo respeito, fornecendo sentido e orientação para o agir e
porque não dizer, “um contínuo ajustamento entre a lei e a situação particular em
que a pessoa se encontra”. (CORÁ, 2011, p. 329).
Para Ricoeur, a experiência da sabedoria trágica, deixa duas lições
importantes: decidir bem ou sofrer as terríveis consequências [com certo tom de
ameaça] e reorientar a ação [em tom de apelo]. Ao desorientar diante da ausência
de solução, a tragédia impõe a pena de dirigir a ação por conta e risco dela mesma.
Existe, portanto, uma situação paradoxal no conflito trágico: seu caráter insolúvel,
em que as ações terminam em sofrimento terrível, pode conformar uma sabedoria
capaz de ensinar-nos a agir futuramente de um modo mais ponderado, sobretudo,
na questão do querer viver bem em comunidade. Certo que há que se valer da boa
vontade para se tornar mais solícito com e para o outro. Advém daí uma sabedoria
prática que poderá ser posta em ação no momento em que uma situação exige que
se responda melhor à sabedoria trágica.
A sabedoria prática consistiria então em:

não interromper o livre fluxo dialético entre a perspectiva ética e a


moralidade, que deve acompanhar do início ao fim a ação humana. Com
isso se tem um vivo movimento entre a perspectiva ética, individualmente
situada, englobando o difuso horizonte dos valores habilitados pela herança
cultural (costumes), e o juízo moral em situação, no qual se irá aplicar
princípios, regras ou normas a um caso concreto. (ROSSATTO, 2010a, p.
58).

49
Mas de que forma (e em qual momento) a sabedoria prática pode ser
realizada? É possível exemplificar juízos morais em situação ou casos concretos de
aplicações de regras às situações conflituosas?
Mesmo que nosso autor advirta acerca das diferenças entre os sistemas
morais e os sistemas jurídicos40, é fazendo menção aos hard cases de Ronald
Dworkin, casos difíceis e/ou casos típicos do direito que tratam da vida começando
(aborto, manipulação genética e células-tronco) e da vida terminando (eutanásia),
que se pode, segundo ele, avaliar o julgamento moral em ação. Ao contrário do
sistema moral, o sistema jurídico, que tem como suporte a instituição jurídica,
abrange somente conflitos da alçada do veredito dos tribunais. Todavia, Ricoeur
defende que assim como no sistema jurídico, no sistema moral também há
coerência quando impõe à filosofia moral a tarefa de “redefinir as classes de ação,
de tal maneira que o conteúdo da regra seja adequado à forma do princípio”.
(RICOER, 2014, p. 326). Não é dele, mas ele toma de Alan Donagan, na obra The
Theory of Moralitity41, o conceito de que a ética é responsável por essa tarefa
“legítima de levar o mais longe possível a reconstrução do sistema moral mais digno
de elevar à universalidade uma pretensão”. (RICOEUR, 2014, p. 325).
Mencionando em nota de rodapé que tal pretensão foi “durante séculos, a
tarefa da casuística, que no plano moral pode ser considerada paralela à
jurisprudência no plano legal” (RICOEUR, 2014, p. 325), nosso filósofo argumenta
que os casos difíceis implicam na circunstância de que nossas decisões se alternem
entre a necessidade de cumprir normas e a vontade de cumprir/exercer e agir em
função de valores/princípios de conduta que impomos a nós mesmos, mas que
também esperamos que sejam aceitos pelos demais. A princípio, os casos difíceis
parecem nunca ter resposta suficiente, ou melhor, uma solução satisfatória. Mas a
obrigação de decidir é inapelável, suscitando o engenho de um comportamento
adequado à singularidade de cada caso: “inventar as condutas que mais satisfarão à

40
“As diferenças são grandes. Em primeiro lugar, a noção de precedente tem sentido bem preciso na
esfera jurídica, uma vez que se trata de sentenças proferidas por tribunais de justiça que terão força
de lei enquanto não forem retificadas ou revogadas; em segundo, trata-se de instâncias públicas que
têm autoridade para construir a nova coerência exigida pelos casos insólitos; em terceiro e mais
importante, a responsabilidade do juiz em relação à coerência exprime a convicção, comum à
sociedade considerada, de que a coerência é importante para governar os homens”. (RICOEUR,
2014, p. 323).
41
Nesta obra, Donagan, lembra Ricoeur, faz “uma reconstrução da empreitada kantiana de derivação
de uma pluralidade de deveres a partir do imperativo do respeito devido às pessoas na qualidade de
seres racionais, levando em conta recursos construtivistas do modelo jurídico, mas subordinando a
legalidade à moralidade, como Kant”. (Ibid, p. 324).

50
exceção que requer a solicitude traindo o menos possível a regra” (RICOEUR, 1991,
p. 314), recordamos.
Nesse aspecto, em virtude de se querer viver bem e por ter a intenção de
agregar ao justo um sentido de bom dá-se, então, um novo sentido à justiça
desprendendo-a de seu próprio formalismo. No nível das instituições, pensemos a
sabedoria prática como o que permitiria ações mais justas para tentar amenizar
conflitos interpessoais.
Essa reflexão detém-nos no exame da própria vida e nos leva àquelas
célebres questões: Como devo agir? Como agir eticamente? A ética realmente
importa para nós e/ou nossas relações? Paul Ricoeur nos sugere façamos isso por
meio da perspectiva ética e da norma moral e pelo uso da sabedoria prática,
transformando nossas ações e emoções por meio da estima a si, da solicitude e do
respeito em direção ao outro, tratando em cada situação, a pessoa como fim e não
como meio, no intuito de assegurar a todos (e a si mesmo) o bem e o respeito como
seres humanos. A reflexão é sempre sobre ser agente capaz, que opera e sofre,
protagonista do próprio projeto ético que, segundo nosso autor, lembrado por Elsio
Corá (2011, p. 330), é o projeto da liberdade de cada um e, impossível não
considerar, surge no meio de uma situação que já está assinalada eticamente; as
escolhas, as preferências, as valorizações já vêm de trás e cristalizam-se nos
valores que cada um encontra ao acordar para a vida consciente.
Enfim, podemos ter como ideia básica, a de que, sejam quais forem nossas
escolhas, nossas aspirações e o sentido que queiramos dar para a nossa própria
vida, devemos visar à vida boa [estima e respeito a si] com e para os outros
[solicitude e respeito a outrem] em instituições justas [senso e princípios de justiça],
considerando o universal e o histórico, sob uma das perspectivas possíveis dentre
tantas que outras narrativas éticas sugerem42. Eis o telos do modelo ético de
Ricoeur, definido a partir da pessoa que vive e se compreende no seio de uma
sociedade sob o horizonte do bem.
A pequena ética de O Si-mesmo como outro indica igualmente, que a
sabedoria prática visa conciliar a phrónesis segundo Aristóteles, através da Moralität

42
“[...] o dizer da hermenêutica é um redizer que reativa o dizer do texto. É por meio de uma
imaginação antecipadora do agir que se pode jogar com os possíveis práticos; é com ela que se
podem comparar desejos e exigências éticas; é nesse imaginário que se pode experimentar o poder
de fazer e tomar medida do eu posso ou do também eu posso, que configura uma das dimensões do
homem capaz”. Jardim (2005 apud CORÁ, 2011, p. 335 e 336).

51
consoante a Kant e a Sittlichkeit segundo Hegel43. Não podemos deixar de destacar
que a perspectiva ética teleológica parte inicialmente de uma liberdade que se opõe
neste nível a qualquer obrigação, ou seja, o “ponto de partida de uma ética que é, à
primeira vista, oposto à ideia de lei, não pode encontrar-se a não ser na noção de
liberdade” (RICOEUR, 2011, p. 129), mas que não pode existir sem que se relacione
com a lei moral. Só assim é possível que o desejo ético de cada pessoa tenha
repercussões para todas as demais através da moral normativa, certamente sob o
manto da aspiração à justiça.
Eu posso, eu faço, eu inscrevo meu ato no mundo da tarefa, no curso do
universo e me responsabilizo por ele, fazendo o que me propus a fazer, antes do
mais. A ética é de fato enriquecida na passagem pelo critério de universalização da
norma, convertendo-se numa ética posterior que auxilia o indivíduo no exercício da
sua sabedoria prática, agora não mais a phrónesis ingênua com que inaugura a
pequena ética, mas uma phrónesis crítica, cada vez mais fundamental, sobretudo,
acreditamos, para resolver os problemas que as sociedades atuais introduziram.
Nesse sentido, compreende-se que:

[...] entre a phrónesis ‘ingênua’, com que abre a pequena ética, e a


phrónesis ‘crítica’, presente no juízo moral em situação, expande-se a
região da obrigação moral e do dever, que impõe que o mal, isto é, aquilo
que não deve ser, não seja efetivamente, do mesmo modo que também
exige que seja abolido todo o sofrimento infligido ao homem pelo próprio
homem. À moral segue-se a zona dos conflitos referentes ao trágico da
ação, zona onde, por via da mediação desses conflitos, a phrónesis ‘crítica’
tende a identificar-se à Sittlichkeit de Hegel, desligada esta, porém, de toda
a referência a uma filosofia do Espírito. (SALDANHA, 2009, p. 227).

Faz sentido, destarte, referir-se a uma ética anterior, ao modo Aristotélico e


outra regional, posterior ao momento da obrigação. Uma ética mais fundamental que
a norma, inerente ao reino dos desejos e da liberdade, ainda não perpassada pela
obrigação kantiana e uma ética póstuma, que procura inserir essa mesma obrigação
no plano das situações concretas que compõem a realidade prática: éticas aplicadas
ou regionais, que extrapolam os recursos da norma.
Esta necessidade da ética submetida ou perpassada pela norma surge

43
“Além disso, a phrónesis crítica, por sua vez, tende a identificar-se por meio de suas mediações
com a eticidade (Sittlichkeit). É importante ter presente, que se trata de uma eticidade despojada de
sua pretensão e que, ao mesmo tempo, procura assinalar a vitória do Espírito sobre as contradições
que este suscita a si mesmo. ‘A Sittlichkeit unida à phrónesis é o juízo moral em situação’”. (CORÁ,
2011, p. 331).

52
precisamente quando a regra da justiça, dado o seu formalismo, cria oposições
inerentes à aplicação da norma à singularidade de cada caso. Nas palavras de
Ricoeur (2008, p. 62), a moral, desdobrada em normas privadas, jurídicas e politicas
“constitui a estrutura de transição que guia a transferência da ética fundamental em
direção às éticas aplicadas que lhe dão visibilidade e legibilidade no plano da
práxis”, o que implica no uso daquela phrónesis já crítica, justamente quando os
conflitos são colocados no âmbito da sabedoria prática, através dessa ética já
enriquecida.
Vimos que na pequena ética de O Si-mesmo como outro a “intenção ética em
seu nível mais profundo de radicalidade, se articula numa tríade na qual o si-mesmo,
o outro próximo e o outro distante são igualmente honrados: viver bem, com e para
os outros, em instituições justas”. (RICOEUR, 2008, p. 62).
E na ética de O Justo não é diferente, a tríade da relação entre ética e moral
permanece. Todavia, a moral deixa seu “lugar” intermediário entre a ética
fundamental e as éticas particulares para assumir, refere nosso autor, o termo fixo
de referência pelo qual se garante a transição entre a ética fundamental e as éticas
regionais.
Passemos a analisar então essa nova estrutura para, ao fim da investigação
sobre ambos os esquemas, se for o caso, elegermos o que melhor serve para os
nossos propósitos sem perder de vista que o importante não é bem o lugar da
obrigação ou do desejo, mas de fato “a relação circular pela qual se pode pensar no
movimento que conduz da ética à moral e às éticas como uma espiral” (BOTTON,
2017, p. 157) porquanto uma relação cíclica que não perde de vista a alteridade. O
foco é substancialmente o agir justo que respeita a dignidade do outro tanto quanto
a própria, o desejo raciocinado de querer viver bem compartilhado com o outro
próximo e com o outro distante em sabedoria44 e honestidade.

1.2.2 As éticas regionais de o justo

Podemos afirmar que o ponto de partida desta reflexão de Ricoeur em O

44
“A sabedoria prática é a matriz das éticas posteriores ou aplicadas e consiste na capacidade ou
aptidão em discernir uma regra de ação, sobretudo nas circunstâncias difíceis a que a norma tem
dificuldade em responder. O exercício desta virtude aparece inseparável da qualidade pessoal do
homem sábio, o phrônimos”. (PEREIRA, 2012, p. 06).

53
Justo 245, ou melhor, no primeiro estudo da obra intitulado Da moral à ética e às
éticas46, é a percepção de que a experiência moral fundamental e ordinária nasce do
“entrecruzamento do si-mesmo que se põe e da regra que se impõe”. (RICOEUR,
2008b, p. 03). Mais uma vez nosso autor reafirma a abertura de sua antropologia à
problemática ética. Norma objetiva e imputabilidade subjetiva, tramadas uma à
outra, anuncia, pressupõem um sujeito capaz, “a posição de um si autor de suas
escolhas e o reconhecimento de uma regra que obriga” (RICOEUR, 2008b, p. 03),
sempre apto a posicionar-se como agente, pondo (e criando) a norma que o põe
como sujeito autônomo, sendo inclusive uma questão vigorosamente tematizada
pela filosofia prática kantiana, como demonstra no decorrer de todo o texto.
Ricoeur é explicito e aduz que a “dúvida de fundo” a qual o filósofo de
Königsberg quer responder nada mais é do que: O que desejamos
fundamentalmente? O que, por conseguinte, remonta de uma moral da obrigação
[normativo] a uma ética fundamental, nicomaquéia [optativa] 47. Percebe-se que
nosso filósofo mantém a dialética da pequena ética de 1990 e permanece rejeitando
a tradicional oposição entre o que ele próprio denomina por “reino das normas”
kantiano e “reino dos desejos” Aristotélico48.

45
No prefácio de O Justo 2, Ricoeur adverte que diferentemente de O Justo 1 – onde o eixo principal
passou pela relação entre justiça como regra moral e justiça como instituição, pertinentes, sobretudo,
ao plano jurídico, “[...] o jurídico na feição precisa do judiciário, com suas leis escritas, seus tribunais,
seus juízes [...] o jurídico, apreendido com os traços do judiciário, oferecia ao filósofo a oportunidade
de refletir sobre a especificidade do direito [...]” (RICOEUR, 2008a, p. 03) – em O Justo 2, o conceito
de justo é alçado à posição de adjetivo substantivado, com a força do neutro grego: tò díkaion.
Chama-nos à atenção que em O Justo 1 Ricoeur afirma que ecoa o injusto: “Nosso primeiro ingresso
na região do direito não terá sido marcado pelo grito: É injusto!” (RICOEUR, 2008a, p. 05), enquanto
que em O Justo 2, “É como eco daquela força de choque que digo: O justo”. (RICOEUR, 2008b, p.
01).
46
Da moral à ética e às éticas in O Justo 2, 2008b, pp. 49-62.
47
“Usando uma terminologia tomada da conjugação verbal, podemos formular este triângulo da ação
ética como uma articulação entre o optativo, o imperativo e o interrogativo”. (CLAVEL, MORATALLA e
VELILLA, 1998, p. 83, tradução nossa).
48
“Entre que coisas os sentimentos morais estabelecem uma sutura? Entre o reino das normas e da
obrigação moral, por um lado, e o reino de desejo, por outro. Ora, o reino do desejo foi objeto de uma
análise precisa nos primeiros capítulos da Ética nicomaquéia de Aristóteles”. (RICOEUR, 2008b, p.
53). Acerca da tradicional cisão entre ética do dever ou reino das normas, herdeiros de Kant e da
modernidade e ética da virtude ou reino dos desejos, herdeiros de Aristóteles e dos Antigos,
sugerimos o quadro de distinções elaborado por Stan van Hooft, em seu livro Ética da Virtude, onde o
autor procura distinguir e contrastar, em linhas gerais, ética do dever e ética das virtudes. No quadro,
composto por três colunas que correspondem, respectivamente, a: Tema, A ética do dever e A ética
da virtude, Stan esboça, merecendo transcrição, quanto à Natureza das normas, que em relação à
primeira, a “necessidade prática” é vista como obrigação e obediência e a segunda, a “necessidade
prática” é vista como expressão do caráter e resposta a valores. E ainda, quanto ao que trata cada
uma delas, a ética do dever se pergunta O que devo fazer? e a ética da virtude se pergunta Como eu
devo viver?. (HOOFT, 2013, p. 16 e p. 17).

54
Todavia, tenhamos em mente que o ponto capital agora é o reino das normas,
lugar onde o predicado obrigatório se conecta com o permitido e o proibido; o ponto
de referência principal entre uma ética anterior e fundadora, calcada no
enraizamento das normas na vida e no desejo e uma ética posterior, que aponta
para a inserção das normas em situações concretas da existência ou, no dizer de
João Botton (2017, p. 154) para a “necessidade de recorrência aos expedientes de
avaliação da ação para dirimir os conflitos engendrados pela vacuidade do
formalismo moral”49 – semelhante ao que já mencionamos no primeiro tópico desta
pesquisa. Pode-se ver também que é o momento da sabedoria prática – já
recapitulada da phrónesis aristotélica por Ricoeur na pequena ética – que
corresponde ao ramo da ética posterior, participante dos dinamismos da práxis 50,
tributária então de uma ética fundamental, tocante ao desejo e perpassada pela
obrigação.
É, dito de modo semelhante, a pessoa humana prudente e capaz, apta a
deliberar sobre os melhores meios, quer em relação ao fim, quer em relação às
circunstâncias que definem o objeto da sua ação, observando o momento oportuno
e as razões pertinentes. Vale transcrever as sábias palavras do próprio Ricoeur:

Uma leitura horizontal leva-me a derivar a constituição do si da tríade


formada por querer a vida boa, com e para os outros, em instituições justas.

49
Essa vacuidade pode residir no fato de que a ética do dever ignora a particularidade das situações
moralmente importantes. Aqui vale assinalar o que observa Stan van Hooft (2013, p. 37) em relação à
tradicional oposição entre ética do dever e ética da virtude: “Segue-se que um princípio geral ou
norma é apenas um guia geral ou uma regra que se infere da prática. Ele não vai ditar -lhe o que você
deve fazer em qualquer detalhe. Você tem que formar o seu próprio julgamento, e esse julgamento
vai além daquilo que o princípio apenas lhe diz. Por conseguinte, a decisão a tomar não será
inteiramente ditada pela norma, ela também será expressiva do seu julgamento, da sua experiência,
do seu caráter e da sua virtude. [...] Portanto, você assume um risco sempre que toma uma decisão
difícil. [...] Você assume uma responsabilidade. Esse último ponto é importante. Se fosse verdade que
só pudéssemos deduzir nossas decisões a partir de princípios gerais ou agir meramente em
obediência às leis morais, poderíamos atribuir a responsabilidade pelas nossas ações a esses
princípios ou leis”. Sob esse prisma, sabido, justificou-se o genocídio judeu na grande Segunda
Guerra.
50
Em relação a práxis, gostamos de pensar – e tal reflexão deve acompanhar a leitura de todo nosso
estudo – com Adela Cortina e Emílio Martinez (2001, p. 147), ao compreender que no tocante à Ética
Aplicada “não basta refletir sobre como aplicar os princípios éticos a cada âmbito concreto: é preciso
levar em conta que cada tipo de atividade tem suas próprias exigências morais e proporciona seus
próprios valores específicos. Não parece conveniente fazer uma aplicação mecânica dos princípios
éticos aos diferentes campos de ação, é mister averiguar quais são os bens internos que cada uma
dessas atividades deve trazer para a sociedade”. Evidentemente que a justificativa de Ricoeur nesse
sentido também deve nortear a leitura de nossa tese, valendo lembrar que para ele a ética aplicada
ou uma ética que “distribui-se entre campos dispersos de aplicação” pressupõe que o projeto de vida
boa com e para os outros em instituições justas pressupõe que passe ao mesmo tempo pelo crivo do
juízo moral e pela “prova de aplicação prática em campos de ação determinados”. (RICOEUR, 2008b,
p. 03).

55
Uma leitura vertical segue a progressão ascendente que, partindo de uma
abordagem teleológica guiada pela ideia do viver-bem, atravessa a
abordagem deontológica na qual dominam norma, obrigação, proibição,
formalismo e procedimento, terminando seu percurso no plano da sabedoria
prática que é o plano da phrónesis, da prudência como arte da decisão
equitativa em situações de incerteza e conflito, portanto, no ambiente do
trágico da ação. (RICOEUR, 2008b, p. 65).

No reino das normas estão em jogo, sublinhamos, os princípios do proibido e


do permitido e ao mesmo tempo, o sentimento de obrigação, “como face subjetiva
da relação de um sujeito com normas” (RICOEUR, 2008b, p. 49), de um sujeito
obrigado. Nesse sentido, Ricoeur toma como ponto de partida, à maneira de Moore,
o caráter irredutível do dever-ser ao ser, tornando possível justificar a dimensão
normativa da moral em comunhão com a ideia de formalismo 51. Formalismo que, diz
ele agora (RICOEUR, 2008b, p. 52), assim como todas as máximas de ação
oferecidas ao juízo moral, apenas neutraliza o desejo e deixa intacta, contudo de
modo profícuo, a questão da motivação da ação.
Alguma condenação ou mesmo crítica ao reino da vida aristotélico em Kant
cabe ao critério de universalização: “O que obriga na obrigação é a reivindicação de
validade universal vinculada à ideia de lei”. (RICOEUR, 2008a, p. 13). Nesse
sentido, o dever não é inimigo do desejo – e nem pode ser, em Ricoeur. Mais uma
vez bom e obrigatório, teleológico e deontológico não se opõem, evitando-se a
separação que a tradição filosófica costuma estabelecer entre a moral dos Antigos e
a moral dos Modernos. Assim é que em Ricoeur, a possibilidade do reconhecimento
mútuo e da reaproximação entre Aristóteles e Kant ou dos Antigos e dos Modernos,
“não decorre da ética nem da moral, mas de uma antropologia 52 filosófica que
fizesse da ideia de capacidade53 um de seus conceitos diretivos”. (RICOEUR,
2008b, p. 57).

51
No início deste capítulo levantamos aspectos negativos do formalismo de Kant em Ricoeur e assim
como ele, consideramos que foi responsável também pela ruptura com a tradição teleológica,
inaugurando a fenda entre as tradições predominantes na ética ocidental: a Moral dos Antigos e a dos
Modernos, dito logo a seguir. Ainda assim, vale recordar de um trecho do texto Simpatia e Respeito:
fenomenologia e ética da segunda pessoa, que aponta para um importante aspecto do formalismo
kantiano: “Não adianta censurar Kant por seu formalismo: a pobreza mesma do formalismo é sua
razão de ser. Mesmo que seja por outro lado o fruto amargo de uma desconfiança ranzinza acerca da
afetividade, é antes de tudo uma exigência de método. [...] Kant nunca disse que uma moral efetiva
deveria permanecer formal. Ele repete sem se cansar que a determinação completa seja lá do que for
é indivisivelmente forma e matéria”. (RICOEUR, 2009, p. 322 e 323).
52
Indo ao encontro do que se afirma no início do tópico “a abertura de sua antropologia à
problemática ética”.
53
É válido observar, como fez João Botton (2017, pp. 161-162), desde já, que essa capacidade em
Ricoeur também pode ser: “Uma capacidade negativa, porque não é exatamente um poder de fazer,

56
Tanto é que nosso autor pergunta, enquanto afirma que a moral formal tem
como pano de fundo uma questão antropológica: “quais são as características
fundamentais que tornam o si capaz de estima e respeito?”. (RICOEUR, 2008b, p.
21). Recordando-se, como lemos anteriormente, que a estima é componente do
predicado bom e o respeito, componente do predicado obrigatório.
Além disso, Ricoeur sugere que Kant insiste em preservar, acima de qualquer
coisa, o conceito de obrigação, utilizando uma estratégia de depuração que consiste
em excluir tudo o que não preserve o legítimo uso deste termo. Isso é corroborado
pelo sentimento do respeito54 acentuado na segunda formulação do imperativo
categórico, depois dos critérios de universalização e racionalidade, colocados em
evidência na primeira formulação.
Ricoeur segue celebrando a moral kantiana, mas adverte que a dimensão dos
sentimentos, tão rejeitada por Kant, é o que de fato abre caminho para o reino dos
desejos e da vida, e é também nela (na dimensão dos sentimentos morais) que se
dá a articulação entre moral e ética. Ou a afetividade também não é móbil para a
ação moral? Certo que sim, mormente se considerarmos que a subjetividade
humana não se limita à sua dimensão normativa. Desponta aqui a problemática da
vontade e a constatação da complexidade da imparcialidade do reino da obrigação,
do uso da razão a priori do agir por dever.
Lendo Stan van Hooft (2013, p. 44), acerca das distinções entre a ética da
virtude e a ética do dever, chama-nos a atenção a expressão que ele realça, qual
seja, a “fraqueza da vontade” que ocorre quando, ciente dos princípios morais todos
que devem nortear o agir ou então, o perfeito juízo de que uma ação é correta,
decidimos ainda assim, não praticar a ação. Qual o “empecilho”, afinal? Aí parece
faltar a virtude no agir, leia-se a coragem, a sinceridade, a determinação ou mesmo
a persistência para a ação moral do sujeito. E a questão de saber como ligar o

mas uma capacidade de reconhecer-se no acusativo. Distingue-se então o obrigatório, determinado


pelas ações que compõem o conteúdo das normas morais sob a forma da interdição, e a relação do
sujeito que se põe ou não sob o comando da ordem pelo sentimento de obrigação que o faz
reconhecer sua pretensão de legitimidade (RICOEUR, 2008, p. 51-52). O que depende da
capacidade de entrar em uma ordem simbólico-prática na qual a norma ‘faça sentido’”.
54
Ricoeur pondera, dentre outras assertivas, sobre o respeito em Kant, que o “[...] respeito enquanto
móbil é a introdução de um fator de passividade no próprio cerne do princípio da autonomia. É essa
conjunção no respeito entre a autoafirmação e a autoafetação que nos autorizará a questionar, no
próximo estudo, a independência do princípio da autonomia – orgulho da concepção deontológica da
moralidade – em relação à perspectiva teleológica, em outras palavras, a pôr em dúvida a autonomia
da autonomia”. (Id, 2014, p. 243). Contudo, cabe adiantar ao leitor que mais adiante veremos o
respeito em Kant se distinguir de todos os demais sentimentos, de que forma isso ocorre e no que
implica para a ética da segunda pessoa.

57
pensamento moral à ação moral persiste: “Uma coisa é concluir a partir de princípios
que uma determinada ação deve ser feita, e outra, bem diferente, é estar motivado a
fazê-la”. (HOOFT, 2013, p. 44).
Enquanto a razão a priori é, para a ética do dever, a única motivação para a
ação, ou seja, o pensamento puramente formal destituído de inclinações ou
sentimentos, para a ética da virtude, entretanto, também a afetividade pode nos
orientar e motivar nosso agir racional. Isso já basta para justificar a heterogeneidade
da ação moral, inclusive a dificuldade de classificá-la (a ação moral) como
estritamente virtuosa, ao modo dos Antigos, ou estritamente normativa, à maneira
dos Modernos.
De fato, dada a peculiaridade de cada caso, razão e desejo, sem estabelecer-
se qualquer medida, podem concomitantemente motivar a ação ou a decisão moral.
É inevitável, então, não pensar que há algo além do dever, oculto na motivação ou,
como acredita Ricoeur, algo que permite um “parentesco subterrâneo” entre desejo
e dever.
Nosso autor segue desse modo, argumentando em favor da aproximação
entre Aristóteles e Kant. Neste momento, por outra via, melhor dizendo, pela ideia de
boa vontade – mesmo que tal problemática se apresente de maneira diversa em
cada um dos dois filósofos.
Michel Renaud (2013, p. 91), ao analisar esse trecho do texto de Ricoeur 55,
remete ao aristotélico Augustin Mansion, responsável por constatar que os gregos
não conheceram o conceito de vontade como faculdade. Ricoeur se aproxima dessa
perspectiva quando alega que é o conceito de prohaíresis, capacidade de
preferência racional [ou preferência razoável] dos gregos que ocupa o lugar da
vontade à maneira moderna, isto é, do conceito latino voluntas como intenção
voluntária que “desenrola sua própria história de maneira contínua dos medievais
aos cartesianos, aos leibnizianos e até mesmo a Kant”. (RICOEUR, 2008b, p. 55).
Ocorre, prossegue Ricoeur, que o conceito moderno de vontade também se
encontra fortemente marcado, em nossa história cultural, pela reflexão cristã sobre a
vontade má56, que de certa forma maculou o conceito de intenção voluntária, pois a

55
Da moral à ética e às éticas.
56
Michel Renaud (2013, pp. 91 e 92) também informa que o conceito de vontade como faculdade foi
introduzido “no Ocidente principalmente por Santo Agostinho, assim como pela disputa teológica
sobre as duas vontades de Cristo”. E prossegue, afirmando que “Para Ricoeur, a origem do
protestantismo está ligada à tese de corrupção da vontade, de tal modo que, em termos rigorosos, já

58
atrela ao mal. Dito diversamente, a boa vontade ou uma preferência razoável da
teleologia dos Antigos mesmo que não seja a mesma vontade de que trata a
modernidade, ainda assim soa como fraqueza, vontade má ou corrupta. A partir da
deontologia dos modernos vontade e razão mantêm-se apartadas e a razão
prevalece sobre qualquer aspiração.
Sem embargo, Ricoeur insiste em “salvar” o elo entre o reino da vida e dos
desejos e o reino das normas e argumenta que embora a meditação cristã 57 tenha
contribuído para a cisão entre a ética dos Antigos e a dos Modernos com a oposição
entre as vontades grega e latina, o liame entre a intenção voluntária e “a mirada da
vida boa” não se desfez. [...] “a problemática moral do obrigatório não eclipsa a
questão do bom”. (RENAUD, 2013, p. 92). Ricoeur explica isso, retomando o
próprio Kant e a declaração feita no início do texto da Fundamentação da Metafísica
dos Costumes58: “E de tudo o que é possível conceber no mundo e mesmo em geral
fora do mundo, nada há que possa sem restrição ser considerado bom, a não ser
apenas uma vontade boa”. (RICOEUR, 2008b, p. 55).
Embora, em Kant, o predicado bom seja drasticamente reduzido à norma e
“aos critérios de universalização que a validam. [...] essa redução pressupõe, em
termos problemáticos, a preconcepção de alguma coisa que seria a bondade de
uma vontade boa”. (RICOEUR, 2008b, p. 55). Na Crítica da razão prática, lembra
nosso autor, Kant pondera sobre os “móbeis da razão pura prática”, ou melhor, do
“princípio subjetivo” da determinação da vontade, sobre o que tem “influência sobre
a vontade”, que pode inclinar a mergulhar numa ordem simbólica59, expressa
Ricoeur, capaz ou de coagir a uma ação conforme ou estruturar a ação. Essa ordem
simbólica vai além do domínio da norma e constitui o âmbito no qual os sentimentos
morais estimulam e educam a vontade boa. Ela engloba normas inerentes à cultura,

não se poderia falar de uma vontade ontologicamente boa. Como, então, coadunar um discurso ético
sobre a vontade boa se esta – ‘na moral dos modernos’, como diz Ricoeur – se tornou vontade má?”.
57
Quanto a isso, vale lembrar o que já trouxemos ao texto, que um discurso de moralidade concebido
como um conjunto de imperativos universais, determinados e irrefutáveis, ao modo de Kant, também
“têm o seu fundamento ou nos mandamentos de Deus (teoria do mandamento divino), ou na natureza
humana (teoria do direito natural), ou na razão (deontologia kantiana)”. (ABREU, 2015, p. 223).
58
“Eis que Kant, nessa citação bem conhecida, mostra que a problemática moral do obrigatório não
eclipsa a questão do bom”. (RENAUD, 2013, p. 92).
59
“E essa ordem simbólico-prática remete precisamente ao que se descrevia acima como as
condições de fiabilidade que tornam possíveis as formas de vida em comum. Por isso, esse
sentimento de estar obrigado, que supõe a capacidade de se por como agente responsável por suas
ações, envia inevitavelmente ao componente de desejo e aspiração que compõe a ética fundamental,
em um movimento de vaivém entre a perspectiva ética e a normatividade moral”. (BOTTON, 2017, p.
161).

59
à educação e à sociedade, presentes nos costumes e exigências de nossa
existência – não são apenas deveres propriamente ditos.
Essa mesma ordem, garante o mais importante: como é o elo entre o si-
mesmo e o dever, permite-lhe seja capaz de se ver e se compreender como ser
autônomo: “[...] o regime da autonomia moral apenas surge quando o sujeito aceita a
força normativa daquilo que a ordem simbólica lhe propicia e põe à sua disposição”.
(RENAUD, 2013, p. 89). Com Kant, por fim, o entrecruzamento dos reinos do desejo
e da obrigação vem também com uma tese exposta em A religião nos limites da
simples razão, mais especificamente da distinção entre propensão e disposição.
A vontade tem propensão para o mal, o que não impede que se mantenha
disposta para o bem. Renaud (2013, p. 93) observa que esse estudo de Kant sofreu
duras críticas por distinguir-se da concepção luterana de pecado original, “na medida
em que a existência do mal radical não se identifica com um mal ontológico”.
Ricoeur louva Kant justamente por essa “regeneração” da vontade cristã, vontade
que diferente de outrora, responsabilizada pela cisão entre Antigos e Modernos,
agora os une. A vontade regenerada de Kant se traduz na “coragem de ser” ou na
disposição para o bem, na capacidade que Ricoeur tanto defende para que seja
possível imputar ao agente a responsabilidade por seus atos, e destarte: “A
possibilidade de a moral dos Antigos e a dos Modernos poderem unir-se,
reconhecer-se e saudar-se mutuamente”. (RICOEUR, 2008b, p. 57).
Na esteira da explicação dessa proposta de comunhão entre desejo e dever,
doravante com Aristóteles e seu discurso estruturado sobre a práxis, situado na
esfera subjetiva do agente moral, Ricoeur avalia, num primeiro momento, que a
partir do conceito de prohaíresis, isto é, a capacidade de afirmar “isto é melhor que
aquilo” e logo agir conforme essa preferência, essa escolha, orbitam outros
conceitos, outras “excelências da ação com o nome de virtudes” (RICOEUR, 2008b,
p. 54) responsáveis por guiar as práticas humanas e, sucessivamente, nossos
hábitos.
Conforme o filósofo, a virtude consiste de maneira essencial, no modo de agir
sob a orientação da preferência racional, guia as boas práticas, as nossas escolhas
profissionais, nosso tipo de vida e nos orienta, por meio de um “conceito mediador”:
a tarefa, o érgon que pode nos mover na busca de uma vida humana em sua
integridade. Em outras palavras, por trás da “mirada da vida boa” e com ela, num
“horizonte aberto” estão “todas as figuras móveis daquilo que consideraríamos sinais

60
de uma vida realizada”. (RICOEUR, 2008b, p. 54). Em Aristóteles, assim, temos o
que Ricoeur denomina capacidade estruturadora, que nada mais é do que aquilo
que inclina a pôr-se sob a lei, naquela ordem simbólica que, já mencionado no texto,
nos constrange e nos leva a planejar nossa conduta.
Ricoeur consegue, nesse momento, demonstrar que os predicados bom e
obrigatório se encontram em níveis da filosofia prática e certamente por isso não
podem ser opostos. A vontade como virtude, que não pode e não deve nos limitar é
correspondente da vontade boa que existe por trás do dever kantiano, móbeis tanto
para o fim da vida feliz, quanto para a obrigação de uma vida justa, nas esferas
individual e social ao mesmo tempo. Agir por bem ou agir por dever não implicam,
necessariamente, em condutas rivais, não conciliáveis – o que tradicionalmente vêm
guiando nosso comportamento, nossa cultura, nossas leis. Com isso, nosso autor
deixa claro que há uma ligação (pelo conceito de vontade, então) entre a prohaíresis
da Ética nicomaquéia ao desejo de “viver bem” que a coroa com o conceito de
vontade boa e com o conceito de respeito modernos60 (RICOEUR, 2008b, p. 56).
Devemos seguir pensando no predicado obrigatório – no isto deve ser feito,
exemplifica Ricoeur – que associado à gama de proposições da ação humana torna
possível “especificar a ideia de norma com a ideia de formalismo”. (RICOEUR,
2008b, p. 51). Em mais um movimento dialético, caminha-se do dever-ser em
direção ao ser, “em direção à instância da moralidade que impõe o respeito de
outrem como regra constitutiva não só da vida em comum, mas da própria ipseidade
do si”. (BOTTON, 2017, p. 155). Sempre o que se quer demonstrar é que o desejo
de uma vida realizada, ao passar pelo cunho da norma e consequentemente, pela
exigência de racionalidade, transmuta-se em razão prática ajustada pelo formalismo
da regra. Isso não significa em hipótese alguma ditar o que é preciso fazer. É mister,
contudo, estabelecer-se a qual critério importa submeter as máximas de ação moral.
Desse modo, o desejo ou a felicidade, os sentimentos morais, enfim, são isolados,
postos à parte, mas não porque sejam considerados desprezíveis ou estritamente
irracionais e sim, pelo seu caráter peculiar e contingente que não satisfaz a
exigência de universalidade.
É dizer igualmente, que o imperativo de Kant “Age unicamente de acordo com
a máxima que, ao mesmo tempo te faça querer que ela se torne lei universal” não

60
Vontade boa dos Fondements de la philosophie du droit e ao conceito de respeito da Critique de al
raison pratique (RICOEUR, 2008b, p. 56).

61
revela as proposições da ação que dão conteúdo à forma do dever – o que em
Ricoeur é suficiente para sustentar uma dialética entre os dois reinos (da norma e do
desejo). “Em Kant a possibilidade de universalidade é o critério da moralidade, um
critério que, para ser coerente com o deontologismo proposto pelo filósofo de
Königsberg, precisa ser vazio de conteúdo, absolutamente formal”. (BOTTON, 2017,
p. 157). Ao formalismo da norma corresponde a universalidade formal da norma,
tendo em conta que só podem ser tidas como obrigatórias as máximas de ação que
satisfazem ao teste de universalização. O formalismo remete imediatamente ao
universal, este último tomado por Ricoeur como “experiência moral comum” e é o
que faz Kant na ponderação de que a universalidade do dever-ser não pode provir
de uma situação de fato.
A partir daí, de modo a compreender o elo entre obrigação e formalismo –
especificando “a ideia de norma com a ideia de formalismo” (RICOEUR, 2008b, p.
51) – é que Ricoeur aponta para um caminho diverso no âmbito do normativo: a
posição do sujeito obrigado. Percebe que o que se diz das ações e das máximas de
ação não pode não ser o mesmo que se diz da relação de um sujeito obrigado com
a obrigação. Conforme João Botton (2017, p. 157) uma ação não pode ser vazia de
conteúdo e ao passar pelo critério de universalidade, ela gera uma multiplicidade de
regras positivas, sem contar com as aspirações e desejos dos indivíduos envolvidos.
Entre em cena a subjetividade, na correspondência entre a norma objetiva e uma
obrigação.

A experiência moral não pede nada mais que um sujeito capaz de


imputação, entendendo-se por imputabilidade a capacidade de um sujeito
para designar-se como autor verdadeiro de seus próprios atos. [...] direi que
uma norma – seja qual for seu titular – implica como defrontante um ser
capaz de entrar numa ordem simbólica prática, ou seja, de reconhecer nas
normas uma pretensão legítima a regular as condutas. (RICOEUR, 2008b,
p. 52).

Michel Renaud (2013, p. 86), corrobora o entendimento de Ricoeur quanto à


correlação entre o conceito objetivo de norma e o polo subjetivo do imperativo, este
último, nada mais do que a liberdade prática.
Assim, diz que em Ricoeur a liberdade prática pressupõe a imputabilidade ou
“essa capacidade propriamente ética, [...] capacidade de reconhecer-se como autor
verdadeiro de seus próprios atos” (RICOEUR, 2008b, p. 57) que pode ser,
sobretudo, associada concomitantemente ao conceito grego de prohaíresis ou

62
preferência razoável, pertinente ao mundo da vida e ao conceito kantiano de
obrigação moral61, pertinente ao mundo da norma. A imputabilidade, por sua vez,
pressupõe a capacidade do sujeito, o ser humano capaz, agente que ao assumir-se
como capaz de fala, de atitude, de auto narrativa, põe a norma que o põe como
sujeito (livre).
É interessante como Ricoeur (2008a, p. 35) observa que o verbo imputar, no
campo semântico, é fundado pelo verbo responder [responder por..., responder a...]
fora do campo semântico. O verbo imputar possui uma primitiva relação com
obrigação ou retribuição. “Imputar é atribuir a alguém uma ação condenável, um
delito, portanto uma ação confrontada previamente com uma obrigação ou uma
proibição que essa ação infringe”. (RICOEUR, 2008a, p. 36). E recorda que no
Dicionário francês Robert “imputar uma ação a alguém é atribuí-la a esse alguém
como a seu verdadeiro autor, lançá-la por assim dizer à conta e torná-lo responsável
por ela”. (RICOEUR, 2008a, p. 36).
Essa definição, para nosso filósofo, é notável por dois ângulos: (1) a
referência ao agente, ou seja, a atribuição de uma ação a alguém como seu
verdadeiro autor e (2) o que há por trás da metáfora “lançá-la [a ação] por assim
dizer à sua conta” (RICOEUR, 2008a, p. 36), ou seja, uma espécie de “contabilidade
moral” que sugere a ideia de um “dossiê-balanço” para registro de nossos débitos e
créditos, à vista de um saldo positivo ou negativo que nos permite, então, avaliar
nossas ações, nossa responsabilidade e, ao mesmo tempo, nossa capacidade,
assumindo nossos atos, cumprindo certos deveres, atendendo a certos
compromissos, cuidando do outro, “dar conta, no sentido de relatar, narrar, ao cabo
de uma espécie de leitura desse estranho dossiê-balanço”. (RICOEUR, 2008a, p.
37).
A propósito, Ricoeur adverte que a noção de capacidade é fulcral em seus
estudos em O Justo: “A capacidade de alguém se designar como autor de suas
próprias ações está de fato inserida num contexto de interação no qual o outro figura
como meu antagonista ou meu coadjuvante, em relações que oscilam entre o
conflito e a interação” (RICOEUR, 2008, p. 27) e “Ela constitui o referente último do
respeito e do reconhecimento do homem como sujeito de direito”; a questão jurídica

61
“[...] é do núcleo dessa capacidade que se projeta o querer ‘grego’ viver bem e se abre o drama
‘cristão’ da incapacidade de fazer o bem por si mesmo sem uma aprovação vinda do alto e dada à
‘coragem de ser’, outro nome daquilo que foi chamado disposição para o bem e que é a própria alma
da vontade boa”. (RICOEUR, 2008b, p. 57).

63
sobre quem é o sujeito do direito não é diversa da questão moral sobre quem é o
sujeito digno de estima e respeito. Na análise sobre a capacidade, Ricoeur pergunta
mais uma vez como fez em O Si-mesmo como outro: “Quem fala? Quem age?
Quem narra? Quem é responsável por seus atos?”.
São os quatro níveis do homem capaz, que carrega consigo mesmo (1)
capacidade de falar e de autodesignar-se autor de seus atos, que tem grande
significado para a atribuição posterior de direitos e deveres 62; (2) capacidade de agir,
de assumir-se como autor da ação (3) capacidade de narrar e compreender sua
própria história, numa identidade narrativa de autocompreensão e autoconhecimento
que permite distinguir a identidade do si da identidade das coisas e, por conseguinte,
a aceitação das mudanças históricas das comunidades, reconhecendo a identidade
também do outro, da mutabilidade das personagens das histórias que contamos
“urdidas simultaneamente à própria história” e, por fim (4) capacidade de imputação,
por meio da introdução dos predicados bom e obrigatório que tornam possível
distinguir ou classificar as ações como boas ou más, permitidas ou proibidas, alheias
ou pessoais e, com isso, imputar-se a devida responsabilidade seja por autoestima,
respeito próprio e/ou auto-avaliação: “Um sujeito de imputação resulta da aplicação
reflexiva dos predicados ‘bom’ e ‘obrigatório’ aos próprios agentes”. (RICOEUR,
2008a, p. 24).
Eis porque o sentimento de estar obrigado, isto é, o lado subjetivo da
obrigação moral é, para Ricoeur, o que liga o reino das normas ao reino da vida e
dos desejos em O Justo. A obrigação moral do sujeito capaz [e capaz de justiça 63] é
assim, correlata às normas, sem desconhecer a seara da vida e dos desejos, pois
essa é uma questão que, se num primeiro momento é colocada entre parênteses no
nível da moralidade, não deixa de estar presente e de fazer parte integrante da
constituição do sujeito como capaz e da sua vida como história contada.
Uma ética fundamental e anterior à norma é, com tudo isso, uma ética
calcada no desejo de vida feliz já apontando, entretanto, em direção ao reino das

62
Importa destacar, mormente em consideração ao tema da tese, que todos esses níveis da
capacidade representam também o reconhecimento do outro “como meu igual em termos de direitos
e deveres. [...] um eu e um tu, cujos lugares podem ser trocados, sem que as pessoas deixem de ser
insubstituíveis”. (RICOEUR, 2008a, p. 26).
63
“Trata-se de um sujeito capaz de agir com justeza, de falar justamente, de contar o que é ser justo
e também de julgar uma ação a partir da imputação de uma responsabilidade conferida. Seja a si
mesmo, seja ao outro, esse sujeito capaz de justiça deve fazer sua busca a partir de questões que
permitem um entendimento sobre sua identidade, como uma autocompreensão de sua capacidade de
justiça. Eis a busca pelo homem justo na filosofia de Paul Ricoeur”. (ROSSETTI, 2015, p. 69).

64
normas: “[...] é o pensamento de Kant que serve como pano de fundo”. (RENAUD,
2013, p. 90). A própria existência da ética importa na sua relação com a moral: o
desejo ético de cada sujeito não existe desvinculado do reino da vida e tem
repercussões – para si mesmo, para o outro próximo e para o outro distante –
imediatamente engendradas pela moral normativa. A moralidade de Kant é
significativa precisamente porque permite a passagem dos desejos éticos do plano
teórico para o plano da razão prática, garantia da liberdade prática, da
universalidade como desejo de distribuição equitativa de direitos e deveres e de
justiça.
Chega o momento então, da ética fundamental, já esclarecida, passar para o
estágio pós-moral, correspondente à sabedoria prática de O Si-mesmo como outro,
agora no campo da ação concreta, do juízo moral em situação, que encarna o
destino do desejo e da obrigação. A sabedoria prática é a matriz das éticas
aplicadas e, já visto no tópico anterior, traduz-se pela aptidão ou habilidade para
inventar uma regra de ação, principalmente nas circunstâncias mais complexas às
quais a norma nem sempre responde ou definitivamente não consegue responder. O
desempenho dessa virtude ocorre inseparável da qualidade pessoal do humano
sábio, o phrónimos. Somente no campo da ação concreta, diante das situações
singulares, no contexto das éticas aplicadas, regionais ou posteriores que o humano
prudente, capaz, livre, pode ser posto à prova.
O que parece mais diferente neste estudo de O Justo em relação ao momento
do phrónesis da pequena ética de 1990, é a constatação de que o território da ação
concreta é diverso: “[...] são éticas regionais que, em conjunto, são abrangidas pela
substituição do plural (éticas posteriores) ao singular (sabedoria prática)” (RENAUD,
2013, p. 95) e que no livro vão se debruçar sobre dois exemplos particularmente
elementares: a ética médica e a ética judicial.
Ricoeur inaugura o tópico afirmando que essas éticas posteriores são
encontradas tanto em Aristóteles quanto em Kant. E de que maneira? Em Kant, a
evidência, num primeiro estágio, está no imperativo e suas três formulações ou três
complementos. As três fórmulas “distribuem o imperativo” por três esferas: a do si-
mesmo [por meio da persistência de si mesmo], a do outro [na solicitude para com o
próximo] e a da pólis [na participação cidadã junto à soberania]. De acordo com a
primeira formulação do imperativo, lei moral [ética] e lei natural [física] são
aproximadas e como supõe Ricoeur, vem daí uma regularidade que implica na

65
persistência de si através do tempo pressuposta, sobretudo, no respeito à palavra
empenhada esculpida em promessas, pactos, acordos e tratados que ajustamos.
Por conseguinte, a segunda formulação do imperativo que sugere o respeito a
outrem, faz um apelo para que a pessoa em mim [e em outrem] jamais seja tratada
como meio, mas [cada uma] como um fim em si. Nesse sentido, a identidade deve
arranjar-se com o respeito ao próximo na combinação ou permuta das expectativas
em torno da palavra dada. E finalmente, “a obrigação de considerar-se ao mesmo
tempo súdito e legislador na cidade dos fins pode ser interpretada de maneira
extensiva como a fórmula geral das relações de cidadania num Estado de direito”.
(RICOEUR, 2008b, p. 58). Significa, portanto, perceber que cada formulação do
imperativo, correspondendo a cada umas das três pessoas da ética de Ricoeur (o si-
mesmo, o outro próximo e o outro distante ou o cada um da instituição) só se tornam
máximas concretas da práxis quando rearticuladas em éticas regionais – é dessa
especificidade do campo de ação ético que precisamos para expor ou mostrar
melhor nosso projeto de vida boa, projeto, não esqueçamos, de desejo racionado, já
perpassado e garantido pela obrigação moral.
Em Aristóteles, Ricoeur percebe uma espécie de “vai-e-vem entre virtudes e
virtude”, isto é, entre as éticas [virtudes] e a phrónesis [virtude intelectual], esta
última igualmente retomada pelos latinos como prudência, que pode ser considerada
a matriz das éticas posteriores. Nosso autor esclarece que da reinterpretação das
figuras de excelência das ações surge a “ideia nua de virtude” (RICOEUR, 2008b, p.
59) e, como resultado, a enumeração possível das situações éticas práticas a das
excelências equivalentes. Só para exemplificar, Ricoeur nos recorda do quanto
textos memoráveis como a literatura de Homero ou de Sófocles ainda podem nos
guiar pelo caminho da vida boa, tendo em conta os perfis de vício e virtude que
neles encontramos: “A compreensão que, pela leitura, ainda temos desses perfis de
virtude deveria convidar-nos não só a reler esses tratados, mas também a
reescrevê-los em benefício de alguma moderna doutrina das virtudes”. (RICOEUR,
2008b, p. 59).
Diante dos desafios e das circunstâncias especiais da ação, a phrónesis
aristotélica, ou a capacidade de discernir entre os vícios e as virtudes torna-nos
aptos a perceber e escolher a regra acertada [orthòs lógos]. A prudência, assim,
pode ser submetida à prova prática no terreno das éticas aplicadas.

66
Por outro lado, é pertinente observar que essa(s) ética(s) posterior(es),
firmadas na seara da práxis advém dos nossos conflitos, engendrados pela
necessidade de escolha e consequentemente do agir humano, que demonstram a
transição da ética fundamental para o nível das éticas regionais, que vão além dos
recursos que a norma oferece. Os casos que Ricoeur evoca das éticas médica e
judicial aparecem como exemplos das questões com que a sociedade tem de se
confrontar ao nível do pensamento ético-moral; e especialmente nos dois setores
“está presente um saber de natureza teórica, implicando regras”. (RENAUD, 2013, p.
96).
Ricoeur pede permissão para usar a expressão “parentesco fronético” entre a
ética médica e a judicial, ambas com “semelhanças estruturais de aplicação de uma
regra a um caso e de subsunção de um caso a uma regra” (RICOEUR, 2008b, p.
61), mantendo uma analogia de forma no nível da elaboração do juízo e da tomada
de decisão. “Dos dois lados, cumpre passar de um saber constituído de normas e
conhecimentos teóricos para uma decisão concreta em situação: prescrição médica,
por um lado, e sentença judiciária, por outro”. (RICOEUR, 2008b, p. 60). Assim,
ainda que do lado médico seja o sofrimento e do lado judicial, todavia, o conflito que
pedem, cada qual a seu modo, a tomada de decisão pelo médico e pelo juiz,
respectivamente, ambos têm em comum a progressão do juízo [singular] diante da
aplicação da regra. A decisão é, em ambos, sempre única, concreta e pronunciada
numa situação particular. É sempre uma escolha, uma criação que, na dialética
entre o bom e o obrigatório, “se refere à aplicação da virtude da justiça em esferas
determinadas de ação”. (RICOEUR, 2008b, p. 05).
Quase ao fim do artigo Ricoeur retoma brevemente a questão da solicitude,
tão cara à pequena ética e a nossa pesquisa. Realça que a solicitude é a
característica da ética fundamental à qual a ética médica dá visibilidade. É a
solicitude que obriga o médico a socorrer paciente com risco de vida. E é também a
solicitude que garante ao paciente conhecer do médico a verdade de seu caso. Dito
de outro modo, a solicitude passa pelo crivo do sigilo médico ou pelas “regras [...]
que conferem ao pacto de tratamento as características de uma deontologia
aplicada”. (RICOEUR, 2008b, p. 62). Visada da vida boa e obrigação andando
juntas, portanto.
Finalmente, nosso autor corrobora que a moralidade é igualmente o (1) plano
de referência da anterior ética fundamental e da posterior ética aplicada e a (2)

67
estrutura de transição que norteia a passagem da ética fundamental para as éticas
aplicadas (RICOEUR, 2008b, p. 62). De todo, a ética médica [corpos], com as regras
inerentes ao saber biológico e as diretrizes das políticas públicas e a ética judiciária
[corpo social], com o saber doutrinário dos juristas, as exigências legais do Poder
Judiciário e as políticas penais do Estado, são exemplares da sabedoria prática
porque unem saberes e normas a situações concretas de julgamento: “curar, por um
lado; pacificar, por outro”. (RICOEUR, 2008b, p. 42).
Em conclusão a este tópico, podemos aduzir que apesar da mudança do
esquema da pequena ética, acentuando-se agora o nível normativo, Ricoeur não
abandona perspectivas fundamentais da tríade ética de 1990 e um ponto comum
entre elas é indiscutivelmente importante: só existe ética para um ser capaz de
interação e de autodesignação enquanto agente de sua ação. Nesse sentido, ele
aduz:

É deste modo que se juntam a tríade ética (cuidado de si, cuidado do outro,
cuidado da instituição) e a tríade práxica (adscrição da ação a seu agente,
interação que ocorre entre agentes e pacientes, aferidores de excelência
que definem os graus de sucesso e completude dos agentes e dos
pacientes nas profissões, jogos e artes). (RICOEUR, 1996a, p. 176).

A originalidade de Ricoeur vem desde a pequena ética, na relação de


complementaridade celebrada entre a Ética e a Moral, na concepção de que uma
nasce da outra ou das possíveis insuficiências mútuas de cada uma delas, exigindo
a passagem [ou a transpassagem], o elo entre teleologia aristotélica e deontologia
kantiana. Bom e obrigatório não são incompatíveis, nem se excluem mutuamente.
Pelo contrário, se fomentam, se transformam e se engrandecem. E é na seara das
éticas posteriores ou aplicadas, diante das situações singulares, onde se pode, com
prudência e por dever, discernir sobre como e o que devemos ser e fazer em
alteridade.
Importa igualmente, quanto às duas formulações da ética ricoeuriana – tanto
a de O Si-mesmo como outro, quanto a de O Justo – que se trata de um si
autônomo64 na condição de agente capaz e em processo de interação seja com o

64
Quanto à autonomia em Ricoeur e igualmente, quanto a revisão da pequena ética, é interessante
transcrever uma anotação de Michel Renaud (2013, p. 102): “Na revisão de 2001, a viagem moral de
Ricoeur iniciou-se com a verificação da presença empírica de normas e proibições; à primeira vista, o
conceito de autonomia pareceu oferecer base suficiente para sua fundamentação, mas a força dos
sentimentos morais operou a viragem para a ética anterior, de natureza teleológica. Da preferência
razoável de Aristóteles passou-se então, para a teoria da vontade dos medievais e dos modernos”.

68
outro próximo, seja com a comunidade, em relações interpessoais e relações
institucionais, agindo e se influenciando sob incontáveis maneiras de cooperação e
conflito: são as três pessoas da ética, cada qual em sua insubstituibilidade, que
agem e sofrem, mormente diante do juízo moral em conjuntura, indissociadas pela
práxis e pela existência, aspirando a uma vida boa em meio a um mundo de normas,
necessitando de um mundo de obrigações em meio a uma boa vida.
A separação inicial que nosso filósofo faz questão de estabelecer entre os
termos éthos e mores, em uma ética das virtudes e uma ética da obrigação, tanto no
esquema de 1990 quanto no de 2001, é perspicaz e inteligível destacadamente
porque, além de incluir o anseio por distribuição equitativa de justiça, “ao invés de
conceber nosso telos humano como felicidade individual ou realização, sugere que
ele também inclui o nosso objetivo de formar relacionamentos interpessoais”.
(HOOFT, 2013, p. 168).
Simplesmente, mais uma vez, se demarca o lugar do cuidado de si e, ao
mesmo tempo, do cuidado com o outro – o outro próximo e o outro distante –
preservando-se o pacto social e o reconhecimento mútuo e resguardando-se a
alteridade.
Perante essa observação, quaisquer dos esquemas de Ricoeur servem para
os nossos propósitos, dando conta de corrigir as deficiências no tratamento da
segunda pessoa, substituindo-se o olhar conflituoso que ainda lançamos à
subjetividade do outro.
Conforme já explicitado, a pequena ética pôde ser ilustrada pelo próprio
Ricoeur por meio de casos, ou seja, de éticas regionais que expressam situações
contingentes que “[...] têm em comum o fato de realçarem a passividade, a
fragilidade, a vulnerabilidade que nossas análises da responsabilidade deparam
várias vezes com defrontante e avesso”. (RICOEUR, 2008b, p. 36).
No tópico que segue, faremos uma espécie de mapeamento, tendo em conta
que Ricoeur utiliza mais de uma nomenclatura, em suas principais bibliografias na
seara da ética, para referir-se a essas situações ou casos concretos de conflito
moral, de julgamento moral.
Avancemos para compreender um pouco melhor o contexto dessas ocasiões
e casos de incerteza e urgência e, concomitantemente, entender porque, dentre
outras terminologias, optamos pela expressão casos-limite, tomada do próprio
filósofo em duas de suas principais obras: O Si-mesmo como outro e O Justo 2.

69
2 CASOS-LIMITE EM PAUL RICOEUR

“São situações-limite [...] ‘suportadas, irredutivelmente distintas e simplesmente múltiplas.


[...] Só as práticas por elas suscitadas lhes dão ensejo de expressar -se, formular-se,
comunicar-se, dar-se a entender”.
Paul Ricoeur

Neste momento, passamos a discorrer sobre um ponto importante para uma


elaboração próspera da tese. Acreditamos que é preciso anunciar, de imediato, o
porquê de nossa opção pela denominação casos-limite.
Elegemos tal vocábulo, tendo em conta a afirmação de nosso filósofo quanto
à casuística. Para muitos estudiosos, a casuística 65 é dona de má reputação, pois
pode ser tomada como uma maneira de contornar normas e leis. Em Ricoeur, à
verdadeira casuística compete criar normas para aqueles casos singulares ou raros
onde a lei não dá conta, aos quais já nos referimos. Ricoeur (1994, p. 10) afirma:
“Era aquilo a que Aristóteles chamava ‘equidade’ para distingui-la da ‘justiça’. Na
justiça conhecemos a regra. Na equidade, é preciso encontrá-la”.
Nosso autor diz ainda mais em defesa da casuística: “[...] quero dizer, com
isso que, se queremos iniciar os jovens e mesmo as crianças nos problemas éticos,
é preciso fazê-las refletir sobre casos: Como julgaríeis vós em tal caso?”.
(RICOEUR, 1994, p. 12).
Dito de outra forma, o treino pela casuística, no bom sentido do termo, leva à
elaboração de diversos argumentos e múltiplas soluções: “[...] por que razões,

65
Cortina e Martinez (2013, pp. 148 a 151) referem-se a três modelos possíveis [“mas insuficientes”]
de casuística: o dedutivo, o indutivo e o de aplicação do princípio procedimental da ética discursiva. O
primeiro, citando Diego Gracia em sua obra Procedimientos de decisión em ética clínica, consiste na
“’arte de aplicar qualquer tipo de princípios morais disponíveis aos casos concretos’, já que considera
os casos concretos uma particularização dos princípios gerais. Esse modelo de aplicação destaca
muito especialmente o valor da teoria, da dedução e da busca de certeza moral”. O segundo, citando
Jonsen e Toulmin na obra The Abuse of Casuistry, consiste em “substituir os princípios ou axiomas
iniciais pelo que eles chamam máximas, entendidas como critérios sábios e prudentes de atuação
prática com os quais todos, ou ao menos a maioria ou os especialistas, concordam. Em suma, as
máximas são o resultado da sabedoria prática dos homens e das culturas, e constituem uma ajuda
mais valiosa para tomar decisões que os pretensos princípios de uma suposta razão pura”. [...] E, por
fim, com Apel e Habermas, que afirmam que “a ética tem essa missão de fundamentar a dimensão
normativa da moral”. Já no Dicionário de Filosofia de Cambridge, de Robert Audi (2006, p. 122),
CASUÍSTICA é “a abordagem de análise de casos para a interpretação das regras gerais da moral. A
casuística parte de casos-paradigmas de como e quando dada regra da moral geral deverá ser
aplicada, e depois raciocina por analogia com casos nos quais a aplicação adequada da regra é
menos óbvia – por exemplo, um caso no qual a mentira é o único meio de que dispõe um sacerdote
para não trair um segredo revelado na confissão”. O mesmo verbete menciona que “O objetivo de
considerar a série de casos é o de averiguar as semelhanças e diferenças moralmente relevantes
entre esses mesmos casos”.

70
finalmente, escolhemos isto em detrimento daquilo? É preferível isto do que partir da
moral de Platão, de Kant?”. (RICOEOUR, 1994, p.12).
Os casos-limite, de vida começando e vida terminando, serão objeto de
reflexão para a tese, fomentando o reconhecimento da segunda pessoa, e foram
assim para Ricoeur em O Si-mesmo como outro, oferecendo, conforme veremos ao
fim da pesquisa, um ponto de apoio ao juízo moral em situação, bastando ver a
especificidade (em oposição à universalidade) de cada ocorrência – diferença
circunstancial para nosso filósofo e para a realização da dialética entre solicitude e
respeito.

2.1 SOBRE O DESÍGNIO DA EXPRESSÃO CASOS-LIMITE

“Porque é muito tentador refletir sobre os limites. Isso toma muito tempo e é muito instrutivo”.
Paul Ricoeur

Depois de revisarmos a obra de Ricoeur no campo da ética, pudemos


perceber a atenção que nosso filósofo dá aos momentos da ação e da decisão, haja
vista que a formulação de sua pequena ética carrega um componente prático, o
momento de “aplicar”, em dialética, (1) a intenção ética de vida boa com e para o
outro e (2) a obrigação normativa que ela acarreta às situações concretas (e
conflituosas) de deliberação da pessoa. Dissemos conflituosas, sobretudo, porque
são “situações nas quais a norma e a pessoa não podem ser satisfeitas ao mesmo
tempo”. (RICOEUR, 2008b, p. 273).
Poderemos constatar a seguir, que Ricoeur, ao dedicar-se a esse estágio de
enfrentamento e deliberação do conflito moral, desses momentos perturbadores e de
escolha difícil, utiliza terminologias distintas: situações de conflito, situações
fronteiriças, situações aporéticas, situações singulares, situações-limite,
experiências-limite, conflitos de deveres, casos trágicos, casos (mais) difíceis, casos
desconcertantes, casos-limite.
Considerando essa variedade de nomenclaturas, faremos uma espécie de
mapeamento, nas principais bibliografias do autor que utilizamos para conformar a
tese, elegendo uma designação que, acreditamos, carregue maior força linguística e,
de igual modo, melhor represente essa conjuntura (em Ricoeur) do julgamento moral
em situação, desse momento em que um sujeito (agente moral) tem obrigação de

71
escolher/decidir/agir – pressupondo-se constantemente o chamamento e o olhar
mais solícito a segunda pessoa.
Iniciamos nosso exame, então, retomando-se o conceito de ação, tão caro a
Ricoeur. Vimos que a ação em Ricoeur pode ser pensada tanto como uma atividade
através da qual o homem inscreve a sua marca no mundo, como também, a
“realização de atos pelos quais se dá a expressão humana construindo a vida
cultural”. (MARCONDES CESAR, 2013, p. 94). Uma práxis humana aliada à virtude,
contendo um fim em si, diretamente associada à phrónesis (prudência), ou ao que
Aristóteles chamou de sabedoria prática.
Nas palavras de Andréa Santos Souza (2013, p. 29): “A prudência (phrónesis)
é denominada por Aristóteles como uma virtude intelectual, ou seja, que implica a
deliberação das variantes nas sequências da ação humana”. O homem sábio,
portanto, e é aquele que, diante de um caso concreto, elege melhor e age com maior
prudência.
Quanto ao conceito de decisão, pensa-se naquilo que torna a ação humana
passível de louvor ou de censura. Para Ricoeur (2014, p. 84) aqui se encontra o
núcleo do agir propriamente humano, que Aristóteles acena ser “essencialmente
próprio” à virtude.
Na filosofia moderna, sabido, a temática da ação se desloca da ética
teleológica para a ética deontológica, que tem na interrogação de Kant “O que
devemos fazer?”, sua maior expressão. A ética do dever carrega as características
de universalidade e de constrangimento das regras morais. E o imperativo
categórico, por sua vez, a lei moral dentro de nós, de caráter universal (tal que
possa ser cumprida por todos os homens em qualquer espaço e a qualquer tempo)
revela “a necessidade objetiva da ação que deveria ocorrer inevitavelmente, se
apenas a nossa razão a determinasse, sem a intervenção de fatores externos,
como, por exemplo, as emoções”. (SANTOS SOUZA, 2013, p. 47). Aqui,
relembramos, o sujeito é autônomo e livre, e diante de um julgamento moral em
situação, deve escolher guiado pela razão e limitado pelo respeito aos critérios
morais universais.
Diante de tudo o que já escrevemos até aqui, podemos ponderar que em
Ricoeur, a Regra de Ouro é a síntese de sua reflexão sobre o sentido da ação,
desenvolvendo-se sempre em comunicação com a filosofia contemporânea da ação.
Segundo Constança Marcondes Cesar (2013, p. 95) Ricoeur concilia as vertentes do

72
pensamento contemporâneo, de Heidegger e de Gadamer, e formula um
pensamento original, no qual os temas da identidade, narratividade, sujeito ético,
responsabilidade, convergem para uma discussão do problema da ação.
Assim é que não ignora que o agir humano é fonte de conflito,
destacadamente porque implica, dentre outros fatores, na relação interpessoal, no
enfrentamento com o outro, com a alteridade, no âmbito das situações singulares e
concretas de confronto entre convicções antagônicas ou interpretações diferentes 66.
Chega-se, mais uma vez, ao estágio prático da petit éthique, àquelas situações de
conflito que exigem, conforme Ricoeur, além da prudência, da sabedoria prática
mesmo, inclusive um senso da dimensão do trágico da ação.
Já vimos que Ricoeur dá lugar de destaque ao trágico na obra de 1990 67,
porque o trágico “ilustrado para sempre pela Antígona de Sófocles” reconduz o
formalismo moral ao núcleo mais vivo da ética (RICOEUR, 2014, p. 287) e leva ao
conhecimento e à catarse que nos permite prosseguir com base em juízos morais
feitos em situações específicas – numa “passagem das máximas gerais da ação ao
juízo moral em situação”. (RICOEUR, 2014, p. 275).
O trágico pode instruir pelo esgotamento agudo frente ao mal sofrido ou frente
ao mal causado, quando nos faz conscientes das consequências (desastrosas) de
nossas ações. Nesse contexto da tragédia, se encontra o plano da sabedoria
prática, na verdade, da phrónesis como arte de decisão equitativa em situações de
incerteza e conflito. A sabedoria prática pode vir, portanto, do aprendizado adquirido
por meio das recordações históricas e culturais em virtude do sofrimento vivido e
provocado pela tragédia. A respeito do conflito e da sabedoria prática Ricoeur (2014,
p. 276) profere que não há caminho mais breve do que a “travessia dos conflitos que
abalam a prática guiada pelos princípios da moralidade” para alcançar-se a astúcia
necessária na qual o juízo moral em situação e a convicção que a habita sejam
dignos do título de sabedoria prática.

66
Inclui-se aí a tarefa da hermenêutica que, no dizer de Moratalla e Grande (2013, p. 125, tradução
nossa): “[...] pode ser bem interpretada, como acena H. G. Gadamer, desde a ética de Aristóteles. O
problema da hermenêutica é como um sentido, a princípio idêntico, é captado de forma diferente em
razão de uma situação histórica. Podemos pensar, por exemplo, na Bíblia; um mesmo livro, a Bíblia,
é interpretado de forma distinta em cada momento histórico. [...] Deixando-se de lado a questão
histórica, e centrando-se no lado lógico, podemos dizer que o problema hermenêutico, o problema da
compreensão, consiste ‘em um caso particular de aplicação de algo geral (a mensagem idêntica) a
uma situação concreta e particular’”.
67
Si-mesmo como um outro (RICOEUR, 2014, p. 280).

73
O recurso à sabedoria prática advinda da sabedoria trágica contribui, destarte,
para orientar as ações humanas sob o signo do bem, particularmente vinculado a
convicções prudentes. “[...] a catarse trágica, apesar do fracasso do conselho direto,
abre caminho para o momento da convicção” (RICOEUR, 2014, p. 284), para a
tomada de decisão, rumo à prohaíresis. Duas questões podem ser levantadas neste
ponto em que a catarse trágica inflete para a convicção moral, aduz Ricoeur (2014,
P. 287): “o que torna inevitável o conflito ético? E que solução a ação é capaz de lhe
dar?”.
A partir da primeira indagação, Ricoeur afirma restituir o conflito ao lugar que
todas as análises realizadas até o nono Estudo da obra de 1990 haviam evitado
conceder-lhe. “O conflito é sempre o aguilhão desse recurso, nas regiões trilhadas já
duas vezes: o si universal, a pluralidade das pessoas e o ambiente institucional”.
(RICOEUR, 2014, p. 287). Comparando-se a tragédia às experiências-limite68, no
sentido em que ocasionam aporias, não só a tragédia como essas experiências
(narradas) são portadoras de conflito e, portanto, de lição ética, que instruem e
ensinam acerca da deliberação moral. É nessa instrução, no julgamento moral em
situação, que se dá a escolha articulada pelos seguimentos do bem, do dever e da
prudência.
Ricoeur não diz no que consiste uma experiência-limite. Afirma, porém,
referindo-se a Walter Benjamin (RICOEUR, 2014, p. 175), que “por experiências,
podemos entender não a observação científica, mas o exercício popular da
sabedoria prática portadora de apreciações e valorações que incidem sobre as
categorias teleológicas e deontológicas” – as quais passará a abordar nos Estudos
sete, oito e nove de O Si-mesmo.
No Sétimo Estudo, Ricoeur faz menção aos puzzling cases [casos
indecidíveis] 69 do filósofo analítico Derek Parfit 70, traduzidos como experiências de

68
“A instrução da ética pelo trágico acaso se limita à admissão, em forma de constatação, do caráter
intratável, não negociável, desses conflitos? Será preciso traçar um caminho intermediário entre o
conselho direto, que se revelará bem decepcionante, e a resignação ao insolúvel. Nesse aspecto, a
tragédia é comparável àquelas experiências-limite, geradoras de aporias, das quais não escapou
nenhum de nossos estudos anteriores”. (RICOEUR, 2014, p. 280).
69
“[...] no espaço das variações imaginativas aberto para a dialética entre ipseidade e mesmidade,
introduziremos casos-limite de dissociação entre duas modalidades de identidade, dignos de
competirem com os casos indecidíveis de Parfit”. (RICOEUR, 2014, p. 146, grifo nosso).

74
pensamento (experiências da ficção científica como as de bissecção, transplante,
reduplicação, teletransporte) 71 que, segundo Ricoeur, “[...] oferecem um excelente
momento para confrontar os respectivos recursos da ficção literária e da ficção
científica com o caráter eminentemente problemático da identidade pessoal”
(RICOEUR, 2014, p. 146) suscitando interrogações a respeito da ação, da escolha e
da imputação morais: “O que as manipulações imaginárias sobre o cérebro violam
não será mais que uma regra, mais que uma lei, a saber, a condição existencial de
possibilidade de que haja [...] preceitos dirigidos à pessoa como atuante e
padecente?”. (RICOEUR, 2014, p. 159).
Nosso filósofo aponta, no mesmo estudo Sete que os puzzling cases de Parfif
são os relativos à ficção científica e os casos-limite (cas limite)72, por sua vez, são os
casos de ficção literária73. E complementa: “As variações imaginativas da ficção
científica são variações relativas à mesmidade, enquanto as da ficção literária são
relativas à ipseidade” (RICOEUR, 2014, p. 158), mas ambas parecem ser o que ele
chama de casos de narratividade desconcertante74.
Por outro lado, em relação às situações desconcertantes ou de aporia,
Ricoeur (2014, p. 175 e p. 180) ainda menciona, durante o percurso da obra, os

70
“[...] os casos de ficção filosófica elaborados por Parfit pretendem exatamente é minar a solidez das
crenças nas quais comumente apoiamos a noção de identidade. São elas: a) a crença em que a
identidade constitui um fato suplementar separado das vivências de uma pessoa; b) que sempre pode
ser dada uma resposta determinada com respeito a esse fato; c) que a questão da identidade é
importante como pressuposto para outras questões, como a sobrevivência ou a responsabilidade
moral. Elas admitem uma forma escalonada, da mais manifesta à mais dissimulada. E a estratégia
consiste em atacar a primeira crença, já naturalizada, a partir da segunda, mais sólida, através da
refutação da terceira. Pois, ainda que a crença na importância da identidade seja um tanto mais
dissimulada, é ela que confere força às outras duas. [...] A primeira crença atacada por Parfit é a de
que sempre pode ser dada uma resposta à pergunta sobre a identidade. O experimento que constitui
o ponto de partida de toda a argumentação é o do transplante de um cérebro bipartido para dois
corpos distintos: uma pessoa é submetida a uma delicada cirurgia que divide ao meio seu cérebro e
em seguida o transplanta para dois outros corpos diferentes. Que podemos dizer sobre a questão de
saber se as duas pessoas resultantes do experimento são a mesma que teve seu cérebro dividido? A
questão é posta em termos de sobrevivência. Três respostas são possíveis: 1. a pessoa submetida à
experiência não sobrevive; 2. ela sobrevive como uma das duas pessoas resultantes; 3. ela sobrevive
como ambas (PARFIT, 1983, p. 7). Se fizermos implicar a identidade na sobrevivência, todas
parecem implausíveis. Em que sentido poderíamos dizer que, em qualquer dos casos de
sobrevivência, a pessoa, ou as pessoas resultantes, sejam a mesma que estava na origem do
experimento?”. (BOTTON, 2010, p. 24 e p. 25).
71
Onde “o cérebro representa o ser humano como algo manipulável”. (RICOEUR, 2014, p. 158).
72
Vide páginas 168, 177, 196, 198 e 343 d’Soi-même comme um autre (Id, 1990).
73
“É nesse polo que se encontram os casos-limite em que a ficção literária se presta à confrontação
com os puzzling cases da filosofia analítica. É nessa confrontação que vem culminar o conflito entre
uma versão narrativista e uma versão não narrativista da identidade pessoal”. (RICOEUR, op.cit., p.
156).
74
[...] “esses casos desconcertantes da narratividade podem ser reinterpretados como desnudamento
da ipseidade por perda de suporte da mesmidade”. (Ibid, p. 157).

75
termos situações fronteiriças, situações conflitivas e situações aporéticas, singulares
e inéditas, que tratam do emprego da phrónesis, quando seguimos o movimento
entre ética e moral.
Já em outro texto, O problema do fundamento da moral, o filósofo de Valença
menciona situações-limite e experiências-limite, referindo-se a essas últimas como
situações da vida com as quais devemos ficar atentos, situações de crise e de
decisão, à maneira existencialista (RICOEUR, 2011, p. 144). A expressão situações-
limite (a morte, a luta, o sofrimento, a culpa) é emprestada de Karl Jaspers 75: “Ao
levar em linha de conta o sofrimento primordial que parece ser inseparável da ação
humana, regressei às lições dos meus primeiros mestres em situações-limite
(Jaspers) e encarnação (Marcel)”. (RICOEUR, 1995b, p. 129). Mas na obra O
Percurso do Reconhecimento, Ricoeur menciona as experiências-limite como um
termo “[...] próximo daquele dado por Karl Jaspers à noção ele "situações-limite"
(como a morte, o sofrimento, o combate, a falta), em sua filosofia pela existência”.
(RICOEUR, 2006, p. 82).
No estudo Ética e Moral, nosso filósofo refere-se a conflitos de deveres, “que
nascem da própria aplicação das normas às situações concretas”. (RICOEUR,
2011a, p. 15 e p. 16). A expressão eleita poderia muito bem ser substituída por
situações difíceis, haja vista que também apresentam aquela singularidade dos
inevitáveis conflitos do cotidiano, aos quais nem a ética e nem a moral, se tomadas
como não complementares, conseguem oferecer uma resposta satisfatória.
No prefácio do volume d’O Justo 1, Ricoeur refere-se aos estudos VII e VIII do
Si-mesmo como um outro, dizendo que constituem apenas exercícios preparatórios
para as situações que vincula globalmente ao trágico da ação, e que lhe causam
verdadeira preocupação. Assim, explica que tais situações se encaixam na etapa em
que a consciência moral é convidada a tomar decisões singulares, num clima de
incerteza e de grave conflitualidade. Cada uma dessas decisões especiais,
costumeiramente cercadas por conflito e por incerteza, são qualificadas pelo justo,
ou pela busca de justiça que se encerra com uma íntima convicção sancionada pela
norma de justiça (garantida pela imparcialidade e pelo formalismo procedimental) e

75
Sobre as situações-limite, pelo próprio Jaspers: “Cuando las situaciones limites son concebidas
también objetivamente como situaciones que existem para los hombres, se convierten, sin embargo,
en verdaderas situaciones límites solamente por virtud de uma peculiar operación transformadora en
la propia existencia empirica, mediante la cual la ‘existencia’ se cerciora de ellas y queda impresa en
su manifestación [...] la realización em las situaciones límites afecta a la totalidad de la existencia, de
un modo inconcebible e insustituíble”. (JASPERS, 1959, p. 70).

76
originada do querer viver em instituições justas, com e para o outro (RICOEUR,
2008a, p. 17 e p. 18).
Em um dos artigos de O Justo 1, sob o título de Interpretação e/ou
argumentação, Ricoeur refere-se a hard cases (casos difíceis) nos quais se verifica
lacuna ou obscuridade na aplicação da lei ao caso concreto, também para o juízo
em situação, contudo, restritos à seara do direito, mas onde a deliberação gera
aporias, conflito, sofrimento e/ou incerteza.
Na Introdução de O Justo 2, ao falar em éticas aplicadas e referir-se ao
segundo ensaio desse volume, nosso autor utiliza a expressão situações típicas, e
em seguida, casos exemplares, ambos representados “pelos conflitos entre normas
de valor aparentemente igual, pelos conflitos entre respeito à norma e a solicitude
para com as pessoas, pelas escolhas entre cinzento e cinzento [...] entre ruim e
pior”. (RICOEUR, 2008b, p. 10).
Na parte dos Exercícios de O Justo 2, situados no território da sabedoria
prática, mais especificamente nas regiões do exercício médico e da atividade
judiciária penal – tidas por ele como “éticas regionais” que permitem atravessar o
plano da obrigação moral e jurídica (RICOEUR, 2008b, p. 35 e p. 36) – nosso autor
lança mão do termo situações-limite76 mais uma vez, tendo em conta que éticas
regionais suscitam uma pluralidade de situações empíricas de sofrimento e
conflito77, à maneira – recorda novamente Ricoeur – de Karl Jaspers e Jean Nabert,
quando se reportam àquelas situações consideradas contingentes, não repetíveis e
coercitivas com as quais se confronta a ação premeditada (RICOEUR, 2014, p. 36).
Na parte final de sua autobiografia, constante do livro Da metafísica à moral
registra, em relação à sabedoria prática ou a arte do juízo moral situado, o quanto
ela é exigida nos conflitos de deveres, por meio da complexidade da vida em

76
Em O Justo 2, Ricoeur (2008b, p. 234) menciona: “[...] situações-limite nas quais o tratamento das
doenças em fase terminal oscila entre a obstinação terapêutica, a eutanásia passiva ou ativa e o
suicídio assistido!”. Por outro, afirma que as situações-limite, as Grenzsituationen em Jean Nabert
são, em Karl Jaspers, a falta, a solidão, a morte, o fracasso (RICOEUR, 1995b, p. 55). E ainda, [...]
situações-limite, no sentido que Karl Jaspers e Jean Nabert deram, sem acordo prévio, àquela
condição insuperável de que compartilham inelutavelmente as inúmeras situações consideradas
contingentes, não repetíveis, mas igualmente coercitivas com as quais se confronta a ação
premeditada. [...] elas são irredutivelmente distintas e simplesmente múltiplas, como confirma o
sentimento popular. Só as práticas por elas suscitadas lhes dão ensejo de expressar-se, formular-se,
comunicar-se, dar-se a entender (RICOEUR, 2008b, p. 36).
77
“Se o plural as éticas ressalta a pluralidade das éticas regionais, é porque a vida cotidiana, antes
de qualquer organização das práticas e de qualquer instituição determinada, propõe uma pluralidade
de situações empíricas às quais essas práticas e essas instituições correspondem, principalmente o
sofrimento e o conflito”. (RICOEUR, 2008b, p. 36).

77
sociedade onde a escolha é mais vezes entre tonalidades de cinza do que entre
preto e branco. “Uma dessas situações a que chamo situações de angústia, nas
quais a escolha não é entre bem e mal, mas entre mal e pior”. (RICOEUR, 1995b, p.
133).
Não podemos deixar de mencionar que no livro Percurso do Reconhecimento
aparece também, referindo-se ao momento da phronésis, a expressão situação de
incerteza, que suscita “esse discernimento, essa perspicácia [...] apontando para a
ação que convém”. (RICOEUR, 2006, p. 103).
No artigo A ética, a moral e a regra, Ricoeur afirma que não se pode evitar o
julgamento moral em situação, fazendo menção aos “casos-limite ou extremos” 78,
casos da bioética, de vida terminando e vida começando (morte, eutanásia, aborto,
experimentação com embriões) 79 nos quais o julgamento moral é inevitável e,
igualmente, em que uma regra, por si só, se torna desumana quando entra em
conflito com o que Peter Kemp, cientista e teólogo dinamarquês, chama de
"solicitude". (RICOEUR, 1989, pp. 05 e 06). Aqui Ricoeur dá uma grande pista da
implicação da segunda pessoa no conflito moral.
Numa entrevista, intitulada A ética, entre o mal e o pior, de 1994 e, portanto,
posterior aos estudos d’O Si-mesmo como um outro, Ricoeur vai falar em situações
de decisão, diante de casos raros ou casos-limite. Para ele, esses casos-limite (ou
casos mais difíceis), são aqueles (mencionados pelo autor com essa mesma
nomenclatura ao relacioná-los às éticas aplicadas de O Justo 2) onde a escolha se
dá entre o cinzento e o cinzento. Como exemplo, se refere aos casos de aborto nos
quais se escolhe “entre o mal e o pior” (RICOEUR, 1994, p. 10), fazendo ainda uma
comparação: de um lado, com a jurisprudência, na ordem jurídica, e de outro, com a
casuística, na ordem moral – pois “uma verdadeira casuística”, inventa normas para
casos atípicos, exigindo similarmente “aquilo que Aristóteles chamava ‘equidade’
para distingui-la da ‘justiça’”. Na justiça conhecemos a regra. Na equidade, é preciso
encontrá-la (RICOEUR, 1994, p. 10). Assim estabeleceu o autor:

78
“O senso ético não intervém em casos limite ou extremos. Veja o exemplo da bioética: não é no
contexto de um assassinato que se discute, mas na questão de saber se um feto com dois meses de
idade é uma pessoa que já somos obrigados a respeitar. Os debates nascem, portanto, de algumas
situações intermediárias. Nem tudo pode ser legislado, nem tudo pode ser racionalizado”. (RICOEUR,
1989, p. 05, tradução nossa).
79
“Nos casos mais difíceis, digamos os que se referem ao começo e ao fim da vida [...]”. (PELLAUER,
2009, p. 143).

78
É preciso partir de casos em que há, à partida, múltiplas soluções, e levá-
los a encontrar bons argumentos: por que razões, finalmente, escolheremos
isto, em detrimento daquilo? É preferível isto do que partir da moral de
Platão, de Kant… O que aprendi outrora com Gabriel Marcel foi a
necessidade de arranjar sempre exemplos: querem falar da justiça?
Perguntem-se porque é que isto é injusto. Partir da indignação e, então,
corrigir o ímpeto emocional, a indignação, para encontrar de novo a
argumentação. Por detrás do sentimento, da emoção bruta, há que
encontrar a força argumentativa escondida nos sentimentos. (RICOEUR,
1994, p. 11).

É possível pensar que a casuística em Ricoeur, portanto, é uma ferramenta


de grande valia na formação do posicionamento ético e do processo de tomada de
decisão racional diante do conflito, pois indica uma reflexão genuína. Não é por
menos que a compreensão de Ricoeur acerca de uma verdadeira casuística deve
ser atravessada por essa espécie de procedimento de correção, de ajuste do ímpeto
emocional que se costuma ter diante da injustiça, alcançando-se posteriormente a
argumentação fundadora de casos morais complexos, ou a criação de normas
singulares para os casos singulares onde elas não se encontram.
Nessa esteira, citamos novamente Moratalla e Grande (2013, p. 88) que
compreendem que a casuística dá preferência ao caso particular, tendo em vista que
o ponto de partida da tomada de decisão em situações de conflito é justamente a
situação em concreto (singularidade). Em seguida, recordamos com eles da
casuística de Jonsen y Toulmin, onde a deliberação aristotélica dá ênfase ao
particular, às circunstâncias específicas que norteiam e determinam cada situação80.
E concluem “És probable que los casos similares originen juicios también similares”.
(MORATALLA e GRANDE, 2013, p. 88)81. Justamente por não terem resposta
suficiente, ou melhor, uma solução ética e moralmente universal que se transmutam
em um modelo mais dinâmico e flexível – o que faz toda a diferença diante de um
conflito interpessoal. Os juízos por não serem absolutos, não podem alcançar
certeza (MORATALLA e GRANDE, 2013, p. 88), afirmação que vai integralmente ao
encontro da filosofia moral de Ricoeur.
A avaliação de um caso clínico concreto, por exemplo, implica em considerar
as preferências do paciente (o outro), os fatores socioeconómicos, os dados e
indicações clínicas, relativas à qualidade de vida para, com tudo isso, alcançar uma

80
Ricoeur afirma que Aristóteles já havia percebido que o direito sempre lida com casos no seu
aspecto universal, não no seu aspecto único, específico.
81
“É provável que casos semelhantes engendrem juízos também semelhantes”. (MORATALLA e
GRANDE, 2013, p. 88, tradução nossa).

79
decisão contingente e concreta82, que contemple o sofrimento da segunda pessoa,
inicialmente imersa nesse cenário de disparidade.
A par disso vemos, na última edição da obra Ética, de Adela Cortina e Emilio
Martinez, lançada em 2001, um tópico sob o título Proposta de um novo modelo de
ética aplicada como hermenêutica crítica, onde os autores não citam Ricoeur, mas
admitem que um único modelo de ética já não dá conta de conduzir a deliberação
moral em situação, sobretudo, em razão da existência das dicotomias éticas
clássicas – éticas teleológicas/éticas deontológicas, da convicção/da
responsabilidade, procedimentalistas/substancialistas. Uma ética universal é na
compreensão de Cortina e Martínez (2001, p. 154) certamente impotente para
orientar as decisões dos mundos político e econômico, médico, ecológico ou,
simplesmente, a convivência entre os cidadãos. E na seara da filosofia
contemporânea, emerge o campo da ética aplicada que procura empregar a teoria
moral a problemas práticos à medida que eles surgem na sociedade contemporânea
(HOOFT, 2013, p. 222). Uma explicação ou uma justificação universal, assim, não
dá conta dessa demanda, da tipicidade de cada caso.
Por outro lado, nos arriscamos também em afirmar que justamente por essas
razões – de dicotomias entre as éticas clássicas e a impossibilidade de se erigir uma
ética universal – Ricoeur não faz uso, em quaisquer de seus estudos sobre ética, da
expressão dilemas morais.
Ainda que os dilemas morais possam ser considerados situações e problemas
nos quais a moralidade ocupa lugar de destaque, há filósofos morais recentes, de
acordo com Ricardo Audi (2006, p. 235) que discutem acerca de um conjunto muito
mais limitado de situações como sendo “dilemas morais” enquadrando-os em
padrões e ideias pragmáticas, positivistas e utilitaristas83 que não a análise do caso
concreto, ao menos não à maneira ricoeuriana.
Considerando, além de tudo o que foi exposto, especialmente duas lições de
Ricoeur: a primeira, onde ele afirma que “[...] a análise da questão moral é
explicitamente relacionada com uma preocupação com o campo da prática em toda

82
“Por isso, a avaliação e a análise de um caso clínico concreto implica levar em consideração as
preferências do paciente, os fatores socioeconômicos, os dados e indicações clínicas, e as questões
relativas à qualidade de vida para, com tudo isso, chegar a uma decisão contingente, concreta e
válida para o caso”. (MORATALLA e GRANDE, 2013, p. 88, tradução nossa).
83
Neste caso, o utilitarismo da regra, “que recomenda ajustar nossas ações às regras habituais, já
consideradas morais pela comprovada utilidade geral de suas consequências. Desse modo,
poupamos energias e aproveitamos a experiência vivida”. (CORTINA e MARTÍNEZ, 2013, p. 76).

80
a sua dimensão” (RICOEUR, 1995b, p. 102) e a segunda, quando ele diz que cabe à
verdadeira casuística justamente criar normas para os casos singulares (RICOEUR,
1994, p. 10) elegemos – dentre a gama de terminologias utilizadas pelo filósofo
francês para referir-se a situações de deliberação, de conflito com o outro, de
sofrimento e angústia – a expressão casos-limite.
Os casos-limite serão, em nossa pesquisa e em conformidade com a lição
ética ricoeuriana, todas aquelas situações de conflito entre razões morais ou entre
razões éticas, razões do direito, da religião ou do interesse próprio, inerentes ao
terceiro momento de sua petit éthique ou o momento da prudência e do uso da
sabedoria prática, onde se tem constantemente sublinhado o chamamento ao outro.
Os casos-limite oferecem “pontos de sustentação” ao juízo moral84, sem
jamais ignorar que esse momento de aplicação não pode ser reduzido à questão da
lei e do dever, porque a lei busca características gerais de um caso, não sua
especificidade – diferença circunstancial para nossa reflexão.
No capítulo próximo, veremos que é à pessoa, [identificada no seio de uma
gama de coisas particulares do mesmo tipo] se pode imputar a responsabilidade por
ações e decisões, mormente nesses casos extremos. É também com a noção de
pessoa que é possível a restauração da identidade.
Confirmaremos que a articulação entre virtudes e normas na relação
interpessoal diante de um caso-limite está também ligada à retomada
contemporânea do personalismo de Emmanuel Mounier, levando Ricoeur a erigir
toda uma filosofia da pessoa, dando acento à singularidade e à identidade de cada
um em detrimento do universal, porém e ao mesmo tempo, em colaboração com o
outro e em pluralidade comunitária.

84
Na nota de rodapé 33 de O Si-mesmo como outro, Ricoeur disserta: “[...]. Se as histórias narradas
oferecem tantos pontos de apoio ao juízo moral, não será porque este tem necessidade da arte de
narrar para, digamos, esquematizar sua visada? Além das regras, normas, obrigações e legislações
que constituem aquilo que se pode chamar moral, há – diremos então – a visada da verdadeira vida,
que MacIntyre, retomando Aristóteles, põe no topo da hierarquia dos níveis da práxis [...]. Nesse
aspecto, pode-se falar de imaginação ética, que se alimenta de imaginação narrativa”. (RICOEUR,
2014, p. 176).

81
3 O RETORNO DA PESSOA

“Efetivamente, não somos praticamente mais confrontados aos problemas da escravidão no sentido
jurídico do termo, mas ainda permanecem presentes a submissão,
a exploração sob todas as suas formas”.
Paul Ricoeur

3.1 POR UMA FILOSOFIA DA PESSOA

A temática da pessoa é cara a Paul Ricoeur 85. Já em 1936, período prematuro


de sua filosofia, Ricoeur escreve Note sur la personne, empenhado em responder à
pergunta inicial “O que é uma pessoa?”.
Consideravelmente, Ricoeur responde a partir da formulação negativa do
conceito, ou seja, a pessoa não é fruto de suas forças biológicas, de suas forças
psicológicas, tampouco de forças sociais. Essas forças todas definem o que Ricoeur
entende por indivíduo: “[...] eu denomino indivíduo o temperamento prolongado pelo
caráter, coroado pela mentalidade86”. (RICOEUR, 1936, p. 438, tradução nossa).
Nosso autor baliza, assim, que pessoa e indivíduo não são equivalentes. Não se
trata, como assevera Lauxen (2013, p. 597), de instaurar uma separação entre
indivíduo e pessoa. Mas o indivíduo em Ricoeur pertence ao campo do cientificismo
tão previsível através de seus efeitos87, a pessoa não. Dito de outro modo,
enquanto o indivíduo pertence ao egocentrismo e ao determinismo, pois só o
determinado está no tempo, “a pessoa é a impermeável encarnação da eternidade
no tempo88”. (RICOEUR, 1936, p. 441).

85
Segundo Conceição (2011, p. 70), “Ricoeur edificou uma fenomenologia hermenêutica da pessoa
constituída a partir de quatro estratos centrais: linguagem, ação, narração e ética. Ele pretendeu,
essencialmente, concentrar-se no argumento filosófico da pessoa”. Para Guedes (2014, p. 17) “A
teoria da pessoa humana deve ser considerada mote e fonte da intensa produção do trabalho
filosófico de Paul Ricoeur”. Em Lauxen (2013, pp. 595 e 596), “Não seria exagerado dizer que Soi -
même comme un autre é a resposta mais elaborada que Ricoeur pode oferecer a este tema da
pessoa. [...] reconhece na pessoa uma força poderosa que precisa ‘voltar’ (revient) como
sustentáculo dos debates éticos, jurídicos e políticos”. E de acordo com Corá (2004, p. 56), “Ricoeur
(1996, p. 158) quer reelaborar a filosofia do sujeito como filosofia da pessoa”.
86
“[...] j'appelle individuel le tempérament prolongé par le caractère, couronné par la mentalité”.
87
“O individualismo é um produto ideológico da cultura contemporânea ligado a um fenômeno de
classes’ (E311). Para o indivíduo, a sociedade é, por assim dizer, o inimigo que o impede de ter
direitos próprios, direitos estes que lhe pertencem antes mesmo de entrar em sociedade. Essa ideia
nasce nos últimos três séculos, e é urgente que se faça sua crítica, crítica esta que poderia nos
possibilitar pensar numa pessoa [...], para além do individualismo. Se o indivíduo configura ‘a
reivindicação da satisfação própria, ao desconhecimento do outro’ (E311), há que se pensar na
ligação que Mounier estabelece entre pessoa e comunidade”. (DOUEK, 2011, pp. 35 e 36).
88
“la personne est l'incarnation imperméable de l'éternité dans le temps”.

82
A pessoa também não é, para Ricoeur, a consciência, o sujeito, o eu ao modo
cartesiano. Não a ponto de se admitir a separação entre alma e corpo – como
propõe o dualismo de René Descartes89. Para o filósofo francês, esse afastamento
do eu em relação ao próprio corpo e em relação ao lugar em que se encontra, ao
mundo que habita, é problemático na medida em que compreende o sujeito como
alma e corpo90 ao mesmo tempo encarnados na vida e no mundo. De fato, trata-se
de uma experiência que, além do eu penso, “envolve o eu desejo, eu posso, eu vivo
e, de uma maneira geral, a existência como corpo 91” (RICOEUR, 1950, p. 13,
tradução nossa) e carne.
Dito de outra forma, no Ricoeur de 1936, vemos a pessoa como um todo
unificado entre encarnação e vocação. Introduzindo o conceito de encarnação,
emprestado de Gabriel Marcel, Ricoeur quer mostrar que a pessoa é um todo
unificado, é carne e concomitantemente, é vocação livre, é um corpo 92 entre os
corpos, que cria algo no mundo, que é presença voltada para o mundo. Vemos, por
conseguinte, a formulação positiva do conceito de pessoa, que nosso autor introduz
a partir da noção de ato: “a pessoa é a que reivindica um certo ato, que se solidariza
com este ato, assume as consequências, é responsável por ele 93”. (RICOEUR,
1936, p. 439).
Finalmente, Ricoeur pondera que a pessoa se manifesta pela vocação
seguida da responsabilidade. Ter uma vocação é responder ao apelo de um valor, é
tornar-se responsável, engajar-se, “sendo suas ações testemunho de sua vocação”
(LAUXEN, 2013, p. 597). Por isso conclui nosso filósofo: “o ponto extremo do
engajamento, do testemunho, da responsabilidade, da vocação é o sacrifício: a
carne se apaga na ordem visível diante da vocação”. (RICOEUR, 1936, p. 443).
89
Não é demais lembrar que para Descartes (2013, p. 51 e p. 52) “Depois, examinando atentamente
que coisa eu era, e vendo que podia supor que não tinha corpo e que não havia qualquer mundo ou
qualquer lugar onde eu existisse […], compreendi que era uma substância, cuja essência ou natureza
é unicamente pensar e que, para existir, não precisa de nenhum lugar nem depende de coisa alguma
material. De maneira que esse eu, isto é, a alma pela qual sou o que sou, é inteiramente distinta do
corpo, e até mais fácil de conhecer do que ele, e ainda que este não existisse, ela não deixaria de ser
tudo o que é”.
90
“Pessoa reúne substância corpórea e atos mentais”. (LEONHARDT, 2004, p. 55).
91
“[...] enveloppe le je désire, je peux, je vis et, d‟une façon générale, l‟existence comme corps”.
92
Sobre o corpo em Ricoeur, vale transcrever uma passagem de François Dosse (2017, n.p): “[...]
Merleau-Ponty e Ricoeur vão encarnar duas orientações um pouco diferentes da fenomenologia
francesa: de um lado, em Merleau-Ponty, uma atenção mais centrada no corpo propriamente dito, a
carne, e de outro, com Ricoeur, uma abordagem da carne mais abstrata, pelo viés da textualidade,
ainda que, no momento de sua tese sobre o voluntário, o problema do corpo seja frontalmente
abordado".
93
“La personne est celle qui réclame un certain acte, qui comprend cet acte, en assume les
conséquences, qui en est responsable“.

83
Em 1983, no texto Meurt le personnalisme, revient la personne 94, Ricoeur
segue se opondo à noção cartesiana de sujeito95 e permanece com a noção de ato96
pela qual ele define a pessoa. Influenciado especialmente pelo personalismo de
Emmanuel Mounier97, nosso autor defende que nada se pode argumentar,
sobretudo, na fundamentação de debates jurídicos, éticos e políticos – debates que
envolvam direitos humanos, por exemplo – sem referência à pessoa, senão
vejamos:

Mas quero me concentrar no argumento filosófico. Se volta a pessoa, é


porque ela continua sendo o melhor candidato para sustentar os combates
jurídicos, políticos, econômicos e sociais evocados em outro lugar: quero
dizer, um candidato melhor do que todas as outras entidades que foram
levadas pelas tormentas culturais evocadas acima. Relativamente à
‘consciência’, ao ‘sujeito’, ao ‘eu’, a pessoa aparece como um conceito
sobrevivente e ressuscitado. Consciência? Como se crê ainda na ilusão de
transparência que se liga a esse termo, depois de Freud e da psicanálise?
Sujeito? Como se nutriria ainda a ilusão de uma fundação última nalgum
sujeito transcendental, depois da crítica das ideologias da escola de
Frankfurt? ‘Eu’? Quem não sente a impotência do pensamento para sair do
solipsismo teórico, a não ser que ele parta, como Emmanuel Lévinas, do
rosto, eventualmente numa ética sem ontologia? Prefiro dizer pessoa em
vez de consciência, sujeito, eu. (RICOEUR, 1996a, p. 158).

Em Mounier (1964, p. 84) uma pessoa “não é uma coisa que se pode
encontrar no fundo das análises, ou uma combinação definível de aspectos [...], mas
é, exatamente, o não inventariável; [...] é, exatamente, o centro da liberdade”. O
personalismo mounieriano é um movimento de combate ao individualismo e ao
egocentrismo, expressos na sociedade capitalista de sua época 98, tecnicista e tão

94
Este artigo foi publicado juntamente com o Abordagens da pessoa, de 1990, perfazendo a obra
original Lectures 2: La contrée des philosophes, de 1992. No Brasil, o título foi traduzido por Leituras
2: a região dos filósofos, com publicação em 1996.
95
Conforme Baggio (2016, p. 33), nesse artigo Ricoeur “deixa claro porque ele usa o conceito pessoa
e não sujeito ou outra instância”.
96
Nesse artigo, diz Lauxen (2013, p. 598), “Ricoeur não abandona a noção de ato como não
abandonará jamais”.
97
É no artigo Meurt le personnalisme, revient la personne (1983), um dos trabalhos em que Ricoeur
se dirige diretamente ao personalismo de Mounier e que veremos mais adiante em nosso texto, que
se sustenta que mesmo estando “morto”, o tema da pessoa (o personalismo) deve ser retomado
(LAUXEN, 2013, p. 596). O mesmo artigo encontra sua versão na língua portuguesa: Morre o
personalismo, volta a pessoa, parte do livro intitulado A região dos Filósofos (RICOEUR, 1996).
Conforme Lauxen (2013, p. 595), “Em diferentes momentos históricos Ricoeur manifestou ao mesmo
tempo sua dívida e seu distanciamento em relação ao personalismo de seu mestre Emmanuel
Mounier, do qual nunca se separou verdadeiramente. Não seria exagerado dizer que Soi -même
comme un autre é a resposta mais elaborada que Ricoeur pode oferecer a este tema da pessoa, que
ele sempre reclamou de seu mestre, ser carente de uma analise conceitual mais rigorosa”.
98
Adão José Peixoto (2017, p. 13) recorda que o personalismo de Mounier surge no contexto da
profunda crise política, ética e social que se estendeu pela Europa a partir de 1929. Inicialmente, a
crise foi provocada pela crise econômica e se estendeu até o nazismo, o fascismo e a Segunda
Guerra Mundial.

84
indiferente à dignidade humana, esvaziada de sentido humanizador.Na pessoa se
encontra um ser de alteridade, de solidariedade, de comum união. No dizer de
Peixoto, para Mounier a pessoa “não é a consciência que alguém tem de si próprio,
pois cada um cria várias representações de si. A pessoa é um absoluto. [...] a
pessoa vale por si mesma. Ela é dotada de dignidade intrínseca (a dignidade
humana)”. (PEIXOTO, 2017, p. 22). Além das críticas ao individualismo, Mounier
questiona o moralismo, tomando-o por obstáculo no caminho que leva à
transformação da realidade histórica e a uma nova civilização (CORÁ, 2013, p. 17).
A pessoa, por todos esses atributos e, destacadamente, como possibilidade
de diálogo e de abertura ao outro, tem que voltar – diz nosso filósofo francês –
sobreviver porque carrega consigo o atributo do reconhecimento. Concordamos
intimamente com Ricoeur quando ele afirma que “A única coisa importante é
discernir com justiça o intolerável de hoje e reconhecer minha dívida com relação às
causas mais importantes do que eu mesmo que me requisitam”. (RICOEUR, 1996a,
p. 162). É a pessoa – não o indivíduo – quem transcende os princípios da sociedade
sem infringi-los e, dessa forma, interage com o mundo, transforma-o – “[...] na
perspectiva personalista, o social e o político são expressões do pessoal”.
(PEIXOTO, 2017, p. 23).
No artigo de 1983, portanto, a noção mounieriana de pessoa permanece viva.
Acerca da inspiração em Mounier, Ricoeur (1968, p.135) afirma: “[...] o que nos
atraiu para ele é algo de mais secreto que um tema de muitas faces [o da pessoa]
[...] é a sutil aliança de uma bela virtude ‘ética’ com uma bela virtude ‘poética’ que
fazia de Emmanuel Mounier esse homem ao mesmo tempo irredutível e que se
dava”.
Por outro lado, contudo, Ricoeur considera problemática a escolha de
Mounier pelo termo em –ismo, tomado juntamente com outros –ismos, eis que
rebaixa o personalismo à condição de “fantasma conceitual”. O personalismo “morre”
em razão de circunstâncias históricas que modificam sua base de compreensão
conceitual, tornando-se vulnerável, marcado pela mesma nota de infâmia, aduz
Ricoeur (1996, p. 156), que marca seus irmãos inimigos: marxismo, existencialismo.
“Volta a pessoa”, anuncia Ricoeur (1996), todavia, dotada de sentido novo,
classificada por ele como o suporte de uma atitude. Assim é que se pode falar em
pessoa, guarnecida não pelo personalismo, aquele fantasma, mas incrementada

85
pela perspectiva de Eric Weil99: “Aprendemos com Eric Weil [...], que todas as
categorias novas nascem de atitudes que são tomadas na vida e que [...] orientam a
busca de novos conceitos que seriam suas categorias apropriadas”. (RICOEUR,
1996a, p. 158). A pessoa é então, o núcleo de uma atitude, e no lugar do
personalismo, a atitude lhe garante um estatuto epistemológico mais apropriado.
Indo direto ao ponto, nosso autor quer chamar a atenção para a atitude-pessoa,
assinalada pelo trânsito entre dois momentos: o de crise e o de engajamento.
Para Ricoeur (1996, p. 160), três estágios constituem o momento de crise da
pessoa: (1) “não sei mais qual é meu lugar no universo”; (2) “não sei mais que
hierarquia estável de valores pode guiar minhas preferências”; (3) “não distingo
claramente meus amigos dos meus adversários, mas existe para mim o intolerável”.
Dito de modo mais simples, na zona da crise a pessoa percebe sua condição de
vulnerabilidade diante do universo, se nota deslocada, questionando os próprios
valores, as próprias preferências e as relações pessoais de intimidade e
camaradagem, alcançando o desconfortável limite da tolerância.
O engajamento [engagement], por sua vez, advém do estágio no qual “não
tenho outra maneira de discernir uma ordem de valores capaz de me exigir – uma
hierarquia do preferível – sem me identificar a uma causa que me supere”.
(RICOEUR, 1996a, p. 160). O engajamento é resultado daquele mencionado
desconforto diante do intolerável na crise. Numa espécie de reflexão pessoal, na
zona do engajamento resgatamos a posição singular diante do cosmos, arriscamos,
submetemo-nos, obrigamo-nos a hierarquizar as escolhas e, enfim, cientes da
diversidade, escolhemos e inventamos com eloquência. Face ao intolerável o
“espectador desinteressado” se transforma em “homem de convicção que descobre
ao criar e cria ao descobrir” (RICOEUR, 1996a, p.160), tomando partido e posição.

99
Ricoeur, neste momento, afirma que o conceito de atitude-pessoa de Weil é mais proveitoso
(BURGOS, 2012, p. 229-233 apud NETO, 2016, p. 44). “[...] Ricoeur é capaz de advertir que o
conceito de ‘atitude-pessoa’ é algo ambíguo, mas entende que este problema pode ser superado
dando-lhe um estatuto epistemológico consistente em estabelecer uma pré-compreensão que
determine a orientação de suas investigações. Seria o ‘foco de uma ‘atitude’ a que pudesse
corresponder ‘categorias’ múltiplas e muito diferentes, segundo a concepção que se tenha do
trabalho de pensamento digno de ser chamado ‘filosofia’’. Tratar-se-ia, em definitivo, de abordar a
noção de pessoa não desde uma filosofia forte e específica, senão desde premissas diferentes e
próprias de cada investigador, que deveriam ter, isso sim, traços comuns próprios do foco que
delimita a atitude-pessoa e que, segundo Ricoeur, estariam governadas por dois critérios: crise e
compromisso, e por três corolários: tempo, diferença e horizonte de uma visão histórica global”.
(BURGOS, 2012, p. 233 apud NETO, 2016, p. 44).

86
O engajamento e o compromisso da pessoa com “o que é mais durável” que
ela mesma, conduzem à instância da convicção. Para Lauxen (2013, p. 598) a
convicção é reação à crise mantendo-se fiel a uma causa no tempo, fidelidade a
uma direção escolhida100. O caráter da convicção é revelado na descoberta da
relação circular entre uma historicidade do compromisso e uma atividade
hierarquizante101, o que nos permite ver na atitude-pessoa um comportamento
estável no tempo. Fidelidade no tempo através do engajamento, dirá Ricoeur, uma
vez que este não é virtude no instante e sim, virtude na duração. Além disso, a
fidelidade do engajamento unifica a pessoa – unificação da duração numa
interioridade – lhe conferindo identidade. Aqui, um ponto bastante relevante,
predileto à Ricoeur e a nossa pesquisa: identidade ligada à alteridade, pois “Só
existe o outro se existe o mesmo e vice-versa”. (RICOEUR, 1996a, p. 161).
Da relação de base entre crise e engajamento, portanto, Ricoeur extrai
também a diferença ou o “complemento dialético” da identidade. E adverte, mais
adiante no artigo, que a fidelidade e a identidade do engajamento são critérios
desafiadores, uma vez que há de se fazer o movimento mais complexo de todos, em
direção ao “reconhecimento do que dá um valor superior ao outro, a saber, que é
para ele seu intolerável, seu compromisso e sua convicção”. (RICOEUR, 1996a, p.
161).
Mais um critério, registra Ricoeur, a ser extraído do par crise/engajamento é o
de uma visão histórica global, ou seja, “[...] a unificação da duração numa
interioridade, o reconhecimento e o amor das diferenças” (RICOEUR, 1996a, p. 161
e 162), que requerem que se pense numa ordem como tarefa para todo o humano,
não numa ordem “abstrata de valores”, mas numa “convergência do que há de
melhor em todas as diferenças” assevera o autor. Regressa, portanto, a pessoa. A
pessoa é mais importante que o personalismo (CORÁ, 2013, p. 22). Numa atitude
ciente de que não supera o nível da convicção, mas é capaz de discernir o
intolerável de nosso tempo e reconhecer a dívida com relação às causas mais
importantes do que ela mesma que a requisitam (RICOEUR, 1996a, p. 162).

100
“[...] ‘fidelidade a uma causa’ (penso aqui na lealdade do velho neo-hegeliano americano Rosiah
Royce que outrora inspirou Gabriel Marcel)”. (RICOEUR, 1996a, p. 160).
101
Algo próximo da “hierarquização de finalidades inerentes à ação, de acordo com o bom e o
desejável. Hierarquização que não pode deixar de ser configurada e refigurada pela narratividade
como campo de experimentação de suas possibilidades, acarretando seu exame e a inflexão da
ordem do factual e meramente descritivo ao campo das normas, decididamente prescritivo, tendo por
liame ou termo de ligação o valor e seu duplo, o não-valor ou desvalor”. (BOTTON, 2017, p. 192).

87
A pessoa como atitude é, à vista disso, identidade na diferença, aceitação da
alteridade e da diferença na identidade – o que nos remete à futura temática do si.
Nesse sentido, é que a designação de pessoa como ato e atitude segue no
intercurso do pensamento ricoeuriano até 1990, primeiro com a publicação do texto
Abordagens da Pessoa e, em seguida, com o veterano O Si mesmo como outro,
reconsiderando raízes ontológicas mais profundas de sua obra102.
Na obra O voluntário e o Involuntário, publicada em 1950, Ricoeur apresenta
como tema central, “uma fenomenologia eidética103 da reciprocidade do voluntário e
do involuntário na experiência humana” (PELLAUER, 2009, p. 17), uma análise
fenomenológica da vontade frente à dimensão involuntária do humano, a existência
humana limitada pela existência corpórea, por nossas necessidades orgânicas,
hábitos, interdições sociais e interdições legais. É nesse quadro, que coloca
radicalmente em questão a onipotência da vontade humana ou, no entendimento de
Jeane Marie Gagnebin (1997, p. 01), a finitude, a culpabilidade, o mal, justamente
figuras dolorosas do involuntário104. Delineia-se assim, a questão fundamental do
mal em Ricoeur, fonte da reflexão ética e política do autor e o caminho de acesso
aos símbolos, aos mitos, isto é, às invenções linguísticas e narrativas que os
homens elaboram para tentar dar sentido à existência.
De outro modo, trata-se de um estudo em que Ricoeur examina
possibilidades reais da liberdade humana, o que ocorre quando escolhemos, quando
agimos: um acontecimento natural ou um ato de responsabilidade? Se na natureza

102
Não é tardio observar que “Em diferentes momentos históricos Ricoeur manifestou ao mesmo
tempo sua dívida e seu distanciamento em relação ao personalismo de seu mestre Emmanuel
Mounier, do qual nunca se separou verdadeiramente. Não seria exagerado dizer que Soi-même
comme un autre é a resposta mais elaborada que Ricoeur pode oferecer a este tema da pessoa, que
ele sempre reclamou de seu mestre, ser carente de uma análise conceitual mais rigorosa”. (LAUXEN,
2013, p. 595).
103
Quanto a isso, em uma nota de rodapé, Cristina Meireles (2016, p. 34) aponta: “Por agora,
entendamos a análise fenomenológica desenvolvida em Le volontaire et l’involontaire sucintamente
como a descrição eidética, isto é, a descrição das estruturas envolvidas na experiência humana do
voluntário e do involuntário”.
104
“Nos anos 50, Ricoeur publica O Voluntário e o Involuntário e logo em seguida Finitude e
Culpabilidade. A experiência da guerra, suas ligações com um grupo de intelectuais franceses como
Mounier e Gabriel Marcel assim como com o médico e filósofo Karl Jaspers, bem como a leitura de
Heidegger, o conduzem a uma concepção pessimista de homem. O ser humano é finito e limitado,
vivendo numa permanente tensão entre o bem e o mal. Para Ricoeur o ser humano é extremamente
lábil podendo ser capaz de ser bom, mas tendo uma permanente tendência a transgredir o que é
facilmente constatável. Ricoeur vai buscar em Platão a ideia da desproporcionalidade entre participar
da physis e do logos. Essa desproporcionalidade entre o natural e o racional provoca uma fragilidade
da vontade humana, levando-o ora para o bem, ora para o mal. Dessa forma o ser humano é sempre
finito e incompleto tendo que lutar durante toda a sua existência com essas duas tendências,
correndo o risco de inserir sua existência, no que Kant afirmou a respeito do ‘mal radical’”. (MARTINI,
2012, p. 03).

88
tudo tem uma causa, há lugar para a liberdade? Liberdade e causalidade seriam,
portanto, excludentes uma da outra? A essas questões, nosso filósofo vai responder
com uma interpretação excêntrica da antinomia liberdade-causalidade de Kant –
atual liberdade-determinismo105.
Para ele, ao tratar das teses de liberdade e de causalidade, o filósofo alemão
faz uso de duas linguagens diferentes que não podem ser reduzidas uma à outra,
tampouco excludentes entre ambas. Isso porque a primeira, na linha da
subjetividade, trata da experiência pessoal em relação à liberdade, o vivido de cada
um de nós mesmos como livres e a outra, na linha da objetividade, “corresponde a
uma linguagem científica que pressupõe uma compreensão da causalidade que não
deixa espaço à liberdade”. (PELLAUER, 2009, p. 23). Desse modo, ao tratar do
tema da filosofia da vontade, Ricoeur prefere falar não em termos de liberdade e
determinismo, mas tão somente, de “reciprocidade do voluntário e do involuntário
em nossa experiência vivida”. (PELLAUER, 2009, p. 23).
Em 1939, Ricoeur já havia esboçado a dialética que sistematiza entre o
voluntário e o involuntário, bem como, a filiação a Husserl e Gabriel Marcel. Num
estudo apresentado ao Círculo de Filosofia do Oeste, o filósofo francês afirma que a
atenção, considerada como “orientação voluntária do olhar“ se põe como um meio
de articular determinismo e liberdade, pois é, “ao mesmo tempo, receptividade pela
sua aderência ao objeto e atividade por sua inerência ao sujeito”. (DOSSE, 2017,
n.p).
A obra de 1950 não só trata da ideia de uma existência humana assimilada
como existência incorporada ao mundo, como também, destarte, da temática do
sujeito à luz de uma ontologia cuja figura, entretanto e mais uma vez, não é aquela
de Descartes, um cogito exaltado. O sujeito não é autoconsciente, nem um eu todo
poderoso.
De acordo com Cristina Meireles, os comentadores François Dosse, Olivier
Abel e Jérôme Porée e Jeanne-Marie Gagnebin endossam a presença da temática
do sujeito na obra inicial do filósofo francês 106, por meio do que nosso autor chamou

105
“Outra influência no projeto inicial de uma filosofia da vontade empreendida por Ricoeur, é a
apresentação kantiana da antinomia liberdade/causalidade ou, como poderíamos dizer hoje,
liberdade/determinismo”. (PELLAUER, 2009, p. 23).
106
“Desde o início de sua produção de maior fôlego na década de 1950, no interior de uma reflexão
fenomenológica que colocava a questão da consciência e do sujeito, já desconfiava da ideia de um
cogito autossuficiente”. (PEREIRA, 2016, p. 594).

89
de cogito brisé [cogito partido], ou seja, o cogito que se refere a toda uma tradição
que resiste à exaltação cartesiana do ego, senão vejamos:

A figura central que não cessará de ser a fonte de interrogação de Ricoeur é


aquela de um cogito interiormente partido (DOSSE, 2001, p. 215, tradução
nossa, grifo do autor). E também: ‘Vista pela primeira vez em O voluntário e
o involuntário, a temática do ‘cogito partido’ ressurgiu quarenta anos mais
tarde em Si-mesmo como outro’. (ABEL e PORÉE, 2009, p. 28, tradução
nossa, grifos dos autores). E ainda: ‘Já nessa obra inicial, portanto, alguns
temas-chave da reflexão de Ricoeur estavam postos: a não-soberania do
sujeito consciente e sua relação simbólica e cultural com esse outro que lhe
escapa’. (GAGNEBIN, 2006; ABEL E PORÉE, 2009; DOSSE, 2001 apud
MEIRELES, 2016, p. 35).

Em 1960, com a Simbólica do mal, Ricoeur se esforça para interpretar a


linguagem cifrada dos mitos e dos símbolos do mal e da culpa das grandes culturas
e instaura o desvio pela via longa107 que constitui a base de sua crítica à
imediatidade, transparência e apoditicidade do cogito, pressuposto comum a
Descartes e Husserl. Nesse sentido, Ricoeur argumenta que o sujeito “não se
conhece a si mesmo diretamente, mas somente por meio dos signos depositados
em sua memória”. (RICOEUR, 1995a, p. 30 apud NASCIMENTO e SALLES, 2013,
p. 39).
A obra Da interpretação: ensaios sobre Freud, publicada em 1965, onde faz
referência aos “três mestres da suspeita” [Marx, Freud, Nietzsche], Ricoeur examina
sua concepção de hermenêutica e, a partir das correspondentes hermenêuticas da
suspeita, questiona mais uma vez o cogito cartesiano, insistindo num sujeito que se
apreende e se diz pela mediação dos signos, e não pelo caráter transparente e
imediato da consciência (NASCIMENTO e SALLES, 2013, p. 44), inaugurando seu

“Desde o início de sua trajetória em Le Volontaire et l'involontaire (1950/2009), tese doutoral do


filósofo, Ricoeur situa-se num combate às versões mais exacerbadas do idealismo, em particular à
pretensão de autossuficiência da consciência de si, para ressaltar os limites dessa tentativa. Isso se
evidencia por meio da aceitação dos limites apresentados pela crítica kantiana, onde ficam expostas
as demarcações intransponíveis da racionalidade e da linguagem humanas, sob pena de cair nas
aporias ou, pior, na hybris (desmesura) de um pensamento que se autoinstitui em absoluto”.
(MEDEIROS, 2015, sem paginação).
107
Por oposição à via curta representada pela compreensão imediata do ser, nos termos do cogito
cartesiano. “A via longa, da qual ele fala, trata do acesso ao ser por um desvio pela interpretação dos
símbolos e das diversas formas de manifestação do ser. O tratamento específico desta
caracterização pode ser encontrado em obras como Do texto à ação e Teoria da interpretação”.
(BONA, 2010, p. 49).

90
cogito ferido [cogito blessé]. Tal debate segue no Conflito das Interpretações108, de
1969, conduzindo à derrocada do cogito e à reconfiguração do sujeito 109. É
interessante notar que enquanto lemos “Após a dúvida sobre a coisa, ingressamos
na dúvida sobre a consciência”, no Ricoeur de 1965, lemos “Depois de Freud,
reflexão e consciência já não coincidem; é preciso perder a consciência para
encontrar o sujeito”, no Ricoeur de 1969110.
Cogito partido e cogito ferido são conceitos que, ao menos num primeiro
momento, não se distinguem de todo, uma vez que anunciam o mesmo sujeito
ricoeuriano: o sujeito que só se apreende por meio do desvio pela reflexão em
direção a si mesmo. Por outro lado, partido e ferido são, no entendimento de Abel e
Porée (2009, p. 30), expressões diversas que revelam dois aspectos diferentes
desse sujeito reflexivo: (1) o aspecto epistemológico, próprio do cogito ferido e que
remete a “um pensamento que tudo deseja saber”, ou seja, à possibilidade do
conhecimento sobre si mesmo; (2) o aspecto ontológico, próprio do cogito partido,
que remete a “uma ‘lesão’ interior a nosso desejo de ser” ou à problemática
existencial da própria natureza cindida do sujeito.
Meireles (2016, p. 31) diz que no plano epistemológico, a objetividade do
conhecimento de si só poderá ser concebida por meio de um conceito estimado à
filosofia ricoeuriana: a atestação, um modo de conhecimento que requer que o
sujeito seja considerado na dimensão mais alargada do agir, “como a confiança que
supera todo exercício da dúvida, marcando pela convicção o lugar do si no ser”.
(BOTTON, 2009, p. 04).

108
Nas palavras de Jeanne Marie Gagnebin (1997), a discussão filosófica que Ricoeur empreende
nas décadas de 1960 e 1970 é marcada "por várias tentativas de destronar não só a filosofia clássica
do sujeito autônomo (Descartes e Kant), mas também seus sucedâneos contemporâneos, o
existencialismo e o personalismo, com sua ênfase nos conceitos de responsabilidade e de decisão".
(Gagnebin, 1997, p. 263). À "exaltação do Cogito", portanto, Ricoeur oporá um Cogito "quebrado"
(brisé) ou "ferido" (blessé), como escreverá no prefácio a Soi-même comme un autre. "Mas essa
quebra é, simultaneamente, a apreensão de uma unidade muito maior, mesmo que nunca totalizável
pelo sujeito: a unidade que se estabelece, em cada ação, em cada obra, entre o sujeito e o mundo".
(Gagnebin, 1997, p. 262).
109
“[...] na década de 1960, empreende o trabalho do que denominou de ‘enxerto hermenêutico na
fenomenologia’, contexto no qual visita as obras dos ‘mestres da suspeita’ (Marx, Freud, Nietzsche),
contrabalançando seu pêndulo reflexivo entre uma ‘hermenêutica da confiança’ e uma ‘hermenêutica
da suspeita’. Na realidade não vem só dessas referências esse seu adensamento da categoria do
sujeito. Muitos desvios e mediações aí se interpuseram: a visita aos símbolos e mitos, à linguística e
à psicanálise, à antropologia e à história, um debruçar-se sobre as narrativas. Um movimento
reflexivo que talvez encontre sua melhor tradução em sua conhecida e lapidar expressão do ‘cogito
ferido’”. (PEREIRA, 2016, p. 594).
110
Nesta obra, ao confrontar estruturalismo linguístico com psicanálise, Ricoeur também verifica que,
para além das diferenças de objeto e das diferenças metodológicas, há um resultado comum, a
saber, o questionamento do sujeito (BONA, 2010, p. 52).

91
A atestação pode ser entendida como a afirmação do si como testemunho, o
si que se manifesta na relação com o mesmo [mesmidade] e na dialética com o
outro de si [ipseidade]. No plano ontológico, em proximidade à fenomenologia
husserliana, a apreensão de si deve ser concebida como uma instância de
reapropriação, uma maneira indireta de autocompreensão que requer uma abertura
direcionada para expressões simbólicas, culturais, linguísticas.
Aí Ricoeur "tende a se desfazer do idealismo transcendental em proveito de
uma hermenêutica dos textos” (STEVENS apud NALLI, 2006, sem paginação), a
qual implica uma forma de desapropriação do eu [je] da filosofia cartesiana, em
proveito de uma reapropriação do si [soi]. De maneira notável, nosso autor nos
adverte que a “A tarefa de uma descrição do voluntário e do involuntário é, de fato,
acessar a uma experiência integral do cogito, até as fronteiras da afetividade mais
confusa111” (RICOEUR, 1950, p.12, tradução nossa), quer dizer, aquém de todo
dualismo intelectualista.
A expressão cogito ferido é abandonada por Ricoeur na fase madura de sua
obra. O Si mesmo como outro, de 1990, traz exclusivamente o cogito partido, em
meio ao confronto de duas heranças – a positiva cartesiana e a negativa
nietzschiana – das filosofias do sujeito para compreender porque a querela do cogito
tem de ser reavaliada (RICOEUR, 2014, p. XV). Ricoeur relembra que Descartes 112,
insatisfeito com reflexões anteriores na tentativa de compreender o que é o
conhecimento e encontrar a verdade, põe-se, então, a questionar o valor do
conhecimento e a defender a necessidade de se encontrar o inquestionável.
Inaugurando o método que busca a fundação da certeza e duvida de todas as coisas
no intuito de encontrar um terreno sólido e impermeável para edificar a filosofia do
cogito.
Na obra Discurso do método, Descartes (2013, p. 78 e 79) enuncia quatro
preceitos, ditados pela razão, indispensáveis, segundo ele, para alcançar a verdade:
evidência, análise, simplicidade e enumeração. Seguindo à risca esse método,
desde o princípio da evidência, Descartes nos conduz até a noção clássica de
subjetivismo, outro conceito-chave de sua filosofia.

111
“La tâche d’une description du volontaire et de l‟involontaire est en effet d’accéder à une
exppérience intégrale du Cogito, jusqu’aux confins de l’affectivité la plus confuse”.
112
“René Descartes, todos sabemos, é considerado o pai da filosofia da Modernidade. Esse mereci do
reconhecimento sublinha a instauração do método racional para se buscar a verdade na filosofia e
nas ciências, mas também – e sobretudo – as ressonâncias que esse método trouxe para a noção de
sujeito”. (MEIRELES, 2016, p. 21).

92
A regra da evidência deixa clara a preponderância do sujeito no processo de
conhecimento da verdade, de modo que na relação entre sujeito e objeto de
conhecimento, a verdade não emana do objeto, mas certamente do sujeito. É o
sujeito, portanto, orientado pela razão, quem pode conhecer e fundar a verdade,
senão vejamos:

[...] jamais acolher alguma coisa como verdadeira que eu não conhecesse
evidentemente como tal; isto é, [...] evitar cuidadosamente a precipitação e
a prevenção, e [...] nada incluir em meus juízos que não se apresentasse
tão clara e tão distintamente a meu espírito, que eu não tivesse nenhuma
ocasião de pô-lo em dúvida. (DESCARTES, 2013, p. 78).

Esse sujeito, obrigatoriamente orientado pela razão, é um eu que pensa: “Mas


o que sou eu, portanto? Uma coisa que pensa”. (DESCARTES, 1991, p. 177). O
ego, o eu cognoscente se concebe como sujeito pensante e de saída, cristalino a si
próprio. Também pela circunstância do pensar, o ego alcança a autoconsciência de
si e confirma a própria existência. Com efeito, existo na medida em que penso e
durante todo o tempo em que penso. Ainda que tudo não passe de imaginação ou
engodo, existe ao menos essa verdade sobre a qual nenhum gênio maligno113 tem
poder algum. “Que é uma coisa que pensa? É uma coisa que duvida, que concebe,
que afirma, que nega, que quer, que não quer, que imagina também e que sente”.
(DESCARTES, 1991, p. 177).
O eu duvida. A dúvida114 é hiperbólica e metódica, se dá sobre o testemunho
dos sentidos, do pensamento e das próprias verdades matemáticas, examinando-se
todas as opiniões, crenças ou conceitos anteriores. Eis um excerto acerca disso:

113
A formulação da hipótese do “gênio maligno” tem a função de dramatizar a dúvida metafísica de
Descartes. O sujeito que duvida, já desancorado, envida todos os esforços para enganar a si mesmo,
fingindo que todos esses pensamentos são falsos e imaginários, o que Ricoeur arremata com o
argumento de que “mesmo a hipótese do gênio maligno é uma ficção que crio”. (RICOEUR, 2014, p.
XVII).
114
Precisamos de nos desfazer de todas as ideias, de todas as crenças recebidas, ou seja,
libertarmo-nos de todas as tradições, de todas as autoridades, se quisermos alguma vez reencontrar
a pureza nativa da nossa razão, chegar à certeza da verdade. Com efeito, o céptico – quero dizer:
Montaigne – tem razão em duvidar. Não se defronta ele com opiniões incertas, duvidosas, e mesmo
falsas? Pode acontecer que, por vezes, não tenha razão, que entre as coisas de que duvida se
encontrem igualmente, algumas verdadeiras. Mas, como poderia ele, e como será possível sabê-lo?
[…] Só há um meio de sair disso: esvaziar completamente o espírito. Como Descartes o dir á um dia
ao Padre Bourdin: “Se tiver um cesto de maçãs das quais várias estão podres e, por isso, envenenam
o resto, que fazer senão esvaziá-lo todo e retomar as maçãs uma a uma para voltar a pôr as boas no
cesto e deitar as más para o lixo... Notemos que a operação se desenrola em dois tempos: começa-
se por esvaziar o cesto; todavia, ele não fica vazio, porque se volta a pôr lá maçãs, aquelas
justamente que não estão podres”. (KOYRÉ, 1980, p. 49 e 50).

93
[...] aplicar-me-ei seriamente e com liberdade em destruir em geral todas as
minhas antigas opiniões. Ora, não será necessário, para alcançar este
desígnio, provar que todas elas são falsas, o que talvez nunca levasse a
cabo; mas, uma vez que a razão já me persuade de que não devo menos
cuidadosamente impedir-me de dar crédito às coisas que não são
inteiramente certas e indubitáveis, do que às que nos parecem
manifestamente ser falsas, o menor motivo de dúvida que eu nelas
encontrar bastará para me levar a rejeitar todas. (DESCARTES, 2013, p.
257 e 258).

Por mais que Descartes se empenhe em imaginar condições que gerem


dúvida sobre a certeza de que ele pensa, ele não consegue, firmando-se então, a
certeza de que o eu pensa porque resiste à dúvida hiperbólica.
Mas o que é esse eu que duvida, assim desancorado em relação a todos os
referenciais espaço temporais associados ao corpo? “[...] Não é ninguém”, diz
Ricoeur (2014, p. XVII), no sentido de que não é soberano, detentor do
conhecimento verdadeiro e de ideias claras e distintas, quanto menos uma
consciência autônoma. E, como um primeiro passo à frente de uma encruzilhada,
não pode ser imediatamente seguido de nenhum outro”. (RICOEUR, 1978, p. 19).
A verdade pretendida por Descartes em Ricoeur, portanto, não passa de uma
verdade superficial e abstrata. Nosso filósofo lembra que esta verdade:

[...] não pode ser verificada nem deduzida; é ao mesmo tempo a posição de
um ser e de um ato; a posição de uma existência e uma operação de
pensamento: eu sou, eu penso. Existir para mim, é pensar. Eu existo
enquanto penso. (RICOEUR, 1978, p. 275).

O ego cogito e sua dúvida hiperbólica, em Ricoeur, desencadeiam diversas


indagações sobre o eu que se coloca a si mesmo como questão. O ego do ego
cogito afirma uma existência e um ato ou uma operação do pensamento. O ego
existe na exata medida em que pensa. E a reflexão vem a ser a autoposição desse
ego cogito. Dessa forma, a reflexão se identifica com a volta imediata sobre si
operada pela consciência.
A posição de Descartes nos apresenta o ego como inteiramente subjugado no
seio do cogito. Sobre isso, Ruth Leonhardt pondera:

Do exame do cogito fica ressaltado que Descartes exaltou o ego atribuindo-


lhe a posição de mentor e nutriz da certeza. Nessa ideia Ricoeur lê a
desmesura da ambição e da radicalidade em resolver uma dúvida
descabida, que nada exclui. A esta apologia, a este engrandecimento é que
Ricoeur obsta, considerando-o desproporcional e o infere solipsista, restrito
a um monólogo autotélico que gira em torno do conteúdo de seu espírito,

94
numa forma autoverificadora que se esgota na peculiaridade íntima da
correlação entre o pensar e o existir, que não transita além da circularidade,
pois cai na atração do vácuo que provoca. (LEONHARDT, 2004, p. 48).

Ricoeur vê a necessidade de se buscar uma maneira alternativa de falar e de


conceber o sujeito para além da ambição cartesiana de um eu soberano e
autoconsciente. Dessa forma é que, em contraponto a Descartes, toma Nietzsche
para fomentar o debate acerca da questão do sujeito, em mais um movimento
dialético, entre aquele sujeito cartesiano solipsista e autossuficiente e o sujeito
nietzschiano eliminado, como escreve no prefácio de O Si-mesmo como outro.
No texto Verdade e mentira no sentido extra-moral, de 1873, Nietzsche, ao
discutir a oposição entre verdade e falsidade – apresenta seu conhecido anti-cogito.
Como bem aponta Cristina Meireles (2016, p. 33) “A partir de um recurso à
dimensão linguístico-conceitual de toda civilização, Nietzsche mostra que verdade e
falsidade são conceitos convencionais, no final das contas”.
A pretensão cartesiana de conhecer a verdade, portanto, é insignificante em
Nietzsche. O percurso proposto por esse filósofo, não foi só no sentido contrário ao
percurso de Descartes. Seguiu rumo diverso, em direção a uma revisão dos
conceitos de conhecimento e verdade115. “Nietzsche traz à tona as estratégias
retóricas dissimuladas, esquecidas e até hipocritamente reprimidas e negadas, em
nome da imediatez da reflexão”. (RICOEUR, 2014, p. XXV).
Em consequência, a noção de sujeito também é revisada por Nietzsche. O
sujeito, detentor do conhecimento verdadeiro e das ideias esclarecidas de Descartes
não passa de uma ficção, o resultado de uma longa cadeia de escolhas
verborrágicas.

Pensa-se: logo, existe algo pensante: aqui desemboca a argumentação


cartesiana. Isso significa, porém, estabelecer previamente nossa crença no
conceito de substância como ‘verdadeiro a priori’ – que tenha que existir
‘algo que pense’, quando se pensa, é, porém, simplesmente uma
formulação de nosso hábito gramatical, que estabelece um agente para o
fazer. Em resumo: aqui já se institui um postulado lógico – metafísico – e
não apenas se constata... Pelo caminho cartesiano não se chega a algo

115
“No referido texto, Nietzsche começa buscando uma resposta para a seguinte indagação: de onde
vem o assim chamado impulso à verdade dos homens? Geralmente, a primeira tendência seria
relacionar tal impulso à dimensão racional-intelectual dos homens, respaldados por uma implícita
crença numa suposta supremacia deste aspecto da natureza humana sobre os demais (como
instintual, emocional e afetivo, por exemplo). Nietzsche, remando contra essa tendência, vem
argumentar a favor do caráter extremamente pragmático do intelecto humano; para ele, a dimensão
intelectual teria unicamente a função de garantir a conservação do indivíduo na natureza. Nesse
sentido, as atividades do intelecto resumem-se à função de representação” (MEIRELES, 2016, p. 26).

95
absolutamente certo, e sim ao fato de uma crença muito forte.
(NIETZSCHE, 1990, p. 145).

Nietzsche, duvidando melhor do que Descartes 116, apaga a exaltação do


sujeito cartesiano e defende a ideia de que a unidade do sujeito não é mais do que
uma ilusão da linguagem, um hábito gramatical que liga um agente a uma ação. Os
conceitos ou a teia conceitual são tão somente o que permite ao sujeito reconhecer
a si mesmo. “É verdade que somente pela teia rígida e regular do conceito o homem
acordado tem certeza clara de estar acordado”. (NIETZSCHE, 1999, p. 59). O sujeito
é, assim, desconstruído, interpretado apenas como uma ilusão que consistiria em
imaginar um "substrato de sujeito ou substância” no qual os atos de pensamento
teriam sua origem”. (PIVA, 1999, p. 209).
Podemos continuar falando em sujeito depois de Nietzsche?
Com Ricoeur, destacadamente em O Si-mesmo como outro, sim. Ele tenta
salvaguardar o sujeito por meio de uma hermenêutica que o leva ao encontro de seu
lugar epistêmico e ontológico, situado além dessa alternativa entre cogito e anti-
cogito. Ele não rompe totalmente com Descartes. Reconhece no modelo cartesiano
a junção do ser e do ato e a atribuição do ato ao ser, na acertada conjugação entre o
ser e o agir. Mas vê problema na constituição ontológica do cogito. A ontologia
cartesiana não dá conta das exigências do mundo em constante mudança e nas
palavras de Ruth Leonhard (2004, p. 48), “da existência ancorada na interpretação e
na compreensão da textura da vida, que é como tecido urdido por inúmeros fios e
não se esgota na repetição cíclica da ininterrupta sequência. Para essa ontologia, o
ego cogito se mostra insuficiente”.
Ricoeur propõe então, o resgate desse ego através da tarefa. Destaca a
presunção de certeza desse ego se ele não assumir obras e atos (LEONHARDT,
2004, p. 48), reafirmando: “A posição do ego deve ser retomada através de seus
atos, pois ela não é dada nem numa evidência psicológica, nem em uma intuição
intelectual, ou numa visão mística”. (RICOEUR, 1978, p. 275).
De Nietzsche e da hermenêutica da suspeita, Ricoeur fica com “uma
metodologia de interpretação que permite desmascarar a falsa consciência e as
ilusões da soberania do sentido” (NASCIMENTO e SALLES, 2013, p. 29), pois de
fato, é cada vez mais difícil afirmar que há verdade universal e conhecimento

116
“Nietzsche não diz outra coisa, pelo menos nesses fragmentos, senão o seguinte: duvido melhor
que Descartes. O Cogito também é duvidoso”. (RICOEUR, 2014, p. XXX).

96
absoluto, tampouco, um acesso imediato e seguro à compreensão de si que não
redunde num curto circuito do ego em face de um abismo narcísico (LAUXEN, 2013,
p. 14).
Ricoeur quer evitar a exaltação cartesiana do cogito, contudo e oposto a
Nietzsche, continuar a falar em sujeito, salvaguardar o sujeito sem humilhação.

Sujeito enaltecido, sujeito humilhado: ao que parece é sempre por meio


dessa inversão entre o pró e o contra que se faz a abordagem do sujeito;
daí seria preciso concluir que o ‘eu’ das filosofias do sujeito é atopos, sem
lugar garantido no discurso. (RICOEUR, 2014, p. XXX).

Para além da contenda cogito x anti-cogito Ricoeur oferece a hermenêutica


do si-mesmo, portadora das características do desvio da reflexão pela análise, da
dialética entre ipseidade e mesmidade e da dialética entre ipseidade e alteridade
(RICOEUR, 2014, p. XXI).
A hermenêutica do si-mesmo liberta o ego das filosofias do sujeito, abrindo-o
para o mundo. E, por ora, vamos destacar a primeira intenção filosófica que norteou
os nove estudos de O Si-mesmo como outro: o primado da mediação reflexiva sobre
a posição imediata do sujeito.
Ricoeur quer resgatar a posição do sujeito na figura do cogito partido,
quebrado, desafetado tanto do triunfalismo do cogito de Descartes, quanto do
niilismo do anti-cogito de Nietzsche. Só o sujeito é um quem responsável por seus
atos e capaz de conhecer a si mesmo. Nas palavras de Lauxen (2013, p. 601),
Ricoeur está realmente interessado em retomar a perspectiva singular sobre o
mundo, porque é dela que deriva a responsabilidade do ato.
O sujeito não é, portanto, uma espécie de substrato metafísico, desancorado
em relação a todas as referências espaço-temporais, fora das condições de
interlocução, uma identidade pontual, a-histórica, mas um si, uma determinação
singular que aparece em relação com o que Ricoeur chamará “locutor, agente,
personagem de narração, sujeito de imputação moral, etc.”. (RICOEUR, 2014, p.
20). Vejamos como Ricoeur permanece, desse modo, aliado à compreensão de
subjetividade essencialmente como ato, ação – desde sua perspectiva inicial, no
Note sur la personne, de 1936. A constituição do sujeito se dá concomitantemente
com a constituição da ação nos seus diversos níveis: linguístico, prático, narrativo,
ético, político.

97
Tal concepção é central nos dez estudos desenvolvidos em O Si mesmo
como outro. Ricoeur pergunta pelo sujeito que age, mas tanto o sujeito quanto a
ação são noções polissêmicas, visto a pluralidade das manifestações do sujeito e as
formas diversas da práxis.
O cogito partido ricoeuriano interessa-se pelo autoexame, se reconhece como
sujeito sem réplica, porém, não desamparado no mundo. No entendimento de Ruth
Leonhardt (2004, p. 49), o cogito partido não se diz sem reflexão, “sem refletir sobre
o quem, sobre o sujeito que percebe o eu que tem em si. O conhecimento e o
autoconhecimento recorrem à reflexão e esse é o modo de se tornar consciente de
si”. Já foi dito acima que o eu reflexivo é também um ser num mundo de sentidos,
marcado pelas influências que recebe, centrado num ponto de convergência das
condições e situações que o ego cogito, em cativeiro, não percebe.
Os mestres da suspeita (Nietzsche, Marx e Freud) mostram a fragilidade do
cogito. Seu sentido encontra-se ainda ameaçado pelas ilusões da própria
consciência. A mediação dos signos no caminho da compreensão de si pressupõe
que o sentido do cogito está descentrado em relação a seu significado, deve ser
decifrado, interpretado em seus signos e suas obras que se tornaram estranhos pela
distância temporal. Assim, para Ricoeur, a dimensão da suspeita que pesa sobre o
cogito vem completar a tarefa hermenêutica da compreensão de si. Ele afirma: “[...]
minha hipótese de trabalho filosófico, é a reflexão concreta, isto é, o cogito
mediatizado por todo o universo dos signos117”. (RICOEUR, 1969, p. 169, tradução
nossa).
Ao lermos o artigo Abordagens da Pessoa, de 1990, anterior ao Si mesmo
como outro, percebemos que Ricoeur vai além do ensaio precedente de 1983,
declarando-se mobilizado com as pesquisas contemporâneas sobre a linguagem, a
ação e a narrativa. Ele afirma que o texto “[...] se situa no prolongamento do Tratado
do caráter” de Mounier (RICOEUR, 1996a, p. 164). E nas palavras de Elsio Corá
(2013, p. 18) “[...] o fio condutor [do artigo] é a problemática em torno da figura do
homem capaz, que aparece implicado no caminho de uma fenomenologia
hermenêutica do si-mesmo”.
Em síntese, Ricoeur se mantém fiel à definição de pessoa como atitude, de
Weil e, igualmente, ao par crise/engajamento de Landsberg, no qual acrescentou as

117
“[...] mon hypothèse de travail philosophique, c’est la réflexion concrète, c’est-a-dire le cogito
médiatisé par tout l’univers des signes”.

98
decorrências indispensáveis de fidelidade no tempo a uma causa superior, a
aceitação da alteridade e da diferença na identidade da pessoa. Todavia, vê agora,
na linguagem, na ação e na narrativa a possibilidade de dar um fundamento à
constituição ética da pessoa e conceber uma fenomenologia hermenêutica da
pessoa, recompondo uma ideia mais rica de pessoa (RICOEUR, 1996a, p. 168).
Com isso, ele afirma que a pessoa é conformada pelas quatro camadas da
linguagem, ação, narrativa e vida ética. A filosofia da linguagem, semântica e
pragmática, a teoria da ação, uma vida narrada (examinada) e assim,
substancialmente, a estrutura ternária da (1) aspiração a uma vida boa, (2) com e
para os outros, (3) em instituições justas, que tem muito a contribuir para a filosofia
da pessoa.
Ricoeur nada refere a uma hermenêutica do si-mesmo nesse artigo – seu
interesse é a retomada contemporânea do conceito de pessoa – mas descortina
essas quatro camadas da pessoa de forma semelhante ao que faz em O Si mesmo
como outro: (1) introduzindo o diálogo “com as filosofias inspiradas pelo que foi
chamado de linguistic turn”, nos planos da semântica e da pragmática, atribuindo à
pessoa uma identificação como particular de base, ao modo de Peter Strawson, e
defendendo que pela teoria dos atos de discurso, o significado de uma proposição
depende do contexto de interlocução; (2) concebendo a pessoa como sujeito que
age e sofre, reforçando a teria da pessoa com a teoria da ação118; (3) recorrendo à
dimensão narrativa onde, defende o autor, age a “dialética entre mesmidade e
ipseidade”; e (4) referindo-se à estrutura ternária da aspiração a uma vida boa
[estima de si] com e para os outros [solicitude] em instituições justas [justiça
distributiva rawlsiana] 119, onde se esboçam progressivamente as três camadas
anteriores.
Ricoeur observa ainda, com habilidade, que esses quatro estratos
correspondem ao que “poderia”, diz ele, constituir a fenomenologia hermenêutica da
pessoa: o homem que fala, o homem que age e sofre, o homem narrador e

118
“Esta teoria, muito em voga no meio anglo-saxão, se baseia numa análise linguística das frases de
ação do tipo: A faz X em circunstâncias Y. Parece que a lógica dessas frases de ação é irredutível à
da proposição atributiva: S é P. Não insistirei nesse problema, que concerne à semântica da ação,
com o fim de reservar o essencial de minha análise para a implicação do agente na ação” .
(RICOEUR, 1996a, p. 173).
119
“Não me deterei na noção de igualdade proporcional pela qual Aristóteles define a justiça
distributiva. Eu a tomarei somente como ponto de partida de um longo processo argumentativo que
prossegue até a nossa época e da qual a obra de Rawls, em Teoria da justiça, oferece o melhor
modelo”. (RICOEUR, 1996a, p. 167).

99
personagem da própria narrativa de vida e o homem responsável. Todos conformam
a pessoa, restando delineadas as quatro maneiras de responder às perguntas: quem
fala? Quem atua? Quem narra? Quem é o sujeito moral de imputação?
Em O Si-mesmo como outro, ainda que Ricoeur não fale especificamente em
uma filosofia da pessoa -- passando da fenomenologia hermenêutica da pessoa,
talhada no artigo precedente, para a hermenêutica do si-mesmo – toma já no
primeiro dos nove estudos que compõem a obra, a noção de pessoa como particular
de base, desejando atribuir-lhe uma identificação. De fato, é à pessoa [identificada
no seio de uma gama de coisas particulares do mesmo tipo] que se pode imputar os
atos; e é com a noção de pessoa que é possível restaurar a identidade pessoal
como modo de subtração do anonimato e da desumanização.
Constança Marcondes Cesar (1997, p. 17) lembra que: “Contra a
impessoalidade que marca o problema da ação no mundo, Ricoeur invoca a
meditação sobre a identidade [...] que devolve o homem a si mesmo e reencontra no
si fundante, o ponto de acordo com todos os homens”.
Com efeito, a reflexão sobre a pessoa como sujeito capaz, histórico e aberto
ao outro prefigura, portanto, não só o projeto dos anos cinquenta, mas quase toda a
obra de Ricoeur. “Na obra de historiador que ele consagra aos existencialismos de
Marcel e de Jaspers em 1947, Ricoeur já sabia que em sua filosofia a subjetividade
não seria um fundamento, à maneira do cogito, mas um destino” defende Constança
Marcondes Cesar (1997, p. 30).
Reale e Antiseri (2006, p. 269), ao se referirem a Ricoeur, designam um
tópico especial sob o título de A reconquista da pessoa. Esses autores afirmam que
se quiséssemos tentar captar o sentido de todo o trabalho hermenêutico de Ricoeur,
poderíamos dizer que “é ‘o longo caminho’ da reconquista da pessoa humana por
meio de uma peregrinação fatigante na floresta das produções simbólicas do
homem, e depois das devastações produzidas na ideia de consciência pelos
mestres da ‘escola da suspeita’”. (MARCONDES CESAR, 1997, p. 30).
“Volta a pessoa!”, sobretudo nesses tempos em que se tem excluído o ser
humano, a pessoa humana, do centro das reflexões filosóficas (PEIXOTO, ZUBEN e
GOTO, 2017, p. 10). Preferimos dizer pessoa a sujeito. Tal como Ricoeur, marcamos
distância em relação ao eu, consciência, indivíduo, sujeito cartesianos (tomados
como sinônimos), e apoiamos seu projeto que reelabora a filosofia do cogito como
filosofia da pessoa (CORÁ, 2004, p. 56).

100
O conceito de pessoa é o que melhor considera a subjetividade e a
intersubjetividade120, a corporeidade, a espiritualidade, a afetividade, os valores, a
comunidade e a ética.
O termo pessoa não descreve somente um indivíduo de fato, mas é um
conceito prescritivo de ordem ético jurídica: “[...] se está diante de uma dimensão
normativa que dá sustentação ao caráter incondicional de sua dignidade”.
(PEIXOTO, ZUBEN e GOTO, 2017, p. 09). As dimensões da pessoa e a liberdade
das e nas três pessoas da ética, refletidas a partir de Ricoeur, permitem, justamente,
salvaguardar a dignidade do humano e despertar para a importância do princípio da
alteridade nas relações intersubjetivas – o que veremos com maior atenção no
tópico que segue.

3.2 CAPACIDADE E LIBERDADE, AGENTES E FALANTES: AS TRÊS PESSOAS


DA ÉTICA

“Paro aqui no momento em que meu percurso me traz novamente ao meu ponto de partida: o éthos
da pessoa ritmado pelo ternário: estima de si, solicitude por outrem,
desejo de viver em instituições justas”.
Paul Ricoeur

No artigo O problema do fundamento da moral, publicado originalmente em


1975, Ricoeur quer provar que o ponto de partida da ética, a fonte da ética é a
liberdade. “[...] a liberdade é, enquanto tal, o X da filosofia kantiana” (RICOEUR,
2011, p. 129), acrescenta121.
Sendo mais incisivo, Ricoeur entende que todo o problema da ética nasce da
questão: o que significa, para a liberdade, atestar-se? Significa dedicar-se a fazer, e
não a ver. Significa, expõe nosso filósofo, todo um problema de apropriação por
meio da tarefa, da ação, do agir para reafirmar-se livre e se por livre. Não se pode
ver a própria liberdade, tampouco se pode provar a liberdade, resta apenas acreditar
na possibilidade de liberdade. Há aqui uma espécie de paradoxo: se a liberdade se

120
Ricoeur propõe uma “(...) via intermediária entre Lévinas e Husserl, no que diz respeito à questão
da intersubjetividade. Para Husserl, o outro é percebido como um “alter ego”, enquanto que, para
Lévinas, é a alteridade de um ‘totalmente outro’”. De acordo com Ricoeur, não implica nenhuma
espécie de contradição considerar como “dialeticamente complementares” os movimentos do outro
para o si mesmo e do si mesmo para o outro (RICOEUR, 1991, p. 396 apud GUBERT, 2011, p. 76).
121
Ricoeur (2011, p. 129) escreve “não posso ver minha liberdade, não posso sequer provar que sou
livre, posso apenas pôr-me livre [me por] e crer-me livre. É, portanto, a ausência de uma visão, que
me daria a certeza de um fato, que explica que a liberdade só se pode atestar através da tarefa”.

101
põe, ela não se possui. Há a crença de que posso ser livre, mas a conquista da
liberdade é algo que “só se tem através de todo um percurso da existência, sem que
nenhum ato singular possa, por si só, constituir prova suficiente disso”. (RICOEUR,
2011. p. 130). E mais do que poder ser livre, é a exigência de realização da
liberdade, destarte, que faz com que ela seja para si mesma, uma tarefa, uma obra.
Já vimos que nos textos Ética e Moral, Abordagens da pessoa e O Si-mesmo
como outro, Ricoeur formata a estrutura ternária de sua pequena ética 122. O texto de
1975, ainda que nada refira acerca da separação entre ética e moral, o autor nos dá
sinais disso, afirmando que a ética é anterior a moral123. E justamente porque as
bases éticas precisam ser constituídas antes de uma moral do dever, não se pode
admitir, diz ele, a fundação da ética. Nesse sentido: “(...) ninguém começa a história
da ética, ninguém se situa no ponto zero da ética”. (RICOEUR, 2011, p. 133).
Ainda no artigo, Ricoeur alerta que Kant 124, portanto, se precipitou ao
concentrar toda a problemática ética, de ter identificado todo o dinamismo ético e a
sua génese de sentido no seu último momento – o da lei moral – meramente formal.
Ao mesmo tempo, Kant erigiu um fundamento que, afinal de contas, não é nada
mais que um critério didático125. O “quereria eu que todos fizessem o mesmo”, não
passa de um teste ao desejo pessoal. Destarte, fica a pergunta: será que ele pode
ser erigido em lei universal? Não. Ricoeur (2011, p. 139) argumenta que não
vislumbra a possibilidade de criar o que quer que seja, uma norma, um valor, a partir
de um simples critério, isto é, de um simples teste.
Dito isso, nosso autor segue sustentando seu propósito de elaborar uma rede
conceitual que permite a constituição de uma ética não fundada pela lei126, ao modo
kantiano, mas pela liberdade ancorada em três momentos, a saber: (I) a intenção

122
Não esqueçamos que Em O Justo 1 e 2, Ricoeur (2008, p. 2) altera o esquema da tríade ética [da
ética às éticas]. O faz, porém, sem abandonar a intenção ética, a perspectiva aristotélica da vida boa
e, como ele mesmo justifica, sob o pano de fundo da justiça.
123
Tanto é que é a liberdade que funda a ética; e não, a lei. Ricoeur dirá também que o homem está
acorrentado à lei. A lei, sob esse aspecto, é justamente o esquecimento do desejo de liberdade. E
corrobora-se o equívoco kantiano, propondo-se universalizar a liberdade (RICOEUR, 2011, p. 144).
124
Cabe recordar: “[...] porque Ricoeur chamou seu projeto inicial de Liberdade e Natureza, ecoando
o problema de Kant. A inovação introduzida por Ricoeur é que, em vez de enunciar o problema
básico em termos de liberdade e determinismo, ele o faz em termos do que chamará de reciprocidade
do voluntário e do involuntário em nossa experiência vivida”. (PELLAUER, 2009, pp. 23 e 24).
125
“Uso aqui a palavra critério no sentido de teste [mise à l’épreuve], como o faz Kant na teoria das
máximas: quereria eu que todos fizessem o mesmo?”. (RICOEUR, 2011, p. 139).
126
A fonte mais primitiva de toda a ética não é a lei, mas sim, a intenção ou o propósito de liberdade.
Ao afirmar que a liberdade é a fonte da ética e é anterior à moral, numa espécie de separação entre
ethos e mores 126, Ricoeur preparará o cenário para a entrada do conceito de lei (e de moral), último
elemento de uma rede composta pelos conceitos de valor, norma e imperativo.

102
ética127, (II) a posição da lei128 e (III) a perspectiva evangélica na ordem ética 129.
Neste tópico, interessa nos aproximarmos do primeiro momento: a intenção
ética, conjeturada por Ricoeur da seguinte maneira: (1) a liberdade, fonte da ética,
(2) a liberdade na segunda pessoa e (3) a mediação da instituição. Essas três
liberdades, veremos à frente, correspondem às três pessoas agentes da ética
ricoeuriana: o si-mesmo, o tu e a instituição.
Farias dos Santos e Marcondes Cesar (2010, p. 01), ratificam que com a
formulação da noção de agente se cria a concepção de pessoa. Afigura-se que a
intenção ética, essa odisseia pela liberdade, essa tarefa pela exigência de realização
da liberdade da qual Ricoeur fala, só pode ser efetuada por um agente [capaz e
responsável]. O conceito de agente em Ricoeur pode ser dado pela resposta à
pergunta quem? O agente é algo a que são atribuídos predicativos psíquicos e
predicados físicos. Esse agente se torna, destarte, um alguém em resposta à
pergunta quem?
Ao mesmo tempo, o agente é o princípio de suas ações. A ação 130 e suas
razões são atribuídas a esse agente, autor de suas atitudes. A responsabilidade de
uma ação é imputada a esse autor, pois só ele é capaz de se reconhecer criador de
seus atos. Podemos retomar aqui, portanto, a noção weiliana de atitude-pessoa,
sobretudo, a compreensão de que a atitude é núcleo da pessoa e a ética, por seu
turno, é um esforço para compreender e justificar essa atitude 131.

127
“Ah! Se eu pudesse viver bem, sob o horizonte de uma vida realizada, e, nesse sentido, feliz!”.
(RICOEUR, 1996a, p. 164).
128
A lei vai acrescentar a todas as noções anteriores (valor, norma, imperativo), a exigência de
universalidade, o que justifica, em Ricoeur, uma analogia à lei da natureza, aproximando e
coordenando a racionalidade introduzida na ação à racionalidade que buscamos na natureza
(RICOEUR, 2011, p. 139).
129
Ricoeur dirá que através de uma perspectiva evangélica da ética pode-se conformar uma ordem
ética “dinâmica”: uma intenção ética que não considera como um problema a tarefa duplicada de
fazer surgir a liberdade do outro como semelhante à minha, de fazer com que a tua liberdade progrida
com a minha. Desse modo, a ética do evangelho parece restituir a perspectiva em direção ao outro (a
minha liberdade pode ir ao encontro da liberdade do outro e não de encontro a liberdade do outro)
(RICOEUR, 2011, p. 142); e como uma nova ordem de valores e de instituições, que seriam as da
liberdade, o Evangelho nos traria de volta à origem de todo o processo da ética, anterior ao momento
no qual ela se cristaliza em lei.
130
“A nova perspectiva, aberta por Du texte à l’action, consiste na extensão da ideia de narrativa,
antes aplicada aos textos de história e ficção, à compreensão da ação humana. Esta analogia entre a
narrativa dos textos de história e de ficção e a narrativa do agir amplia, ao mesmo tempo, a noção de
identidade narrativa, estendendo-a ao campo da ação e complexifica a noção de sujeito, agora
pensado não apenas com quem delibera e decide, mas como quem é capaz de dizer, narrar, agir,
imputar”. (MARCONDES CESAR, 2011, p. 94).
131
Aqui podemos acrescentar: “Essa atitude possui a intenção de apresentar a relação entre
sociedade e pessoa. Nesse sentido, a sociedade precisa oferecer as condições para que a pessoa se
realize. Por outro lado, o Estado possui a responsabilidade legal de propiciar essa realização, como

103
No dizer de Maria João Coelho (1997, p. 16), o ser da pessoa se manifesta na
atitude, no agir livre. Com isso, também se ratifica que Ricoeur não perde de vista a
perspectiva do ato na definição de pessoa. Lauxen (2013, p. 601) corrobora que ele
faz questão de ressalvar uma filosofia do ato, de ser e existir, seguindo Spinoza e
Nabert – tema recorrente de sua ontologia.
Por outro lado, como visto no tópico anterior, vigora o entendimento de que
não é o sujeito cartesiano, tampouco o indivíduo moderno, o agente da ética a quem
Ricoeur se refere. A atitude moral, a intenção ética, sendo bem mais específico,
cabe ao “rosto dotado de singularidade”, à “máscara do si-mesmo132, isto é, da
unicidade insubstituível do sujeito, aquém do ser” (FABRI, 2017, p. 145 e p. 146), ou
seja, a pessoa. O agente livre e capaz é, portanto, a pessoa. A pessoa é quem age,
quem “unifica assim toda a sua atividade na liberdade e desenvolve por acréscimo,
por força de atos criadores, a singularidade de sua vocação”, Mounier (1964 apud
RICOEUR, 1996, p. 157).
Em vista disso, a reflexão acerca do agir humano em Ricoeur leva-nos
imediatamente a considerar a capacidade de realização da liberdade 133, ou seja, a
capacidade da pessoa humana ser responsável por seus atos e suas decisões. A
pessoa é o ser humano no percurso de realização da liberdade pelo mundo da
tarefa, da ação, enquanto capaz de identificar a si mesmo e com isso, responder a
“Quem fala? Quem age? Quem narra a si mesmo? Quem é o sujeito moral de
imputações?“.
Mas a identificação primária da pessoa para Ricoeur134, incluímos, é inerente
à filosofia da linguagem, dos planos da semântica e da pragmática 135. Explicamos

também possui a responsabilidade para com a pessoa. Para Barros e César (2008, p. 3) ‘[...] a
pessoa se constitui, se relaciona com o outro de modo responsável e almeja a justiça para uma vida
boa em sociedade’”. (CORÁ, 2010, pp. 93 e 94).
132
A propósito, Ruth Leonhardt nos faz recordar: “O dicionário etimológico de Antônio Geraldo da
Cunha designa a origem da palavra pessoa no latim personae. A palavra pessoa, em grego é
prósopon – significando máscara. Ou hypostasis, significando suporte. A pessoa é veículo. Esconde
ou suporta o quê? A resposta mais rápida: o eu”. (LEONHARDT, 2004, p. 50).
133
Advertindo-se que o “’eu posso’ deve ser conquistado através de todo um percurso da existênc ia
[...]. Portanto, parto aqui de uma atestação íntima, mas que exige um curso ulterior, uma duração
[durée] subsequente, para se exercer e se experimentar”. (RICOEUR, 2011, p. 130).
134
No artigo Abordagens da pessoa, Ricoeur introduz seu propósito de dialogar com as filosofias
inspiradas no linguistic turn acerca da ideia de pessoa, denotando como as filosofias da linguagem
podem contribuir para o tema (RICOEUR, 1998, p. 168 a p. 173). No primeiro estudo de O Si-mesmo
como outro, intitulado “A ‘pessoa’ e a referência identificadora”. Ricoeur vai avaliar mais
profundamente a noção de pessoa a partir do aporte teórico oriundo da filosofia da linguagem, da
filosofia analítica de língua inglesa, destacadamente a do Individuals (1957) de Peter Strawson e,
consequentemente, porque realizou uma abordagem semântica do conceito de pessoa/indivíduo.

104
melhor: nos textos Abordagens da pessoa e O Si-mesmo como outro, Ricoeur parte
do mais pobre dos sentidos que podem ser vinculados à noção de pessoa, o de
identificação136, à luz da referência identificadora da analítica filosófica para,
segundo ele, saber-se de quem se fala quando se designa de modo referencial a
pessoa, enquanto distinta das coisas, e quem fala ao se designar a si mesmo como
locutor137 (RICOEUR, 2014, p. XXXI).
Essa contribuição vem especificamente de Peter Strawson138, com a
formulação do conceito de particular de base, da teoria da referência identificadora.
A expressão particular de base designa o elemento mais simples que permite a
identificação de cada ser e capta o sentido mais primitivo que distingue a pessoa,
isto é, o corpo. O corpo é a base elementar mais simples para identificar a pessoa e
se caracteriza pelo fato de ser sempre o mesmo. É o próprio Ricoeur, nesse excerto,
quem melhor deslinda:

[...] é-nos impossível identificar um particular dado sem classificá-lo seja


entre os corpos, seja entre as pessoas. A pessoa aparece então como um
particular de base, ou seja, como um desses particulares aos quais
devemos nos referir quando falamos como o fazemos a respeito dos
componentes do mundo. (RICOEUR, 1996, p. 169).

Nesse estágio, o que está em foco é um ser no mundo sem que sejam
considerados os atos de pensamento ou representações mentais, “[...] fala-se de
pessoas ao se falar das entidades que compõem o mundo. Fala-se delas como
‘coisas’ de um tipo particular”. (RICOEUR, 2014, p. 07).
A linguagem está estruturada de tal maneira, que permite designar indivíduos,
tendo como base operadores de individualização, tais como as descrições definidas:
os nomes próprios e os dêiticos, incluindo os adjetivos e os pronomes

135
“O recurso à análise, no sentido dado a esse termo pela filosofia analítica, é o preço que deve ser
pago para se ter uma hermenêutica caracterizada pelo estatuto indireto da formulação do si-mesmo”.
(RICOEUR, 2014, p. XXXI).
136
“Identificar alguma coisa é poder levar outrem a conhecer a coisa de que temos intenção de falar,
dentro de uma gama de coisas particulares do mesmo tipo”. (RICOEUR, 2014, p. 01).
137
Ricoeur (2014, p. XXXI) acrescenta: “[...] dirigindo a palavra a um interlocutor”.
138
Em Individuos (1989), Strawson afirma que é preciso distinguir dois tipos de metafísicos, aqueles
que defendem uma metafísica revisionista e, por outro lado, aqueles que defendem uma metafísica
descritiva. Na metafísica revisionista busca-se apresentar uma estrutura melhor da nossa maneira de
pensar sobre o mundo. Na metafísica descritiva, busca-se descrever a estrutura efetiva do nosso
pensamento sobre o mundo, sendo que a maneira pela qual pensamos o mundo é através de
símbolos. Strawson se definiu como sendo um metafísico descritivo.

105
demonstrativos, os pronomes pessoais, os tempos verbais 139. Quando o falante
emprega quaisquer destas expressões para fazer referência a um particular, diz-se
que ele faz então, uma referência identificadora. Pode o falante fazer a referência
identificadora a um particular qualquer e o ouvinte identificar ou não esse particular.
No caso de o ouvinte identificá-lo, procede que o falante não apenas realizou uma
referência identificadora140, como também identificou o particular. Identificar, desse
modo, é fazer com que numa situação de interlocução o falante possa capacitar o
ouvinte a identificar o particular ao qual se faz referência.
Naturalmente, todos os indivíduos assim visados por meio desses operadores
não são pessoas. Mas a linguagem nos permite essa visada individual a favor
desses operadores que tornam possível designar uma pessoa, e uma só,
distinguindo-a das outras. Esta é uma parte do que Ricoeur chama de identificação.
A esta primeira propriedade da linguagem cabe acrescentar uma dificuldade
considerada do ponto de vista das implicações referenciais: não é possível identificar
um particular dado sem classifica-lo seja entre os corpos, seja entre as pessoas.
Desta rápida explanação dos operadores de individualização, emerge um
ponto de relevo, qual seja: ao se abordar o conceito de pessoa por meio da
referência identificadora cruza-se, em certa medida, com a autorreferência que o
sujeito falante faz de si mesmo, pois é em uma situação de interlocução que o
falante designa a qual particular se refere entre uma gama de particulares da mesma
espécie.

139
Para fazer referência ao particular, o falante emprega certos tipos de expressões que possuem a
função de capacitar o ouvinte a identificar aquele particular mencionado. Tais expressões são
chamadas, tanto em lógica quanto em epistemologia, de operadores de individualização, a saber: os
nomes próprios, as descrições definidas e alguns pronomes (pessoais, dêiticos, demonstrativos)
(STRAWSON, 1989, p. 20, tradução nossa).
140
Mas por que falar em referência identificadora? Antes de privilegiar o esquema de pensamento
que define o conceito de pessoa em Strawson, Ricoeur afirmará as classes de operadores de
individualização ainda não alcançam o indivíduo humano. Quando a linguagem opera com descrições
definidas, ainda não é uma linguagem que possa ser falada em uma situação concreta de
interlocução, “é uma linguagem que só pode ser escrita e lida. (...) o objetivo das descrições definidas
(...) já não é de classificar, mas de opor um membro de uma classe a todos os outros”. (RICOEUR,
2014, p. 03). Quando utilizamos nomes próprios, afirma esse filósofo, apenas designamos uma
entidade, não a caracterizamos ou a singularizamos e assim, eles (os nomes próprios) acabam
pedindo por determinações ulteriores para que se possa designar a cada vez um indivíduo, porém,
com exclusão de todos os demais da mesma categoria. Por fim, quando a linguagem se utiliza dos
indicadores, designa-se a cada vez, coisas diferentes. E o autor completa: “(...) o demonstrativo
justaposto à enunciação prevalece sobre a atribuição desta a um locutor e a um interlocutor, a um
lugar e a um momento”. (RICOEUR, 2014, p. 04 e p. 05).

106
O indivíduo ainda não se autodesigna, pois os operadores de individualização
são empregados apenas como indicadores de particularidade. Mas ao identificar
alguma coisa, estamos fazendo que o outro conheça, no seio de uma gama de
coisas particulares do mesmo tipo, aquela sobre a qual é nossa intenção discorrer
(RICOEUR, 2014, p. 01). No sentido mendicante da palavra, portanto, encontramos
pela primeira vez a pessoa, para necessariamente distingui-la dos demais corpos
físicos. Em vista disso é que Ricoeur dá aval à grande tese strawsoniana dos
particulares de base ou particulares básicos, isto é, os corpos físicos e as pessoas.
Temos, por conseguinte, uma metafísica descritiva que delineia a estrutura
conceitual do nosso pensamento sobre o mundo e que tem por princípio os
conceitos básicos ou gerais que são os conceitos de corpo e pessoa. Ambos são
conceitos elementares, básicos para a identificação, porém de suma importância, e
especialmente o primeiro, porque tudo tem um corpo 141. Ponderemos, igualmente,
que essa metafísica descritiva de Strawson refuta veementemente o problema do
solipsismo de Descartes e, mais importante, permite-nos conhecer a realidade. É
fazendo menção a esses particulares de base, portanto, que podemos fazer uma
referência identificadora, e nesse esquema conceitual os corpos materiais 142, no
sentido amplo da expressão, são particulares básicos que podem identificar-se e
reidentificar-se sem fazer referência a particulares de outros tipos ou a categorias de
si mesmos (STRAWSON, 1989, p. 90). Concomitantemente, os conceitos básicos
são irredutíveis, ou seja, não podem ser reduzidos a outros conceitos. Eles são
particulares básicos porque a sua identificação se dá diretamente sem necessidade
de outros143.

141
Sobre o corpo, o filósofo inglês nos diz que “Das categorias de objetos que reconhecemos,
somente satisfazem esses requisitos aqueles que são, ou possuem, corpos materiais – em um amplo
sentido da expressão. Os corpos materiais constituem o sistema. A partir disto, dado certo traço geral
do esquema conceitual que possuímos, e dado o caráter das principais categorias disponíveis, as
coisas que são, ou possuem corpos materiais devem ser os particulares de base”. (STRAWSON,
1989, p. 42, tradução nossa). Também merece realce a percepção de Ruth Leonhardt (2004, p. 50),
ao corroborar o corpo como posse res extensa de uma consciência, condição de entidade expressiva
da pessoa, uma realidade estrutural concreta que situa essa pessoa na categoria espaço-tempo e no
plano objetivo, principalmente quando há a autodesignação: meu corpo. Essa é uma condição básica
porque a condição humana é corpórea. Contudo, não esgota a totalidade do conteúdo do conceito de
pessoa.
142
“[...] em nosso efetivo esquema conceitual, os corpos materiais, no sentido amplo da expressão,
são particulares básicos: isto é, que os corpos materiais podem identificar-se e reidentificar-se sem
referência a particulares de outros tipos ou categorias que não os seus próprios, enquanto a
identificação e a reidentificação de particulares de outras categorias depende, em última análise, da
identificação de corpos materiais”. (STRAWSON, 1989, p. 90, tradução nossa).
143
Os particulares básicos se opõem aos não-básicos, que são aqueles que dizem respeito aos
atributos do ser, como por exemplo, cor, forma, tamanho, etc. estas são as propriedades atribuídas a

107
Sob esse aspecto e na perspectiva ricoeuriana, a linguagem comum abriga e
conserva operações linguísticas mais fundamentais referentes à identificação em
termos de particulares de base. Por outro lado, contudo, Ricoeur anuncia (1996, p.
170) que o estatuto da pessoa como particular de base espelha três problemas: (1)
as pessoas devem ser corpos, em vista de ser, além disso, pessoas; (2) os
predicados psíquicos que distinguem as pessoas dos corpos são atribuídos a
mesma entidade que a dos predicados comuns às pessoas e aos corpos, digamos,
os predicados físicos e (3) os predicados psíquicos são tais que conservam o
mesmo significado, quer eles sejam aplicados a nós mesmos ou a qualquer outro.
Acerca disso, Ruth Leonhardt desenvolve:

Ao corpo podem ser atribuídos dois tipos de predicados: os que dizem


respeito à estrutura física e os relacionados à estrutura mental. Consciência
e os atos mentais são predicados especiais, mas não são
individualizadores, porque têm o mesmo sentido quando atribuídos a si ou a
qualquer outra pessoa. (LEONHARDT, 2004, p. 50).

A pessoa é a mesma coisa a qual se pode atribuir tanto predicados físicos, ou


seja, o que ela tem em comum com os corpos, quanto predicados psíquicos, o que a
distingue dos corpos (RICOEUR, 2014, p. 13). Pensemos, todavia, que quando
falamos de uma determinada pessoa, logo lhe atribuímos predicados pessoais, pois
para identificá-la não falamos da mente dela, mas sim do seu corpo. Strawson
apresenta, destarte, o corpo como sendo aquele que tem a primazia sobre a mente,
sendo que o corpo é aquele ao qual podemos aplicar os predicados e, também,
aquele que nos diferencia de outro. Isso é o mesmo que dizer que quando nos
referimos a uma pessoa nunca estamos nos referindo, exclusivamente, à
consciência deste indivíduo; igualmente, a seu corpo físico, material, em separado
do psíquico. Referimo-nos sempre (e atribuímos predicados) à pessoa.
Mais uma vez se confirma que a existência de duas entidades, a saber, uma
que seria a mente e outra que seria o corpo, como defendeu Descartes, não passa
de mera suposição. A pessoa é o mesmo indivíduo e um só indivíduo a quem
adscrevemos predicados materiais e predicados pessoais (ou psíquicos); o próprio

um ser. Pensemos que ao falamos da cor azul, logo atribuímos a cor a um objeto, ou seja, a um
corpo; não poderíamos, então, falar da cor azul se não existisse um corpo no qual ela poderia se
manifestar.

108
Ricoeur nos recorda que é a mesma coisa que pesa sessenta quilos e tem este ou
aquele pensamento144.
Vimos que para o filósofo inglês, atribuímos predicados físicos aos corpos e
às pessoas e essas, contudo, distinguem-se daqueles (os corpos) porque também
lhes são atribuídos predicados pessoais como os pensamentos, as representações,
os desejos. Trata-se de uma dupla atribuição sem dupla referência, que então faz do
conceito de pessoa uma noção primitiva, afastando-a do dualismo cartesiano mente-
corpo. Aqui corrobora-se a pretensão ricoeuriana de um ‘cogito ferido’ (cogito
blessé), ou seja, a contraposição ao ego como fundamento último, pois a
reidentificação por outrem se faz necessária145.
Concomitante, Ricoeur se interessou em saber como é possível adscrever
ações aos agentes, que antes de tudo são pessoas, capazes de agir. Nessa
situação, ser uma pessoa capaz de fazer acontecer “coisas no mundo” implica
sempre estar lançado na permanência entre o nascimento e a morte, ou melhor, na
finitude. Deste modo, procurando explorar o aspecto variável e diverso que
circunscreve a identidade-ipse da pessoa, é que Ricoeur recorre à teoria da
referência identificadora de Strawson.
Cláudio Reichert do Nascimento afirma que em Ricoeur a adscrição acontece
no contexto em que identificar e individualizar integram o processo em que o falante
aponta, descreve ao ouvinte sobre o que faz referência. Dessa maneira, essa
identificação pode ser compartilhada pela comunidade de falantes, tornando-se
possível pensar, a partir daí a própria noção de testemunho e atestação que se dá
na relação com outrem (REICHERT DO NASCIMENTO, 2011, p. 52).
Nesse campo da semântica da linguagem, Ricoeur (1996, p. 170) ainda
destaca que a concepção de pessoa como particular de base firma um estatuto
lógico fundamental a terceira pessoa gramatical [ele, ela] – ainda que só no nível
pragmático a terceira pessoa seja mais que uma pessoa gramatical, ou melhor,
precisamente um si. O que confirma esse “direito pleno da pessoa” no discurso

144
“O paradoxo desse tipo de análise é que, graças à neutralização dos caracteres específicos da
adscrição – os que dizem respeito a seu caráter autorreferencial – pode ser trazida para o primeiro
plano a problemática central da pessoa, a saber, esse fenômeno de dupla atribuição sem dupla
referência: duas séries de predicados para uma única e mesma entidade”. (RICOEUR, 2014, p. 13).
145
“A ‘exaltação do Cogito’ se opõe um Cogito ‘quebrado’ (brisé) ou ‘ferido’ (blessé) como escreve
Ricoeur no prefácio de O Si-mesmo como outro. Mas essa quebra é, simultaneamente, a apreensão
de uma unidade muito maior, mesmo que nunca totalizável pelo sujeito: a unidade que se estabelece,
em cada ação, em cada obra, entre o sujeito e o mundo”. (GAGNEBIN, 1997, p. 262).

109
sobre a pessoa é o lugar que a literatura dá aos protagonistas da maior parte de
nossas narrativas, isto é, muito mais em ele, ela do que em primeira pessoa.
Eis a importância de uma abordagem semântica do conceito de pessoa e, ao
mesmo tempo, a importância da teoria da referência identificadora para a questão da
identidade (ipse) em Ricoeur.
Na seara da pragmática da linguagem, a contribuição para o estatuto da
pessoa ainda é maior, afirma Ricoeur. Ele compreende a pragmática como “o estudo
da linguagem em situações de discurso em que o significado de uma proposição
depende do contexto de interlocução”. (RICOEUR, 1996, p. 170). Com isso, e
através da teoria dos atos de discurso [speech acts], mais especificamente na
distinção entre os atos locutório e ilocutório de uma enunciação146, nosso autor
reencontra a noção personalista de engajamento. Ele mesmo nos esclarece: quando
dizemos “O livro está sobre a mesa”, observamos tanto uma simples constatação,
quanto um aviso, um comando ou até uma promessa [Eu prometo devolver o livro], e
dessa forma “dizer que a linguagem faz algo” (RICOEUR, 1996, p. 171) ou convida a
fazê-lo, colocando-o na condição de sujeito engajado – fazer – dizendo.
“É a força ilocutória dos atos de discurso que exprime o engajamento do
locutor em seu discurso”. (RICOEUR, 1996, p. 171). A noção de força ilocutória
possibilita generalizar para além dos enunciados performativos147 a implicação do
fazer no dizer.
Nos constativos, por seu turno, inclui-se um fazer, porém, que na maioria das
vezes permanece não dito. Esse não dito pode ser explicitado precedendo-se o
enunciado com um prefixo da forma afirmo que comparável ao prometo que. Ricoeur
(2014, p. 23) observa que os enunciados “o gato está no capacho” e “afirmo que o
gato está no capacho” possuem o mesmo valor de verdade, contudo, enquanto no

146
“[...] ou seja, o próprio ato de dizer, que designa reflexivamente seu locutor”. (RICOEUR, 2014, p.
19).
147
“A teoria dos atos do discurso é bem conhecida, por isso serei breve no resumo de seu
desenvolvimento, de Austin a Searle. O ponto de partida, como se sabe, foi a distinção estabelecida
na primeira parte do How to do things with words entre duas classes de enunciados, a dos
enunciados performativos e dos enunciados constativos. Os primeiros são notáveis porque o simples
fato de enunciá-los equivale a realizar exatamente aquilo que é enunciado. O exemplo da promessa,
que desempenhará papel decisivo na determinação ética do si, é notável nesse sentido. Dizer
‘prometo’ é prometer efetivamente, ou seja, comprometer-se a fazer depois e – digamos desde já – a
fazer para outrem aquilo que digo agora que farei. ‘Quando dizer é fazer’, diz a tradução francesa do
livro de Austin. E eis como o ‘eu’ é marcado logo de saída: os performativos só têm a virtude de
‘fazer-dizendo’ quando expressos por verbos na primeira pessoa do singular do presente do
indicativo. A expressão ‘prometo’ (ou, mais exatamente ‘eu te prometo’) tem o sentido específico da
promessa que a expressão ‘ele promete’ não tem, conservando esta o sentido de um constativo, ou,
digamos, de uma descrição”. (RICOEUR, 2014, p. 22).

110
primeiro temos a opacidade de um enunciado que remete reflexivamente para a sua
própria enunciação, no segundo, se configura a transparência de um enunciado
atravessado pela visada referencial.
O prefixo [afirmo que] do performativo torna-se um padrão da expressão
linguística da força ilocutória de todos os enunciados. Assim, a pragmática põe
diretamente em cena o eu e o tu da situação de interlocução. O eu se expressa
nesses prefixos e com esse eu, verificamos uma situação complexa de interlocução
onde a um locutor em primeira pessoa corresponde um interlocutor em segunda
pessoa, um tu a quem se dirige o locutor. Ricoeur comprova que:

A enunciação que se reflete no sentido do enunciado é assim um fenômeno


bipolar: ela implica simultaneamente um ‘eu’ que diz e um ‘tu’ a quem o
primeiro se dirige. ‘Eu afirmo que’ é igual a ‘eu te declaro que’; ‘eu prometo
que’ é igual a ‘eu te prometo que’. Enfim, a enunciação é igual à
interlocução. Assim começa a ganhar forma um tema que só se ampliará
nos estudos seguintes, a saber, que todo o avanço em direção à ipseidade
do locutor ou do agente tem como contrapartida um avanço comparável na
alteridade do parceiro. No estágio atingido por este estudo, essa correlação
ainda não tem o caráter dramático que a confrontação polêmica entre dois
programas narrativos introduzirá no âmago da interlocução. (RICOEUR,
2014, p. 24).

Nosso autor diz ainda que não são apenas o eu e o tu que são levados ao
primeiro plano pelo processo de interlocução. Daí também advém a instituição, ou
melhor, a linguagem como instituição, que precede locutor e interlocutor, que já se
encontra aqui para, apenas, pô-la em movimento. “Por língua é preciso entender
aqui não somente as regras [...], mas também a acumulação de ‘coisas ditas’ antes
de nós”. (RICOEUR, 1996, p. 172). Evidentemente, nascer é aparecer em um meio
[o plano da terceira pessoa] onde já se fala e onde falarão a primeira e a segunda
pessoas – as três pessoas falarão.
Vemos, portanto, que as interpenetrações da semântica e da pragmática da
linguagem se revelam proveitosas para a pesquisa sobre o si ricoeuriano. A teoria
da referência identificadora de Strawson faz surgir a pessoa como particular de
base, ou seja, como o particular ao qual devemos nos referir quando falamos do
mesmo modo como falamos a respeito dos componentes do mundo, das coisas no
mundo. Aqui a pessoa é, de início, a pessoa de quem se fala: o ele irredutível a
qualquer outro e a quem se atribuem predicados físicos e psíquicos. A teoria dos
atos de discurso faz surgir a pessoa como um eu que fala a um tu, “[...] o sujeito

111
aparece como o par daquele que fala e daquele a quem o primeiro fala”. (RICOEUR,
2014, p. 34).
O intercambio entre as duas teorias e consequentemente entre esses três
pronomes pessoais [eu, tu, ele/ela] é significativo à teoria integrada do si148. O
discurso em Ricoeur diz a realidade numa visão semântica e numa visão reflexiva,
que implica um sujeito de enunciação ativo que pensa e escolhe: “[...] só adquire sua
significação completa de pessoa se a atribuição de seus predicados psíquicos for
‘acompanhada’, para retomar as palavras de Kant, pela capacidade de se
autodesignar”. (RICOEUR, 2014, P. 35). A pessoa, objeto da referência
identificadora, e o sujeito, autor da enunciação, têm ambos, desse modo, a mesma
significação. E ainda:

[...] não é possível abster-se de perguntar se a expressão ‘minhas


experiências’ é equivalente à expressão ‘as experiências de alguém’ (e,
correlativamente, a expressão ‘tuas experiências’ equivalente à expressão
‘as experiências de qualquer outro’). Assim, a análise puramente referencial
do conceito de pessoa pode por bastante tempo evitar a menção eu-tu que
faz parte da análise reflexiva da enunciação, mas não pode evitá-la até o
fim. É obrigada a mencioná-la, pelo menos marginalmente, a partir do
momento em que se interrogar sobre os critérios de atribuição em ambas as
situações: atribuído a si mesmo (oneself) um estado de consciência é
sentido (felt); atribuído ao outro, é observado. Essa dissimetria nos critérios
de atribuição leva a deslocar a tônica para o próprio sufixo (self) na
expressão si mesmo (oneself). Dizer que um estado de consciência é
sentido é dizer que ele é adscritível a si mesmo (self ascribable). Ora, como
não incluir na noção de alguma coisa ‘adscritível a si mesmo’ a
autodesignação de um sujeito que se designa como possuidor de seus
estados de consciência? E, correlativamente, para explicitar a fórmula
‘adscritível a outrem’, como não acentuar a alteridade do outro, com todos
os paradoxos de uma atribuição a esse outro do poder de se autodesignar,
com base na observação externa, se for verdade que, como admite
Strawson, esse outro deve ser considerado também como um self-ascriber,
ou seja, alguém capaz de adscrição a si mesmo. (RICOEUR, 2014, p. 16 e
p. 17).

Assim é que uma teoria reflexiva da enunciação enriquece a noção de pessoa


da teoria da referência identificadora, sem que sejamos “arrastados para as aporias
do solipsismo e para os impasses da experiência pessoal” (RICOEUR, 2014, p. 18).
Ocorre uma espécie de superação da pessoa tratada como particular básico,
respeitando-se a força lógica do cada um quando se recorre à oposição eu - tu,
conferindo-se força à oposição entre o si-mesmo e outrem que não o si-mesmo.
Todavia, questiona Ricoeur (2014, p. 37): “Será possível basear essa assimilação

148
“[...] é preciso fazer convergir as duas vias da filosofia da linguagem, a via da referência
identificadora e a da reflexividade da enunciação”. (RICOEUR, 2014, p. 34).

112
entre a pessoa da referência identificadora e o “eu” da amostra reflexiva em alguma
realidade mais fundamental?”. Para o autor, para que haja uma relação entre o “eu”
da referência identificadora e o “eu” da ocorrência reflexiva deve-se ir além das
filosofias da linguagem.
Para tanto, Ricoeur explica que a possibilidade de atribuir predicados físicos e
psíquicos a mesma coisa é baseada na dupla estrutura do corpo: “[...] enquanto
corpo entre corpos, ele constitui um fragmento da experiência no mundo, enquanto
meu, ele compartilha o estatuto do ‘eu’ entendido como ponto de referência limite do
mundo”. (RICOEUR, 2014, p. 38). Isso também significa dizer que a pessoa é um
atributo do homem dotado de uma natureza corporal, mas que transcende essa
corporeidade na autoconsciência capaz de dispor de si mesmo como centro de
perspectiva insubstituível sobre o mundo. As múltiplas experiências vividas por uma
só pessoa fazem referência sempre ao mesmo eu que, afirma Ruth Leonhardt
(2004, p. 51), se compreende como um quem e se identifica como fundamento
consciente da compreensão de si.
Eis que do plano linguístico, num espontâneo percurso, migramos para o
plano ontológico, ao encontro do ser que somos com dupla identificação, pessoa
objetiva e sujeito que reflete, que vem ao mundo em corporeidade e, através da
interpretação das suas ações, dos símbolos, dos atos, dos textos e das obras, busca
compreender a si mesmo. Recordamos a atestação ou “autoconsciência de ser si
mesmo seja quando é agente ou quando é paciente da ação”. (LEONHARDT, 2004,
p. 51). Já pudemos ter ideia, no tópico anterior, que a atestação é uma espécie de
garantia ao sujeito para que não se deixe coisificar. Mediante a atestação de si a
pergunta quem? não se deixa substituir pela pergunta o quê? (RICOEUR, 2014, p.
XXXIX).
As filosofias da linguagem desempenham, diante de tudo o que foi dito, o
papel de órganon relativamente à teoria da ação em complementação à temática da
pessoa. A princípio, Ricoeur aduz que a teoria da ação provoca o surgimento de
novos recursos da linguagem e tem como foco saber o que de fato vale como ação
entre os acontecimentos do mundo. Nesse momento a pergunta quem? é encoberta
pela pergunta o quê? Aqui desaparece a referência à pessoa e ao agente. É Daniel
Davidson, na obra Essays on Actions and Events, de 1980, quem desenvolve essa
semântica da ação sem agente, ou sendo mais fiel ao que diz Ricoeur, uma
semântica da ação e uma ontologia do acontecimento.

113
Trata-se de uma ontologia dos acontecimentos baseada no tipo de análise
lógica das frases de ação que oculta a problemática do agente: “[...] uma categoria
ontológica excludente por princípio da categoria da ipseidade, a saber, o
acontecimento em geral, o ‘algo que ocorre’” (RICOEUR, 2014, p. 45), a fim de
determinar o que conta como ação, o que merece ser descrito como ação.
Ricoeur elogia Davidson pelo “notável rigor” com o qual realiza a dupla
redução, lógica e ontológica, que permite observar na ação uma subclasse de
acontecimentos dependentes da ontologia do acontecimento impessoal. Como
observa Dosse (2001, p. 98): “A explicação causal tem, portanto, a função de
integrar as ações numa ontologia que erige a noção de acontecimento ao mesmo
nível da noção de substância”.
Todavia, essa ocultação só se dá por fatores que podem ser questionados,
afirma Ricoeur: (1) a opção pela intenção-com-a-qual em detrimento da intenção-de
atenua a dimensão temporal de previsão que acompanha a projeção do agente à
frente de si mesmo; (2) a inclusão da explicação teleológica com razões na
explicação causal que consagra o apagamento do sujeito em prol da relação entre
acontecimentos impessoais; e (3) a incapacidade de uma ontologia do
acontecimento, em explicar a imputação da ação a seu agente, resulta da maneira
como essa ontologia é introduzida.
A busca da simetria entre a incidência do acontecimento e a permanência da
substância impede de dar prosseguimento à confrontação iniciada por Strawson,
entre as pessoas e as coisas (RICOEUR, 2014, p. 77). Falta a Davidson, avalia
Ricoeur, a dimensão fenomenológica da orientação consciente por um agente capaz
de fazer-se responsável por seus atos. Dito de outra maneira, Davidson comete o
equívoco de “ocultar a atribuição da ação a seu agente, uma vez que não é
pertinente para a noção de acontecimento que ele seja suscitado, produzido por
pessoas ou por coisas”. (RICOEUR, 2014, p. 70).
A semântica da ação exige um agente situado historicamente, tendo em conta
que o vivenciado e o conceito estão, para nosso filósofo, inextricavelmente
conectados. François Dosse percebe: “Recusando tanto o convite a fechar-se numa
ontologia fundamental, à maneira heideggeriana, quanto a encerrar-se num discurso
puramente epistemológico, Ricoeur põe em cena “mediações imperfeitas” 149, fontes

149
Aqui cabe ratificarmos que os desvios pelo símbolo e pela linguagem desempenham importante
papel na hermenêutica ricoeuriana, tanto na análise da experiência mundana quanto na compreensão

114
de elaboração de uma “dialética inacabada”. (DOSSE, 2001, p. 99). De fato, a lógica
da ação mantém aberto o campo das possibilidades, impedindo que o horizonte de
expectativas se funda com o campo da experiência. Trata-se, portanto, de uma
ontologia diferente, em consonância com a fenomenologia da intenção e com a
epistemologia da causalidade teleológica: “[...] a de um ser em projeto, ao qual
pertenceria por direito a problemática da ipseidade, como pertence de direito à
ontologia do acontecimento a problemática da mesmidade”. (RICOEUR, 2014, p.
78).
Tal agente/pessoa é o si, enquanto capaz de auto-exposição, de testemunho,
de atestação, de promessa, de responsabilidade e de transpor o abismo entre a
identidade e a alteridade (FARIAS DOS SANTOS e MARCONDES CESAR, 2010, p.
05). Retoma-se a relevante questão da relação entre a ação e seu agente e a
pergunta o quê? dá lugar à pergunta quem?.
Segundo Ricoeur, Aristóteles já dava a entender que a ação depende do
agente. Posteriormente aos sofistas, o filósofo grego verificou e codificou a
pertinência das escolhas linguísticas feitas por oradores, poetas trágicos,
magistrados, em se tratando de submeter a ação e seu agente ao juízo moral. A
expressão mais abreviada da relação entre a ação e o agente “reside numa fórmula
que faz do agente o princípio [arkhé] de suas ações, mas num sentido do arkhé que
autoriza a dizer que as ações dependem do [preposição épi] próprio agente [auto]”,
Aristóteles (1992 apud RICOEUR, 2014, p. 81).
Ricoeur alerta para a intenção de Aristóteles: estender a responsabilidade de
nossos atos e nossas disposições, enfim, nossa personalidade moral inteira. “De
nossas ações [...] somos senhores [kyrioi] do começo ao fim. [...] homem ser
princípio e gerador [G.-J.: pai] de suas ações, como o é de seus filhos”, Aristóteles
(1992 apud RICOEUR, 2014, p. 86). Para Ricoeur, de fato, a ética exige ver o
princípio como si e o si como princípio. O agente, desdobrado em cada uma das três
pessoas da ética, considera as opções abertas diante de si e delibera, segundo
Aristóteles. Os critérios da vontade própria e, mais ainda, os da escolha preferencial
são já de saída critérios de imputação moral e jurídica (RICOEUR, 2014, p. 93).
É preciso dizer que a ação depende do agente para que esta seja passível de
reprovação ou glória. Assim, na Ética nicomaqueia, Aristóteles antepôs a sua teoria

do si, tendo em conta que permite considerar os planos semântico, reflexivo e existencial, articulados
entre si, porém, sem que cada um perca sua especificidade.

115
das virtudes uma análise de um ato fundamental, a escolha preferencial
[prohaíresis], na qual se expressa um poder de agir mais primitivo que o caráter
reprovável ou louvável – diríamos hoje “veredictível” – da ação produzida, anuncia
Ricoeur (2014, p. 95). Somos assim remetidos para uma análise do poder de agir,
centrada na eficácia causal desse poder.
Consideravelmente, é com análise da prohaíresis, da escolha preferencial [ou
decisão], que a determinação ética do princípio da ação sobrepuja sua determinação
física. Atingimos aqui o núcleo do agir propriamente humano que Aristóteles diz ser
“essencialmente próprio” à virtude ou estritamente aparentado com esta ou possuir
um elo mais estreito com ela. Com efeito, é a escolha preferencial que torna a ação
humana passível de louvor ou censura, pois permite “mais que os atos [exteriores],
formular um juízo sobre o caráter de alguém. Dessa análise, a tônica principal recai
na deliberação que precede a escolha: o pre-ferido expressa o pré-deliberado”.
(RICOEUR, 2014, p. 85). Nós deliberamos sobre as coisas que dependem de nós,
que podemos realizar, haja vista que:

[...] o objeto da escolha, entre as coisas em nosso poder, é um objeto de


desejo sobre o qual se deliberou [G.-J.: do desejo deliberado], a escolha
será um desejo deliberativo das coisas que dependem de nós. Pois, tendo
decidido em consequência de uma deliberação, desejamos então em
conformidade com [nossa] deliberação. Aristóteles (1992 apud RICOEUR,
2014, p. 85 e p. 86).

Resta-nos a certeza que o agente tem de poder fazer, ou melhor, de poder


produzir mudanças no cosmos. Uma intervenção como iniciativa, que causa
efetivamente uma interferência no curso das coisas no mundo. A esse respeito,
nosso filósofo recorda dos conceitos de liberdade transcendental, ou seja, a
liberdade inteligível, se chamarmos de inteligível “o que num objeto dos sentidos não
é fenômeno” (RICOEUR, 2014, p. 106) e de liberdade prática, isto é, “a
independência da vontade em relação à injunção das inclinações da sensibilidade”
(Ibid.) para justificar a possibilidade de se imputar a responsabilidade de uma ação à
um agente particular inclusive diante de uma série de acontecimentos150.
De outro modo, a liberdade se apresenta como um eu posso: “Dizer que uma
ação depende de seu agente é dizer, de modo equivalente, que ela está em seu
poder”. (RICOEUR, 2014, p. 96). E um eu posso desdobrado em quatro usos
150
Para saber mais sobre a ação em grupo ou ações pertencentes a uma cadeia prática, ver:
(RICOEUR, 2014, p. 98 a p. 108).

116
maiores: eu posso falar, eu posso agir, eu posso narrar, eu posso me considerar
responsável por minhas ações, deixando-as serem imputadas à pessoa mesmo
como verdadeira agente. A ação pressupõe liberdade e vice-versa. A práxis é o
reino da liberdade ou de emergência do sujeito como livre e responsável. E a ética,
por seu turno, o terreno da liberdade e da ação. Ser livre é ser capaz de se
reconhecer em suas próprias ações; liberdade e ação estão interligadas entre si: “a
liberdade é a capacidade de agir e ação é também ser livre. O agir e a liberdade
estão relacionados à questão do mal e da vida”. (RIBEIRO, 2012, p. 86).
Marcondes Cesar (2011, p. 05) mostra que a compreensão da capacidade de
agir em Ricoeur evidencia também a ligação entre possibilidade e liberdade e “é
concebida não como simples liberdade negativa, isto é, ausência de entraves [...],
mas como liberdade positiva, isto é, como capacidade de realizar e capacidade de
escolha de um modo de vida”. A pessoa é, portanto, o ser humano enquanto
consciência e liberdade, que reconhece seu significado e assume, em relação a
outro ser humano, atitudes de respeito, tolerância, reconhecimento do seu valor
como sujeito.
Liberdade, pessoa, ação, possibilidade, capacidade, escolha, alteridade,
todas se integram e se interpenetram conduzindo-nos ao terreno da ética ricoeuriana
e à aposta do autor na pessoa capaz, que tem a possibilidade de dizer, de fazer, de
narrar, de ser responsável por suas ações, expressando, desse modo, a sua
liberdade na coexistência151.
Constança Marcondes Cesar (2011, p. 10) nos diz que do exame da
polissemia do agir e das capacidades humanas e, destacadamente, pelo encontro
entre fenomenologia e hermenêutica, Ricoeur alcança, em O Si-mesmo como outro
e no Percurso do reconhecimento, de 2004, a própria formulação do conceito de
liberdade, associando-a à responsabilidade e ao reconhecimento de si e da
alteridade, numa coexistência como condição de não reduzir o outro ao mesmo,
considerando-se a afirmação da liberdade de cada uma das pessoas da
comunidade. Agis de Villaverde (2006 apud MARCONDES CESAR, 2011, p. 12)
também evidencia o laço entre as escolas fenomenológica e hermenêutica na obra
de Ricoeur, pondo em primeiro plano a meditação ricoeuriana sobre o ser humano
capaz visto como “sujeito e objeto de qualquer filosofia prática”.

151
“[...] ‘coexistência primeira com as coisas e com o outro’”. (DE WAELHENS, 1959, p. 128 apud
MARCONDES CESAR, 2011, p. 11).

117
Já visto no tópico anterior que o próprio Ricoeur (1996, p. 164) refere-se ao
homem falante, homem que age e sofre, homem narrador e personagem da própria
narrativa de vida e, por fim, ao homem responsável. São, para ele, os quatro
estratos de constituição da pessoa, ou o que pode constituir uma fenomenologia
hermenêutica da pessoa.
No quarto extrato de constituição da pessoa, ou seja, o extrato da
responsabilidade, Ricoeur diz que se descobre uma ética suscetível de fornecer um
fio condutor na exploração das demais categorias da pessoa. “Em um trabalho que
está sendo publicado152, proponho a seguinte definição do éthos da pessoa:
aspiração a uma vida realizada – com e para os outros – em instituições justas153.
Esses três termos me parecem igualmente importantes para a constituição ética da
pessoa” (RICOEUR, 1996, p. 164). Desse modo, a cada um dos termos da estrutura
ternária da petit éthique, correspondem três pessoas [três liberdades 154]: (1) a
liberdade, fonte da ética, (2) a liberdade na segunda pessoa e (3) a mediação pela
instituição ou, no entendimento de Larissa de Araújo Pinto (2012, p. 45) à tríplice
estrutura: ipseidade, alteridade e igualdade.
Com efeito, no que concerne à aspiração a uma vida realizada155, a liberdade
se põe na primeira pessoa e inaugura a ética. Sublinha-se o caráter do anseio
pessoal pela liberdade, da aspiração à própria liberdade, fonte do éthos, cujo
elemento ético pode ser expresso pela noção de estima de si (RICOEUR, 1996, p.
164 e p. 165). Já vimos no primeiro capítulo que é preciso iniciar a vida boa por si
mesmo, pelo cuidado de si, pela estima de si, pelo desenvolvimento da própria
capacidade de escolha e de ação. Estima de si é o ponto reflexivo da práxis, pois “é
avaliando as nossas ações que nós próprios poderemos nos sentir seus autores”.
(RICOEUR, 2011a, p. 06).
O termo si está aí no lugar da primeira pessoa. E, lembramos, para prevenir
contra o solipsismo, contra a redução a um eu centrado no próprio ego. O si é a
dimensão reflexiva do eu que possibilita a Ricoeur defender a posição do falante e
do agente ou a filosofia da primeira pessoa.

152
Somos levados a crer que Ricoeur está-se referindo a O Si-mesmo como outro, publicado também
em 1990.
153
Eis, mais uma vez, a famigerada tríade da pequena ética do autor.
154
Minha liberdade, tua liberdade, liberdade de todos.
155
Ricoeur retoma também aqui uma reflexão heideggeriana de cuidado: cuidado de si, cuidado do
outro, cuidado da instituição (RICOEUR, 1996a, p. 176).

118
A reflexividade é o “sentido fundamental” buscado. “Do ‘eu’ dessas filosofias
caberia dizer, como dizem alguns a respeito do pai, que não está o suficiente ou
está de mais?”. (RICOEUR, 2014, p. XVI).
No que toca ao momento com e para os outros, surge a liberdade do outro
como semelhante à minha, a liberdade da e na segunda pessoa. Ricoeur elege a
solicitude e o respeito como a garantias de reconhecimento do outro, ambos
abonando a liberdade face a face, a liberdade na intersubjetividade, na relação
interpessoal. É o si relacionando-se com o outro que não o outro de si. Um outro
próximo que não é o amigo, ou um outro distante, aos quais se pode referir por tu ou
você – “[...] o primado do apelo vindo do outro para o reconhecimento do si pelo si”.
(RICOEUR, 1996, p. 165).
Finalmente, o termo em instituições justas, que nos remete àquilo que não
está nem na primeira, nem na segunda pessoa ou, no dizer de Ricoeur (1996, p.
166) ao “outro que está face a face, só que sem rosto”, a não-pessoa da ética, um
terceiro neutro na ordem ética. “[...] um instituído-instituinte que é a mediação ética a
partir da qual podem ser introduzidas noções como as de imperativo ou de lei”.
(RICOEUR, 2011, p. 134). Nosso filósofo defende a passagem por essa espécie de
termo neutro para que duas liberdades [liberdade na primeira pessoa e liberdade na
segunda pessoa] possam se pôr simultaneamente. A terceira pessoa mediadora
que nos une pelos canais da instituição.
De todo o exposto, percebe-se a correlação estreita entre as teorias da
linguagem, da ação e da ética em Ricoeur 156. É ele mesmo quem repisa: “Só existe
ética para um ser capaz não apenas de se autodesignar quanto locutor, mas ainda
de se autodesignar enquanto agente de sua ação”. (RICOEUR, 1996, p. 176). Tríade
ética e tríade práxica157 se conectam e dão a cada uma das três pessoas o estatuto
de presenças livres, dotadas de consciência, corpo e rosto únicos, (inter)agindo no
mundo, de aparição do singular em comunhão com o mundo. Um ser solidário, que
se realiza enquanto tal, na interação com o outro e com a comunidade.

156
“Mas essa correlação entre teoria da ação e teoria da ética deve ser respeitada segundo a sua
estrita reciprocidade. Se a teoria da práxis desemboca espontaneamente em uma teoria moral e
política da distribuição justa, são, inversamente, as estruturas fundamentais da ação, sob o pretexto
das questões quem?, quê?, por quê?, que dão um assentamento ontológico à ética. [...] É desse
modo que se juntam tríade ética e tríade práxica”. (RICOEUR, 1996a, p. 176).
157
“[...] tríade práxica (adscrição da ação ao seu agente, interação que ocorre entre agentes e
pacientes, aferidores de excelência que definem os graus de sucesso e de completude dos agentes e
dos pacientes nas profissões, jogos, artes)”. (RICOEUR, 1996a, p. 176).

119
Esta reflexão de Marcelo Fabri pode bem ilustrar a conexão das tríades de
Ricoeur:
Comunidade fraternal (utopia do humano?) cujos participantes surgem,
cada um à sua maneira, como unicidades incomparáveis. Os diferentes
rostos, próximos ou distantes, podem, portanto, “personificar-se”, mas sem
que para tanto seja preciso negar o mandamento ético que eles sempre
podem trazer. O ser nos empresta a identidade que permite dar a ele um
sentido, conferindo-lhe humanidade [...]. A máscara que se empresta do
próprio ser, e com a qual se pode compreender o saber, a consciência e a
verdade se justificam por causa da justiça, é aquela que tanto pode
despersonalizar o si-mesmo, quanto oferecer uma personalidade ao ser, o
qual, por essência é impessoal ou inumano. (FABRI, 2017, p. 146 e p. 147).

Pudemos ter noção de cada uma das três pessoas da ética ricoeuriana,
sujeitos que agem e sofrem e aos quais se pode imputar responsabilidades no plano
moral. Salientamos o quanto é necessário que cada uma delas se reconheça como
sujeito livre e capaz, componentes das relações interpessoal e institucional.
A problemática da pessoa se identifica, no campo da ação, com a
problemática do quem?. Pretendemos identificar o quem? da ação e da ética, o
agente/o paciente que age e sofre para, conforme nosso autor, preservar a força do
face a face e, concomitantemente, o lugar de cada um sem rosto – da identidade e
da diferença.
Vimos também como Ricoeur se empreendeu definitivamente na crítica ao
modelo cartesiano e, em parte, como poderemos concluir a seguir, também ao
modelo husserliano “da consciência colocada como ponto de partida para o
autoconhecimento”. (CORÁ, 2011, p. 319).
Precisamos agora, pontuar a importância assumida pelas categorias do
respeito e da solicitude na obra do autor e analisar o sentido que ele lhes confere
antes e com o propósito de responder ao problema de tese: sanar as deficiências no
tratamento da segunda pessoa da ética, especialmente por meio da dialética entre
essas duas categorias.

120
4 SOLICITUDE E RESPEITO: ÉTICA DA SEGUNDA PESSOA

“Mas sei de uma coisa: meu caminho não sou eu, é outro, é os outros. Quando eu puder sent ir
plenamente o outro estarei salva e pensarei: eis o meu ponto de chegada”.
Clarice Lispector

Ricoeur analisa o respeito e a solicitude como categorias éticas da segunda


pessoa destacadamente em dois textos.
No primeiro, Sympathie et respect. Phénoménologie et étique de la seconde
personne158, datado de 1954, nosso filósofo, ainda que de forma preambular, aplica
a segunda pessoa da ética uma dialética formada pelos polos da simpatia e do
respeito.
No segundo, a grande obra de 1990, o Soi-même comme un autre, enquanto
o respeito continua cumprindo uma função bem definida na petit éthique, a simpatia
dá lugar à solicitude (sollicitude) 159. Levando Ricoeur a considerar, no trato da
segunda pessoa, em definitivo, a (1) solicitude, abraçando o conteúdo teleológico da
ética aristotélica, abandonando de vez a simpatia; e o (2) respeito, conservando o
caráter formal da deontologia kantiana.
Importante anotar, de antemão, que O Simpatia e respeito é o único artigo no
qual o autor associa a simpatia ao respeito para o trato da segunda pessoa da ética.
Já confirmamos, com os capítulos anteriores, que em todas as demais obras onde
nosso filósofo trabalha a alteridade, alia o sentimento de solicitude ao respeito,
certamente porque através dessa categoria, diferentemente da simpatia, evita-se o
risco de cairmos em fusão ou contágio afetivos 160, que por seu turno e conforme

158
O texto traduzido em português por Simpatia e respeito: Fenomenologia e ética da segunda
pessoa encontra-se junto à obra Na escola da fenomenologia (2009), da Editora Vozes e foi
publicado originalmente, em francês, na Revue de Métaphysique et de Morale (1954, p. 380-397).
159
Cabe destacar que quase ao fim do tópico “2. ...com e para o outro...” do Estudo O si e a visada
ética de O Si-mesmo como outro, Ricoeur explica e afirma pontualmente o que pareceu justificar a
escolha do termo solicitude como categoria ética no trato da questão da segunda pessoa. No tópico A
solicitude aqui de nosso trabalho, transcrevemos em forma de citação o trecho correspondente a
essa afirmação do autor, tentando esclarecer o porquê da substituição que ocorreu, podemos
antecipar, principalmente em razão da “busca de igualdade através da desigualdade”. (RICOEUR,
2014, p. 212). Anotemos ainda, com a mesma importância, que a partir da afirmação do autor de que
“todo o afeto intersubjetivo pode ser situado com relação ao respeito” (RICOEUR, 2009, p. 325),
pode-se satisfatoriamente substituir a simpatia pela solicitude.
160
“Sabe-se com que ardor – por falta de rigor – Max Scheler tentou, em Natureza e Formas da
simpatia, distinguir a simpatia (Mitfühlen) do contágio afetivo e da fusão afetiva que é sua forma
extrema. [...] Na verdade, a descrição de Max Scheler introduz tanta confusão quanto a dissipa. Seu
livro é de certo modo uma apologia da fusão afetiva”. (RICOEUR, 2009, p. 314 e p. 316).

121
veremos a seguir, prejudicam o reconhecimento da singularidade da pessoa e de
uma alteridade mútua.
Nossa tarefa, então, inicia com uma análise breve do texto de 1954 para, em
seguida, tratar de modo mais específico o significado e a função adquiridos tanto
pela categoria do respeito, como pela categoria da solicitude, ambas, já dissemos,
partes da estrutura ética da segunda pessoa, fundamentais na proposta de Paul
Ricoeur para o enfrentamento da problemática da intersubjetividade.
Adiantamos que o propósito primário de Ricoeur no artigo é provar que nem a
fenomenologia nem as teorias de deposição do outro dão conta do problema da
segunda pessoa. Mas ambas têm lugar em potencial num esquema dialético de
compreensão da alteridade. A distinção metodológica entre pessoa e coisa e o
tratamento da pessoa como fim em si, amparadas pela moral de Kant são
preparatórias para a introdução da ética do respeito como limitadora tanto dos afetos
quanto da violência.
Iremos nos deter resumidamente na categoria da simpatia. O que nos
interessa mais no estudo de 1954 é investigar a categoria do respeito, tomada
naquela ocasião, mais precisamente por ética do respeito em Kant 161. Outrossim, o
texto de 1954 é o texto que inaugura uma abordagem mais atenta à ética da
segunda pessoa em Ricoeur, merecendo apreciação, em consonância com nossa
tese.

4.1 SIMPATIA E RESPEITO

“A simpatia parece assim relegada para o setor ‘privado’ das relações humanas, fora do campo das
forças que movem a história. [...] O respeito é o momento não só transafetivo [...], mas também
trans-histórico, que nos permite aceitar ou negar aquilo que a história produz na dor”
Paul Ricoeur

No texto Simpatia e Respeito: fenomenologia e ética da segunda pessoa,


Ricoeur avalia o problema da segunda pessoa introduzindo um questionamento

161
Conforme Noeli Rossatto (2018, p. 126), no tocante à categoria kantiana de respeito, cabe
observar que no artigo de 1954, ela foi tomada como ética do respeito. Na grande obra de 1990, o
respeito é “respeito devido ao outro, no âmbito da proposta de Paul Ricoeur para a segunda pessoa
da ética”. Dito de outro modo, a ética do respeito continua a desempenhar semelhante função ainda
que deslocada para uma estrutura moral; o respeito, entendido em O si-mesmo como outro, como
respeito devido aos outros (respect dû aux autres), deixa de oscilar, tal como em Kant, entre a
primeira (respeito de si) e a terceira pessoas (respeito às instituições), indicando tão somente a
segunda pessoa moral.

122
central: se o método fenomenológico vale para as pessoas assim como vale para as
coisas – método que parece não ter sido superado, desde a modernidade, nesse
enfrentamento acerca da questão do outro162. Nosso autor detecta, nesse sentido,
que a fenomenologia, de modo geral, é incapaz de diferenciar metodologicamente o
modo de descrever os objetos daquele de abordar as pessoas, causando a
decepcionante redução do outro à coisa e porque não dizer, à “coisificação” da
pessoa.
Visto por outro ângulo, não estamos a falar de coisas, para as quais se presta
o método fenomenológico descritivo [“a redução fenomenológica” é, de fato,
libertadora quando se trata de coisas], mas sim, de seres humanos. E por mais que
a redução fenomenológica, do ser à descrição dos possíveis modos do seu
aparecer, tenha-nos garantido o surgimento da dimensão transcendental do
sujeito163, ela é, todavia, mortificadora quando se trata de gente.
Noeli Rossatto (2016, p. 187) entende que a diferenciação entre estes dois
campos (coisas e pessoas), em Ricoeur, tem de passar necessariamente pela
ruptura com essa “ditadura da representação”, abandonando-se de vez a
fenomenologia da coisa (Dingkonstitution). Desse modo:

Vamos mostrar que o aparecer do outro deve ser fundado em uma posição
de ser que ultrapassa todo método descritivo e resulta, antes, de uma
função prática da consciência, de um postulado da liberdade. Nossa
reflexão vai assim remontar de Husserl e Scheler a Kant: a fenomenologia
da simpatia vai nos remeter à ética do respeito. Terminaremos, enfim, a
prova mostrando que a posição absoluta do outro no respeito é o
fundamento sempre anterior a um discernimento do aparecer do outro.
(RICOEUR, 2009, pp. 308 e 309).

Partindo, portanto, de uma avaliação da fenomenologia dos sentimentos em


Max Scheler e passando da descrição fenomenológica dos sentimentos morais para
uma ética do respeito, Ricoeur (2009, p. 309) quer retomar a “posição absoluta da

162
Ricoeur finaliza o artigo dizendo que se “[...] pudesse transformar o postulado da realidade do
outro em visão, poderia construir uma especulação monadológica fora da ação mediante a qual opero
o reconhecimento do outro”. E justamente por isso toda a tentativa de substituir o consentimento
voluntário por alguma “percepção” do outro ou por alguma intuição do coração é decepcionante ou
não passa de uma fútil curiosidade do saber (RICOEUR, 2009, p. 332).
163
“[...] porque ela toma a coisa pela sua objetividade, perguntando pelas condições de possibilidade
para que as conheçamos. Por um lado, investigar as condições de possibilidade de objetividade da
coisa é o mérito da reflexão transcendental, por outro lado, no entanto, isso constitui o seu limite,
‘porque o universo das coisas não é ainda senão a ossatura abstrata deste mundo de nossa vida’”.
(REICHERT DO NASCIMENTO, 2016, p. 104).

123
existência164 do outro”, o que é, podemos adiantar, uma existência-valor, uma
existência que é a sua própria dignidade e um valor que é não comercial e sem
preço (RICOEUR, 2009, p. 322).
Certo que devemos atribuir preço somente às mercadorias e aos objetos, mas
de fato isso é assim? Se a resposta é negativa, o que abona a dignidade de outrem
ou o valor de sua existência, de seu vivido?
A garantia dessa existência-valor, conformando a posição digna e absoluta da
segunda pessoa dar-se-ia, sobremaneira, pela complementariedade da simpatia
(calcada na fenomenologia da simpatia de Husserl) com o respeito (firmado na ética
do respeito em Kant).
O certo é que o método descritivo da fenomenologia, como sendo “a
descrição compreensiva daquilo que aparece” (RICOEUR, 2009, p. 266) não dá
conta do tratamento das relações interpessoais sem que isso implique na renúncia,
na negação do outro ou na relação de desigualdade diante do outro. Do mesmo
modo, teorias de deposição do outro como, por exemplo, as do sentimento de
desprezo (Missachtung) na dialética hegeliana do senhor e do escravo, da luta de
classes marxiana e marxista e da teoria sartreana do olhar e da vergonha, implicam,
senão no menosprezo, no aniquilamento do outro.
Não há o reconhecimento da segunda pessoa em sua singularidade e em seu
vivido. Paulo Gubert, a esse respeito, nos esclarece bem:

A luta assegura simultaneamente o momento dialético à ética do respeito e


o momento histórico à fenomenologia da simpatia. Contudo, Ricoeur
entende que esta reinterpretação do problema do reconhecimento precisa
estar alicerçada na ética do respeito. Dessa forma, fica assegurada uma
tomada de posição do outro que não seja motivada pela luta ou pela
violência. A palavra final não pode ser dada a nenhuma destas alternativas,
pois elas representariam duas únicas possibilidades de relação com o outro:
ignorá-lo ou eliminá-lo. (GUBERT, 2014, p. 193).

164
A propósito da existência e do vivido de cada pessoa na filosofia ricoeuriana, recordamos do texto
Uma interpretação sobre a noção de “vida” em Paul Ricoeur, de Cláudio Reichert do Nascimento que
discorre sobre a perspectiva da existência como tarefa, ou melhor, “da necessidade de ter de assumir
a vida como tarefa”, ou de compreender que a vida requer que a pessoa humana assuma sua própria
existência. “Para além de ser regido pela ordenação da natureza, o ente humano tem de
experimentar-se subjetivamente em sua condição de ser-em-vida e despertar-se no exercício de sua
liberdade individual. A vida de qualquer ser humano é, portanto, a busca pela realização da tarefa de
tornar-se humano e, de acordo com a interpretação que se defende, tal tarefa vai na direção da
noção de respeito à pessoa humana”. (REICHERT DO NASCIMENTO, 2016, p. 91 e p. 92, grifo
nosso).

124
Assim, o outro não pode ser simplesmente uma coisa ou algo que aparece do
mesmo modo como uma coisa aparece. Com esse método, negamos-lhe existência,
singularidade e vivacidade. Simultaneamente, o reconhecimento do outro também
não é dado pela via da luta, do conflito, fazendo-nos permanecer no terreno
espinhoso da desconfiança, do desprezo, da violência, a ponto de implicar num
constante estranhamento e/ou numa permanente dominação.
Num texto mais tardio, intitulado A luta por reconhecimento e a economia do
165
dom , Ricoeur critica diretamente a proposta da dialética hegeliana do senhor e do
escravo e, por extensão, a via negativa da descrição do outro, ratificando a ideia de
que é um erro tomar a negação absoluta do outro como ponto de partida na tentativa
de superação da relação de fusão com a segunda pessoa. O que corrobora outra
ideia do texto que merece destaque: a de que a via que se fundamenta na luta
natural do ser humano pelo desejo de auto-conservação, de Maquiavel a Hobbes166,
na filosofia política moderna, nos mantém no caminho mais violento, da negação
insaciável e sem limites da segunda pessoa (RICOEUR, 2002, p. 21-26 apud
ROSSATTO, 2016, p. 191). Assim, é indiscutível que devemos buscar formas
positivas e simétricas no trato das relações interpessoais, jurídicas e sociais,
rejeitando-se a tese de negação da aspiração por alteridade.
Retomando-se o Simpatia e Respeito, vemos Ricoeur registrar o primeiro
tópico do texto sob o título de Decepcionante fenomenologia, que frustra-nos
justamente ao tentar “explicar o corte entre o jeito como uma pessoa se anuncia e a
maneira como uma coisa se mostra”. (RICOEUR, 2009, p. 309). A fenomenologia do
outro desaponta porque enreda a presença das pessoas com a aparência das
coisas. “A exigência idealista quer que o outro, como a coisa, seja uma unidade de
modos de aparição, um sentido ideal pressuposto”. (RICOEUR, 2009, p. 311). Aquilo
que eu percebo é concomitantemente apercebido como percebido pelo outro. A
presença do outro não só irradia sobre a minha própria percepção e presença como

165
Conferência proferida na Journée de Philosophie, promovida pela UNESCO em Paris, no ano de
2002. O texto foi publicado com o título La lutte pour la reconnaissance et l’économie du don (Paris,
UNESCO, 2004).
166
“Ricoeur tem em vista inicialmente que o problema da luta pelo reconhecimento ganhou sua
primeira formulação na Fenomenologia do Espírito de Hegel, texto em que o filósofo alemão, na
esteira da filosofia política inglesa de Thomas Hobbes, se movia dentro da problemática específica da
dialética do senhor e do escravo. É, precisamente com Hegel, que o tema hobbesiano da guerra de
todos contra todos, da luta pela sobrevivência, ganhará um tratamento eminentemente moral, na
medida em que a preocupação central vai girar doravante em torno da procura por uma explicação
para as relações sociais, distinta daquela indicada pelo medo natural da morte violenta”. (REICHERT
DO NASCIMENTO e ROSSATTO, 2010, p. 348).

125
também fita e percebe a mesma coisa que eu fito e percebo. Olhamos, percebemos
e também trabalhamos com os mesmos objetos e habitamos os mesmos lugares.
Mas uma casa ainda é diferente da outra, repleta da individualidade e do
experimentado de cada pessoa que a habita. E cada pessoa, por certo, é singular e
diferente.

Assim, as coisas estão não só prenhes do olhar do outro, mas carregadas


de sua labuta e impregnadas daquela presença sutil e diversamente
qualificada que se respira em uma casa aconchegante, em uma
repartição anônima, em face de um público hostil ou num campo de batalha.
(RICOEUR, 2009, p. 310, grifo nosso).

Nesse sentido, Husserl, na V Meditação Cartesiana, com a epochè da


presença do outro, ou a redução do outro à esfera do “próprio”, faz uma aposta
insustentável (RICOEUR, 2009, p. 310), pois não dá conta do que nosso filósofo
toma por um duplo enigma: a estranheza e a semelhança da subjetividade, ou seja,
a aparência de um outro que é ao mesmo tempo a aparência de um semelhante.
Mantendo-se fiel ao idealismo de seu método, Husserl entende o outro como
um “sentido” que se constitui na esfera primordial de pertença, daquilo que me é o
mais próprio, um ser percebido por mim como qualquer outra coisa, sem prerrogativa
específica. O outro é, de fato, um corpo diverso do meu, porém, incorporado à minha
“paisagem vital”, constituído em mim e por mim: eu o vejo, posso tocá-lo, posso ouvi-
lo. Por outro lado, Husserl considera o outro como o que não sou eu, que tem seu
mundo próprio e, assim como eu, percebe o outro que sou eu, e em contrapartida se
dirige a mim firmando comigo a relação de intersubjetividade.
A dificuldade reside justamente aí para Ricoeur: quando Husserl pretende
satisfazer tanto a exigência do método fenomenológico, quanto a exigência da
alteridade do outro, essa “docilidade aos traços específicos desta apercepção do
outro que ele [Husserl] chama com o termo mais ou menos feliz de Einfühlung
[empatia]”. (RICOEUR, 2009, p. 311).
Explicamos melhor: Ricoeur aponta que com essas duas preocupações, a
preocupação descritiva, relativa ao respeito da alteridade do outro e a preocupação
dogmática [ou metafísica] relativa à fundação do outro na esfera da minha própria
pertença, Husserl sustenta sua tese da analogia 167 – a esfera primordial realiza uma

167
Ricoeur (2009, p. 311) percebe que essa analogia como sendo o que é comum entre mim e o
outro.

126
apreensão analogizante do outro que, todavia, “arranca o vivido do outro assim
‘presentificado’ (apreendido por analogia) à minha esfera primordial”. (RICOEUR,
2009, p. 312). Essa analogia opera de objeto para objeto e, portanto, é incapaz de
ultrapassar o âmbito dos modos de pensamento arranjados pela constituição da
coisa168. Não bastasse, essa analogia se ampara na primazia do ego. Paulo Gubert
(2014, p. 193) nos abona afirmando que para Husserl, “todo o sentido real da
existência de um outro ser só pode ser conferido na vida intencional do eu”.
O curioso é que o próprio Husserl alertara quanto a isso: “Nada do sentido
transferido – a saber, o caráter específico do corpo vivo – pode ser realizado no
original em minha esfera primordial”. Demonstrando assim, que a esfera primordial,
por meio do que chamou de “emparelhamento” [Paarung], isto é, uma “multiplicação
por similitude”, realiza o aparecer da “presentificação” do outro através de seu corpo,
indicando, porém, que suas vivências lhe pertencem e não se confundem com as
vivências do ego. Ricoeur esclarece mais adiante: “Não é o preenchimento no
original de um sentido visado por uma presença percebida, mas a ‘indicação’ indireta
de um vivido estranho pela coerência de um comportamento”. (RICOEUR, 2009, p.
313).
A epochè da presença do outro permanece então um método precário, que
não revela a sua existência, pois toda essa coerência interna nos convida a visar
ainda um estranho, se não ainda um objeto. No dizer de Paulo Gubert (2014, p. 194)
“trata-se de uma constituição transcendental das subjetividades estranhas”. Do
mesmo modo, a constituição da coisa permanece também como uma referência
para a constituição do vivido do outro. Significa dizer, em outras palavras, que por
analogia acabo fazendo da experiência do outro, potencialmente, uma experiência
minha. Por isso permaneço vendo um estranho: “O teu ‘aqui’ é outro diverso do
como se eu estivesse lá, pois é o teu e não o meu”. (RICOEUR, 2009, p. 313).
O limite da fenomenologia de Husserl perdura nessa tentativa frustrante de
equilibrar as exigências idealista e fenomenológica no trato da problemática da
segunda pessoa. Repetimos, é mais uma vez o ego que constitui o outro em si – o
ego que funda o outro na esfera própria, sem revelar seu vivido – e,

168
“O nervo do argumento reside no elo analógico que liga o outro corpo ao meu, único dado a mim
mesmo originalmente como corpo vivo (Leib). Husserl não desconhece as dificuldades clássicas da
tese da analogia. Pensa escapar-lhes fazendo da analogia uma apreensão mais primitiva do que o
‘raciocínio’ e do que todo o ‘ato de pensamento’, uma espécie de referência a uma primeira criação
de sentido, de transposição pré-intelectual. [...] Estranha analogia que não vai mais somente do
modelo para o semelhante, mas do próprio para o estranho”. (RICOEUR, 2009, p. 312).

127
simultaneamente, o uso do método descritivo, partindo da experiência, que não
consegue assimilar o outro na esfera primordial. Ao encontro dessa concepção,
podemos registrar a seguinte passagem: “Não é difícil entender como se relacionam
dois objetos determinados, por exemplo, dois fenômenos naturais” (LEOPOLDO E
SILVA, 2012, p. 25), mas é bastante complexo compreender como ser relacionam
duas pessoas livres, cada qual com seus projetos, suas intenções, suas ações, seu
vivido.
Desse modo, a relação com o outro não pode seguir o mesmo modelo da
relação com as coisas, pois, diversamente, trata-se da esfera interpessoal.
Não é por menos que Ricoeur mantém questionamentos: Haverá, assim, uma
saída quanto ao problema do outro, fora do paradigma da representação? Qual a
chave para revelar a existência do outro além da mera reflexão sobre a coisa?
Em resposta, nosso autor faz um anúncio: “Parece, pois, legítimo procurar do
lado da afetividade a abertura para o mundo das pessoas”. (RICOEUR, 2009, p.
314). Chega o momento no qual Ricoeur tenta aliar-se à Max Scheler e sua
fenomenologia da simpatia, além de distanciar-se dos sentimentos negativos e das
teorias de deposição do outro. A princípio, através da simpatia será possível
apreender algo que independe da representação. A simpatia, pode assim por “em
presença de..., sem propriamente conhecer”. (RICOEUR, 2009, p. 314).
Recorda que Scheler – “agostiniano e romântico” (RICOEUR, 2009, p. 316) –
esforçou-se muito em Natureza e formas da simpatia, para diferenciar a simpatia do
contágio afetivo e da fusão afetiva, fenômenos, segundo aquele, de contaminação
psicológica cega e quase automática, involuntária e inconsciente que exclui a
compreensão verdadeira do sentir “com...”, sentir “como...”. A obra é, sobretudo,
uma contestação a Spencer e Darwin, Schopenhauer e von Hartmann e Nietzsche
que, de acordo com Scheler, teriam confundido simpatia e contágio, simpatia e
fusão. O texto segue o sentido de demonstrar que enquanto o contágio e a fusão
embaralham os seres, a simpatia, por sua vez, os distingue. Em suma, por meio da
simpatia, compartilhamos do sentimento do outro sem o “experimentar por
duplicação como um vivido semelhante”. (RICOEUR, 2009, p. 315).
Mas em seguida, Ricoeur já retoma sua postura cética quanto à
fenomenologia de Scheler e questiona se não é justamente pelo fato de ser tão
difundida, que a confusão entre a simpatia e o contágio afetivo pode ser devida à
própria natureza da simpatia. Conclui por alertar o leitor que a fenomenologia da

128
afetividade também fracassa diante da problemática da segunda pessoa, e acaba se
traduzindo mesmo num erro, seja por cindir descritivamente a simpatia do contágio e
da fusão afetivos, seja por tornar a enraizar vitalmente a simpatia na fusão. “Seu
livro [o livro de Scheler], é de certo modo uma apologia da fusão afetiva”.
(RICOEUR, 2009, p. 316).
Paulo Gubert (2014, p. 198 e p. 199) esclarece-nos sobre esse exame de
Ricoeur, afirmando que a fenomenologia da simpatia – e de todos os demais
sentimentos positivos intersubjetivos – conduz a interpretações ricas de significado,
contudo, sem jamais abandonar o ponto de vista descritivo, caindo novamente na
fenomenologia das aparições do outro. E “o problema do outro fica então sujeito a
uma decomposição sem fim que é precisamente um dos perigos da fenomenologia”.
(RICOEUR, 2009, p. 318).
Em uma nota de rodapé – nota 5 do Simpatia e Respeito (RICOEUR, 2009, p.
317) – nosso autor observa, entretanto, que apesar dos perigos da fenomenologia,
Scheler realiza uma “verdadeira doutrina do conhecimento do outro”,
destacadamente, na análise intitulada “apreensão teorética da pessoa”, atingindo
bem a essência da pessoa como unidade concreta de seus atos intencionais. Faltou-
lhe, porém, esgotar “a intenção significante da palavra pessoa” e, igualmente, elevar
a discussão até a diferença fundamental Eu-Tu.
Ricoeur anota curiosamente, que Scheler diz que quando uma pessoa se
assinala como ser-de-valor [Wertwesen], só então a compreensão emocional do
outro atinge o seu verdadeiro objeto e é no nível do amor que essa compreensão se
dá e somente nesse nível conseguimos escapar “dos embaraços do conhecimento
analógico”. Além disso, Ricoeur retoma Kant e exalta a categoria do respeito, em
comparação e salvaguarda: “Teremos que dizer, mais adiante, que aquilo que Max
Scheler chama de compreensão do ser-de-valor pelo amor difere daquilo que Kant
chama de respeito”. (RICOEUR, 2009, p. 317).
O sentimento de simpatia, a fenomenologia da simpatia em si, deixa, assim,
de ser privilegiada para dar conta do problema da alteridade em Ricoeur. O ponto
mais frágil da fenomenologia da simpatia, replicamos, é o constante perigo de

129
resultar em fusão afetiva, e não num distanciamento salutar, necessário inclusive 169,
da segunda pessoa.
Entra nesse momento a investigação a partir das teorias de deposição do
outro: “A luta que dramatiza o problema do outro não estará mais em concordância
com a realidade cotidiana do que a compaixão? [...] é-se tentado a pensar que a
oposição das consciências é a chave de sua alteridade”. (RICOEUR, 2009, p. 319).
Nosso autor passa, destarte, a se referir aos sentimentos negativos como
vergonha, medo, ciúme, inveja, timidez, ódio que são, em sua perspectiva, tão
interessantes quanto a simpatia, do ponto de vista descritivo, para captar aquela
distância útil na intersubjetividade. Só para exemplificar, ele fala na chance de que
“a pessoa ciumenta intui com mais clarividência o cenário de gestos do outro em
direção do foco de intenções onde se constitui sua existência do que o bom homem
que acha todo o mundo simpático”. (RICOEUR, 2009, p. 316). Cita Hegel e o
sentimento de desprezo (Missachtung), que nos faz descobrir o próprio desejo pelo
reconhecimento. Retoma Hobbes e as experiências com os sentimentos de medo,
guerra ou insegurança que também o fomentam. E recorda do Sofista de Platão:
“[...] o não ser é o outro”. Seria a oposição, portanto, uma figura empírica
particularmente lúcida e espetacular da alteridade, pois “[...] Há na oposição de
consciências o reconhecimento da alteridade mais outra coisa”. (RICOEUR, 2009, p.
328).
Entretanto, Ricoeur conclui que ainda assim as teorias de negação do outro
vão se demorar num reducionismo: “se nós permanecermos somente no horizonte
da luta por reconhecimento, criaremos uma demanda insaciável, um tipo de nova
consciência infeliz, uma reivindicação sem fim”. (RICOEUR, 2004, p. 11 apud
REICHERT DO NASCIMENTO e ROSSATTO, 2010, p. 349). Nesse aspecto, a
deposição da segunda pessoa é tão somente o “desejo de solidão mediante a morte
do outro” (GUBERT, 2013, p. 266), e não a manifestação de uma vontade de
alteridade. Como bem elucida Noeli Rossatto (2016, p. 191) “os sentimentos
negativos seriam motivados pelo desejo solipsista do sujeito moderno, e não pela
busca de reciprocidade”.

169
Esse distanciamento em Ricoeur, pode ser expresso por uma afirmação que ele faz, mais adiante,
no Simpatia e Respeito: que o desejo de conhecer especulativamente o outro beira a indiscrição
(RICOEUR, 2009, p. 331).

130
Num sentido alargado, toda descrição fenomenológica dos sentimentos
(positivos ou negativos) é incapaz, portanto, de alcançar melhor resultado que o de
“se perder na multiplicidade empírica e desordenada dos afetos, não conseguindo
conquanto valorar uns sentimentos em detrimento de outros”. (ROSSATTO, 2016, p.
190). O ponto de partida para o enfrentamento no tratamento da segunda pessoa é
sua posição de ser. Qualquer perspectiva de deposição merece abandono.
A negatividade como situação originária da comunicação, por seu turno, leva
igualmente à objetificação do outro, a mortificá-lo na coisa ou no instrumento.
Como o dilema permanece, Ricoeur questiona se a alteridade dos seres ou “a
relação fundamental com o outro, de reagrupar a multiplicidade de revelações de
sua existência” (RICOEUR, 2009, p. 318), não pertencem a uma outra ordem
descritiva, portanto.
O que poderia fazer surgir “o ato de posição” da segunda pessoa que,
conforme Ricoeur é sempre anterior àquele ato de deposição? E “De que natureza
pode ser esse ato de posição?”. (RICOEUR, 2009, p. 319). Após ter-se empreendido
na análise regressiva das condições da luta, haverá que se subordinar a simpatia e
a luta ao respeito.
Nesse sentido, Ricoeur retoma mais uma vez a filosofia kantiana.
Precisamente a distinção que o filósofo de Königsberg faz entre pessoa e coisa:
“Kant não tinha ido direto ao coração do problema quando opunha praticamente as
pessoas às mercadorias?”. (RICOEUR, 2009, p. 314, grifo nosso). É provável que
com Kant e com a ética do respeito a existência e a dignidade do outro passem de
mera especulação para algo concreto. De que maneira?
Preliminarmente, nosso autor reafirma sua filosofia da pessoa e ratifica que o
ato de posição do outro não pode vir do prolongamento do eu de Descartes,
mormente porque a posição do cogito na dúvida cartesiana é uma posição
eticamente neutra, sem reconhecimento170. Tal ato [de posição do outro] advém do
limite que a razão impõe às pretensões do sujeito empírico, bem à maneira como
Kant coloca. Dito de forma diferente, esse [auto] limite, ou essa “posição voluntária
de finitude” é precisamente o que confere valor ao eu empírico.

170
Em relação à impossibilidade do eu cartesiano reconhecer o vivido do outro, recordamos de um
trecho da obra O outro de Franklin Leopoldo e Silva: “A reflexão, isto é, a busca metódica da certeza
no âmbito da própria mente, leva-nos a encontrar com total evidência e existência do Eu. Entretanto,
por ser a reflexão a exploração da dimensão subjetiva, ela não pode obter a mesma certeza no que
concerne à existência do outro”. (LEOPOLDO E SILVA, 2012, p. 22).

131
Ricoeur assevera que essa posição de limitação voluntária implica, de algum
modo, em por o direito do outro a existir –, em respeito ao direito do outro.
“Reciprocamente reconhecer o outro é me obrigar de alguma maneira, pois
obrigação e existência do outro são duas posições correlativas” (RICOEUR, 2009, p.
319). Conforme o autor, o outro passa, desse jeito, a ser o âmago da obrigação para
mim. Obrigação que, por seu turno, abarca um conteúdo abstrato de condutas
possíveis com relação a esse outro.
A reflexão de Ricoeur segue notável: o reconhecimento do outro em sua
pluralidade e alteridade não é possível sem o consentimento do meu querer ao
direito igual de um querer estanho ao meu.
Assim não há, fora da ética, a certeza da existência bruta do outro. É só no
chão da ética (do respeito) que se enraíza o reconhecimento e a vontade de
alteridade. Há toda uma motivação moral na base do viver junto, no desejo de ser
reconhecido (REICHERT DO NASCIMENTO e ROSSATTO, 2010, p. 348). Paulo
Gubert (2014, p. 200) assinala nesse sentido, que “recorrer a Kant em um estudo
fenomenológico sobre a alteridade pode soar de forma estranha”, uma vez que ele
(Kant) nunca tratou explicitamente do problema da existência do outro em sua obra.
Mas Ricoeur entende que por meio da categoria do respeito e, mais
especificamente, com a introdução da noção de pessoa via segunda formulação do
imperativo categórico – como já sabemos – o filósofo de Königsberg supera a
ditadura da representação e as teorias de negação no enfrentamento da questão da
alteridade. “Na análise do respeito é que se acha contida toda a filosofia kantiana da
existência do outro”. (RICOEUR, 2009, p. 320, grifo nosso).
Respeito e existência do outro se mantém em convergência. No respeito, um
querer fixa o seu limite pondo um outro querer, coordenando essa pluralidade de
intenções. O que dá garantia de que a existência em si do outro é posta com o seu
valor absoluto em um só e mesmo ato. O outro aparece e sua existência me limita.

E essa existência é, desde o primeiro instante, diversa daquela das coisas:


a “coisa” pertence como objeto do meu desejo à ordem dos meios, mas a
pessoa’ pertence, como face a face do meu querer, à ordem dos fins em si:
[...] a oposição da pessoa e da coisa é existencial, visto ser ética, e não o
contrário. (RICOEUR, 2009, p. 320 e p. 321).

Ricoeur explica ainda que esse respeito carrega consigo dois aspectos: um
inerente à esfera dos afetos – que costumeiramente conduzem a situações

132
conflituosas – e outro, puramente prático. Esse último consiste justamente na
posição do outro, “na posição de um querer estranho e semelhante como face a face
do meu querer, a coordenação de uma pluralidade de quereres” (RICOEUR, 2009,
p. 321), que se insurge também como um limite [prático-ético]; limite que é, para
Ricoeur, a alteridade pura: “um outro vale e existe, existe e vale diante de mim” e
sendo assim, barra, bloqueia, baliza minha propensão a deliberar sobre todas as
coisas apenas como uma projeção dos meus próprios interesses e a inclui-la [a
alteridade] intencionalmente em mim como mero objeto de minhas preferências. Há
algo nessa passagem que vai ao encontro disso, sendo o respeito em Ricoeur:

[...] um ideal prático, que não é nem um eu, nem um tu, mas um si, que
deve ser buscado na ação, no modo de tratar a pessoa como humanidade,
indo assim do ideal ao vivido, que seria efetivamente a noção de tarefa na
síntese na prática. (REICHERT DO NASCIMENTO, 2016, p. 92).

Para Ricoeur, há na filosofia de Kant uma tríade constituída por pessoa,


obrigação e razão prática, que garante que o reconhecimento da existência do outro
se fixe no mesmo nível do dever e da racionalidade.
Aqui, em oposição ao que veremos mais à frente, no tópico inerente à
categoria do respeito, a humanidade kantiana tem uma interpretação positiva em
Ricoeur: “Estamos diante de uma tríplice e indivisível emergência, resumida por Kant
na linda palavra humanidade” (RICOEUR, 2009, p. 321), significando dizer que por
meio do respeito kantiano se outorga dignidade à pessoa humana, uma vez que lhe
confere a imediata inserção no horizonte do que é a humanidade, situando-lhe em
um campo de pessoas cuja alteridade mútua está enraizada na sua irredutibilidade
aos meios171. De acordo com a perspectiva kantiana,

171
Sobre a humanidade em Ricoeur, vale transcrever parte do entendimento de Claudio Reichert do
Nascimento (2016, p. 91): “Numa perspectiva objetiva, o homem em seu ser-em-vida aparece como
um animal de instinto – mas que ele já deixou de ser –, ou seja, como um ser vivente determinado por
certos princípios de ordenação que regulam sua manutenção e crescimento. [...] Para Ricoeur, não
há aí o peso de nossa humanidade, visto que o que prevalece é um princípio de organização,
independente do cogito. Então, pereceríamos de certa nostalgia do animal, que nos eximiria do ‘peso
da humanidade’, uma vez que não somos mais um animal em seu aspecto mais primevo.
Permanecemos, então, uma tarefa para nós mesmos, o que reforça a ideia do ente humano como um
ser em projeto que tem em si todas as suas possibilidades existenciais”. Podemos concluir que
humanidade ou ainda, tratar a pessoa como humanidade em Ricoeur é assumir a própria vida como
tarefa. A tarefa de tornar-se humano, assumindo a própria existência. “[...] o homem (que é uma coisa
pensante), tinha de tomar-se a si como tarefa, que consistiria em última instância assumir a sua
humanidade, porque não lhe sobrava mais a possibilidade de retornar à fase completa de
animalidade”. (REICHERT DO NASCIMENTO, 2016, p. 92 e p. 93).

133
toda pessoa não apenas aparece diante de mim, mas se põe absolutamente
como fim em si limitando minhas pretensões a objetivá-la teoricamente e a
utilizá-la praticamente, então é que ela existe ao mesmo tempo para mim e
em si. Numa palavra, a existência do outro é uma existência-valor.
(RICOEUR, 2009, p. 322).

De outra banda, desponta aqui mais claramente, a quimera da fenomenologia


da simpatia, ao considerar que a existência do outro é abonada pela via do afeto
mesmo que venha a perder o aspecto ético de sua dignidade. A ditadura da
representação é, de fato, incapaz de assegurar o reconhecimento do outro enquanto
uma existência-valor. Já, com Kant, no Ricoeur de 1954, vemos a existência do
outro como um postulado onde o respeito mútuo é uma lei que vincula todas as
pessoas ao reino dos fins, pois compartilham da humanidade, humanidade como um
projeto que contempla as incomensuráveis possibilidades existenciais. Tal postulado
só pode ser alcançado pela análise das intenções da boa vontade 172, do
incondicionalmente bom, jamais pela simples reflexão sobre os atos do cogito.
Consequentemente, para o autor, importa que cada pessoa – como membro e
soberano – se situe numa comunidade ética a qual “as pessoas formariam todas
juntas, se cada uma se situasse em relação a todos segundo a reciprocidade do
respeito”. (RICOEUR, 2009, p. 322).
O outro, em Ricoeur, não pode ser apreendido em momento algum como
coisa e junto a isso, deve ser reconhecido ou respeitado sob a perspectiva da
pessoa como “fim em si”, e não como mero “meio”, objeto ou instrumento dado, já
que é irredutível em sua dignidade moral.

172
Sobre isso, recordamos de uma citação de Ricoeur em O Si-mesmo com outro: “Entende-se que
‘bom moralmente’ significa ‘bom sem restrição’, ou seja, sem consideração pelas condições interiores
e pelas circunstâncias exteriores da ação; enquanto o predicado ‘bom’ conserva a marca teleológica,
a ressalva ‘sem restrição’ anuncia que fica fora do jogo tudo o que possa privar o uso do predicado
bom de sua marca moral. Segunda afirmação: o que comporta o predicado ‘bom’ agora é a vontade.
[...] na moral kantiana a vontade tem o lugar que o desejo racional ocupava na ética aristotélica;
o desejo é reconhecido por sua visada; a vontade, por sua relação com a lei; ela é o lugar da
pergunta: ‘Quer devo fazer?’”. (RICOEUR, 2014, p. 230 e p. 231, grifo nosso). A citação é
conhecida: “Discernimento, argúcia de espírito, capacidade de julgar e como quer que possam
chamar-se os demais talentos do espírito, ou ainda a coragem, decisão, constância de propósito,
como qualidades do temperamento, são sem dúvida a muitos respeitos coisas boas e desejáveis;
mas também podem tornar-se extremamente más e prejudicias se a vontade, que haja de fazer uso
destes dons naturais e cuja constituição particular por isso se chama caráter, não for boa. O mesmo
acontece com os dons da fortuna. Poder, riqueza, honra, mesmo a saúde, e todo o bem-estar e
contentamento com a sua sorte, sob o nome de felicidade, dão ânimo que muitas vezes por isso
mesmo desanda em soberba, se não existir também a boa vontade que corrija a sua influência sobre
a alma e juntamente todo o princípio de agir e lhe dê utilidade geral; [...] e assim a boa vontade
parece constituir a condição indispensável do próprio fato de sermos dignos da felicidade”. (KANT,
2007, p. 22).

134
Embora a categoria do respeito venha a salvaguardar o ato de posição do
outro, o autor francês faz uma reprimenda: na filosofia kantiana conserva-se o
formalismo do dever e a existência do outro se mantém em um mesmo nível de
abstração da moralidade pura (GUBERT, 2014, p. 201). O desafio permanece, e o
preço a ser pago por esta “implacável ascese dos momentos empíricos, é o
desnudar do momento propriamente prático da existência do outro”. (RICOEUR,
2009, p. 322).
Destarte, impõe-se tentar demonstrar de que maneira o respeito se situa em
um mundo concreto – afetivo e histórico, na simpatia e na luta – de pessoas.
A simpatia e o respeito, juntos, constituem um mesmo vivido, diz Ricoeur
(2009, p. 324). A superioridade da simpatia sobre os demais afetos consiste
justamente na afinidade que tem com o respeito. O respeito justifica e é a essência
da simpatia de modo a anular o risco de fusão afetiva, privilegiando-a sobre os
demais afetos intersubjetivos173. Neste caso, o respeito reordena interiormente os
afetos e justifica criticamente a simpatia, o que Ricoeur chamou de momento
transafetivo do respeito na simpatia.
O momento transafetivo é a passagem da fenomenologia dos sentimentos
para a ética do respeito: “Podemos, portanto, chamar de transafetivo o momento do
respeito, embora este só exista em um afeto que ele remodela interiormente”.
(RICOEUR, 2009, p. 324). Como o respeito na simpatia, transpomos das inclinações
e desejos para o agir racional.
Ricoeur aventa também que a simpatia, enquanto compaixão ativa, voltada
para o outro, tem um papel mais fundamental ao relacionar-se com o respeito: “curar
os afetos enfermiços e regenerar a alma injusta”. (RICOEUR, 2009, p. 327). A
simpatia é, dessa maneira, não apenas a matéria, mas o “esplendor do respeito,
pois este é que faz da simpatia um afeto purificador, por sua proximidade ética em
relação ao respeito”. (RICOEUR, 2009, p. 327).
Outro momento do respeito na simpatia e na luta é o momento trans-histórico,
que permite aceitar ou negar o que a história produz na dor e nessa oposição de
consciências, revelá-las umas às outras. Na luta de duas consciências, devemos
distinguir dois elementos: o "núcleo da alteridade" originalmente constituído pelo

173
Ricoeur afirma que através do respeito “eu me compadeço ao mesmo tempo com a dor ou com a
alegria do outro como sua e não como minha”. Sendo assim, o respeito justifica criticamente a
simpatia, pois elimina seu “equívoco, mantendo a alteridade dos seres que a fusão afetiva tende a
anular”. (RICOEUR, 2009, p. 323 e p. 324).

135
respeito, na irredutibilidade do ser ao aparecer, e que atravessa todos os afetos e a
vontade de aniquilar o outro, advinda do desejo de solidão.
A luta do senhor e do escravo de Hegel, por exemplo, acaba por se sustentar
numa dialética onde o outro é escravo em via de anulação e, concomitante,
instrumento em via de humanização. O face a face que é estabelecido com o senhor
é orientado pelo que no escravo, não é mais escravo, precisamente o que o senhor
quer destruir. Isso é o que permite situar as consciências opostas em uma mesma
história. Nesse sentido: “[...] a luta ‘historiciza’, a simpatia ‘intimiza’ as relações inter-
humanas”. (RICOEUR, 2009, p. 328). Paulo Gubert (2014, p. 205) reafirma: “A
negatividade inerente a esta concepção de luta possui uma ordem dialética e, ao
mesmo tempo, situa as consciências em uma história”. Dialético e histórico indicam,
assim, a contribuição que a rivalidade pode trazer, sobretudo, porque a simpatia
carece do momento histórico que tem a luta. Dito de modo diverso, a luta, movida
pela rivalidade, permite que a simpatia vá para além do setor privado das relações
humanas.
Ricoeur entende, porém, que a relação entre a luta e a simpatia não encerra o
jogo de oposição de consciências que se manifesta na luta. O desejo de morte do
outro permanece e em semelhança à dialética inerente ao sentimento de ódio,
encontramos o entrecruzamento entre a valorização nascente e a desvalorização do
outro. O que significa dizer que anteriormente à reivindicação da solidão da
consciência, face ao desejo de morte do outro, encontra-se o reconhecimento da
alteridade fundada originariamente no respeito.
Eis o momento no qual a luta deve-se subordinar ao respeito, sob pena de,
não o fazendo, relegar o reconhecimento do outro à mera negatividade da história,
mantendo-se na esfera da rivalidade e da dominação. É dessa maneira que o autor
justifica a função do respeito, enquanto momento “trans-histórico, que nos permite
aceitar ou negar aquilo que a história produz na dor”. (RICOEUR, 2009, p. 330). O
respeito obsta a realidade, antecipa o fim da luta e, por conseguinte, combate a
violência. Para Ricoeur (2009, p. 330): “o homem do respeito, o não violento,
mantém no coração da violência o seu sentido atual que é, para ela, somente a sua
esperança sempre diferida”.
Parece termos chegado ao momento do respeito prático puro, que revela, por
sua vez, o sentido da simpatia, que “é o respeito considerado na sua matéria afetiva,
a saber, em sua raiz de vitalidade, em seu impulso e sua confusão; já o respeito vem

136
a ser a simpatia considerada em sua forma prática e ética, isto é, como posição ativa
de um outro eu mesmo, de um alter ego”. (RICOEUR, 2009, p. 324, grifo do autor).
Ricoeur encerra o artigo com Conclusões metodológicas, afirmando,
destacadamente, que a ética possui de fato um momento formal174, tal como
defendeu Kant, capaz de fornecê-la uma “armadura a priori” por ocasião da tomada
de posição diante do outro “e chamada a se completar no sentimento e na ação”.
(RICOEUR, 2009, p. 330 e p. 331).
Diante disso, é na ética do respeito, por conta, sobretudo, desse momento
formal, que desponta o reconhecimento do outro; esse outro como uma função da
boa vontade. É a boa vontade que põe o outro e que constitui o aspecto prático e
ético da finitude. A posição do outro é, portanto, diretamente dependente da minha
boa vontade no sentido kantiano da palavra.
A bem da verdade, aqui já é Ricoeur insistindo na necessidade de um
momento formal na constituição da ética – insistindo em Kant. E é nesse momento
formal da ética que, precisamente graças ao respeito como autocontrole ou
autolimite do ego, encontramos o reconhecimento do outro.
Além disso, nosso autor entende que Kant acerta de novo ao afirmar que
“Não se dá fenômeno sem ‘alguma coisa’ que aparece”, contudo, em se tratando de
pessoas, num aparecer, numa posição reconhecida de maneira prática cuja
respectiva existência tem de ser uma existência-valor bem diversa da posição das
coisas. O reconhecimento prático é uma posição de existência, de reconhecer um
vivido em toda a particularidade que carrega.
Por fim, Ricoeur conclui que o respeito é a ponte de passagem da
constituição da coisa para a constituição da pessoa. Dito de outro modo, o respeito,
permite que a pessoa não seja reduzida a coisa em seu modo de aparecer e, ao
mesmo tempo, protege contra a mera especulação da realidade do outro. O respeito
trabalha, assim, como um critério de discriminação diante da confusão afetiva
inerente à simpatia.
Diferente da simpatia, o respeito aprofunda a “distância fenomenológica”
necessária para manter a alteridade intacta175; eu me compadeço com a dor do

174
“Não há moral concreta que seja só formal, como também não há moral sem um momento formal”.
(RICOEUR, 2009, p. 331).
175
“[...] além de permitir estabelecer a diferenciação entre pessoa e coisa, contribui para levantar um
limite ontológico e ético instransponível em que se mantém a alteridade do outro que a fusão afetiva

137
outro como sua e não como minha. Ricoeur afirma que a simpatia [sem o respeito] é
uma “sensibilidade indiscreta”. Ela atormenta o coração e se atreve a construir o que
ele chama de “especulação monadológica”, algo como “transformar o postulado da
realidade do outro em visão”, fora do âmbito da ação. O respeito, por sua vez, é o
que protege contra a curiosidade fútil a qual a simpatia inclina, “observa mais de
longe” e “Dir-se-ia com muita propriedade, que a simpatia, conforme Max Scheler, é
uma fusão afetiva posta em pé pelo respeito”. (RICOEUR, 2009, p. 323 e p. 332). O
vivido, a existência da pessoa na posição ativa de um outro passa por essa dialética
entre a simpatia, em seu impulso e confusão inicial, e o respeito, que mantém a
alteridade que a simpatia anula.
Pode-se dizer ainda, que no Ricoeur de 1954 está-se muito mais próximo de
Kant176 e o respeito kantiano é o móbil que valora a existência do outro,
considerando-a imediatamente diversa da existência das coisas, em proximidade
com a irredutibilidade da pessoa à ordem dos meios – porque a pessoa pertence à
ordem dos fins. De saída, eu não sou coisa, o outro não é coisa. Além disso, o
respeito, por seu caratér deontológico e crítico em relação aos sentimentos positivos
e negativos, é o que justifica a simpatia, que mantém a alteridade que a simpatia
tende a eliminar enquanto vivência afetiva e, igualmente, o que põe termo à
violência, resguardando a anterioridade da simpatia frente aos sentimentos de
deposição e, portanto, impulsionando uma dialética entre o transafetivo e o
transhistórico177, entre a simpatia e a luta178, limitando a violência com e para o
outro.

tende a dissolver e que a luta tende a negar. Assim, é preciso distinguir três coisas: eu não sou
objeto; o outro não é objeto; e eu não sou o outro e vice-versa”. (ROSSATTO, 2018, p. 128).
176
De acordo com Paulo Gubert (2014, p. 205): “O texto Simpatia e respeito: fenomenologia e ética
da segunda pessoa, expressa um forte vínculo ainda mantido com a filosofia moral kantiana. Nesse
texto, Ricoeur afirma que ‘não é necessário escolher entre uma ética formal do respeito e uma ética
material, seja da simpatia, seja da luta. O próprio de um formalismo consiste em fornecer à ética a
armadura a priori implicada no momento de ‘tomada de posição’ diante do outro e chamada a se
completar no sentimento e na ação. Não há moral concreta que seja só formal, como também não há
moral sem um momento formal. Aí Kant é invencível: a pobreza do formalismo é sua força’ (2009, p.
330, grifo do autor). E mais: “A única questão é saber como continuar, quando se tiver começado com
Kant”. (RICOEUR, 2009, p. 331)”.
177
O transhistórico se dá, conforme Noeli Rossatto (2018, p. 131) por meio da retomada da
fenomenologia hegeliana, isto é: “[...] a luta ganha importância ao retomar a perspectiva da
fenomenologia hegeliana, reintroduzir o momento histórico que falta tanto à ética do respeito quanto à
fenomenologia da simpatia. Neste caso, a luta ocuparia o lugar da antítese em uma dialética em que
o primeiro termo é a simpatia e o terceiro o respeito. A luta, então, preencheria o lugar da negação
dialética, o que faz com que a fenomenologia saia do círculo restrito da intimidade das relações
interpessoais (Husserl, Scheler, Sartre) e ingresse no campo histórico, social e político”.
178
“[...] o respeito mantém a alteridade que a simpatia tende a eliminar enquanto vivência afetiva,
impetuosa e confusa. Também resguarda a posição de anterioridade da simpatia frente aos afetos

138
Cabe asseverar que uma simples fenomenologia do outro, sem a ética, não
nos garante a dignidade e a existência da segunda pessoa em sua maior
espontaneidade. Não se reconhece a pessoa em sua peculiaridade. Nesse sentido,
a intersubjetividade, na pluralidade de sujeitos, não se ampara na fenomenologia e
sim, na ética. A intersubjetividade se concretiza, se realiza na ética. Ricoeur parece,
por isso, empenhar-se menos no projeto de uma fenomenologia da segunda pessoa
e dedicar-se mais à continuidade de uma ética da segunda pessoa. Uma pura
fenomenologia da simpatia não subsiste no tratamento da segunda pessoa. Ou
ainda, uma fenomenologia dos afetos, ou a mera descrição dos sentimentos
(positivos ou negativos) não é garantia de reconhecimento e alteridade. A
superioridade da existência do outro como revelação de uma existência estranha – e
aqui acrescentamos, sem-igual – é, na realidade, superioridade ética (RICOEUR,
2009, p. 325).
Nosso filósofo deixa pra trás a fenomenologia da simpatia, em suma, porque
não se pode permanecer na esfera dos simples modos de aparecer do outro. O
outro não é somente uma presença no meu mundo, o mundo sequer é meu, o
mundo é compartilhado por cada um de nós, e cada um de nós é mais do que
presença; é existência original. E como bem observa Paulo Gubert (2011, p. 78),
referindo-se à substituição da simpatia pela solicitude:

Através da noção de simpatia, percebe-se um si, que, inicialmente, possui


uma ‘potência de agir’ superior à do outro, que lhe permite afetar-se com
seu sofrimento. Assim, ‘procede do outro sofredor um dar que já não é
precisamente tirado de sua potência de agir e de existir, mas de sua própria
fraqueza’. (RICOEUR, 1991, p. 223) 179.

O que resta indubitável é que o conceito de respeito em Ricoeur advém da


filosofia moral kantiana e, em toda sua singularidade, exigiria uma tese à parte.
Impossibilitados de assim fazê-la, optamos por prosseguir com uma exposição mais
sucinta acerca do respeito em Kant para, em seguida, avaliar o sentido que lhe

negativos. No entanto, os afetos negativos, identificados com a luta, continuam a dinamizar a


estrutura ética da segunda pessoa. Por isso, o terceiro ganho apontado em Simpatia e respeito está
vinculado à compreensão de que a simpatia está coordenada à luta, e ambas se subordinam ao
respeito”. (ROSSATTO, 2018, p. 129).
179
Adelson Simões recorda-nos que segundo Ricoeur, a solicitude tem uma “prova suprema”,
expressa pelos momentos em que “a desigualdade de potência venha a ser compensada por uma
autêntica reciprocidade na troca, a qual, na hora da agonia, refugia-se no murmúrio dividido das
vozes ou no aperto débil de mãos que se cumprimentam”. (RICOEUR, 1991, p. 224 apud SIMÕES,
2008, p. 25).

139
confere Ricoeur na pequena ética de 1990, pois diferente do que fez no artigo de
1954, Ricoeur passa a preocupar-se mais diretamente com o alcance da moralidade
no trato da segunda pessoa180.
Operando assim, poderemos compreender mais decisivamente a importância
que nosso filósofo destina a essa categoria para as questões situadas no âmbito da
ética e das relações interpessoais.

4.2 RESPEITO

“E se me achar esquisita, respeite também.


Até eu fui obrigada a me respeitar”.
Clarice Lispector

O respeito é tomado como um sentimento moral, ainda que difícil de definir


Bresolin (2012 apud ROSSATTO, 2018, p. 127). Dito de outra maneira, enquanto
costumeiramente classificamos os sentimentos181 de simpatia, empatia, compaixão,
como tipos positivos, e ciúme, inveja, ódio, como tipos negativos, o respeito parece
não se ajustar a quaisquer dessas categorias.
Em Kant o respeito é um sentimento sui generis, reconhecido pela pessoa
como algo que a transcende e, ao mesmo tempo, que faz subordinar sua vontade à
lei moral (VIEIRA, 2013, p. 55). Além disso, “é um sentimento produzido por um
fundamento intelectual, e esse sentimento é o único que conhecemos de modo

180
“Em Simpatia e respeito, podemos ver apenas que Ricoeur está decidido a continuar com Kant,
assumindo a ética do respeito como alternativa para frear a simpatia e regrar a luta. Não vemos tão
manifesta a preocupação com o próprio alcance da lei moral kantiana no tocante ao tratamento da
segunda pessoa. A tarefa de correção da deontologia kantiana só será levada a cabo no Oitavo
estudo de Soi-même comme um autre”. (ROSSATTO, 2018, p. 134).
181
“Na introdução à Metafísica dos costumes, seção intitulada ‘Relação das faculdades do ânimo
humano com as leis morais’, Kant tece alguns comentários sobre os sentimentos. Segundo ele,
‘chama-se sentimento a capacidade de experimentar prazer ou desprazer em virtude de uma
representação’. (MS, AA 06: 211). Ou ainda, em nota de rodapé no mesmo parágrafo, ‘chama-se
sentimento a esta receptividade da representação, que contém o efeito da representação sobre o
sujeito (seja ela sensível ou intelectual), e pertence à sensibilidade, ainda que a representação
mesma possa pertencer ao entendimento ou à razão’. Ora, se o sentimento consiste numa
receptividade da representação sobre o sujeito e, uma vez que o respeito é um sentimento, então o
sentimento de respeito consiste na receptividade da representação da lei moral, que contém o efeito
da representação intelectual sobre o agente. Segundo Ferraz (s/d, f. 446) o sentimento de respeito
tem um objeto oriundo da razão o qual, segundo a teoria moral kantiana, nada mais é do que o
conceito de bem, ou melhor, de Sumo Bem (o objeto da razão prática pura que é ao mesmo tempo
seu fim)”. (CORTES, 2017, p. 85 E p. 86).

140
inteiramente a priori 182 e de cuja necessidade podemos ter perspiciência”. (KANT,
2002, p.120 apud CHAGAS, 2013, p. 98).
O respeito é tomado como um sentimento a priori porque embora se
manifeste na esfera da sensibilidade, não é como os demais183, portanto. O respeito
decorre, não das inclinações, mas da consciência da lei como uma consequência
necessária. E, como único sentimento a priori, o respeito afeta a capacidade de
sentir, dada por meio da razão. “O sentimento de respeito, diferentemente dos
demais sentimentos, é produzido pela razão prática”. (CORTES, 2017, p. 85).
Nesse sentido, o respeito é um “sentimento que concerne meramente ao
prático e que, em verdade, é inerente à representação de uma lei unicamente
segundo sua forma”. (CHAGAS, 2013, p. 95).
Nas palavras de Valdinei Vicente de Jesus (2018, p. 90), o sentimento de
respeito em Kant “acompanha grande parte do processo de fundamentação da
moralidade” e, desde quando “a lei moral se impõe em sua própria força e se
apresenta à consciência como um factum184, surge uma espécie muito peculiar de
sentimento, a saber, esse sentimento de respeito”. Nessa linha, vejamos o que diz o
próprio Kant:

182
“[...] no nível a priori, o facto da razão designa a consciência prática da lei moral, ou seja, a
consciência da necessidade e da universalidade do princípio da autonomia da vontade, enquanto
que, no nível sensível, o facto da razão nada mais parece ser do que o sentimento de respeito por
esta própria capacidade autolegisladora racional. Em uma palavra, podemos interpretar o sentimento
de respeito como a manifestação subjetiva do facto da razão. [...] Então, quando na CRPr
encontramos a afirmação de que o único móbil legítimo é o respeito pela lei, Kant quer mostrar que o
facto da razão também se manifesta na sensibilidade produzindo o elemento dinâmico que faltava
para a efetivação da consciência da lei moral. Tendo em vista que a consciência intelectual que a
razão especulativa pode representar não implica em nenhuma obrigação em agir moralmente, é a
consciência prática da lei moral, isto é, a consciência da necessidade incondicionada ou da
obrigatoriedade do princípio moral que é a única capaz de produzir o sentimento de respeito. Então,
na medida em que a consciência a priori da lei moral se impõe mediante o facto da razão, surge,
imediata e originariamente, o sentimento de respeito, quanto consciência subjetiva da necessidade
prática da lei moral”. (CHAGAS, 2013, p. 97).
183
“Na FMC, Kant menciona em uma nota o conceito de respeito. O que sobressai daquela definição
é que o respeito embora seja um sentimento, não é gerado pela sensibilidade, mas é produzido por
um conceito da razão, e, desse modo, distingue-se de todos os outros sentimentos. Segundo Kant, o
objeto do respeito é a lei, ‘[...] aquela (lei) que impomos a nós mesmos e, no entanto, como
necessária em si.’ (KANT, FMC, BA 16, grifo no original). Nesse sentido, o respeito é a consciência
de que a vontade é determinada pela lei moral. Ele representa um valor que coloca por terra o amor -
próprio. Kant afirma, ainda, que todo o interesse pela moral consiste simplesmente no respeito pela
lei”. (SILVEIRA, 2013, p. 81 e p. 82).
184
“Esse factum revela a consciência que cada sujeito moral tem da sua capacidade de dar para si
mesmo a própria lei do agir. Segundo Ricoeur, ‘[...] essa consciência é o único acesso que temos à
espécie de relação sintética que a autonomia instaura entre liberdade e a lei’. (RICOEUR, 1991, p.
248). Na FMC Kant se pergunta como a razão pura pode ser prática e a resposta só vem na CRPr,
quando ele afirma que é a partir desse factum que ‘[...] a razão pura deveras se prova em nós
praticamente’ (KANT, CRPr, A 72)”. (SILVEIRA, 2013, p. 81).

141
[...] embora o respeito seja um sentimento, não é um sentimento recebido
por influência; é, pelo contrário, um sentimento que se produz por si mesmo
através de um conceito da razão, e assim é especificamente distinto de
todos os sentimentos do primeiro gênero que se podem reportar à
inclinação ou ao medo. Aquilo que eu reconheço imediatamente como lei
para mim, reconheço-o com um sentimento de respeito que não significa
senão a consciência da subordinação da minha vontade a uma lei, sem
intervenção de outras influências sobre minha sensibilidade. [...] O respeito
é propriamente a representação de um valor que causa dano ao meu amor
próprio. É, portanto, alguma coisa que não pode ser considerada como
objeto nem da inclinação nem do temor, embora tenha algo de análogo com
ambos simultaneamente. O objeto do respeito é, portanto, simplesmente a
lei, quero dizer, aquela lei que nos impomos a nós mesmos e, no entanto,
como necessária em si. [...] Todo o chamado interesse moral consiste
simplesmente no respeito pela lei. (KANT, 2007, p. 32).

Conforme Bresolin (2012, p. 48) “o respeito kantiano é, em última instância,


racional, porque é um sentimento produzido unicamente pela faculdade superior de
apetição e não por alguma paixão” ou inclinação.
Assim, o respeito age como uma espécie de efeito da lei moral produzido em
nossa sensibilidade moral, sem o qual o conceito de dever seria inviável. Só para
ilustrarmos, uma ação por respeito à lei possui valor moral porque a lei se torna o
motivo do agir. Isso também pode ser chamado de interesse prático, isto é, a
possibilidade de realização da lei. Sem interesse prático (ou sem sentimento moral),
não teríamos ações por dever, mas, por conseguinte, mera legalidade 185. Nas
palavras de Flávia Chagas:

O sentimento que indica a força motora da moralidade não é qualquer


sentimento, mas o único que pode ser compatível com a concepção moral
kantiana e que se caracteriza pela exclusão das inclinações e pela oposição
às exigências da sensibilidade, isto é, o sentimento de respeito. (CHAGAS,
2013, p. 96).

Julio Esteves (2009) adverte, entretanto, que Kant dá concepções diferentes


para o respeito, uma na Fundamentação da Metafísica dos Costumes e outra na

185
“A coincidência de uma ação com o dever é meramente legalidade, enquanto a coincidência de
uma máxima da ação com a lei é a moralidade (cf. Rechtlehre AB27). De modo geral, então,
legalidade é a simples concordância de uma ação com a lei sem tomar em consideração o motivo da
ação; ao passo que a moralidade é ação da qual a ideia do dever, segundo a lei, é motivo. Embora o
motivo seja essencial, sem a qual a concordância da ação com a lei é contingente e legal, nem por
isso torna-se ele o fundamento suficiente da moral. Agimos, pois, moralmente (ou nossa ação possui
valor moral) somente quando a lei, ela mesma, se constitui no motivo da ação”. (BRESOLIN, 2012, p.
45).

142
segunda Crítica186. Melhor dizendo, na Fundamentação, o respeito é concebido
como um mero efeito ou um subproduto da imediata determinação da vontade pela
lei moral. Na segunda Crítica, contudo, o respeito assume papel um pouco mais
elementar: o de enfraquecer a influência exercida pelas inclinações, o que conta
como um estímulo à preponderância da lei moral sobre o desejo.
Independentemente desses dois aspectos, o que se deve pontuar é que a
categoria do respeito tem papel fundamental na filosofia de Kant, haja vista que
“esclarece sistematicamente o ‘preenchimento’ da lacuna entre a consciência da lei
moral e a efetividade da lei para um ser racional finito e, inclusive, um ser não
puramente racional”. (DE JESUS, 2018, p. 90).
Desse modo, ainda que advindo do que Kant chama de humilhação do amor
de si, do amor próprio187, o respeito é um sentimento [de viés positivo] porque rompe
com as inclinações, em concordância com a autonomia do sujeito, com o uso da
razão e com a lei moral. Para o próprio Ricoeur (2014, p. 241), o respeito é “[...] no
modo negativo, a humilhação do amor-próprio e, no modo positivo, a veneração pelo
poder da razão em nós”. Também nesse sentido:

[...] a ruptura com as inclinações causa dano ao que Kant chama de amor
de si. Por sua vez, o amor de si é definido por ele como a propensão que o
homem tem de ‘fazer de si mesmo, com base nos fundamentos subjetivos
do seu arbítrio, o fundamento determinante da vontade em geral’ (CRPr A
131). Mas a humilhação que o amor de si sofre é apenas um sentimento
negativo, na medida em que representa uma limitação imposta pela
condição de concordância à lei moral. Porém, desde que a lei moral seja
uma determinação da vontade autônoma, isto é, que provém unicamente de
princípios racionais, na medida em que causa tal humilhação à
sensibilidade, ela também é causa de um sentimento positivo, a saber, o
sentimento de respeito. (MARIOTTO BOTTON, 2005, p. 78).

O respeito é, igualmente, um móbil a despertar o interesse188 pelo


cumprimento da lei moral e parece definir mais nitidamente o papel desse interesse.

186
Na Analítica da CRPr, “Kant estabelece a relação e o papel de conceitos com a filosofia moral,
como por exemplo, o fato da razão que mostra como a razão pura pode ser prática, e, desse modo,
garante a realidade da liberdade e sua necessária conexão com a lei moral. Na FMC, Kant menciona
em uma nota o conceito de respeito”, afirmando-o como produto de um conceito da razão (SILVEIRA,
2013, p. 81).
187
Allan Vieira (2013, p. 55), corrobora que o respeito, conforme o Kant da Fundamentação, denota a
impressão da razão sobre a emoção e favorece a humilhação do amor próprio.
188
“[...] no caso de um ser racional finito, não se pode afirmar simplesmente que ele possui um
interesse moral, todavia, que ele toma interesse pela moralidade. Dizer que ele toma interesse
significa admitir sua relação com a sensibilidade e, ao mesmo tempo, garantir a autonomia da
vontade, uma vez que ele não é “forçado” pela afecção a inclinar-se pra algo, mas, ele mesmo
espontaneamente toma interesse pela lei. Assim como todas as máximas que o homem elege, as

143
Mariotto Botton (2005, p. 82) explica o interesse pela moralidade, motivado pelo
respeito: Ele [o respeito] não contradiz a autonomia do sujeito e torna-se motivo
suficiente para que toda pessoa possa tomar interesse na observância da lei, que a
simples razão impõe à sua vontade. Pela via do respeito eu me interesso, de forma
autônoma e racional, pela moralidade. E ao me interessar pela moralidade, me
comprometo eticamente na ação.
Claudio Reichert do Nascimento (2016, p. 108 e p. 116) ratifica que Ricoeur
retira a noção de respeito do âmbito da lei moral kantiana e aduz que nosso autor
considera que o respeito “é o intermediário que faz parte, ao mesmo tempo, da
sensibilidade, da afetividade (faculdade de desejar) e da razão, isto é, da potência
de obrigação que procede da razão prática”. A consequência disso para Ricoeur,
diverso de Kant, para quem o respeito exclui a faculdade de desejar, é que o
respeito é o intermediário entre razão e sensibilidade.
Noeli Rossatto (2018, p. 127), por sua vez, afirma que respeito à lei e
sentimento moral são termos equivalentes na deontologia kantiana, restando difícil
precisar até que ponto o respeito à lei implica em respeito ao outro. A ideia kantiana
de respeito, vinculada à ideia de humanidade não ocultaria a possibilidade de tratar
a segunda pessoa da ética? Ou será que o respeito, antes de referir-se à relação
com e para o outro não recai na cega obediência à lei? Tais objeções já foram
aventadas por Ricoeur, ciente de que, por um lado, a ética do respeito de origem
kantiana não se remete clara e diretamente a outrem. Desse modo, observa que
recorrer a Kant pode parecer estranho dado que o filósofo alemão não tratou
explicitamente o tema da existência da segunda pessoa do mesmo modo que tratou
a existência do mundo (na Refutação do idealismo e nos Postulados do pensamento
empírico, da Crítica da Razão Pura). Contudo, a intepretação ricoeuriana defende
que a existência do outro deve ser buscada nas implicações da filosofia prática
kantiana: e é na análise do sentimento de respeito que está contida toda a filosofia
prática da existência do outro (ROSSATTO, 2016, p. 193).
Rafael Cortes (2017, p. 85) lembra, contudo, que Kant mesmo afirmara que o
“Respeito sempre tem a ver somente com pessoas e nunca com coisas”. Somente
as pessoas são dignas de respeito e, concomitantemente, são capazes de respeitar

máximas morais não são desprovidas de interesse, pelo contrário, elas revelam o mais puro interesse
pela liberdade, na medida em que dependem tão-somente da lei dada pela própria razão”.
(MARIOTTO BOTTON, 2005, p. 82).

144
alguém digno de respeito. “E quando sentimos respeito por uma pessoa não somos
capazes de recusar tal mérito. Podemos quando muito, afirma Kant, ‘abster-nos dele
exteriormente, mas não podemos evitar senti-lo interiormente’” (CORTES, 2017,
p.85). Assim, pode-se até manifestar desgosto ou repúdio em relação a alguém, mas
não se consegue negar que subjetivamente “meu espírito se curva” a certa pessoa
por respeito.
Ainda que permanecesse o desafio de precisar até que ponto o respeito à lei
em Kant implica em respeito ao outro, Ricoeur valora positivamente o fato de que a
filosofia prática kantiana não põe em dúvida a existência da segunda pessoa da
ética. De que forma nosso autor sustenta isso?
Comecemos pela segunda formulação do imperativo categórico. Nela, Kant
traz implícita a noção da figura do outro, considerando-a imediatamente diversa da
existência das coisas. Valendo recordar que as coisas [ou mercadorias] em Kant,
pertencem à ordem dos meios e as pessoas, à ordem dos fins. Extrai-se disso
também, que a relação com o outro não deve seguir o modelo da relação com as
coisas. Estamos tratando da esfera interpessoal, onde cada um, que é o outro, deve
ser reconhecido e respeitado, percebido como “fim em si”, tanto para Kant como
para Ricoeur.
Do mesmo modo, Ricoeur vê nessa formulação o que falta na primeira, isto é,
uma espécie de alerta para a situação inicial de dissimetria entre a primeira e a
segunda pessoas da ética. A primeira formulação exalta o teste de universalização
da máxima subjetiva da ação. Mas as relações humanas trazem em si o risco da
discordância e da violência pelo não reconhecimento imediato do outro. [...] E o que
dá ensejo a esse resvalar da violência do poder exercido por uma vontade sobre
outra senão a dissimetria inicial entre o que um faz e o que é feito ao outro?
(RICOEUR, 2014, p. 254). A situação inicial da relação intersubjetiva, assim,
costuma se dar pelo desejo de dominação e, de saída, por uma dissimetria original
em que eu não sou o outro. Em Ricoeur, é contra esta espécie de perigo que o
segundo imperativo kantiano alerta (RICOEUR, 1995b, p. 167).
A passagem do segundo componente da intenção ética – com e para os
outros – para a instância da moralidade se reflete, então, na segunda formulação do
imperativo categórico ou, como alega Noeli Rossatto (2018, p. 134 e p. 135): na
admissão da similaridade entre a regra de ouro inscrita no Evangelho de Mateus,
“Amarás a teu próximo como a ti mesmo”, encontrada na raiz da noção de solicitude

145
e o “Age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na
pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca
simplesmente como meio”, de Kant. Para Ricoeur (2014, p. 251), é tratar o
imperativo kantiano como formalização da regra áurea.
A princípio, percebemos que a ideia kantiana de “humanidade” relaciona-se
com a ideia de terceira pessoa da ética ou ainda com um “sem prerrogativa de
pessoas”. (RICOEUR, 2014, p. 251). Por outro lado, a pluralidade das pessoas
indicada pela ideia de “humanidade”, implica em um tipo de universalidade que não
se aplica corretamente a essa terceira pessoa. Isto é, a universalidade é a mesma
universalidade presente em outras expressões kantianas análogas, tais como: “todo
homem”, “todo ser racional” ou a “natureza racional”. (RICOEUR, 1991, p. 264). Em
nenhum destes termos vemos a ideia de “humanidade” referir-se diretamente ao
contexto da segunda pessoa da ética. Em outras palavras, a ideia de humanidade
tomada em sentido kantiano, cria que como um véu de invisibilidade para a segunda
pessoa, pois, de igual modo, se aplica tanto a primeira como a terceira pessoas,
oscilando entre a autonomia de um sujeito individual e autossuficiente e a
impessoalidade e o “sem rosto” das instituições.
O respeito kantiano, num primeiro momento, não indicaria a reciprocidade
exigida em relação a segunda pessoa da ética. Contudo, lendo a segunda
formulação mais uma vez, pode-se questionar, assim como fez Ricoeur, se Kant não
realiza uma espécie de barganha entre “humanidade” e “pessoa”.
O termo barganha pode soar estranho, mas para nosso filósofo, a
humanidade é “a pessoalidade da pessoa, [...], o modo de ser sobre o qual se deve
fixar toda a aparição empírica disto que nós chamamos um ser humano”.
(RICOEUR, 2009, p. 113). De igual modo, a noção de humanidade [“a ideia
mediadora de humanidade”] presente na segunda formulação traz subentendida a
ideia de alteridade [verdadeira], garantindo a distinção entre a segunda [“tua
pessoa”] e a terceira pessoas [“pessoa de qualquer outro”] da ética.
A prova prática [negativa] de que a alteridade está resguardada pela
humanidade de Kant, é que quando tratamos a humanidade como meio, e não como
fim em si, tanto na “tua pessoa” como na “pessoa de qualquer outro”, temos como
resultado a violência, a luta, a tortura.
A propósito, diz Ricoeur:

146
Ora, a humanidade, não entendida no sentido extensivo ou enumerado da
soma dos humanos mas, no sentido compreensivo ou principal daquilo que
torna digno de respeito, nada mais é que a universalidade considerada do
ponto de vista da pluralidade das pessoas: o que Kant chama de ‘objeto’ ou
‘matéria’. (RICOEUR, 2014, p. 253).

Claudio Reichert do Nascimento (2016, p. 109), ao ratificar que Ricoeur retira


a noção de respeito do âmbito da lei moral kantiana, replica o respeito como a
síntese da pessoa como destinação da humanidade, algo originário. Ou seja, o
respeito carrega consigo um valor que não se subordina a nenhum outro e que, além
do mais, serve de fim para a ação e de guia para as relações intersubjetivas. De
outro norte, a pessoa vem a ser, como modo de tratar os homens em sua
humanidade, o que exige a reverência à noção de respeito. A pessoa é fruto de uma
existência que a faz vir a ser pela ação, a qual tem de ser pautada pelo respeito, que
é um sentimento moral específico que constitui sua síntese. Tomar o homem como
sendo pessoa, na mediação do respeito, é uma maneira de tratar o outro como se
trata a si mesmo. É nesse sentido que Ricoeur considera o respeito como a síntese
da pessoa, tendo seu objeto na humanidade da pessoa. “O sentido que o autor dá
ao respeito como síntese na pessoa toma-o como pertencente ao mundo sensível e
ao mundo inteligível, valendo lembrar que a humanidade é a personalidade da
pessoa”. (REICHERT DO NASCIMENTO, 2014, p. 117).
Cabe destacar que obrigação aqui não significa coerção ou temor, “o
sentimento de se sentir obrigado por... exprime afetivamente a diferença de nível
que há entre o valor de nossas vidas e o valor das comunidades que tornam
possível a vida de outrem”. (REICHERT DO NASCIMENTO, 2014, p. 115).
No esquema ricoeuriano da moralidade, portanto, o respeito é o mote que faz
com que a “pessoa de qualquer outro” se situe de saída em meio a outras pessoas
[e não em meio às coisas], cuja reciprocidade em qualquer caso está alicerçada pela
irredutibilidade aos meios, esperando por nossa humanidade e nossa consideração.
Além disso, “Só com a pessoa vem a pluralidade” (RICOEUR, 2014, p. 254), a
pluralidade pela alteridade de cada pessoa, contida na humanidade. A regra de ouro
e o imperativo do respeito devido às pessoas, que a formaliza, têm ambos, a mesma
visada: estabelecer a reciprocidade onde reina a falta de reciprocidade, em atenção
à alteridade do outro. Regra áurea e segunda formulação do imperativo, afirma
Ricoeur, trazem à tona a alteridade verdadeira na raiz da pluralidade das pessoas.
“A ideia unificadora e unitária de humanidade deixa de aparecer como dublê da

147
universalidade em ação no princípio de autonomia, e a segunda formulação do
imperativo categórico recobra sua originalidade integral”. (RICOEUR, 2014, p. 255).
Ricoeur faz questão de certificar que sua ideia de pessoa como fim em si
mesma é ratificada pelo próprio Kant, notoriamente na Fundamentação da
Metafísica dos Costumes, no excerto “o homem e, em geral, todo ser racional, existe
como fim em si, e não simplesmente como meio de que esta ou aquela vontade
possa usar a seu bel-prazer”. E com a passagem “em todas as suas ações, tanto
naquelas que dizem respeito a ele mesmo [ao homem] quanto naquelas que dizem
respeito a outros seres racionais, ele sempre deve ser considerado ao mesmo
tempo como fim”. (RICOEUR, 2014, p. 255). Cria-se, observa nosso autor, agora no
nível da demonstração [e não só no nível teórico], o paralelo entre o princípio da
autonomia do sujeito e o respeito às pessoas: “a moral existe porque a própria
pessoa existe como fim em si. [...] sempre soubemos a diferença entre pessoa e
coisa: a segunda pode ser obtida, permutada, usada” (RICOEUR, 2014, p. 255), a
pessoa jamais.
Em suma, para nosso autor, na distinção entre o respeito devido às pessoas e
a autonomia, Kant fracassa com o critério universal, que impede se desvele a
alteridade e a singularidade de cada um. Mas ao conseguir distinguir a noção de
existir como fim em si da noção de impor uma lei a si mesmo, se supera, e a
concepção de pluralidade ausente na concepção de autonomia do sujeito é
resgatada através da noção de pessoa como fim em si. Nas palavras de Noeli
Rossatto (2018, p. 136), “a depuração da noção kantiana de respeito, no caso da
segunda pessoa tomada como respeito devido ao outro, deixa claro o campo de
atuação de cada uma das três pessoas da ética”. Na via do respeito, o poder da
autonomia da primeira pessoa não é ilimitado e a terceira pessoa, por sua vez, já
não pode negá-lo, reabilitando-se, destarte, o lugar e a condição da segunda pessoa
da ética, não mais tomada pela deposição do sujeito autônomo ou pela indiferença
em meio à impessoalidade do instituído.
Não por menos que Ricoeur prepondera o respeito como um sentimento
privilegiado em detrimento de outros móbeis empíricos da sensibilidade na questão
da alteridade. O respeito kantiano é o “móvel a priori” em relação a todos os demais
afetos: um “sentimento espontaneamente produzido” em contrapartida aos demais
“sofridos ou recebidos por influência” (RICOEUR, 2009, p. 324) que nos permite
considerar e reconhecer o outro em seu vivido.

148
Depois de “corrigir” o conceito kantiano de respeito, no campo moral, Ricoeur
se volta a teleologia aristotélica e o conceito de solicitude. Questionando: mesmo
sendo a moral kantiana um projeto que tem o dever como cerne, excluindo qualquer
referência ao que possa ser considerado bom ou desejável, não se nota na segunda
formulação do imperativo categórico, que preconiza a necessidade do respeito pela
pessoa do outro, um eco da solicitude e de aspiração a uma vida plena, com os
outros, para os outros, num caminho que leva à retomada das intenções teleológicas
de uma ética que visa o bem-viver? (RICOEUR, 1995b, p. 166). Recordemo-nos da
estrutura dialógica implícita, na ética e na moral, que as torna congruentes e
conforma a petit éthique: pelo lado da ética aristotélica, a estima a si e pelo lado da
deontologia kantiana, o respeito a si189. Essa estrutura é mais bem compreendida
com as palavras do próprio Ricoeur:

Daí resulta que o respeito a si, que, no plano moral, corresponde à estima
de si do plano ético, só atingirá sua plena significação [...] quando o respeito
à norma se tiver desenvolvido como respeito a outrem e a ‘si mesmo com
outro’, e este estiver estendido a quem quer que tenha o direito de esperar
sua justa parte numa partilha equitativa. O respeito a si tem a mesma
estrutura complexa que a estima a si. O respeito a si é a estima a si sob o
regime da lei moral. (RICOEUR, 2014, p. 228).

Assim é que o respeito devido aos outros, o respeito na segunda pessoa, no


terreno da deontologia, desempenha função semelhante à solicitude na seara da
teleologia. Em suma, o respeito é a solicitude em sua forma ética e prática e a
solicitude se transmuta em respeito devido ao outro na dialética da ética ricoeuriana.
Na sequência, trataremos de compreender melhor a categoria da solicitude,
analisando o que ela agrega para a petit éthique e para o âmbito da ética da
segunda pessoa.

4.3 SOLICITUDE

“É primordialmente para o outro que sou insubstituível.


Nesse sentido a solicitude responde à estima do outro por mim”.
Paul Ricoeur

189
“Os conceitos de estima de si e respeito de si compreendem, assim, um desdobramento da
ipseidade no seu estado mais avançado. Desse modo, entende-se melhor a primazia da ética sobre a
moral e a necessidade da primeira recorrer a segunda”. (VIEIRA, 2013, p. 52).

149
Conforme já mencionado no primeiro tópico deste capítulo, na teleologia
ricoeuriana, em um sentido, a solicitude é pensada para ocupar o lugar antes
reservado à fenomenologia dos sentimentos, destacadamente, a fenomenologia da
simpatia de Husserl190.
Certo que não encontramos, na obra de Ricoeur, qualquer justificativa para
essa substituição. Nosso autor é omisso quanto ao fato de não continuar com a
simpatia como categoria ética. Mas o risco da simpatia “cair” na fusão afetiva,
encobrindo a dissimetria original em que, de largada, não sou o outro, parece o
motivo mais palpável para que a solicitude tenha assumido esse lugar.
Em O Si-mesmo como outro, ao explanar sobre o segundo componente da
pequena ética, o “...com e para o outro”, nosso autor põe a questão de saber se a
mediação do outro não é necessária no trajeto da capacidade à efetivação 191 e, por
seu turno, se e de que maneira estima a si mesmo e solicitude estão relacionadas
uma à outra.
É chegado o momento, portanto, de compreender o que é e o papel da
categoria da solicitude no trato da segunda pessoa, recordando-se sempre que
Ricoeur pretende restituir a reciprocidade nas situações de desigualdade ou
ausência de liberdade e violência.
Percorreremos o mesmo caminho que fez nosso filósofo, iniciando com a
reminiscência de que inúmeras filosofias do direito natural pressupõem um sujeito
completo já coberto de direitos antes mesmo de ingressar na sociedade.
Disso resulta que a participação desse sujeito na vida em comunidade é
primordialmente contingente e revogável, e o indivíduo – “pois assim deve ser
chamada a pessoa nessa hipótese” (RICOEUR, 2014, p. 198) – tem motivos para
esperar do Estado a proteção de direitos constituídos fora dele, sem que pese sobre
esse mesmo indivíduo “a obrigação intrínseca de participar dos encargos ligados ao
aperfeiçoamento do vínculo social”. (RICOEUR, 2014, p. 199). Mas o sujeito ético,
para o autor, não é esse sujeito individualista moderno, previamente portador de
direitos antes de entrar na sociedade. O sujeito ético ricoeuriano realiza-se no
190
“Em sentido amplo, a solicitude parece ocupar o lugar antes reservado à simpatia. Se, em
Sympatie et respect, Ricoeur afirma que a simpatia e o respeito radicavam em uma única e mesma
vivência, e que a simpatia correspondia ao respeito no plano dos sentimentos morais, e o respeito era
a simpatia no plano ético; na retomada em Soi-même comme um outre, isso será duplamente
alterado”. (ROSSATTO, 2016, p. 195).
191
Conforme Maria Alice Fontes Aleixo, em Ricoeur, “a atualização da potência em ato, ou seja, a
passagem da capacidade à efetuação, só é possível através da mediação do outro”. (ALEIXO, 2008,
p. 15).

150
confronto e na cooperação com a alteridade de si mesmo e com a alteridade do
outro e se constitui por meio da existência e da tarefa – ou do mundo das obras192.
Essa hipótese de um sujeito de direito, constituído anteriormente a qualquer
vínculo social, só poderá ser refutada se sua raiz for cortada, aduz Ricoeur. Ora, a
raiz é o desconhecimento do papel mediador do outro entre capacidade e
efetivação. O desconhecimento e o descaso com e para o outro próximo. Nossa
hipótese se confirma: as relações interpessoais dão-se ainda pela mediação da
instituição, mormente do Estado. Na relação entre a primeira e a segunda pessoas,
a mediação é feita pela terceira. Ou ainda, a segunda pessoa é sempre encoberta
pela primeira ou pela terceira pessoas, sendo costumeiramente reduzida ao estatuto
de não pessoa.
Ricoeur pondera que esse papel mediador corresponde num primeiro
momento, ao papel do amigo, a partir, sobretudo, da leitura em Aristóteles, que
celebra a philia na Ética a Nicômaco. Ricoeur considera que a amizade pressupõe
mutualidade “e se torna o primeiro pressuposto para a constituição de um princípio
de alteridade”. (GUBERT, 2011, p. 75). Além disso, a amizade não é um sentimento
psicológico, ela é da alçada da ética e porque não dizer, de uma ética da segunda
pessoa, “primeira expansão do desejo de viver bem” e com o outro, uma virtude,
uma excelência; “o homem feliz tem necessidade de amigos”, desvelando-se essa
alteridade.
Ricoeur destaca três tipos de amizade – que se distinguem pelos motivos que
lhe dão origem – para interessar-se por um deles193: a amizade segundo o bom.
Porque desse tipo de amizade se extrai a mutualidade onde cada um ama o outro
pelo que é. Nesse sentido, Ricoeur observa que a philiautia nunca é predileção
mediada por si mesmo, mas desejo orientado pela referência ao bom. Desse modo,
amizade implica em igualdade e mutualidade que implicam sempre numa
reciprocidade que pode levar do viver em comum até à intimidade. Estas

192
“E há ética precisamente porque, se a crença na liberdade pode ser entendida como a luz de um
ato, essa é uma luz cega cuja produtividade deve ser reconstituída ao longo de todo uma vida, de
toda uma atividade e, como iremos ver, nas instituições, através de uma política, etc. É porque a
causalidade da liberdade não se apreende a si mesma que deve ser recuperada através do grande
desvio pelas suas obras e pela ação. A causalidade da liberdade, por conseguinte, não está incluída
em nenhum ato; e nenhum ato a esgota; o ‘eu posso’ deve ser conquistado através de todo um
percurso da existência, sem que nenhum ato singular possa, por si só, constituir prova suficiente
disso mesmo”. (RICOEUR, 2011, p. 129).
193
“[...] cabe distinguir três tipos de amizade: segundo o ‘bom’, segundo o ‘útil’, segundo o ‘agradável’.
Nunca seria demais ressaltar, na perspectiva da famosa aporia do ‘egoísmo’, essa distinção entre
três objetos-motivos”. (RICOEUR, 2014, p. 200).

151
características, igualdade194 e mutualidade, põem em ação um equilíbrio entre dar e
receber. Vê-se assim, que se impõe, desde o plano ético, a reciprocidade [que
alcança a comunhão do viver junto, na intimidade] onde, “no plano moral, na hora da
violência, será exigida pela regra áurea e pelo imperativo categórico do respeito.
Esse “pelo que” (pelo que o outro é) previne qualquer desvio egológico ulterior: é
constitutivo da mutualidade”. (RICOEUR, 2014, p. 201). E aqui uma nota importante,
ainda que estejamos nos referindo à amizade, importa destacar que mutualidade 195
e bom devem ser pensados juntos no que toca à relação interpessoal,
independentemente de se tratar de um vínculo entre amigos.
No tocante à tese, porém, não há porque nos determos na amizade em si,
nem tampouco no que a motiva, na compreensão de como ou porque se
estabelecem as relações de philia. Ricoeur mesmo declara que não se demorará
nos caracteres da amizade antiga196. Até porque, para nós, a atração imediata e a
generosidade que congregam a amizade e mesmo o amor, onde se pode chegar até
o ponto de algum sacrifício, é mesmo uma espécie de enigma; o que motiva, num
primeiro momento, a amizade, a boa aliança, ou o que aproxima duas pessoas,
parece um mistério e uma graça “recebida do universo” e, em seguida, uma espécie
de locus no qual o si e o outro compartilham o mesmo desejo de conviver em alta
estima.
Para Ricoeur, esse vínculo entre dois seres pode vir “Com a necessidade e a
carência, o que passa para o primeiro plano é a alteridade do ‘outro si’. O amigo, em
sendo esse outro si, tem o papel de prover aquilo que o outro é incapaz de obter por
si mesmo”. (RICOEUR, 2014, p. 204). Disso se pode extrair que todos temos uma
carência que nos leva a buscar o outro afim, uma espécie de escassez ou falta
ligada à relação do si com sua própria existência. A amizade, como uma atividade

194
“O corolário da mutualidade, a saber, a igualdade, leva a amizade para p caminho da justiça em
que a comunhão de vida entre um pequeníssimo número de pessoas cede lugar a uma distribuição
de papéis numa pluralidade em escala de comunidade política histórica”. (RICOEUR, 2014, p. 207).
195
”Acrescente-se que, pela mutualidade, a amizade confina com a justiça; o velho adágio “amizade-
igualdade” designa exatamente a zona de intersecção: cada um dos dois amigos devolve ao outro o
mesmo que recebe”. (RICOEUR, 2014, p. 202).
196
“Não me demorarei nesses caracteres da philia antiga que dizem mais respeito à história das
mentalidades do que à análise conceitual, tais como o elo entre amizade e lazer – tributário este da
condição de cidadão livre, do qual estão excluídos os escravos, os metecos, as mulheres e as
crianças”. (RICOEUR, 2014, p. 207).

152
(enérgeia), contribui para a efetivação da vida, considerada em sua bondade
intrínseca e em seu prazer fundamental 197.
E soma-se a isso, a consciência, não só da percepção e da atividade, mas da
vida em si. Ricoeur, destarte, não partilha com Aristóteles a tendência intelectualista
de identificar o viver em comum com o pensar em comum. Ele explora a dimensão
de falta, da vulnerabilidade do eu que leva a uma ruptura, que Aristóteles não
pensou, entre a estima de si e a amizade. O amigo também procura a mim porque
pode lhe faltar algo que espera de mim ou acredita que eu tenha.
Alcança-se um ponto no qual o filósofo afirma que “Todos concordarão que
não há lugar para um conceito franco de alteridade em Aristóteles” (RICOEUR,
2014, p. 205) e questiona, mais uma vez, se o ágape cristão, a noção de conflito de
Hegel e a filosofia de Lévinas não dão mais primazia ao outro [e não ao eu] como
faz Aristóteles com sua philia.
Com Lévinas, não é o ego quem tem iniciativa, é o outro. Levando em conta a
assimetria na relação eu/outro, a iniciativa é sempre do outro, diante de quem o eu
tem de responder, de ser responsável. Ricoeur (2014, p. 205) diz que Lévinas ousou
substituir a fórmula: “não há outro do si-mesmo sem um si-mesmo” pela fórmula
inversa: “não há um si-mesmo sem um outro que o convoque à responsabilidade”.
Mas o modelo de Lévinas não permite pensar a intersubjetividade que implica na
reciprocidade do dar e receber, “[...] uma dissimetria não compensada [como em
Lévinas] romperia o intercâmbio do dar e do receber e excluiria a instrução pelo
rosto do campo da solicitude”. (RICOEUR, 2014, p. 208). Não há, dessa forma, em
Lévinas, a reciprocidade ou, em termos hegelianos, o reconhecimento, a alteridade
de um outro semelhante a mim198. Além disso, Ricoeur pondera que Lévinas move-

197
Ricoeur observa, nesse aspecto e em resposta a pergunta: “o homem feliz terá ou não
necessidade de amigos?” que Aristóteles realiza uma conclusão parcial de um raciocínio complicado,
afirmando que “’Nessas condições, assim como sua própria existência é uma coisa desejável para
cada um de nós, também a existência de seu amigo é desejável para ele no mesmo grau, ou mais ou
menos no mesmo grau (IX, 9, 1170 b 7-8). E o argumento pode recomeçar: ‘Mas dissemos que o que
torna desejável sua existência é a consciência que ele tem de sua própria bondade, e tal consciência
é agradável por ela mesma. Por conseguinte, ele precisa participar também da consciência que seu
amigo tem de sua própria existência’ (IX, 9, 1170 b 9-11). Isso só pode realizar-se no ‘viver junto’’
(suzén, ibid., 1.11)”. (RICOEUR, 2014, p. 205).
198
“Mesmo me subscrevendo às análises de Lévinas sobre o rosto, a exterioridade, a alteridade, até
sobre o primado do apelo vindo do outro para o reconhecimento do si pelo si, parece-me que a
petição ética mais profunda é a da reciprocidade que institui o outro. Sem reciprocidade, ou, para
empregar um conceito caro a Hegel, sem reconhecimento, a alteridade não seria a de um outro
diferente de si mesmo, mas a expressão de uma distância indiscernível da ausência. Um outro
semelhante a mim, este é o voto da ética no que diz respeito à relação entre a estima de si e a
solicitude”. (RICOEUR, 1996a, p. 165).

153
se na ordem do imperativo, da moral, e não na ordem da ética, da bondade em si:
“[...] o si é atingido pela injunção apenas no acusativo. E a convocação à
responsabilidade só tem diante de si a passividade de um mim convocado”.
(RICOEUR, 2014, p. 208).
A consequência de apontar para a moral, em detrimento da ética,
considerando-se de saída, a separação que Ricoeur faz para conformar a petit
éthique, é o silêncio das normas/máximas diante de casos-limite, ou, como nosso
autor escreve, “quando essas normas ficam mudas diante de casos indecidíveis de
consciência”. (RICOEUR, 2014, p. 209). Restando, portanto, a necessidade de
conferir à solicitude o estatuto de espontaneidade benevolente, mais fundamental do
que a mera obediência ao dever e estreitamente ligada à estima de si. Essa
espontaneidade benevolente é compensatória da dissimetria inicial que resulta da
soberania do outro “na situação de instrução, por meio do movimento de retorno do
reconhecimento”. (RICOEUR, 2014, p. 210).
A reflexão que Ricoeur realiza sobre a philia é certamente um instrumento de
contraponto e de desenvolvimento da ideia de solicitude. Ele diz: “Partirei da relação
entre autos e heautón para elaborar um conceito abrangente de solicitude, baseado
fundamentalmente no intercâmbio entre dar e receber”. E, ainda “No fim desse
percurso em companhia de Aristóteles, a questão é saber que características
atribuímos à solicitude que não estejam já descritas no capítulo da amizade”.
(RICOEUR, 2014, p. 207).
Após essa reflexão, Ricoeur questiona, então, a que nova desigualdade a
solicitude se dedica a compensar.
Observamos, num primeiro momento, que a solicitude é o que vai suprir
aquilo que a amizade deixa de lado ao se orientar por um tipo de relação que prima
por dar e receber em igualdade de condições, num estado de simetria entre sujeitos
que desfrutam da mesma liberdade. Sim, lembremos que a amizade de Aristóteles
se dá entre seres do gênero masculino, livres e iguais, excluindo-se crianças,

154
mulheres, velhos, escravos199. Na esfera da amizade, a princípio, portanto, não se
suprime o desequilíbrio pertinente àquele sujeito da relação que não está em
condições de igualdade, que se encontra na situação limite de apenas receber, sem
possibilidades ou condições de doação.
A essa pessoa que sofre, Ricoeur dá o nome de padecente, em oposição ao
atuante, na relação interpessoal. Muito importante saber que essa condição de
padecimento vai da dor física e/ou mental à diminuição ou destruição da capacidade
de agir, do poder-fazer, “sentidas como um atentado à integridade do si-mesmo”.
(RICOEUR, 2014, p. 210). Também fala em “pessoa que age e sofre”, dentro das
perspectivas da filosofia da pessoa e da teoria da ação e destaca o poder-sobre
outro, que evidencia um agente e um paciente, no sentido de que a ação de um é
suportada por outrem.
Há, portanto, na relação “curta” eu-outro, mais precisamente na relação do
agir-sofrer, grande possibilidade de vitimização e é sempre essa desigualdade entre
agentes ou atuantes que põe o problema ético no coração da estrutura desigual da
interação (RICOEUR, 1996, p. 176). Não é diferente do que ocorre com a Regra de
Ouro, observa Ricoeur, que mesmo em sua mais simples proposição põe em
presença um agente e um paciente e não sempre dois agentes em condições de
igualdade.
Como aponta Noeli Rossato (2016, p. 195), “a composição do conceito ético
de solicitude parece conjugar a um só tempo a noção heideggeriana de cuidado
(Sorge) e a levinasiana de lassitude (lassitude)”, contudo, sem referir-se à posição
de passividade diante do outro próximo, indicando mais bem a iniciativa a ser
tomada em favor desse outro (sofredor). No artigo Abordagens da Pessoa, anterior
ao Si-mesmo como outro Ricoeur já sugere que se chame solicitude “o movimento
do si na direção do outro”. A solicitude inicia uma nova ligação, a qual permite
restaurar os equilíbrios entre partes que, anteriormente, se encontravam desiguais.

199
As atuais correções feitas à ética das virtudes silenciam a respeito de outros temas fundamentais.
Ainda que alguns autores condenem abertamente a justificativa da escravidão por Aristóteles, neles
não encontramos uma crítica contundente em relação à discriminação feminina, à violência na esfera
doméstica e no trabalho. “[...] a ética ricoeuriana é crítica em relação à antiga ética aristotélica e à
moderna moral kantiana, bem como as variantes contemporâneas neoaristotélicas e neokantianas, e
um dos motivos é o de não conseguirem pensar a segunda pessoa que sofre, é oprimida e
violentada”. (ROSSATTO, 2016, p. 201). Cabe destacar que, da ética de Aristóteles, Ricoeur só
preserva a reciprocidade, o compartilhamento mútuo entre os indivíduos, advertindo: “De Aristóteles
só quero ficar com a ética da mutualidade, da comunhão, do viver junto”. (RICOEUR, 2014, p. 206).

155
Parece-nos que a solicitude é assinalada pelo desejo de atender da melhor maneira
possível a alguma solicitação; empenho, interesse, atenção.
A solicitude, na benevolência ou bondade para com o outro então, vem antes
mesmo que o indivíduo se dê conta da sua capacidade de estimar ao outro, ou de
poder abrir-se para acolher o outro, para querer bem ao outro. Há uma espécie de
reconhecimento pré-original do outro implicando a tarefa de cuidado, desse bem
querer, voltados à consideração pelos sofrimentos ou à carência de liberdades da
segunda pessoa. Dito de outro modo, a solicitude vem balizar o querer viver junto na
diferença, na pluralidade, na dessemelhança, em situações que precisam ser
prontamente revertidas, haja vista a predominância da violência manifesta pela
extrema pobreza, pela falta de liberdade e/ou pelo sofrimento.
Há que se esclarecer ainda, que a solicitude, trazendo consigo a tarefa de
cuidar do outro, não indica os excessos que levam tanto à fusão com o outro,
presentes no sentimento positivo da simpatia, quanto à humilhação do outro,
vinculada aos sentimentos negativos como o ódio, o desprezo, o medo, a vergonha,
inerentes às teorias de deposição da segunda pessoa. Ricoeur aduz que a prova da
proeminência da solicitude talvez se encontre no fato de que a “[...] desigualdade de
poder vem a ser compensada por uma autêntica reciprocidade de intercâmbio, que,
na hora da agonia, se refugia no murmúrio compartilhado das vozes ou do frágil
enlace de mãos que se apertam”. (RICOEUR, 2014, p. 210).
E nesse sentido, nosso autor corrobora que a tragédia tem muito a ensinar.
No momento da agonia, a “trilogia ‘purificação’ (kathársis), ‘terror’ (phóbos), ‘piedade’
(eleos) não se deixa encerrar na subcategoria da amizade agradável”. (RICOEUR,
2014, p. 210 e p. 211), corrigindo a pretensão da philautia à estabilidade e à
duração. Na adversidade o si é chamado de volta à vulnerabilidade de sua condição
mortal e pode receber da fraqueza do amigo mais do que lhe dá. Magnanimidade
(outra virtude, aponta Ricoeur) e inferioridade, de um e de outro na relação
interpessoal, se alternam e

O que o padecimento do outro, tanto quanto a injunção moral oriunda do


outro, revela no si são sentimentos espontaneamente dirigidos para outrem.
É essa união íntima entre a visada ética da solicitude e o cerne afetivo dos
sentimentos que me pareceu justificar a escolha do termo ‘solicitude’200.
(RICOEUR, 2014, p. 211 e p. 212).

200
Aqui cabe apontar também, diferente do que ocorre com o sentimento de solicitude, que na
amizade o si e o outro compartilham igualmente do mesmo desejo de viver bem, a injunção vinda do

156
O que firma a solicitude no seu devido lugar no terreno da ética é a busca de
igualdade através da diferença, da diversidade, da heterogeneidade, não importando
o quanto isso advém da cultura ou de condições políticas próprias.
À estima a si mesmo, ou seja, ao momento reflexivo do desejo de vida boa, a
solicitude acrescenta o momento da carência de camaradagem, que nos faz ter
necessidade de amigos ou, como preferimos dizer, necessidade do outro próximo e
afim. Ricoeur utiliza a expressão contrachoque para se referir ao que a solicitude faz
sobre a estima a si. Nesse contrachoque da solicitude, “o si se apercebe como um
outro entre os outros” (RICOEUR, 2014, p. 212), na semelhança, pela carência de
amigos.
Em última análise, Ricoeur não apenas vincula o predicado bom às formas da
amizade e da solicitude com a segunda pessoa da ética, como também, em
decorrência disso, vai ao encontro do que entende ser a característica mais própria
da espécie humana: a bondade original (CHANGEUX e RICOEUR, 2007, p. 238).
Noeli Rossatto (2016, p. 196) observa que a solicitude acaba por expressar o
predicado bom de mais de um modo: (1) no interior da ética, quando dá a orientação
geral de que uma ação boa não pode se restringir apenas àquela praticada em
igualdade de condições, e quando habilita a ação praticada em favor de outrem que
vive em situação de debilidade; (2) em relação à justiça, quando a bondade e a
igualdade devem se apresentar como qualidades éticas que deverão cobrir toda a
extensão da ação, demarcando com isso as características da teleologia interna
dessa ação.
A reciprocidade garantida pela categoria da solicitude tem um caráter singular
transformando as pessoas, por meio do reconhecimento, em seres insubstituíveis.
Esse tipo de reciprocidade, que restitui a cada um, o que lhe pertence, em sua
singularidade e vivido, é a chave da solicitude. A solicitude restaura a igualdade no
lugar em que ela não é oferecida, ao contrário do que ocorre na amizade entre livres
e iguais.
Com tudo isso, devemos registrar o que é circunstancial no tocante à
pesquisa: compreender que a solicitude é, nas relações interpessoais, o que a

outro só é restabelecida pelo reconhecimento da superioridade da autoridade do outro por parte do si.
Na simpatia, por sua vez, que vai do si para outro, a igualdade só é restabelecida “pela confissão
compartilhada da fragilidade e, afinal, da mortalidade”. (RICOEUR, 2014, p. 212).

157
igualdade é para a vida das instituições. A igualdade preconizada pelas instituições,
contudo, deixa escapar o âmbito da segunda pessoa. Em consequência,
interpessoal e institucional são confundidos, perpetuando-se a deposição e o
aniquilamento do outrem. Ou seja, o padecimento do outro, ignorado pelo sujeito
moderno, cartesiano, ao qual Ricoeur se refere e questiona.
Tendo-se analisado cada uma das categorias, a do respeito e a da solicitude,
falta-nos alcançar o momento do juízo moral em situação, nessa dialética que, não
custa recordar, ocorre na circularidade entre teleologia e deontologia enquanto
mediação imperfeita, ou seja, “o próprio círculo (hermenêutico), aqui aplicado aos
distintos momentos da relação entre ética e moral”, abandonando-se, contudo, seu
caráter vicioso e compreendendo-o como “uma espiral dialética sem fim”.
(ROSSATTO, 2016, p. 202).
O momento do julgamento prudencial será mais bem compreendido se
assimilado aos casos-limite de vida começando e vida terminando mencionados em
O Justo 2, que denotam mais claramente a dissimetria dos agentes na relação
interpessoal e abarcam uma solução ao modo ricoeuriano, possibilitando a transição
da sabedoria trágica para a sabedoria prática. Segue nossa narração acerca desse
mote.

158
5 SEGUNDA PESSOA E CASOS-LIMITE: SOLICITUDE E RESPEITO EM
SITUAÇÃO

“Joga pedra na Geni.


Joga pedra na Geni.
Ela é feita pra apanhar.
Ela é boa de cuspir”.
Chico Buarque

Podemos afirmar, diante do crescente aumento da hostilidade na comunidade


planetária, que a tarefa ética que nosso filósofo considera mais fundamental – a
tarefa de reconhecimento da liberdade na segunda pessoa 201 –, não vem sendo
realizada. Ao que parece, a regra tem sido: o outro não é meu semelhante. E se há
alguma garantia de reconhecimento, continua sendo na amizade, na luta202 ou no
desprezo sem-fim.
Não bastasse, na medida em que esse menosprezo contra o outro é revelado,
se revela também uma impotência incomum, deixando a impressão de que os
discursos ético-filosóficos de que dispomos não dão conta disso, e as lacunas e os
danos quanto ao outro vivido continuam a se intensificar. Aumenta a violência,
mantêm-se a dissimetria, aumenta nossa impotência e o preconceito. Os conflitos se
acentuam e a displicência diante da desigualdade e da injustiça que permeiam as
relações interpessoais contemporâneas, toma conta de muitas culturas e ideais.
Insiste-se em permanecer alhures, “escapar” do viver com, da presença da segunda
pessoa, do olhar tão diferente do totalmente outro.
Arriscamos dizer que estamos diante da retomada do paradigma de recusa do
outro, sobretudo, se envolver esse outro das chamadas “minorias” contemporâneas,

201
Só para ilustrar, Ricoeur também defende a recuperação da ideia de reconhecimento do outro “na
economia do dom, exemplificada pelos gestos de presentear alguém, pela polidez nas relações
humanas e pelos ritos festivos. São esses alguns dos modos não violentos de reconhecimento do
outro”. (ROSSATTO, 2010. p. 30).
202
“A releitura crítica do tópico hegeliano, por Honneth, aponta um primeiro argumento relativo à ideia
de luta no plano afetivo: a noção hegeliana de luta pelo reconhecimento nada mais é que o
sentimento de abandono, de estresse e de infelicidade, vividos na própria infância, antes da entrada
no Complexo de Édipo. [...] ao ser confirmada e aceita, desenvolve seu lado positivo de confiança na
vida; ao ser reprovada, adquire a capacidade de estar só. [...] O segundo argumento toma a luta
como resultado da disjunção entre o plano jurídico e o social. [...] produto de uma estranha equação
gerada no bojo da sociedade industrial em que a produção de riqueza é diretamente proporcional ao
aumento da desigualdade social”. (ROSSATTO, 2008, p. 31). Para Ricoeur, o reconhecimento do
outro por meio da luta, portanto, resulta na formação de uma infeliz consciência de si.

159
que perduram na condição de desigualdade, lutando pelo espaço concedido à
primeira ou à terceira pessoas.
A pergunta que voltamos a fazer é quase sempre nesse sentido: como
assegurar, além da convivência pacífica, a reciprocidade nas relações interpessoais,
se o poder-fazer se mantém sendo prerrogativa do sujeito individual [homem
heterossexual, com maior poder sócio-econômico] ou concentrado na esfera do
instituído sem rosto, que toma esse poder para si, muitas vezes de forma arbitrária?
Em resposta, nos debruçamos, primeiramente, sobre uma consideração que
julgamos fundamental, muito bem expressadas aqui:

[...] o eu e o tu não estão submetidos um ao outro. Mas ainda, é uma


relação de reciprocidade, na qual o eu vai-se tomando eu ao encontro com
o tu e vice-versa. Exclui toda dominação, algo próprio da relação homem-
mundo-material. Na humanização da pessoa, a relação interpessoal deve
merecer prioridade total, em confronto com a relação ser humano-realidade-
material. A verdade do ser humano não está, pois, constituída pelo sujeito
autárquico e isolado da modernidade, mas pelo encontro pessoa-pessoa.
(RUBIO, 1989, p. 373).

Em consonância com essa ideia de “verdade do ser humano” dada pelo


“encontro pessoa-pessoa”, numa relação de reciprocidade e alteridade, a segunda
pessoa [o enfermo, o idoso, a criança, a mulher, o negro] não pode continuar sendo
rechaçada como é.
Na relação do face a face, tem-se desprezado o fato de que a segunda
pessoa é existência, é humana, é singular e insubstituível; e que a historicidade
inerente à vida é incompatível com processos acabados e respostas finais.
Relegamos o outro à desleal condição de coisa, de mecanismo e porque não dizer,
de algo bem próximo a uma mercadoria fabricada em série.
Despontam aqui outras problemáticas já mencionadas no transcorrer da
pesquisa como (1) o universalismo do dever, que considera que uma mesma moral
se aplica a todo e qualquer sujeito e (2) as filosofias do sujeito, que pressupõem um
sujeito completo antes mesmo de ingressar na sociedade e que, no tocante
justamente ao dever universal, espera do Estado203 “a última palavra”, isto é, a

203
O Estado, como instituição que é, pode ser enquadrado como terceira pessoa em Ricoeur,
lembrando que para ele, a terceira pessoa é “um termo neutro, [...] entre duas liberdades”. [...]
portadora “de uma liberdade”. (RICOEUR, 2011, p. 133). “Com relação à aplicação da justiç a, Ricoeur
(1991a) assinala que não pretende acrescentar uma terceira instância à ética e à moral ‘A Sittlichkeit’,
ou vida ética hegeliana, tem a vantagem de analisar a efetuação concreta das ações que podem ser
consideradas sensatas por meio de uma ‘meditação sobre o lugar inevitável do conflito na vida moral’.

160
proteção de direitos e liberdades constituídos fora dele. E não estamos nos referindo
propriamente a um conflito na seara judicial. O sujeito universal fica a esperar, além
da justiça, a proteção da instituição inclusive no que toca ao dever, às regras de
conduta moral [códigos de ética, regimentos, regulamentos], como a escusar-se do
cumprimento das exigências, das atribuições e premissas necessárias ao
aperfeiçoamento das relações em comunidade.
A justiça por seu turno, assim como o instituído, permanece estabelecendo
uma relação de distanciamento entre os sujeitos da relação interpessoal. Quanto a
isso, Ricoeur mesmo afirma:

A virtude da justiça se estabelece com base numa relação de distância com


o outro, tão originária quanto a relação de proximidade com outrem,
ofertado em seu rosto e em sua voz. Essa relação com o outro é, ouso
dizer, imediatamente mediada pela instituição. 204 O outro, segundo a
amizade, é o tu; o outro, segundo a justiça, é o cada um, conforme indica o
adágio latino: suum cuique tribuere, a cada um o que é seu. (RICOEUR,
2008a, p. 08).

Edgar Piva (1999, p. 206) analisa a questão dessa mediação, começando


justamente pela questão do sujeito de direito. Se não temos consciência de que não
somos somente sujeitos de direito, porém, mais do que isso e ao mesmo tempo,
sujeitos por si mesmos, sujeitos políticos, sujeitos dotados de capacidade e
liberdade, não poderemos sustentar e defender uma política dos direitos ligados ao
humano. Não poderemos sustentar nossa condição enquanto membros de uma
comunidade política, concebida como fonte de direitos positivos que precedem o
Estado. Eis o que estamos a ignorar: que um sujeito se torna um sujeito real de
direitos na medida em que passa também pela mediação interpessoal, e não
somente pela institucional.

(RICOEUR, 1991, p. 290). Contudo, o autor salienta que o recurso a uma instância declarada
superior à moralidade, capaz de pensar a si mesma – o Estado – não contribui para sua investigação
que, neste ponto, está centrada na singularidade inerente à perspectiva da vida boa. Por conseguinte,
a sabedoria prática, que é o momento da convicção, “permanece a única saída disponível” .
(GUBERT, 2014, p. 89).
204
“Esta mediação institucional do sujeito já aparecera, em Ricoeur, nos três planos antropológicos
da linguagem, da ação e da narração. A linguagem, e dentro dela, o ‘ato de fala’ da promessa, é o
paradigma da passagem pela instituição. A situação de interlocução pela qual um eu e um tu são
capazes de autodesignarem-se como sujeitos falantes, só é completa quando referida à instituição
mesma da linguagem, à suas regras, na qual se enquadra a relação interpessoal do diálogo. As
regras comuns da língua englobam todos os locutores de uma mesma língua natural que não se
conhecem, mas que estão ligados pelo reconhecimento de regras comuns, pela confiança mútua
entre os membros da comunidade linguística”. (PIVA, 1999, p. 233).

161
Disso advém o grande perigo: a redução do sujeito político às ideologias
totalitárias ou tecnocráticas que querem determinar, de forma científica, o bem
político, eliminando a subjetividade, o julgamento político dos cidadãos. A
subjetividade assume então uma forma patológica: cultuando personalidades, mitos,
demagogos, etc. (PIVA, 1999, p. 207).
O sujeito não se [re]apropria de sua identidade, senão pelo desvio dos sinais,
das obras e dos monumentos saídos de sua atividade. Pela condição e pelo estatuto
da reflexividade, abordada em O Si-mesmo como outro, o sujeito deve passar por
uma série de “desvios” para que seja possível desenvolver progressivamente a
identidade do si, por intermédio das experiências linguística, prática, narrativa e
ética. Nesse sentido, deve-se assinalar o papel mediador da segunda pessoa205, a
espécie de apoio indispensável do outro para passar do por todos esses desvios, e
do momento do poder-fazer ao do fazer, para que inclusive por ladeira abaixo todo o
propósito individualista206. Ou não é verdade que eu solipsista se põe ou é deposto,
é exaltado ou humilhado, enquanto “o si está implicado reflexivamente nas
operações cuja análise precede o retorno a si mesmo?”. (RICOEUR apud PIVA,
1999, p. 209). Já vimos isso no quarto capítulo, o eu (“eu penso”, “eu sou”, “eu
existo”) exprime a posição imediata, absoluta do sujeito, sem confrontação com o
outro. O si, na condição de pronome reflexivo de todas as pessoas gramaticais,
exprime o primado da mediação reflexiva, da posição indireta do sujeito e assim, se
designa reflexivamente a outra pessoa.

205
“Mas então perguntamos de que forma se dá essa mediação do outro? Ricoeur recorre novamente
a Aristóteles, por três razões fundamentais: em primeiro lugar porque na ética aristotélica é através
da amizade que se faz a passagem da ‘estima de si’, que é uma virtude solitária, para a justiça, que é
uma virtude política; em segundo lugar, pelo fato da amizade, sendo ela própria uma virtude, (aretê),
dizer respeito antes de mais à ética, e não a uma psicologia de sentimentos de afeição ou dedicação
para com os outros; em terceiro lugar porque a philautia, isto é o amor de si mesmo, apesar das
suspeitas que tendem a identifica-lo com o egoísmo, é a via de acesso à ideia que todo o homem feliz
precisa de ter amigos”. (ALEIXO, 2008, p. 15).
206
Quanto ao direito e à lei natural, nosso autor diz: “Quando se protestou contra a escravidão em
nome da lei natural, tentou-se reencontrar no jogo espontâneo da ética a fonte de uma valorização
mais fundamental que a vontade desse grande indivíduo que é o Estado. Nesse sentido, a ideia de lei
natural é um conceito muito valioso. [...] Por outro lado, tenho muitas reservas quando aquilo que se
quer é enraizar o conceito de lei natural numa natureza biológica ou afetiva, em constantes biológicas
que não me parecem poder ser encontradas. Definitivamente, não sabemos o que seria um homem
que se encontrasse fora das instituições. Qualquer recurso a um estádio pré-institucional não pode
ser senão enganador [un trompe l’oeil]. Haverá algo que seja institucional e natural ao mesmo tempo?
O conceito de lei natural parece ser afetado por uma espécie de degradação assim que esse
conceito-limite passa da sua função de protesto e de recurso a uma função de refúgio. O conceito-
limite torna-se então um conceito por trás do qual nos escondemos [un concept-ecran derrière lequel
on se cache] para escapar aos imprevistos e aos riscos da génese de sentido que procede da
autoposição da liberdade, do reconhecimento de outrem e da mediação pela instituição” . (RICOEUR,
2011, p. 141).

162
Já afirmamos que a estratégia de Ricoeur para dar conta dessa problemática
é, então, a aproximação entre (1) a perspectiva aristotélica, a partir da noção de
solicitude e (2) a norma moral kantiana, a partir da categoria do respeito – ou seja, a
complementaridade ou articulação entre essas duas elevadas tradições da ética que
culmina numa ética enriquecida pela passagem através da norma e investida no
julgamento moral em situação207.
Ainda que para muitos pesquisadores contemporâneos teleologia aristotélica
e deontologia kantiana não estejam implicadas uma na outra, provamos com
Ricoeur, que isso se sustenta. Além disso, a partir da noção de virtude em
Aristóteles, tomada por ele como correspondente à mediania, ou seja, como um
padrão de medida, um meio-termo comum aplicável a todos os casos, notamos um
início de universalidade e obrigação, critérios esses reivindicados pela deontologia
de Kant.
Como já vimos, também o tema da capacidade, na esteira de Aristóteles,
aponta para um universalismo implícito na perspectiva teleológica. Todos nós e cada
um de nós, por objeto à estima a si, somos capazes de iniciativa, de ação, de
escolha por razões, de avaliação e valoração dos fins da ação e, desse modo,
estamos conferindo um sentido universal a essa(s) capacidade(s) “como aquilo em
virtude de que as consideramos estimáveis, e a nós mesmos, por acréscimo”.
(RICOEUR, 2014, p. 229).
Pelo lado de Kant, nosso filósofo percebe um vínculo entre a obrigação moral
e a visada da vida boa. Tal elo se dá pela via do conceito kantiano de boa vontade.
Ricoeur é taxativo: bom moralmente significa bom sem restrição, logo, a vontade da
moral kantiana está para o desejo racional na ética aristotélica. “[...] o desejo é
reconhecido por sua visada; a vontade, por sua relação com a lei; ela é o lugar da
pergunta: ‘Que devo fazer?’”. (RICOEUR, 2014, p. 231). Em outras palavras, o
predicado bom marca a continuidade do caráter teleológico e a ressalva sem
restrição anuncia a exclusão de tudo o que possa privar o uso do predicado bom de
sua marca moral. A boa vontade legisladora, destarte, comporta o predicado bom.

207
Ricoeur afirma que somente após um curso em Lovaina (1972), “que a análise da questão moral é
explicitamente relacionada com a preocupação com o campo da prática em toda a sua dimensão. [...]
foi em 1974 que surgiu pela primeira vez o tema do ‘lugar da noção de lei na ética’. Nessa ocasião, foi
assinalado que a obrigação moral não reside num plano tão essencial quanto o desejo de realização
pessoal, tendo-se também fortemente sublinhado o chamamento do outro, embora sem a
complexidade de argumentos que caracterizará mais tarde a ‘pequena ética’ de Soimême comme um
autre”. (RICOEUR, 1995b, p. 102).

163
Noeli Rossatto (2016, p. 198), corrobora essa reflexão acerca do elo entre a
noção de vontade boa, porta de acesso à deontologia de Kant – e a noção de ação
realizada por dever, afirmando que em Ricoeur a noção chave da moral kantiana
reassume implicitamente a mesma “impressão teleológica” contida nas diferentes
manifestações éticas do predicado bom. Tanto é que já na Primeira Secção da
Fundamentação da metafísica dos costumes o predicado bom se manifesta por meio
da conhecida sentença: “Neste mundo, e até também fora dele, nada é possível
pensar que possa ser considerado como bom sem limitação a não ser uma só coisa:
uma boa vontade”. (KANT, 2007, p. 21). Significa perceber também, que o predicado
bom tem um caráter teleológico porque, mesmo que seja boa em absoluto e por si
mesma, a boa vontade kantiana possui uma finalidade.
Concomitante, para Ricoeur, com uma boa vontade “[...] o bom sem restrição
reveste a forma de dever, de imperativo, de coerção moral”. (RICOEUR, 2014, p.
232). A melhor atitude, e em consonância com Kant, se caracteriza por conduzir a
vontade de um ser racional finito a coincidir com a razão prática. Por meio da
coerção e do dever a vontade finita é submetida a um processo de purificação
[“separar a impureza empírica da inclinação”], para que no fim persista apenas uma
vontade irrestritamente boa que “[...] será igualada à vontade autolegisladora,
segundo o princípio supremo da autonomia”. (RICOEUR, 2014, p. 232).
A partir daí, a ideia de autolegislação é decisiva quando se trata da oposição
entre uma moral da obrigação e uma ética fundada sobre a perspectiva da vida boa,
porque a vontade, enquanto autônoma, está determinada unicamente pela razão.
Em Kant, uma vontade livre e uma vontade submetida à lei moral coincidem
(SILVEIRA, 2013, p. 78). Essa autonomia é originada pela liberdade: “Já não se trata
apenas de vontade, mas de liberdade” (RICOEUR, 2014, p. 235) e, por fim:

quando a autonomia substitui a obediência ao outro pela obediência a si


mesmo, a obediência perdeu todo e qualquer caráter de dependência e de
submissão. A obediência verdadeira, seria possível dizer, é a autonomia.
(RICOEUR, 2014, p. 236).

Nesse contexto, trata-se de uma autonomia que se autolimita208, diferente da


autonomia kantiana, que nos leva para onde Ricoeur não quer retornar, ou seja,

208
Ricoeur teve que “[...] desobstruir a noção kantiana de autonomia, que é a sede do respeito de si,
equiparando–a com a estima de si aristotélica. E mais: terá de fazer com que os princípios da justiça,
propostos em coerência com a deontologia kantiana, estejam doravante ancorados no senso de
justiça, tal como prevê a teleologia aristotélica”. (ROSSATTO, 2016, p. 202).

164
para a zona egológica cartesiana, oposta ao terreno da filosofia da pessoa que, por
sua vez, renega esse ideal moderno que se choca constantemente com a
reciprocidade moral. Cabe asseverar, por conseguinte, que não se trata de uma
teoria baseada apenas no si, mas de uma “universalidade de querer, apanhada
nesse momento abstrato onde ela não é ainda distribuída entre a pluralidade das
pessoas”. (RICOEUR, 1991, p. 247 apud GUBERT, 2014, p. 85).
Desponta de imediato o problema da segunda pessoa e, como já pudemos
delinear nos tópicos anteriores, o problema de deslocar a relação com e para o outro
ora para esfera da primeira pessoa, ora para a da terceira, sempre dominando o
lugar da segunda. Disso implica que o poder-fazer ou a capacidade de agir da
primeira pessoa está garantida tanto quanto o poder-em-comum ou capacidade que
os membros de uma comunidade histórica têm, “de exercer de modo indivisível seu
querer-viver-junto”. (RICOEUR, 2014, p. 248).
Como enfim, garantir o poder-fazer da segunda pessoa?
Podemos começar a responder com uma reflexão especialmente rica sobre a
alteridade desse outro que padece em Da metafísica à moral, onde Ricoeur declara
que:

[...] a ideia de alteridade tem sido enriquecida por vários matizes: existia
com certeza, o outro como possuidor de seu corpo, mas existia também o
outro como um outro (autrui) – o outro que figura como interlocutor no plano
do discurso e como protagonista ou antagonista no plano da interação e,
finalmente, como portador de uma outra história que não a minha dentro do
entrelaçar das narrativas de vida. (RICOEUR, 1995b, p. 129).

Um vivido, uma narrativa, uma liberdade, uma ação que não é a minha, mas é
perpassada por todas as outras narrativas e existências, e também pela minha
narrativa e existência, duplamente corpo e “foro íntimo” 209, ou o outro corpo do outro
lado, tanto na luta, quanto no diálogo. Vem à tona, com isso, a necessidade de
enunciação da regra da reciprocidade, destacada sobre o fundo da dissimetria
original entre agente/atuante e padecente/paciente; o outro com quem eu coopero
ou com quem eu luto.

209
É curioso ver como Ricoeur justifica essa expressão: “O caso do foro interior é seguramente o
mais difícil, tanto que se confina à problemática moral. É, no entanto, fazer apenas prova de um
purismo excessivo, tentando isolar os traços pré-éticos do foro interior, enquanto fórum do colóquio
de si consigo mesmo (é a razão porque preferi o termo de foro interior ao de consciência moral, para
traduzir o alemão Gewissen e inglês conscience). É necessário, creio, guardar da metáfora da voz a
ideia de uma passividade sem par, simultaneamente interior e superior a mim. [...] o foro interior é
apenas a certidão pela qual o si se afeta ele mesmo”. (RICOEUR, 1995b, p. 34 e p. 35).

165
Nessa dissimetria inicial, entre um poder-fazer e um não poder-fazer, é
possível que decorra o que Ricoeur chama de forma ambígua do poder ou a
violência mesmo: o poder-sobre210 ou um poder que se impõe e destrói o poder-
fazer do outro. Esse poder-sobre é o que oblitera a segunda pessoa e vai desde a
forma suave da influência até a extrema forma de abuso da tortura. É nesse sentido
que a diminuição ou destruição do poder-fazer de outrem se transmuta em dano e
violência e são ambos o que faz persistir o quadro de humilhação ou obliteração da
segunda pessoa, levando-nos a crer, equivocadamente, que ela é sempre o inimigo,
o estranho, o miserável, o desprezível, o bizarro, o erro, o pecado ou o mal.
Kant, na Metafísica dos costumes, faz recordar Ricoeur, pois já esboçara uma
configuração do dano com base na distinção entre meu e teu, advinda da ocupação
do largo espaço concedido ao direito de propriedade que, uma vez transgredido
provoca, no mais das vezes, punição desmedida211. Tal distinção veio favorecendo e
sustentando até os dias atuais o poder-sobre, a dissimetria entre o ego e o outro.
Não tem sido assim mesmo? Quem tem mais pode mais sobre [as pessoas, além
das coisas]?
Lamentavelmente, sim. Ricoeur nos põe a recordar das incansáveis e
desmedidas formas de dano, de poder-sobre, impingidas a segunda pessoa,
afirmando: “Que dizer ainda da persistência teimosa das formas de violência sexual,
desde o assédio das mulheres até o estupro, passando pelo calvário das mulheres
surradas e das crianças maltratadas?”. (RICOEUR, 2014, p. 250).
Na contramão desse percurso sinistro do dano e da brutalidade em suas mais
variadas formas, encontramos a enumeração de regras prescritivas e proibitivas:
não matarás, não torturarás, não roubarás, não mentirás, todas oriundas da regra
áurea, numa deontologia que replica à violência212: “a todas as figuras do mal
responde o não da moral”. (RICOEUR, 2014, p. 250). Por detrás da ideia de
proibição da lei moral, revela-se, contudo, o positivo da solicitude ética, esta última

210
“A ocasião da violência, para não dizer a guinada para a violência, reside no poder exercido sobre
uma vontade por outra vontade”. (RICOEUR, 2014, p. 248).
211
Ricoeur assevera que “essa insistência pode ser específica de uma época em que o direito à
propriedade ocupa um espaço excessivo no aparato jurídico”. (RICOEUR, 2014, p. 250).
212
“Ainda quanto à passagem da ética para a moral, com os seus imperativos e as suas proibições,
isto parecia-me ser reclamado pela própria ética, o desejo de uma vida boa se confronta com a
violência sob todas as suas formas. À ameaça da violência responde a proibição: “Não matarás”,
“Não mentirás””. (RICOEUR, 1995b, p. 133).

166
em toda sua condição afirmativa, no sentido de que é ela que põe em jogo nossa
recusa à indignidade infligida a segunda pessoa, nossa indignação compassiva.
Precisamos mencionar novamente, como já firmado nos capítulos anteriores,
que a dialética da petit éthique, na passagem da norma à solicitude e da solicitude à
norma está estreitamente associada à dissimetria inicial, à condição primeira na
qual, de saída, eu não sou a segunda pessoa. (RICOEUR, 2014, p. 248).
Somos diferentes na similitude, já dissera Ricoeur e nossa relação deve
então, ser pautada pela solicitude e pelo respeito. O vínculo da solicitude com a
moralidade pela via da categoria do respeito kantiano é obtido a partir da admissão
da similaridade entre a Regra de Ouro e a segunda formulação do imperativo
categórico. Já vimos isso, mas agora o faremos sob uma ótica um pouco diferente,
com alguns novos retoques.
A Regra de Ouro não se constitui meramente por uma interdição oriunda de
uma lei, mas ela também é responsável – como a solicitude – por estabelecer uma
relação de reciprocidade entre o si e o outro. O imperativo de Kant, por seu turno,
em Ricoeur, é a formalização da regra áurea. Sempre e acima de tudo, o que se tem
vista é a diminuição da possível assimetria e o encurtamento da distância original
que separa atuante e padecente.
Na via da Regra de Ouro [na seara da bondade], na forma do imperativo
kantiano [na seara da moralidade], está-se diminuindo ou mesmo eliminando a
desigualdade causadora da injustiça e da tirania. Sendo mais precisos: quando se
recomenda “Ama a teu próximo como a ti mesmo”, se encurta a dissimetria entre a
primeira e a segunda pessoas. “Teu próximo” é dito na segunda pessoa e, com isso,
o eu atuante assume a mesma posição [e porque não dizer a mesma condição de
ser] do outro que sofre a ação. Já não somos, eu e o outro, tão distantes ou tão
diferentes. Aqui desponta nossa semelhança, nossa igualdade, nossa paridade. E
parece-nos que uma voz, oriunda do foro íntimo sussurra com bondade e liberdade
[sem coerção]: Ama o outro! Age em solicitude com e para o outro! Tenha-lhe em
compaixão! Tenha-lhe como semelhante!
Quando sustentamos: “Age de tal forma que uses a humanidade, tanto na tua
pessoa, como na pessoa de qualquer outro, sempre e ao mesmo tempo como fim e
nunca simplesmente como meio”, exaltamos e preservamos a noção de pessoa
como fim em si, levando-nos a considerá-la gente, ser humano e não, coisa. Além
disso, Ricoeur é taxativo ao considerar que tal formulação devolve a boa alteridade

167
implícita na noção de humanidade, repartida entre a alteridade de qualquer um [na
pessoa de qualquer outro] e a alteridade de outrem [na tua pessoa]. Agora a voz de
foro íntimo ordena: Respeita o outro como a ti mesmo! Não o tomes como meio! Age
de maneira a sempre respeitar o outro como pessoa, em sua singularidade e
humanidade!
O respeito213, como sentimento incomparável a qualquer outro, carregado de
racionalidade, ao modo de Kant, tem como causa o reconhecimento, por parte da
pessoa, de algo que a transcende e subordina sua vontade. Diante disso, torna-se
legítimo interpretar tal sentimento como variante da estima a si – que se abre à
solicitude – sendo este o ponto em que a ética passa pelo crivo da coerção da
norma, aceitando o regime da lei (RICOEUR, 1991; 1995).
É desse modo que regra áurea e imperativo, solicitude e respeito na estrutura
dialógica da ética ricoeuriana, leva à reabilitação do poder-fazer da segunda pessoa
da ética. Corroborando-se tudo o mais que já dissemos, lembremos também que a
afirmação de que a própria estima a si, passo fundamental do primeiro momento do
ternário ético ricoeuriano, contém em sua base a dimensão do outro, e,
consequentemente, da solicitude.
Isso é significativo na medida em que ao estimar a mim mesmo, num
processo de reflexão sobre minha própria identidade [em afirmação à ipseidade] me
percebo e me compreendo como outrem também e mais uma vez. Ao me perceber
como outrem passo a estimar ao outro como um si semelhante a mim. Por isso
estima a si e solicitude devem sempre manter-se em coexistência originária. Outra
consequência disso é que a autonomia, isto é, o correlato moral da estima a si, leva
ao respeito a si e ao respeito pelo outro.
Ao término de O Si-mesmo como outro, nosso filósofo confirma mais uma vez
que é no plano ético que a afetação do si pelo outro assume os traços específicos
que dizem respeito tanto ao plano propriamente ético quanto ao plano moral
marcado pela obrigação. A petit éthique não é concebível sem que o projeto de bem

213
A par do respeito, Noeli Rossatto (2018, p. 134) faz a pergunta: “Ricoeur simplesmente transfere a
ética do respeito kantiano [tomada no artigo de 1954] para seu projeto de ética?” Respondemos que
nosso autor continua com Kant inclusive até os anos 2000, quando na obra O Justo, como vimos,
inverte o esquema da petit éthique, partindo da deontologia. Cremos válido também afirmar que o
respeito implica no sujeito se encontrar imediatamente situado no âmbito das pessoas, cuja
reciprocidade, em qualquer caso, está rigorosamente fundada sobre a irredutibilidade aos meios
(RICOEUR, 2009, p. 348).

168
viver seja afetado pela solicitude, a solicitude do atuante (solicitude exercida) e a
solicitude do padecente (recebida), na dialética entre ação e afetação.
Pelo signo da regra áurea na forma do imperativo, na dialética entre teleologia
e deontologia, passa-se da ética à obrigação, fazendo o mandamento do respeito
devido ao outro intervir na exata junção da relação assimétrica entre o poder-fazer e
o padecer (o bem que gostarias te fosse feito, o mal que odiarias que te fizessem),
diz Ricoeur (2014, p. 390).
Nosso filósofo avalia também que não é possível estabelecer vínculos entre o
si e o outro, se não for “determinado o que, na minha pessoa e na do outro, é digno
de respeito”. (RICOEUR, 2014, p. 253).
A dialética da solicitude e do respeito pode, portanto, ser ilustrada dessa
maneira: na relação de dissimetria entre a primeira e a segunda pessoas, a
solicitude baliza o querer viver junto, o querer viver com esse outro estranho com a
finalidade de viver a vida boa com e para o outro em instituições justas. A primeira
pessoa tem compaixão pelo outro. Cultiva sentimentos positivos em relação a
segunda pessoa. Toma-lhe imediatamente como semelhante a si-mesma. Essa
semelhança em Ricoeur,

não é apenas o apanágio da amizade, mas, do como foi dito, de todas as


formas inicialmente desiguais do elo entre o si-mesmo e o outro. A
semelhança é fruto do intercâmbio entre estima a si e solicitude para com
outrem. Esse intercâmbio autoriza a dizer que não posso estimar-me sem
estimar a outrem como a mim mesmo. (RICOEUR, 2014, p. 213 e p. 214,
grifo nosso).

Ora, na relação de dissimetria, além da finalidade ética assegurada pela


categoria da solicitude, possuímos o dever, por respeito, de preservar a
reciprocidade e de afirmar: “tu também és capaz de começar alguma coisa no
mundo, de agir por razões, de hierarquizar tuas preferências, de avaliar os objetivos
de tua ação e, ao fazeres isso, és capaz de estimar-te a ti mesmo assim como eu
mesmo me estimo". (RICOEUR, 2014, p. 214). O bom é o critério por trás da
solicitude. A obrigação é o critério por trás do respeito. A igualdade entre desiguais é
sustentada na solicitude. O imperativo da pessoa como fim é sustentado no respeito.
E ambos, o bom e o legal, devem ser assegurados, assegurando-se o poder-fazer
das três liberdades da ética.

169
Percebamos que ao reconhecer essa semelhança, semelhança na
pluralidade, entre um agente e outro, tanto na solicitude quanto no respeito,
passamos a compartilhar o desejo de vida boa com e para o outro em instituições
justas, o desejo de igualdade no mandamento de igualdade. Solicitude e respeito
andam assim de mãos dadas a garantir a rede de proteção de que tanto necessita a
segunda pessoa da ética. Age por bem e/ou age por dever em relação ao teu
próximo, ama e/ou respeita a outrem! É assim que “a solicitude é o próprio respeito
devido ao outro na sua matéria afetiva; e o respeito será a solicitude em sua forma
prática e ética”. (ROSSATTO, 2018, p. 130).
Foi interessante retocar a complementaridade entre solicitude e respeito e
ratificar como, nessa relação dialógica, se devolve dignidade, lugar, história,
existência singular a segunda pessoa da ética.
A partir dessa concepção é possível conceber o outro não mais sob a
perspectiva da relação de exclusão e luta, mas no reconhecimento214 e na abertura,
na mutualidade e na reciprocidade215 completas, o que tanto a autonomia moderna
da primeira pessoa, quanto a igualdade institucional da terceira, deixam para trás.
É bastante pertinente ainda anotar, no tocante à solicitude, de acordo com o
que Ricoeur disserta, o que ela soma aos conceitos de reversibilidade e
insubstituibilidade. Os papéis que exercemos na comunidade podem ser
revertidos/trocados – os pronomes podem ser alocados, faço referência á segunda
pessoa como tu, mas ela se compreende primeira pessoa –, as pessoas, por sua
vez, jamais! Ricoeur explica que:

Quanto à reversibilidade, temos um primeiro modelo na linguagem sob a


roupagem da interlocução. Nesse sentido, a troca dos pronomes pessoais é
exemplar, quando digo ‘tu’ a outro, ele compreende ‘eu’ para si mesmo.
Quando ele se dirige a mim na segunda pessoa, sinto-me referido na
primeira pessoa; a reversibilidade incide simultaneamente sobre os papéis
de alocutor e alocutário, bem como sobre a uma capacidade de se

214
Recordamos, neste momento, de uma passagem de Luiz Repa em seu artigo Reconhecimento da
diferença na teoria crítica, afinada com a proposta de Ricoeur. Luiz observa que a teoria de Honnet
sobre o reconhecimento se dá a partir de Hegel, fazendo frente às reservas de Adorno. Diz o autor:
“[...] sua teoria do reconhecimento [teoria de Honnet] seria capaz de dar conta de um processo de
formação da identidade pessoal que depende do reconhecimento do outro como outro, e, ao mesmo
tempo, de si mesmo com outro, de tal maneira que o momento da identidade não significaria algo
como uma anexação da diferença”. (REPA, 2010, p. 19). Aliás, Honnet vê o reconhecimento como
um remédio para as assimetrias sociais.
215
È necessário observar que em O Si-mesmo como outro, estes conceitos são tratados como
sinônimos por Ricoeur, diferente do que fizera posteriormente, em Percurso do Reconhecimento.
Contudo, ainda que deixem de ser homônimos, estabelecerão as bases justamente para a questão
do reconhecimento efetivo do outro enquanto outro.

170
autodesignar que é supostamente igual no destinatário do discurso e em
seu destinador. Mas apenas os papéis são reversíveis. Apenas a ideia de
insubstituibilidade leva em conta as pessoas que desempenham esses
papéis. Em certo sentido, a insubstituibilidade também é pressuposta na
prática do discurso, mas de modo diferente do da interlocução, a saber, em
relação à ancoragem do ‘eu’ em uso. Essa ancoragem faz que eu não saia
do lugar e não suprima a distinção entre aqui e acolá, enquanto em
imaginação e simpatia me ponho no lugar do outro. O que a linguagem
ensina, precisamente em sendo prática, é verificado por todas as práticas.
Os agentes e os pacientes de uma ação são tomados em relações de troca
que, tal como a linguagem, conjugam reversibilidade dos papéis e
irreversibilidade das pessoas. O que a solicitude acrescenta é a
dimensão de valor que faz cada pessoa ser insubstituível. (RICOEUR,
2014, p. 213, grifo nosso).

Essa insubstituibilidade que não permite se troque uma pessoa por outra não
estaria relacionada ao imperativo do respeito, mais especialmente à ideia da
“pessoa como fim em si mesma”? Ricoeur (2014, p. 255 e p. 256) nos indica um
início de resposta afirmativa quando alega que: “[...] sempre soubemos a diferença
entre pessoa e coisa: a segunda pode ser obtida, permutada, usada; a maneira de
existir da pessoa consiste precisamente no fato de que ela não pode ser obtida,
utilizada, permutada”. Com o que nós podemos concluir: ...tampouco, por isso
mesmo, pode ser substituída.
O caráter de insubstituibilidade é o que mais reforça, no nosso entender, a
singularidade, a particularidade, os traços exclusivos de cada um de nós, únicos e
somente de cada um nós. A esse respeito, Ricoeur também observa que “é na
experiência do caráter irreparável da perda do outro amado que, por transferência
de outrem para nós mesmos, ficamos sabendo do caráter insubstituível de nossa
própria vida”. (RICOEUR, 2014, p. 213). Ou seja, é curioso, e um traço da alteridade
que nos acompanha, que somos insubstituíveis primeiramente na esfera do outro,
para o outro. Desse modo, é que a solicitude responde espontaneamente à estima
do outro por mim e à minha estima para com o outro. Se assim não fosse, a
solicitude, questiona Ricoeur, em seguida, poderia ser reduzida a um “monótono
dever” (RICOEUR, 2014, p. 213), o que ela não é.
Podemos dar cabo às reflexões sobre a proposta ricoeuriana da articulação e
complementaridade entre a teleologia aristotélica, por meio da categoria da
solicitude, e a deontologia kantiana, por meio da categoria do respeito, no trato da
segundo pessoa da ética, com a seguinte citação, que abraça nosso entendimento e
assegura que:

171
O homem do ágape (que é o homem do primeiro gesto, o do dom, isto é, do
gesto de dar generosamente, sem nada esperar em troca) e o homem da
justiça (que é o do segundo gesto, o do contra-dom, isto é, o do gesto de
retribuição que repõe o equilíbrio), estejam ‘prontos a fazer concessões e a
negociar um compromisso aceitável entre a generosidade pura que se
exclui do mundo e a segurança fundada apenas na regra de equivalência.
(SALDANHA, 2009, p. 170).

Em entrevista a Yves Pélicier, no ano de 1994216, Ricoeur afirma que a ética


convida constantemente a tomar partido, a assumir responsabilidade, alimentada
repetidamente pelos conflitos. Assim é que com o projeto da pequena ética de
Ricoeur, os casos ou situações de conflitos práticos, que caracterizam o trágico da
vida217, terão de ser resolvidos mediante o julgamento moral em situação, no uso da
phrónesis, como vimos lá no início da pesquisa. Esses casos218 exprimem genuínas
aporias e se caracterizam pela impossibilidade de aplicar-lhes um enunciado, uma
lei, um ditame, com retidão.
A propósito do trágico, Ricoeur deseja que desperte, como um choque em
cada agente, a desconfiança “não só em relação às ilusões do coração, como
também às ilusões nascidas da hýbris da razão prática”. (RICOEUR, 2014, p. 277).
A esse despertar alia-se a pedagogia da tragédia, a não-filosofia que ensina, no que
o sujeito amplia a dimensão do si, vivenciando variações imaginativas do ego na
refiguração da experiência. Pela narrativa fictícia e espetacular da tragédia, o ser no
mundo se reorganiza e se conhece, lendo, interpretando o vivido e a si mesmo.
O aprendizado advindo do fundo agonístico, aduz Ricoeur, suscitado pela
tragédia e, igualmente, por casos cujo caráter é sempre irretratável e insolúvel,

216
Entretien avec Yves Pelicier. Paris, Document: archives du Fonds Ricoeur, 1994. Com tradução
para a língua portuguesa, disponível em:
http://www.uc.pt/fluc/lif/publicacoes/textos_disponiveis_online/pdf/entrevista_yves_pelicier .
217
“Essas são as características que marcam o caráter não filosófico da tragédia: potências míticas
contrárias, replicando os conflitos identificáveis entre os papéis, mistura indecomponível de coerções
ditadas pelo destino e de escolhas deliberadas; efeito purificador exercido pelo próprio espetáculo no
âmago das paixões que este engendra. No entanto, a tragédia ensina. E se escolhi Antígona é
porque essa tragédia diz algo único sobre o caráter inelutável do conflito na vida moral e, além disso,
esboça uma sabedoria – a sabedoria trágica de que Karl Jaspers falava? – capaz de nos orientar nos
conflitos de natureza totalmente diferente, que abordaremos adiante, na esteira do formalismo em
moral”. (RICOEUR, 2014, p. 279, grifos nossos).
“O trágico, ao estágio atingido por nossa investigação, não deve ser buscado apenas na aurora da
vida ética, mas, ao contrário, no estágio avançado da moralidade, nos conflitos que se erguem no
caminho, conduzindo da regra ao juízo moral em situação”. (RICOEUR, 2014, p. 286).
218
Em outra ocasião, nomeada de conversa com J. Lecomte, Ricoeur pondera: “No domínio judiciário
debruço-me sobre aquilo a que os juristas americanos chamam os casos difíceis [hard cases], as
situações inéditas para as quais é preciso inventar uma solução, mas a partir de uma deliberação
razoável. É, por exemplo, o caso do sangue contaminado ou, actualmente, o das vacas loucas” .
(RICOEUR, 1996b).

172
resulta em autorreconhecimento e abre caminho para o importante momento da
convicção, onde se escolhe, se decide.
Em Ricoeur, com a sabedoria trágica alcançamos a sabedoria prática. Não é
possível resolver tais casos senão, por meio da sabedoria prática 219. Conforme
esclarece Paulo Gubert, nosso autor elenca três traços constituintes da sabedoria
prática: o princípio do respeito kantiano, a justa medida aristotélica e a convicção
“que sela a decisão [e que] beneficia-se então do caráter plural do debate”
(RICOEUR, 1991, p. 319 apud GUBERT, 2014, p. 89). A convicção, por sua vez,
tem origem no aconselhamento e no diálogo com os mais sábios e esclarecidos
dentre os homens e as mulheres; um bom conselho, porém, sem nunca ter valor de
princípio universal – haja vista que um princípio universal220, cristalizado e
“petrificado” em forma de lei, poderia estagnar o livre fluxo que deve permanecer
entre ética e moralidade.
Com a sabedoria prática a solicitude “ingênua”, diz Ricoeur, se torna
solicitude “crítica” 221, sem jamais deixar de centrar-se na alteridade da pessoa. Por
conseguinte, o autor assevera que é para a solicitude, preocupada com a alteridade
das pessoas, que o respeito se volta no caso em que ele próprio é fonte de conflitos,
em particular nas situações inéditas geradas pelos poderes que a técnica dá ao
homem sobre os fenômenos da vida. “É preciso inventar ao mesmo tempo a norma
e o juízo” (RICOEUR, 1994, p. 10) como um corretivo da lei, onde a lei não
conseguiu decidir devido a sua generalidade. “[...] ou se inventam as regras
consoantes a cada caso [...]; ou de outro modo, no caso das virtudes heroicas, se
aplicam padrões já consolidados, independentemente das situações e
acontecimentos a serem vividos”. (ROSSATTO, 2010b, p. 264). Dito ainda de outra
219
A propósito da sabedoria prática em Ricoeur, vale transcrever o seguinte excerto: “Tenendo en
cuenta que el objetivo de la ética es ofrecer uma orientación que sirva para tomar decisiones, para
orientar la vida hacia lo bueno, para realizar valores de un modo prudente y responsable, parece
evidente que su terreno proprio es el de la sabiduría práctica, el de la vida y sus problemas, donde es
imprescindible decidir, elegir y actuar (...) Tendo em conta que, o objetivo da ética é oferecer uma
orientação que sirva para tomar decisões, orientar a vida para o bem, realizar valores de maneira
prudente e responsável, parece claro que seu terreno próprio é o da sabedoria prática, da vida e seus
problemas, onde é imprescindível decidir, escolher e agir”. (MORATALLA e GRANDE, 2013, p. 75,
tradução nossa).
220
Ricoeur entende que a simples aplicação de regras, normas e princípios é uma operação rígida e
arbitrária. A partir de Antígona, nosso autor visa dar os dois passos da ética e da moralidade juntos.
Sobre isso, Noeli Rossatto (2010a, p. 270) assevera: “A unilateralidade dos caracteres, como
resultado do enrijecimento dos elementos transpostos do horizonte ético para a esfera pessoal, terá
de ser corrigia pela instância moral; e a desumana rigidez na aplicação cega de princípios ou regras
morais terá de ser amainada com apoio na perspectiva ética”.
221
A “solicitude crítica é a forma assumida pela sabedoria prática na região das relações
interpessoais”. (RICOEUR, 2014, p. 318).

173
forma, a sabedoria prática pode consistir em ter que dar prioridade ao respeito em
nome da solicitude voltada para as pessoas e vice-versa, mas sempre em nome de
sua singularidade insubstituível.
Ricoeur confessa, tanto em O Si-mesmo com outro, como em Da metafísica à
moral, que ao levar em conta o sofrimento primordial inseparável da ação humana,
regressa ás lições de seus primeiros mestres em situações-limite. Karl Jaspers é um
deles. É, com efeito, no nível da sabedoria prática, quando o desejo de vida boa se
reveste na trama da ação humana222, para além dos mandamentos e das máximas
gerais da moral, que aquilo que Ricoeur chamou de foro íntimo se confunde com a
imputação moral propriamente dita. É também a esse nível que a justiça 223 se torna
equidade. Tomada no plano moral abstrato, a obediência à regra de justiça requer,
por um lado, que sejam tratados de modo semelhante os casos semelhantes e, por
outro, que cada um receba o devido nas partes desiguais.
Mas como afinal, garantir, a cada um, de fato, o que lhe é devido? Como
garantir a dignidade e a sobrevivência pessoa humana sem violência? Como
garantir a igualdade entre desiguais, ou entre atuante e padecente? Como usar do
jogo entre a solicitude e o respeito, ou seja, decidir mediante o emprego da
sabedoria prática?
Por ocasião do que intitulou Conhecimento de si e ética da ação [conversa
com J. Lecomte, por ocasião da publicação de Réflexion faite: Autobiographie
intelectuelle], Ricoeur declara que chegou a trabalhar com professores de medicina
e médicos no quadro da investigação e da clínica, “sobre o modo de efetuar a
passagem de uma deontologia a uma decisão concreta, tomada com consciência”.
Diante do que chamou casos-limite, tais como os dos indivíduos considerados em
situação de vida terminando, refletiu em conjunto com os profissionais da saúde
sobre como proceder “com consciência e sem trair a ética médica”.

222
Uma das afirmações de Ricoeur sobre a ação humana é que “ela constitui o elo intermediário entre
metafísica moral: De uma metafísica que resume a ideia de um princípio primeiro e universal que dá
até dar-se a si mesmo, deve sair uma moral que seja a aplicação à conduta da vida”. (RICOEUR,
1995b, p. 11). Nesse sentido, uma verdadeira metafísica prepara a resposta para a pergunta
(kantiana) Que devo fazer?
223
Duas passagens, ainda que sucintas, fazem alusão e pontuam a relação entre justiça e direito que
se quer para nossa pesquisa, garantindo-se justiça (como virtude e como instituída) a segunda
pessoa: “E a injustiça – portanto, afinal, a violência – por acaso não é também situação inicial que o
direito procura transcender [...]?”. Ainda, o “[...] primeiro ingresso na região do direito não terá sido
marcado pelo grito: É injusto”!

174
Nosso autor confessa: “Fiquei por vezes muito espantado ao ver como se
passa facilmente de uma situação de obstinação terapêutica a uma situação de
eutanásia passiva”. (RICOEUR, 1996b, sem página).
Em O Si-mesmo como outro, Ricoeur retoma esses casos-limite – de
potencial sofrimento à pessoa – em vida inicial e vida terminal224 – e por meio deles
nos ofereceu um bom panorama de como a dialética entre solicitude e respeito, na
prática, no mundo da vida, pode restituir a segunda pessoa padecente a dignidade,
o reconhecimento, a igualdade.
O médico, em relação ao paciente, enfrenta um conflito em atenção à regra
‘não mentir’ ao proferir o diagnóstico de uma doença grave. O profissional pode
declarar toda a verdade sem exceção, indiferente à esperança de sobrevida do
paciente; ou, ao contrário, mentir deliberadamente para não debilitar ainda mais o
moribundo que luta desesperadamente contra a morte (RICOEUR, 2014, p. 312).
Nesse contexto, a relação médico-paciente:

[...] é uma relação com o sofrimento, com a morte… que coloca um


verdadeiro problema com o outro, um problema muito específico, o da
relação entre o prestador de cuidados e o paciente. Interesso-me muito pela
questão porque me preocupo bastante com o destino de um certo número
de ideias, (que muito estimo no domínio moral), quando confrontadas com
os profissionais e também com as situações marcantes da vida como,
justamente, a relação com a doença e com a morte. Parti de uma
concepção do problema moral, segundo três etapas, a saber, a ética, a
moral e a sabedoria prática. E em cada uma dessas etapas deve haver uma
consequência para o domínio da medicina. (RICOEUR, 1994, p. 01).

Além dessa constatação, em O Justo 2, Ricoeur afirma que a abordagem


terapêutica é peculiar no sentido de suscitar indagações éticas, porque ocasiona
“atos de juízo pertencentes a vários níveis diferentes”: o prudencial, o deontológico e
o de conflitos que suscitam juízo do tipo reflexivo, passível de legitimar os dois
primeiros (RICOEUR, 2008b, p. 221). No primeiro momento, a faculdade de julgar
(Ricoeur confessa que toma esse termo de Kant) é aplicada a situações singulares
das quais sobrevém uma relação interpessoal, entre médico e paciente. Em seguida,
tais situações vão suscitar juízos que assumem a função de normas, tais como nos
Códigos de Ética Médica, que transcendem a relação singular entre determinado
profissional e determinado paciente. Há ainda, o fato de que a bioética médica tem,

224
Também em O Justo 2, Ricoeur (2008, p. 234) vai abordar o tema das “doenças em fase terminal”
que oscilam “entre a obstinação terapêutica, a eutanásia passiva ou ativa e o suicídio assistido”.

175
cada vez mais, de lidar com juízos do tipo reflexivo. Em suma, nosso autor vai
afirmar que é na perspectiva da “dimensão prudencial da ética médica que a bioética
extrai seu significado propriamente ético”. (RICOEUR, 2008b, p. 222). E, por fim,
quanto ao momento deontológico, Ricoeur, com genialidade, afirma que os juízos
formulados nesse nível:

exercem grande variedade de funções críticas irredutíveis que começam


com a simples universalização das máximas prudenciais de primeiro nível e
tratam, entre outras coisas, dos conflitos externos ou internos à esfera da
intervenção clínica, bem como dos limites de todas as espécies impostos às
normas da deontologia, a despeito de sua natureza categórica. (RICOEUR,
2008b, p. 222).

Ricoeur conclui a reflexão sobre os três níveis do juízo médico observando


que em relação ao nível reflexivo, vemos referências a uma ou mais tradições éticas
“enraizadas numa antropologia filosófica” que, por sua vez, põe em xeque noções
como saúde, felicidade, sofrimento, problemas radicais de vida e morte.
Mas afinal, qual decisão tomar para que a segunda pessoa enferma não seja
diminuída em sua existência e agudizada em sua aflição?
Do que temos certeza é que a solução ricoeuriana nunca é unilateral ou
arbitrária. Defender apenas uma alternativa do dilema é permanecer na sabedoria
trágica. Também não é o caso de aplicar friamente uma regra, na expectativa de que
a responsabilidade de uma decisão dolorosa seja aliviada. Para nosso autor,
recordamos, a saída é “inventar as condutas que mais satisfarão à exceção que
requer a solicitude traindo o menos possível a regra”. (RICOEUR, 2014, p. 312). Do
ponto de vista da moral, isso significa cumprir a exigência de aplicar a regra não
mentir. Do ponto de vista da ética, importa em evitar causar maior sofrimento à quem
já padece – aqui a complementaridade entre respeito e solicitude é evidente!
Todavia, Ricoeur (2014, p. 312) vai advertir que: “O que a sabedoria prática
mais precisa nesses casos ambíguos é de uma meditação sobre a relação entre
felicidade e sofrimento”. Por falta dessa meditação sobre a relação entre felicidade e
sofrimento, ocorrem, no mais das vezes, que a preocupação de não causar
sofrimento a qualquer custo ao final da vida de alguém, pode acabar transformando
em regra justamente o mentir, como um dever para com os moribundos.
Já vimos que Ricoeur atribui a falta de melhor exame sobre a relação entre
felicidade e sofrimento à Kant, precisamente na moral inscrita na Crítica da razão

176
prática, ao incluir qualquer forma de afetividade apenas sob a rubrica de faculdade
inferior de desejar. Foi aí que o filósofo alemão

fechou as portas a uma investigação diferenciada que decompusesse o


equívoco termo felicidade entre gozo e bens materiais e aquilo que P. Kemp
designa ‘prática comum de dar e receber entre pessoas livres’. Assim
considerada, a felicidade ‘já não entra em contradição absoluta com o
sofrimento’. (RICOEUR, 2014, p. 312).

Destarte, não deveria ser verdade que a felicidade exclui o sofrimento.


Tampouco que não haja ética sem felicidade. E Ricoeur disse mais: “Juntamente
com o prazer, o sofrimento é o refúgio último da singularidade”. Nessa oposição
entre a felicidade e o sofrimento, estão implicadas: a incompatibilidade entre
deontologia e teleologia e a contraposição entre bondade e dever, que têm, ambas,
perpetuado a existência do outro como um obstáculo à minha.
Ricoeur compreende a felicidade a partir de uma perspectiva bem existencial:

Por ‘felicidade’ entendo a capacidade de encontrar uma significação, uma


satisfação na realização de si. A ideia de que isto exclui completamente
todo o sofrimento é, creio, uma ideia perigosa que leva a decepções, se
não tivermos integrado na própria educação a ideia de que deve haver
nela um espaço para o sofrer. [...] Consentir no inelutável. É preciso
integrar o inelutável no projeto de conquista, num projeto saudável que é
por isso e desse ponto de vista anti-dolorista. Em primeiro lugar, não é
necessário sofrer. O conflito é suficiente. Eu estou, inevitavelmente, em
situações conflituosas… Nem toda a gente me ama. Devo integrar esse
fato no meu projeto de vida, no meu horizonte de vida. É nesse sentido
que digo que a felicidade e a infelicidade não são coisas contrárias que se
excluem. (RICOEUR, 1994, p. 03).

Estados de angústia e felicidade são alternáveis durante toda a tarefa da


existência. E o que Ricoeur quer dizer é que sofrer faz parte de uma vida feliz. E é
provável que jamais pudéssemos compreender o que é a felicidade se
desconhecêssemos o sofrimento.
In fine, nosso filósofo faz algumas ponderações na intenção de ajudar a
superar o dilema da decisão ante um caso-limite. Sugere que é necessário ser
solícito para com o paciente, que não está em condições físicas, mentais e morais
para encarar a verdade. E propõe que uma boa saída é dosar a comunicação dessa
verdade, no caso, do diagnóstico inevitável. Atende-se à regra não mentir, tendo-se
compaixão e respeito pela pessoa do paciente e ainda, pelo direito à sua dignidade.
Há diferença, garante Ricoeur, entre enunciar a doença e indicar seu grau de
gravidade e proferir a verdade clínica como uma sentença de morte.

177
Em contrapartida, nosso filósofo avalia que em muitos casos é possível que a
verdade chegue a um nível de troca que a relação entre dar e receber leve à
aceitação da morte, cumprindo assim com a difícil tarefa de equilibrar o respeito com
a regra (ou com a lei) e o respeito ao outro (solicitude). Tal indicação leva em conta
que o respeito pelo outro nunca deve deixar de lado, nessas situações conflituosas e
complexas, a dimensão do cuidado, ou seja, a dimensão da solicitude.
Agora, imaginemos um caso de aborto, de vida começando. É melhor, em
algumas circunstâncias, que uma mulher aborte do que dar cabo da sua vida e
talvez da do seu filho. Ricoeur (1996b, sem página) lembra-nos que “a legislação de
Simone Weil baseava-se precisamente sobre a recusa do pior, que era o aborto
clandestino”. Os médicos que praticam a interrupção da vida gestacional não estão
provavelmente encantados por fazê-lo, prefeririam certamente acompanhar os
partos. Mas não o fazer pode conduzir a situações mais graves do que a situação
presente de aflição. Aqui a decisão é, para ambos, médico e paciente gestante,
entre o pior e o pior. Nesse sentido, há que se defender primeiramente, que as
irrupções do mal são, a cada vez, bem particulares. Significando dizer que casos do
tipo devem ser avaliados um a um, sem ignorar o contexto especial no qual se
encontram. Há que se considerar, igualmente, “as condições ontológicas 225
apresentadas pela vida que se inicia e que não são as mesmas apresentadas pela
vida que acaba”. (RICOEUR, 2014, p. 313).
Nosso filósofo diz, antes de tudo, que os casos de aborto bem se enquadram
no trágico da ação, haja vista ter de se “decidir entre o cinzento e o cinzento”.
(RICOEUR, 1996, sem página). A par de fazermos considerações ético-ontológicas,
a questão espinhosa é considerar ou não o embrião como pessoa. Diante desse
conflito, Ricoeur cita Anne Fagot que escreve: “Há conflito entre o princípio do
respeito devido ao ser humano e a instrumentalização desse ser nos estágios
embrionário ou fetal – a menos que um embrião humano não seja uma pessoa
humana”. (RICOEUR, 2014, p. 313). Em caso afirmativo, toma a frente o direito à
vida do embrião.
Ricoeur parte da tese biológica, na qual pessoa e vida são indissociáveis: “diz
o argumento que o patrimônio genético ou genoma que marca a individualidade

225
Ricoeur pondera que em certo sentido, a posição de Kant sobre a pessoa não está desprovida de
implicações ontológicas. “[...] nessa oposição bipolar entre pessoa e coisa, a distinção entre modos
de ser era inseparável da prática, ou seja, da maneira de tratar pessoas e coisas”. (RICOEUR, 2014,
p. 313).

178
biológica é constituído já na concepção”. (RICOEUR, 2014, p. 314). Trocando em
miúdos, o direito do embrião é o direito à oportunidade de vida que, uma vez
interrompida põe a gestante em risco de responder por homicídio. Segundo o autor,
é essa noção de risco que ingressa no terreno da sabedoria prática, sobretudo,
porque está-se coibindo “qualquer prática que não sirva aos supostos fins do
embrião e do feto, que são viver e desenvolver-se”226.
A próxima tese de Ricoeur é oposta, pois vincula a dignidade da pessoa às
suas capacidades227 plenamente desenvolvidas, ressaltando-se a autonomia do
querer. O argumento se resume a mais uma citação de Fagot: “a comunidade das
pessoas pode decidir proteger os seres que estejam aquém da capacidade de
autonomia ‘mínima’, como se protege a natureza, mas não, respeitá-los como se
respeita a autonomia das pessoas”. (RICOEUR, 2014, p. 315). Dentre outras
digressões mais distintas, salientamos essa afirmação do filósofo de Valença:

Com efeito, a apreciação diferenciada e progressista dos direitos do


embrião e, depois, do feto, por mais informada que seja pela ciência do
desenvolvimento, eventualmente enraizada numa ontologia do
desenvolvimento, não pode deixar de incorporar avaliações marcadas pelo
mesmo estilo de tradicionalidade das heranças culturais, arrancadas de seu
sono dogmático e abertas para a inovação. (RICOEUR, 2014, p. 316).

A questão do aborto é, sobremaneira, complexa, extremamente conflituosa e


desafiadora. Põe em xeque a dicotomia entre pessoa e coisa. E, com a mesma
carga, em diversos aspectos, entre a ciência e a religião, entre a sociedade, a
cultura e a mulher 228, enfim. Conforme já mencionado, cada caso é muito particular;

226
Nessa linha de pensamento, a título de curiosidade, vimos no ano de 2008, decisão do Supremo
Tribunal Federal brasileiro no sentido de que “Não há pessoa humana embrionária”. Para o
Ministro Relator, se a inviolabilidade da vida estivesse prevista desde a concepção, o aborto legal
seria inconstitucional. Destacamos os seguintes argumentos do Relator: “a fertilização do óvulo,
quando acontece do lado de dentro da mulher é diferente da que acontece do lado de dentro de um
vidro. [...] Se toda gestação humana principia com um embrião igualmente humano, nem todo
embrião humano desencadeia uma gestação igualmente humana. Situação em que também deixam
de coincidir concepção e nascituro, pelo menos enquanto o ovócito (óvulo já fecundado) não for
introduzido no colo do útero feminino. Criou-se a fecundação sem cópula e sem gravidez. [...] o uso
das células-tronco em pesquisa não pode ser confundido com aborto, porque nenhum espécime
feminino engravida à distância, por controle remoto. [...] Um zigoto produzido extracorporalmente não
caminha na direção de sua humanização. Há falta do corpo feminino, do húmus. Ele empaca, estaca.
No corpo materno, o zigoto pode tornar-se humano. Na gélida solidão do confinamento in vitro, é a
degradação". (CAPRIGLIONE, Laura, 2008, n.p).
227
Indo ao encontro dessa tese: “A capacidade não é em exclusivo uma capacidade física, a de fazer
coisas, de se mover ou de trabalhar. É também a capacidade de se narrar a si mesmo, de se
reconhecer, de falar, de ser responsável”. (RICOEUR, 1994, p. 2).
228
Em Ricoeur (2008b, p. 233), a arte médica “supostamente deve servir: o interesse da pessoa e o
interesse da sociedade”.

179
merecendo a aplicação do que no Direito chamamos de “análise do caso
concreto”229 e que, de alguma maneira se aproxima do juízo moral em situação
singular, instado a propor decisões muito especiais, geralmente tomadas num clima
de incerteza e discordância (RICOEUR, 2008a, p. 17).
Ainda assim, considerando-se toda essa tipicidade, Ricoeur sugere critérios
bastante razoáveis para auxiliar na tomada de uma decisão prudencial à luz da
sabedoria prática. Preliminarmente, não se pode esquecer a condição inicial de
padecente da gestante. Seja pelo sofrimento específico [no corpo e no foro íntimo]
inerente ao momento da decisão, seja porque é constantemente reduzida à coisa. A
gestante já é, de saída, o tu humilhado, o outro deposto, em detrimento do agente
[ou da instituição, ou da religião, ou do Estado], que detém além do poder-fazer, o
poder-sobre. A eventual negativa do profissional de saúde em realizar a cirurgia de
abaladura, não agravaria a condição de padecente da gestante? O desejo de ser
libertada do fardo de arriscar a própria vida e ao mesmo tempo, o sofrimento pela
falta do feto/embrião, pela ausência de potência de vida, não são motivos suficientes
para que o médico cumpra com o pacto e o contrato 230 que firmou?
Estamos com o autor quando ele defende que nesses casos,
independentemente de sua singularidade e especificidade, uma escolha prudencial
considera, que: (1) devemos buscar o meio-termo a mesótes aristotélica, afirmando
que se trace uma linha divisória entre o permitido e o proibido e fixar uma zona de
mediania que resista “a dicotomias demasiado familiares” e (2) devemos nos
beneficiar do caráter plural do debate (RICOEUR, 2014, p. 317), na e além da
dialética entre o bom e o legal, a solicitude e o respeito.

229
“Seguindo a esteira das teorias da linguagem e da hermenêutica filosófica de Gadamer, Dworkin
propõe uma teoria do direito como integridade para a qual os juristas devem fazer uma interpretação
construtiva e complexa, avaliando todos os princípios implicados no caso concreto para dele
extraírem a melhor interpretação possível. Segundo a teoria do direito como integridade, a
interpretação dos princípios deve se dar de forma flexível e aberta, concebendo que dentre as várias
alternativas possíveis seja tomada a única decisão correta comprometida com as necessidades
atuais da comunidade e abandonando exigências ultrapassadas que já não supram seus ideais. A
reflexão do julgador sobre o sistema aberto de princípios e regras deve ser estimulada a fim de que a
única decisão possível seja proferida com base na justiça, nas normas gerais do direito e no devido
processo legal”. (BUSETTI, 2012, p. 22). Esse critério é considerado incompatível com a aplicação
das súmulas vinculantes, cada vez mais adotadas por nossos tribunais, restringindo as interpretações
dos julgadores acerca dos casos concretos que lhes são submetidos quando conformam o enunciado
prescritivo da súmula como uma norma geral e abstrata.
230
A despeito do pacto médico, Ricoeur quer destacar, inserido no primeiro nível do juízo médico, a
confidencialidade e a confiança, a promessa de “cura e – quem sabe? – saúde e – por que não? – no
plano de fundo, imortalidade)”, dirigidos ao médico na forma de apelo ao médico (RICOEUR, 2008b,
p. 224).

180
Assim como a mesótes, na esteira da solicitude e no uso da sabedoria
prudente, Ricoeur retoma a ideia de célula do bom conselho, que ele define como
uma espécie de compensação pela “solidão” diante de uma decisão difícil:

Temos sempre necessidade da ajuda de alguém que contribui para a


efetuação das nossas ‘capacidades’, quando a solidão deve ser
compensada pelo que eu chamo o ‘bom conselho’, isto é, quando passo da
ética à moral e da moral ao que chamo a decisão concreta, a sabedoria
prática. Afirmo finalmente que a solidão deve ser compensada por uma
‘célula de bom conselho’. Por exemplo, diante da aceitação da morte, a
relação entre o doente, a equipe médica e a família constitui uma ‘célula de
bom conselho’. Não é a instituição abstrata, não é a multidão na rua,
também não é a solidão, mas qualquer coisa que seria, em relação à
doença, o que a amizade pode ser nas relações de boa saúde, de partilha
quotidiana. Isso parece-me importante porque há decisões a tomar:
continuaremos os cuidados? Arriscaremos uma operação, um perigo? A
ponderação dos riscos deve fazer-se com várias pessoas. Eu defendo, para
compensar a solidão da decisão, a partilha dos riscos, naquilo que eu
chamo a ‘célula de bom conselho’. É uma entidade… que não é nem o
‘nós’, nem o ‘ele’, é uma relação de proximidade que está para além do
aspecto institucional. A confidencialidade, nesse sentido, deve ser
substituída pelo quadro desta ‘célula de bom conselho’, da qual ela constitui
a dimensão deontológica. (RICOEUR, 1994, p. 03).

A célula do bom conselho, nos parece, é uma espécie de “agrupamento” de


relações interpessoais e poderá ser de reciprocidade: imaginemos que a certa
altura, além do médico, o paciente pode aconselhar-se com um enfermeiro, e ainda,
com um terceiro experiente ou espiritualizado.
A busca de Ricoeur, nesse aspecto, é nossa busca também: garantir a
existência da segunda pessoa em sua dignidade, liberdade e singularidade.
Concomitante à reciprocidade e ao reconhecimento na relação curta.
A diferença estabelecida por Ricoeur entre a ética e a moral se encontra,
então, transposta no tema da intersubjetividade, da interrelação. Como constatado, o
desejo de ser reconhecido desempenha um papel determinante – no querer viver em
conjunto – do homem e que assinala o momento hegeliano. Assim, foi possível
verificar que no querer viver em conjunto, o desejo e a luta pelo reconhecimento
podem ser tomados como substitutos do medo de uma morte violenta e da luta pela
sobrevivência, que caracterizam a condição natural do homem descrito por Hobbes.
Os exemplos de casos-limite sobre os quais discorremos demonstram que a
relação interpessoal pode alcançar um nível de consideração humana, de
reciprocidade ideal muito distante da negação do outro e fora do círculo restrito da
intimidade e das condições de paridade que a philia aristotélica possui. Tanto é

181
assim, que o filósofo declara: “Afirmo que isto nos interessa aqui porque o médico
encontra-se com o paciente numa relação que toca o desejo de realização do seu
doente, isto é, está numa proximidade semelhante a da amizade” (RICOEUR, 1994,
p. 03), mas que não é a amizade.
Esses casos-limite puderam dar ideia do que pode ser a relação interpessoal
na solicitude e no respeito. Não se trata de fusão afetiva, tampouco de
estranhamento com o outro, de relegá-lo à condição de objeto231.
O reconhecimento da segunda pessoa se dá também na simples troca das
palavras gentis, de pequenos gestos de urbanidade, quando se cumprimenta o
porteiro de um prédio que visitamos, por exemplo. Provavelmente o fazemos porque
é uma boa regra de conduta [bom e legal estão por trás dessa atitude elementar].
Nessas “pequenas” ações também se pode ver jogo livre da solicitude e do respeito.
Sobretudo numa alteridade, como abertura ao outro, que começa aí, na esfera
particular e pode estender-se até o instituído, nos comportamentos públicos e
coletivos, mormente se considerarmos que a virtude privada progride até tornar-se
virtude pública. Lendo O Justo 2, vemos Ricoeur confirmar justamente esse
entendimento, referindo-se ao desdobramento da alteridade como categoria ética de
maior eficácia no plano da filosofia prática. Esse desdobramento:

soma ao movimento do si-mesmo para o outro o passo que vai do próximo


ao distante. Esse passo é dado já no nível de uma ética inspirada na Ética
Nicomaquéia pelo movimento que vai da amizade à justiça. Há, portanto,
sob essa lógica, uma progressão que vai da virtude privada para a virtude
pública: o desejo pessoal de justiça se relaciona, assim, com o desejo de
justiça das instituições. É a busca da justa distância em todas as situações
de interação. (RICOEUR, 2008b, p. 06).

Em última análise, cabe retomar a questão da insubstituibilidade: cada um de


nós é insubstituível. É preciso que o si se dirija a segunda pessoa, com a mesma
solicitude e mesmo respeito que lhe serão dispensados, como um ser humano, o
existencial único que ele é. É o que Ricoeur chama de “reciprocidade dos
insubstituíveis”. Significa – diferente do que costumamos dizer que é: “colocar-se no
lugar do outro” – juntar-se ao outro no seu lugar, sem o substituir. “O médico,

231
Recordamos que Ricoeur entende que a relação com o outro não se deve dar em conformidade
com os parâmetros da fenomenologia da coisa, mas, diversamente, tem de residir no âmbito
interpessoal.Com essa perspectiva, pode-se equiparar o conceito hegeliano de reconhecimento ao
kantiano de respeito, o que implica em entender que todo sentimento manifesto a outra pessoa terá
de ser limitado (em sentido kantiano) pelos direitos que lhe são inerentes (ROSSATTO, 2016, p. 192).

182
cada vez que acompanha o moribundo, não o substitui. Ele sobrevive-lhe. Ele é o
sobrevivente de todos os seus moribundos. [Mas poderá ser], por sua vez, um
moribundo”. (RICOEUR, 1994, p. 04). O médico que acompanha a gestante em
situação de risco, não a substitui, não age por ela ou no lugar dela, apenas junta-se
a ela não para promover o bem diretamente, mas para evitar o pior, entre o mal e o
pior.
Inserido naquele primeiro momento do juízo médico, do momento prudencial
ou da solicitude, o profissional considera a singularidade não só da situação de
tratamento mas, antes disso, a situação e insubistituibilidade da própria paciente. No
que toca ao momento deontológico ou do respeito, o médico deve prestar socorro e
não perder de vista o fato de que mesmo havendo exceções a considerar, “elas
mesmas devem seguir uma regra, não há exceção sem uma regra para a exceção à
regra”. (RICOEUR, 2008b, p. 227). E no momento do não-dito dos códigos, da
função reflexiva do juízo deontológico, tudo o mais que “não poderia escapar ao
pluralismo das convicções nas sociedades democráticas” (RICOEUR, 2008, p. 235),
que implica a noção de saúde [privada ou pública] que nunca é inseparável “daquilo
que tentamos não pensar”, sobre as relações de vida e morte, nascimento e
sofrimento, sexualidade e identidade, nós mesmos e os outros.
Ricoeur prova, portanto, diante dos casos-limite aqui explanados, que o
reconhecimento da segunda pessoa, também como quem age, quem fala, que
narra, quem é dotado de capacidade, de escolha e existência, e com quem a
princípio, devemos repartir deveres e direitos na justa distribuição, não pode se dar
senão no elo entre a solicitude, por meio da singularidade do pacto médico em meio
a duas pessoas singulares, e do respeito, através das regras que formalizam esse
pacto, ambos sempre inseridos no âmbito de uma reflexão sobre o querer viver bem.
As passagens seguintes trazem implícita a dialética necessária entre a ética e a
moral no momento da decisão e da convicção:

No entanto, se nossos códigos, sem declararem suas fontes, podem dar


crédito ao espírito de composição, é porque as próprias sociedades
democráticas só sobrevivem no plano moral com base naquilo que John
Rawls chama de ‘consenso por intersecção’ completado pelo conceito de
‘desacordos razoáveis’ [pertinentes ao plano ético-prudencial]. [...] As
composições que situamos sob o signo das noções de ‘consenso por
intersecção’ e ‘desacordos razoáveis’, constituem as únicas réplicas de que
dispõem as sociedades democráticas confrontadas com a heterogeneidade
das fontes da moral comum. (RICOEUR, 2008b, p. 235 e p. 237).

183
Eis, diante de toda nossa exposição, o que a petit éthique realiza: a reversão
da perpetuação da violência, do dano, do mal232; a restituição do reconhecimento a
segunda pessoa, mediante a visada do viver bem, com e para o outro, na solicitude
e no respeito, em instituições [e decisões] justas.
No tocante especificamente a segunda pessoa, não podemos deixar de
registrar a feliz reflexão da filósofa Revault d’Allones em consonância com a que
fizemos no primeiro momento deste capitulo, de RUBIN: “Para poder reconhecer-se
como sujeito é preciso ser confirmado neste sentido pela relação intersubjetiva”.
(D’ALLONNES, 2008, p. 64 e p. 65). É na mediação pelo desvio da segunda pessoa
que o caminho para alcançar-se a si-mesmo é possível, a liberdade na pessoa de si-
mesmo prescinde de querer que a tua liberdade seja.
Há que se ressalvar, diante disso, que a procura pelo reconhecimento não é
um processo sempre completo, contínuo e acabado. Pelo contrário, deve
permanecer em curso. A liberdade da segunda pessoa também é, assim como a
liberdade na primeira pessoa, uma tarefa que deve ser edificada ao longo de toda
uma vida, por meio do discurso e da ação.

232
A propósito do mal, Ricoeur se confessa discípulo de Kant: “o mal é radical, mas menor que a
bondade do homem. Immanuel Kant opõe a ‘disposição para o bem’, que é constitutiva do homem, e
a ‘propensão para o mal’ que se manifesta como uma constituição adquirida. A partir daí, podemos
dizer que o mal é radical, mas é-o na medida em que não conseguimos capturar a sua origem. Ele já
está sempre presente e observamos apenas as suas manifestações. Uma das grandes descobertas
do século XX sobre esta questão é que a cultura não nos põe ao abrigo da barbárie”. (RICOEUR,
1996a).

184
CONSIDERAÇÕES FINAIS

A petit éthique de Paul Ricoeur é um grande contributo para o ramo da Ética


Filosófica e, com igualdade, para a Ética Aplicada. Seu esquema se converte em um
instrumento compatível com a complexidade dos dilemas morais contemporâneos,
casos-limite e situações difíceis repletas de preconceito, indiferença e hostilidade,
dirigidas frequentemente a segunda pessoa que padece. Têm sido ocorrências,
decisões, escolhas que remetem ao trágico da ação humana, impelidas seja por um
ângulo estreito de visão, seja pela concepção positivista do simples enquadramento
de uma regra moral à um caso.
Nesse sentido, a moral kantiana, guiada pela pretensão ou reivindicação de
certeza e de universalidade, sem a visada ética, nos remete facilmente a algo
obsoleto e superado. E porque não dizer, injusto, gerador de um verdadeiro hiato no
tocante à singularidade insubstituível da pessoa humana. De fato, a herança
deontológica, apartada do horizonte das virtudes, ignora nossas avaliações
heteregêneas, a diversidade dos bens a partilhar, a imprevisibilidade do fim mesmo
da ação humana e, sobremaneira, a pluralidade de sentidos, intenções, desejos,
percepções e vividos, pecando pelo uso de um espírito de simplificação.
Existem máximas que passam com sucesso pela prova de universalização.
Todavia, o mesmo não ocorre nas situações onde a alteridade de cada pessoa
humana demanda reconhecimento. O critério kantiano permanece limitado,
insuficiente para dar conta das injustiças e desigualdades que podem advir desse
hiato ao qual nos referimos, seja no trato interpessoal, seja no domínio do instituído.
Desse modo é que a moral do dever pode recorrer à teleologia, para
flexibilizar o universal, sob o crivo do discurso estruturado da práxis, das ações
orientadas pela prohaíresis, da preferência racional mediadora da tarefa, movendo-
nos, na boa vontade com vistas a uma vida boa.
A teleologia aristotélica, por sua vez, carece da norma moral para balizar a
ação humana libertina, oriunda de ações individualistas e corruptas, banalizadas
pela ausência de coerção ou constrangimento. A passagem da visada ética pelo
crivo da norma fortalece nosso senso de justiça e o simples desejo se transmuta em
desejo raciocinado de querer viver em equidade, designando-se o que deve ser feito
prudentemente. A ética do bem viver mitiga as aporias constantemente provocadas

185
pelas exigências do formalismo. Os sentimentos de desejo e felicidade que podem
corromper a decisão e a ação, submetidos ao formalismo da regra não são
obrigatoriamente desprezados, mas distanciados em nome de uma razão prática
que satisfaça a exigência de universalidade com vistas à realização do bem comum
e não simplesmente à mera subordinação às máximas ou aos imperativos morais.
Nesse sentido, não podemos deixar de retomar também a reflexão sobre o
argumento de que a moral kantiana levada ao limiar da simples proibição do desejo,
sem o exercício racional da phrónesis para lidar com possíveis inclinações, pode ser
tomada como sucessora direta da ideia de obediência à lei de Deus, o que enfatiza a
obrigação, o constrangimento, no lugar da virtude. O perigo maior, com essa
tendência, é se aproximar de posturas ditatariais, de fundamentalismos religiosos,
justificando discursos político-morais, decisões jurídicas, ações, ao arrimo de
instituições que não cessam de invocar a ideia teológica que pertence a um discurso
de moralidade concebido como um conjunto de imperativos universais,
determinados e irrefutáveis, fundados nos mandamentos do suposto divino.
Essa postura vem se engrandecendo e permitindo que autoridades das mais
variadas esferas públicas supostamente democráticas, profiram locuções como: “fui
escolhido por Deus para comandar a nação”. Ou, como temos ouvido,
lamentavelmente, em tribunas jurídicas e assembleias legislativas: “está na Bíblia”,
levando a crer que regras morais são irrefutáveis, intocáveis, eternas.
A retomada da perspectiva ética, da sabedoria prática, do equilíbrio entre o
desejo ético singular e o critério de universalidade das normas morais, num meio
caminho entre o universal e a tradição histórica é garantia de instituições sociais
mais justas, onde o bem é o bem-comum, onde a justiça desenvolve a bondade que
a envolve. Uma ética enriquecida pelo prestígio da moral normativa, e uma lei moral
submetida à sabedoria prática e ao juízo prudencial crítico permitem auxiliar na
resolução de casos que derivam do universalismo, do formalismo e da abstração
procedimental: onde a norma vale mais do que cada vivido, numa espécie de
comprometimento fanático com a moralidade em detrimento do respeito devido às
pessoas. Em Ricoeur, e para nós, é o oposto que mais vale: o respeito à pessoa, à
dignidade, à vida humanas, traindo-se o menos possível a máxima moral.
Se de fato algum dever é incontestável ou “sagrado”, que seja o dever de
viver a vida boa com e para as outras pessoas em instituições justas e equitativas.

186
Como isso, é possível confirmar, da parte de Ricoeur, a libertação das
filosofias do cogito, herança remota, mas ainda contumaz da modernidade. Ao se
libertar, através, sobretudo, da hermenêutica do si-mesmo e da retomada do
conceito mounieriano de pessoa, Ricoeur garante a existência ancorada na
interpretação e na compreensão da tessitura da vida, um sujeito dotado de
autoexame, de auto-compreensão, de autolegislação, tomado por sua diferença na
semelhança com o outro, por seu modo carnal e finito. O cogito partido ricoeuriano,
que não se diz sem refletir sobre o quem [fala, se narra, age, toma responsabilidade
do ato para si], sobre a percepção de si-mesmo, salvaguarda, por conseguinte, a
alteridade. Uma alteridade que Ricoeur definiu como aquela “das responsabilidades
cruzadas no centro da imputação responsável”.
A pessoa como atitude ou a atitude-pessoa, sob a ótica de Ricoeur, é uma
noção que gostaríamos de ver retomada pela Ética contemporânea, sobretudo,
porque nosso filósofo soube captar a universalidade da crise do ser pessoa em
situação. Todos e cada um de nós, na alternância entre os momentos de crise e
engajamento, isto é, respectivamente, entre a autopercepção da condição de
vulnerabilidade perante o cosmos, revisando os próprios valores, as próprias
preferências e, em razão disso, o resgate de nossa posição singular no mundo-da-
vida, mais cedo ou mais tarde, nos submetemos, nos obrigamos a hierarquizar
nossas escolhas e, enfim, cientes da diversidade, inventamos e decidimos com
eloquência e convicção.
A atitude-pessoa transforma o poder-sobre em poder-fazer, a pessoa
indiferente em pessoa engajada, comprometida, instada a tomar partido, numa
decisão que se alterne entre o agir por dever e o agir mediante o uso da prudência
critica, conforme não só ao que se espera que seja universalmente reconhecido,
como ao que impomos a nós mesmos. Ricoeur pensou a pessoa convicta em
engajamento, suficiente para perceber e recusar o intolerável de nosso tempo e
reconhecer a dívida que cada um de nós tem com relação às causas [humanas]
mais importantes do que nós mesmos, que nos requisitam.
Dessa maneira, a crise e o engajamento são um convite á reciprocidade, à
compreensão e à estima das diferenças, à aceitação da alteridade e da diferença na
identidade – o que nos remete diretamente à hermenêutica do si-mesmo e ao
reconhecimento do outro que não o outro de si-mesmo.

187
É, por fim, a pessoa ricoeuriana quem, na condição de agente capaz e
responsável, vive a liberdade como tarefa [o início da ética], pois concebe a si
própria como vivido não autossuficiente [limitado pelo cosmos, pela própria
consciência, pelo outro], disposta a fazer e não a ver. A liberdade como tarefa é
também responsabilidade-perante o si-mesmo, o outro e o instituído-instituinte. E
consequência proeminente disso é que cada um de nós está encarregado do bom
funcionamento do Estado, da democracia, de uma instituição, seja ela pública ou
privada.
“Volta a [segunda] pessoa!”, dizemos, para, em consonância com o propósito
ricoeuriano, (re)colocá-la no centro das reflexões filosóficas. Através do conceito
ricoeuriano de pessoa, resgata-se a posição de um singular vulnerável diante do
cosmos e, por consequência, é a pessoa [e não o sujeito moderno] a melhor
candidata a compreender a segunda pessoa padecente, e a viver a complexidade e
a diversidade contemporâneas.
Com a filosofia da pessoa, volta o valor do outro, sua condição de sem preço,
de centro da liberdade, carregada de sentido humanizador, que a filosofia clássica
parece negligenciar. Assim, pode-se afirmar sem suspeita, que é por essa
negligência que Ricoeur se distancia de cada uma das vertentes aristotélica e
kantiana, pois só por si mesmas, não conseguem pensar a segunda pessoa
oprimida, tampouco a dinâmica da liberdade. Acrescente-se a isso, o fato de que a
philia aristotélica não contempla o [outro] diferente, o não amigo e o formalismo
kantiano, rechaça o outro não universal.
Dito de modo diverso, Antigos e Modernos, tomando a segunda pessoa como
res, como estranho ou como inimigo, fizeram perpetuar a ausência da reciprocidade
e do reconhecimento do outro até os dias atuais.
Com a proposta ricoeuriana da dialética entre teleologia e moral, solicitude e
respeito, portanto, é possível retomar a reciprocidade e o reconhecimento; pensar a
segunda pessoa que padece como semelhante a mim na alteridade e diferente de
mim na similitude, considerando-o existencial único e humano, naquilo que Ricoeur
nominou reciprocidade dos insubstituíveis.
Por meio da solicitude, confirmada por Ricoeur como a benevolência, o
cuidado e a humanidade para com o outro, existo na reflexividade e na
insubstituibilidade, me uno a segunda pessoa sem, contudo, substitui-la. A categoria

188
da solicitude ética é mesmo capaz de orientar a moral para um respeito compassivo,
benevolente.
Através do respeito, o intermediário entre a afetividade e a razão – que tem
boa expressão nessa máxima de Ricoeur: “Não exerças o poder sobre outrem, de tal
forma que fiques sem poder sobre ti mesmo” – consideramos a dissimetria original,
sem, entretanto, qualquer desejo de dominação. O respeito é o fim último da ação e
o guia para a relação interpessoal em reciprocidade.
Por ocasião do juízo moral em situação, especificamente nos casos-limite
elencados, pôde-se ver a complementariedade entre a solicitude e o respeito
levando-se em conta, ao mesmo tempo, o contextual e o universal, a felicidade e o
sofrimento, a regra e a prudência. A pessoa atuante e detentora do poder-fazer,
mediada pela solicitude e pelo respeito, trata o outro padecente como gostaria de
ser tratada.
Não podemos deixar de ressaltar, quanto ao momento do juízo moral em
situação, a importância do desvio e da instrução pela narrativa trágica, que na
experiência da catarse, possibilita a restauração do equilíbrio espiritual, fazendo-nos
mais atentos e consequentemente mais responsáveis pelas implicações de nossas
ações.
Outro mote importante é a questão da felicidade. Como Kant a colocou em
relação ao dever, ser feliz parece-nos ainda um privilégio, algo quase inalcançável
desde a modernidade – o que se converte em verdadeiro prejuízo para o
reconhecimento do humano em nós. Pensando em consonância com Ricoeur, se o
desejo de felicidade habita o querer e a liberdade da pessoa, porque ele (o desejo
de ser feliz) é tomado por irracional ou por fraqueza de caráter? Perpetua-se,
também com essa dicotomia que tanto nos maltrata, com essa incompatibilidade
entre a felicidade e dever, a total ausência de tolerância.
Fomos reconduzidos novamente à meditação de Ricoeur sobre a liberdade
que, por sua vez, nos reconduz à reflexão sobre a expressão da autonomia
autolimitadora, do humano e da humanidade, assumindo a própria vida como tarefa:
a tarefa de tornar-se pessoa-humana na já referida “convergência do que há de
melhor em todas as diferenças”. A finalidade maior da liberdade é então a superação
da desigualdade, da violência, do conflito entrevistos entre a primeira e segunda
pessoa.

189
É evidente, entretanto, que estamos revivendo a ausência de liberdade,
mesmo em sociedades democráticas, numa retomada da hostilização a segunda
pessoa, ao singular, ao diferente, às minorias sociais, humilhadas por condições de
etnia, raça, religião, deficiência, gênero, riqueza, saúde ou orientação sexual, na via
mais radical da intolerância.
Para Ricoeur a intolerância ao outro é mais do que uma injustiça. É, na
verdade, o desconhecimento de si-mesmo, de suas condições de existência,
especialmente enquanto agente coletivo na narrativa que instaura a identidade da
narrativa humana. A intolerância não se aloja somente no campo da ação, ela
parasita também a fala e o discurso. “Os ditadores falam!”, aponta Ricoeur. E outra
reflexão do autor vem bem a calhar: “efetivamente, se nos momentos em que a
minha crença se afunda, duvido que seja livre, se me vejo como sendo esmagado
por todo o tipo de determinismos, então já não acredito na liberdade do outro e já
não posso ajuda-lo a ser livre”. (RICOEUR, 2011, p. 132).
Retomemos o conceito de pessoa à luz da filosofia de Ricoeur: se volta a
pessoa, cremos, volta a segunda pessoa, e reconquista-se a alteridade que lhe
garante aceitação e proporciona-nos a predominância de um estado de paz, de
bem-viver. Por trás do resgate do reconhecimento da segunda pessoa oprimida e
violentada se encontra a urgência de um sentido humano para o nosso tempo; algo
próximo desta sábia “regra de outro” de Ricoeur: “Age de tal modo que haja uma
vida humana depois de ti…”.

190
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ABEL e PORÉE, Olivier e Jérôme. Le vocabulaire de Paul Ricoeur. Paris: Ellipses,


2009.

ABREU, H. V. O Conflito Ético-Político em Paul Ricoeur. 2015. 114p. Dissertação


(Mestrado em Filosofia) – Universidade de Coimbra, Coimbra, Portugal. Disponível
em: <https://eg.uc.pt/bitstream/10316/30441/1/O%20Conflito%20%C3%89tico-
Pol%C3%ADtico%20em%20Paul%20Ricoeur.pdf>. Acesso em: 23 mar. 2018.

ALEIXO, Maria Alice Fontes. Estima de Si, Solicitude, Igualdade. O triângulo de


base da Vida Ética segundo Paul Ricoeur. Covilhã: LusoSofia, 2008.

ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. Trad. de Mário da Gama Kury. 2ª ed. Brasília:


Universidade de Brasília, 1992.

AUDI, Robert. Dicionário de Filosofia de Cambrigde. Trad. de João Paixão Netto


et al. São Paulo: Paulus, 2006.

BAGGIO, Giomar. Ética, pessoa e educação em Paul Ricoeur. 2016. 73 p.


Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade Regional do Noroeste do
Estado do Rio Grande do Sul, Ijuí, RS. Disponível em:
<http://bibliodigital.unijui.edu.br:8080/xmlui/bitstream/handle/123456789/5049/Gioma
r%20Baggio.pdf?sequence=1>. Acesso em: 04 mar. 2019.

BONA, Aldo Nelson. Paul Ricoeur e uma epistemologia da história centrada no


sujeito. 2010. 209 p. Tese (Doutorado em Filosofia) – Universidade Federal
Fluminense, Niterói, SP. Disponível em:
<http://www.historia.uff.br/stricto/td/1174.pdf>. Acesso em: 04 mar. 2019.

BOTTON, João Batista. Promessa e atestação de si em Paul Ricoeur. Intuitio. Porto


Alegre, v. 2, n. 2, out. 2009, p. 145-151.

___. As fontes do si-mesmo na hermenêutica de Ricoeur. Sapere Aude. Belo


Horizonte, v.4, n. 8, 2º sem. 2013, p. 136-152. Disponível em:
<http://periodicos.pucminas.br/index.php/SapereAude/article/view/6422>. Acesso em
11 mar. 2019.

___. O homem como promessa: estudo das implicações da antropologia filosófica


de P. Ricoeur. 2017. 214p. Tese (Doutorado em Filosofia) – Universidade Federal de
Minas Gerais, Uberlândia, MG. Disponível em:
<http://www.bibliotecadigital.ufmg.br/dspace/bitstream/handle/1843/BUOS-
B32LDY/tese_completa_p_entregar.pdf?sequence=1>. Acesso em: 04 mar. 2019.

BRESOLIN, Keberson. Kant e o sentimento moral. Conjectura, Caxias do Sul, v. 17,


n. 1, jan./abr, 2012, p. 42-67. Disponível em:
<http://www.ucs.br/etc/revistas/index.php/conjectura/article/download/1526/988>.
Acesso em: 18 dez. 2018.

191
BUSETTI, Caroline. O problema hermenêutico da súmula vinculante: uma análise a
partir da teoria do direito como integridade de Ronald Dworkin. Publica Direito,
2012. Disponível em:
<http://www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=4f3d7d38d24b740c>. Acesso em: 04
jan. 2020.

CAPRIGLIONE, Laura. “Não há pessoa humana embrionária”. Folha de São Paulo,


2008. Disponível em:
<https://www1.folha.uol.com.br/fsp/ciencia/fe0603200803.htm>. Acesso em: 03 fev.
2020.

CHAGAS, Flávia Machado. Respeito, sentimento moral e facto da razão. Pelotas:


NEPFil on line, 2013. Disponível em:
<https://books.google.com.br/books?id=ag6TAgAAQBAJ&pg=PA95&dq=respeito+ch
ristian+hamm&hl=pt-
BR&sa=X&ved=0ahUKEwj2wqiextHnAhX_ILkGHU3oD8AQ6wEILjAA#v=onepage&q
=respeito%20christian%20hamm&f=false>. Acesso em: 23 dez. 2019.

CHANGEUX, Jean Pierre e RICOEUR, Paul. La naturaleza y la norma. Lo que nos


hace pensar. Trad. de Carlos Ávila Flores. México: Fondo de Cultura Económica,
2007.

CLAVEL, Juan Masiá, MORATALLA, Tomás Domingo e VELILLA, Alberto Ochaita.


Lecturas de Paul Ricoeur. Madrid: Universidad Pontificia de Comillas, 1998.

COELHO, Maria João. Corpo, pessoa e afectividade: da fenomenologia à bioética.


1997. 42 p. Tese (Mestrado em Filosofia) – Universidade Nova de Lisboa, Lisboa,
Portugal. Disponível em: <http://purl.pt/5485/1/sa-87495-v_PDF/sa-87495-v_PDF_X-
C/sa-87495-v_0000_1_tX-C.pdf>. Acesso em: 11 de out.2018.

CONCEIÇÃO, Edilene Maria da. A relação entre a identidade narrativa de Paul


Ricoeur e a identidade política de Hannah Arendt. Revista Estudos Filosóficos.
São João del Rei, n. 6, 2011, p. 65-74. Disponível em:
http://www.ufsj.edu.br/revistaestudosfilosoficos>. Acesso em: 04 mar. 2019.

CORÁ, Elsio. Hermenêutica e teoria da ação em “O Si-mesmo como um outro”


de Paul Ricoeur. 2004. 121 p. Dissertação (Mestrado em Filosofia) – Universidade
Federal de Santa Maria, Santa Maria, RS.

___. Reconhecimento, intersubjetividade e vida ética: o encontro com a filosofia


de Paul Ricoeur. 2010. 238 p. Tese (Doutorado em Filosofia) – Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS. Disponível em:
<http://tede2.pucrs.br/tede2/handle/tede/2849?mode=full>. Acesso em: 07 out. 2017.

___. Entre a ética e a moral: o sujeito encarnado ricoeuriano. CORÁ, Elsio e


LEONHARDT, Ruth R. (Orgs.). O Legado de Ricoeur, Guarapuava: Unicentro,
2011, p. 319-347.

192
___. Paul Ricoeur: do personalismo à pessoa. CORÁ, Elsio, GUBERT, Paulo e
LEONHARDT, Ruth R. (Orgs.). Revista Guairacá. Paraná, v. 29, n. 01, 2013, p. 11-
24.

CORTES, Rafael da Silva. Looking for Kant: considerações sobre o sentimento de


respeito kantiano do ponto de vista da neurociência contemporânea. Studia
Kantiana. v.15, n.3, dez. 2017, p. 79-95. Disponível em:
<http://www.sociedadekant.org/studiakantiana/index.php/sk/article/download/317/270
>. Acesso em 11 mar. 2019.

CORTINA, Adela e MARTÍNEZ, Emilio. Ética. Trad. de Silvana Cabucci Leite. São
Paulo: Edições Loyola, 2001.

D’ALLONNES, Myriam Revault. O Homem Compassional. Lisboa: Lema d’Origem:


2008.

DE ALMEIDA, Danilo Di Manno. Por uma pluralidade de éticas: reflexões a propósito


de Paul Ricoeur e Enrique Dussel. CESAR, Constança Marcondes (Org.). A
hermenêutica francesa, Paul Ricoeur. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2002, p. 135-152.

DE JESUS, Valdinei Vicente. Poética da vontade: uma ética hermenêutica na


perspectiva de Paul Ricoeur. 2018. 164p. Tese (Doutorado em Filosofia) –
Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, RS. Disponível em:
<http://www.repositorio.jesuita.org.br/bitstream/handle/UNISINOS/7059/Valdinei%20
Vicente%20de%20Jesus_.pdf?sequence=1&isAllowed=y>. Acesso em: 04 ago.
2019.

DESCARTES, René. Meditações. Trad. de J. Guinsburg e Bento Prado Júnior. São


Paulo: Nova Cultural, 1991.

___. Discurso do Método. Lisboa: Edições 70, 2013.

DOSSE, François. A história à prova do tempo: da história em migalhas ao


resgate do sentido. Trad. de Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: Editora UNESP,
2001.

___. Paul Ricoeur: um filósofo em seu século. Trad. de Eduardo Lessa Peixoto de
Azevedo. Rio de Janeiro: FGV, 2017. Disponível em:
<https://books.google.com.br/books?isbn=8522519455>. Acesso em: 04 mar. 2019.

DOUEK, Sybil Safdie. Paul Ricoeur e Emmanuel Lévinas: um elegante desacordo.


São Paulo: Edições Loyola, 2011.

DYER e SOTER, Caio de Mesquita e Eduardo Rodrigues. Resenha crítica do Livro


“Como as democracias morrem” de Daniel Ziblatt e Steven Levitsky. Revista
Culturas Jurídicas, v. 5, n. 12, set./dez. 2018, p. 324-335. Disponível em:
<http://www.culturasjuridicas.uff.br/index.php/rcj/article/view/723>. Acesso em: 12
dez. 2019.

193
ESTEVES, Julio. A teoria kantiana do respeito pela lei moral e da determinação da
vontade. Trans/Form/Ação [online]. 2009, vol.32, n.2, p. 75-89. Disponível em:
<https://doi.org/10.1590/S0101-31732009000200004>. Acesso em: 23 mar. 2018.

FABRI, Marcelo. “Personificar” o impessoal: a ambiguidade do termo Pessoa na


fenomenologia de Lévinas. PEIXOTO, ZUBEN e GOTO, Adão, Newton A. e Tommy
A. (Orgs.). A pessoa: da conceituação à afirmação da dignidade humana.
Curitiba: Editora CRV, 2017, p. 135-148.

FARIAS DOS SANTOS e MARCONDES CESAR, Carlos Eduardo e Constança. O


problema do agir e da liberdade em Paul Ricoeur. Anais do XV Encontro de
Iniciação Científica da PUC – Pontifícia Universidade Católica de Campinas –
Campinas/PR, 26 e 27 out. 2010.

GAGNEBIN, Jeanne Marie. Uma filosofia do cogito ferido: Paul Ricoeur. Estudos
Avançados. São Paulo, v.11, n. 30, mai/ago. 1997, p. 261-272. Disponível em:
<https://www.scielo.br/pdf/ea/v11n30/v11n30a16.pdf>. Acesso em: 04 mar. 2019.

GUEDES, Wagner. A captação do sentido e símbolos dos textos na perspectiva de


Paul Ricoeur. Revista Eletrônica Espaço Teológico. São Paulo, v. 8, n. 13, jan/jun.
2014, p. 16-29. Disponível em:
<https://revistas.pucsp.br/reveleteo/article/download/19719/14601>. Acesso em: 04
mar. 2019.

GUBERT, Paulo Gilberto. Alteridade e reconhecimento do outro em Ricoeur.


Thaumazein. Ano IV, n.7, Jul. 2011. p. 73-89. Disponível em:
<http://sites.unifra.br/Portals/1/ARTIGOS/nro_06/Paulo_Gilberto.pdf>. Acesso em:
18 jun. 2013.

___. Paul Ricoeur e o problema do reconhecimento. Sapere Aude. Belo Horizonte,


v. 4, n. 8, 2º sem. 2013, p. 266-283. Disponível em:
<http://periodicos.pucminas.br/index.php/SapereAude/article/view/6552>. Acesso
em: 05 set. 2017.

___. A pequena ética de Paul Ricoeur. Impulso. Piracicaba, 24(59), 2014, p. 81-91.

HELENO, José M. Hermenêutica e ontologia em Paul Ricoeur. Lisboa: Instituto


Piaget, 2001.

HOOFT, Stan Van. Ética da virtude. Trad. de Fábio Creder. Petrópolis: Vozes,
2013.

HUSSERL, Edmund. Meditaciones cartesianas. Trad. de José Gaos e Miguel


García-Baró. San Lorenzo: Progreso, 1996.

JASPERS, Karl. Filosofia. Trad. de Fernando Vela. Madrid: Ediciones de la


Universidad de Puerto Rico, 1959.

194
KANT, Immanuel. Crítica da razão prática. Tradução de Afonso Bertagnoli. São
Paulo: Brasil Editora S/A, 1959. Disponível em:
http://www.ebooksbrasil.org/adobeebook/razaopratica.pdf. Acesso em: 28 jun. 2013.

___. Fundamentação da metafísica dos costumes. Coleção Textos Filosóficos.


Lisboa: Edição 70, 2007.

KOYRÉ, Alexandre. Considerações sobre Descartes. Trad. de Hélder Godinho.


Lisboa: Editorial Presença, 1980.

LAUXEN, Roberto Roque. Pessoa e Promessa em Paul Ricoeur: no caminho das


instituições justas. Museu Pedagógico, 2013, p. 595-607. Disponível em:
<http://periodicos.uesb.br/index.php/cmp/article/viewFile/3036/2743>. Acesso em: 11
mar. 2019.

LEONHARDT, Ruth Rieth. Pessoalidade e alteridade em Paul Ricoeur. Analecta.


Paraná, v. 5, n. 2, jul/dez. 2004, p. 43-57.

LEOPOLDO E SILVA, Franklin. Ética e situações-limite. Cult. São Paulo, n. 51,


2010, p. 48-51.

___. O outro. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012.

MACINTYRE, Alasdair. Depois da virtude. Trad. de Jussara Simões. Bauru:


EDUSC, 2001.

MARCONDES CESAR, Constança. Responsabilidade e Cosmos. Revista Reflexão.


Campinas, n. 69, set/dez 1997, p. 11-18.

___. Multiculturalismo e reconhecimento em Paul Ricoeur. Campinas, 2010, p.


51-55. Disponível em: http://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/8357.pdf>. Acesso em:
17 nov. 2017.

___. Crise e Liberdade em Merleau-Ponty e Ricoeur. Aparecida: Ideias & Letras,


2011.

___. Ação, sabedoria prática e liberdade em Paul Ricoeur. Prometeus Filosofia em


Revista. Sergipe, Ano 6, n. 11, jan/jun 2013, p. 93-106. Disponível em:
<https://seer.ufs.br/index.php/prometeus/article/viewFile/822/731PROMETEUS>.
Acesso em: 07 out. 2017.

MARIOTTO BOTTON, Alexandre. 2005. Autonomia da vontade e interesse moral


em Kant. 95 p. Dissertação (Mestrado em Filosofia) – Universidade Federal de
Santa Maria, RS. Disponível em:
<https://repositorio.ufsm.br/bitstream/handle/1/9102/ALEXANDREBOTTON.pdf?sequ
ence=1&isAllowed=y>. Acesso em: 04 mar. 2017.

MARTINI, Rosa Maria Filippozzi. Buscando, na obra de Ricoeur, indícios de uma


antropologia e seu significado para a educação. IX ANPED SUL. 2012, Santa Cruz

195
do Sul, RS – Universidade de Santa Cruz do Sul/RS – p. 01-15. Disponível em:
<https://livrozilla.com/doc/875594/02_15_32_3212-7583-1..>. Acesso em: 04 mar.
2019.

MEDEIROS, Jonas Torres. Paul Ricoeur, leitor de Freud: contribuições da


psicanálise ao campo da filosofia hermenêutica. Natureza Humana, São
Paulo, v.17, n.1, 2015. Disponível em:
<http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-
24302015000100005>. Acesso em: 04 mar. 2019.

MEIRELES, Cristina Amaro Viana. O cogito partido e ferido de Ricoeur: uma


alternativa a Descartes e Nietzsche. Kínesis, Marília, v. VIII, n. 17, jul. 2016, p. 18-
40.

MORATLLA, Tomás Domingo e GRANDE, Lydia Feito. Bioética narrativa. Madrid:


Escolar y Mayo, 2013.

MOUNIER, Emmanuel. O personalismo. Trad. de João Bérnard da Costa. Lisboa:


Livraria Morais, 1964.

NALLI, Marcos. Paul Ricoeur leitor de Husserl. Trans/Form/Ação. Marília, v. 29, n.


2, 2006. Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-
31732006000200012>. Acesso em: 04 mar. 2019.

NASCIMENTO, Fernando e SALLES, Walter. Paul Ricoeur – Ética, Identidade e


Reconhecimento. São Paulo: Edições Loyola, 2013.

NETO, João Pedro da Luz. Uma apresentação do personalismo de Juan Manuel


Burgos. Revista Primordium, Uberlândia, v.1, n.1, jan.-jun. 2016, p. 40-54.
Disponível em:
<https://www.academia.edu/35135775/Uma_apresenta%C3%A7%C3%A3o_do_pers
onalismo_de_Juan_Manuel_Burgos>. Acesso em: 04 mar. 2019.

NIETZSCHE, Friedrich. Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral. São


Paulo: Nova Cultural, 1999.

___. Fragmentos póstumos. Trad. de Oswaldo Giacóia Júnior. Trans/Form/Ação,


Marília, v. 13, 1990, p. 139-145. Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-
31731990000100009>. Acesso em: 04 mar. 2019.

NUSSBAUM, Martha C. A fragilidade da bondade. Fortuna e ética na tragédia e


na filosofia grega. Trad. de Ana Aguiar Cotrim. São Paulo: WMF Martins Fontes,
2009.

PADILHA, Rafael Alves. Entre o bom e o legal [dissertação de mestrado]. Santa


Maria: Universidade Federal de Santa Maria, 2012.

196
PELLAUER, David. Compreender Ricoeur. Trad. de Marcus Penchel. São Paulo:
Vozes, 2009.

PEREIRA, Luis. Paul Ricoeur, o caminho da sabedoria prática. Diacrítica. Braga, v.


26, n. 2, 2012, p. 470-489. Disponível em:
<http://www.scielo.mec.pt/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0807-
89672012000200027>. Acesso em: 19 abr. 2017.

PEREIRA, Sibélius Cefas. O Si-mesmo como outro. Sapere Aude. Belo Horizonte,
v. 7, n. 12, jan./jun. 2016, p. 594-597. Disponível em:
<http://periodicos.pucminas.br/index.php/SapereAude/article/viewFile/12758/10006>.
Acesso em: 04 mar. 2019.

PEIXOTO, Adão José. A noção de pessoa no personalismo de Mounier. PEIXOTO,


Adão, ZUBEN, Newton A. e GOTO, Tommy A. (Orgs.). A pessoa: da conceituação
à afirmação da dignidade humana. Curitiba: Editora CRV, 2017, p. 13-35.

PIVA, Edgar Antônio. A questão do sujeito em Paul Ricoeur. Síntese, Belo


Horizonte, v. 26, n. 85, 1999, p 205-237. Disponível em: <
http://www.faje.edu.br/periodicos/index.php/Sintese/article/view/683 >. Acesso em:
04 mar. 2019.

REALE, Giovanni e ANTISERI, Dario. Historia da filosofia, 6: de Nietzsche a


Escola de Frankfurt. Trad. de Ivo Storniolo. São Paulo: Paulus, 2006. (Coleção
Historia da Filosofia). Disponível em:
<https://estudos001.files.wordpress.com/2014/08/histc3b3ria-da-filosofia-volume-6-
giovanni-reale-dario-antiseri.pdf>. Acesso em: 11 out. 2018.

REICHERT DO NASCIMENTO, Cláudio. Identidade pessoal e ética em Paul Ricœur:


da identidade narrativa à promessa e à responsabilidade. Études Ricœuriennes/
Ricœur Studies, v. 2, n. 2, 2011, p. 48-62. Disponível em:
<https://ricoeur.pitt.edu/ojs/index.php/ricoeur/article/view/78>. Acesso em: 18 mai.
2018.

___ Uma interpretação sobre a noção de “vida” em paul Ricoeur. WU, Roberto e
REICHERT DO NASCIMENTO, Cláudio (Orgs.). Paul Ricoeur. Vida e narração.
Porto Alegre: Clarinete, 2016, p. 87-118.

___ e ROSSATO, Noeli Dutra. Reconhecimento simbólico e dom. Ethic@.


Florianópolis, v. 9, n. 2, 2010, p. 347-356.

RENAUD, Michel. Depois da “pequena ética” de Paul Ricoeur (1990), o sentido de


sua revisão (2001). NASCIMENTO, Fernando; SALLES, Walter (Org. e Trad.). Paul
Ricoeur, Ética, Identidade e reconhecimento, Rio de janeiro: ed. Puc Rio; São
Paulo: Loyola, 2013.

REPA, Luiz. Reconhecimento da diferença na teoria crítica. TREVISAN, A. L.,


TOMAZZETTI, E. M. e ROSSATTO, N. D. (Orgs.). Diferença, cultura e educação,
v. 1, 2010, p. 17-34.

197
RIBEIRO, Lúcia. Ética, justiça e educação no pensamento de Paul Ricoeur. São
Paulo: Fonte Editorial, 2012.

RICOEUR, Paul. Note sur la personne. Le Semeur, n. 7, mai. 1936, p. 437-444.

___. Le volontaire et l’involontaire. Paris: Aubier, 1950.

___. Personalismo. Emmanuel Mounier: uma filosofia personalista. História e


Verdade. Rio de Janeiro: Forense, 1968, p. 135-165.

___. Le conflit des interprétations: Essais sur l'herméneutique. Paris: Seuil, 1969.

___. O conflito das interpretações: ensaios de hermenêutica. Trad. de Hilton


Japiassu. Rio de Janeiro: Imago, 1978.

___. L'Éthique, la morale et la règle. Autres Temps. v. 24, n. 1, 1989, p. 52-59.


Disponível em: <http://www.persee.fr/doc/chris_0753--
2776_1989_num_24_1_1347>. Acesso em: 10 out. 2017.

___. Soi-même comme un autre. Paris: Éditions du Seuil, 1990. Disponível em:
<http://palimpsestes.fr/textes_philo/ricoeur/ricoeur-soi-meme.pdf>. Acesso em: 07
out. 2017.

___. O si-mesmo como um outro. Trad. de Lucy Moreira Cesar. Campinas:


Papirus, 1991.

___. A Ética, entre o mal e o pior. Entrevista concedida a Yves Pelicier. Paris,
1994. Disponível em:
<http://www.uc.pt/fluc/lif/publicacoes/textos_disponiveis_online/pdf/entrevista_yves_p
elicier>. Acesso em: 07 out. 2017.

___. Em torno ao político. Leituras 1. Tradução de Marcelo Perine. São Paulo:


Edições Loyola, 1995.

___. Réflexion faite. Autobiographie intelectuelle. Paris: Éditions Esprit, 1995a.

___. Da metafísica à moral. Trad. de Sílvia Menezes. Lisboa: Instituto Piaget,


1995b.

___. A Região dos Filósofos. Leituras 2. Tradução de Marcelo Perine e Nicolás


Nyimi Campanário. São Paulo: Edições Loyola, 1996a.

___. Conhecimento de si e ética da ação. 1996b. [Conversa com J. Lecomte, por


ocasião da publicação de Réflexion faite; Autobiographie intelectuelle, publicada na
revista «Sciences humaines», Jul-1996, nº63]. Disponível em:
<http://www.uc.pt/fluc/uidief/textos_ricoeur/conhecimento_de_si>. Acesso em ago.
2019.

___. La lutte pour la reconnaissance et l’economie du don. Paris, Unesco, 2004,


40p.

198
___. Percurso do reconhecimento. Trad. de Nicolás Nyimi Campanário. São
Paulo: Edições Loyola, 2006.

___. O justo 1. Trad. de Ivone C. Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2008a.

___. O justo 2. Trad. de Ivone C. Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2008b.

___. Na escola da fenomenologia. Trad. de Ephraim Ferreira Alves. Petrópolis:


Vozes, 2009.

___. O problema do fundamento da moral. Études Ricoeuriennes, v. 2, n. 2, 2011,


p. 129-145. Disponível em:
<http://ricoeur.pitt.edu/ojs/index.php/ricoeur/article/viewFile/110/43>. Acesso em: 23
abr. 2015.

___. Ética e Moral. Trad. de Antonio Campelo Amaral. Covilhã: LusoSofia, 2011a.
Disponível em: <http://www.conteudojuridico.com.br/livro-digital,etica-e-moral-paul-
ricoeur-traducao-por-antonio-campelo-amaral,35379.html>. Acesso em 07 out. 2017.

___. O si-mesmo como outro. Trad. de Ivone C. Benedetti. São Paulo: WMF
Martins Fontes, 2014.

ROSSATTO, Noeli Dutra. Viver bem. A “pequena ética” de Paul Ricoeur. Mente,
Cérebro e Filosofia. São Paulo, v. 11, 2008, p. 26-33.

___. A ética de Paul Ricoeur. In: SILVEIRA, D. C.; HOBBUS, J. (Orgs.). Virtudes,
direitos e democracia. Pelotas: Editora Universitária Ufpel, 2010a, p. 45-60.

___. A invenção e a regra – dialética da aprendizagem moral. TREVISAN, A. L.,


TOMAZZETTI, E. M. e ROSSATTO, N. D. (Orgs.). Diferença, cultura e educação,
v. 1, 2010b, p. 257-271.

___. Solicitude e respeito. A segunda pessoa da ética. Disputatio. Philosophical


Research Bulletin. Lisboa, 5:6, 2016, p. 187-204. Disponível em:
<https://gredos.usal.es/jspui/bitstream/10366/131924/1/2016%20Rossatto%2Etica.p
df>. Acesso em: 07 out. 2017.

___. O respeito ao outro na ética de Paul Ricoeur. Dissertatio. Volume


Suplementar. Pelotas, 8, Out 2018. p. 125-130. Disponível em:
<https://periodicos.ufpel.edu.br/ojs2/index.php/dissertatio/article/view/14585>.
Acesso em: 03 mar. 2019.

ROSSETTI, Ricardo. Justiça em Paul Ricoeur: uma hermenêutica do homem justo.


São Paulo: LiberArs, 2015.

RUBIO, Alfonso Garcia. Unidade na Pluralidade. 3. ed. São Paulo: Paulinas, 1989.

SALDANHA, Fernando A. Maia. Do sujeito capaz ao sujeito de direito: um


Percurso pela filosofia de Paul Ricoeur. Tese (Doutorado em Letras) – Universidade

199
de Coimbra: 2009. Disponível em:
<https://estudogeral.sib.uc.pt/bitstream/10316/11211/3/Fernando%20Saldanha_tese.
pdf>. Acesso em: 04 mar. 2019.

SANTOS SOUZA, Andréa. Parâmetros éticos em Paul Ricoeur. São Paulo: Letras
do Pensamento, 2013.

SILVEIRA, Gefferson Silva da. Sobre alguns conceitos kantianos na ética de Paul
Ricoeur. CORÁ, E. J., GUBERT, P. e LEONHARDT, R. R. (Orgs). Revista
Guairacá. Paraná, v. 29, n. 1, 2013, p. 69-85.

SIMÕES, Adelson C. Solicitude e respeito ao outro em Paul Ricoeur [Dissertação


de mestrado]. Santa Maria: Universidade Federal de Santa Maria, 2013.

STRAWSON, Peter F. Individuos: Ensayo de metafisica descriptiva. Trad. de


Alfonso Garcia Suárez e Luis M. Valdés Villanueva. Madri: Taurus Humanidades,
1989.

VIEIRA, Allan J.A pequena ética ricoeuriana: entre teleologia e deontologia. CORÁ,
E. J., GUBERT, P. e LEONHARDT, R. R. (Orgs). Revista Guairacá. Paraná, v. 29,
n. 1, 2013, p. 45-67.

200

Você também pode gostar